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Organizadoras

Sueli Salva
Débora Teixeira de Mello
Simone Freitas da Silva Gallina

Educação das infâncias:


percursos, experimentações e criações em
contextos educativos

Foz do Iguaçu
2024
© 2024, CLAEC

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12/73. Nenhuma parte deste livro, sem
autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida para fins comerciais,
sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer
outros. Aplica-se subsidiariamente a licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).

Capa: Sueli Salva, a partir do desenho de Cristian – 3 anos.


Revisão: As organizadoras
ISBN 978-65-86746-41-9
DOI: https://doi.org/10.23899/9786586746419
Disponível em: https://publicar.claec.org/index.php/editora/catalog/book/119

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Educação das infâncias [livro eletrônico]: percursos,
experimentações e criações em contextos educativos /
organização Sueli Salva, Débora Teixeira de Mello, Simone
Freitas da Silva Gallina. – Foz do Iguaçu, PR: Editora CLAEC,
2024. PDF.

Vários colaboradores.
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-86746-41-9

1. Educação Infantil. 2. Infâncias. 3. Políticas Públicas. I. Título.

CDD: 370

Os textos contidos neste e-book são de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores e
autoras, incluindo a adequação técnica e linguística.
Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura – CLAEC
Diretoria Executiva

Me. Bruno César Alves Marcelino Dra. Cristiane Dambrós


Diretor-Presidente Diretora Vice-Presidente

Dra. Betania Maciel Dr. Fábio do Vale


Diretora Vice-Presidente Diretor Vice-Presidente

Editora CLAEC

Me. Bruno César Alves Marcelino Dra. Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo
Editor-Chefe Editora-Assistente

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Editor-Chefe Adjunto Editora-Assistente

Conselho Editorial

Dra. Ahtziri Erendira Molina Roldán Dra. Marie Laure Geoffray


Universidad Veracruzana, México Université Sorbonne Nouvelle – Paris III, França

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Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil Universidade Federal do Mato Grosso, Brasil

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Dr. Francisco Xavier Freire Rodrigues Dra. Susana Dominzaín


Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidad de la República, Uruguai

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Universidade Federal Fluminense, Brasil Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil

Dr. José Serafim Bertoloto Dr. Wilson Enrique Araque Jaramillo


Universidade de Cuiabá, Brasil Universidad Andina Simón Bolivar, Equador
Comitê de avaliação dos artigos (pareceristas ad hoc)

Professora Drª Jucemara Antunes – UEIIA

Professora Drª Juliana Goelzer – UFRGS

Professora Drª Magda Schmidt – Rede Municipal de Santa Maria

Professora Drª Vívian Jamile Beling – UEIIA

Professor Dr. Renan Santos Mattos – UFFS

Professora Drª Kelly Werle – UFSM

Desenho: Mirela – 4 anos


Desenho: Melinda – 4 anos

“– Quanto pesa uma lágrima?


– Depende: a de uma criança manhosa pesa menos que o vento, a de uma
criança com fome pesa mais que toda a terra”
(Gianni Rodari em Fábulas por telefone, Editora 34, 2018).
Foto: Jaqueline Michael Kruger – EMEI Professora Marlene Leonhardt – Três Passos – RS
Sumário
Prefácio, ou, sobreviver num mundo desatento 10
Marcia Aparecida Gobbi
Apresentação 16
Sueli Salva, Débora Teixeira de Mello, Simone Freitas da Silva Gallina

Questões para (re)pensar a descolonização e suas metáforas 20


Eduardo Pereira Batista, Ana Lúcia Goulart de Faria
DOI: 10.23899/9786586746419.1
L’educazione dell’infanzia tra non più e non ancora 31
Agnese Infantino
DOI: 10.23899/9786586746419.2

A educação da infância entre o não mais e o ainda não 46


Agnese Infantino
DOI: 10.23899/9786586746419.3

Observações sobre como Ana Júlia aprende a falar: uma conversa com Wittgenstein 61
Antonio Miguel, Ana Júlia Valim Miguel Verly
DOI: 10.23899/9786586746419.4

Pesquisa com crianças e reflexividade construcionista: modos de olhar e modos de ver 94


Sueli Salva
DOI: 10.23899/9786586746419.5
A pesquisa com crianças: um espaço para o protagonismo infantil 115
Heloisa Elesbão, Jordana Lima, Graziele Fernandes
DOI: 10.23899/9786586746419.6
Crianças negras migrantes 130
Flávio Santiago, Renata Santos da Silva, Yeison Arcadio Meneses Copete
DOI: 10.23899/9786586746419.7
A escola de Educação Infantil e o Programa de Escolas Associadas UNESCO: implicações na
gestão pedagógica e administrativa 150
Sabrina Magrini Peixoto Machado, Débora Teixeira de Mello
DOI: 10.23899/9786586746419.8
A captura do que pode o corpo da criança: práticas de violências imperceptíveis 173
Simone Freitas da Silva Gallina
DOI: 10.23899/9786586746419.9

Práticas pedagógicas na educação infantil: reflexões sobre crianças, infâncias e


descolonização 182
Janaína Raquel Cogo, Jaqueline Bussler Michael Krüger
DOI: 10.23899/9786586746419.10
Interfaces entre infância, brincar e tecnologias digitais 202
Cristiane Inês Bremm, Ilse Abegg
DOI: 10.23899/9786586746419.11

Entre os muros escolares, o verde se faz presente: a horta escolar e a Educação Infantil 217
Mariana Borges Lemes, Marcia Fernanda Heck
DOI: 10.23899/9786586746419.12
A importância do lúdico e do brincar em atividades geoeducativas: o caso do Geodia, no
Geoparque Caçapava Mundial UNESCO, RS 237
Eduarda Caroline Brum, André Weissheimer de Borba
DOI: 10.23899/9786586746419.13

Seguindo as crianças na educação infantil 254


Lucas da Silva Martinez
DOI: 10.23899/9786586746419.14
Práticas educativas com e para as crianças: reflexões de duas professoras de diferentes
contextos 270
Angelita Maria Machado, Juliane Ilha Marafiga
DOI: 10.23899/9786586746419.15

Sobre as autoras e autores 287


Foto: Deise Pinheiro – EMEF Espírito Santo, Horizontina – RS
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Prefácio, ou, sobreviver num mundo desatento


Marcia Aparecida Gobbi

Carissimes leitora, leitor, leitore

Ler o livro “Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos


educativos” e prefaciá-lo num momento de tantos pesares relacionados às vidas de crianças, e
que passam indiferentes aos olhos e práticas de tantas pessoas, inclusive nos espaços
educacionais, é um alívio. Alívio criativo e não reconforto apaziguante, silenciador, ou até
mesmo, de assujeitamento. Não. Trata-se daquele que impulsiona a produção de pensamentos
sobre infâncias, educação, experimentos e criação de vida. Neste mundo em que as guerras e
condições similares de produção da morte1 pouco têm nos tomado conta sensivelmente,
levando-nos a abandoná-las seguindo em frente sem pestanejar, ler algo que trate crítica e
amorosamente da educação de crianças é um conforto.

Nessa prática de produção de vida, vale mencionar que logo na abertura nos deparamos
com desenhos feitos por crianças. Manifestações expressivas nem sempre lembradas por quem
atua profissionalmente, ou pesquisa com e sobre crianças, eles têm sido deixados um pouco de
lado como fundamental expressão plástica da infância, em que as culturas infantis também
encontram-se presentes nestes, que são artefatos culturais da infância. São textos imagéticos
em meio a outros escritos, sem competição entre as linguagens e com isso, ainda que
indiretamente, as crianças também produzem o livro, como obra a muitas mãos, assuntos e
cores.

1
Refiro-me às dezenas de milhares de crianças mortas em Gaza pelos ataques feitos por Israel, mas também aos
milhões de crianças em risco de morte. Atualmente, discutir infância é também investigar essas condições de
produção das infâncias e não podemos ficar incólumes. Notícias consultadas, entre tantas outras:
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2024/03/26/inumeras-criancas-em-risco-de-morte-no-
haiti-alerta-unicef.htm e https://www.unicef.org/brazil/criancas-em-gaza-precisam-desesperadamente-de-
apoio-para-continuar-vivas.

10
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Na continuidade da leitura, importa fazer uso das palavras de Mario Lodi para expressar
parte dos sentimentos e reflexões suscitados:

compreender que escrever é descobrir os outros, que as palavras são também sons e
cores, que a história não é aquela dos manuais, que se pode estar junto, ainda que sejamos
diferentes, é aquilo a que tem acesso os estudantes de Mario Lodi (LODI, 2017, p. 5).

Ressalto a importância da descoberta dos outros e descobrir-se nos outros, um fator


importante para a construção das relações, e não seria diferente quando estamos com as
crianças, seja na realização de pesquisas acadêmicas, seja naquelas necessárias para a produção
do cotidiano escolar, desde a creche. Diz respeito também às ideias de Loris Malaguzzi
mencionadas logo na Apresentação, às quais somo insistente afirmando que se trata de fazer a
escola cada dia melhor, mas sabendo de qual escola estamos falando e onde nossos pés pisam
e nossas práticas são entrelaçadas.

Ao lermos sobre experiências críticas com crianças, somos convocadas a pensar sobre a
linha tênue entre creches e escolas e o que há em seu entorno, como se propositadamente uma
descontinuidade fosse forjada de modo a separar ambos os lados, em lados opostos, quando
não, vistos em estado de competição – rememoro as antigas falas sobre a participação na escola
e a relutância em receber familiares de estudantes. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, se
replica a ideia de que somos empreendedoras/es, ou exatamente aquilo que queremos ser.
Pergunto-me nutrida por algumas leituras, sobre quais espaços e territórios são forjados dentro
e fora dos espaços escolares, e quais são as relações estabelecidas ou rechaçadas junto às suas
comunidades. Ressalta-se pedagogias inventivas, mas onde estamos quando o assunto são as
desigualdades vistas na dimensão da vida interna dos serviços educativos, ou ainda, quando não
questionamos os espaços para o real protagonismo infantil, temas tratados em capítulos deste
livro.

O pedagogo e político Malaguzzi, cujas ideias e o arregaçar de mangas, fez erguer dos
escombros da Segunda Guerra, no norte da Itália, práticas coletivas entre pessoas cujas

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

urgências refletiram-se na produção de uma educação pautada, entre outras coisas, no cuidado
e na primazia das relações entre as pessoas, sua cidade, e a produção de um pensamento
pedagógico voltado para as singularidades das crianças, ao mesmo tempo, em que se debruçava
em suas diferenças. Há uma prática política embutida na busca por modificar aspectos do
mundo e com as crianças, que não pode ser esquecido. Chamo a atenção para que se perceba
e se busque conhecer as transformações sociais e os processos de emancipação que surgiram
e surgem, quando surgem, das lutas sociais, e, para isso, Malaguzzi, assim como Paulo Freire,
são também importantes, junto a tantas outras pessoas, cujas insurgências parecem estar
sendo esmagadas por políticas subordinadas aos preceitos fundamentais do neoliberalismo,
tocado, inclusive num dos capítulos que compõem a obra. Toco em outro ponto, e questiono,
inspirada pela leitura e seus possíveis desdobramentos: de que modo o neoliberalismo tem
causado o depauperamento do cuidado, que se faz tão necessário como prática fundante na
educação? Sabemos que não se trata apenas de um projeto econômico, mas da produção de
relações e sujeitos, desde a infância, diria desde o berço, para aquelas que tem ou não o tem.
Sem querer prescrever uma receita, ressalto a importância de pensarmos em pesquisas e
práticas pedagógicas em que nos provoquemos a refletir sobre o quanto temos aquiescido
diante do atual cenário. As ruinas estão diante de nossos olhos, a colonização encontra-se
ferozmente presente no contexto educativo, assim como, as perspectivas tecnicistas,
reprodutivistas e preparatórias, e nós? De qual lado nos encontramos efetivamente? Talvez, a
Ana Julia, nos ofereça boas respostas e apresente alguns caminhos (vocês só conhecerão a Ana
Julia lendo o livro...).

Como mencionei, não entendo o prefácio como espaço para discutir sobre cada um dos
textos escritos, mas destaco algumas ideias contidas nos capítulos. São elas, em síntese:

• Livro materializa encontros e afetos;

• Questionar a colonização presente no contexto educativo;

• Práticas educacionais estão em interação com contextos culturais, contra perspectivas


tecnicistas, reprodutivistas, preparatórias.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

• Crise climática;

• Estudo sobre linguagem de bebês;

• Dimensão da vida no interno dos serviços educativos;

• Pesquisas com e sobre crianças;

• Protagonismo infantil;

• Racialização e acolhimento e a inserção das crianças migrantes africanas e das crianças


negras haitianas;

• O direito a vida e à liberdade de crianças diferentes;

• A projeção dos interesses neoliberais nos direitos das crianças;

• As hortas nas escolas;

• A importância da intencionalidade pedagógica;

• A cultura digital e as culturas infantis;

Essas ideias encontram-se nos capítulos e lhes dão sustentação. Estão bastante
condensadas, pois a intenção não é resumi-las e antecipar a leitura do todo, como já
mencionado, mas estabelecer algumas aproximações apenas para informar e nos provocar a
pensar nas relações existentes entre o que está posto e a as inúmeras experiências possíveis
com as crianças.

O livro que vocês têm em mãos pode ser compreendido como um ponto de vista que
entrelaça outros tantos internamente, mas também, fora dele. Apresenta-nos jeitos de fazer a
educação nos espaços escolares e na academia com, para e sobre as crianças. Se “distraídos
venceremos”, como escreveu o poeta Paulo Leminski em alusão ao “unidos venceremos”,
conhecida máxima popular, evoco a distração criadora e a somo à sobrevivência a um mundo
desatento, ou, sobreviver desatentos no mundo. Vale pensar que certa dose de desatenção tem

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

custado um pouco caro às nossas vidas quando ela desqualifica as chamas que ardem nas
florestas, o incêndio que nos queima por dentro, a 40 graus à sombra, ou sem ela, entre
transeuntes apressados, pessoas pedindo alimentos, e o medo assolando as relações entre
pessoas e nos espaços, desigualdades em suas diferentes facetas para as quais não podemos
estar desatentas/os/es.

É com um pisar firme e leve sobre a terra do que fora apresentado ao longo das mais de
200 páginas, envolvendo reflexões sobre pesquisas, práticas pedagógicas e imaginação com as
crianças que vou finalizando e convidando a todas as pessoas a lerem, pensarem e discutirem
sobre os textos aqui contidos e suas ideias, num movimento leve entre distração criadora e
desatenção atenta às agruras e alegrias da vida.

Referências
LODI, Mario. Il paese sbagliato: diario di un’esperienza didattica. Roma: Casa Editrice Einaudi, 2017.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Deise Pinheiro – EMEF Espírito Santo, Horizontina – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Apresentação
Sueli Salva
Débora Teixeira de Mello
Simone Freitas da Silva Gallina

Pensemos em uma escola infantil como um organismo vivo integral, como lugar de vidas
e relacionamentos entre muitos adultos e muitas crianças. Pensamos na escola como um
tipo de construção em movimento, em ajuste contínuo (Loris Malaguzzi - em entrevista
a Lella Gandini1, 2016, p. 57).

Um livro materializa encontros e afetos. Nos afetos dos encontros nos mobilizamos a
pensar linhas de escritas do que aprendemos a olhar, escutar e pensar coletivamente para
construir uma escola com as infâncias. Nos inspiramos com Loris Malaguzzi a fazer uma escola
cada dia melhor.

Mesmo diante das políticas públicas afirmarem a criança como sujeito de direitos,
produtora de cultura, e estabelecer como orientação não antecipar práticas de escolarização
na Educação Infantil, por que ainda percebemos que a criança e a infância são invisibilizadas?
Ainda nos deparamos com práticas na Educação Infantil que não vão ao encontro da criança
como sujeito histórico e social, sendo a colonização presente no contexto educativo.

Não temos receitas, mas temos princípios, não temos modelos, mas temos experiências
que experimentamos, não queremos copiar, não queremos reproduzir. Queremos um percurso
próprio, inspiradas em pesquisadores e pesquisadoras que nos antecederam, nas políticas
públicas construídas até este momento, com um olhar atento e uma escuta sensível na
expressão de nossas crianças.

1
MALAGUZZI, Loris. História, ideias e princípios básicos: uma entrevista com Lóris Malaguzzi. In: EDWARDS,
Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George. As Cem Linguagens da criança: A experiência de Reggio Emilia em
transformação. Porto Alegre: Penso, 2016. p. 45-86.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Do mesmo modo pensamos que as práticas educativas precisam estarem em interação


com os contextos e culturas, pois, sendo a educação infantil etapa da educação básica ainda
“criança” e, por isso, em tempo de construção, o que se vê, em muitos contextos, são
perspectivas tecnicistas, reprodutivas, antecipatórias, preparatórias para a etapa seguinte, com
o aval de algumas políticas públicas. A escola tem sido, em alguma medida, um lugar de
paradoxos: ora cria um lugar de experimentações permitindo que a criança vivencie a infância
ora a convoca a abandonar a infância e ingressar no mundo adulto.

Na esteira dessas concepções, no ano de 2022 organizamos o Seminário “Educação


Infantil: Pesquisa, Políticas Públicas e Práticas Educativas” ofertado nos programas de Pós-
graduação do Centro de Educação da UFSM. As atividades do Seminário, tiveram um caráter
interinstitucional com a participação das Professoras Agnese Infantino - Universitá degli Studi
di Milano Bicocca, a Professora Catarina Tomás – do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais
da Nova Lisboa (CICS. Nova), a Professora Ana Lúcia Goulart de Faria – Professora aposentada
colaboradora da Faculdade de Educação – UNICAMP e do Pós-Graduação e o Professor Flávio
Santiago, pesquisador no Grupo de Estudos e Pesquisa Sociologia da Infância e Educação
Infantil (GEPSI/ USP) e no Grupo de Pesquisas e Estudos em Geografia da Infância (GRUPEGI).

O objetivo do seminário foi discutir os princípios teórico-epistemológicos das políticas e


das práticas educativas da/com/para a Educação Infantil. Foram encontros intensos e de
discussões de questões candentes para a Educação Infantil. A dinâmica do Seminário previa
leituras, elaboração de perguntas com antecedência a partir de leituras de textos relacionados
ao tema, sendo as perguntas dispositivo para o diálogo durante o encontro.

A partir das discussões consideramos que seria importante registrar as discussões


suscitadas durante o Seminário. Foi assim que surgiu a ideia de produção de um livro. Para dar
início organizamos eixos que pudessem contemplar o percurso das discussões, são eles: a)
Princípios teórico-epistemológicos das práticas educativas e pedagógicas da/com/para a
Educação Infantil; b) Políticas públicas para a infância: direitos da criança, qualidade da oferta
da Educação Infantil, finalidades e especificidades da educação infantil; c) A pesquisa com

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

crianças, reflexividade, processos de descolonização e lugar do sujeito; d) As experiências


educativas em contexto: experiências brasileiras, italianas e portuguesas.

Enfim, é preciso continuar desobedecendo a lógica que baliza as práticas de silenciamento


e invisibilidade das infâncias e garantir a existência das múltiplas formas das crianças habitarem
a escola.

Desenho: Milena – 3 anos

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Marcia Fernanda Hech – EMEI Eufrázia Pengo Lorensi – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Questões para (re)pensar a descolonização e suas


metáforas
Eduardo Pereira Batista
Ana Lúcia Goulart de Faria

Introdução
O presente ensaio segue o estilo fragmentário de Walter Benjamin. A partir de pequenos
textos que foram reunidos aqui em rigorosa alternância entre o agir e o escrever, buscamos
cultivar as formas modestas de expor nossos pensamentos e, nessa exposição, (re)pensar
nossas práticas e nossos discursos. A composição desses pequenos textos se articula em torno
da descolonização e suas metáforas.

Ponta cabeça
Quando pela primeira vez apresentamos para alguém o mapa-múndi cartografado
segundo a projeção de Arno Peters (1916-2002), é comum pensar que o mapa está de ponta
cabeça.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Figura 1 - Projeção de Arno Peters (1916-2002)


Fonte: Faria e Finco (2011, p. 05).

O mapa-múndi segundo a projeção de Gerhard Mercator (1512-1594) coloca o continente


europeu no centro do planisfério. Ao tomar nas mãos o mapa de Peters, a reação de quem se
acostumou com a representação eurocêntrica do globo terrestre é a de corrigir a posição do
mapa, ou a de angular o pescoço tanto quanto possível para reconhecer aqueles países cujas
imagens são agora minúsculas. É como se os países que acumularam riqueza, desde o século
XV, com base no tráfico de pessoas negras e na exploração predatória da natureza, estivessem
encurralados entre África e Europa oriental. Ocorre que o mundo não está de cabeça para baixo

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

na projeção de Peters. Nesse planisfério, o continente africano está no centro do mapa. Com
essa perspectiva, a maioria dos países do hemisfério sul são maiores, bem maiores que a maioria
dos países do hemisfério norte. Diante dessa nova representação do espaço geográfico,
podemos nos perguntar: por que conhecemos tão bem os contos dos irmãos Grimm ou as
fábulas de La Fontaine, e mal conhecemos as narrativas ancestrais dos yorubás ou os itãs dos
orixás? A representação do espaço modifica não apenas nosso modo de ver e de pensar as
relações de poder entre os territórios de cada continente, mas também nos dá a pensar os
modos de conhecer e transmitir as diferentes tradições culturais para os/as recém-
chegados/as em nosso mundo humano e comum.

Um imaginário
Propusemos certa vez um experimento mental em uma formação para professoras/es
que atuavam com crianças pequenas, em um município do interior de São Paulo. Pedimos que
desenhassem uma casa em uma folha de papel e que usassem os mesmos materiais que
comumente são oferecidos às crianças nas creches e pré-escolas. O pedido foi feito assim, de
maneira assertiva, e sem nenhuma orientação específica. Sob a justificativa de que não
dominavam as técnicas da arte do desenho, algumas/alguns professoras/es diante desse
inusitado começo demoraram certo tempo para soltar o primeiro traço. Outras/os, em poucos
segundos, entregaram seus desenhos como se tivessem na ponta da língua a resposta para uma
pergunta óbvia e banal. Ao término do exercício, recebemos uma série de desenhos com casas
estereotipadas, casas com um único volume e telhado de duas águas. Os desenhos mais
caprichados, para não dizer colonizados, vinham ainda com o telhado recortado por uma
chaminé. A questão não era identificar quem sabia ou não desenhar uma casa. Poderíamos pedir
outra imagem qualquer, uma árvore, por exemplo. Muito possivelmente receberíamos uma
série de macieiras estereotipadas, com copas que se parecem mais com aqueles balões de
pensamento na linguagem dos quadrinhos, que qualquer árvore que um dia tivemos a
experiência de ver, tocar ou sentir o cheiro. Tanto em um caso quanto noutro, nosso
pensamento apela ao imaginário eurocêntrico e dele apanha as representações daqueles
objetos que nos são, ao mesmo tempo, estranhos empiricamente e familiares pelo efeito da

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

colonização. Nossos bosques não apenas têm mais vidas do que os bosques europeus. Nossos
bosques são florestas, biomas completamente diferentes uns dos outros, com uma diversidade
de espécies assustadoramente diversificadas. Por que diante de múltiplas possibilidades de
representação insistimos em um único modo de representar casas, árvores e tantos outros
objetos da vida cotidiana? E por que, na qualidade de professoras/es, insistimos em que as
crianças percebam as coisas ao seu redor de maneira estereotipada?

Língua estranha
Em uma palestra proferida no Museu da Língua Portuguesa, em 07 de maio de 2022,
Ailton Krenak aponta para a adoção de uma língua estranha como estratégia do poder colonial.
Adotar uma língua estranha para silenciar a multiplicidade de línguas faladas pelos povos
originários, que viviam em nosso continente antes da invasão portuguesa, foi uma estratégia
para dominar não apenas o território, mas também a subjetividade das populações indígenas.
Essa estratégia colonizadora foi amplamente utilizada pela Companhia de Jesus e ainda
podemos sentir seus efeitos nos dias de hoje, centenas de anos depois do fim das missões
jesuíticas na América. Segundo Krenak (2022):

Quando os jesuítas chegaram aqui, eles acharam que tinha muita língua estranha. E o
primeiro gesto deles, um gesto muito celebrado, foi fazer uma escrita de uma língua para
que as línguas estranhas deixassem de ser fluentes e fossem substituídas por uma língua.
O que tem um sentido muito prático: se você quer colonizar algum lugar do mundo,
imprima uma língua. A língua é uma máquina de colonização afiada. Isso não quer dizer
que a gente precisa cortar a mão toda hora. Alguns podem aprender a lidar com isso com
sabedoria, cuidado, destreza, perseverança.

Uma língua estranha que substitui línguas estranhas. Com esse gesto, nosso pensamento
se habituou com a língua estranha dos colonizadores e se desabituou com as línguas estranhas
dos povos indígenas. Quantos de nós, professoras e professores, conhecemos os vestígios de
alguma língua estranha que foi esquartejada por essa máquina de colonização afiada?
Sabedoria, cuidado, destreza e perseverança são os pontos cardeais para nos orientarmos no
espaço dessa língua estranha do colonizador.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O que resta da colonização


Seguindo as análises de Franz Fanon, na Crítica da Razão Negra, o filósofo africano
Achille Mbembe (2018) aponta para duas características da colonização às quais o psiquiatra
martinicano deu pouca atenção. Para além do racismo colonial, cuja origem se encontra no
poder soberano do olhar, o qual tornava indiferente o terror que violava os corpos negros
escravizados, a colonização tinha outras duas características: a violência da ignorância e a
produção de uma máquina de desejos e fantasias. Essa violência envolvia não apenas a
ignorância deliberada e estratégica das línguas dos povos colonizados, mas também das
diferentes culturas que habitavam originariamente a colônia, das divisões do território pelos
povos indígenas, de seus ritos e cosmovisões, suas tradições e narrativas orais. Assim como os
franceses não sabiam nada da Argélia quando a invadiram, e nem tinham preocupação nenhuma
de saber (Mbembe, 2018), os portugueses também ignoravam tudo aquilo que rapinavam e
destruíam pelo uso da força e da violência. “A ideia era a de que a colônia consistia, acima de
tudo, num campo de batalha. E, num campo de batalha, a vitória cabe ao mais forte, não ao mais
sábio” (Mbembe, 2018, p. 203). Além da violência da ignorância, a colonização lançava mão
também de uma prodigiosa máquina de produzir desejos e fantasias, um dispositivo
fantasmático de engendrar, tanto no colonizador quanto no colonizado, a ideia de que não havia
limite para a acumulação de riqueza, nem para a aquisição de propriedade. Essa máquina
produzia, portanto, a ideia de que não havia limite para o desejo. Estas são, de acordo com
Mbembe (2018), as três características da colonização, a saber: o poder soberano do olhar, a
violência da ignorância e a invenção de uma máquina de desejos e fantasias. Seria possível
descolonizar nosso pensamento sem, ao mesmo tempo, descolonizar nossos desejos e nossas
fantasias? Nossa indiferença pelo racismo, pela desigualdade e injustiça, nosso apreço pelo
consumo de bens inúteis e supérfluos, nossa ignorância das diferentes tradições culturais que
sobreviveram pelo esforço e pela resistência das populações negras, quilombolas, ribeirinhas e
indígenas no Brasil não seriam vestígios do que resta ainda da colonização?

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Irmãos gêmeos
Para a socióloga e feminista Heleieth Saffioti (2015), o racismo que estruturou o modo
de produção escravista é irmão gêmeo do sexismo. A violência colonial que foi levada a cabo
pelos colonizadores diferia estrategicamente homens e mulheres em suas práticas. Contra
os/as escravizados/as, o poder colonial empregava ostensivamente o uso da força e da
violência. Os homens negros eram temidos pelos colonizadores, pois, ao dispor em média de
mais força física do que as mulheres, representavam risco iminente de levantes e revoltas
(Saffioti, 2015). Já os corpos negros das mulheres escravizadas, além de igualmente servirem
como mercadoria e força de trabalho, tinham outros propósitos. Uma vez que constituíam um
excedente que possibilitava a perpetuação do modo de produção escravista, seus corpos eram
não apenas violentados, mas violados; eram convertidos não apenas em produtos com valor de
troca, mas também em objetos sexuais para satisfazer o sadismo e a perversão dos senhores.
Os corpos negros das mulheres escravizadas possuíam, portanto, três funções na engrenagem
do sistema escravista: constituíam força de trabalho nesse modo de produção, eram
reprodutores dessa força de trabalho e cediam favores sexuais aos colonizadores (Saffioti, 2015).
Estas seriam, segundo Saffioti (2015), as raízes do sexismo, que é tão velho quanto o racismo;
uma prova cabal de que o gênero não é somente uma construção social fantasmática, mas dele
participa também o corpo. Se racismo e sexismo são irmãos gêmeos é porque nascem de uma
mesma constelação de acontecimentos históricos, que pode ainda nos dias de hoje ser vista a
olho nu no céu cinzento do capitalismo. A prática pedagógica de segregação entre meninos e
meninas nas instituições de Educação Infantil, de separar e oferecer brinquedos de acordo com
o sexo biológico das crianças, de interditar às meninas certas brincadeiras que são de meninos
ou vice-versa, não mimetizaria a antiga prática colonial de segregação entre homens e
mulheres?

Rachismo
Uma pesquisa realizada na cidade de Rondonópolis, em Mato Grosso, analisa as práticas
que separam meninos e meninas em uma instituição de Educação Infantil. As pesquisadoras

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Sandra de Camargo e Raquel Salgado (2019) mostram que essa separação naturaliza relações de
poder que são produtoras de desigualdades. Ao separar meninos e meninas e, ao mesmo tempo,
inventariar os brinquedos e as brincadeiras como sendo supostamente de meninos e de
meninas, cria-se uma barreira para a circulação do desejo. Essa barreira obedece aos
imperativos da heteronormatividade que, por meio de rigorosos processos de masculinização
e de feminilização, define de maneira estanque o que é próprio do ser menino e o que é próprio
do ser menina. No entanto, como bem apontam as pesquisadoras, essas práticas são
contestadas pelo agir das crianças que, no cotidiano de creches e pré-escolas, produz
rachaduras para resistências e transgressões. Diante dessa prática que separa meninos e
meninas no ato de brincar, uma menina fazendo ressoar o discurso da norma afirma que não
gostava de brincar com dinossauros quando estava na brinquedoteca, porque isso era
brincadeira de menino. Ao ouvir essas palavras, outra menina reponde que “cada um brinca
com o que quiser”, e afirma categoricamente que “isso aí é rachismo!” Sua fala enuncia uma
estratégia e nomeia uma prática. Seu corpo no ato de brincar interpela a norma, sua
performance põe em questão os estereótipos de gênero, que são aprendidos e ensinados desde
o nascimento.

O “rachismo”, nesse contexto, dimensiona o sentimento da menina que não aceita o que
lhe é socialmente imposto que, assim como usa uma palavra inventada para expressar
suas ideias e sentimentos, também deseja um modo diferente de ser e existir no mundo.
O “rachismo” é uma denúncia do quanto as desigualdades são sentidas e percebidas pelas
crianças. O “rachismo” fala de como as crianças são expostas a um mundo rachado,
dicotomizado (Camargo; Salgado, 2019, p. 38).

Ocorre que, no interior de uma instituição de Educação Infantil, esse gesto pode ser visto
pelo/a adulto/a como um modo de desobediência ou como uma forma de resistência; e, por
conseguinte, ele/a pode encarnar a lei e interditar o desejo de brincar com o que quiser,
aplicando o controle e a correção dos corpos a fim de evitar quaisquer desvios; ou pode abrir-
se para o outro na arte da escuta e interrogar as rachaduras que existem nessas práticas. No
lugar de professoras e professores, como nos posicionamos frente a esse gesto que questiona

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

nossas práticas? Estamos cotidianamente abertas/os para a problematização das crianças que
pode abalar as desigualdades que são produzidas pelo adultocentrismo?

Nó frouxo
Gênero, classe e raça são marcadores sociais das diferenças. Para compreender uma
realidade histórica composta por estas três subestruturas, gênero, classe social, raça/etnia,
Heleieth Saffioti (2015) propõe uma abordagem nodal. Cada uma dessas subestruturas possui
uma lógica específica, porém, quando são entrelaçadas no seio de uma nova realidade, o novelo
patriarcado-racismo-capitalismo engendra contradições que devem ser analisadas em sua
condição de entrelaçadas ou enoveladas. “De acordo com as circunstâncias históricas, cada
uma das contradições integrantes do nó adquire relevos distintos” (Saffioti, 2015, p. 133-134). É
por isso que o nó deve ser um nó frouxo, e não um nó górdio ou apertado demais. Para que seja
possível compreender as forças condicionantes que vão produzir esta nova realidade a partir
do entrelaçamento dessas três subestruturas, o nó frouxo permite, em primeiro lugar,
descobrir o movimento que engendra suas formas históricas de aparecimento, a motilidade
dessa estrutura de poder que se reconstrói a partir das circunstâncias de cada momento
histórico. Depois, permite analisar articuladamente as contradições de uma subestrutura, que
estão necessariamente imbricadas com as demais. Por exemplo, uma análise das relações de
gênero deve levar em consideração a cultura do patriarcado que penetrou em todas as esferas
da vida humana; o racismo estrutural que imprimiu sua marca distintiva no corpo social; e o
capitalismo que mercantilizou todas as relações sociais. A partir da abordagem nodal de Saffioti,
como a análise das relações entre adultos/as e crianças, no interior de uma creche ou de uma
pré-escola, poderia abrir um horizonte de práticas que possibilite aos recém-chegados habitar
o mundo de outras maneiras? O nó frouxo permite analisar o entrelaçamento do
adultocentrismo com essa nova realidade que atravessa cotidianamente nosso convívio com as
crianças e, portanto, permite que nos analisemos diante de nossa própria prática pedagógica.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Metáforas da colonização
Para Eve Tuck e K. Wayne Yang (2021), a descolonização implica romper com a tríade
colonial, isto é, a repatriação da terra que foi saqueada pelos colonos aos indígenas e às nações
nativas soberanas, a abolição da escravidão em suas formas atuais e o desmantelamento da
metrópole imperial. A descolonização, nesse sentido, não é um expediente retórico, nem uma
figura de linguagem. A adoção fácil do discurso descolonizador converte a descolonização em
uma metáfora. De acordo com Tuck e Yang (2021), as implicações da descolonização são
incomensuráveis com os objetivos evidentemente legítimos de descolonizar o pensamento, ou
de descolonizar as escolas e suas práticas. É ainda incomensurável com a descolonização o
emprego de métodos descolonizadores para produzir pesquisas que façam frente à
desigualdade social e à violência epistêmica. O principal problema do uso metafórico da
descolonização, segundo Tuck e Yang (2021), é o de que removemos os colonos da cena colonial,
retiramos os culpados da cena do crime, de um crime contra a humanidade que ainda não foi
devidamente julgado e, portanto, exige reparação histórica aos povos indígenas que foram e
ainda são sistematicamente violentados pelo colonialismo de invasão.

No âmbito da educação, a obra e o pensamento de Paulo Freire têm encorajado por parte
de educadores e educadoras o uso do termo “colonização” como metáfora de “opressão” (Tuck;
Yang, 2021). Para Freire, não há nativos e colonos, indígenas e colonizadores, de modo que o
colonialismo de invasão está ausente na discussão. “Em tal paradigma, a ‘colonização interna’
se reduz a ‘colonização mental’, o que logicamente leva a solução de descolonizar a própria
mente e o resto virá por consequência” (Tuck; Yang, 2021, p. 86). Não se trata de desencorajar
a luta de quem dedica sua vida e sua carreira a educar-se a si mesmo e aos outros para adquirir
consciência crítica contra o racismo, o sexismo, a homofobia, a misoginia, a xenofobia etc.,
assinalam Tuck e Yang (2021), mas de alertar para o risco de remover o colono da cena colonial,
de mitigar seu sentimento de culpa e sua responsabilidade de colonizador. A descolonização,
nesse sentido, aponta para a necessidade de o colono renunciar à terra e a seus privilégios; para
o reconhecimento da necessidade de uma reparação histórica aos povos originários que

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

tiveram seus territórios devastados pela colonização. Daí a tarefa política de (re)pensar a
descolonização.

Referências
CAMARGO, Sandra Celso de; SALGADO, Raquel Gonçalves. “Cada um brinca com o que quiser! Isso aí é rachismo!”.
In: SILVA, Adriana Alves; FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela. “Isso aí é rachismo!”: Feminismo em estado
de alerta na educação das crianças pequenas: transformações emancipatórias para educações descolonizadoras.
São Carlos: Pedro e João, 2019. p. 25-42.

FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela. Apresentação. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO,
Daniela (Orgs.). Sociologia da Infância no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011. p. 01-15.

KRENAK, Ailton. A ideia de nação, com Ailton Krenak. Youtube, transmitido ao vivo em 07 de maio de 2022 pelo
canal do Museu da Língua Portuguesa. Disponível em:
https://www.youtube.com/live/C8e66OFOyPQ?si=EgZgVenrnDKzZu9t Acesso em: 2 set. 2023.

MBEMBE, Achilles. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições, 2018.

TUCK, Eve; YANG, K. Wayne. La descolonización no es una metáfora. Tábula Rasa, Bogotá, n. 38, p. 61-111, 2021.

SAFFIOTI, Heleith. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Juliana Ilha Marafiga – EMEI Professora Ida Fiori Druck – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

L’educazione dell’infanzia tra non più e non ancora


Agnese Infantino

Nel mondo, senza guanti


La pedagogia dell’infanzia non si occupa tanto di tecniche e strategie educative ma
riguarda profondamente il nostro stare responsabile nel mondo, nella consapevolezza che:
“Nessuno può stare nel mondo, con il mondo e con gli altri in modo neutrale. Non posso stare
nel mondo con i guanti, limitandomi a constatare” (Freire, 2014, p. 66). Se è impossibile uno
sguardo neutrale, come rileva Freire, allora l’osservazione implica l’azione trasformativa dal
momento che “[...] constato non per adattarmi ma per cambiare” (Freire, 2014, p. 66).

Collocandosi in questa prospettiva, la pedagogia dell’infanzia non può che porsi in


connessione critica con il mondo e prestare attenzione a ciò che avviene nella quotidianità dei
rapporti tra le figure adulte, non solo professioniste dell’educazione, e i/le bambini/e: i temi e
le questioni rilevanti per l’educazione non sono altro rispetto a ciò che avviene nel mondo e che
va assunto responsabilmente dal mondo adulto.

Questa connessione, sintetizzabile secondo l’insegnamento di Paulo Freire in “constatare


per cambiare”, è quanto mai vitale nella fase storica che stiamo vivendo. Il nostro presente è
caratterizzato dal convergere di più linee di tensione e movimento e dalla trasformazione degli
equilibri consolidati nel corso del secolo scorso, tanto da imporci di prendere atto che anche i
sistemi ritenuti illusoriamente stabili e duraturi sono profondamente entrati in crisi.

Un primo livello di crisi riguarda la nostra posizione in quanto esseri umani all’interno del
più ampio sistema vivente. L’esperienza di pericolo per la nostra salute e per la nostra vita
causata dal diffondersi della pandemia di Coronavirus ha segnato un punto di non ritorno,
svelando la nostra assoluta vulnerabilità e impotenza in quanto esseri umani di fronte alla forza
vitale - e per noi virale - di un virus. La nostra rappresentazione di esseri umani come soggetti
privilegiati al centro dell’universo è andata in crisi, rendendo evidente da un lato la nostra

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

marginalità rispetto al fluire della vita nel più ampio sistema vivente e, dall’altro lato, la necessità
di assumere nuovi paradigmi di pensiero, nell’ottica del post-umanesimo (Braidotti, 2014).

Su un altro versante, anche le attuale guerre in corso in Europa tra Ucraina e Russia e
Palestina e Israele è un ulteriore duro colpo all’illusione, tutta occidentale, di perenne stabilità
e di pace in cui, nonostante i numerosi e sanguinari conflitti nel mondo, ci siamo per lungo
tempo arroccati. Il conflitto in atto, oltre a fare emerge le contraddizioni e gli squilibri delle
politiche occidentali, svela anche la vulnerabilità e la fragilità della pace quando è intesa e
praticata come esito raggiunto attraverso la guerra (Benasayag; Del Rey, 2008).

Infine, siamo di fronte a una crisi climatica, con le manifestazioni estreme e violente a cui
stiamo assistendo impotenti, e ad una crisi economica, con l’aumento di imponenti flussi
migratori e di dilagante povertà per fasce sempre più ampie della popolazione mondiale, che
colpiscono soprattutto il Sud del mondo. Crisi climatica e crisi economica dimostrano
congiuntamente l’inadeguatezza del sistema di produzione capitalistico e la necessità di
pensare in forme interconnesse al lavoro, all’ambiente e all’energia all’interno di paradigmi
alternativi, fondati sul principio di giustizia sociale (Revelli, 2020).

Constatando l’interconnessione di queste tensioni e crisi epocali, che si diffondono


in profondi processi di transizione, non possiamo che avvertire il declino di equilibri e di
riferimenti noti verso un orizzonte di cui ora riusciamo a prefigurare solo in modo offuscato
quali potranno essere gli assetti futuri. Percepiamo di trovarci in un punto sospeso tra non più
e non ancora.

Le nostre vite scorrono nel fluire quotidiano all’interno di questa trama come pieghe di
processi in cui, nelle storie individuali, si intrecciano e si legano contemporaneamente più linee
di tensione: biologica, culturale, sociale, tecnologica, relazionale.

Questa complessità interroga e sfida la pedagogia dell’infanzia che non può che porsi in
termini aperti, con uno sguardo interrogante e di ricerca, dialogando criticamente con i
processi che accadono nella realtà per pensare a come si possano favorire e sostenere le
interazioni tra la complessità del nostro mondo e la vita dei bambini e delle bambine molto

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

piccoli/e, che stanno crescendo, evitando che ne siano travolti e sopraffatti. Così, senza essere
rassegnati o acquiescenti, ci occupiamo di educazione quando: assumiamo consapevolmente
ciò che accade nella realtà, osserviamo il nostro presente attentamente, indaghiamo con
sguardo critico ciò che si snoda abitualmente nella vita dei più piccoli/e a partire dalle
situazioni più ricorrenti e abituali della vita quotidiana, e ci interroghiamo su come le
esperienze educative possano qualificare e migliorare i contesti di esperienza, sovvertendo gli
equilibri soprattutto per chi, nell’assetto attuale, viene posto ai margini e svantaggiato.

In questa prospettiva, lo sguardo educativo è fortemente sollecitato dal presente e prende


forma nello scorrere quotidiano. Può allora essere interessante riflettere su una situazione, per
nulla eccezionale, che ho potuto osservare in treno una mattina mentre mi recavo al lavoro.

Seduti di fronte a me ci sono un bambino (che stimo possa avere cinque anni) e un giovane
uomo che lo accompagna (potrebbe essere il padre, un parente o un amico dei genitori).
Parlano spagnolo, potrebbero essere originari di un Paese del Sud America. All'inizio il
bambino guarda attentamente intorno, indica vivacemente, con gesti rapidi, ciò che lo
circonda. Fa domande e parla con l’adulto dei treni e della gente sul treno. Continua a
parlare e a fare domande all’adulto che è con lui che risponde e partecipa allo scambio fin
quando l’adulto prende il suo smartphone per ascoltare della musica con l’auricolare. Il
bambino inizia così a stare in silenzio, guardando fuori dal finestrino. Poi l’adulto toglie un
auricolare dal suo orecchio per collocarlo in quello del bambino e ascoltare insieme la
musica, guardando scorrere un video. I due osservano insieme, in silenzio, lo schermo dello
smartphone che condividono.

Il mondo e lo stare nel mondo che sperimenta oggi un bambino si compongono di livelli
plurimi che corrono rapidamente, o forse di veri e propri mondi nei mondi, interconnessi in
forme rizomatiche. Osservando questa scena, per nulla eccezionale ma piuttosto abituale e
ricorrente nella quotidianità nell’hinterland milanese, qualcosa mi interrogava, percepivo
elementi in movimento che chiedevano di essere colti e messi a fuoco. Riflettevo così che il
punto riguardava non tanto il cellulare in sé, come elemento rilevante nell’interazione
osservata, ma il fatto che l’introduzione del cellulare da parte dell’adulto aveva spostato
l’interazione in corso con il bambino aprendola verso un altro livello di realtà, caratterizzato
dalla dimensione digitale. Se piuttosto del cellulare fosse stata introdotta la lettura di un libro

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

probabilmente sarei comunque stata colpita dalla sensazione di osservare un salto di livello
dalla realtà fisica, del qui e ora, alla realtà simbolica, del mondo rappresentato e
concettualizzato nel libro. Ma uno smartphone non è un libro e inserirlo nell’interazione implica
per chiunque, ma in modo particolare per i/le bambini/e, saper orientare e gestire l’attenzione
verso un piano di realtà complesso, virtuale, e muoversi al suo interno con abilità e competenze
specifiche. Le interazioni tra figure adulte e bambini/e si muovono ormai quotidianamente tra
molteplici piani di realtà: fisica, virtuale, affettiva, socio-cognitiva, simbolica, culturale. Il
presente di ogni bambino/a è fatto di intrecci tra plurimi livelli di complessità che spesso, da
adulte/i, diamo per scontati oppure sminuiamo nel loro potenziale impatto, ma che al
contrario, nella prospettiva dell’infanzia, meritano di essere assunti dal mondo adulto con
responsabilità e consapevolezza. I processi educativi, sia nelle dinamiche di educazione
informale sia all’interno dei contesti istituzionali della scuola e dei servizi per l’infanzia, sono
parte di questo presente complesso che va quindi assunto esplicitamente se non si vuole
condannarsi ad un ruolo residuale e slegato dal presente.

Se questo bambino, una volta sceso dal treno, arriverà in un servizio scolastico o
educativo, troverà ad accoglierlo un contesto culturale connesso con questa complessità nel
quale apprendere in forme complesse il mondo oppure entrerà in un universo radicalmente
distante, semplificato, decontestualizzato e slegato da tutto il resto? Quale giornata educativa
lo attende? Che tipi di esperienze di relazione, conoscenza, esplorazione, apprendimento potrà
condividere con i compagni/e e le figure adulte? In altre parole, in un’aula scolastica questo
bambino potrà sperimentare processi di senso connessi con l’esperienza complessa che sta
vivendo nel mondo, di cui il tragitto in treno è solo un minimo spaccato, oppure sarà impegnato
in operazioni e compiti fini a sé stessi, fuori dal tempo e dallo spazio? Nel caso poi si trattasse
di un bambino esposto a condizioni di svantaggio socioculturale è evidente che questi
interrogativi si fanno ancora più acuti e importanti.

La pedagogia dell’infanzia, in un’interpretazione critica come quella a cui mi riferisco,


tematizza e problematizza questi interrogativi, generando possibili linee di azione e proposta
educativa nello sforzo di riuscire ad attivare un radicamento trasformativo nel presente.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Per affondare ulteriormente lo sguardo sul presente potremmo allora affidarci ad


un’operazione di immaginazione e figurarci l’ipotetico viaggio del bambino e dell’adulto
osservati non nel 2023 ma nella prima metà del secolo scorso. Indubbiamente sarebbe stato
scandito da altre dinamiche evidenti fin dalle caratteristiche materiali che avrebbero
strutturato il contesto: i treni ad inizio secolo non solo erano meno veloci di quanto non lo siano
oggi ma erano anche organizzati spazialmente in modi diversi, ad esempio per scompartimenti,
a volte chiusi da porte, con dei finestrini meno ampi. Cosa avrebbe potuto osservare intorno a
sé o dal finestrino di un treno un bambino in un ipotetico viaggio nel 1930? E quali bambini/e
avevano l’opportunità di viaggiare quotidianamente in treno a quell’epoca? Per compiere quali
tragitti? Oggi consideriamo del tutto naturale spostarci quotidianamente da una città all’altra
ma nel secolo scorso non era probabilmente così scontato, e non certo per viaggi quotidiani
che, quando necessari, erano svolti con altri mezzi (a cavallo, a piedi, in bicicletta…). Va anche
considerato il costo del viaggio, non accessibile in modo così diffuso a tutte le fasce della
popolazione nella prima metà del secolo. Viaggiare in treno apparteneva dunque all’ordine
dell’eccezionale, con tutte le implicazioni che ne conseguono in termini culturali, sociali,
relazionali. Possiamo allora affermare, in modo del tutto evidente, che le condizioni di vita e
l’esperienza di stare al mondo nel nostro presente sono assai distanti da quelle del secolo
scorso. E l’educazione? Quanto è cambiata l’educazione dell’infanzia dal secolo scorso?
Soprattutto, è cambiata? Quali modelli e paradigmi permeano i nostri attuali approcci
nell’educazione dell’infanzia? Credo che possiamo essere d’accordo nel ritenere che le
pedagogie maturate nel corso del Novecento, dall’educazione attiva al socio-costruttivismo,
continuino ad essere ancora per larga parte il nostro riferimento principale, se non esclusivo,
nell’educazione dell’infanzia sebbene l’educazione dell’infanzia nel 2023 comporti dialogare con
contesti culturali, sfide, contraddizioni e provocazioni impensabili nel secolo scorso.

Abbiamo a che fare con problemi educativi specifici ma ho l’impressione che si tenda a
stabilire un contatto con essi affidandosi principalmente ad assunti noti e consolidati,
riproponendo concezioni e chiavi di comprensione ereditate dalla pedagogia del Novecento,
piuttosto che cercando di assumere prospettive inedite e originali.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Certo, le pedagogie del Novecento sono ancora importanti e proseguono a gettare luce
sulla nostra contemporaneità. Infatti, come non potrebbe risuonare di estrema attualità, ahimè,
la critica serrata e appassionata condotta nel 1950 da Maria Montessori a quello che nel volume
“La scoperta del bambino” definiva provocatoriamente il banco scientifico? In quella lucida
critica smontava le ragioni di una presunta educazione scientifica a fondamento
dell’imposizione subita dagli scolari di restare seduti e fermi, intrappolati nel banco – scientifico
appunto –, per molte ore al giorno piuttosto che fare esperienze a pieno corpo in un ambiente
a misura di bambino. Ma oggi questa critica e i quadri educativi che la sostengono, per
continuare a parlare nel nostro presente, chiedono di essere integrati per riuscire a pensare ciò
che era impensato nel mondo del secolo scorso. Se la Montessori polemizzava con il banco
scientifico noi oggi ci interroghiamo se e come i bambini/e possano davvero trarre beneficio
dalle interazioni digitali, ad esempio, mediante la LIM (lavagna interattiva digitale) o altri
dispositivi elettronici senza che siano sacrificate le dimensioni della corporeità e
dell’apprendimento attraverso l’esperienza diretta. Osservare criticamente il banco scientifico
o una LIM non è tuttavia la stessa cosa. Nello scenario educativo del nostro presente irrompono
temi e questioni specifiche e inedite per le pedagogie che conosciamo, che ci pongono
interrogativi nuovi e questioni che abbiamo bisogno di comprendere, assumere e maneggiare,
anche trasformare, se vogliamo che l’educazione dell’infanzia sia un processo vivo e
interconnesso con la contemporaneità.

Con ciò non intendo affermare che il sapere e le conoscenze della pedagogia maturate nel
secolo scorso debbano essere superate; penso piuttosto, e molto semplicemente, che non
bastino più e che non siano più in grado di sostenere da sole uno sguardo mobile e dialettico
dentro le pieghe della realtà. Abbiamo la necessità di pensare i processi educativi all’interno di
nuovi quadri concettuali, mediante concetti e parole nuove, in cui trovino posto elementi e temi
che le pedagogie del Novecento non potevano pensare. In questo senso anche in educazione
percepiamo di trovarci tra un non più e un non ancora. Abbiamo ad esempio bisogno di sfondi
pedagogici che ci permettano di tematizzare e problematizzare in prospettiva educativa le
interazioni tra i bambini/e e il mondo tecnologico del quotidiano che, lo si voglia o no, si
compone di artefatti culturali con cui entriamo abitualmente in contatto e che testimoniano,

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

anche nella loro materialità, quanto la realtà sia stratificata in molteplici e conviventi livelli:
fisico, relazionale, virtuale, simbolico. Questo intreccio chiede di essere colto, nominato,
tematizzato. La nota contrapposizione tra cultura e natura oggi è superata dalla complessità
del reale e, nelle relazioni educative assistiamo allo sviluppo di fitte connessioni tra dimensioni
culturali, biologiche e tecnologiche. Oggi non abbiamo a disposizione nemmeno dal punto di
vista lessicale dei termini che ci permettano di riferirci a questa complessità nominandola.

Come si posiziona rispetto questo livello di complessità un’educazione dell’infanzia che,


seguendo Freire, vuole stare nel mondo e rifiuta di indossare i guanti?

Legare e connettere
Nelle esperienze quotidiane di bambini e bambine, mondo fisico, mondo simbolico,
mondo virtuale sono legati tra di loro in un movimento continuo, ed è in questo movimento che
si delinea lo sviluppo dei processi educativi. Ma di fronte a questo livello di complessità del reale
anche il mondo adulto avverte un profondo disorientamento che si manifesta in vario modo
con segnali di difficoltà che possono tradursi nelle relazioni con i bambini/e in atteggiamenti
di laissez faire nei quali la responsabilità delle scelte educative ricade spesso interamente sui
piccoli/e. Può succedere quindi che, in nome del valore della libertà e dell’autonomia che
induce a enfatizzare l’idea di “bambino competente”, le figure adulte (professioniste e non)
pratichino un assoluto non intervento lasciando che siano i bambini/e fin da molto piccoli/e a
decidere da soli la loro alimentazione, l’abbigliamento da indossare, come e cosa fare nelle
diverse situazioni con oggetti, materiali, strumenti con cui entrano in contatto, dispositivi
digitali inclusi. In un mondo in cui tutto è rapidamente in movimento ma anche estremamente
instabile e precario all’interno di scenari pervasi da incertezza, posizionarsi da adulti/e può
certamente non essere semplice. Tuttavia, nella prospettiva dell’educazione dell’infanzia non
possiamo che porci in dialogo con queste linee di mobile e incerta complessità. Si tratta così di
riconoscere che l’educazione dell’infanzia non può prescindere dalle crisi e dalle difficoltà del
mondo adulto che sono costitutive della tessitura educativa nel suo farsi e compiersi mentre i
nuovi nati, come ci ricordava Hannah Arendt, intanto crescono, imparano, si muovono

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

prendendo parte a questo mondo. L’educazione dell’infanzia non può, cioè, essere pensata
come dimensione astratta, dove regna l’immobile dover essere popolato di ideali, di idee statiche
di bambino, di modellizzazioni e rappresentazioni concettuali artificiose, del tutto sconnesse
dalla vita. L’educazione dell’infanzia si fa, è in corso in mille forme e quando cerchiamo di
ragionare sui processi educativi che si muovono a partire dai luoghi deputati all’educazione
(nido, scuola dell’infanzia) ci troviamo a riflettere su come possono riuscire a collocarsi
all’interno dei processi più complessivi in corso nel nostro mondo, cercando, senza illusoria
onnipotenza, di generare un impatto qualitativo e trasformativo nelle esperienze delle persone
piccole e grandi che vi prendono parte. Quali esperienze e quali processi educativi e benefici
coinvolgono i bambini e le bambine che frequentano il nido e la scuola mentre vivono gli anni
dell’infanzia nella nostra contemporaneità e con adulti esposti a queste crisi e profonde
transizioni?

Per ragionare in questa direzione, per assumere quindi criticamente la complessità nella
consapevolezza di esserne parte attiva, inoltriamoci allora più in profondità nel mondo dei
contesti educativi.

La prima dimensione che si impone addentrandoci nel nido o nella scuola riguarda i
processi colti nella loro natura sociale e collettiva: tutte le realtà educative e scolastiche che
accolgono bambine e bambini, indipendentemente dai modelli educativi a cui si ispirano, sono
fortemente caratterizzate per essere luoghi pensati per accogliere non singole persone ma
gruppi di bambini/e. Nidi e scuole sono luoghi sociali, di sperimentazione e apprendimento
della socialità, in cui il soggetto non è solo il singolo ma anche la collettività, che si vorrebbe
rispettosa delle persone che la compongono.

Come accogliere i bisogni di cura, attenzione, relazione individualizzata espresse dai


singoli bambini/e mentre si trovano in contesti collettivi? In che modo i processi educativi
assumono come proprio campo d’attenzione i processi che accompagnano ogni bambina/o a
diventare parte costitutiva di un gruppo di bambine/i che ha ritmi e dinamiche sovraindividuali
senza che con ciò sia mortificata e alienata la dimensione individuale? Che forma assumono
questi processi quando in particolare ci riferiamo ai primi tre anni di vita?

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Si tratta di nodi complessi e critici che la riflessione della pedagogia dell’infanzia ha


assunto ed elaborato nel tempo in esperienze educative rilevanti, penso, tra le altre, a quelle di
Elinor Goldschmied, Emmi Pikler e alla stessa Maria Montessori. Da queste basi possiamo
andare avanti.

Evidentemente bambini e bambine nei luoghi educativi incontrano figure adulte


professioniste, incontrano i cosiddetti pari con i quali condividono più o meno intensamente
numerose situazioni della giornata, dai momenti di gioco a quelli del riposo, dal pranzo alle
uscite, dalle esplorazioni alle scoperte. Il gruppo dei bambini/e può condividere, per riprendere
un’espressione di Madalena Freire, la passione di conoscere il mondo. Sappiamo infatti che nella
dimensione collettiva, che via via prende forma delineandosi con una propria fisionomia (ogni
gruppo non solo ha la sua storia ma ha anche le sue dinamiche specifiche, i suoi equilibri,
conflitti e tensioni), bambine e bambini fanno esperienza dello stare insieme imparando a
condividere idee, progetti, conoscenze, alleanze, intese e complicità, anche nel tentativo
esplicito di erodere e contestare l’autorità adulta. Nei servizi è intensa la vita di gruppo tra
bambini/e, indipendentemente dall’intenzionale e orientato investimento operato da parte di
educatrici e insegnanti. Ma allo stesso tempo, per quanto la dimensione collettiva possa essere
intensa e vivace nel fluire quotidiano, non può tuttavia ritersi magico e del tutto spontaneo il
processo mediante il quale gli individui, di ogni età, elaborano e consolidano dinamiche di
partecipazione e appartenenza al gruppo. Merita allora tematizzare la questione nella
consapevolezza che se, da un lato, la “collettività” non può certo essere affrontata come se fosse
un contenuto didattico (senza dubbio il gruppo non è una proposta o un argomento per un
laboratorio! Non si fa lezione di collettività!), dall’altro non può nemmeno essere abbandonata
alla spontanea autoregolazione confidando che, col tempo, il gruppo da solo si farà e decollerà.

La dimensione collettiva della vita dei gruppi all’interno dei servizi educativi è un tema
educativo, come altri, su cui avvertiamo la spinta del presente e che induce a riflettere
oltrepassando gli approcci dicotomici, ereditati dal Novecento, ed escludendo il ricorso ad una
logica binaria, oppositiva e gerarchica tra individuo/gruppo. Si tratta di impostare il
ragionamento in termini più articolati, in grado di cogliere la natura dei processi di gruppo

39
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

come fenomeno complesso. Quando, in altre parole, osserviamo bambini e bambine coinvolti
in trame di vita collettiva non ci troviamo di fronte a una condizione decisa e determinata
meccanicamente dall’esterno, esito costruito dalle azioni svolte da educatrici e insegnanti. I
processi di gruppo non si possono accendere o spegnere, attivare o disattivare schiacciando un
interruttore, come se lo stare in gruppo possa essere un’ingiunzione cui attenersi, oppure
un’area relazionale da cui fare entrare e fare uscire bambini/e.

Per ragionare intorno ai processi collettivi pensando alle dinamiche a cui partecipano i
bambini/e dovremmo cercare di considerarli all’interno di linee processuali più ampie,
necessariamente inclusive anche del mondo adulto. Se, cioè, pensiamo che le dinamiche di
partecipazione collettiva condivise tra bambini/e siano una risorsa educativa, di cui abbiamo
necessità, allora ci predisponiamo a riflettere innanzitutto su cosa significhi negli anni
dell’infanzia vivere esperienze complesse del reale non solo individualmente ma all’interno di
un gruppo di pari insieme alle figure adulte, nei servizi educativi.

La dimensione collettiva, nei servizi educativi, implica infatti per bambini/e prendere
parte insieme alle figure adulte a situazioni di vita quotidiana che si animano di significati anche
a partire dalle pratiche con le quali le figure adulte, tra loro, danno forma all’essere parte di un
gruppo, lo investono di rilievo e senso, stanno in una dimensione collettiva fatta di differenze e
pluralità. In questa prospettiva possiamo allora chiederci se e come l’apprendimento, ad
esempio, sia ritenuto di natura processuale ed investito di un valore sovraindividuale e
collettivo. Come imparano le figure adulte nei servizi educativi? Tra adulti/e c’è scambio di
opinioni, c’è rispetto per la pluralità del pensiero? Le figure adulte, nelle interazioni tra loro,
sono reciprocamente aperte a dialogare oltre i pregiudizi, a ragionare insieme sulle decisioni
anche piccole che vengono prese quotidianamente? L’apprendimento e l’acquisizione di
competenze sono considerate vicende individuali, relative al successo e alla riuscita dei singoli
oppure sono processi in divenire, intrecciati in legami tra più piani, perciò anche nelle
dinamiche collettive del gruppo o dei gruppi a cui ognuno/a prende parte?

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Per cercare di delineare meglio la questione riporto brevemente una situazione osservata
recentemente in una sezione di scuola dell’infanzia che accoglie bambine/i di cinque anni. La
situazione osservata riguarda i maschi della sezione.

Quattro bambini sono seduti al tavolo e giocano a carte, al gioco dell’UNO1. Altri tre bambini,
disposti in piedi intorno al tavolo, assistono al gioco e attendono il loro turno per giocare.
Passa l’insegnante, si siede al tavolo e osserva il gioco in corso. Interviene per ricordare le
regole del gioco quando nota che si verificano delle incongruenze e i bambini non rispettano
ciò che prevede una certa carta. Oppure quando i bambini, fortemente coinvolti, sbagliano
i turni e invertono il senso da seguire per pescare la carta e decidere quale scartare.
L’insegnante interviene ponendo domande dirette ai bambini, richiamando l’attenzione,
dicendo loro di prendere il tempo per pensare alla carta che hanno pescato e a cosa stanno
facendo, aiuta a ricordare in modo corretto le regole e a rispettarle. Il clima è di
divertimento e di condivisa allegria, con risate e battute scherzose. Chiamata da altri
bambini l’insegnante si deve allontanare e il gruppo prosegue nel gioco. Trascorso qualche
minuto si avvicina l’altra insegnante della sezione, scambia qualche rapido commento con
i bambini e viene sollecitata da un bambino in particolare che le lancia una sfida a carte.
L’insegnante accetta, si siede di fronte al bambino e tutti gli altri si dispongono intorno,
iniziando a fare un tifo sfrenato e rumoroso per il loro compagno. L’insegnante partecipa
alla partita giocando pienamente la sua parte come fa del resto il bambino impegnatissimo
e concentrato. La partita termina con la vittoria del bambino tra ovazioni ed esultanza
incontenibile da parte del gruppo.

Una situazione come questa può essere considerata un esempio interessante di vita di
gruppo? Penso proprio di sì, per una serie di ragioni. Si tratta di una situazione non artificiosa
ma di reale messa in atto di una pratica culturalmente situata, che porta i bambini a restare
connessi con situazioni che hanno osservato compiersi da parte del mondo adulto e a cui stanno
imparando a prendere parte attivamente. Il gruppo si compone spontaneamente intorno al
gioco ma le dinamiche che si generano, grazie alla partecipazione attiva delle insegnanti, si
colorano di implicazioni educative in cui risalta lo spazio che trova la possibilità di
apprendimento. Entrambe le insegnanti, infatti, la prima assumendo un ruolo di tutor che
fornisce un’impalcatura all’attività in corso, lo scaffolding di cui parla Bruner, la seconda

1
“UNO è um gioco di carte non collezionabili statunitense creato da Merle Robbin nel 1971 e prodotto daile Mattel”.
Disponibile su: https://it.wikipedia.org/wiki/UNO_(gioco_di_carte). Accesso effettuato il: 14 aprile. 2024.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

prendendovi parte attivamente, nella scia dell’apprendimento guidato teorizzato da Barbara


Rogoff (2006), assumono esplicitamente il compito di prendersi cura delle interazioni nel
gruppo dei bambini fornendo loro ciò che serve per realizzarle, portarle avanti e condurle fino
a pieno compimento. Entrano all’interno nelle dinamiche del gruppo dei bambini, fornendo il
loro contributo e mettendo a disposizione le loro competenze. Vivono le situazioni insieme al
gruppo. Non lasciano i bambini da soli ma giocano la loro parte in quanto adulte (professioniste)
rispettose che non impongono, non decidono che cosa fare, non comandano ma, partecipando
attivamente, danno orientamento e guidano con delicatezza i processi attivati dai bambini,
fornendo loro nulla di più dell’aiuto che si rende necessario affinché l’esperienza si realizzi in
modo per loro significativo (Infantino, 2022).

Giocare a carte, per bambini di cinque anni, è del resto un’esperienza impegnativa e
complessa dal punto di vista socio-cognitivo-relazionale.

Richiede attenzione, concentrazione, conoscenza e uso delle regole. Implica quindi per il
gruppo dei bambini riuscire a stare contemporaneamente su più piani: simbolico (le regole non
sono cose materiali ma implicano significati), concreto e fisico (le regole si mettono in atto con
comportamenti, facendo delle cose), concettuale (le regole richiedono di pensare usando
concetti), sociale (nel gioco il gruppo deve rispettare turni, ruoli, sanzioni), emotivo (sia vincere
che perdere è un’esperienza emotivamente carica). Il gruppo vive queste esperienze e, anche
grazie all’intervento delle insegnanti, le interazioni funzionano e i diversi piani restano
fluidamente connessi.

Tenere insieme, connettere, mostrare le interconnessioni: forse è proprio questo il ruolo


educativo svolto dalle insegnanti a favore del gruppo che, col suo ritmo, trova i modi per
condividere fino in fondo la situazione creata intorno al gioco.

Questo esempio è interessante anche per un altro tipo di analisi che ci porta a considerare
come nelle dinamiche di gruppo trova nuova possibilità di definizione il concetto di autonomia,
tanto caro alla pedagogia dell’infanzia. Considerato dal punto di vista della vita collettiva, il
concetto di autonomia (che, con l’educazione attiva, consideriamo non tanto come capacità dei

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

bambini/e di fare da soli/e ma come espressione di iniziativa, intraprendenza e interesse nelle


interazioni con il mondo) rivela la sua natura interconnessa con i concetti di dipendenza e
interdipendenza. Infatti, nella vita collettiva del gruppo, bambine/i sperimentano la forza dei
legami che intrecciano il loro fare e pensare con quello del gruppo. Non si riesce da soli ad
affrontare le imprese e i progetti che si propone di realizzare il gruppo, anzi si sperimenta
l’interdipendenza data dalla percezione che l’uno dipende, ha bisogno anche molto
concretamente dell’altro. Mi chiedo se uno sguardo educativo più sensibile e accorto alla
dinamica collettiva non possa essere la breccia che apre verso nuove prospettive
nell’educazione dell’infanzia, superando la visione finora prevalente che, probabilmente, ha
condotto ad un’eccessiva accentuazione del valore dell’autonomia e della competenza
individuale, forse assecondando così la spinta esercitata dal prevalere di valori individualistici,
che ha portato a considerare l’individuo il centro dell’universo. L’epoca che viviamo, che
possiamo definire improntata al post umanesimo, ci chiede di rivedere certe illusorie
presunzioni e soprattutto impone un radicale riposizionamento degli esseri umani dentro il
sistema vivente, nella consapevolezza che l’universo non è né per noi né grazie a noi. Allora
anche l’educazione dell’infanzia si trova ad aprire nuove riflessioni e ad interrogarsi su come
promuovere connessioni e interconnessioni, non autonomie e competenze centrate
sull’individuo ma legami e interdipendenze, solidarietà all’interno di esperienze in cui i bambini
e le bambine imparino a vivere positivamente le dinamiche collettive in gruppo.

Connettere, legare, tenere insieme: è forse questo un modo possibile in cui l’educazione
dell’infanzia attuale, sulla scia di Freire, “constata per cambiare”?

Bibliografia
BENASAYAG, Miguel; DEL REY, Angélique. Elogio del conflitto. Milano: Feltrinelli, 2008.

BRAIDOTTI, Rose. Il Postumano. Stampa politica. Roma: Derive Approdi, 2014.

FREIRE, Madalena. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

FREIRE, Paulo. Pedagogia dell'autonomia. Saperi necessari per la pratica educativa. Torino: Edizione Gruppo
Abelle, 2014.

INFANTINO, Agnese. As crianças também aprendem. O papel educativo das pessoas adultas na educação infantil.
São Carlos: Pedro e João, 2022.

MONTESSORI, Maria. La scoperta del bambino. Roma: Garzanti, 1999.

REVELLI, Marco. Umano Inumano Postumano. Le sfide del presente. Torino: Einaudi, 2020.

ROGOFF, Barbara. Apprenticeship in Thinking. Cognitive Development in Social Context. Oxford University Press,
2006.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Janaína Raquel Cogo – EMEI Olhar de Criança – Santa Rosa – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A educação da infância entre o não mais e o ainda


não
Agnese Infantino
Tradução: Sueli Salva
Revisão Técnica: Ana Lúcia Goulart de Faria

No mundo sem luvas


A pedagogia da infância não se ocupa tanto de técnicas e estratégias educativas, antes
preocupa-se profundamente com o nosso ser responsável no mundo, na consciência de que
“[...] ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso
estar no mundo de luvas nas mãos, constatando apenas” (Freire, 2014, p. 66). Se é impossível um
olhar neutro, como afirma Freire, a observação implica ação transformativa do momento que
“[...] constato não para me adaptar mas para mudar” (Freire, 2014, p. 66).

Posicionando-se nesta perspectiva, a pedagogia da infância não pode deixar de


estabelecer uma ligação crítica com o mundo e prestar atenção para o que acontece nas
relações quotidianas entre os adultos, e não apenas os profissionais da educação e as crianças:
Os temas e questões relevantes para a educação nada mais são do que o que acontece no mundo
e que deve ser assumido com responsabilidade pelo mundo adulto.

Esta ligação, que pode ser resumida segundo o ensinamento de Paulo Freire em “observar
para mudar”, é mais vital do que nunca no momento histórico em que vivemos. O nosso
presente é caracterizado pela convergência de múltiplas linhas de tensão, movimento e pela
transformação dos equilíbrios consolidados ao longo do último século, tanto que somos
obrigados a reconhecer que mesmo sistemas, considerados ilusoriamente estáveis e
duradouros, entraram profundamente em crise.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Um primeiro nível de crise diz respeito à nossa posição como seres humanos dentro do
sistema de vida mais amplo. A experiência de perigo para a nossa saúde e para as nossas vidas
causada pela propagação da pandemia do Coronavírus marcou um ponto sem retorno,
revelando a nossa absoluta vulnerabilidade e desamparo como seres humanos face à força vital
- e para nós - viral - de um vírus. A nossa representação de seres humanos como sujeitos
privilegiados no centro do universo entrou em crise, tornando evidente, por um lado, a nossa
marginalidade no que diz respeito ao fluir da vida no sistema vivo mais amplo e, por outro lado,
a necessidade de assumir novos paradigmas de pensamento, na perspectiva do pós-humanismo
(Braidotti, 2014).

Por outro lado, as atuais guerras em curso na Europa entre a Ucrânia e a Rússia e entre
Palestina e Israel são também mais um golpe para a ilusão inteiramente ocidental, de
estabilidade e paz perenes na qual, apesar dos numerosos e sangrentos conflitos no mundo,
permanecemos entrincheirados durante muito tempo. O conflito em curso, além de evidenciar
as contradições e desequilíbrios das políticas ocidentais, também revela a vulnerabilidade e a
fragilidade da paz quando esta é entendida e praticada como um resultado alcançado através
da guerra (Benasayag; Del Rey, 2008).

Enfim, estamos confrontados com uma crise climática, com as manifestações extremas e
violentas a que assistimos impotentes e uma crise econômica, com o aumento dos fluxos
migratórios massivos e a pobreza galopante para segmentos cada vez maiores da população
mundial, que afetam, principalmente, a população ao Sul do mundo. A crise climática e a crise
econômica demonstram conjuntamente a inadequação do sistema de produção capitalista e a
necessidade de pensar de forma interligada sobre o trabalho, o ambiente e a energia dentro de
paradigmas alternativos, alicerçados no princípio da justiça social (Revelli, 2020).

Constatando a interligação destas tensões e crises históricas, que se espalham em


profundos processos de transição, não podemos deixar de sentir o declínio dos equilíbrios e
referências percebidos em direção a um horizonte, do qual agora só podemos prever
vagamente quais poderão ser os arranjos futuros. Percebemos que estamos num ponto
suspenso entre o não mais e o ainda não.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Nossas vidas escorrem no fluxo cotidiano dessa trama como dobras de processos nos
quais, nas histórias individuais, múltiplas linhas de tensão se entrelaçam e se unem
simultaneamente: biológicas, culturais, sociais, tecnológicas, relacionais.

Esta complexidade questiona e desafia a pedagogia da infância que só pode ser colocada
em termos abertos, com um olhar questionador e investigador, dialogando criticamente com
os processos que acontecem na realidade para pensar como se pode favorecer e sustentar as
interações entre a complexidade do nosso mundo e da vida de meninos e meninas muito
pequenos/as que estão crescendo, evitando que, por isso, sejam arrastados e aniquilados.

Assim, sem resignação ou aquiescência, tratamos da educação quando: Assumimos


conscientemente o que acontece na realidade, observamos atentamente o nosso presente, nos
indagamos com olhar crítico o que acontece habitualmente na vida dos pequenos e das
pequenas a partir das situações mais recorrentes e habituais da vida cotidiana e nos
questionamos sobre como as experiências educativas podem qualificar e melhorar os contextos
de experiência, subvertendo o equilíbrio sobretudo daqueles que, na estrutura atual, são
colocados à margem e em desvantagem.

Nessa perspectiva, o olhar educativo é fortemente convocado pelo presente e se


concretiza no fluxo cotidiano. Considero, neste sentido, ser interessante refletir sobre uma
situação, nada excepcional, que pude observar no trem certa manhã, a caminho do trabalho.

Sentados à minha frente estão um menino (que calculo ter cinco anos) e um jovem que o
acompanha (pode ser o pai, um familiar ou um amigo dos pais). Eles falam espanhol, podem
ser originários de um país sul-americano. No início, o menino olha em volta com atenção e
indica claramente o que está ao seu redor com gestos rápidos. Faz perguntas e conversa com
o adulto sobre os trens e as pessoas que viajam. Ele continua conversando e fazendo
perguntas ao adulto que está com ele que responde e participa da troca até que o adulto pega
seu smartphone para ouvir música com seu fone de ouvido. O menino começa assim a ficar
em silêncio, olhando pela janela. Em seguida, o adulto retira um fone do ouvido para colocá-
lo no ouvido do menino e ouvir música e juntos assistem um vídeo. Os dois observam juntos,
em silêncio, a tela do smartphone que compartilham.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O mundo e o estar no mundo que uma criança experimenta hoje são constituídos por
múltiplos níveis da realidade que se movem rapidamente, ou talvez por verdadeiros mundos
dentro de outros mundos, interconexos em formas rizomáticas. Observando esta cena, nada
excepcional, mas bastante habitual e recorrente na vida quotidiana no interior milanês, algo me
interrogava, percebi elementos em movimento que pediam para serem captados e colocados
em foco.

Refleti assim, que a questão não dizia respeito tanto ao celular em si, enquanto elemento
relevante na interação observada, mas ao fato de a introdução do celular pelo adulto ter
deslocado a interação em curso com a criança, abrindo-a para outro nível de realidade,
caracterizado pela dimensão digital. Se a leitura de um livro tivesse sido introduzida em vez do
celular, provavelmente ainda teria ficado impressionada com a sensação de observar um salto
de nível da realidade física, do aqui e agora, para a realidade simbólica, do mundo representado
e conceituado no livro. Mas um smartphone não é um livro e inseri-lo na interação implica para
qualquer pessoa, mas em particular para as crianças, saber orientar e gerir a atenção para um
plano de realidade complexo, virtual que está a mover-se dentro dele com habilidades e
competências específicas.

As interações entre adultos/as e crianças transitam hoje diariamente entre múltiplos


níveis de realidade: físico, virtual, afetivo, sociocognitivo, simbólico, cultural. O presente de
cada criança é feito de entrelaçamentos entre múltiplos níveis de complexidade que muitas
vezes, como adultos/as, tomamos como menores ou menosprezamos o seu impacto potencial,
mas que pelo contrário, na perspectiva da infância, merecem ser assumidos pelo mundo adulto
com responsabilidade e consciência. Os processos educativos, tanto na dinâmica da educação
informal como nos contextos institucionais das escolas e dos serviços de acolhimento de
crianças, fazem parte deste presente complexo que deve, portanto, ser explicitamente
assumido se não quisermos condenar-nos a um papel residual desligado do presente.

Se esta criança, uma vez fora do trem, chegar a uma escola ou serviço educativo,
encontrará um contexto cultural que a acolhe, ligado a esta complexidade, no qual poderá
aprender o mundo de formas complexas ou entrará num universo radicalmente distante,

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

simplificado, descontextualizado e desligado de todo o resto? Qual jornada educacional a


espera? Que tipos de experiências de relações, conhecimento, exploração e aprendizagem ela
poderá compartilhar com seus colegas e as pessoas adultas? Por outras palavras, numa sala de
aula, esta criança poderá experimentar processos de sentido ligados à experiência complexa
que está vivendo no mundo, da qual a viagem de trem é apenas uma seção transversal mínima,
ou estará envolvida em operações e atividades que são fins em si mesmas, fora do tempo e do
espaço? No caso de a criança ser exposta a condições de desvantagem sociocultural, é evidente
que estas questões se tornam ainda mais agudas e importantes.

A pedagogia da infância, numa interpretação crítica como a que me refiro, tematiza e


problematiza estas interrogações, gerando possíveis linhas de ação e propostas educativas no
esforço de conseguir ativar uma possibilidade transformadora no presente.

Para aprofundar o olhar sobre o presente poderíamos então contar com uma operação
fictícia e imaginar a hipotética viagem da criança e do adulto observada não em 2023, mas na
primeira metade do século passado. Sem dúvida teria sido marcada por outras dinâmicas
evidentes, desde as características materiais que teriam estruturado o contexto: Os trens do
início do século não só eram menos rápidos do que são hoje, mas também estavam organizados
espacialmente de diferentes maneiras, por exemplo por compartimentos, as vezes fechados por
portas, com janelas menos amplas. O que uma criança poderia ter observado ao seu redor ou
da janela de um trem em uma viagem hipotética em 1930? E quais crianças tinham a
oportunidade de viajar de trem todos os dias naquela época? Para completar quais viagens
fariam? Hoje consideramos completamente natural deslocar-nos diariamente de uma cidade
para outra, mas no século passado provavelmente não era desse modo, e certamente, não para
viagens diárias que, quando necessário, eram realizadas por outros meios (a cavalo, a pé, de
bicicleta...). Deve-se considerar também o custo das viagens, que não eram tão amplamente
acessíveis a todos os segmentos da população na primeira metade do século XX. Viajar de trem
pertencia, portanto, à ordem do excepcional, com todas as implicações daí resultantes em
termos culturais, sociais e relacionais. Podemos então afirmar, de modo bastante evidente, que
as condições de vida e a experiência de estar no mundo no nosso presente estão muito distantes

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

daquelas do século passado. E a educação? Quanto a educação infantil mudou desde o século
passado? Acima de tudo, mudou? Que modelos e paradigmas permeiam as nossas atuais
abordagens à educação infantil? Acredito que podemos concordar ao acreditar que as
pedagogias desenvolvidas durante o século XX, desde a educação ativa ao socioconstrutivismo,
continuam a ser em grande parte a nossa principal, senão exclusiva, referência na educação
infantil, embora a educação infantil em 2023 envolva o diálogo com contextos culturais,
desafios, contradições e provocações impensáveis no século passado.

Estamos perante problemas educativos específicos, mas tenho a impressão de que


tendemos a estabelecer contacto com eles apoiando-nos, principalmente, em pressupostos
conhecidos e consolidados, repropondo concepções e chaves de compreensão herdadas da
pedagogia do século XX, em vez de tentarmos assumir pressupostos novos e originais.

É certo pensar que as pedagogias do século XX ainda são importantes e continuam a


lançar luz sobre a nossa contemporaneidade. Na verdade, como não poderia ecoar a crítica
precisa, apaixonada e com extrema relevância feita em 1950 por Maria Montessori no volume
“A descoberta da criança” que ela provocativamente definiu como a bancada científica? Nessa
crítica lúcida ela desmontou as razões de uma suposta educação científica subjacente à
imposição sofrida pelos escolares de permanecerem sentados e imóveis, presos à carteira -
científica mesmo - durante muitas horas por dia, em vez de terem experiências de corpo inteiro
num ambiente do tamanho de uma criança. Mas hoje, esta crítica e os quadros educativos que
a sustentam, para continuarem a falar no nosso presente, pedem para serem integrados para
podermos pensar o que não foi pensado no mundo do século passado. Se Montessori discutiu
com a bancada científica, nós hoje nos perguntamos se e como as crianças podem realmente
se beneficiar das interações digitais, por exemplo, através da Lousa Digital Interativa ou de
outros dispositivos eletrônicos, sem sacrificar as dimensões da corporeidade e da
aprendizagem através da experiência direta. Contudo, observar criticamente a bancada
científica ou a Lousa Digital Interativa não é a mesma coisa. No cenário educacional do nosso
presente, surgem temas e questões específicas e novas para as pedagogias que conhecemos,
que colocam perguntas novas e questões que precisamos compreender, assumir e lidar, até

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

mesmo transformar, se quisermos que a educação infantil seja um processo vivo interligado
com a contemporaneidade.

Com isso não pretendo afirmar que os saberes e conhecimentos da pedagogia


desenvolvidos no século passado devam ser superados; penso, antes, e muito simplesmente,
que já não são suficientes e que já não são capazes de sustentar por si próprios um olhar
inquieto e dialético nas dobras da realidade. Precisamos pensar os processos educativos dentro
de novos quadros conceptuais, mediante novos conceitos e palavras, nos quais possam ser
encontrados elementos e temas que as pedagogias do século XX não conseguiam ainda pensar.
Nesse sentido, mesmo na educação percebemos que nos encontramos entre um não mais e um
ainda não. Por exemplo, necessitamos de bases pedagógicas que nos permitam tematizar e
problematizar, numa perspectiva educativa, as interações entre as crianças e o mundo
tecnológico da vida quotidiana que, queiramos ou não, é constituído por artefatos culturais com
os quais habitualmente entramos em contato e que testemunham, também na sua
materialidade, quanto a realidade se estratifica em níveis múltiplos e coexistentes: físico,
relacional, virtual, simbólico. Essa trama pede para ser apreendida, nomeada, tematizada. A
percepção do contraste entre cultura e natureza hoje é superado pela complexidade do real e,
nas relações educativas assistimos ao desenvolvimento de conexões densas entre as dimensões
culturais, biológicas e tecnológicas. Hoje não temos à nossa disposição, nem mesmo do ponto
de vista lexical, termos que nos permitam referir-nos a esta complexidade nomeando-a.

Como se posiciona em relação a este nível de complexidade uma educação da infância,


que segundo Freire, quer estar no mundo e se recusa a usar luvas?

Ligar e conectar
Nas experiências cotidianas de meninos e meninas, o mundo físico, o mundo simbólico, o
mundo virtual estão interligados num movimento contínuo, e é nesse movimento que se
delineia o desenvolvimento dos processos educativos. Mas diante deste nível de complexidade
da realidade, mesmo o mundo adulto, sente uma profunda desorientação que se manifesta de
diversas formas com sinais de dificuldade que podem traduzir-se nas relações com as crianças

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

em atitudes de laissez faire em que a responsabilidade pelas escolhas educativas recai, muitas
vezes, inteiramente nos mais pequenos. Pode, portanto, acontecer que, em nome do valor da
liberdade e da autonomia que leva a sublinhar a ideia de uma “criança competente”, as figuras
adultas (profissionais ou não) pratiquem a não intervenção absoluta, deixando as crianças muito
pequenas a decidir por si mesmas o que comer, que roupa vestir, como e o que fazer em
diferentes situações com objetos, materiais, instrumentos com os quais entram em contacto,
incluindo dispositivos digitais. Num mundo onde tudo se move rapidamente, mas que é
também, extremamente, instável e precário, dentro de cenários permeados de incertezas,
posicionar-se como adulto, certamente, não pode ser fácil. Contudo, na perspectiva da
educação infantil não podemos deixar de nos colocar em diálogo com estas linhas de
complexidade móvel e incerta. Trata-se, portanto, de reconhecer que a educação infantil não
pode ignorar as crises e dificuldades do mundo adulto que são constitutivas da tessitura
educativa em seu fazer-se e realizar-se enquanto os recém-nascidos, como nos lembrou
Hannah Arendt, que enquanto crescem, aprendem, se movimentam, participando deste mundo.
Ou seja, a educação infantil não pode ser pensada como uma dimensão abstrata, onde reina a
necessidade imóvel de ser povoada de ideais, de ideias estáticas de criança, de modelos
artificiais e representações conceituais artificiais e completamente desligadas da vida. A
educação infantil se faz e está acontecendo de mil formas e quando tentamos pensar os
processos educativos que se movem a partir dos locais dedicados à educação (creche, pré-
escola) nos encontramos refletindo sobre como eles podem nos colocar dentro os processos
mais complexos em curso em nosso mundo, buscando, sem onipotência ilusória, gerar um
impacto qualitativo e transformador nas experiências das pessoas pequenas e grandes que
delas participam. Que experiências e que processos educativos e benéficos envolvem as
crianças que frequentam a creche e a pré-escola ao viverem a sua infância no mundo
contemporâneo e com adultos/as expostos a estas crises e profundas transições?

Para pensar nesta direção e, portanto, para assumir criticamente a complexidade na


consciência de ser parte ativa dela, mergulhemos mais profundamente no mundo dos contextos
educativos.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A primeira dimensão que surge quando entramos na creche ou na pré-escola diz respeito
aos processos entendidos na sua natureza social e coletiva: Todas as realidades educativas e
escolares que acolhem as crianças, independentemente dos modelos educativos que os
inspiram, caracterizam-se fortemente por serem lugares projetados para acomodar não
pessoas sozinhas, mas grupos de crianças. As creches e pré-escolas são locais sociais, de
experimentação e aprendizagem sobre a sociabilidade, em que o sujeito não é apenas o
indivíduo, mas também a comunidade e que se pretende respeitar as pessoas que a compõem.

Como acomodar as necessidades de cuidado, atenção e relações individualizadas


expressas por cada criança enquanto estão em contextos coletivos? Como os processos
educativos assumem como campo próprio de atenção os processos que acompanham cada
criança para torná-las parte constituinte de um grupo em que cada uma possui ritmos e
dinâmicas individuais, sem com isso reprimir e alienar a dimensão individual? Que forma
assumem estes processos quando nos referimos, particularmente, aos primeiros três anos de
vida?

São questões complexas e críticas que a reflexão sobre a pedagogia da infância tem
assumido e elaborado ao longo do tempo em experiências educativas relevantes, penso, entre
outras, nas de Elinor Goldschmied, Emmi Pikler e da própria Maria Montessori. A partir desta
base podemos avançar.

Evidentemente, as crianças nos espaços educativos encontram figuras adultas


profissionais, encontram os chamados pares com quem partilham, de forma mais ou menos
intensa, inúmeras situações do dia, dos momentos de brincadeira aos momentos de descanso,
do almoço aos passeios, das explorações as descobertas. O grupo de crianças pode partilhar,
para usar uma expressão de Madalena Freire (1983), a paixão por conhecer o mundo. Com efeito,
sabemos que é na dimensão coletiva, que gradualmente se configura e se delineia com uma
característica própria (cada grupo não só tem a sua história, mas também as suas dinâmicas
específicas, os seus equilíbrios, conflitos e tensões), as meninas e os meninos vivenciam o estar
juntos aprendendo e compartilhando ideias, projetos, conhecimentos, alianças intensas,
entendimentos e cumplicidade, mesmo na tentativa explícita de minar e contestar a autoridade

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

adulta. A convivência grupal entre as crianças é intensa nos contextos educativos,


independentemente da intencionalidade e orientação feita por educadores/as e
professores/as. Mas, ao mesmo tempo, embora a dimensão coletiva possa ser intensa e viva no
seu fluxo quotidiano, o processo através do qual os indivíduos, de todas as idades, desenvolvem
e consolidam dinâmicas de participação e pertencimento ao grupo não pode ser considerado
mágico e completamente espontâneo. Vale, portanto, discutir a questão na consciência de que,
por um lado, a “coletividade” certamente não pode ser abordada como se fosse um conteúdo
educativo (sem dúvida o grupo não é uma proposta ou um tema para um laboratório! Não se faz
lição de coletividade!), por outro lado, não pode sequer ser abandonado à auto-regulação
espontânea, confiando que, com o tempo, o grupo se formará e se organizará por si próprio.

A dimensão coletiva da vida dos grupos nos serviços educativos é um tema educativo,
como outros, sobre o qual sentimos o impulso do presente e que nos leva a refletir, indo além
das abordagens dicotômicas, herdadas do século XX, e excluindo a utilização de uma lógica
binária, oposicionista e hierárquica entre indivíduo/grupo. Trata-se de configurar o
pensamento em termos mais articulados, capazes de apreender a natureza dos processos
grupais como um fenômeno complexo. Quando, em outras palavras, observamos meninos e
meninas envolvidos em tramas de vida coletiva não nos deparamos com uma condição decidida
e determinada mecanicamente de fora, um resultado construído pelas ações realizadas por
educadores/as e professores/as. Os processos coletivos não podem ser ligados ou desligados,
ativados ou desativados apertando um botão, como se estar em grupo pudesse ser uma injunção
a ser seguida, ou uma área relacional da qual as crianças podem entrar e sair.

Para pensar os processos coletivos pensando nas dinâmicas em que as crianças


participam, deveríamos tentar considerá-los dentro de linhas processuais mais amplas,
necessariamente incluindo também o mundo adulto. Ou seja, se pensarmos que a dinâmica de
participação coletiva partilhada entre as crianças é um recurso educativo de que necessitamos,
então precisamos nos preparar, antes de mais nada, para refletir sobre o que significa, nos anos
da infância, viver experiências complexas da realidade, não apenas individualmente, mas

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

coletivamente, dentro de um grupo de pares juntamente com figuras adultas, nos contextos
educativos.

A dimensão coletiva, nos contextos educativos, implica, de fato, que as crianças


participem juntamente com as figuras adultas em situações da vida quotidiana permeadas de
significados a partir também das práticas com as quais as figuras adultas, entre si, dão forma ao
fazerem parte de um grupo, investindo-o de importância e significado, estão, portanto, em uma
dimensão coletiva feita de diferenças e pluralidade. Nesta perspectiva podemos então
perguntar-nos se e como a aprendizagem, por exemplo, é considerada de natureza processual
e investida de um valor supra individual e coletivo. Como aprendem os adultos nos serviços
educativos? Existe troca de opiniões entre adultos, existe respeito pela pluralidade de
pensamento? As figuras adultas, nas suas interações umas com as outras, estão mutuamente
abertas ao diálogo para além dos preconceitos, para raciocinarem juntas até mesmo sobre as
pequenas decisões que são tomadas cotidianamente? A aprendizagem e a aquisição de
competências são consideradas eventos individuais, relacionados com o sucesso dos indivíduos
ou são processos em curso, entrelaçados em conexões entre múltiplos níveis, portanto,
também na dinâmica coletiva do grupo ou grupos dos quais cada um faz parte?

Para tentar delinear melhor a questão, relato brevemente uma situação observada
recentemente numa seção de uma creche que acolhe crianças de cinco anos. A situação
observada diz respeito ao sexo masculino da seção.

Quatro crianças estão sentadas à mesa jogando cartas do jogo UNO1. Outras três crianças,
em volta da mesa, assistem ao jogo e aguardam a sua vez de jogar. A professora passa, senta
à mesa e observa o andamento do jogo. Ela intervém para lembrar as regras do jogo quando
percebe que ocorrem inconsistências e as crianças não respeitam o que determinada carta
exige. Ou quando as crianças, fortemente envolvidas, se revezam erradamente e invertem
a direção para pescar a carta e decidir qual descartar. A professora intervém fazendo
perguntas diretas às crianças, chamando a sua atenção, dizendo-lhes para prestarem
atenção na carta que tiraram e no que estão fazendo, ajudando-as a lembrar corretamente

1
“Uno (estilizado UNO) é um jogo de cartas estadunidense com detalhes especiais (que o diferenciam do Mau-
mau), desenvolvido por Merle Robbins [...]”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Uno_(jogo_de_cartas).
Acesso em: 14 abr. 2024.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

as regras e a respeitá-las. O clima é de diversão e alegria compartilhada, com risadas e


piadas. Chamada por outras crianças, a professora precisa se afastar e o grupo continua
com a brincadeira. Após alguns minutos, se aproxima a outra professora da seção, faz
alguns comentários rápidos com as crianças e é solicitada por uma criança em particular
que lhe lança um desafio de cartas. A professora aceita, senta na frente da criança e todos
os demais se ajeitam, começando a torcer loucamente e em voz alta pelo companheiro. A
professora participa do jogo, desempenhando plenamente o seu papel, assim como a criança
muito ocupada e concentrada. A partida termina com a vitória da criança em meio a
ovações e comemoração incontrolável do grupo.

Uma situação como esta pode ser considerada um exemplo interessante de vida em
grupo? Penso que sim, por uma série de razões. Esta não é uma situação artificial, mas uma
implementação real de uma prática culturalmente situada, que leva as crianças a
permanecerem ligadas a situações que observaram acontecer no mundo adulto e nas quais
estão aprendendo a participar ativamente. O grupo se forma espontaneamente em torno do
jogo, mas as dinâmicas que são geradas, graças à participação ativa das professoras, são
matizadas com implicações educativas nas quais se destaca o espaço que encontra a
possibilidade de aprender. Ambas as professoras, aliás, a primeira assumindo o papel de tutora
que fornece uma sustentação para a atividade em curso, o andaime, de acordo com o que fala
Bruner, a segunda participando ativamente dela, na esteira da aprendizagem orientada
teorizada por Barbara Rogoff (2006), assumem explicitamente a tarefa de cuidar das interações
no grupo de crianças, proporcionando-lhes o que é necessário para realizá-las, levá-las adiante
e conduzi-las até finalizar. Elas entram na dinâmica do grupo infantil, dando a sua contribuição
e disponibilizando as suas competências. Elas vivenciam situações junto com o grupo. Não
deixam as crianças sozinhas jogando, mas fazem o seu papel de adultas (profissionais)
respeitosas que não impõem, não decidem o que fazer, não comandam, mas, participando
ativamente, orientam e guiam com delicadeza os processos acionados pelas crianças,
proporcionando nada mais do que a ajuda necessária para que a experiência se realize de forma
significativa para elas (Infantino, 2022).

Jogar cartas para crianças de cinco anos é, aliás, uma experiência exigente e complexa do
ponto de vista sócio-cognitivo-relacional.

57
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A ação de jogar cartas requer atenção, concentração, conhecimento e uso de regras.


Implica, portanto, que o grupo de crianças possa estar em vários níveis ao mesmo tempo:
simbólico (as regras não são coisas materiais, mas implicam significados), concreto e físico (as
regras são implementadas colocam em ação comportamentos, fazendo coisas), conceitual (as
regras exigem pensar usando conceitos), social (no jogo o grupo deve respeitar sua vez, papéis,
sanções), emocional (tanto ganhar quanto perder é uma experiência carregada de emoção). O
grupo vive estas experiências e, também, graças à intervenção das professoras, as interações
funcionam e os diferentes níveis permanecem conectados de forma fluida.

Manter-se unido, conectar, mostrar as interligações: Talvez seja justamente esse o papel
educativo desempenhado pelas professoras em favor do grupo que, com seu ritmo próprio,
encontra formas de compartilhar plenamente a situação criada em torno do jogo.

Este exemplo é interessante também para outro tipo de análise que nos leva a considerar
como nas dinâmicas do grupo encontra novas possibilidades de definição o conceito de
autonomia, tão caro à pedagogia da infância. Considerado do ponto de vista da vida coletiva, o
conceito de autonomia (que, com a educação ativa, consideramos não tanto como a capacidade
das crianças de fazerem as coisas por si próprias, mas como uma expressão de iniciativa,
desenvoltura e interesse nas interações com o mundo) revela a sua natureza interligada com os
conceitos de dependência e interdependência. Na verdade, na vida coletiva do grupo, meninas
e meninos experimentam a força dos vínculos que entrelaçam o seu fazer e pensar com o do
grupo. Não é possível enfrentar sozinho as organizações e projetos que se propõe realizar, pelo
contrário, experimenta-se a interdependência dada pela percepção de que um depende e até
precisa do outro de forma muito concreta. Pergunto-me se uma abordagem educativa mais
sensível e atenta às dinâmicas coletivas não poderia ser a brecha que se abre para novas
perspectivas na educação infantil, superando a visão até agora prevalecente que provavelmente
levou a uma ênfase excessiva no valor da autonomia e da competência individual, talvez,
apoiando assim o impulso exercido pela prevalência de valores individualistas, que tem levado
o indivíduo a ser considerado o centro do universo? A época em que vivemos, que podemos
definir como marcada pelo pós-humanismo, pede-nos a revisão de certas presunções ilusórias

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

e, sobretudo, impõe um reposicionamento radical do ser humano no sistema vivo, na


consciência de que o universo não é por nós, nem graças a nós. Então também a educação
infantil se encontra abrindo novas reflexões e questionando-se sobre como promover conexões
e interconexões, não autonomia e competências centradas no indivíduo, mas vínculos e
interdependências, solidariedade dentro de experiências em que meninos e meninas aprendem
a vivenciar positivamente dinâmicas coletivas em grupo.

Conectar, unir, manter unido: será esta talvez uma forma possível pela qual a educação
infantil atual, na esteira de Freire, “constata para mudar”?

Referências
BENASAYAG, Miguel; DEL REY, Angélique. Elogio del conflitto. Milano: Feltrinelli, 2008.

BRAIDOTTI, Rose. Il Postumano. Stampa politica. Roma: Derive Approdi, 2014.

FREIRE, Madalena. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

FREIRE, Paulo. Pedagogia dell'autonomia. Saperi necessari per la pratica educativa. Torino: Edizione Gruppo
Abelle, 2014.

INFANTINO, Agnese. As crianças também aprendem. O papel educativo das pessoas adultas na educação infantil.
São Carlos: Pedro e João, 2022.

MONTESSORI, Maria. La scoperta del bambino. Roma: Garzanti, 1999.

REVELLI, Marco. Umano Inumano Postumano. Le sfide del presente. Torino: Einaudi, 2020.

ROGOFF, Barbara. Apprenticeship in Thinking. Cognitive Development in Social Context. Oxford University Press,
2006.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Lucas Wendt – EMEF Sergio Lopes – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Observações sobre como Ana Júlia aprende a


falar: uma conversa com Wittgenstein
Antonio Miguel
Ana Júlia Valim Miguel Verly

Para manter-me fiel ao propósito (auto)terapêutico que orientou a escrita deste texto –
propósito este já manifesto no seu próprio título –, é preciso dizer-lhes, leitores, que este texto
não pode ser resumido. Intencionalmente, a sua escrita não constitui uma narrativa contínua
com começo, meio e final conclusivo. Por tratar-se de um texto segmentado e não-dogmático,
ele permite uma multiplicidade de significações, tantas quantas ele puder afetar a sensibilidade
de cada leitor(a) no tempo fugaz de duração de cada ato de leitura. Os interlocutores que
participam desta conversa são indicados pelas respectivas iniciais de seus nomes e sobrenomes
e as referências relativas às suas falas são apresentadas em notas de rodapé.

O que poderia melhor expressar o caráter do aprender


a falar a sua língua por Ana Júlia, senão os caracteres
das gramáticas de diferentes jogos de linguagem do
choro humano?

LW1 – A dor de um só ser humano é a dor de toda a humanidade.

AM2 – Cada um é cada um. Só Ana Júlia é Ana Júlia. Só ela aprendeu a falar assim. Só eu sou eu.
Só eu posso falar de como ela, afetando-me, levou-me a falar – assim como passo a falar – de
como ela aprendeu a falar.

1
Aforismo atribuído a Ludwig Wittgenstein.
2
Antonio Miguel, avô materno de Ana Júlia Valim Miguel Verly, filha de Fernanda Valim Côrtes Miguel e Rodrigo
Moreira Verly, nascida em 21 de dezembro de 2021, na cidade de Diamantina (MG).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

AM – Logo em seus primeiros dias de vida, era visível que Ana Júlia procurava reproduzir através
de movimentos com o seu corpo o movimento dos objetos em seu campo de visão. Deitada em
seu berço, quando eu balançava as gotas de chuva de papel colorido do móbile que pendia do
teto sobre o seu berço, ela movimentava frenética e caoticamente seus braços e pernas
mantendo os seus olhinhos atentamente fixos para o movimento das gotas coloridas de chuva.
Era este o seu jeito de conversar sem palavras com as gotas de chuva. Era este o seu jeito
corporalmente efetivo de significar o movimento efetivo das gotas de chuva de papel.

AM – Aprender é como aprender a significar. Aprender a significar é como aprender a


(inter)agir.

AM – No mesmo mês em que completou 1 ano de vida – quando realizava os seus exercícios
sonoros sem que conseguisse repetir sequer uma palavra de sua língua de forma articulada –,
eu a segurava no colo e lhe mostrava uma fotografia que retratava mamãe, papai, vovó e eu.
Tentando desafiar a sua capacidade de identificar e discriminar pessoas que lhe eram familiares,
eu lhe perguntava: onde está a mamãe, o papai, a vovó, o vovô? Embora às vezes se confundisse
– sobretudo diante da semelhança fisionômica entre a mamãe e a vovó –, Ana Júlia apontava
corretamente as pessoas com o seu dedinho indicador tocando no porta-retratos. Entretanto,
sempre que eu lhe perguntava “onde está o vovô?”, ela se virava para mim e me olhava fixamente
nos olhos, como se o vovô da fotografia fosse “menos real” do que aquele que a segurava no
colo. Em outras ocasiões, quando eu lhe mostrava a sua própria fotografia e lhe perguntava: –
onde está a Ana Júlia?, ela ficava olhando, atenta, para sua própria foto, e como não podia olhar
para si mesma, ela não apontava o seu dedo para ninguém.

AM – Entre as palavras e as coisas, parece haver um fazer da linguagem que não se confunde
com o falar da linguagem. Antes de falar palavras de sua língua, Ana Júlia respondia adequada e
significativamente, com gestos e ações, os comandos e as perguntas que eu lhe fazia oralmente.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

LW3 – Mas quantos tipos de sentenças existem? Talvez asserção, pergunta e ordem? – Há
inúmeros destes tipos: inúmeros tipos diferentes de emprego de tudo o que chamamos de
“sinais”, “palavras”, “sentenças”. E esta multiplicidade não é nada fixa, dada de uma vez por
todas; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, poderíamos dizer, passam a
existir, e outros envelhecem e são esquecidos. (Nós podemos ter uma imagem aproximada disto
nas mudanças da matemática). A expressão “jogo de linguagem” deve enfatizar aqui que o falar
de uma linguagem é parte de uma atividade ou de uma forma de vida. Ponha diante de si a
multiplicidade de jogos de linguagem por estes e outros exemplos: dar ordens e agir segundo
ordens; descrever um objeto segundo a aparência ou por medição; produzir um objeto segundo
uma descrição (desenho); informar um acontecimento; fazer suposições sobre o curso dos
eventos; propor uma hipótese e comprová-la; apresentar os resultados de um experimento
mediante tabelas e diagramas; inventar uma história; ler; atuar em uma peça teatral; cantar
cantigas de roda; adivinhar enigmas; fazer uma piada; contá-la; resolver um modelo de cálculo
aplicado; traduzir de uma língua para outra; solicitar, agradecer, blasfemar, cumprimentar,
rezar. – É interessante comparar a multiplicidade de ferramentas da linguagem e seus modos
de emprego, a multiplicidade de tipos de palavra e de sentença, com o que os lógicos dizem
sobre a estrutura da linguagem. (E também o autor do Tractatus Logico-Philosophicus).

AM – Para Ana Júlia, significar adequadamente a fala humana se mostrou antecedente e mais
fácil do que reproduzir palavras e frases da língua com a qual eu me comunicava com ela. Seria
sedutor tentar generalizar esta conquista comunicativa para todos os bebês humanos, mas algo
me impede de fazê-lo. Este “algo” é a minha desconfiança ou descrença no poder explicativo
ou preditivo de leis genéricas e universais – quantitativas ou qualitativas – relativas ao
comportamento dos seres humanos e às interações que com eles estabelecemos. Contento-
me, portanto, em descrever o comportamento de Ana Júlia relativamente às interações que com
ela estabeleço e às situações com as quais ela mesma cria e se envolve e que eu apenas observo
atentamente.

3
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas / Philosophische Untersuchungen. Tradução de João José R. L.
de Almeida. Curitiba: Horle Books, 2023a. §23.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

AM – Um papagaio aprende a falar palavras e frases numa língua qualquer sem atribuir a elas –
suponho – quaisquer significados.

LW4 – Se um leão pudesse falar, nós, humanos, não entenderíamos.

AM – Naquele momento, Ana Júlia, sem ainda propriamente saber falar, parecia me falar: –
Diferentemente dos papagaios, antes de aprender a falar palavras e frases de minha língua, eu
aprendo a significá-las. Penso comigo mesmo: – estaria ela me dizendo que pode pensar antes
de poder falar? Que pode pensar com os signos sonoros dos jogos fonéticos de linguagem da
língua que falo com ela, antes de poder efetivamente falar?

LW5 – Penso, de fato, com a minha caneta, pois minha cabeça frequentemente não sabe nada
daquilo que minha mão está escrevendo.

AM – Você parece me dizer que atos ou jogos de fala numa determinada língua são apenas
modalidades de jogos de linguagem, que o falar de uma língua é apenas uma modalidade do
(inter)agir com signos em um jogo de linguagem, no caso, com base nas regras de jogos
fonéticos de linguagem dessa língua.

AM – Quando estava prestes a completar 1 ano de vida, em dezembro de 2022, Ana Júlia recebeu
a primeira visita de suas primas e tios paternos. Recebeu a tia Camilla e as primas Antonia,
Mariah e Clara com o corpinho saltitante, sorriso nos lábios, braços estendidos e gestos de abrir
e fechar as mãozinhas que pareciam dizer: – “Sejam bem-vindas!”; – “Gosto de vocês!”; – Vamos
brincar?”, ou outros afetos prazerosos do tipo. Mas quando o tio Robinho – robusto, barbudo e
de fala alta e estridente – estendeu-lhe os braços, chamando-a para o seu colo, ela, no colo da
mãe, prontamente voltou o seu rosto para trás e apertou fortemente seu corpo contra o corpo
da mãe, como se nele buscasse proteção, demonstrando medo, repúdio e rejeição.

4
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Parte II, seção XI, p. 216.
5
WITTGENSTEIN, Ludwig. Cultura e valor. Tradução de Jorge Mendes. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 34.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

AM – Como Ana Júlia poderia ter aprendido afetos de medo, repulsa e rejeição, sem que
ninguém lhe tivesse ensinado? Em outras ocasiões, eu havia notado que ela expressava afetos
semelhantes, não em relação a seres humanos, mas em relação a objetos ou a situações que lhe
pareciam ameaçadores ou que lhe pudessem causar algum dano ou desconforto físico. Logo
que começou a engatinhar e a movimentar-se com autonomia relativa no espaço de sua casa, a
levantar-se sozinha, apoiando-se nos objetos e a passar de um a outro, desde que estivessem a
uma distância suficientemente segura de seus braços, Ana Júlia expressava uma prudência
excessiva em suas movimentações, como se ela soubesse de antemão que poderia cair e
machucar-se, sem que ainda nunca tivesse caído. Como teria ela aprendido afetos de
antecipação da queda, de medo da queda e de proteção antecipada à queda, sem que ninguém
lhe tivesse ensinado? Ela expressava esses mesmos afetos ao subir e descer de sofás e de outros
objetos situados em planos distintos ao plano do chão por onde engatinhava com segurança.

GG6 – No seu envolvimento responsivo às estruturas de exigência do mundo, a ação corporal e


a linguagem trabalham solidariamente. Elas representam diferentes formas de se criar
equivalências funcionais que correspondem à estrutura de exigência do mundo. Elas não só
estão simplesmente armazenadas no corpo, mas são também utilizadas em ocasiões
apropriadas. Este é um aspecto novo no pensamento de Wittgenstein, qual seja, o do uso
daquilo que o corpo memorizou. O corpo pensante pode, assim, fazer um uso social daquilo que
memorizou. Wittgenstein é extremamente cuidadoso, contudo, para não dar a esta ideia um
aspecto psicológico. Em vez disso, ele emprega a metáfora da linguagem como “caixa de
ferramentas”, da qual podemos “pegar ferramentas para usos futuros”. Não são os nossos
próprios sentidos que apreendem as coisas do mundo – esta ideia distingue Wittgenstein dos
fenomenólogos. Quando nos concentramos inteiramente no presente, nosso corpo “se
estende” sobre nosso entorno sensorialmente perceptível. Com o nosso olhar “sentimos” as
coisas e as pessoas e apreendemos suas qualidades de uso. Tomemos, por exemplo, a
experiência de andar descalço por um caminho cheio de pedras. Mesmo antes de nosso pé tocar
a primeira pedra afiada, já antecipamos a dor aguda. Hesitamos, colocando cada pé no chão

6
GEBAUER, Gunter. O pensamento antropológico de Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas, 2013. p. 62.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

com o máximo cuidado. Nessa projeção da ação, que se dá por meio dos sentidos combinados
da visão e do tato, o corpo relacional, interagindo com os objetos do mundo, evoca ideias e
sensações puramente antecipatórias ou relacionadas a situações futuras. Em certas práticas
culturais, é possível intensificar em grau extraordinário as faculdades perceptivas de
antecipação e memória. Um alpinista só precisa dar uma olhada na superfície rochosa para
saber se será capaz de segurar os afloramentos e protuberâncias ou se estes podem ameaçar
se romper. Da mesma forma, um esquiador em declive antecipa os perigos de uma curva para
a qual está se precipitando em alta velocidade e se prepara para movimentos futuros antes
mesmo que a curva apareça.

AM – Ana Júlia também expressava afetos de prudência, desconfiança, repúdio, aceitação ou


rejeição em relação aos alimentos que lhe eram oferecidos, desde quando começou a alimentar-
se com frutas e vegetais. Diferentemente dos afetos de atração, segurança e confiança em
relação ao leite materno que parecia ser voluntariamente buscado nas tetas da mamãe, quando
a colherzinha, com algum outro alimento que lhe era oferecido, se aproximava de sua boca, ela
o lambia devargazinho, experimentava e, caso ele lhe afeiçoasse, ela o mastigava
prudentemente até engoli-lo. Caso contrário, o alimento era prontamente rejeitado. Como Ana
Júlia havia aprendido a gostar ou desgostar de certos alimentos, a selecioná-los, aprovando-os
ou rejeitando-os, sem que ninguém lhe tivesse ensinado?

AM – Aprendizagens de afetos – prazerosos ou desprazerosos – têm provavelmente


semelhança com a evitação de dores ou desconfortos físico-corporais. Mas como Ana Júlia teria
aprendido a evitar o tombo antes de ter levado o primeiro? Explicar esta aprendizagem
recorrendo a um suposto e genérico “instinto de sobrevivência”, não seria senão forçar uma
explicação causal para um efeito que não tem causa?

LW7 – Não entendemos melhor os gestos chineses do que as frases chinesas. [Ou seja, a falta
de compreensão não se limita a frases. Pois, como aprendemos a linguagem dos gestos
estrangeiros? Eles podem ser explicados para nós em palavras. Podemos dizer-nos: “entre estas

7
WITTGENSTEIN, Ludwig . The big Typescript TS 213. Edited and translated by C. Grant Luckhardt and Maximilian
A. E. Que. London: Blackwell Publishing Ltd., 2005. § 70, p. 8e.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

pessoas isto é um gesto de escárnio” etc. Ou, por outro lado, aprendemos a compreender estes
gestos da mesma forma que aprendemos quando crianças a compreender os gestos e
expressões faciais dos adultos – sem explicação. E, neste sentido, aprender a compreender não
significa aprender a explicar, e assim, compreendemos a expressão facial, mas não podemos
explicá-la por nenhum outro meio].

AM – Aprendi com Ana Júlia que a invenção dos seus primeiros jogos significativos de
linguagem, isto é, dos seus processos pessoais de significar as relações que ela estabelecia com
os objetos e as pessoas ao seu redor – e também a própria fala humana em sua língua nativa –
estavam intimamente conectados com a invenção e a iteração obscessiva de seus jogos de ação
corporal, tais como: bater, empurrar, abrir, fechar, arrastar, empurrar, girar, pegar, largar,
amassar, rasgar, torcer etc. Esses e outros são verbos que remetem à exploração de objetos ao
seu redor, agindo diretamente sobre eles, inspecionando-os e observando atentamente o modo
como tais objetos reagiam às suas ações sobre eles. Quando começou a engatinhar e,
posteriormente, a andar e a movimentar-se autonomamente, ela mesma ia à busca dos objetos
que mais lhe interessava a fim de explorá-los (brincar com eles?). Assim, antes de aprender a
significar, por exemplo, o verbo “bater” e seus diferentes modos de flexão em sua língua nativa,
Ana Júlia precisou realizar reiteradamente essa ação batendo com objetos, batendo em objetos
ou batendo em seu próprio corpo. E antes de aprender a falar a palavra correspondente ao
verbo bater e suas flexões, ela aprendeu a responder adequadamente ao som da palavra “bater”
e suas flexões, sempre que alguém lhe pedisse para bater. O mesmo ocorria com verbos
indicadores de gestos que ela precisaria realizar unicamente com o seu próprio corpo, tais
como “sorrir”, “fazer naninha”, “fazer careta”, “jogar beijo” etc. Só depois de ter repetido muitas
vezes essas ações, isto é, de ter aprendido a responder adequadamente aos comandos verbais
correspondentes a essas ações em sua língua nativa, é que Ana Júlia começou a balbuciar as
primeiras palavras. E essas primeiras palavras não foram nenhum desses verbos
correspondentes a ações que ela havia aprendido a realizar ou a responder adequadamente
quando ouvia as palavras que lhes correspondiam. Não foram propriamente verbos. As suas
primeiras palavras foram fonemas miméticos de contrações das palavras “mãe”, “mamãe”,
“papai”, neném, vovó, gato etc. As primeiras palavras que ela elegeu falar, a seu modo, não foram

67
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

aquelas correspondentes aos verbos que ela havia aprendido a fazer efetivamente por conta
própria ou em resposta a um comando verbal que lhe fosse dirigido. É como se a aprendizagem
dos seus primeiros jogos agenciadores de linguagem (jogos de ação corporal) e de seus
primeiros jogos significativos de linguagem da fala humana – isto é, jogos que respondiam
adequadamente a comandos verbais da fala em sua língua nativa – em nada houvesse
contribuído para a aprendizagem de seus primeiros jogos de fala. Quero dizer, por não
corresponder a nenhum verbo ou ação que ela pudesse aprender a realizar com ou sobre outros
objetos, a palavra correspondente ao substantivo “mamãe” parece ter sido aprendida pela
repetição mimética dos sons correspondentes às contrações dos lábios das bocas que lhe
pronunciavam reiteradamente a palavra “mamãe”. Provavelmente, repetir diretamente – com o
seu próprio corpo, lábios e boca – uma palavra pronunciada por outros corpos, lábios e bocas
foi muito mais difícil para Ana Júlia do que aprender efetivamente a abrir e fechar uma gaveta
ou a responder adequadamente a um comando verbal de abrir e fechar uma gaveta. Parece,
então, que Ana Júlia aprendeu a falar as palavras “abrir” e “fechar”, não propriamente depois de
ter aberto e fechado reiteradamente várias gavetas, mas só depois que as palavras “abrir” e
“fechar” lhe foram ditas em referência a ações de abrir e fechar gavetas – ou outros objetos a
que tais verbos pudessem se aplicar – por ela própria ou por outras pessoas.

AM – Em seus cerca de 1 ano e 4 meses, quando Ana Júlia falava inteligivelmente apenas algumas
palavras, a sua babá filmou-a numa cena em que ela ordenava os seus três cães labradores –
maiores do que ela – que haviam entrado na sala, a saírem de lá imediatamente: “pra fóia!”, “pra
fóia!”, gritava ela em tom autoritário e com o dedinho em riste. E os cães, obedientes, saíram
imediatamente, após o que, ela empurra a pesada porta, fechando-a. Provavelmente, imitando
o papai ou a mamãe em cenas análogas, Ana Júlia aprendeu a significar e a reproduzir o jogo de
linguagem do dar ordem aos cães, bem como o gesto correspondente à expressão “para fora” e
o modo correto de entoá-la, antes mesmo de saber pronunciar corretamente ou não tal
expressão.

AM – Em seus cerca de 1 ano e 5 meses, diante de uma longa cena de conversa ininteligível
consigo mesma, a vovó de Ana Júlia lhe pergunta: – “Em que língua você está falando?”. Sem

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

hesitar, Ana Júlia mostra a sua língua para a vovó. Diante da compreensível impossibilidade de
dar uma resposta adequada à pergunta da vovó, Ana Júlia identifica, pela entonação, que a
enunciação da vovó se tratava de uma pergunta, ressignificando-a, porém, com base na única
palavra – “língua” – para a qual ela poderia, naquele momento, dar um significado em sua língua.
Assim, a pergunta da vovó que ela “ouviu” teria sido: – Ana Júlia, mostra a língua para a vovó?

AM – Como computadores, telefones celulares, livros, papel, lápis e canetas coloridas eram
objetos que participavam da vida cotidiana dos pais-professores de Ana Júlia, ela logo se
interessou em rabiscar papéis com lápis ou canetas coloridas. Por volta de 1 ano e 3 meses,
tivemos a ideia de oferecer-lhe pincel e tintas coloridas não tóxicas e laváveis para que
desenhasse numa grande folha de papel estendida sobre uma mesa. Fomos surpreendidos pelo
interesse, concentração e prazer demonstrados na realização da atividade de pintura.
Começamos pela tinta azul. Ela molhava o pincel na tinta e borrava o papel de azul. Aí, dizíamos
a ela: – “Esta cor se chama azul”. E ela repetia: – “Azul”. Depois vieram outras cores: o amarelo,
o vermelho, o verde, o preto. Sempre nomeávamos as cores e nem sempre ela repetia os seus
nomes com a mesma facilidade com que dizia “azul”. As palavras “vermelho” e “verde” lhe eram
mais difíceis de falar do que “amarelo” e “preto”. Mas sempre repetia, de algum modo, os nomes
das cores. E quando lhe perguntávamos: – “Que cor é esta”, apontando uma das cores, diante
da impossibilidade de distingui-las e identificá-las, ela respondia: – “Azul”, que era a palavra
relativa à cor que ela conseguia falar com mais facilidade. Então, todas as cores lhe eram azuis.

AM – Ana Júlia já havia participado anteriormente de outros jogos de linguagem nos quais os
nomes das cores de certos objetos lhe eram ditos para que ela os repetisse. Mas ela sempre
demonstrou dificuldade ou desinteresse em repeti-los, talvez porque os objetos se mostrassem
a ela mais interessantes do que as suas cores. Apontando para um imã de geladeira, eu lhe dizia:
– “Olha este gatinho azul”. E ela me respondia: – “gato”. Eu insistia: – “fala azul”. E ela persistia:
– “gato”. A cor parecia assumir um papel secundário nesses jogos de linguagem de
aprendizagem de palavras relativas a cores. Ou melhor, os meus jogos de linguagem de
aprendizagem de palavras relativas a cores ela os transformava em jogos de linguagem de
nomeação dos objetos coloridos que eu lhe mostrava. Isso não ocorria, porém, quando ela

69
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

participava dos jogos de linguagem de pintar com tintas coloridas em papel branco. Em tais
jogos, como não havia desenhos ou figuras com formas definidas ou identificáveis, os nomes
das cores das manchas coloridas que ela fazia no papel deixavam de assumir um papel
secundário e eram aprendidos mais facilmente, ainda que continuassem indistinguíveis uns dos
outros. Assim, se a gente, apontando para uma mancha colorida no papel, lhe perguntasse: –
“Que cor é essa?”, ela respondia: – “Azul”, a palavra relativa à cor que ela conseguia pronunciar
com maior clareza e facilidade.

AM – Ana Júlia adorava ver as taças de cristal de diferentes cores na cristaleira do apartamento
de seus avós. E sempre me “pedia” (– “Abre!) para abrir as portas da cristaleira e acender as
luzinhas de led para melhor admirá-las. Fiquei surpreso quando, ao pegar uma linda taça de
cristal azul-cobalto e dizer-lhe: – “Pega! Passa as mãozinhas nela!”, Ana Júlia deslizou as suas
mãozinhas pela taça e imediatamente virou as palminhas abertas em direção aos seus olhos e
observou-as atentamente, ficando surpresa pelo fato do azul da taça não ter-lhe tingido as
mãos, como ocorria com a tinta azul na qual ela metia os dedinhos para pintar o papel branco.
Pareceu-me, naquele momento, que ela havia conectado, por semelhança, dois jogos de
linguagem relativos a cores de objetos de que havia participado, jogos estes realizados em
diferentes lugares (o de tintas, em sua casa, em Diamantina; o das taças, em meu apartamento
em Campinas) e em temporalidades distintas (cerca de 1 mês de diferença temporal). Não se
tratava, penso eu, de semelhança sensorial ou perceptiva entre duas impressões sensoriais da
cor azul, na “mente” de Ana Júlia, em duas situações ou momentos distintos, como diria, por
exemplo, um psicólogo empirista clássico. Tampouco se tratava de semelhança conceitual,
como se ela, no jogo de linguagem da pintura com tintas, tivesse formado o conceito de azul,
por mera nomeação verbal da cor azul pelo gesto de apontar, transferindo-o, posteriormente,
mediante memória conceitual, sensitiva ou afetiva, para o jogo de linguagem das taças, para,
nele, “lembrar-se” da cor azul. A memória corporal das cores no jogo de linguagem de pintar
com tintas coloridas parece ter-lhe sido mais impregnante, marcante e impactante do que o
jogo de linguagem das taças coloridas, uma vez que, por mais de uma vez, Ana Júlia passou as
mãozinhas na taça azul-cobalto e observou as palminhas das mãos viradas para os seus olhos,
demonstrando surpresa pelo fato do azul não ter-lhe tingido as mãos, frustrando as suas

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

expectativas. O jogo de linguagem da pintura parece ter-lhe sido mais impregnante e, portanto,
mais corporalmente marcante e memorável do que o jogo das taças, pelo fato de, nele, Ana Júlia
ter agido corporalmente de maneira mais efetiva, afetiva e duradoura: ela teve que fazer várias
experiências de manipulação do pincel até decidir-se pelo modo que lhe pareceu mais
adequado de molhá-lo na tinta e tingir o papel; depois dedicou-se ao próprio ato de pintar, de
esfregar o pincel com tinta no papel e avaliar os seus efeitos; aí veio o pintar com outras cores;
aí decidiu abandonar o pincel e pintar com os próprios dedinhos, sentir a textura das tintas e,
sobretudo, o manchar os dedos, as mãozinhas e os bracinhos com tintas de cores diversas etc.
etc. Daí, a sua surpresa pelo fato do azul-cobalto da taça de cristal não ter-lhe manchado as
mãozinhas... Parecia-me tratar-se, então, não de memória analógica de sensações, percepções,
imagens mentais ou conceitos, mas sim, de memória analógico-praxiológica de um agir efetivo
sobre tintas com pincel ou dedos que produziu efeitos e afetos visualmente perceptíveis no
desenho colorido impresso na folha de papel. Memória analógico-praxiológica entre o azul que
manchava as mãozinhas no jogo de linguagem do pintar com tintas e o azul que não manchava
as mãozinhas no jogo de linguagem de passar as mãos no azul da taça de cristal azul-cobalto.

AM – Nesse mesmo jogo de linguagem de nomeação das cores de taças coloridas, ao olhar para
o interior espelhado e brilhante de uma taça de estanho, Ana Júlia ficou surpresa em ver o seu
rostinho refletido no fundo da taça. Olhando-se várias vezes no “espelho de estanho”, voltou-
se, em seguida, para mim e, apontando com o dedinho para o fundo da taça disse: – “Jujú”, o
pseudônimo carinhoso com o qual nós a chamamos em família. Aí, eu lhe disse: – “Tem outra
Jujú aí dentro da taça?”. Confusa, ela olhava-se novamente no espelho de estanho e, em seguida,
olhava interrogativa para mim. Então, eu lhe disse assim: – “Vamos despejar a outra Jujú que
está aí dentro da taça? E comecei a inclinar a taça na direção de uma de suas mãozinhas, ao que
ela prontamente respondeu fazendo uma conchinha com a mão para “pegar” a “outra Jujú”. Ana
Júlia já havia, antes, se visto várias vezes em espelhos e sempre sorria quando nele se
identificava com a sua imagem refletida. O mesmo acontecia com fotografias, na qual se via e
apontava o dedinho para a foto dizendo: – “Jujú”. Mas sempre me batia a curiosidade de saber
que “imagem” ela fazia de suas próprias imagens espelhadas ou fotográficas: será mesmo que
ela achava que havia outra Jujú colada no papel da fotografia ou movimentando-se “atrás do

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

espelho”? A palminha da mão feito conchinha para pegar a “outra Jujú” que estava sendo
derramada da taça de estanho parecia confirmar a segunda hipótese. Mas essa segunda
hipótese parecia não confirmar-se em jogos de linguagem de esconder, procurar e achar o
objeto escondido – o jogo do “cadê?” –, mesmo quando tal objeto era ela mesma. Desde bem
pequenininha, Ana Júlia adorava participar de tais jogos, tanto dos que eu lhe propunha quanto
dos que ela mesma inventava. Eu escondia meu rosto com uma toalha e lhe dizia: – Cadê o vovô?
Ela demorava um pouco para simular um “tempo de procura” e, logo em seguida, puxava a
toalha de meu rosto, sorrindo e dizendo: – “Achei!”, ou então, simplesmente sorrindo e
balançando o corpo todo, quando ainda não sabia falar essa palavra. A certeza de que o vovô
não havia desaparecido e que se encontrava oculto pela toalha não parecia ser abalada de forma
alguma. Mas, parecia tratar-se de uma “certeza dos olhos”, isto é, de uma certeza que poderia
ser constatada pelos olhos. Tanto é que a partir de certo momento, Ana Júlia inventou um
surpreendente jogo de linguagem de “cadê?”. Ela fechava os seus olhinhos e os cobria com as
duas mãozinhas e perguntava para mim: – Cadê Jujú? E eu simulava uma procura em outros
lugares gritando: – “Cadê? Cadê a Jujú?”. E como eu não a achava, ela descobria e abria os
olhinhos e, gargalhando, dizia: – “Achei!”. Ao fechar e esconder os seus próprios olhinhos, Ana
Júlia parecia acreditar que havia desaparecido do meu campo de visão, de modo que a sua
certeza acerca da existência e materialidade dos objetos e dos corpos de outras pessoas ao seu
redor, bem como de seu próprio corpo, parecia estar firmemente instalada naquilo que lhe era
diretamente acessível à visão.

LW8 – A criança aprende a acreditar num monte de coisas. Quer dizer, ela aprende, por
exemplo, a agir de acordo com essas crenças. Pouco a pouco, forma-se um sistema de coisas
em que se acredita, e, nele, algumas são incrivelmente firmes, outras estão mais ou menos
sujeitas a alteração. O que é firme não o é porque seria em si mesmo óbvio ou evidente, mas,
sim, porque é fixado pelo que está a seu redor.

8
WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty. Edição: G. E. M. Anscombe; G. H. von Wright. Ox ford (UK): Blackwell
Publishers, 1969. §144.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

AH9 – Sempre que os adultos nomeavam algum objeto e se voltavam para ele, percebia e
entendia que o objeto vinha a ser designado pelos sons que eles proferiam, porque queriam
apontar para ele. Isto, entretanto, abstraia dos seus gestos, a linguagem natural de todos os
povos, a linguagem que, pelo jogo das caras e dos olhos, pelos movimentos dos membros e o
soar da voz, mostra os sentimentos da alma quando esta ambiciona algo, ou apreende, ou
recusa, ou foge. Assim, aprendi a compreender passo a passo que coisas as palavras designavam,
na medida em que eu ouvia os proferimentos várias vezes nos seus lugares determinados e em
diferentes sentenças. E trouxe por elas, na medida em que minha boca se acostumou a estes
sinais, meus desejos à expressão.

LW10 (referindo-se à fala anterior de Agostinho) – Nestas palavras conservamos, assim me


parece, uma determinada imagem da essência da linguagem humana. A saber, esta: as palavras
da linguagem nomeiam objetos – proposições são combinações de tais nomeações. Nesta
imagem da linguagem encontramos as raízes da ideia: toda palavra tem um significado. Este
significado é correlacionado à palavra. Ele é o objeto que a palavra substitui. Agostinho não fala
de uma diferença de tipos de palavra. Quem descreve o aprendizado da linguagem desta
maneira, imagina primeiramente, assim acredito, substantivos como “mesa”, “cadeira”, “pão” e
nomes de pessoas, e somente em segundo plano os nomes de certas atividades e qualidades e
os demais tipos de palavra como algo que se irá encontrar.

LW11 – Agostinho descreve, podemos dizer, um sistema de comunicação; só que nem tudo o
que chamamos de linguagem é esse sistema. E isso tem que ser dito em muitos casos onde se
levanta a questão: “Esta apresentação é útil ou inútil?”. A resposta é então: “Sim, é útil; mas
somente para este domínio estreito e circunscrito, não para a totalidade que você pretendia
apresentar”. É como se alguém explicasse: “Jogar consiste em movimentar coisas sobre uma
superfície de acordo com certas regras...” – e nós lhe respondêssemos: você parece pensar em

9
Agostinho de Hipona. Confissões apud WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas / Philosophische
Untersuchungen. Tradução de João José R. L. de Almeida. Curitiba: Horle Books, 2022a. §1, p. 10.
10
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas / Philosophische Untersuchungen. Tradução de João José R.
L. de Almeida. Curitiba: Horle Books, 2022a. §1, p. 10.
11
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas, op. cit. §3.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

jogos de tabuleiro; mas esses não são todos os jogos. Você pode corrigir a explicação ao
restringi-la expressamente a esses jogos.

LW12 – Agostinho descreve a aprendizagem da linguagem humana como se a criança tivesse ido
para uma terra estrangeira e não compreendesse a língua do país; isso significa: como se ela já
tivesse uma linguagem, só que não aquela. Ou também: como se a criança já pudesse pensar, só
que, ainda não, falar. E “pensar”, aqui, significaria algo como: falar para si mesmo.

TS13 – Não se deve entender um ato de significação como uma ação de uma mente imaterial que
controla o corpo como um capitão dirige um navio. Uma pessoa é o seu corpo. Se tem
significado, para alguém, que tal e tal ação deve ser levada a cabo, então, essa pessoa realiza a
ação corporal que constitui o significado dessa ação. Pois, sendo o seu corpo, é a mesma pessoa
que significa que também realiza a atividade corporal. Para tal pessoa, não há qualquer
necessidade de apossar-se de, de habitar ou de ativar seu corpo para que a sua atividade
corporal ocorra. Um corpo instrumental não implica que o corpo seja um instrumento.

TS14 – Aliás, a distinção entre ser e ter um corpo corta nas três dimensões da expressão corporal.
Com uma gama de expressões corporais à sua disposição, uma pessoa se sente geralmente em
casa, em seu corpo, expressando automaticamente as condições mentais e intelectuais e
realizando ações por meio de uma performance natural e espontânea do corpo. Ela é um corpo
não problemático. No entanto, avarias em qualquer dimensão da expressão corporal podem
levá-la a estabelecer uma distinção entre ela e seu corpo. Exemplos de tais distúrbios
são depressão debilitante, choro ou o riso incontroláveis, dor crônica ou aguda, paralisia, tiques
nervosos e o esforço exigido em aprendizagem complexa e sutil, bem como em atividades
coordenadas, tais como tocar piano ou esquiar. Quando ocorrem tais distúrbios, o corpo
também para ou deixa de expressar certas condições de vida espontaneamente. [...] Com

12
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas, op. cit. §32.
13
SCHATZKI, Theodore R. Social practices: a Wittgensteinian approach to human activity and the social. New York:
Cambridge University Press, 1996. p. 45.
14
SCHATZKI, Theodore R., op. cit. 1996. p. 46.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

a frustração, a dificuldade e a deformação da expressão, a coincidência inquestionável entre


uma pessoa e seu corpo é rompida.

LW15 – Por conseguinte, é enganador falar do pensamento como se se tratasse de uma


“atividade mental”. Podemos dizer que o pensamento é essencialmente uma atividade que
opera com signos. Esta atividade é realizada pela mão, quando pensamos por intermédio da
escrita; pela boca e pela laringe, quando pensamos por intermédio da fala; e se pensamos
imaginando signos ou figuras, é-me impossível mostrar-vos qualquer princípio ativo
pensante. Se então me disserem, que em tais casos, o espírito pensa, apenas chamarei a vossa
atenção para o fato de estarem a usar uma metáfora, de o espírito ser aqui um agente num
sentido diferente daquele que nos leva a considerar a mão como um agente na escrita. Se
discutirmos de novo sobre a localização da ocorrência de pensamento, temos o direito de
afirmar que ela corresponde ao papel em que escrevemos ou à boca que fala. E se falarmos da
cabeça ou do cérebro como sede do pensamento, isto corresponderá a uma utilização da
expressão “localização do pensamento” num sentido completamente diferente.

GG16 – Uma criança que aprende a nadar não pode conceber em pensamentos como é nadar
quando ela nada. Explicações e instruções de comportamento por parte dos adultos são, em
geral, inúteis; elas tornam o processo de aprendizagem ainda mais difícil. Mas um professor
pode mostrar a técnica à criança, que então se orienta pelo comportamento corporal do
modelo e tenta imitar seus movimentos. Na água, contudo, a criança sente que os movimentos
são diferentes do que na terra. Um bom professor fica na piscina ao lado do aluno, pega suas
mãos e as conduz com movimentos firmes pela água. O aluno sente a condução dos braços e a
posição das mãos; ele sente como pode ajustar seus movimentos à flutuabilidade, até finalmente
dominar o uso do seu corpo na água. Na situação comum com o professor houve participação
de sentidos diferentes do sentido da visão. Assim, o aluno sente em sua pele e com os músculos
a flutuabilidade e os efeitos dos movimentos da natação. Aprender a nadar começa, na primeira

15
WITTGENSTEIN, Ludwig. O livro azul. Lisboa: Edições 70, 1992. p. 32-33.
16
GEBAUER, Gunter. O pensamento antropológico de Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas, 2013. p. 74-
75.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

fase, com a imitação de outras pessoas; o modelo de conduta é então apropriado pelo aluno
com seus movimentos e incorporado por ele com o apoio do professor. Na situação de
aprendizagem a criança efetua uma concordância motora com o professor. Para o processo de
aprendizagem, é essencial que ele próprio possa executar o passo decisivo do aprendizado –
a compreensão de como funciona a técnica. [...] Um exemplo impressionante desse tipo
de imitação é o processo em que surgem as primeiras técnicas de comunicação entre mãe e
filho, quando a criança responde ao sorriso da mãe com sua própria forma mímica, que, por sua
vez, é imitada pela mãe. Quando a criança finalmente aprendeu algumas técnicas, ela está em
condição de adquirir modelos básicos de jogos de linguagem. Wittgenstein descreve esse
processo como um tipo de encenação pública, similar ao aprendizado de um jogo de bola.

JL17 – Usualmente, a aprendizagem contextualizada não é investigada de forma isolada, mas


como parte de uma dualidade da qual a aprendizagem descontextualizada constitui a outra
metade. Mas as teorias sobre o contexto [...] intencionam aplicar-se amplamente a toda prática
social: elas afirmam que não há prática social descontextualizada. Essa afirmação nos
compromete a explicar aquilo que tem sido frequentemente considerado como “conhecimento
descontextualizado” ou “aprendizagem descontextualizada” como práticas sociais
contextualizadas.

LW18 – Você interpreta a nova concepção como a visão de um novo objeto. Você interpreta um
movimento gramatical que você fez como um fenômeno quase físico que você está observando.
(Pense, por exemplo, na questão “são os dados dos sentidos o material constitutivo do
universo?”. Mas a minha expressão “Você fez um movimento ‘gramatical’” não está livre de
objeções. Você encontrou, antes de tudo, uma nova concepção. É como se você tivesse
inventado um novo estilo de pintura; ou então, um novo metro, um novo tipo de canção.

17
LAVE, Jean; CHAIKLIN, Seth (Eds.). Understanding practice: perspectives on activity and context. New York:
Cambridge University Press, 2006. p. 35.
18
Wittgenstein, 2009, PI-401, p. 128. In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchungen/Philosophical
Investigations. Translated by Gertrude E. M. Anscombe, Peter M. S. Hacker, and Joachim Schulte. — Rev. 4th ed./by
P. M. S. Hacker and Joachim Schulte. UK: Wiley-Blackwell Publishing Ltd., 2009.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

LW19 – Pode-se descrever a alguém matemática superior, salvo ao tempo que se a transmite?
Ou também: esta aula é uma descrição da arte do cálculo? Descrever a alguém o jogo de tênis
não significa ensiná-lo a jogar (e vice-versa). Por outro lado: quem não soubesse o que é tênis
e ora o aprende a jogar, ele o sabe então. (Conhecimento por descrição e conhecimento por
familiaridade).

AM20 – Por um lado, Wittgenstein fala em aprender gramaticalmente, conceitualmente, por


descrição verbal, isto é, assimilando ou traduzindo, exclusivamente por encenações corporais
verbais, as práticas corporais nem sempre verbais ou exclusivamente verbais que são
diretamente encenadas em diferentes contextos de atividade. É o caso, por exemplo, da
diferença que ele estabelece entre jogar tênis e descrever (verbalmente) uma partida de tênis.
É claro que, para jogarmos uma partida de tênis, não precisamos emitir uma única palavra;
simplesmente deixamos nossos corpos serem orientados pelas regras do jogo de tênis e por
condicionamentos diversos de outra natureza. É por isso que só podemos aprender a jogar tênis
jogando tênis, fazendo o nosso corpo participar diretamente de uma partida de tênis. Isso
significa, por um lado, que não podemos aprender descritivamente ou verbalmente a jogar
tênis. Mas significa, por outro lado, que podemos aprender descritivamente ou verbalmente as
regras do jogo de tênis, bem como a narrar, comentar e avaliar uma partida de tênis. Então, só
é possível aprendermos a jogar tênis artisticamente, pelo estilo da pintura, por familiaridade,
por semelhanças de família, fazendo o nosso corpo agir analógico-mimeticamente, isto é,
observando e imitando os movimentos corporais de outros jogadores de tênis, treinando ou
disciplinando o nosso corpo com base nas regras e nos instrumentos permitidos no jogo de
tênis. Para isso, nosso corpo não age orientado por conceitos; age preponderantemente por
observação visual e por imitação cinestésica.

AM – Parodiando Leibniz que disse que “a música é um exercício inconsciente da aritmética,


em que o espírito ignora que calcula”, fico tentado a dizer que Ana Júlia aprende a falar a sua

19
WITTGENSTEIN, Ludwig. Anotações sobre as cores – Bemerkungen über die Farben. Apresentação,
estabelecimento do texto, tradução e notas por João Carlos Salles Pires da Silva. Campinas: Editora da Unicamp,
2009b. § 291, p. 181.
20
MIGUEL, Antonio. Um jogo memorialista de linguagem: um teatro de vozes. Campinas: FE-UNICAMP, 2016. p. 217.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

língua nativa artisticamente, pelo estilo da pintura, como um exercício sensível – isto é, nem
voluntário e nem involuntário – de matemática algorítmico-praxiológica, em que o seu corpo
ignora estar seguindo regras.

LW21 – A criança aprende a caminhar, a arrastar-se, a jogar. Não aprende a jogar


voluntariamente ou involuntariamente. Mas, o que converte os movimentos do jogo em
movimentos voluntários? – Como seria se fossem involuntários? – Poder-se-ia perguntar
igualmente: o que converte, então, esses movimentos em um jogo? – Seu caráter e seu
âmbito.

FS22 – Life is serious. Art is gay.

LW23 – Que estreiteza da vida mental da parte de Frazer! E que impossibilidade de conceber
uma outra vida diferente da inglesa do seu tempo! Frazer não consegue pensar em nenhum
sacerdote que não seja, fundamentalmente, um pároco inglês do nosso tempo, com toda a sua
estupidez e debilidade. [...] A apresentação que faz Frazer das concepções mágicas e religiosas
dos seres humanos é insatisfatória: ela faz com que essas concepções apareçam como erros.
Estava, então, Agostinho errado quando invocava a Deus em cada página das Confissões? E se
ele não estava errado, então, quem estava, poder-se-ia dizer, era o santo budista – ou outro

21
WITTGENSTEIN, Ludwig. Zettel. Traducción de Octavio Castro y Carlos Ulises Moulines. Prólogo explicativo de G.
E. M. Anscombe y C.H. von Wright. Londres: Basil Blackwell, 1967. § 587, itálicos meus.
22
Aforismo do filósofo e poeta alemão Friedrich Schiller (1759-1805) extraído do “Prólogo” de sua trilogia de dramas
intitulada Wallensteins Lager (“Acampamento de Wallenstein”), completada em 1799. Ao longo de uma reflexão de 21
de outubro de 1916 acerca da vontade humana, contida no seu Diário de 1914-1916, Wittgenstein mobiliza esse
aforismo como uma possível “resposta” à seguinte questão que ele levanta: “Aesthetically, the miracle is that the
world exists. That what exists does exist. Is it the essence of the artistic way of looking at things, that it looks at the
world with a happy eye?” In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Notebooks 1914-1916. Edited by G. H. von WRIGHT and G. E.
M. ANSCOMBE with an English translation by G. E. M. ANSCOMBE. Harper & Row, Publishers New York and
Evanston, 1969. p. 86e.
23
Uma das observações terapêuticas feitas por Wittgenstein à obra monumental “The Golden Bough” do antropólogo
escocês James Frazer. In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Observações Sobre o Ramo de Ouro de Frazer/Bemerkungen
über Frazers The Golden Bough. Tradução de João José R. L. de Almeida. Curitiba: Horle Books, 2022b.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

qualquer – cuja religião expressa concepções completamente diferentes. Mas nenhum deles
estava errado. Exceto quando afirmava uma teoria.

AM – Por volta de 1 ano e meio, Ana Júlia já falava razoavelmente bem várias palavras isoladas e
repetia razoavelmente bem grande parte das palavras que a gente pedia para que ela repetisse,
ou outras que ela repetia à exaustão por conta própria, como se quisesse certificar-se de que
ela havia aprendido a pronunciá-las corretamente e que não mais esqueceria de fazê-lo em
outras ocasiões, ou então, talvez, como se quisesse vangloriar-se por ter conseguido mais uma
conquista no domínio da prática cultural da fala em sua língua nativa. E essa conquista parecia
ir além do reconhecimento de uma mera possibilidade de repetir adequadamente palavras
pronunciadas pelos adultos. E esse “ir além” poderia, talvez, estar significando que ela havia se
dado conta de como opera a máquina da fala humana em sua língua nativa – por percepção de
semelhanças e diferenças entre sons que podiam ser emitidos pela vibração de suas cordas
vocais – e de que precisaria, portanto – por ensaio e erro – disciplinar a vibração de sons
emitidos por suas cordas vocais até selecionar – e então, imitar e repetir à exaustão – as
combinações de fonemas reconhecíveis como culturalmente significativas para a comunidade
de falantes de sua língua nativa. Quando Ana Júlia se deu conta do modo como operava o
aspecto maquinal da prática cultural da fala humana em sua língua, ela também aprendeu que
poderia falar palavras que não lhe fizessem, no momento, significado algum, mas que,
posteriormente, poderia significar culturalmente algo para a comunidade de falantes de sua
língua. Por exemplo, ela aprendeu a falar e a repetir a palavra “choque”, sem que essa palavra
lhe fizesse qualquer significado. Um dia, no parquinho, ao escorregar pelas paredes de plástico
lisinhas de um escorregador tubular curvo e os seus cabelos ficarem todos eriçados, a sua mãe,
ao pegá-la na saída do tubo e levar um choque eletrostático, gritou: – “Nossa, levei um choque”!
Ana Júlia repetiu a palavra e, certamente, aprendeu a atribuir-lhe o significado que ela passou
a adquirir naquele jogo de linguagem do escorregar por um tubo de plástico. Depois disso, à
noite, ao assistir um desenho da série “Masha e o Urso”, ela se depara com uma cena em que
um raio cai sobre o urso que estava procurando Masha debaixo de chuva. O urso fica todo
eletrizado e brilhante, como se estivesse pegando fogo, e cai estático no chão. No mesmo
instante, a sua mãe diz: – “Olha lá, o urso levou um choque!”. E Ana Júlia novamente grita a

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

palavra “choque”, aprendendo a atribuir-lhe um outro significado naquele novo jogo ficcional
de linguagem do desenho animado. Mas, além de ter aprendido um novo significado para a
palavra “choque”, ela também, provavelmente, aprendeu que uma mesma palavra pode
significar coisas diferentes nas diferentes situações em que ela é repetida e usada de um modo
culturalmente significativo. E a partir dessa constatação, ela mesma poderá inventar, por
semelhanças e diferenças corporais afetivas – isto é, por percepções e sensações que afetam o
seu corpo como um todo – novos usos da palavra “choque”, como aquele em que, um dia, ao
tocar numa xícara contendo leite quente, ela afasta imediatamente a mãozinha e grita: –
“choque”! Fiquei imaginando que se ela tivesse levado casualmente um “choque térmico” por
volta de 6 meses, quando ainda não conseguia expressar o seu afeto pronunciando qualquer
palavra culturalmente significativa para os adultos ou para si mesma, ela certamente o
expressaria afastando a mãozinha dando um grito ou chorando. Expressões corporais e choro
são jogos afetivos pré-linguísticos de linguagem inventados por bebês que ainda não falam a
sua língua. Penso que, de modo algum, tais jogos desaparecem ou deixam de ser jogados, pelos
adutos, posteriormente ao domínio da fala humana numa língua nativa. Penso que, sempre que
não dispomos de um recurso linguístico para expressar um afeto – incômodo ou não –, nós,
humanos – crianças ou adultos –, choramos e gesticulamos de modo agramatical, isto é, sem
obedecer a quaisquer regras, ainda que chorar e gesticular sem governo possam também, em
situações diversas, ser vistos como jogos de linguagem culturalmente significativos.

AM – Quando ainda não conseguia pronunciar nenhuma palavra, Ana Júlia respondia perguntas
que lhe requeriam responder “sim” ou “não”, simplesmente movimentando a cabeça de cima
para baixo para responder “sim”ou movimentando-a lateralmente para responder “não”. Era
assim – através de gestos – que ela expressava não apenas a sua compreensão das perguntas
que lhe eram feitas, como também, as escolhas binárias que tais perguntas lhe possibilitavam
fazer. Já quando ela já havia aprendido a falar muitas palavras, perguntas desse tipo passaram a
ser respondidas com um “sim” ou com um “não”, ou ainda, através da repetição ipsis litteris dos
verbos que tais perguntas mobilizavam. Assim, à pergunta: – “Você quer água?”, ela respondia:
– “Quer”; à pergunta: – “Você já comeu frutinha?”, ela respondia: – “Comeu”. Já por volta de 1
ano e 7 meses, ela me surpreendeu com uma resposta diferente à seguinte pergunta do mesmo

80
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

tipo: – Você comeu a tortinha de frango que o papai fez pra você? – “Comiu!”. Este tipo de
resposta diferenciada – isto é, que não mais se contentava em apenas repetir ipsis litteris os
verbos das perguntas, mas que inventavam modos sui generis de flexioná-los –, parecia
mostrar, não apenas, que Ana Júlia começava a distinguir entre práticas que já haviam sido por
ela realizadas e outras que ela poderia vir a realizar, como também, entre uma mesma prática
já realizada e outra que ainda poderia vir a sê-lo, através de modos distintos de se flexionar os
verbos que se referiam a tais práticas. Penso, porém, que ela vai precisar ainda fazer muitos
ensaios e erros para aprender, não propriamente como flexionar corretamente tais verbos em
conformidade às regras gramaticais constitutivas da norma culta de sua língua nativa, mas para
aprender como flexioná-los em conformidade às regras gramaticais seguidas pelas
comunidades de falantes – de crianças e de adultos – de sua língua com as quais ela convive,
pelas quais ela tenderá a desenvolver um sentimento de pertencimento ou nas quais ela
receberá acolhimento.

AB24 – E prá esquecê nóis cantemos assim:

Saudosa maloca, maloca querida,

Dim dim donde nóis passemo dias feliz de nossas vida.

AM – No futuro, a escola certamente exigirá de Ana Júlia seguir as regras gramaticais da norma
culta. Ela, provavelmente, as aprenderá mas, certamente, irá negá-las ou ignorá-las para
continuar falando os dialetos das diferentes comunidades de prática com as quais ela convive,
pelas quais ela tenderá a desenvolver um sentimento de pertencimento ou nas quais ela
receberá acolhimento.

AM – O que aprendemos na escola quase sempre esquecemos ou ignoramos na vida.

NR25 – Batuque é um privilégio

24
Versos da canção “Saudosa maloca” do músico e compositor brasileiro Adoniran Barbosa (1912-1982).
25
Versos da canção “Feitio de oração” do músico e compositor brasileiro Noel Rosa (1910-1937).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Ninguém aprende samba no colégio

Sambar é chorar de alegria

É sorrir de nostalgia

Dentro da melodia.

AM – Mas, ao mesmo tempo em que Ana Júlia se especializava no jogo de linguagem da


repetição da fala de palavras isoladas, eu a pegava, com muita frequência, em sessões de
treinamento da “fala fluente”. Nesses momentos, ela se dirigia à mamãe, ao papai, à vovó ou a
mim e disparava a “narrar fluentemente”, com expressão facial, entonação e gesticulação
convincentes, algo que parecia fazer sentido apenas para ela, e que a gente fazia um esforço
imenso para entender, ou fingia entender apenas para continuar a “conversar” com ela. Sempre
que eu flagrava Ana Júlia nesses seus jogos de linguagem de fala fluente significativa apenas
para si mesma, eu era remetido ao episódio do “indígena escritor-leitor” dos Tristes Trópicos
de Claude Lévi-Strauss.

CL-S26 – Está claro que os Nhambiquara não sabem escrever; mas tampouco desenham, com
exceção de alguns pontilhados ou zig-zags em suas cabaças. Como entre os Caduveo, distrlbuí,
entretanto, folhas de papel e lápis, de que nada fizeram no início; depois, um dia, eu os vi
ocupados em traçar no papel linhas horizontais onduladas. O que quereriam fazer? Tive de me
render à evidência: escreviam ou, mais exatamente, procuravam dar ao seu lápis o mesmo
emprego que eu, o único que então podiam conceber, pois eu ainda não tentara distraí-los com
meus desenhos. Os esforços da maioria se resumiam nisso; mas o chefe do bando via mais longe.
Apenas ele, sem dúvida, compreendera a função da escrita. Assim, reclamou-me um bloco e nos
equipamos da mesma maneira quando trabalhamos juntos. Ele não me comunica verbalmente
as informações que lhe peço, mas traça sobre o seu papel linhas sinuosas e as apresenta para
mim, como se ali devesse ler a sua resposta. Ele próprio como que se ilude com a sua comédia;
cada vez em que a sua mão termina uma linha, examina-a ansiosamente, como se a significação

26
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Tradução de Wilson Martins. São Paulo: Editora Anhembi Limitada, 1957.
p. 314-315.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

devesse brotar, e a mesma desilusão se pinta no seu rosto. Mas não a admite; está tacitamente
entendido entre nós que os seus riscos possuem um sentido que eu finjo decifrar; o comentário
verbal segue-se quase imediatamente, e me dispensa de pedir os esclarecimentos necessários.
Ora, mal havia ele reunido todo o seu pessoal, tirou dum cesto um papel coberto de linhas
tortas, que fingiu ler, e onde procurava, com uma hesitação afetada, a lista dos objetos que eu
devia dar em troca dos presentes oferecidos: a este, contra um arco e flechas e um facão de
mato! A outro, contas para os seus colares... Essa comédia se prolongou durante 2 horas. O que
esperava ele? Enganar-se a si mesmo, talvez; mas, antes, surpreender os companheiros,
persuadi-los de que as mercadorias passavam por seu intermédio, que ele obtivera a aliança do
branco e participava dos seus segredos.

AM – Ao ser remetido a fazer esta analogia entre o modo como Ana Júlia se apropria da prática
cultural da fala em sua língua nativa e o modo como o “indígena escritor-leitor” de Lévi-Strauss
imita, por falseamento, o seu pseudo-domínio da prática cultural da escrita e da leitura do
europeu branco, eu não estou, é claro, querendo comparar – por equiparação ou semelhança –
um suposto modo infantil genérico de pensar com um suposto modo adulto de pensar de povos
que, tais como os povos indígenas, eram ou continuam sendo considerados primitivos por seus
colonizadores europeus. Menos ainda, com um suposto modo adulto genérico de pensar de
mulheres ou loucos, como o fizeram, muitas vezes, pensadores tais como Sigmund Freud,
Lucien Lévy-Brull, Jean Piaget e tantos outros, na passagem do século XIX para o XX. O próprio
Lévi-Strauss, em seu livro “As relações elementares do parentesco”, denominou essas
teorizações psicologizantes whig-historicistas, desenvolvimentistas e preconceituosas de
“ilusão arcaica”, por estarem elas baseadas no arbitrário e refutável pressuposto que via nos
povos originários – considerados “primitivos”, “não-civilizados”, “iletrados” e “inferiores” por
etnólogos, antropólogos, historiadores e psicólogos europeus – uma imagem aproximada de
uma mais ou menos metafórica infância da humanidade, cujos principais estágios histórico-
cronológicos seriam reproduzidos também, no plano individual, pelo desenvolvimento
intelectual da criança. Contra tal pressuposto, Lévi-Strauss argumentou que “a cultura mais

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

primitiva é sempre uma cultura adulta e, por isso mesmo, incompatível com as manifestações
infantis que podem ser observadas na mais evoluída civilização”27.

AM – De tanto presenciar as lutas dos pais de Ana Júlia para fazê-la “dormir na hora certa” e os
diferentes tipos de choros que ela inventava como formas de resistência ou de transgressão ao
“dormir normativo”, fiquei me perguntando sobre como o sono, o dormir e o choro espontâneos
de Ana Júlia haviam se transformado em práticas culturais ou jogos de linguagem, isto é, fiquei
me perguntando sobre como Ana Júlia havia aprendido a sentir sono, aprendido a dormir e
aprendido a chorar e a inventar diferentes tipos de choros.

AM – Pouco antes de completar o seu primeiro ano de vida, logo após ter vivenciado o
incômodo do despontar dos primeiros dentinhos de leite, Ana Júlia aprendeu a lançar aos outros
– inicialmente à mamãe e ao papai, e depois aos avós – o seu primeiro sorriso falso. Isso
aconteceu quase que na mesma época em que ela também aprendeu a chorar falsamente, a
chorar de manha, como se costuma dizer, a chorar um choro que não mais correspondia a uma
dor, à fome ou a um efetivo desconforto corporal. Para Ana Júlia, bebê de alguns meses, a
expressão significativa dos seus afetos, das suas dores e dos seus incômodos corporais efetivos
em diferentes jogos de linguagem mobilizadores de diferentes tipos de choros me pareceram
anteceder os jogos de linguagem nos quais ela expressava significativamente seus afetos falsos
ou fictícios de dores e demais incômodos corporais, após o que, ambos os tipos de afetos – uma
vez aprendidos, por terem sido devidamente considerados e respondidos pelos adultos –
passam a ser corporalmente expressos e praticados indistintamente.

Coutinho28 – Foi todo contido... teve um momento mais né... não sei se de paz, mas deu tá... o
que vocês acham?

27
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis:
Vozes, 1982.
28
O diálogo a seguir entre Coutinho – o diretor e cineasta brasileiro Eduardo Coutinho (1933-2014) – e Marília – a
atriz brasileira Marília Pera (1943-2015) – é a reprodução de um segmento do filme Jogo de Cena (2007), de Eduardo
Coutinho, em que a atriz conversa diretamente com o diretor (o qual, ao longo do diálogo, permanece invisível ao
espectador), tecendo comentários acerca da experiência que ela teve, no referido filme, de reencenar episódios já

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Marília – É que teve um momento em que eu falei da filha dela e veio a imagem da minha filha
e eu dei uma marejada... e veja como eu também to dando agora porque... Vem... a filha né... a
tua filha, a tua continuidade. Vem na memória emotiva vem a carinha da filhinha, né?

Coutinho – (Intencionalmente não audível para a audiência): ...

Marília – Isso é algo... não sei se é interessante ficar.... que eu te falei das vezes que a gente se
encontrou... que é... quando o choro é verdadeiro, a pessoa sempre tenta... esconder. É... assim...
Esconder. Quer esconder, não quer chorar.

Coutinho – As pessoas em geral?

Marília – Na frente de uma câmera. Ou... sei lá... numa análise... Porque cada análise é uma...
Mas quando o sentimento é doloroso, verdadeiro, a pessoa tenta esconder a lágrima. E o ator –
principalmente o ator, hoje – tenta mostrar a lágrima, né? Então, essa é uma... é uma...

Coutinho – Você fala ‘hoje’ porque você fala da televisão ou porque você fala do ator de teatro
em geral?

Marília – Eu acho que é o ator mais da tela e principalmente o ator de televisão, porque as
lágrimas são sempre muito...

Coutinho – Copiosas?

Marília – Benvindas, né? São benvindas. Todos desejam as lágrimas. Então, os atores mais
modernos sempre estão mostrando as lágrimas.

Coutinho – Mas, portanto, aquele momento que você teve a coisa ali com a tua filha, você,
enquanto atriz, você...

Marília – Tentei segurar. É! Tentei segurar. Não deixei...

encenados, no próprio filme, da vida de outra mulher que, no próprio filme, já havia anteriormente reencenado
narrativamente episódios de sua própria vida. No filme, este segmento tem início em 33min55s e tem o seu final em
49min57s.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Coutinho – (Intencionalmente não audível para a audiência): ...........................................

Marília – Porque eu acho que é mais emocionante quando você quer esconder a emoção.
Quando você...

Marília – (Tirando um pequeno frasco escuro do bolso da jaqueta) – Ah, sabe uma coisa que eu
botei aqui até pra te mostrar...

Coutinho – Marca-passo?

Marília – Que Deus me livre de marca-passo...

Coutinho – Marca-passo fora?

Marília – É... cristal japonês.

Coutinho – Isso faz o quê?

Marília – Isso aqui é só você passar um pouquinho... chora-se muito.

Coutinho – Vai ter que começar a usar, né?

Marília – Eu botei aqui só pra te mostrar.

Coutinho – É?

Marília – Eu falei assim.... se o Coutinho quiser muito muito muito muito que eu chore, eu faço
assim (levando o dedo nos cantos dos olhos, como se passasse neles um pouco do cristal
japonês)... e choro!

Marília – Então, se você pedisse muito e se eu não conseguisse... chorar... Olha, Marília, eu
gostaria que você... vertesse lágrimas.

Coutinho – Eu não exigiria...

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Marília – Não que você exigisse, mas que você quisesse muito.... eu gostaria de... entendeu? Aí
eu ia fazer assim: (levando novamente o dedo no canto do olho, disfarçando o movimento e
sorrindo para Coutinho).

GA29 – No choro, o sujeito da linguagem parece chegar a abolir-se para revelar o que está para
além da voz e para além das “bordas mudas da palavra”; mas esta experiência é, uma vez mais,
experiência de um limite, de “uma impossibilidade de expressar”, um naufragar no indecidível
e não uma realidade positiva. Os limites da voz são velados pelo choro.

PV30 – E é aí, no seio mesmo das trevas onde se fundem e confundem o que pertence à nossa
espécie, o que pertence à nossa matéria vivente e o que pertence às nossas recordações, às
nossas forças e debilidades escondidas e, por fim, o vago sentimento de não haver existido
sempre e de ter de deixar de existir, onde se encontra o que tenho chamado a fonte das
lágrimas: O INEFÁVEL. Porque nossas lágrimas são, a meu ver, a expressão de nossa impotência
para expressar, ou seja, para nos livrar, através da palavra, da opressão do que somos.

LW31 – Há, por certo, o inefável. Isso se mostra, é o Místico. O método correto da filosofia seria
propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer; portanto, proposições da ciência
natural, algo que nada tem a ver com filosofia; e então, sempre que alguém pretendesse dizer
algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas
proposições. Para este alguém, esse método seria insatisfatório – não teria a sensação de que
lhe estivéssemos ensinando filosofia; mas ele seria o único rigorosamente correto. Minhas
proposições elucidam desta maneira: quem me entende, acaba por reconhecê-las como contra-
sensos, após ter escalado através delas – por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer,
jogar fora a escada após ter subido por ela). Deve sobrepujar essas proposições, e então, verá o
mundo corretamente. Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.

29
AGAMBEN, Giorgio. El yo, el ojo, la voz. In: AGAMBEN, Giorgio. La potencia del pensamento: ensayos y
conferencias. Traducción de Flavia Costa y Edgardo Castro. Barcelona: Editorial Anagrama, 2008. p. 107.
30
Paul Valéry apud AGAMBEN (op. cit., 2008. p. 106).
31
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Lógico-Philosophicus. Tradução, Apresentação e Ensaio Introdutório por Luiz
Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 2010. § 6.522, 6.53, 6.54 e 7.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

AM – Como uma fotografia, participa até hoje de minha memória corporal afetiva aquele
momento em que Ana Júlia, em resposta ao meu sorriso franco e sincero, esticou lateralmente
os lábios e, num movimento mecânico repentino e de curtíssima duração, pôs à mostra a sua
gengiva com três ou quatro dentinhos, expressão esta que eu, naquele momento, cheguei a
suspeitar ter sido um sorriso falso.

LW32 – Seremos, talvez, precipitados ao assumir que o sorriso de um bebê não é uma
dissimulação? – E sobre que experiência se baseia nossa assunção? (Mentir é um jogo de
linguagem a ser aprendido como qualquer outro).

LW33 – Por que um cachorro não pode simular dores? Ele é assim tão honesto? Pode-se ensinar
um cachorro a simular dores? Pode-se, talvez, instruí-lo a uivar de dor em determinadas
ocasiões, sem que sinta dores. Mas, para uma simulação real, faltaria ainda a este
comportamento o entorno correto.

AM – Por volta de seus 19 meses de vida, embora eu não tivesse presenciado, fiquei sabendo
por sua mãe que Ana Júlia, sentada na cadeirinha acoplada ao banco traseiro do automóvel que
a mamãe dirigia, começou a entoar uma sequência de sons que sua mãe significou como um
“choro falso”: – “ann annnn ann...”. E, logo em seguida, Ana Júlia falou com fala fluente: – “Estou
chorando mamãe!”. Ao ouvir este relato de sua mãe, dei-me conta de que, naquele momento,
Ana Júlia não só teria inventado um jogo de linguagem do choro falso ou de representação
teatral do choro verdadeiro – e, portanto, aprendido, de fato, a chorar falsamente –, como
também, inventado ou aprendido a jogar um jogo metarreferencial de linguagem de expressão
linguística do seu próprio choro falso ou teatral: – “Estou chorando mamãe!”, como se, ao
mentir para si mesma, ela estivesse querendo convencer sua mãe de que ela não estaria
simulando um choro, mas realmente chorando, ou então, como se, ao usar a sua mãe como
cobaia, ela estivesse querendo testar a fidelidade de sua representação teatral de um choro
falso, recorrendo ao meta-argumento verbal redundante: – “Estou chorando mamãe!”. Foi assim

32
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas (op. cit., 1979, §249).
33
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas (1979, §250).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

que penso ter Ana Júlia aprendido a mentir, bem como aprendido que aprender a mentir para
o outro, não é senão aprender a mentir para si mesma.

AM – Bebês humanos expostos a diferentes tipos de vulnerabilidade – fome, doença, abandono,


privações, violência física – tendem a não aprender, ou a aprender a sorrir tardiamente. Por
extensão, penso também ser mais difícil para eles estamparem no rosto um sorriso ou um choro
falsos. Falsos afetos desse tipo parecem só ser aprendidos tardiamente, mais como respostas a
gestos de desafetos do que a gestos de afetividade humana.

UMA MÃE E SEU FILHO34 – Até as lágrimas eram negras. Quando meu filho chorava, suas
lágrimas eram negras. Quando seu nariz escorria, o muco era negro. Mesmo a saliva em sua
boca era negra. Os soldados vieram à noite, quando as crianças estavam dormindo. Eles tiraram
este aqui da cama e um dos soldados pisou na cabeça dele com suas botas pesadas, pondo todo
o peso sobre ela. Eles me seguraram e seguraram meu marido e nos ameaçaram com seus rifles.
Eu disse: – por favor, levante sua bota, você está esmagando a cabeça dele. Vejam este
pequenino. Ele não fala uma palavra desde então. Foi horrível! Eles assassinaram meu marido.
Meu filho conseguia falar, mas não diz mais nada agora. Só uma vez ele disse: – Mamãe: nunca
mais quero aprender a falar”.

AM – Muitas crianças aprendem a falar a sua língua nativa, mas não devemos supor que isso
ocorre para todas as crianças e nem que exista uma teoria geral que explique como essa
aprendizagem se processa, uma vez que esse processo é idiossincrático para cada criança. Não
devemos também supor – como mostra o exemplo real do menino do documentário de Herzog
– que, uma vez aprendida, a prática cultural da fala não possa ser desaprendida. Traumas
provocados por diversas doenças ou por violências a que bebês, crianças ou adultos são
submetidos, podem comprometer ou impedir que essa aprendizagem ocorra, ou mesmo
reverter irreversivelmente esse processo, em qualquer estágio, após ter ele se iniciado.

34
Depoimento de uma mãe que, encenando corporalmente a mudez de seu filho, participa de uma cena do
documentário Lessons of the darkness (Lições das Trevas) do diretor alemão Werner Herzog, que transcorre sob um
fundo tenebroso de negras ondas de fumaça provindas de campos petrolíferos do Kuwait em chamas, no período
pós-Guerra do Golfo.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

AM – Aprender a chorar ou a sorrir – isto é, aprender a participar significativamente de jogos


de linguagem de choros e sorrisos humanos – é aprender a significar expressões corporais,
muitas vezes restritas à face humana, de modo convencional compartilhado por uma ou mais
formas humanas de vida, mas não por todas.

AM – Para diferentes formas de vida – e para os respectivos modos como elas convencionam
usar as palavras “choro”, “sorriso” e “humanidade” – os cães e, em geral, os demais animais, não
podem dar um sorriso verdadeiro, menos ainda, um sorriso falso.

AM – O caráter de um choro (ou de um sorriso) é significado pela gramática do jogo de


linguagem em que este afeto é corporalmente expresso.

AM – É compreensível que – para certas crianças que participam de uma mesma forma de vida
– o choro e o sorriso falsos antecedam a aprendizagem significativa das primeiras palavras com
sentido compartilhado por suas respectivas comunidades linguísticas.

AM – Quando Ana Júlia passou a sorrir mais frequentemente sempre que me via, ou a chorar
por coisas supostamente sem motivos, eu não podia mais distinguir com certeza quando o
sorriso ou o choro expressavam realmente afetos físicos prazerosos ou incomodativos ou
quando eram cínicos, interesseiros, apelativos ou negociadores.

AM – Por volta de 1 ano e 3 meses, quando Ana Júlia já andava e até mesmo corria com relativa
segurança, nas visitas que vovó e eu fazíamos a ela, logo que chegávamos e ela corria em nossa
direção, a gente agachava, abria os braços e dizíamos: – Vem! Dá um abraço no vovô! Dá um
abraço na vovó! A princípio, a gente estranhava, pois, a esse tipo de comando, Ana Júlia
respondia com um brusco freio no seu movimento em nossa direção. Ela parava, não como se
nos estranhasse ou estivesse evitando o nosso contato físico, mas como se não estivesse
entendendo o nosso comando verbal, como se não estivesse entendendo o que a palavra
“abraço” poderia significar. Então, a gente ia até ela e abraçava-a, balançando os nossos corpos
entrelaçados de um lado para o outro, sem que o nosso abraço fosse por ela correspondido. Em
seguida, a gente lhe dizia: – Dá um beijo no vovô! Dá um beijo na vovó! Traduzi do mesmo modo
a ausência de resposta de Ana Júlia a este novo, porém semelhante, comando: como uma

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

incompreensão do que a palavra “beijo” poderia significar e, portanto, uma incompreensão de


que ação ela deveria realizar para responder adequadamente ao comando “dar um beijo”.

AM – Por volta da mesma época, quando o amiguinho Caê e sua cuidadora vieram visitá-la, logo
que entraram, a cuidadora de Caê lhe disse: – Dá um abraço na amiguinha! Sem rodeios, Caê
caminhou de braços abertos em direção a Ana Júlia e a enlaçou num forte e sufocante “abraço”,
por ela não correspondido, não porque, penso eu, o “abraço” não lhe pareceu ter sido lá muito
afetuoso, mas porque nem a palavra “abraço” e, menos ainda, a palavra “afeto”, ou ainda, um
abraço como expressão de afeto, poderiam ter recebido por parte dela as significações
culturalmente acordadas que lhes atribuímos. Porém, diferentemente de Ana Júlia, Caê já havia
aprendido a abraçar, ainda que não pudesse significar tal prática cultural como uma expressão
de amizade, amor e afeto, distinguindo-a, portanto, de práticas de expressão de ódio, de
agressão ou de violência física. Mesmo assim, penso ter sido com este “agressivo” abraço
sufocante que lhe deu Caê – comparado com outros abraços afetuosos, calorosos e igualmente
sufocantes –, que Ana Júlia foi aprendendo a dar um significado culturalmente adequado à
palavra “abraço”, bem como a ver nos atos de abraçar e beijar demonstrações de afeto, amor e
carinho. Foi assim que, a partir de certo momento, ela passou a abraçar e a beijar os avós, o
papai e a mamãe – e quem mais por quem ela, de fato, gostaria de demonstrar afeto – de uma
forma culturalmente esperada e adequada.

AM – Penso que à medida em que Ana Júlia for aprendendo a atribuir diferentes significados
culturalmente constituídos e instituídos a jogos de linguagem do sorrir, do chorar, do abraçar
e do beijar – e passar a sorrir, a chorar, a abraçar e a beijar de modos significativamente
diversos, ela não estará aprendendo a se tornar mais ou menos cínica, mais ou menos falsa ou
mais ou menos afetuosa; ela estará aprendendo a se tornar simplesmente humana. Quero dizer:
ela estará aprendendo a distinguir e a encenar as diferentes gramáticas de jogos de linguagem
do sorrir, do chorar, do abraçar e do beijar. Mas ela estará aprendendo também que nem sempre
será possível distinguir quando o sorriso, o abraço, o beijo, o choro, a alegria, o grito, a dor e o
sofrimento humanos se mostram de fato sinceros, cínicos, afetuosos, traiçoeiros, verdadeiros,
falsos, nem verdadeiros e nem falsos, tanto uma coisa como outra, nem uma coisa nem outra...

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Ela estará então aprendendo a reconhecer o caráter aberto, ilimitado, ambíguo, indefinido,
figurativo e artístico das significações humanas.

LW35 – Um grito de sofrimento não pode ser maior que o de um ser humano.

OS – “O grito de Gaza” do artista tunisiano Omar Esstar.

Figura 1 - “O grito de Gaza” (Omar Esstar)


Fonte: Breno Altman. X. Disponível em:
https://twitter.com/brealt/status/1758550882390622364. Acesso em: 02 mar. 2024.

AM – Ela estará aprendendo, então, a experienciar significativamente os limites da dor e da


alegria da humana vontade de se viver decolonialmente com engenho e arte....

35
WITTGENSTEIN, Ludwig. 1944, MS 128, p. 50.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Gislaine Rodrigues Couto – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Pesquisa com crianças e reflexividade


construcionista: modos de olhar e modos de ver
Sueli Salva

Introdução

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: elas desejam ser olhadas de
azul – que nem a criança que você olha de ave.
Manoel de Barros

Este artigo materializa pensamentos e reflexões sobre a pesquisa com crianças. Trata-se
de um tema que tem sido amplamente discutido por pesquisadoras e pesquisadores da área da
educação, tais como Maria Carmem Silveira Barbosa, Ana Lúcia Goulart de Faria, Anete
Abramowicz, Altino José Martins Filho e Patrícia Dias Prado, Flavio Santiago, apenas para citar
algumas/uns brasileiros e outras/os reconhecidas/os internacionalmente como Manuel
Jacinto Sarmento, Willian Corsaro, Pia Christensen e Allison James. Ainda que seja um tema
presente na agenda de pesquisadoras e pesquisadores, o fato da construção de uma nova
perspectiva de infância tem questionado desafios conceituais inerentes à pesquisa com
crianças. A mudança instiga a pensar que não é apenas a metodologia ou a técnica que muda,
mas a concepção epistemológica da pesquisa, infância e criança.

No campo da educação infantil é quase consenso utilizar a metodologia de pesquisa com


crianças, no entanto, o que efetivamente caracteriza a pesquisa com crianças? Qual margem
pode ser borrada nesse limiar entre pesquisa sobre as crianças e pesquisa com crianças? As
interrogações surgem a partir da leitura do livro de Pia Christensen e Allison James (2005)
“Investigação com crianças perspectivas e práticas” no qual percebe-se que as crianças as quais
os investigadores se referem, não são tão pequenas e efetivamente interferem no modo de fazer
pesquisa, inclusive direcionando modos de perguntar e, até mesmo, o quê perguntar.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A partir da leitura desse livro, passo a interrogar: o que é pesquisa com crianças? Até que
ponto fazemos efetivamente a pesquisa com crianças quando assim nomeamos a metodologia,
sem correr o risco de torná-la meramente um jogo de palavras? Partindo desses
questionamentos, o objetivo do artigo é problematizar a perspectiva da pesquisa com crianças
a partir da reflexividade construcionista, como forma de situar a criança como sujeito
participante e ativo no percurso da pesquisa. Essa percepção exige a construção de concepções
coerentes com a participação das crianças, bem como há a exigência de outros modos de olhar
em relação à sua participação.

Para guiar a reflexão, valer-me-ei do referencial teórico de autores e autoras do campo


da sociologia da infância. Considero que, mesmo com um lastro de publicações e reflexões
sobre pesquisas com crianças, a metodologia insere-se no campo da reflexividade e por isso,
convoca continuamente a repensar os modos de fazer, os modos de trilhar caminhos
investigativos, os modos de analisar e/ou interpretar, que são, a meu ver, desafiadores.

As perguntas colocadas acima me levam a entender a expressão “com” e os múltiplos


sentidos que se pode atribuir a ela. Inspirada por Manuel de Barros, de sua paixão pelas palavras
e poética que o acompanha na arte de garimpar e de […] “escovar palavras. Porque eu havia lido
em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos
clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras” (Barros, 2013, p. 17). Foi
percebendo que na pesquisa com crianças há clamores, que comparados à história da
humanidade não são antigos, mas suficientes para fazer um ruído, que leva a muitas
interrogações quanto à pesquisa com crianças.

Inicio a escovação pela palavra com, para chegar à pesquisa com crianças, três palavras
que permeiam a escrita. Na gramática da língua portuguesa “com” é uma preposição, “[...]
palavra gramatical com função subordinativa […] indica que seu consequente se subordina a
um antecedente” (Luft, 1991, p. 139). A expressão “pesquisa com criança”, portanto, pode ser
entendida como a criança subordinada ao pesquisador. Desse modo, poderia se constituir
novamente uma relação de poder verticalizada uma vez que é a criança subordinada a um
antecedente? Neste caso o pesquisador? Seria então apenas mais um jogo de palavras com

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

vistas a disfarçar uma relação adultocêntrica com a criança? Como é possível sair dessa
armadilha? Como construir uma relação descolonizadora com as crianças na pesquisa com
crianças? A pesquisa com crianças pode ser um disfarce para seguir com práticas
adultocêntricas, desconsiderando a presença da criança, ainda que se utilize a expressão com?

Outros dicionários consultados (Com, 2023; Lo Zingarelli, 2001) me permitem entender


diferentes contextos em que a palavra “com” pode ser colocada e os sentidos que ela pode
conter. Ambos indicam que “com” significa estar junto, estar em companhia, mas também pode
ser a possibilidade de indicar a utilização de um instrumento. A depender do lugar que ocupa e
da concepção de criança, faz muita diferença. Temos então “com” companhia, parceria, união,
relação — lugar de sujeito. Temos também “com” instrumento para chegar a algum lugar e assim
a criança torna-se objeto, o meio para se chegar a algum lugar. Surge assim mais uma pergunta:
Na pesquisa com criança, ela é nossa companhia ou nosso instrumento? Também podemos
entender com, como maneira de chegar a algum lugar, ir ‘com’, tornando a própria caminhada
uma qualidade da ação. Caminho com a criança, caminhar com ela. ‘Com’ também pode ser
entendido como valor concessivo, ou seja, mesmo com tantas dificuldades escolho pesquisar
‘com as crianças’. Depois de tudo ainda fica a pergunta: O que pode nos orientar enquanto
coletivo de pesquisadores para que a pesquisa seja efetivamente com a criança no sentido de
parceria, de ir lado a lado, de ter lugar de sujeito, ter autoria e autonomia?

Feita essa primeira introdução, apresento o que constará no artigo. No primeiro item do
artigo serão abordados os modos de ver a criança na pesquisa — da psicologia à antropologia,
sociologia e pedagogia da infância. A seguir o foco será no processo de descolonização para
pensar a pesquisa com crianças e pesquisa em coautoria com as crianças, considerando o
conceito de reflexividade construcionista na pesquisa com crianças, a seguir uma breve
reflexão sobre assentimento e as considerações finais.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A pesquisa com crianças: há quantos modos de ver as crianças?

Quanto pesa uma lágrima?


- Depende: a de uma criança manhosa pesa menos
que o vento, a de uma criança com fome pesa mais
que toda a terra.
Gianni Rodari

Algumas categorias serão levadas em consideração nesta discussão: a idade e autonomia


das crianças, como sujeitos e infância como categoria construída para elaborar modos de
entender a criança. Sem vincular a idade como condicionante para a criança ter mais ou menos
autonomia, mas para os limites e possibilidade de intervir nas decisões acerca da pesquisa, a
infância se circunscreve à categoria idade, porém ter mais ou menos autonomia se alicerça na
concepção de infância e se estende aos aspectos sociais, culturais e históricos, sendo a idade
apenas mais um elemento. Ser criança não é um vir a ser, é um modo de estar no mundo. E
como se percebe a criança? Como diz Rodari, “Depende!” E do quê? Depende do jeito que a
gente vê, e há muitos modos de ver, modos esses que se modificaram ao longo da história, sendo
a criança vista desde um não sujeito, depois como apenas alguém comparado com o adulto, mas
de pouca idade, depois alguém que um dia seria sujeito, alguém a vir a ser, para hoje ser
entendida como sujeito, diferente do adulto, porém não inferior e com papel ativo na
sociedade.

Compreender a criança a partir dessa perspectiva exigiu que, da mesma forma que as
mulheres, as crianças passassem a ser consideradas, antes de tudo, sujeitos. Por exemplo, para
Aristóteles (Durán, 2000) embora tivessem alma (escravos eram desprovidos) a mulher não
tinha autoridade e as crianças tinham alma imperfeita. É no Renascimento que a criança começa
a ser vista como diferente do adulto, porém, como ela precisa da mãe para sobreviver, ainda é
considerada um ser incompleto (Gélis, 1991). De qualquer modo, segundo o autor, a constituição
da família nuclear, com o espaço doméstico mais propício à intimidade, deu-se início ao que se
denomina sentimento de infância. Sem precisar a evolução desse sentimento de infância e ainda
que a criança passe a ser vista, percebida, ela é considerada como um ser inacabado que pode

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

ser moldado tanto fisicamente (através de faixas para corrigir deformidades) quanto
moralmente através de educação e castigos. Segundo Gélis (1991), essas pequenas mudanças no
modo de perceber as crianças vem acompanhadas de muitas outras mudanças na sociedade
dos séculos XVIII e XIX. Ou seja, “o sentimento da infância [...] é sintoma de uma profunda
convulsão das crenças e das estruturas do pensamento, como o indício de uma mutação sem
precedente da atitude ocidental em relação à vida e ao corpo” (Gélis, 1991, p. 328). Em outra
frente, ainda nesse período histórico, Freud, desde uma perspectiva psicanalítica, escandaliza
a sociedade ao considerar que a criança é imbuída de sexualidade, sem caráter erótico, mas
como processo de conhecimento de si, descoberta da corporeidade (Schindhelm, 2011).

A psicologia desempenhou um importante papel no estudo das crianças, porém, em um


paradigma bem diferente da sociologia da infância. “No paradigma psicológico tradicional, a
investigação é sobre crianças; tem como objetivo estudar o seu desenvolvimento e estas são
observadas, avaliadas e julgadas” (Mayall, 2005, p. 125). De acordo com o autor, no paradigma
psicológico, o investigador se coloca distante da criança, não mantém uma relação com elas e
as crianças são comparadas aos adultos e, por isso, consideradas incompetentes, não
confiáveis. O conceito de geração, nesse caso, é utilizado, não para demarcar a diferença, mas
a hierarquia entre adultos e crianças, sendo os adultos aptos e competentes e as crianças
inaptas e incompetentes. Essa hierarquia justificava os castigos físicos e controles que os
adultos exerciam sobre as crianças, elas não tinham muitas alternativas senão obedecer e
submeter-se às ordens dos adultos.

A partir do paradigma da Antropologia, para Mayall (2005), a diferença demarcada pela


geração é suspensa no sentido de hierarquia entre adulto e criança e busca entender a criança
considerando a sua participação na sociedade, por isso, o autor chama atenção à importância
de considerar o conceito de geração, pois a partir dele pode-se demarcar diferenças nos modos
de perceber a criança. Ao perceber a criança como diferente e não como inferior, ainda que
pertencente a essa categoria permanente, a geração, supõe crer no conhecimento da criança,
daí a importância de outra postura do pesquisador que “[…] envolve a observação participante
com crianças; inclui observar, escutar, refletir e, também relacionar-se com as crianças no

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

diálogo, como apropriado aos acontecimentos que ocorrem naturalmente” (Mayall, 2005, p.
124).

A influência da Antropologia, História, Sociologia e a partir de uma dimensão crítica da


infância alicerçada no pensamento descolonizador gera uma mudança de paradigma na forma
de perceber a criança e por conseguinte nos modos de realizar a pesquisa com crianças. O
discurso científico sobre a criança, como subalterna, a desumaniza e a produz como “outro”
(FARIA et al., 2015). Para as autoras, será preciso uma mudança na perspectiva colonizadora e
adultocêntrica que introduza um novo marco epistemológico que supere a lógica colonial e
possibilite utilizar novas ferramentas analíticas, construídas com outros interlocutores teóricos
capazes de romper com a perspectiva disciplinadora, positivista, colonizadora e subalternizada
da criança. Essa perspectiva possibilita a construção de uma nova abordagem. Essa abordagem:

[...] propõe-se a trabalhar com crianças, no sentido em que o adulto tenta entrar no seu
mundo de conhecimento, e que a sua própria compreensão e consequentemente as suas
agendas podem ser modificadas através da experiência investigativa; porém, os seus
objetivos não são necessariamente disponibilizados para as crianças (Mayall, 2005, p. 125,
grifo da autora).

Para Mayall (2005) um conceito chave parte de uma perspectiva de considerar o


conhecimento das crianças sobre determinados temas. As crianças compõem um grupo social,
diferente dos adultos e considerar os conhecimentos que as crianças têm sobre o mundo as
torna aptas a exprimirem seu conhecimento sobre o que são e sobre as suas relações com os
adultos. Se considerarmos que as crianças têm conhecimentos, elas se tornam sujeitos
legítimos para dizer sobre si e sobre como significam o mundo, seu modo de estar no mundo e
é no diálogo com elas que podemos aprender sobre o que pensam e o que sabem. “Tal mudança
requer uma postura descolonizadora, que significa construir um olhar e uma escuta que
privilegia a criança, sua voz, seus gestos, suas linguagens, quer sejam expressivas, simbólicas,
metafóricas, imaginativas, cognitivas” (Salva; Martinez, 2022, p. 122).

Cabe-nos enquanto pesquisadores uma posição segura, que enfrente a posição iluminista
de criança como vir a ser, como sujeito do futuro, para entender a criança presente, no tempo

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

presente, com direito de ser, direito de dizer, de expressar seu modo de pensar, de brincar e
nossa postura de observador, “olhador” e “escutador” atento, aberto ao que pode vir, aberto
aquilo que a criança oferece como novidade, interpretação, nunca apenas repetição do mundo.
Precisamos de “alma infantil” que Graciliano Ramos (1945, p. 120) viu em sua professora ao
escrever suas memórias no livro Infância, essa alma infantil com “dúvidas numerosas”. Só
permeados de dúvidas sobre as crianças e seus universos, nos instituímos capazes de andar
com elas pela pesquisa.

O olhar adultocêntrico e psicologizante que estratifica por idades, que atribui


capacidades e fazeres aos “não adultos” para se tornarem adultos no futuro,
continuamente vem sendo questionado por desconsiderar valores, conhecimentos,
desejos e experimentações próprios do ser criança hoje, tomando a infância apenas como
vir a ser, e sem voz ativa na sociedade (FARIA, et al., 2015, p. 14, grifos das autoras).

O indivíduo desde antes do seu nascimento sofre a influência da cultura já existente, ou


seja, a criança nasce em um mundo já velho diz Hanna Arendt (2005) mas, a criança que chega
nesse mundo é nova e, ao passo que traz algo novo ao mundo, também influencia a cultura
existente. “Neste sentido, toda a criança é território a ser colonizado, deve aprender uma
língua, costumes, saber seu lugar. Pela linguagem será nomeada, definida. Nomeia-se a raça, o
gênero, a etnia, a condição etária e geracional” (Aquino, 2015, p. 96), nem por isso, deve a criança
estar posicionada na condição de objeto, pelo contrário, a defesa é de garantia do lugar de
sujeito de fala, de pensamento, de história, de cultura, de vida. “Debruçamo-nos sobre a
potência da criança levando à radicalidade a concepção da criança como produtora de cultura
e, em nosso entender, capaz de protagonizar processos de microrrevolução” (Salva, Schütz,
Mattos, 2021, p. 170).

Nessa direção, não faz sentido a pesquisa com crianças se o paradigma segue sendo
aquele em que o que os adultos fazem e dizem é mais valorizado do que aquilo que as crianças
fazem e dizem. Nesse sentido, olhar, escutar e estar atento, ainda que seja fundamental, não é
suficiente se não formos capazes de levar a sério a perspectiva das crianças conforme alertam
Woodhead e Faulkner (2005). Essa postura exige admitir que, ainda que se escute, há uma

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

relação de poder que se institui entre pesquisador(a) e sujeito criança. Por essa razão, a
reflexividade pode se tornar um princípio interessante para pensar a pesquisa com crianças,
pois não só nos auxilia diante da complexidade da pesquisa, como nos faz perceber nosso papel
ativo, nossos limites e nossas interferências, enquanto pesquisador, no contexto investigado.

Reflexividade Construcionista na pesquisa com crianças

O menino contou
que morava nas margens
de uma garça.
Achei que o menino
era descomparado.
porque as garças
não tem margem.
Mas ele queria ainda
que os lírios sonhassem.
Manoel de Barros

Manoel de Barros viu um menino, ao vê-lo, dedicou-se a escutá-lo talvez e por isso foi
capaz de escrever: “O menino contou que morava nas margens de uma garça”. Como o poeta
consegui ver o menino e a sua imaginação, uma das características das culturas infantis e que
ganhou vida nos seus versos? O poeta viu um menino que procura o inusitado e, às vezes,
encontra o impossível para o mundo dos adultos. O poeta que vê o menino e escuta as suas
bonitezas foi um grande observador e procurador de palavras que cumprissem a sina de dizer
que olhava como quem olha um mundo novo, diferente. Além de ser capaz de ver, procurava
palavras para dizer o que estava em seu pensamento, mas também dizer o que era capaz de
observar e interpretar.

Sabe-se que escrever poesia não é o mesmo que pesquisar, mas também se entende que
a poesia contém uma estética que convida à sensibilidade, a buscar as palavras adequadas para
construir e desenvolver a pesquisa com crianças. A estética convida a olhar e escutar as crianças
e empreender um esforço para compreendê-las, construir interpretações plausíveis e sempre
provisórias acerca das culturas infantis, das interações, das invenções e dos modos de

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

compreender o mundo que as crianças expressam. E nós, que somos pesquisadoras e


pesquisadores, formadoras e formadores de pesquisadoras e pesquisadores, quando nos
aventuramos na pesquisa com criança, como procuramos compreendê-las? Em que nos
ancoramos para empreender a pesquisa?

Não tenho a pretensão de responder tais perguntas uma vez que “o como” é sempre o
maior desafio, porém no desafio de pensar a pesquisa, alguns conceitos podem ser guias que os
ajudem a pensar. Refiro-me ao conceito de reflexividade construcionista desenvolvido por Enzo
Colombo (2016, 2021) e pelas pesquisadoras Pia Christensen e Allison James (2005).

A reflexividade é um dos elementos-chave que nos ajuda a problematizar questões


epistemológicas, teóricas e empíricas na pesquisa com crianças. Considero a reflexividade
como uma guia que demarca o percurso e que atende os princípios éticos, políticos e estéticos.
Tais princípios estão presentes nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
- DCNEI (Brasil, 2009), documento que determina os parâmetros e orienta como deve ser
articulado o processo educativo na educação infantil. Ainda que o tema da discussão neste
artigo não seja o processo educativo na educação infantil, consideramos que respeitar os
princípios ali colocados é uma atitude sine qua non para pensar a pesquisa com crianças quando
nos propomos a desenvolver a pesquisa de mãos dadas com elas.

Segundo as DCNEI, os princípios éticos dizem respeito à “[...] valorização da autonomia,


da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum”; os princípios políticos
referem-se à “[...] garantia de direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito à
ordem democrática”; e os princípios estéticos direcionam a atenção à “[...] valorização da
sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da diversidade de manifestações artísticas e
culturais” (Brasil, 2009). Christensen e James (2005, p. XVI) consideram a reflexividade “[...] uma
necessidade metodológica na investigação” ligada à biografia e aos entendimentos teóricos e
discursivos, não apenas em relação ao pesquisador como também em relação à criança que
participa da pesquisa. Ou seja, trata-se de uma dupla reflexão “[...] que faz uma contribuição
importante à compreensão e à análise das vidas diárias das crianças” (Christensen; James, 2005,
p. XVII).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Para John Davis, Nick Watson e Sara Cunningham-Burley (2005), a reflexividade implica
pensar que o pesquisador é situado, isso exige um questionamento constante da interpretação
realizada, pois essa ocorre no encontro de duas linguagens: (1) aquela produzida pelo sujeito,
neste caso, a criança com seu modo de ser, sua cultura, sua linguagem; e (2) a metalinguagem
produzida pelo pesquisador que por sua vez dialoga com as suas próprias conviccções
influenciadas pelo seu modo de compreender o mundo, valores, concepções construídas com
base nos autores e na sua própria experiência. Ou seja, a interpretação é sempre parcial e
provisória; por essa razão, exige que essas ideias pré-concebidas sejam alvo de constante
avaliação e reinterpretação.

O Sociólogo italiano Enzo Colombo detalha aspectos importantes em relação ao próprio


conceito de reflexividade considerado por ele um conceito chave para as ciências sociais e
humanas. Em sua abordagem, ele situa a reflexividade em diferentes perspectivas: A primeira é
a reflexividade neopositivista, que, mesmo questionando as próprias ações no intuito de
conhecer determinada realidade, busca um afastamento no sentido de compreender a
realidade de acordo com os fatos. Essa abordagem compreende que há intervenção do
pesquisador no contexto e nos sujeitos, e por isso, faz um exercício contínuo de vigilância para
evitar interferências. A segunda é a reflexividade estruturalista, que faz um esforço para
compreender além das aparências, considerando o risco de entender apenas o aparente. Trata-
se, do mesmo modo, de uma vigilância constante e de um desejo de buscar o que está oculto,
inconsciente. Nesse sentido, a reflexividade se alicerça no bom senso e na ideia de possibilitar
que a realidade possa surgir da forma mais real possível. A terceira é a reflexividade romântica
vinculada à subjetividade do pesquisador que exige um exercício do próprio pesquisador no
processo de conhecimento de si. Ainda prevê certo grau de honestidade do próprio
pesquisador, uma vez que essa perspectiva considera que o conhecimento da realidade
depende muito mais do pesquisador e de seu modo de compreender a realidade social do que
dos sujeitos, implica antes de tudo conhecer a si próprio para conhecer o outro. A outra
perspectiva abordada por Colombo (2021) é a reflexividade construcionista que nos interessa
sobremaneira neste artigo.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

De acordo com o autor, a reflexividade construcionista chama atenção à importância do


diálogo, que neste caso é diálogo com o sujeito da pesquisa, diálogo com outros pesquisadores,
diálogo com o campo teórico já construído no campo, pois nem pesquisador nem sujeito
observados são guardiões do conhecimento. O diálogo se traduz em uma prática que permite a
produção da uma especificidade do conhecimento sobre realidade que considere a relação
entre os três, que possibilite a construção de novos vocabulários, de outros entendimentos
sobre o tema, ou seja, é uma reflexividade relacional. O conhecimento, nesse caso, não é aquele
produzido pelo pesquisador, desde a sua própria perspectiva, nem a tradução literal do sujeito
observado, senão aquele produzido na interação e no diálogo entre os três campos. Essa
triangulação possibilita a produção de outro conhecimento sobre determinada realidade,
construída constantemente, modificada permanentemente, confrontada entre as diferentes
posições, situada temporalmente, provisória e possível naquele contexto, com aqueles sujeitos,
à luz de determinados referenciais metodológicos e teóricos. Exige estar aberto a outras
perspectivas e confrontá-las, visando a construção de novos conhecimentos. Trata-se, pois, de
uma reflexividade relacional, que implica reconhecer assimetrias, diferenças e que exigem
condições institucionais e coletivas para instituir-se como tal.

Colombo (2016; 2021), ao discutir a reflexividade no campo teórico, enfatiza a necessidade


de compreender o caráter de construção da realidade pelos sujeitos, considerando que as
condições sociais e culturais também interferem nessa construção. Portanto, a realidade social
depende tanto dos sujeitos como do contexto que ele está inserido e, isso exige a superação de
paradigmas sistêmicos e estruturalistas que consideram que determinada realidade está
pronta, e passa a compreender que os sujeitos são ativos e em constante interação. Exige,
portanto, uma mudança de olhar e compreender os sujeitos. No plano epistemológico e
metodológico coloca em evidência o percurso, ou seja, como conhecemos aquilo que nos
propomos conhecer e como compreendemos aquilo que nos propomos compreender. Neste
sentido, para Colombo (2021, p. 4) a reflexividade implica entrelaçamento de “[...] questões
epistemológicas (como conhecemos o que acreditamos saber) [...]”; questões teóricas — como
chegamos a compreender aquilo que compreendemos; questões empíricas - como o
conhecimento e compreensão se conectam com a realidade social.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Consideramos, portanto, a reflexividade construcionista, para fins da pesquisa com


crianças, um conceito interessante para levar a pesquisa COM crianças à radicalidade,
considerando que tal perspectiva, “[...] é entendida como capacidade de se distanciar
criticamente das próprias construções e como consciência do caráter construído do
conhecimento social” (Colombo, 2021, p. 24). Importa ainda “[...] enfatizar a circularidade e a
interligação existente entre conhecimento da realidade e a realidade, entre o olhar subjetivo e
a percepção objetiva, entre ação e interpretação” (Colombo, 2016, p. 19). Nesse sentido não cabe
ao(à) adulto(a) pesquisador(a) dizer sobre, senão construir uma relação que possibilite colocar
em diálogo diferentes compreensões, possibilitar que sejam questionadas, revistas,
problematizadas. Compreende-se ainda que cada posição é sempre provisória diante de um
conhecimento também provisório, de uma realidade que muda continuamente na correlação
de forças, que é influenciada pelos modos de ver, compreender e interpretar determinada
situação ou realidade. Para Colombo (2021, p. 14)

[...] todo o conhecimento e toda investigação da realidade social tem um caráter circular
e interacional e é precisamente nisso que reside sua capacidade explicativa. Nem o
pesquisador, nem os sujeitos observados são guardiões de um saber objetivo em si, de
uma interpretação privilegiada da realidade social – ambos o são em seus respectivos
campos, para os fins práticos nos quais atuam, pelo que podem apreender desde sua
posição específica.

Se ambos são responsáveis, considerar a criança é fundamental, uma vez que tal
paradigma não serve apenas na relação adulto–adulto mas também na relação adulto–criança,
“[...] requer espaços institucionais favoráveis ao diálogo e ao confronto” (Colombo 2021, p. 16),
requer estar em constante vigilância e autoanálise enquanto pesquisador(a). Considerando as
crianças bem pequenas, em que consistiria um espaço favorável ao diálogo? A partir da
perspectiva da reflexividade construcionista, induz-nos a pensar nesse espaço como um espaço
relacional, em que a escuta se institui para além de escutar a voz, senão perceber os diferentes
movimentos, gestos, silêncios, choros, recusas, risos, olhares das crianças. Requer
compreender que crianças se comunicam com o corpo inteiro, entendidas como atores sociais,
criadores de culturas próprias, capazes de demonstrar através de diferentes formas o modo

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

como constroem e o que constroem. Rinaldi (2016, p. 236) assevera que, ao considerar a
pedagogia e a pesquisa como uma escuta sensível: “A escuta deve reconhecer as muitas
linguagens, os muitos símbolos e códigos que as pessoas usam para se expressar e se
comunicar”. No caso das crianças, a pedagogia italiana indica que elas têm cem linguagens a
serem consideradas.

Sabe-se que crianças bem pequenas usam outras linguagens para se comunicar, como
também o modo de participação é diferente. Um bebê de 10 meses, embora seja capaz de
comunicação, ainda não é capaz de exprimir assentimento acerca da pesquisa, tampouco
decidir sobre os caminhos da pesquisa, mas pode, com seu corpo, manifestar incômodo a nossa
presença, quando nos olha e chora, ou por outro lado balançar os braços e o olhar em nossa
direção quando entramos no espaço. A questão do assentimento é um tema-chave dentro da
pesquisa com crianças, já que é preciso garantir procedimentos éticos que assegurem o bem-
estar da criança.

Por sua vez, o modo de participação de uma criança de três anos é diferente, tanto em
relação ao seu modo de se comunicar, como posicionar-se acerca do seu desejo de participar
ou não da pesquisa. Mesmo assim, com essa idade, ainda há dúvidas em relação à orientação do
caminho da pesquisa e decisões acerca do seu andamento, em especial quando se trata de
assentimento. Da mesma forma que nos estudos sobre relações étnico-raciais, se entende a
necessidade de abordar considerando a interseccionalidade no intuito de avançar na discussão
e incluir crianças negras, indígenas, imigrantes, a pesquisa com crianças precisa considerar a
classe, gênero, raça e idade, como defende Ana Lúcia Goulart de Faria (2022). Considerar a
idade, ainda que corresponda a um critério biológico e que nem todas as crianças respondam
da mesma forma, mesmo com idades aproximadas, é importante pois a diferencia do adulto,
sem que seja considerada inferior. A idade, no conjunto de outras categorias, considera as
diferenças e a diversidade das crianças.

O que pode haver em comum entre crianças de diferentes idades em relação ao


pesquisador é o seu posicionamento e sua atitude responsiva com a criança considerando que
exige, conforme indicam Martin Woodhead e Dorothy Faulkner (2005, p. 3) “[...] escutar

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

atentamente, observar sistematicamente, registrar corretamente” e, especialmente, superar a


perspectiva de criança como sujeito da falta, para sujeito de fala ou de outra forma de
comunicação e, o(a) pesquisador(a), como sujeito imbuído da habilidade de olhar e ver, escutar
e compreender as crianças. Muitas vezes, sob argumento de criança como sujeito frágil, que
não se comunica oralmente, os adultos se autorizam a falar por elas, demonstrando através
dessa postura o caráter adultocêntrico do(a) pesquisador(a) quando a pesquisa com crianças
exige falar com elas.

O assentimento das crianças para realizar a pesquisa precisa ser compreendido para além
de um processo apenas burocrático e exigido no momento de registro do projeto, ou momento
de entrada em campo, como um processo protocolar. Trata-se de aproximação com a criança
que vai além e está alicerçada em uma postura ética e de completa atenção à criança. A via
protocolar de um documento de assentimento firmado entre as crianças e o(a) pesquisador(a)
termina no momento de sua apresentação, porém o assentimento se prolonga durante todo o
tempo em que o(a) pesquisador(a) estiver em campo. Supõe uma negociação permanente e
tentativa constante de participar das atividades das crianças. Willian Corsaro e Luisa Molinari
(2005), ao refletirem sobre a entrada a campo na pesquisa com crianças, consideram que esse
processo requer tempo e aceitação das crianças nos seus contextos a tal ponto de
considerarem o(a) pesquisador(a) participante legítimo(a) no universo das crianças. Isso requer
que, ainda que o(a) pesquisador(a) não tenha tamanho nem idade das crianças, compartilhe
similaridades com a cultura da infância.

No caso de William Corsaro, como americano, não saber comunicar-se em língua italiana,
as crianças o consideraram como participante legítimo no universo infantil, pois, ainda que
adulto, não conhecia a língua. Nesse caso, a legitimidade concedida se constituiu de uma forma
muito mais explícita e foi, de certa forma, aceito mais facilmente no mundo das crianças. Se ali
o fato de compartilhar falta de competência linguística os identificava, o que pode nos
identificar ao falarmos a mesma língua com nossas crianças? Ainda, com tantas diferenças
culturais e sociais que vivenciamos em nosso país, o que pode nos aproximar do universo das
crianças a ponto de termos assentimento para além do protocolar? Sem tentar responder de

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

forma pragmática a essas questões, consideramos que os direitos das crianças devem estar
sempre em primeiro lugar. O que supõe estar alerta e, ao menor sinal de desconforto da criança,
avaliar a continuidade da presença do(a) pesquisador(a). Ter o cuidado ao tecer comentários
sobre as crianças com outro adulto na presença delas. Nesse sentido, antes de entrar em campo
é fundamental um diálogo franco e aberto com os demais adultos que convivem com as
crianças, explicitando as razões de estar no contexto com as crianças, deixando demarcado que
interação será construída com a criança. Ter o cuidado para não colocar as crianças em
situações de imposição tanto de brincadeiras, como de aceitação do adulto presente no
contexto. Estar vigilante e sensível para perceber reações de desconfortos das crianças na
presença do pesquisador. Construir uma relação de reciprocidade com as famílias, uma vez que
faz parte do protocolo o assentimento das famílias. Ainda, e também muito importante, é
construir uma perspectiva de criança que corresponda ao seu estatuto de criança ativa,
competente, produtora de cultura, com direito a se expressar, comunicar como criança que é
em toda a sua inteireza. Nesse sentido, requer despir-se do adultocentrismo que vê a criança a
partir do que lhe falta. Incluir a perspectiva das crianças como modo de entender seu modo de
ser e estar no mundo e apreender as culturas infantis. Ter a humildade de entender o desafio
epistemológico, ético e metodológico que ainda precisamos construir quando o tema é a
pesquisa com crianças, que, ao superá-lo, talvez nos possibilite entender “em língua de criança”
o que é a criança e como é ser criança com todas as potencialidades e possibilidades.

Trata-se nesse sentido de perceber a criança como presença e presente, marcada pela
classe social, gênero, idade, etnia, cultura. Entendida como capaz, produtora de cultura, que
necessita compreensão a partir de si própria, em sua singularidade, reconhecendo-a como
capaz, como produtora de sentidos sobre o mundo, ainda que significativamente diferentes do
mundo adulto. A criança pode expressar sua própria voz como sujeito capaz de dizer sobre si
e sobre o mundo, e nós, enquanto adultos, sermos capazes de despir a nossa couraça
adultocêntrica.

Daí a necessidade de colocarmo-nos em uma postura de escuta e observação, pois o que


vemos nem sempre provém da voz, mas de um corpo que se comunica por outras linguagens.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A reflexividade construcionista nos convoca a pensar sobre o que vemos e escutamos,


compreendendo que nosso olhar está atravessado por valores já construídos, em que a análise
e a interpretação serão marcadas por essas percepções e estarmos vigilantes não basta, senão
admitir que esse é um elemento constituidor da pesquisa. Trata-se nesse sentido de uma
reflexividade situada, atravessada, por crenças, valores, classe, gênero, e enquanto
pesquisador(a) exige colocar-se em diálogo com as experiências e interesses dos sujeitos
pesquisados, nesse caso das crianças, compreender que elas próprias são marcadas por valores,
mas também exprimem novas perspectivas a partir de sua própria compreensão e
interpretação. Exige, portanto, que o(a) pesquisador(a) se coloque em vigilância contínua sobre
o percurso e modo em que está sendo construído na interação com as crianças, quais espaços
ou lugares permitem a expressão das crianças. Essa vigilância é importante considerando que
o(a) pesquisador(a) deve estar “[...] ciente de que a intervenção do observador afeta
substancialmente a realidade” (Colombo, 2016, p. 17). Além disso, importa o modo como as
crianças se movimentam, pois, ainda que sejam pequenas, já compreendem o lugar de poder
que adulto ocupa em relação a elas, uma vez que as crianças têm uma relação de dependência
dos adultos, considerando que elas precisam dos cuidados e proteção dos adultos. Ainda assim,
é preciso encontrar possibilidades concretas de escuta, diálogo e acolhimento, considerando
as diferentes linguagens que as crianças utilizam para se expressar.

Sobre ainda aprender a caminhar e pesquisar com as crianças

O menino aprendeu a usar as palavras.


Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.


O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.


A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Você vai encher os vazios


com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Manoel de Barros

Finalizo este artigo com um convite para que sejamos capazes de ver sentido no fazer da
criança quando ela carregar “água na peneira”, quando fizer “peraltagem com as palavras”.
Como adultos, já desaprendemos a ver certas coisas, em especial aquelas feitas pelas crianças.
Desafia-nos, portanto, a pesquisa com crianças, pois é o momento que precisamos retirar
camadas de nós mesmos, destituir-nos do adultocentrismo.

Um dos grandes desafios de pesquisadores e pesquisadoras é compreender-se como


sujeitos que historicamente construíram uma relação assimétrica com as crianças e nesse
sentido podem ver-se, enquanto adultos, como aqueles que têm palavras formuladas sobre as
crianças. Há, portanto, uma relação de poder que não se destitui, ainda que a postura seja de
escuta e respeito. Vivemos em um contexto social e cultural em que as crianças já aprenderam
o seu lugar no mundo, e, em relação a isso, não há possibilidade de negar essa relação. De forma
alguma ela é amenizada. A possibilidade mais coerente nesse sentido é admitir essa relação,
considerando-a como parte do processo de pesquisa.

Historicamente várias concepções de crianças se fizeram existentes na pesquisa


científica, em especial, na psicologia e na antropologia. Outrossim, destaca-se a perspectiva
que se inaugura com a sociologia da infância e da antropologia que orienta a uma mudança de
paradigma, desafiando as visões adultocêntricas e psicologizantes que estratificam as crianças
por idades e as tratam apenas como seres em processo de tornarem-se adultos. Se faz
necessária uma chamada para reconhecer e valorizar a voz, os conhecimentos e as experiências
das crianças no presente em uma sociedade que está sempre em transformação. A pesquisa
com crianças exige sensibilidade, reflexividade e um compromisso genuíno de entender e
respeitar o ponto de vista das crianças, garantindo assim uma abordagem sensível no estudo
da infância.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A reflexividade construcionista, como elemento potencializador da pesquisa com


crianças, se faz presente neste texto como um convite a um olhar crítico sobre nossos
processos de pesquisa e como produzimos conhecimento levando em consideração o contexto,
a entrada no campo, a linguagem das crianças, o assentimento e a responsabilidade na
produção científica. O conhecimento é construído na interação e diálogo entre nós, as crianças
e o campo teórico existente. Colocamos ênfase na necessidade de considerar as condições
sociais e culturais na construção da realidade, superando paradigmas que considerem as
crianças como objetos a serem estudados, mas sim, tomando-as como sujeitos de direito que
usam múltiplas linguagens para se expressarem. As crianças são sujeitos ativos, competentes e
produtores de cultura: fazer pesquisa com crianças precisa levar em consideração o potencial
das crianças como sujeitos que não virão a ser algo, mas já são sujeitos e que, por meio de suas
interações e brincadeiras, constroem e reconstroem a realidade a sua volta.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Lucas Wendt – EMEF Sergio Lopes – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A pesquisa com crianças: um espaço para o


protagonismo infantil
Heloisa Elesbão
Jordana Lima
Graziele Fernandes

Considerações introdutórias
O presente texto traz como inspiração a experiência docente na pós-graduação, onde
as autoras tiveram a oportunidade de aprofundar estudos, fazer trocas e ampliar as pesquisas
em torno da temática da infância. Quando passamos a entender e acolher o olhar, a escuta e o
posicionamento das crianças, entendemos que elas podem não ser apenas citadas e trazidas
como dados, mas podem, sim, ser participantes das pesquisas que a elas se remetem.

Esse novo olhar acerca das crianças, nas pesquisas, foi gerado muito em torno das novas
concepções de infância e criança. Conforme Fernandes (2005), a nova concepção de criança
como ator social e a infância como múltipla exigiu novo posicionamento dos pesquisadores da
infância. Essa nova forma de compreender as crianças e suas infâncias faz com que o
pesquisador tenha que assumir uma nova postura em relação à produção de conhecimento, ou
seja, o conhecimento deve ser produzido junto com as crianças. Mas, para que isso
efetivamente aconteça, muitos são os desafios, um deles é a compreensão do papel da criança
na sociedade contemporânea.

Esse desafio de buscar compreender o papel da criança na sociedade remete à


desconstrução de ideias preconcebidas, um exercício descolonizador acerca do entendimento
sobre infância e toda a sua interseccionalidade. Conforme Salva, Schütz e Mattos (2021, p. 163),

As pesquisas construídas a partir de princípios etnográficos e da pesquisa com crianças


buscam problematizar as matrizes adultocêntricas e coloniais que sustentam o

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

conceito de criança universal, imersas em normativas gênero, raça e idade, assim como
procuram valorizar as diferentes linguagens infantis. Portanto, ao refletir sobre as
brincadeiras e interações de crianças em contextos educativos, vislumbramos
ressignificar o próprio horizonte do que pensamos sobre as culturas infantis.

Ressignificar o que pensamos sobre culturas infantis perpassa, inicialmente, pela


compreensão que temos da criança. Criança, conforme Abramowicz (2018, p. 374), “[...] é uma
forma cuja essência é vazia (lotada de forças)”. De acordo com a autora, ao longo dos tempos,
atribuíram às crianças características variadas, partindo dos que as viam como um perigo
devido à fragilidade, ingenuidade e doçura, até mesmo àqueles que as viam dessa forma por
conta da violência, indocilidade, dificuldade em se comportar de forma civilizada.

Tomás (2014; 2017) traz, em suas pesquisas e estudos, reflexões acerca da infância, em uma
visão crítica sobre seus direitos e sobre a educação das crianças na primeira infância. Conforme
a autora,

[...] o século XX foi por excelência o “século da criança”. Assistimos aquilo ao que designei
num outro escrito, de processo de descolonização da infância (Tomás, 2011). Não se trata
apenas de defender a libertação das crianças, com vistas à sua formação e
reconhecimento como categoria social autônoma e isolada, mas de um processo de
descolonização epistêmica, de socialização do conhecimento sobre a infância e as
crianças e dos fundamentos do adultocentrismo da racionalidade (Tomás, 2014, p. 139).

Pensar sobre a descolonização da infância nos propõe, enquanto educadores, além de


rever práticas e currículo, refletir sobre o conceito de infância e compreendê-la para além das
imposições sociais e dos fundamentos adultocêntricos que regem a sociedade.

Podemos definir adultocentrismo como um processo de invisibilização e apagamento da


infância em prol da criação de “protótipos de adultos”, negando a subjetividade infantil em
nome de um futuro escolhido, desejado, por adultos. Nesse sentido, crianças e adolescentes
têm o seu presente negado em função de um futuro que elas não escolheram e do qual não
desejam participar (Santiago; Faria, 2015). Nesse caso, onde fica o direito das crianças e o espaço
do seu protagonismo?

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

De acordo com Tomás (2017), o tempo em que vivemos é primordial para dialogarmos
sobre os direitos das crianças e suas infâncias. Ao longo dos tempos, já observamos melhorias
mundiais acerca dos direitos das crianças e suas infâncias.

Assim, Malaguzzi (1999 apud Freitas et al., 2015) nos coloca que não podemos
desconsiderar o protagonismo das crianças em relação à própria aprendizagem e em relação à
sua vida. Ao considerar a criança protagonista de seu desenvolvimento, é importante favorecer
o seu envolvimento com o espaço da escola, permitindo que a criança perceba o local como um
segundo educador. Sendo a escola um espaço importante para o desenvolvimento infantil, faz-
se necessário que a pensemos como um lugar de criação e potencializador do protagonismo
infantil.

Mas qual seria a relação da escola com as pesquisas com crianças? Primeiramente, a
escola é o ambiente em que mais crianças convivem, juntas, e, em segundo lugar, os
professores, enquanto docentes, também são pesquisadores de suas práticas.

A partir dessas considerações introdutórias, o presente capítulo tem por objetivo discutir
a pesquisa com as crianças como um espaço para o protagonismo infantil e o direito à infância,
a partir de alguns autores que retratam a temática e de leituras realizadas no seminário
“Educação Infantil: Pesquisa, Políticas Públicas e Práticas Educativas”, do Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

A pesquisa com/sobre as crianças e os direitos da infância


As pesquisas com as crianças, conforme já apontava Fernandes (2005), têm tido um
expressivo aumento que, conforme a autora, dá-se muito em virtude de um movimento que
tem como foco a reconceituação da infância, já iniciada na década de 80, ainda no século XX.
Ela sinaliza, também, que o aumento dessas pesquisas se dá muito em vínculo à Sociologia da
Infância, área na qual “[...] assinala a exigência científica de construir conhecimento em parceria
com as crianças, encaradas como atores sociais e co-construtores, que podem e devem ser
estudados a partir de si próprias” (Fernandes, 2005, p. 8).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Conforme Christensen e James (2005, p. 14), “[...] a infância e a vida das crianças têm vindo
a ser exploradas unicamente através das percepções dos adultos prestadores de cuidados”. O
que nos leva à discussão acerca da maneira como as pesquisas estão sendo conduzidas, ou seja,
com ou sobre as crianças.

Assim, quando nos remetemos à temática crianças, infâncias e pesquisa, conforme


Demartini (2022), há dois grupos: relato sobre as crianças e sobre as infâncias ou relato das
próprias crianças. O primeiro se refere a pessoas que já passaram pela infância e, atualmente,
estão produzindo relatos sobre a temática. Esses relatos podem ser enunciados por
adolescentes, jovens, adultos ou idosos, nos quais são trazidas experiências vivenciadas num
período passado, ou seja, que não é o presente. Já os relatos feitos pelas próprias crianças são
aqueles em que elas expressam suas memórias, suas identidades.

O ato de pesquisar com as crianças não é uma tarefa fácil, considerando que a criança é
contemporânea, do presente. O ser criança variará de acordo com o tempo em que seu
nascimento ocorreu e é, de certa forma, uma inconstância; além de não ser igual a antes, não
será a continuidade do tempo presente (Abramowicz, 2018). Portanto, “[...] a criança é um
presente do qual nós, adultos, não fazemos parte e desconhecemos, pois não somos mais crianças
é um presente em infância, um tempo que não somos/temos mais” (Abramowicz, 2018, p. 375,
grifos da autora).

Conforme a autora, esse é o motivo das pesquisas com as crianças quererem a visão que
elas têm a nos contar, pois não podemos mais estar no presente que é ser criança na atualidade.
Além disso, a fala das crianças nesse tipo de pesquisa possibilita que haja uma inversão da
hierarquia, pois proporciona o ouvir atentamente, uma fala que, por vezes, não é levada em
conta em nosso dia a dia.

No desenvolvimento das pesquisas, assim como nas práticas em sala de aula, as crianças
possuem o direito de serem protagonistas de suas ações; assim, de acordo com Fantin e
Girardello (2019), pesquisar com as crianças acarreta assumir o compromisso de vê-las como
atores sociais de direitos, garantindo espaços para que elas realmente participem da pesquisa

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

com autoria, sendo consideradas suas opiniões, seu modo de ver e analisar as coisas, mais do
que dando-lhes voz, ouvindo-as.

A pesquisa com as crianças difere de pesquisar a criança, pois, na primeira, implica-se que
o propósito da pesquisa seja “[...] as experiências sociais e culturais que ela compartilha com as
outras pessoas de seu ambiente, colocando-a como parceira do adulto-pesquisador, na busca
de uma permanente e mais profunda compreensão da experiência humana” (Souza; Castro,
2008, p. 53).

Para que uma pesquisa com crianças realmente se efetive é necessário que o
conhecimento do adulto, em detrimento do conhecimento da criança, não seja supervalorizado,
assim, fundamentalmente, é preciso a compreensão de que ambos, crianças e adultos, podem
ter uma visão diferente de suas experiências vividas, sendo que todas as experiências devem
ser consideradas, sem distinção. As diferentes compreensões de uma mesma experiência entre
adultos e crianças se originam não apenas pelas diferenças cognitivas entre ambos, mas, sim,
pelas diferenças nas relações que firmam com objetos e experiências vivenciadas (Souza;
Castro, 2008).

Conforme Fernandes (2016, p. 761),

[...] a investigação na infância, julgando processos em que as crianças são consideradas


atores, com um papel mais ou menos ativo, mas sempre importante no conhecimento
que se constrói acerca delas, tem uma história relativamente recente. Também assim é a
história da ética na pesquisa com crianças. Em primeiro lugar, foi necessário criar espaço
para a infância no discurso sociológico e depois houve que confrontar a crescente
complexidade e ambiguidade da infância enquanto fenómeno contemporâneo e instável
e passível de ser estudado em si mesmo, salvaguardando um conjunto de pressupostos
éticos.

Então, o que garantiria o sucesso de uma pesquisa com crianças? De acordo com
Christensen e James (2005), o que efetivamente garantirá o sucesso de uma pesquisa com as
crianças são os caminhos metodológicos adotados. Nesse sentido, entendemos a importância
de, primeiramente, compreendermos o que queremos investigar para, posteriormente,

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

pensarmos num caminho que possibilite às crianças a andarem juntas conosco nesse processo
e, com isso, serem protagonistas dessa produção também. No entanto, pesquisar com crianças
será sempre um desafio.

Para Woodhead e Faulkner (2005), a pesquisa com a participação das crianças, de maneira
ativa e com a produção de novos conhecimentos, requer que se deixem para trás certos hábitos
que tendem a pesquisar sobre as crianças e não com as crianças. Contudo, esse é um processo
lento, considerando que “[...] velhos hábitos demoram a desaparecer, especialmente no seio
daqueles que têm os pés bem enraizados nas tradições de pesquisa empírica” (Woodhead;
Faulkner, 2005, p. 23). Estamos, nesse sentido, caminhando a passos lentos, no entanto, já
observamos um aumento no número de pesquisas que, efetivamente, sejam feitas com as
crianças e não sobre as crianças.

As pesquisas com crianças pautadas pelo viés da Sociologia da Infância não têm medido
esforços para desenvolver estudos de maneira mais horizontal, que venham a ter as crianças
como sujeitos históricos e sociais (Fernandes, 2016). Essa horizontalidade nas pesquisas pode
vir a favorecer o protagonismo infantil dentro dos estudos, tema que será discutido na
sequência.

A pesquisa com crianças e o protagonismo infantil


Como a pesquisa com crianças pode favorecer o protagonismo infantil? Antes de
respondermos essa pergunta, é pertinente situarmos o entendimento do protagonismo infantil.

Assim, o que será esse protagonismo? O que ele visa? O protagonismo infantil visa o
rompimento de uma visão adultocêntrica. Para Santiago e Faria (2015), isso é uma das formas
de preconceito mais enraizada, de maneira natural, em nossa sociedade. Conforme os autores,
o poder hierárquico é definido pela idade, assim, temos como natural a sobreposição do poder
do adulto em relação à criança; com isso, desmerece-se os saberes produzidos pelas crianças.
Nesse sentido, o período da infância

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

[...] na perspectiva adultocêntrica, é somente um período de transição e de


aquisição dos elementos simbólicos presentes na sociedade, tendo a criança, assim, uma
condição de ser menor, ser inferior, lugar que lhe é dado pelo grupo dominante
correspondente: os adultos e as adultas (Santiago; Faria, 2015, p. 73).

Conforme Guizzo, Balduzzi e Lazzari (2019), nos últimos tempos, as crianças pequenas
têm ganhado mais espaço para exercer seu protagonismo em diferentes áreas, como a
publicitária, de investigação, além da educacional. Um dos pontos principais para as crianças
estarem conquistando o espaço no meio educacional é a ampla discussão que vem sendo dada
em torno das práticas educativas, principalmente as reflexões alavancadas na Educação Infantil.

Um aspecto relevante diante da temática, que permite refletir a infância, é a proposta de


universalização do acesso à Educação Infantil, trazida junto ao Plano Nacional de Educação
(PNE) (Brasil, 2001, p. 9). Conforme o PNE (Brasil, 2001, p. 9), a meta um previa a universalização,
até 2016, da Educação Infantil na pré-escola, para as crianças de quatro e cinco anos de idade,
e a ampliação da oferta de Educação Infantil em creches, de forma a atender, no mínimo, 50%
das crianças de até três anos até o final da vigência do documento.

Sabemos que a realidade dos municípios ainda não contempla essa meta, contudo, as
políticas já indicam a importância de garantir o direito das crianças à educação e, além disso,
tornar a Educação Infantil obrigatória aos quatro anos de idade também acaba por dar um
status de importância a essa etapa da Educação Básica.

Outro aspecto relevante é o posicionamento dos educadores acerca dessa etapa da


Educação Básica, nesse sentido, faz-se pertinente nos assumirmos como defensores da
importância da Educação Infantil. Nos papéis de professores e pesquisadores de nossa própria
prática, de maneira a possibilitar que as crianças tenham seus direitos de aprendizagem
garantidos e, principalmente, tenham seu protagonismo nesse processo educacional
preservado, é imprescindível que se assuma uma postura crítica, reflexiva e defensiva da
Educação Infantil.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O avanço e o aumento das pesquisas que têm como foco as crianças, entendendo-as como
sujeitos sociais e de direitos, têm forte influência no surgimento da Sociologia da Infância e
têm, de certa forma, facilitado que o protagonismo infantil seja garantido e realmente efetivado.
Assim, para Abramowicz e Oliveira (2010, p. 43), “[...] a Sociologia da Infância proclama a
necessidade de ferramentas metodológicas que se conectem com os ‘devires’ imprevisíveis, já
que as crianças, em determinados momentos, rompem com aquilo que para nós é natural e
necessário”. O que tem se observado, ainda, é um considerável aumento de pesquisas
(Fernandes, 2005; Woodhead; Faulkner, 2005; Christensen; James, 2005) que têm como
proposta de estudo a construção, em conjunto com as crianças, de metodologias de pesquisas,
o que seria algo próximo à ideia de pesquisar com as crianças e não sobre elas.

Efetivamente, esse tipo de proposta metodológica, citada no parágrafo anterior, vem a


sugerir uma forma de metodologia de pesquisa em que as crianças sejam realmente
protagonistas, isso só é possível quando as práticas de pesquisas são repensadas. Ou seja,
quando o pesquisador toma consciência acerca do que ele efetivamente busca com o
desenvolvimento de sua pesquisa e, principalmente, em qual base teórica irá se apoiar para o
desenvolvimento do estudo, por exemplo, que concepção de criança e de infâncias se tem.

Repensar as formas das abordagens metodológicas é uma maneira de tornar as crianças


protagonistas das pesquisas; e como isso poderia ser utilizado nas práticas da educação das
crianças? Um caminho seria repensar as práticas propostas, como, por exemplo, compreender
que a Educação Infantil não é um espaço para a alfabetização, mas, sim, para a socialização,
para a construção de experiências e para o brincar livre e espontâneo.

Nessa direção, Ferreira e Tomás (2020) nos convocam a repensar as práticas que cerceiam
a educação das crianças e pontuam aspectos importantes sobre o brincar. Compreendendo o
brincar como instrumento importante de socialização, comunicação, autoconstituição dos
sujeitos enquanto atores sociais. Segundo as autoras, precisamos estar atentos à
"marginalização do brincar”.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Neste sentido, estando cientes de que o brincar das crianças tem vindo a ser ameaçado
pela sua crescente escolarização e sabendo da adesão infantil à atividade lúdica, importa
distinguir, no campo educativo, o brincar delas daquilo que são brincadeiras e jogos
propostos e conduzidos pelos/as educadoras/es para elas, e levar mais longe a
reflexividade acerca da pedagogia do brincar (Ferreira; Tomás, 2020, p. 7-8).

Em relação a isso, percebemos uma tendência, em grande parte da realidade das escolas
de Educação Infantil, de direcionar e priorizar as práticas na Educação Infantil para o processo
de alfabetização, o que acaba por restringir o brincar, o lúdico, deixando para segundo plano.
Tomás aponta que “[...] os direitos da criança necessitam ser (re)apropriados/as pelos/as
profissionais de educação, na sua visão crítica, como um guia emancipatório das suas práticas
pedagógicas” (Tomás, 2017, p. 15).

Uma das possibilidades para se repensar a forma como as práticas pedagógicas estão
sendo desenvolvidas com as crianças e, com isso, não cair na armadilha da “alfabetização”, ainda
na Educação Infantil, é discutir o currículo junto a esta etapa de ensino. O que realmente
queremos fazer na Educação Infantil? Que tipos de práticas queremos adotar? No entanto,
discutir o currículo não é uma tarefa fácil. Para Zuccoli e Infantino (2018, p. 24),

Refletir sobre o currículo não significa selecionar informações e conhecimentos a serem


oferecidos às crianças, na lógica de estabelecer um programa de conteúdos de
aprendizagem, mas sim questionar os processos de crescimento das crianças e a
coerência das ofertas dentro dos serviços. Com quais elementos da cultura, em um
sentido amplo, é importante que uma criança, em diferentes idades, entre em contato
para obter benefícios reais para o seu desenvolvimento? Que experiências deve fazer uma
criança para adquirir competências e habilidades contextualizadas e coerentes para
compreender, mas também para mudar e interpretar de maneira inovadora o mundo
cultural do qual é parte?

Essas reflexões são muito pertinentes quando pensamos no desenvolvimento infantil de


forma integral e não apenas nas funções cognitivas e pedagógicas. Enquanto educadoras,
enfatizamos a relevância que a atuação na Educação Infantil tem diante do desenvolvimento do
sujeito. Nessa fase, o educador atento e que considera a criança como um sujeito dotado de

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

potencialidades e habilidades indissociáveis de suas vivências conseguirá observar as crianças


e suas potencialidades.

Essa sensibilidade profissional tem, portanto, representado um acesso importante à


compreensão das experiências emocionais das crianças, seja durante a adaptação, seja
no curso da permanência mais total na creche, mas tem também induzido a interpretar
a trama relacional, tema sem dúvida emergente na contingência das interações, como
dimensão prevalente, se não às vezes exclusiva, do mundo da criança que, hoje, na onda
do paradigma holístico do desenvolvimento, é afirmado, ao contrário, como trama
indissolúvel e unitária de emoções, relações sociais e experiências cognitivas (Infantino,
2022, p. 75).

Compreender e potencializar as relações empodera o educador e conduz a práticas mais


reflexivas e significativas, valorizando, para além dos aspectos pedagógicos, os aspectos
emocionais das crianças e suas formas singulares de agir. Freitas et al. (2015) referem que são
visíveis as influências do ambiente na forma como vamos nos relacionar dentro dele, de acordo
com o que ele pode nos despertar ou inibir.

Nesse sentido, quando reconhecermos a criança como ser social e de direitos, abrimos
espaço para o protagonismo infantil em suas ações, tendo a criança como ser produtor de uma
cultura própria, a cultura infantil, seja pela interação dela com seus pares, com os adultos ou
com o mundo que a cerca (Dip; Tebet, 2019). Mas o que, efetivamente, torna as crianças
protagonistas de suas ações? Conforme Guizzo, Balduzzi e Lazzari (2019, p. 274), “[...]
‘protagonismo’ tem origem no latim: protos quer dizer principal e agonistes significa lutador.
Ser protagonista é ter papel de destaque num acontecimento, área ou situação”. E de que forma
trazer esse protagonismo para as pesquisas com crianças?

Silva, Barbosa e Kramer (2005) já sinalizavam para um movimento em torno do


desenvolvimento teórico no Brasil que possibilitasse o desenvolvimento de estudos com as
crianças, com vistas a uma melhor compreensão do que é ser criança. Entende-se que o
aprofundamento de estudos, quem sabe, possibilite a promoção de práticas pedagógicas que
deem espaço para a criança exercer o seu protagonismo infantil.

124
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Como pensar uma pesquisa que venha a ser realizada com as crianças e não sobre as
crianças, considerando que

As crianças ocupam um lugar aparentemente periférico na história em geral, e isso se


reflete na dificuldade em encontrar material produzido a partir delas mesmas. Ao mesmo
tempo em que não são elas que escrevem sua própria história e nem são elas que
registram suas imagens, as crianças têm sua história contada e retratada por outros
(Abramowicz; Oliveira, 2010, p. 46-47).

Talvez, a proposta de pesquisa de William Corsaro (2009, 2011) seja uma das formas mais
próximas do “ideal” buscado em prol de pesquisas que realmente venham a ser desenvolvidas
com as crianças e que possibilitem o seu protagonismo de maneira efetiva.

Corsaro (2005), ao iniciar seus estudos com as crianças, não tinha muitos parâmetros
acerca de como se portar diante delas para ser “aceito” no universo das crianças, sendo assim,
o autor acreditou que “[...] a melhor maneira para tornar-me parte dos universos das crianças
era ‘não agir como um adulto típico’” (Corsaro, 2005, p. 446). Além disso, Corsaro (2005, p. 448)
optou por uma “entrada reativa” no campo de pesquisa, ou seja, o autor respeitou as crianças e
esperou que elas reagissem a sua presença no espaço/tempo em que a pesquisa estava sendo
realizada.

As pesquisas desenvolvidas por Corsaro (2005, 2009, 2011) são uma possibilidade de,
efetivamente, realizar-se pesquisas com crianças e não apenas sobre elas. Além disso, a
proposta de posicionamento do autor facilita que as crianças sejam protagonistas do processo
de pesquisa, uma vez que terão papel central nas ações e decisões tomadas no processo
investigativo.

Considerações (in)conclusivas
Ao longo do texto, buscamos discutir a pesquisa com as crianças como um espaço para o
protagonismo infantil e o direito à infância, a partir de alguns autores que retratam a temática
e de leituras realizadas no seminário “Educação Infantil: Pesquisa, Políticas Públicas e Práticas

125
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Educativas”, do PPGE, da UFSM. Nossa intenção não foi esgotar a discussão acerca da temática,
mas, sim, reunir dados trazidos por autores da área a respeito das pesquisas com crianças e o
protagonismo infantil, com o intuito de construirmos um conhecimento acerca da temática.

O que se observou é que as pesquisas com crianças são uma área ainda em construção e
que pesquisar, efetivamente, com as crianças requer um posicionamento cuidadoso do
pesquisador a fim de não cair em contradição acerca da proposta de pesquisa com crianças e
não sobre elas. Nesse sentido, é importante que novos estudos acerca da temática sejam
desenvolvidos, visando uma valorização das crianças e de suas infâncias, bem como
possibilitando espaços para o seu protagonismo infantil.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Lucas Wendt – Crianças da EMEF Sergio Lopes – Santa Maria – RS – no Centro de
Educação da UFSM

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Crianças negras migrantes


Flávio Santiago
Renata Santos da Silva
Yeison Arcadio Meneses Copete

Introdução
Este capítulo tem como objetivo debater os aspectos relacionados ao racismo e o
processo de acolhimento de crianças migrantes negras no Brasil, para tanto faremos o diálogo
entre duas pesquisas, uma desenvolvida na cidade de São Paulo, que investigou o acolhimento
de crianças negras do continente africano, e outra desenvolvida na cidade de Porto Alegre, que
teve como objetivo analisar o acolhimento de crianças negras haitianas. Não se trata de um
trabalho que tem como foco tecer comparações entre as pesquisas, mas sim demostrar que
muitas vezes o racismo e a xenofobia se interseccionam construindo barreiras no processo de
inserção de crianças negras migrantes.

Atualmente, o Brasil se constitui como um país destino para as rotas migratórias


internacionais, entretanto o fluxo migratório é diferente do observado no século XIX e início
do século XX, onde a imigração europeia era predominante. O que temos presenciado nos
últimos anos, é um novo movimento migratório, de pessoas oriundas de países do Caribe e da
América do Sul.

A cidade de São Paulo tem sido historicamente destino importante de pessoas oriundas
de diversas regiões do país e do mundo. A pluralidade do fenômeno migratório em São Paulo
abarca diversas nacionalidades, com presença significativa dos latino-americanos, africanos,
haitianos e sírios. A escolha pela capital paulista se dá, na maioria das vezes, por motivos
relacionados a melhores oportunidades de trabalho e de estudo, redes de apoio já sustentadas,
solicitação de refúgio ou reunião familiar (Sato, 2017). Na capital gaúcha, a partir de 2014, foi
possível observar um novo cenário nos fluxos migratórios. A predominância da imigração
europeia, marcante nos séculos XIX e XX, perde a centralidade e a imigração africana, sul-

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

americana e caribenha demonstram considerável aumento em seu fluxo; em 2021 Porto Alegre
possuía estimativa de aproximadamente 30 mil imigrantes (Santos, 2021).

Nesse contexto migratório, africano, sul-americano, latino-americano e caribenho a


crença de um país miscigenado e acolhedor é questionada, pois quando a imigração em pauta
faz parte da diáspora negra, as questões raciais demonstram que a cultura de hospitalidade e
empatia ao estrangeiro no Brasil sempre foi seletiva. “Com as recentes alterações nas direções
assumidas pelos fluxos migratórios mundiais e a ampliação maciça da imigração Sul-Sul, os
significados de estrangeiros’ passaram a ser deslocados, revelando antigas e não resolvidas
cisões existentes no Brasil” (Faustino; Oliveira, 2021, p. 202).

Em outras palavras, podemos identificar o que denominamos de Migratismo e Migração


(Tudor, 2002). Esses conceitos funcionam de forma análoga aos termos Racismo e Racialização.
É também uma simbiose entre o modelo de representação do sistema racista e a migração.
Assim, se o racismo é a relação de poder que racializa -atribui raça as pessoas, o migratismo é
a relação de poder que migra -atribui migração à algumas pessoas. “Migratismo é o termo que
nomeia o fato de que nenhuma migração é considerada norma dos Estados-nação, sendo
considerada como uma ameaça potencial contra a nação ou como algo que precisa ser
legitimado” (Tudor, 2022, p. 10-11).

Desse modo, a migração é concebida como algo congênito para determinadas pessoas e
geralmente afeta “[...] pessoas negras e pardas, pessoas de cor, muçulmanos e na Europa
Ocidental, pessoas brancas, percebidas como vindas da Europa Oriental ou da América Latina,
o que significa fora do que é construído como o mundo ocidental” (Tudor, 2022, p. 10-11).

Nesse sentido, quando os “ocidentais” migram para os países do Sul Global, tornam-se
descobridores, expedicionários, turistas, investidores, exploradores, aventureiros, solidários e
até mesmo “salvadores”. Eles devem deixar o bem-estar no Norte Global para se sacrificar pelos
“Outros” e dar-lhes seus conhecimentos, melhorar seus modos de vida. Como exemplo, cabe
considerar o comércio internacional, quando surgem grandes “investidores”, mas isso não é
considerado migração econômica, essas pessoas não são chamadas de migrantes econômicos.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

De alguma forma se mantém uma relação “civilizadora”, “humanizadora” e “evangelizadora” dos


povos. A origem deste comportamento pode ser entendida através das palavras de Aimé Césaire
quando salienta que “entre o colonizador e o colonizado só há lugar para o trabalho forçado,
para a intimidação, para a pressão, para a polícia, para o tributo, o roubo, para a violação, para
a cultura imposta, para o desprezo, para a desconfiança [...]” (Césaire, 2010, p. 31).

Desse modo, a migração africana negra e sua diáspora, sofre no Brasil os efeitos perversos
ligados à xenofobia, mas também passa a vivenciar práticas racistas, pautadas no processo de
racialização. Como destaca Sutcliffe (1998, p. 89 apud Mattos, 2016, p. 35),

[...] os migrantes vindos da África carregam em sua pele o estigma de sua origem
africana e de sua ‘raça’, e são facilmente distinguidos dos demais devido à sua
cor, religião e cultura, o que ocasiona uma dificuldade maior de se integrarem
plenamente na sociedade.

As hostilidades em relação aos migrantes negros não se esgotam em olhares depreciativos


ou palavras agressivas, elas também estão presentes no modo pelo qual a sociedade se
estrutura. Também se vê cotidianamente como descendentes de migrantes europeus atacam
os “novos migrantes” (Santiago, 2022). Convém ressaltar que somos um país fruto do processo
migratório, seja ele forçado ou voluntário. Esses fatos, assim como olhares, palavras e gestos,
cotidianamente fazem com que cada pessoa, e notadamente as crianças, deem-se conta de que
a sociedade lhes reserva certos lugares, oportunidades e direitos e as exclui de outros. Os
preconceitos sobre os quais se constrói a nação brasileira continuam cultivando sentimentos e
ideias de que para pertencer à humanidade é preciso ser descendente de europeus, é preciso
ser branco.

Primeiro o racismo depois a xenofobia


A relação entre racismo e xenofobia pode ser entendida quando a aversão ou
hospitalidade ao estrangeiro é seletivamente baseada na raça. Este, argumento não
desconsidera que os imigrantes europeus tenham experienciado situações adversas em seus

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

processos migratório, entretanto, chegaram ao Brasil na condição de homens livres, detentores


de direitos. O processo de mobilidade da diáspora negra, na maioria das ocasiões, partiu de
situações de violência e de ameaça à vida.

Faustino e Oliveira (2021), apontam que no período de transição do trabalho escravo para
o trabalho livre, houve incentivo a migração europeia através de políticas econômicas e através
da política de branqueamento da população brasileira; e quando a mão de obra europeia não
era o suficiente foram bem aprovadas as nacionalidades não negras de outros continentes não-
europeus.

Essa xenofobia racializada, que serve ao racismo, se mantém atualizada na sociedade


brasileira. Segundo Cruz e Neto (2017), é preciso principalmente no âmbito social e no âmbito
estatal uma consciência humanizadora acerca da mobilidade humana internacional, para que
os discursos camuflados, que pretendem esconder, atos preconceituosos de caráter étnico-
racial e xenófobos sejam convertidos em ações positivas para recepção e manutenção do
estrangeiro em território local.

O racismo é uma estrutura de poder sistêmico e multidimensional. Então, a partir desta


perspectiva, abordamos as categorias racismo e migração em uma imbricação de
retroalimentação diretamente proporcional.

Os processos migratórios geram tensões nas sociedades de acolhimento e refutam


ideologias racistas. Quando se estabelece o regime de representação contra a imigração,
pseudonarrativas endossam a exploração, o saque, a acumulação, o empobrecimento, a
mudança climática, justificando as ações de um poder hegemônico baseado no
capitalismo/neoliberalismo.

Para Carlos Moore (2007, p. 284) “[...] a função básica do racismo é de blindar os privilégios
do segmento hegemônico da sociedade, cuja dominação se expressa por meio de um continuum
de características fenotípicas, ao mesmo tempo fragiliza, fraciona e torna impotente o
segmento subalternizado”. Da mesma forma, o sistema racista deforma a diferença e lhe impõe
significados particulares, geralmente desumanizadores, o que abre caminho para a legitimação

133
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

de sua radicalidade contrassujeitos, grupos e povos. Nesse sentido, a estigmatização da


diferença com o fim de “sacar provar” (privilégios, vantagens e direitos) da situação criada é o
próprio fundamento do racismo.

Seguindo Moore (2007), na contemporaneidade, o racismo está arraigado em todas as


instâncias do funcionamento do mundo, na economia, na política, na cultura e no militar. Por
isso se fala da relação sistêmica com a ordem do poder, tendo tal estrutura objetivos precisos:
sustentando redes de solidariedade endógena hegemônica automática em torno do fenótipo,
redes que visam especificamente captura, distribuição, preservação e controle monopolista dos
recursos básicos de uma sociedade.

Este panorama evidencia a relação direta com o depósito e o acúmulo de riqueza, “[...] o
racismo é uma recuperação cultural de um conjunto de comportamentos agressivos, violentos
e egoístas cuja finalidade é a estruturação e a sustentação dos sistemas de gestão dos recursos
em termos racialmente monopolistas” (MOORE, 2007, p. 284). As heranças escravocratas e
coloniais que perduraram até nossos dias, não permitiram que as sociedades avançassem na
perspectiva de uma melhor relação com a diferença cultural, étnica ou linguística.

Por conseguinte, a única forma de oferecer uma mediana hospitalidade às pessoas


migrantes negras ou árabes é mediante a assimilação. Eles devem esquecer suas histórias,
espiritualidades e línguas, uma forma de despojo e negação, extrema violência. No contexto
francês, muitas famílias mudaram seus nomes para poderem ser naturalizados franceses. As
sociedades têm construído um sofrimento de blindagem frente ao “Outro” diferente, no sentido
em que não é concebido como portador de cultura e menos de uma cultura que pode dialogar
e enriquecer a dominante.

O racismo é marco comum das sociedades contemporâneas, sendo responsável por uma
“[...] uma visão coletiva totalizante, que garante a gestão monopolista e racializada dos recursos,
sendo a população considerada como objetivo como parte integrante desses recursos” (Moore,
2007, p. 285). De onde os sujeitos e os povos consideram a dependência, o despoderamento, o
déficit e o vazio.

134
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Deste modo, a migração também pode ser entendida como uma consequência da
estrutura piramidal das sociedades modernas, a qual tem o racismo como um dos seus
fundamentos. Os seres vivos se movem diante das mudanças climáticas, ameaças, fome,
inquietação, escassez etc. e migrar também é uma forma de preservação da vida. Por outro lado,
consideramos que a concepção da categoria “migrante” está realmente mais associada a uma
ação deliberada, seguindo Bauman (2011, p. 14) “[...] despojar algumas pessoas dos direitos que
representam os membros reconhecidos e reputados da sociedade”.

A migração comporta também a ideia do perigo na atualidade. Vale destacar que essa dia
cria limite e determina formas de vida, impondo uma condição sobre certos corpos: “é
perigoso ser pobre, é perigoso ser negro., é perigoso ser latino […] Por isso, “as vítimas
são rotuladas como ‘garantias’ na medida em que são descartadas porque sua escassa
importância não justifica os custos que sua proteção implicaria” […] Da mesma forma,
“consequentemente, os pobres, cada vez mais criminalizados, são candidatos “naturais”
a danos colaterais, permanentemente marcados, como indica a tendência, com o duplo
estigma de irrelevância e falta de mérito” (Bauman, 2011, p. 15-17, tradução livre).

A migração gera desafios multidimensionais às sociedades de “acolhida” e um dos


aspectos centrais, dessa inserção tem a ver com a educação e a inserção social, especialmente
dos menores. Tendo como referência uma educação que despreze o racismo, a xenofobia e
outras formas de opressão. Importante salientar que a sociedade de chegada ou de trânsito
não deve ser compreendida como salvadora. Nesse sentido, a relação não pode ser entendida
como piramidal, mas sim como horizontal. Essas sociedades têm a possibilidade de aprender as
experiências, idiomas, culturas e histórias das pessoas em situação de migração.

Relações raciais e migração africana em São Paulo

Eu me lembro de uma professora chegar com uma criança angolana e muitas vezes ela me
colocava a questão do preconceito que aparecia nas falas, entre as outras crianças, de
chamá-la de angolana com caráter pejorativo, “Seu angolano”, como se aquilo fosse algo
ruim, parecia que ser angolano era ser mau (informação verbal).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A epígrafe desta seção apresenta a fala de uma professora em relação à percepção de uma
criança angolana. O imaginário da miséria e da pobreza como partes fundantes dos países
africanos corresponde a um dos elementos reverberados pelo ideário racista e propaga uma
ideia sem que se tenha a dimensão de que esses países não são atualmente pobres, mas
possuem altas taxas de renda acumuladas em poucas mãos, o que se reflete no baixo índice de
distribuição de renda entre a população (Fonseca, 2015). Em relação a esse estereótipo,
transcreve-se a fala da professora Sabrina:

Muitas vezes você acha que o pai, porque é da África, do Haiti, do Congo, da África do Congo,
do Senegal, vem com estereótipo de que não tem estudo. Entendeu? Essa mãe foi legal para
tirar esse estereótipo. Por quê? Porque essa mãe do Congo estava em situação de refúgio
político, ela até dizia que não poderia falar muito e é claro que tomávamos cuidado com isso.
Essa mãe tinha uma formação muito boa na área de informática e aqui no Brasil ela dava
aulas de francês. Inclusive uma das jornalistas que esteve na unidade passou a ter aula com
essa mãe. Eu acho que o primeiro passo é isso, porque sempre vem o estereótipo. Se a pessoa
vem em uma condição precária tem que ser vista como um ser humano igual a qualquer
outro, mas, muitas vezes, apenas por ser africano e negro, eu acharei que ela não tinha
estudo nenhum. Quando essa mãe veio, contou um pouco sobre como tinha sido a infância
dela. Eu não lembro se ela era exatamente do Congo, porque era uma família que tinha
passado por vários países. Mas era uma família de um país da África, apenas não me recordo
se ela era do Congo ou era do Senegal e foi para o Congo. Por último eu sei que eles tinham
passado pelo Congo. Essa mãe conta como era a escola dela em seu país, cantou para as
crianças e ensinou uma cantiga em francês. É bárbaro, porque tem aquele estereótipo de
que o africano não tem conhecimento. O mais legal é que ela não ficou somente no francês,
que é bem eurocêntrico, depois ela ensinou algumas cantigas em uma língua de uma região
que agora não me recordo. Esses países geralmente têm mais de uma língua. As crianças
acabaram aprendendo a cantar também nessa outra língua. Eu lembro que a criança dela
se destacava muito por ensinar aos amigos as cantigas, tinha uma fluência muito boa no
português e era muito interessante ver aquilo. Sabemos que aquela mãe de certa forma
quebrava um pouco dos estereótipos das pessoas. O empoderamento daquela mãe ajudava
a quebrar um pouco desse estereótipo (informação verbal).

Ainda se recorre à ideia ocidental de África para descrever esse continente, pois segue
presente no nosso imaginário social que a África se constitui como um continente
extremamente pobre, sem nenhuma tecnologia e marcado pela fome. Essa imagem é resultado
de uma interpretação eurocêntrica a respeito dos países africanos. Ainda é muito comum no

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Ocidente uma visão estereotipada que associa a África ao passado, que a vê como “o berço da
humanidade” ligado somente a aspectos primitivos, o que é reflexo das lacunas perenes na
historiografia em relação ao continente. A historiografia europeia, como destaca Appiah (1997),
era baseada na ideia de que a principal fonte de informação sobre uma civilização está nos
arquivos, e foi isso que tornou o passado africano invisível para ela. Para além desse aspecto da
historiografia eurocentrada, Ki-Zerbo (1982 apud Fonseca, 2004, p. 59) ressalta que “[...] durante
muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie ocultaram ao mundo a verdadeira história
da África. As sociedades africanas eram vistas como sociedades que não podiam ter história”.

A Ideia de África que se tem hoje é resultado do processo e do posicionamento político


das nossas estruturas de poder, que reproduzem a lógica do processo colonial ao colocar como
foco do desenvolvimento somente a Europa e as suas civilizações. O continente africano é
concebido como berço da humanidade, mas não da civilização: como a professora aponta em
seu relato, “tem aquele estereótipo de que o africano não tem conhecimento”. Essa percepção
está atrelada ao processo de racialização, e é pautada pela hierarquização e negação do outro,
constituída sobre uma base histórica e cultural de processos discriminatórios,
marginalizadores e criminalizadores da população africana e de seus descendentes. Processos
que criam a ideia de que a humanidade não pertence a todos, transformam em coisas aqueles
que não pertencem ao seu grupo étnico e proporcionam experiências distintas para os sujeitos
que constroem a sociedade (Santiago, 2020). Entretanto, esse mecanismo não é um mero
“preconceito”. Sua “força” depende, sobretudo, das hierarquias, do sistema de privilégios e da
violência material da qual é veículo, e que não se constitui simplesmente como um estereótipo.
As sociedades racistas se formam, precisamente, a partir da proliferação de espaços e nichos
altamente hierarquizados e racializados que, de alguma forma, transcendem a vontade e a
subjetividade de indivíduos e grupos (Curcio; Mellino, 2012).

A longa lista de ausências atribuída aos povos africanos é usada pela colonização para
subjugar esses mesmos povos, e menciona a ausência de história, cultura, alma,
responsabilidade e fala (Achebe, 2012). A racialização está no cerne das tentativas de
apagamento das culturas não europeias, estruturando o pensamento colonial/eurocêntrico,

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

ecoando a ideia de que à humanidade não pertencente a todos (Santiago; Faria, 2021). Para um
racista, somente o seu povo é capaz de produzir realizações morais, intelectuais ou culturais,
ou de características que o façam tornar-se admirável ou atraente (Appiah, 1997). Mbembe
(2017) descreve que a noção de raça permitiu que se representassem os sujeitos não europeus
como se fossem seres inferiores, assimilados pela ausência, ou por uma presença ligada à ideia
de monstros. Os africanos tornam-se, assim, uma invenção do sistema racial (Mbembe, 2014), e
essa ideia é reforçada quando se pensa nas pessoas migrantes negras, que são vistas em
diferentes momentos como pessoas desprovidas de tudo, como sujeitos sem humanidade.

Diante desse contexto, a migração africana negra no Brasil não somente sofre os efeitos
perversos ligados à xenofobia, mas também passa a vivenciar práticas racistas, pautadas no
processo de racialização. E isso acontece porque, no Brasil, as relações entre negros e brancos
são marcadas por desigualdades sociais e raciais que se refletem na história da migração, que
foi seletiva e excludente e não acolheu ‒ e ainda não acolhe ‒ a população migrante não branca
da mesma forma que acolhe a população de origem europeia (Demartini, 2004; Freitas; Silva,
2015).

Pesquisa como a desenvolvida por Farah (2007) afirmam que muitos estrangeiros negros,
ao adotarem como residência um país majoritariamente negro como o Brasil, esperam que a
sociedade tenha menos práticas racistas, mas o cotidiano lhes revela espaços segregados,
políticas segregativas e racismo estrutural. Com efeito, a repulsa ao estrangeiro, a xenofobia,
revela o traço comum às discriminações raciais. Para a efetivação desse processo, inúmeras
ações cotidianas fortalecem estereótipos, e fixam destinos preestabelecidos para as crianças
negras, as mulheres negras e os homens negros. Como apontam Pavez-Soto et al. (2019), a
racialização da população migrante se manifesta em diferentes áreas da convivência social,
tanto no âmbito institucional quanto no cotidiano, e surge uma imagem particularmente racista
em vista da população afrodescendente migrante, que acarreta barreiras e controvérsias
sociais. A esse respeito, observa-se o relato de uma professora que comenta alguns aspectos
racistas envolvendo a imagem das famílias migrantes africanas:

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

As pessoas que estavam na gestão antes de mim foram fazer aquela orientação de boas-
vindas: Olha aonde você está chegando, como eram as famílias, como eram os espaços e
como eram os trabalhos das professoras ‒ me deixando a par do espaço que eu ia atuar na
gestão. Entre um comentário e outro foi justamente esse tocado na questão que a unidade
recebia famílias africanas: a gente não consegue se comunicar muito bem, porque eles quase
não falam nossa língua e eles cheiram muito mal. Eu: mas como assim? Cheiram mal? É eles
cheiram mal! Quando eles entram aqui já deixa um rastro, assim quando eles passam o
rastro de mau cheiro, eles não tomam banho. E eu escutando tudo, contra-argumentei: já
conversou com alguém? Já tentou entender se de repente a pessoa está morando num lugar
que não tem um chuveiro? Será que ela consegue tomar banho? Será que os vizinhos
emprestam água? Se ela não tem água em casa não é uma questão de ser africano é uma
questão social, né? Entretanto, as pessoas continuavam a dizer: Ah não, não! É costume deles
mesmo, é um costume deles não tomar banho lá na África. Eles não tomam banho. Elas
tomaram isso como um costume africano e só que aí felizmente o meu olhar foi para outro
ponto de vista, porque quando eu comecei a conversar com as professoras e elas trouxeram
tanto de coisas interessantes e os olhos delas brilhavam quando falava das roupas das
mulheres: eles têm umas roupas coloridas, tão lindas! não dá vontade de usar? A mãe da
criança vem com uns turbantes maravilhosos, ela disse que ela mesma que amarra. Então,
o olhar das professoras era outro, e elas que conviviam com a criança supostamente
malcheirosa e com a mãe que vinha buscar criança na porta, elas aqui conviviam, mas elas
não me relataram isso, mas essa as pessoas da gestão tinham esse olhar já enraizado. E daí,
eu tentei, por muitos meios mostrar para elas o que tinham ali era muito bonito, e trazer
texto, sei lá vídeos para que elas pudessem entender um pouquinho da dinâmica africana,
mas parece que nada, nem um esforço meu adiantava. Então aí eu baixei um Decreto da
gestão, então... eu posso baixar um de vez em quando, eu não consigo, eu não sou, eu não
sou, eu não sou dessa linha de gestão, mas às vezes a gente é obrigado a tomar algumas
atitudes mais radicais e daí. Aí eu chamei as duas bonitas e falei olha a partir de hoje é
proibido falar mal de pessoas africanas ou de quaisquer outras pessoas aqui de dentro! É
proibido, eu não quero ouvir falar isso aqui. Eu estava chegando, elas ainda não sabiam se
eu tinha poder mesmo, ou não tinha, né? aquele poder assim, né? aí será que ela é amiga do
mantenedor? Vamos deixar, vamos obedecer, a gente ri, mas o negócio é feio viu! Foi só
dessa maneira que eu consegui ter um pouquinho de respeito nas conversas principalmente
das questões das crianças africanas. Cada pessoa tem um tempo para assimilar as coisas, e
eu não sei se elas assimilaram até hoje (informação verbal).

O estereótipo do negro sujo, ou incivilizado, assume função de justificativa do


preconceito, e fornece as razões subjacentes à recusa de grupos migrantes. A função do
estereótipo é, por um lado, justificar a conduta em relação a certos grupos ou indivíduos e, por
outro lado, fornecer elementos para a preservação dos imaginários em relação a determinados

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

grupos étnico-raciais. A função justificadora do estereótipo prevalece com o propósito de


caracterização dos atributos específicos do grupo migrante (Alietti; Padovan, 2000).

O estigma relacionado à falta de higiene também é colocado sobre outras crianças


migrantes. Como aponta Silva (2016), as professoras relatavam em sua pesquisa que as crianças
bolivianas não eram enviadas para a escola com condições adequadas de higiene, e era utilizado
o adjetivo “fedidas” como forma genérica de descrever essas crianças, o que estabelecia a “falta
de higiene” como um aspecto cultural “deles” ou até mesmo da questão “genética”.

A manutenção de estereótipos negativos em relação a determinados grupos é uma


perspectiva de autogratificação, e isso ocorre principalmente no caso em que os julgamentos
afetados pelo preconceito se expressam em um contexto social marcado pela desigualdade,
“[...] o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado”
(Kilomba, 2019, p. 34).

Em paralelo a essa análise, pode-se levantar as seguintes questões: quem são os sujeitos
que têm acesso à água encanada em suas residências? Quem no Brasil tem acesso ao
saneamento básico? A cor é um critério objetivo de estratificação, além disso, remete o
indivíduo a uma raça, remete-o a uma classe. É, portanto, símbolo de uma classe (Almeida, 2019).
Na lógica hierárquica das práticas racistas, a cor foi selecionada como marca racial que serviria
para identificar socialmente os sujeitos; passou a ser “[...] um símbolo da posição social, um
ponto de referência imediatamente visível e inelutável, através do qual se poderia presumir a
situação de indivíduos isolados, como socius e como pessoa” (Bastide; Fernandes, 2008, p. 95).

Lamentavelmente, vê-se presente uma imagem negativa em relação aos migrantes


africanos negros. Os discursos privilegiam a questão racial, apontam percepções a respeito do
que é ser um migrante africano e trazem elementos correlacionados ao seu pertencimento
étnico-racial, à sua condição socioeconômica, à sua cultura, ao seu pertencimento de gênero
etc. Muitas vezes, é por intermédio desse discurso que estereótipos e preconceitos sobre o
que é ser negro e migrante são reproduzidos.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Crianças haitianas em um Porto não muito Alegre


Em sua chegada ao Brasil para realizar pós-graduação, em 2001, o sociólogo Alain Kaly,
refere que o olhar do estrangeiro é um olhar verdadeiro. De fato, o olhar do estrangeiro pode
se tornar um espelho, para observação do que é nosso, através de outras perspectivas. Em sua
imersão no contexto educacional brasileiro, o sociólogo apontou que existe certa negação da
diáspora africana como sujeito detentor do conhecimento.

Historicamente, como refere Kaly (2001), somente na década de sessenta é que a


diplomacia brasileira vai mudar sua política com relação à África Negra, aspecto que possibilita
a vinda de estudantes africanos ao Brasil para cursar graduação, por via de bolsa paga pelo país
de origem, por organismos internacionais ou pelo próprio Brasil. Estes estudantes, que eram
quase todos pretos recebiam o mesmo tratamento racializado que os pretos nativos, sendo
estigmatizados como pobres, perigosos, com pouco grau de instrução e incapazes de possuir
um desempenho acadêmico de excelência.

Os estudos de Cavalleiro (2012), Nunes (2012), Alexandre e Abramowicz (2017), apontam


que os currículos e as práticas pedagógicas das escolas brasileiras, precisam abolir o legado
racista. O estudo de África e sua diáspora, associado somente aos aspectos de escravidão e
pobreza endossam práticas pedagógicas eurocêntricas, preconceituosas e colonizadoras. Estas
práticas, durante muito tempo excluíam o compromisso das instituições escolares na
construção de relações sociais contra-hegemônicas, interculturais e antirracistas.

O primeiro relato, faz referência ao processo de matrícula de um estudante haitiano


numa escola pública de Educação Básica. Os procedimentos para matrícula partem do
pressuposto de situação irregular deste estudante no Brasil, aspecto que aliado a falta de
normativas e orientações da secretaria mantenedora, justifica a adoção de critérios que
beneficiavam somente a acomodação da organização escolar.

Eles chegam sem documentos, pois eles não chegam legais aqui no Brasil. Então, nós
colocamos eles nas turmas por idade, mas o que aconteceu na situação por exemplo, do
segundo haitiano, que chegou com treze anos, não sabendo nenhuma palavra em

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

português. Se pensou em colocar ele no quarto ano ou quinto ano e não tinha vaga nem
para o quarto ano e nem para o quinto ano. Não colocamos no ano certo que ele devia ficar
em função de que o professor de área (professor docente nos anos finais do Ensino
Fundamental) não se sensibilizou ainda com essas questões.

O professor da área entende que eles têm de receber o aluno, já alfabetizado e falando o
idioma pois ele chegou ali para dar a aula dele. Aí a escola ficou o quê nós fazemos? Bom a
Jussara tem uma experiência, nessa docência, já com aluno haitiano e que fala super bem o
português e que deu certo. E colocaram o menino de treze anos, numa turma de terceiro
ano. O guri enorme, neste momento foi assim como a escola se organizou (Informação
verbal).

O julgamento de que este estudante não era alfabetizado, faz lembrar da herança colonial,
não havendo para este menino caribenho, negro e oriundo de um país com instabilidade
econômica, status de conhecimento. Outro aspecto a ser pontuado é a desqualificação que o
idioma sofre, pois não se observa nenhuma possibilidade de adaptação que possa se articular
com o Creóle haitiano

A xenofobia se alia ao racismo e estabelece o silenciamento, destinado também as


crianças negras brasileiras pois a presença negra e a contribuição da diáspora africana nas
sociedades seguem negligenciadas, muitas vezes reduzida ao processo de escravização. É nesse
silenciamento que se instala a impossibilidade de sentir a sua identidade presente e valorizada,
inexistente no currículo escolar, portanto, sem valor de conhecimento. “A questão crucial que
insere tal debate é que o interesse pela cultura de certos povos não caminha lado a lado com o
desejo de restituir a humanidade de grupos oprimidos” (Ribeiro, 2019, p. 70).

Isso aconteceu no ano de 2019. Quando eu entrei na escola eu vi aquele garoto (estudante
haitiano) junto com uma turma de alunos adultos, no turno da noite, matriculado na
Educação de Jovens e Adultos? Mas era um menino! Será que ninguém olhou para ele na
hora da matrícula? A colega justificou que ele tem 15 anos, mas eu duvido, tanto que
refizeram a enturmação dele novamente e ele foi para a turma do dia (Informação verbal).

Em todas as esferas da organização escolar, foi possível analisar aspectos de imperícia que
facilitavam ações de origem racista. Tal aspecto encontrou endosso na falta de normativas e

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

procedimentos da gestão da rede de ensino, a gestão das escolas e suas equipes diretivas na
ausência destas orientações, muitas vezes adotaram procedimentos pedagógicos inadequados,
aspecto que também pode ser observado na atuação docente, quando o fazer pedagógico fica
restrito a sensibilidade de realizar o trabalho ou não.

É fundamental salientar que as instituições escolares, no seu compromisso de garantir


uma educação inclusiva e de qualidade, questão que possivelmente reverbera em
oportunidades no futuro dos estudantes, deve se comprometer e basear seus currículos em
práticas que visem fomentar o diálogo entre as culturas, o respeito às diferenças, o combate ao
racismo e a igualdade de oportunidades dentro e fora da escola. Contraponto tais posturas
Dornelles, Marques e Feitosa (2019, p. 37) afirmam que é possível que se “[...] constitua em cada
escola brasileira uma educação propositalmente antirracista, que respeite os direitos das
crianças refugiadas de conduzir com dignidade e aceitação a própria vida, revelando aos poucos
os mistérios do que é conviver com o outro”.

O terceiro relato trata da ação docente frente a situações de racismo em sala de aula. A
situação é lida como bullying ou implicância. Não existe nenhum manejo sobre a situação,
tampouco um projeto pedagógico que atue sobre tais questões.

A gente tenta acolher, tenta acolher bem, alguns não, alguns meninos são mais maldosos e
“vai pro Haiti, só sendo haitiano, olha a cara de haitiano”. Tu notas assim, uma certa
dominação, nada de mais, nada muito que exija que a gente interfira diretamente apesar
da gente falar com eles sobre isso.

Tu notas que tem alguns alunos reagem de forma negativa a presença de estrangeiro,
principalmente, os haitianos, menos que com os venezuelanos. O que a gente escuta em
relação aos haitianos é mais forte, até a diferença negativa sobre venezuelanos, por exemplo,
eu não sei se eles parecem mais com a gente.

Não sei se a língua possibilita um contato maior, não sei se porque eles não são literalmente
negros, melhor vamos dizer assim, não são negros. Talvez tenha aí o cruzamento de um
preconceito de classe, de país com preconceito racial. Os haitianos são negros, os
venezuelanos não são necessariamente negros ou simples fato de uma simples implicância
de adolescente né? (Informação verbal).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O estudante estrangeiro lido como branco não está vulnerável a violência que o racismo
exerce, podendo ser identificado como mais parecido e com isso podendo participar dos pactos
que a branquitude estabelece na sociedade brasileira. Infelizmente, ações e comportamentos
docentes baseados no pacto da branquitude encontram um confortável lugar, no currículo
escolar, na estrutura pedagógica e na gestão institucional e como consequência “[...] crianças
negras não podem ignorar as violências cotidianas, enquanto as brancas, ao enxergarem o
mundo a partir de seus lugares sociais, que é um lugar de privilégio, acabam acreditando que
esse é o único mundo possível” (Ribeiro, 2019, p. 24).

Desse modo, acreditar que esse é o único mundo possível, constitui um prejuízo de
consequências que extrapolam as individualidades, auxiliando na manutenção do racismo,
aceitando condições sociais de privilégio, que são naturalizadas desde a infância e infelizmente
reforçadas também no ambiente escolar. O silenciamento ao racismo, se nutre no pacto da
branquitude, e crianças negras migrantes podem sofrer um duplo golpe na sociedade brasileira,
quando a xenofobia potencializa o racismo.

Conclusões
O processo de racialização marca o acolhimento e a inserção das crianças migrantes
africanas e das crianças negras haitianas, tanto no âmbito estrutural, como no âmbito
intercultural. O acolhimento das crianças migrantes negras demanda a abertura para uma
construção não etnocêntrica das práticas pedagógicas, de modo a procurar integrá-las, bem
como as suas famílias, e respeitar sempre a interculturalidade que se faz presente nessa
relação.

Os dados apresentados possibilitam visualizar os desafios e as dificuldades encontradas


pelas professoras, docentes que gentilmente se disponibilizaram a conversar e refletir a
respeito de sua prática com crianças negras migrantes. Os problemas discutidos reverberam,
em alguma medida, desigualdades estruturantes presentes em nossa sociedade, que ecoam
cotidianamente no interior das instituições educativas. As crianças negras migrantes, ao

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

chegarem nas instituições educativas conhecem um antigo problema da sociedade brasileira, o


racismo.

A legislação educacional brasileira, orienta caminhos para Educação das Relações


Étnico-Raciais, contudo, essa orientação ganha impedimentos quando não encontra uma
atitude antirracista, por parte de gestores, docentes e demais profissionais da Educação. Os
motivos para a manutenção do racismo, se expressam através da negação destes estudantes
como fonte de conhecimento, através da desqualificação de sua língua e cultura de origem,
através da impossibilidade de procedimentos pedagógicos adaptativos que respeitem as etapas
maturacionais e do desenvolvimento.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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l.], v. 26, n. 2, p. 230-248, jun. 2022. Disponível em:
https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/13675494221101642. Acesso em: 17 jan. 2024.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Janaína Raquel Cogo – EMEI Olhar de Criança – Santa Rosa – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A escola de Educação Infantil e o Programa de


Escolas Associadas UNESCO: implicações na
gestão pedagógica e administrativa
Sabrina Magrini Peixoto Machado
Débora Teixeira de Mello

Introdução
O atendimento às crianças na escola de Educação Infantil vem adquirindo importância
nas políticas educacionais, exigindo formação mínima dos profissionais que atuam nesta etapa
e também atendendo a princípios básicos de qualidade na educação. No entanto, a Educação
Infantil como etapa que possui uma identidade própria vem de avanços recentes na história,
do assistencialismo de instituições religiosas, fábricas e poucas entidades mantidas pelo
governo em parceria com instituições filantrópicas, até a retomada da democracia após o
Regime Militar com a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988 (Brasil, 1988) que já
previa a Educação Infantil como etapa da Educação Básica até a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN), Lei nº. 9.394/96 que normatiza os níveis de ensino (Brasil, 1996).
Os avanços em termos de Políticas Públicas trouxeram também para a escola de Educação
Infantil a reformulação estrutural exigindo a construção de um Projeto Político Pedagógico
(PPP) e um Regimento Escolar para nortear o trabalho da equipe escolar nos princípios da
gestão democrática.

Para a sociedade, comunidade e famílias, no entanto, as mudanças a respeito do que


esperar de um trabalho desenvolvido na Educação Infantil devem ser construídas
gradualmente, pois ainda não alcançou o pleno reconhecimento da sociedade no que diz
respeito à valorização como etapa da Educação Básica que deve ser ofertada em espaços
adequados e atendida por profissionais habilitados de preferência em instituições públicas.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Desta forma, a busca por reconhecimento do trabalho foi a motivação de uma escola de
educação infantil da região central do Rio Grande do Sul que iniciou o processo de certificação
à Rede de Escolas Associadas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO), proposta pela secretaria de educação do município a todas as escolas da
rede municipal de ensino. O programa que é vinculado à UNESCO foi apresentado como um
“braço da instituição nas escolas”, com o objetivo de reconhecer o trabalho desenvolvido pelo
professor em sala de aula, dar visibilidade aos projetos desenvolvidos nas escolas e facilitar a
busca por parecerias. O selo internacional do PEA-UNESCO é concedido às escolas que
desenvolvem um trabalho voltado aos quatro temas da UNESCO: Paz e Direitos do Homem;
Educação para a Sustentabilidade; Aprendizado Intercultural; Problemas Mundiais e o Papel das
Nações Unidas, aliado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A Rede PEA-UNESCO é
um programa que tem como foco a atuação do professor e os projetos desenvolvidos nas
escolas com as temáticas da UNESCO, é necessário muito estudo por parte dos docentes e um
trabalho mais aprofundado do coordenador pedagógico que tem a função de articular os
projetos da escola, os interesses e necessidades das crianças, o Projeto Político Pedagógico da
escola e a estas temáticas do programa para a elaboração do relatório e planejamento dos
projetos anuais.

Por isso este artigo traz os resultados obtidos a partir do estudo da influência do Programa
Escolas Associadas UNESCO na gestão de uma escola da rede pública municipal de Educação
Infantil de Santa Maria/RS. Os dados obtidos foram organizados a partir da análise de conteúdo
(Bardin, 2016) sendo apresentadas a análise de correspondências eletrônicas do programa e a
contribuição das professoras através de questionários e entrevistas.

A atuação do Programa e o contexto da pesquisa


A Rede de Escolas Associadas UNESCO foi criada em 1953 e atua em mais de 181 países
membros das Nações Unidas sendo considerado o braço da UNESCO nas escolas de educação
básica (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2019). O
programa ainda é pouco conhecido para algumas regiões do país, como no caso da região

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

central do Rio Grande do Sul em que a REDE-PEA só chegou em 2017 com a certificação da
primeira escola pertencente à Rede Pública Municipal de Ensino de Santa Maria.

O Objetivo do programa é levar às escolas os temas que contemplam os valores da


UNESCO, além de propor o engajamento das escolas com a agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável principalmente a ODS 4, a educação para a cidadania Global, para
que os jovens desenvolvam habilidades que os levem a enfrentar os desafios globais e sejam
proativos nas causas para a paz mundial. Uma escola associada também deve desenvolver uma
abordagem escolar integral que torne a escola um espaço de aprendizagem sustentável. Além
disso, as escolas devem abordar outras temáticas da UNESCO como anos internacionais e dias
internacionais instituídos pela ONU (Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura, 2019).

Este programa da UNESCO, direcionado às escolas, ainda é uma abordagem pouco


conhecida nos sistemas de ensino e pouco abordada em publicações acadêmicas, por isso este
artigo traz o resultado da pesquisa intitulada “O programa rede de escolas associadas da
UNESCO e suas implicações na gestão administrativa e pedagógica da escola: estudo de caso
em uma escola de Educação Infantil da rede municipal de Santa Maria/RS.

A primeira escola associada da cidade de Santa Maria também é a primeira associada da


Região Central do Rio Grande do Sul, a instituição está entre as 22 escolas de Educação Infantil
do Município. A proposta metodológica se baseia na estrutura de Projetos para organização dos
conteúdos, partindo do interesse das crianças e suas necessidades, permitindo flexibilidade,
reflexão e mudança de direção. Portanto, a escola apresenta sua proposta de trabalho voltada
à criança e às diferentes infâncias se fundamentando em autores como Redin (2012) e Barbosa
e Horn (2008). A escola foi certificada à Rede PEA-UNESCO em 2017 depois de voluntariamente
iniciar o processo de certificação através do envio de um relatório sobre os projetos da escola
no formato do Programa.

A partir dos dados obtidos nas correspondências eletrônicas, foi constatada a


obrigatoriedade por parte da escola associada de manter seu foco nos temas do programa, além

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

de desenvolver propostas que contemplem dias internacionais (pelo menos dois do calendário
da ONU/UNESCO) e os anos internacionais. Esta associação traz à escola o desafio de adaptar
suas intenções educativas aos objetivos da UNESCO. Em relação à aprendizagem intercultural,
educação para a sustentabilidade, cultura da paz e prioridades da ONU, é preciso estar a par
dos principais assuntos discutidos pela organização, os demais temas já sendo demandas
recorrentes nas escolas, pois são assuntos atuais e, fazem parte do dia a dia nas cidades. Os
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos como compromisso mundial já estão
incluídos em documentos como a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017) e servem de
orientação também a documentos orientadores curriculares de estados e municípios. Tais
documentos já vêm carregados dos ideais de competência, amplamente difundidos por
organizações internacionais.

Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e


procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores
para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e
do mundo do trabalho.
Ao definir essas competências, a BNCC reconhece que a “educação deve afirmar valores
e estimular ações que contribuam para a transformação da sociedade, tornando-a mais
humana, socialmente justa e, também, voltada para a preservação da natureza” (BRASIL,
2013), mostrando-se também alinhada à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas
(ONU) (Brasil, 2017, p. 08).

A UNESCO, desde que se estabeleceu no Brasil, vem trabalhando ativamente junto ao


Ministério da Educação sendo uma das principais organizações produtoras de documentos e
relatórios que orientam políticas públicas no Brasil, influência justificada pelo domínio técnico
que dispõe, juntamente com as outras organizações. Além disso, sua participação vem deixando
suas marcas nos rumos das políticas públicas no Brasil ao mesmo tempo que reforça os ideais
capitalistas na educação. A sua influência agora estende às escolas os ideais da organização com
o programa Rede de Escolas Associadas da UNESCO que, de acordo com as considerações de
Santos (2014), trazem orientações que são aceitas por escolas públicas e particulares na forma
de diretrizes. É uma organização que se apoia em concepções capitalistas e que acabam
influenciando diretamente as políticas públicas.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Afirma-se que ela cumpre um papel de intelectual orgânico ao contribuir de forma


significativa para conformar as classes trabalhadoras aos valores requeridos pelo sistema
capitalista no seu atual estágio ao compor o bloco histórico dominante (Santos, 2014, p.
10).

Os ideais parecem nobres, mas desconsideram a realidade diferenciada entre escolas,


talvez as necessidades por outras temáticas advindas da realidade mais próxima às
comunidades das quais fazem parte sejam mais relevantes às escolas e nem sempre estas
conseguirão contemplar os temas propostos pela Rede PEA-UNESCO. O programa atende
então a uma necessidade exclusiva de manter os temas da UNESCO no centro das intenções
educacionais. No fazer pedagógico das escolas de Educação Infantil, permeadas pelas
interações e brincadeiras e que se comprometem em inserir temas tão complexos, é possível
que alguns dos temas que envolvam os Dias, Semanas, Anos e Décadas internacionais estejam
fora do contexto daquela comunidade, pois as relações nesta etapa devem contemplar as
experiências advindas do dia a dia das crianças. Para Oliveira et al. (2019) a criança é um sujeito
que expressa a cultura infantil que deve ser conhecida em seus modos de produção e expressão,
evidenciando a importância de planejar situações capazes de desafiá-las, ajudando-as a avançar
na aprendizagem e desenvolver seus potenciais.

Além disso Santos (2014) também faz uma crítica a respeito da influência da UNESCO que
traz um discurso justificador e conformista em relação ao capitalismo e sua forma de
dominação, trazendo em temas como a “paz” a ideia de que é preciso aceitar a dominação
evitando os conflitos. É uma maneira de propagar os ideais de uma sociedade dividida por
classes e, infiltrando-se nas escolas, adquire então o status de valores morais. É uma importante
reflexão já que a intenção da Rede PEA-UNESCO é expandir sua atuação nas escolas públicas,
estas consideradas até então campo de formação crítica e liberdade de expressão, mas que vem
sofrendo com ataques em torno da liberdade de expressão política e ideológica provocados por
governos conservadores.

Já as comemorações do calendário da ONU trabalhadas na escola de educação infantil


causam confusão, despertando nos professores a necessidade de desenvolver propostas que

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

não condizem com os objetivos da Educação Infantil. A introdução dos objetivos da Rede PEA-
UNESCO nas atividades curriculares das escolas de Educação Infantil deve levar em conta que
currículo, para esta etapa, admite uma definição própria, diferente da apresentada nas outras
etapas:

O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que buscam


articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem
parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico. Tais práticas são
efetivadas por meio de relações sociais que as crianças desde bem pequenas estabelecem
com os professores e as outras crianças, e afetam a construção de suas identidades
(Brasil, 2013, p. 86).

É preciso que a escola não perca a identidade para se adequar às propostas da UNESCO
adotando práticas que desconsiderem o protagonismo da criança, por isso é preciso que a Rede
PEA-UNESCO apresente de maneira mais clara sua proposta, definindo quais seus critérios de
escolha ao conceder a uma escola de educação infantil a certificação no programa. A inserção
dos temas do programa PEA-UNESCO precisa partir da realidade da comunidade à qual a escola
faz parte, agregando à proposta Pedagógica desta, sendo constantemente avaliado o impacto e
a relevância para esta comunidade.

Atuação na escola de Educação Infantil


A participação das professoras iniciou com o questionário, esta etapa foi realizada no mês
de março e abril de 2020 e contou com a participação de sete professoras e a diretora da escola.
A partir da análise desses questionários, iniciaram-se as entrevistas no período de junho a
agosto que servem como complemento aos assuntos abordados no questionário, apenas com a
participação de cinco professoras, pois estas participaram do processo de certificação da escola
e aceitaram fazer parte desta segunda etapa. A pesquisa também contou com a participação da
representante da secretaria de Educação e ponto focal do programa em Santa Maria. A análise
dos questionários e das entrevistas deu origem às seguintes categorias: Qualidade na Educação
Infantil e o Programa PEA-UNESCO; Identidade da professora de Educação Infantil; O

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

fortalecimento da Educação para a Sustentabilidade e a Rede PEA-UNESCO: implicações na


gestão administrativa e pedagógica.

Qualidade na Educação Infantil e o programa PEA-UNESCO


O debate acerca da qualidade na educação é complexo, pois não há consenso ou um único
discurso a respeito de qualidade. Dourado, Oliveira e Santos (2007) trazem uma reflexão sobre
qualidade que vem de discussões realizadas no Fórum das Américas. Apresentando os principais
fatores mais difundidos entre os pesquisadores e organizações internacionais sendo de que a
qualidade da Educação é definida na relação entre os recursos materiais e humanos, na relação
que ocorre na escola e na sala de aula, ou seja, nos processos de ensino-aprendizagem, no
currículo, nas expectativas de aprendizagem em relação às crianças, etc.

Os autores ainda trazem a visão da UNESCO/Orealc que definem as discussões a respeito


de qualidade como “[...] um fenômeno complexo e multifacetário a ser compreendido por meio
de diversas perspectivas” (Dourado; Oliveira; Santos, 2007, p. 12). A qualidade é entendida, nos
documentos da UNESCO como fator de promoção da equidade, destacando o impacto nas
experiências educativas dos estudantes e da promoção de igualdade de oportunidades
(Dourado; Oliveira; Santos, 2007).

A visão da Unesco acerca da qualidade na educação infantil adquire outro discurso, vista
como política compensatória intersetorial, como é o caso da agenda PRELAC, que apresenta à
educação infantil programas alternativos que desconsideram a necessidade de padrões
mínimos de qualidade, focando em alternativas de baixo custo e diferenciando nos seus
documentos o atendimento educacional as crianças de países ricos e países subdesenvolvidos,
atribuindo ao primeiro a educação infantil e ao segundo a expressão desenvolvimento infantil,
não sendo apenas uma diferenciação de nomes, mas de concepções que se refletem em ações.

Segundo Rosemberg (2002, p. 47), este termo contribui para burlar a

[...] regulamentação educacional que preconiza padrões institucionais e profissionais


para a EI: formação profissional prévia dos professores, respeito à legislação trabalhista,

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

proporção adulto-criança; instalações e equipamentos. Ao escapar da regulamentação o


custo do projeto cai, evidentemente, em detrimento da qualidade.

Essas orientações travaram por muito tempo as atenções dadas à educação infantil no
que diz respeito às políticas públicas tendo ocasionado recuos quanto à qualidade nessa etapa
da educação básica. No entanto, na contramão das iniciativas compensatórias, o Brasil teve
avanços significativos como a exigência legal partindo da sua inclusão na primeira etapa da
educação básica, o que de certa forma blindou essa etapa garantindo-lhe os padrões mínimos
de qualidade como pode ser visto no documento Indicadores de qualidade na Educação infantil
lançado em 2009 pelo Ministério da Educação que serve de instrumento para avaliar a qualidade
de instituições de Educação Infantil com a participação de toda a comunidade escolar. O
documento propõe uma autoavaliação definida pelas dimensões: planejamento institucional;
multiplicidade de experiências e linguagens; interações; promoção da saúde; espaços, materiais
e mobiliários; formação e condições de trabalho de professores e demais profissionais;
cooperação e troca com as famílias e participação na rede de proteção.

Esses indicadores orientam as escolas na sua autoavaliação e possibilitam a reflexão a


respeito da qualidade nas suas diferentes dimensões, respeitando as peculiaridades das regiões
sendo flexível na sua elaboração.

Especificamente sobre Educação Infantil, o tema qualidade recebe destaque também por
Zabalza (1998) que traz a reflexão a partir da experiência da reforma educacional da Espanha e
aponta três processos de melhoria no sistema educacional: a criação de um projeto formativo
integrado, a conquista da autonomia institucional das escolas, o desenvolvimento profissional
dos professores. No âmbito das escolas os desafios são: o desenvolvimento institucional da
escola infantil; um novo conceito de criança pequena, a organização do currículo da educação
infantil a partir desses dois pontos, e a revitalização profissional dos professores.

Esses desafios foram propostos pelo autor a partir da necessidade de reformulação de


políticas públicas do sistema educacional Espanhol, mas também serviram para outros
contextos pensarem suas políticas de atendimento educacional às crianças. As mudanças são

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

pensadas a nível estrutural do sistema educativo, com mudança na idade de escolaridade


obrigatória, novas estruturas das etapas formativas, novas estruturas curriculares; no nível de
funcionamento das escolas com novos órgãos de gestão das escolas, sistema eletivo de direção,
documentos que definem a identidade formativa e organizacional de cada escola, melhoria nos
equipamentos pessoais e técnicos para realizar tarefas de orientação e supervisão; no nível das
salas de aula novas argumentações em torno de bases psicológicas e metodológicas que
orientem o trabalho do professor, novas diretrizes e conteúdos com eixos formativos
transversais.

Nessa perspectiva é importante analisar cada realidade com suas peculiaridades, de forma
que, as declarações das professoras da escola pesquisada revelam uma realidade própria que
traz um pouco dos problemas encontrados no dia a dia da escola, como consta em questões
que trazem à tona a dificuldade de manter os projetos da escola em relação ao financiamento,
a formação dos professores, a atuação da comunidade e apoio dos diferentes órgãos que
formam a rede de apoio à infância. A atuação do Programa PEA-UNESCO só evidencia a
necessidade de mais investimento para apoiar os projetos da escola que não consegue investir
sozinha em uma educação para o desenvolvimento sustentável.

Expectativas quanto ao incentivo financeiro


O relato das professoras revela que o trabalho com projetos vem se aprimorando com o
programa PEA-UNESCO, o que exige adequação dos espaços, compra de materiais, adequação
das propostas pedagógicas e investimento financeiro. As professoras relatam as principais
dificuldades em manter os projetos, um dos aspectos muito aprofundados por elas sendo as
dificuldades de realizar os projetos que envolvem a educação para o desenvolvimento
sustentável, a falta de apoio financeiro trava muitas das ideias e do prosseguimento de projetos,
o que seria amenizado com a pareceria entre as escolas e entre outros órgãos. A questão do
financiamento é um ponto bem discutido no programa, pois é relatado também pela direção da
escola que coloca as dificuldades de manter os projetos tendo que utilizar os recursos da escola.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A escola é contemplada com recursos advindos dos programas do Governo Federal como
o PDDE o qual abrange, no caso dessa escola de educação infantil, o PDDE Básico destinado ao
custeio (compra de material de consumo como material escolar, itens de papelaria) e capital
(compra de equipamentos para a escola que se convertem em patrimônio), também com a verba
para educação conectada que transfere valores especificamente à conectividade da escola
(contratação de internet e equipamentos para conexão), também conta com o PRODAE, que
serve como auxilio à compra de materiais para a escola (material escolar, material de limpeza,
equipamentos e serviços). Essas verbas, destinadas a ajudar a escola, foram um grande avanço
a partir da criação do FUNDEB em 2006 e representam a principal fonte de recursos que
mantém o funcionamento das escolas de educação infantil no município de Santa Maria, no
entanto, atualmente sendo insuficiente para todos os gastos realizados.

Segundo Abuchaim (2018, p. 34), trazendo as contribuições de Cara (2012):

[...] mesmo com a inclusão no Fundeb, a educação infantil foi a etapa que menos avançou
em termos de investimento se comparada às outras etapas da educação básica, entre
2000 e 2010. O percentual do PIB investido na educação infantil em todos esses anos é o
menor quando comparado aos percentuais investidos no ensino fundamental, superior e
médio. Paradoxalmente, a educação infantil seria a etapa que mais precisaria de
investimento, uma vez que é a mais onerosa de todas, pois para atingir padrões mínimos
de qualidade é necessário o trabalho com grupos muito pequenos e oferecimento de
atendimento em tempo integral.

As condições de manutenção e conservação das escolas e desenvolvimento educacional


dependem desses investimentos que não dão conta de toda a demanda de uma escola de
Educação Infantil. Os investimentos nessa etapa estão aquém de suas necessidades levando as
equipes gestoras das escolas e professoras a buscar outras fontes de recursos e realizar eventos
para arrecadar valores, os quais são destinados a financiar despesas com projetos que envolvem
a adequação da escola à educação para a sustentabilidade.

O propósito do Programa não é dar apoio financeiro direto, mas sim, criar vínculos de
parceria entre Rede PEA-UNESCO e secretarias e entre escolas públicas e privadas, além de

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

empresas que desenvolvem ferramentas de ensino, dentre outras. A coordenação do programa


ainda coloca que as parcerias não são ações isoladas, mas uma cultura. O que o programa faz é
abrir espaço ao surgimento de novas parcerias. “Pode ser o investimento individual de uma
escola, pode ser uma empresa interessada em apoiar o Encontro Nacional, sempre a
contrapartida é democratizar o acesso ao conhecimento, aos recursos, à formação”
(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2018, p. 51). Essa
proposta evidencia a intenção do programa de levar as escolas a estabelecer parcerias com
empresas e a iniciativa privada, parceria esta que gera dúvidas quanto à neutralidade e sugere
a interferência dos ideais capitalistas na educação pública.

A UNESCO tradicionalmente se envolve com a disseminação de ideias abstendo-se de


ofertar investimento financeiro, como traz Rosemberg (2002). No texto que trata sobre a
influência desta e outras organizações internacionais nas políticas para a educação infantil, a
autora discute a visão a respeito da UNESCO ao relegar aos países “subdesenvolvidos” o molde
de uma Educação Infantil em que serve a improvisação, o material sucateado e espaços
inadequados. Mesmo com o PEA-UNESCO, a necessidade de investimento manifestada pela
escola evidencia o descaso do programa quanto à adequação às práticas da educação para a
sustentabilidade e a precariedade de investimento público.

Além disso quando se trata de investimento na educação infantil, a focalização é o


direcionamento mais adotado pela UNESCO. Campos (2013) ressalta que a atuação dessa
organização na propagação de ideais de atendimento voltados ao combate à pobreza é de baixo
custo de investimento, e voltado a um determinado grupo, mostrando que para essa
organização o investimento em educação infantil não é prioridade.

Apesar de ser clara a necessidade de apoio financeiro à realização dos projetos, este é um
fator que, de acordo com o programa, só pode ser resolvido com a busca por parcerias, além
disso, esse desafio acaba se estendendo às escolas associadas que, por conta, devem realizar
esta tarefa.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Expectativas quanto à formação e troca de experiências entre as escolas associadas


ao programa
Além do financiamento de projetos, as professoras manifestam que a Rede PEA-UNESCO
também pode contribuir mais com formação específica nas temáticas do programa, oferecida
pela instituição ou apoiado por esta, com foco na socialização das experiências e em uma
formação mais local, entre as escolas da região, o que facilitaria a participação de todas as
professoras.

A troca de experiências entre escolas associadas é citada pelas professoras como uma
forma de atualização e aperfeiçoamento, se referem à ideia de que o processo formativo deve
ser contextualizado com as problemáticas dos professores, em que o conceito de rede de
aprendizagem colaborativa também tenha reflexo na formação continuada dos docentes.

Imbernón (2010, p. 43) propõe dentre várias alternativas a

Criação de estruturas organizativas, redes, que permitam um processo de comunicação


entre indivíduos iguais e troca de experiências, para possibilitar a atualização em todos
os campos de intervenção educativa e aumentar a comunicação entre os professores.
Objetivo: refletir sobre a prática educacional mediante a análise da realidade do ensino,
da leitura pausada, da troca de experiências, dos sentimentos sobre o que está
acontecendo, da observação mútua, dos relatos da vida profissional, dos acertos e erros,
etc. Estruturas que tornem possível a compreensão, a interpretação e a intervenção
sobre a prática.

Nesse caso, a implementação da proposta da Rede PEA-UNESCO implica na necessidade


de formação específica voltada às temáticas do programa, mas que, além da participação de
outros profissionais, o foco esteja nas experiências dos professores da rede com a intenção de
articular a prática e a teoria, sem fechar esta proposta a participações externas às escolas.

Quanto à autonomia formativa das escolas, esta é essencial para reforçar a sua própria
identidade. Segundo Zabalza (1998) esta libera a escola dos subsídios desenvolvidos em relação
aos níveis posteriores, além disso, numa perspectiva quase que contraditória, reforça os laços

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

de conexão entre a escola infantil e o meio ambiente e entre a escola infantil e o Ensino
Fundamental. A visão trazida por Zabalza (1998) no contexto de uma reforma educacional é
possível com o fortalecimento da identidade dos professores de Educação Infantil, coerência
no trabalho que pode ser alcançada através de formação continuada, compartilhamento com
os outros níveis de ensino, sem perder as especificidades próprias da primeira etapa da
educação básica. Esse desafio adquire mais um fator quando se trata de uma escola associada
que busca adequar-se à educação para a sustentabilidade em consonância com os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável, por isso a busca de fortalecer-se através de uma rede de
educadores que possibilite a troca de experiências.

A busca por visibilidade e valorização do trabalho


A visibilidade do trabalho foi um dos pontos mais comentados nos questionários e
entrevistas, trazidos pelas professoras como um diferencial proporcionado pelo programa.
Apoiadas na visibilidade trazida pelo nome da UNESCO, o grupo de professoras mostra o
sentimento de conquista e de valorização, como pode ser percebido em suas falas ao serem
indagadas sobre o diferencial de ser certificada no programa, além de uma identificação com
seus propósitos. É apontada pelo grupo a busca por reconhecimento da comunidade ao
relatarem que a certificação trouxe maior visibilidade à escola, credibilidade em relação ao
trabalho desenvolvido, valorização ao trabalho do professor. Além disso, o movimento criado
em relação à comunidade escolar e sua maior participação nos projetos da escola, colaboração
das famílias e conscientização em relação aos temas enfatizados pela UNESCO proporcionaram
uma maior proximidade das famílias com a escola. A diretora da escola, quando questionada
sobre o que o programa trouxe de mais importante para o trabalho pedagógico e para a
comunidade, ressalta que quando a comunidade participa das ações da escola e é incluída nas
propostas desta, o diálogo sobre as especificidades da Educação Infantil se torna mais
frequente e de melhor entendimento por parte das famílias.

No entanto, essa visibilidade acaba se limitando ao local, mas para a Rede PEA-UNESCO
este fator é traduzido em números ao programa. Na fala da diretora da escola, quando indagada

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

sobre a importância do programa para a rede Municipal e se este conseguiu integrar as escolas
da rede, fica evidente a pouca compreensão que a coordenação do programa tem sobre as
escolas de Educação Infantil. De acordo com a diretora da escola, há uma fragilidade na relação
que se estabelece entre o programa e a escola, evidenciando a necessidade de diálogo mais
próximo com a coordenação do programa para as necessidades de uma escola de Educação
infantil. Além disso o incentivo da rede municipal de ensino na associação das escolas em um
programa como este revela a necessidade da rede municipal de buscar também essa
visibilidade.

Comumente comparada à etapa seguinte, a Educação Infantil possui espaços e tempos


educacionais diferentes do ensino fundamental, pouco compreendido ainda na sua dinâmica
por aqueles que não têm conhecimento sobre as peculiaridades dessa etapa. Moruzzi, Silva e
Barros (2018) trazem as contribuições de Rocha (2018) sobre as diferenças entre os espaços
escolares voltados ao ensino fundamental e a educação infantil. Para Rocha (2001 apud Moruzzi;
Silva; Barros, 2018, p. 186):

Os espaços escolares destinados ao ensino fundamental se caracterizam por


espaço de domínio dos conhecimentos historicamente construídos, e a
educação infantil e seus espaços espaço se caracterizam por sua
complementaridade ao espaço familiar. A escola tem o “aluno” e seu objeto de
trabalho é o “ensino” que se dá por meio das “aulas” de múltiplas disciplinas. A
educação infantil, por outro lado, tem a “criança” como sujeito e como objeto de
trabalho as “relações” que se dão por meio de espaços coletivos.

Apesar de fazer parte da primeira etapa da educação básica, a educação infantil não
trabalha com a mesma dinâmica das etapas seguintes, no entanto, para ser compreendida como
tal e ser valorizada, as professoras que trabalham nessa etapa reivindicam espaço de discussão
e diálogo com a sociedade quando se referem a dar visibilidade ao trabalho.

Diante das interpretações já apontadas aqui sobre a concepção da UNESCO a respeito das
instituições voltadas ao atendimento educacional de crianças, não é surpresa que as parcerias
estabelecidas pelo programa desconsiderem a importância de incluir a Educação Infantil em

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

determinadas propostas aproximar-se da coordenação do programa pode ser um caminho para


o diálogo e compreensão a respeito da necessidade de valorizar a Educação Infantil e seus
profissionais.

O fortalecimento da Educação para a Sustentabilidade e a Rede PEA-UNESCO,


implicações na gestão administrativa e pedagógica
Nas últimas décadas as novas demandas mundiais vêm influenciando e direcionando a
educação de caráter formal, novas habilidades são fundamentais para tornar os estudantes e
professores capazes de gestar sua própria aprendizagem. Nessa perspectiva as escolas são um
meio de construção de novos cidadãos capazes de agir e pensar para além dos padrões,
utilizando-se da inteligência geral e situar-se em um plano global, para além das
especializações.

Para Edgar Morin (2011, p. 34):

O global é mais que o contexto, é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo
inter-retroativo ou organizacional. Dessa maneira, uma sociedade é mais que um
contexto: é o todo organizador de que fazemos parte. O planeta Terra é mais do que um
contexto: é o todo ao mesmo tempo organizador e desorganizador de que fazemos parte.
O todo tem qualidades ou propriedades que não são encontradas nas partes, se estas
estiverem isoladas, umas das outras, certas qualidades ou propriedades das partes podem
ser inibidas pelas restrições provenientes do todo.

Portanto, é preciso recompor, unir, superar a fragmentação sem desconsiderar a


multidimensionalidade, entender que as diferentes dimensões humanas e as diferentes
dimensões da sociedade se comunicam e criam um complexo conjunto de saberes que, para
serem compreendidos na sua totalidade, exigem novos aprendizes, capazes de superar as
especializações e contextualizar a aprendizagem.

Quando se trata das escolas de Educação Infantil, o trabalho diferenciado com foco nas
brincadeiras e interações das crianças com um currículo que considera o “ser” e não somente
o “vir a ser” requer pensar o educador como articulador desse processo complexo que contribui

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

na construção da identidade das crianças. Considerar as crianças nos espaços das escolas de
Educação Infantil é considerar também suas experiências externas a esse espaço, construir um
conjunto de práticas que respeitem a individualidade dessas crianças e uma pedagogia voltada
aos pequenos que possibilite a comunicação entre as diferentes dimensões.

Para Barbosa (2006, p. 24), a pedagogia para a infância deve levar em conta que:

[...] é preciso que as pedagogias da educação infantil mantenham uma constante reflexão
acerca do contexto onde são produzidas, isto é, dos temas gerais da cultura
contemporânea, como aqueles relacionados a gênero, cidadania, raça, relações
educativas, com as comunidades, religião, classes sociais, globalização e as que
influenciam de modo incisivo as questões da pedagogia, como a ação educativa e o
currículo, verificando-se os efeitos que tais formas de engendrar e ver o mundo causam
a um certo grupo de seres humanos que se encontram em uma faixa etária específica,
em um determinado tipo de instituição e em um certo contexto.

Aos profissionais da Educação Infantil cabe articular todas essas dimensões às novas
demandas mundiais, uma educação equitativa passa por um planejamento adequado, por um
trabalho conciso e sólido em que a direção das escolas, os professores, funcionários e pais
trabalhem juntos para a harmonia das dimensões que definem o fazer pedagógico para a
infância. A Educação Infantil, alicerçada nos três princípios, éticos, políticos e estéticos, busca
valorizar a autonomia, a responsabilidade, a solidariedade, o respeito ao bem comum, ao meio
ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades, além de assegurar à criança os
direitos de cidadania, o exercício da crítica e o respeito à ordem democrática, valorizando a
sensibilidade, a criatividade e a ludicidade da criança, assim como da diversidade de
manifestações artísticas e culturais (Oliveira et al., 2019).

Sendo assim, muitos são os desafios da escola associada ao Programa, mas as


especificidades dessa etapa podem ser um facilitador do trabalho voltado aos objetivos da Rede
PEA-UNESCO, como pode ser visto nos relatos desta pesquisa.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Organização do trabalho e união do corpo docente


As ações voltadas aos projetos, ajudaram a organizar o trabalho na escola, a unir as
propostas das turmas com os propósitos do programa. O trabalho também passou a ser
pensado pelo grupo e não de forma isolada, todas as turmas trabalhando projetos que envolviam
o tema da sustentabilidade, adotando a mudança de hábito nas escolhas de materiais e nas
compras da escola, dando preferência àqueles que causam menor impacto no meio ambiente,
tornando a aprendizagem mais coerente com os novos hábitos adotados de forma consciente,
fortalecendo a proposta pedagógica da escola.

Há alguns fatores que contribuem para facilitar esse planejamento conjunto entre as
professoras que é consequência de uma gestão organizada para garantir espaços de troca entre
as professoras, o planejamento que é definido também pela LDBEN, Lei nº. 9.394/96 (Brasil,
1996) e no município de Santa Maria na Lei 4695/03.

A legislação estabelece a hora de planejamento do professor, no entanto acaba sendo


tarefa das escolas organizarem esses espaços/tempos para o planejamento que no caso da
escola pesquisada já é uma organização que faz parte da rotina dos docentes e a comunidade,
como já exposto. A necessidade de planejar o trabalho faz parte da valorização do profissional
quando lhe coloca como autor, junto às crianças, do processo de planejamento.

Para Oliveira et al. (2019, p. 314),

O planejamento é ação articuladora da reflexão e de vários fazeres como a seleção, a


organização, a mediação e o monitoramento do conjunto de práticas e interações a que
as crianças serão intencionalmente expostas. É nesse sentido que se pode dizer que ele
é um instrumento de trabalho complexo: ele articula vários outros instrumentos e por
isso é potente para apoiar a atividade profissional do gestor e do professor e, ao mesmo
tempo, colaborar para que eles próprios possam compreender melhor a si mesmo e a
transformar sua ação no mundo. Isso é possível graças à capacidade humana de
representar, o que possibilita à espécie projetar-se no tempo e planejar ações complexas
e especializadas.

166
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O planejar faz parte da rotina dessa escola e facilita as ações voltadas aos projetos, sendo
de extrema importância à qualidade do trabalho desenvolvido, além da coerência com o Projeto
Político Pedagógico, contemplando as necessidades das turmas e definindo as ações conforme
as demandas. A diretora da escola também traz a contribuição do programa para a gestão. Tanto
o programa quanto a organização pedagógica da escola que facilita as reuniões de planejamento
contribuíram para a organização dos projetos e o trabalho em conjunto das professoras. Foi um
fator que agregou em qualidade, uma vez que organizou as ações da escola, que antes eram
isoladas e intensificou as propostas voltadas à sustentabilidade.

As experiências são pré-definidas conforme as necessidades das crianças elas são


protagonistas do processo, pois suas observações, interesses e necessidades são o norte que
determina com o que trabalhar. Na escola da pesquisa, o trabalho com os eixos do PEA-
UNESCO agrega ao currículo valores que são reconhecidos no dia a dia da escola, como já
colocado anteriormente, mas como trabalhar os eixos do programa na proposta do professor
foi uma das questões respondidas pelas professoras e direção da escola.

O trabalho naturalmente engloba os objetivos de desenvolvimento sustentável, os temas


da UNESCO não estão longe das demandas do dia a dia das crianças. Os temas se unem aos
diferentes grupos de crianças e as professoras já têm um olhar voltado para articular a realidade
local aos propósitos dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Os relatos trazem também
a ideia de trabalhar os valores do PEA-UNESCO dentro das propostas dos projetos, tornando o
trabalho diverso e dinâmico, e as experiências são vivenciadas pelas crianças de maneira
integradora.

Segundo Oliveira et al. (2019, p. 42):

O modo de articular essas experiências é o que vai distinguir uma instituição de outra, o
que fará um trabalho singular e adequado para atender uma comunidade específica. O
ambiente educativo cumpre um papel fundamental na integração das experiências
infantis. Ele não se restringe aos espaços físicos e materiais, mas abrange também as
relações interpessoais, a atmosfera afetiva, os valores que se exprimem nas ações e as
experiências educativas promotoras de desenvolvimento humano e que trazem consigo
as regras de tolerância, respeito, responsabilidade e do prazer de estar em grupo. A

167
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

qualidade do ambiente em si pode assegurar muitas das expectativas de aprendizagem


para a Educação Infantil.

Os eixos do programa estão inseridos na proposta da escola de maneira a articular um


currículo que se delimita em torno das experiências das crianças, e a proposta de organização
das experiências em projetos, introduzindo os valores do programa para criar hábitos de
cuidado e respeito com o meio ambiente e as pessoas. O currículo para essa etapa é, então,
enriquecido e adquire um propósito que vai além da sala de aula, mas leva às famílias das
crianças a reflexão acerca de suas atitudes e escolhas em prol do bem de todos. Dessa maneira
a proposta da escola articulada à Rede PEA-UNESCO trabalha a consciência da comunidade
sobre suas ações, torna essa comunidade mais ativa e contribui para a mudança de hábitos e
engajamento das crianças na disseminação de valores fundamentais à vida.

Considerações finais
A partir desta pesquisa conclui-se que a UNESCO traz sua influência à gestão das escolas
com o seu Programa Escolas Associadas que vem atuando para sua expansão em escolas
públicas, sendo estas foco de muito trabalho junto às secretarias de educação de estados e
municípios, o que fica evidente a partir do crescimento das escolas que se associaram nos
últimos anos. Foi possível constatar que a Rede PEA-UNESCO vem ganhando força no Brasil,
sua atuação nas escolas tem aumentado juntamente com sua influência e seus ideais, no
entanto ainda é muito distante a sua participação direta nas escolas, pois esta se limita a atuar
com orientações e diretrizes, a exigência dos relatórios e pré-projetos que são o principal meio
de manter a certificação.

A escola pesquisada mostra que a adesão ao programa trouxe mudanças significativas no


engajamento das professoras em relação aos projetos voltados ao tema da sustentabilidade, que
criou na escola um clima de união em torno das temáticas do programa, favorecendo também
a aproximação das famílias em relação aos objetivos dos projetos elaborados pela escola. Os
temas dos projetos foram adquirindo status de valores, sendo incorporados ao dia a dia da
instituição. A organização da escola também facilitou este trabalho, uma vez que os professores

168
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

já contavam com espaços e tempos de planejamento na escola. Entendendo a escola como


espaço democrático, a gestão conduziu os ideais do programa de maneira a fortalecer a
proposta pedagógica e as ações em torno da educação para a sustentabilidade.

Outro ponto importante diz respeito à adequação dos espaços da escola em torno dos
objetivos da educação para a sustentabilidade saindo da restrição de trabalhos isolados e
levando a escola a adotar hábitos mais coerentes com os seus objetivos, unindo as professoras
e estendendo essa reflexão à comunidade. Os temas foram abordados em eventos da escola
com a presença da comunidade que, participando ativamente, pode entender um pouco mais
do trabalho desta escola de Educação Infantil e como acontecem as propostas pedagógicas
neste espaço.

No entanto, muitos problemas se tornaram mais evidentes com a certificação como a


necessidade de financiamento específico para os projetos, pois há pouco recurso na escola para
adequá-la e torná-la um espaço para vivenciar a sustentabilidade. As parcerias sugeridas pelo
programa para facilitar as ações em torno dos ideais do programa não acontecem. As parcerias
precisam ser estabelecidas na perspectiva de troca de experiências e extensão de boas práticas.

Para as professoras e gestora da escola também é importante que as escolas de Educação


Infantil recebam uma atenção maior por parte da coordenação do programa, pois pouca
atenção é dada a estas quando se trata de disponibilizar materiais, ou ser incluída em ações do
próprio programa, de acordo com as necessidades desta etapa da educação. O sentimento de
não ser valorizada dentro da Rede PEA-UNESCO, como nesta escola de Educação Infantil, mais
uma vez evidencia a necessidade de diálogo mais próximo entre coordenação do programa e
escolas.

O Programa Escolas Associadas UNESCO influenciou na gestão administrativa e


pedagógica da escola, uma vez que trouxe organização aos projetos e uniu o grupo de
professoras em torno dos propósitos do programa, o que, por consequência, expandiu as ações
para a comunidade, sendo incentivadora na mudança de hábito da comunidade escolar para se
adequar aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. No entanto, deixa muitas lacunas em

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

relação a sua proposta, por isso a necessidade de pensar estratégias de diálogo entre a Rede
PEA-UNESCO no município que realmente consolide a ideia de rede de educadores e traga um
espaço de crítica e reflexão em torno deste programa.

Referências
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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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ZABALZA, Miguel A. Qualidade em Educação Infantil. Tradução: Beatriz Afonso Neves. Porto Alegre: Artmed, 1998.

171
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Sueli Salva – EMEF Sergio Lopes –


Santa Maria – RS

Foto: Marcia Fernanda Hech – EMEI


Eufrázia Pengo Lorensi – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A captura do que pode o corpo da criança:


práticas de violências imperceptíveis
Simone Freitas da Silva Gallina

Quero imaginar uma instituição educativa mais atenta à singularidade de cada estudante
que à preservação da norma. Uma escola microrrevolucionária, onde seja possível
potencializar uma multiplicidade de processos de subjetivação singular (Preciado, 2020, p.
199).

Vida que ninguém vê: práticas de invisibilizar o outro


O livro “A vida que ninguém vê” de Eliane Brum (2006) apresenta várias crônicas que além
da interessante criação literária, destaca-se a articulação do título com a narrativa dos
acontecimentos das vidas cotidianas dos personagens - nem um pouco fictícios-, vidas que são
da ordem do imperceptível, perante as relações de apagamento do outro, de quem ninguém vê.
Eliane Brum me inquieta com essa escrita. É uma inquietação que coloca à espreita a
necessidade de experimentar modos de perceber o que muitas vezes no cotidiano tem
representação de normalidade.

A vida que ninguém vê se transforma na vida que ninguém percebe, principalmente à


medida que acontece uma interdição que silencia e oprime, isso acontece todos os dias e à luz
do dia.

Nas operações de normalização – que implicam tanto trazer os desviantes para a área da
normalidade, quanto naturalizar a presença de tais desviantes no contexto social onde
circulam - devem ser minimizadas certas marcas, certos traços e certos impedimentos
de distintas ordens. Para isso, vê-se a criação, por parte do Estado, de estratégias
políticas que visam à normalização das irregularidades presentes na população (Lopes,
2009, p. 160).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Narrar cenas do cotidiano sobre como acontece algo que aparentemente é sem sentido,
parece ser necessário para entendermos como os clichês que operam os preconceitos e
discriminações, amparados pela lógica da norma como marcador identitário, constituem as
práticas perversas nos contextos e nas instituições.

Cena do cotidiano: Meu cabelo, minha existência


Poderia ser um dia sem sol, dado que as estações do ano estão incomuns - em meio a
tantas devastações da natureza -, o outono pouco tem deixado as folhas caídas pelo chão, o
inverno, com sua constante umidade e poucos dias de frio intenso, torna incerta a aparição do
sol. Contudo, mesmo que lentamente, naquele dia, o sol tenha surgido entre os morros para
tornar ainda mais interessante o encontro com as crianças e suas professoras -, um encontro
pedagógico, planejado para o desenvolvimento de práticas educativas no contexto da
universidade, mais especificamente na unidade do Centro de Educação-UFSM. Acontecia ali
um desenho de possibilidades de experimentar algo próprio do cotidiano e contexto da
educação infantil, para além dos muros da escola.

Com uma multidão de crianças - devir, novidade -, como afirma Deleuze: uma multidão
que se conecta com a singularidade e a diferença, não tem relação com um número de crianças.
Entravam em cena muitas expectativas quanto à tarde de experimentações pedagógicas com
as crianças e seus devires infância. Elas vibravam com a intensidade daquilo que lhes tocava
mediante a experiência. Em meio às experimentações, há que se perceber as formas pelas quais
a normatividade identitária binária insiste e persiste.

Eis, que algo se desvela, em meio a insistente fala da professora: “ele não é uma menina”!
Essa expressão foi dita algumas vezes durante a tarde, nos momentos em que a criança estava
interagindo com as pessoas à sua volta. Uma expressão traduzida também em gestos de menção
à parte do corpo da criança que poderia “confundir” quem olhava como sendo um corpo de
menina e não de menino.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O corpo é esse entrecruzamento do visível e do invisível, do dentro e do fora, do que se


toca e do que é tocado. Ele não é uma coisa, nem uma ideia, mas o que faz existir uma
coisa e uma ideia para nós. O corpo é essa espiral, essa circulação, esse entrelaçamento,
a dobra de meu interior e de meu exterior, entre o mundo e eu, a visibilidade e a
opacidade [...] (Kuniichl, 2014, p. 53-54).

Penso que a professora foi capturada pela ideia da necessidade de ser uma porta-voz em
defesa da norma binária. Ela demonstra que, apesar de a criança e sua família e/ou responsável
lidarem com o padrão estabelecido, ou seja, de como deve ser um menino e uma menina, o mais
importante é a defesa de sua crença do que seja adequado: ‘meninos devem usar cabelos
curtos’.

Produção de silenciamentos e opressões

O corpo pode significar qualquer coisa, ao constituir signos, gestos, mímicas com todas
as suas movências. Mas a realidade dada através do corpo rompe com a significação. O
corpo é essa ruptura inqualificável. Ele é esse estranho começo e recomeço que pode
colocar em questão um pouco de tudo, o pensamento, a narração, a significação, a
história: ele introduz uma catástrofe no tempo que flui. O corpo como ruptura implica
um aspecto partido do tempo, da história (Kuniichl, 2014, p. 51).

Os vínculos da família e da escola são tecidos finamente em cada gesto que educa,
segundo o que seja considerado parte dos princípios da norma. A criança, mesmo antes de
nascer, tem traçadas linhas as quais a sua vida deve seguir trilhando. Seguir trilhando segundo
o padrão biológico de seu corpo, sua suposta essência biológica de gênero, segundo a
representação do ser homem e ser mulher na cultura contemporânea. Algo da ordem de um
protótipo de vida a ser empreendida mediante a “cartilha” de gênero e, consequentemente, de
uma sexualidade apropriada.

Entre tantos preceitos do patriarcado estão aqueles que estabelecem para as instituições,
no caso a família e a escola, os dispositivos próprios das práticas discursivas sobre as quais se
estruturam e se definem os estereótipos que, não só possibilitam as discriminações,
fortalecendo os preconceitos identitários, mas tornam possível as violências e as opressões em

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

relação às vidas das crianças e suas infâncias. Dispositivos que, segundo Michel Foucault,
constitui-se em um

[...] conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,


organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o
não dito são os elementos do dispositivo (Foucault, 1979, p. 244).

Enfim, um dispositivo pensado como uma “[...] rede que se pode estabelecer entre estes
elementos” (Foucault, 1979, p. 244).

Paul Preciado (2020) em seus escritos, lembra que a negação da sua autodeterminação de
gênero e sexual marcou a sua infância e sua adolescência com circunstâncias de violência.
Escreve sobre a impossibilidade de a criança “diferente” ter seu direito de ser livre. Tristemente,
Preciado constata que seus pais “[...] operaram virtuosamente como fiadores domésticos da
ordem heterossexual” (Preciado, 2020, p. 70). No entanto, Preciado (2020, p. 71) reconhece que
assumir esse lugar de fiadores domésticos da ordem heterossexual, impõe aos pais a saga de negar
a si mesmos “[...] o direito de ser seus pais”.

Desse modo, é preciso considerar que muitas vezes a escolha de negar o direito à
autodeterminação de gênero e sexual das crianças tem relação com a mesma prática, qual seja,
assumir-se: fiador da ordem heterossexual.

[...] o apagamento da sexualidade na escola é somente possível por meio da invisibilidade


da sexualidade heteronormativa. O corpo escancaradamente lésbico, gay ou bissexual é
problemático, porque ele torna o sexo e a sexualidade visíveis em um espaço em que é
essencial que ambos permaneçam escondidos. As exigências de uma heterossexualidade
invisível agem coercitivamente sobre todos os corpos na escola e particularmente, sobre
aqueles para quem a performance da heterossexualidade é problemática (Paechter, 2009,
p. 127).

O Estado, com sua política de controle dos corpos, tem nas instituições família e escola
suas aliadas para reproduzir a norma como forma exclusiva de vida. Tomando deste modo as

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

representações de identidade de raça, gênero, sexualidade e classe como os principais


marcadores para as violências. Entre elas encontramos as violências que se apropriam dos
discursos para articular práticas contra os corpos “inapropriados”.

Depois do reconhecimento, arduamente conquistado, de que o gênero, a raça e a classe


são social e historicamente constituídos, esses elementos não podem mais formar a base
de uma unidade ‘essencial’, [...] A consciência de classe, de raça ou de gênero é uma
conquista que nos foi imposta pela terrível experiência histórica das realidades sociais
contraditórias do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado (Haraway, 2019, p. 47).

Essa imposição social nos remete para uma questão importante, a saber, em que medida
a criança tem direito ao seu corpo, quando ele se opõe à imagem da representação produzida
pela norma? Uma possível resposta a essa questão, que envolve a política da infância, precisa
ser pensada tendo em conta que o corpo precisa estar livre da maquinaria de controle da
sexualidade e do gênero.

A questão política da infância é sua tutela pelo mundo adulto. Schérer é um dos
pensadores que afirmam ser a infância uma invenção dos adultos, que visa a proteger a
criança em suas etapas de desenvolvimento, conformando-as, através da educação, para
sua integração ao mundo adulto, garantindo a manutenção de certa estrutura de
sociedade. Quando observamos a infância, o que vemos é uma imagem de criança que o
mundo adulto impõe como modelo (Gallo; Limongelli, 2020, p. 11-12).

Pensando os efeitos da comunidade de prática


Pensar em masculinidades e feminidades, a partir da possibilidade de travessias de
fronteiras daquilo que acontece nas comunidades de prática, não parece ser algo sem
importância. “Comunidades de prática” refere-se a um conceito desenvolvido pela
pesquisadora Carrie Paechter, apresentado em seu livro Meninos e meninas aprendendo sobre
masculinidades e feminidades. Nele são apresentados os meandros da arquitetura que estrutura
as relações entre meninos e meninas, relações a partir das quais se dão “[...] a construção e a
performance da masculinidade e da feminidade” (Paechter, 2009, p. 32).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Percebe-se em sua escrita as minúcias que articulam o poder-conhecimento da rede de


controle e subjetivação dos corpos. Paechter (2009, p. 123) entende que a

[...] comprovação dos modos como o corpo, em geral, e a sexualidade, em particular, são
apagados da educação está na invisibilidade dos alunos gays, lésbicos ou bissexuais, em
razão de serem vistos como uma ameaça às comunidades dominantes de prática de
masculinidade e de feminidade.

A maneira pela qual se constrói essa invisibilidade são as práticas em comunidade


baseadas em regras de controle, sendo “[...] uma das regras sobre os corpos dos alunos (e dos
professores) na escola é a de que eles devem encenar a heteronormatividade” (Paetcher, 2009,
p. 126). Ou seja, eles “[...] devem se comportar de modo a assegurar sua identificação como
heterossexual, em lugar de se apresentar como o Outro, como corpos sexualmente
transgressores” (Paetcher, 2009, p. 126-127).

Independentemente de que alguns meninos e algumas meninas consigam, em alguma


medida, experimentar um modo de existir para além da lógica de pertencimento à performance
de masculinidade e feminidade imposta, principalmente no contexto e cotidiano das escolas,
essas regras são as que possibilitam a partir do controle que se institua um “governo da
infância”.

Na sociedade ocidental moderna, a infância tem vivido sob o signo da menoridade. A


sociedade não pode permitir que crianças e jovens escapem ao controle, sob pena de
ruírem as estruturas vigentes há séculos. Um governo da infância é absolutamente
necessário. A infância que escapa ao controle é caracterizada como uma doença, cuja
cura social precisa ser buscada (Gallo; Limongelli, 2020, p. 15-16).

Ao que parece, será preciso se afastar das armadilhas e dos dispositivos de controle dos
afetos, propiciadas pelas imagens de pensamento produzidas pelos dispositivos de
governamentalidade do estado moderno. Atualmente, uma saída interessante passa pelo
enfrentamento às políticas de morte aos corpos que não importam, enfrentamento que
permitiu emergir um modo de compreender as crianças e suas infâncias. A pesquisadora Anete

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Abramowicz (2018), cujo texto tenciona aquilo que Michel Foucault (1979) e Ariès (1978), mostra-
nos que não podemos nos iludir quanto às condições de garantia do direito à existência das
crianças inseridas em contextos desiguais.

[...] o direito das crianças não é para todas! A própria emergência da criança na atmosfera
científica ocidental despontou com uma cor, com uma estética, com uma religião, com
atributos “naturais” como o brincar [...]. Esta ideia de criança que emergiu condiciona e
constrói uma imagem de pensamento e foi fruto de disputas de muitas forças:
epistemológicas, teológicas, pedagógicas, filosóficas. E, quando tal forma de criança
emerge, há uma construção que se faz hegemônica [...] (Abramowicz, 2020, p. 7).

Essa é uma imagem de pensamento que possibilita compreender não só a parte


significativa da desigualdade existente entre as crianças, mas também suas formas de vida
precárias. Impondo uma emergência quanto a criação de uma ética e de políticas nas quais os
direitos das crianças não sejam tratados de forma abstrata. Esse pode ser um modo importante
de escapar da forma hegemônica de controle e vigilância daqueles que não importam, seja pelos
efeitos da cultura identitária do gênero, da sexualidade, da etnia, da raça e até da religiosidade.

Mesmo que as tecnologias de poder-saber tenham efeitos de controle e vigilância dos


corpos, principalmente quando esses não correspondem à norma, o que precisamos
estabelecer é uma prática educativa que transgrida essa lógica, uma prática que mobilize os
afetos de alegria e os desejos próprios das culturas infantis, isso é algo que a recusa da lógica
adultocêntrica nas práticas educativas das infâncias nos possibilita aprender um devir criança
que cria a partir da imaginação outros nascimentos existenciais.

Referências
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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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180
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Jaqueline Michael Kruger – EMEI


Professora Marlene Leonhardt – Três
Passos – RS

Foto: Janaína Raquel Cogo – EMEI Olhar de


Criança – Santa Rosa – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Práticas pedagógicas na educação infantil:


reflexões sobre crianças, infâncias e
descolonização
Janaína Raquel Cogo
Jaqueline Bussler Michael Krüger

Introdução
Assim como se transformam o tempo e a sociedade, também as concepções sobre criança
e infância se alteram. Em uma sociedade neoliberal e adultocêntrica, a tendência é enxergar a
criança como um sujeito a ser disciplinado em busca de um padrão ideal de criança e infância
que visa torná-la alguém no futuro, não reconhecendo a potência da infância. Em contrapartida
a essas concepções, buscou-se refletir sobre as práticas educativas emancipatórias, sobretudo,
considerando a pluralidade de maneiras de viver as infâncias, compreendendo a criança como
um sujeito de direitos, protagonista de suas aprendizagens. Descolonizar o pensamento e
superar o adultocentrismo são caminhos que levam a uma educação comprometida com a
emancipação das crianças.

Este artigo foi escrito a partir de reflexões tecidas no seminário “Educação Infantil:
Pesquisa, Políticas Públicas e Práticas Educativas”, do PPGE, da Universidade Federal de Santa
Maria. Discute-se sobre as concepções de infância e suas relações com as práticas pedagógicas,
refletindo-se, também, sobre a descolonização das práticas pedagógicas na educação infantil.
O estudo é uma pesquisa bibliográfica, tendo como embasamento teórico autores, como:
Infantino (2022), Santiago (2022), Tomás (2014), Ferreira e Tomás (2021), Barreiro e Faria (2016),
Santiago e Faria (2016).

Inspiradas pela fala e textos dos professores convidados para o seminário “Educação
Infantil: Pesquisa, Políticas Públicas e Práticas Educativas”, ministrado pelas professoras Sueli

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Salva, Simone Freitas da Silva Gallina e Débora Teixeira de Mello, no contexto do Programa de
Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Santa Maria, escrevemos este artigo
com o objetivo de refletirmos e lançarmos luz à pesquisa com as crianças, o processo de
descolonização e o lugar da criança.

O texto foi organizado em três seções que contemplam as temáticas sobre as infâncias e
descolonização do pensamento adultocêntrico e das práticas pedagógicas. Inicialmente, são
tratadas as concepções de crianças e suas infâncias, a partir de um olhar descolonizador. Na
sequência, parte-se para uma análise das práticas pedagógicas e suas relações com as
concepções de infância. Ao final, aborda-se sobre a educação infantil e descolonização:
ensejando uma educação emancipatória às infâncias.

A criança e suas infâncias: por um olhar descolonizador


As concepções sobre criança e infância se alteram no tempo e nas sociedades e estas
possuem relações com políticas educacionais direcionadas à infância e com as práticas
educativas nas escolas de educação infantil. Conforme Tomás (2014, p. 130): “[...] as imagens
sociais produzidas sobre a infância e sobre as crianças exprimem visões de mundo e que essas
visões se materializam e influenciam as práticas educativas e sócio-pedagógicas”.

A criança é um sujeito de direitos, porém, muitas vezes, é vista como alguém a ser
disciplinado, normatizado, em uma sociedade adultocêntrica e neoliberal. Para o
neoliberalismo, há um estereótipo de criança e infância ideal e as crianças que não se
“encaixam” nesse modelo precisam ser reguladas para que possam servir aos interesses
neoliberais. Os investimentos na educação da infância e na criança, muitas vezes, não estão
voltados para os direitos das crianças, mas, sim, para a preparação para o futuro, objetivando a
qualificação de mão de obra para o mercado de trabalho. Ferreira e Tomás (2021, p. 1451), sobre
esses aspectos, discorrem que:

Essa matriz faz-se ainda acompanhar de um conjunto de ideias-metáforas da


racionalidade econômica e burocrática que reabilitam o investimento educativo na
infância e na EI apostando na sua capitalização mediante uma eficiente modelação das

183
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

crianças pequenas, e sua comprovada preparação, e nas qualificações úteis para uma
inserção futura no mercado de trabalho.

Para a lógica neoliberal, as diversidades entre as crianças e as suas infâncias não são
respeitadas, não se reconhece a pluralidade de maneiras de viver as infâncias e as reais
necessidades das crianças, pois o que se objetiva é um padrão de criança universal. Nesse
sentido, de acordo com Tomás (2014), até os direitos das crianças são construídos e impostos
através da globalização, pelos organismos internacionais, visando os interesses do mercado
econômico.

Com efeito, assistimos à transformação de princípios com valor absoluto e civilizacional


e de normas jurídicas, como o caso dos direitos da criança, pela lógica de mercado, o que
pressupõe um conjunto de negociações, compromissos, administração de recursos
econômico-financeiros e opções políticas e orçamentais nem sempre coincidentes e nem
sempre prioritários para as crianças. Pode-se mesmo afirmar que a maioria dos discursos
sobre a infância configura-se numa peça decorativa, distante das realidades e
quotidianos das crianças e de suas famílias (Tomás, 2014, p. 133).

A aceleração dos processos de alfabetização das crianças, a alunização precoce, as


práticas de ensino-aprendizagem baseadas em resultados, na educação infantil, servem ao
modelo neoliberal de educação. Por outro lado, práticas emancipatórias que respeitem os
direitos, vozes e reivindicações das crianças e os estudos da infância são movimentos que vão
à contramão dessa lógica.

Para a efetivação de práticas emancipatórias, que respeitem os direitos das crianças, é


necessário compreender a criança como um ator social, reconhecendo a pluralidade de
crianças e infâncias existentes. Para, assim, possibilitar que possam se manifestar, livremente,
buscando não engessar as crianças a maneiras únicas de ser criança e aprender.

As crianças produzem cultura na medida em que se relacionam com seus pares e com os
adultos, seja no cotidiano da escola da infância ou fora dela. O adulto, por sua vez, tomado pelo
poder adultocêntrico, naturalizado em nossa sociedade, acaba, em determinadas situações,
invisibilizando a criança, ainda que sem a intenção, quando, por exemplo, olha para elas apenas

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

como “[...] ‘consumidoras’ do universo adulto” (Santiago; Faria, 2016, p. 74); como alguém que
não é, mas virá a ser.

Ana Lúcia Goulart de Faria, através de suas contribuições teóricas, convida-nos a


descolonizar o pensamento, a desraizar os pensamentos eurocêntricos, heteronormativos e
machistas. E, em relação à educação das crianças, precisamos descolonizar os pensamentos
adultocêntricos, os quais fizeram parte de nossa formação cultural, social e escolar, sendo que
temos arraigadas na tradição educacional muitas das raízes eurocêntricas que colonizaram o
nosso país e, enquanto educadores, sem a reflexão crítica, acabamos reproduzindo tais
preceitos em nossas práticas educativas.

Dessa maneira, precisamos problematizar alguns dos conhecimentos com os quais fomos
educados, questionando a supremacia dos conhecimentos europeus e a centralidade na
perspectiva do adulto, buscando referenciais teóricos que possam contribuir com a revisão de
nossos conhecimentos. Para que possamos, assim, descolonizar nossos pensamentos e nossas
práticas enquanto educadores, construindo contextos que favoreçam o respeito às diferenças,
e desenvolver a criticidade sobre as desigualdades sociais. Barreiro e Faria (2016, p. 259)
refletem sobre a necessidade de descolonizar o pensamento para que as crianças também
aprendam a resistir frente às desigualdades:

Assim temos o que é mais difícil na docência com crianças que é refinar o nosso olhar e
descolonizar os nossos pensamentos para que elas também percebam as sutilezas das
diferenças, sabendo a origem das desigualdades para poder resistir e combatê-las.

No processo de descolonização, é necessário buscar, também, uma educação


emancipatória às crianças, considerando-as como atores sociais que podem produzir rupturas
em pensamentos colonialistas, racistas, heteronormativos, neoliberais e desiguais, social e
culturalmente. Torna-se necessário, para esse processo, descolonizar as nossas concepções
sobre a infância, percebendo a infância em suas potencialidades, nas múltiplas linguagens da
infância e consideração às suas próprias culturas.

185
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Considerando as maneiras próprias de interação das crianças com o mundo via


linguagens, ao invés do adulto dar voz às crianças, Faria sugere “dar ouvidos” (informação
verbal), escutando o que elas têm a dizer. Para escutá-las, é necessário que elas ocupem um
lugar de protagonistas na escola, no entanto, uma escola que tem como foco a valorização
apenas de conteúdos escolares, com a intenção de preparar as crianças para a vida adulta, está
fadada a silenciar as vozes infantis. De acordo com Santiago e Faria (2016, p. 75):

É importante destacar que essa posição, que tem como foco a valorização somente dos
conteúdos escolares, recupera e fortalece a ideia de escola reprodutora, colonizadora,
construtora da desigualdade e, dessa maneira, privilegia esse tipo de cultura escolar, ou
seja, o ambiente, destinado ao controle, e ao disciplinamento das crianças pelos adultos,
com o objetivo de prepará-las para a vida futura e, ao mesmo tempo, encobri-las sob o
papel de alunas (Nascimento, 2013). Para dar conta dessa regulação, são construídos
artefatos como cronogramas, horários, rotinas, que, ao invés de organizarem os coletivos
infantis, controlam-nos.

Defensora da infância e da educação infantil, Faria lança um olhar, especialmente, às


infâncias e às suas multiplicidades de linguagens, em defesa de uma educação infantil
emancipatória e descolonizadora. A autora ressalta que, para descolonizar o nosso olhar às
crianças, é necessário, primeiramente, descolonizar o pensamento, buscando a superação do
adultocentrismo.

A construção de uma pedagogia da educação infantil para creches e pré-escolas não está
relacionada à concepção de infância e seu processo de escolarização, tradicionalmente
voltada à noção de incompletude, criança homogênea, em que as delimitações têm sido
feitas pela imaturidade e pela falta em relação à maturidade do adulto (Faria; Finco, 2011,
p. 3).

Para um novo olhar à criança e às suas capacidades, precisamos, assim, revisar a


concepção de criança, vislumbrando a criança como um ser do presente e não do futuro que,
através das interações, produz cultura e conhecimentos. É necessário um olhar singular às
subjetividades das crianças e às multiplicidades das infâncias, às suas linguagens e maneiras de
interagir e produzir significados sobre o mundo.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

As práticas pedagógicas e as suas relações com as concepções de infância


As práticas pedagógicas construídas com as crianças na educação infantil refletem
concepções de infância dos professores, das instituições educativas e das políticas públicas.
Essas concepções se revelam no cotidiano das instituições de educação infantil, na organização
dos espaços e tempos, nas situações de aprendizagens, nos brinquedos e materiais que são
dispostos às crianças, no respeito às pluralidades e tempos das crianças.

Agnese Infantino (2022) discorre sobre o papel do adulto na construção das aprendizagens
das crianças, enfatizando que o professor não pode deixar de desempenhar o seu papel nas
práticas com as crianças e acabar recorrendo a práticas espontaneístas, acreditando que as
crianças aprendem de maneira espontânea, através da maturação biológica. Por outro lado, os
professores acabam, muitas vezes, utilizando-se de metodologias transmissivas, nas quais
apresentam-se como detentores do saber e responsáveis por transmitir seus conhecimentos
às crianças. Dessa forma, para Infantino (2022, p. 66):

O adulto não pode eximir-se de assumir o próprio papel no interior dessa intensa
dinâmica. Como pode tomar parte disso de modo positivo, sem prevaricar ou impor às
crianças conteúdos, estratégias, respostas e soluções de fora e, ao mesmo tempo, sem
assistir praticando a não-intervenção, limitando-se a observar [...].

Ao refletir acerca das escritas da autora, podemos entender que há compreensões


epistêmicas sobre a construção de conhecimentos na infância e da concepção de criança que
se refletem nas práticas educativas, no papel do professor, na mediação dos conhecimentos e
nas interações que estabelece enquanto adulto com as crianças, individual e coletivamente.
Dependendo das concepções epistemológicas do professor, ele pode acreditar que as crianças
aprenderiam de maneira espontânea ou através do amadurecimento, sem ter um papel
importante a ser considerado nas aprendizagens delas.

Esconde-se por trás desse modelo de intervenção a pressuposição perigosa e ilusória que
a aprendizagem nos primeiros anos de vida seja um progresso principalmente individual,
espontâneo e inerente ao crescimento e à maturação das crianças, resultado de uma

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

criação e estruturação das inteligências, segundo um acontecimento natural, em relação


ao papel do adulto parecia estranho e totalmente marginal (Infantino, 2022, p. 65).

Dessa maneira, Infantino (2022) discorre, sobre a intervenção do adulto nas


aprendizagens das crianças, sobre como, nos processos de pesquisa das crianças, o adulto deve
intervir, mas sem antecipar as hipóteses. Observar a riqueza das hipóteses elaboradas pelas
crianças, entendendo os processos cognitivos na construção de seus conhecimentos, requer a
atenção e a partilha dos adultos nos processos de construção das crianças. Em relação aos
contextos de aprendizagem, a autora escreve:

Aprendem sem que os adultos exercitem ações explícitas e formalizadas de ensino. Mas,
ao mesmo tempo, para aprender e extrair benefício da participação em contextos da vida,
como são os serviços para a infância, é necessário que as crianças encontrem contextos
pensados e configurados com inteligência educativa, nos quais possam ser ativamente
envolvidos em relações significativas com adultos disponíveis e interlocutores ativos,
participando das suas pesquisas (Infantino, 2022, p. 82).

Nesse sentido, podemos entender que o papel dos adultos na educação infantil não é de
planejar atividades formais para a aprendizagem das crianças, mas de organizar contextos
enriquecidos nos quais elas possam intervir ativamente, de forma elaborada, em propostas
significativas, e os adultos estejam disponíveis e colaborativos aos processos das próprias
crianças. Esse modo de organização educativa favorece as interações e o desenvolvimento das
crianças, compreendido de maneira interligada.

Infantino (2022) defende, ainda, a compreensão de desenvolvimento que deve ser


considerada em termos holísticos, compreendendo a criança de forma inteira. Para tanto, as
crianças devem ter acesso a contextos enriquecidos e planejados, nos quais possam se
desenvolver integralmente, em sua cognitividade, sociabilidade, afetividade, entre outras
esferas. Nesse sentido, a autora sinaliza:

Interpretar em termos holísticos o desenvolvimento das crianças significa, em primeiro


lugar, assumir uma representação e uma imagem de criança inteira: o seu mundo não é

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

dividido em cognitivo, afetivo, cultural e social, mas essas dimensões estão


profundamente interligadas em um sistema unitário (Infantino, 2022, p. 82).

Essa concepção de criança se associa a uma concepção de conhecimento construtivista,


em que as aprendizagens são construídas em um processo interativo vivenciado pelas crianças
de maneira singular e ao mesmo tempo interativo. Pressupõe-se, também, uma compreensão
de unitariedade do saber, no qual não há conhecimentos mais importantes que outros e o
professor compartilha os processos de aprendizagens vivenciados pelas crianças, atento aos
processos ativos delas, às suas interações, às suas construções cognitivas.

O debate em torno do papel do professor nas aprendizagens das crianças na educação


infantil é amplo e denso e precisa ser focado na discussão de professores e professoras, levando
em consideração que as crianças de hoje têm vivências muito diferentes das crianças de outras
épocas, como Infantino destaca em sua fala: “As pedagogias que conhecemos até então, não são
mais suficientes para atender as questões contemporâneas” (informação verbal), ao se referir às
diversas camadas que as crianças estão vivenciando hoje: o mundo real/concreto e o virtual.

Desse modo, a autora nos convoca a pensar através de várias interrogações que ela mesma
vai tecendo conforme elabora o seu pensamento:

Como podemos fazer para estar em sintonia com as experiências das crianças nesses
mundos real, simbólico e virtual? O que oferecer a essas crianças como experiência
educativa? Como oferecer? Como tornar a convivência coletiva das crianças, no contexto
da Educação Infantil, como um tesouro potente, já que elas estão cada vez mais individuais?
Como fazer para ajudar as crianças a se manterem ativas com o seu pensamento e o seu
corpo? Como o virtual vai se conectar com esse corpo, com a plasticidade? E por fim: Como
vamos fazer para evitar que as crianças não se percam nesses diferentes níveis?
(informação verbal) .
]

Na continuação, Infantino ressalta que não se trata de oferecer uma educação digital, mas
permitir à criança experimentar a conexão com esse mundo, não do ponto de vista da técnica,
mas do pertencimento a esses níveis (informação verbal). Nesse sentido, trata-se de uma
experiência mediada pelo corpo e pelo pensamento, pois é capaz de colocar a criança em

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

contato com outras dimensões da sociedade. Enfim, consideramos importante uma educação
que permita à criança estar participativa de corpo e em pensamento, ou seja, ativa aos detalhes
e às sutilezas do cotidiano.

Desse modo, os tempos são tão importantes de forma que o tempo que serve para
determinada experiência não serve para outra. Faz-se necessário colocar em diálogo os vários
tempos: da criança, do adulto, da escola, conectando-os, a fim de atender as necessidades de
todos.

Manuela Ferreira e Catarina Tomás nos dizem que “[...] os processos de aprendizagem das
crianças não cessam quando as crianças terminam as atividades dirigidas ou guiadas pela/o
adulta/o” (Ferreira; Tomás, 2020, p. 10). Ao tomar por base o texto “A brincar, a brincar... lógicas
e sentidos de futuras educadoras de infância (2014 – 2019)”, podemos observar, a partir dos
resultados produzidos na pesquisa apresentada nesse artigo, que o brincar na escola da infância
está mais relacionado a um brincar útil, com objetivos predeterminados pelo educador, do que
a um brincar interessado nas relações entre as crianças.

O conceito de criança, infância e educação infantil e a relação que se estabelece entre o


que se pensa e o que se faz dizem muito sobre que tipo de profissionais somos. É comum, por
exemplo, tratarmos a ludicidade (brincar/aprender) como o carro chefe na creche. A afirmação
de que as atividades lúdicas estimulam a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo das
crianças se encontra com facilidade nos pareceres descritivos das professoras. A pesquisa de
Tomás também constatou, nos relatórios de fim de curso, de Prática de Ensino Supervisionada,
realizados em instituições de Ensino Superior de Portugal, que “[...] as futuras educadoras
entenderam o brincar privilegiando a relação educador/a e criança(s) e o brincar como um
modo de ensinar e/ou em prol do desenvolvimento cognitivo infantil” (Ferreira; Tomás, 2020,
p. 01).

Assim como nas escolas de Portugal, nas escolas brasileiras se observa o brincar numa
lógica escolarizante, especialmente para as crianças maiores que se aproximam dos anos
iniciais do Ensino Fundamental, como se a Educação Infantil tivesse que, a todo custo, preparar

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

as crianças para o Ensino Fundamental. Brinca-se para aprender as letras, o alfabeto, os


números, as cores, as formas geométricas, os nomes etc., mas quando se escuta as crianças
para entender do que elas estão brincando? “[...] As crianças brincam para continuarem a
brincar” (Ferreira; Tomás, 2020, p. 6) e, assim, na relação umas com as outras, vivenciando as
experiências com significado, elas estão a aprender conhecimentos que ultrapassam a lógica
dos conteúdos predefinidos.

No entanto, há de se considerar a pluralidade de infâncias e crianças na creche. Tomás


(2017, p. 16) afirma que:

A heterogeneidade das crianças e das suas famílias - idade, classe social, género, etc. –
implica necessariamente uma diversidade de práticas pedagógicas. Este pressuposto
implica renunciar a um conjunto de argumentos, aqui apresentados de forma muito breve
e simplista: a creche entendida numa visão restrita como um lugar de guarda; as crianças
pequenas entendidas como objetos de intervenção e/ou como alunas precoces; a creche
como um espaço onde se somam atividades a realizar de modo a potenciar “a encarnação
do seu futuro” (Burnam, 2009, p. 271); a ideia de infância universal desconsiderando a
diversidade social e cultural.

Ainda que as crianças pequenas não falem com palavras, é necessário, mais uma vez, “dar
ouvidos” a elas, como diz Ana Lucia Goulart Faria. É necessário esse movimento de olhar para
elas, de entender quem são, de onde vêm e como podemos tornar o espaço da escola um lugar
acolhedor das diferenças. Quais os brinquedos que ocupam os espaços? Quais histórias
escolhemos para contar? Quem são os protagonistas? Como são as princesas? Como são as
bruxas? O que dizem as paredes da escola? Elas refletem as culturas infantis ou reforçam
estereótipos?

A partir desses questionamentos, apresentamos, na próxima seção do texto, reflexões


acerca da descolonização nas práticas pedagógicas na educação infantil, em busca de uma
educação emancipatória, não no intuito de responder a esses questionamentos, mas
provocando novas reflexões. Reflexões que instiguem para que as crianças tenham a
oportunidade de conviver e brincar na educação infantil, tendo considerados seus direitos e a

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

sua centralidade em relação às práticas pedagógicas. Para, assim, romper com as interferências
que têm o objetivo de colonizar as infâncias, as quais possuem como intuito que as crianças
possam servir ao modelo neoliberal e aos seus ordenamentos classistas, racistas, machistas e
demais estereótipos presentes na sociedade.

Educação infantil e descolonização: ensejando uma educação emancipatória às


infâncias
As diferenças pessoais são constituintes dos seres humanos, no entanto, existem, em
diferentes culturas, determinantes sociais que hierarquizam as pessoas de acordo com a raça,
sexo, gênero, idade, entre outros. Em nosso país, que possuiu em sua formação social a
escravidão e uma cultura de privilégios aos europeus, brancos e adultos, o racismo e o
preconceito de gênero ainda são problemas estruturais da sociedade. Esses problemas
estruturais precisam ser problematizados nas relações estabelecidas, desde a educação infantil,
para que as crianças cresçam se expressando livremente, sem a presença de padrões
regulatórios heteronormativos, classistas e machistas.

Os padrões regulatórios heteronormativos produzem ideários sociais de gênero de como


as crianças, desde bem pequenas, devem se vestir e se comportar de acordo com o sexo
biológico o qual nascem. Santiago (2022) ressalta que as diferenças, tanto de gênero como de
raça, são socialmente produzidas a fim de buscar a estruturação da dinâmica capitalista. Para
tanto, a produção de distinção entre raças é de igual forma produzida, em busca de garantia de
privilégios para alguns e desumanização para outros. Conforme Santiago (2022, p. 10):

[...] é importante ressaltar que as questões relativas ao racismo e à raça são resíduos
arcaicos e anacrônicos de uma narração colonial a respeito da história pautada numa
lógica eurocentrada de expropriação e opressão de determinados grupos, com base na
desumanização do outro.

O processo colonizador da sociedade busca formar sujeitos em um padrão


heteronormativo, obedientes e submissos às imposições. Começar um movimento na

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

contramão dos ideais capitalistas, adultocêntricos, pode se iniciar no respeito à livre expressão
das crianças, no respeito às suas manifestações, aos seus corpos, às suas linguagens.

As crianças, através do brincar e das suas diversas linguagens, não apenas reproduzem
suas percepções sobre o mundo, mas produzem sentidos e culturas infantis, com seus próprios
entendimentos, nos quais experimentam diversos papéis e superam determinações sociais e
culturais que buscam normatizar os corpos infantis. Como ressaltado por Santiago (2022, p.
219), “[...] as crianças, quando brincam com os brinquedos ou de faz de conta, experimentam e
representam papéis que estão para além das convenções sociais e das determinações de
gênero”.

É preciso muito conhecimento e resistência para que os educadores da infância tenham


o discernimento e considerem ações que valorizam o potencial da infância, sem reduzir as
possibilidades oferecidas às crianças, potencializando uma educação que respeite e considere
as diferenças, sem classificar e impor padrões nas relações estabelecidas na educação infantil.
Conforme enfatizado por Santiago (2022, p. 227):

A construção de uma sociedade equânime depende de fatores múltiplos, mas insistimos


que a superação da desigualdade de gênero passa também pela educação, desde a
primeiríssima infância, em espaços coletivos na esfera pública, a partir da convivência
com as diferenças, processo que exige reflexão constante das docentes e da comunidade
que compõe a unidade da Educação Infantil.

Ensejar uma sociedade mais igualitária entre as raças e gêneros, respeitando a


singularidade das crianças, precisa passar pelos processos educacionais. Desde bem pequenas,
as crianças buscam entender o mundo através das relações estabelecidas com outras crianças
e adultos, compreendendo qual o seu lugar no mundo, construindo sua identidade e percepções
sobre as relações sociais. Dessa maneira, os educadores da infância precisam entender as
estruturas e os projetos sociais existentes na sociedade, reconhecendo os moldes coloniais que
ainda estão presentes nela e que atingem a educação, pois, como afirmam, Faria et al. (2013, p.
36):

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O fazer pedagógico está estritamente ligado ao projeto político de nação e sociedade. E


quando uma parcela dessa sociedade defende uma educação infantil escolarizada parece
legitimar uma postura política que tenta construir ou (re)construir determinados tipos
de indivíduo.

Para que a educação infantil possa respeitar a diversidade das crianças e de suas famílias,
valorizando as diferenças culturais, de gênero e raça presentes na sociedade, as temáticas das
diferenças e da diversidade não devem ser trabalhadas em momentos estanques do ano. Mas,
sim, devem ser problematizadas constantemente nas relações educativas estabelecidas na
educação infantil, incluindo a escolha dos livros oferecidos às crianças, a organização dos
espaços da sala, à possibilidade das crianças brincarem e explorarem livremente os espaços,
estabelecendo relações educativas que respeitem a diversidade e promovam formas de romper
com os padrões regulatórios colonizadores presentes na sociedade capitalista.

Como exemplo de desigualdade criada pelo sistema capitalista, que trata alguns corpos
com inferioridade, principalmente os negros, relatamos um episódio observado na turma de
berçário. Nesse contexto, inspiradas no texto e na pesquisa de Flávio Santiago “Não é nenê, ela
é preta”: Educação Infantil e pensamento Interseccional, trouxemos algumas reflexões acerca
do cotidiano de uma professora de bebês e crianças pequenas, de uma Escola Municipal de
Educação Infantil, de um município no interior do Estado do Rio Grande do Sul.

Primeiramente, considera-se importante contextualizar o lugar sobre o qual se fala. A


escola em questão se localiza na periferia da cidade e atende, em sua maioria, crianças dessa
comunidade, embora receba crianças advindas de outros bairros também, totalizando 64
crianças. A turma é composta por 17 bebês e crianças pequenas de 4 meses a 2 anos e meio,
aproximadamente, classificados como berçário I e II. É uma turma mista, na qual convivem
crianças de diferentes idades. Os pais e responsáveis das crianças dessa turma são
trabalhadores do comércio, de indústrias (tais como a JBS), autônomos, empregadas domésticas
e alguns estão desempregados.

Junto à professora, atuam na referida turma duas monitoras que auxiliam e participam no
desempenho da docência com as crianças. As professoras da turma são brancas. Entre os

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

meninos e meninas, há crianças brancas, pretas e pardas. Nesse momento, não há como
quantificar e classificar com precisão esse dado, pois nem todos os pais responderam essa
pergunta na ficha de matrícula da criança. Observamos que, das fichas preenchidas, algumas
famílias declararam as cores branca ou parda para crianças com cor de pele negra clara, numa
tentativa, talvez, de proteger seu/sua filho/a do racismo ainda presente na comunidade e da
supremacia dos corpos brancos, como afirmado por Santiago:

Muitas vezes quando os/as responsáveis pelas crianças declaram uma criança de pele
negra clara como branca ou parda não somente reproduzem a lógica da colonialidade
pautada na branquitude, mas também, em certa medida, procuram proteger o menino
pequenininho ou a menina pequenininha das mazelas do racismo (NOGUEIRA, 1995;
TRINIDAD, 2011 apud Santiago, 2020, p. 08).

Diante disso, destaca-se, para essa reflexão, a preocupação dos autores em enxergar as
crianças enquanto sujeitos sociais, advindos de um contexto social que difere as pessoas por
questões raciais, de gênero e de idade. Desse modo, Santiago e Faria (2018) concordam que a
infância deve ser pensada de maneira interseccionada.

Torna-se fundamental conceituá-la de modo interseccionado, para compreendermos a


gênese da transformação de diferenças em elementos para justificar as desigualdades
criadas pelo sistema capitalista, que privilegia um padrão de sociedade e de sujeito e sem
dúvida excluem a/o cidadão de pouca idade (cf. Benjamin, 1984). Cabe urgente falar em
interseccionalidade entre raça/etnia, classes sociais, gênero e idade (Santiago; Faria,
2018, p. 261).

A partir dessas considerações, relatamos um episódio que foi observado na referida turma
de berçário. Não havia bonecas pretas na sala, apenas brancas, fato que chamou atenção da
professora, que procurou junto à direção da escola verificar a compra de bonecas pretas, já que
estava sendo organizada uma lista de brinquedos novos para aquisição. Nesse espaço de tempo,
à espera das bonecas, foi encontrado na escola um “baldão” de brinquedos guardados, ainda em
virtude da pandemia de Covid-19. Dentro desse balde encontrado, estavam várias bonecas
pretas, entre outras. As bonecas brancas e pretas retornaram para a sala e as crianças puderam

195
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

brincar com elas. Um menino negro da turma, ao escolher os brinquedos para brincar, parece
admirar uma boneca preta, a cena chama a atenção da professora.

Refletindo sobre esse episódio, vemos a importância de pensarmos em ambientes


acolhedores e brinquedos que possam representar a todos, considerando a pluralidade de
infâncias que existem em uma mesma turma, por exemplo. Nesse caso, num primeiro momento,
só havia bonecas brancas, de olhos azuis e cabelos loiros lisos, nessa sala. Questiona-se, assim:
que padrão de sociedade estava sendo privilegiado ali? Como os meninos e as meninas negras
poderiam se sentir representados e acolhidos, já que os brinquedos não os representavam?
Essas são questões a serem pensadas, diariamente, na composição dos espaços da escola.

Enquanto isso, na compra dos brinquedos novos, deparou-se com outro empecilho: o de
encontrar as bonecas pretas, já que a loja que forneceu os brinquedos não as tinha à disposição,
somente sob encomenda. Flávio Santiago (2015), no artigo “Gritos sem palavras: resistência das
crianças pequenininhas negras frente ao racismo”, inspirado em Fanon (2008) e Gomes (2008),
convida-nos a pensar:

Os negros dentro desse processo são “forçados a rejeitar os seus corpos”, construindo
um referencial sobre o que é belo a partir de um referencial eurocêntrico de beleza – o
colonialismo que os toma e limita o seu existir enquanto o outro, desnudando a sua
humanidade e fundindo a ideia de inferioridade corporal e cultural, marcando a sua
subjetividade com um racismo constante (Fanon, 2008; Gomes, 2008 apud Santiago, 2015,
p. 136).

Para a superação de práticas educativas para a infância que possam estar alinhadas com
ideais racistas, heteronormativos, machistas e classistas, é necessário o reconhecimento dos
professores de como estes podem se apresentar, tantas vezes normalizados nas escolas de
educação infantil. E, assim, refletir, constantemente, na escolha de brinquedos, materiais e
livros, buscando a resistência às normatizações neoliberais as quais se apresentam de diversas
formas nas escolas de educação infantil.

196
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Considerações finais
A infância é potência, é possibilidade. Reconhecer a potência da infância é reconhecer,
também, a potência da escola de educação infantil e entender o papel dos professores e das
professoras como mediadores/as nos processos de aprendizagem e desenvolvimento integral
das crianças. Não deixando de exercer o seu papel como adultos, mas, também, não impondo
os seus conhecimentos às crianças. Nesse sentido, discute-se no artigo sobre as concepções
de infância e suas relações com as práticas educativas, refletindo em como podemos avançar
na descolonização destas, buscando práticas emancipatórias às crianças.

Através das reflexões de Tomás (2014), apresenta-se reflexões sobre como os interesses
neoliberais se projetam até nos direitos das crianças. E estes se apresentam na definição de
políticas públicas para a Educação Infantil, com a busca da padronização das crianças a um
padrão de sujeito. Os professores, muitas vezes, acabam reproduzindo práticas voltadas aos
interesses do mercado liberal, sem ter o conhecimento de como estes aparecem nas
instituições de educação infantil.

O mercado capitalista neoliberal se apresenta de diversas formas, com o uso, por exemplo,
de livros didáticos na educação infantil e na busca de aceleração nos processos de
aprendizagens das crianças, com foco nos resultados, desrespeitando o direito de as crianças
vivenciarem as suas infâncias. Contudo, não se pretende criticar os professores e professoras,
mas, sim, tecer reflexões críticas para que possam reconhecer as potencialidades da infância
como um momento único na vida, de brincadeiras, interações e aprendizagens. Também, para
que se tenha o discernimento e o conhecimento sobre como o mercado neoliberal pode se
aproximar das escolas de educação infantil, buscando impor seus objetivos de maneira
subjetiva.

Vivemos em um país colonizado por europeus e que carrega, socialmente, muitas marcas
do processo colonizador a que foi submetido em diferentes esferas, como na desigualdade
social e no racismo. Essas marcas estão, de muitas formas, arraigadas na escola. Assim, é preciso

197
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

munir os professores de conhecimento para que possam descolonizar os seus pensamentos, a


sua concepção de infância e, a partir disso, construir práticas emancipatórias com as crianças.

Infantino (2022) discorre sobre a importância do adulto no desenvolvimento das crianças


na educação infantil, com a organização de contextos de pesquisa enriquecidos, nos quais o
adulto observe e proponha possibilidades para as crianças, sem antecipar hipóteses e sem
impor os seus conhecimentos, auxiliando nos processos de pesquisa e construção de
conhecimentos vivenciados pelas crianças. Essa forma de compreender o papel do adulto parte
de uma concepção de criança inteira, que se desenvolve, ativamente, através das interações
que estabelece em todos os contextos que vivencia e a todo tempo.

Através das reflexões de Faria e colaboradores, trazidas no texto, podemos pensar em


possibilidades de evidenciar a riqueza das culturas infantis, com olhar e escuta atentos às
crianças e seus interesses e necessidades, refletindo, assim, como os materiais e as relações
com as crianças rompem ou reforçam estereótipos. Santiago (2020) instiga para reflexões sobre
as relações de gênero e étnico-raciais e sobre o respeito às diversidades na educação infantil.

A partir das reflexões tecidas pelos autores, que serviram de referência teórica ao
seminário e a este artigo, instigaram-se novas reflexões as quais, enquanto professoras e
pesquisadoras, temos o compromisso de utilizá-las, tanto para ressignificar as nossas práticas
com as crianças como para compartilhá-las com pares e inseri-las em nossas pesquisas.

Referências
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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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199
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Deise Pinheiro – EMEF Espírito Santo, Horizontina – RS

201
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Interfaces entre infância, brincar e tecnologias


digitais
Cristiane Inês Bremm
Ilse Abegg

Introdução
As maneiras como as crianças se relacionam, experienciam e conhecem o mundo são
viabilizadas pelo brincar. As práticas culturais, os valores, os costumes, os artefatos são criados
para serem apropriados pelas crianças por meio de interações e relações que estabelecem com
os outros, os objetos e as culturas. Estas experiências não se limitam à reprodução, também são
recriadas, incluindo novos elementos, pois o brincar permite a liberdade e autonomia para
explorar, imaginar, expressar, compartilhar e produzir cultura.

A criança está situada em um contexto social e histórico que configura suas relações,
interações, formas e maneiras de brincar, de imaginar, de criar, de se relacionar (Brougère,
1998), que se modificam ao longo do tempo. O cenário contemporâneo, de constantes
mudanças, insere continuamente artefatos e práticas, como as tecnologias digitais, que trazem
novos elementos para o brincar das crianças neste mundo que transpassa o analógico e o
digital. As crianças vivem o cotidiano permeado com computadores, tablets, smartphones,
videogames, inteligência artificial, e tudo isso é materializado, também, em brinquedos para
elas integrarem em suas brincadeiras.

A cultura digital está configurando novas práticas, redefinindo as formas de socialização,


de relação com os outros e o meio, de participação no mundo e de aprendizagem. O fato é que
as tecnologias digitais estão cada vez mais presentes no cotidiano de muitas crianças, desde o
nascimento. Claro que esse cenário é desigual e evidencia uma divisão digital, apesar das
pesquisas destacarem um aumento na conectividade nos domicílios das famílias brasileiras em
todas as classes, inclusive nas áreas rurais. Este acesso ocorre principalmente em dispositivos

202
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

como o celular, a televisão e o computador. De acordo com a pesquisa, 82% dos domicílios
urbanos brasileiros e 71% dos domicílios rurais possuem acesso à internet, sendo que a região
Sul e as classes A e B são as mais conectadas (Tic Domicílios, 2021).

Um percentual de 82% da população a partir de 10 anos são os maiores usuários de


internet no Brasil. Crianças de 10 a 12 anos, estudantes de escola pública, principalmente
meninos, são as que mais tempo passam em frente às telas. Em média, crianças de 0 a 12 anos
têm passado 3 horas e 53 minutos em frente aos seus próprios smartphones ou emprestados
sendo que, atualmente, 44% das crianças de 0 a 12 anos possuem seu próprio dispositivo e a
principal razão é para entreter a criança, enquanto os pais realizam outras tarefas. O Youtube®
é o aplicativo mais acessado, seguido do WhatsApp® e do TikTok®. Entre as famílias que não
permitem o uso, a razão se deve ao fato de o considerarem prejudicial ao desenvolvimento da
criança (Panorama Mobile Time, 2022).

Estas pesquisas impulsionam um olhar para o contexto familiar das crianças e, também,
para o contexto escolar, buscando compreender como elas estabelecem suas relações com as
tecnologias e o papel que desenham no seu desenvolvimento para, com isso, planejar formas
de mediar a integração destes artefatos na escola da infância. Isso requer investigar como as
crianças interagem, exploram, descobrem, experimentam e aprendem com as tecnologias
digitais.

Independentemente de a criança possuir ou não acesso à internet e aos dispositivos


digitais, ela está imersa na cultura digital presente no cotidiano e nas práticas sociais
atualmente, modificando os modos de viver sua infância por meio da brincadeira. Isso significa
que o brincar não está separado do mundo e da cultura, pelo contrário, ele é um espaço de
apropriação em que a criança apreende o patrimônio da humanidade de diferentes formas e
tem a possibilidade de agir no mundo. Ao se apropriar da cultura, ela poderá reelaborá-la
(Kishimoto, 2010). Para garantir o direito das crianças de se apropriarem da cultura e ampliar
seus conhecimentos é imprescindível que elas possam explorar diversos materiais, objetos e
elementos, inclusive os tecnológicos e se expressar por meio de múltiplas linguagens (Brasil,
2017).

203
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O brincar tem sido trazido em diversas pesquisas como uma forma de compreender os
modos de viver das crianças. Brincar é a atividade principal da criança (Kishimoto, 2017). Para
Vigotski (2018) a brincadeira é uma atividade criadora da criança, por meio da qual ela conhece
e reproduz situações da sua realidade e, também, imagina, fantasia e produz novas
possibilidades. A apropriação do mundo e da cultura se dá nas ações de suas brincadeiras e é
um processo ativo de reinterpretação do mundo que traz inovações e criações. Corsaro (2011)
traz uma compreensão que se aproxima com esta, por acreditar que as crianças elaboram seu
mundo e cultura na tentativa de construir sentido ao mundo do adulto, não se limitando,
portanto, a imitar o seu entorno. Estas relações lúdicas infantis ocorrem em interação com
outras pessoas e artefatos, que, na atualidade, incluem as tecnologias digitais, que levam à
aquisição de novos conhecimentos.

Como destaca Brougère (2004), a infância é, assim, um tempo de apropriação da cultura


por meio de múltiplas fontes e o brinquedo é uma das principais. Ele introduz a criança na
sociedade, abre possibilidades de ação e criação e fomenta condutas e comportamentos sociais.
O brinquedo é, assim, segundo o autor, um objeto que representa realidades, possui significado
e que desencadeia a brincadeira. Ele se transforma social e culturalmente, influenciando a
construção da infância que é vivida de acordo com o seu tempo, culturas e condições.

Os objetos que marcam o cotidiano das crianças hoje estão fortemente relacionados com
as tecnologias digitais, porém as crianças não brincam apenas com elas. No repertório lúdico
delas observam-se brincadeiras tradicionais com bonecas(os), carros, utensílios domésticos,
materiais para construção, futebol e também brincadeiras digitais que envolvem clipes
musicais, danças do TikTok®, personagens de filmes e desenhos animados, narrativas de jogos
e comunicação mediada por aplicativos de smartphones. Essas interações coletivas e culturais
constituem as práticas das crianças que produzem suas culturas infantis e lúdicas a partir do
contexto em que estão inseridas e dos artefatos que utilizam nas brincadeiras e no faz-de-
conta, a fim de buscar significados e entender o mundo. Nessas relações, elas reconhecem as
tecnologias como brinquedos e mostram que não apenas internalizam o mundo ao seu redor,

204
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

mas reinventam, recriam, descobrem e constroem relações simbólicas e o seu lugar na


sociedade contemporânea, inclusive com os objetos digitais (Sarmento, 2004; Brougère, 2010).

A brincadeira é um espaço privilegiado em que a criança expressa, imagina, explora,


conhece, constrói amizades, processos que podem ser potencializados com espaços, materiais
e interações diversas que possibilitam a ação da criança, a tomada de decisões, o protagonismo,
a imaginação e liberdade de expressão. Por meio dessas relações, as crianças imprimem suas
marcas, demonstrando sua capacidade de aprender o mundo e criar modos de viver na
sociedade de múltiplas formas. Os artefatos culturais possuem grande papel nessas relações,
pelo seu potencial lúdico, assim como os elementos simbólicos da comunidade, da família, da
escola e das tecnologias.

As tecnologias digitais desempenham um papel significativo nos modos de brincar e de


aprender das crianças contemporâneas, articulado às mudanças sociais e culturais que
vivenciamos nos últimos anos. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, de
2010, já trazem o destaque para a integração de artefatos tecnológicos nas práticas
pedagógicas, que possibilitem experiências lúdicas e interativas da criança com estes recursos
(Brasil, 2010). Proporcionar que as crianças tenham experiências com tecnologias é colocada
como uma das estratégias do Plano Nacional de Educação (Brasil, 2014) que podem contribuir
com a qualidade da educação. A BNCC (Brasil, 2017) intensifica esse aspecto ao entender que
expressar-se por meio de múltiplas linguagens, compreender, utilizar e criar tecnologias
digitais são competências que devem fazer parte das práticas escolares desde a infância.

Portanto, acreditamos ser essencial estabelecer relações das crianças com as


tecnologias, também, na escola, a fim de olhar para os processos de aprendizagem e conhecer
as mudanças que a linguagem digital traz para a educação. “Garantir a inserção da educação
digital nos ambientes escolares, em todos os níveis e modalidades” (Brasil, 2023, art. 3º),
englobando aprendizagens relacionadas à participação e às atitudes críticas e éticas é um dos
objetivos da Política Nacional de Educação Digital. As crianças têm direito às mídias e à
provisão, que significa poderem consumir produtos da cultura digital e ter à disposição uma
variedade de materiais sem deixar de lado a proteção dela neste ambiente (Brasil, 2023).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Neste sentido, este artigo tem como objetivo discutir sobre o brincar das crianças em
tempos de tecnologias digitais móveis. A partir de reflexões teóricas e vivências com e das
crianças, busca-se olhar para o contexto contemporâneo e as experiências cotidianas que as
crianças vivem e trazem para a escola para dialogar com e sobre elas e as relações lúdicas que
estabelecem com o mundo mediado pelas tecnologias digitais. Crescer na era digital está
transformando as interações, brincadeiras e relações das crianças de hoje e isso está refletindo
nas práticas escolares.

As discussões apresentadas neste artigo são parte da pesquisa de Doutorado em


Educação, em andamento, da Universidade Federal de Santa Maria. Os estudos realizados nos
permitiram compreender a criança como sujeito ativo, de direitos, protagonista, que se
apropria, produz cultura e constrói sua infância, que se situa social e culturalmente e é
transformada a partir da realidade. Neste cenário, as crianças constroem seus modos de ser e
viver, mostrando-se como sujeitos que possuem saberes e são autores.

Assim, nosso primeiro direcionamento foi no sentido de conhecer as crianças


participantes da pesquisa que vivenciam a cultura digital com o intuito de entender seus modos
de vida, como se relacionam com as tecnologias digitais e, também, aprender com elas. Para
isso, nos pautamos na concepção metodológica de pesquisa-ação e buscamos desenvolver uma
investigação com as crianças, professores e famílias. Assumimos um modo de fazer investigação
participativo que tem como fonte as experiências educativas e como objetivo transformar as
práticas com base na compreensão e reflexão sobre a realidade. Este processo colaborativo
deve proporcionar que todos se envolvam na dinâmica de pensar e colaborar, assumindo-se
como participantes (Kemmis; Mctaggart, 1988).

A pesquisa-ação se desenvolve num espaço escolar, numa Escola Municipal de Educação


Infantil de Santa Maria. Apesar de a maioria das pesquisas que discutem o brincar e as relações
das crianças e tecnologias terem o foco no contexto educacional, sentimos a necessidade de
pesquisar mais este espaço, pois, conforme a revisão bibliográfica nos mostrou, a experiência
digital geralmente é amplamente discutida na sua forma técnica e funcional, sendo pouco
explorada quanto aos aspectos imaginativos e expressivos. As crianças têm direito à cultura, ao

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

lazer e ao brincar no mundo digital assegurados pelo Comitê dos Direitos da Criança (Fundo
das Nações Unidas para a Infância, 2021). Além disso, é preciso fortalecer a presença e a
participação das crianças nas pesquisas, pensar as suas manifestações nos diversos espaços que
vivem hoje, que inclui o digital, para dar-lhes o direito, também, de serem protagonistas da
produção de suas culturas.

Desse modo, a pesquisa está sendo desenvolvida com crianças de pré-escola, professora
da turma e famílias e está organizada por meio de ciclos. Este artigo aborda aspectos
observados durante o desenvolvimento do primeiro ciclo. A investigação com crianças
pequenas requer diferentes formas e instrumentos metodológicos para a produção e coleta dos
dados, a fim de observá-las, ouvi-las e entendê-las, respeitando suas diferentes capacidades de
expressão, visando garantir sua participação. No primeiro ciclo coletamos informações sobre o
espaço privado da família e escolar e foram utilizadas entrevista com a professora, questionário
com as famílias para conhecer e realizar um panorama sobre a realidade e roda de conversa
com as crianças, na qual conversamos e observamos junto às crianças, por meio da interação
com elas, os seus conhecimentos culturais, levando em conta os pontos de vista delas sobre as
tecnologias digitais e as práticas que podem ser realizadas com e por meio delas. Nessas rodas
de conversa, elas também realizaram interações com tecnologias digitais.

Este ciclo ocorreu entre agosto e setembro de 2022 com 6 encontros presenciais, 2 com
as professoras, 2 com as famílias e 2 com as crianças, que duraram cerca de uma hora cada. Os
registros foram realizados por meio de diário de campo das falas e narrativas das crianças e
observação das interações e brincadeiras que realizavam. A análise dos dados foi realizada por
meio da triangulação de dados (Minayo; Assis; Souza, 2005) que inclui todos os sujeitos
envolvidos no processo como participantes e cruza essas múltiplas vozes e pontos de vista. Este
processo permite avaliar, interpretar a realidade, produzir significados para as perguntas
feitas.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Infâncias e usos das tecnologias digitais


A professora da turma, ao observar as brincadeiras das crianças, percebeu que quatro
delas estavam encostadas na parede, lado a lado, com massinha de modelar nas mãos e
conversando isoladamente, apesar de estarem em grupo. Curiosa sobre aquela situação, ela se
aproximou e perguntou sobre o que estavam brincando e uma delas respondeu: “A gente está
no Whats. Vou fazer um pedido”. Outra professora, de outra turma de crianças de quatro anos,
relata que constantemente as crianças contam sobre os vídeos, jogos, músicas que assistem em
casa e pesquisas que fazem no Google® e, no dia do brinquedo, trazem brinquedos como
celulares e videogames para a escola.

Brincando, as crianças mostram aspectos que demonstram o contato e uso das


tecnologias digitais no seu cotidiano. De acordo com os questionários, todas as famílias
possuem acesso a algum tipo de tecnologia informática, principalmente móvel, como o
smartphone que possui acesso à internet e, 80% delas, possuem televisão com acesso à internet.
Em 53,3% das famílias, as crianças possuem o próprio celular e fazem uso de uma a até mais de
quatro horas por dia, utilizando-os principalmente no contra-turno escolar e à noite. Os dados
mostram, ainda, que 93,3% das crianças assistem desenhos por meio das tecnologias digitais,
80% assistem vídeos no Youtube® e jogam, 66,6% utilizam as tecnologias informáticas para
desenhar e pintar, 53,3% fotografam e filmam com as tecnologias móveis, 40% baixam seus
próprios jogos e 26,6% utilizam essas tecnologias para se comunicar. A partir disso, o Youtube®
é o aplicativo mais utilizado, totalizando 86,6% das famílias e crianças, seguido da Play Stores
utilizada por 66,6%. Isso significa que um grande número de crianças joga e, inclusive, baixa
jogos para o celular.

Pode-se observar que estes dados refletem uma realidade situada, porém, dialogam com
pesquisas maiores, citadas anteriormente, sobre o uso de tecnologias digitais pelas crianças,
apesar do acesso se dar de forma desigual se olharmos para o território brasileiro. As famílias
destacam que as crianças acessam jogos de pintar e desenhar, de quebra-cabeça, de memória,
de montar, de simulação e construções. As crianças também relataram sobre suas experiências

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

e o conteúdo que consomem em nossas rodas de conversa: "Eu jogo o jogo da Masha e do Urso”;
“Eu assisto vídeos que têm dois personagens um em cima da cabeça do outro”.

Como destacam Muller e Fantin (2022, p. 11),

[...] tais dados demonstram que os momentos em frente às telas precisam ser
problematizados, sobretudo em relação à qualidade dos conteúdos, pois podem tanto
envolver a ampliação de repertórios culturais infantis como incitar o consumo da
indústria cultural. Nessa vertente, a criança é percebida mais como consumidora de um
nicho de mercado do que como um sujeito com direito à cultura ‒ que, por exemplo,
assiste a programas de qualidade adequados às potencialidades de seu desenvolvimento.

As crianças têm direito às tecnologias, o que significa poderem consumir produtos da


cultura digital e ter à disposição uma variedade de materiais. Porém, este cenário requer
discutir a qualidade destas produções e a proteção das crianças, assim como é preciso
encontrar formas de pensar as especificidades da criança, reconhecendo os seus direitos, e
possibilidades de apropriação das tecnologias como oportunidade de aprendizagem e
desenvolvimento. Acredita-se que esse processo precisa ser realizado incluindo as vozes das
crianças sobre o que elas pensam das tecnologias, como participam deste mundo e como se
expressam por meio e com ele.

O brincar na contemporaneidade
Brincar nos remete à infância. Bonecas, carrinhos, amarelinha, super-heróis, vídeos do
Youtube®, jogos digitais fazem parte do repertório das crianças hoje e nos convocam a pensar
o brincar na contemporaneidade. As crianças estão situadas em contextos sociais e culturais e
suas práticas lúdicas envolvem brincadeiras e artefatos analógicos e digitais, que constituem
suas experiências, que são interpretadas, apropriadas e recriadas por meio de sua capacidade
de imaginar, criar, inventar e produzir cultura.

As tecnologias utilizadas pelas crianças em seu cotidiano, nas mais diversas práticas
realizadas, podem contribuir para que elas coloquem suas competências em ação e as

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

desenvolvam. Na interação com as tecnologias, as crianças descobrem certos modos de usar


estes artefatos, se apropriam de brincadeiras e regras envolvidas neles, em interação com os
outros. Como destaca Kishimoto (2010, p. 01), “[...] a criança não nasce sabendo brincar, ela
precisa aprender, por meio das interações com outras crianças e com os adultos”. Após
aprender sobre os materiais, que a criança pode reproduzi-los em suas brincadeiras e criar
novas. Essas interações são evidenciadas em nossos encontros com as crianças e proporcionam
aprendizagens, como mostra o relato:

Enquanto organizava a sala e o projetor, as crianças estavam eufóricas e queriam saber o


que eu iria fazer. Dois meninos se aproximaram e começaram um diálogo comigo:
Criança A: Vamos fazer um cinema?
Criança B: O que é isso?
Pesquisadora: Este equipamento? Alguém conhece?
Criança A: Este é um notebook.
Pesquisadora: E este?
Criança A: Acho que é um rádio.
(Diário de campo da pesquisadora).

Quando perguntadas sobre os artefatos que apareciam nas imagens projetadas


(smartphone, tablet, notebook, televisão), as crianças relatam conhecê-los e contavam diversas
experiências que possuem com eles, apesar de não conhecerem o projetor: “Eu uso o celular e
jogo o jogo da Masha e do Urso”, “Eu faço pizza para comer”, “Eu pego o celular e tiro fotos
assim ó”. Cabe, também, à escola educar a criança com a diversidade de materiais, inclusive os
tecnológicos (Kishimoto, 2010).

Visualiza-se que a dimensão digital encontra-se presente desde a infância, por meio de
diversos artefatos que medeiam as relações das crianças e, com isso, elas vivenciam o faz-de-
conta, também, neste novo espaço lúdico que transforma o brincar, pelo fato de que ele envolve
o contexto em que ocorre, que está permeado por tecnologias. Como destaca Fantin (2006, p.
10), “[...] o brincar constitui-se pela interação de vários fatores presentes em determinados
contextos históricos e é transformado, continuamente, pela própria ação dos indivíduos e por
suas produções culturais e tecnológicas”.

210
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Por meio dessas brincadeiras, as crianças transformam o real, ao assumir práticas que elas
podem realizar por meio de um jogo, como fazer uma pizza e vendê-la, pelo WhatsApp®, aos
clientes para se alimentarem. Essa situação está permeada pelo imaginário da criança,
articulada com aspectos da realidade e acompanhada de regras, tanto sociais como criadas pela
criança durante a situação. Desta forma, a criança cria uma situação imaginária em sua
brincadeira, porém com vinculação com as vivências reais familiares e outros espaços sociais.

Na atividade lúdica da criança, Vigotski (2021) atribui um papel fundamental à imaginação,


pois articulada com movimentos, falas, roupas, brinquedos, faz emergir a criação de uma nova
realidade, permeada por regras e situações imaginárias. Assim, o cabo de vassoura vira um
cavalo, a cadeira vira um ônibus, a boneca vira a filha e a colega a irmã, um tablet vira uma
câmera de repórter. A partir desta criação, na brincadeira, a criança assume papéis que ela
ainda não tem condições de assumir na vida real, cria novas regras e relações, pois ali ela tem a
liberdade de criar e recriar, de imaginar e de agir. A imaginação permite, ainda, a satisfação das
suas necessidades e desejos irrealizáveis, como, por exemplo, quando brinca de fazer pizza e
vendê-la, o que na vida real não tem condições de fazer.

Como Brougére (2004) deixa claro, o brincar é estimulado pelos brinquedos e materiais
disponíveis e pelas suas possibilidades de ação, ou seja, seu potencial lúdico. Estes aspectos são
os que fazem a criança escolher iniciar uma brincadeira. Após alguns diálogos, o projetor e a
tela, dispostos na sala de aula, foram considerados, para as crianças, um convite para explorar
e brincar. Elas perceberam que a luz fazia sombras com o corpo delas e poderiam criar inúmeras
formas: de corações, de pássaros, das mãos. Testavam tirar e colocar a mão em frente a luz para
ver o que acontecia. Depois de um tempo, a brincadeira mudou para o toque no telão: as
crianças tocavam nos aplicativos que apareciam na tela e os diálogos eram: “Vou abrir aqui”,
“Cliquei aqui”. Observávamos a brincadeira, sentadas ao lado do notebook e logo uma das
crianças se aproximou e começou a explorar o mouse, com bastante agilidade, porém com
dificuldade de abrir os aplicativos e pastas. E ela decidiu que iria colocar uma música para os
colegas dançarem.

211
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Esse lugar simbólico e as possibilidades de expressão, por meio de múltiplas linguagens,


articularam o real e o digital, ou seja, o corpo da criança, a luz, o projetor, o toque, o som da
música, a dança, os gestos, a habilidade motora e imagens criadas. Nessa brincadeira juntaram-
se várias linguagens que se comunicaram umas com as outras, enriquecendo-se, pois enquanto
as crianças experimentavam gestos e movimentos com o corpo, exploravam também os efeitos
que a luz proporciona, sustentada pela linguagem verbal que gerava diálogos e trocas. Nesses
contextos, as crianças se apropriaram dos objetos, produziram significados e conhecimentos
por meio da ação com eles e da expressividade com seus corpos e mentes, em interação com
os outros e mediados pela cultura. Nesse sentido, concordamos com Souza (2019, p. 204) que
as tecnologias digitais podem ser entendidas “[...] como brinquedos digitais, por considerarmos
que o brinquedo se mostra como um objeto cultural carregado de significado”, com o qual a
criança, por meio da brincadeira, exerce seu papel de protagonista e de transformação da sua
cultura.

O brincar se alimenta, também, das tecnologias que fornecem repertórios para o ser e
vivem das crianças. Elas demonstram que interpretam o mundo, descobrem, exploram, criam
para entendê-lo e expressar suas compreensões por meio de múltiplas linguagens, como
defende Malaguzzi (2016). E o fazem, também, participando do mundo digital, destacando seus
interesses, desenvolvendo habilidades e aprendendo a utilizar as tecnologias.

Considerações finais
A partir das observações e reflexões que trouxemos, percebemos o entretecer da
infância com a cultura digital, a cultura infantil e o brincar na sociedade contemporânea
permeada, cada vez mais, por tecnologias digitais. As interações com contextos e brinquedos
digitais estão proporcionando novos elementos simbólicos e constituindo as culturas infantis.
As experiências das crianças estão atreladas ao contexto, à cultura da qual fazem parte e aos
artefatos e brinquedos que possuem acesso.

A cultura digital traz para o cotidiano das crianças novos objetos como tablets,
smartphones e televisão. Objetos que são considerados brinquedos pelas crianças e por meio

212
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

dos quais ocorrem as brincadeiras pelo potencial que trazem quanto à diversidade de
experiências lúdicas e possibilidade de brincar em novos formatos e com novos elementos. O
que muda é o conteúdo, porém, como observamos em nossa pesquisa, a essência do brincar se
mantém.

Inquietações e perguntas quanto à infância surgem nesse contexto permeado pelo


digital e nos provocam a pensar o lugar que as tecnologias têm ocupado na vida das crianças e
em suas brincadeiras. A convergência do analógico com o digital configura, hoje, os modos de
ser, viver, brincar e aprender da maioria das crianças e elas continuam utilizando elementos da
cultura infantil nos diferentes espaços e tempos que habitam. Ou seja, as crianças, como
autoras de suas experiências, têm encontrado nas relações com as tecnologias digitais formas
de conhecer, explorar, imaginar, reelaborar, expressar e produzir cultura. E para que isso seja
possível, também com as tecnologias, é essencial que elas possam se apropriar desses objetos.

Por meio do brincar as crianças articulam diferentes brinquedos e linguagens, juntam


umas com as outras, transitando pelos espaços analógicos e digitais. O fato das crianças terem
acesso às tecnologias, disponibilizadas pelas famílias, na maioria das vezes, permite que elas se
familiarizem e se apropriem desses artefatos, demonstrando os usos que fazem e
considerando-as como mais um espaço para brincar. Investigar estas relações pode contribuir
para entender como as crianças exploram o potencial das tecnologias no seu cotidiano e
possibilitar diálogos que articulam educação e tecnologias.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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tradução de Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2021.

215
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Jaqueline Michael Kruger – EMEI


Professora Marlene Leonhardt – Três
Passos– RS

Foto: Marcia Fernanda Hech – EMEI


Eufrázia Pengo Lorensi – Santa Maria – RS

216
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Entre os muros escolares, o verde se faz presente:


a horta escolar e a Educação Infantil
Mariana Borges Lemes
Marcia Fernanda Heck

Preparando o terreno

Terra que gera


Terra que acolhe
Terra que cuida
Terra que cura
Terra que conecta e permite que a vida floresça.
Terra mãe natureza!

Mariana Borges Lemes

Este artigo faz um relato reflexivo sobre uma ação ocorrida em uma Escola Municipal de
Educação Infantil (EMEI), de Santa Maria, que modificou o espaço externo da EMEI e
possibilitou a construção de uma relação com a comunidade. A experiência teve como guia a
visibilidade para as infâncias, o que instigou a organização de uma horta e o cultivo de
hortaliças, chás e temperos em ambiente de Educação Infantil enquanto potência para a
educação das sensibilidades no coletivo. Trata-se de um diálogo teórico entre a intervenção
pedagógica realizada na Escola Municipal de Educação Infantil Eufrázia Pengo Lorensi e o
referencial estudado no seminário “Educação Infantil: pesquisa, políticas públicas e práticas
educativas”. O espaço da horta se justifica pela necessidade da criação de espaços pedagógicos
em ambientes externos, nas escolas de educação das infâncias, e de visibilidade para as ações
das crianças e seus desejos, com o intuito de desemparedar a infância (Tiriba, 2010).

Nos anos de 2018 e 2019, as crianças da EMEI Eufrázia Pengo Lorensi, localizada na zona
urbana do município de Santa Maria, no bairro Urlândia, clamavam por serem vistas e ouvidas.

217
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O então Educador Especial e atual diretor Arlei Peripolli realizava observações para estágio
curricular obrigatório do curso de licenciatura em Pedagogia, na etapa final. Ouvindo as
crianças, observou-se, na escola, um espaço que poderia ser amplamente explorado, mas que
se encontrava abandonado e sem condições de acesso. A área compreende 45m²,
aproximadamente, entre a parede do prédio escolar e o muro de divisa com a escola vizinha.

Considerando as necessidades exploratórias das crianças e contando com o auxílio da


comunidade escolar, em um sábado letivo, teve início a fase de mudanças e adaptações de
espaços ociosos da escola, os quais passariam a ser ocupados pelas crianças para a construção
de uma horta.

Figura 1 - Comunidade trabalhando na revitalização do espaço


Fonte: acervo da EMEI Eufrázia Pengo Lorensi.

218
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Pensar as crianças e as infâncias exige um exercício constante no dia a dia de


pesquisadores(as) e professores(as), especialmente aqueles(as) que se inserem no contexto da
educação infantil.

Neste relato reflexivo, posicionamo-nos a partir da concepção de crianças como sujeitos


que pensam, imaginam, criam, recriam, são cidadãs, possuem vez e voz e, por muitas vezes, são
marginalizadas na sociedade, não sendo permitido a elas ocupar os devidos espaços, que são
seus por direito. Historicamente, a infância é vista como um período de preparação para as
etapas posteriores da vida e a criança é vista como um ser que deve ser ensinado, que não
produz cultura e que não é capaz de se organizar. Na verdade, até os dias atuais, essa
perspectiva de criança e das infâncias ainda está presente. Tomás (2014), a partir da pesquisa e
discussão sobre os direitos das crianças, e em discussão com outros autores, faz-nos repensar
e estruturar os conceitos de infância e criança.

A autora enfatiza que existem diferentes crianças e diferentes infâncias, cada qual
dependendo de seu contexto social e cultural. Cada criança, inserida em seu respectivo
contexto, produz uma cultura de infância. Para reconhecer, valorizar e compreender essa
diversidade, faz-se cada vez mais necessário ouvir as crianças, deixar-lhes representar e
construir os seus espaços, as suas escolhas, sem, contudo, eximir-se da responsabilidade com
a sua educação, lembrando que educar e cuidar, como orientam as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (Brasil, 2009), é responsabilidade do(a) professor(a)
que precisa pensar a criança em sua inteireza.

As crianças pequenininhas estão cotidianamente construindo cultura e ressignificando


as condições materiais que estão disponíveis a elas, contudo, só percebemos este caráter
ativo quando damos olhos e ouvidos para suas produções, rompendo com os mecanismos
coloniais que cerceiam as imagens mentais que temos sobre o que é vivenciar a infância
(Macedo et al., 2016, p. 41).

Assim, enxergamos as crianças a partir do olhar educador sociológico, entendemos que


são capazes de criarem e buscarem uma ruptura dos fazeres culturais que limitam a ação
infantil na sociedade, os quais são, tradicionalmente, construídos pela sociedade adultista e

219
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

patriarcal. Isso pensando na educação adultocêntrica em que a centralidade está na pessoa do


professor e não no protagonismo infantil. O que propomos são atitudes pedagógicas que
proporcionem oportunidades para que as crianças tenham autonomia para produzirem seus
próprios significados como produtoras de cultura. Dessa forma, as pesquisas com crianças têm
nos ajudado a pensar na potência das crianças e percebê-las cada vez mais presentes na
sociedade, tornando visível as culturas por elas produzidas, tirando-as dos espaços periféricos
e trazendo-as para o centro dos estudos e das discussões. Destacamos que “[...] a investigação
sobre/com as crianças, nomeadamente no papel preponderante dos Estudos da Criança, tem
contribuído para a consolidação da imagem da criança como sujeito de direitos” (Tomás, 2014,
p. 134).

Assim, tratamos a educação infantil como práxis dos direitos das crianças, da
desocultação dos silêncios e o direito à natureza, além de sua própria natureza, como sujeito
pertencente ao mundo, para, especificamente, pensar o direito das crianças de ter contato com
o ambiente externo às paredes da sala, no espaço externo da escola. A criança é ator social pelo
seu movimento fluído e simbólico do brincar, necessita de espaço, necessita ser escutada e
visibilizada para que possa ser sujeito cultural em contato com ambientes naturais e citadinos,
podendo circular e explorar todos os espaços com liberdade, o que não ocorre nessa ideia atual
de cidade nada educadora (Gadotti, 2006), com vias expressas e escolas emparedadas.

Consideramos, assim, as crianças como produtoras de culturas, sujeitos históricos e


sociais e, nesta ação que vamos narrar, percebemos que elas foram ouvidas e vistas na escola.
Dessa forma, entendemos como a ocorrência de um ensaio para construir escolas da e para a
infância, mudando paradigmas, estimulando que as crianças ocupem os espaços de interação
na escola. São as próprias crianças, em suas interações, que, diariamente, convidam-nos a
repensar as práticas pedagógicas, problematizar certezas e reconquistar habilidades tidas
como esquecidas. Flávio Santiago (2015, p. 133) define as crianças como:

[...] sujeitos ativos, atuando diretamente nas relações sociais, contribuindo para
construção do mundo e estabelecendo conexões diretas entre os diferentes sujeitos,

220
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

adultos ou não adultos, que as rodeiam, produzindo culturas e ressignificando signos


sociais.

Kramer e Leite (1996) nos convidam a ter outro olhar para a infância, já que as culturas
infantis são universos individuais particulares e a infância é vivida de diferentes modos, assim
como, conceitualmente, é entendida como uma construção social. Tomás (2014, p. 131) afirma
que:

A criança e a infância são construções sociais e, desta forma, é tarefa impossível a


generalização de uma ou duas imagens, ainda que elas sejam importantes e que se tornem
ingredientes fundamentais para a prática e para a ação social e profissional dos adultos
que com elas trabalham e, ainda, que tenham influência nos quotidianos infantis.

Na educação infantil, considera-se os sujeitos crianças como seres sociais, com


individualidades potentes e nada homogêneas ou passível de generalização, pois “[...] crianças
não são passivas, mas, sim, sujeitos concretos produtores de culturas infantis” (Santiago, 2015,
p. 133). Como o autor afirma, pode haver uma inversão hierárquica em que a criança seja o
centro; a partir da criança que surgem as práticas pedagógicas intencionadas e pensadas para
aquele grupo, demandas que surgem nos acontecimentos, experiências de um dia a dia caótico
por tantas subjetividades, mas ricos na multidão cultural que, juntos, podem aprender mais,
ampliar horizontes de conhecimento. Entendendo o espaço escolar como lugar da diversidade,
por isso, multiplicidade cultural, em que cada sujeito contribui para a composição do coletivo,
assim, as crianças com suas peculiaridades, interesses, vontades, experiências e significados
constroem a escola.

Para além do cuidado, a educação infantil preconiza o educar e orienta para uma formação
docente implicada pelo social, intencionalidade pedagógica crítica de educar de uma forma ou
outra. As exigências do mundo contemporâneo e a preocupação com a continuidade da vida na
terra clamam para uma alfabetização ecológica, como propõe Fritjof Capra (2006, p. 15), pois
“[...] a educação por uma vida sustentável estimula tanto o entendimento intelectual da ecologia
como cria vínculos emocionais com a natureza”. Assim, as crianças aprendem sobre os ciclos

221
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

da vida, as teias que tecem o viver com o plantio e o cultivo dos solos no formato de hortas e
podem aprender a cuidar do ambiente em que vivem, tornar-se agentes em defesa de uma vida
saudável e conectada com as sensibilidades no coletivo.

Mudar de perspectiva acerca do entendimento do que é a criança exige se despir do


adultocentrismo, relação de poder que se estabelece entre adultos e crianças, em que os
adultos impõem verdades sobre as crianças. O adultocentrismo menospreza a potencialidade
da infância, diminui a capacidade atuante e imaginativa de criar e produzir significados das
crianças, já que, para expressar o que se pensa, sente ou intenciona, as crianças possuem várias
linguagens.

Interpretar em termos holísticos o desenvolvimento das crianças significa, em primeiro


lugar, assumir uma representação e uma imagem de criança inteira: o seu mundo não é
dividido em cognitivo, afetivo, cultural e social, mas essas dimensões estão
profundamente interligadas em um sistema unitário (Infantino, 2022, p. 82).

A multiplicidade de expressão se dá através de desenhos, construções na materialidade,


falas, corporeidade, brincadeiras, explorações e imaginação, assim, as múltiplas linguagens
possibilitam que as crianças possam expressar suas potências como sujeitos que brincam e
agem de forma ativa, seres completos e presentes na sociedade. A criança ocupa um lugar social
de unicidade, de forma integral e unitária para, então, compor a comunidade. A escola pode ser
considerada uma comunidade, um grupo, um encontro de pares. Esse lugar pode ser de
pertencimento, que significa pertencer a uma dada cultura e local, estar e compor o ambiente
com a presença de ser criança, com direitos previstos por lei assegurados. A perspectiva
adultocêntrica nem sempre acolhe as crianças, impondo a cultura adulta tradicional para com
a educação das infâncias.

O direito das crianças de estarem em ambientes abertos, arborizados, biodiversos e


plurais perpassa a prerrogativa do desemparedamento da infância (Tiriba, 2010), ou seja, sair
das paredes das salas de referência para a área externa.

222
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O direito ao ambiente está fundado no respeito à condição biofílica dos seres humanos e
o reconhecimento dessa condição é fundamental à garantia de direitos humanos. Com
base nestas ideias é que defendemos o direito de aproximação dos seres vivos em direção
a outros seres vivos. A retomada de relações estreitas nos leva à proposição de
reintegração ao universo do qual somos parte através de um movimento de
desemparedamento (Tiriba, 2017, p. 82).

No caso deste trabalho, a parte externa possui horta, o que pode nos fazer lembrar de
como iniciou o processo da civilização da humanidade, semeando, plantando e cultivando
plantas na agricultura. Assim, a horta é um exercício de ocupar o lugar em que se vive com a
natureza plantada, com o que podemos colher e dispor, como frutos do cuidado com a vida no
coletivo, prática que exige uma mudança de perspectiva de educação da infância e de muitas
mãos para a construção de um ambiente comum.

Do plantio à colheita: horta na escola e o dia a dia das infâncias


Aqui, detalharemos o percurso que fez nascer a horta. Em uma primeira tentativa, após
preparar o terreno, com auxílio da comunidade escolar, a horta foi semeada. Eram tempos de
alegrias que parecia que encontrávamos caminhos para o desemparedamento das infâncias.

No caminho, um obstáculo se interpôs e colocou as crianças entre as paredes de seus


lares por quase dois anos (2020 a 2022). O mundo inteiro foi acometido pela pandemia de Covid-
191 e foi necessário, pela segurança das famílias, adaptar as atividades escolares para serem
realizadas nas residências das crianças. No ano de 2022, com a retomada total do ensino
presencial e em busca, cada vez mais, da valorização das culturas infantis, retomam-se as
ocupações dos espaços escolares pelas crianças e suas curiosidades, ideias, experiências e
explorações.

1
Mais informações, acessar: https://covid.saude.gov.br

223
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Figura 2 - Criança preparando o terreno para a semeadura


Fonte: acervo da EMEI Eufrázia Pengo Lorensi.

As experiências de educação emparedadas durante a pandemia foram diferentes da


educação emparedada nas escolas, já que as crianças se encontravam comumente entre
adultos, em seu ambiente familiar, com a ausência de pares da mesma faixa etária. As
experiências escolares eram realizadas de forma remota, online, com auxílio dos responsáveis,
ficavam limitadas ao que podia ser realizado e não ao que deveria ser realizado.

224
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A escola orientava pensando a educação infantil como espaço e tempo de brincar,


interagir e explorar o mundo. O cultivo de relações entre pares, o cuidado com o outro e a
ocupação dos lugares na escola ficaram isentos de vida, tempo em suspenso dessas infâncias
que ficaram alienadas em um mundo que vivia a crise de cuidado.

A educação infantil tem como eixos fundantes a brincadeira e a educação (Brasil, 2009;
2017), uma vez que entendemos a criança como sujeito ativo, produtor de cultura, implicado
pelo meio em que vive e localizado culturalmente. Como afirmado por Silva (2011, p. 111), “[...] a
docência na educação infantil está construindo-se, e diante desse movimento e das diferenças
vivenciadas, as crianças estão sinalizando outra escola, produzindo, reproduzindo e
construindo culturas”.

Existe um pensamento centrado nos objetivos a serem alcançados pelo docente e outro
na educação da criança, entendendo essa como protagonista, ambos devem caminhar juntos
quando se trata da educação das infâncias. Essa articulação se faz necessária desde a formação
docente até o exercício da profissão, em que os tempos possam ocorrer para além das sirenes
ou das rotinas de higiene, como o espaço para o ineditismo nos planejamentos, o imprevisto, o
acontecimento como margem de aprendizagens e explorações outras. Educação como uma
“[...] conexão profunda sem operar separando a dimensão afetiva do cognitivo ou relacional”
(Zuccoli; Infantino, 2018, p. 25). Uma cultura outra da infância perpassa uma formação docente,
que acolhe as diferenças e as sensibilidades de cada sujeito, como, também, os objetivos de
aprendizagem dos documentos orientadores da educação infantil. Assim, podemos educar os
sujeitos a partir dos sentidos, mas, também, de forma crítica para que possam aprender a
enxergar a realidade com as lentes da inventividade e da possibilidade, para além da ideia de
uma educação consumista e competitiva. “Na realidade, são os serviços infantis e as culturas
profissionais que os caracterizam que tendem a separar e classificar de forma redutiva aquilo
que na vida e nos fenômenos humanos está inextricavelmente entrelaçado” (Infantino, 2019, p.
41).

Pensar as práticas com as infâncias requer envolver o olhar e a escuta à criança. As


crianças se colocam, diariamente, como desafiadoras dos adultos, elas são curiosas, questionam

225
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

o mundo à sua volta, pesquisam, superam suas dificuldades e, em grupos ou individualmente,


constroem novos conhecimentos. A mediação e a intervenção adulta nas experiências das
crianças orientam sem ultrapassar limites impostos pela necessidade de aprendizagens:
“somente pelo desenvolvimento de formas plurais e complexas de acesso, o mundo adulto pode
tentar entrar em contato com o mundo das crianças” (Infantino, 2019, p. 44).

No retorno à escola, em 2022, a horta foi semeada, novamente, e, com as mudas crescidas,
o plantio foi realizado pelas próprias crianças, com orientações do diretor da escola.

Figura 3 - Criança semeando alface na horta escolar


Fonte: acervo da EMEI Eufrázia Pengo Lorensi.

No início, o contato com a terra, para algumas crianças, foi cauteloso. A mão ficou suja.
Havia minhocas e outros bichinhos na terra. Havia pedrinhas e galhinhos. Contudo, todos, cada
um à sua maneira, tiveram a oportunidade de plantar uma muda de alface, de rúcula, de
beterraba, de cenoura, de rabanete, de couve ou de repolho. À medida que a plantação ia

226
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

crescendo, as curiosidades sobre as espécies de plantas aumentavam e o diretor sanava as


dúvidas das crianças. As professoras, por sua vez, supervisionavam os grupos maiores em sala
de aula e ouviam os relatos dos pequenos quando estes voltavam para o espaço no qual se
encontrava o restante da turma.

Figura 4 - Horta escolar semeada


Fonte: acervo da EMEI Eufrázia Pengo Lorensi.

227
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

O novo surgiu, com muitas mãos da comunidade escolar e com o plantio das mudas pelas
crianças, um espaço foi construído por elas. O espaço que antes era esquecido e não explorado
pelas crianças passou a ser um lugar de construção de conhecimentos, contato com a terra e
com o espaço externo. Com os devidos cuidados e o passar dos dias, meses e estações, a horta
escolar começou a dar frutos.

A produção foi muito utilizada no lanche escolar e alguns pés de alface, vegetal que mais
vigorou, foram doados aos pais, conforme vinham buscar seus pequenos na escola. Havia
crianças que, diariamente, levavam seus pais até a horta para mostrar o quanto havia crescido
ou o que haviam colhido para o lanche do dia, como rabanetes, beterrabas, cenouras, couve e
repolho.

Figura 5 - Criança colhendo alface para o lanche escolar


Fonte: acervo pessoal da EMEI Eufrázia Pengo Lorensi

228
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Muitas receitas foram criadas pelas professoras, em sala de aula, como as tintas naturais.
As crianças utilizaram cascas e folhas de legumes e vegetais da horta, bem como demais
elementos naturais coletados por eles, para criar as tintas.

Na cozinha da escola, as servidoras produziram omeletes de beterraba, cenoura e couve


para a alimentação, quase que semanalmente, das crianças. Bolos dos mais variados, com
beterraba, couve, cenoura, até bolo colorido, todos “temperados” com a imaginação das
crianças, tornando bolos mágicos, ou bolos do Hulk2. Foi possível perceber a potência de
elementos naturais, plantados, cultivados e colhidos pelas próprias crianças, tornando-se
ponto de partida para explorações e descobertas diversas.

Um espaço como esse, construído na escola, possibilita o surgimento de outras relações


das crianças com os adultos, no caso, as(os) professoras(es). O(a) adulto(a), durante a relação
com as crianças, “[...] não transmite, não dirige, não antecipa, mas ao mesmo tempo não se
coloca fora dos processos de conhecimento das crianças, não se limita a organizar, estar
presente, observar e encorajar” (Infantino, 2022, p. 90), mas encoraja a perguntar, alimenta a
curiosidade, o interesse, questiona as crianças. O(a) professor(a) se torna um modelo com o
qual a criança irá interagir, socializar e, portanto, a partir das relações, realizar novas
descobertas. A experiência com a horta possibilitou o comprometimento com as práticas na
educação infantil, o interesse em permitir às crianças a interação com espaços externos e a
possibilidade de ativar o pensamento das crianças.

Preparar o terreno significa habitar o espaço escolar com as hortas, mas, também, criar
leis que amparem os direitos à educação das crianças em contato com a natureza, assim, podem
plantar e colher bons hábitos de cultivo da coletividade, desenvolvendo habilidades de
conversação de relações, como de espaços naturais. Ainda, a lei n° 6.659/2022 institui o
Programa Municipal de Educação Ambiental nas escolas da rede pública municipal de ensino,
no município de Santa Maria/RS. “Art 4°: São linhas programáticas do Programa Municipal de
Educação Ambiental: I - a aprendizagem com a natureza, através de visitas interativas e

2
Personagem de quadrinhos, propriedade da Marvel Comics.

229
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

sensoriais em espaços naturais, como parques, bosques, mata ciliar, rios e outros” (Santa Maria,
2022).

Aprender a viver a cidade que se habita também significa participar da organização dos
espaços, desde os ambientes familiar e escolar. Cuidar da biodiversidade é sinônimo de
aprender uma forma de conviver de maneira sustentável com todos os seres vivos. A educação
de qualidade está no 4º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável3, da Agenda 2030, da
Organização das Nações Unidas4:

4.7 Até 2030, garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades
necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por
meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis,
direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não violência,
cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o
desenvolvimento sustentável.

Não entendemos as crianças como alunas, mas, sim, como sujeitos brincantes e
aprendentes na experiência. Ainda, ressaltamos a necessidade de uma educação em contato
com a natureza, com isso, qualificar a educação com crianças vai além de propor experiências
planejadas e pensadas dentro das paredes da escola, vai além dos muros dos prédios escolares,
para o ambiente externo. Nisso, a horta dessa escola diz muito sobre como a educação em
contato com a natureza pode ser vivida dentro da comunidade, na colaboração, apreço pelo
cuidado e trabalho do outro no cultivo de cada muda plantada. A educação das crianças mais
próximas da natureza está completamente relacionada à condição de que são seres naturais,
além de culturais (Tiriba; Profice, 2019). Nesse sentido,

3
Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa e promover oportunidades de aprendizagem, ao
longo da vida, para todos.
4
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o
meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade.
Estes são os objetivos para os quais as Nações Unidas estão contribuindo a fim de que possamos atingir a Agenda
2030 no Brasil. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em: 20 jan. 2023.

230
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

As crianças necessitam do universo maior tanto quanto este necessita delas. Porque não
se trata de interação entre dois sujeitos – humano e não humano. Trata-se de uma
unidade! A natureza perde quando um de seus elementos se afasta e desenvolve
sentimentos de indiferença, ou mesmo de desprezo por esse universo infinito. Há
relações entre distanciamento e degradação ambiental! (Tiriba; Profice, 2019, p. 18).

A educação com crianças em contato com a natureza pode partir do preparar o terreno,
plantar e cultivar para colher bons frutos, literalmente, como na experiência da horta, o que
também propicia uma educação no coletivo. Educar como ação de integrar, unir, aproximar,
convidar, cultivar e cuidar. "Então vamos pensar a educação como foi pensada até agora, ela
precisa ir além para poder ajudar a criar e construir seres humanos para uma Terra viva. Seres
vivos para uma terra viva" (Krenak, 2020, p. 20).

Os direitos das infâncias a uma educação de qualidade implicam em muitos quesitos, mas,
neste trabalho, ressaltamos a educação das crianças na natureza, educação como experiência
brincante de aprender no e sobre o mundo, produzindo significados e modos de estar no
mundo como crianças. Ser criança é ter direito a ocupar seu lugar na escola com espaços
possibilitadores de múltiplas experiências e aprendizagens, a estar e brincar com autonomia e
segurança em ambientes públicos ao ar livre, a ser sujeito social ativo.

Qual a real aplicabilidade dos direitos das crianças na vida delas? Esse questionamento
faz parte de um trabalho escrito pela professora portuguesa Catarina Tomás, em que afirma a
necessidade que temos como sociedade de “[...] incluir as vozes das crianças e integrar
mudanças que se produziram nas sociedades contemporâneas e nos seus mundos de vida”
(Tomás, 2017, p. 14). Nisso, a educação infantil ainda requer um olhar e uma formação específica,
de docentes que enxerguem as crianças como seres sociais desde o princípio, em que de fato
existam oportunidades de exploração, manipulação e conhecimento de mundo através das
práticas pedagógicas, não um cumprimento do dever conforme o currículo, mas, sim, um
espaço em cidadania das crianças, como diz a mesma autora. “Os direitos da criança necessitam
ser (re)apropriados/as pelos/as profissionais de educação, na sua visão crítica, como um guia
emancipatório das suas práticas pedagógicas” (Tomás, 2017, p. 15).

231
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Pensar a educação da criança em contexto escolar envolve, também, pensar a prática


docente. Presenciamos, diariamente, professoras de crianças pequenas e crianças bem
pequenas pensando a sua prática tomando como orientação as datas comemorativas que fazem
parte, muitas vezes, do calendário de uma única religião ou cultura. Isso, além de reduzir o
conhecimento de mundo e as oportunidades de experienciar das crianças, limita a forma como
elas enxergam e vivem como sujeitos sociais. Dessa maneira, quanto mais experiências diversas
e com múltiplos sujeitos e culturas as crianças tiverem contato, maior a possibilidade de
desenvolverem relações saudáveis e olhar crítico para o viver em sociedade. Logo, uma
educação outra pode construir outras formas de educar as sensibilidades no coletivo.

Os frutos gerados
A experiência colocada em prática na escola nos possibilita perceber a relevância e a
potência de implementar um ambiente em que as crianças podiam estar em espaços externos
às salas, ter contato com a terra, semear, acompanhar o nascimento das mudas, plantar as
mudas, ver as minhocas, perceber que a terra é vida e produz vida. Além disso, a experiência
promoveu uma relação com a comunidade que podemos defini-la como vida cultivada,
proporcionando maior e melhor relação entre escola e comunidade. A escola, ao convidar as
famílias para participarem da construção da horta, abriu as portas para que elas adentrassem à
área escolar e se sentissem cada vez mais pertencentes a este espaço que é relevante para as
crianças e que lhes possibilita viver a infância, famílias semeadoras de vida em experiências de
práticas pedagógicas desemparedadas com crianças.

O cultivo e a colheita de alimentos saudáveis se tornaram hábito diário, mas, para


crescer, é preciso cuidar, é necessário ter responsabilidade para molhar as plantinhas, cuidado
com elas até que cresçam e, principalmente, respeito ao realizar a colheita, uma experiência
estética de cuidado importante e que pode se estender ao cuidado com a vida do outro. Aquilo
que cultivamos acaba se tornando mais satisfatório ao nos nutrirmos e essa relação foi
percebida nas reações das crianças ao colherem e se alimentarem dos alimentos que foram

232
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

plantados por elas. Nota-se, ainda, a satisfação das famílias ao ver o que seus filhos fizeram do
espaço escolar, o que se tornou um elemento de ligação entre escola e comunidade.

As crianças ocuparam um ambiente que, até então, estava esquecido, sem vida,
possibilitando, assim, a participação e a visibilidade das culturas infantis nos espaços
educativos, assim como a educação das infâncias em ambiente com mais vida.

Referências
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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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234
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos
ZUCCOLI, Franca Giuliana; INFANTINO, Agnese. Curriculum zero-seis: conhecimentos feitos de descobertas e reflexões. Revista
Linhas, Florianópolis, v. 19, n. 40, p. 16-37, maio/ago. 2018. Disponível em:
https://revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723819402018016. Acesso em: 17 jan. 2024.

235
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Jaqueline Michael Kruger – EMEI


Professora Marlene Leonhardt – Três
Passos- RS

Foto: Marcia Fernanda Hech – EMEI


Eufrázia Pengo Lorensi – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A importância do lúdico e do brincar em atividades


geoeducativas: o caso do Geodia, no Geoparque
Caçapava Mundial UNESCO, RS
Eduarda Caroline Brum
André Weissheimer de Borba

Introdução
O brincar é essencial para o desenvolvimento infantil e está presente desde os primeiros
anos de vida da criança. Nesse sentido, de acordo com Salva e Beltrame (2021), além do direito
à educação, as crianças pequenas têm direito de brincar, sendo a brincadeira uma das
aprendizagens essenciais para a convivência em sociedade.

Dessa forma, em atividades de geoeducação, o brincar e o lúdico são grandes aliados no


processo de ensino-aprendizagem de um determinado assunto, fazendo com que as crianças
aprendam de forma didática e prazerosa.

Em vista disso, a geoeducação tem por objetivo qualificar e aperfeiçoar o ensino formal
e não formal nas áreas relacionadas à geologia e à geomorfologia, através da utilização de
exemplos locais (de uma rocha, de uma forma de relevo, de um fóssil), para despertar a
curiosidade e o orgulho de crianças, jovens e adultos em relação ao seu território (Brilha, 2012;
Borba et al., 2015).

A geoeducação, aliada à geoconservação e ao geoturismo, faz parte das bases


necessários para o desenvolvimento de um território que busca o selo de Geoparque Mundial
da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), sendo
este o caso do município de Caçapava do Sul, que, nos últimos anos, trabalhou incessantemente
para o alcance desse objetivo.

237
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Portanto, dentre as estratégias para o alcance do selo como geoparque, os projetos de


geoeducação, também chamada de educação geopatrimonial ou educação para as geociências,
são de grande valia.

Nesse contexto, Moura-Fé et al. (2016) destacam que a geoeducação pode ser entendida
como um ramo específico da educação ambiental a ser aplicado na geoconservação e que seja
fomentado e desenvolvido nos âmbitos formais e/ou não formais do ensino.

Os projetos de educação geopatrimonial buscam divulgar e ampliar o conhecimento sobre


a riqueza de determinado município, de forma que os educadores levem para a sala de aula, no
ensino de Geociências, as riquezas naturais locais, o que facilita a aprendizagem dos educandos
por fazer parte de suas realidades.

O município de Caçapava do Sul, localizado no centro-sul do estado do Rio Grande do Sul,


é considerado a “Capital Gaúcha da Geodiversidade”, através da lei 14.708, de 2015, e busca, por
meio de diversos projetos de incentivo à geoconservação, ao geoturismo e à geoeducação, a
certificação como Geoparque Mundial da UNESCO, o que ocorreu no ano de 2023.

No ano de 2015, surgiu a ideia da realização de um evento educacional para celebrar o


título de Capital Gaúcha da Geodiversidade, denominado "Dia da Geodiversidade" ou "Geodia".

O Geodia se tornou o principal evento geoeducativo do Geoparque Caçapava,


sendo baseado nos “geolodías” e “geoyncanas”, da Espanha, os quais ocorrem desde o ano de
2005, na província espanhola de Teruel, com o intuito de divulgar a geologia para a população.

Dessa forma, no Geodia, busca-se realizar diversas atividades sobre a geologia, a


geomorfologia e a paleontologia, local com brincadeiras e atividades lúdicas com crianças de 3
a 12 anos de idade, pois se acredita que, dessa forma, consegue-se envolver mais os educandos
com o município, fazendo com que, desde pequenos, possuam conhecimento das riquezas
naturais existentes em Caçapava do Sul.

Dada a importância do lúdico e do brincar na Educação Infantil, Kishimoto (2014, p. 83)


aponta que “[...] o brincar torna-se um dos temas importantes da contemporaneidade capaz de

238
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

quebrar fronteiras de diferentes áreas do conhecimento”. Além disso, aliada ao brincar, a


ludicidade constitui um traço fundamental das culturas infantis; o brincar não é exclusivo das
crianças, mas próprio do ser humano, sendo uma das suas atividades sociais mais significativas
(Sarmento, 2004).

Logo, para Salva e Beltrame (2021, p. 156), “[...] o brincar de faz de conta na perspectiva
histórico-cultural é tido como necessidade e principal meio de aprendizagem do mundo infantil
e das funções psíquicas superiores”.

Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo refletir e debater sobre a
importância do lúdico e do brincar no processo de desenvolvimento infantil, através de uma
atividade desenvolvida no Geodia, com crianças de 3 a 8 anos de idade: a sessão historiada “Uma
vida de preguiça”, a qual divulga informações sobre o principal fóssil encontrado no município
de Caçapava do Sul - a Preguiça-gigante -, por meio de brincadeiras.

Procedimentos metodológicos
Para o desenvolvimento do trabalho, foi utilizada como base a pesquisa bibliográfica a
qual, para Macedo (1994), é a primeira etapa em qualquer tipo de pesquisa científica, buscando
revisar a literatura existente e não redundar o tema de estudo ou experimentação.

Dessa forma, para Sousa, Oliveira e Alves (2021), a pesquisa bibliográfica é o levantamento
ou a revisão de obras publicadas sobre a teoria que irá direcionar o trabalho científico, portanto,
foi realizada uma busca por autores que discorrem sobre assuntos acerca da importância do
brincar e da ludicidade na Educação Infantil para direcionar o trabalho.

As escritas de diversos autores, como Kishmoto (2014), Brougère (2015), Gutton (2013) e
Dantas (2015), foram essenciais para obter melhor compreensão sobre o lúdico e o brincar, a
fim de firmar a premissa de que esses atos são de suma importância para o desenvolvimento
infantil.

239
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Para facilitar o entendimento sobre o que é geoeducação, os estudos de Borba et al. (2015)
e Moura-Fé et al. (2016) foram imprescindíveis, além disso, para apresentar a sessão historiada
desenvolvida no Geodia, foram utilizadas as experiências da participação ativa da presente
autora em seis edições desse evento.

Resultados e discussão
A importância do brincar

Na infância, o brincar está presente desde a mais tenra idade, ele faz parte do
desenvolvimento infantil e está enraizado na criança. De acordo com Dantas (2015), o recém-
nascido “brinca”, exercitando suas possibilidades sensoriais nascentes, brinca de “gorjear”,
brinca de se olhar, sendo que suas reações circulares primárias não passam de brincadeiras
funcionais.

Nesse mesmo sentido, Gava e Jardim (2015, p. 7) destacam que: “Desde que a criança
nasce, usa sua linguagem corporal para conhecer a si mesma, para relacionar-se com os pais,
para movimentar-se e descobrir o mundo; essas descobertas feitas com o corpo deixam marcas
que são aprendizados afetivos incorporados”.

A criança brinca e imagina situações de faz de conta com extrema facilidade, para Gava e
Jardim (2015, p. 2):

Brincando é que a criança busca informações desejadas, estabelece


coordenações, organiza suas ideias, faz verificações, experimenta sensações,
motivada pela necessidade interior e realizada pela própria atividade. Tudo isso
vem demonstrar a importância de propiciar condições para as brincadeiras
infantis.

Para Bomtempo (1999, p. 61), no ato do brincar, “[...] a assimilação predomina e a criança
incorpora o mundo à sua maneira sem nenhum compromisso com a realidade”. Já para Teixeira
e Volpini (2014, p. 77), “[...] o brincar auxilia na aprendizagem fazendo com que as crianças criem

240
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

conceitos, ideias, em que se possam construir, explorar e reinventar os saberes”, além de


refletirem “sobre sua realidade e a cultura em que vivem”.

Em vista disso, Teixeira e Volpini (2014, p. 82) afirmam que “[...] ao brincar a criança
aprende a conhecer, a fazer, a conviver e a ser, favorecendo o desenvolvimento da
autoconfiança, curiosidade, autonomia, linguagem e pensamento”.

Para Brougère (2015, p. 19): “Brincar é visto como um mecanismo psicológico que garante
ao sujeito manter uma certa distância em relação ao real, fiel na concepção de Freud, que vê no
brincar o modelo do princípio de prazer oposto ao princípio da realidade”.

Para Gutton (2013, p. 56), “[...] a brincadeira é um processo psicológico mediado por um
objeto real chamado brinquedo”.

Aliado ao brincar está a ludicidade, os quais são capazes de auxiliar em uma


aprendizagem mais significativa, pois, para Dantas (2015, p. 115):

Dizer que a atividade infantil é lúdica, isto é, gratuita, não significa que ela não atenda às
necessidades do desenvolvimento. Embora “inútil”, “fútil”, do ponto de vista imediato, ela
tem enorme importância a longo prazo. A necessidade de garantir espaço para o gesto
“inútil” adquire enorme importância.

Dessa forma, para Vygotsky (1991), é através da ludicidade que se objetiva um espaço para
o educando brincar, sendo esta uma forma de reorganizar experiências, possibilitando a
construção de conhecimentos no ato da brincadeira. Então, Dantas (2015, p. 111) afirma que:

O termo “lúdico” abrange os dois: a atividade individual e livre e a coletiva e regrada. O


que chama atenção, quando pedimos a profissionais de educação infantil sinônimos para
ele, é a tendência a oferecer “prazeroso” e nunca “livre”. Ludicamente é visto como
prazerosamente, alegremente, e não “livremente”.

Sobre a produção da cultura lúdica, Brougère (2015, p. 26) afirma que:

241
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A criança adquire, constrói sua cultura lúdica brincando. É o conjunto de sua


experiência lúdica acumulada, começando pelas primeiras brincadeiras de bebê,
evocadas anteriormente, que constitui sua cultura lúdica. Essa experiência é
adquirida pela participação em jogos com os companheiros, pela observação de
outras crianças (podemos ver no recreio os pequenos olhando os mais velhos
antes de se lançarem por sua vez na mesma brincadeira), pela manipulação cada
vez maior de objetos de jogo (Brougère, 2015, p. 26).

Para Werle e Bellochio (2018, p. 286), as experiências na infância se constituem através do


brincar: “As crianças brincam não porque gostam de criar e imaginar, brincam porque, através
do brincar, tem a possibilidade de representar e compreender a realidade. Brincando, as
crianças produzem culturas”.

Logo, no momento que se leva aos educandos uma sessão historiada sobre a preguiça-
gigante, eles agem como preguiças, imitando seu som, sua forma de andar, de colher folhas, de
habitar, sendo que, naquele momento, o conhecimento passado sobre o animal é incorporado
de forma lúdica e livre, como algo totalmente espontâneo, pois, como apontado por Bomtempo
(1999), é de suma importância a incorporação do mundo sem compromisso com a realidade.

Infelizmente, ainda há educadores que carregam consigo certo tabu em relação à inserção
de brincadeiras em suas aulas, além da falta de informação da população, em geral, sobre o
assunto, visto que ainda há pais que acreditam que o conhecimento se dá em torno de conteúdo
somente escrito. Nesse sentido, Vygotsky (1991, p. 88) afirma que:

[...] a opinião popular é olhar as brincadeiras como uma forma de ócio, como um tipo de
divertimento que apenas faz o tempo passar. É raro ver algum valor que seja nas
brincadeiras, no máximo pode-se pensar nas brincadeiras como uma forma de fraqueza
natural da infância a qual ajuda a criança a matar o tempo por um período.

Desse modo, para Teixeira e Volpini (2014), a infância é uma etapa fundamental na vida da
criança para que ela aprenda a brincar, sendo esta etapa considerada a idade das brincadeiras,
destacando-se, também, o lúdico, pois é algo que faz com que a criança reflita e descubra sobre
o mundo em que vive. Porém, para as autoras:

242
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Outro fator que também bloqueia esse direito é quando a Instituição de ensino não possui
espaços adequados para que ocorra o brincar. Junto com o brincar, o espaço físico e
social também é essencial para o desenvolvimento das crianças, já que por conta dessa
interação entre eles, a criança constrói o conhecimento de si mesma (Teixeira; Volpini,
2014, p. 84).

Nesse sentido, a brincadeira, diversas vezes, não permanece ao lado das crianças depois
que deixam a Educação Infantil, muito menos transpõem os limites da escola. Dessa forma,
Salva e Beltrame (2021) apontam que a defesa do brincar reivindica o direito à infância que, na
impossibilidade de ser vivida no cotidiano, possa ser vivida nos contextos escolares.

Sendo assim, o Geodia é um espaço não formal que mostra que o lúdico e o brincar podem
transpor os limites escolares e ocorrerem em qualquer local, pois, como indicam Salva e
Beltrame (2021), é de fundamental importância, no processo de aprendizagem, a relação entre
as crianças, atuando em atividades coletivas e possibilitando a troca de informações e
experiências.

O brincar na prática

O Geodia ocorre desde o ano de 2015 e foi idealizado por meio de uma parceria entre
professores e alunos da Universidade Federal de Santa Maria, Universidade Federal do Pampa
e Universidade Federal de Pelotas, juntamente com a secretaria da educação de Caçapava do
Sul.

A proposta faz parte do projeto “Atividades de Educação Geopatrimonial: O Geodia como


base do projeto Geoparque Caçapava”, cujo registro no portal de projetos da Universidade
Federal de Santa Maria se deu no ano de 2019 e se enquadra em projetos de extensão.

Portanto, desde o ano de 2015, o Geodia vem ocorrendo uma vez ao ano, sempre no mês
de novembro, em ambiente não formal e ao ar livre, nesse caso, na Praça Dr. Rubens da Rosa
Guedes, no centro do município de Caçapava do Sul. Esse evento serve de inspiração aos
educadores, a fim da inserção mais contínua de brincadeiras, tanto em sala de aula como em
meio à natureza, seja no pátio da escola ou em locais próximos à instituição de ensino.

243
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Em torno de 300 crianças participam do Geodia, anualmente, sendo estas de escolas


públicas e privadas de Caçapava do Sul. Há atividades para todos os níveis de ensino: Educação
Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.

A proposta da sessão historiada, que será apresentada ao longo deste item, foi
desenvolvida pela autora, a qual tem formação no magistério, é licenciada em Geografia pela
UFSM e, atualmente, é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia, com pesquisa
centrada no levantamento das atividades de geoeducação existentes em Caçapava do Sul.

Vale ressaltar que a autora não possui vínculo com escola pública ou privada e foi bolsista
no projeto do Geodia, desde o segundo semestre de sua graduação, permanecendo inserida até
os dias atuais, participando, também, do Programa de Educação do Geoparque Caçapava. Além
disso, o seu trabalho de conclusão de curso foi sobre o Geodia e a sua importância na busca
pelo selo de Geoparque Mundial UNESCO, o qual foi conferido ao Geoparque Caçapava no ano
de 2023.

O Geodia ocorre uma vez ao ano, mas as atividades de geoeducação ocorrem durante
todo o ano letivo, com contação de história nas escolas, palestras e desenvolvimento de outros
projetos, como o Geoparque na Universidade, em que as crianças das escolas de Caçapava do
Sul vão até o campus da Unipampa para a realização de diversas atividades, como tour pelo
campus e escrita de contos.

As atividades citadas fazem parte de um cardápio de atividades, o qual fica disponível para
que as escolas possam optar pela realização dessas propostas, as quais envolvem oficinas de
biscuit, oficina de educação ambiental e vivências em propriedades rurais.

No Geodia e nas demais atividades geoeducativas desenvolvidas no território, o brincar


ao ar livre é muito bem recebido pelos educandos, visto que estão saindo de sua rotina de sala
de aula. O brincar faz parte da infância e pode ser utilizado não apenas para ensinar conteúdos
relacionados à educação geopatrimonial, mas sobre todas as áreas.

244
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Nessa atividade, o brincar ocorre de forma dirigida, sendo que este ato ocorre quando
“[...] a professora canaliza a exploração e a aprendizagem do brincar livre e leva as crianças a
um estágio mais avançado de entendimento” (Moyles 2002, p. 27).

Então, acredita-se, aqui, que, através do lúdico e do brincar no Geodia, será possível, além
de construir conhecimentos sobre a geologia, a paleontologia e a geomorfologia do município
de Caçapava do Sul, fazer com que os educandos se sintam confortáveis para usar a imaginação
e fazer algo tão libertador e tão inspirador como o brincar.

Para Moyles (2002), há a possibilidade de desenvolvimento e aprendizado infantil através


do brincar mediado, como no caso da sessão historiada do Geodia.

Na edição do Geodia, a fim de enriquecer ainda mais os conhecimentos dos educandos


sobre a geologia e a paleontologia de Caçapava do Sul, foi realizada, por iniciativa da autora do
presente trabalho, uma sessão historiada sobre a preguiça-gigante, que é um dos principais
fósseis encontrados no município. A brincadeira consistia em uma história contada de forma
oral e que, de acordo com cada acontecimento, as crianças realizavam movimentos e atividades,
o que oportunizou um aprendizado sobre a preguiça-gigante de forma lúdica e divertida para
crianças com idade de 3 a 8 anos.

Vale ressaltar que os materiais utilizados para a realização da sessão historiada foram de
baixo custo e, em sua maioria, recicláveis, como latas, caixas de papelão e garrafas PET, fato
que aproxima e mostra aos educandos o que pode ser feito com esses materiais, ao invés de
serem descartados de maneira incorreta.

A princípio, houve uma roda de conversa sobre a existência do fóssil da preguiça-gigante


no município de Caçapava do Sul, após, todos os educandos receberam uma máscara com o
rosto da preguiça e andavam de pé de lata (brinquedo confeccionado com latas e barbantes),
imaginando serem preguiças, conforme observado na Figura 1. Após andar de pé de lata, os
educandos caminharam com o dorso dos pés para imitar a preguiça, pularam alto para colher
folhas (1b), além de arrancar raízes do chão para se alimentar, como o animal fazia.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Figura 1 - Momentos da sessão historiada


Fonte: arquivo pessoal dos autores.

Após a sessão, os alunos se dirigiram até uma mesa, em que estavam expostas algumas
réplicas de animais da megafauna (animais de grande tamanho que foram extintos no período
Quaternário), como a preguiça-gigante, o felino dente-de-sabre, o cervo gigante e o
gliptodonte (2a e 2c). Nesse momento, houve uma roda de conversa sobre a megafauna e o local
onde o fóssil foi encontrado no município. Além disso, houve questionamentos direcionados
aos educandos sobre a forma de moradia da preguiça, a partir disso, os alunos se dirigiram a
um túnel para realizar a passagem, como se estivessem na toca da preguiça, conforme
representado na figura 2b.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Figura 2 - Réplicas de animais da megafauna e passagem no túnel


Fonte: arquivo pessoal dos autores.

Além da exposição de réplicas, foi apresentado aos educandos um desenho mágico (Figura
3) que consiste em uma pasta plástica transparente, com um desenho e um fundo escuro, sendo
que, ao colocar uma lanterna de papel, tem-se a impressão de que a lanterna está iluminando
o desenho. O desenho escolhido para a atividade foi a Pedra do Segredo de Caçapava do Sul,
além da ilustração de animais da megafauna. Salientou-se, também, através do desenho, a
existência de espécies endêmicas de cactáceas, em Caçapava do Sul, buscando indagar os
alunos sobre os conhecimentos acerca do município.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Figura 3 - Desenho mágico da Pedra do Segredo e animais da megafauna


Fonte: arquivo pessoal dos autores.

Ao final, explicou-se aos educandos sobre o fato de que, atualmente, são encontrados
apenas os fósseis dos animais da megafauna, sendo este o trabalho dos paleontólogos. Nesse
sentido, os educandos são convidados a brincar de paleontólogos em uma caixa de areia, em
que estão enterradas réplicas de fósseis desses animais, como pode ser visualizado na figura 4.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Figura 4- Caça a réplicas de fósseis da preguiça-gigante


Fonte: arquivo pessoal dos autores.

Dessa maneira, para Kishmoto (2014), o brincar fora da sala de aula, como em parquinhos
que oferecem maior contato com a natureza, por meio de água, grama, terra, areia, pedrinhas,
árvores e arbustos para se esconder e plantas com flores que formam ambientes externos, com
biodiversidade necessária para o convívio com plantas, borboletas, passarinhos e insetos,
oferece ricas oportunidades para um brincar que respeita a natureza.

Em vista disso, acredita-se que a atividade desenvolvida no Geodia permite ao educando


grande contato com o lugar em que vive, podendo conhecer diversas características acerca da
paleontologia, da geologia e da geomorfologia do seu município, através do lúdico e do brincar
em um ato livre e em contato com a natureza.

Dessa forma, acredita-se que essas atividades, além de conectar as crianças com a
natureza e o lugar em que vivem, são de grande valia para o desenvolvimento infantil. Sendo
assim, o Geodia mostra a possibilidade do brincar em qualquer local. Também, acredita-se que

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

essas atividades poderiam ocorrer de forma mais recorrente nas próprias escolas e em
ambientes não formais, a fim de proporcionar momentos de brincadeira e ludicidade para além
da Educação Infantil.

Considerações finais
O brincar e o lúdico auxiliam as crianças para um processo de ensino-aprendizagem
livre, portanto, a atividade exposta desenvolvida no Geodia permite que os educandos
aprendam através do ato de “fazer brincando”, o que facilita a memorização e torna esse
momento mais agradável, aproximando-os da natureza.

Através das atividades geoeducativas desenvolvidas no Geodia, permite-se que os


educandos conheçam mais sobre as características do seu local e se aproximem mais das
singularidades do município, sendo assim, um dos pilares para a certificação de um geoparque,
que é a geoeducação, leva para a praça central do município atividades bem planejadas e
pautadas na importância do lúdico e do brincar para o desenvolvimento infantil.

Dessa forma, o presente trabalho atingiu os seus objetivos, aproximando a prática


realizada no Geodia de Caçapava do Sul com as escritas de grandes autores da educação,
comprovando, assim, ainda mais, a importância e a necessidade do brincar e das atividades
lúdicas para crianças.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Aline Ferreira – EMEF Edy Maya Bertoia – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Seguindo as crianças na educação infantil


Lucas da Silva Martinez

Primeiras palavras
Quando um professor entra em uma turma de educação infantil para substituir uma
professora após um semestre de trabalho, o que ele pode fazer para dar continuidade a prática
desenvolvida até aquele momento? Que caminhos pode tomar para seguir realizando a prática
com crianças? A célebre frase de Loris Malaguzzi “É preciso seguir as crianças e não os planos”
pode ser uma alternativa para o professor? A frase já se tornou jargão na educação infantil, mas
entre a palavra e as ações há um caminho a percorrer. Se a frase se tornou senso comum, a ação
de seguir as pistas das crianças no desenvolvimento da prática pedagógica também tornou-se
comum? As práticas pedagógicas são construídas a partir da perspectiva de seguir as crianças?
Se sim, o que significa seguir as crianças? Seguir as crianças dispensa um plano, um projeto, um
roteiro para a realização da prática pedagógica com elas? Seguir as crianças dispensa a
intencionalidade pedagógica no fazer docente?

Tais questionamentos me remetem ao texto de Danilo Russo, professor italiano que em


sua rotina de trabalho adota como compromisso escrever um texto anual como forma de
prestar contas à comunidade e às pessoas envolvidas em sua prática pedagógica para dizer “[...]
como ele ensina” (Russo, 2009, p. 57). É verdade que na educação infantil não há ensino no
sentido tradicional daquilo que se faz no ensino fundamental, porém, entende-se como um
lugar de muitas aprendizagens. A razão de trazer Danilo Russo ao diálogo é para pensar aquilo
que desafia o cotidiano na educação infantil, que é um convite, mas também uma necessidade
de “seguir as crianças” que envolve ser professor sem dar “aulas”.

No caso desta escrita, diferentemente de Danilo Russo que escreve sobre sua presença
em uma escola que ele estava há muito tempo e de uma turma de crianças que ele conhecia
desde o início do ano letivo, este texto é de um professor que ingressa na escola no ano de 2023

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

com uma turma de ensino fundamental e assume uma turma da educação infantil no segundo
semestre do ano de 2023. Implica, portanto, fazer um exercício para conhecer não apenas a
escola, suas rotinas e propostas, mas, conhecer cada menino e cada menina que está na turma,
cuja descrição da professora, colega que atuava com as crianças, não fornece pistas suficientes
para saber quem são as crianças. Para conhecer as crianças é preciso conviver com elas, estar
perto delas, olhar demoradamente, pensar sobre cada uma, encontrar-se com cada uma. Desse
modo, conhecer as crianças foi um primeiro desafio que o professor se impôs para aprender a
“seguir as crianças”. Ou seja, efetivamente era preciso entrar em contato com as crianças para
aprender sobre cada uma, conhecer a rotina instituída, optar por continuar a rotina ou verificar
se ela poderia ser transformada a partir das pistas dadas pelas crianças.

Este artigo, de natureza narrativa, objetiva refletir sobre as experiências docentes de um


professor iniciante na educação infantil, a partir da premissa de seguir as crianças e construir
uma rotina de trabalho com elas. A proposta do artigo tem por intenção refletir sobre algumas
vivências que aconteceram durante minha inserção como professor em uma turma de Pré-B
(crianças de cinco anos) e como me propus a seguir suas pistas para pensar uma prática
pedagógica que acolhesse seus momentos de interações, brincadeiras e descobertas.

Refletindo sobre o campo e a entrada de um novo professor


Quando assumi a turma, minha primeira preocupação era em conhecer as crianças, saber
o que faziam, do que gostavam, quais eram suas restrições. Ao contatar minha colega
professora, ela passou um relatório completo… Como era cada criança, quais coisas eu devia
me preocupar, quais cuidados deveria ter com determinadas crianças e familiares, até
restrições alimentares.

Outra preocupação antes de entrar na sala era a respeito da rotina que já existia na turma,
que envolvia momentos de brincar livre, seguidos por de atividades manuais e folhinhas. Havia
uma preocupação clara: deveria enfatizar com as crianças a escrita do nome, o reconhecimento
das letras, bem como a realização (praticamente diária) de atividades com folhas A4. Essas

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

atividades ajudariam as crianças a preparar-se para o primeiro ano, pois, há uma compreensão
tácita de que a pré-escola precisa ser preparatória.

Ainda em relação à entrada na turma, não pensei em alterar a rotina assim que cheguei,
durante as duas primeiras semanas enfrentei muitos desafios pensando atividades que se
adequassem nesse padrão. Entre elas, construí uma chamada para que eles refletissem sobre
os seus nomes. A questão é que a chamada, como uma atividade da rotina, tornou-se
rapidamente enfadonha, mesmo fazendo-a de formas diferentes. O momento da chamada era
um momento de tensão e frustração, pois, com 20 crianças na turma, não havia muita paciência
por parte delas para participar deste momento. As atividades de folhinha eram sempre bem
vistas pelas crianças, que já haviam se acostumado com esta rotina.

Com o tempo, fui criando outras rotinas, com momentos de música (da qual tocar violão
foi um aliado), brincadeiras dirigidas (em parte, em função de uma formação inicial baseada na
educação física escolar), e aumentando progressivamente o tempo de brincar livre. As crianças
se mostraram potentes em criar novas brincadeiras com os mesmos objetos, eu apenas ia
variando ou incluindo outras coisas. Também fui me adequando aos seus interesses, me
desafiando a proporcionar mais daquilo que elas queriam.

A história da educação infantil no Brasil nos traz algumas pistas para entender esse
movimento construído na turma. Numa perspectiva de preparar a criança para o futuro, a
escola do século XIX “[...] deveria cumprir um papel de moralização da cultura infantil, na
perspectiva de educar para o controle da vida social” (Kuhlmann Jr., 2001, p. 16). Na época
acreditava-se que brincar poderia se converter em algo perigoso, uma ameaça a ordem social,
uma vez que na brincadeira as crianças “[...] ensejavam solidariedade com setores explorados
de nossa sociedade”, por isso, a necessidade de moralização e o controle da brincadeira como
processo de controle preventivo.

No início do século XX, são implantadas as escolas assistenciais, voltadas para crianças
em situação de vulnerabilidade social, em que a prioridade está nas práticas compensatórias,
considerando que crianças em situação de vulnerabilidade social não dispunham do mesmo

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

capital cultural que crianças de classes mais favorecidas, assim a educação desempenhava esse
papel, ainda visando uma educação para futuro. Aliando-se à medicina, a educação da infância
volta-se ao cuidado e proteção, higienista, visando adultos saudáveis, perspectiva que
praticamente atravessa o século XX.

A falta de democratização de acesso à escola de ensino fundamental até a década de 1960


expõe o alto índice de analfabetismo, que no intuito de superá-lo passam a apostar que a
escolarização deve iniciar ainda na educação infantil. Essa concepção perdura até a
promulgação da Constituição Federal de 1988, posteriormente com a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, quando a educação infantil se torna parte da educação
básica. Com a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil - DCNEI
(Brasil, 2010) a educação infantil passa ter especificidades próprias buscando superar aspectos
assistencialistas, compensatórios e antecipatórios. Dos primeiros jardins-de-infância até este
momento ocorreram muitas lutas de movimentos sociais, em especial do movimento de
mulheres que contribuíram significativamente para a construção de uma educação infantil com
especificidades próprias.

A partir da publicação das DCNEI (Brasil, 2010) e a perspectiva de criança adotada, pelo
menos no documento, a criança deve ser o centro do processo pedagógico, e o eixo do currículo
são as interações e brincadeiras. Ainda assim, nas práticas cotidianas na educação infantil em
muitos contextos a prioridade são as rotinas impostas pelos adultos. Isso se mostra na seguinte
cena. O lanche das crianças acontece no início do segundo quarto de turno (9 horas da manhã).
Muitas vezes no final da aula, perto das 11 horas, as crianças começam a sentir fome e pedir
para comer o que sobrou de seus lanches. Como são crianças que não precisam de assistência
para se alimentar, minha opção é deixar que comam. Mas, em um desses momentos, enquanto
as crianças comiam, a estagiária questiona-as dizendo que “isso não é permitido”. A questão
que levanto aqui é que, nós adultos, às vezes não nos colocamos no lugar da criança que sente
fome, ou, na pior das hipóteses, que não há nenhuma lógica para o seu impedimento. Qual o
problema da criança comer em outro horário, seja porque não estava com fome no horário da
merenda ou tem fome na hora da saída? Qual o impeditivo desta ação, senão tentar controlar

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

(e muitas vezes, sem argumento) o comportamento infantil? Isso reflete uma concepção de
criança que precisa ser guiada e controlada, pois não é vista tendo autonomia em suas ações.

Neste sentido, por mais que não aprofundamos a história da criança e a infância no Brasil
neste texto, é válido ressaltar que as práticas pedagógicas na educação infantil carregam uma
dimensão histórica marcada pelo controle, pelo cuidado e pela preparação para o futuro, não
em uma perspectiva criativa e humanizadora, mas, sobretudo, de apego à disciplina e
preparação para o ensino fundamental. Portanto, em um primeiro momento, ficou evidente
para mim que havia um conflito entre a necessidade crescente das crianças de brincar e
compreenderem-se como sujeitos autônomos, e uma necessidade, não tão institucional, mas,
quase tácita, de que meu trabalho deveria se configurar através de práticas escolarizantes. Isso
se manifestou em muitos momentos, quando fui desafiado por uma colega a colocar um alfabeto
na sala, ou, quanto fui interpelado pelas próprias estagiárias/auxiliares em função de uma
rotina mais rígida com as crianças.

A rotina construída na turma proporcionava muitos momentos de atividades individuais


e poucas práticas que possibilitasse interação entre as crianças, uma vez que os momentos de
brincadeiras livres eram restritos à chegada. Como pensar a escola como ambiente coletivo, se
as práticas pouco valorizam o coletivo? A escola é um lugar de sociabilidade, de interação, de
estar junto, considerando conforme orientam as DCNEI que as propostas pedagógicas na
educação infantil devem oportunizar à criança a construção de “[...] novas formas de
sociabilidade e de subjetividades comprometidas com a ludicidade, a democracia, a
sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de dominação etário,
socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa” (Brasil, 2010, p.
17). Portanto, cumprir com as DCNEI supõe pensar o espaço de educação infantil como lugar
de conhecer e conhecer-se, de interação e de convivência entre os pares e com as pessoas
adultas. Não que na turma não tivesse tempo para brincar livre, mas este era o momento em
que as crianças ainda estavam chegando, nem todas tinham a oportunidade de brincar com
todos. Embora saibamos que as crianças são seletivas no momento de brincar, que elas
escolhem seus pares, o fato de os pares não estarem presentes, impossibilita negociações para

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

entrar na brincadeira, para a construção de regras, para entrar em um jogo que são
características da “cultura de pares”, conceito criado por Willian Corsaro (2011). A cultura de
pares entrelaça a cultura infantil e as interações entre os pares. Para o autor, cultura infantil é
o modo como as crianças, ao interpretar e reproduzir o mundo adulto, constroem significações
sobre si, sobre as relações com os pares e sobre o mundo e isso ocorre nos momentos de
interações entre os pares e com os adultos, muito especialmente nos momentos de
brincadeira.

As crianças brincam e não querem mais parar de brincar!


Conforme foram passando as semanas e os meses, especialmente, de adaptação para o
professor, as crianças foram demonstrando que não queriam mais fazer “atividades”. Atividades,
por assim entender, atividades em folha… Por mais que eu entendesse a dinâmica da educação
infantil nessa configuração do brincar livre e direcionado, mas, sobretudo, criador, reconheço
que a “folhinha” é um recurso que acalma e controla o movimento das crianças, coloca todos
sentados e ajuda o professor a “respirar”. Então, em alguns momentos eu trazia atividades de
pintura dirigida ou atividades que exigissem pintura, recorte e colagem direcionados. Mas, aos
poucos, foi tornando-se maior a reclamação quando eu pedia para que guardassem os
brinquedos, porque haveria “atividade”.

Em um dia os meninos estavam brincando com blocos de madeira, como de costume. Ali
eles constroem vilas e casas, inspirando-se nos vídeos de Minecraft. No meio da manhã, em um
dia não chuvoso (haja feita que os meses entre agosto e novembro de 2023 foram chuvosos no
Rio Grande do Sul), pedi que as crianças organizassem suas mochilas pois iríamos para o pátio.
Um dos meninos pediu para levar os blocos de madeira e eu concordo. Instantes depois, escuto
a estagiária pedindo que eles guardassem os blocos, pois não podiam levar para o pátio, já que
não era imcumbência delas guardar. Combinei que as crianças organizariam o material na volta.
As estagiárias cumpriam uma função importante na minha visão, além do seu papel óbvio: elas
representavam a experiência da professora e os combinados anteriores. Já eu, me divertia com
essa tensão e deixava as situações irem além do previsto, para ver “até onde ia”. Isso me levou

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

a muitos momentos interessantes com as crianças, inclusive este dos blocos. No pátio, as
crianças que já brincavam na sala, continuavam a brincadeira. Mas, na escola, o momento a
partir das 10h (depois do recreio do ensino fundamental) serve como ponto de encontro para
as crianças, que brincam com os estagiários e com as crianças de outras turmas. Tal qual a
piazza de Reggio Emilia, o pátio dessa escola funciona como um lugar onde as crianças podem
interagir, independentemente de sua idade ou turma. Então, em poucos minutos, vejo crianças
dos prés e do maternal, todas juntas, fazendo casas e conversando, uma interação que talvez
não ocorresse sem os blocos. Durante a brincadeira com blocos eles se sentam, conversam,
criam e inventam modos de viver aquele momento.

Um destaque se faz necessário a partir da noção de “atividade”, que não tem um sentido
a partir da perspectiva histórico-cultural, mas, que tem um caráter mecânico. Geralmente
folhas com letras, números, caminhos a serem seguidos com o lápis, em busca de desenvolver
a “motricidade fina”. Junto a isso, articula-se a noção de uma pedagogia de atividades, que não
contempla as múltiplas linguagens através das quais as crianças se expressam, e se limitam,
quase exclusivamente, às folhas de ofício. Isso remete diretamente a declaração de Martins
Filho e Martins Filho (2020, p. 85) de que as experiências das crianças “[...] não cabem em uma
folha A4, vão muito além da folha de papel”, pois se fazem nas interações, nas múltiplas
linguagens, nas ações que parecem desinteressantes aos adultos, já colonizados pela vida
acelerada e utilitária das sociedades capitalistas.

Carvalho (2015), por sua vez, argumenta que essa pedagogia das atividades parte da
noção que as crianças serão produtivas (enquanto adultos) desde que sejam treinadas e
pratiquem um certo número de atividades diariamente. Essa abordagem de treinamento,
herança da pedagogia tradicional, se manifesta através de “[...] atividades propostas exigem
apenas ações mecânicas, não oportunizando espaço para que as crianças possam criar
hipóteses, imaginar, experimentar e transformar o que lhes é proposto [...]” (Carvalho, 2015, p.
126).

Em função disso e de outras experiências, adotei uma metodologia de “ver até onde isso
vai”, permitindo que as situações de brincadeira ou as manifestações das crianças fossem além

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

do esperado para ver como elas se comportavam, o que criavam, em que direção iam, barrando-
as apenas para preservar sua integridade física. Na turma havia uma menina com deficiência, e
havia uma pressão familiar e institucional para que ela se adequasse e agisse como as outras
crianças. Em muitos momentos de pintura com giz ou lápis, ela frequentemente se frustrava e
arremessava os materiais de pintura quando era convocada para terminar o seu trabalho e
concluir sua pintura. Em um dia de pintura com tinta, no meio da pintura ela começa a pintar a
mão e usar de carimbo. A estagiária ficou preocupada com o que a mãe diria, mas, eu intervi
dizendo que deveríamos deixar até onde ia essa brincadeira. Esse momento foi um momento
importante para percebermos que, as atividades ou práticas propostas não precisam ser
forçadas para acontecer de uma forma, mas, que cada criança experiencia a mesma proposta
de forma diferente, dentro de suas condições objetivas e subjetivas. Isso indica também que as
crianças resistem e reagem às imposições adultas, lançando mão de diferentes estratégias para
burlá-las e assim, organizar o mundo à sua maneira (Martins Filho; Martins Filho, 2020).

Nesta proposta de “ver até onde vai”, tentei dar espaço e tempo necessário para as
crianças explorassem outras linguagens, como, fizessem as interações a seu modo. Seja através
da tinta, do seu corpo, bem como, diminuindo progressivamente as folhas de ofício de atividade
e instaurando uma rotina baseada quase totalmente na brincadeira livre.

Outro destaque, acerca do meu relato inicial, diz respeito à própria necessidade da
brincadeira na vida da criança. A brincadeira é o meio de interação da criança, atividade que a
insere no mundo como ser social. Para Vigotski (2021), a brincadeira é a atividade guia da criança
possibilitando que o seu modo de pensar avance. Para se constituir como ser social a interação
é fundamental e a brincadeira é o caminho em que a interação acontece, é por essa razão que
brincar torna-se imprescindível para a criança, meio com o qual se dá a aprendizagem e ocorre
o desenvolvimento das funções psíquicas superiores. A interação, como processo social,
possibilita que a criança desenvolva valores, atitudes, aprenda a existir e ser com os outros,
conheça a si própria e o outro, compreenda o modo de organização do mundo e aja sobre ele.
Na brincadeira a criança assume diferentes papéis, experimentando formas de ação que
gradativamente se desenvolvem e podem ser aprimoradas. Para Vigotski (2021, p. 235),

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A brincadeira é fonte do desenvolvimento e cria a zona de desenvolvimento iminente. A


ação num campo imaginário, numa situação imaginária, a criação de uma intenção
voluntária, a formação de um plano de vida, de motivos volitivos - tudo isso surge na
brincadeira, colocando-a num nível superior de desenvolvimento, elevando-a para a
crista da onda e fazendo dela a onda decúmana do desenvolvimento na idade pré-escolar,
que se eleva das águas mais profundas, porém relativamente calmas.

Segundo o autor, quando a criança brinca ela está agindo em um nível à frente do seu
próprio modo de pensar, ela cria situações diversas através da brincadeira, então é como se ela
estivesse percorrendo um modo de pensar e agir diferente daquilo que ela pensa
cotidianamente ou que ela pensava em um momento anterior, é como se a brincadeira
antecipasse outras formas de pensamento. Ao brincar, a criança se confronta com o limite
imposto pelos pares, que criam regras para brincar, exigindo da criança, estratégias de
negociação, para entrar na brincadeira. Willian Corsaro (2011) que estudou profundamente as
culturas infantis, verificou essas formas de negociação entre as crianças que ele denominou de
cultura de pares. Neste ponto percebe-se a proximidade entre estudos de Corsaro (2011) e
Vigotski (2021) quando se afirma que: “Na brincadeira a criança experimenta a submissão à regra
recusando-se a fazer o que quer entretanto nesse caso a submissão à regra é a recusa a agir
por impulso imediato é o caminho para satisfação máxima” (Vigotski, 2021, p. 130).

A riqueza da brincadeira infantil se manifesta de muitas formas, seja através de


brinquedos, seja através da sua própria interpretação de papéis. Na educação infantil, percebi
que as crianças são incrivelmente potentes em subverter o sentido das coisas. Por exemplo,
muitas vezes as cadeiras são usadas pelas crianças para delimitar o espaço, virando uma casa,
uma sala de aula, um carro ou a base de uma cabana. Em outros lugares, as cadeiras viram
obstáculos em um circuito, que envolvem pulos e corridas. O papel, que eles pedem
diariamente, ora é usado para fazer aviõezinhos, outras vezes é usado para pintar, fazer
cartinhas e desenhos, e às vezes ele é picotado e colado, para fazer envelopes, dinheirinhos, ou
papel picado. Em uma manhã vi uma menina com um tubo de cola e vários papéis. Ela estava
fazendo um livro!

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Os blocos de madeira, dos quais jamais vi tanta versatilidade, às vezes são usados para
montar casas e vilas, outras vezes eles aparecem dentro de um carrinho de mão, como um
material a ser carregado. Por vezes eles são arremessados em direção à uma cesta, tal qual uma
bola. Isso se insinua quando uma professora chega na sala para fazer uma atividade e exclama:
“Que sala bagunçada!”. O que pode ser bagunça para o adulto, que foi educado para organizar
e controlar o espaço, é um lugar de criação das crianças, que usam o espaço de variadas formas.

As massinhas de modelar também são usadas de diferentes formas. As crianças querem


fazer animais, formas geométricas, mas também fazem comidinha, esticam e cortam, depois
juntam e fazem pulseiras e colares.

Neste sentido, a variedade de experiências ofertada pelas crianças e a multiplicidade pelas


quais elas usam os objetos à sua volta caracterizam o potencial que elas estão construindo de
criar e imaginar. Segundo Beltrame (2021) em sua tese sobre o brincar, retomando as ideias de
Vigotski, as crianças através da brincadeira sanam suas dificuldades, manipulando os objetos e
as situações que não estão disponíveis em sua realidade imediata. Tal qual no exemplo das
cadeiras, as crianças fazem casas, quartos, salas de aula, carros, lugares de interação que são
propriamente dos adultos. Para a autora, a brincadeira “[...] liberta a criança das amarras da
realidade imediata, dando-lhe oportunidade para controlar uma situação existente” (Beltrame,
2021, p. 108). Isso me lembra de duas crianças, uma na porta barrando a entrada da colega e a
outra brigando sem entender o que estava havendo. Ao reclamar para mim, perguntei o porquê
ela não estava sendo incluída na brincadeira, quando a resposta foi: “Ela não disse a senha”. A
senha manifesta uma brincadeira controlada que se satisfaz no cumprimento de uma regra não
explícita, mas que vai se tornando explícita ao longo da brincadeira.

Desse modo, a atividade de criação da criança se manifesta de muitas maneiras, e é através


dessa multiplicidade e complexidade que a criança se desenvolve. Para Beltrame (2021, p. 109):

Isso concretiza que o controle consciente de comportamento, atenção voluntária,


memorização ativa, pensamento dedutivo, entre outros, são funções tipicamente e
unicamente humanas desenvolvidas na infância através da riqueza e da diversidade das
experiências proporcionadas nas ações de ludicidade na infância, assim como são

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

mecanismos desbloqueados e crescentes através do desenvolvimento das situações


imaginárias do brincar na Educação Infantil.

Aspectos teóricos sobre a brincadeira na educação infantil levantados até aqui enfatizam
o quanto ela é fundamental para o desenvolvimento integral da criança. Razão pela qual nas
DCNEI (Brasil, 2010) se constitui como eixo orientador do currículo, além de ser um dos direitos
de aprendizagem da Base Nacional Comum Curricular. Sendo assim importante para a prática
pedagógica na educação infantil é fundamental que ela seja planejada para que efetivamente
possa acontecer no cotidiano da escola. Isso supõe o que Danilo Russo (2009) expressa em seu
texto, de não buscar um método, mas “uma prática de educação” em cada pequena ação vivida
no cotidiano da escola. Para ele, cada criança é uma parte única que se necessita, para cada
uma delas pensar um espaço, a partir de si, mas também como espaço de coletividade.

Mas em que consiste planejar a brincadeira? O planejamento na educação infantil é


permeado de controvérsia, por um lado porque parece que basta seguir orientações do ensino
fundamental e por outro lado porque parece ser menos exigente um planejamento para as
práticas na educação infantil acreditando que basta deixar brincar. Nem uma coisa, nem outra.
Planejar na educação infantil exige compreender que o sentido do fazer docente deve estar
alinhado àquilo que faz sentido para a criança, com o compromisso de, por meio das práticas,
ajudar na construção de novos sentidos sobre o mundo e possibilitar que conheçam a si
próprios e se conheçam na interação com os pares. É o planejamento que orienta, organiza,
possibilita pensar o como e o quê é importante para a criança. Planejar é entender e
circunscrever a intencionalidade pedagógica, alicerçada no interesse da criança e ao mesmo
tempo, projetando algo que faça a criança ir além em sua atividade de pensamento. Equilibrar-
se, portanto, entre aquilo que desencadeia e captura o interesse da criança com aquilo que é
necessário para mobilizar a criança em seu processo de aprender. Esse parece constituir-se no
grande desafio para o professor da educação infantil. Um dos elementos chave para a
construção do planejamento é pois assumir um caráter de professor pesquisador, não apenas
para ver a realidade e conhecer as crianças, senão para refletir sobre o contexto, sobre a
criança, buscando alternativas para construção de um planejamento que traduza os interesses

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

e aquilo que faz sentido para as crianças. Em nosso contexto, o planejamento mais comum
orienta-se pelas datas comemorativas. Este modo de planejamento obedece a princípios
adultocêntricos, ideológicos, capitalistas e religiosos ligado ao cristianismo/catolicismo. O
modo de planejar, de organizar roteiros, traçar percursos, colocar no papel ou na tela do
computador também exige do professor um processo reflexivo, uma vez que o que conduz esse
processo é também resultado daquilo que vê e observa em suas crianças. Tem-se assim o ato
de planejar como um processo de ir e vir no sentido de que a observação alimenta o que fazer,
como fazer, para que fazer e ação alimenta o que observar, registrar, repensar e planejar os
próximos passos.

E a brincadeira, precisa planejar? Mas a criança não tem uma natureza brincante? A
resposta para as duas perguntas é sim a criança tem uma natureza brincante, mas a brincadeira
é cultural e, portanto, a criança aprende a brincar (Brougère, 1995), uma vez que em cada
contexto há formas próprias de brincar. Sim, precisa planejar a brincadeira, no entanto, planejar
não é direcionar o modo de brincar para a criança, impor modos de brincar dos adultos e que
os adultos tenham o controle. Planejar as brincadeiras significa estar atento aos sinais das
crianças e organizar ambientes brincantes, ricos em materiais, que sejam possíveis expressões
com as diferentes linguagens, que as brincadeiras possibilitem interações coletivas, que os
espaços sejam ricos de materiais (Horn, 2017) em que a criança possa protagonizar no dia a dia,
a partir das suas próprias significações, possibilitar a interação com a natureza, planejando
atividades no pátio. Um ambiente brincante supõe:

[...] ouvir poemas, conversar sobre o crescimento de algumas plantas que são por elas
cuidadas, colecionar objetos, participar de brincadeiras de roda, brincar de faz de conta,
de casinha, ou de ir à venda, calcular quantas balas há em uma vasilha para distribuí-las
pelas crianças presentes, aprender a arremessar uma bola em um cesto, cuidar de sua
higiene e de sua organização pessoal, cuidar dos colegas que necessitam ajuda e cuidar
do ambiente, compreender suas emoções e sua forma de reagir às situações, construir as
primeiras hipóteses, por exemplo, sobre o uso da linguagem escrita, e formular um
sentido de si mesmas (Oliveira, 2013, p. 07).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Esse modo de pensar e planejar ambientes de brincadeira, se opõem a aquilo que muitos
professores temem: a agitação. A criança parece ter muito mais chance de agitar-se quando
não lhe interessam as práticas propostas, a não ser que elas entrem em uma lógica de
obediência e do controle, o que é pouco propício ao seu desenvolvimento integral. Possibilitar
ambientes ricos para a criança brincar, supõe mantê-la em atividade, atividade de pensamento
e ação que exige processos de planejamento e organização para que a criança possa brincar.
Exige estabelecer regras, acordos que vão sendo negociados no próprio processo de brincar.
“É através da brincadeira que as crianças elaboram seus conflitos, atuam como protagonistas e
constroem suas culturas” (Salva; Beltrame, 2021, p. 163), é, portanto, fundamental que seja
planejado momentos de brincadeira para as crianças.

Considerações Finais
Durante o período que atuei na educação infantil, construí algumas percepções que foram
tornando-se presentes neste texto. O objetivo desta escrita consistiu em refletir sobre as
experiências docentes de um professor iniciante na educação infantil, a partir da premissa de
seguir as crianças e construir uma rotina de trabalho com elas.

Escutar e observar as crianças tornou-se um componente necessário desde o primeiro


momento. Cada criança tem uma forma específica de interagir e se manifestar na sala de aula,
no pátio, nas brincadeiras… foi a partir disso que comecei a pensar em mudanças na rotina já
instituída, pensando em potencializar os tempos e espaços de brincar livremente. Tornar a
brincadeira o principal recurso metodológico implica considerá-la como a melhor forma na
qual as crianças se desenvolvem de forma integral na educação infantil.

Além disso, me assumir enquanto professor pesquisador durante minha prática favoreceu
que eu percebesse de que modos as crianças brincavam, interagiam e de que formas essa
brincadeira potencializava suas descobertas e aprendizagens. Esta abordagem crítica e
reflexiva me permitiu questionar o senso comum e buscar um modelo pedagógico que
valorizasse o protagonismo e a criatividade das crianças. Isso também se assumiu em uma

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

rotina flexível, baseada no interesse e nas necessidades das crianças, na organização dos
espaços e na liberação do tempo necessário para que as crianças interagissem.

As brincadeiras emergiram na rotina como uma forma de experimentar, criar, negociar e


reinterpretar o mundo ao seu redor. Este entendimento reforça a noção de que o ato de brincar
é intrinsecamente educativo e profundamente necessário ao desenvolvimento infantil. A
prática pedagógica, nesta direção, foi compreendida como um processo dinâmico que perpassa
a construção de significados, no qual a criança é vista como protagonista ativa de seu próprio
processo de aprendizagem e desenvolvimento.

Referências
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imagens, manifestações, expressões das infâncias e crianças de 4 e 5 anos. 2021. 200 p. Tese (Doutorado em
Educação) - Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2021.

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CARVALHO, Rodrigo Saballa de. Entre as culturas da infância e a rotina escolar: em busca do sentido do tempo na
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CORSARO, Willian. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

HORN, Maria da Graça Souza. Brincar e interagir nos espaços da escola infantil. Porto Alegre: Penso, 2017.

KUHLMANN JR., Moyses. O Jardim-de-infância e a educação das crianças pobres. In: MONARCHA, Carlos (Org.).
Educação da Infância Brasileira: 1875 -1983. Campinas: Autores Associados, 2001. p. 03-30.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

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VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski. Organização e


tradução Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2021.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Juliana Ilha Marafiga – EMEI Professora Ida Fiori Druck – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Práticas educativas com e para as crianças:


reflexões de duas professoras de diferentes
contextos
Angelita Maria Machado
Juliane Ilha Marafiga

Introdução
Este artigo tem por objetivo ressaltar o quanto é importante que as práticas na educação
infantil sejam pensadas para e com as crianças e, com isso, destacamos, nesta escrita, a
participação delas desde a organização do dia a dia da educação infantil, através da organização
dos espaços e dos materiais utilizados, que possibilitem o brincar, o imaginar e o faz de conta.
Neste trabalho, vamos utilizar nossos relatos como professoras da educação infantil. Essas
narrativas se caracterizam como nosso lugar de fala junto das crianças, tanto no planejamento
como, também, na organização do cotidiano nas escolas.

O que tratamos aqui se constitui como exercício de professoras, pesquisadoras, que


pensam e escrevem sobre a sua prática, alicerçada em experiências vividas no cotidiano, sendo
uma forma de pensar a pedagogia da infância de nossos contextos, realidades e especificidades,
que são inspiradas em outras experiências e práticas, assim como dialogando com outros
profissionais da área, como forma de pensar a nossa docência, entender o que fazemos e por
que fazemos.

Nessa escrita, destacamos relatos do dia a dia nas escolas, as organizações dos tempos e
espaços, a escolha dos materiais utilizados, assim como a organização do planejamento.
Ressaltamos, também, a autonomia das crianças e o seu direito de escolha sobre qual espaço
e/ou materialidade irá utilizar em suas construções e explorações. Para a fundamentação
teórica, serão utilizados Fochi (2015), Malaguzzi (2001) e Fortuna (2014), entre outros.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Este trabalho possibilitou diálogos e reflexões, além de problematizar questões


específicas do planejamento com as crianças, sobre a materialidade e a forma de disposição dos
materiais que são ofertados para elas.

O artigo está dividido em tópicos: no primeiro, vamos apresentar a introdução e os


caminhos que nos fizeram chegar até essa escrita; no segundo tópico, ressaltamos a
organização dos espaços, a mediação do adulto e o envolvimento da criança no brincar. No
terceiro tópico, evidenciamos a organização do planejamento: de que forma as crianças
aparecem nessas organizações? E, no quarto tópico, destacamos: Duas professoras: local de fala
e de escuta na organização do planejamento, em que salientamos a experiência sobre
planejamento vivida por cada uma das autoras e as vivências pelas duas professoras. E, para
finalizar a escrita, destacamos as considerações finais.

A organização dos espaços, a mediação do adulto e o envolvimento da criança no


brincar
A organização dos tempos e espaços na educação infantil demandam observação e olhar
sensível por parte do professor, para, assim, oferecer um ambiente organizado e acolhedor,
respeitando uma estética, não deixando o local de exploração muito poluído visualmente.
Malavasi e Zoccatelli (2013, p. 52) compreendem estética “[...] como riqueza e complexidade de
experiência que um determinado objeto ou uma determinada situação pode oferecer”.
Portanto, envolve a estética, além da organização do espaço, a postura de adulto que olha,
escuta a criança, dialoga com ela, coloca-se à disposição para a interação com elas.

O olhar de um educador atento é sensível a todos os elementos que estão postos em uma
sala de aula. O modo como organizamos materiais e móveis, e a forma como crianças e
adultos ocupam esse espaço e como interagem com ele são reveladores de uma
concepção pedagógica. Aliás, o que sempre chamou minha atenção foi a pobreza
frequentemente encontrada nas salas de aula, nos materiais, nas cores, nos aromas;
enfim, em tudo que pode povoar o espaço onde cotidianamente as crianças estão e como
poderiam desenvolver-se nele e por meio dele se fosse mais bem organizado e mais rico
em desafios (Horn, 2004, p. 15).

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Entendemos e defendemos a importância da organização dos espaços e a mediação dos


adultos (professoras), porém, assim como Fochi (2015, p. 151), acreditamos que as intervenções
devem ser no sentido de cuidar e mediar possíveis conflitos, “[...] observar os processos de
exploração das crianças pequenas a partir delas mesmas”, percebendo como elas interagem
entre si e com os espaços planejados com intencionalidade, por parte das professoras, como
forma de promover o desenvolvimento integral das crianças e organizar materiais que
possibilitem as interações e as brincadeiras.

Os espaços os quais referenciamos neste trabalho são “cantinhos”, locais em que são
disponibilizados os mais diferentes materiais, animais, utensílios de cozinha, acessórios de
salão de beleza, carros, canos, elementos da natureza, como paus, folhas, pedaços de madeira,
entre outros materiais, estruturados e não estruturados, que possibilitaram as mais diversas
explorações: entre as crianças, das crianças com os adultos e com as materialidades.

Os materiais utilizados na organização dos espaços, na maioria das vezes, são recicláveis,
reutilizados, como embalagens que se tornam mercadorias nas prateleiras dos mercadinhos
organizados na sala, embalagens de remédios que são utilizadas para realizar tratamentos nas
bonecas e animais, assim como eletrodomésticos que fazem parte das cozinhas organizadas na
sala, eletrônicos, como celulares, tablets, controles remotos e notebook, são utilizados para
construir e criar enredos nas brincadeiras. Dentre os materiais não estruturados, utilizamos,
também, elementos da natureza, como galhos, folhas, flores, pedras e sementes coletados pelas
crianças no pátio da escola.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Figura 1 - Espaço organizado com carros, canos e madeiras


Fonte: acervo das professoras.

As coletas são um convite à percepção dos elementos que estão presentes no ambiente
externo e a experimentar sensações que estes provocam, sendo uma forma de aguçar os
sentidos, como ouvir e sentir o vento balançando as folhas das árvores, tocando, suavemente,
os rostos corados das crianças que correm em busca de aventura no pátio da escola. Para

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Bardanca e Bardanca (2018), uma abordagem que precisa ser realizada, desde a tenra idade,
refere-se ao modo de educar na natureza e à maneira como são realizadas as explorações que,
muitas vezes, são incoerentes, restringindo-se apenas à representação em forma de desenho,
sem que de fato as crianças percebam e interajam com a exuberância real de um bosque
presente no entorno da escola, como sentir a textura da folha, o cheiro, o formato, as cores, as
mudanças que ocorrem nas estações do ano.

Figura 2 - Passeio e coleta de elementos naturais


Fonte: acervo das professoras.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Hoyuelos (2004, p. 273) ressalta que “[...] a escola deve ser pequena, acolhedora e
agradável, um espaço que permita individualidade, flexibilidade e participação”. Escola como
um espaço acolhedor, que respeite o tempo, a autonomia e o direito de escolha das crianças, é
um convite para brincar.

Já Colla (2019, p. 113) destaca que “[...] a brincadeira é uma experiência de autoprodução,
isto é, elas se criam e se recriam ao brincar”. E qual o papel do professor? Como possibilitar que
as crianças brinquem? A partir dos planejamentos e dos materiais, o qual disponibilizamos para
as crianças, estamos potencializando o brincar, a produção e a autoprodução.

Fortuna (2014, p. 24) traz o brincar como “[...] uma apropriação ativa do real por meio da
representação. Isso quer dizer que a brincadeira também possui certos códigos, lógicas
internas que preparam o sujeito que brinca para a socialidade e que contribui para o exercício
desta”.

Colla (2019, p. 121) destaca que a postura que os educadores infantis precisam adotar é:
“Saber respeitar o tempo de cada criança, propiciar um ambiente favorável à sua exploração e
acolher suas descobertas são, nesse sentido, tarefas essenciais”.

Uma estratégia utilizada por uma das autoras, após escutar as crianças, pensar e
organizar o espaço, foi a de se perguntar: - “Eu brincaria nesse espaço?”; são nesses momentos
que entendemos as dificuldades de pensar espaços com as crianças, pois é preciso se colocar
no lugar de criança, buscar a criança que existe dentro de nós, reivindicá-la à presença e
procurar “[...] falar uma língua que as crianças possam entender quando tratamos com elas, nos
lugares que organizamos para abrigá-las” (Larrosa, 1998, p. 230).

Rinaldi considera o espaço como um “terceiro educador”, enfatizando a sua importância,


de organização e de construção pelas educadoras e crianças, como um espaço que desafia,
acolhe, instiga e convida a explorar.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Goldschmied e Jackson (2006, p. 52) destacam: “Uma ampla gama de materiais


cuidadosamente escolhidos e facilmente acessíveis estimula o brincar iniciado e dirigido pelas
próprias crianças e permite ao adulto escolher o papel de facilitador, em vez de sempre dirigir
as atividades”.

Um espaço bem-organizado proporciona uma gama de possibilidades de explorações,


construções de enredos, brincadeiras com início, meio e fim, em que o adulto é apenas o
mediador e, em alguns momentos, auxilia na organização da brincadeira e as crianças, sozinhas,
conseguem dar sequência.

No item a seguir, destacamos a organização dos planejamentos pelas autoras e como as


crianças aparecem nessas organizações.

A organização do planejamento: de que forma as crianças aparecem nessas


organizações?
Pensar nas crianças, nos planejamentos e nas propostas pedagógicas envolve pensar,
inicialmente, no direito das crianças e nos marcos legais que garantem esses direitos, como
destacado na Constituição Federal (CF):

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente


e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência (Brasil, 1988).

Além da CF, que assegura o direito à vida, destacamos as Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação Infantil (DCNEI) que asseguram o direito das crianças dentro das escolas e do seu
desenvolvimento integral, através da definição de currículo como:

[...] conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças
com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental,

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças [...]


(Brasil, 2009).

O currículo, na educação infantil, serve como base para as escolas, sem, contudo, tirar a
centralidade da criança e do seu desenvolvimento integral, respeitando a singularidade de cada
uma. Oliveira (2011, p. 183) destaca que o currículo não é individual e nem predeterminado, ele:

É um projeto coletivo, uma obra aberta, criativa e apropriada para o ‘aqui-e-agora’ de


cada situação educativa. Ocorre com base na análise dessa situação, no estabelecimento
de metas e de prioridades, no levantamento de recursos, na definição de etapas e
atividades básicas, na reconstrução do projetado, na interação (inter-ação) com as
crianças, na verificação de aspectos do seu comportamento que vão se modificando no
decorrer do processo. Envolve sensibilidade e uma visão de criança como alguém
competente e com direitos próprios.

Defender uma criança como alguém competente e com direitos próprios é pensar nela
na organização do dia a dia e na rotina da educação infantil, proporcionando autonomia e
desenvolvimento integral das crianças.

Como mencionamos acima, essa reflexão ressalta a importância de a educação infantil ser
pensada para e com as crianças, mas onde elas aparecem na organização dos espaços e na
rotina da educação infantil? As professoras, como mediadoras das ações realizadas pelas
crianças, podem exercitar um olhar atento e sensível, observando as explorações, os gostos e,
até mesmo, os diálogos criados pelas crianças, seja entre elas ou com as materialidades. São
nesses pequenos gestos e ações que os materiais que serão disponibilizados para as crianças
são pensados e organizados pelas professoras. A estratégia de assembleias e rodas de conversa
também podem ser organizadas, possibilitando mais um momento de escuta e de bate-papo,
ampliando as trocas entre adultos e crianças e das crianças com seus pares.

No item a seguir, ressaltamos o local de fala de cada autora, assim como fazemos um
pequeno relato sobre como os planejamentos são organizados em cada escola, por cada
professora.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Duas professoras: local de fala e de escuta na organização do planejamento


A Professora Angelita

No contexto de uma Unidade de Educação Infantil Federal, as turmas possuem duas


professoras, com 40h/aula, uma em cada turno, sendo uma concursada e uma contratada, além
de duas bolsistas do curso de pedagogia e/ou educação especial, por turno. No contraturno, as
professoras permanecem na sala dos professores, organizando outras demandas da turma,
como álbum de fotos, registros individuais e coletivos das crianças etc.

Os momentos de planejamentos entre a dupla de professoras acontecem após o


atendimento das crianças, às 17h, na unidade, momento no qual as duas regentes organizam as
propostas que serão dispostas para a semana frente às crianças, definindo como e quais espaços
serão organizados, lembrando que são possibilidades de materiais a serem ofertados e que
podem sofrer alterações, de acordo com o interesse das crianças.

Possuímos uma estrutura de planejamento como forma de organização, em formato de


tabela, que inicia com uma breve contextualização dos horários de acolhimento e refeições da
turma. Em seguida, uma justificativa sobre as razões das escolhas dos materiais que serão
utilizados durante a semana, tendo como base as observações realizadas na semana anterior
sobre as explorações e interesses das crianças por determinados materiais, assim como o
envolvimento delas nas propostas.

A seguir, destaco um trecho da justificativa de um dos planejamentos, organizado pela


autora.

A partir das demandas observadas na turma, no turno da manhã, assim como com a
chegada e acolhimento de crianças novas ao grupo, precisamos reorganizar a forma na qual
o planejamento semanal vem sendo organizado, percebemos que têm crianças mais
interessadas na fase exploratória, sensorial e que coloca muitos objetos à boca, assim como
crianças que necessitam de desafios corporais que auxiliam no esperar a sua vez, dividir o
espaço e os brinquedos, o que tem demandado pensar em, pelo menos, três espaços que dê
conta dessas demandas. Além desses desafios, no turno da tarde, a turma tem estágio, no
qual tentamos organizar alguns espaços e possibilidades em conjunto. Nessa semana,

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

seguimos organizando espaço de circuitos na sala que possibilitem ampliar as possibilidades


de movimentação, já que pela manhã tem feito dias frios e as crianças têm saído pouco para
fora da sala. Vamos trazer para a sala o pula-pula, alguns obstáculos de madeira, além de
constituir um obstáculo com elástico frente ao espelho (registro pessoal de um trecho do
planejamento da autora).

Após a justificativa, são descritas as formas de organização dos espaços diários, com os
materiais, o local na sala que o espaço será organizado e o que será observado pela professora
a partir das possibilidades que aquele espaço proporcionará às crianças. Entre as possibilidades
estão um espaço que permita o brincar simbólico e de faz de conta que, por exemplo, pode ser
um consultório médico, com remédios, seringas, macas organizadas com colchonetes e
bonecas para serem cuidadas. E um espaço de concentração e construção que pode ser um
jogo, folhas para desenho, fitas, colas, entre outras possibilidades.

No final de cada dia, preenchemos a tabela com a parte vazia do planejamento, no qual
registramos o que as crianças foram trazendo para dentro dos espaços e do planejamento. Nós,
professoras, organizamos a parte cheia em que disponibilizamos, apresentamos os materiais,
porém, no decorrer do turno, as crianças (re)organizam, trocam de lugar, criam e recriam as
possibilidades de explorações.

Segundo Junqueira (2005), o planejamento é organizado em duas etapas: a “parte cheia” e


a “parte vazia”. Na primeira parte (“parte cheia”), a professora seleciona as linguagens para
compor, organizar, articular a rotina com a qual aguardará seus alunos. A “parte vazia”
corresponde às lacunas a serem preenchidas, conjuntamente, com as crianças, a partir das
interações estabelecidas com conteúdo-linguagens da “parte cheia”. A “parte vazia” é
constituída dos indícios, vestígios, sinais, pistas, setas, a serem articulados (gerados,
identificados, significados) pela professora e crianças, sobre si mesmas e sobre seu trabalho.

A partir dos registros da parte cheia e da parte fazia, iniciamos o planejamento da semana
seguinte, levando sempre em consideração as observações realizadas nas propostas da semana.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

A professora Juliane

No contexto de escola municipal, a realidade se distingue da primeira escola no que se


refere ao tempo para o planejamento e para a organização dos espaços. A minha carga horária
de trabalho é desenvolvida frente às crianças, não havendo tempo disponível para
planejamento, porém o compromisso em possibilitar práticas pedagógicas que possibilitem o
desenvolvimento integral das crianças, com a escuta e com o olhar sensível, possui muita
afinidade com as concepções e práticas desenvolvidas pela professora Angelita.

O tempo de planejamento é aquele que sobra do tempo livre. Compreendo a importância


de assumir os compromissos inerentes à profissão, sem, contudo, renunciar à busca pela
valorização e concretização de um tempo destinado ao planejamento das práticas pedagógicas,
um direito ainda não concretizado na rede municipal de Santa Maria. Planejar exige de nós,
professoras, estudo, pesquisa e reflexão sobre as peculiaridades de cada criança e do grupo de
crianças, a falta de tempo para o planejamento tem sido uma dificuldade que necessita ser
sanada com urgência em nossa rede de ensino, pois compreendo que é uma questão para além
da valorização docente, mas, também, da valorização de nossas crianças.

Embora falte um tempo destinado para realizar o planejamento, a escola, através da


equipe gestora, mostra-se sensível, estando aberta ao diálogo e comprometida em viabilizar os
recursos necessários para o desenvolvimento das propostas pedagógicas. Além das reuniões de
formação continuada presentes no calendário escolar, realizadas mensalmente, após às 17h, em
alguns momentos, como, por exemplo, em dias de chuva, em que menos crianças se deslocam
até a escola, as estagiárias e monitoras, sob a supervisão da diretora, acompanham as crianças
para que as professoras, juntamente com a coordenadora, compartilhem seus planos e ideias.

Outra ferramenta utilizada para o compartilhamento de leituras e materiais para pesquisa


é o grupo de Whatsapp. Para o desenvolvimento das propostas, há a possibilidade da integração
entre as turmas, a depender do trabalho colaborativo realizado entre as professoras. Essa
iniciativa tem o intuito de mobilizar a equipe de professoras para que cada uma delas busque
assumir o compromisso no desenvolvimento das práticas pedagógicas significativas e

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

coerentes com a realidade vivenciada pelas crianças, participando e colaborando, efetivamente,


dos processos de construção. Nesse sentido, Pichon-Rivière (1994, p. 34) salienta que:

Quando um conjunto de pessoas movidas por necessidades semelhantes se reúne em


torno de uma tarefa específica. No cumprimento das tarefas, deixam de ser um
amontoado de indivíduos, para cada um assumir-se enquanto participante de um grupo
com um objetivo mútuo.

Promover momentos de compartilhamento e de participação das professoras faz com que


se fortaleça o sentimento de pertencimento à escola, embora este não seja um processo linear,
pois cada uma das professoras percebe o movimento por uma perspectiva diferente da outra,
de acordo com as experiências que carrega consigo.

As diferentes realidades vividas pelas autoras são um recorte do cenário educacional na


atualidade. Os embates em defesa por uma educação infantil de qualidade esbarram nas
questões de valorização profissional, na luta pela manutenção de direitos e qual é o papel da
educação.

Nesse sentido, a escola vem percorrendo, nos últimos tempos, um caminho que tem como
base as concepções de criança e de infância, em consonância com os documentos legais e ao
encontro da sociologia da infância. Para tanto, foi necessário um movimento interno da escola
para convidar as professoras a refletirem sobre as questões que atravessam as práticas
pedagógicas evidenciadas neste artigo.

Apresento, a seguir, a organização das explorações propostas às crianças da turma de


maternal I, no período de uma semana:

Segunda-feira:

• Espaço com utensílios de cozinha;


• Espaço com blocos de encaixe;
• Espaço com fantasias e adereços;
• Pintura coletiva em papel craft, com tinta guache e pincéis, realizados na área externa;

281
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

• Brincadeiras na pracinha.

Terça-feira:

• Espaço com tapetes e carrinhos;


• Espaço com galhos, folhas, blocos de madeira e dinossauros;
• Espaço com materiais para desenho;
• Culinária: preparo de sanduíche natural - as crianças montam, com os complementos a
sua escolha.

Quarta-feira:

• Espaço com fantoches;


• Espaço com instrumentos musicais;
• Roda musical;
• Espaço com materiais para colagem (lãs coloridas) e cola colorida;
• Brincadeiras no pátio.

Quinta-feira:

• Mercadinho: embalagens, cestas, dinheiro em miniatura, caixa de madeira para as frutas;


• Espaço com almofadas e livros;
• Espaço com massa de modelar e palitos;
• Brincadeiras na pracinha, com baldes e pás, para explorações na areia.

Sexta-feira:

• Espaço com espaguetes coloridos organizados no tatame;


• Espaço com eletrônicos;
• Músicas reproduzidas com a utilização de caixa de som;
• Brincadeiras na pracinha.

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Figura 4 e 5 - Crianças explorando as cores na área externa


Fonte: acervo pessoal da autora.

Os registros fotográficos são utilizados como subsídios para o desenvolvimento das


próximas propostas, pois as imagens que são revistas várias vezes, e cada uma delas, provocam
reflexões sobre os materiais, as materialidades e sobre a interação que as crianças estabelecem
com eles. Isto é, uma forma que Martins Filho (2022), incansavelmente, defende em se pensar a
educação infantil além de uma folha A4.

Para além das diferentes condições de pensamentos em comum para a defesa de uma
educação infantil construída com e para as crianças, sabemos que há muito a se percorrer para
a construção de uma pedagogia da infância que dignifique a docência e que seja, efetivamente,
de escola das crianças. A luta é imensa, mas o importante é continuarmos nos fortalecendo
durante o percurso.

Para Martins Filho (2023), a organização do planejamento, a exploração dos espaços e a


disponibilização de materiais são uma incumbência dos adultos. Para que isso ocorra de
maneira que as crianças construam seus saberes, o autor ressalta a necessidade de se romper
com práticas adultocêntricas pautadas na repetição e no treinamento, sem significado para as

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

crianças. Corroboramos com a ideia do autor e salientamos a necessidade de estarmos em


constante formação, pois qualquer esmorecimento em relação aos sentidos de nossas práticas
pode representar um retrocesso perigoso para a educação que acreditamos e desejamos para
as crianças. Perceber como as crianças vivenciam as experiências propostas, possibilitar que
ampliem seus repertórios através de vivências significativas do cotidiano e refletir sobre as
práticas pedagógicas propostas é um meio de se buscar qualidade no processo educativo de
modo que, tanto as crianças quanto os adultos, estejam envolvidos e participem da construção
de uma escola na qual a criança esteja no centro do processo do planejamento.

Considerações finais
Consideramos a importância da intencionalidade pedagógica por parte das professoras,
os tempos e espaços como elementos importantes para o desenvolvimento de práticas
pedagógicas que entendem as crianças como sujeitos de direitos que, para além de serem
respeitadas, são participantes no planejamento dessas práticas, através da escuta e do olhar
sensível, das escolhas que as crianças realizam e que necessitam estar presentes em todos os
momentos do cotidiano da escola.

Compreendemos que as concepções que atravessam o fazer pedagógico são complexas e


exigem comprometimento, formação continuada e valorização das profissionais que atuam na
educação infantil. Partimos das possibilidades e recursos que temos nas escolas para caminhar
em direção ao que é necessário e desejado pelas crianças. As trajetórias das professoras são
diferentes entre si, mas se assemelham na busca por uma educação de qualidade para todas as
crianças.

Referências
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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos
BRASIL. Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília:
Conselho Nacional de Educação, 2009. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=2298-rceb005-09&category_slug=dezembro-
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COLLA, Rodrigo Avila. O brincar e o cuidado nos espaços da educação infantil: desenvolvendo os animais que
somos. Rev. bras. Estud. Pedagog., Brasília, v. 100, n. 254, p. 111-126, jan./abr. 2019. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/rbeped/a/Kk8P9nBB5bTL4jvtQdg8RCh/. Acesso em: 20 jan. 2024.

FOCHI, Paulo. Afinal, o que os bebês fazem no berçário? Porto Alegre: Penso, 2015.

FORTUNA, Tânia R. A importância de brincar na infância. In: HORN, Cláudia I. et al. Pedagogia do brincar. Porto
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GOLDSCHMIED, Elinor; JACKSON, Sonia. Educação de 0 a 3 anos: o atendimento em creches. Porto Alegre:
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HORN, Maria G. S. Sabores, cores, sons, aromas: a organização dos espaços na Educação Infantil. Porto Alegre:
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HOYUELOS, Alfredo. La ética en el pensamiento y obra pedagógica de Loris Malaguzzi. Barcelona: Octaedro; Rosa
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JUNQUEIRA FILHO, Gabriel de Andrade. Linguagens geradoras: seleção e articulação de conteúdos em educação
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LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: Danças, piruetas e mascarados. Porto Alegre: Contrabando, 1998.

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MARTINS FILHO, Altino José. Minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência na educação infantil: além
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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Foto: Karen Luciélen Pereira Rodrigues -


EMEI Ida Fiori Druck – Santa Maria – RS

Foto: Karen Luciélen Pereira Rodrigues -


EMEI Ida Fiori Druck – Santa Maria – RS

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Sobre as autoras e autores

Agnese Infantino
Professora-pesquisadora de Pedagogia Geral e Social no Departamento de Ciências Humanas
para a formação, na Università degli Studi do Milano Bicocca. Atua nos temas da Pedagogia da
infância no curso de Estudos em Ciência da Educação. E-mail: [email protected]

Ana Lúcia Goulart de Faria


Criancista, criançologa, antifascista, marxista, feminista, Paulistana desvairada, Pedagoga,
Professora colaboradora aposentada da Faculdade de Educação da UNICAMP. Coordenadora
da linha Culturas Infantis do GEPEDISC. Membra do grupo gestor do Fórum Paulista de
Educação Infantil. Ex-membra do Conselho Municipal de Educação de Campinas. Atua nas
áreas de Pedagogia e Formação Docente, quase exclusivamente na primeira etapa da educação
básica, na Educação Infantil, em creches e pré-escolas, na Pedagogia da infância com
abordagem nas Ciências Sociais. Destaque para a primeira infância e relações de gênero, classe
social, relações étnico-raciais, parque infantil, Sociologia da infância, culturas infantis. Foi
membra do Colegiado Docente de Doutorado da Università degli Studi di Milano-Bicocca (2010-
2018). Desenvolve três projetos de pesquisa sempre na intersecção de idade, gênero, classe
social, relações étnico-raciais no Brasil, na Itália (com a Università degli Studi di Milano Bicocca)
e Suécia. E-mail: [email protected]

André Weissheimer de Borba


Professor Associado do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Maria.
Coordenador Científico do Geoparque Caçapava Mundial UNESCO.
E-mail: [email protected]

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Angelita Maria Machado


Pedagoga (UFSM), Especialista em Gestão Educacional (UFSM) e Mestranda em Educação
(UFSM). Professora contratada na Unidade de Educação Infantil Ipê Amarelo. E-mail:
[email protected]

Antonio Miguel
Professor do Departamento de Ensino e Práticas Culturais e do Programa de Pós-graduação
em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (SP). Membro
fundador do Círculo de Estudos, Memória e Pesquisa em Educação Matemática (CEMPEM), da
Revista Zetetiké, do Grupo de Pesquisa HIFEM (História, Filosofia e Educação Matemática) e do
Grupo de Pesquisa PHALA (Educação, Linguagem e Práticas Culturais). E-mail:
[email protected]

Cristiane Inês Bremm


Pedagoga (UFSM) e mestre em Tecnologias Educacionais em Rede (UFSM). Atualmente é
professora de Educação Infantil na Rede Municipal de Ensino de Santa Maria e doutoranda em
Educação pela Universidade Federal de Santa Maria. Áreas de interesse: Educação Infantil;
práticas pedagógicas; cultura digital; formação de professores em contexto. E-mail:
[email protected]

Débora Teixeira de Mello


Professora Associada do Centro de Educação e do Programa em Políticas Públicas e Gestão
Educacional (PPPG/UFSM). Mestre em Educação pela UFRGS e Doutora em Educação pela
UNICAMP. Realiza pesquisas na área de Educação discutindo principalmente os seguintes
temas: Políticas Públicas e Educação Infantil, Formação de Professores, Gestão Escolar e Gestão
Educacional. Vice-líder do Grupo Pesquisa-CNPq: Infância, Políticas Públicas, Currículo,
Práticas Pedagógicas e Formação Docente. Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em
Educação e Infância (NEPEI/UFSM), integra a Coordenação colegiada do Fórum Gaúcho de
Educação Infantil (FGEI) e do Fórum de Educação Infantil da Região Central (FREICENTRAL).
Coordena o curso de Especialização em Gestão Educacional EaD/CE/UFSM. E-mail:
[email protected]

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Eduarda Caroline Brum


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa
Maria. Mestre e Licenciada em Geografia pela UFSM. E-mail: [email protected]

Eduardo Pereira Batista


Eduardo Pereira Batista é doutor em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FE-USP); professor de educação física na educação infantil na Rede
Municipal de Vinhedo-SP; e pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e
Pensamento Contemporâneo (GEEPC-USP) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e
Diferenciação Sócio-Cultural linha culturas Infantis (GEPEDISC-culturas infantis- Unicamp).
E-mail: [email protected]

Flávio Santiago
É autor do livro infantil “A família de Franscisco” e pesquisador em nível de pós-doutorado na
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Possui estágio de pós-doutorado pela Universidade
de São Paulo (USP), Doutor em Educação na linha Ciências Sociais e Educação (2019) pela
Universidade Estadual de Campinas é Pedagogo pela Universidade Federal de São Carlos -
UFSCAR (2011), Geógrafo pela Faculdade Única (2021). Atualmente é pesquisador no Grupo de
Estudos e Pesquisa Sociologia da Infância e Educação Infantil (GEPSI/ USP) e no Grupo de
Pesquisas e Estudos em Geografia da Infância (GRUPEGI). E-mail:
[email protected]

Graziele Fernandes
Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de
Educação da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]

Heloisa Elesbão
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de
Educação da Universidade Federal de Santa Maria, professora de Educação Física no município
de Candelária, Candelária, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Ilse Abegg
Pedagoga (UFSM), mestre em Educação Científica e Tecnológica (UFSC) e doutorado em
Informática na Educação (UFRGS). Atualmente é Professora do Centro de Educação (UFSM), no
Programa de Pós-Graduação em Educação e no Curso de Formação de Professores para
Educação Profissional, atuando nos temas: educação dialógica e problematizadora, Pesquisa-
Ação, Educação Científica e Tecnológica e STEAM. E-mail: [email protected]

Janaína Raquel Cogo


Licenciada em Pedagogia pela Faculdade Três de Maio/SETREM. Doutoranda em Educação
pela Universidade Federal de Santa Maria. Membro do grupo de pesquisa Filosofia, Cultura e
Educação - FILJEM/CNPQ. Pedagoga no Instituto Federal Farroupilha. E-mail:
[email protected]

Jaqueline Bussler Michael Krüger


Pedagoga (UNIJUÍ). Especialista em Psicopedagogia (UNINTER). Mestranda em Educação
(PPGE/UFSM). Professora de Educação Infantil na rede municipal de Três Passos/RS.
Professora Formadora (PARFOR/CAPES/UNIJUÍ). E-mail: [email protected]

Jordana Lima
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de
Educação da Universidade Federal de Santa Maria, professora de Educação Especial no
município de São Sepé, São Sepé, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

Juliane Ilha Marafiga


Pedagoga (UFSM), Especialista em Gestão Educacional (UFSM) e Mestra em Educação (UFSM).
Professora da RME de Santa Maria/RS. E-mail: [email protected]

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Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Lucas da Silva Martinez


Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria. Mestre em Educação (UFSM).
Especialista em Docência no Ensino Superior (FAVENI) e em Gestão Educacional: direção,
coordenação e supervisão (Faculdade Iguaçu). Licenciado em Pedagogia (UNIPAMPA).
Acadêmico de pós-doutorado no PPGE-UFSM. Professor da Rede Municipal de Ensino de Santa
Maria/RS. Pesquisador Associado do Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura.
Membro do grupo de pesquisa Filosofia, Cultura e Educação. E-mail:
[email protected]

Marcia Aparecida Gobbi


Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, Mestrado em Educação,
Ciências Sociais e Educação, pela Universidade Estadual de Campinas, Doutorado em Educação
pela Universidade Estadual de Campinas e estágio pós-doutoral em estudos urbanos realizado
na Università degli Studi di Roma Tre. Atualmente é Professora Doutora da Universidade de São
Paulo. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação, atuando principalmente
nos seguintes temas: cidade, formação de professores(as), educação infantil, relações de
gênero. E-mail: [email protected]

Marcia Fernanda Heck


Pós-Graduada em Psicopedagogia (UFN); Pedagoga/UFSM; Mestranda em Educação no
PPGE/UFSM; Professora da Rede Municipal da cidade de Santa Maria/RS. E-mail:
[email protected]

Mariana Borges Lemes


Pós-Graduada em Educação ambiental e desenvolvimento sustentável (FAVENI);
Pedagoga/UFSM; Mestranda em Educação no PPGE/UFSM. E-mail:
[email protected]

291
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Renata Santos da Silva


Doutora e Mestra em Educação (PUCRS), Bacharel em Psicologia (ULBRA) e Licenciada em
Psicologia (UFRGS). Realizou estágio Pós- Doutoral em Educação na linha de Pesquisa Pessoa e
Educação no PPGEDU da PUCRS (2022- 2023). Trabalha como docente na formação de
professores para Educação Infantil na E. M. E. B. Emílio Meyer e como professora convidada na
Pós- Graduação em Neurociências, Educação e Desenvolvimento Infantil e no Pós- Graduação
em Psicologia Escolar e da Educação da PUCRS. Desenvolve pesquisas em temas de interface
entre Psicologia, Educação, Infâncias e Relações Étnico- Raciais. E-mail:
[email protected]

Sabrina Magrini Peixoto Machado


Professora da Rede Municipal de Educação de Santa Maria/RS. Mestre em Educação em
Políticas Públicas e Gestão Educacional PPPG/UFSM. E-mail: [email protected]

Simone Freitas da Silva Gallina


Doutora em Educação pela UNICAMP. Professora-pesquisadora Associada do Dep. ADE do
CE/UFSM. Pesquisadora do Grupo de Estudos Filosofia, Cultura e Educação - FILJEM e Núcleo
de Estudos e Pesquisa em Educação e Infância- NEPEI. E-mail: [email protected]

Sueli Salva
Pedagoga (UPF), Especialista em Dança (PUC/RS, Doutora em Educação UFRGS), Pós-Doutora
pela UNIMI/Milão/Itália. Professora no Centro de Educação (UFSM) e Programa de Pós-
Graduação em Educação, orienta e pesquisa sobre o tema da educação infantil, culturas da
infância e práticas educativas, vinculada ao Grupo de Pesquisa Filosofia, Cultura e Educação
(FILJEM/CNPq). E-mail: [email protected]

292
Educação das infâncias: percursos, experimentações e criações em contextos educativos

Yeison Arcadio Meneses Copete


Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-Americanos pela Universidade de Perpignan, França.
Professor da Universidade Surcolombiana. Membro fundador da Associação Colombiana de
Pesquisadores-Afros, ACIAFRO, e da Rede Internacional de Professores-as África na escola.
Pesquisador associado a vários grupos de pesquisa: Centro de Pesquisa em Sociedades e
Ambientes Mediterrâneos (CRESEM), e Grupo de Pesquisa e Estudos sobre Negros na América
Latina, (GRENAL), da Universidade de Perpignan, França; Centro de Pesquisa Interdisciplinar
em Letras, Línguas, Artes e Ciências Humanas, (CRILLASH) da Universidade das Antilhas,
França; Grupo de Pesquisa e Estudos sobre a América Latina, GRELAT, da Universidade Félix
Houphouët-Boigny, da Costa do Marfim. E-mail: [email protected]

293
Editora CLAEC

2024
O livro tece reflexões, encontros, afetos e aprendizagens
partilhadas como exercício para aprender a olhar, escutar e
pensar sobre as infâncias, a partir de princípios teórico-
epistemológicos das políticas e das práticas educativas
da/com/para a Educação Infantil. Contemporaneamente ainda,
nos deparamos com práticas adultocêntricas, que negam a
criança como sujeito histórico e social. Mesmo diante de
políticas públicas que afirmam a criança como sujeito de
direitos e produtora de cultura percebe-se uma lógica de
invisibilidade das infâncias.

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