Tudo Que Deixamos para Trás - Maja Lunde

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Copyright © 2015, H. Aschehoug & Co. (W. Nygaard) AS.

Publicado em mútuo acordo com


Aschehoug Agency e Vikings of Brazil Agência Literária.
Esta tradução foi publicada com o apoio financeiro da NORLA.
Título original em norueguês: Bienes Historie
Tradução: Kristin Lie Garrubo
Revisão: Ana Lúcia Barreto de Lucena e Ricardo Franzin
Design de Capa: Diana Cordeiro
Imagens de Capa: ©ShutterStock e ©iStockphotos
Diagramação: SGuerra Design
Acompanhamento Editorial: Laura Bacelar
Essa é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações e situações são
produtos da imaginação do autor ou usados como ficção. Qualquer semelhança com fato
reais é mera coincidência.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em partes, através de
quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram contemplados.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L962t Lunde, Maja


Tudo que deixamos para trás / Maja Lunde; Tradução Kristin Lie Garrubo. – São
Paulo : Editora Morro Branco, 2016.
480 p.; 14x21 cm.
ISBN: 978-85-92795-12-2
Título Original: Bienes Historie
Notas: Vencedor do Prêmio Norwegian Booksellers’ Prize 2015
1. Literatura Norueguesa. 2. Ficção Norueguesa.
I. Garrubo, Kristin Lie. II. Título.
CDD 839.82

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura Norueguesa
2. Ficção Norueguesa

Todos os direitos desta edição reservados à:


EDITORA MORRO BRANCO
Alameda Campinas 463, cj. 21.
01404-000 – São Paulo, SP – Brasil
Telefone (11) 3373-8168
www.editoramorrobranco.com.br
Impresso no Brasil, 2016
Adaptação para e-book: Argon
Versão: 1.0
Sumário

Página de título
Créditos
Dedicatória

Capítulo 1: Tao
Capítulo 2: William
Capítulo 3: George
Capítulo 4: Tao
Capítulo 5: William
Capítulo 6: George
Capítulo 7: Tao
Capítulo 8: William
Capítulo 9: George
Capítulo 10: Tao
Capítulo 11: William
Capítulo 12: Tao
Capítulo 13: George
Capítulo 14: Tao
Capítulo 15: George
Capítulo 16: William
Capítulo 17: Tao
Capítulo 18: George
Capítulo 19: William
Capítulo 20: Tao
Capítulo 21: George
Capítulo 22: William
Capítulo 23: George
Capítulo 24: William
Capítulo 25: Tao
Capítulo 26: William
Capítulo 27: George
Capítulo 28: William
Capítulo 29: Tao
Capítulo 30: George
Capítulo 31: William
Capítulo 32: Tao
Capítulo 33: George
Capítulo 34: Tao
Capítulo 35: George
Capítulo 36: William
Capítulo 37: Tao
Capítulo 38: George
Capítulo 39: William
Capítulo 40: George
Capítulo 41: Tao
Capítulo 42: William
Capítulo 43: George
Capítulo 44: William
Capítulo 45: Tao
Capítulo 46: William
Capítulo 47: George
Capítulo 48: Tao
Capítulo 49: William
Capítulo 50: Tao
Capítulo 51: George
Capítulo 52: William
Capítulo 53: George
Capítulo 54: Tao
Capítulo 55: William
Capítulo 56: George
Capítulo 57: Tao
Capítulo 58: George
Capítulo 59: Tao
Capítulo 60: George
Capítulo 61: Tao
Capítulo 62: William
Capítulo 63: George
Capítulo 64: Tao

Agradecimentos
Sobre a autora
Para Jesper, Jens e Linus
Tao

Distrito 242, Shirong, Sichuan, 2098


Como aves gigantes, cada uma de nós se equilibrava em um galho,
com um pote de plástico em uma das mãos e um pincel de pena na
outra.
Fui subindo lentamente, com o maior cuidado possível. Eu não
servia para isso, não era igual às outras da equipe de trabalho,
meus movimentos muitas vezes eram bruscos demais, me faltavam
a precisão motora e a destreza necessárias. Não fui feita para isso,
mas mesmo assim era obrigada a estar aqui, todos os dias, doze
horas a fio.
As árvores tinham a idade de uma geração humana. Os galhos
eram frágeis como vidro delgado, rangiam sob nosso peso. Eu me
virei com cuidado, não podia machucar a árvore. Posicionei a perna
direita num galho mais acima, depois puxei cuidadosamente a es-
querda, e enfim encontrei uma posição de trabalho segura – incô-
moda, mas estável. Daqui eu alcançava as flores mais altas.
O pequeno pote de plástico estava cheio da levíssima riqueza,
medida e distribuída com precisão para nós no início da jornada de
trabalho, exatamente a mesma quantidade para cada uma. Desafi-
ando a ação da gravidade, tentei transferir quantidades invisíveis do
recipiente para a árvore. Cada flor deveria ser polinizada com o mi-
núsculo pincel de pena, proveniente de galinhas desenvolvidas pe-
los cientistas para esse fim específico. Nenhuma pena de fibra sinté-
tica se mostrara tão eficaz, nem de longe. Isso tinha sido testado ve-
zes sem conta, afinal, não faltara tempo: em meu distrito a tradição
era centenária. Aqui, as abelhas tinham desaparecido já na década
de 1980, muito antes do Colapso, por efeito dos pesticidas. Poucos
anos depois, quando os pesticidas não eram mais usados, as abe-
lhas retornaram, mas àquela altura a polinização manual já tinha si-
do implementada. Os resultados eram melhores, embora exigisse
um número incrível de pessoas, de mãos. E depois, com o Colapso,
meu distrito obteve uma vantagem competitiva. Compensara termos
sido um dos que mais poluíam. Éramos um país de vanguarda na
poluição e, portanto, nos tornamos um país de vanguarda na polini-
zação manual. Um paradoxo nos salvou.
Eu me estiquei ao máximo, mas não alcancei a flor do topo. Es-
tava prestes a desistir, mas sabia que poderia ser castigada e por is-
so fiz mais uma tentativa. Descontavam parte de nosso salário se
gastássemos o pólen rápido demais. E descontavam parte de nosso
salário se o gastássemos aquém da cota. O resultado do trabalho
era invisível. Ao descermos das árvores no final da jornada, não vía-
mos nada que mostrasse o desempenho do dia, além dos xis ver-
melhos riscados com giz nos troncos das árvores, de preferência até
quarenta xis por dia. Só com a chegada do outono, quando as árvo-
res estivessem carregadas de frutas, ficaria evidente onde se tinha
feito um bom trabalho. Mas àquela altura ninguém mais saberia que
árvore fora polinizada por quem.
Hoje nos destacaram para o Campo 748. De quantos? Eu não
sabia. Meu grupo era um entre centenas. Usando a roupa bege de
trabalho, éramos tão uniformes quanto as árvores. E tão apinhadas
como as flores. Nunca sozinhas, sempre formando bandos, aqui em
cima das árvores ou caminhando ao longo das trilhas de um campo
a outro. Apenas entre as paredes de nossos pequenos apartamen-
tos poderíamos ficar a sós algumas breves horas por dia. De resto,
a vida era aqui fora nos pomares.
O silêncio reinava. Não tínhamos permissão para conversar en-
quanto trabalhávamos. A única coisa que se ouvia eram nossos
deslocamentos cuidadosos nas árvores, um pigarro fraco, alguns
bocejos, o tecido do uniforme contra o tronco. E, às vezes, o barulho
que todas nós aprendemos a detestar: um galho que rangia e, na pi-
or das hipóteses, quebrava. Um galho quebrado significava menos
frutas e mais um motivo para nos descontar parte do salário. Fora
isso, era só o vento que fazia barulho, varrendo os ramos, passando
sobre as flores, deslizando pela grama no chão.
O vento soprava do sul, da floresta. Ao fundo das árvores frutífe-
ras em floração branca, que ainda estavam sem folhas, a floresta
era escura e selvagem. Nunca visitávamos a floresta, não tínhamos
tarefas lá. No entanto, já corria um boato de que ela seria arrancada
e transformada em pomar.
Uma mosca veio zumbindo de lá, um espetáculo raro. O número
de pássaros também tinha diminuído, fazia dias que eu não via um.
Eles caçavam os poucos insetos existentes e passavam fome, as-
sim como o resto do mundo.
Mas então um som estridente rompeu o silêncio. O apito do bar-
racão da administração, o sinal do segundo e último intervalo do dia.
Só agora percebia que minha boca estava ressecada.
Como uma massa uniforme, eu e minhas colegas de trabalho es-
coamos das árvores para o chão. Elas já estavam conversando. Era
como se um interruptor ativasse a tagarelice cacofônica no exato
instante em que era permitida.
Eu não disse nada, me concentrando em descer devagar, alcan-
çar o chão sem quebrar um galho. Consegui. Pura sorte. Eu era de-
sajeitada, desastrada, já trabalhava aqui por tempo suficiente para
saber que nunca seria realmente boa nisso.
No chão ao lado da árvore estava minha velha garrafa de metal.
Eu a agarrei e bebi depressa. A água estava morna, tinha gosto de
alumínio, e o gosto me fez beber menos do que precisava.
Vestidos de branco, dois jovens da Equipe Alimentar distribuíram
rapidamente as marmitas reutilizáveis com a segunda refeição do
dia. Sentei sozinha, encostada no tronco da árvore, e abri a minha.
Hoje o arroz veio misturado a grãos de milho. Comi uma colherada.
Como de costume, um pouco salgado demais, e temperado com sa-
bor artificial de pimenta vermelha e soja. Fazia muito tempo que eu
não sentia gosto de carne. A ração animal exigia áreas grandes de-
mais de terra cultivável. E muita ração animal tradicional dependia
da polinização. Os animais não valiam nosso trabalho manual meti-
culoso.
A marmita ficou vazia antes de eu estar satisfeita. Levantei-me e
a coloquei de volta na cesta de coleta. Então corri sem sair do lugar.
As pernas estavam cansadas e duras por terem ficado travadas em
má posição lá em cima na árvore. O sangue formigava, eu não con-
seguia manter o corpo quieto.
Mas não adiantou. Dei uma olhada rápida em volta. Ninguém da
gestão estava prestando atenção. Deitei-me depressa no chão, sim-
plesmente precisava esticar as costas doloridas.
Fechei os olhos por um instante. Tentei afastar a atenção da con-
versa das mulheres, preferindo me concentrar no volume da tagare-
lice, que aumentava e diminuía. Essa necessidade de tantas pesso-
as falarem ao mesmo tempo, de onde será que vinha? As outras ti-
nham começado quando ainda eram menininhas. Hora após hora
com conversas em grupo em que o tema sempre era um mínimo de-
nominador comum e ninguém se aprofundava em nada. Exceto, tal-
vez, quando o assunto era alguém que não estivesse presente.
De minha parte, preferia conversas com uma pessoa por vez. Ou
minha própria companhia. No trabalho, geralmente minha opção era
essa última. E em casa eu tinha Kuan, meu marido. Não que manti-
véssemos longas conversas, tampouco – não era isso que nos unia.
As referências de Kuan resumiam-se ao aqui e agora, ele era práti-
co, não aspirava ao conhecimento, a algo mais. Mas em seus bra-
ços eu encontrava a paz. E além disso tínhamos Wei-Wen, nosso fi-
lho de três anos. Sobre ele podíamos conversar.
No mesmo instante em que o vozerio quase me fazia embalar no
sono, ele parou de repente. Todas se calaram.
Eu me ergui. As outras da equipe estavam com o rosto voltado
para a estrada.
A procissão de crianças descia em nossa direção.
Elas não tinham mais que oito anos, reconheci várias da escola
de Wei-Wen. Todas tinham recebido roupas idênticas de trabalho,
os mesmos uniformes bege de tecido sintético que nós usávamos, e
estavam se aproximando de nós na velocidade máxima permitida
por suas pernas curtas. Eram mantidas na linha por dois monitores
adultos. Um na frente, um atrás. Os dois tinham vozes fortes que
corrigiam as crianças sem parar. Mas não davam bronca, as mensa-
gens eram transmitidas com ternura e compaixão. Pois mesmo que
as crianças não tivessem compreendido totalmente qual era seu
destino, os adultos sabiam.
As crianças andavam de mãos dadas, em pares desiguais, as
mais altas com as mais baixas. As grandes cuidavam das peque-
nas. Andavam a passos irregulares, desorganizadas, mas seguran-
do as mãos umas das outras, como se estivessem coladas. Talvez
tivessem recebido ordem estrita de não se soltarem. Seus olhos es-
tavam fixados em nós, nas árvores. Curiosas, algumas delas franzi-
am os olhos, inclinavam a cabeça, como se estivessem aqui pela
primeira vez, embora todas tivessem crescido no distrito e não co-
nhecessem outra paisagem que não as fileiras intermináveis de ár-
vores frutíferas, contra a sombra da densa floresta ao sul. Uma me-
nina baixa olhou para mim por bastante tempo, grandes olhos um
pouco apertados. Ela piscou algumas vezes, depois fungou com for-
ça. Segurava a mão de um menino magro. Ele bocejava alto e des-
preocupadamente, sem cobrir a boca com a mão livre. Não tinha a
menor noção do quanto seu rosto se escancarava. Não bocejava de
tédio, era jovem demais para isso, era a falta de comida que lhe
causava o cansaço. Uma menina esguia e alta segurava a mão de
um menino pequeno. Ele respirava com dificuldade por um nariz en-
tupido, e estava com a boca aberta. A menina alta o arrastou atrás
de si enquanto virava o rosto para o sol. Franziu os olhos e o nariz,
mas manteve a cabeça na mesma posição, como se quisesse pegar
cor ou talvez buscar forças.
Cada primavera elas apareciam, as novas crianças. Mas eram
mesmo assim tão pequenas? Será que tinham ficado mais jovens?
Não. Elas tinham oito anos. Como sempre costumaram ter. Ti-
nham terminado a escola. Se é que aquilo poderia ser chamado de
escola… Bem, aprendiam os números e alguns ideogramas, mas fo-
ra isso a escola era uma espécie de depósito regulamentado. Um
depósito e uma preparação para a vida aqui nos pomares. Um exer-
cício de ficar parado por muito tempo. Fique parado. Totalmente pa-
rado, isso sim. E tarefas voltadas para as habilidades motoras finas.
Faziam tapetes desde os três anos de idade. Os dedos pequenos
eram perfeitos para o trabalho com os desenhos complexos. Da
mesma forma que eram perfeitos para o trabalho nos pomares.
As crianças passaram por nós, viraram os rostos para a frente,
para outras árvores. Então continuaram a andar, em direção a al-
gum outro campo. O menino desdentado tropeçou, mas a menina
alta o segurou firme, impedindo-o de cair.
A procissão se afastou, sumindo entre as árvores.
– Para onde estão indo? – perguntou uma mulher de minha equi-
pe.
– Com certeza para o 49 ou o 50 – disse outra. – Ninguém co-
meçou lá ainda.
Senti um aperto no coração. Para onde estavam indo, para qual
campo, não importava. Era o que iam fazer…
O apito soou do barracão. Galgamos as árvores de novo. Eu me
movimentei devagar, mas o coração bateu forte mesmo assim. Pois
as crianças não tinham ficado mais jovens. Era que Wei-Wen… Em
cinco anos ele teria oito. Em apenas cinco anos seria sua vez. As
mãos diligentes valiam mais aqui fora do que em qualquer outro lu-
gar. Os dedos pequenos já tinham sido afinados para esse tipo de
trabalho.
Crianças de oito anos de idade nos pomares, entra dia, sai dia,
pequenos corpos enrijecidos nas árvores. Nem teriam uma infância
como tivemos na minha época, pois nós frequentamos a escola até
os quinze.
Uma não vida.
Minhas mãos tremiam quando levantei o recipiente de plástico
com o pó valioso. Diziam que todos éramos obrigados a trabalhar
para conseguir comida, para cultivar os alimentos que nós mesmos
iríamos consumir. Todos tinham de contribuir, até as crianças. Pois
quem precisaria de educação se os celeiros estavam se esgotando?
Se as rações ficavam menores a cada mês? Se você tinha que ir
para a cama com fome toda noite?
Eu me virei para alcançar as flores atrás de mim, mas dessa vez
os movimentos foram bruscos demais. Encostei num galho sem
querer, de repente perdi o equilíbrio e me inclinei pesadamente para
o outro lado.
E aí já estava feito. O som estaladiço que odiávamos. O som de
um galho quebrando.
A supervisora veio depressa em minha direção. Olhou para a
parte de cima da árvore, avaliando o estrago sem dizer nada. Ano-
tou algo rapidamente num bloco de papel antes de ir embora.
O galho não era comprido nem forte, mas mesmo assim eu sabia
que todo o excedente deste mês havia desaparecido. O dinheiro
que iria para a lata dentro do armário da cozinha, onde guardáva-
mos cada iuane que sobrava.
Respirei fundo. Não podia pensar nisso. Não podia senão conti-
nuar. Levantar a mão, mergulhar o pincel no pólen, levá-lo com cui-
dado para as flores, passá-lo sobre elas como se eu fosse uma abe-
lha.
Evitava olhar para o relógio. Não ajudava. Só sabia que, a cada
pincelada sobre as flores, a noite se aproximava um pouco mais. E
com ela, a única breve hora que eu ganhava com meu filho por dia.
Aquela breve hora era tudo que tínhamos, e naquela breve hora eu
talvez pudesse fazer uma diferença. Plantar uma semente, que lhe
daria a oportunidade que eu mesma nunca tive.
William

Maryville, Hertfordshire, Inglaterra, 1852


Tudo a meu redor era amarelo, infinitamente amarelo, a amarelidão
estava em cima de mim, embaixo de mim, em volta de mim, me ce-
gava. No entanto, a cor amarela era real, não algo que eu imagina-
va, provinha do papel brocado que minha esposa Thilda mandou co-
lar nas paredes quando nos mudamos para cá alguns anos atrás.
Estávamos bem de vida naquela época. Minha pequena loja de se-
mentes na rua principal de Maryville estava prosperando. Eu ainda
me sentia inspirado, achando que seria capaz de conciliar a loja
com aquilo que realmente importava: meus estudos das ciências na-
turais. Mas isso foi há muito tempo, muito antes de eu me tornar pai
de um número tão desmedido de filhas, e ainda mais tempo antes
da conversa final com o professor Rahm.
Se eu soubesse quanta agonia o papel de parede amarelo me
daria, nunca o teria aprovado. Pois a cor amarela não se contentava
em estar no papel de parede, quer eu fechasse os olhos, quer os
mantivesse abertos, ela estava ali da mesma forma maldita. Ela me
seguia até no sono e nunca me deixava escapar, como se ela fosse
a própria doença, uma enfermidade sem diagnóstico, mas com mui-
tos nomes: pessimismo, desgosto, melancolia. No entanto, ninguém
à minha volta se atrevia a proferir tais palavras. Nosso médico de fa-
mília fazia-se de desentendido. Continuava a falar em termos médi-
cos, sobre a discrasia, o desequilíbrio em meus fluidos corporais, o
excesso de bile negra. No início de minha prostração ele tentara a
sangria, depois, laxantes, os quais me transformaram num bebê in-
defeso, mas agora ele evidentemente não tinha mais coragem. Pa-
recia ter desistido de qualquer tipo de tratamento e só sacudia a ca-
beça quando Thilda levantava o assunto. Os protestos dela surtiam
apenas sussurros. Eu distinguia uma ou outra palavra: fraco demais,
não o aguentaria, nenhuma melhora. Ultimamente, ele vinha com
menos frequência, o que poderia estar relacionado com meu acor-
rentamento inabalável à cama.
Era fim de tarde, a casa estava viva debaixo de mim. O barulho
das meninas subiu dos cômodos do andar térreo, penetrando o
chão e as paredes, assim como os odores desagradáveis de comi-
da. Distingui Dorothea, a menina precoce de doze anos; ela estava
lendo a Bíblia em voz entrecortada e sálmica a um só tempo, mas
as palavras paravam no caminho antes de chegarem a mim, da
mesma forma que a palavra de Deus parecia não mais me alcançar.
A voz da pequena Georgiana destoou fininha, e Thilda pediu silêncio
com severidade. Logo a leitura de Dorothea havia terminado, e as
outras assumiram a tarefa. Martha, Olivia, Elizabeth, Caroline.
Quem era quem? Eu não era capaz de distinguir uma da outra.
Uma delas riu, uma breve risada, e mais uma vez ecoou em mim
a risada de Rahm, a risada que encerrou nossa conversa de uma
vez por todas, como um golpe de cinto sobre as costas.
Então Edmund disse algo. Sua voz tinha se tornado mais grave,
levemente polida, não havia mais nada de infantil nela. Tinha dezes-
seis anos, meu primogênito, meu único filho homem. Agarrei-me a
sua voz, desejando intensamente que pudesse discernir as pala-
vras, tê-lo aqui comigo. Talvez ele fosse a pessoa capaz de me ani-
mar, de me dar forças para levantar, sair da cama. No entanto, Ed-
mund nunca vinha e eu não sabia por quê.
Da cozinha soou o ruído de panelas. O som de comida sendo
preparada despertou o meu estômago, e ele deu um nó. Encolhi-me
em posição fetal.
Olhei em volta. Um pedaço de pão intocado e um naco resseca-
do de presunto defumado estavam num prato ao lado de uma cane-
ca de água meio vazia. Quando foi a última vez que comi? Quando
cheguei a tomar líquido?
Consegui me recostar e pegar a caneca de água. Deixei o líqui-
do passar pela boca e descer pela garganta, enxaguando o sabor
de velhice. O presunto tinha um gosto rançoso, o pão era escuro e
forte. A comida assentou no estômago, graças a Deus.
Mesmo assim não encontrei posição confortável na cama. As
costas eram uma grande ferida, a pele do quadril estava escoriada
por eu ter ficado deitado de lado. Havia uma inquietação nas per-
nas, um formigamento.
Notei um silêncio súbito na casa. Será que todos tinham saído?
Não escutei nada além da crepitação do coque que queimava na
lareira.
Mas então, de repente, havia vozes cantando. Vozes límpidas
vindo do jardim.
Hark the herald angles sing
Glory to the newborn King
Será que o Natal estava chegando?
Nos últimos anos, os corais da redondeza começaram a passar
cantando de porta em porta durante o Advento, não para ganhar di-
nheiro ou presentes, mas no espírito natalino, apenas para agradar
ao próximo. Houve um tempo em que eu achava isso bonito, em
que os pequenos cantores eram capazes de acender dentro de mim
uma luz que eu não mais sabia se existia. Uma eternidade parecia
ter-se passado desde então.
As vozes cristalinas fluíam em minha direção como água de de-
gelo.
Peace on earth and mercy child
God and sinners reconciled
Pus os pés no chão. Sob as solas, o piso parecia duro. Agora eu
era o bebê, o recém-nascido, cujos pés ainda não estavam acostu-
mados ao piso, mas moldados para que pudesse dançar usando as
pontas. Era assim que eu lembrava dos pés de Edmund, com o pei-
to alto e tão flexíveis e arqueados na sola como no peito. Eu era ca-
paz de ficar com eles nas mãos, só olhando e sentindo, como qual-
quer um faria com o seu primogênito, pensando que eu seria algo
diferente para ele, terei algo diferente para você, algo bem diferente
do que meu pai tinha sido para mim. Era assim que eu ficava com
ele, até Thilda arrancá-lo de mim sob o pretexto de que ia amamen-
tá-lo ou precisava trocar a sua fralda.
Meus pés de bebê se locomoveram lentamente em direção à ja-
nela. Cada passo doía. O jardim revelou-se para mim, e ali estavam.
Todas as sete, pois não era um coral desconhecido do vilarejo,
eram minhas próprias filhas.
As quatro mais altas atrás, as três mais baixas na fileira da fren-
te, vestidas com suas roupas escuras de inverno: casacos de lã
apertados e curtos demais, ou grandes demais, cheios de remen-
dos, o puído mal disfarçado com enfeites de fitas baratas e bolsos
em lugares inusitados. Toucas de lã marrons, azuis-escuras ou pre-
tas com debruns de renda branca emolduravam os rostos esguios,
de palidez invernal. O canto transformava-se em baforadas geladas
que se desenhavam no ar.
Como estavam magras, todas elas.
Pegadas fundas na neve indicavam o caminho que tinham per-
corrido. Devem ter mergulhado a perna na neve até bem acima dos
joelhos. Eu podia imaginar a sensação das meias de lã úmidas na
pele nua, e o frio que penetrava as solas finas das botas. Nenhuma
delas tinha mais que um único par de botas.
Aproximei-me mais da janela, talvez esperando avistar outras
pessoas no jardim, uma plateia para o coral, Thilda, ou alguns de
nossos vizinhos, mas o jardim estava vazio. Minhas filhas não can-
tavam para ninguém lá fora. Cantavam para mim.
Light and life to all he brings
Risen with healing in his wings
Os olhares de todas estavam fixados em minha janela, mas elas
ainda não tinham me avistado. Eu estava na sombra e o sol brilhava
na vidraça; provavelmente, elas só viam o reflexo do céu e das árvo-
res.
Born to raise the sons of Earth
Born to give them second birth
Dei mais um passo para a frente.
Charlotte, com catorze anos, minha filha mais velha, estava na
ponta. Cantava com todas as forças. O peito arfava ao compasso
das notas. Talvez isso tudo fosse sua ideia. Ela sempre cantara,
passara a infância cantarolando. Fazendo as lições de casa ou de-
bruçada sobre a louça, sussurrava o tempo todo uma melodia, como
se os tons suaves fizessem parte de seus movimentos.
Foi ela quem me descobriu primeiro. Seu rosto iluminou-se. Deu
uma cutucada em Dorothea, a menina precoce de doze anos. Esta
fez um gesto rápido com a cabeça para Olivia, um ano mais nova,
que, por sua vez, voltou os olhos arregalados para sua irmã gêmea,
Elizabeth. As duas não eram semelhantes na aparência, apenas no
temperamento. Ambas meigas e gentis, mas obtusas, incapazes de
compreender os números, mesmo que fossem martelados em suas
cabeças. A fileira da frente começou a se agitar, as pequenas tam-
bém me avistaram. Martha, com nove anos, apertou o braço de Ca-
roline, com sete. Caroline, que sempre choramingava porque no fun-
do queria ser a caçula, cutucou com força a pequena Georgiana,
que queria ser mais velha do que era. Gritos eufóricos não subiram
ao céu, isso elas não se permitiram, ainda não. Somente uma irre-
gularidade mínima no canto revelou que me tinham visto, bem como
sorrisos tênues, tanto quanto bocas cantantes em forma de “o” fos-
sem capazes de sorrir.
Senti no peito um nó infantil. Elas não cantavam mal, de modo
algum. Os rostos esguios estavam radiantes, os olhos brilhavam.
Minhas filhas haviam preparado isto para mim, apenas para mim, e
agora acreditavam que tinham tido êxito, que tinham conseguido ti-
rar o pai da cama. Assim que a canção acabasse, deixariam a ale-
gria aflorar. Com passos ligeiros pela neve recém-caída, correriam
eufóricas para casa e anunciariam o milagre caseiro que tinham
acabado de operar. Nós o curamos com o canto, elas se regozijari-
am. Curamos o papai com o canto! Uma enxurrada de vozes entusi-
asmadas de menina ecoaria pelos corredores, repercutiria nas pare-
des: logo ele voltará. Logo ele estará conosco outra vez. Mostramos
Deus a ele, Jesus, o recém-nascido. Hark, the herald angels sing,
glory to the newborn king. Que ideia maravilhosa, sim, realmente bri-
lhante, foi cantar para ele, lembrá-lo do belo, da mensagem do Na-
tal, de tudo que ele esqueceu em sua prostração, que nós chama-
mos de doença, mas que todos sabem ser algo bem diferente, mes-
mo que mamãe nos proíba de falar sobre isso. Coitado do papai, ele
não está bem, está pálido como um espectro, isso vimos todas pela
fresta da porta quando passamos ali às escondidas. Sim, como um
espectro, é só pele e osso, e deixou a barba crescer, assim como o
Jesus crucificado, está irreconhecível. Mas logo o teremos conosco
outra vez, logo ele poderá trabalhar, e teremos manteiga no pão e
novos casacos de inverno. É um verdadeiro presente de Natal. Ch-
rist is born in Bethlehem!
Mas era uma mentira, eu não podia lhes dar esse presente, eu
não era digno de sua alegria. A cama me chamava, minhas pernas
recém-nascidas tremiam, não conseguiam me segurar mais. O estô-
mago embrulhou-se de novo, apertei as mandíbulas para impedir o
vômito e, do lado de fora, o canto emudeceu. Não haveria milagre
hoje.
Ge orge

Autumn Hill, Ohio, EUA, 2007


Busquei Tom na estação de Autumn. Ele não vinha para casa desde
o verão passado. Eu não sabia por quê, nunca perguntei. Talvez não
tivesse coragem de ouvir a resposta.
Era meia hora de carro até o sítio. A gente não disse grande coi-
sa. Enquanto o carro seguia sacudindo para casa, Tom mantinha as
mãos no colo, pálidas, magras e quietas. Sua mala estava perto dos
pés. Ficou suja. A picape nunca esteve com o chão limpo desde que
foi comprada. A terra do ano passado, ou do ano anterior, tinha vira-
do poeira durante o inverno. E a neve que derretia das botas de Tom
misturava-se com ela formando lama.
A mala era nova. De tecido duro. Com certeza comprada na ci-
dade. E era pesada. Levei um susto quando a levantei do chão na
estação rodoviária. Tom queria carregar o peso sozinho, mas eu pe-
guei a mala antes de ele ter a chance, porque tinha cara de quem
não vinha fazendo muito exercício ultimamente. Na minha cabeça,
não havia necessidade de trazer nada além de roupas, afinal, ele só
ia passar uma semana de férias em casa. E a maior parte do que
precisava já estava pendurada num gancho no alpendre. O maca-
cão, as botas, o gorro com orelheiras. Mas, pelo visto, ele tinha tra-
zido um monte de livros. Devia achar que teria muito tempo para es-
se tipo de coisa.
Ele estava esperando por mim na hora que cheguei. O ônibus
chegou adiantado, ou talvez eu estivesse atrasado. Tive que tirar a
neve do pátio antes de sair, provavelmente foi por isso.
– Não tem importância, George. Ele só anda mesmo com a ca-
beça nas nuvens – disse Emma, que olhava para mim tiritando de
frio, com os braços cruzados sobre o peito.
Não respondi. Só fiquei na lida com a pá. A neve vinha fácil, era
leve e recente, se retraía como o fole de um acordeão. Mal suei as
costas.
Ela continuou olhando para mim.
– Parece que vai receber a visita do Presidente Bush.
– Alguém precisa tirar a neve daqui. Afinal, não é coisa que você
faça.
Levantei o olhar da neve. Via pontinhos brancos na frente dos
olhos. Ela sorriu daquele seu jeito rasgado. Eu não podia deixar de
dar um sorriso largo de volta. A gente se conhecia desde a escola, e
acho que nem um dia havia se passado sem que a gente trocasse
justamente aquele sorriso.
Mas ela tinha razão. Eu estava exagerando na retirada da neve.
Já tínhamos tido vários dias quentes, o sol se fazia sentir e havia
degelo por toda parte. Essa nevada era apenas a última arfada do
inverno e derreteria em poucos dias. Eu também tinha exagerado na
limpeza da privada hoje. Atrás da privada, para ser mais exato. Não
era costumeiro da minha parte. Mas queria que tudo estivesse em
ordem agora que ele finalmente vinha para casa. Que ele visse só o
pátio tinindo e a privada limpa, e não reparasse a tinta que descas-
cava da parede do lado sul, onde o sol batia, ou a calha que tinha se
soltado por causa da ventania do outono.
Quando foi embora de casa a última vez, ele estava bronzeado e
forte, empolgado, me deu um raro abraço longo, e senti a força de
seus braços enquanto ele me segurava. As outras pessoas diziam
que os filhos não paravam de crescer, que sempre se assustavam
quando reviam o filhote depois de algum tempo. Mas esse não era o
caso de Tom. Agora ele tinha encolhido. O nariz estava vermelho, as
faces brancas, os ombros estreitos. E não ajudava nada o fato de
estar tiritando de frio e com os ombros arqueados. Parecia uma pera
murcha. É verdade que a tremedeira parou durante o trajeto para
casa, mas ele continuou sentado com um jeitão de fracote no banco
a meu lado.
– Como é a comida? – perguntei.
– A comida? Você quer dizer na faculdade?
– Não. Em Marte.
– O quê?
– Na faculdade, claro. Você por acaso esteve em outro lugar ulti-
mamente?
Ele se encolheu entre os ombros outra vez.
– Só quero dizer que… Você parece um pouco desnutrido – co-
mentei.
– Desnutrido? Pai, você tem noção do que isso significa?
– Pelo que eu saiba, quem paga a mensalidade sou eu, então
não precisa responder desse jeito.
Houve um silêncio.
Longo.
– Mas está indo bem, né? – disse eu enfim.
– Sim, está indo bem.
– Quer dizer que meu dinheiro está sendo bem investido?
Tentei dar uma risada irônica, mas vi pelo rabo do olho que ele
não estava rindo. Por que não ria? Não custava nada fazer um es-
forço para participar da brincadeira, aí a gente podia afastar as pala-
vras pesadas com o riso e talvez ter uma conversa agradável no
resto da viagem.
– Já que a comida está paga, você podia tratar de comer um
pouco mais, não é? – arrisquei.
– É – disse ele apenas.
Comecei a esquentar. Só queria que ele sorrisse, mas ele ficava
sentado ali com toda aquela seriedade. Eu não devia falar nada. Ca-
lar a boca. Mas as palavras se impunham.
– Você não via a hora de sair daqui, não é?
Será que ele ficaria com raiva agora? Será que a gente voltaria
para aquele assunto?
Não. Ele só suspirou.
– Pai.
– Tudo bem. Estava só brincando. De novo.
Engoli o resto de minhas palavras. Sabia que se continuasse se-
ria capaz de dizer um monte de coisas de que ia me arrepender.
Não devia começar assim, não quando ele finalmente estava aqui.
– Só quero dizer… – falei, tentando fazer a voz suave. – Você
parecia mais feliz quando foi embora do que parece agora.
– Estou feliz. OK?
– OK.
Assunto encerrado. Ele estava feliz. Superfeliz. Tão feliz que sal-
titava. Não via a hora de rever a gente, de vir ao sítio de novo. Não
tinha pensado em outra coisa fazia semanas. Sem dúvida.
Tossi um pouco, ainda que a garganta não estivesse coçando.
Tom apenas sentado ali, com suas mãos calmas. Engoli um nó que
estava apertando minha garganta. O que eu esperava? Que alguns
meses de separação nos transformariam em amigos?
•••
Emma ficou abraçada a Tom por um tempão. Quanto a isso, as coi-
sas também estavam como antes. Pelo visto, ela ainda podia abra-
çar e beijar o filho sem que ele se incomodasse.
Tom não notou que o pátio estava limpo, que a neve tinha sido
retirada. Emma estava certa quanto a isso. Mas tampouco se impor-
tou com a tinta que descascava da parede, e isso era uma vanta-
gem…
Não. Porque na verdade eu queria que ele visse as duas coisas.
Que desse uma força, agora que finalmente estava em casa. Assu-
misse responsabilidade.
Emma serviu bolo de carne e milho, porções grandes nos pratos
verdes. A cor amarela do milho dava um tom alegre, e o molho de
creme de leite estava fumegante. Comida para ninguém botar defei-
to, mas Tom comeu só metade da porção, nem tocou na carne. Pa-
recia não ter apetite para nada. Falta de ar fresco, esse era o pro-
blema. A gente ia dar um jeito nisso já.
Emma não parava de fazer perguntas. Sobre a faculdade. Os
professores. As aulas. Os amigos. As meninas… Não conseguiu
muitas respostas sobre o último tema. Mas de qualquer forma a con-
versa entre eles fluía sem interrupções, como sempre. Mesmo que
ela perguntasse mais do que ele respondesse. Sempre tinha sido
assim, as palavras não cessavam entre eles. Falavam pelos cotove-
los e tinham intimidade, sem fazer esforço. Mas não era de estra-
nhar, afinal, ela era sua mãe.
Emma saboreava aquilo tudo, estava com bochechas vermelhas
de cozinheira. Mantinha os olhos fitos em Tom e não conseguia tirar
as mãos de cima dele, meses de saudades nos dedos.
De modo geral, fiquei quieto, tentava sorrir quando eles sorriam,
rir quando eles riam. Depois do fracasso da conversa no carro, não
valia a pena me arriscar. Era melhor procurar uma boa oportunidade
para iniciar a chamada conversa de pai e filho. Ela deveria surgir.
Afinal, ele passaria uma semana aqui.
Eu me deliciei com a refeição, pelo menos alguém ali sabia apre-
ciar boa comida. Raspei o prato, puxei o molho com um pedaço de
pão, deixei os talheres atravessados no prato e então me levantei.
Mas aí Tom fez menção de se levantar também. Mesmo que seu
prato ainda estivesse transbordando.
– Estava muito bom – disse ele.
– Você tem que terminar o prato que sua mãe fez – falei. Tentei
parecer tranquilo, mas a fala deve ter saído meio ríspida.
– Ele já comeu bastante – disse Emma.
– Ela passou horas preparando.
A bem da verdade, isso era um exagero. Tom tornou a sentar.
Levantou o garfo.
– É só bolo de carne, George – disse Emma. – Não demorou
tanto.
Quis protestar. Ela tinha trabalhado muito sim, sem dúvida, e es-
tava na maior empolgação por ter Tom em casa de novo. Merecia
que o rapaz soubesse disso.
– Comi um sanduíche no ônibus – disse Tom para seu prato.
– Você encheu a barriga logo antes de chegar em casa para a
comida de sua mãe? Você não sentiu falta dela? Já comeu bolo de
carne melhor em outro lugar?
– Tudo bem, pai. É só que…
Ele ficou quieto.
Evitei olhar para Emma, sabia que ela estava me encarando com
a boca apertada e os olhos fazendo sinal de PARE.
– É só o quê?
Tom mexeu um pouco na comida do prato.
– Parei de comer carne.
– O quê?!
– Bem – disse Emma depressa, e começou a tirar a mesa.
Fiquei sentado. Estava fazendo sentido.
– Não é de estranhar que você esteja magricela – falei.
– Se todos fossem vegetarianos, haveria comida de sobra para
toda a população mundial – disse Tom.
– Se todos fossem vegetarianos – imitei, encarando Tom sobre a
borda do copo de água. – O ser humano sempre foi carnívoro.
Emma tinha amontoado os pratos e as travessas numa pilha alta
que balançava perigosamente.
– Por favor. Tom com certeza refletiu bastante sobre isso – disse
ela.
– Acho que não.
– Não sou exatamente o único vegetariano do mundo – disse
Tom.
– Aqui no sítio a gente come carne – arrematei, me levantando
tão bruscamente que a cadeira caiu.
– Bem – disse Emma outra vez, tirando a mesa com movimentos
apressados.
Ela me mandou mais um de seus olhares. Dessa vez, não disse
apenas “pare”. Disse “cale a boca”.
– Você não está envolvido com suinocultura, está? – cutucou
Tom.
– O que isso tem a ver?
– Não vai fazer diferença para você eu comer ou deixar de co-
mer carne. Se parasse de comer mel, aí sim…
Ele deu um sorriso. Amigável? Não. Um pouco insolente.
– Se eu soubesse que você ficaria assim depois de ir para a fa-
culdade, nunca o teria mandado para lá. – As palavras cresciam en-
quanto eu falava, não dava para segurá-las.
– É claro que o menino tem que ir à escola – disse Emma.
Pois é, parecia que isso era tão claro como a primeira noite de
geada. Todos precisavam ir à escola.
– Tudo o que eu precisava aprendi aqui fora – disse eu, fazendo
um gesto impreciso com a mão, pois pretendia apontar para o leste,
onde ficava a campina com algumas das colmeias, mas tarde de-
mais percebi que estava apontando para o oeste.
Tom nem se deu ao trabalho de responder.
– Obrigado, mãe.
Levantou-se depressa e se virou para Emma.
– Posso fazer o resto. Vá lá se sentar um pouco.
Ela sorriu para ele. Ninguém disse nada para mim.
Os dois me evitaram. Ela se esgueirou para a sala e ele amarrou
o avental, foi isso mesmo que ele fez, e começou a esfregar as pa-
nelas.
Minha boca estava seca. Tomei um gole de água, mas não aju-
dou muito.
Eles se esquivavam de mim – como diz o ditado, eu era o elefan-
te na sala. Só que eu não era um elefante, eu era um mamute. Uma
espécie extinta.
Tao

– Se eu tenho três grãos de arroz e você tem dois, quantos temos


ao todo?
Tirei dois grãos do meu prato e coloquei-os no de Wei-Wen, que
já estava vazio.
Os rostos das crianças ainda estavam comigo. A menina alta
com a face virada para o sol, o menino com a boca escancarada
num bocejo. Eles eram tão pequenos. E Wei-Wen, de repente, tão
grande. Logo ele teria a mesma idade daquelas crianças. Em outras
partes do país, havia escolas para um pequeno número de alunos
seletos. Os que seriam os líderes, os que assumiriam as responsa-
bilidades. E que não precisavam trabalhar nos pomares. Se ele con-
seguisse se destacar, sobressair-se desde cedo como o melhor…
– Por que você vai ter três e eu apenas dois? – Wei-Wen olhou
para os grãos de arroz e fez cara feia.
– Eu tenho dois, então, e você tem três. Assim. – Troquei a dis-
posição dos grãos de arroz entre nossos pratos. – Quantos temos
ao todo?
Wei-Wen pôs a mão gorducha no prato, deslizando-a pela super-
fície como se pintasse com tinta a dedo.
– Quero mais ketchup.
– Mas Wei-Wen… – Tirei sua mão com firmeza, estava meleca-
da depois da refeição. – O certo é dizer: Você pode me dar mais ket-
chup, por favor? – Suspirei, apontando novamente para os grãos de
arroz. – Dois comigo. E três com você. Então podemos contar. Um,
dois, três, quatro, cinco.
Wei-Wen passou a mão pelo rosto, deixando uma mancha de
ketchup na bochecha. Depois tentou alcançar a garrafa.
– Pode me dar mais ketchup, por favor?
Eu deveria ter começado mais cedo. Essa única hora era todo o
tempo que tínhamos juntos por dia. Mas muitas vezes eu a desper-
diçava, deixando o tempo passar com comida e agrados. Ele já de-
veria ter progredido mais.
– Cinco grãos de arroz – disse eu. – Cinco grãos de arroz. Cer-
to?
Ele desistiu de alcançar a garrafa e se jogou para trás com tanta
força que a cadeira se deslocou. Com frequência ele se comportava
assim, com movimentos impetuosos, largos. Robusto, isso ele era
desde que nasceu. E contente. Começou a andar tarde, não tinha
muito da inquietação necessária. Parecia que lhe bastava ficar sen-
tado e sorrir para todos que conversavam com ele. E não faltava
quem quisesse fazer isso, justamente porque Wei-Wen era um bebê
que sorria com facilidade.
Peguei a garrafa e despejei um pouco de ketchup no prato dele.
Será que agora iria cooperar?
– Olhe aqui. Para você.
– Sim! Ketchup!
Peguei mais dois grãos de arroz da tigela na mesa.
– Preste atenção. Agora temos mais dois. Então, quantos são?
Mas Wen-Wei estava concentrado no molho vermelho. A essa al-
tura, já tinha ketchup em volta da boca toda.
– Wei-Wen? Dá quanto?
Ele acabou com o molho mais uma vez, olhou para o prato vazio
e o levantou. Começou a fazer um som de ronco, como se o prato
fosse um avião antiquado. Ele amava veículos antigos. Tinha uma fi-
xação por helicópteros, carros, ônibus, era capaz de passar horas a
fio engatinhando pelo chão, fazendo estradas, aeroportos e paisa-
gens para os meios de transporte.
– Ai, Wei-Wen. – Tirei o prato de sua mão, deixando-o fora de al-
cance. Voltei a apontar para os grãos de arroz frios e endurecidos.
– Olhe aqui. Cinco mais dois. Quantos temos, então?
Minha voz tremia levemente. Procurei disfarçar com um sorriso,
mas Wei-Wen nem se deu conta porque estava tentando pegar o
prato.
– Eu quero! Quero o avião! É meu!
Kuan pigarreou na sala. Ele estava com uma xícara de chá na
mão e os pés na mesa, olhando para mim por cima da xícara, osten-
sivamente relaxado.
Ignorei os dois e comecei a contar.
– Um, dois, três, quatro, cinco, seis e… sete! – Sorri para Wei-
Wen, como se tivesse algo de extraordinário com esses sete grãos
de arroz. – Dá sete no total. Certo? Você está vendo? Dá sete. Um,
dois, três, quatro, cinco, seis, sete.
Só isso, se ele compreendesse isso, eu iria parar e deixá-lo brin-
car. Pequenos passos, todos os dias.
– Eu quero!
Ele esticou a mão gorduchinha o máximo que pôde.
– Meu querido, o prato precisa ficar ali – levantei a voz. – Vamos
contar agora, certo?
Kuan soltou um suspiro quase inaudível, levantou-se e chegou
até nós. Pôs a mão em meu ombro.
– São oito horas.
Eu me desvencilhei de sua mão.
– Ele aguenta ficar acordado mais quinze minutos – disse eu, en-
carando-o.
– Tao…
– Ele aguenta quinze minutos. – Continuei a encará-lo.
Kuan pareceu perplexo.
– Mas por quê?
Desviei o olhar. Não tinha energia para explicar, falar sobre as
crianças. De qualquer forma, eu sabia o que ele diria. Não são mais
novas. A idade é a mesma de sempre. Tinham oito anos no ano
passado também. As coisas são assim. São assim faz muito tempo.
E se ele continuasse, sairiam palavras que pareceriam não perten-
cer a ele: temos que estar contentes por morar aqui. Poderia ser pi-
or. Poderíamos ter vivido em Pequim. Ou na Europa. Temos que
aproveitar isso ao máximo. Viver o momento. Tirar o melhor proveito
de cada segundo. Frases que soavam como algo que tivesse lido,
diferentes de seu jeito normal de falar, mas ditas com ênfase. Ele re-
almente acreditava nessas palavras.
Kuan passou a mão sobre o cabelo rebelde de Wei-Wen.
– Eu adoraria brincar com ele – disse em voz baixa e suave.
Wei-Wen contorceu-se na cadeira, uma cadeira de bebê. Na ver-
dade, ele estava grande demais para usá-la, mas ali ficava bem pre-
so e não conseguia escapar de minha lição domiciliar. Ele se esticou
em direção ao prato.
– Eu quero! E meu!
Kuan não olhou para mim, apenas disse a Wei-Wen no mesmo
tom de voz controlado:
– Você não vai ganhar esse, mas, sabe, a escova de dente tam-
bém pode ser um avião. – Então ele tirou Wei-Wen da cadeira e foi
com ele em direção ao banheiro.
– Kuan… Mas…
Ele passou Wei-Wen de um braço para o outro com facilidade,
enquanto caminhava para o banheiro. Fingindo que não me escuta-
va, continuou a conversar com Wei-Wen. Carregava o filho como se
não pesasse nada. Para mim, no entanto, o corpo de Wei-Wen já
estava começando a ficar pesado.
Permaneci sentada. Queria falar alguma coisa, protestar, mas as
palavras não saíam. Kuan tinha razão. Wei-Wen estava exausto.
Era tarde. Ele deveria ir para a cama antes de ficar cansado demais,
agitar-se e se recusar a dormir. Aí ele não ia parar, eu sabia disso.
Seria capaz de continuar até bem depois de nosso horário de dor-
mir. Primeiro, fazendo bagunça, num incessante abrir e fechar da
porta do quarto, corridas até a sala, risos cristalinos, vem me pegar.
Em seguida, frustração e raiva, gritaria, protestos veementes. Esse
era seu jeito. Pelo visto, esse era o jeito de uma criança de três
anos de idade.
Se bem que… Não consegui lembrar que tivesse me comportado
daquele jeito. Aprendi a ler com três anos. Memorizei os ideogramas
sozinha, surpreendendo os professores ao ler contos de fada com
fluência. Lia para mim mesma, mas nunca para as outras crianças.
Eu me mantinha longe delas. Meus pais, discretamente, assistiam a
tudo admirados. Deixavam que eu lesse contos de fada, histórias
simples para crianças, mas nunca se atreviam a me desafiar com
outros tipos de texto. Na escola, porém, eles perceberam. Os pro-
fessores permitiam que eu lesse livros enquanto os outros estavam
no pátio e me apresentavam os materiais de ensino que tinham, tex-
tos e filmes gastos. Muitos desses materiais datavam da época pré-
Colapso, da época anterior à queda das democracias, anterior à
guerra mundial que se seguiu, quando a comida se tornou um bem
concedido a apenas alguns poucos. Naquela época a produção de
informação era tão gigantesca que ninguém mais tinha controle so-
bre ela. Trilhas de palavras podiam tomar toda a extensão da Via
Láctea; imagens, mapas e ilustrações, ocupar área correspondente
à da superfície do Sol. O tempo gravado em filme equivalia ao de
milhões de vidas humanas. E a tecnologia tinha deixado tudo aces-
sível. A acessibilidade era o mantra da época. As pessoas estavam
constantemente conectadas a essa informação com ferramentas de
comunicação cada vez mais avançadas.
Mas o Colapso também atingiu todas as redes digitais. No decor-
rer de três anos, elas desmoronaram por completo. Tudo o que res-
tava para as pessoas eram os livros, os DVDs entrecortados, as fi-
tas digitais gastas, os CDs arranhados, com software ultrapassado,
e a antiquíssima rede de telefonia fixa, que estava a ponto de se de-
sintegrar.
Devorei os livros velhos e desgastados e os filmes entrecorta-
dos. Li e memorizei tudo, como se os livros e os filmes se imprimis-
sem com exatidão em minha mente.
Eu me envergonhava de meus conhecimentos, pois eles me tor-
navam diferente. Vários professores tentavam explicar a meus pais
que eu era uma criança superdotada, que tinha habilidades. Mas
nessas reuniões meus pais sorriam tímidos para os professores,
mais interessados em saber das coisas normais: se eu tinha ami-
gos, se eu era boa para correr, escalar, fazer trabalhos manuais. To-
das essas áreas nas quais eu não me saía bem. Mas minha vergo-
nha desapareceu gradativamente na ânsia por aprender. Eu me
aprofundei no estudo da língua, aprendendo que a cada objeto e a
cada emoção não corresponde apenas uma palavra ou uma descri-
ção, mas muitas. E aprendi sobre nossa história. Sobre o desapare-
cimento em massa dos insetos polinizadores, sobre o aumento do
nível do mar, a elevação da temperatura, os acidentes nucleares e
as velhas superpotências, Estados Unidos e Europa, que perderam
tudo em alguns poucos anos, não conseguiram se adaptar e agora
se encontravam na mais profunda miséria, com a população reduzi-
da a uma fração do que era e a produção alimentar restrita a cereais
e milho. Aqui na China nós resistimos. A Comissão, o mais alto con-
selho do Partido, o governo eficaz de nosso país, guiou-nos pelo
Colapso com pulso firme e uma série de decisões que o povo não
compreendia, mas tampouco tinha condições de questionar. Tudo
isso aprendi. E eu só queria avançar. Queria cada vez mais, queria
me encher de conhecimentos, mas não refletia sobre o que estava
aprendendo.
Não parei até me deparar com um exemplar surrado de O apicul-
tor cego. Era uma tradução pesada e desajeitada do inglês, mas o li-
vro me atraiu mesmo assim. Foi publicado em 2037, poucos anos
antes de o Colapso ter se imposto como uma catástrofe global e de
todos os insetos polinizadores da Terra terem sido extintos. Levei o
livro para minha professora, mostrando-lhe as fotos das colmeias e
os desenhos detalhados das abelhas. Foram as abelhas que mais
me cativaram. A abelha rainha e as crias, que eram apenas larvas
dentro de alvéolos, e todo o mel dourado que as cercava.
A professora nunca tinha visto o livro antes, mas, assim como
eu, ficou fascinada. Ela se deteve em algumas passagens para ler
em voz alta. Leu sobre o conhecimento. Sobre a possibilidade que
temos de controlar nossos instintos, porque somos esclarecidos. So-
bre a necessidade de nos distanciar de nossa própria natureza a fim
de viver na natureza, com a natureza. E sobre o valor da educação.
Pois a educação tem a ver com isso, com desafiar nossa própria na-
tureza.
Eu tinha oito anos de idade e compreendi apenas uma fração do
que li e ouvi. Mas entendi o respeito profundo de minha professora,
o livro a tinha tocado. E entendi essa parte sobre a educação. Sem
o conhecimento não somos nada. Sem o conhecimento somos ani-
mais.
Depois disso fiquei mais determinada. Não quis aprender só por
aprender, quis aprender para compreender. Em pouco tempo avan-
cei muito além do nível da classe e fui a mais nova da escola a se
tornar Jovem Pioneira do Partido e ter permissão para usar o Lenço.
Um orgulho banal residia nisso. Até meus pais sorriram quando re-
cebi esse pedaço de pano vermelho para amarrar ao pescoço. Mas
o importante é que o conhecimento me deixou mais rica. Mais rica
do que as outras crianças. Eu não era bonita nem atlética, tampouco
prendada ou forte. Não poderia me destacar em outras áreas. No
espelho, uma menina desajeitada devolvia o olhar para mim. Olhos
um pouco pequenos demais, o nariz um pouco grande demais. O
rosto ordinário não dizia nada sobre o que ela possuía, algo muito
valioso, algo que fazia cada dia valer a pena viver. E que poderia ser
um caminho para escapar.
Já com dez anos de idade eu tinha mapeado as possibilidades.
Havia escolas em outras partes do país, a vários dias de distância,
que me receberiam assim que eu completasse quinze anos – idade
em que praticamente todos começavam a trabalhar nos pomares. A
diretora da escola me ajudou a descobrir como eu poderia me candi-
datar. Em sua opinião, eu teria boas chances de ser admitida. Entre-
tanto, havia um custo. Conversei com meus pais, mas não cheguei
a lugar nenhum. Eles ficaram receosos, passaram a me olhar como
um ser estranho que eles não compreendiam e de que não gosta-
vam. A diretora da escola também tentou conversar com eles. Nun-
ca soube o que ela disse, mas a conversa só contribuiu para deixar
meus pais ainda mais decididos. Não tinham dinheiro e tampouco
estavam dispostos a fazer um pé-de-meia.
Era eu quem precisava me conformar, sossegar, parar de “so-
nhar sonhos bobos”. Mas não consegui. Pois essa era eu. E sempre
seria.
A risada de Wei-Wen me despertou. Ele soltava risos altos e cris-
talinos no banheiro, e a acústica de lá amplificava o som.
– Não, papai! Não!
Ele ria enquanto Kuan fazia cócegas e dava beijos soprados em
sua barriga fofa.
Eu me levantei. Deixei o prato na pia. Fui em direção à porta do
banheiro e fiquei ali escutando. A risada de Wei-Wen merecia ser
gravada para que ele pudesse ouvi-la quando crescesse e ficasse
com a voz grave.
Mesmo assim, a risada não me fez sorrir.
Pus a mão na maçaneta, empurrei a porta. Wei-Wen estava dei-
tado no chão enquanto Kuan puxava e repuxava uma das pernas de
sua calça. Fingia que a calça lutava contra ele, não queria ser tirada.
– Será que você pode se apressar um pouco? – falei para Kuan.
– Me apressar? Mas é impossível com essa calça tão briguenta!
– sorriu Kuan, e Wei-Wen riu.
– Você está só incitando o menino.
– Escuta aqui, dona Calça, agora você precisa parar de fazer ba-
gunça!
Wei-Wen riu ainda mais.
– Ele fica muito agitado – disse eu. – Vai ser impossível fazê-lo
dormir.
Kuan não respondeu, desviou o olhar, mas acatou a instrução.
Saí e fechei a porta. Na cozinha, lavei e guardei a louça rapidamen-
te.
Em seguida, peguei papel e caneta. Mais uns quinze minutinhos,
isso ele aguentaria.
William

Com frequência ela ficava sentada ali, ao lado de minha cama, de-
bruçada sobre um livro. Virava as folhas devagar, lendo concentra-
damente. Minha filha Charlotte, de catorze anos de idade, deveria
ter muito mais a fazer do que procurar minha companhia silenciosa.
No entanto, suas visitas eram cada vez mais frequentes. Eu distin-
guia a noite do dia por sua presença e sua leitura incessante.
Hoje Thilda não tinha passado por aqui. Agora, ela vinha me ver
raramente e nem arrastava mais o médico de família para cá. Talvez
o dinheiro tivesse acabado de verdade.
Thilda não citara o nome de Rahm uma única vez. Isso eu teria
sabido, mesmo que ela viesse a mencioná-lo enquanto eu estivesse
em meu sono mais profundo. O nome dele seria capaz de me des-
pertar do reino dos mortos. Provavelmente, ela nunca se deu conta,
nunca compreendeu que a conversa com Rahm naquele nosso últi-
mo encontro, a risada dele, me conduzira até aqui, até este quarto,
esta cama.
Foi ele quem me pediu que fosse a sua casa. Eu não sabia por
que ele queria me encontrar. Não o visitava há anos. Somente troca-
va as palavras obrigatórias de cortesia com ele nas raras vezes em
que nos encontrávamos na cidade, e era sempre ele quem interrom-
pia a conversa.
Quando fui visitá-lo, o outono estava no auge de seu esplendor.
As folhas compunham um intenso jogo de cores – amarelo límpido,
marrom quente, vermelho encarnado. Foi antes de o vento ter con-
seguido arrancá-las, forçando-as ao chão e ao apodrecimento. A na-
tureza transbordava de frutos: árvores pesadas de maçãs, ameixas
suculentas, peras melífluas que vertiam doçura. E a terra, sua co-
lheita ainda não terminara, estava repleta de cenouras crocantes,
abóboras, cebolas e ervas aromáticas que se espalhavam pelos
campos, tudo pronto para ser colhido, para ser comido. Era possível
viver tão despreocupadamente como no Jardim do Éden. Meus pés
se movimentavam com facilidade sobre o chão enquanto eu passa-
va por um arvoredo coberto de hera verde-escura a caminho da ca-
sa de Rahm. Estava ansioso para revê-lo, para ter tempo de conver-
sar direito com ele, assim como fazíamos anos atrás, muito antes de
eu me tornar pai de tantos filhos, antes de a loja de sementes tomar
todo o meu tempo.
Ele me recebeu na porta. Ainda usava o cabelo à escovinha, ain-
da era magro, musculoso, forte. Deu um sorriso rápido, seus sorri-
sos nunca duravam muito tempo, mas eram reconfortantes mesmo
assim. Então Rahm conduziu-me a seu gabinete de estudo, no qual
se viam numerosas plantas e recipientes de vidro. Dentro de vários
deles eu vislumbrava anfíbios – rãs e sapos adultos – criados desde
o estágio de girino, eu imaginava. Todo o seu interesse estava dire-
cionado para essa área das ciências naturais. Ao procurá-lo depois
de me formar, dezoito anos atrás, estava esperançoso para estudar
insetos, em particular as espécies sociais, cujos indivíduos funcio-
nam em conjunto quase como um organismo, um superorganismo.
Nisso residia minha paixão, nos abelhões, vespas, marimbondos,
cupins, abelhas. E formigas. Em sua opinião, porém, isso viria de-
pois, e logo eu também estava muito ocupado com esses seres in-
termediários que enchiam seu escritório, seres que não eram inse-
tos, nem peixes, nem mamíferos. Sendo apenas seu assistente de
pesquisa, eu não podia protestar. Era uma honra trabalhar para ele,
eu estava muito ciente disso e procurava mostrar uma gratidão reve-
rente em vez de fazer exigências. Tentei adotar seu fascínio pelos
anfíbios, imaginando que, quando chegasse a hora, quando eu esti-
vesse pronto, ele me deixaria dedicar algum tempo a meus próprios
projetos. No entanto, esse dia nunca chegou, e logo ficou claro para
mim que seria melhor realizar estudos individuais nas horas livres –
começar pelo básico e progredir lentamente, com esforço. Mas tam-
pouco tive tempo para isso, nem antes nem depois de Thilda.
A governanta trouxe biscoitos e chá, que tomamos em xícaras
delicadas e tão finas que quase desapareciam entre os dedos. Ele
próprio comprara essas peças em uma das muitas viagens que fez
ao Extremo Oriente antes de fixar residência aqui no campo.
Enquanto bebericávamos o chá, ele me contou sobre o trabalho.
Sobre a pesquisa que estava fazendo, sobre suas palestras científi-
cas mais recentes, sobre seu próximo artigo. Escutei, com gestos de
aprovação, fiz perguntas, esforcei-me para me expressar de forma
qualificada, e tornei a escutar. Mantive o olhar nele, esperando ser
retribuído. Mas Rahm olhava pouco para mim, preferindo deixar os
olhos passarem sobre o ambiente, os objetos, como se estivesse fa-
lando com eles.
Então houve um silêncio. O único som era o do vento, que arran-
cava folhas acastanhadas das árvores lá fora. Tomei um gole de
chá, e o som do trago ruidoso cresceu no silêncio do escritório. O
calor subiu-me até as faces e me apressei a colocar a xícara na me-
sa. Mas ele parecia não ter notado nada, continuava calado, sem
prestar a mínima atenção a mim.
– É meu aniversário hoje – disse ele enfim.
– Peço desculpas… não fazia ideia… meus parabéns!
– Sabe quantos anos faço? – Dirigiu os olhos para mim.
Hesitei. Quantos anos teria? Muitos. Deveria ter bem mais que
cinquenta. Talvez estivesse perto dos sessenta? Contorci-me, per-
cebendo de repente como o escritório estava quente, e tossi. O que
deveria responder?
Já que eu não disse nada, ele baixou o olhar.
– Não importa.
Será que estava desapontado? Eu o teria desapontado? Mais
uma vez?
No entanto, seu rosto não indicou nada. Ele pôs a xícara de chá
na mesa, pegou um biscoito, algo tão trivial, um biscoito – embora a
conversa que estávamos prestes a iniciar fosse tudo menos trivial –,
e o colocou no prato.
Não comeu, simplesmente o deixou ali. Havia um silêncio incô-
modo no escritório. Eu precisava dizer algo, era minha vez agora.
– O senhor pretende comemorar o dia? – perguntei, e me arre-
pendi no mesmo instante. Que pergunta mais ridícula, como se ele
fosse uma criança.
Ele nem se dignou a responder, ficou ali sentado com o prato na
mão, mas sem comer, apenas olhando para o pequeno biscoito se-
co. Mexeu os dedos, o biscoito deslizou em direção à borda do pra-
to, mas ele rapidamente o endireitou, salvando-o no último segundo,
e colocou o prato na mesa.
– O senhor era um estudante promissor – disse de repente.
Tomou fôlego, como se fosse dizer algo mais, mas não veio ne-
nhuma palavra.
Pigarreei.
– Ah, é?
Ele mudou de posição.
– Quando o senhor me procurou, eu tinha grandes esperanças. –
Deixou os braços caírem, o tronco ereto. – Foi seu tremendo entusi-
asmo e sua paixão que me convenceram. De outro modo, não teria
pensado em aceitar um assistente.
– Obrigado, professor. São palavras muito lisonjeiras.
Rahm endireitou as costas, ficou sentado em ângulo reto, como
se ele próprio fosse um aluno, e lançou-me um rápido olhar.
– Mas aconteceu algo… com o senhor?
Senti um aperto no peito. Uma pergunta. Era uma pergunta. Mas
o que eu responderia?
– Já tinha acontecido quando fez a apresentação sobre Swam-
merdam? – continuou ele, fitando-me mais uma vez brevemente. O
olhar firme de costume tornou-se vago.
– Swammerdam? Mas isso já faz tantos anos… – disse eu de-
pressa.
– Exatamente. Muitos anos… E foi lá que o senhor a conheceu?
– O senhor quer dizer… minha esposa?
Seu silêncio confirmou minha pergunta. Sim, conheci Thilda lá,
depois da palestra. Ou melhor, as circunstâncias levaram-me até
ela. As circunstâncias… Não, Rahm levou-me até ela. Foi sua risa-
da, seu desdém, o que me fez olhar para o outro lado, para o lado
dela.
Quis dizer algo sobre isso, mas não encontrei as palavras. Como
continuei calado, ele se inclinou ligeiramente para a frente e tossiu
baixinho.
– E agora?
– Agora?
– Por que, afinal, o senhor trouxe filhos ao mundo?
A frase foi dita numa voz mais alta, uma voz quase esganiçada,
e agora ele me encarou, não cedeu, um gelo havia brotado dentro
dele.
– Por quê…? – Apressei-me a desviar o olhar, era incapaz de
encará-lo, encarar a dureza em seus olhos. – Hum… É o que se
faz…
Ele pôs as mãos nos joelhos, de modo retraído e inquisitório ao
mesmo tempo.
– É o que se faz? Bem, talvez seja assim. Mas por que o se-
nhor? O que o senhor tem para dar a eles?
– O que dar? Comida, roupa.
Abruptamente, ele levantou a voz:
– Não me venha com sua maldita loja de sementes!
Inclinou-se bruscamente para trás outra vez, como se quisesse
se manter afastado de mim, e esfregou as mãos no colo.
– Não… – Lutei contra o menino humilhado de dez anos que ha-
via dentro de mim e tentei manter a calma, mas percebi que estava
tremendo. Quando finalmente consegui dizer algo mais, a voz soou
aguda e forçada. – Gostaria muito. Mas é só que… Como o profes-
sor com certeza entende… O tempo não permite.
– O que o senhor quer que eu diga? Que isso é perfeitamente
aceitável? – Ele se levantou. – É aceitável que o senhor não tenha
tempo? – Ficou em pé diante de mim, deu um passo em minha dire-
ção, cresceu, tornou-se grande e sombrio. – É aceitável que o se-
nhor ainda não tenha terminado de escrever um único artigo científi-
co? É aceitável que suas prateleiras estejam cheias de livros que
não foram lidos? E aceitável que eu tenha gasto todo esse tempo
com o senhor e o senhor não tenha realizado mais nesta vida do
que um reprodutor mediano?
A última expressão ficou vibrando no ar entre nós.
Um reprodutor. Para ele, eu era isto. Um animal reprodutor.
Um fraco protesto cresceu dentro de mim. Será que ele realmen-
te tinha gastado tanto tempo comigo ou apenas me usara a serviço
de seus projetos? Pois talvez fosse isso o que na verdade ele qui-
sesse, que eu herdasse sua pesquisa, a mantivesse viva. Que o
mantivesse vivo. Mas engoli as palavras.
– É isso que o senhor deseja ouvir? Não é? – perguntou, com os
olhos tão vazios quanto os dos anfíbios que olhavam para nós dos
recipientes de vidro. – Que a vida é assim? A vida é assim, eu deve-
ria dizer, você se reproduz, tem uma prole, instintivamente coloca as
necessidades dela em primeiro lugar, são bocas para alimentar, vo-
cê se torna um animal provedor, o intelecto dá lugar à natureza. Não
é sua culpa. E ainda não é tarde demais. – Ele me encarou até doer.
– E isso que o senhor quer ouvir? Que ainda não é tarde demais?
Que seu tempo chegará?
Então ele riu bruscamente. Aquela risada curta e dura, sem ale-
gria, cheia de escárnio. Foi breve, mas permaneceu dentro de mim.
A mesma risada de antes.
Rahm se calou, mas não esperou por minha resposta. Deveria
saber que eu não teria forças para dizer nada. Ele simplesmente foi
até a porta e a abriu.
– Lamento ter de pedir ao senhor que vá embora. Tenho trabalho
a fazer.
Ele me abandonou sem dizer adeus, deixando a governanta
acompanhar-me até a saída. Vagueei de volta até meus livros, mas
não tirei nenhum para folhear. Nem aguentei olhar para eles, só me
enfiei na cama e fiquei lá, fiquei aqui, enquanto os livros juntavam
poeira… Todos os textos que eu uma vez tinha desejado ler e com-
preender.
Eles ainda estavam ali, ajeitados de forma desorganizada, al-
guns com a lombada mais para fora do que os outros, como dentes
desiguais na prateleira. Virei-me para o outro lado, não suportei vê-
los. Charlotte ergueu a cabeça, notando que eu estava acordado, e
de pronto pôs o livro de lado.
– Está com sede?
Ela se levantou, pegou uma caneca com água e estendeu-a para
mim.
Virei a cabeça para o outro lado.
– Não. – Ouvi o tom categórico de minha própria voz e me apres-
sei a acrescentar: – Obrigado.
– Quer alguma outra coisa? O médico disse…
– Nada.
Ela tornou a se sentar e me olhou atentamente, como se estives-
se me estudando.
– Você parece melhor. Mais alerta.
– Não fale asneiras.
– Sim. Acho que sim. – Ela sorriu. – Pelo menos você está res-
pondendo.
Eu me abstive de dizer mais, já que palavras adicionais reforçari-
am a impressão de melhora. Preferi deixar o silêncio confirmar o
contrário. Desviei o olhar, como se não mais a percebesse.
Mas ela não desistiu. Postou-se de pé ao lado do meu leito, jun-
tou as mãos, esfregou-as e voltou a soltá-las. Por fim, articulou a
pergunta que evidentemente estava ruminando.
– Será que Deus te abandonou, pai?
Imagine se fosse tão simples, se tivesse algo a ver com Nosso
Senhor. Perder a fé, contra isso havia um remédio simples: reencon-
trá-la.
Durante a época de faculdade, aprofundei-me no estudo da Bí-
blia. Estava sempre com ela, levava-a para a cama toda noite. Eu
procurava constantemente a ligação entre ela e minha área, entre
as pequenas maravilhas da natureza e as grandes palavras no pa-
pel. Em especial, detive-me nos escritos paulinos. Não tenho conta
de quantas horas passei absorto na carta de São Paulo aos roma-
nos, pois nela se encontravam suas ideias fundamentais, era o mais
próximo do que se poderia chamar de uma teologia paulina. Vocês
foram libertados do pecado e tornaram-se escravos da justiça. O
que isso significava? Que talvez somente o cativo fosse realmente
livre? Fazer o certo pode ser uma prisão, um cativeiro, mas o cami-
nho havia sido indicado. Por que éramos incapazes de segui-lo?
Nem mesmo diante da Criação divina, tão imponente que nos tira o
fôlego, o ser humano consegue fazer o certo.
Nunca encontrei uma resposta, e passei a pegar o pequeno livro
preto com frequência cada vez menor. Ele acumulava poeira na es-
tante, junto com todos os outros. O que eu deveria então dizer a
Charlotte? Que este meu chamado leito de enfermo era banal e des-
prezível demais para ter a ver com o Senhor? Que o crucial se en-
contrava única e exclusivamente dentro de mim, em minhas esco-
lhas, na vida que eu havia vivido?
Não. Talvez um outro dia, mas agora não. Desisti assim de lhe
dar uma resposta. Apenas balancei a cabeça levemente e me aco-
modei com a intenção de cair no sono.
•••
Ela ficou comigo até a casa se acalmar lá embaixo. Escutei o folhear
do livro, agora mais rápido, e o som suave de musselina em movi-
mento quando ela mudava de posição. Charlotte parecia estar acor-
rentada aos livros, assim como eu estava acorrentado à cama, em-
bora ela fosse inteligente o suficiente para saber que não valia a pe-
na. A erudição seria desperdiçada, pois ela jamais teria a chance de
usar seus conhecimentos pelo simples fato de ser filha e não filho.
Mas de repente sua leitura foi interrompida. A porta abriu-se.
Passos rápidos pesaram no chão.
– E aqui que você está? – A voz severa de Thilda, o olhar tam-
bém severo certamente cravado em Charlotte. – Está na hora de
dormir – avisou, como se isso fosse uma ordem por si só. – Você
precisa lavar a louça da ceia. E Edmund está com dor de cabeça,
por isso quero que ferva água para o chá dele.
– Sim, mãe.
Ouvi Charlotte se levantar e deixar o livro sobre o console. Seus
passos leves em direção à porta.
– Boa noite, pai.
Então ela desapareceu. Sua serenidade foi substituída pela mo-
vimentação enérgica da mãe. Thilda foi até a lareira e, com gestos
ruidosos e bruscos, colocou mais lenha. A essa altura, tratava disso
sozinha, a empregada já fora obrigada a encontrar outro trabalho. E
agora Thilda sofria diariamente por ter de cuidar do aquecimento
sem ajuda, um sofrimento que não procurava esconder. Ao contrá-
rio, ela o ressaltava por meio dos suspiros e gemidos que acompa-
nhavam todos os seus movimentos.
Depois de enfim terminar, ela permaneceu parada junto à lareira.
Entretanto, tive apenas um instante de silêncio antes de sua orques-
tra incessante começar. Não era preciso abrir os olhos para saber
que ela estava ali ao lado do fogo, deixando as lágrimas rolarem li-
vremente. Já o ouvira inúmeras vezes antes, e o som era inconfun-
dível. O crepitar do coque acompanhava sua cena. Eu me contorci,
encostei a orelha no travesseiro para abafar o som pela metade,
mas sem muito êxito.
Um minuto passou. Dois. Três.
Então ela finalmente parou e encerrou a lamentação assoando o
nariz com força. Devia ter entendido que hoje também não conse-
guiria nada. O muco morno era expelido pelo nariz com sons altos,
quase mecânicos, de pressão. Ela sempre foi assim, tão cheia de
mucosidades e lubrificação, quer chorasse ou não. Exceto lá embai-
xo. Lá tudo era lamentavelmente seco e frio. E mesmo assim ela ti-
nha dado a mim oito filhos.
Puxei o cobertor sobre a cabeça, quis bloquear o som.
– William – disse ela em tom cáustico. – Posso ver que não está
dormindo.
Tentei manter a respiração calma.
– Sou capaz de ver isso.
Voz mais alta agora, mas não havia motivo para me mexer.
– Você precisa escutar. – Ela soltou um soluço especialmente
profundo. – Fui forçada a dispensar Alberta. Agora a loja está vazia.
Tive que fechar.
Não! Não consegui senão me contorcer. A loja fechada? Vazia.
Escura. A loja que sustentaria todos os meus filhos?
Ela deve ter notado meu movimento, pois se aproximou.
– Fui obrigada a pedir fiado ao merceeiro hoje. – A voz continua-
va chorosa, como se a qualquer momento pudesse sucumbir de no-
vo. – A compra toda foi feita a crédito. E ele olhou tanto para mim,
com dó. Mas não disse nada. Afinal, é um cavalheiro.
As últimas palavras foram engolidas por um soluço.
Um cavalheiro. Ao contrário de mim. Que provavelmente não
despertava nenhuma admiração no resto do mundo, muito menos
em minha esposa, do jeito que eu estava deitado aqui, sem chapéu
e bengala, sem monóculo e educação. Sim, imagine que eu era tão
sem educação que deixava minha própria família em apuros.
E agora as circunstâncias haviam se deteriorado significativa-
mente. A loja estava fechada, a família não daria conta dela sem
mim por mais tempo, embora seu funcionamento diário fosse funda-
mental para todos. Pois eram as sementes, as especiarias e os bul-
bos de flores que garantiam a comida na mesa para a família.
Eu deveria levantar, mas não consegui, não sabia mais como. A
cama me paralisava.
E Thilda também desistiu de mim hoje. Ela inspirou com força,
um suspiro fundo, trêmulo. Então assoou o nariz uma última vez,
provavelmente para se certificar de que tinha expelido toda a secre-
ção da região.
O colchão reclamou quando ela se deitou. O fato de que suporta-
va dividir a cama com meu corpo suado e sujo estava além de mi-
nha compreensão. Na verdade, dizia tudo sobre seu grau de teimo-
sia.
Lentamente, sua respiração acalmou-se. No fim ficou pesada e
profunda, uma convincente respiração do sono, totalmente diferente
da minha.
Virei-me. A luz da lareira moveu-se em ondas sobre o rosto dela.
As longas tranças estavam estendidas no travesseiro, soltas do co-
que apertado da parte de trás da cabeça. O lábio superior cobria o
lábio inferior, afundando a boca, como se fosse uma velha desden-
tada. Fiquei assim a observá-la, tentando reencontrar aquilo que eu
uma vez tinha amado e aquilo que eu uma vez tinha desejado, mas
o sono me venceu antes de isso acontecer.
Ge orge

Emma estava certa sobre a neve. No dia seguinte ela já derretia por
todos os lados, escorrendo e gotejando de tal modo que não se ou-
via outra coisa. O sol batia nas tábuas da casa, desbotando mais
um pouco a cor da parede do lado sul. A temperatura subiu bem, e o
calor era suficiente para a revoada de purificação das abelhas. Elas
não fazem as necessidades na colmeia, são animais limpos. Mas
quando o sol finalmente está ardendo, saem voando e esvaziam os
intestinos. Na verdade, eu tinha torcido para que isso acontecesse,
para que o inverno abrandasse agora, enquanto Tom estivesse em
casa. Porque então ele poderia ir comigo para as colmeias e fazer a
limpeza dos fundos das caixas. Eu até tinha dado uma folga a
Jimmy e Rick, assim poderia trabalhar sozinho com Tom. Mas no fim
acabamos indo só na quinta, três dias antes de ele ter que voltar pa-
ra a faculdade.
Foi uma semana silenciosa. Eu e ele ficamos nos rodeando. Em-
ma se manteve entre nós, rindo e conversando como de costume.
Era evidente que ela se empenhava de corpo e alma a encontrar co-
midas que agradassem a Tom, pois não tinha fim o número de pra-
tos com peixe que ela fazia aparecer como por encanto. Quanto pei-
xe “interessante” e “saboroso” apareceu de repente no setor de con-
gelados do mercado… E Tom, ele agradecia muito, estava “tããão fe-
liz com toda essa comida deliciosa”. Depois de consumir mais um
prato de peixe, ele geralmente ficava sentado à mesa da cozinha.
Lia livros tão grossos que era de assustar, dedilhava com fervor as
teclas do computador ou ficava mergulhado numa espécie de pala-
vras cruzadas japonesas que ele chamava de Sudoku. Parecia não
lhe ocorrer que era possível se deslocar para qualquer outro lugar.
Que o sol de repente inundava a paisagem lá fora, como se alguém
tivesse substituído a lâmpada antiga por uma mais potente.
Encontrei coisas para fazer, obviamente, pois eu também sabia
me manter ocupado. Um dia fui até Autumn comprar tinta de parede.
Enquanto estava pintando o lado sul da casa, senti como o sol batia
forte. Já dava para arriscar uma ida às colmeias. Na verdade, não
era preciso limpar os fundos tão logo, mas era a última chance para
Tom. Não faria mal começar com algumas poucas colmeias. As abe-
lhas já estavam fora há algum tempo, coletavam pólen enquanto o
sol brilhava.
Tom costumava gostar disso. Costumava me acompanhar lá fora
toda vez. Durante o inverno, Jimmy e eu limpávamos os alvados al-
gumas vezes, mas de resto a gente deixava as abelhas em paz. Por
isso, a primeira visita às colmeias na primavera era sempre um mo-
mento especial. Poder rever as abelhas, o zumbido familiar, aquilo
era matar as saudades, era como uma festa de reencontro superle-
gal.
– Preciso de ajuda com os fundos – falei.
Eu já tinha me trocado, estava no meio da cozinha com botas de
borracha e macacão, sentindo uma inquietação nas pernas, uma
empolgação. O véu estava dobrado para eu enxergar melhor. Tinha
trazido mais um kit completo, que estendi para ele com as duas
mãos.
– Já agora? – perguntou Tom sem erguer os olhos. Era mais ler-
do que uma lesma. Continuou sentado ali, com a palidez acentuada
pela luz do computador, os dedos sobre o teclado.
De repente percebi que minhas mãos avançavam um pouco de-
mais com o macacão e o véu, como se eu estivesse prestes a lhe
dar um presente que ele não queria. Enfiei as duas coisas debaixo
de um dos braços e pus a outra mão no quadril.
– Está ficando tudo podre debaixo delas. Você sabe disso. Nin-
guém gosta de viver na sujeira. Você também não, mesmo que
aqueles alojamentos estudantis não sejam exatamente os mais lim-
pos do mundo.
Tentei rir, mas o que saiu não passou de um coaxo. Além do
mais, aquela mão estava num ângulo estranho. Tirei-a do quadril. Fi-
cou caída de um jeito frouxo, parecia vazia. Cocei a testa só para
ocupar minha mão com alguma coisa.
– Mas você costuma esperar mais umas duas ou três semanas,
não é? – perguntou ele.
Agora ergueu o olhar. Seus olhos lindos me fitavam.
– Não. Não costumo fazer isso.
– Pai…
Ele viu que eu estava mentindo. Olhou para mim com uma das
sobrancelhas levantadas, tinha adquirido um ar sarcástico.
– Está quente o suficiente – me apressei a dizer. – E vamos só
fazer algumas. Você escapa do resto. Vou dar um jeito nelas com
Jimmy e Rick na semana que vem.
Tentei lhe dar o macacão e o chapéu de novo, mas ele não acei-
tou. Na verdade, não fez menção nem de se mexer, só apontou para
o computador.
– Estou fazendo um trabalho de faculdade.
– Você não está de férias?
Pus o equipamento na mesa, bem na sua frente. Tentei encará-lo
com determinação, deixando os olhos dizerem que ele tinha mais
era que ajudar, agora que finalmente dera uma passada em casa.
– A gente se vê lá fora em cinco minutos.
•••
Tínhamos 324 colmeias. Trezentas e vinte e quatro rainhas, cada
uma com seu enxame, distribuídas pela região em lugares diferen-
tes, raramente mais do que vinte num lugar só. Se a gente estivesse
em outro estado, poderia ter até setenta colmeias no mesmo local.
Conheci um apicultor em Montana, ele tinha umas cem reunidas. A
área era tão viçosa que as abelhas só precisavam voar alguns me-
tros para encontrar tudo de que necessitavam. Mas aqui, em Ohio, a
agricultura era muito pouco diversificada. Quilômetros e mais quilô-
metros de milho e soja. Pouco acesso ao néctar, não o suficiente
para as abelhas se sustentarem.
Ao longo dos anos Emma tinha pintado as colmeias, todas elas,
com cores de doces. Cor-de-rosa, turquesa, amarelo-claro e uma
espécie de cor de pistache esverdeada, todas tão artificiais quanto
doces com aditivos. Na opinião dela, ficavam com um aspecto diver-
tido. Por mim, poderiam muito bem ser brancas, do mesmo jeito que
antes. Meu pai sempre pintou as colmeias de branco, assim como
seu pai e seu avô. Eles costumavam dizer que era a parte interna
que contava, o mais importante era como as abelhas estavam den-
tro da colmeia. Mas, de acordo com Emma, as abelhas gostavam
das colmeias desse jeito, ficavam mais personalizadas. Quem sabe,
talvez ela tivesse razão. E eu tinha de admitir que o espetáculo das
caixas coloridas espalhadas pela paisagem, como se um gigante ti-
vesse perdido suas balas, sempre me deixava com uma sensação
agradável por dentro.
Começamos na campina entre a fazenda de Menton, a estrada
principal e o rio Alabast, que, apesar de seu nome chique, não era
muito mais que um leito de córrego nesse trecho mais ao sul. Aqui
eu tinha reunido o maior número. Vinte e seis colônias. Primeiro pe-
gamos uma colmeia rosa-choque. Era bom estar em dois. Tom se-
gurava a caixa enquanto eu trocava o quadro. Tirava o velho, que
estava cheio de detritos e abelhas mortas depois do inverno, e colo-
cava um novo e limpo. No ano passado, investimos em fundos mo-
dernos, com telas e travessas soltas. Foi muito dinheiro, mas valeu
a pena. Melhorou a ventilação e facilitou a limpeza. A essa altura, a
maioria dos apicultores de nosso porte pulava a troca dos fundos,
mas eu não aceitava deixar as coisas de qualquer jeito. Minhas abe-
lhas deveriam se sentir bem.
No decorrer do inverno, muita sujeira tinha se juntado nos fun-
dos, mas de resto tudo parecia bem. Tivemos sorte, as abelhas per-
maneceram calmas, poucas saíram voando. Era bom ver Tom aqui
fora. Ele trabalhava com habilidade e rapidez, estava de volta, no lu-
gar ao qual pertencia. Às vezes, queria dobrar as costas para pegar
peso, mas aí eu o detinha.
– Dobre as pernas.
Eu conhecia várias pessoas que acabaram com prolapso e lum-
bago e todo tipo de problema na coluna porque pegaram peso de
forma errada. E as costas de Tom teriam que durar muitos anos,
aguentar milhares de movimentos com peso.
Trabalhamos sem parar até a hora do almoço. Não falamos mui-
ta coisa, apenas algumas poucas palavras, e somente sobre o tra-
balho. “Pega aqui, isso, sim, ótimo”. Fiquei esperando que ele pedis-
se uma pausa, mas ele não disse nada. E quando chegou perto das
onze e meia, meu estômago já gritava, e fui eu quem acabou suge-
rindo uma boquinha.
A gente se sentou na beira da caçamba balançando as pernas.
Eu tinha levado café numa garrafa térmica e alguns sanduíches. A
pasta de amendoim tinha sido absorvida pelo pão esponjoso e as fa-
tias estavam grudentas, mas é incrível como tudo tem um gosto
bom quando o tempo está agradável e você trabalha ao ar livre. Tom
não disse nada. Esse meu filho certamente não era conversador.
Mas se era assim que ele queria as coisas, tudo bem pra mim. Con-
segui trazer Tom para cá, isso era o mais importante. Só torcia para
que curtisse um pouco isso daqui e que estivesse gostando do reen-
contro.
Eu tinha terminado meu lanche e pulei para o chão a fim de vol-
tar a trabalhar, mas Tom ainda estava lutando. Comia pedacinhos
minúsculos e estudava o pão minuciosamente, como se tivesse algo
de errado com ele.
E aí, de repente, Tom soltou uma frase.
– Tenho um professor de inglês muito bom.
– É mesmo? – disse eu, e parei. Tentei sorrir, mesmo que hou-
vesse algo na maneira como ele falou essa coisa totalmente normal
que me deu um frio na barriga. – Que bom.
Ele beliscou o pão mais uma vez. Não parou de mastigar, pare-
cia ser incapaz de engolir.
– Está me incentivando a escrever mais.
– Mais? Mais de quê?
– Ele diz que…
Tom ficou quieto. Largou o sanduíche e agarrou a xícara de café.
Mas não bebeu. Só agora percebi que sua mão estava tremendo um
pouco.
– Ele diz que tenho uma voz.
Uma voz? Bobagem de intelectual. Abri um sorriso irônico, não
aguentei levar isso daí a sério.
– Isso eu poderia ter te contado faz tempo – falei. – Especial-
mente quando você era pequeno. Ela era alta e estridente, sua voz.
Graças a Deus que você chegou à idade de mudar a voz. Já não
era sem tempo.
Ele não sorriu da piada. Só ficou quieto.
Meu sorriso sumiu. Ele quis dizer alguma coisa, não havia dúvida
disso. Estava ali guardando alguma coisa grande, e eu suspeitava
fortemente que era algo que eu não tinha a mínima vontade de ou-
vir.
– É bom que os professores estejam contentes com você – ob-
servei enfim.
– Ele me incentiva muito a escrever mais – disse Tom baixinho,
com ênfase em muito. – Diz também que posso pedir uma bolsa de
estudo e talvez ir mais longe com isso.
– Mais longe?
– Um doutorado.
Senti um aperto no peito, um nó na garganta. O sabor da pasta
de amendoim ficou enjoativo na boca, mas não consegui engolir.
– É mesmo? Foi isso que ele disse?
Tom fez que sim.
Tentei manter a voz calma.
– Quantos anos leva um doutorado desses?
Ele só olhou para as pontas de seus sapatos, sem responder.
– Não estou ficando mais jovem – continuei. – As coisas não se
fazem sozinhas por aqui.
– Não, sei disso – disse ele em voz baixa. – Mas pelo menos vo-
cê tem ajuda, não é?
– Jimmy e Rick entram e saem quando querem. O apiário não é
deles. Além do mais, não trabalham de graça.
Comecei a trabalhar outra vez, transferindo os fundos sujos para
a caçamba. A madeira dos quadros provocava um tinido estridente
ao bater no metal da caçamba. Pois a gente já tinha ouvido de ou-
tros professores que Tom levava jeito com as palavras. Ele sempre
tirava A em inglês, isso não era novidade, não tinha nada de errado
com sua cabeça. Mas não era o inglês que a gente tinha em mente
quando mandou Tom para a faculdade. Era para ele aprender admi-
nistração e marketing, esse tipo de coisa, preparar o apiário para o
futuro. Expandir, modernizar, conseguir uma operação mais eficien-
te. E talvez um site decente na Internet. Era esse tipo de coisa que
ele deveria aprender. Por isso que a gente tinha feito tanto esforço
para juntar o dinheiro que pagaria a faculdade, desde quando ele
era um bebezinho. Durante todos esses anos, a gente não se dera
ao luxo de fazer uma única viagem de férias de verdade, nenhuma.
Tudo tinha ido para a conta da faculdade.
O que um professor de inglês sabia na verdade? Com certeza, fi-
cava naquele seu escritório empoeirado de faculdade cheio de livros
que pretendia ler depois em casa, agasalhado por um cachecol, sor-
vendo chá e aparando a barba com uma tesoura de bordado. En-
quanto isso, dava “bons” conselhos para jovens rapazes, que por
acaso escreviam relativamente bem, sem saber porra nenhuma do
que estava desencadeando.
– Vamos falar mais sobre isso depois – arrematei.
•••
Não tivemos aquela conversa. Ele foi embora antes de a gente ter
tempo. Decidi que “depois” seria bem mais tarde. Ou talvez tenha si-
do ele quem decidiu isso. Ou talvez Emma. O fato é que nós, eu e
Tom, não ficamos a sós no mesmo lugar uma única vez durante o
resto do tempo que ele passou em casa. Emma arrulhava em torno
da gente feito uma pomba silvestre sob efeito de anfetamina, servin-
do, arrumando, não parando de falar sobre absolutamente nada.
Eu andava tão cansado esses dias. Adormecia no sofá o tempo
todo. Tinha uma longa lista de tarefas que deveria fazer, velhas col-
meias que precisavam de manutenção, pedidos que eu deveria
acompanhar. Mas não aguentava. Era como se eu estivesse ligeira-
mente febril o tempo todo. Só que eu não estava com febre. Até
conferi isso. Subi no banheiro às escondidas e achei um termômetro
no fundo da caixa de primeiros socorros. Azul-claro com ursinhos,
um que Emma tinha comprado para Tom quando ele era pequeno.
De acordo com o manual de instruções, era para ser especialmente
rápido, de modo que não incomodasse a criança por mais tempo do
que o necessário. Mas é certo que demorava um bom tempo. Em al-
gum lugar da casa, ouvi o arrulho de Emma e, de tempos em tem-
pos, as respostas de Tom. E ali estava eu, com a ponta fria de metal
enfiada no traseiro, aquela que tinha sido introduzida no meu filho
centenas de vezes, com certeza. Emma não era do tipo que pensa-
va duas vezes antes de conferir a temperatura. Senti de novo aque-
la sonolência enquanto aguardava o bipe digital que me contaria
que o corpo estava do jeito que deveria estar, mesmo que me pare-
cesse ter corrido uma maratona.
Depois de enfim confirmar que estava sem febre, simplesmente
fui dormir, sem avisar. Eles que continuassem.
O arrulho durou até ele sentar-se no ônibus. Aí, com Tom lá den-
tro, seu rosto grudado no vidro de trás e o alívio estampado na face,
ela finalmente ficou quieta.
Ali estávamos nós, dando tchau, de forma tão automática que
era como se fôssemos movidos a pilha, a mão para cima e para bai-
xo, para cima e para baixo, em sincronia total. Os olhos de Emma
brilharam, ou talvez fosse apenas o vento, mas graças a Deus ela
não chorou.
O ônibus entrou na estrada, o rosto de Tom brilhava pálido para
nós, ficando cada vez menor. De repente me lembrei de uma outra
vez que ele fora embora de ônibus. Aquela vez também o rosto dele
tinha brilhado pálido e aliviado. Mas ao mesmo tempo havia medo
nele.
Sacudi a cabeça. Quis me livrar da recordação.
Enfim o ônibus sumiu na curva. Baixamos as mãos ao mesmo
tempo, ficamos parados olhando para o ponto onde desaparecera,
como se fôssemos estúpidos o bastante para acreditar que ele de
repente voltaria.
– Bem – disse Emma. – Já se foi.
– Já se foi? O que você quer dizer?
– Só nos são emprestados. – Ela enxugou uma lágrima que o
vento tinha feito saltar do olho esquerdo.
Senti muita vontade de dar uma resposta ríspida para ela, mas
deixei passar. Tinha respeito demais por aquela lágrima. Por isso
me virei e foi em direção ao carro.
Ela me seguiu, arrastando os pés. Também parecia ter encolhi-
do.
Sentei-me ao volante, mas não consegui ligar o motor. Minha
mão estava como que frouxa, exausta de todos os acenos.
Emma colocou o cinto de segurança, sempre fazia questão dis-
so, e se virou para mim.
– Você não vai dirigir?
Eu quis levantar a mão, mas ela não me obedeceu.
– Ele falou com você sobre aquilo? – disse eu, voltado para o vo-
lante.
– O quê? – perguntou Emma.
– Sobre o que está planejando? Para o futuro?
Ela ficou calada por um instante. Depois respondeu em voz bai-
xa.
– Você sabe que ele adora escrever. Sempre adorou.
– Eu adoro Guerra nas estrelas. Nem por isso virei Jedi.
– Pelo visto, ele tem um dom especial.
– Você o está apoiando? Você acha que o plano dele é inteligen-
te? Muito sábio? Uma boa escolha de caminho? – Agora me virei
para ela, endireitei o pescoço, tentei parecer duro.
– Só quero que ele seja feliz – disse ela com voz mansa.
– É isso que você quer, não é?
– Sim, é isso que quero.
– Você não pensou que ele precisa viver também? Ganhar di-
nheiro, afinal?
– Mas o professor já disse que ele tem muito a oferecer.
Ela estava sentada ali com aquele grande olhar escancarado, to-
talmente franca; não estava brava, só tinha uma crença inabalável
de que estava certa.
Espremi a chave do carro na mão e de repente reparei que esta-
va doendo, mas não consegui soltar.
– Você pensou no que a gente vai fazer com o apiário, então?
Ela ficou em silêncio. Por muito tempo. Desviou o olhar, mexeu
um pouco com o anel de casamento, puxando-o sobre a primeira ar-
ticulação do dedo. A faixa branca da pele ficou visível, a marca do
anel que tinha ficado ali durante 25 anos.
– Nellie ligou na semana passada – ela disse enfim, mas para o
ar, não para mim. – Já há temperaturas de verão em Gulf Harbors.
Vinte graus na água.
Lá vinha ela de novo. Gulf Harbors. Embora a menção ao lugar
flutuasse, o nome desse condomínio me atingia feito uma pancada
de tijolo na cabeça toda vez que ela o dizia.
Nellie e Rob eram amigos nossos de infância. Infelizmente, eles
se mudaram para a Flórida. Desde que isso aconteceu, a insistência
deles tomara proporções homéricas, não só para que fizéssemos
uma visita a esse suposto oásis nos arredores de Tampa, mas tam-
bém para que nos mudássemos para lá. A toda hora Emma me vi-
nha com novos anúncios de imóveis em Gulf Harbors. Muito barato.
No mercado fazia tempo. Podíamos fazer um bom negócio. Píer e
piscina, casa recém-reformada, praia e quadras de tênis comunitá-
rias, como se a gente tivesse necessidade disso. Parecia que tinha
até golfinhos e peixes-boi que ficavam brincando na água, bem na
porta da casa. Quem precisava disso? Peixes-boi? Bichos feios.
Nellie e Rob se gabavam muito. Diziam que tinham um monte de
novos amigos. Citando ao acaso: Laurie, Mark, Randy, Steven. Era
demais. Todo domingo eles tomavam brunch no salão de festas, um
brunch completo por apenas cinco dólares, incluindo panquecas, ba-
con, ovos e batatas assadas. E agora estavam tentando atrair a
gente para lá, todo mundo, sim, estavam enchendo o saco de mais
pessoas além de nós, pareciam querer a cidade de Autumn inteira lá
no sul. Mas eu sabia do que se tratava, afinal. Eles estavam se sen-
tindo solitários naquele seu canal de águas profundas, lá embaixo.
Era uma desgraça viver tão longe da família e dos amigos, ter larga-
do tudo o que você teve à sua volta a vida inteira. Além do mais, o
verão na Flórida: não há nada mais próximo do inferno, abafado e
quente e horrível, com trovoadas insanas várias vezes por dia. E
mesmo que o inverno seja mais decente, com temperaturas de ve-
rão e pouca chuva, quem quer viver sem um inverno de verdade?
Sem a neve e o frio? Tudo isso eu tinha dito a Emma muitas vezes,
mas mesmo assim ela não desistia. Alegava que a gente precisava
fazer planos sérios, planos para a velhice. Não entendia que era
exatamente o que eu tinha feito. Eu queria construir algo sólido, dei-
xar um legado substancial, em vez de ficar sentado o dia todo numa
casa de férias meio velha e impossível de vender. Pois é. Afinal, eu
tinha lido um pouco sobre o estado atual do mercado imobiliário da
Flórida. Tinha feito minha pesquisa. Havia boas razões para que es-
sas casas não fossem vendidas no primeiro fim de semana de expo-
sição, por assim dizer.
No entanto, meu plano era outro. Alguns novos investimentos.
Mais colmeias. Muitas mais. Caminhões. Carretas. Empregados fi-
xos. Conseguir alguns acordos com fazendas na Califórnia, na Ge-
órgia, talvez na Flórida.
E Tom.
Era um bom plano. Realista. Ponderado. Antes de Tom se dar
conta, ele também teria uma esposa e um filho. Aí seria bom que
seu pai tivesse planejado direito as coisas, que o apiário se encon-
trasse em boas condições, bem cuidado, que a operação estivesse
adaptada ao mundo moderno, que Tom tivesse trabalhado aqui por
tempo suficiente para conhecer o ofício a fundo. E que talvez até
houvesse algum dinheiro guardado no banco. Os tempos eram in-
certos. Eu criava segurança. Era o único que criava segurança para
essa família. Um futuro. No entanto, parecia que ninguém entendia
isso.
Fiquei cansado só de pensar a respeito, no plano. Antes, ele me
dera forças para trabalhar mais, mas agora o caminho até lá parecia
longo e sinuoso, como uma trilha lamacenta na chuva de outono.
Não tive energia para dar uma resposta a Emma. Enfiei a chave
na ignição, ela estava pingando de suor e tinha me deixado uma
marca vermelha na palma da mão. Eu precisava dirigir agora, antes
de adormecer. Emma não ergueu os olhos, tinha tirado o anel de ca-
samento, estava esfregando os dedos sobre a faixa branca da pele.
Ela não se esquivava de mim com mentiras, mas estava disposta a
colocar nossa vida inteira em jogo.
Tao

– Você apaga a luz? – Kuan se virou para mim, pálido de cansaço.


– Vou só terminar de ler isso.
Retomei o livro antigo sobre pedagogia infantil. Meus olhos esta-
vam ardendo, mas não queria dormir ainda. Não dormir, acordar e
depois ter que sair para o novo dia.
Ele suspirou a meu lado. Puxou o cobertor sobre a cabeça para
bloquear a luz. Um minuto se passou. Dois.
– Tao… Por favor. Daqui a seis horas vamos ter que levantar.
Não respondi, simplesmente fiz o que ele pediu.
– Boa noite – disse ele baixinho.
– Boa noite – falei e me virei para a parede.
O sono estava prestes a me levar para longe quando senti suas
mãos se insinuarem por baixo da camisola. Reagi instintivamente a
elas, sentindo prazer com seu toque, mas mesmo assim tentando
afastá-las. Ele não estava com sono? Por que me pedira que apa-
gasse a luz se queria isso?
As mãos sumiram, mas sua respiração ainda era leve. Então ele
tossiu, como se quisesse dizer algo.
– Você… você passou bem hoje?
– O que você quer dizer?
– Você esqueceu que dia é hoje?
– Não. Não esqueci.
Eu não disse que torcia para que ele tivesse esquecido, não que-
ria ter essa conversa.
Ele afagou meu cabelo, com ternura dessa vez, não como tenta-
tiva de sedução.
– Correu tudo bem?
– Fica um pouco mais fácil a cada ano que passa – disse eu,
pois certamente era o que ele queria ouvir.
– Que bom.
Mais uma vez ele passou a mão em meu cabelo, e em seguida
levou-a para baixo de seu cobertor.
O colchão se mexeu suavemente assim que ele se virou, talvez
para ficar de bruços, do jeito que gostava de dormir. Sussurrou mais
uma vez “boa noite”. A julgar pelo som, ele tinha virado o rosto para
o outro lado. Logo estava dormindo a sono solto.
Mas eu fiquei acordada.
Cinco anos.
Cinco anos desde que minha mãe foi embora.
Não. Não foi embora. Foi mandada para longe.
Meu pai morreu quando eu tinha dezenove anos. Ele estava com
pouco mais de cinquenta, mas seu corpo era muito mais velho. Os
ombros, as costas, as articulações, tudo estava desgastado depois
de tantos anos nas árvores. Ele se movimentava com mais dificulda-
de a cada dia que passava. Talvez a circulação do sangue também
tivesse piorado, pois um dia uma farpa entrou na palma de sua mão
e provocou uma ferida que não cicatrizou.
Por ser o homem que era, demorou demais a procurar ajuda. E
quando o médico enfim conseguiu a aprovação para lhe dar antibió-
ticos – embora meu pai na verdade estivesse muito velho para ter
acesso a esse tipo de tratamento caro –, já era tarde demais.
Minha mãe se recuperou com rapidez surpreendente da morte
dele. Dizia coisas positivas, manteve-se otimista. Ainda era jovem,
afirmava, sorrindo bravamente, tinha uma longa vida por viver. Tal-
vez até encontrasse outro homem algum dia.
No entanto, eram só palavras. Pois ela foi se distanciando, tre-
mulante, como as pétalas que são levadas pelo vento no fim da flo-
rada. Havia vento em seu olhar, impossível de capturar.
Logo ela já não conseguia mais comparecer ao trabalho nos po-
mares. Só ficava em casa. Sempre fora magra e agora quase não
comia nada. Começou a espirrar, tossia, ficava cada vez mais abati-
da, e em pouco tempo estava com pneumonia.
Um dia fui ver como ela estava e ninguém abriu a porta. Toquei a
campainha, mas nada aconteceu. Peguei a chave reserva que tinha
comigo e destranquei a porta.
O apartamento estava arrumado e vazio, sobravam apenas as
velhas peças que faziam parte da mobília fixa. Tudo dela tinha sumi-
do – a almofada em que costumava se encostar no sofá, a árvore
bonsai de que cuidava com tanto afinco, a manta bordada que gos-
tava de dobrar e colocar sobre as coxas, como se sentisse mais frio
exatamente ali.
Na mesma tarde, fiquei sabendo que ela tinha sido mandada pa-
ra o norte. O supervisor de saúde do distrito me assegurou de que
ela estava bem e me deu o nome do lar de idosos. Deixaram-me ver
um filme tremido de apresentação do lugar. Tudo bonito, com muita
luz, quartos espaçosos, pé-direito alto, funcionários sorridentes. Mas
quando pedi licença para visitá-la, me informaram que era preciso
esperar até o fim da florada.
Algumas semanas mais tarde, chegou a notícia de que ela havia
partido.
Partiu. Essa foi a palavra que usaram, como se ela de fato tives-
se se levantado da cama e ido embora. Tentei não pensar em como
foram seus últimos dias. Com uma tosse áspera, febril, assustada e
sozinha. Pode-se imaginar que tenha sido assim.
Mas não havia nada que eu pudesse ter feito. Kuan também dis-
se isso. Não havia nada que eu pudesse ter feito. Ele disse isso ve-
zes sem fim e eu continuei a repetir para mim mesma.
Até quase acreditar que era verdade.
William

– …Edmund?
– Boa tarde, pai.
Ele estava sozinho ao lado de minha cama. Eu não fazia ideia de
há quanto tempo estava no quarto. Havia-se tornado outra pessoa,
estava mais alto, e o nariz, a última vez que o vi, era grande demais.
Nos jovens, o nariz muitas vezes cresce em seu próprio ritmo, dá
saltos à frente do resto do corpo, mas agora combinava com o sem-
blante, suas feições já haviam se ajustado ao órgão do olfato. Ele ti-
nha ficado bonito, adquirira uma beleza que sempre estivera latente
nele. Vestia-se de modo elegante, mas um tanto descuidado, um
lenço verde-garrafa pendurado frouxamente ao pescoço, a franja
comprida demais. Ficava bem nele, mas tornava difícil ver seus
olhos. Além do mais, estava pálido. Será que não dormia o suficien-
te?
Edmund, meu único filho homem. O único filho homem de Thilda.
Não se passou muito tempo até eu entender que ele era dela, por
completo. Desde o dia em que nos conhecemos, ela deixou claro
que seu maior desejo era um menino, e, com a chegada dele um
ano mais tarde, sua missão na vida estava cumprida. Dorothea e
Charlotte, e, em seguida, as outras cinco meninas, tornaram-se me-
ras sombras dele. De certa forma, eu a entendia. As sete meninas
davam-me uma dor de cabeça constante. Seus intensos e incessan-
tes gritos, berros, passos arrastados, choradeiras, risos, correrias,
tosses, soluços e, mais que tudo, sua tagarelice – era incrível o tan-
to que falavam, falavam pelos cotovelos –, todos esses ruídos cer-
cavam-me desde a hora de levantar até a hora de ir para a cama. E,
como se não bastasse, elas não paravam durante a noite. Sempre
havia uma criança que chorava por causa de um sonho, outra que
chegava na ponta dos pés, vestida só de camisola, pisando de leve
nas tábuas frias do assoalho, antes de subir na cama com um ruído
qualquer, alguns gemidos tristes ou uma exigência quase agressiva
de se colocar entre nós na cama.
Elas pareciam incapazes de ficar quietas, e por isso era difícil
trabalhar, era impossível escrever. Pois eu realmente tentara, não ti-
nha desistido de imediato, como Rahm supunha. Mas foi em vão.
Mesmo que eu fechasse a porta de meu quarto com a ordem ex-
pressa de que não me perturbassem, pois precisava trabalhar, mes-
mo que eu amarrasse um cachecol na cabeça para abafar o barulho
ou enchesse os ouvidos de lã, ainda assim, eu as escutava. Não
adiantava. No decorrer dos anos, sobrava cada vez menos tempo
para meu próprio trabalho, e logo eu não passava de um simples co-
merciante que se esforçava para alimentar as bocas eternamente
vorazes das meninas, que eram sacos sem fundo. O naturalista pro-
missor tinha cedido o lugar para um abatido comerciante de semen-
tes de meia-idade, com as pernas cansadas por ter passado horas
ao balcão, as cordas vocais enferrujadas depois de tantas conver-
sas com os fregueses, e os dedos eternamente contando o dinheiro
que nunca era suficiente. Tudo por causa das meninas.
Edmund estava completamente imóvel, congelado. Antes, seu
corpo era como o mar próximo a uma península, onde os ventos e
as ondas encontravam-se e se chocavam caoticamente, sem re-
gras. A inquietação não era apenas física, residia também em sua
alma. Não havia método nele. Num momento ele poderia mostrar
seu lado bondoso e buscar um balde de água só para ser gentil; no
momento seguinte, derramaria o balde no chão para, de acordo com
sua própria explicação, fazer um lago. As repreensões não o afeta-
vam em nada. Se levantávamos a voz, ele só ria e saía correndo.
Sempre correndo, era assim que eu me lembrava dele, os pezinhos,
nunca parados, sempre fugindo de algum pequeno desastre que ele
tinha causado – um balde derrubado, uma xícara de porcelana que-
brada, um trabalho de tricô desfeito. Quando isso acontecia, e era
com frequência, eu não tinha outra alternativa senão pegá-lo e se-
gurá-lo enquanto tirava o cinto do cós de minha calça. Cheguei a
detestar o som sibilante do couro contra o tecido e o tilintar da fivela
ao atingir as tábuas do assoalho. O receio do que viria era quase pi-
or do que os próprios golpes. A sensação do couro e da fivela que
eu agarrava na mão. Nunca batia com aquela ponta, não como meu
pai, que sempre fazia a fivela atingir as costas com força. Eu, ao
contrário, apertava-a, deixando-a espetar a palma da mão com tanta
força que ficavam marcas. O couro nas costas despidas, as marcas
vermelhas que afloravam na pele branca como fios retorcidos. Em
outras crianças, esses vergões vermelhos contribuíam para estan-
car a agitação, e a lembrança do castigo evitava que voltassem a
cometer o mesmo erro. Mas não no caso de Edmund. Era como se
não compreendesse que seus atos impetuosos o levavam ao cinto,
que havia uma ligação entre o lago no chão da cozinha e os golpes
subsequentes. Não obstante, era minha responsabilidade continuar,
e eu esperava que ele no fundo também percebesse meu amor.
Compreendesse que eu não tinha escolha. Eu castigava, logo, era
pai. Eu batia com o choro preso no peito, com o suor escorrendo e
as mãos tremendo, queria tirar-lhe a inquietação às chicotadas. Mas
nunca adiantava nada.
– Onde estão as outras? – perguntei, pois a casa estava estra-
nhamente silenciosa.
Arrependi-me no mesmo instante. Não deveria ter perguntado
por elas. Não quando ele enfim viera me ver. Não quando enfim éra-
mos só eu e ele.
Edmund estava ali de pé, balançando ligeiramente, como se lu-
tasse para manter o equilíbrio, não sabendo em qual perna colocar
mais peso.
– Na igreja.
Era domingo, então.
Tentei sentar na cama. Levantei o cobertor minimamente. Meu
próprio fedor chegou-me às narinas. Quando tomei banho pela últi-
ma vez?
Se ele percebeu alguma coisa, não o deixou transparecer.
– E você? – disse eu. – Por que ficou em casa?
Soou como uma acusação. Quando deveria ter sido um agrade-
cimento.
Ele não olhou para mim, fitou os olhos na parede, acima da ca-
beceira.
– Eu… eu esperava ter uma chance de falar com você – disse
por fim.
Fiz um gesto lento com a cabeça, enquanto me esforçava para
não deixar o rosto revelar a imensa felicidade que sua visita me cau-
sava.
– Muito bem – falei. – Aprecio muito que tenha vindo… E há tem-
po esperava que você aparecesse.
Tentei ficar sentado numa posição ereta, mas era como se o es-
queleto não fosse mais capaz de me sustentar. Por isso me apoiei
em uma almofada. O que por si só era um esforço enorme. Resisti à
vontade de puxar o cobertor até os ombros para conter o fedor.
Quase não aguentava meu próprio cheiro. Como eu não tinha per-
cebido isso antes, o quanto precisava de um banho? Pus a mão no
rosto. Minha barba, que nunca fora muito basta, havia crescido e se
transformado numa juba desgrenhada de vários centímetros de
comprimento. Eu deveria parecer um homem das cavernas.
Ele olhou para os dedos de meus pés, que despontavam do co-
bertor. As unhas estavam compridas e sujas. Rapidamente, tirei os
pés de vista e soergui-me na cama.
– Edmund. Diga-me. O que está te preocupando?
Ele não me olhou nos olhos, mas tampouco mostrou acanha-
mento ao apresentar sua mensagem.
– Talvez o pai possa se levantar logo?
O rubor da vergonha subiu-me às faces. Thilda tinha pedido. As
meninas tinham pedido. O médico tinha pedido. Mas Edmund não…
– Aprecio imensamente que tenha vindo – disse eu com a voz a
ponto de falhar. – Gostaria de me explicar.
– Explicar-se? – Ele passou uma das mãos pela franja. – Não
preciso de nenhuma explicação. Só peço que se levante.
O que eu deveria dizer? O que ele esperava de mim? Dei alguns
tapinhas com a mão no colchão, um gesto convidativo.
– Venha sentar-se aqui, Edmund. Vamos conversar um pouco. O
que você tem feito ultimamente?
Ele não se mexeu.
– Conte-me sobre os estudos. Com sua agilidade mental, imagi-
no que esteja progredindo rapidamente.
Ele devia estar se preparando para o outono, quando iria estudar
na capital. Havíamos feito um grande esforço para amealhar o di-
nheiro destinado à sua educação, e enfim ele estava quase pronto.
De repente senti uma pontada no peito. Pois o dinheiro para os es-
tudos, será que Thilda o tinha gastado, agora que eu me encontrava
acamado dessa forma?
– Imagino que nada tenha mudado. Os planos para os estudos
continuam em pé? – perguntei depressa.
Ele fez que sim, sem entusiasmo evidente.
– Trabalho quando estou inspirado – disse.
– Bem. A inspiração é um importante motivador.
Estendi a mão para ele.
– Venha sentar-se aqui. Vamos conversar um pouco. Ter um diá-
logo de verdade. Faz tanto tempo…
Mas ele continuou em pé.
– Eu… preciso descer.
– Só alguns minutinhos? – Tentei manter a voz leve.
Ele deu uma sacudida na franja, não olhou para mim.
– Vou estudar.
Alegrava-me o fato de ele estar empenhado, mas poderia gastar
um pouquinho mais de tempo agora que finalmente viera aqui.
– Só quero segurar sua mão – disse eu. – Só por um breve mi-
nuto.
Um suspiro quase inaudível escapou de seus lábios, mas ele se
aproximou de mim. Finalmente sentou-se a meu lado, hesitou por
um instante e me deu a mão.
– Obrigado – disse eu baixinho.
Ela era quente e lisa na minha. Irradiava uma luz, transformava-
se numa ligação entre nós, como se o sangue novo dele fluísse den-
tro de mim. Eu só queria ficar assim, mas não havia como ignorar
sua eterna inquietação. Ele não conseguia manter o braço quieto,
trocava de posição, não parava de mexer os pés.
– Sinto muito, pai. – Levantou-se abruptamente.
– Não – falei. – Não precisa se desculpar. Entendo. É claro que
precisa trabalhar.
Ele fez que sim. Seus olhos estavam grudados na porta. Só que-
ria escapar, deixar-me sozinho outra vez.
Deu alguns passos e então se deteve, como se tivesse lembrado
de alguma coisa. Virou-se para mim outra vez.
– Mas pai… Você não pode pelo menos buscar a vontade de le-
vantar?
Engoli em seco. Devia-lhe uma resposta verdadeira.
– Não é a vontade que me falta… é… a paixão, Edmund.
– A paixão? – Ele levantou a cabeça, a palavra parecia ter des-
pertado algo nele. – Então precisa reencontrá-la – disse logo. – E
deixar que ela te impulsione.
Tive de sorrir. Palavras tão grandes naquele corpo desengonça-
do.
– Sem paixão não somos nada – arrematou, com uma gravidade
que nunca percebi antes nele.
Não disse mais. Apenas saiu do quarto. A última coisa que ouvi
dele foi o som dos passos no assoalho do corredor. Seguiram em di-
reção à escada e depois desceram e foram embora. Mesmo assim
senti que nunca estivera tão perto dele.
Rahm tinha razão, eu havia esquecido a paixão, deixando-me
ser tragado por trivialidades. Não demonstrei entusiasmo em meu
trabalho, por isso perdi Rahm. Mas Edmund ainda estava aqui, eu
ainda poderia mostrar isso a ele, deixá-lo orgulhoso. Assim nos
aproximaríamos um do outro. Por meio da honra que eu traria ao
nome da família, nosso relacionamento floresceria e daria frutos.
Dessa forma eu talvez pudesse encontrar o caminho de volta a
Rahm, e então, apesar de tudo, seríamos três: o pai, o filho e o
mentor.
Virei-me para o lado. Afastei o cobertor de meu corpo fedorento
e então me levantei. Desta vez era definitivo.
Ge orge

Eu estava no celeiro construindo colmeias. Era o que eu geralmente


fazia nessa época do ano. A primavera se preparava, a natureza es-
tava prestes a explodir em verde e as pessoas comentavam como
era bonito. Enquanto todos queriam sair para aproveitar, eu ficava
aqui dentro, debaixo de lâmpadas fluorescentes e crepitantes, mar-
telando alucinadamente. Neste ano mais que nunca. Emma e eu
não tínhamos conversado muito desde a partida de Tom. Passei a
maior parte do tempo aqui no celeiro. Para dizer a verdade, eu esta-
va com medo de me meter numa conversa com ela. Emma era me-
lhor com palavras do que eu, acho que as mulheres em geral são, e
não raramente sua vontade acabava prevalecendo. Pensando bem,
ela também tinha razão muitas vezes. Mas não dessa vez, com cer-
teza.
Por isso eu ficava no celeiro. De sol a sol. Consertando colmeias
velhas, fazendo novas. Não colmeias padrão, não na minha família.
Tínhamos nosso próprio modelo. Os desenhos estavam pendurados
na parede da sala de jantar, emoldurados. Foi Emma quem tinha ar-
ranjado isso. Ela encontrou os desenhos no sótão, no baú de rou-
pas. Estavam ali porque ninguém precisava deles, na minha família
todos sabiam as medidas de cor. O baú, uma autêntica mala transa-
tlântica, provavelmente poderia ser vendido para uma loja de anti-
guidades por um bom dinheiro. Mas era legal ter o baú lá em cima,
eu achava. Me fazia lembrar de onde eu vinha. O baú atravessou o
Atlântico, chegou da Europa quando a primeira pessoa de minha fa-
mília pôs os pés em solo americano. Uma mulher solteira. Tudo vi-
nha dela, desse baú, dos desenhos.
O papel amarelado e quebradiço estava em processo de desinte-
gração, mas Emma o salvou com vidro e grossas molduras doura-
das. Até tomou providências para que os desenhos ficassem pendu-
rados num lugar sem exposição direta ao sol.
De qualquer forma, eu não precisava deles. Tinha construído es-
sas colmeias tantas vezes que era capaz de fazer tudo de olhos fe-
chados. As pessoas riam de nós porque a gente tinha uma fabrica-
ção caseira, nenhum outro apicultor que eu conhecia fazia suas pró-
prias colmeias. Era demorado demais. Mas a gente sempre tinha
feito isso. Essas eram nossas colmeias. Eu não ficava falando sobre
isso, não queria me gabar, mas tinha certeza de que as abelhas nas
nossas colmeias se sentiam melhor do que nas caixas padrão pro-
duzidas em massa. Os outros que rissem.
Estava tudo preparado no celeiro, as ferramentas e as tábuas
espessas de madeira cheirosa.
Comecei com as caixas. Cortei a madeira com a serra elétrica e
juntei as peças usando um martelo de borracha. Era rápido, um tra-
balho com resultados visíveis. Os quadros demoravam mais. Dez
quadros por caixa. A única coisa que a gente comprava pronta era a
tela de metal para isolamento da rainha, com aberturas de 4,2 milí-
metros. Essa medida garantia que a rainha ficasse dentro da col-
meia e que as pequenas operárias entrassem e saíssem livremente.
Havia limites para tudo.
O trabalho me impediu de cair no sono. Aqui no celeiro, frio e
com serragem voando pelo ar, a canseira não me dominava como
dentro de casa. Além do mais, era impossível dormir com o barulho
irritante da serra elétrica. Normalmente, eu usava protetores de ou-
vido, mas agora resolvi tirá-los, deixar o barulho encher a cabeça. Aí
não sobrava espaço para muito mais.
Não percebi que Emma tinha entrado. Era possível que tivesse
ficado um bom período me observando: pelo menos tivera tempo
suficiente para colocar a proteção auditiva. Foi quando me virei para
buscar mais algumas ripas que a avistei. Estava parada ali com os
grandes protetores amarelos de plástico sobre as orelhas. Ela sor-
riu.
Desliguei a serra.
– Olá?
Ela apontou para seus protetores de ouvido e sacudiu a cabeça
levemente. Tudo bem. Não podia ouvir o que eu estava dizendo. Fi-
camos parados daquele jeito. Ela continuou sorrindo. Inconfundível
aquele sorriso. A menopausa era o grande tema do momento. As
mulheres sussurravam, quando achavam que a gente não estava
ouvindo, sobre ondas de calor, vontades de fazer xixi, suores notur-
nos e, sim, a gente captava isso também: falta de libido. Mas Emma
continuava do seu jeito de sempre. E agora ela estava ali com os
protetores de ouvido e não era difícil entender o que ela queria.
Muito tempo havia se passado desde a última vez, muito tempo
para ser a gente. Foi antes de Tom chegar em casa. Ficamos tími-
dos com ele em casa, com receio de que escutasse, como se ele
ainda fosse um bebê que dormisse em nosso quarto. Passamos a
sussurrar sempre que íamos para a cama. Com movimentos cuida-
dosos, logo a gente se punha debaixo do cobertor, cada um folhean-
do um livro silenciosamente. E então, depois de ele ter ido embora,
simplesmente não veio à tona. Eu nem tinha pensado nisso.
Ela me abraçou, me beijou na boca, de olhos fechados.
– Não sei… – disse eu. Estava com o corpo rígido e lento, não ti-
nha pique nenhum. – Estou um pouco cansado.
Ela só sorriu, apontando mais uma vez para os protetores de ou-
vido.
Tentei tirá-los, mas ela afastou minha mão.
Ficamos assim. Segurei sua mão. Seu sorriso continuou estam-
pado no rosto.
– Tudo bem.
Peguei uns abafadores também.
– É assim que você quer?
Por algum motivo, despertei. O silêncio não era completo, o si-
lêncio nunca é completo quando você bloqueia tudo. O rumor do cé-
rebro, da própria respiração, a batida do coração, tudo se fazia sen-
tir.
Beijamos, sua língua era macia, a boca aberta e quente. Eu a
puxei para cima da bancada de marceneiro. Ali sentada, ficou com a
cabeça na mesma altura da minha. O ar estava frio, meus dedos
eram como pingentes de gelo em sua pele. Ela se encolheu, mas
não se afastou. Soprei nos meus dedos, acho que não adiantou
grande coisa, pois ela tremeu quando tentei enfiar a mão sob sua
blusa. Ela se inclinou para trás, estendendo as costas sobre a ban-
cada, com as pernas pendendo para o chão. Beijei sua barriga, mas
ela empurrou minha cabeça para baixo. Estremeceu quando minha
língua acertou o ponto certo. Talvez gemesse, mas eu não escutei
nada.
Então nós dois nos deitamos sobre a bancada. Ela por cima.
Não foi demorado, estava muito frio para isso. E as tábuas da ban-
cada, contra minhas costas, eram duras demais.
Depois, ela retirou os protetores de ouvido, levantou a calça e
enfiou a malha para dentro do cós. Antes de eu ter tempo de dizer
qualquer coisa, ela tinha saído.
O calor de seu corpo ficou, pairava no ar sobre a bancada de
marceneiro.
Gulf Harbors. Lá estava outra vez. Gulf Harbors. O nome não
queria desaparecer, continuava a girar na cabeça, Gulf Harbors, se
misturava feito uma massa, Gulf Harbors, Harb Gulfors, Bors Gulf-
harb. Sacudi a cabeça com força, querendo me livrar dele, mas o
desgraçado persistiu. Gulf Borsharb, Bors Harbgulf, Harb Forsgulf.
Agora fazia calor lá. Conferi a previsão ontem, sem Emma perce-
ber. Não sei por quê, por acaso me deparei com uma previsão do
tempo na tevê e fiquei esperando até aparecer Tampa. Pouca chuva
nessa época do ano, pelo que pude ver. Por aqui ainda fazia frio,
havia vento e chuva, mas lá já tinha chegado o verão dos sonhos.
Vida ao ar livre. Churrascos. Golfinhos. Peixes-boi.
Gulf Harbors.
O nome estava totalmente grudado, não era possível me livrar
dele. Que ficasse, então.
Emma era sem igual. Eu tinha sorte de estar com ela. O que
quer que acontecesse, isso não mudaria, mesmo que a gente se
mudasse para a Flórida.
Tao

Até que enfim chegou o Dia de Folga. Sem aviso prévio, como sem-
pre. Somente na véspera fomos informados de que a Comissão ti-
nha decidido que os habitantes afinal se fizeram merecedores de
um dia de folga. Foi anunciado por Li Xiara, a chefe da Comissão.
Uma mulher que sempre apresentava as últimas decisões da Co-
missão para nós, via rádio e em desgastadas telas informativas. Sua
voz desapaixonada e monocórdica era a mesma, fosse a notícia boa
ou ruim. Agora ela comunicou que a polinização estava feita e a flo-
rada, praticamente no fim. Eles poderiam nos dar esse luxo, disse
ela; nós, a comunidade, poderíamos nos dar esse luxo.
Tínhamos esperado por esse dia durante semanas. Mais de dois
meses tinham se passado desde a última folga. Trabalhávamos e
esperávamos enquanto os tendões do antebraço ficavam cada vez
mais inflamados em decorrência do movimento repetitivo com o pin-
cel, enquanto os braços e os ombros ficavam cada vez mais duros e
as pernas, eternamente cansadas de permanecer em pé.
Para variar, não acordei por causa do despertador, mas por cau-
sa da luz. O sol aqueceu meu rosto. Continuei deitada de olhos fe-
chados, sentindo a temperatura subir aos poucos dentro do quarto.
Então finalmente consegui abri-los e olhar em volta. A cama estava
vazia. Kuan já tinha levantado.
Fui para a cozinha e o encontrei sentado com uma xícara de
chá, olhando para os pomares, enquanto Wei-Wen brincava no
chão. Tudo estava muito tranquilo, um dia de descanso para todos
nós, tal como fora decidido. Até Wei-Wen estava brincando mais cal-
mamente do que de costume. Ele conduzia um carrinho de brinque-
do pelo chão, imitando baixinho um ronco de motor.
A nuca fofa com o cabelo curtinho, os dedos pequenos que se-
guravam o carrinho vermelho, a boca que zunia fazendo a saliva
sair por entre os lábios. O entusiasmo de Wei-Wen. Com certeza ele
seria capaz de ficar assim por horas a fio, construir estradas ali no
chão, com todos os veículos que ele tinha, cidades cheias de vida.
Sentei-me ao lado de Kuan, tomei um gole de seu chá. Estava
quase frio. Ele já deveria estar aqui há um bom tempo.
– O que você quer fazer? – perguntei enfim. – Como quer passar
nosso dia?
Ele tomou mais um gole de chá, somente um gole pequeno, co-
mo se estivesse economizando.
– Hum… não sei… o que você acha?
Eu me pus de pé. Ele sabia o que queria fazer. Já o ouvira falar
com alguns dos colegas de trabalho sobre o que ia acontecer no
centro do pequeno vilarejo que chamamos de cidade. Estavam fa-
zendo preparativos para servir comida na praça, mesas compridas e
entretenimento.
– Quero dedicar o dia a Wei-Wen – disse eu em tom ameno.
Ele riu suavemente.
– Eu também quero isso.
Mas não me olhou nos olhos.
– Temos muitas horas, podemos fazer bastante coisa. Eu adora-
ria ensinar-lhe os números – disse eu.
– Hum. – Ainda aquele olhar evasivo, como se cedesse, só que
eu sabia que era o contrário.
– Você me perguntou o que eu queria – falei. – E isso o que eu
quero.
Ele se levantou, aproximou-se de mim e pôs a mão em meu om-
bro, massageando-o de leve. Uma massagem persuasiva, tentando
encontrar meu ponto fraco. Sabia que eu era capaz de resistir a ele
verbalmente, mas raras vezes o conseguia fisicamente.
Eu me desvencilhei de mansinho de sua mão, ele não ia ganhar.
– Kuan…
Mas ele apenas sorriu, pegou na minha mão e me puxou em di-
reção à janela. Posicionado atrás de mim, deslizou suas mãos de
meus ombros até minhas mãos.
– Olhe lá fora – disse em voz baixa, entrelaçando seus dedos
aos meus.
Tentei me soltar com jeito, mas ele me impediu com firmeza.
– Olhe lá fora.
– Por quê?
Ele me segurou calmamente perto de si, e fiz o que pediu. Lá fo-
ra o sol brilhava. Pétalas brancas caíam como flocos de neve. O
chão estava coberto. As pétalas flutuavam no ar, adquiriam uma
brancura fosforescente por causa do sol. As fileiras de pereiras
eram intermináveis. A quantidade de flores me deixou tonta. Eu as
via todos os dias, cada árvore individual. Mas não as via como hoje.
Juntas.
– Acho que a gente deveria se arrumar e ir até a cidade. Colocar
uma roupa bonita, comprar uma coisa gostosa para comer. – Sua
voz era meiga, como se ele estivesse determinado a não ficar bravo.
Tentei sorrir, contemporizar com ele, não podia começar esse dia
com uma briga.
– Por favor, a cidade, não.
– Mas todo mundo está lá.
Ele queria andar em fila, como fazíamos todo dia. Tomei fôlego.
– Não poderíamos ficar só nós três?
Ele puxou os cantos da boca para cima, numa tentativa de sorri-
so.
– Tanto faz para mim. Desde que a gente saia.
Virei-me para a janela outra vez, para as flores, o mar branco.
Nunca ficávamos lá fora sozinhos.
– Talvez a gente simplesmente pudesse ir ali?
– Ali? Para os pomares?
– Afinal, é ao ar livre, não é? – Ensaiei um sorriso, mas ele não o
retribuiu.
– Não sei…
– Vai ser bom. Só nós três.
– Eu meio que combinei de encontrar alguns…
– E aí não há necessidade de fazer uma caminhada tão longa
com Wei-Wen. Não seria bom poupá-lo disso, só dessa vez?
Pus a mão na parte superior de seu braço, um gesto carinhoso,
evitando dizer mais sobre a aula. Mas ele adivinhou minhas inten-
ções.
– E os livros?
– Podemos levar alguns, não? E não preciso dar aula o dia intei-
ro.
Finalmente ele me olhou nos olhos. Deu-se por vencido, mas
com um pequeno sorriso.
William

Eu estava ao lado da mesa de estudo. Ela ficava perto da janela,


onde a iluminação era melhor, o lugar mais apropriado do quarto e
certamente o mais agradável. No entanto, eu não sentava ali há me-
ses.
Havia um único livro na mesa. Teria sido ele, Edmund, quem o
deixara ali enquanto eu estava dormindo?
O livro tinha folhas amareladas, com uma fina camada de poeira
no topo, e a capa de couro marrom estava seca e frágil ao toque
dos dedos. Agora reconheci a obra, eu a comprara na capital duran-
te os anos de faculdade. Naquela época eu trocava facilmente o al-
moço de uma semana por um novo livro. Mas esse livro em particu-
lar eu nunca chegara a ler, provavelmente o adquirira nos meus últi-
mos tempos de universitário. Foi escrito por François Huber, publica-
do em Edimburgo em 1806, quase 45 anos atrás, e levava o título
New Observations on the Natural History of Bees.
Era um livro sobre as abelhas, sobre a colmeia, o superorganis-
mo no qual cada indivíduo, cada pequeno inseto, estava sujeito ao
grande todo.
Por que Edmund teria escolhido este livro? Exatamente este?
Peguei meus óculos – foi necessário limpar a poeira deles na ca-
misa – e então me sentei. Sentir a cadeira de estudo nas costas era
como encontrar um velho amigo.
Rebelde, a capa rangeu assim que abri o livro. Virei a folha de
rosto com cuidado e comecei a ler.
Conheci a história de François Huber na época da faculdade,
mas nunca me aprofundei de verdade em suas teorias. Ele nasceu
em 1750, numa família suíça muito abastada. O pai tinha garantido
a riqueza da família, e, diferentemente dele, o pequeno François
nunca precisou trabalhar, mas a família tinha a expectativa de que
ele se aprofundasse intelectualmente e assim ocupasse seu lugar
no mundo. Deveria criar algo, algo que colocasse tanto seu nome
como o da família na boca de todos. Caberia a ele inscrevê-la nos li-
vros de história. François empenhou todos os esforços para agradar
ao pai. Era uma criança inteligente e lia obras pesadas desde pe-
queno. Escondido atrás de uma pilha de livros extremamente gros-
sos, ele permanecia lendo até altas horas da noite, até os olhos ar-
derem e lacrimejarem, até sentir dor. Por fim, aquilo tornou-se de-
mais para ele, a pressão foi excessiva e os olhos não aguentaram
mais. Os livros não o levaram a uma era de iluminação, mas para
dentro da escuridão.
Aos quinze anos de idade, ele estava quase cego. Foi mandado
para o campo, com a instrução de descansar e não se esforçar, po-
dendo participar de trabalhos simples de lavoura, mas não mais que
isso.
Só que o jovem François não conseguiu descansar, pois não es-
quecera as expectativas que uma vez pesaram sobre ele. Sua men-
te estava condicionada de tal modo que ele não tomou a cegueira
como um impedimento, mas como uma possibilidade, porque aquilo
que já não era capaz de ver, ele ainda poderia ouvir, e em seu entor-
no, por todo lado, estava a própria vida. Os pássaros cantavam, os
esquilos palravam, o vento soprava nas árvores e as abelhas zuni-
am.
Este último fenômeno chamava sua atenção em especial.
Gradativamente, ele iniciou seu trabalho científico, aquilo que
também se tornaria a base da obra que eu estava segurando nas
mãos. Com a ajuda valiosa de François Burnen, seu fiel aprendiz e
homônimo, ele começou a mapear as diversas fases da vida das
abelhas melíferas.
A primeira grande descoberta que os dois fizeram ligava-se à
própria fecundação. Ninguém antes entendera como a rainha engra-
vidava, pois ninguém o tinha visto acontecer, embora vários cientis-
tas, em diversas épocas, houvessem se dedicado com entusiasmo à
observação da vida na colmeia. Mas Huber e Burnen perceberam o
fator decisivo: a fecundação não acontecia lá dentro, mas fora. As
rainhas recém-nascidas deixavam a colmeia, voavam para longe, e
era nesses voos que acontecia. A rainha voltava cheia do sêmen
dos zangões e também coberta de seus órgãos genitais, arrancados
durante o acasalamento. Como a natureza poderia exigir um sacrifí-
cio tão insano do zangão era uma pergunta para a qual Huber nun-
ca obteve a resposta. Ela só foi encontrada mais tarde, e talvez te-
nha sido melhor que o cego Huber nunca entendesse claramente
essa parte. Talvez não conseguisse suportar a ideia de que a única
missão do zangão na vida era fecundar, e, ao fazê-lo, morrer.
Huber não só estudou as abelhas por meio de observação. Tam-
bém fez sua parte para melhorar as condições de vida delas, dedi-
cando-se a construir um novo tipo de colmeia.
Durante muitos anos, o contato dos seres humanos com as abe-
lhas limitou-se à coleta de colmeias naturais, favos em formato de
meia-lua construídos pelas próprias abelhas em galhos ou cavida-
des. Mas, com o tempo, alguns ficaram tão obcecados pelo ouro
das abelhas que procuraram tê-las como animais domésticos. Ten-
tou-se, com pouco êxito, usar colmeias de cerâmica. Depois foi de-
senvolvida a colmeia de palha, que era a mais comum na Europa na
época de Huber. Em meu distrito, elas ainda eram maioria. Incorpo-
ravam-se à paisagem nas campinas e na beira das estradas. Eu
nunca tinha refletido a respeito dessas colmeias, não até agora, ao
encontrar o livro de Huber. Vi então que elas tinham seus defeitos e
falhas. O interior da colmeia de palha era pouco visível. Na hora de
colher o mel, o que era feito espremendo-se os favos, também se
destruíam os ovos e as larvas. Isso tornava o mel impuro, e, mais
importante, estragava os próprios favos, que eram a casa das abe-
lhas.
Em outras palavras, para colher o mel, era preciso tirar a base
de existência das abelhas.
Foi isso que Huber resolveu mudar. Ele desenvolveu uma col-
meia que facilitava a colheita. Ela se abria como um livro, cujas fo-
lhas continham quadros para larvas e mel: a colmeia de folhas mó-
veis.
Estudei as imagens da colmeia de Huber exibidas no livro, os
quadros, o formato de folhas. O projeto era visualmente bonito, mas,
já à primeira vista, pouco prático. Deveria ser possível aperfeiçoá-lo,
criar uma solução melhor, que garantisse a colheita do mel sem pre-
juízo para as abelhas e que permitisse ao apicultor monitorar e ob-
servar minuciosamente a rainha, as crias e a produção.
De repente percebi que estava tremendo de entusiasmo. Era is-
so que eu queria, era aqui que estava minha paixão. Não consegui
tirar os olhos dos desenhos, das abelhas. Eu queria entrar lá dentro.
Dentro da colmeia!
Tao

– Um, dois, três, pule!


Seguimos as trilhas que cortavam as planícies. Wei-Wen andava
entre mim e Kuan. Estava usando meu velho lenço vermelho no
pescoço. Ele o amava, queria usá-lo todo dia, mas eu só deixava
quando não havia ninguém por perto. Tinha recebido o lenço como
uma honraria, não como um adereço de fantasia. Mas gostava de
ver Wei-Wen com ele, talvez pudesse inspirá-lo, fazer com que de-
sejasse ter seu próprio lenço um dia.
Wei-Wen segurou as mãos de nós dois, exigindo que o puxásse-
mos para cima em grandes saltos pelo ar.
– Mais. Mais. – O lenço subiu em seu rosto, quase cobrindo-o, e
Wei-Wen o afastou automaticamente.
– Olha! – ele gritava toda hora. – Olha! – E apontava para as ár-
vores, o céu e as flores.
Era uma novidade para ele estar aqui fora. Geralmente, os po-
mares eram um lugar que ele observava da janela, antes de ser for-
çado a sair para chegar a tempo na escola ou de ser carregado para
a cama à noite.
Íamos caminhar até uma colina perto da floresta e fazer um pi-
quenique por lá. Podíamos vê-la de nossa casa, ficava a apenas tre-
zentos metros de distância. Portanto, não era longe demais para
Wei-Wen, e sabíamos que lá em cima teríamos uma bela vista do vi-
larejo e dos pomares. Levávamos arroz frito, chá, uma manta e uma
lata de ameixas em conserva que havia sido guardada para um dia
muito especial. Depois, pegaríamos papel e lápis e sentaríamos na
sombra para trabalhar. Eu estava torcendo para que conseguisse
ensinar-lhe os números até dez. Seria mais fácil hoje. Wei-Wen es-
tava descansado. Eu também.
– Um, dois, três, pule!
Mais uma vez o puxamos para cima, já devia ser a quinta ou
sexta vez.
– Mais alto! – gritou ele.
Nossos olhares levemente resignados se encontraram acima da
cabeça de Wei-Wen. Então o levantamos mais uma vez. Ele não se
cansaria nunca, sabíamos disso. Não se cansar fazia parte da natu-
reza de uma criança de três anos. E ele estava acostumado a impor
sua vontade.
– Imagine quando ele não tiver mais nós dois só para si – disse
eu a Kuan.
– Vai ser difícil para ele – falou Kuan com um sorriso.
Estávamos bem perto disso agora, faltavam apenas alguns me-
ses para termos o dinheiro necessário. Todas as nossas economias
iam para a lata velha dentro do armário da cozinha. Quando fôsse-
mos capazes de apresentar a soma exigida, teríamos a autorização.
O valor estipulado era de 36 mil iuanes. Tínhamos 32.476. E estava
ficando urgente, pois o limite de idade era trinta anos completos, e
nós dois tínhamos vinte e oito. Logo seríamos velhos demais.
Wei-Wen teria um irmãozinho. Provavelmente seria um choque.
Precisar dividir com alguém.
Tentei soltar sua mão.
– Agora você pode caminhar um pouco sozinho, Wei-Wen.
– Nããão!
– Sim. Só um pouquinho. Até aquela árvore ali. – Apontei para
uma árvore cinquenta metros adiante.
– Qual?
– Aquela ali.
– Mas todas são iguais.
Não consegui senão sorrir, ele tinha razão. Olhei para Kuan. Ele
me devolveu um sorriso aberto e alegre. Ainda bem que não estava
emburrado por estarmos aqui, mas contente com o meio-termo. As-
sim como eu, estava certo de que esse seria um dia bom.
– Me carregue! – chiou Wei-Wen, e se agarrou nas minhas per-
nas.
Eu me desvencilhei.
– Olhe aqui. Pegue na minha mão.
Mas ele continuou a choramingar.
– Me carregue!
Então, subitamente, ele voou no ar. Kuan o transferira para os
ombros com a maior facilidade.
– Assim. Agora eu vou ser um camelo e você vai ser o camelei-
ro.
– O que é um camelo?
– Cavalo, então.
Ele relinchou e Wei-Wen riu.
– Você tem que correr, cavalo.
Kuan deu alguns passos, mas parou.
– Não, esse cavalo, não. Esse é um cavalo velho e cansado, que
além do mais quer andar junto com a mãe cavala.
– Égua – falei. – Não se chama mãe cavala, mas égua.
– Tudo bem. Égua.
Ele continuou andando com Wei-Wen nos ombros. Tentou pegar
minha mão, e andamos de mãos dadas por uns dois metros, mas
Wei-Wen bamboleava perigosamente lá em cima e Kuan se apres-
sou a segurá-lo outra vez. A cada passo, o corpo de Wei-Wen ba-
lançava. Com a cabeça erguida, ele olhou em volta e logo descobriu
que tinha alcançado uma altura totalmente diferente.
– Eu sou mais alto!
Ele sorriu sozinho, tão feliz como só um menino de três anos sa-
be ser.
Chegamos ao topo da colina. Uma ampla paisagem se descorti-
nou diante de nós. Fileiras de árvores em flor pareciam traçadas
com uma régua; bolas simétricas de algodão contrastavam com a
terra marrom sobre a qual ainda dominava a folhagem apodrecida
do ano anterior, através da qual a grama mal tinha começado a bro-
tar.
A floresta, extensa e sombria, estava a apenas cem metros de
distância. Escura e coberta de vegetação. Não havia nada para nós
ali. Mas agora aquelas áreas também seriam plantadas.
Eu me virei. Na direção norte, havia árvores frutíferas em flor da
colina onde estávamos até o horizonte. Longas linhas plantadas, ár-
vore após árvore após árvore após árvore. Eu tinha lido sobre as vi-
agens que as pessoas faziam antigamente, os turistas. Viajavam pa-
ra ver regiões como essa na primavera. Viajavam unicamente para
ver a florada das árvores frutíferas. Será que era bonito? Eu não sa-
bia. Era um trabalho. Cada árvore representava umas dez horas de
trabalho. Eu não era capaz de olhar para elas sem pensar que logo
estariam cheias de frutas, e nós teríamos de subir de novo. Colhê-
las com a mesma delicadeza manual que usamos ao polinizá-las.
Embrulhar cada pera cuidadosamente em papel, como se fosse de
ouro. Quantidades incalculáveis de peras, árvores, horas, anos.
Mesmo assim estávamos aqui fora hoje. Porque eu quis.
Kuan estendeu a manta no chão. Pegamos as embalagens de
comida. Wei-Wen comeu depressa e se lambuzou. Ele sempre tinha
pressa na hora das refeições, parecia achá-las uma perda de tem-
po. Era enjoado e comia pouco, mesmo que sempre estivéssemos
dispostos a dar parte de nossas porções a ele, se quisesse.
Mas quando abrimos a lata de ameixas em conserva ele se acal-
mou, talvez porque Kuan e eu estivéssemos calmos. A lata ficou
bem no meio de nós. O abridor fez um som áspero contra o metal
quando Kuan contornou a tampa da lata para removê-la. Olhamos
para as frutas amarelas. O cheiro era doce. Cuidadosamente, pe-
guei uma ameixa com o garfo e a coloquei no prato de Wei-Wen.
– O que é isso? – perguntou ele.
– Uma ameixa – respondi.
– Não gosto de ameixa.
– Você não pode saber antes de experimentar.
Ele se debruçou sobre o prato e encostou a ponta da língua na
fruta. Sentiu o sabor por um instante. E sorriu. Então ele a devorou
feito um cão faminto, a ameixa inteira de uma vez, o suco escorren-
do pelos cantos da boca.
– Tem mais? – perguntou, ainda com a boca cheia.
Mostrei a lata para ele. Estava vazia. Uma ameixa para cada um
de nós, isso era tudo.
– Mas você pode ganhar a minha também – falei e passei a
ameixa para seu prato.
Kuan olhou desalentado para mim.
– Você também precisa de vitamina C – disse ele baixinho. En-
colhi os ombros.
– Só vai me dar vontade de comer mais. Melhor ficar sem mes-
mo.
Kuan sorriu.
– Tudo bem. – E deixou sua própria ameixa deslizar para o prato
de Wei-Wen.
Em apenas dois minutos Wei-Wen tinha comido todas. Já de pé
outra vez, quis subir nas árvores. Mas não deixamos.
– Os galhos podem se quebrar.
– Eu quero!
Abri a mochila em busca de papel e lápis.
– Tenho outra ideia, que tal a gente sentar aqui e brincar um pou-
co com os números?
Kuan revirou os olhos e Wei-Wen pareceu não ter ouvido o que
eu disse.
– Olha! Um barco! – Ele estava segurando uma vara.
– Que legal – disse Kuan. – E ali tem um lago. – Ele apontou pa-
ra uma poça ali por perto.
– Isso! – disse Wei-Wen, e saiu correndo.
Coloquei o papel e os lápis de volta na mochila sem dizer nada,
virei-me de costas para Kuan. Ele fez cafuné em meu cabelo.
– O dia é longo.
– Metade já passou.
– Venha cá. – Ele me puxou para a manta. – Sinta como é gosto-
so, só ficarmos deitados assim. Relaxando.
Não consegui senão sorrir.
– Tudo bem…
Ele pegou minha mão e a apertou. Apertei a sua de volta. Ele
apertou a minha outra vez. Nós dois rimos. Já não havia dissonân-
cia entre nós.
Eu me virei para ficar de costas. Estirei-me por completo, sem
medo de que chegasse alguém e me mandasse levantar. A luz do
sol me cegou. Fechei um dos olhos, o mundo perdeu a profundida-
de. O céu, de um azul vivo, mesclou-se às flores brancas da árvore
sob a qual estávamos. Tornaram-se a mesma superfície. O céu insi-
nuava-se por entre as pétalas. Olhando por bastante tempo, o pri-
meiro e o segundo plano trocavam de lugar. Era como se o céu fos-
se uma manta azul de crochê com furos sobre um fundo branco.
Fechei os dois olhos. Senti a mão de Kuan na minha, estava ab-
solutamente imóvel. Poderíamos ter conversado. Poderíamos ter fei-
to amor. Mas ninguém queria outra coisa senão permanecer deitado
assim. Ouvimos Wei-Wen resfolegando lá embaixo na poça, o barco
indo de um lado para outro.
Depois de um tempo, precisei trocar de posição. Minhas escápu-
las pontudas estavam cravadas no chão. A lombar tinha começado
a reclamar. Deitei-me de lado apoiando a cabeça no braço. Como
era de esperar, Kuan já tinha caído no sono. Estava roncando leve-
mente. Se tivesse a chance, com certeza dormiria por uma semana
inteira. Andava um tanto magro, um tanto pálido, o corpo sempre
com carências: tinha menos horas de sono do que precisava, menos
alimento do que queimava. Mesmo assim Kuan resistia. Trabalhava
jornadas mais longas do que eu, mas nunca estava descontente.
Raras vezes se queixava.
Como o silêncio era grande aqui fora… Sem os trabalhadores à
minha volta, isso ficava ainda mais nítido. Até o barco de Wei-Wen
tinha parado. Não havia vento nas árvores, apenas a ausência de
som, o vazio.
Eu me sentei. Onde ele estava? Virei-me para a poça. Havia
apenas ela sob a luz do sol. A água lamacenta brilhava marrom.
Levantei-me.
– Wei-Wen?
Ninguém respondeu.
– Wei-Wen, onde você está?
Minha voz não se projetava mais do que alguns metros, sendo
tragada pelo silêncio.
Afastei-me alguns passos da manta, para ter uma visão geral da
paisagem.
Ele não estava em lugar nenhum.
– Wei-Wen?
Kuan acordou com meus gritos, se pôs de pé e também come-
çou a procurá-lo nos arredores.
– Você está vendo Wei-Wen?
Kuan sacudiu a cabeça.
A área era infinitamente grande, percebi agora. E tudo era igual.
Plantações e mais plantações de pereiras. Nada mais para usar co-
mo ponto de referência além do sol e da floresta. E um menino de
três anos sozinho aqui fora…
Corremos até a poça. A vara estava boiando na superfície da
água.
– Você pode ir por aquele lado, enquanto eu vou por esse? – A
voz de Kuan era objetiva e pouco dramática.
Fiz que sim.
– Com certeza, ele só se distraiu em algum lugar – disse Kuan. –
Não pode ter ido muito longe.
Eu me apressei, trotando sobre o chão irregular, seguindo a trilha
para o norte. Sim, com certeza ele se distraiu. Deve ter encontrado
alguma coisa tão interessante que não percebeu que o estávamos
chamando.
– Wei-Wen? Wei-Wen?
Talvez ele tenha tido a sorte de se deparar com algum pequeno
animal, um inseto. Ou talvez com um toco que parecesse um dra-
gão. Algo que o fizera parar, sonhar, esquecer tudo a sua volta,
aprender alguma coisa. Uma minhoca. Um ninho de pássaro. Um
formigueiro.
– Wei-Wen? Onde você está? Wei-Wen!
Tentei manter minha voz otimista e meiga, mas ouvi como soava
estridente.
A alguma distância, Kuan também o chamava.
– Wei-Wen? Oi, Wei-Wen!
Sua voz estava calma. Não como a minha. Agarrei-me a ela.
Tentei chamar com a mesma calma. Ele estava aqui, era óbvio que
estava aqui. Estava brincando e tinha se distraído.
– Wei-Wen?
O sol queimava nas costas.
– Wei-Wen? Meu filho?
Era como se a temperatura tivesse subido muito.
– Wei-Wen! Responda, querido!
Minha respiração. Ela estava irregular. Entrecortada. Eu me virei
e descobri que já tinha corrido centenas de metros da colina. Seria
impossível ele ter ido tão longe. Comecei a correr de volta, mas
ajustei o rumo, me guiando pelo sulco de rodas que passava a al-
guns metros de distância.
Lembrei que ele estava com o lenço vermelho. Wei-Wen estava
com o lenço vermelho. Seria fácil ver. Em meio à terra marrom, a
relva verde e as flores brancas, o lenço se destacaria.
– Tao! Tao! Vem cá! – A voz de Kuan. Desconhecida e cortante.
– Achou Wei-Wen?
– Vem cá!
Mudei de direção e corri a seu encontro. Senti um aperto em mi-
nha laringe e a respiração ficou difícil, como se o ar não atingisse os
pulmões.
Vislumbrei Kuan entre as árvores. Ele corria em minha direção.
Atrás dele avultava-se a floresta, grande e escura. Será que vinha
de lá? Será que Wei-Wen tinha desaparecido lá dentro?
– Tem alguma coisa errada? Aconteceu alguma coisa? – Minha
voz saía com esforço, estava comprimida, presa.
E agora eu o via direito. Kuan se aproximava, estava correndo.
Tinha o rosto congelado, os olhos arregalados. Carregava algo nos
braços.
O lenço vermelho.
Um sapato que sacudia ao compasso de sua corrida, uma cabe-
ça escura de criança que balançava.
O sapato. A cabeça balançando.
Corri até Kuan.
Um som fraco escapou de mim, abafei um grito.
Porque Wei-Wen estava lutando para respirar. O rosto branco
sob o cabelo preto. Os olhos me fitavam implorando ajuda. Será que
tinha fraturado alguma coisa? Estava ferido? Sangrando? Não. Es-
tava como que paralisado.
Kuan disse alguma coisa, mas não ouvi as palavras. Vi o movi-
mento dos lábios, mas nenhum som me alcançou.
Kuan não parou, continuou correndo.
Gritei algo. As coisas. Nossas coisas! Como se fossem importan-
tes. Mas Kuan não parou. Continuou correndo com Wei-Wen nos
braços.
Eu o segui. Segui-o e à criança em direção às casas, ao socorro.
O sapato sacudindo. O vento roçando o lenço vermelho.
Corremos sem parar no caminho que levava à cidadezinha. Eu
olhava para meu filho, para Wei-Wen, e via seus olhos grandes e
apavorados. Mas não podia fazer outra coisa senão correr.
Não parei de repetir seu nome.
Mas agora ele não estava reagindo mais.
Menos resistência no corpo. Ainda mais pálido, o suor brotando
na testa.
Os olhos fechados.
Era tão longe… Como tínhamos ido longe. Seria mesmo tão lon-
ge assim?
Enfim, as primeiras casas surgiram à nossa frente. Mas chega-
mos por um lado do vilarejo que não era aquele pelo qual costumá-
vamos entrar. Os caminhos eram tão parecidos que não tínhamos
notado a diferença.
Silêncio. Onde estava todo mundo?
Enfim vimos um ser humano. Uma mulher idosa. De saída. Ela ti-
nha se arrumado. Notei isso. Que a mulher estava usando batom e
vestido.
– Pare! – gritou Kuan. – Pare! Socorro! Nos ajude!
A mulher parecia confusa. Então ela notou a criança.
Em poucos minutos, uma ambulância apareceu. Sua chegada le-
vantou a poeira da estrada seca, que acabou cobrindo o cabelo de
Wei-Wen, seus sapatos, seus cílios. A equipe vestida de branco saiu
rapidamente do veículo e veio correndo até nós. Com cuidado, tira-
ram Wei-Wen dos braços de Kuan, levando-o com eles. O braço do
meu filho pendia frouxamente e escapou das mãos de um dos pro-
fissionais de branco. Foi a última coisa que vimos. Kuan e eu fomos
postos no carro, mas não na parte de trás, com ele. Deixaram-nos
sozinhos, na frente. Alguém nos lembrou de colocar os cintos de se-
gurança.
Cintos de segurança. Para quê?
Ge orge

Acordei uma hora e 22 minutos antes de o despertador tocar. A rou-


pa de cama estava suada, tirei o edredom às pressas, mas sabia
que seria impossível pegar no sono outra vez. Era dia de revisão
das colmeias, a primeira inspeção depois do inverno. Muitas vezes
eu dormira mal antes desse dia, com a cabeça metida bem lá dentro
das colmeias. Cera, quadros e crias ocupavam meus pensamentos.
Não fazia ideia do que encontraria ao abri-las, e já cheguei a ver a
mortandade invernal beirando os 50%. E aquela sensação, quando
você está ali e vê que não há nem crias nem rainha em quase meta-
de das colmeias, é horrível. Mas o inverno tinha sido normal, nada
fora do comum. Nem muito frio nem muito quente, nenhum motivo
para que houvesse algo fora do padrão.
Mesmo assim, eu tremia enquanto esperava por Rick e Jimmy.
Tinha pedido que comparecessem às sete e meia. Só queria pôr
mãos à obra. De preferência, já teria começado, mas a gente tinha
um negócio com esse primeiro dia de inspeção. Os três se reuniam
aqui no pátio, as coisas certas precisavam ser ditas, as coisas cer-
tas precisavam ser ingeridas.
Rick chegou primeiro, como sempre. Ele era alto e magro, de-
sengonçado, lembrava um pouco James Stuart, só que sem a cara
cativante. Nariz longo, afilado, olhos bem encovados no crânio, um
pouco careca, embora ainda nem tivesse completado trinta anos.
Ele saiu do carro se atrapalhando. Rick sempre se movimentava dez
vezes mais do que precisava, não importava a tarefa. Seu corpo in-
teiro era mal organizado. Mas ele era empenhado. Tinha feito al-
guns cursos de agronomia por correspondência e lia um monte o
tempo todo. Qualquer coisa que a gente ia fazer, o Rick era capaz
de falar sobre a origem daquilo. E a história. E as teorias. Era como
colocar uma moeda. O homem era uma verdadeira máquina de cau-
sos. Ele sonhava com um apiário próprio, mas, a bem da verdade,
deveria antes sonhar em ficar atrás de uma mesa de escritório e
usar a cabeça.
Ele balançava os braços, como de costume, não conseguia ficar
parado.
– Então… – disse ele.
– Então – repeti.
– Bem… Você tem alguma ideia de como estão as coisas?
– Não… Bem. Tudo bem. Não há motivo para pensar outra coi-
sa.
– Não… Não há motivo para isso.
Ele franziu a testa, mexeu no cabelo ralo.
– Quer dizer… – Ele se coçou com as duas mãos, parecia estar
com piolho. – Nunca se sabe.
– Não. Nunca se sabe. Mas com esse inverno…
– Sim. Tem razão…
– Sim.
– Só que tem aqueles desaparecimentos, né?
– Ah. Aquilo.
Fingi que não tinha pensado nisso. Mas era óbvio que tinha. Afi-
nal, eu me mantinha informado. Até The Autumn Tribune havia men-
cionado os colapsos misteriosos que alguns apicultores lá no sul vi-
venciaram. Em novembro, um sujeito na Flórida veio com a notícia
de colmeias que do nada estavam vazias. David Hackenberg era o
nome dele. De repente, todos falavam sobre o que estava aconte-
cendo no seu próprio apiário. E desde então cada vez mais notícias
tinham chegado – da Flórida, da Califórnia, de Oklahoma e do Te-
xas. Era sempre a mesma história. Primeiro, colmeias sadias, ali-
mento suficiente, crias, tudo às mil maravilhas. Então, numa questão
de dias, numa questão de horas, a colmeia ficava praticamente va-
zia. As abelhas desapareciam, abandonavam suas crias, largavam
tudo. E nunca mais voltavam.
As abelhas são animais limpos. Elas vão embora para morrer,
não querem ficar ali dentro e poluir a colmeia. Talvez estivessem fa-
zendo isso. Só que a rainha sempre permanecia, juntamente com
um pequeno grupo de jovens abelhas. As operárias abandonavam a
mãe e os filhotes, deixavam-nos para uma morte solitária na col-
meia. Contrário à natureza.
Ninguém sabia ao certo por quê. Na primeira vez que ouvi falar
disso, pensei que fosse por falta de cuidados. Que esse Hackenberg
não tivesse tomado conta direito das abelhas. Ao longo dos anos,
conheci muitos apicultores que punham a culpa nos outros quando
eram eles os verdadeiros culpados. Falta de açúcar, muito calor,
muito frio. Não era exatamente física quântica o que a gente fazia.
Nossa produção não era obra do acaso. Mas com o tempo as histó-
rias ficaram numerosas demais, parecidas demais e súbitas demais.
A coisa agora parecia diferente.
– É só lá no sul – falei.
– Pois é. Eles têm uma operação mais intensiva lá embaixo –
disse Rick.
No mesmo instante, a picape verde de Jimmy entrou no pátio
cantando os pneus. Ele saiu do carro com um largo sorriso. Se Rick
era preocupado, pensava demais, Jimmy era o seu oposto, sorriden-
te, simples. Nenhum movimento inútil, nenhum esforço mental que
não fosse estritamente necessário. Mas ele trabalhava, isso sim.
As faltas interiores de Jimmy eram compensadas por seu exteri-
or. Era bonitão de um jeito juvenil. Loiro, bastante cabelo, covinha
no queixo, mandíbulas fortes, proporções certas, era como se usas-
se uniforme de futebol americano todas as horas do dia. E cuidava
bem da aparência. Roupa recém-passada e cabelo recém-penteado
sempre. Mas não se sabia bem para quem ele se arrumava, pois
nunca tinha envolvimento com mulheres.
Jimmy segurava uma garrafa térmica. Notei que era nova, para a
ocasião. O aço polido captou o sol por um instante, me cegando
brevemente, antes de ele mudar a posição da garrafa.
Pegamos uma caneca cada um. Tinham sido compradas por
Jimmy alguns anos atrás. Pequenas canecas dobráveis verde-caça-
dor, do departamento de camping e lazer do Kmart. Simultaneamen-
te, Rick e eu apertamos as canecas para elas se abrirem, estenden-
do-as para Jimmy. Sem uma palavra, ele abriu a garrafa térmica.
– Grãos moídos na hora – disse, nos servindo.
Fui o primeiro da fila.
– Colômbia. Escuro, sabor torrado.
Se dependesse de mim, podia até ser café solúvel. Café era ca-
fé. Mas, para Jimmy, café provavelmente era o mais próximo que
ele chegava da arte. Ele comprava os grãos on-line. Na sua opinião,
os grãos tinham que ser frescos. Pelo jeito, o café que já vinha moí-
do devia ser considerado obra do diabo. E o café precisava ser pre-
parado à temperatura certa. A temperatura era “o alfa e o ômega”.
Para conseguir isso, ele investiu numa máquina de café europeia,
uma cafeteira, que ficou presa na alfândega e só foi liberada sema-
nas depois.
Fizemos tim-tim com as três canecas. Plástico macio encostando
em plástico macio, quase inaudível. Em seguida tomamos um gole
cada um.
Aí chegou a hora de a gente elogiar o café, dizer algo inteligente.
Fazia parte. Para manter as aparências, apertei os olhos enquanto
deixava o café passear na boca, como algum entendedor de vinhos.
– Profundo… encorpado.
– Hum – disse Rick. – Senti o torrado, sim.
Jimmy fez um sinal de contentamento com a cabeça. E olhou pa-
ra nós com expectativa, como uma criança no 4 de julho. Esperava
mais.
– Poxa, isso é outra coisa, tem nada a ver com o pó – disse eu.
– Melhor café do ano – falou Rick.
Jimmy fez outro gesto com a cabeça.
– É só comprar um moedor e arranjar grãos de qualidade. Até
vocês conseguem fazer isso em casa.
Ele sempre dizia isso e sabia muito bem que um moedor de café
nunca passaria pelas nossas portas. Em casa era Emma quem fazia
o café. E ela preferia o solúvel. Ultimamente, ela tinha se aventura-
do com um negócio aguado que levava leite em pó e açúcar, mas eu
ficava com o preto.
– Vocês sabiam que a notícia mais antiga que se tem do café da-
ta de mil e quinhentos anos atrás? – perguntou Rick. – É uma histó-
ria da Etiópia.
– Não, nossa. É mesmo? – disse Jimmy.
– É, sim. O pastor Kaldi. Ele descobriu que as cabras se compor-
tavam de um jeito estranho depois de comerem umas frutinhas ver-
melhas. Elas não conseguiam dormir. Ele falou com um monge so-
bre aquilo.
– Havia monges na Etiópia mil e quinhentos anos atrás? – ques-
tionei.
– Como?
Ele me olhou confuso, os olhos um pouco vacilantes.
Jimmy interveio, agitando as mãos.
– Claro que havia monges.
– Não deviam ser cristãos… Quer dizer… Na Etiópia, isso não é
África, naquela época?
– Seja como for. O monge ficou interessado. Ele lutava para não
cair no sono durante as orações, por isso começou a despejar água
quente sobre as frutinhas e beber a mistura. E pronto! Café.
Jimmy fez um gesto de satisfação. Rick tinha pesquisado o as-
sunto, isso era uma homenagem a seu café.
Esvaziamos as canecas. O café esfriou depressa com o vento
primaveril. No último gole estava azedo e morno. Em seguida, cada
um foi até seu carro e rumamos para as colmeias.
Foi quando pus as mãos no volante que percebi o quanto estava
suando. Elas grudavam no couro, tive que secá-las na calça para
conseguir segurar direito, e a blusa estava grudada do mesmo jeito
nas costas. Eu não sabia o que nos esperava. Estava receoso.
•••
Depois de apenas umas centenas de metros por uma estrada de
terra esburacada, o carro trepidando nas minhas mãos, chegamos à
campina perto do rio Alabast.
Desci, coloquei as mãos nas costas para disfarçar o tremor.
Rick já estava pronto. Dava uns pulinhos. Queria meter mãos à
obra.
Jimmy saiu do carro. Apontou o nariz para o sol, farejou.
– Que temperatura será que temos agora? – Ele fechou os
olhos, parecendo não ter a intenção de se mover um milímetro, e
muito menos de começar o trabalho.
– Alta o suficiente. – Fui depressa em direção às colmeias. Aqui
era importante dar o exemplo. – É só começar.
Conferi o alvado, a entrada da primeira colmeia, uma de cor de
pistache. O tom destoava de modo gritante da grama que brotava
do solo abaixo dela. Estava cheia de abelhas, do jeito que deveria
estar. Removi a tampa. Tirei a lona de cima. Esperava o pior, mas
tudo estava bem lá embaixo. Não vi a rainha, mas havia um monte
de ovos e crias em todos os estágios. Seis quadros cheios. A col-
meia podia ficar do jeito que estava, aqui havia vida suficiente. Não
seria necessário juntá-la com outra.
Eu me virei para Jimmy. Ele fez um gesto na direção da colmeia
que tinha aberto.
– Tudo bem aqui.
– Aqui também – disse Rick.
Continuamos.
Conforme o sol esquentava e a gente abria e inspecionava uma
colmeia depois da outra, eu sentia como meu corpo ia secando, de
um jeito bom. As mãos ficaram secas e quentes, a roupa se soltou
das costas. É óbvio que havia problemas em alguns lugares. Algu-
mas colônias tinham que ser unidas, em outras não encontramos
nenhuma rainha. Mas nada além do normal. Parecia que o inverno
tinha sido gentil com elas. Como se o fedor da morte em massa lá
no sul não tivesse atingido a gente aqui em cima. E, também, pude-
ra. Elas eram bem tratadas. Não lhes faltava nada.
Na hora do almoço a gente se reuniu para um lanche. Cada um
se instalou em sua cadeira rangente de acampamento e comemos
sanduíches umedecidos pelo calor. Por algum motivo, ficamos os
três tão calados como se estivéssemos na igreja. Até Rick não se
conter mais.
– Vocês ouviram falar de Cupido e as abelhas?
Ninguém respondeu. Mais uma história. Senti que não estava
precisando disso.
– Já ouviram ou não? – perguntou ele de novo.
– Não – respondi. – Você sabe muito bem que não ouvimos falar
de Cupido e as abelhas.
Jimmy deu um largo sorriso.
– Cupido era uma espécie de deus do amor – disse Rick. – De
acordo com os antigos romanos.
– Aquele das flechas – falei.
– Ele, sim. Filho de Vênus. Ele parecia um grande bebê e anda-
va por aí com um arco e flechas. Quando as flechas atingiam as
pessoas, a paixão era despertada.
– Eca, não é meio pervertido ter um deus da paixão que parece
um bebê? – comentou Jimmy.
Eu ri, mas Rick me olhou feio.
– Vocês sabiam que ele mergulhava as flechas em mel?
– Não sabia disso, não.
– Nem tinha ouvido falar de Cupido – declarou Jimmy. – Até ago-
ra.
– Pois é, ele mergulhava as flechas em mel, que ele roubava –
disse Rick, esticando o corpo de um jeito que fez a cadeira chiar.
Demos risada daquele chiado inesperado e forte. Mas Rick não.
Ele quis continuar.
– Então, esse bebê ficava roubando o mel das abelhas. Levava
colmeias inteiras. Até que um dia… – Fez uma pausa calculada. –
Até que um dia, as abelhas ficaram de saco cheio e o atacaram. –
Ele deixou as palavras suspensas no ar. – E Cupido estava comple-
tamente nu, é claro, os deuses naquela época costumavam andar
nus. Ele foi picado no corpo inteiro. E aí quero dizer no corpo inteiro.
– De certa forma foi merecido – observei.
– Talvez. Mas lembre-se de que ele era apenas uma criancinha.
Ele correu para Vênus, sua mãe, para ser consolado. Ele chorava e
estava muito assustado. Como algo tão pequeno como uma abelha
podia causar tanta dor? Mas vocês acham que a mãe o consolou?
Não. Ela só riu.
– Riu? – perguntei.
– Isso mesmo. “Você também é pequeno”, disse ela. “Mas suas
flechas podem causar uma dor ainda maior do que a picada de abe-
lha”.
– Uau – falei. – E aí? O que aconteceu?
– Nada. Não tem mais nada – disse Rick.
Jimmy e eu ficamos olhando para ele.
– Essa foi a história toda? – perguntou Jimmy.
Rick encolheu os ombros.
– Sim. A história é só essa, mas está representada em muitas
pinturas. Vênus aparece em pé, parada. Ela é bonita, né, pele de
porcelana e belas formas. E também está nua. Do seu lado, o bebê
está chorando, com favos nas mãos, sendo picado pelas abelhas.
Senti calafrios.
– Que mãe, hein – comentou Jimmy.
– Põe mãe nisso – disse Rick.
Finalmente, ficou quieto de novo. Pisquei, tentando afastar da
mente a imagem do bebê gritando, inchado de tantas picadas.
O sol esquentava o pescoço. Era o que Emma chamava de um
lindo dia. Tentei sentir o quanto era lindo. E como era bom que o sol
brilhasse assim. Pois o sol significava mel. Pelo jeito, seria um bom
ano. Um bom ano daria dinheiro no banco. E o dinheiro no banco
poderia ser investido no apiário. Era assim que deveria ser. Afinal,
quem precisava da Flórida? Isso eu ia dizer para ela hoje à noite:
afinal, quem precisa da Flórida?
Tao

Era noite. Mas não estávamos dormindo. É claro que não estáva-
mos dormindo.
Inicialmente, achamos que íamos para nosso pequeno hospital
local no vilarejo, mas em vez disso fomos trazidos para o grande
hospital de Shirong. Ele cobria o distrito inteiro. Ninguém nos contou
por que fomos trazidos para cá. A ambulância mudou de direção no
meio do caminho e, como estávamos sozinhos na frente, não havia
ninguém a quem perguntar.
Fomos colocados num quarto para acompanhantes. Vez ou outra
escutávamos pessoas passando no corredor, mas a porta nunca foi
aberta. Parecia que o quarto seria só nosso.
Eu estava perto da janela. A vista dava para o pátio da recepção,
que ficava no centro das edificações, cinco braços brancos e baixos
que se estendiam para lados diferentes. Havia luz em algumas das
janelas, mas não em todas, longe disso. Uma ala inteira estava es-
cura. O hospital fora projetado para um número de habitantes muito
maior do que o distrito tinha hoje, fora construído para outra época.
De vez em quando, alguns veículos entravam no pátio, e até um he-
licóptero pousou ali. Não conseguia me lembrar da última vez que ti-
nha visto um helicóptero. Deve ter sido vários anos atrás, pois não
eram usados mais, gastavam muito combustível. O movimento dos
rotores agitava o ar, levantando os jalecos brancos da equipe, como
se fossem decolar. A porta do helicóptero se abriu, e dele saíram
uma mulher de tailleur e dois homens. Nenhum dos três parecia do-
ente, mas andaram a passos largos em direção à entrada principal,
dando a impressão de estarem com pressa.
Às vezes a chegada de alguma ambulância era acompanhada
de um alarme alto e estrondoso. Então apareciam muitas pessoas,
que ficavam a postos formando uma fila de recepção. E o paciente
era transferido em ritmo frenético do carro para dentro do hospital,
enquanto os enfermeiros e os médicos o atendiam. Foi assim quan-
do nós chegamos também. Mas não o vimos. Aconteceu tão rápido.
Wei-Wen já fora levado embora quando autorizaram nossa saída da
ambulância. Vimos as costas dos profissionais de saúde desapare-
cerem com uma maca. Ele devia estar deitado naquela maca, mas
não consegui enxergá-lo, as costas brancas o encobriram. Tentei
correr atrás deles, só queria ver meu filho. Mas a porta se fechou e
foi trancada.
Ficamos parados ali no pátio. Estiquei a mão para Kuan, mas ele
estava muito afastado de mim. Não consegui alcançá-lo. Ou talvez
ele não quisesse ser alcançado.
Em seguida a porta se abriu, e dois homens vestidos de branco
saíram. Médicos? Enfermeiros?
Puseram as mãos em nossos braços, compassivamente, e pedi-
ram que os acompanhássemos.
Eu os segui com todas as minhas perguntas. Onde estava Wei-
Wen? O que ele tinha? Ele estava ferido? Teríamos permissão para
vê-lo logo? Mas eles não tinham respostas. Só disseram que nosso
filho, disseram filho, talvez nem soubessem o nome, estava em bo-
as mãos. Daria tudo certo. Então, eles simplesmente nos puseram
aqui dentro e sumiram.
•••
Depois de ter ficado horas junto à janela, parada, finalmente ouvi a
porta se abrir. Uma médica entrou no quarto. Ela se apresentou co-
mo a dra. Hio, sem nos encarar, e fechou a porta atrás de si.
– Onde ele está? Onde está Wei-Wen? – perguntei. A voz vinha
de um lugar bem distante.
– Eles ainda estão atendendo seu filho – disse a mulher, aproxi-
mando-se um pouco mais.
Ela tinha cabelos grisalhos, mas o rosto era liso, não tinha ex-
pressão.
– Ele se chama Wei-Wen – falei. – Posso vê-lo?
Dei um passo em direção à porta. Ela tinha que me levar até ele.
Tinha que ser possível. Eu não precisava necessariamente estar a
seu lado, talvez ficasse atrás de um vidro, desde que pudesse vê-lo.
– Atendendo? O que você quer dizer com isso? – perguntou Ku-
an.
Ela ergueu a cabeça e olhou para ele. Não me encarou.
– Estamos fazendo tudo que podemos.
– Ele vai sobreviver, não vai? – perguntou Kuan.
– Estamos fazendo tudo que podemos – ela repetiu num tom su-
ave.
Kuan levou a mão à boca. Mordeu os nós dos dedos. Senti um
frio súbito me abalar.
– Temos que vê-lo – falei, mas as palavras eram tão fracas que
quase desapareceram.
Ela não respondeu, apenas sacudiu a cabeça levemente.
Não podia ser verdade. Devia haver algum engano. Tudo o que
tinha acontecido era um engano. Não era ele que estava deitado lá
dentro. Não Wei-Wen. Ele estava na escola, ou em casa. Era outra
criança, um equívoco.
– Vocês devem confiar em nós – disse a dra. Hio calmamente, e
se sentou. – E enquanto isso preciso que vocês me respondam al-
gumas perguntas.
Kuan fez que sim e se instalou numa cadeira. Continuei em pé.
Ela pegou papel e caneta e se preparou para fazer anotações.
– Seu filho já esteve doente antes?
– Não – respondeu Kuan obedientemente. E virou-se para mim.
– Ele já esteve doente? Você consegue se lembrar?
– Não. Somente otite – disse eu. – E gripe.
Ela escreveu algumas poucas palavras no bloco.
– Nada fora do comum?
– Não.
– Outras infecções respiratórias? Asma?
– Nada – falei, num tom duro.
A dra. Hio se virou para Kuan outra vez.
– Ele estava exatamente onde quando vocês o encontraram?
Kuan se inclinou para a frente, encolhendo-se, como se quisesse
se proteger daquelas perguntas.
– Entre as árvores, perto do pomar 458, ou talvez 457. Logo ao
lado da floresta.
– E o que ele estava fazendo?
– Estava sentado. Curvado. Estava pálido. Suava.
– E foi você quem o achou?
– Sim, fui eu.
– Ele estava com tanto medo – disse eu. – Ele estava apavora-
do.
Ela fez um gesto de compreensão.
– Ele tinha comido ameixas – continuei. – Tínhamos levado uma
lata de ameixas. Ele comeu todas.
– Obrigada – ela tomou mais uma nota em seu pequeno bloco.
Em seguida, virou-se de novo para Kuan, como se ele tivesse to-
das as respostas.
– Você acha que ele tinha entrado na floresta?
– Não sei.
Ela hesitou.
– O que vocês estavam fazendo lá?
Kuan inclinou-se para a frente outra vez. Lançou-me um olhar
inexpressivo, um olhar que não revelava o que estava pensando.
Senti a tensão aumentar, ficou difícil respirar. Não disse nada. Só
fixei os olhos nele, tentei implorar, fazer com que ele encobrisse a
verdade. Dissesse que fora nossa ideia ir até lá, talvez até ideia de-
le, quando na verdade era só minha.
Era por minha culpa que a gente estava lá fora.
Kuan não retribuiu meu olhar, só se virou para a médica e tomou
fôlego.
– Estávamos fazendo um passeio – disse ele. – Queríamos pas-
sar nosso dia de folga de um jeito agradável.
Talvez ele não colocasse a culpa em mim, talvez não me conde-
nasse. Continuei olhando para ele, mas ele não olhou em minha di-
reção. Não ofereceu nada, nenhuma resposta, mas tampouco veio
com acusações.
E talvez fosse assim. Talvez essa fosse a verdade. Estávamos
juntos nisso, juntos na ida para os pomares. Uma decisão tomada a
dois e consensualmente, um meio-termo, não apenas ideia minha.
A dra. Hio parecia não perceber tudo o que havia entre nós. Ape-
nas olhou de um para o outro, compassiva, mais do que puramente
profissional.
– Prometo voltar assim que tiver mais informações.
Dei um passo para a frente.
– Mas o que aconteceu? O que ele tem? – Minha voz tremia
agora. – Alguma coisa vocês têm que saber, não?
A mulher só sacudiu a cabeça lentamente. Não tinha uma res-
posta.
– Tentem descansar. Vou ver se consigo arranjar alguma comida
para vocês.
Ela saiu, nos deixando sozinhos outra vez.
•••
Havia um relógio na parede. O tempo dava saltos irregulares. Uma
vez olhei para o relógio e haviam se passado vinte minutos; outra
vez, apenas vinte segundos.
O tempo todo Kuan se encontrava no outro canto do quarto. On-
de quer que eu estivesse, ele estava longe de mim. Não era apenas
a sua vontade, era igualmente a minha. O obstáculo entre nós era
grande demais, intransponível. Diante disso, cada um de nós se
transformou numa camada de gelo tão fina como a que se formava
nas poças no outono e se despedaçava ao toque mais leve.
Tomei um gole de água. Deixou um gosto azedo na língua, era
água de algum tanque, água que sempre havia ficado parada.
Já tinha escurecido. Nenhum de nós acendeu a luz. Para que
luz? Uma hora se passara desde a visita da médica.
Conferi o corredor. Não havia ninguém atrás do balcão.
Continuei a andar, só encontrei portas trancadas. Encostei o ou-
vido numa delas, mas não escutei nada. O zumbido intenso do ar
condicionado abafava tudo.
De volta outra vez. Só ficar aqui. Esperar.
Ge orge

Chegamos às colmeias perto da fazenda dos Satis. Fiquei com


aquelas mais próximas da estrada principal. Consegui vislumbrar
Jimmy e Rick avançando sobre a planície. Eu estava cansado, mas
não exausto. Sabia que à noite cairia no sono como alguém que ti-
vesse sido desligado da tomada.
Estava prestes a retirar a tampa da última colmeia quando Gare-
th apareceu. Gareth Green.
Sua carreta vinha rugindo pela estrada, seguida por outras três.
Assim que me viu, ele parou. Parou mesmo. E as carretas atrás dele
foram obrigadas a esperar, a ficar ali com o motor ligado e o sol ba-
tendo bem no para-brisa. Só esperando por Gareth. Com certeza,
não era a primeira vez.
Ele saiu da cabine com um largo sorriso no rosto, óculos de sol
com lentes espelhadas e pele bronzeada. E um boné verde-limão
com a inscrição Clearwater Beach, Spring Break 2006. Comprado
numa liquidação lá no sul, talvez. Gareth gostava de coisas baratas,
mas que parecessem caras, pois também gostava de impressionar
os outros. Deixou a porta aberta e o motor ligado.
– E aí? Tudo em ordem aqui em cima?
Ele fez um gesto para mim e minhas colmeias, que estavam es-
palhadas a intervalos irregulares pela planície. Não havia muitas de-
las. Pareciam esparsas.
– Está tudo bem – disse eu. – Um inverno bom. Perdi poucas.
– Que bom. Que bom. Bom saber. A gente também. Pouco des-
perdício. – Gareth sempre usava a palavra desperdício para referir-
se às abelhas. Como se fossem plantas. Plantas alimentícias.
Ele indicou a paisagem em volta.
– Agora a gente vai se instalar aqui para uma temporada. Peras.
– Maças não?
– Não. Acabou sendo pera este ano. Consegui uma fazenda
maior. Tenho mais abelhas agora, sabe. A fazenda de Hudson é pe-
quena demais para a gente.
Não respondi. Fiz apenas outro gesto com a cabeça.
Ele também fez um gesto com a cabeça.
Então estávamos ali os dois fazendo gestos com a cabeça, en-
quanto nossos olhares se desviavam para lados opostos. Como du-
as figuras de brinquedo, daquele tipo que existia quando eu era pe-
queno, cujas cabeças eram soltas e se punham em movimento com
um pequeno empurrãozinho. E assim ficavam, tal como nós, sem
parar de mexer a cabeça e olhando para o nada.
Ele encerrou com um último gesto em direção às carretas.
– Estou na estrada faz tempo. Vai ser bom me ajeitar por aqui.
Segui seu olhar. Colmeias e mais colmeias, todas pré-fabricadas
e de isopor, estavam amarradas em cima das carretas e cobertas
por uma tela verde de malha fina. O ronco dos motores encobria o
zunido das abelhas.
– Califórnia, é de lá que estão chegando? – perguntei. – Quantos
quilômetros são de lá?
– Você está por fora. – Ele riu. – A Califórnia foi em fevereiro.
Amêndoas. A temporada acabou faz tempo. Agora estamos chegan-
do da Flórida. Limões.
– Ah, limões.
– E laranjas sanguíneas.
– Entendi.
Laranjas sanguíneas. As laranjas comuns não bastavam para
Gareth.
– Dirigi durante 24 horas – continuou. – É pouca coisa, em com-
paração com a viagem anterior. Da Califórnia para a Flórida. Aquilo
é dirigir pra valer. Só a travessia do Texas leva quase 24 horas. Vo-
cê tem ideia do tamanho daquele estado?
– Não. Não cheguei a pensar nisso.
– É grande. O maior estado que temos. Com exceção do Alasca.
– Certo.
As quatro mil colmeias de Gareth viajavam o ano inteiro, nunca
descansavam. O inverno, passavam nos estados do sul – pimentões
na Flórida, amêndoas na Califórnia, de volta para as laranjas na Fló-
rida, as laranjas sanguíneas, que pelo visto eram a novidade do ano
ali. Em seguida, rumavam ao norte para três ou quatro paradas du-
rante o verão. Maçãs ou peras, mirtilos, abóboras. Só em junho fica-
vam em casa. Aí ele fazia o balanço, como dizia, avaliava as per-
das, unia as colmeias, fazia os reparos.
– Aliás, encontrei Rob e Nellie lá embaixo – disse.
– É mesmo?
– Como é mesmo o nome do lugar, Gulf Village?
Então ele tinha ido até lá. Para o suposto paraíso.
– Gulf Harbors.
– Isso mesmo! Você também ouviu falar disso. Gulf Harbors, sim.
Vi a casa nova. Bem de frente para o canal. Arranjaram um jet ski.
Tom me levou para dar uma volta. Até vimos golfinhos, acredita?
– Nossa, golfinhos. Não peixes-boi?
– Não. Peixes-boi? O que é isso?
– Rob e Nellie se gabaram disso. De ter peixes-boi na porta de
casa.
– Nossa. Não. Não vi nenhum boi. De qualquer forma, os dois se
ajeitaram bem por lá. Ótimo lugar.
– É o que ouvi falar.
Uma das carretas atrás da dele acelerou o motor. Impaciente.
Mas Gareth ignorou. Era o jeito dele. Eu estava louco para sair dali.
Mas ele continuou com a maior calma, parecendo não querer termi-
nar nunca.
– E você? – Ele tirou os óculos e olhou para mim. – Vai fazer al-
gumas viagens?
– Vou, sim – respondi. – Viagens não faltam. Vou partir daqui a
algumas semanas. Maine.
– Mirtilos, como sempre?
– Isso. Mirtilos.
– Então a gente se vê, talvez. Também estou com Maine esse
ano.
– É mesmo? Então a gente se vê. – Tentei forçar um sorriso.
– White Hill Farm, sabe onde fica? – Ele coçou a cabeça por bai-
xo do boné, o verde do tecido refletiu em sua mão.
– Não – falei. Era a maior fazenda das redondezas. Todo mundo,
até a criança mais nova, sim, até cada cachorro, sabia onde ficava.
Ele sorriu, não respondeu, devia saber que eu estava mentindo.
Então, finalmente, ele se virou para a carreta outra vez, fez uma
continência com a mão no boné, piscou com desenvoltura para mim
e se sentou na cabine.
Quando foram embora, a nuvem de poeira ofuscou o sol.
Gareth e eu estudamos juntos. Ele era um sujeito frouxo. Comia
demais, não exercitava o corpo, sofria muito com eczemas. As me-
ninas não tinham interesse por ele. Nem nós, meninos. Por algum
motivo ele se apegara a mim. Talvez por eu não ter coragem de hu-
milhá-lo o tempo todo. Devo ter percebido que havia uma pessoa lá
dentro. E minha mãe ficava sempre no meu pé. Você deve tratar to-
dos bem, especialmente aqueles que têm poucos amigos. Gareth
pertencia claramente a essa categoria, aquela de gente com poucos
amigos. Minha mãe era assim. Impossível ser um canalha com a
voz dela sempre na cabeça. Minha mãe até me forçou a convidar
Gareth para ir a nossa casa algumas vezes. Ele achava o máximo
jantar com a gente. Meu pai nos levava para ver as abelhas. Gareth
não parava de fazer perguntas. Ficava muito mais interessado do
que eu, ou pelo menos do que eu tinha dado a impressão de ficar. E
obviamente meu pai explicava tudo com prazer.
No colegial, a gente felizmente perdeu o contato. Ou melhor, foi
mais fácil manter distância. Tive a impressão de que Gareth se dei-
xou absorver pela escola e pelo trabalho. Ele tinha um emprego de
meio período na loja de ferragens, começou a fazer um pé-de-meia
já naquela época. Com o tempo, os quilos a mais foram embora, e
pelo visto ele comprou uma daquelas lâmpadas de solário, o que
ajudava a amenizar o eczema e deixava sua pele sempre levemente
dourada. Ficava bem, tenho que admitir.
Além do mais, ele conseguiu arranjar uma menina bem bonita.
Depois do colegial, adquiriu um pedaço de terra e não é que come-
çou a mexer com apicultura? O negócio ia muito bem. Aparente-
mente, Gareth levava jeito. Ele expandiu a atividade, aumentou o
número de colmeias. Teve filhos, mais bonitos do que Gareth tinha
sido, nada de eczema neles. E agora ele já virara um figurão. Um
dos maiores da cidade. Aos domingos, passeava com a família em
um grande SUV alemão. Tinha se tornado membro do Clube de
Campo, pagava 850 dólares por ano para que a família inteira pu-
desse ficar lá no bate-bola, debaixo de sol e de chuva. Pois é, eu ti-
nha conferido o preço.
Ele também investiu na construção da nova biblioteca. Uma pla-
ca lustrosa de bronze informava a todos que se dessem ao trabalho
de ler, e muitos se davam a esse trabalho, que a comunidade local
era profundamente grata à Green’s Apiaries por sua generosidade
na realização daquele projeto.
A vingança dos nerds, é disso que se tratava. E nós, que não tí-
nhamos sido especialmente nerds na época da escola, mas popula-
res na medida certa, fomos obrigados a ficar na plateia vendo como
Gareth nadava em mais grana a cada ano que passava.
Pois todos que mexiam com abelhas sabiam que o dinheiro de
verdade não estava no mel, os ativos de Gareth não vinham do mel.
Os grandes lucros estavam na polinização. A agricultura não tinha
chance sem as abelhas. Quilômetros de amendoeiras ou arbustos
de mirtilo em flor não valiam nada sem as abelhas. Delas dependia
a transferência do pólen de uma flor para a outra. As abelhas eram
capazes de cobrir vários quilômetros num dia só. Milhares de flores.
Sem elas, as flores eram inúteis. Bonitas de ver enquanto duras-
sem, nenhum valor a longo prazo. As flores murchavam, morriam,
sem dar frutos.
Gareth tinha apostado na polinização desde o início. Suas abe-
lhas sempre foram colônias itinerantes. Estavam sempre na estrada.
Li que isso as estressava, não lhes fazia bem, mas Gareth sustenta-
va que elas não percebiam nada, que estavam tão bem quanto as
minhas.
Talvez Gareth tenha apostado nessa área justamente por ter en-
trado no ramo vindo de fora. Compreendeu para onde as coisas es-
tavam rumando, que os pequenos apiários, como o meu próprio, ad-
ministrados mais ou menos do mesmo jeito por muitas gerações,
não faziam entrar dinheiro no caixa. Não faziam antes e com certeza
não fariam agora. Cada pequeno investimento era um esforço, e a
gente vivia à mercê do amistoso banco local, que nem sempre era
tão rigoroso com os prazos de pagamento das prestações. Confiava
na capacidade das abelhas de fazer seu trabalho ano após ano.
Confiava em mim mesmo quando dizia que a meleca aguada e ba-
rata da China, que era vendida como mel e chegava em quantida-
des maiores a cada ano, não tinha importância, que os preços do
mel se manteriam no nível de sempre, que as perspectivas de ga-
nhos estáveis eram boas, que o clima cada vez mais imprevisível
não tinha impacto na nossa atividade, que poderíamos garantir uma
boa venda no outono. Que o dinheiro ia entrar com facilidade, assim
como antes.
Era tudo mentira. E por isso eu precisava reestruturar a opera-
ção. Ficar como Gareth.
William

– Quer que eu faça para você? – perguntou Thilda. Ela estava perto
da porta com os instrumentos de barbear e um espelho nas mãos.
– Você pode se cortar com a navalha – respondi.
Ela fez que sim. Sabia tão bem quanto eu que nunca tivera muita
firmeza nas mãos.
Um pouco mais tarde, ela entrou com uma bacia de rosto, sabo-
nete e escova. Colocou tudo na mesa de cabeceira, que em seguida
encostou na cama, de modo que proporcionasse um bom ângulo de
trabalho. Por fim, pôs o espelho ali. Ficou aguardando enquanto eu
o erguia. Será que estava receosa de minha reação?
Era um homem diferente que olhava para mim. Eu deveria ter fi-
cado assustado, mas não fiquei. Pois o aspecto desleixado, rechon-
chudo, tinha sumido. Foi-se o comerciante prazenteiro. Aquele que
retribuía meu olhar era outro, alguém experimentado. Uma ideia pa-
radoxal, já que eu havia ficado de cama durante meses e não tivera
outra experiência além de meus pensamentos desprezíveis. Mas a
imagem refletida no espelho não disse nada disso. O homem ali
dentro lembrava um marinheiro do Pacífico que retorna depois de
meses no mar, ou talvez um mineiro que sobe à superfície depois de
uma longa jornada no subterrâneo, ou um cientista que volta para
casa após uma longa e dramática viagem na selva. Era um homem
marcante, esbelto, curtido com elegância. Ele era vida vivida.
– Você tem uma tesoura?
Thilda olhou-me confusa.
– Está comprida demais para eu começar com a navalha.
Ela fez um gesto indicando que entendera.
Logo retornou com uma tesoura de costura. Era desajeitadamen-
te pequena, feita para delicados dedos femininos, mas consegui cor-
tar boa parte da barba desgrenhada.
Lentamente, mergulhei o pincel na água e esfreguei-o no sabão.
Formou-se uma espuma com aroma fresco do zimbro.
– Onde está a navalha? – Olhei em volta.
Ela permanecia parada com as mãos fechadas sobre o avental e
os olhos fitos no chão.
– Thilda?
Enfim, estendeu-me a navalha que estava em seu bolso. Ela tre-
mia levemente na mão que a segurava, como se Thilda não estives-
se totalmente convencida de que deveria soltá-la. Peguei-a e come-
cei a fazer a barba. A lâmina raspou na pele, não havia sido amola-
da.
Thilda continuou a me observar.
– Obrigado. Você pode sair agora – disse eu a ela.
Mas ela permaneceu. Os olhos estavam em minha mão, na na-
valha. E de repente entendi o que a preocupava. Baixei a mão.
– Não é um sinal de sanidade eu estar fazendo a barba?
Ela precisou refletir, como de costume.
– Estou muito agradecida porque você está com disposição para
isso – respondeu por fim, mas permaneceu na mesma posição.
Se fosse para fazer algo assim, a questão seria encontrar um
método que pudesse dar a impressão de uma morte completamente
normal. Dessa forma, eu pouparia Edmund. Eu tinha diversos proce-
dimentos em mente, tive bastante tempo para concebê-los, mas era
óbvio que Thilda não estava ciente disso. Ela apenas supôs que, se
me deixasse sozinho num quarto com uma ferramenta pontuda, eu
agarraria a oportunidade como se fosse a única. Este era o tamanho
de sua simplicidade.
Se eu quisesse passar uma borracha em tudo, teria saído na ne-
ve há tempos, usando apenas uma camisola. Teria sido encontrado
morto de frio no dia seguinte, com a barba e os cílios cobertos de
gelo, e a morte seria exatamente isto: o comerciante de sementes
perdeu-se no escuro e morreu de frio, pobre coitado.
Ou um cogumelo. A floresta estava cheia deles, e no outono pas-
sado alguns foram parar numa gaveta da cômoda do canto esquer-
do da loja, devidamente trancada com uma chave à qual eu era o
único a ter acesso. O efeito do cogumelo era rápido, em poucas ho-
ras a pessoa ficava mole e letárgica, depois passava para um esta-
do de inconsciência, e então se seguiam alguns dias em que o orga-
nismo se degradava, antes de entrar em colapso. Um médico atri-
buiria a morte à falência múltipla dos órgãos. Ninguém saberia que
fora autoinfligida.
Ou afogamento. O rio atrás do terreno corria impetuoso até no
inverno.
Ou o canil de Blakes, e os sete cães bravios que rosnavam na
cerca.
Ou o despenhadeiro íngreme na floresta.
As possibilidades eram muitas, mas agora eu estava aqui ras-
pando a barba e não tinha intenção de recorrer a nenhuma delas,
nem à navalha que tinha na mão. Eu me levantara e nunca mais co-
gitaria tais ações.
– Não se prenda por mim – disse eu a Thilda. – Com certeza vo-
cê tem afazeres lá fora.
Apontei para a porta, como uma referência para o resto da casa
e suas intermináveis exigências: cozinhar, espanar, varrer e esfregar
roupas, pisos e tudo o mais que as mulheres fazem questão de
manter sempre limpo.
Ela fez que sim e finalmente saiu.
Houve momentos em que tive a impressão de que Thilda ficaria
mais do que grata se eu pegasse uma navalha ou talvez, de prefe-
rência, uma faca de trinchar, a enfiasse no pescoço e deixasse o
sangue jorrar da aorta até não sobrar outra coisa de mim além de
uma pele vazia, um casulo abandonado no chão. Thilda nunca o dis-
sera de forma direta, mas tanto ela como eu amaldiçoávamos aque-
le raio de sol que incidira justamente no nariz dela no salão comuni-
tário, há mais de dezessete anos. Poderia ter incidido em tantos ou-
tros, ou em nenhum.
Eu tinha 25 anos, chegara ao vilarejo cerca de um ano antes.
Não sei se ocorrera algo com o clima naquele mês, talvez um vento
seco tivesse soprado pela região por muito tempo, tornando os lá-
bios de Thilda vermelhos e ressecados, o que a levava a umedecê-
los constantemente com saliva. Ou talvez ela tivesse mordido os lá-
bios às escondidas, assim como as moças fazem para ter bocas se-
dutoras. De qualquer forma, naquele dia, não reparei de modo al-
gum que ela praticamente não tinha lábios. Só me lembro que esta-
va no meio da palestra quando a avistei.
Havia-me preparado muitíssimo bem. Em primeiro lugar, por cau-
sa de Rahm. Meu maior desejo era impressioná-lo tremendamente.
Sabia que tivera sorte, tantos de meus colegas da universidade fo-
ram incumbidos de tarefas muito menos interessantes. Como re-
cém-formado, não poderia fazer muitas exigências. Ficar sob a tute-
la de um cientista de renome era a melhor oportunidade que alguém
poderia ter para ser bem-sucedido. Nessa fase de minha vida,
Rahm era a única pessoa que importava. Desde o momento em que
passei pela soleira de seu gabinete de estudo, eu estava determina-
do: ele seria minha relação mais importante. Não apenas minha al-
ma gêmea e meu mentor, mas também meu pai. Eu não tinha mais
contato com meu próprio pai, tampouco desejava tê-lo, pelo menos
era o que repetia para mim mesmo. Mas sob a tutela do professor
eu cresceria e me desenvolveria. Ele me transformaria naquele que
eu era de verdade.
Minha falta de experiência também me instigou a fazer preparati-
vos especialmente meticulosos. De fato, nunca tinha dado uma pa-
lestra. Quando Rahm pediu minha colaboração para a tarde temáti-
ca de zoologia que estava organizando, aceitei, mas me pareceu al-
go insignificante. Era um evento modesto, para os habitantes de
Maryville. Com o passar dos dias, porém, aquilo tomou uma dimen-
são enorme para mim, crescendo de tal forma até se transformar
numa situação quase fora de controle. Como seria a sensação? Fi-
car ali na frente de tantas pessoas, todas ouvindo minha voz, a
atenção voltada para mim? Embora os moradores do vilarejo fos-
sem pessoas mais simples – mais, digamos, do que meus pares na
universidade –, tratava-se, de qualquer forma, de uma conferência
científica. Será que eu estaria à altura de realizar tal tarefa?
E o que me encheu de um temor reverente não foi só o fato de
que seria a primeira apresentação da minha vida, mas o que o even-
to poderia significar para o público. As ciências naturais representa-
vam uma área desconhecida para os moradores do vilarejo. A visão
que tinham do mundo baseava-se na Bíblia, o único livro em que
confiavam. Percebi que teria a possibilidade de mostrar algo mais a
eles, de apresentar as ligações entre o pequeno e o grande, entre a
força criadora e a Criação. Eu teria a oportunidade de abrir seus
olhos e mudar sua visão do mundo, sim, da própria existência.
Mas como mostrar tudo isso da melhor forma? Escolher o tema
tornou-se uma tarefa desmedida, que me fez andar em círculos.
Praticamente qualquer assunto era interessante se abordado do
ponto de vista das ciências naturais. Os frutos da terra, a descoberta
das Américas, as estações do ano. Quantas opções!
No final, foi Rahm quem decidiu tudo para mim. Ele pôs sua mão
fria sobre a minha, sorrindo de meu anseio confuso.
– Fale sobre o microscópio – disse. – Sobre as possibilidades
que ele nos deu. A maioria deles nem sabe o que é esse instrumen-
to.
Foi uma ideia brilhante, eu mesmo nunca a teria concebido. As-
sim, aderi a ela.
O dia chegou, com aquele vento seco e o sol brilhando no céu.
Não sabíamos ao certo quantas pessoas viriam. Vários dos morado-
res mais velhos tinham se manifestado contrários ao evento. Afirma-
vam que o que estávamos fazendo era uma blasfêmia, que não ha-
via necessidade de outros livros além da Bíblia. Mas pelo visto a cu-
riosidade incitara a maioria, pois o salão comunitário logo estava tão
cheio que o calor subiu a temperaturas de verão, embora o frio de
abril reinasse lá fora. Era uma raridade a pequena Maryville sediar
eventos como este.
Fui o primeiro a falar, Rahm quis que fosse assim. Talvez dese-
jasse me exibir, como se eu fosse seu próprio filho recém-nascido,
talvez ainda tivesse orgulho de mim naquele momento. Depois de
alguns longos minutos, com minha voz a tremer no mesmo ritmo
dos joelhos, encontrei a segurança. Apoiei-me nas palavras que fo-
ram tão meticulosamente preparadas. Descobri que tinham alcance,
que não perdiam sua credibilidade ao sair do papel e se propagar no
ar entre mim e a plateia. Elas atingiam seu alvo.
Iniciei com uma rápida delimitação histórica, falando sobre a len-
te convergente que entrou em uso já no século XVI e, em seguida,
sobre o microscópio óptico composto, descrito por Galileu Galilei em
1610. Para mostrar a importância do microscópio na prática, eu ti-
nha decidido falar sobre uma pessoa específica. Escolhi o zoólogo
holandês Jan Swammerdam. Ele viveu no século XVII e nunca foi
devidamente reconhecido por seus contemporâneos, era pobre e
solitário. Para a posteridade, porém, foi um verdadeiro monumento
da história natural, talvez precisamente por vincular a Criação à for-
ça criadora com tanta clareza.
– Swammerdam – disse eu, passando os olhos pela plateia. –
Nunca se esqueçam de seu nome. Seu trabalho nos mostrou que os
diversos estágios da vida de um inseto, ovo, larva e pupa, de fato
são formas diversas do mesmo inseto. O próprio Swammerdam de-
senvolveu um microscópio que lhe permitiu estudar os insetos de
perto. Durante seus estudos, elaborou desenhos que se diferencia-
ram de tudo que já tinha sido visto.
Com um gesto dramático, que fora muito ensaiado, apresentei
uma ilustração que mandara pendurar atrás de mim.
– Eis aqui a representação da anatomia da abelha, tal como
Swammerdam a desenhou em sua Biblia Naturae.
Permiti-me uma pausa retórica, deixei o olhar pousar sobre o pú-
blico, enquanto assimilava os desenhos extraordinariamente deta-
lhados. Naquele exato momento, o sol primaveril, em sua passagem
sobre o telhado do salão comunitário, tinha atingido a janela de meu
lado esquerdo. Um único raio entrou, expondo as manchas gorduro-
sas de um dos vidros e os grãos de pó rodopiando no ar. Era evi-
dente que o salão não vinha sendo limpo com a devida frequência.
Alcançando uma das fileiras de bancos, o raio de sol atingiu a pes-
soa que estava sentada na ponta esquerda, ao lado de duas ami-
gas: Thilda.
Posteriormente, entendi que aquilo de modo algum fora tão sur-
preendente para ela como o fora para mim. Era óbvio que eu estava
na mente de muitas moças, o jovem naturalista formado na capital,
com vestes modernas, eloquente, de estatura um pouco baixa tal-
vez, não o mais atlético – para falar a verdade, eu já lutava contra
uma obesidade incipiente. Porém, o que me faltava em termos de
vantagens físicas eu compensava em termos intelectuais. Os óculos
no nariz, por si só, eram testemunhas disso. Eu costumava posicio-
ná-los um pouco para baixo, de modo que pudesse expor meu olhar
sábio por cima da armação. Quando os adquiri, gastei uma noite in-
teira para encontrar a posição perfeita, o ponto exato no nariz onde
ficariam firmes e ao mesmo tempo permitiriam que eu olhasse dire-
tamente nos olhos das pessoas, sem a interferência das pequenas
lentes ovais, pois bem sabia que as lentes côncavas faziam os olhos
parecer menores. Também sabia que muitas moças achavam minha
vasta cabeleira atraente. Usava o cabelo no comprimento médio pa-
ra valorizá-lo ao máximo. Talvez Thilda já estivesse de olho em mim
há tempos, avaliando-me, comparando-me aos outros jovens do vi-
larejo, percebendo o respeito com que me tratavam, as reverências
profundas e os olhares humildes, tão diferente do que se observava
com os homens de seu círculo. Estes eram todos grosseiros, com
certeza, tanto no trajar quanto na conduta, e eram tratados de forma
correspondente.
Thilda usava sua melhor roupa domingueira, alguma coisa azul,
um vestido, ou talvez uma blusa, que tinha um caimento bonito so-
bre o busto. De cada lado do rosto arredondado, os cachos desciam
em direção aos ombros, o penteado num padrão que ela comparti-
lhava com todas as amigas e que também poderia ser visto em mui-
tas mulheres casadas – embora o bom senso indicasse que elas de-
vessem ter superado essas futilidades estéticas. No entanto, não fo-
ram os cachos nem a roupa que me chamaram a atenção. O que o
raio de sol solitário atingiu ao atravessar o ar pesado do salão co-
munitário foi um nariz excepcionalmente reto e bem proporcionado,
como uma ilustração de um livro de anatomia. Era um nariz clássico,
e logo fiquei com vontade de desenhá-lo, estudá-lo. Um nariz cujo
formato estava em absoluta sintonia com a função. Mas, como fica-
ria evidente mais tarde, lamentavelmente não havia essa sintonia no
caso de Thilda, já que seu nariz vivia vermelho e escorrendo por
causa de uma rinite eterna. Mas naquele dia ele somente reluzia,
nem brilhante nem vermelho, muito interessado em mim e em mi-
nhas palavras, e não consegui tirar os olhos dele.
A pausa retórica alongou-se demais. O público mexeu-se inquie-
to e ouvi um ruído longo e afetado de pigarro vindo de Rahm, que
estava atrás de mim. A ilustração ainda estava pendurada ali, sem
ter sido comentada.
Apressei-me a apontar para ela.
– Cinco anos inteiros Swammerdam gastou para estudar a vida
na colmeia. Tudo feito pelo microscópio, que lhe deu a possibilidade
de captar cada pequeno detalhe. Aqui, sim… Aqui vemos os ovários
da rainha. Por meio de seus estudos, Swammerdam constatou que
uma única rainha põe os ovos para os três diferentes tipos de abe-
lha: zangões, operárias e novas rainhas.
O público ficou olhando para mim, alguns se contorciam, nin-
guém parecia entender.
– Isso foi revolucionário naquele tempo, pois muitos até então
acreditaram que era um rei, ou seja, um macho, que governava a
colmeia. No entanto, com verdadeiro fascínio, com enorme entusias-
mo, Swammerdam dedicou-se ao estudo dos órgãos reprodutores
do macho da abelha. E aqui podem ver o resultado. – Peguei outra
ilustração.
– Estas são as genitálias do macho.
Havia rostos inexpressivos diante de mim.
A plateia mexeu-se inquieta. Alguns viraram os olhos para o co-
lo, a fim de examinar detalhadamente um fio solto de tecido no vesti-
do, outros mostraram um interesse súbito pelas formações irregula-
res das nuvens no céu, que podiam avistar através das janelas.
Dei-me conta de que provavelmente nenhum deles sabia o que
eram ovários ou genitálias e senti uma necessidade urgente de que
entendessem. Chegou então o momento da palestra que nunca se
tornaria parte da história que Thilda contava a nossos filhos e tam-
pouco seria mencionado entre mim e ela. Durante anos, a mera lem-
brança do que aconteceu me fez arder de vergonha.
– Os ovários são as glândulas genitais… Quer dizer, o sistema
reprodutor feminino. Neles são produzidos os ovos… que se trans-
formam em larvas.
Assim que as palavras saíram entendi no que tinha embarcado,
mas não podia parar agora.
– E as genitálias, por sua vez, são a mesma coisa que, hum… os
órgãos reprodutores do macho da abelha. São essenciais no pro-
cesso de, hum… criar novas abelhas.
Um murmurar de espanto passou pela plateia tão logo se tornou
claro o que os desenhos representavam. Por que eu não tinha pre-
visto o efeito que esse tema teria? Para mim, era uma parte óbvia
das ciências naturais, mas para eles era assunto pecaminoso, sobre
o qual se guardava segredo, sobre o qual jamais se falava. A seu
ver, minha paixão por esse assunto era imunda.
Entretanto, ninguém saiu, ninguém me interrompeu. Se pelo me-
nos alguém tivesse feito isso… Somente alguns ruídos sinalizavam
que tudo estava dando errado: traseiros que se mexiam nos bancos
de madeira, botas que raspavam no chão, pigarros fracos. Thilda
baixou a cabeça. Será que estava corando? Suas amigas entreolha-
ram-se, mal disfarçando a risada, e eu, a besta que sou, continuei,
na esperança de que o resto da palestra deslocasse a atenção das
palavras que acabara de proferir para aquilo que de fato importava.
– Três páginas inteiras ele dedicou a isso na obra de sua vida, a
Biblia Naturae, ou a Bíblia da Natureza. Aqui vemos algumas de su-
as ilustrações incrivelmente detalhadas das geni… genitálias do
zangão, o macho da abelha. – A palavra pesava na boca. – Os dife-
rentes estágios, como se abrem, se desenvolvem e hum… intumes-
cem plenamente na maturidade. – Será que eu de fato disse isso?
Um olhar de relance para o público me confirmou que sim. Forcei os
olhos a voltarem para o texto e continuei lendo, embora só ficasse
cada vez pior.
– O próprio Swammerdam comparou-as a… monstros marinhos
exóticos.
A essa altura, elas, as amigas, já estavam dando risadinhas.
Não tive coragem de olhar para elas, preferindo pegar a obra de
Swammerdam e citar as palavras incríveis sobre as quais eu mesmo
tinha ponderado tanto. Agarrei-me ao livro, torcendo para que os ou-
vintes finalmente percebessem a verdadeira paixão.
– Se o leitor olhar para a estrutura admirável deste órgão, desco-
brirá arte da mais alta qualidade e compreenderá que Deus, até no
menor inseto, até nos órgãos minúsculos deste, esconde milagres
arrebatadores.
Atrevi-me a erguer os olhos e ficou muito óbvio, absolutamente
claro, que eu fora derrotado, pois os rostos que olhavam para mim
estavam, na melhor das hipóteses, abalados, alguns até furiosos. E
enfim compreendi, captei plenamente o que eu tinha feito. Não con-
seguira lhes falar sobre as maravilhas da natureza, tinha ficado aqui
no palco discursando sobre as maiores obscenidades e, ainda por
cima, misturando Deus naquilo tudo.
Não contei o resto da história: que o pobre Swammerdam nunca
foi capaz de qualquer outra coisa depois disso, que sua carreira ter-
minou. O estudo das abelhas lançou-o num turbilhão de ruminações
religiosas, pois a perfeição do inseto assustou-o, e ele se viu força-
do a lembrar a si mesmo, constantemente, que só Deus, e não es-
sas pequenas criaturas, era digno de suas investigações, seu amor
e sua atenção. Em face da abelha, era difícil acreditar que houvesse
algo mais perfeito, nem mesmo Deus. Os cinco anos em que prati-
camente viveu numa colmeia destruíram-no para sempre.
Naquele momento, percebi que se contasse isso eu não seria
apenas ridicularizado, mas odiado, pois ninguém desafia o todo-po-
deroso.
Dobrei o manuscrito enquanto o rubor subia-me às faces e trope-
cei como um menino ao descer do palco. Rahm, a quem eu quisera
impressionar, mais do que a qualquer outra pessoa, estava com o
rosto congelado num sorriso estranho, visivelmente lutando para
conter uma risada. Ele me fez lembrar meu pai, meu pai de verdade.
Apertei a mão de várias pessoas que tinham ouvido a palestra.
Muitas não sabiam o que dizer, e notei os cochichos à minha volta,
ora acompanhados de risadinhas incrédulas, ora denotando raiva e
choque. O rubor espalhou-se do rosto para a espinha dorsal e se
propagou pelas pernas, que foram tomadas por um tremor incontro-
lável. Procurei, em vão, disfarçar. Rahm deve ter notado, pois colo-
cou uma das mãos em meu ombro e disse baixinho:
– Estão presos às trivialidades. Nunca serão como nós.
O consolo não ajudou, só ressaltou a diferença entre mim e ele.
Rahm jamais escolheria exemplos que ofendessem os ouvintes. En-
tendia o que poderiam suportar, sabia lidar com o equilíbrio entre
nós e eles, sabia que o mundo da ciência e o do povo eram espaços
distintos. Como para frisar o que tinha dito e minha evidente falta de
compreensão do público, ele de repente riu. Foi a primeira vez que
ouvi sua risada. Era breve e baixa, mas tive um sobressalto mesmo
assim. Virei-me para o outro lado, não suportei olhar para ele. A ri-
sada pesava demais dentro de mim, esvaziava todo o consolo, ma-
chucava tão intensamente que dei um passo para me afastar dele.
E ali estava ela.
Talvez tenha sido a fraqueza, a vulnerabilidade mal escondida
em mim naquele dia que motivara Thilda a se expor. Eu já não era
apenas o forasteiro misterioso que se ocupava com algo sublime e
incompreensível na casa do professor. Pois ela não riu. Ofereceu-
me a mão enluvada, fez uma reverência e agradeceu-me pela
“hum… estupenda” palestra. Um pouco atrás, as amigas continua-
vam a dar risadinhas. Mas o ruído delas desapareceu para mim,
elas desapareceram para mim. Nem vi Rahm, somente a mão. Se-
gurei-a por muito tempo na minha, senti como o calor da pele irradi-
ou através da luva, como a força dentro de mim retornou por meio
dessa mão. Ela não zombou nem riu de mim, e eu me senti infinita-
mente grato. Os olhos brilhavam em cima do belo nariz. Eram um
tanto afastados um do outro e pareciam estar bem abertos para o
mundo e para a vida, mas sobretudo para mim. Imagine, para mim!
Nunca antes uma moça tinha me olhado assim. Era um olhar que
deixava transparecer que ela estava disposta a se entregar por com-
pleto, a me dar tudo, e só a mim. Pois só para mim olhou desse jei-
to, para mais ninguém ali. Essa ideia causou novo tremor em mi-
nhas pernas, o que me levou a olhar para baixo. Foi como cortar um
cordão, era fisicamente dolorido, e eu não desejava outra coisa se-
não retomar esse contato visual e esquecer o mundo em volta.
Durante meses o povo do vilarejo não parou de falar sobre mi-
nha apresentação. Se antes me cumprimentavam unicamente com
respeito e deferência, agora várias pessoas, sobretudo os homens,
apertavam minha mão com mais força, davam-me tapinhas nas cos-
tas e falavam comigo com meios sorrisos e ironia mal velada. As pa-
lavras intumescer plenamente, a Bíblia da Natureza e monstros ma-
rinhos exóticos perseguiram-me durante anos. Da mesma forma,
ninguém jamais se esqueceu de Swammerdam, e seu nome passou
a ser usado em muitos e distintos contextos. Quando os cavalos se
acasalavam no prado, aquilo era descrito como uma “atividade
swammerdamiana”. Homens bêbados que precisavam se aliviar no
botequim de noite diziam que só dariam uma saída para “arejar o
swammerdam”. E a especialidade da padaria local, uma empada
alongada recheada de carne, de repente ficou conhecida por
“swammerpada”.
Por incrível que pareça, isso me incomodou pouco. De certa for-
ma, o declínio de minha posição social estava sendo bem compen-
sado. Pelo menos foi assim que pensei ao me casar com Mathilda
Tucker alguns meses depois da palestra. No momento em que des-
cemos do altar da igreja, eu já sabia havia tempo que seus lábios
eram estreitos, tipicamente britânicos. Tinha-me atrevido a um beijo
ao pedi-la em casamento e, para meu pesar, descobri que de modo
algum possuíam a capacidade de se abrir como uma flor grande, se-
creta e úmida, ou talvez um monstro marinho, como eu fantasiara
nas altas horas da noite. Eram tão secos e duros como pareciam. E
o nariz, a bem da verdade, era um tiquinho grande demais. Mesmo
assim, senti um ardor nas faces quando nosso matrimônio foi aben-
çoado pelo padre. Afinal de contas, eu estava me casando e a ponto
de assumir a vida adulta de verdade. Não percebia, naquele mo-
mento, que as imposições dessa vida adulta impossibilitariam a mai-
oria de meus sonhos, obrigando-me a me afastar do mundo da ciên-
cia. Pois Rahm tinha razão. Embora eu mantivesse alguns trabalhos
científicos sem grande convicção, havia optado por abandonar mi-
nha paixão pela disciplina.
Mas eu estava seguro, completamente convencido, de que Thil-
da era a pessoa certa para mim. Seu comedimento me fascinava,
ela sempre pensava bem antes de responder a uma pergunta. Seu
comportamento orgulhoso, idem, eu admirava o modo como ela de-
fendia suas opiniões, era uma qualidade raras vezes encontrada em
jovens mulheres. Só mais tarde, embora não muito mais tarde, ape-
nas alguns meses após o casamento, entendi que na realidade ela
avaliava cada resposta durante tanto tempo porque não era especi-
almente inteligente. E reconheci o orgulho pelo que de fato era: uma
teimosia invencível. Pois ficaria evidente que ela nunca cedia. Ja-
mais.
No entanto, o desejo de me casar com ela tinha uma motivação
mais importante, que eu não quis admitir sequer para mim mesmo.
Só agora, em meu leito de doente, fui capaz de aceitá-la, reconhe-
cer que eu ainda era tão primitivo e voraz como uma criança de dez
anos: o fato de que ela era um corpo vivo, macio. Que ela era mi-
nha, que seria acessível para mim. Que muito em breve eu poderia
achegar-me a seu corpo, deitar-me em cima dele, impulsionar-me
contra ele, como se ele fosse terra bruta e úmida.
Só que essa parte também não saiu como eu tinha sonhado. Fo-
ra antes uma ocorrência fria e apressada, com botões e fitas em ex-
cesso, barbatanas de espartilho, meias de lã que pinicavam e um
cheiro acre de axilas. Mesmo assim, fui atraído para ela com o ins-
tinto de um animal, de um zangão. Vezes sem conta, pronto para a
procriação, embora nunca tivesse desejado descendentes. Assim
como o zangão, sacrifiquei a vida pela procriação.
Tao

– Estão fazendo o que podem. Já falaram que estão fazendo o que


podem.
Kuan colocava folhas de chá no bule que uma enfermeira acaba-
ra de nos dar. Com mãos calmas, ele se serviu de uma xícara. Co-
mo se estivéssemos em casa, como se fosse um dia normal.
Um dia. Mais uma noite. Será que eu tinha comido? Não sabia. A
intervalos regulares, eles nos traziam comida e bebida. Bem, algu-
ma coisa eu tinha ingerido, umas colheradas de arroz e um pouco
de água para estancar a sensação de vazio no estômago. Havia so-
bras endurecidas na tigela de alumínio, uma massa fria e pegajosa.
Mas eu não tinha dormido. Nem tomado banho. As mesmas roupas
de ontem, de antes de tudo acontecer. Eu havia me arrumado, posto
a roupa mais bonita que tinha, uma blusa amarela e uma saia que ia
até os joelhos. Agora eu odiava o tecido sintético no corpo. A blusa
estava apertada demais embaixo dos braços e as mangas eram
muito curtas, por isso eu não parava de esticá-las.
– Mas por que não falam nada?
Eu estava em pé. Nunca ficava sentada. Ficava em pé e andava,
corria uma maratona enjaulada. Estava com as mãos úmidas, suava
o tempo todo. A roupa grudava em mim. Havia um odor em torno de
mim, um cheiro que nunca antes senti.
– Eles sabem mais sobre isso do que nós. Só temos que confiar
neles.
Kuan tomou um gole de chá. Aquilo me encheu de raiva. A ma-
neira de beber, o vapor da xícara, como subiu até seu nariz, o ruído
fraco de cada gole. Era algo que ele tinha feito milhares de vezes
antes. Não deveria fazer isso agora.
Ele poderia gritar, berrar, xingar, me culpar. O fato de permane-
cer sentado assim, com a xícara entre as mãos, se esquentando ne-
la, as mãos totalmente calmas…
– Tao? – Ele pôs a xícara de lado abruptamente, como se enten-
desse o que eu estava pensando. – Por favor…
– O que você quer que eu fale? – Encarei-o com um olhar pene-
trante. – Tomar chá não ajuda nada!
– O quê?
– Foi uma figura de linguagem.
– Entendi. – Seus olhos brilhavam.
É nosso filho, eu queria gritar. Wei-Wen! Mas apenas desviei o
rosto, não aguentei olhar para ele.
O som do chá sendo despejado. Ele se levantou e se aproximou
de mim.
Eu me virei. Ali estava ele, estendendo uma xícara de chá fume-
gante para mim, com a mão firme.
– Talvez ajude – disse ele baixinho. – Você precisa tomar alguma
coisa.
Imagine se ajudaria… Tomar chá. Será que esse era seu plano?
Não fazer nada. Só ficar sentado aqui. Tão passivo, sem vontade de
mudança, de controle, de fazer alguma coisa.
Mais uma vez desviei o rosto. Não poderia dizer tudo isso. Ele ti-
nha razão de sobra para me acusar.
O fardo entre nós não estava distribuído de forma igual. Mesmo
assim, ele não me recriminava, não punha a culpa em mim. Conti-
nuou de pé ali, com a xícara de chá estendida, o braço formando um
ângulo reto com o tronco, rígido, de um jeito quase antinatural. To-
mou fôlego, talvez estivesse a ponto de dizer algo mais.
Nesse mesmo instante, porém, a porta se abriu. A dra. Hio en-
trou. Era impossível decifrar sua expressão. Lamento? Rejeição?
Ela não nos cumprimentou. Limitou-se a fazer um gesto na dire-
ção do corredor.
– Por favor, me acompanhem até meu escritório.
Eu a segui de imediato. Kuan ficou parado com a xícara na mão,
como se não soubesse o que fazer com ela. Então finalmente se re-
compôs e deixou a xícara depressa sobre a mesa. Um pouco de chá
derramou-se. Ele viu e hesitou.
Será que perderia tempo enxugando? Não. Ele se endireitou ra-
pidamente e nos acompanhou.
Ela seguiu na frente. Kuan e eu não olhamos um para o outro, o
grande assunto continuou abafado. Só fixamos os olhos nela. Tinha
as costas eretas dentro do jaleco branco. Movimentava-se com ligei-
reza e facilidade. Seu cabelo estava preso num rabo de cavalo que
balançava como se fosse de uma moça.
Ela abriu uma porta e entramos numa sala pintada de cinza. Um
espaço sem personalidade. Nenhuma foto de criança adornava as
paredes; sobre a mesa, apenas um telefone.
– Sentem-se, por favor.
Ela nos indicou duas cadeiras e puxou a dela para o outro lado
da mesa, evitando assim nivelar-se conosco. Talvez tivesse aprendi-
do no curso de medicina que a mesa lhe conferia autoridade. E que,
ao falar de algo sério, era melhor se apresentar da forma mais hu-
mana e compassiva possível.
Algo sério. Ela ia dizer algo sério. De repente desejei que ela es-
tivesse sentada de outro jeito, não tão próximo. Inclinei-me para
trás, afastando-me dela.
– Podemos vê-lo? – perguntei logo. Subitamente, perdi a cora-
gem de fazer as outras perguntas. Como está indo, o que está acon-
tecendo com ele, o que nosso filho tem?
Ela olhou para mim.
– Infelizmente, vocês não podem vê-lo ainda… E lamento dizer
que fui dispensada da responsabilidade sobre seu filho.
– Dispensada da responsabilidade? Mas por quê?
– Trabalhamos com várias hipóteses relativas ao diagnóstico.
Mas… ainda continua incerto. – Seu olhar vacilou. – De qualquer
forma, o caso é tão complicado que foge de minha área de compe-
tência.
Tive uma leve sensação de alívio. As palavras piores não foram
usadas. Ela não disse partiu, morreu, faleceu. Disse que era compli-
cado, que tinham hipóteses. Isso significava que ainda não tinham
desistido dele.
– OK. Tudo bem. Quem assumiu?
– Uma equipe trazida de Pequim para cá por helicóptero, ontem
à noite. Vou lhes dar os nomes assim que me informarem.
– Pequim?
– São os melhores.
– E nesse meio tempo?
– Fui incumbida de dizer a vocês que terão de esperar. Que po-
dem voltar para casa.
– O quê? Não!
Eu me virei para Kuan. Ele não ia dizer nada?
A dra. Hio se retorceu na cadeira.
– Ele está nas melhores mãos.
– Não sairemos daqui. É nosso filho.
– Fui instruída a dizer que vai demorar até eles saberem mais. E
não há nada que vocês possam fazer aqui agora. O caso de Wei-
Wen foi algo muito fora do comum.
Congelei. Foi.
As palavras saíram quase inaudíveis quando enfim abri a boca.
– O que você está tentando dizer?
Virei-me de novo para Kuan, procurando ajuda, mas ele perma-
necia imóvel. As mãos repousavam no colo. Não questionaria nada.
Tornei a olhar para ela.
As palavras saíram de minhas entranhas:
– Ele está vivo? Wei-Wen está vivo?
Ela se inclinou um pouco para a frente, curvou o pescoço e er-
gueu a cabeça para nós, uma tartaruga que espreitava para fora da
casca. Os olhos estavam redondos, suplicantes, como se ela nos
implorasse que não a incomodássemos mais. E não fez menção de
responder.
– Ele está vivo?
Ela hesitou.
– A última vez que o vi, ele estava… sendo mantido vivo artifici-
almente.
Kuan soluçou ao meu lado. Vi que suas faces estavam molha-
das, mas isso não me dizia respeito no momento.
– O que significa isso? Que ele ainda está vivo, significa que ain-
da está vivo?
Ela fez que sim, lentamente.
Vivo. Agarrei-me a essa palavra. Vivo. Ele estava vivo.
– Mas não sem ajuda – disse ela em voz baixa.
Não era importante. Eu me forcei a pensar que não era importan-
te. O mais importante era que estava vivo.
– Quero vê-lo – disse eu em voz alta. – Não saio sem que antes
o veja.
– Lamento dizer que isso não é possível.
– Ele é meu filho.
– Como já disse, não sou mais responsável por ele.
– Mas você sabe onde ele está.
– Realmente sinto muito…
Eu me levantei abruptamente. Kuan ergueu a cabeça, olhando
surpreso para mim. Não retribuí seu olhar, dirigi-me à médica.
– Me mostre onde ele está.
Ge orge

Mandei Rick e Jimmy para casa lá pelas cinco da tarde. Só faltava


um terço. Eu mesmo daria conta do resto. Não poderia me dar ao lu-
xo de lhes pagar por horas que não fossem estritamente necessá-
rias.
Ali pela hora do pôr do sol eu estava quase terminando. Foi en-
tão que umas moscas superinsistentes invadiram a campina. Onde
se enfiavam de dia, eu não fazia ideia. Mas no lusco-fusco elas apa-
reciam, formando grandes nuvens. Era impossível se livrar delas.
Pareciam gostar de seres humanos, porque não largavam do meu
pé, seguiam cada passo.
A única coisa a fazer era me mandar para casa. Eu estava indo
para o carro quando Tom ligou. Não tinha gravado o número, franca-
mente não sabia como fazer isso, mas o reconheci.
– Alô, pai.
– Alô.
– Onde você está?
– Por que você pergunta isso? – disse eu rindo.
– Bem, não sei…
– Antes, as pessoas iniciavam as conversas com “como vai”,
agora, depois da chegada do celular, as pessoas perguntam onde
você está – tentei explicar.
– Pois é…
– Estou no campo. Fazendo a inspeção.
– Ah. E está tudo bem?
– Excelente.
– Legal. Bom saber. Isso me deixa feliz.
Isso me deixa feliz? As palavras soavam estranhas na sua boca.
Será que agora falava assim?
– Aliás, o que você acha que isso diz? – perguntei.
– Diz?
– Sobre a sociedade? Que a gente pergunta onde o outro está
em vez de como vai?
– Pai…
– Estou brincando, Tom.
Esbocei uma risada. Como sempre, ele não riu de volta. Ficamos
calados por alguns segundos. Ri mais alto, esperando que ajudas-
se. Mas no exato momento em que eu estava ali com a boca escan-
carada feito porta de igreja aos domingos, uma mosca voou direto
para dentro dela e chegou bem lá no fundo, posso jurar que bateu
na úvula. Fazia cócegas terríveis. Não sabia o que fazer, se deveria
tentar tossir para ela sair, ou engolir. Por isso tentei as duas coisas
ao mesmo tempo. Não funcionou.
– Pai – disse Tom de repente. – Sabe aquele assunto de que a
gente falou quando fui em casa a última vez?
A mosca estava no fundo da goela, se mexendo e fazendo cóce-
gas.
– Você está aí?
Tossi.
– Pelo que eu saiba, sim.
Ele ficou quieto por um momento.
– Ganhei uma bolsa de estudo.
Ouvi que ele respirou fundo. A linha entre nós crepitou, como se
o sinal telefônico protestasse contra a conversa inteira.
– Não vai te custar um centavo, pai. John cuidou de tudo.
-John? – minha voz soou roufenha, a mosca estava presa bem lá
no fundo da garganta.
– Sim. O professor Smith.
Tentei desobstruir a garganta, tossi com força, mas não saiu nem
mosca nem palavra.
– Está chorando, pai?
– Não, não estou chorando coisa nenhuma!
Tossi mais uma vez. Finalmente, a mosca se soltou, passou so-
bre a língua, parou na frente da boca.
– Não – disse ele.
Nova pausa.
– Só queria falar isso.
– Agora já falou.
Não podia cuspir agora. Ele escutaria.
– Sim.
– Sim.
– Tchau, então.
– Tchau.
Uma cusparada considerável, e a mosca desapareceu, não vi
onde, nem estava muito interessado em estudá-la mais de perto.
Fiquei parado com o celular na mão. Tinha vontade de arremes-
sar o aparelho no chão, ver aquela geringonça eletrônica barata e
estúpida se espatifar, aquela que possibilitava o recebimento de no-
tícias ruins até aqui na campina. Mas sabia que seria uma encheção
de saco arranjar um novo. E que custava dinheiro. Além do mais,
nem era certo que o celular se arrebentasse, o capim já estava alto,
macio feito um edredom. Por isso só fiquei parado, com a mão se-
gurando o celular e um aperto no coração.
William

Eu estava saindo da cegueira, comia bem e comecei a me exercitar


de leve. Tomava banho diariamente, pedia roupa recém-lavada com
frequência, era capaz de fazer a barba até duas vezes por dia. De-
pois de todos esses meses como um chimpanzé barbudo, cheguei a
gostar da lisura do rosto, de sentir o ar diretamente na pele.
E eu lia até os olhos arderem. Aguentava cada vez mais, um nú-
mero de palavras cada vez maior. Passava dias inteiros à mesa de
estudo, cercado de todos os meus livros, abertos sobre a mesa, so-
bre a cama, no chão.
Reli Swammerdam, sua pesquisa permanecia sólida. Estudei a
colmeia de Huber a fundo, seus quadros práticos, e além disso en-
comendei o que havia de manuais, revistas e folhetos informativos
sobre as práticas de apicultura. Havia muitos deles, conforme des-
cobri. Nos últimos anos, a apicultura se tornara um passatempo pa-
ra a burguesia, uma atividade para preencher as longas horas entre
o almoço e o chá da tarde. Mas obviamente a maioria desses pe-
quenos manuais fora escrita para os leigos, em uma linguagem
acessível e com desenhos simples a lápis. Para alguém como eu,
demorou pouco para dar uma passada de olhos neles. Alguns des-
creviam experimentos com colmeias de madeira, outros chegavam a
considerar que tinham inventado um novo padrão. Mas até agora
ninguém conseguira apresentar uma colmeia que realmente propor-
cionasse ao apicultor pleno acesso e visão. Não como a colmeia
que eu sabia que iria criar.
A essa altura, Dorothea me visitava todos os dias. Aparecia com
bochechas vermelhas de cozinheira e pequenas iguarias que ela
mesma tinha feito. Provavelmente Thilda lhe dera essa incumbên-
cia, na esperança de que eu comesse mais se soubesse que minha
filha tinha preparado a refeição sozinha. Teria de lhe dar razão. A
comida era surpreendentemente saborosa. Pelo visto, Dorothea es-
tava prestes a se tornar uma excelente candidata a dona de casa.
Georgiana também vinha de vez em quando. Como uma onda, ela
passava pelo quarto com sua voz estridente de criança, interrom-
pendo todas as minhas reflexões, e desaparecia tão repentinamente
como entrara. Charlotte era a menos inconveniente. Seu nariz afila-
do despontava na porta e, em geral, ela pedia um livro emprestado,
um de que eu não estivesse precisando no momento. Buscava no-
vos livros toda hora. Logo ela teria lido tudo o que eu tinha, de tão
depressa que lia.
Mas Edmund nunca aparecia. À tarde, eu às vezes escutava sua
voz do andar de baixo, ou do jardim, ou até do corredor do lado de
fora do quarto, mas ele nunca me dava o prazer de sua presença.
Por fim eu fui até ele.
Era início da noite. A casa reencontrara a calma depois do chá
da tarde. Em breve se dissolveria em ruídos outra vez, na hora do
jantar, mas, neste exato momento, havia um silêncio total.
Bati de leve à sua porta. Ninguém atendeu. Levantei a mão em
direção à maçaneta, mas hesitei. Quis dar-lhe tempo. Levei a mão
ao rosto, passando-a sobre a face de barba feita. Eu me preparara,
havia me lavado, posto uma calça limpa. Desejava intensamente
que ele me visse nessa nova versão e esquecesse aquela que vira
na última vez.
Esperei mais um pouco e bati de novo.
Nada.
Será que eu podia entrar? Era seu quarto particular. Mesmo as-
sim, eu era seu pai e a casa era minha.
Eu podia, sim. Era meu direito.
Com cuidado, apertei a maçaneta. A porta se abriu totalmente,
convidativa.
O quarto estava na penumbra. A única luz vinha de fora, de um
céu matizado pelo pôr do sol. Mas o quarto dava para o leste e nos
fins de tarde os raios do sol não chegavam até aqui.
Entrei e vi que havia uma chave no lado de dentro. Será que ele
costumava trancar a porta? O ar estava saturado, com um odor de
almíscar e de algo mais pungente que não consegui identificar. Por
todo lado havia peças de roupa espalhadas de forma desleixada,
um casaco sobre a cadeira, uma calça e uma camisa na cama. Um
lenço estava pendurado em cima do espelho, o mesmo lenço verde-
garrafa que ele trajara quando me fez sua visita. Na mesa de cabe-
ceira, havia xícaras e pratos sujos, e um par de sapatos por engra-
xar estava jogado no chão.
Permaneci imóvel. Uma inquietação invadiu-me. Havia algo de
errado com este quarto. Alguma coisa não estava certa.
Será que era a falta de ordem?
Não. Ele era jovem. Era homem. É claro que o quarto seria as-
sim. Eu deveria mandar uma das meninas ajudá-lo a manter o quar-
to arrumado.
Não era a bagunça, mas outra coisa.
Olhei em volta. Roupas, pratos, sapatos, uma caneca.
Algo estava faltando.
E de repente eu soube o quê.
Sua mesa. Estava vazia. A prateleira rente à parede. Vazia.
Onde estavam todos os livros? Onde estava o material de escri-
ta? Tudo de que precisava para os preparativos para a universida-
de?
– Pai?
Virei-me depressa. Mais uma vez, ele surgira sem eu perceber.
– Edmund. – Vacilei. Será que eu deveria sair? Não. Porque eu
tinha todo o direito de estar aqui. Todo o direito.
– Esqueci uma coisa. – Ele estava ofegante e corado, pelo visto
chegara da rua. Hoje também estava bem vestido, mas como que
ao acaso, com um colete de veludo vermelho, um sobretudo aberto
e um lenço ajeitado ao pescoço. Segurava um porta-moedas na
mão e foi depressa até o console na parede lateral perto da cama.
Ali havia um pequeno cofre que ele agora abria e remexia. As moe-
das tilintaram. Ele abriu o porta-moedas e depositou algumas no co-
fre. Então finalmente se virou para mim.
– Você queria alguma coisa?
Ele não estava indignado por eu ter invadido seu quarto, parecia
não ter importância alguma.
– Onde você vai? – perguntei.
Ele fez um gesto para o ar, para o nada.
– Vou sair.
– O que significa “sair”?
– Pai… – Ele sorriu, parecia ligeiramente resignado. Não conse-
gui lembrar a última vez que o vi sorrir, e é claro que estava em seu
pleno direito.
– Peço desculpas – sorri de volta. – Esqueço que você não é
mais uma criança.
Ele foi em direção à porta outra vez. Dei um passo para a frente.
Será que ele ia embora já? Não poderia esperar um pouco, dar-se
tempo de olhar para mim, olhar para mim de verdade, notar como
eu estava saudável, como eu estava bem-arrumado, tão diferente
da última vez que conversamos?
Ele hesitou e parou. Estávamos em lados opostos da porta, que
se abria escura entre nós. Mais dois passos, e ele teria sumido.
– Posso fazer uma pergunta? – disse ele.
– Claro. Você pode perguntar o que quiser.
Dei um sorriso afável. Agora a boa conversa logo seria iniciada,
e isso poderia ser o começo de algo totalmente novo para nós.
Ele respirou fundo.
– Você tem algum dinheiro?
Levei um susto.
– Dinheiro?
Ele balançou o porta-moedas e fez uma careta.
– Quase vazio.
– Eu… – Não consegui responder. – Sinto muito.
Ele encolheu os ombros.
– Vou ver com a mãe.
E então foi embora.
•••
Entrei em meu próprio quarto, sentindo-me estranhamente desani-
mado. Será que a seus olhos eu não passava de um animal prove-
dor? Será que tudo que queria de mim era dinheiro?
Sentei-me à mesa de estudo. Não, não podia ser. Mas dinheiro…
Para ele, talvez representasse tudo o que nos faltava. A pobreza
que a família vinha enfrentando nos últimos meses… Era absoluta-
mente compreensível que o tivesse afetado. Para ele, a falta de di-
nheiro foi o sinal mais claro de que seu pai estava doente. O fato de
que eu ressuscitara podia ser muito bom, mas eu ainda não conse-
guira lhe proporcionar o que ele realmente precisava. Ele era jovem.
Era óbvio que essa necessidade simples e urgente se tornara es-
sencial para ele. Mas teria de me dar tempo. Pois a ideia que eu ti-
nha em mente poderia lhe dar tanto aquilo de que precisava agora
quanto aquilo que com o tempo entenderia ser o mais importante.
Mergulhei a caneta no tinteiro e passei-a sobre o papel. Para um
zoólogo, os desenhos de observação são parte importante do traba-
lho, mas infelizmente nunca foi um grande desenhista. Ainda assim,
ao longo dos anos, forcei-me a aprimorar a técnica e agora pelo me-
nos era capaz de usar a caneta como ferramenta.
Eu tinha algumas ideias vagas que precisava colocar no papel
antes que desaparecessem. Imaginei uma caixa de madeira, com
teto inclinado. As colmeias de palha tinham um formato orgânico,
como um ninho, quase se misturando com o capim que balançava
nos prados. Eu queria criar algo diferente, uma construção concebi-
da com base na civilização, uma pequena casa para as abelhas,
com portas, aberturas, possibilidade de inspeção. Uma criação do
homem, pois apenas nós, os humanos, éramos capazes de projetar
uma construção adequada, uma estrutura passível de monitoramen-
to, que concedesse o controle a nós, não à natureza.
•••
Passei vários dias desenhando, indicando as medidas dos diversos
componentes em milímetros, imaginando como a colmeia poderia
ser colocada em produção e empenhando todos os meus esforços
aos detalhes. A família vivia sua própria vida na casa, fora do quar-
to, eu mal a percebia. Mesmo assim recebia as visitas diárias de
Georgiana e Thilda. E de Charlotte.
Certa manhã ela chegou especialmente cedo. Bateu de leve à
porta, como era seu costume.
Primeiro, não respondi, estava entretido demais com os detalhes
do teto da colmeia.
Mais algumas batidas.
– Pois não? – suspirei.
A porta abriu-se. Charlotte permaneceu imóvel com um pé na
frente do outro, como se esperando para tomar impulso.
– Bom dia, pai.
– Bom dia.
– Posso entrar? – A voz soou calma, mas os olhos vacilavam in-
certos, voltados para o chão.
– Estou trabalhando.
– Não vou te incomodar. Só queria te devolver este.
Ela me estendeu um livro, segurando-o com ambas as mãos, co-
mo se fosse algo valioso. Deu alguns passos em minha direção, er-
gueu a cabeça e olhou para mim.
– Eu achei que talvez pudéssemos conversar um pouco sobre
ele…
Seus olhos tinham um tom verde acinzentado. Eram um pouco
próximos demais um do outro. Não eram como os de Thilda. Aliás,
ela era muito pouco parecida com a mãe.
– Pode deixar o livro aí.
Fiz um gesto em direção à estante de livros. Um olhar enfático,
que eu esperava ser suficiente e me livrasse de ter de rejeitá-la
abertamente.
– Está bem. – Ela baixou a cabeça outra vez e foi até a estante,
onde parou.
Detive-me. Era verdade que eu estava ocupado, mas não havia
razão para ser ríspido.
– Não posso agora, mas terei muito prazer em conversar com
você mais tarde – disse eu numa voz que pretendia soar meiga.
Ela não respondeu, só olhou para o livro que ainda segurava nas
mãos.
– Onde ele deve ficar?
– Na prateleira, claro.
– Sim, mas… quero dizer… você não organiza os livros de acor-
do com um sistema?
– Não. Só deixe o livro aí.
Ela levantou os olhos, empolgada desta vez.
– Que tal eu organizar os livros pra você?
– O quê?
– Os livros. Posso organizá-los alfabeticamente por autores, se
quiser.
Pelo visto, ela não desistiria.
– Bem… sim… por que não?
Ela abriu um leve sorriso e se sentou no chão, de frente para a
estante. O pescoço era uma linha belamente curvada, com o cabelo
preso de forma simples. Nada de coques complicados sobre as ore-
lhas, parecia não se interessar por esse tipo de coisa. Ela se retor-
ceu, mudou de posição. Ao que me pareceu, tinha encontrado uma
posição mais confortável para permanecer ali. Com certeza, preten-
dia ficar bastante tempo.
Então pôs mãos à obra. Trabalhava rápido, com movimentos
precisos. E o cuidado com que manuseava os livros… Era como se
fossem filhotes de pardal que ela ajudava a devolver ao ninho.
Debrucei-me sobre os desenhos outra vez e tentei continuar,
mas não pude deixar de observá-la. O entusiasmo dos movimentos,
o esmero, a concentração, a veneração. Cada livro era colocado em
alinhamento exato com o próximo. Ela passava os dedos sobre as
lombadas para garantir que nenhum se destacasse da fileira. No
passado, eu mesmo tinha tratado os livros assim. Ela deve ter per-
cebido meu olhar, porque de repente se virou e sorriu. Lancei um
breve sorriso em troca, voltando rapidamente a atenção para o tra-
balho, com uma sensação estranha de ter sido desmascarado.
Ela levou pouco tempo para terminar. Ouvi que se levantou, mas
fingi que não notara, como se estivesse absorto demais em meu tra-
balho. Mas ela não saiu do quarto.
Ergui os olhos.
– Obrigado.
Ela sorriu em resposta. Mas será que não iria embora? Era im-
possível trabalhar com essa sombra de carne e osso que ficava ali
de pé, respirando.
– Você… você pode se sentar, se quiser – disse eu, enfim, e pu-
xei uma cadeira. Pelo menos isso eu lhe devia.
– Obrigada. – Instalou-se depressa na cadeira. – Não vou inco-
modá-lo.
Mais uma vez retomei o trabalho.
– O que é isso? – perguntou ela apontando para o desenho.
Ergui os olhos.
– O que você acha?
– Uma colmeia – foi a resposta pronta.
Olhei surpreso para ela. Então lembrei que com certeza tinha
visto todos os folhetos que me foram enviados.
– Você vai construir essa colmeia? – perguntou.
– Vou mandar construí-la.
– Mas… esta é a primeira coisa que você vai fazer?
– A primeira? Você não está vendo todos os livros que já li? –
Estiquei o braço apontando para eles.
– Estou – disse ela apenas. Então fixou os olhos nas mãos, que
estavam recatadamente entrelaçadas no colo.
A irritação subiu dentro de mim.
– Você não disse que ficaria quieta?
– Me perdoe. Fico quieta agora.
– Estou escutando seu cérebro zunir.
– É só que…
– O quê?
– Você sempre disse que é preciso começar pelo básico.
– Ah é, eu disse isso?
Bem, eu tinha dito, sim. Muitas vezes. Não especificamente a
Charlotte, mas a Edmund, quando, ao fazer a lição de casa, queria
passar direto para os cálculos mais difíceis, sem ter ainda dominado
a multiplicação simples.
Ela ergueu os olhos.
– E você também sempre falou que a zoologia começa pelas ob-
servações.
– Ah é?
– Que o fundamento está nas observações. Depois vem o racio-
cínio.
Senti uma pressão na testa. Minhas próprias palavras na boca
de Charlotte. A danada estava coberta de razão.
Tao

Acompanhamos a dra. Hio. Um elevador para cima, depois, um lon-


go corredor. Em seguida, um elevador para baixo. Ela andava de-
pressa, às vezes olhando para trás. Talvez não quisesse ser vista.
Disse que tinha recebido instruções claras, ninguém deveria visitá-
lo. Ele estava em uma ala de isolamento. Ninguém estava autoriza-
do a entrar.
– No entanto – continuou ela, falando mais para si mesma. – Vo-
cê é a mãe. – Ela olhou depressa para Kuan, como se só agora no-
tasse sua presença, e se corrigiu. – Vocês são os pais. Deveriam ter
o direito de vê-lo. – A voz tremeu quando ela disse isso, o tom pro-
fissional tinha desaparecido.
O que nos aguardava? Wei-Wen num leito hospitalar. Pálido. Os
olhos fechados. Os vasos sanguíneos das pálpebras mais visíveis
do que o normal. O pequeno corpo, antes tão cheio de teimosia e
energia, agora totalmente inerte. Os braços ao longo do corpo, uma
cânula com um tubo de plástico num deles. Aqueles braços que en-
volviam meu pescoço. A bochecha fofa e suave que ele encostava
na minha. Tudo cercado de máquinas, aparelhos apitando, telas re-
luzindo. Tudo estéril. Branco. Solitário?
Era longe, ou será que ela deu voltas a mais? Sempre que pas-
sávamos por alguém, ela apenas fazia um breve gesto de cumpri-
mento e apertava o passo. Fomos tragados pelas entranhas do edi-
fício. Como se estivéssemos a caminho de um lugar de onde não
havia saída.
Enfim ela parou. Estávamos na frente de uma porta de aço. Ela
deu uma rápida olhada em volta, como que para se assegurar de
que não havia ninguém por perto, antes de apertar um botão. A por-
ta se abriu com um som de sucção. Uma borracha preta a emoldu-
rava, vedando-a por completo. Passamos pela soleira. Ali dentro ou-
via-se o rumor forte de um sistema de refrigeração. A pressão do ar
mudou. A porta se fechou atrás de nós, encaixando-se no batente
por sucção.
Eu esperava encontrar profissionais da área de saúde. Funcioná-
rios vestidos de branco, esterilizados, que nos rodeariam. Vozes rís-
pidas, autoritárias, vocês precisam ir embora, precisam sair, essa é
uma zona fechada. Eu tinha ensaiado as palavras que diria. Em re-
lação a Kuan, estava pronta para ser dura. Vi pelo seu olhar que ele
já tinha desistido, estava na defensiva, não queria ficar aqui, em ter-
ritório proibido.
Mas o corredor diante de nós estava deserto. A ala estava deser-
ta. Seguimos adiante, mudamos de direção, atravessamos outro
corredor. Eu esperava um balcão, uma recepção, médicos passando
apressados. No entanto, aqui também não havia vivalma. A dra. Hio
seguia na dianteira. Não via seu rosto, mas os passos eram hesitan-
tes, ela andava cada vez mais devagar.
Parou na frente de uma porta. Essa também de aço polido, ne-
nhuma marca de dedos, nenhuma marca de vida, lisa feito um espe-
lho. Uma janela arredondada no meio, uma escotilha, como num an-
tigo navio. Tentei espiar lá dentro, mas o brilho das luzes do teto era
forte demais e o reflexo esverdeado impossibilitava ver qualquer coi-
sa do outro lado.
– É aqui. É aqui que ele está – disse ela.
Ela ficou parada, insegura. Então recuou.
– Vocês podem entrar sozinhos.
Pus a mão na porta. O metal estava surpreendentemente frio.
Afastei a mão por um instante. Minha palma deixou uma marca de
suor no meio de toda a esterilidade. Então abri a porta.
Entrei numa sala sombria. Mal percebi que Kuan me seguia. De-
morei a me acostumar à escuridão. A apenas um metro de distância
da porta, quase esbarrei numa divisória de vidro que ia do chão ao
teto. Atrás dela, havia um quarto hospitalar com mobiliário básico.
Um guarda-roupa. Uma cama. Uma mesa de cabeceira de aço. Pa-
redes nuas. Uma cama.
Vazia.
A cama estava vazia.
O quarto estava vazio. Ele não estava ali.
Saí como um furacão para o corredor. Mas parei bruscamente.
Ali estava a dra. Hio com outro médico. Falavam depressa e num
sussurro. O outro médico se inclinou para ela, rígido e zangado. Re-
provador.
Kuan veio atrás de mim e também ficou parado.
– Onde ele está? – perguntei em voz alta.
O médico se virou para nós, calando-se de repente. Alto, magro,
pálido. Mãos inquietas, que enfiou nos bolsos do jaleco.
– Infelizmente, seu filho não está mais aqui. Recebeu alta.
– O quê?
– Foi transferido.
– Transferido? Para onde?
– Para… – ele ainda não tinha olhado para mim. – Pequim.
– Pequim?
– Como talvez já tenham sido informados, ainda não estamos
certos quanto ao problema do seu filho. Por isso foi decidido que fi-
caria em melhores mãos com uma equipe de especialistas.
Kuan não disse nada, apenas fez um gesto de assentimento.
– Não – protestei.
– O quê? – Finalmente o médico olhou para mim.
– Não. Vocês não podem mandar meu filho para longe sem mais
nem menos.
– Não o mandamos para longe, mas para os melhores especia-
listas. Vocês deveriam estar gratos…
– Mas por que ninguém falou nada para nós? Por que não pode-
ríamos ter ido junto?
A mesma coisa outra vez. Primeiro a mamãe. Agora ele. Tirados
de mim, sem explicação.
– Em que hospital ele está internado?
– Vão ser informados sobre isso.
– Agora!
– Se vocês forem para casa, logo forneceremos mais informa-
ções.
Explodi. Não aguentei mais ser ponderada, controlada, sensata.
A voz subiu, ficou estridente.
– Me leve até meu filho já! Me leve até ele!
Em dois passos eu estava junto do médico e agarrei seus om-
bros.
– Quero ver meu filho, você entende?
O sangue me subiu à cabeça, as bochechas ficaram molhadas.
Tentei sacudi-lo, e ele só permaneceu imóvel, incrédulo.
Então alguém me pegou e me segurou firme, agarrando meus
braços, me imobilizando. Tentando me deixar tão paralisada quanto
ele. Kuan. Obediente como sempre.
•••
Não conversamos no trem de volta para casa. A viagem levou qua-
se três horas. Tivemos de trocar de trem. E fomos submetidos a dois
controles. Um teste de impressão digital e muitas perguntas. Quem
éramos? Onde morávamos? Para onde estávamos indo? Para onde
tínhamos ido? Kuan respondeu a todas as perguntas com calma.
Não consegui compreender como era capaz disso. Como se fosse o
mesmo de sempre. Mas não era. Encontrei seu olhar uma vez,
olhos desconhecidos me olharam de volta. Eu me virei para o lado.
O último trecho percorremos a pé. Estávamos a apenas cem me-
tros de casa quando notamos os helicópteros que nos sobrevoa-
vam. O forte barulho aumentava e diminuía. Primeiro, achei que es-
tivessem logo acima da casa, mas ao chegar mais perto vi que cir-
culavam sobre os campos, sobre as pereiras. Sobre a floresta.
Dobramos a esquina e paramos. Na frente de nossa casa, onde
as plantações começavam, estavam nossos colegas, todos com a
roupa de trabalho. Interrompidos no meio da jornada, tinham se
agrupado passivamente ali. Alguns ainda portavam as tesouras de
podar e os cestos para entulho. Estavam calados, quietos, apenas
olhando espantados para a área diante de nós. A distância vislum-
brei a colina onde tínhamos feito o piquenique. Atrás dela estava a
floresta selvagem. Acima das árvores voavam as aeronaves e na
nossa frente passavam fileiras de tanques de guerra silenciosos.
Eles formavam uma parede. Uma parede entre nós e as plantações
ali fora. Atrás dos tanques de guerra trabalhavam soldados. Esta-
vam erguendo uma cerca alta de lona branca com centenas de me-
tros de extensão. Trabalhavam com rapidez e eficiência, não diziam
nada. O único som que vinha dali era o das batidas nas estacas. Pa-
ra além dos soldados, atrás do cercado, vislumbrei vultos com ma-
cacões inteiriços e capacetes. Protegidos contra algo lá fora.
Ge orge

Não consegui dormir. O aperto ainda estava fincado no coração de-


pois da conversa com Tom. Suas palavras giravam na minha cabeça
vezes sem conta. Ganhei uma bolsa de estudo, não vai te custar um
centavo, John cuidou de tudo.
A meu lado, Emma estava deitada na maior paz, sua respiração
era quase inaudível. O rosto estava relaxado, lívido. Ela parecia
mais jovem quando dormia. Era quase um desaforo ela poder dormir
assim quando eu estava ao seu lado me debatendo.
Uma lâmpada piscou no pátio. Uma das lâmpadas externas esta-
va prestes a queimar, ou talvez estivesse com algum mau contato.
O pisca-pisca se transformou em iluminação de discoteca. Um feixe
de luz estroboscópica atravessou a janela e bateu nas minhas pál-
pebras. Puxei o edredom sobre a cabeça, mas não adiantou, só tor-
nou ainda mais difícil fazer o ar chegar aos pulmões.
Enfim levantei, tentei ajustar a cortina e consegui cobrir a fresta
lateral por onde a luz entrava.
Mas não foi o bastante. Piscava através da cortina também. Tal-
vez Emma tivesse razão ao sugerir que a gente comprasse uma da-
quelas coisas que não deixam passar nenhuma luz. Ela tinha me
mostrado numa revista, pareciam persianas comuns. Mas isso teria
que ficar para mais tarde. Agora a lâmpada precisava ser arrumada.
Já. Não ia tomar muito tempo, era uma tarefa simples e manejável.
Um problema que eu poderia resolver rapidamente. E não tinha ou-
tro jeito, eu precisava arrumar aquela lâmpada para conseguir dor-
mir.
A noite estava quente. Não pus agasalho, saí vestindo apenas a
camiseta com que tinha ido dormir. Ninguém ia me ver mesmo.
A lâmpada estava no alto da parede, eu precisava de uma esca-
da. Fui até o celeiro, desenganchei a escada mais alta da parede,
saí, coloquei-a no lugar, conferi sua estabilidade e subi.
A cúpula da lâmpada estava totalmente presa. Não ia ser fácil re-
movê-la. Estava quente também. Tão quente que só aguentei tocar
nela por breves momentos. Tentei usar a camiseta, segurando a cú-
pula dentro do tecido enquanto girava, mas não deu. Enfim tirei a
camiseta.
A lâmpada piscava a intervalos descompassados, sem regulari-
dade. Não me surpreenderia se fosse mau contato. Emma protesta-
va cada vez que eu fazia trabalhos elétricos sozinho, mas, franca-
mente, os eletricistas te cobram só por você olhar para eles. Devem
ganhar uma boa grana, talvez essa fosse a profissão mais acertada.
Ou talvez a profissão que Tom devesse ter. Teria sido muito melhor,
pouco estudo, trabalho bem pago.
Bolsa de estudo. Não vai te custar um centavo. John cuidou de
tudo.
Foi uma decepção, mas não o suficiente para me chocar.
E lá estava eu, sem camiseta, de samba-canção, meias e sapa-
tos nos pés, tentando remover a cúpula suja da lâmpada. Finalmen-
te, ela se soltou. Segurei a camiseta e a cúpula na mão esquerda, e
tentei atacar a lâmpada.
– Merda!
Estava fervendo. Tive que descer e deixar a cúpula no chão. Aí
subi outra vez. Por sorte, a lâmpada se soltou rapidamente. Mas me
ocorreu que pudesse ter algo errado com a voltagem, talvez fosse
melhor tirar o soquete todo. Havia risco de incêndio se deixasse isso
assim. Não ia ser muito difícil.
De volta para o celeiro a fim de buscar ferramentas. E aí subir na
escada de novo.
Eu detestava parafusos Philips. Bastavam poucas voltas para a
cruzeta se transformar num buraco no qual a chave de fenda só fi-
cava girando sem pegar. E esses quatro parafusos eram daquele ti-
po especialmente teimoso e enferrujado. Mas eu era mais teimoso.
Esse cara não desistia nunca, não senhor.
Eu me encostei na parede e girei a chave de fenda com toda a
força.
Enfim todos os quatro tinham saído. O soquete ainda estava na
parede, grudado com a tinta vermelha. Mas eu daria um jeito nisso
aí, fazer força não me assustava. Por isso peguei firme e dei um
tranco.
O soquete se soltou. Só os fios ficaram, saindo da parede feito
minhocas. Cutuquei um deles com o dedo.
– Caralho!
O choque não fora forte a ponto de me desequilibrar. Não o cho-
que por si só. Mas na outra mão eu estava segurando o soquete e a
chave de fenda. E a escada também não estava muito firme.
•••
Eu estava deitado no chão. Não sei se desmaiei na queda. Tinha na
cabeça uma imagem pouco clara da escada balançando no ar comi-
go no topo. O próprio desastrado de uma história em quadrinhos.
Senti que estava doendo em diversos lugares. Doendo pra caramba.
Bem lá em cima vi os fios se arrastarem pela parede vindo em
minha direção. Foquei os olhos. Os fios se acalmaram.
Então surgiu o rosto de Emma. Pálida de sono e descabelada.
– Nossa, George.
– Foi a lâmpada.
Ela levantou a cabeça e descobriu os fios que despontavam do
buraco da parede.
Fui me sentando. Devagar. O corpo felizmente estava funcionan-
do. Nada fraturado. E a lâmpada foi tirada. Consegui o que queria.
Ela fez um gesto em direção à escada.
– Você tinha que mexer com isso no meio da noite? – Estendeu
a mão e me ajudou a levantar. – Não podia esperar?
Dei alguns passos. A perna latejava, tentei não mostrar o quanto
doía. Deveria ter sentido vergonha, mas na verdade só estava alivia-
do porque tinha conseguido fazer aquilo. Um cabra teimoso. Não
era do tipo que caía fora quando as coisas ficavam difíceis.
Emma me deu a camiseta. Quis logo vesti-la, mas ela me inter-
rompeu.
– Espere um pouco.
Começou a limpar minhas costas. Foi aí que percebi como esta-
va imundo. Coberto de poeira e cascalho das meias à raiz do cabe-
lo, as mãos cheias da sujeira pegajosa e preta da lâmpada do pátio.
Eu me desvencilhei de sua mão e vesti a camiseta. Senti que vá-
rias lasquinhas de pedra ainda estavam grudadas nas costas, pre-
sas entre a pele e o algodão chinês deslavado. Ia doer para dormir,
seria como andar com pedras no sapato. Mas não tinha importância,
a lâmpada fora tirada, isso é o que contava.
Levantei a escada e fui em direção ao celeiro outra vez. Ia termi-
nar o que tinha começado.
– Preciso buscar fita isolante – disse eu. – Não posso deixar os
fios soltos daquele jeito.
– Mas isso você pode fazer de manhã, não?
Não respondi.
Ela suspirou.
– Pelo menos, me deixe desligar a energia para você trabalhar. –
Sua voz estava mais alta agora.
Eu me virei. Ela esboçou um sorriso. Será que era irônico? Por-
que eu tinha esquecido o mandamento número um do eletricista.
– Pode ir dormir – foi só o que falei.
Ela encolheu os ombros. Então foi em direção à casa.
– E escuta, Emma – falei para suas costas.
– O quê? – Ela parou. Virou-se.
Eu me endireitei, tomei coragem.
– Não vai ter Flórida nenhuma. Só pra você saber. Não comigo.
Aí você vai ter que achar outro. Eu vou morar aqui. Não vai ter nada
de Gulf Harbors.
William

A colmeia de palha que eu encomendara chegou três dias depois.


Instalei-a na meia sombra de um álamo, na parte mais baixa do ter-
reno, aquela parte do jardim onde deixamos a vegetação crescer li-
vremente. Ali não estaria no caminho de ninguém. As crianças nun-
ca ficavam lá embaixo e eu poderia trabalhar em paz de verdade, fa-
zer minhas observações da colônia das abelhas, tomar notas e de-
senhar sem ser incomodado. Um agricultor da região ao sul da cida-
de vendeu-me a colmeia sem pestanejar, provavelmente porque lhe
ofereci o preço, em vez de perguntar o que ele cobraria. Não tentou
sequer negociar comigo. Aceitou a oferta de imediato, o que me fez
pensar que provavelmente tivesse conseguido a colmeia pela meta-
de do preço.
Ele começou a dar explicações sobre a colheita do mel, mas eu
o dispensei. Evidentemente, não foi por causa do mel que eu adqui-
rira a colmeia.
De um velho lençol, Thilda tinha feito uma roupa protetora para
mim, não muito diferente da de um esgrimista. O processo foi com-
plicado: ela precisou ajustar a roupa três vezes, parecia não enten-
der que minhas antigas medidas não se aplicavam mais. Nas mãos,
eu usava um par de luvas descartáveis, que, embora deixassem a
pele úmida, eram absolutamente necessárias como proteção.
Agora eu estava aqui, debaixo do álamo, só eu e a colmeia, eu e
as abelhas.
Peguei um caderno. Os estudos de observação eram um traba-
lho meticuloso, mas costumavam me dar prazer, pois foi ali, na ob-
servação, que tudo começou, que minha paixão se despertou. Ima-
gine se seria possível esquecer isso…
Estava pronto para começar as anotações quando me lembrei de
mais uma coisa. Faltava um banco. Como eu tinha perdido a prática
depois de todos esses anos!
Um pouco mais tarde eu estava de volta, ofegante, trazendo uma
simples banqueta. O suor escorria dentro do macacão, que agora,
quando o senti no corpo, parecia justo demais, apertado nas axilas e
na virilha.
Sentei e pouco a pouco me acalmei.
Não havia muito para ver. As abelhas saíam da colmeia e volta-
vam, o que nada tinha de surpreendente. Saíam para colher pólen e
néctar. O pólen virava alimento para as larvas, enquanto o néctar
era transformado em mel. Era um trabalho meticuloso e tranquilo,
sistemático, instintivo, hereditário. Todos eram irmãos, pois a rainha
era a mãe de todos. Foram concebidos por ela, mas não estavam
subjugados a ela. Estavam subjugados à coletividade.
Queria muito ver a rainha, mas o envoltório de palha ocultava as
abelhas e tudo o que elas faziam lá dentro.
Com cuidado, levantei a colmeia e espiei pela parte de baixo. As
abelhas voaram de sobressalto e se espalharam ao meu redor, não
gostaram nada de ser perturbadas.
Observei favos cheios, um ou outro zangão, vi ovos e larvas. In-
clinei-me para observar ainda mais de perto. Senti um formigamento
de expectativa na pele, pois agora eu tinha começado, finalmente eu
tinha começado!
•••
– O almoço está servido.
A voz de Thilda abafou o zumbido dos insetos e afugentou os
pássaros.
Tornei a me debruçar sobre a colmeia. Não me preocupei em
responder, as refeições da família já não faziam parte do meu cotidi-
ano, não almoçava com eles há meses. As crianças afluíram para a
casa, uma atrás da outra, e desapareceram lá dentro.
– Vamos comer!
Espiei Thilda por baixo do meu braço. Ela estava no meio do jar-
dim olhando para mim. E eis que já vinha rumando para cá.
•••
O garfo da pequena Georgiana raspou no prato vazio.
– Chiu! – disse Thilda. – Deixe o garfo na mesa!
– Estou com fome!
Thilda, Charlotte e Dorothea colocaram as travessas na mesa.
Uma com verduras, outra com batatas. E uma terrina com um líqui-
do ralo que se pretendia passar por sopa.
– É só isso? – Apontei para os pratos que foram servidos.
Thilda fez que sim.
– Onde está a carne?
– Não tem carne.
– E a torta?
– Estamos sem manteiga e farinha branca. – Ela me encarou
com firmeza. – A não ser que queira usar parte do dinheiro da facul-
dade.
– Não. Não vamos tocar no dinheiro da formação de Edmund.
De repente percebi por que ela insistira em que eu participasse
do almoço da família. Era mais astuciosa do que eu pensava.
Olhei em volta. Os rostos magros das crianças estavam todos
voltados para os três pratos desoladores na mesa.
– Então… – disse eu enfim. – Então vamos agradecer o alimento
que recebemos.
Baixei a cabeça e orei. A oração parecia imprópria em minha bo-
ca. Por isso recitei-a depressa e terminei logo.
– Amém.
– Amém – repetiu a família baixinho.
Pela janela, vislumbrei a colmeia lá no fundo do jardim. Servi-me
de pouca comida para poder voltar o mais rápido possível.
Entreguei as travessas para Thilda, que se serviu e as passou
para as crianças de acordo com a idade. Deixou-me feliz o fato de
Edmund ser o mais velho e ter a oportunidade de se servir depois
de Thilda, pois rapazes naquela idade precisam de quatro refeições
substanciosas por dia. No entanto, ele pegou pouco e só beliscou a
comida. Estava excepcionalmente pálido e magro, como se nunca
visse a luz do dia. Também tinha as mãos trêmulas e um pouco de
suor na testa. Será que não se sentia bem?
As meninas, em contrapartida, atiraram-se sobre a refeição. Mas
era pouca comida para todas elas. Quando a pequena Georgiana fi-
nalmente ganhou sua porção, só havia restos. Charlotte passou
uma de suas batatas para a irmãzinha.
Comemos em silêncio. Em poucos minutos, a comida sumiu dos
pratos das meninas.
Durante toda a refeição, senti os olhos de Thilda em mim. Ela
não precisava dizer uma palavra, eu sabia muito bem o que ela que-
ria.
Ge orge

Saí de madrugada. Levei uns sanduíches num saco plástico e café


numa garrafa térmica. Dirigi sem parar. Sete horas seguidas na es-
trada, sem uma única pausa. Não tinha visto Emma. Depois de ter-
minar a lâmpada, apaguei no sofá por umas duas horas. Ela estava
lá em cima no quarto, talvez estivesse dormindo, talvez não. Não
pude conferir. Não tive tempo. Não… Não tive coragem, para dizer a
verdade.
Meus olhos coçavam, estavam levemente injetados, mas eu me
sentia bem desperto. Não me custava nada dirigir todos esses quilô-
metros. Rodei acima do limite de velocidade o caminho todo, mas ti-
nha pouco trânsito e nenhum controle da polícia rodoviária. Só me
faltava perder a carteira.
Às 12h25 em ponto, de acordo com o relógio do painel do carro,
cheguei derrapando na frente da faculdade. Estacionei numa vaga
onde se lia “Reservado para o professor Stephenson”, mas pouco
me lixei. Stephenson, seja ele quem fosse, que encontrasse outra
vaga.
Obviamente, os prédios da faculdade eram de tijolos vermelhos,
todas as universidades são de tijolos vermelhos. E mesmo que essa
não fosse muito antiga, fora construída para ter um ar nobre. Edifí-
cios altos e largos, janelas quadriculadas de bordas brancas. Devem
ter construído desse jeito para que lembrasse Harvard, ou algum lu-
gar assim. Infundisse respeito. Ela não me assustava nada.
A última vez que vim aqui foi no outono do ano passado, quando
trouxemos Tom. Ele foi instalado num quarto minúsculo que dividiria
com um japonês baixinho de óculos. O quarto cheirava a meias com
chulé e hormônios. Coitados dos meninos, não havia espaço ne-
nhum onde pudessem ficar sozinhos. Mas isso parecia fazer parte
do pacote.
Entrei apressado. Passei por uma longa fileira de plaquetas de
bronze homenageando os benfeitores da faculdade. Felizmente, a
Green Apiaries não figurava entre eles. Havia vários mostruários
com troféus conquistados pelos alunos da faculdade em diversas
competições mais ou menos ridículas, além de retratos de reitores
mal-humorados. Todos eles homens. Não eram tantos, a faculdade
fora fundada nos anos setenta e não podia se gabar de uma história
especialmente longa.
Cheguei a uma sala grande e redonda com piso de pedra. Meus
passos ali ecoaram forte. Comecei a andar na ponta dos pés, mas
logo parei. Não tinha nada por que me desculpar. Eu pagava as
mensalidades de uma vaga aqui, também pertencia a esse lugar. De
certa forma, eu era até um sócio dessa faculdade.
Perguntei por Tom. Em alto e bom som. Sem preliminares.
O cara da recepção era esguio e usava dreadlocks. Estava sen-
tado com a cabeça enfiada na tela do computador. Conferiu um re-
gistro sem se dignar a me dirigir um olhar sequer.
– Ele está em horário de intervalo – disse.
Continuou batendo nas teclas do computador. Com certeza esta-
va jogando alguma coisa em pleno expediente.
– É urgente – falei.
Ele resmungou. Pelo visto, fazer o seu trabalho não era uma de
suas prioridades.
– Pode tentar a biblioteca.
•••
Tom estava debruçado sobre alguns livros e falava em voz baixa
com mais duas pessoas. Uma moça de cabelos castanhos, boniti-
nha, mas com uma roupa sem graça, e um sujeito de óculos. Evi-
dentemente, estavam muito entretidos numa conversa, murmura-
vam com intensidade, pois ele não me viu até eu estar bem em cima
dele.
– Pai?!
Ele o disse baixinho, aqui no baluarte do conhecimento parecia
não se permitir usar a voz.
Os outros dois também ergueram os olhos. Ambos me fitaram
como se eu fosse uma mosca tonta que tivesse se perdido aqui den-
tro.
Por algum motivo, pensei que encontraria Tom sozinho, que ele
estaria aqui apenas me esperando. Mas pelo visto ele vivia uma es-
pécie de vida própria, com gente que eu não fazia ideia de quem
fosse.
Levantei a mão numa saudação desajeitada.
– Olá, meu chapa.
No mesmo instante, quis morder a língua. Olá, meu chapa? Nin-
guém falava isso.
– Você veio até aqui? – perguntou.
– Ô, se vim – respondi.
A coisa só piorava. Ô, se vim?! Eu não estava raciocinando direi-
to. O jeito seria deixar para depois aquilo que eu ia dizer.
– Tem alguma coisa errada? – Ele se levantou num salto. – Tem
alguma coisa errada com a mãe?
– Não, nada disso. Sua mãe continua afinada como um violino.
He! He!
Meu Deus. Era melhor eu calar a boca.
•••
Ele me levou lá fora para o sol. A gente se sentou num banco. A pri-
mavera estava mais adiantada aqui do que em casa, havia um ar
pesado e quente. Por todo lado eu via jovens. Universitários. Um
monte de óculos e bolsas de couro.
Percebi que ele estava olhando para mim, mas de repente eu
não sabia por onde começar.
– Você viajou esse caminho todo só para conversar?
– Parece que sim.
– E o apiário? As abelhas?
– Elas não vão para lugar nenhum… Quero dizer, não vão voar
para lugar nenhum.
Esbocei uma risada, mas o riso saiu torto e terminou num pigar-
ro.
Ficamos um pouco em silêncio. Eu me concentrei, reencontran-
do aquilo que na verdade queria dizer.
– Estou indo para Hancock County na semana que vem. Blue
Hill.
– Ah, é? Onde fica?
– No Maine. Só a dez minutos do mar. Você lembra que foi comi-
go para lá?
– Bem… Não sei.
– Quando você tinha cinco anos, antes da escola. Viajamos só
nós dois. Dormimos na barraca, lembra?
– Ah, sim. Aquela viagem.
– Aquela viagem, sim.
Ele ficou um tempo calado.
– Tinha ursos lá – disse ele enfim.
– Mas deu tudo certo – falei, um pouco alto demais.
– Ainda tem?
– O quê?
– Ursos?
– Não. Não mais.
De repente me lembrei dos seus olhos grandes. Arregalados na
escuridão. Quando ouvimos o barulho do urso através da lona da
barraca.
– Estão em extinção, você sabia? – disse ele subitamente, a se-
gurança de volta à sua voz.
– Não só eles. – Tentei rir de novo. – Seu velho pai também.
Ele não riu.
Tomei fôlego. Tinha que pôr aquilo para fora, agora, o motivo por
que estava aqui.
– Eu vim te chamar para ir comigo ao Maine – disse eu.
– O quê?
– Você quer que eu te fale mais uma vez?
– Agora?
– Na segunda. Três caminhões, um a mais do que nos anos an-
teriores.
– Que bom. Quer dizer que você está crescendo?
– Nós estamos crescendo.
– Não posso ir, pai. Você sabe disso.
– Tem mais trabalho do que antes. Está na hora de você dar uma
força.
– Logo tenho as provas finais.
– Não precisa ficar muitos dias.
– Não vou conseguir dispensa para isso.
– Uma semana, no máximo.
– Pai…
Engoli as palavras. O discurso tinha ido pelo ralo. O discurso
com D maiúsculo, que eu tinha preparado no caminho inteiro vindo
para cá. Todas as palavras grandes que eu tinha enfileirado como
soldadinhos de chumbo novos em folha tinham virado chumbo no
cérebro. Herança, era o que eu diria, é sua herança. É isso que vo-
cê é, Tom. As abelhas, eu ia dizer, com uma pausa expressiva, é ali
que está o seu futuro. É só dar uma chance a isso. Dar uma chance
a elas.
Mas nenhuma daquelas palavras chegou até a minha boca.
– Peço uma folga em seu nome, falo que a gente precisa de vo-
cê na empresa familiar – arrisquei a sugestão.
– Ninguém consegue folga por coisas assim.
– Quantos dias de falta por doença você teve esse ano? Ne-
nhum?
– Dois… talvez três.
– Está vendo? Quase nada.
– Acho que não adianta.
– Fale então que está doente. Por Deus, você pode estudar em
qualquer lugar, não pode?
– Não é só uma questão de estudar, pai. Temos que entregar tra-
balhos, projetos.
– Você pode fazer isso em qualquer lugar, não?
– Não, preciso de livros.
– Leve os livros.
– Livros da biblioteca. Aqui.
– É só uma semana, Tom. Uma semana…
– Mas, pai. Não quero ir!
Ele tinha levantado a voz agora. Duas meninas de cabelo curti-
nho, com roupas que deveriam ser exclusividade de homens, calças
dobradas e coturnos gigantes, passaram e olharam com curiosidade
para a gente.
– Não quero. – Ele disse isso em voz mais baixa dessa vez.
Olhou para mim com olhos suplicantes, não muito diferente do que
Emma fazia. Um olhar que normalmente me levava a ceder.
Eu me levantei abruptamente. Não era capaz de ficar sentado
nem mais um segundo.
– É culpa dele, não é?
– O quê? De quem?
Não esperei pela resposta. Só me voltei como um furacão na di-
reção do inferno de tijolos vermelhos.
A ala dos professores ficava atrás da recepção.
– Ei, aonde você vai?
Passei o cara dos dreadlocks, não me dando ao trabalho de res-
ponder.
– Ei!
Ele se pôs em pé, mas eu já tinha avançado um bom pedaço no
corredor. Passei por um escritório depois do outro, alguns com as
portas abertas. Professor Wilkinson, Clarke, Chang, Langsley. Vis-
lumbrei estantes recheadas de livros, janelas largas com parapeitos
profundos, cortinas pesadas. Nada pessoal, tudo cheirava a conhe-
cimento.
E Smith. Ali estava. Uma porta fechada com mais uma plaqueta
de bronze. Eu já começava a acreditar que havia futuro se começas-
se a produzir bronze. Professor John Smith.
O cara dos dreadlocks estava se aproximando.
– É aqui – gritei para ele, percebendo que estava ofegante. – Já
achei.
Ele fez que sim e ficou parado, talvez não pudesse permitir a en-
trada de estranhos. Logo encolheu os ombros e voltou sem pressa
para a recepção.
Será que eu deveria bater na porta? Como um estudante fracote
com o livro didático debaixo do braço?
Não. Eu ia entrar direto.
Endireitei as costas, engoli com força. Pus a mão na maçaneta e
apertei.
Estava trancada.
Porra.
Na mesma hora, vinha chegando um jovem pelo corredor. De
barba feita e cabelo recém-cortado, usando um moletom de capuz e
tênis All Star. Um estudante.
– Posso ajudar?
Ele abriu um largo sorriso. Dentes brancos, perfeitamente alinha-
dos. Todo mundo usava aparelho hoje em dia, ficavam com a denti-
ção idêntica. Dentes diferenciados já não tinham nenhum charme.
– Estou procurando por John Smith – falei.
– Sou eu.
– Você?
Encolhi um pouco. Ele nem de longe era como eu esperava. Difí-
cil se exaltar com um cara desses. Parecia totalmente inocente.
Apenas uma criança.
– E você, quem é? – sorriu ele.
Endireitei o pescoço.
– Sou o pai de Tom.
– Certo. – Ele continuou sorrindo, estendeu a mão. – Prazer.
Peguei a mão. Não podia deixar de fazer isso.
– Prazer, sim. Muito.
– Vamos entrar? – disse ele. – Imagino que tem alguma coisa a
me dizer.
– Lógico. – Saiu com dureza excessiva.
– O quê?
– Nada. – Tentei disfarçar com um sorriso.
– Não?
– Ah, sim. Quero dizer… tenho uma coisa a lhe falar.
Ele destrancou a porta e me deixou entrar. O sol nos recebeu,
passando pelas janelas. Traçou faixas luminosas no ar e brilhou so-
bre as imagens emolduradas. A maioria, pôsteres. Pôsteres de fil-
mes. De volta para o futuro, E. T., Guerra nas estrelas, o primeiro fil-
me: Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante… Nossa.
– Pode sentar. – Ele apontou para uma poltrona.
Eu me sentei. Ele também. Na cadeira de escritório. Fiquei mais
baixo que ele, não gostei disso.
– Ah, desculpa.
Ele se levantou de novo e foi se sentar na outra poltrona. Fica-
mos da mesma altura. Cada um sentado numa cadeira funda, tudo
que faltava era uma bebida.
– Agora, sim. – Ele sorriu de novo. – Então, em que posso aju-
dar? Me diga.
Eu me contorci. Desviei o olhar.
– Um pôster legal. – Fiz um gesto em direção ao cartaz de Guer-
ra nas estrelas. Tentei manter a voz calma.
– Não é? Esse é original.
– É mesmo?
– Comprei no eBay quando comecei a trabalhar aqui.
– Estava quase a ponto de dizer: você tem idade para ter visto
esse filme?
Ele riu.
– Assisti em vídeo.
– Foi o que pensei.
– Mas eu tinha os bonecos de todas as personagens. As espaço-
naves também. Você é fã?
– Roxo, lógico. – Lá ia eu de novo. Pelo visto, precisava ficar de
olho na minha fala.
De repente ele começou a cantar. A música de abertura, enquan-
to regia com um dedo no ar. Me fez rir.
Ele mesmo se interrompeu.
– O cinema nunca mais será igual.
– Tem razão.
Ficamos em silêncio. Ele só olhou para mim. À espera.
William

Cedi ao desejo de Thilda, à ordem de seu olhar, embora cada passo


em direção à loja me doesse. Era o caminho do penitente, meu Ca-
minho de Canossa. Saí cedo, logo ao amanhecer. Um galo cantava
com voz estridente de um quintal. Marteladas metálicas soavam da
oficina do seleiro, mas não vi ninguém. O silêncio ainda reinava no
carruageiro, no relojeiro e na mercearia. No final da rua, o botequim,
um local abafado e fedorento onde nunca punha meus pés, estava
fechado. Um freguês beberrão, que evidentemente não encontrara o
caminho de volta para sua própria cama, dormia encostado na pare-
de externa. Reconheci-o como um dos frequentadores mais assí-
duos. Virei o rosto para o outro lado, seu destino despertou repulsa.
Imagine abdicar do controle dessa forma, deixar a bebida governar
sua vida, tomar conta…
Só a padaria estava aberta, e o cheiro de pão fresco, roscas e
talvez uma ou outra swammerpada passava pelas frestas da casa,
quase tomando uma forma visível. Felizmente, o padeiro e seus dois
filhos ainda se encontravam lá no fundo, ao pé do forno grande e
quente. Ainda não estava na hora de uma pausa, de sair à rua e sa-
borear um cachimbo de fumo, enquanto os primeiros clientes come-
çavam a chegar. Ou de me ver.
Normalmente, eu só abriria a loja daqui a várias horas, mas não
queria ser visto. Não estava preparado para as perguntas dos atrevi-
dos. Ora, o sujeito apareceu. Olha só. Ainda está vivo, então? Adoe-
ceu, pelo que dizem. Mas já se recuperou? Agora veio para ficar?
O edifício baixo de alvenaria vermelha estava escuro e fechado,
e a calçada, repleta de folhas do ano passado. Senti o braço pesado
quando o levantei para enfiar a chave na fechadura. Metal contra
metal, o ruído fez-me estremecer. Não queria entrar. Sabia o que me
aguardava. Um lugar empoeirado, sujo, dias de trabalho para deixá-
lo apresentável.
A porta estava empenada e costumava ser difícil de abrir. Mas
quando encostei o ombro nela, abriu-se silenciosa e recém-lubrifica-
da, não com o ranger antiquíssimo a que me habituara no decorrer
dos anos. Lembrei-me de que a sobrinha de Thilda, que eu, num
momento de fraqueza, empregara na loja, poderia ter lubrificado as
dobradiças. Moça de seios fartos e risadinhas ruidosas, Alberta era
mão de obra excedente num lar com prole numerosa e estava numa
idade altamente núbil. Talvez já tivesse passado do ponto, uma pera
comum um tanto madura, que logo cairia no chão sob o peso de
seus próprios sumos. Tanto seus pais como ela própria estavam pe-
nosamente conscientes da precariedade de sua situação. Sabiam
que encontrar um consorte adequado e disposto para ela não seria
uma tarefa simples. Tinham esperanças de algo mediano, mas ela
carecia de dote e tampouco possuía outra coisa que a tornasse es-
pecialmente atrativa, com exceção do referido busto. No entanto,
seu empenho era louvável, ela vivia mais exposta do que se estives-
se em uma vitrine. Estava tão pronta para ser colhida que se com-
portava como se qualquer espécime do sexo masculino fosse seu
escolhido. Na loja, tudo o que fazia era se contorcer de forma convi-
dativa atrás do balcão e exibir, para todos os que quisessem ver, a
fenda suada entre os seios, que exalava odores de fêmea. Fora is-
so, não levantava um dedo. Desde que eu adoeci até Thilda ser for-
çada a dispensá-la, imagino que não tenha feito muita coisa além de
se expor na porta da loja. E não importa o que fizesse, ela se atra-
palhava, e sua presença, suas risadinhas constantes, deixavam-me
em parte tonto, em parte fervendo de irritação. Sua desinibição, a
concupiscência, deixada à mostra tão despudoradamente…
A loja estava na penumbra. Acendi algumas velas e a candeia de
latão. O local estava surpreendentemente limpo e muito bem arru-
mado. O balcão grande estava quase vazio, com o tinteiro, o bloco
de recibos e a balança de bronze posicionados com esmero numa
das extremidades. A volumosa luminária de teto fora polida e estava
pronta para ser usada, com o recipiente limpo e repleto de óleo.
Normalmente, o chão ficava cheio de grãos de pimenta e flocos de
sal, que se faziam sentir a cada passo. Mas agora tinha sido tão
bem esfregado que se via cada ranhura, e as áreas mais claras da
madeira, onde o piso estava mais desgastado, formavam como que
um caminho entre o balcão, a parede das gavetas e a porta de en-
trada. Thilda havia dito que deixara Alberta cuidar do fechamento da
loja no último dia, mas não mencionou que outra pessoa tivesse vin-
do desde então. Será que alguém esteve aqui mesmo com a loja fe-
chada?
Aproximei-me de uma das janelas. Não havia pó no peitoril. Não
havia nem uma mosca morta, o que seria de esperar depois de todo
esse tempo. E era fácil respirar, o ambiente não estava pesado e
abafado, mas recém-arejado. Fui até o móvel que continha as pe-
quenas gavetas. Pus a mão num puxador, abri a gaveta e olhei lá
dentro. Estava totalmente limpa.
Conferi mais uma. Ela também estava limpa.
Alguém havia tirado o pó. Teria sido Alberta? Pelo que sabia, ela
tinha ascendido, tornara-se a encarregada do setor de tecidos da
mercearia. Eu não podia acreditar que tivesse tempo ou vontade de
me ajudar, em meio a todas as suas tarefas supostamente importan-
tes naquele estabelecimento.
Quem quer que o tivesse feito, eu não poderia deixar de me sen-
tir aliviado. Tudo impecável. A loja não só estava pronta para ser
aberta, estava mais limpa e arrumada do que nunca.
Verifiquei o estoque, e este, porém, era uma tristeza. Sua abun-
dância assemelhava-se à do Saara. Já não havia mais grãos e se-
mentes, e a quantidade de pimenta, sal e especiarias tinha se redu-
zido à metade. Nas gavetas para os bulbos de flores sobravam ape-
nas algumas folhas soltas e raízes brancas solitárias. Alberta tinha
fechado a loja quando a primeira neve cobriu o solo. Antes disso,
pelo visto, ela vendera todos os bulbos de outono, até alguns secos
e bastante duvidosos de narciso, que tinham sido guardados duran-
te vários anos. Mas ainda havia bulbos primaveris e tubérculos para
cultivo em estufa. O sortimento não estava nada ruim. Trazia uma
boa sensação segurá-los, era como pegar a mão de um velho ami-
go. Mas infelizmente a estação deles já se fora. Era tarde demais
para o pré-cultivo em recinto protegido e, se fossem plantados dire-
tamente na terra, não floresceriam até a geada se insinuar de novo
no solo, nas horas noturnas.
Apesar disso, eu teria de abrir a loja e tentar vender o pouco que
tinha, mostrar a Thilda que pelo menos estava fazendo um esforço,
e assim atenuar suas incessantes lamúrias, mesmo que apenas por
alguns dias.
Às oito horas em ponto, abri a porta e deixei o sol penetrar na lo-
ja. Do lado de fora, coloquei dois vasos com dálias que eu tirara do
canteiro de casa. Balançavam de leve ao vento e alegravam a ruela
com tons de vermelho, cor-de-rosa e amarelo.
Fiquei ali, no vão da porta. A loja estava iluminada e convidativa
atrás de mim. Endireitei as costas. Relutara tanto em voltar para cá,
para este lugar que antes me havia oprimido, que me havia deixado
com ombros tensos e olheiras. Mas agora estava limpo e atraente,
tão asseado como eu mesmo me sentia. A loja estava pronta, eu es-
tava preparado – para reencontrar o vilarejo, encarar o mundo. Ago-
ra, podiam vir.
•••
Formou-se uma fila. Aparentemente, o vilarejo inteiro já sabia que
eu ressuscitara dos mortos e de repente todos queriam comprar mi-
nhas especiarias empoeiradas e bulbos de flores ressecados. Tratei
de despachar algumas encomendas já na parte da manhã, mas,
quando o sol estava a pino, não foi possível fazer outra coisa senão
atender os fregueses. Provavelmente, essas poucas horas foram
suficientes para todo mundo ficar sabendo. Não foi a primeira vez
que me espantei com a rápida propagação da fofoca nesse lugarejo,
era como se tivesse a ajuda de uma ventania, pelo menos quando
algo realmente importante acontecia. E estava claro que este fora o
caso agora. A julgar pela multidão, minha volta parecia comparável
a uma ressuscitação de Cristo.
Ouvi as pessoas cochicharem a meu respeito, mas, para minha
própria surpresa, isso quase não me afetava. Pois não me cumpri-
mentavam com sorrisos desdenhosos e comentários sarcásticos,
como ocorrera depois da palestra sobre Swammerdam, mas com
olhares francos, cabeças curvadas, mãos estendidas numa curiosi-
dade respeitosa. Minha imagem refletida no vidro ajudou-me a en-
tender por quê. Minha nova aparência de fato colaborava. Eu não
parecia mais um comerciante insosso. O aspecto rechonchudo, des-
leixado, desaparecera. Esse homem esbelto, de feições marcantes,
inspirava respeito. Ele era interessante, especial, não um deles.
Muito poucos tinham certeza sobre o que me afligira, e, se tivessem
suas suspeitas, talvez fossem levados à veneração e não ao des-
dém. Pois eu estivera cara a cara com meu fim, mas havia lutado e
ressuscitado.
Eu estava em meu elemento. O dinheiro não parava de passar
por minhas mãos. Eu contava e somava sem descanso, mas ao
mesmo tempo conversava com todo mundo, fazendo questão de
perguntar como as coisas estavam indo com cada um. O casamento
de sua filha, Victoria, não é, foi abençoado com filhos? E o sítio?
Quantos potrinhos você disse? Maravilha! E a colheita? O que você
acha, parece que vai ser uma safra abundante? Olha o pequeno
Benjamin, já está com dez anos, e continua tão esperto como antes.
Vai ser alguém importante, esse menino.
Quando tranquei a porta à noite, foi com um movimento leve e
preciso. Na mão, eu segurava uma carteira recheada. E, embora as
pernas estivessem extremamente cansadas, não me custou nada a
caminhada de meio quilômetro para casa. Lá me aguardavam os li-
vros. Eu trabalharia até meia-noite, pois não estava nem um pouco
fatigado, só ganhara mais forças. Tinha pensado que teria de esco-
lher, mas eu daria conta das duas: tanto da vida como da paixão.
Tao

Era noite e eu estava acordada de novo. O sono não fazia sentido,


da mesma forma que nada fazia sentido. Eu estava na sala. Encos-
tada em uma das paredes. Inclinava a cabeça e olhava para minhas
mãos, colocando as pontas dos dedos umas contra as outras. Pres-
sionava as unhas de uma das mãos sob as da outra até doer. Elas
estavam muito compridas. Queria saber quanto tempo eu teria que
apertar antes de sair sangue.
Tinha conseguido lidar com o desaparecimento da mamãe. Ela
estava doente, velha. Parecia que tinha ido para um lugar bom, o fil-
me dava a impressão de um local bonito e seguro. Mas Wei-Wen…
O choro ardia no peito, apertava a garganta, causava uma dor física
tão forte que eu tinha dificuldade de respirar. Mas não o soltava.
Ninguém nos obrigou a trabalhar. No dia seguinte à nossa volta
para casa, a supervisora de minha equipe de trabalho apareceu,
acompanhada do supervisor de Kuan. Os dois tinham sido informa-
dos. Por quem, não disseram e eu esqueci de perguntar. Ficaram
gaguejando na porta, não quiseram entrar e disseram que era para
tomarmos o tempo que fosse necessário.
Não sabíamos por quanto tempo nos deixariam em paz.
Nos primeiros dias, chegavam presentes na porta. A maior parte,
comida. Enlatados. Uma garrafa de ketchup de verdade. Até um
kiwi. Eu nem sabia que ainda produziam kiwis. Só que não tinha
gosto de nada. Nossas coisas, alguém tinha recolhido e também
mandaram nos entregar. Tudo estava ali, até a lata de ameixas va-
zia. Seu cheiro me deixou nauseada.
No início, Kuan só ficou deitado no quarto. Ele chorava por nós
dois. Os soluços enchiam o apartamento, difundindo-se pelos cômo-
dos apertados. Mas eu não conseguia ir lá e ficar com ele.
Então ele se levantou. Ficamos rondando um ao outro em silên-
cio. Os dias passavam batidos. Vivíamos num vácuo, tão imóvel e
fechado como a sala onde Wei-Wen tinha ficado. Kuan continuava
calado. E eu era incapaz de dizer qualquer coisa, pois não sabia co-
mo. Talvez ele não me culpasse, talvez nem lhe passasse pela ca-
beça.
Sim.
O olhar vazio. A distância que mantinha de mim o tempo todo.
Antes, tínhamos intimidade física, agora nunca ficávamos perto um
do outro. No entanto, ele era passivo demais para dizer alguma coi-
sa. Talvez não tivesse coragem. Ou será que era uma tentativa de
me proteger? Eu não sabia.
Mas aquilo que se instalara entre nós tinha tomado dimensões
intransponíveis. Ele mantinha distância de mim, mas eu também
não conseguia tocar nele, falar com ele. Tornou-se quase insuportá-
vel ficarmos no mesmo quarto. Ele despertava em mim sempre os
mesmos pensamentos. As mesmas duas palavras. Minha culpa, mi-
nha culpa, minha culpa. Por isso, tudo nele passou a ser repulsivo.
Seu corpo me causava aversão, eu ficava enjoada com a simples
ideia de que ele pudesse me tocar. Mas eu escondia isso o melhor
que podia. Brincávamos de pai e mãe, mas sem o filho. Preparando
comida. Arrumando. Lavando roupa. Todo dia igual. Levantar, comer
um pouco. Tomar chá. Aquele chá inevitável. E esperar.
Eu tentava ligar para o hospital toda hora. Era sempre eu quem o
fazia, nem para isso ele tinha iniciativa. Nunca mais consegui falar
com a dra. Hio, e depois de algumas semanas ficou claro que ela ti-
nha saído. Os outros médicos não disseram nada sobre o porquê.
As respostas eram as mesmas, não importando com quem eu fa-
lasse: Não sabemos mais. Vocês precisam esperar. E claro que va-
mos fornecer nomes. Evidentemente. Só esperem mais um pouco.
Apenas alguns dias. Vamos averiguar. Vamos entrar em contato
mais tarde. Vocês só precisam esperar.
Embora tivessem nos dado todo o tempo de folga que quisésse-
mos, certa manhã Kuan saiu do banho vestindo a roupa de trabalho.
– Melhor assim – disse ele em voz baixa.
Fiquei surpresa, quase pasmada, não porque ele ia sair, mas
porque senti um grande alívio. Isso, me livraria dele, ficaria sozinha,
me parecia ser o único ponto positivo em todas essas semanas.
– Tudo bem pra você? – perguntou.
– Sim, pode ir.
– Se achar difícil ficar sozinha, posso muito bem ficar.
– Está tudo bem.
Mas ele continuou parado. A roupa estava folgada em seu corpo,
ele tinha ficado ainda mais magro do que antes. Ele só olhou para
mim, talvez esperando que eu dissesse alguma coisa. Ficasse bra-
va, gritasse, xingasse. Mas por que esperava que eu ficasse com
raiva? Isso também se tornara minha responsabilidade? Os grandes
olhos miravam-me suplicantes, a boca macia estava ligeiramente
entreaberta. Virei o rosto para o outro lado, não aguentei olhar para
ele. O belo homem que antes me fizera esquecer de mim mesma.
Agora eu só queria me livrar dele o mais rápido possível.
– Tao?
– Você precisa ir, se pretende chegar na hora da chamada. Con-
tinuei sem olhar para ele. Ouvi como tomou fôlego várias vezes, tal-
vez tenha desejado dizer algo, mas não encontrou as palavras.
Aí ele foi embora, seus passos no chão, a porta que bateu. Enfim
me deixou sozinha no apartamento vazio.
Entrei no quarto. O pijama de Wei-Wen estava na cama dele. Eu
o peguei e fiquei sentada segurando-o nos braços. Não quis lavá-lo.
Só tinha sido usado duas noites e estava pronto para ele na cama.
Até ele voltar. O tecido parecia fininho entre os dedos, luas sorriden-
tes sobre um fundo azul. Ainda havia um leve cheiro de suor de cri-
ança.
Passei o dia inteiro sentada assim.
Depois disso, gradativamente comecei a trocar a noite pelo dia.
Enquanto Kuan dormia seu sono pesado de trabalhador braçal, eu
estava acordada na sala. Alternava entre andar e ficar parada, e só
ao raiar do dia desabava na cama. Não conseguia descansar. Se eu
sentasse, se relaxasse, se dormisse, Wei-Wen desapareceria para
sempre.
Virei-me para a janela. A vista dava de frente para o cercado
branco que rodeava as plantações. Guardas ficavam postados a in-
tervalos de aproximadamente cem metros. Vislumbrei o contorno do
mais próximo. Ele olhava para o nada e não se mexia. Eu faria qual-
quer coisa para saber o que estava vigiando.
A cerca era tão alta que não podíamos ver o lado de dentro, nem
mesmo do telhado da casa. Já tinha subido lá para tentar. No topo
da cerca fora esticada uma rede que o vento não parava de agitar.
Durante as primeiras semanas, os trabalhadores subiram diversas
vezes para prendê-la melhor. Todo dia apareciam espectadores curi-
osos, mas sempre eram mandados embora. A área estava rigorosa-
mente vigiada. Eu tinha caminhado ao longo da cerca para ver se
havia alguma abertura, lugares por onde seria possível penetrar,
mas por todo lado havia guardas.
Kuan me contou que as pessoas falavam. Agora a equipe de tra-
balho atuava em outro pomar. Era uma caminhada de dez quilôme-
tros em cada sentido, o que dava bastante tempo para conversar.
Ele escutava. As especulações corriam soltas. Tudo o que estava
acontecendo tinha algo a ver com Wei-Wen, essa era a opinião de-
les. A cerca, o isolamento, os militares. Todos achavam isso. Só po-
dia ser, diziam, pois nós tínhamos sido os últimos a estar lá dentro.
E Wei-Wen tinha sido internado. Mas ao se darem conta de que Ku-
an estava ouvindo, eles se calavam. E tão logo se sentiam seguros
de que ele não escutava mais, com certeza retomavam o assunto. A
tagarelice agora estava focada em nós e tinha um viés sensaciona-
lista. Éramos o objeto da atenção de todos, e não havia nada que eu
pudesse fazer.
Sabíamos tão pouco quanto eles. Nossas especulações tinham
as mesmas bases que as deles. Algo tinha acontecido com Wei-
Wen ali fora, e agora ele não estava mais aqui. Isso era tudo o que
sabíamos.
De repente, reparei no guarda lá embaixo. Estava encolhido per-
to da cerca, sentado com os joelhos dobrados e a cabeça levemente
balançando para a frente. Estava dormindo.
William

Os ovos não têm mais de 1,5 mm de comprimento. Um em cada al-


véolo, sua cor acinzentada contrastando com a cera amarela. A lar-
va eclode depois de apenas três dias. Ela, pois geralmente trata-se
de uma fêmea, é superalimentada tal qual uma criança mimada. Em
seguida, vêm os dias de crescimento, antes de o alvéolo ser coberto
por uma camada de cera. Ali dentro, a larva cria o casulo, o qual ela
tece em torno de si mesma, uma roupa protetora contra tudo e to-
dos. Aqui, e somente aqui, ela está sozinha.
Decorridos 21 dias, a operária sai do alvéolo e se reúne com as
outras. Recém-nascida, mas não pronta para o mundo, um bebê.
Não sabe voar nem comer por conta própria, e mal consegue segu-
rar-se nos quadros. Vive a rastejar, a engatinhar, a ensaiar. Nos pri-
meiros dias, portanto, é incumbida de tarefas simples dentro da col-
meia, e seu raio de ação é curto. Faz a limpeza do ninho, começan-
do por seu próprio alvéolo, depois os das outras. E nunca está sozi-
nha. São muitas, centenas de outras, que sempre estão exatamente
na mesma fase de desenvolvimento dela.
Vem então a fase de trabalho como abelha nutriz. Embora ela
mesma seja apenas uma criança, agora é sua responsabilidade ali-
mentar as que ainda estão por nascer. Ao mesmo tempo, ela ensaia
os primeiros voos, experimentando as asas, cuidadosa, hesitante,
nas tardes em que o tempo está agradável. Ela encontra o caminho
para sair pelo alvado, faz um breve passeio para cima e para baixo
na frente da colmeia, antes de gradativamente aumentar a distância
do lar. No entanto, ela ainda não está pronta.
Continua a ter tarefas na colmeia. Cuida do pólen que chega,
produz cera e dá sua contribuição como abelha guardiã. E, ao mes-
mo tempo, os passeios fora da colmeia tornam-se mais longos. Ela
se prepara. Logo estará pronta. Logo.
E então, enfim, ela se torna campeira. Sai sozinha, está livre, se-
gue voando de planta em planta, por quilômetros a fio, coletando o
doce néctar floral, o pólen e a água. Aqui fora ela está sozinha, mas
mesmo assim é parte da coletividade. Uma parte minúscula, quase
insignificante, quase um nada quando está sozinha. Mas, em con-
junto com as outras, ela é tudo. Pois juntas formam a colmeia.
•••
A ideia teve início na esfera do invisível, mas se desenvolveu como
a própria abelha. Comecei com esboços, leves traços de carvão no
papel, medidas imprecisas, formas vagas. Depois ousei mais, fiz
contas, calculei, os traços ficaram mais definidos, estendi todo o pa-
pel no chão. Por último, peguei a caneta e a tinta, e ela tomou forma
diante de mim, traços nítidos, precisos, medidas exatas. E, finalmen-
te, no 21º dia, a colmeia estava pronta.
•••
– O senhor é capaz de construir isto?
Espalhei os desenhos sobre o tampo da mesa desgastada de
Conolly. A mesa estava cheia de cortes e arranhões acumulados ao
longo de muitos anos, e, além do mais, não estava totalmente firme.
Era de esperar que ele, mais do que qualquer pessoa, produzisse
móveis para seu próprio uso com capricho e os conservasse em
bom estado. Mas talvez fosse como na casa do ferreiro… Tudo em
sua salinha estava torto e cambaio. Uma cama mal-ajambrada ocu-
pava um canto, perto da lareira via-se uma cadeira quebrada. Será
que não se dispunha a consertar sua própria mobília, preferindo jo-
gá-la no fogo quando não tinha mais jeito? O chão estava cheio de
serragem, como se trouxesse o trabalho para dentro da sala, embo-
ra a própria oficina ficasse num quarto contíguo.
Ele pegou um dos desenhos. Parecia frágil em sua mão forte.
Segurou-o contra a luz da sala apertada, deu um passo em direção
à pequena janela. Um dos vidros estava quebrado e tinha sido tam-
pado com uma tábua cheia de nós. Ele me fora recomendado – o
melhor carpinteiro da região, diziam –, mas o ambiente não era con-
vincente.
– A caixa não tem problema, mas por que ela precisa de telhado
inclinado?
– Bem… É uma casa… uma construção… um lar.
– Um lar? – Ele hesitou. – Você está falando de abelhas?
Pensei. Não poderia lhe explicar tudo isso, teria de encontrar
uma razão lógica, falar sua língua.
– É por causa da água. A chuva. Quando chove, a água escorre.
Ele fez que sim, este foi um argumento que pôde reconhecer,
pois tinha a ver com construção, não com emoções.
– Isso complica o trabalho. Mas tudo bem.
Então pegou o desenho do interior.
– E isso… quadros?
– Vão ser pendurados do topo. Seria preferível com dez por col-
meia, mas podemos nos contentar com sete ou oito. Um pedaço de
cera vai ser afixado neles.
Ele me olhou interrogativo.
– Cera de abelha. Para que as abelhas possam continuar a
construção a partir dela.
– Como assim?
– Por natureza, as abelhas constroem favos diagonais, mas não
vou deixá-las construir desordenadamente, por isso facilito as condi-
ções de trabalho.
– Certo – disse ele, e coçou a orelha, parecendo não estar inte-
ressado.
– Nessa colmeia, os quadros vão ajudá-las a construir favos ali-
nhados. Terei uma visão completa das condições de trabalho atra-
vés da porta, além de poder tirar e inserir os favos. Assim, será mais
fácil observar e tomar conta das abelhas e, sobretudo, colher o mel
sem prejudicá-las.
Ele me olhou sem qualquer expressão por um momento, e então
tornou a estudar os desenhos.
– Tenho molduras – disse ele. – Mas as paredes e o teto… estou
um pouco em dúvida sobre os materiais.
– Essa avaliação vou deixar por sua conta – disse eu, com toda
a simpatia que consegui exibir. – Afinal, esta é sua área.
– Tem razão, senhor – disse ele. – E a sua área, então, hum…
são os favos paralelos.
Pela primeira vez ele sorriu, um sorriso largo e franco, enquanto
me estendia a mãozona forte. Sorri de volta e peguei sua mão. Já
estava imaginando caixas e mais caixas da Colmeia Padrão de Sa-
vage saindo da oficina do carpinteiro e sendo vendidas com um bom
lucro tanto para ele como para mim. Sim, esta realmente prometia
ser uma excelente cooperação.
Ge orge

Os caminhões de Kenny entraram no pátio com uma tosse retum-


bante, cheia de gases de escape. A poeira subiu dos pneus e se de-
positou nas caçambas vazias, formando uma camada grossa. Os
motores encobriam por completo o canto dos passarinhos ao pôr do
sol. Eu tinha alugado três caminhões este ano. Estávamos falando
de caminhões, infelizmente, e não de carretas do tipo que Gareth
usava. Os caminhões eram cascos velhos e enferrujados por fora,
nada impressionantes, e não comportavam mais que três colmeias
de altura e quatro de largura. Mas sob o capô eles eram pangarés fi-
éis, com motores tão simples que você mesmo era capaz de conser-
tar se tivessem algum problema, o que acontecia com frequência.
Começamos a carregar as colmeias no lusco-fusco. Não dava
para fazer isso durante o dia, pois as abelhas estavam fora. A gente
precisava esperar que se recolhessem.
Estava escurecendo. Deixamos os motores ligados e os faróis
iluminando a campina enquanto trabalhávamos. Éramos como alie-
nígenas de roupa branca com chapéus e véus, entrando e saindo
dos feixes de luz dos caminhões, como se tivéssemos chegado a
um planeta desconhecido para buscar material biológico em caixas.
Aquilo me fez sorrir sozinho. Agora, sim, aquele Professor Moletom
deveria nos ver.
O suor escorria sob a roupa. Era trabalho pesado. Cada colmeia
pesava muitos quilos.
Mas no próximo ano. Mas, no próximo ano, seria um caminhão
grande e talvez uma carreta de verdade. Eu tinha juntado um dinhei-
ro e esperava que fosse o suficiente para mais um empréstimo no
banco. Não tinha falado com Emma sobre isso. Sabia qual era sua
opinião. Mas para ganhar dinheiro há que se gastar dinheiro. É as-
sim que funciona.
Fomos embora assim que terminamos de carregar os cami-
nhões. Não tinha por que esperar. A viagem era demorada. Dois ho-
mens em cada caminhão se revezando no volante. Peguei meu pró-
prio caminhão. Tom e eu.
Talvez fosse por causa da Guerra nas estrelas, talvez porque o
próprio Tom tivesse dito que escreveria sobre a viagem, que lhe ser-
viria de inspiração. De qualquer forma, ele veio naquela mesma tar-
de. Com a total aprovação de John, o professor. Tom deu um abraço
em Emma, vestiu o macacão e saiu. O resto do tempo, tinha passa-
do com as abelhas. Não dizia grande coisa. Eu não via seu rosto.
Estava na sombra por trás do véu. Mas ele trabalhou, fez o que a
gente pediu. Em silêncio e com ligeireza, até mais rápido do que
Jimmy e Rick. Quis dizer isso a ele, fazer um elogio, mas não en-
contrei o momento certo.
Também na estrada não tive essa oportunidade, porque Tom en-
rolou a blusa no formato de uma salsicha, encostou-a na janela, re-
costou a cabeça nela e fechou os olhos.
Meu menino era bonito. Um pouco pálido, mas bonito. As meni-
nas deviam gostar dele, não? Será que tinha uma namorada? Eu
não sabia.
O ronco do motor era regular. A respiração de Tom também.
Pouco movimento na estrada, só muito de vez em quando passáva-
mos por algum veículo. A estrada estava seca, mantínhamos uma
velocidade alta, mas nada de imprudências.
Tudo estava indo de acordo com o plano.
•••
A gente se revezou para dormir e dirigir. Ninguém disse muita coisa.
O dia raiou. A paisagem ondulava a nossa volta. Uma máquina pas-
sou por um campo um pouco distante. Parecia um inseto gigantes-
co. O corpo da máquina, o tanque de pesticida, era grande e redon-
do, comportando milhares de litros. Ele tinha longas asas giratórias
que espalhavam a substância química sobre os campos numa nu-
vem de gotículas.
Eu mantinha minhas abelhas longe dos pesticidas. Tinham um
efeito entorpecente sobre elas, sempre levavam a perdas. Mas nos
últimos anos muitos tinham passado a usar um método novo. O pes-
ticida não era mais pulverizado, mas espalhado sobre o solo na for-
ma de pequenas bolinhas. Era mais seguro e melhor, diziam. Ficava
no solo e era absorvido pelas raízes das plantas, permanecendo por
mais tempo, atuando por mais tempo. De qualquer forma, era uma
merda. Eu gostaria que os agricultores resolvessem isso à moda an-
tiga, que as lavouras se virassem sozinhas, sem a ajuda de pestici-
das. Mas pelo visto não era possível. As pragas eram capazes de
acabar com uma lavoura madura em uma só noite. Nós já éramos
numerosos demais, os preços dos alimentos baixos demais, e todo
o resto caro demais, para que alguém se arriscasse.
Tom despertou ao meu lado. Abriu a garrafa térmica, tomou um
pouco do que restava e de repente se lembrou de mim.
– Desculpa, você quer?
– Pode tomar à vontade.
Ele bebeu tudo em dois goles. Não disse mais nada.
– Bem – falei. Mais para preencher o silêncio.
Ele não respondeu. Não tinha muito a dizer.
– E aí? – falei. – Bem. – E pigarreei. – Tem algum esquema com
alguma menina? Na faculdade?
– Não. Nada disso – falou.
– Nenhuma bonitinha?
– Nenhuma que me ache bonitinho – riu, e percebi que ele esta-
va falador.
– Você vai ver só – disse eu.
– Espero que não precise esperar tanto tempo quanto você e a
mamãe.
Emma e eu nos casamos com trinta anos de idade. Meu pai já ti-
nha desistido de mim fazia tempo.
– Deveria estar contente – falei. – Foi poupado de irmãozinhos
barulhentos. Você nem tem noção da sorte que teve.
– Talvez fosse legal com irmãos também – disse Tom.
– No papel – falei. – Na realidade é um inferno. E sei do que es-
tou falando.
Éramos quatro irmãos. Gritaria e brigas da manhã à noite. Eu era
o mais velho e assumi o papel de papaizinho desde os seis anos de
idade. De fato, sempre achei ótimo que Tom fosse filho único.
– Seja como for. Primeiro vai ter que arranjar uma mulher. E de-
pois pode fazer filhos, um por vez. Você sabe como funciona a re-
produção. A abelha e a flor. Ou será que nunca tivemos aquela con-
versa?
– Não, talvez seja uma boa ter essa conversa agora? – Ele deu
risada. – Me fale, pai. Como é aquela história da abelha e da flor?
Eu ri.
Ele também.
Me fez bem.
William

– Edmund? – Bati à porta de seu quarto.


Nos últimos dias, enquanto aguardava a nova colmeia, eu tinha
ficado bastante tempo lá fora com as abelhas, para me familiarizar
com elas. Primeiro com mãos trêmulas, depois com confiança cada
vez maior. Já tinha encontrado a rainha, que era maior que as ope-
rárias e os zangões, e a marcara com um pontinho de tinta branca
na carapaça. Observara realeiras já construídas e as inutilizara ime-
diatamente. Não poderia correr o risco de enxameação, ou seja, de
que a antiga rainha levasse parte da colônia embora para dar espa-
ço a uma rainha mais nova e seus descendentes. No entanto, a col-
meia fornecia-me poucos conhecimentos, era com grande esforço e
cuidado que eu a abria, as abelhas ficavam inquietas toda vez. Ain-
da não estava claro para mim como era possível a rainha pôr dois ti-
pos de ovos, um para as operárias e outro para os zangões. As con-
dições para o trabalho de observação não eram das melhores. Su-
pus que tão logo a nova colmeia estivesse instalada os estudos ren-
deriam mais.
Pelo menos uma coisa era certa: eu estava lidando com uma co-
lônia de abelhas aplicadas. A colmeia ficava cada vez mais pesada,
as abelhas traziam néctar e pólen e o mel já estava brilhando lá
dentro, dourado escuro, açucarado e tentador.
Charlotte fazia-me companhia com frequência. Ela monitorava as
abelhas com grande entusiasmo, pegava a colmeia nas mãos, pesa-
va-a, estimava a quantidade de mel. Com habilidade, levantava a
colmeia, verificava a existência de realeiras, identificava a rainha, ti-
rava-a com a mão – sim, ela ousava fazer isso mesmo sem luvas –
e via como as abelhas voavam em rodopios, procurando-a, como
sempre fazem com sua rainha. Charlotte cresceu nesse verão. O
corpo desengonçado ganhou formas, as faces pálidas adquiriram ru-
bor, as saias ficaram quase indecentemente curtas, subindo até o
meio da canela. Um novo vestido, pensei, isso ela mereceria, mas
teria de ficar para depois, porque agora outras coisas eram mais im-
portantes.
Havia dias em que eu precisava ir à loja. Então, ela me ajudava
lá também. Arrumava, limpava, mantinha o estoque organizado, fa-
zia contas a ponto de raspar o bico da caneta, somando, subtraindo,
avaliando o lucro.
Mas Edmund nunca participava. Os preparativos para seus estu-
dos no outono não caminhavam como deveriam, o que era nítido até
para mim, que tão raramente estava presente no seio da família. Os
livros, por ele guardados num canto escuro da sala de estar, esta-
vam ficando tão empoeirados quanto os meus estiveram. Ele anda-
va sempre muito cansado, sentindo-se mal, fechando-se com fre-
quência dentro de seu quarto. A inquietação fora substituída por
uma languidez, uma morosidade, uma lentidão que raras vezes
eram vistas nos jovens.
Mesmo assim, eu agora esperava que ele me acompanhasse.
Queria explicar-lhe o que verificara sobre a colmeia de palha e de-
pois demonstrar como minha invenção era muito mais brilhante.
Queria mostrar-lhe o que ele e seu livro tinham desencadeado em
mim, na esperança de que eu fosse capaz de despertar o mesmo
entusiasmo nele.
– Edmund? – Bati à porta de novo.
Ele não atendeu.
– Edmund?
Nada aconteceu.
Hesitei, então apertei a maçaneta com cuidado.
Trancada. Claro.
Inclinei-me, espiei pelo buraco da fechadura e vi que a chave es-
tava inserida do outro lado. Logo ele não estava fora, mas havia-se
fechado dentro de casa.
Bati com força à porta.
– Edmund!
Finalmente ouvi passos no chão lá dentro e a porta foi destran-
cada. De uma fresta estreita, ele piscou para a luz e para mim. A
franja estava ainda mais comprida e ele tinha deixado crescer um bi-
gode ralo no lábio superior. Vestia uma camisa amassada e mais
nada. Os pés estavam descalços sobre o piso de madeira e susten-
tavam canelas surpreendentemente peludas.
– Pai?
– Lamento ter de acordar você.
Ele encolheu os ombros, abafando um bocejo.
– Queria que me acompanhasse lá fora – falei. – Gostaria de lhe
mostrar uma coisa.
Ele me fitou com olhos apertados, ensonados. Esfregou um dos
pés na canela como que para se esquentar, mas não respondeu.
– Queria muito que você entendesse a colmeia de palha – conti-
nuei, enquanto tentava manter a empolgação sob controle.
– A colmeia de palha? – Ainda esse tom de voz um pouco arras-
tado, apagado.
– Sim. Você já a viu, lá no fundo do jardim.
– Ah, aquela. – Ele bamboleou e engoliu.
– Para que você compreenda a diferença entre ela e a nova col-
meia. Quando ela chegar.
– Ah, é? – Ele o disse com lábios cerrados e engoliu outra vez,
como se refreasse um refluxo.
– E perceber como a nova tem uma construção muito melhor.
– Certo.
Seus olhos continuaram tão ensonados como antes, não havia
nenhum sinal de interesse.
– Talvez você queira se vestir?
– Não podemos fazer isso outro dia?
– Agora é um bom momento. – Dei-me conta de que eu estava
cabisbaixo, como se implorasse. Ele, porém, parecia não prestar
atenção.
– Estou muito cansado – disse simplesmente. – Talvez mais tar-
de.
Então endireitei as costas e tentei dar um tom autoritário à voz.
– Como seu pai, exijo que me acompanhe já.
Enfim ele me encarou. Os olhos estavam injetados de sangue,
mas mesmo assim estranhamente límpidos. Jogou a franja para
trás, levantou o queixo.
– Caso contrário?
Caso contrário? Não consegui responder. Percebi que eu estava
piscando aceleradamente.
– Caso contrário vou sentir o cinto? – acrescentou. – É isso que
você quer dizer, pai? Caso contrário, você vai pegar o cinto e chico-
tear minhas costas até eu sangrar e ficar sem outra opção senão di-
zer sim?
Isso não estava indo na direção que eu tinha esperado, de forma
alguma.
Ele cravou os olhos em mim, eu cravei os olhos nele. Ninguém
disse nada.
De repente, Thilda apareceu no corredor. Aproximou-se de mim
com passos determinados, as saias roçando no assoalho.
– William?
– São quase duas horas da tarde – disse eu.
A voz dela elevou-se.
– Ele precisa descansar. Não está bem… Pode ir dormir, Ed-
mund.
Ela parou a meu lado, pôs a mão em meu cotovelo.
– Você não faz outra coisa, a não ser dormir – disse eu para Ed-
mund. A voz saiu alta, soava desesperada demais.
Ele não respondeu, só encolheu os ombros. Thilda tentou me
afastar, enquanto olhava para Edmund com carinho.
– Vá-se deitar, meu bem. Você precisa descansar.
– Descansar de quê? – perguntei.
– Você não tem moral para falar – disse Edmund subitamente.
– Como?!
– Afinal, você ficou de cama durante meses.
– Edmund – disse Thilda. – Vamos deixar isso fora da discussão.
– Por quê? – perguntou ele.
Senti o desespero paralisar-me.
– Sinto muito, Edmund. Vou emendar isso. É o que estou tentan-
do agora. Por essa razão gostaria tanto de lhe mostrar…
Mas Thilda me empurrou.
– Coitado do Edmund – disse ela com doçura na voz. – É demais
para ele. Ele tem que descansar, precisa de repouso.
Edmund olhou-me impassível. Então fechou a porta e deixou-nos
ali.
Thilda ainda estava segurando meu braço, como para me pren-
der, e o olhar continuava tão insistente como antes. Fiz menção de
protestar, mas de repente me ocorreu: será que estava doente? Se-
rá que Edmund estava doente?
– Há algo que você não me tenha contado? – perguntei a Thilda.
Seu olhar frio quase me assustou.
– Sou a mãe dele e percebo que precisa de descanso – disse ela
lenta e claramente, parecendo não ter a intenção de explicar-me coi-
sa alguma.
– E eu sou o pai dele e percebo que ele precisa de ar fresco –
disse eu, percebendo no mesmo instante como as palavras soavam
ridículas.
Ela levantou os cantos da boca num sorriso desdenhoso. Ne-
nhum de nós disse mais nada, só ficamos de frente um para o outro.
Ela não ofereceu nem respostas nem deu o braço a torcer. Pois ele
não estava doente, é claro que não estava. Simplesmente Thilda o
protegia, contra os estudos e contra tudo o que exigisse qualquer
coisa dele. No entanto, ela não fazia ideia do que havia entre nós,
do que ele tinha desencadeado dentro de mim, de como seria im-
portante eu dizer isso a ele.
Mas eu não estava preparado para tentar dar explicações, sabia
como era inútil lutar contra ela. Todos os argumentos lógicos seriam
arremessados para o ar, ela era um moinho de vento.
Talvez eu conseguisse agarrar Edmund antes da chegada da
noite, antes de ele sair, como era seu costume. Essa expressão in-
definível, “sair”… Eu desejava, esperava, que ele passasse tempo
na floresta, com seus próprios estudos de observação, inspirado por
mim, assim como eu tinha feito na idade dele. Sim, talvez fosse isso.
Quanto a mim, provavelmente ele preferia esperar que eu tives-
se algo a lhe mostrar de verdade, o que era estimulante. Ele real-
mente veria. Eu o encheria de orgulho.
Tao

Dobrei a esquina de casa. A cerca estava na minha frente, esticada,


alta. Reluzia branca na escuridão, refletindo os raios da meia-lua. A
terra recendia, o tempo estava quente e abafado, a grama se eriça-
va na beira da estrada.
Passei pelo vigia na ponta dos pés. Sua cabeça estava inclinada
e o escuro protegia seu rosto. Ouvi sua respiração pesada e calma.
Algo zunia no ar, um som baixo, talvez dez metros acima de
mim. Um inseto? Não, grande demais. O ruído logo desapareceu e
o silêncio voltou.
Com cuidado, estendi a mão e toquei a cerca. Fiquei assim, to-
talmente imóvel. Esperei um alarme, um som uivante. Mas nada
aconteceu.
Andei alguns metros para a frente, acompanhando o cercado,
com a mão tateando o material liso e denso. E ali, entre os dedos,
de repente senti uma costura. A emenda da lona era justa, mas
mesmo assim consegui enfiar os dedos nela. Puxei um pouco. Com
um ruído fraco, a costura cedeu. Puxei mais, até fazer um buraco
grande o suficiente para me dar passagem.
Lancei um último olhar em direção ao soldado, ele ainda estava
dormindo a sono solto. Então forcei minha passagem pela cerca.
No interior do cercado, a escuridão parecia maior. Eu sabia que
havia holofotes, às vezes víamos luzes vasculhando a área de noite,
mas agora todos estavam desligados.
Será que havia guardas do lado de dentro? Eu não sabia. Fiquei
parada, tentando acostumar meus olhos à escuridão. Lentamente,
as árvores emergiram diante de mim. A essa altura, estavam sem
flores, mas carregadas de folhagem.
Tudo estava em silêncio, apenas um leve vento roçava as folhas
e a grama. Mas eu tremia de ansiedade. Estava fazendo algo proibi-
do, o que aconteceria se fosse pega?
Avancei devagar. A uma pequena distância vislumbrei a trilha
que tínhamos seguido para a colina. Fui até ela.
Nunca na minha vida sentira medo aqui fora. Muitas outras emo-
ções, sim, frustração, tédio, e também alegria, mas nunca temor.
Desloquei-me no maior silêncio possível, ouvindo as batidas do meu
coração e com as costas molhadas de suor.
A trilha me levou adiante, por entre as árvores. De repente algu-
ma coisa se moveu na extremidade do meu campo de visão, uma
sombra. Será que havia alguém ali? Virei-me depressa, mas não vi
nada. Nada. O mundo aqui fora era vazio e silencioso. O medo tinha
causado o engano.
Dei mais alguns passos para a frente.
Um, dois, três, e pule. Um, dois, três, e pule.
Por aqui tínhamos caminhado.
Wei-Wen entre nós dois. Saudável, determinado, quente, fofo.
Meu filho.
Meu filho.
Fui obrigada a parar, a me inclinar para a frente. Uma dor física
no diafragma me atingiu com tanta força que não consegui me mo-
ver.
Respirar com calma. Afastar os pensamentos. Endireitar-me. Ser
racional. Olhar em volta. Quanto faltava agora? Para a colina onde
tínhamos feito o piquenique?
Continuar.
Não tinha andado muito mais quando vislumbrei uma luz. Uma
luz amarelada pairava no ar sobre uma área um pouco adiante.
Eu me aproximei. Mais devagar agora. Pisava o chão com cuida-
do cada vez maior.
E aí vi a tenda. Estava na divisa da floresta, tendo como pano de
fundo arbustos e árvores silvestres. Era circular, do tamanho de uma
casa pequena, com teto pontudo, toda iluminada. Feita da mesma
lona do cercado, a mesma brancura estéril. De onde eu estava po-
dia ver a silhueta de diversos soldados. A tenda estava sob vigilân-
cia muito mais pesada do que a cerca. Eles andavam calmamente
para a frente e para trás, lançando formas nítidas sobre a lona, um
estranho teatro de sombras numa tenda de circo que alguém tinha
esquecido de colorir. Será que representavam uma ameaça ou uma
proteção?
Não vi nenhuma entrada. Nem janelas. Não me atrevi a chegar
mais perto, preferi continuar a mais ou menos cem metros de distân-
cia e dar a volta na tenda, para observá-la do outro lado. Passei a
colina, e, no mesmo instante, ocorreu-me que a tenda estava aproxi-
madamente no mesmo lugar onde Kuan teria encontrado Wei-Wen.
O medo se intensificou dentro de mim. As pernas tremiam tanto que
mal conseguiram me levar para a frente. Eu me dei conta de que ti-
nha torcido para que não houvesse uma ligação, que a cerca e os
militares não tivessem nada a ver com Wei-Wen.
Mas agora… O telefonema que eu andava esperando. A mensa-
gem de que Wei-Wen só tinha caído e batido a cabeça, que sofrera
um traumatismo craniano completamente normal e estava se recu-
perando, que nós poderíamos visitá-lo e logo levá-lo para casa. Es-
ses pensamentos me pareciam mais ainda aquilo que de fato eram:
fantasias impotentes, desesperadas.
A meio caminho entre mim e a tenda, avistei uma pilha de caixas
de papelão. Eu me aproximei na ponta dos pés, atrás da pilha não
seria vista pelos guardas.
Algumas das caixas estavam fechadas, outras, abertas. Olhei
dentro de uma delas, levei a mão ao fundo e tirei o conteúdo. Terra
e restos de raízes de plantas. Impressos na lateral da caixa, o códi-
go postal e o nome da cidade. Pequim.
Deixei a caixa e me desloquei lentamente em direção à tenda.
Receosa de que meu destrambelhamento costumeiro me trairia, que
eu mais uma vez quebraria galhos, concentrei-me em mover cada
músculo do corpo da forma mais inaudível possível.
Já podia ver a frente da tenda. Igualmente branca e impenetrá-
vel, mas com uma abertura lateral, fechada por um zíper estreito e
comprido. Eu me agachei. Esperei. Mais cedo ou mais tarde alguém
teria de entrar ou sair.
Fiquei assim de cócoras até a dor nas pernas se tornar insupor-
tável e me obrigar a mudar de posição. Sentei-me no chão, embora
estivesse úmido. O relento do solo penetrou a roupa. Notei então o
acúmulo de galhos junto da tenda. Uma dúzia de árvores frutíferas
tinham sido derrubadas para dar espaço a ela. Ramos secos apon-
tavam rígidos para a lona branca.
Nada aconteceu. Às vezes, ouvia vozes baixas vindas da tenda,
mas não consegui distinguir as palavras.
Por muito tempo fiquei sentada ali, envolvida pela escuridão. Os
minutos se passaram, se tornaram uma hora. O ar parado estava
começando a me deixar sonolenta.
Então, o deslizar de um zíper. A tenda foi aberta e dois vultos sa-
íram, ambos usando roupa de proteção branca. Eles aproximaram
os rostos e discutiram intensamente em vozes baixas. Eu me inclinei
para a frente, apertando os olhos para enxergar. A tenda ficou aber-
ta apenas por um instante, mas ainda assim consegui distinguir um
pouco do que ela escondia. Uma estrutura interna de vidro, cheia de
plantas. Flores. Uma estufa? Folhas verdes luminosas, flores cor-
de-rosa, laranja, brancas e vermelhas, envolvidas por uma luz dou-
rada. Como uma ilustração de conto de fadas, colorida e quente,
uma paisagem de outro mundo. Plantas vivas, plantas em flor, plan-
tas que eu nunca antes tinha visto, que não existiam entre as fileiras
homogêneas de árvores frutíferas nos pomares.
De repente, um dos vultos começou a andar em minha direção.
Continuei sentada. O vulto se aproximou.
Levantei-me e recuei silenciosamente.
O vultou parou. Ficou à escuta, como se tivesse me farejado.
Não ousei me mexer mais, permaneci totalmente imóvel, na espe-
rança de me misturar aos troncos das árvores.
Ele ficou parado mais um instante, mas aí deu meia-volta e retor-
nou para a tenda. Então eu me apressei a sair.
Apertei o passo, corri de volta para a cerca, me esforçando ao
máximo para não fazer barulho.
Eu tinha visto algo. Mas não sabia o quê. O cercado, as caixas, a
tenda. Não fazia sentido.
Ninguém forneceria o que eu precisava, nem aqui nem no hospi-
tal. Ninguém queria me dar respostas. E não queriam me dar meu fi-
lho.
Alcancei a cerca, saí de quatro pela mesma abertura, passei pe-
lo guarda. Ele ainda estava roncando em seu posto.
Fiquei mais um tempo na noite amena, lá fora. A cerca se avulta-
va sobre mim. Mas Wei-Wen não estava aqui. Nem nesta região do
país. Ele estava no lugar de onde vinham as plantas. Em Pequim.
Ge orge

Arbustos de mirtilo em flor são uma coisa linda. Durante o inverno,


eu até me esquecia disso, mas toda vez que o Maine me recebia
com aqueles cachos brancos e cor-de-rosa, no mês de maio, eu ti-
nha que parar e olhar.
Sim, era tão lindo que livros a esse respeito deveriam ser escri-
tos. Mas, sem as abelhas, as flores eram apenas flores, não mirtilos,
não um ganha-pão. Por isso Lee respirava com o mesmo alívio toda
vez que a gente aparecia. Imagino que passeava entre seus arbus-
tos desejando que fossem capazes de se autopolinizar, que não ti-
vessem a desgraça de depender de um apicultor suado de outro es-
tado e de seus homens, no mínimo tão suados quanto ele.
Ficaríamos três semanas no Maine. Lee pagava oitenta dólares
por colmeia. Sem dúvida doía no bolso, mas eu sabia de muitos que
cobravam mais. Gareth, por exemplo. Eu era barato comparado a
Gareth.
Além do mais, valia a pena para Lee. Em cada colmeia, cinquen-
ta mil abelhas trabalhavam do raiar do sol ao cair da noite. Abelhas
felizes. De todas as colmeias vinha um zumbido animado. Ele nunca
tivera nada a reclamar. Desde que instalou a fazenda, em toda pri-
mavera eu vim aqui. E as abelhas davam muitos mirtilos, ano após
ano.
Assim que saí do caminhão, Lee praticamente correu a meu en-
contro, braços e pernas em ângulos agudos, sapatos enormes pi-
sando no chão, calças um pouco curtas demais e um chapéu de al-
godão sujo na cabeça. Estendeu a mão delgada e pegou a minha,
sacudindo-a sem soltar, como se quisesse me segurar e ter certeza
de que eu e as abelhas não iríamos embora antes de termos feito
nosso trabalho.
A mão estava mais magra do que eu me lembrava. O cabelo,
mais ralo.
Sorri para seu rosto equino alongado.
– Olha só. Ainda mais rugas.
Ele sorriu de volta.
– Não tantas como você.
Na verdade, o Maine era longe demais para nós, eu deveria ter
encontrado algo mais perto de casa. Mas Lee tinha se tornado como
um amigo durante todos esses anos, ele era grande parte do motivo
por que eu fazia a viagem. A gente conversava muito enquanto eu
estava aqui. Ele não parava de fazer perguntas. Sobre as abelhas,
sobre a apicultura. Nunca se cansava disso. Eu zoava com ele di-
zendo que era agricultor universitário. Com muitos anos de forma-
ção superior e grande entusiasmo, ele comprou os destroços de
uma fazenda na década de 1990. Lançou-se no negócio com opini-
ões fortes sobre tudo o que funcionava na teoria. Tinha que ser or-
gânico.
Bem. Desde então, ele deve ter cometido todos os erros enume-
rados pelos livros, e mais alguns. Pois a prática se mostrou uma coi-
sa bem diferente.
Nos últimos anos, ele tinha mudado tudo. Agora administrava
uma fazenda padrão, aqui também as máquinas gigantes de pestici-
da circulavam pelos campos. Eu provavelmente teria feito a mesma
coisa, se fosse ele.
Fiz um gesto em direção a Tom, que estava alguns metros atrás
de mim.
– Você se lembra do Tom?
Tom se aproximou obedientemente, estendendo a mão.
– Olha só – disse Lee. – Você deve ter dobrado de tamanho des-
de a última vez.
Tom riu educadamente.
– Então, você veio junto esse ano?
– Parece que sim.
– E as aulas?
– Me deram folga.
– Isso daqui também é aula – falei.
•••
Os caminhões de Kenny foram embora. Tudo ficou quieto. Termina-
mos de acomodar as colmeias. Agora só sobrávamos eu, Lee e
Tom. Tom estava dentro do caminhão. Lendo ou dormindo, talvez.
Mais uma vez, tinha sido difícil arrancar alguma palavra dele nas úl-
timas horas. Mas ele também trabalhou bastante hoje quando foi so-
licitado, isso ele fez, sim.
Lee tirou as luvas, afastou o véu e acendeu um cigarro.
– Bem. Agora é só aguardar. Conferi a previsão do tempo. Pare-
ce boa – disse ele.
– Que bom.
– Um pouco de chuva nos próximos dias, mas não muita coisa.
– Um pouco de chuva a gente aguenta.
– E também coloquei cercas novas.
– Ótimo.
– Isso deve manter eles longe.
– Espero que sim.
Ficamos calados de novo. Não consegui afastar a imagem de
patas enormes de urso despedaçando as colmeias.
– De qualquer forma é sua despesa – falei.
– Obrigado. Sei disso.
Ele inalou profundamente.
– Então, ele vai assumir o apiário?
Fez um gesto indicando Tom, que estava sentado no caminhão.
– Essa é a ideia.
– Ele quer?
– Está chegando lá.
– Vai precisar de faculdade, então? Não pode simplesmente co-
meçar?
– Você fez faculdade, não?
– É exatamente isso que quero dizer.
Ele olhou para mim com um sorriso maldoso.
•••
Nos primeiros dias num lugar novo, as abelhas ficam quietas. Pas-
sam mais tempo dentro da colmeia, em casa. Em seguida, dão sai-
dinhas, conferem as condições e se familiarizam com o lugar. E aos
poucos os passeios ficam mais longos.
No terceiro dia elas tinham começado a trabalhar, havia um zum-
bido intenso por todo lado. Lee estava sentado em meio aos arbus-
tos, a uns cinquenta ou sessenta metros das colmeias. A cabeça
curvada. Ele estava contando, não me viu. Eu me aproximei na pon-
ta dos pés.
– Bu!
Ele se assustou e deu um salto.
– Caralho!
Dei risada.
Ele fez um gesto de frustração com a mão.
– Você me interrompeu!
– Relaxa, vou te ajudar.
– Não confio na sua contagem. Você não é objetivo.
Eu me agachei a seu lado.
– Você as está afugentando – sorriu. – Não tem espaço para
mais abelhas aqui.
– Tudo bem, tudo bem.
Eu me levantei, andei uns dez metros, tentei escolher uma área
de aproximadamente um metro quadrado para fazer a contagem.
Procurei com os olhos.
Sim, estavam aqui.
Uma abelha saiu de uma flor e desapareceu. Ao mesmo tempo,
outra pousou. E não é que chegou uma terceira?
– Está indo bem aí? – Levantei os olhos.
– Médio. Duas aqui. E aí?
– Três.
– Certeza? – perguntou. – Você está inflando os números.
– É você que não sabe contar – falei.
Ele continuou sentado.
– Tudo bem. Agora vêm mais.
Eu me levantei, sorri para ele. Uma média de 2,5 abelhas por
metro quadrado significava uma boa polinização. Por isso Lee ficava
contando assim com frequência, quase obcecado. Pois o número de
abelhas por metro quadrado determinava o número de quilos de mir-
tilos que ele poderia colher quando o verão chegasse ao fim.
Duas com ele. Três comigo. Daria certo.
Mas aí começou a chover.
William

Finalmente ela chegou. Conolly saltou da boleia para a carroça, on-


de ela estava, nova e reluzente, contrastando com a superfície
imunda e arranhada do piso do veículo. Eu subi também, estiquei a
mão e toquei nela, na colmeia. Senti a madeira macia e lisa sob os
dedos, lixada a preceito; o telhado fora feito de três tábuas, com jun-
tas quase invisíveis. As portas foram equipadas com pequenos pu-
xadores torneados, passei a mão sobre eles, não havia qualquer
vestígio de lascas. Puxei uma delas, a porta abriu-se sem fazer ba-
rulho. Espiei lá dentro. Os quadros estavam pendurados em fileiras
retas, prontas para serem preenchidas. A colmeia exalava um forte
perfume de madeira fresca, o cheiro envolvia-me, quase me deixan-
do tonto. Andei em volta dela. O trabalho dos detalhes era impressi-
onante. Cada quina tinha sido arredondada com perfeição, e ele até
se dera ao trabalho de fazer alguns belos entalhes em uma das late-
rais. Sim, todos os elogios que ouvi sobre Conolly foram justos. Ele
realmente criara uma obra-prima.
– Então? – Conolly sorriu orgulhoso como uma criança. – Satis-
feito?
Nem consegui responder, só fiz que sim, esperando que ele no-
tasse meu largo sorriso.
Juntos levamos a colmeia para o pátio empoeirado. Ela parecia
tão luminosa e imaculada, foi quase um sacrilégio colocá-la no chão
sujo.
– Onde o senhor quer deixá-la? – perguntou Conolly.
– Ali.
Apontei para o álamo.
– O senhor já tem abelhas? – perguntou.
– Elas serão transferidas para esta colmeia. Depois de construir-
mos mais, vamos criá-las.
Ele me mediu com os olhos.
– Depois de o senhor construir mais – corrigi, esboçando um sor-
riso.
– Mas também é a única coisa pela qual vou levar o mérito – riu
ele.
Então ele se virou para a colmeia de palha lá embaixo. Havia um
zunido em torno dela, milhares de abelhas estavam trabalhando. No
mesmo instante, uma delas deu uma guinada em nossa direção.
Conolly saltou para o lado, buscando se esquivar.
– Acho que o senhor vai carregar a colmeia até lá sozinho.
– Não são perigosas.
– E o senhor quer que eu acredite nisso?
Afastou-se mais, como para ressaltar seu ponto.
Dei um sorrisinho para ele, tentando parecer compreensivo e
condescendente ao mesmo tempo.
– Então será poupado – afirmei.
Juntos passamos a colmeia para um carrinho de mão e nos des-
pedimos. Por ora. Estávamos certos de que nos veríamos em breve.
E a colmeia me aguardava. Estava pronta.
•••
Foi com seriedade consideravelmente maior que trajei a roupa bran-
ca hoje, o chapéu, as luvas. Solene como uma noiva, pendurei o
véu sobre o rosto antes de empurrar o carrinho de mão pelo jardim.
Um caminho de grama pisada e achatada tinha sido formado até a
colmeia. Lembrava a nave estreita de uma igreja, ocorreu-me de re-
pente. Achei graça da ideia de que eu era a noiva indo para o altar,
enrubescida de excitação. Tão grande era esse dia para mim, ele
selava meu destino.
Afastei um pouco a colmeia antiga e coloquei a nova no mesmo
lugar. Em seguida, fiquei a observá-la. A madeira dourada brilhava
ao sol. A velha colmeia de palha parecia pálida e deteriorada, em
comparação.
Com cuidado e movimentos lentos, comecei o trabalho de trans-
ferir as abelhas. Encontrei a rainha e coloquei-a na nova colmeia.
Ela acomodou-se rapidamente. E as outras a seguiram.
Minha calma passou para elas. Eu estava completamente segu-
ro. Tão seguro que tirei as luvas e trabalhei com as mãos nuas. Elas
aceitaram, deixavam-se controlar, domar.
Eu estava animado com a perspectiva das muitas horas que pas-
saria aqui fora, eu e elas a sós, em uma tranquilidade imperturbável,
uma contemplação compartilhada, com confiança mútua cada vez
maior.
Mas então algo aconteceu. Senti um movimento na canela, o
adejar rápido de asas, seguido de uma dor aguda.
Pulei, e um grito agudo e feminino escapou-me. Por sorte, nin-
guém me ouviu. A mão foi instintivamente em direção à canela para
matar aquilo que estava ali.
Sacudi a perna da calça. Uma abelha caiu de costas na grama e
ali ficou, com o tórax peludo, o abdome brilhante e as pernas finas
de inseto impotentemente voltadas para o ar.
A canela ardia intensamente. Como algo tão pequeno podia cau-
sar uma dor tão violenta? Pisar nela, eu queria pisar nela, esmagá-
la, mesmo que já estivesse morta. Mas uma olhada na colmeia, em
todas as suas irmãs, me deteve. Nunca se pode ter certeza.
Apressei-me a enfiar as calças dentro das botas, vesti as luvas.
Certifiquei-me de ter fechado todas as aberturas e, então, com mãos
rápidas e ombros firmes, continuei o trabalho. Talvez não pudesse
confiar nelas ainda, e eu tampouco lhes havia dado muitos motivos
para confiar em mim. Mas com o tempo a confiança viria, eu estava
convencido disso, eu não lhes daria motivo para me picar, e um dia
estaríamos unidos.
Finalmente, muitos minutos penosos mais tarde, as abelhas es-
tavam no lugar.
Dei um passo para trás a fim de contemplá-las. Elas eram os juí-
zes, na última instância decidiriam se a colmeia seria seu lar. Muitas
delas ainda davam voltas em torno da velha colmeia de palha, desa-
brigadas, em busca da rainha. Transferi a colmeia de palha para o
carrinho de mão. Iria levá-la embora para ser queimada, e então fi-
caria claro de uma vez por todas se eu tinha sido bem-sucedido.
Tao

Blusas. Calças. Roupas íntimas. Para quantos dias? Uma semana?


Duas?
Coloquei tudo o que cabia. Tinha desenterrado uma mala gasta
de meu pai, agora eu jogava roupa nela. Depressa, com a urgência
de alguém que já esperou demais.
Quando cheguei em casa depois da excursão na área cercada,
foi impossível ir para a cama. Trotei de um lado para outro na sala,
não porque estivesse inquieta, mas porque finalmente tinha me co-
locado em movimento. Não precisava ficar aqui esperando, espe-
rando e torcendo para receber aquele telefonema que explicaria tu-
do. Esperando e remoendo aquela palavrinha que eu não tinha dito
a Kuan. Uma única palavrinha: desculpa. Eu não conseguia. Porque
se dissesse essa palavra, a culpa se tornaria uma verdade. A culpa
seria minha.
Essa era a única coisa que eu podia fazer.
Fechei a mala. O zíper fez um vapt! Alto. O som deve ter enco-
berto os passos dele, pois quando me virei Kuan estava ali. Piscan-
do um pouco os olhos, descabelado, recém-acordado.
– Vou para Pequim.
– O quê?
Ele ficou pasmo. Talvez por causa do que anunciei, talvez por-
que não pedira que me acompanhasse. Eu deveria ter dito vamos.
Vamos para Pequim. Mas não me passara pela cabeça que ele fos-
se junto.
– Mas como…
– Preciso achar Wei-Wen.
– Mas você não faz ideia de onde ele está. Em que hospital está.
– Preciso ir.
– Mas Pequim… Por onde você vai começar?
Ele era só pele e osso. Sombras pontudas. Mais magro do que
nunca. Feições marcadas demais.
– Encontrei endereços. Preciso procurar nos hospitais.
– Sozinha? Mas a cidade é… Será que é segura? – disse, er-
guendo um pouco a voz.
– É nosso filho.
As palavras saíram com uma rispidez desnecessária.
Pus a mala no chão sem olhar mais para ele. Mas percebi como
ele estava imóvel atrás de mim, as palavras entaladas. Será que co-
gitava dizer que iria junto?
– Mas como você vai pagar? A passagem, o hotel…?
Minhas mãos pararam no meio de um movimento. Eu sabia que
a pergunta viria, a pergunta sobre o dinheiro.
– Só estou pegando um pouco – disse eu baixinho.
Ele foi depressa até o armário da cozinha, abriu a porta e procu-
rou com os olhos. Seu rosto congelou. Voltou-se para mim. De re-
pente, havia uma frieza no olhar. Com um movimento brusco, ele ar-
rancou a mala das minhas mãos e a abriu. Imediatamente deu com
os olhos na lata, que estava em cima.
– Não. – Soou alto, com uma força que eu raras vezes ouvira.
Ele soltou a mala com um baque no chão e deu um passo em
minha direção.
– Você não vai conseguir achar Wei-Wen, Tao – falou. – Você vai
gastar tudo o que temos, mas não vai conseguir achá-lo.
– Não vou gastar tudo. Já disse que não vou gastar tudo.
Peguei outra blusa, embora não precisasse de mais blusas. Co-
mecei a dobrá-la. Tentei trabalhar com calma. Senti o tecido sintéti-
co estalejar entre os dedos.
– Preciso tentar. – Olhei para baixo, para o chão. Tentei não
olhar para a mala, que eu só queria agarrar. Fixei o olhar num risco,
Wei-Wen tinha deixado cair um brinquedo ali uma vez durante o in-
verno, um cavalo amarelo de madeira. Fiquei brava quando aconte-
ceu, não tínhamos muitos brinquedos. E ele gritou porque o cavalo
quebrou, ficou sem uma das pernas.
– Mas se o dinheiro acabar… Estamos juntando faz três anos…
Vamos ficar velhos demais… Se o dinheiro acabar, não temos…
Ele não terminou a frase, só ficou parado. A mala entre nós, a la-
ta em cima.
– Não vai adiantar nada – disse ele enfim. – Viajar até lá não vai
adiantar.
– Como se adiantasse ficar sentado aqui?
Ele não respondeu, talvez não quisesse contestar minha acusa-
ção. Ficou ali, incapaz de dizer o que guardava dentro de si, o que o
incomodava tanto. Não era só o fato de Wei-Wen ter sido levado
embora, ter sido subtraído de nós, mas de que isso era minha culpa.
E agora eu também lhe tiraria a chance de ter outro filho.
Desviei os olhos, não consegui olhar para ele, não podia pensar
nisso. Minha culpa. Minha culpa. Não. Afinal, eu sabia que não era
assim. Ele tinha tanta culpa quanto eu. Poderíamos simplesmente
ter ficado em casa naquele dia. Ter ficado em casa com os números,
os livros. Foi ele quem quis sair. Ele tinha tanta culpa quanto eu.
Nós dois éramos culpados.
Nós dois éramos culpados.
– Venha comigo.
Ele não respondeu.
– Você pode vir junto, podemos viajar os dois.
Eu me atrevi a olhar para ele. Será que estava furioso? Ele me
olhou nos olhos. Não. Apenas infinitamente triste.
Então ele sacudiu a cabeça de leve.
– É melhor eu ficar aqui. Disponível. Além do mais… Vai ficar
mais caro se formos os dois.
– Não vou gastar tudo – falei em voz baixa. – Prometo que não
vou gastar tudo.
Rapidamente puxei a mala para mim. Joguei a blusa por cima,
ela cobria a lata. Aí fechei o zíper mais uma vez. Ele não me impe-
diu.
Levei a mala até a entrada e peguei minha jaqueta. Ele me se-
guiu.
– Você precisa ir já?
– O trem só sai uma vez por dia.
Ficamos parados. Seu olhar permaneceu em mim. Será que ele
esperava que eu dissesse aquela palavra agora? Isso deixaria tudo
mais simples? Se eu a gritasse? Se a bradasse?
Não consegui. Pois no momento em que pedisse desculpa eu te-
ria de aceitar que, se a vontade dele tivesse prevalecido, não estarí-
amos vivendo isso. Não teríamos ido para os pomares naquele dia,
e Wei-Wen ainda estaria…
Pus a jaqueta. Os sapatos. Aí peguei a mala e fui em direção à
porta.
– Tchau, então.
Ele deu um passo para a frente. Será que ia arrancar a mala de
mim? Não. Ele queria me dar um abraço. Virei o rosto para o outro
lado, pus a mão na maçaneta, não suportava o contato do seu corpo
com o meu. Não suportava sua face em contato com a minha. Não
suportava seus lábios em contato com meu pescoço, que ele talvez
despertasse as mesmas sensações de antes, contra minha vontade.
Ou será que isso só provocaria náuseas em mim? E mais ainda…
Será que eu despertaria as mesmas sensações nele? Será que ele
ainda me desejava? Eu não sabia e não queria saber.
•••
Não tornei a respirar com calma até encontrar meu lugar, sentar e
acomodar meu corpo. A coluna descansou no plástico gasto do as-
sento. Inclinei a cabeça para trás e ela encontrou o encosto. Fiquei
sentada assim, olhando para as casas, as pessoas, as árvores e as
plantações lá fora. Não me diziam respeito. O trem deslizava tão de-
pressa pela paisagem que as árvores se tornavam meras sombras.
De acordo com a tabela de horários, os 1,8 mil quilômetros deveri-
am ser percorridos até hoje à noite, mas tudo dependia do número
de controles no caminho.
Meu próprio mundo desapareceu atrás de mim. A paisagem mu-
dava gradativamente à medida que avançávamos para o norte. Dos
pomares corriqueiros de minhas paragens natais, passamos para as
colinas arborizadas, as plantações em terraços, depois para as am-
plas planícies com arrozais e, mais adiante, quando o trem subiu as
montanhas, para as regiões mais áridas e inférteis. Quando desce-
mos outra vez, eu me deparei com uma paisagem desolada. Seca,
nua, quase sem árvores. Quilômetros e mais quilômetros da mesma
monotonia. Desviei o rosto da janela, não havia nada para ver.
Eu só tinha ido a Pequim uma vez antes, quando era pequena.
Meus pais tinham amigos lá. Fomos visitá-los. Só me lembrava de
algumas imagens. Uma rua grande e movimentada, empoeirada, vi-
vida. Um barulho ensurdecedor, pessoas por todos os lados, muitas
mais do que eu já tinha visto. E a viagem de trem, eu me lembrava
muito bem dela, exatamente como a de agora. O trem também. A
tecnologia não tinha mudado durante minha vida inteira. Ninguém
mais tinha tempo para inovações.
Cochilei. Dormitando, entrei e saí de sonhos que se pareciam.
Sonhei que cheguei a Pequim, estava procurando Wei-Wen e en-
contrei alguém que me levaria até ele. Uma das vezes foi um funcio-
nário de um hotel. Ele disse saber onde Wei-Wen estava e me con-
duziu por becos estreitos e ruas movimentadas. Corremos, ele na
frente, eu atrás. Sempre esbarrando em muitas pessoas, quase o
perdi de vista. Eu o agarrei, mas ele se soltou. Acordei ofegante.
Quando caí no sono de novo, a mesma coisa aconteceu. Dessa vez,
foi uma mulher numa loja. Ela disse que me levaria até Wei-Wen e
me guiou pelo emaranhado de ruas, onde os arranha-céus tampa-
vam o sol e os vendedores tentavam nos parar a toda hora. Ela cor-
ria tão rápido que a perdi de vista, e, soluçando, tive que parar e ad-
mitir que minha única chance de vê-lo de novo se fora.
E de repente eu estava em outro lugar. Uma festa ao ar livre. Um
sonho, uma recordação? Eu usava um vestido de verão, estava
quente. Era criança e participava de uma comemoração do fim do
ano letivo. Comíamos doces e bolos secos, feitos com produtos sin-
téticos que substituíam a banha e o ovo. E um picolé aguado, artifi-
cial, mas gostoso mesmo assim. Eu estava suada, o sorvete desceu
gelado pela garganta.
Algumas meninas brincavam de roda e a cantoria ecoava cada
vez mais alta pelo jardim. Algumas vozes límpidas e afinadas, ou-
tras um pouco fora do ritmo e do tom, do jeito que as crianças mui-
tas vezes cantam. Fiquei parada na sombra, observando-as.
A mesa dos doces estava se esvaziando. Algumas crianças fo-
ram se servir mais uma vez. Daiyu foi uma delas. Uma menina da
sala, olhos um pouco encovados. Usava um macaquinho azul-claro
de calças curtas, e o cabelo estava preso com fivelas. Os sapatos
eram fechados e brilhavam ao sol, pareciam quentes. Ela estava se
servindo na mesa dos doces. Colocou um pedaço de bolo no prato.
Um dos maiores. Em seguida, pegou um garfinho e foi se sentar
com os pais.
Outra criança chegou à mesa. Um menino. Wei-Wen. Meu Wei-
Wen. O que ele estava fazendo aqui?
Ele pegou um pedaço do bolo também. Um pedaço grande, ain-
da maior que o de Daiyu.
E então foi embora.
Não, pensei, não o bolo. Não pegue o bolo.
Mas ele escapou para longe de mim, sempre com o bolo na
mão, desapareceu na multidão de pessoas. Aí apareceu outra vez.
Eu precisava chegar até ele antes que desse a primeira mordida no
bolo. Ele não podia comer do bolo. Não podia. Agora eu já era adul-
ta, eu era eu mesma, estava correndo atrás dele, apertando o pas-
so, abrindo caminho. Eu o vi de relance mais uma vez, mas então
ele desapareceu de novo, ressurgiu, sumiu. A festa cresceu à minha
volta, cada vez mais pessoas, ficou enorme.
Seu lenço vermelho na multidão, uma ponta se agitando, ao lon-
ge.
E mais uma vez ele sumiu.
Acordei assim que o trem entrou numa estação grande, escura e
dilapidada. Pequim.
Ge orge

Estávamos no quarto do motel. Paredes amarelo-claras e carpete


manchado. Um cheiro de naftalina e mofo envolvia a gente.
Fora da janela, só água e mais água. Não era uma daquelas
chuvas leves e aconchegantes que deixam um perfume gostoso e
fazem os pássaros cantar. Não. Isso daqui era um temporal de pro-
porções bíblicas, como dizem. Pelo quinto dia, ainda por cima. Co-
mecei a imaginar que alguém lá fora estava me aprontando isso,
que eu talvez devesse construir uma arca.
Tom ia embora no dia seguinte. Estava com o nariz enterrado
num livro. Destacando linhas com um marcador de texto amarelo-
néon. O som do marcador era a única coisa que se ouvia. Com fre-
quência. Parecia que precisava grifar cada palavra do livro.
Não havia lugar nenhum pra ir. Na chegada, o quarto deu a im-
pressão de ser grande. Eu tinha pedido uma suíte, já que ficaríamos
aqui os dois, mas nos últimos dias ela encolheu bastante. Uma úni-
ca janela e vista para o beco dos fundos. As duas camas queen-size
tomavam um espaço grande demais. Eu estava sentado numa, a
que ficava mais próxima da parede, amassando a colcha floral de-
baixo de mim. Já cansei de olhar para os dois quadros na parede.
Num deles, um campo de flores e uma mulher; no outro, um barco.
Os vidros estavam sujos, com um tom cinzento, e havia manchas de
dedos bem no rosto da mulher. Tom tinha se apoderado da área de
estar perto da janela. Seus livros ocupavam a mesa inteira, e ao la-
do dele sempre estava a mala, essa também cheia de material de
estudo.
Pensando bem, ele tinha ficado assim a maior parte do tempo.
Não que tivesse muito mais a fazer, mas mesmo assim. Nenhum
grande entusiasmo estava em evidência. Não pelas abelhas, nem
pela chuva. Ele poderia ficar nervoso, irritado, xingar – mas nada, só
lia. Lia e grifava o texto com marcadores grossos de cores néon.
Cor-de-rosa, amarelo, verde. Parecia que tinha uma espécie de sis-
tema, pois as canetas estavam alinhadas com esmero na sua frente,
sobre a mesa, e ele usava alternadamente cada uma.
Levei um susto quando o telefone tocou. Levantei. O número de
Lee aparecia na telinha.
– E aí?
– Alguma novidade? – Lee perguntou.
– Nada na última meia hora, não.
– Conferi outra previsão de tempo – disse Lee. – Estão dizendo
que a chuva vai parar hoje à tarde.
– E as outras cinco que você conferiu?
– Mais chuva. – A voz estava murcha.
– Tem certas coisas que a gente não pode controlar – falei.
– Tem… – Ele hesitou. – Tem alguma possibilidade de você ficar
alguns dias a mais?
Não era a primeira vez que a gente tocava nesse assunto, mas
ele nunca tinha chegado a perguntar tão diretamente.
– Já encomendei os caminhões para o retorno – respondi. – E o
pessoal.
– Pois é.
Ele não disse mais, sabia que não ia dar.
– Deve parar logo – falei, tentando soar como minha mãe.
– Sim.
– E um dia ou dois a mais ou a menos não fazem muita diferen-
ça.
– Não.
Ficamos calados. Só ouvindo a chuva cair a cântaros lá fora e os
pneus dos carros que passavam patinando pelas poças d’água.
– Acho que vou dar um pulo lá agora – disse ele de repente.
– Ah, é?
– Só para conferir.
– Dei uma passada hoje de manhã. Elas estão dentro das col-
meias. Nada está acontecendo.
– Tudo bem, mas mesmo assim.
– Faça o que você quiser. São suas abelhas.
Ele riu baixinho, mas não se ouviu muita alegria naquela risada.
Aí a gente desligou.
Tom levantou os olhos do livro.
– Por que você não fala as coisas sem rodeios?
– O que você quer dizer?
– É óbvio que essa situação vai afetar a safra dele.
– Pois é.
– Ele é uma pessoa adulta, consegue lidar com a verdade.
Ele pôs a tampa no marcador de texto com um clique decidido. O
clique, a maneira como ele o fez, me deixou comichando por dentro.
E as palavras, caramba, ele se expressava como um professor de
cinquenta anos de idade.
– Achei que você estivesse estudando – falei.
– Já terminei.
– Não que estivesse prestando atenção nas minhas conversas.
– Meu Deus, pai. São três metros de distância entre nós.
– E por que você de repente está começando a opinar tanto?
– Como é?
Senti uma comichão insana. Não dava para controlar.
– Como é? – falei, imitando ele. – Depois de passar uma semana
coçando o saco, você de repente vai se envolver?
Ele se levantou. Era mais alto do que eu.
– Não cocei o saco. Trabalhei. E enquanto foi preciso, carreguei
mais peso e suei mais que você. E isso você sabe muito bem.
– Mas vontade você não teve.
Dei um passo em sua direção. Ele recuou automaticamente, mas
deve ter se dado conta logo, pois se endireitou de repente e plantou
os pés firmes no chão.
– Nunca disse que estava muito interessado. Foi você quem me
pediu para vir junto, lembra?
– Meio difícil de esquecer.
Ele ficou quieto. Só olhou para mim. O que será que estava pen-
sando?
Aí, de repente, veio com esta:
– Você pode descrever Jimmy e Rick para mim, pai?
– O quê?
– Como são? Descreva para mim.
– Jimmy e Rick? Desde quando você se interessa por eles?
– Não me interesso muito por eles. Mas se eu te pedir para des-
crevê-los, você vai ter muita coisa a dizer, certo?
Fiquei olhando para ele, sem entender direito.
– Eu mesmo já sei muito sobre eles – continuou. – Simplesmente
porque ouvi você falar deles. E Lee, ele também. Sei do que eles
gostam, o que fazem nas horas livres, até quais são seus medos.
Porque você me contou isso. – Sua voz estava mais suave agora,
mais baixa. – Por exemplo, sei que Rick sente falta de uma namora-
da. E Jimmy… Já ouvi o bastante para saber que você desconfia
que ele joga no outro time.
Fiz menção de responder, de dizer algo sobre Jimmy, mas não
sabia direito o quê. Porque, a bem dizer, isso não tinha nada a ver
com Jimmy ou Rick. Entendi que Tom queria chegar a algum ponto
com isso, mas qual seria esse ponto? Era como se ele empurrasse
meu cérebro dentro de uma caixa e agitasse ela fortemente.
– Como me descreveria então?
– Você?
– Sim. Do que eu gosto? No que sou bom? Do que tenho medo?
– Você é meu filho – respondi.
Ele suspirou. Deu um sorriso débil, como que desdenhoso.
Ficamos olhando um para o outro. A comichão se intensificou.
Aí ele desviou os olhos. Foi até a mala de livros.
– Já que a gente não vai fazer nada mesmo, vou estudar Histó-
ria.
Ele pegou um livro grosso azul-escuro. Vi que a capa mostrava o
Big Ben.
Então ele sentou e virou a cadeira, de modo a ficar de costas pa-
ra mim.
Eu também gostaria de ter um livro bem grosso para ler. E uma
cadeira para virar. Ou, de preferência, um comentário bem inteligen-
te na ponta da língua. Mas ele me pegou agora. Fiquei sem pala-
vras. Só aquela coceira intensa.
•••
Uma hora se passou, talvez uma hora e meia, antes de a chuva pa-
rar. O céu se abriu num tom que não era exatamente azul, mas pelo
menos um cinza um pouco menos intenso do que aquele que a gen-
te viu nos últimos dias. Pelo jeito, a sexta previsão de Lee estava na
pista certa.
Enfim, Tom pôs o livro de lado. Se levantou e vestiu uma jaqueta.
– Vou dar uma volta lá fora.
– Você não pode pegar o caminhão.
– Tudo bem.
– Talvez eu precise dele.
– Sei disso. Não vou pegar o caminhão.
– Muito bem.
Ele estava prestes a abrir a porta quando o telefone tocou de no-
vo. Lee. Pediu que a gente fosse até lá imediatamente.
Tao

Encontrei um hotel aberto próximo à estação de trem, deteriorado e


vazio, mas com preço bom. Do outro lado da rua havia um restau-
rante que servia comida simples e barata. Fui até lá, me dei ao luxo
de uma refeição quente hoje. Sabia que o orçamento não me permi-
tiria isso todos os dias. Não, pelo menos, se fosse preciso fazer o di-
nheiro durar mais de uma semana. E não fazia ideia de quanto tem-
po teria de ficar. Até encontrá-lo. Não iria embora antes.
Um jovem colocou um prato na minha frente. Arroz frito, era tudo
o que eles tinham nesse estabelecimento familiar. O pai era quem
cozinhava, explicou o rapaz enquanto me servia. Ninguém mais tra-
balhava ali além dos dois.
Eu era a única freguesa no salão do restaurante. Na rua eu tam-
bém não tinha visto muita gente. Tudo era diferente do que eu lem-
brava. A cidade barulhenta e vivida tinha desaparecido. Agora, a
maioria das casas estava desabitada, nas ruas imperava o silêncio.
Já não havia condições de subsistência aqui. Eu sabia que muitos ti-
nham sido deslocados à força para outras partes do país, onde ha-
via demanda de mão de obra na agricultura, mas mesmo assim o si-
lêncio total me surpreendia. A cidade tinha crescido e se desenvolvi-
do até certo ponto, então tudo parou, e agora ela estava em pleno
processo de degradação. Assim como uma pessoa de idade que se
aproxima da morte. Cada vez mais só, cada vez mais quieta, com
um ritmo que diminuía a cada dia. Na rua onde eu estava, o único
lugar com luz acesa era esse pequeno restaurante logo em frente
ao hotel. De resto, tudo estava escuro e deserto.
Puxei a cadeira para mais perto da mesa. O arrastar do móvel
soou oco e estrepitoso no restaurante vazio. O rapaz ficou aguar-
dando enquanto eu comia. Ele era bem jovem, não devia ter mais
de dezoito anos de idade, e magro. Cabelo de comprimento médio,
parecia não ter sido cortado há tempo. Trajava o uniforme com dis-
plicência juvenil e se movimentava com desenvoltura e descontra-
ção. Num pátio de escola, ele seria alguém com quem as pessoas
gostariam de ser vistas. Alguém que não precisava se esforçar, al-
guém que naturalmente tinha aquela coisa a mais. Era o tipo de
adolescente que deveria estar cercado de amigos.
Ele percebeu que estava sendo observado por mim, e de repen-
te não sabia o que fazer com as mãos. Colocou-as rapidamente
atrás das costas.
– Gostou da comida? – perguntou.
– Gostei, sim. Obrigada.
– Lamento que os pratos do cardápio estejam em falta.
– Tudo bem. De qualquer forma, eu não teria dinheiro para pagar
– sorri.
Ele sorriu de volta, parecia aliviado, deve ter entendido que está-
vamos na mesma situação.
– Costuma ser tão vazio aqui? – perguntei.
Ele fez que sim.
– Nos últimos anos tem sido assim.
– Vocês vivem de quê?
Ele encolheu os ombros.
– De vez em quando alguém aparece. E também já vendemos
parte dos equipamentos. – Ele apontou para a cozinha, onde o pai
estava lavando louça. – Todas as facas boas, um moedor de carne,
algumas panelas, o fogão grande. Vai durar mais algum tempo. De
acordo com as contas que fizemos, temos dinheiro para aguentar…
até novembro.
Ele ficou calado, talvez pensando a mesma coisa que eu. O que
fariam depois?
– Por que vocês ainda estão aqui? – perguntei.
Ele começou a tirar o pó invisível de uma mesa.
– Quando todas as pessoas que a gente conhecia foram força-
das a se mudar, recebemos autorização para ficar, porque gerencia-
mos um restaurante com uma longa história. O papai lutou durante
meses para obter a autorização. – Ele dobrou o pano, espremendo-
o. – Eu me lembro de como ele chegou feliz em casa quando final-
mente ficou confirmado que não precisávamos nos mudar. E que
não seria necessário deixar nossa casa.
– Mas e agora?
– Agora já é tarde demais. Agora estamos aqui – respondeu,
desviando o olhar.
Ele alisou uma mecha do cabelo rebelde. De repente me fez
lembrar de Wei-Wen. Como esse menino era jovem, talvez mais jo-
vem do que eu tinha pensado inicialmente, apenas uns catorze ou
quinze anos. A idade do estirão.
Empurrei o prato em sua direção.
– Pode comer. Estou satisfeita.
– Não. – Ele olhou confuso para mim. – Você pagou por isso.
– Já comi o bastante.
Estendi os pauzinhos para ele.
– Olhe aqui. Venha sentar.
Ele lançou um olhar furtivo para o pai na cozinha, mas este não
estava prestando atenção em nós dois. Então o rapaz puxou a ca-
deira depressa, sentou e pegou os pauzinhos. Atacou o arroz com a
rapidez de um cão, parecia Wei-Wen devorando as ameixas. Mas
de repente parou, levantou os olhos, como se minha atenção o dei-
xasse constrangido. Eu lhe dei um sorriso incentivador. Ele voltou a
comer, fazendo um esforço visível para ir com calma.
Eu me levantei para sair, quis deixá-lo em paz.
Mas então ele também se levantou.
– Pode continuar sentado – falei, indo em direção à porta.
– Tudo bem. – Ele ficou parado, hesitante. – Não.
Ele se aproximou de mim.
Pus a mão na maçaneta e fiz menção de abrir a porta. Olhei para
ele, não entendendo direito.
– Onde você está hospedada? – perguntou.
– Ali. – Apontei para o hotel do outro lado da rua.
Ele ficou bem a meu lado, olhou para a rua. Não se via nenhum
carro, nenhuma pessoa, nenhum tipo de vida.
– Vou ficar aqui até você estar lá dentro.
– Como assim?
– Fico aqui esperando você entrar.
Ele o disse com uma seriedade muito zelosa no rosto jovem.
– Obrigada.
Abri a porta e saí. A rua estava deserta. Cheirava a tijolos úmi-
dos, poeira e algo levemente podre. Os restos de uma cidade. Fa-
chadas dilapidadas. Uma tela de informação pendurada numa pare-
de, repassando vezes sem fim os primeiros dez segundos de um fil-
me. Li Xiara, a chefe da Comissão, discursava, talvez sobre a soli-
dariedade e a moderação. Mas a mensagem fora perdida, pois o áu-
dio tinha parado de funcionar havia tempo. Lojas fechadas com gra-
des nas portas. Janelas quebradas. Apenas tons de marrom e cinza.
Nenhuma cor restava, como se tudo estivesse encoberto por uma
névoa. E por um silêncio grande, pesado.
Eu me virei depois de atravessar a rua. Sim, ele ainda estava ali.
Fez um gesto indicando o hotel, como se quisesse que eu me
apressasse a entrar.
Ge orge

Lee estava debruçado sobre as colmeias tentando pôr as coisas em


ordem. Mesmo todo encoberto pelo macacão, o chapéu e o véu, da-
va para ver que ele estava aflito. Quatro colmeias reviradas no chão.
Uma grande nuvem de abelhas confusas, desabrigadas e zangadas
pairava no ar úmido pós-chuva.
– Ai!
De repente ele soltou um grito, levando a mão ao pescoço.
– Cuidado com as aberturas – falei, ajeitando melhor seu véu. A
abelha morta teria que ser tirada depois.
Ele xingou, vi lágrimas em seus olhos. Talvez por causa da pica-
da, ou talvez elas já estivessem ali.
– Achei que a cerca fosse bastar – Lee disse em voz baixa.
– Pouca coisa segura um urso depois que ele fareja o mel.
Percebi então os olhos de Tom em mim.
– Você não disse que não tinha mais ursos aqui?
Não olhei para ele, não quis ouvir aquela pergunta. Peguei uma
colmeia. Dei uma conferida. Continuou inteira.
– Me dê esse daí – apontei para um quadro que estava um pou-
co afastado.
Tom foi até lá, pegou o quadro e trouxe para mim. Foi quando
notei que suas mãos tremiam. Ergui o olhar. Ele me fitava, com os
olhos tão arregalados como daquela vez. Não restava nada do pro-
fessor, na minha frente estava um menininho.
– O urso está por perto? – perguntou em voz baixa.
Peguei o quadro e continuei olhando para ele.
– Não, ele se manda imediatamente.
Ele ficou parado, olhando para mim, duvidando.
Pousei a mão em seu ombro, raramente eu fazia isso.
– Tom. Isso daqui não é que nem aquela vez. Isso acontece todo
ano, e eu nunca, nenhuma vez, cheguei a ver um urso. São só as
abelhas que apanham, não a gente. E é pior para o Lee, que precisa
arcar com o custo.
Ele entendeu, não se esquivou de minha mão.
– É por isso que estamos hospedados no motel, entendeu? Não
na barraca – falei.
Ele fez outro gesto de assentimento. Apertei seu ombro. Minha
vontade era de lhe dar um abraço, vi que estava precisando de mim.
Ainda precisava de mim. Mas nesse instante Lee voltou.
– Três colmeias – disse ele. – Deve dar… duzentos e quarenta
dólares?
Soltei Tom e fiz que sim para Lee. Mas parei quando vi seu olhar
desesperado atrás do véu.
– Duzentos e quarenta? Não. Vamos falar em duzentos.
– Mas George…
– Assunto encerrado. Você pode pensar nisso como um emprés-
timo.
Lee virou a cabeça, engoliu com dificuldade. Mas Tom continuou
olhando para mim. Ele não disse nada, mas os olhos diziam tudo. E
lembravam de tudo.
Aconteceu a primeira vez que fiquei na fazenda do Lee, a primei-
ra vez que saí com as abelhas. Não estávamos levando muitas col-
meias, só aquelas que consegui acomodar na traseira da picape. Eu
pensava naquilo como um experimento. Se funcionasse, poderia ex-
pandir meu negócio e começar com polinização em pequena escala.
Mas antes de tudo via aquilo como férias. Pois Tom, que tinha cinco
anos de idade, ia junto. Só nós dois, no meio da natureza. Longe de
outras pessoas. Pescar, beber a água do riacho, acender uma fo-
gueira. A gente tinha falado sobre isso durante semanas.
Encontramos um morro um pouco afastado das colmeias. Ali ti-
nha uma vista ótima para todos os lados e uma boa área plana.
Montei a barraca sem pressa, cuidando para deixar todas as esta-
cas bem firmes no chão e a lona esticada. Seria nossa casa durante
três semanas, importante fazer benfeito.
Tom foi incumbido de desenrolar os sacos de dormir. Ele também
se empenhou e ajeitou os sacos como mandava o figurino, devia ter
visto como Emma fazia as camas em casa. Ele estava empolgado,
falava sem parar, ainda não tinha tido tempo de sentir saudades da
mãe. E de qualquer forma daria tudo certo, pensei. Nós dois íamos
nos divertir à beça aqui no morro, as semanas iam passar num pis-
car de olhos, e ele se lembraria dessa viagem para o resto da vida.
Acendemos uma fogueira. Ficamos bem juntinhos assando
marshmallows. Ele estava com um pouco de frio, eu o abracei. Os
ombros esguios quase desapareceram debaixo do meu braço. Olha-
mos para as estrelas, apontei as constelações que conhecia. Não
eram muitas, apenas a Ursa Maior e Órion, com suas Três Marias.
Por isso inventei mais algumas.
– Olha ali, a serpente.
– Onde?
– Ali.
Seus olhos seguiram meu dedo enquanto eu apontava para al-
gumas estrelas que formavam um caminho sinuoso como o da ser-
pente ao rastejar.
– Por que se chama serpente?
– Não se chama serpente. É uma serpente.
E aí contei a história da serpente. Normalmente, não sou muito
bom para inventar histórias, mas dessa vez ela fluiu aos borbotões.
Talvez porque Tom estivesse sentado bem juntinho de mim. Talvez
porque estivéssemos tão longe de coisas como televisão e outras
distrações o homem primitivo dentro de mim de repente tenha vindo
à tona. Talvez porque me desse poderes especiais saber que essa
seria nossa vida durante três semanas inteiras.
– A serpente morava na fenda de uma rocha, nos arredores de
um pequeno vilarejo – falei. – Ela era um verdadeiro demônio, mais
malvada que a própria malvadeza, mais faminta que a própria fome.
Ela comia tudo, absolutamente tudo o que encontrava pela frente.
Primeiro, pegou a floresta, depois, pegou as plantações. Aí passou
para as hortas, as frutas, as frutinhas silvestres. E ia sempre cres-
cendo, ficando cada vez maior. Depois de ter devorado cada arbus-
to, cada batata, por menor que fosse, cada folha murcha de capim
no prado, ela começou com as pessoas. Criancinhas para o café da
manhã, vovozinhas para o almoço. Ela não parava de crescer, e no
fim estava tão gorda e comprida que se deitou formando um círculo
em torno do vilarejo. E ali ficava, abocanhando um depois do outro.
As pessoas fugiam para dentro de suas casas, se escondendo nos
armários, debaixo das camas e nos porões. Mas a serpente achava
todos, se espremia lá dentro, em cada cantinho, e comia-os um por
um.
Percebi que Tom estava tremendo, e não era só de frio. Abracei-
o mais forte e ele se aconchegou, como se quisesse entrar dentro
de mim, se deleitando de pavor e prazer.
– Ninguém sabia o que fazer, as pessoas não viam saída. Agora
vamos morrer, pensavam, vamos ser comidos. Todos se escondiam
da melhor maneira que pudessem. Todos, menos um único menini-
nho.
– Quem era ele? – A voz era baixa e ansiosa.
– Era… esse rapazinho não era qualquer um.
– Não?
– É que ele era apicultor.
– Ah, é? – disse Tom depressa, como se quase não ousasse di-
zer mais, com medo de que eu parasse de contar a história.
– Ele tinha uma colmeia grande e bonita. Com a melhor colônia
de abelhas que já se viu, fiéis, trabalhadoras, nunca enxameavam.
A rainha estava vivendo seu terceiro ano, pondo ovos como nunca
antes. E então ele foi até a colmeia e sussurrou para as abelhas, pe-
dindo sua ajuda.
Fiz uma pausa calculada. Sabia o fim, agora, e estava bem con-
tente com ele.
Tom esperou. Deixei que esperasse. Senti seus olhos em mim,
arregalados de expectativa, queria que ele permanecesse um pouco
com aquela sensação.
Enfim ele não aguentou mais.
– E depois?
Continuei devagarinho.
– As abelhas ficaram pensando naquele pedido de ajuda. En-
quanto isso, a serpente se aproximava do menino, sibilando.
Tom olhou boquiaberto para mim.
– E exatamente na hora que a serpente ia abocanhar o menini-
nho, as abelhas apareceram! Um enxame gigantesco voou direta-
mente em cima da serpente. E elas desataram a picar, na cabeça,
no pescoço, na cauda, nos olhos, em todo lugar elas picavam, até a
serpente não aguentar mais e sair se arrastando o mais rápido que
pôde.
Tom estava imóvel, com todos os músculos do corpo tensiona-
dos.
– E aí todos foram salvos? – perguntou, em voz quase inaudível,
talvez receando a resposta.
Esperei mais uma vez, senti que ele tremia ali do meu lado.
– Sim – falei.
Tom respirou aliviado.
– Mas as abelhas não se contentaram com isso – continuei.
– Não? – Ele riu um pouco agora.
– Elas continuaram enxotando a serpente para cada vez mais
longe.
– Para longe?
– Sim, para bem longe.
Por fim Tom relaxou totalmente, o pequeno corpo ficou mole con-
tra o meu.
– Elas perseguiram a malvada até lá em cima no céu – contei. –
E ali você pode ver a serpente. Até hoje.
Tom fez que sim, senti como movimentou a cabeça contra meu
braço.
– Está ali – falei. – E ali – apontei para um ponto a alguma dis-
tância. – Ali estão as colmeias.
– Ali?
– Sim, está vendo? Aquela lá e aquela ali e aquela acolá. – De-
senhei três retângulos no céu.
– E as abelhas?
– As abelhas? – Pensei um pouco, e aí veio a resposta, e eu me
senti bem genial. – São todas as outras estrelas.
É assim que vai ser, pensei. É assim que vamos passar três se-
manas inteiras.
Fomos deitar, e Tom dormiu imediatamente. Eu fiquei ouvindo
sua respiração no escuro, ele roncava de leve, estava com o nariz
um pouco entupido. E ele se virou algumas vezes no saco de dormir
até se aquietar. E então eu também adormeci.
Mas aí veio o urso. O primeiro barulho nos acordou, um estrondo
da panela que desabou da fogueira para o chão. Uma sombra incle-
mente contrastava com as abelhas que brilhavam no céu. O som de
patas pisando nos arbustos, tão perto que era possível escutar o ro-
çar do pelo nas plantas.
Segurei Tom, mas agora meu braço não lhe dava qualquer
apoio. Seus olhos, bem arregalados, olhavam fixamente para a es-
curidão.
Ouvimos como o urso revirou o acampamento. O saco plástico
com os marshmallows foi rasgado. A lenha que eu tinha empilhado
com tanto esmero foi derrubada e ouvimos golpes surdos quando as
patas grandes acertaram a caixa térmica de isopor.
Então tudo ficou quieto.
Continuamos sentados ali. Por muito tempo. Afaguei o cabelo de
Tom, desejando que virasse o rosto para mim, olhasse para mim,
mas ele continuou a olhar para a frente, para o nada. O que eu de-
veria dizer? O que Emma teria dito? Não fazia ideia, por isso não
abri a boca. Eu o puxei ainda mais para perto de mim, mas seu cor-
po estava rígido.
Enfim arrisquei sair.
O acampamento tinha sido revirado. Os marshmallows foram co-
midos, mas o urso tinha sumido.
Só então respirei direito.
Dei uma espiada dentro da barraca.
– Está seguro agora.
Mas Tom não respondeu. Continuou parado com o olhar sem bri-
lho, a boca fechada e o corpo todo imóvel. Peguei-o nos braços e o
carreguei até o carro. No dia seguinte, coloquei-o no ônibus para
Autumn Hill. Não tinha opção. Emma estaria na rodoviária para re-
cebê-lo. Ele não reclamou de ter que fazer a longa viagem sozinho.
Antes, isso estaria fora de qualquer cogitação.
A voz dela tornou-se severa quando contei o que tinha aconteci-
do. Eu sabia o que ela estava pensando, mesmo que não proferisse
muito mais do que monossílabos. Você deveria ter verificado melhor,
ela pensou, você deveria ter se informado direito, você deveria sa-
ber que havia ursos na região. Só uma lona de barraca entre vocês
e a morte, você teve mais sorte do que merecia.
Vi o rosto branco dele no vidro traseiro quando o ônibus saiu. O
alívio pintado em seu rosto. E os olhos, grandes e assustados.
Ele nunca mais veio comigo aqui para o Maine.
Não até agora.
•••
O tempo ainda estava aberto quando entramos no caminhão. Lee foi
para casa, disse que ia mandar uma reclamação sobre a cerca elé-
trica.
Tom não proferiu uma única palavra no caminho até o hotel. Tal-
vez estivesse procurando o urso, esperando que aparecesse como
um furacão na estrada, na frente do carro, metesse a pata no capô e
partisse a carroçaria em pedaços, arrancando nós dois como se fôs-
semos ratinhos num buraco.
Assim que entramos no quarto, ele rapidamente começou a jun-
tar suas coisas, arrebatou os marcadores, jogou o livro com o Big
Ben na mala. Fiquei olhando para ele.
– Você não está com pressa.
– É bom deixar tudo pronto – falou por entre os dentes, mais
uma vez de costas para mim.
Só depois de fechar a mala ele me olhou. Eu estava sentado, fin-
gia ler o jornal.
Ele estava em pé, os braços caídos ao longo do corpo. Enfiou as
mãos nos bolsos da calça, mas logo tirou outra vez. Tinha alguma
coisa em seus olhos que eu não estava captando.
– Sim? – falei enfim.
Ele não respondeu. Estava com a língua coçando, não havia dú-
vida disso.
– Tudo bem. – Tornei a me debruçar sobre o jornal, inclinei a ca-
beça um pouco para o lado, fiz uma careta, como se aquilo que es-
tava lendo fosse especialmente interessante.
– Por que você faz isso? – perguntou ele de repente. Levantei os
olhos.
– O quê? Faço o quê?
– Por que você fica arrastando as abelhas para cima e para bai-
xo desse jeito?
– Como?
– As abelhas. – Ele tomou fôlego. – Agora você perdeu três col-
meias. Três colônias perderam suas casas. – A voz se elevou, os
olhos se dilataram, ele cruzou os braços sobre o peito, como se pre-
cisasse segurar a si mesmo. – E só o fato de carregar as abelhas
nos caminhões para lá e para cá. Você sabe mesmo o que isso faz
com elas?
A grande seriedade no corpo jovem. Era demais. Dava vontade
de rir. E foi exatamente o que fiz. Um riso se formou em meus lá-
bios, um som pigarreante escapou da garganta, mas a risada não
saiu tão autêntica como eu esperava.
– Você não gosta de mirtilos? – perguntei.
Algo nele titubeou.
– Mirtilos?
Tentei manter a cabeça erguida, preservar o riso, me proteger
por trás dele.
– Não haveria muitos mirtilos no Maine sem as abelhas.
Ele engoliu.
– Sei disso, pai. Mas por que você faz parte de todo esse… sis-
tema? A agricultura… do jeito que tem ficado…
Dobrei o jornal com gestos largos. Deixei-o na mesa. Tentei man-
ter a voz calma, não berrar.
– Se você fosse filho do Gareth, entenderia do que está falando.
Mas eu não trabalho do jeito dele.
– Achei que você quisesse ser como ele.
– Ser como Gareth?
– Sei que você quer expandir.
Ele disse aquilo de forma simples, não como um questionamen-
to. Não como uma acusação, embora na verdade fosse.
Dei risada outra vez. Uma risada oca.
– E além do mais eu nos inscrevi no clube de golfe. E investi nu-
ma fábrica de bronze.
– O quê?
– Não. Nada.
Ele suspirou profundamente. Então tirou os olhos de mim e se
voltou para a janela. Lá fora o tempo ainda estava aberto.
– Acho que vou dar aquela volta agora mesmo – disse ele, sem
tornar a olhar para mim.
Aí ele saiu.
Todo o meu plano saiu com ele pela porta arranhada do quarto
de hotel.
William

– Mas onde ele está?


Thilda e todas as meninas formavam uma fileira diante de mim
na cozinha. Agora elas enfim veriam o resultado de meus esforços.
Eu pretendia levá-las até a colmeia, mas mantê-las a uma distância
segura para que não fossem picadas. Depois eu abriria a colmeia
com cuidado e lhes explicaria tudo. De modo que elas, de modo que
Edmund, compreendessem a invenção que mudaria nossas vidas.
Que nos traria honra, que levaria nosso nome aos livros de história.
O sol deitara-se rente aos campos atrás do jardim, onde lutava
contra o horizonte e também contra algumas nuvens sombrias que
se reuniram a oeste. Em breve, ele se poria, e talvez chovesse du-
rante a noite. Queria mostrar a colmeia à família no momento preci-
so do ocaso, pois era nessa hora que as abelhas estariam reunidas
dentro dela.
– Ele avisou que não viria para o jantar – disse Thilda.
– Bem, e por que não?
– Não lhe fiz essa pergunta.
– Mas você disse a ele que eu tinha algo a lhes mostrar hoje,
certo?
– Ele é um jovem com uma vida própria. Quem sabe onde está?
– Ele deveria estar aqui!
– Ele está exausto – disse Thilda. Ela falava sobre Edmund co-
mo se ainda fosse um bebê, numa voz meiga, choraminguenta, em-
bora ele nem estivesse presente.
– E como você pensa que ele vai enfrentar a faculdade no outo-
no, se não consegue lidar com obrigações?
Ela demorou muito a responder. Refletiu, fungou.
– Mas ele precisa?
– Como disse?
– Acho prudente ele esperar mais um ano. Morar em casa, des-
cansar bem.
As narinas dilataram-se quando ela falou, senti náuseas e desvi-
ei o rosto.
– Vá procurá-lo – disse eu, sem olhar para ela.
Oito pares de olhos fitaram-me, mas nenhum membro da família
fez a menor menção de se mexer sequer um milímetro.
– Mas vá procurá-lo, então!
Finalmente, alguém entendeu quem era o chefe da família. Ela
deu um passo para trás, em direção à porta, e pegou a touca do
gancho.
– Estou saindo já.
Charlotte.
•••
Ficamos sentados na cozinha, esperando, enquanto a escuridão sa-
ía dos cantinhos e nos envolvia. Ninguém acendeu as lâmpadas.
Quando alguma das menininhas tentava dizer algo, Thilda mandava
ficar quieta. Vislumbrei o céu por uma janela. As nuvens tinham ven-
cido o sol há tempo, mas logo elas também não seriam mais vistas,
pois a escuridão tragava seus contornos. Logo a noite nos cegaria e
seria tarde demais para mostrar qualquer coisa.
Onde será que ele estava?
Saí, permaneci em pé na escada. Um sistema de baixa pressão
atmosférica e umidade pairava sobre a paisagem. O ar estava aba-
fado e denso, nenhum sopro de vento. Tudo estava parado. As abe-
lhas tinham-se recolhido à colmeia e não pude mais ouvi-las.
Onde será que ele se encontrava o tempo todo? O que poderia
ser mais importante do que aquilo que eu lhe mostraria?
Quando entrei outra vez, Thilda disfarçou um bocejo. Georgiana
já estava dormindo com a cabeça no colo de Dorothea e as gêmeas
recostavam-se uma na outra, ambas pestanejando.
Era tarde demais para elas. Deviam estar na cama há muito tem-
po.
De repente eu não sabia onde me meter e dei dois passos para
o lado. Na mesa, havia uma jarra de água, peguei-a e me servi.
Senti um oco no abdome, um leve ronco criou-se lá dentro. Depres-
sa, afastei a cadeira da mesa, na esperança de que o som rascante
tirasse as atenções do ruído em meu estômago. Então sentei, pus
as duas mãos sobre o ventre, inclinei-me um pouco para a frente, e
o ronco se manteve lá dentro.
Subitamente a porta abriu-se.
Levantei-me depressa. A cadeira raspou no chão.
Charlotte entrou primeiro. Estava com os olhos cravados no
chão.
E atrás dela, um vulto escuro. Edmund. Ela o encontrara.
– Mas, querido! – Thilda pôs-se em pé rapidamente.
Ele estava pingando. Deu alguns passos desequilibrados no
chão da cozinha. Estava com o cabelo e a camisa molhados, mas
as calças estavam secas, como se alguém tivesse jogado água ne-
le.
– Charlotte? – disse Thilda.
– Edmund… ele…
– Caí no riacho – disse Edmund lentamente.
Então passou por nós cambaleando.
Dei um passo para a frente e pus a mão em seu ombro, queren-
do guiá-lo, pois talvez não fosse tarde demais para levá-lo lá fora,
mostrar-lhe tudo e fazê-lo entender.
No entanto, senti como ele tremia sob a roupa molhada e percebi
que os dentes batiam em sua boca.
– Edmund?
– Preciso… dormir – disse ele baixinho sem se virar.
Então ele se desvencilhou de meu braço, e, com passos arrasta-
dos, foi em direção à escada para o andar de cima.
Thilda saltitou atrás dele, os pés soando como garras de galinha
contra o piso, a tagarelice, como cacarejos inquietos.
– Meu bem… venha cá, vou te ajudar… olhe aqui, ande com cui-
dado… a cama está feita… segure meu braço… isso, assim… isso.
Suas costas pesadas desapareceram escada acima. Olhei para
minha mão, ainda estava úmida depois de o ter segurado, e esfre-
guei-a depressa na perna da calça.
A melancolia, aquela que me atacara com tanta violência, será
que ela também residia em meu filho? Passara de minha corrente
sanguínea para a sua? Hereditária? Talvez por isso ele nunca me
deixava entrar em sua intimidade?
Senti um aperto no peito. Não, não ele. Não Edmund.
De repente me dei conta das crianças, as meninas formavam um
círculo em torno de mim. Silenciosas, bambas de sono. Olhavam
para mim, aguardavam minha próxima instrução. Todas, com a ex-
ceção de Charlotte, ela não olhou nos meus olhos, mas também es-
tava pálida por falta de sono.
Respirei fundo.
– Amanhã – falei baixinho para elas. – Terá de ficar para ama-
nhã.
Tao

– Você sabe como chegar lá?


Eu estava no saguão degradado e simplório do hotel, apontando
para o mapa que acabara de desdobrar. O hospital era um dos últi-
mos da lista. Eu tinha trabalhado sistematicamente, marcando e ris-
cando um por um.
– Há uma linha de metrô daqui até lá – disse a recepcionista,
apontando. – Agora não sei, mas era possível fazer baldeação aqui
– ela colocou o dedo no mapa, perto de uma dobra surrada.
Era uma mulher esguia e empertigada, que dava risadas sur-
preendentemente altas e longas sempre que surgia uma oportunida-
de. Estava sempre trabalhando. Sozinha, os outros tinham sido
transferidos, ela contou. Agora se agarrava ao hotel, que pagava ca-
da vez menos, para conseguir comida para si mesma e a filha. A fi-
lha vinha todo dia depois da escola e fazia a lição de casa no sa-
guão. Só assim mãe e filha conseguiam se ver.
– Mas fica naquele trecho da rede do metrô que a Comissão Ur-
bana recomenda não usar mais – continuou ela.
Olhei para ela com ar interrogativo.
– Aquelas áreas são barra-pesada. São ocupadas. Não. Ocupa-
das não é a palavra certa. Mas as pessoas que ainda moram lá não
têm nada. E ninguém mais controla essa população – explicou.
– Que tipo de pessoas são?
– As que se recusaram a mudar. As que foram abandonadas. As
que se esconderam. Tudo aconteceu rápido demais, e quem se ar-
rependeu depois logo viu que já era tarde demais.
Ela engoliu seco e desviou o olhar. Talvez fosse o caso dela, o
mesmo do rapaz e do pai no restaurante. Mas não consegui pergun-
tar, não aguentaria mais uma dessas histórias.
Só queria me colocar em movimento, procurar, assim como tinha
feito todos os dias desde que cheguei aqui. Afinal, ele tinha de estar
em algum lugar. A cada manhã, eu saía na hora da alvorada, levan-
do na bolsa dinheiro e alguns biscoitos secos embrulhados em pa-
pel. A cada dia, um novo bairro, um novo hospital. Eu já tinha entra-
do em contato com muitos deles antes, telefonando tanto de casa
como do hotel. Tinha os nomes das unidades, os nomes dos médi-
cos. Agora procurava as mesmas pessoas mais uma vez, pensando
que seria mais difícil que negassem informações se me vissem pes-
soalmente, se vissem a Mãe, cara a cara. Algumas delas se lembra-
vam de mim, sentiam dó de mim. Algumas até se atreviam a me
olhar nos olhos e dizer que entendiam meu desespero.
Entretanto, o resultado era o mesmo em todo lugar. Eles não o
encontravam em registro algum. Nunca ouviram falar de Wei-Wen. E
eu era sempre encaminhada para outro lugar, para outro hospital,
você tentou em Fengtai, você visitou o Hospital Central de Cha-
oyang, você passou no Centro Haidian de Problemas Respiratórios?
Eu sempre pedia para falar com o superior, raras vezes me con-
tentava com a primeira pessoa que me era indicada. E depois eu
aguardava. Dias inteiros. Sentada, em pé, caminhando, perto da ja-
nela, em locais escuros, sobre pisos frios de pedra, em salas som-
brias, com um copo de água na mão, uma xícara de chá de uma
máquina, em geral sozinha, às vezes em salas de espera esparsa-
mente ocupadas. Nunca estavam cheias, nunca estavam movimen-
tadas. E mesmo assim parecia que eu era constantemente empurra-
da para baixo numa lista, com frequência só conseguia falar com a
pessoa certa perto da hora de fechar. Algumas vezes eu via olhares
recriminadores: será que essa mulher não pode desistir, há tantas
pessoas desesperadas, muitos doentes, subnutridos, uma única cri-
ança, ela tem que se acalmar, entender que não temos tempo. No
entanto, eu permanecia. Não fazia nada, só me mantinha claramen-
te presente, até fazer valer minha vontade.
Em diversas ocasiões, a espera me levava até o escritório do di-
retor. Espaços amplos com mobília pesada, salas que já tinham sido
elegantes, mas agora estavam em estado de decadência. Eu apre-
sentava minha solicitação, conversava com eles, sentia a compai-
xão. Alguns verificavam duas vezes, telefonavam para outros. De fa-
to, faziam um esforço. Mas ninguém podia me ajudar. Wei-Wen es-
tava sumido.
No início, eu ligava para Kuan toda noite. Mas as palavras entre
nós eram poucas. Eu avisava que não tinha tido progresso na bus-
ca. Ele me informava de que tampouco tinha ouvido qualquer coisa.
Num tom prático e mais breve a cada noite. E então ele perguntava
sobre o dinheiro, quanto eu tinha gastado, quanto sobrava. Eu men-
tia, não podia dizer que tinha desembolsado 5,5 mil iuanes só para
pagar a passagem de trem da ida. Uma noite eu não liguei. Ele tam-
bém não ligou para mim. Nós dois sabíamos que ninguém tinha na-
da a contar, chegamos a um acordo implícito de que o primeiro a sa-
ber alguma coisa entraria em contato.
Eu passava as noites num sono pesado sem sonhos, como se
alguém cobrisse minha consciência com uma manta negra no ins-
tante em que colocava a cabeça no travesseiro. A convicção de que
não podia fazer mais nada me dava equilíbrio. Eu tinha certeza de
que o encontraria no final. Só não podia desistir. Mas com o passar
dos dias, ficou cada vez mais difícil acreditar.
•••
Conforme avancei na lista, fiquei mais inquieta. Pois ainda não tinha
achado o menor vestígio de Wei-Wen. E o dinheiro havia sumido
mais depressa do que eu planejara, a lata estava ficando leve de-
mais. Não sobravam mais que sete mil iuanes. Com essa quantia
até daria para completarmos o valor necessário nos próximos dois
anos, antes de atingirmos o limite por idade. Bastaria que fôssemos
frugais. Mas eu ainda não tinha comprado a passagem de volta para
casa.
– Faz tempo que não tenho notícias de lá – disse a recepcionis-
ta, enquanto dobrava o mapa para mim. – Talvez esteja completa-
mente deserto agora. De qualquer forma, fomos aconselhados a fi-
car longe.
– Mas e o hospital?
– Está no limite. – Ela apontou. – As áreas fora do controle co-
meçam aqui. Mais para o sul você ainda pode viajar. Mas… você
tem certeza de que precisa ir lá?
Fiz que sim.
Ela fixou os olhos em mim e compreendeu. Afinal, sabia que eu
estava procurando meu filho. Embora não tivesse contado a ela
mais do que isso, deveria ser o suficiente. Todos os que têm filhos
entendem que é o suficiente, o suficiente para que potenciais riscos
se tornem secundários.
•••
Estiquei o pescoço para ver o telhado. Telhas vermelhas desgasta-
das pela intempérie. No passado com certeza tinham sido lustrosas,
envernizadas, como o telhado de um templo. As paredes estavam
acinzentadas e a pintura, descascada. Um zunido fraco no céu cha-
mou minha atenção, era algo que se movimentava pelo ar. Franzi o
cenho para ver melhor, mas o que quer que fosse desapareceu
atrás do telhado.
Acima de mim, um céu cinza impenetrável. Fazia sol quando saí
do hotel, mas aqui havia neblina. Como se já estivesse escurecen-
do.
A viagem demorou quatro horas. O itinerário incluiu três baldea-
ções e um longo desvio – único jeito para passar somente por aquilo
que a recepcionista tinha chamado de áreas seguras. Mesmo assim,
tudo era tão silencioso e deteriorado que os poucos passageiros
que encontrava me pareciam suspeitos e repetidas vezes me vi re-
ceosa, lançando olhares furtivos sobre o ombro.
Eu tinha feito várias tentativas de entrar em contato com esse
hospital. As primeiras ligações foram atendidas, mas a resposta era
sempre a mesma. Nunca ouviram falar do nome de Wei-Wen, não
poderiam me ajudar. Nas últimas vezes, eles não atenderam minhas
ligações. Somente uma secretária eletrônica me cumprimentava do
outro lado, um sistema de correio de voz que não levava a lugar ne-
nhum.
Um arranjo de plantas mortas foi a primeira coisa que vi. A luz
débil de uma lâmpada indicava que o hospital ainda tinha energia
elétrica. O grande saguão estava vazio. Um balcão de madeira es-
cura surgiu à minha frente. Encontrei uma antiga máquina de regis-
tro de acompanhantes, deveria datar do período pré-Colapso. O
aparelho tremeluziu sob meus dedos, mas logo ficou preto.
Comecei a andar ao acaso.
Primeiro fui para a direita, mas encontrei uma porta trancada.
À esquerda achei um elevador. Tentei os diversos botões, mas
nada aconteceu. Continuei. Corredores escuros sem fim se estende-
ram diante de mim.
Testei várias portas, mas todas estavam trancadas.
Enfim uma delas se abriu, deixando entrever uma escadaria mal
iluminada. Subi um andar. Ali a porta estava trancada. Tentei mais
uma, também estava trancada. Somente no terceiro andar achei
uma porta aberta. Entrei num corredor, tão deserto como os outros.
Andei alguns metros. Meus passos soavam como baques surdos no
chão de pedra.
Parei perto de uma janela. Então descobri que havia luz em uma
das alas laterais do hospital. Continuei naquela direção. Torcendo
para que o corredor por onde andava unisse as alas e eu pudesse ir
direto para lá.
De repente ouvi um som na minha frente, metal oco atritando
contra o piso de linóleo.
– Olá? – disse eu baixinho.
Uma porta estava aberta mais adiante, uma porta dupla de vidro.
Não enxerguei o que havia lá dentro.
Tomei consciência súbita de meu coração, ele batia forte. Algo
estava errado. Talvez fosse melhor sair dali, alcançar a luz lá longe
na ala lateral. Mas eu precisava passar pelas portas. Apertei o pas-
so.
Mais um ruído. Passos arrastados.
Então uma figura apareceu diante de mim. A primeira coisa que
vi foram os pés descalços. Unhas por cortar nos dedos enrugados.
Ela, pois teria de ser uma mulher, mal conseguia se locomover.
Apoiava-se num suporte com uma bolsa de medicação intravenosa,
era o suporte que estava fazendo o ruído. Mas a bolsa estava vazia.
O cabelo grisalho crescia em tufos e o couro cabeludo descascava,
soltando grandes escamas. Ela vestia apenas uma camisola hospi-
talar, que estava manchada. Pude ver os contornos de uma fralda, e
só naquele momento senti o cheiro.
Ela olhou fixamente para mim, como se tivesse esquecido a fala.
Recuei, quis fugir.
Ela sibilou, tentou mais uma vez, quis dizer algo.
Eu me controlei, respirei fundo, não podia abandoná-la.
Dei alguns passos em sua direção. Ela vacilou um pouco, pare-
cia que ia desmoronar.
– Oo… oolha – disse ela debilmente. – Olha.
Ela bamboleou. Agarrei seu cotovelo para apoiá-la. O fedor ardia
no nariz. O braço era magro como o de uma criança. Ela queria me
levar para o quarto de onde vinha.
Empurrei a porta, que se abriu sem fazer barulho. Entramos. Eu
continuava a apoiá-la. A náusea me invadiu, o fedor era como uma
massa espessa, impenetrável. Ele me atingiu e sugou o ar de mim.
Uma sala. Ao longo das paredes, havia leitos, camas hospitala-
res de tubos de aço polido, muitas, todas com lençóis que alguma
vez tinham sido brancos. Não deu tempo de contar, mas deviam ser
mais de cem.
Nos leitos havia pessoas. Alguns idosos, muitos velhos e um ou
outro velhíssimo. Acordados, choramingando, agarrando-se às ca-
mas, gemendo, as mãos se agitando no ar. E alguns estavam de
olhos fechados, como se dormissem.
Minha chegada fez vários deles se erguerem nas camas. Eram
muito magros, magérrimos, e tão maltrapilhos quanto a mulher que
entrou comigo. Agora se puseram em pé com grande esforço e co-
meçaram a vir a meu encontro.
Uns vinte velhinhos lutaram contra seus próprios corpos, lutaram
contra a força da gravidade e se movimentaram para a frente. Al-
guns tão mal das pernas que eram obrigados a engatinhar. Todos
repetiram as mesmas palavras. Socorro. Me ajude. Nos ajude. Ve-
zes sem fim.
Mas os que estavam dormindo não se moveram, apesar do baru-
lho, apesar dos gritos dos outros. Entendi então que não era o sono
que os acorrentava à cama. Era a morte.
Dei meia-volta e saí correndo.
Gritei. Berrei sem palavras. Tentei chamar a atenção de alguém,
mas ninguém respondeu.
Continuei na escuridão. Até a outra ala, onde havia luzes ace-
sas.
Meus passos no piso de linóleo, minha própria respiração, ne-
nhum outro som.
Virei para outro corredor e finalmente vi os quartos iluminados.
Corri em direção à porta. Abri-a com estrondo. Uma mulher vestida
de branco, uma médica ou enfermeira, olhou surpresa para mim. Ela
estava guardando roupa de cama numa caixa.
– Quem é você?
Só agora percebi que estava chorando.
Esfreguei meus olhos, tentei explicar, mas as palavras se emba-
ralharam.
– Venha cá, pode sentar – ela quis me ajudar a sentar numa ca-
deira.
– Não, não… os velhos… eles precisam de ajuda.
Ela virou o rosto. Tornou a dobrar os lençóis.
Puxei-a pelo braço.
– Preciso te mostrar… Vamos!
Ela se desvencilhou de mim com delicadeza. Não olhou para
mim.
– Sabemos sobre eles – disse calmamente.
Pus a mão nela outra vez.
– Mas estão doentes. Alguns deles… acho que estão mortos.
Ela se afastou abruptamente.
– Não podemos levá-los conosco.
– Levá-los?
– Estamos esvaziando o hospital. Não há outra coisa a fazer. Es-
tamos levando os pacientes para um hospital em Fangshan, mais ao
sul. Somos muito poucos, não aguentamos mais. Os suprimentos
não chegam até aqui, ninguém quer trabalhar aqui.
– Mas e os velhos?
– Estão mortos.
– Não. Eu vi. Estão vivos!
– Logo vão morrer. – Ela me olhou nos olhos, endireitou a nuca,
como se quisesse parecer durona.
Permaneci em pé.
– Não!
Ela pôs a mão em meu braço.
– Sente-se.
Ela foi até a pia, quis encher um copo de água, mas a torneira
soluçou. Desistiu e foi em direção ao corredor.
– Espere aqui.
Logo depois ela voltou com um copo de água morna.
Aceitei a água. O copo era algo para segurar. Eu me agarrei a
ele.
Ela se sentou comigo.
– Você é parente de algum paciente? – perguntou com voz mei-
ga.
– Sim. Não. Não sei. Quero dizer… não de algum paciente da-
qui.
Ela olhou surpresa para mim.
– Estou procurando meu filho – expliquei.
Ela fez um gesto de assentimento.
– Tem razão. Ele não está aqui. Os últimos pacientes foram
transferidos hoje cedo. Agora só sobraram os equipamentos.
– E os velhos?
Ela se levantou bruscamente e não respondeu.
– E os velhos? – perguntei outra vez.
– Não podemos ajudá-los. – A voz era neutra e ela pegou um
carrinho sem olhar para mim. – Devo pedir que saia.
A náusea me invadiu.
– Eles simplesmente vão ficar aqui?
Ela virou a cabeça para o outro lado.
– Vá embora agora.
– Não!
Enfim ela ergueu o olhar. Os olhos imploravam.
– Vá embora. E esqueça o que viu.
Eu quis segurar o carrinho, mas ela o puxou para si. Ele bateu
no batente da porta com um estrondo. Ela ajeitou o carrinho para
passá-lo pelo vão da porta, mas não acertou. Teve de tentar outra
vez. Afinal conseguiu manobrá-lo para fora. As rodinhas vibravam
contra o chão enquanto ele ia sumindo pelo corredor. O som feria os
ouvidos.
•••
Eu estava na rua, não sabia como tinha conseguido chegar ali. Ha-
via abandonado os velhos, abandonei-os assim como todos os ou-
tros fizeram, eu era parte disso. Esse era nosso mundo. Sacrificáva-
mos nossos idosos. Será que foi isso que aconteceu com minha
mãe também? Ela fora mandada para longe. Tudo foi tão rápido. Ela
desapareceu. E eu não fiz absolutamente nada para ajudar. Só dei-
xei aquilo acontecer.
Mamãe.
Eu me inclinei para a frente, me ajoelhei, o diafragma se con-
traiu, o estômago se revirou.
Vomitei até não sobrar mais nada. Então me pus de pé. Eu devia
voltar. Dar-lhes comida, água. Tirá-los dali. Ou achar alguém que
pudesse ajudar. Eu devia agir como um ser humano. Alguém tinha
de ser capaz de fazer alguma coisa. Talvez fosse eu esse alguém.
Talvez a diretoria nem soubesse da decisão de deixá-los aqui. Tal-
vez não soubessem.
No entanto. Não era por esse motivo que eu estava aqui. Wei-
Wen.
Aqueles lá dentro não eram minha responsabilidade. Eram res-
ponsabilidade do hospital. E de suas famílias. Alguém os tinha
abandonado ali. Não eu, não dessa vez.
Mamãe. Eu tinha falhado com ela. Não falharia com Wei-Wen. E
as pessoas lá dentro… Não havia nada que eu pudesse fazer. Preci-
sava me concentrar em meu filho.
Vomitei de novo, como se o corpo protestasse contra meus pen-
samentos. Fios de muco grudaram nos lábios. Senti um gosto aze-
do, o nariz e a garganta arderam intensamente. Eu mereci.
Fiquei sentada, tonta e mole. Aí me levantei lentamente e come-
cei a caminhar. Não sabia para onde estava indo, só que precisava
ir para o mais longe possível daqui.
Eu estava com a boca seca. Tentei respirar pelo nariz, molhar a
língua com saliva. Não ajudou. Enfiei a mão na bolsa, tinha uma
garrafa de água ali. Peguei a garrafa, ela estava pela metade, e a
esvaziei em grandes goles.
Depois continuei andando. Perdi contato com o tempo. Uma par-
te do céu estava mais clara. Fui atraída para aquele lado. Talvez o
sol estivesse ali, talvez eu pudesse sair de toda essa nebulosidade
cinzenta. Mas o ponto no céu ficou cada vez menor, o leve véu dian-
te do sol tornou-se mais espesso.
Só quando era tarde demais, percebi que estava perdida.
Ge orge

As colmeias estavam de volta. Na campina, no arvoredo e nas va-


las, onde Tom evidentemente queria que ficassem. A bem da verda-
de, ele não queria nada com elas, nem estar aqui fora.
Era de manhã e eu estava na campina, perto do rio Alabast. O
sol queimava o chapéu branco, o macacão e o véu. Eu estava sem
roupas por baixo. Gotas de suor escorriam pelas costas, fazendo
cócegas até encontrarem a borda das cuecas. A Flórida deveria es-
tar um inferno agora. Meu Deus, como eu estava feliz por não ter
feito aquela escolha.
Porque o calor do verão aqui em cima era mais do que suficien-
te. O tempo tinha sido excepcional nas últimas semanas. Pouca
chuva. As abelhas, entrando e saindo, entrando e saindo. Colhendo
néctar desde o sol raiar até se pôr na campina, logo atrás da fazen-
da de Gareth.
Essa época era a melhor. Eu passava muito tempo aqui fora com
as abelhas. Sem pressa. Às vezes, ficava parado observando sua
dança, os movimentos para a frente e para trás. Não conseguia de-
cifrar esse sistema delas, mas sabia que era sua maneira de contar
onde estava o melhor néctar: Agora vou agitar as asas um pouco,
me movimentar para a direita, depois um tanto para a esquerda e
então dar uma volta. Vocês viram bem? Então já sabem que devem
passar o carvalho grande, subir a pequena ladeira, atravessar o ria-
cho, e ali, pessoal, ali estão as melhores framboesas silvestres que
vocês podem imaginar!
Assim elas passavam o tempo. Entrando e saindo, dançando
umas para as outras, procurando, encontrando, trazendo. E as col-
meias ficavam cada vez mais pesadas. Às vezes, eu tentava sentir
seu peso, calcular quanto mel já pingava lá dentro. Dinheiro doura-
do, vivo. Dinheiro para a entrada, dinheiro para o empréstimo.
As melgueiras foram acrescentadas às colmeias faz tempo. A ta-
refa agora era evitar a enxameação, evitar que a velha rainha levas-
se embora parte da colônia para dar lugar a uma nova rainha e sua
prole.
A campina perto do rio Alabast ficava longe das moradias. Mes-
mo assim, mais de uma vez eu fui chamado por mulheres ranzinzas
para tirar um enxame de alguma árvore frutífera. Enquanto eu cha-
coalhava a árvore e, com jeito, transferia o enxame para uma nova
colmeia, seus filhos medrosos ficavam tremendo dentro de casa,
com os narizes espremidos contra as janelas. A gente ficava com
má reputação por causa dessas coisas, por isso eu fazia de tudo pa-
ra evitar a enxameação. Quando acontecia, as abelhas nem sempre
esperavam que as olheiras achassem um novo lar. Tinham a capaci-
dade curiosa de encontrar árvores nos jardins das pessoas, não
apenas na natureza criada por Deus.
Por isso eu sempre estava com a cabeça nas colmeias, procu-
rando realeiras. Se eu via o menor indício delas, esmagava na hora.
Mas se descobria larvas, o jeito era esquecer todo o resto. A colônia
tinha que ser dividida.
Em algumas colmeias, a vontade de enxameação é grande.
Nunca descobri por quê. Então, tinha de trocar a rainha, fazer a cria-
ção a partir de uma das melhores. Resistir à tentação de continuar
com as crias das abelhas enxameadas. Eu já tinha trocado a maio-
ria das rainhas esse ano, mas deixei algumas viverem. Algumas rai-
nhas fiéis que continuavam a postura de ovos por até três anos. As
rainhas modelo. Em geral, era com base nelas que eu fazia a cria-
ção.
Estava ao lado de uma delas agora. Uma colmeia cor-de-rosa,
uma colônia fiel. Uma das que recolhiam mais néctar. Abelhas nas
quais eu podia confiar. Produziam que era uma beleza, a colmeia já
tinha sido ampliada com duas melgueiras esse ano. Duas melguei-
ras pesadas, cheias de mel. Fazia uma semana que eu não vinha
aqui, estava concentrado nas colmeias de outros lugares.
Não olhei com muita atenção para o alvado antes de tirar a tam-
pa. Tom dava voltas na minha cabeça. A gente não tinha tido notí-
cias dele. Nada sobre a bolsa de estudos, nada sobre o que ele
pensava a respeito do futuro. Ou talvez ele tivesse telefonado e con-
versado com Emma enquanto eu estava fora, sem ela mencionar is-
so depois. Eu só esperava. Talvez ele estivesse refletindo sobre as
opções que tinha. De certa forma, nenhuma notícia até era uma boa
notícia. E afinal ele sabia onde eu estava, o apiário certamente não
tinha criado asas para sair voando desde a última vez que a gente
se viu.
Será que eu tinha perdido Tom?
Coloquei o teto no chão e só então me concentrei. Pois o som
não estava como de costume, como deveria ser. Estava quieto de-
mais.
Tirei o forro de isolamento térmico. Agora eu ouviria direito. Não?
Dei uma conferida no alvado, na entrada.
Nenhuma abelha.
Então olhei na melgueira de cima. O estoque de alimento estava
em ordem. Muito mel.
Mas onde elas estavam?
Talvez na outra melgueira. Sim. Tinham que estar ali.
Retirei a melgueira de cima. As costas reclamaram. Lembre-se
de usar as pernas para levantar peso. Tentei ir com calma. Deixei a
melgueira na grama, me endireitei e espiei dentro da outra.
Nada.
O ninho. Tinham que estar no ninho.
Retirei a tela excluidora com pressa. O sol estava bem em cima
da minha cabeça, iluminando a caixa debaixo de mim.
Vazia. Estava vazia.
Tinha bastante crias, mas só isso. Apenas algumas poucas abe-
lhas recém-eclodidas engatinhavam ali, sem que ninguém cuidasse
delas. Órfãs.
No fundo encontrei a rainha. Assim como todas as rainhas, ela ti-
nha uma marca, uma marca de verniz turquesa nas costas. Em tor-
no dela havia abelhas jovens, as crianças. Elas não dançavam, es-
tavam moles. Sozinhas. Abandonadas. A mãe e as crias abandona-
das pelas operárias. Abandonadas por aquelas que deveriam cuidar
delas. Abandonadas para morrer.
Procurei no chão em torno da colmeia. Mas também não tinha
nada ali. Estavam simplesmente sumidas.
Com cuidado, coloquei a tela excluidora e as melgueiras de volta
no lugar. Percebi que estava piscando em ritmo acelerado. As mãos
tremiam, de repente estavam frias como num dia de outono com
chuva e vento.
Eu me virei para a colmeia mais próxima. O alvado, a entrada da
colmeia, dava para o lado contrário ao do meu campo de visão, mas
também não era necessário olhar para saber o que me esperava. O
silêncio falava alto demais.
Nenhum vestígio de ácaro. Nenhuma doença. Nenhum cemité-
rio, nenhum massacre, nenhum cadáver.
Só a colmeia abandonada.
E mais uma vez a rainha quase sozinha lá embaixo.
Senti um aperto no peito, me apressei a colocar a tampa de vol-
ta.
Abri a próxima.
A esperança estava em minhas mãos, que retiravam a tampa ra-
pidamente.
Mas não. A mesma coisa.
Abri a próxima.
A mesma coisa.
A próxima.
A próxima.
A próxima.
Ergui os olhos.
Olhei para todas elas, espalhadas a intervalos irregulares. Mi-
nhas colmeias. Minhas abelhas.
Vinte e seis colmeias. Vinte e seis colônias.
William

Enquanto Edmund dormia para se recuperar, eu trabalhava na col-


meia. O sol estava brilhando outra vez, meu ânimo melhorava aqui
fora. Era óbvio que ele não estava doente, só cansado. Thilda com
certeza tinha razão. Um dia a mais ou a menos não importava, e as-
sim que ele visse o que eu tinha realizado, certamente despertaria
de verdade.
As condições de observação eram excelentes. Eu instalara a col-
meia numa posição alta, assim mal havia necessidade de curvar as
costas para ver. As abelhas acomodaram-se com rapidez surpreen-
dente, a essa altura colhiam pólen e néctar e se reproduziam a
olhos vistos. Tudo estava como deveria estar. Mas uma coisa me in-
trigava: a incessante necessidade que as abelhas tinham de fixar os
quadros de cera em algo. Eu experimentara diversas estratégias,
mas, se os quadros ficavam muito perto das paredes laterais da col-
meia, as abelhas produziam uma mistura de cera e própolis, o mate-
rial viscoso que elas faziam de resina; se ficavam longe demais,
elas criavam uma ligação, construíam escadas, favos transversais.
Isto, a necessidade de fixar os favos, acabaria por dificultar a colhei-
ta a longo prazo. Havia algo aqui, algo em que eu precisava traba-
lhar mais.
Ele chegou enquanto eu estava lá. Avistei-o antes de ele me ver.
Sua figura causou uma vibração dentro de mim: o chapéu inclinado
que deixava o rosto na sombra, uma camisa solta em torno do corpo
vigoroso, a mochila, a mesma mochila de lona desgastada que tra-
zia sempre pendurada ao ombro, cheia de recipientes de vidro, pin-
ças, estiletes e criaturas vivas.
Debrucei-me sobre a colmeia. Esta poderia ser a oportunidade
que eu tinha aguardado, mas eu não deveria mostrar o quanto esta-
va em jogo para mim. Mantive as mãos em atividade, embora não ti-
vesse uma ideia muito clara do que estava fazendo. Com as costas
viradas para a rua, pretendi me mostrar completamente absorto, ab-
sorto nesse empreendimento grande, que era só meu, o primeiro
que era exclusivamente meu.
Seus passos aproximaram-se, ficaram mais lentos. Pararam.
Então ele pigarreou.
– Quem diria?
Virei-me. Simulei uma expressão de surpresa.
– Rahm.
Ele deu um breve sorriso.
– Então é verdade o que dizem?
– O quê?
– Alguém já está recuperado.
Endireitei-me.
– Não apenas recuperado. Estou me sentindo melhor do que
nunca. – Soou imaturo.
– Fico feliz – disse ele sem sorrir.
Eu torcia para que ele fizesse mais perguntas, quisesse saber
por que eu proferira palavras tão enfáticas. Mas ele não disse nada,
simplesmente permaneceu ali, meio virado para o outro lado, como
se fosse me deixar logo.
Fui em direção à cerca, tirei o chapéu e o véu. Quis mantê-lo
aqui, estender a mão para cumprimentá-lo e sentir sua mão na mi-
nha. Ao mesmo tempo, tomei consciência de meu rosto suado, pro-
vavelmente rubro. Enxuguei a testa de forma discreta, mas ele já o
tinha notado.
– Está quente aí dentro.
Fiz que sim.
– No entanto, deve ser prudente se cobrir.
– Sim – respondi, sem entender direito onde ele queria chegar.
– As consequências podem ser realmente terríveis se não nos
cobrirmos.
Ele adotou o tom professoral de sempre, como se dissesse uma
novidade para mim.
– Estou ciente disso – limitei-me a responder, desejando ser ca-
paz de dizer algo perspicaz e sábio, algo que o fizesse abrir um sor-
riso. Mas tudo o que eu tinha a oferecer parecia obviedade.
– É por isso que nunca senti muito entusiasmo pelas abelhas.
Você não consegue o contato direto – observou ele.
– Suponho que isso dependa um pouco da pessoa, se ela se
sente à vontade ou não.
Ele me ignorou, prosseguindo do ponto onde tinha parado.
– A não ser que você seja um Wildman. – O sorriso breve dese-
nhou-se nos lábios.
– Wildman?
Assim como tantas vezes antes, ele apresentou um nome que
me era estranho. Seus conhecimentos pareciam inesgotáveis.
– Então. Alguém não leu sobre Wildman?
– Não… Não sei… O nome soa familiar.
– Um artista de circo, um charlatão. E um palhaço. Ele deixava
as abelhas subirem nele, sem proteção. Era famoso por sua barba
de abelhas. – Passou a mão sobre o rosto para mostrar. – Tinha
abelhas nas faces, no queixo e no pescoço. Até se apresentou para
o rei George III. Será que foi em… 1772?
Olhou para mim como se eu tivesse a resposta.
– Seja como for. O nome Wildman combinava com ele. O que fa-
zia era uma roleta russa, colocando essas abelhas em seu corpo e
simulando ter controle absoluto sobre elas, uma espécie de magia.
Mas a única coisa que ele de fato realizava era provocar uma enxa-
meação artificial. Ele as superalimentava com melado e tirava a rai-
nha. E onde a rainha está, as abelhas também estão.
O tom professoral de Rahm não dava qualquer indício de que ele
soubesse que esse assunto específico não era nada novo para mim.
– Por sinal, o pai dele ocupava-se em parte da mesma coisa.
Thomas Wildman. No entanto, este passou a ser um apicultor res-
peitado, entre outros, por muitos membros da nobreza, tomou juízo.
O filho, ao contrário, continuou com a loucura pelo resto da vida. O
que será que queria provar?
– O que será? – repeti.
– Bem – disse Rahm. – E fez um gesto de despedida com a mão
no chapéu. – O senhor não é nenhum Wildman, senhor Savage. Sa-
bemos muito bem disso. Mas, de qualquer forma, tome cuidado. –
Ele afastou uma abelha com a mão. – Elas picam. – Então fez men-
ção de ir embora.
– Rahm. – Dei um passo em sua direção.
– Sim? – Ele se virou.
– Se tiver tempo… Tenho algo que gostaria de lhe mostrar.
•••
Rahm não disse uma palavra enquanto eu apresentava a colmeia.
Ele estava usando o chapéu e o véu de Charlotte, o que me impedia
de ver seus olhos. Falei cada vez mais rápido, deixando-me levar
pelo entusiasmo, pois pela primeira vez estava apresentando uma
coisa minha. E havia tanto a dizer, tanto a explicar. Mostrei-lhe como
seria simples colher o mel, como os quadros poderiam ser retirados
com facilidade, expliquei-lhe como a limpeza da colmeia seria práti-
ca. Estendi-me sobre a ideia por trás, que minha colmeia fora inspi-
rada pela colmeia de folhas de Huber, mas que meu modelo era infi-
nitamente mais simples em sua função, além de garantir uma tem-
peratura muito melhor para as abelhas. E, sobretudo, mostrei-lhe
que permitia uma visão geral excelente e as possibilidades que isso
ofereceria para o futuro estudo das abelhas.
Por fim, parecia não haver mais a dizer, e percebi que eu estava
ofegante depois de minha torrente ininterrupta de palavras.
Enfim.
Aguardei sua resposta, mas ela não veio.
Enquanto o silêncio crescia entre nós, minha ansiedade também
aumentava.
– Agradar-me-ia muito ouvir o que pensa – disse eu por fim.
Ele deu a volta na colmeia. Estudou-a de todos os lados. Abriu-a.
Fechou-a.
Pus as mãos nas costas. As luvas estavam mais abafadas do
que nunca.
E então ele o disse.
– O senhor construiu uma colmeia de Dzierzon.
Olhei para Rahm sem entender o que ele quis dizer. Ele repetiu
as palavras lentamente.
– O senhor construiu uma COLMEIA DE DZIERZON.
– Como?
– Johan Dzierzon. Pastor e apicultor. Polonês, mas no momento
residente na Alemanha. É a colmeia dele que o senhor construiu.
– Não. Esta é minha… quero dizer… nem ouvi falar desse…
Tzi…
– Dzierzon.
Rahm virou-se de costas para a colmeia. Afastou-se alguns pas-
sos, tirou o chapéu. O rosto estava vermelho. Será que estava bra-
vo?
– Li sobre a colmeia de Dzierzon há mais de dez anos. Ele publi-
cou uma série de artigos sobre ela no Bienenzeitung.
Ele me mediu com o olhar, que estava impassível.
– Estou ciente de que o senhor não lê essa revista, e os artigos
não tiveram circulação fora da comunidade de pesquisa científica.
Portanto, compreendo perfeitamente que não tenha ouvido falar de-
le. – O tom era condescendente. – Mas esta colmeia que o senhor
fez oferece-lhe uma boa visão geral, assim como o senhor correta-
mente observou. Facilitará seu estudo das abelhas in vivo. Afinal de
contas, o trabalho talvez possa dar algum fruto.
Agora ele sorriu, e compreendi que o rubor do rosto não era cau-
sado por raiva, senão divertimento. Um riso abafado, aquela risadi-
nha breve sem alegria, pois mais uma vez eu o desapontara, e ele
só tinha vontade de rir.
Entretanto, ele não soltou a risada, apenas ficou me olhando,
evidentemente aguardando uma resposta. Não consegui dizer nada.
Aquilo não poderia ser verdade! Será que todo o meu trabalho fora
em vão? Um nó formou-se na garganta, o sangue fluiu para o rosto.
E já que fui incapaz de dizer qualquer coisa, ele continuou:
– Minha recomendação é que o senhor se inteire melhor do as-
sunto antes de iniciar seu próximo projeto. Muitos avanços foram fei-
tos nessa área nos últimos anos. Por exemplo, Dzierzon alega que
as rainhas e as operárias são produtos de fecundação, enquanto os
zangões se desenvolvem a partir de ovos não fecundados. Uma teo-
ria polêmica, mas bastante atual e muito comentada. Ao que parece,
ele também inspirou um jovem monge, chamado Gregor Mendel, a
iniciar um trabalho de pesquisa sobre a hereditariedade que é abso-
lutamente inusitado. Há muito em que se aprofundar, como o senhor
pode perceber.
Ele me entregou o chapéu.
– Mas de qualquer forma foi bom ver que o senhor já se recupe-
rou. E obrigado por querer mostrar-me seu pequeno passatempo.
Como eu continuava segurando o chapéu, estender-lhe a mão
não foi um gesto natural. Tampouco estava preparado para dizer
qualquer coisa, um soluço talvez acompanhasse o adeus.
Rahm pôs seu próprio chapéu na cabeça com um movimento ro-
tineiro. Despediu-se fazendo um gesto com a cabeça e pondo a
mão na aba, e então se virou e foi embora.
Ali estava eu, um menininho, com meu pequeno passatempo.
Ge orge

Andei depressa pela campina, em direção ao rio. Passei o carvalho.


Meu estômago deu um nó. Elas tinham que estar em algum lugar.
Peguei o celular, conferi se alguém tinha ligado. Quem sabe al-
guém tivesse um enxame no jardim? Mas não. Eu teria ouvido o to-
que.
Pois não se tratava de enxameação. Claro que não. Eu sabia
disso. Nenhuma colmeia tinha esse aspecto depois de uma enxa-
meação. Nenhum enxame abandonava a velha rainha.
Passei o pente fino pela paisagem, indo de um lado para outro.
Nada.
Peguei o celular outra vez. Tinha que pôr ordem nisso daqui, to-
mar o controle, e precisava de ajuda.
Digitei o número de Rick. Ele atendeu imediatamente, barulho no
fundo, ele estava no bar.
– Rick aqui, às ordens! – Foi dito com uma risada.
Não consegui responder, as palavras estavam entaladas na gar-
ganta.
– Alô? George?
– Sim. Olá. Desculpa.
– Tem algum problema? Espere um pouco.
•••
Já não havia barulho em torno dele, deve ter saído do bar.
– Olá. Isso. Agora estou te escutando.
– Pois é. Rick… Só queria saber se você pode vir. Para a campi-
na perto do rio.
A risada sumiu de sua voz, ele percebeu pela minha que era sé-
rio.
– O que você quer dizer? Agora?
– Sim. Agora…
– George? O que foi?
Minha voz falhou.
– Tem… tem que dar um jeito em muita coisa, muita coisa mes-
mo.
•••
Emma estava chorando. Ela estava chorando no meio da campina,
debaixo de uma árvore. As folhas lançavam sombras sobre seu ros-
to, se movimentando sobre as bochechas banhadas em lágrimas.
Talvez ela estivesse tentando se esconder debaixo da árvore, es-
conder que tinha desmoronado. Mas eu a achei, abracei e segurei
firme, do jeito que eu sempre fazia quando as lágrimas se apodera-
vam dela. Isso ajudou, ela se acalmou. E, pelo visto, eu também me
acalmei.
Em torno da gente havia colmeias reviradas, as cores de doces
gritavam à luz do sol. Eram pequenas casas, arrasadas por um gi-
gante. E o gigante era eu. Eu não tinha tido forças para fazer a arru-
mação. Tinha passado pela campina com pressa, conferindo uma
por uma, enquanto o sangue fervia no corpo e a respiração sibilava
nos ouvidos.
Não tinha perdido todas. Uma ou outra colmeia ainda estava co-
mo antes, as abelhas zuniam e trabalhavam lá dentro, como se na-
da tivesse acontecido. Mas as colmeias saudáveis eram muito pou-
cas. Não aguentei contar. Só continuei. Sem parar.
Rick e Jimmy tinham chegado, os dois. Estavam trabalhando a
uma pequena distância da gente. Rick andava devagar de um lado
para outro, dessa vez de boca fechada, para variar. O corpo oscila-
va de leve, parecia não saber por onde começar. Jimmy já estava
pegando pesado. Carregava as colmeias vazias, empilhando-as de
forma organizada.
– Uma coisa dessas não pode acontecer do nada – soluçou Em-
ma na minha blusa.
Eu não tinha nenhuma resposta.
– Deve ter tido algum… erro.
Soltei-a.
– Você acha que é por causa do nosso jeito de operar?
– Não, nada disso. – O choro acalmou. – Mas… como está de
alimento? – Ela se endireitou, o rosto estava coberto de sombra, ela
não me olhou nos olhos.
– Tudo certo, meu Deus, olha a data, você sabe que não é nessa
época que ficam sem alimento!
– Não, não mesmo.
Ela enxugou as lágrimas. Eu estava ali sem saber onde enfiar
minhas mãos.
Ela olhou para fora da sombra da árvore, para a campina e a luz.
– Está bem quente. Muitas delas ficam no sol o dia inteiro.
– É o que têm feito todo verão, durante muitas gerações.
– É. Desculpa… Mas não consigo acreditar que elas possam de-
saparecer. Sem um motivo.
Minhas mandíbulas ficaram tensas. Virei de costas para ela.
– Tudo bem. Você não consegue acreditar nisso. Mas isso não
faz nenhuma diferença agora, faz?
Uma abelha solitária passou por nós zunindo.
– Desculpa – disse ela em tom meigo. – Vem cá, então.
Ela abriu os braços de novo. Estava ali, macia e segura. Deixei
que me abraçasse. Afundei o rosto em sua blusa. Gostaria de cho-
rar como ela, mas os olhos estavam sequíssimos. Só tive dificulda-
de de respirar. Ficou apertado demais, a blusa me sufocou, a pele
quente que irradiava através do tecido.
Eu me afastei. Comecei a empilhar alguns quadros, mas, sem ter
onde colocar, acabei amontoando todos no chão. Arrumação sem
objetivo.
Ela se aproximou de mim, mais uma vez com os braços abertos.
– Você…
Eu tinha sido traído, igual Cupido pela mãe. Só que não tinha ne-
nhuma mãe para quem dirigir o choro. Tampouco uma mãe para cul-
par, pois não sabia quem me tinha traído…
E não podia chorar feito uma criancinha inchada de picadas.
Sacudi a cabeça com força para os braços abertos de Emma.
– Preciso trabalhar.
Peguei mais alguns quadros, coloquei em cima dos outros, uma
torre instável.
– Tudo bem. – Seus braços baixaram.
– Vou arranjar alguma coisa para vocês comerem.
Ela deu meia-volta e foi embora.
•••
O sol de fim de tarde era um buraco afogueado no céu. Raios duros
e sombras longas.
O corpo doía, mas eu continuei. Tinha colmeias em sete lugares
diferentes, e vi o mesmo espetáculo por todo lado.
Agora estávamos no último ponto, o bosque atrás da fazenda do
McKenzie. Uma pequena mata entre os campos. As colmeias esta-
vam na meia-sombra. Normalmente, seu zunido competia com os
passarinhos nas árvores e as moscas que davam guinadas a torto e
a direito. Mas agora tudo estava quieto.
De repente, Jimmy apareceu com três cadeiras de lona.
– Agora a gente precisa sentar um pouco – disse ele.
Ele encontrou um lugar a uma pequena distância das colmeias.
Rick e eu fomos atrás com passos arrastados. Rick não tinha dito
uma única palavra a tarde inteira, eu me peguei sentindo falta de
uma história. Toda vez que olhei para ele, ele se virou, talvez qui-
sesse esconder os olhos embaçados.
Jimmy tirou uma garrafa térmica e um pacote de bolachas. Será
que ele tinha trazido isso? Ou Emma lhe tinha dado? Não sabia. Ele
puxou o plástico das bolachas e deixou o pacote entre nós. E então,
serviu o café. Cada um pegou uma xícara. Nada de brinde dessa
vez.
A cadeira de lona soltou um rangido. Tentei ficar parado, não me
mexer, o som estava errado. Pertencia a um outro tempo. Jimmy to-
mou um gole do café, sorveu-o. Aquele som também estava errado.
Um som corriqueiro. A xícara em sua mão. Do nada fiquei com von-
tade de agarrar aquele pulso firme, jogar o café em sua cara para
que houvesse silêncio. Não, imagine pensar assim… Coitado do
Jimmy. A culpa não era dele.
Nós três podíamos falar sobre muitas coisas. Sobre apicultura.
Sobre agricultura, ferramentas, trabalho manual, carpintaria. E sobre
a cidadezinha, as fofocas, as pessoas. Gareth, a gente era capaz de
passar muito tempo falando dele. Sobre mulheres também, pelo me-
nos Rick e eu. Geralmente, a conversa fluía livre. A gente sempre ti-
nha assunto, e motivo para dar risada. Jimmy e eu tomávamos a ini-
ciativa, a conversa entre nós era que nem um pingue-pongue, en-
quanto Rick apresentava os monólogos mais demorados.
Mas hoje não tínhamos palavras. Toda vez que tentei dizer algo,
travei. E acho que os outros sentiam a mesma coisa. Pois Jimmy
não parava de pigarrear e Rick olhava de um para o outro, respiran-
do fundo a intervalos regulares. Mas nada saía.
Então tomamos café e comemos bolachas. E tentamos evitar de
nos mexer, para que os rangidos das cadeiras não nos lembrassem
de que o silêncio entre nós era grande demais. O café estava mor-
no, não tinha gosto de nada. A bolacha descia, aliviava um pouco,
só agora percebi que o vazio na barriga era fome.
Assim ficamos, enquanto a escuridão caía sobre nós, em torno
de nós. Chegando até os ossos.
Tao

Não achei placa alguma, o mapa não fazia sentido. E não encontrei
ninguém a quem perguntar. Mas a certeza de que estava num lugar
onde não deveria estar cresceu dentro de mim. Eu estava nas áreas
que a recepcionista tinha indicado, aquelas sobre as quais as autori-
dades não tinham mais controle. Aqui estavam apenas os que se re-
cusaram a sair. Os que foram abandonados. Os que se esconde-
ram.
Dobrei uma esquina. Diante de mim, havia mais uma rua deser-
ta. A escuridão parecia cada vez maior, as sombras ficavam cada
vez mais longas, o silêncio era grande demais. Um movimento cap-
tado pelo canto do olho chamou minha atenção. Eu me virei abrup-
tamente. Um portão escancarado dava para um pátio interno. Será
que havia alguém lá dentro?
Continuei em frente e passei pelo portão. Até agora não tinha
pensado em estar com medo, só em escapar daqui. Mas de repente
percebi como todos os músculos do meu corpo ficaram tensos. Será
que eu deveria dar meia-volta?
Dei mais alguns passos. Um pouco mais lentos agora. Nada
aconteceu. Talvez fosse algo da imaginação. Ou talvez um animal.
Um gato, uma ratazana. Algo que em vão tentou continuar sua vida
nesse lugar afastado e abandonado, onde não havia comida para
nenhum ser vivo. Mal havia pragas, apenas algumas plantinhas fra-
cas que brotavam com esforço nas rachaduras do asfalto.
Levantei a cabeça. No fim da rua, vislumbrei algo azul e branco.
Apertei o passo. Ficou mais nítido para mim, o símbolo branco com
o fundo azul. Estava piscando, o fornecimento de energia talvez não
fosse estável. Mas mesmo assim não havia dúvida: o metrô ficava
no fim da rua.
A essa altura eu estava trotando. Não era garantido que a esta-
ção estivesse em uso, mas provavelmente haveria um mapa ali. E
talvez eu pudesse seguir os trilhos de lá até as áreas habitadas.
Aqui na periferia o metrô ainda ficava a céu aberto, não dentro de
túneis como no centro da cidade.
Só que não corri rápido o suficiente. Pois algo saiu do pátio atrás
de mim. Deu tempo de ver um corpo comprido e desengonçado se
movimentar em minha direção. Um assobio penetrou o ar. De repen-
te, notei que mais duas pessoas surgiram atrás de mim, uma de ca-
da lado. De onde saíram? Onde estavam escondidas? Não tinha a
menor noção.
Talvez estivessem a uns vinte metros de distância, mas eram ve-
lozes. Correram em meu encalço e estavam se aproximando de-
pressa. Uma moça alta e magra e dois rapazes. Não crianças, não
adultos. Com a pele lisa e os olhos de idosos. Os três eram magros,
estavam prestes a sucumbir. Mas parecia que minha presença lhes
dera muito mais força do que o peso corporal indicaria.
Não esperei, sabia o que queriam. Seus olhares me diziam que
estavam dispostos a qualquer coisa para aliviar a fome. Era como
se carregassem todo o desespero dos velhos do hospital, mas tives-
sem a energia e o físico para agir em nome de sua aflição.
Mais uma vez, eu corri. Só que dessa vez era diferente. Quando
deixei os velhinhos, tinha fugido de meu próprio nojo, dessa vez cor-
ri para salvar a vida.
E eles estavam chegando mais perto. Não tive coragem de me
virar, mas os ouvia. Os passos contra o asfalto. Os seis pés que
atingiam o chão num ritmo irregular. O som ficou cada vez mais alto.
Diante de mim, a placa azul cresceu. Se desse tempo de eu che-
gar ali, se desse tempo de eu entrar na estação, se um trem che-
gasse…
No entanto, sabia que estava me iludindo. Nenhum trem chega-
ria, aqui não. Aqui havia só eu. E eles. Três jovens desesperada-
mente famintos, sem a esperança de uma vida. Mas, mesmo assim,
impulsionados pela força da autopreservação inerente ao ser huma-
no. Impulsionados pelo instinto. Eles também eram nosso mundo.
Agora estavam a apenas poucos metros de distância. Escutei
sua respiração. Logo estariam em cima de mim. Agarrando minhas
costas, me derrubando no chão.
Eu não tinha escolha.
Virei-me bruscamente, sem uma palavra, e ergui as mãos sobre
a cabeça num sinal de que estava me rendendo.
Os três pararam. Um ar de surpresa passou sobre seus sem-
blantes, substituindo por um instante a selvageria. Encarei a meni-
na. Por que ela? Talvez por ser mulher, como eu. Talvez fosse a
mais fácil de convencer. Tentei deixar o olhar transmitir todos os
meus pensamentos sobre compaixão. Fiquei olhando para ela, for-
çando seus olhos a permanecerem focados nos meus. Se tivesse
acontecido mais tarde, talvez ela não conseguisse me olhar nos
olhos. Mas duas piscadas rápidas me contaram que eu a tinha to-
mado de surpresa. Pois ela continuou parada, passou os olhos de
mim para os outros dois. Ficamos parados assim, os quatro. Ousei
mover o olhar agora. De um para o outro, deixando os olhos pousa-
rem por um tempo em cada um, querendo que me vissem, realmen-
te me enxergassem, tivessem tempo de refletir. Para que eu me
transformasse em algo além de costas em fuga, uma presa. Para
que me transformasse num ser humano.
– Vocês estão sozinhos aqui? – perguntei baixinho.
Ninguém respondeu.
Dei um passo para a frente.
– Precisam de ajuda?
Um pequeno som escapou da menina, um gemido, um “sim”. Ela
se apressou a olhar para um dos meninos, o mais alto. Talvez ele
fosse o líder.
Eu me arrisquei e me dirigi a ele.
– Posso ajudar vocês. Podemos sair daqui. Juntos.
Um sorriso enviesado passou sobre seus lábios.
– Você está com medo. – A voz era aguda, mais aguda do que
eu tinha imaginado.
Fiz que sim com um gesto lento da cabeça, continuando a enca-
rá-lo.
– Você tem razão. Estou com medo.
– E aí as pessoas dizem qualquer coisa – ele falou.
Eu me abstive de responder, preferindo fazer uma pergunta:
– O metrô está funcionando?
– O que você acha?
– Vocês já tentaram ir para algum outro bairro?
Ele riu. Uma risada cortante.
– A gente tentou quase tudo.
Dei mais um passo em sua direção.
– Onde eu moro tem comida. Posso comprar para vocês.
– Que tipo de comida?
– Que tipo? – A pergunta me fez hesitar. – Coisas comuns. Ar-
roz.
– Coisas comuns – ele imitou. – Você quer que a gente deixe
nossa casa por uma porção de arroz?
Olhei para a rua atrás dele. Deserta. Empoeirada. Nada que indi-
casse uma casa habitada.
Ele fez um gesto para o outro menino e a menina. Eles se apro-
ximaram de mim. Será que estavam se preparando para me atacar?
– Não. Esperem. – Coloquei a mão na bolsa. – Tenho dinheiro!
Mexi lá dentro. Os dedos encostaram num papel estaladiço.
– E comida. Bolacha.
Tirei um pacote e o estendi para eles.
A menina chegou a meu lado no mesmo instante, apanhou o pa-
cote de minha mão e estava prestes a arrancar o papel.
– Ei! – O rapaz alto avançou para ela num pulo. A menina fechou
o punho, ouvi como as bolachas foram esmagadas e transformadas
em migalhas dentro da embalagem.
Depressa, eu me afastei alguns metros.
Ela fez menção de sair correndo, mas o rapaz já estava em cima
dela. A força, ele abriu seus dedos e tirou o pacote de bolacha. Ela
não disse nada, mas os olhos se encheram de lágrimas.
O rapaz ficou parado com o pacote nas mãos. A logomarca era
simples, em preto e branco. A estampa estava um pouco manchada,
talvez por causa do suor das mãos da menina.
– A gente precisa dividir – disse o rapaz, e olhou para a menina.
– A gente precisa dividir.
Os três estavam ocupados uns com os outros agora.
Será que eu deveria tentar correr? Não. Eu precisava lhes dar tu-
do que eu tinha, ser generosa. Não fugir. Senão eles voltariam para
cima de mim. Eu não tinha escolha.
Enfiei a mão na bolsa de novo. Engoli em seco, hesitei, mas ti-
nha que fazer aquilo.
– Olhem aqui. Dinheiro.
Não tive coragem de me aproximar mais deles e deixei algumas
notas surradas no chão, as últimas. Na lata que deixei no quarto do
hotel só sobravam umas moedinhas.
O rapaz fixou os olhos nelas.
Recuei um passo. Senti um nó na garganta.
– Agora já lhes dei tudo que tenho.
Ele continuou olhando para o dinheiro.
– E agora estou indo embora.
Dei mais um passo. Aí dei meia-volta.
Calmamente, fui me afastando em direção ao metrô.
Um passo.
Dois. Três.
As pernas queriam correr, mas eu as forcei a andar devagar.
Continuar a ser uma pessoa para eles, não me tornar uma presa,
não reiniciar a caçada. Manter a cabeça erguida, não me virar.
Ouvi que eles se moveram um pouco atrás de mim. O raspar do
tecido de uma jaqueta, um leve pigarro. Cada som minúsculo se
destacou no silêncio. Mas nenhum passo soou no asfalto.
Sete. Oito. Nove.
Ainda estava quieto.
Onze. Doze. Treze.
Eu me atrevi a apertar o passo. Cheguei mais perto da estação,
que estava trancada com uma corrente e um cadeado. Só então eu
me virei.
Eles ainda estavam ali, no mesmo lugar, me seguindo com os
olhos. Todos os três igualmente inexpressivos. Nenhum sinal de mo-
vimento.
Segui em frente, de olho neles o tempo todo.
Logo dobrei uma esquina. Não consegui mais ouvi-los. Diante de
mim, havia outra rua deserta. À minha direita estavam os trilhos do
metrô; à esquerda, uma fileira morta de casas. Aqui não havia vival-
ma.
Então corri.
William

Dez dias mais tarde chegou a encomenda postal. Os escritos de


Dzierzon. Subi com o embrulho e fechei a porta do quarto, que ago-
ra era exclusivamente meu. Thilda não dormia mais lá, embora eu já
tivesse me recuperado. Talvez desejasse que a convidasse de volta
para o leito conjugal, talvez não viesse antes de eu implorar, e isso
não aconteceria.
A cama abria-se diante de mim, grande, macia e segura. Como
seria simples apenas deitar, envolver-me nas cobertas, deixar tudo
ficar escuro e quente.
Não.
Preferi sentar perto da janela com o embrulho no colo. No fundo
do jardim vislumbrei Charlotte vestida de branco, debruçada sobre a
colmeia. Ela passava horas lá. Tinha levado uma mesa e uma cadei-
ra e estava sentada com papel e tinteiro. Sempre observando e fa-
zendo anotações num livrinho encadernado em couro, com entusi-
asmo e leveza nos movimentos. Ela era igual a mim, trabalhava as-
sim como eu tinha trabalhado anteriormente – muito tempo atrás,
como me parecia agora. Eu mesmo não tinha voltado à colmeia des-
de a conversa com Rahm. Abandonei-a. Preferia tê-la despedaçado,
pulado em cima dela, ver os pedaços de madeira voando para todos
os lados, quebrados e destruídos. Mas não tive coragem de fazê-lo,
as abelhas impediram-me, a ideia de que milhares de abelhas de-
sesperadas e desabrigadas pudessem partir para o ataque.
Desamarrei o barbante, quebrei os selos, desdobrei o papel e,
com um dicionário alemão a meu lado, comecei a ler. Até o último
momento, mantive a esperança de que as alegações de Rahm esti-
vessem erradas, que ele tivesse compreendido mal alguma coisa,
que Dzierzon de forma alguma tivesse criado uma colmeia tão avan-
çada. Mas, apesar de meu alemão ser sofrível e eu compreender
apenas uma fração dos textos, uma coisa ficou evidente: sua col-
meia era muito parecida com a minha. É certo que as portas esta-
vam posicionadas de modo um pouco diferente e a inclinação do te-
to era menor, mas os princípios eram idênticos e o método de utili-
zação, idem. Além do mais, ele tinha realizado estudos de observa-
ção extremamente aprofundados das abelhas em suas colmeias, e
grande parte da pesquisa tratava precisamente disso. A base con-
ceituai era mais que sólida e os resultados do estudo revelavam
uma paciência ilimitada. Tudo tinha sido meticulosamente documen-
tado, e a argumentação fora apresentada de forma exemplar, ou se-
ja, o trabalho de Dzierzon era de excelente qualidade.
Deixei os escritos de lado e voltei a atenção para a janela outra
vez. Lá fora, Charlotte tampou a colmeia, deu alguns passos e tirou
o chapéu. Sorriu para si mesma antes de se dirigir à casa.
Abri a porta. Ouvi seus passos lá embaixo. Fui até o patamar da
escada, de onde consegui observá-la. Ela entrou no hall. Sentou-se
à mesa de console, pegou o caderno e o colocou diante de si, aber-
to. Refletiu, o olhar pairou por um instante no ar, antes de inclinar a
cabeça e escrever. Desci a escada, ela ergueu os olhos e sorriu ao
me ver.
– Pai. Que bom que você veio – disse. – Olhe aqui, você precisa
ver isso.
Ela quis mostrar-me o caderno e estendeu-o para mim.
Mas não olhei para ele, simplesmente fui até o mancebo, peguei
meu chapéu e o casaco, vesti-os com pressa.
– Pai?
Ela olhou radiante para mim, eu desviei o olhar.
– Agora não – falei.
O entusiasmo apaixonado em seus olhos, não suportei permane-
cer no mesmo lugar que ela. Andei rapidamente para a porta.
– Mas não demora nada. Você precisa ver o que pensei.
– Depois.
Ela nada disse, mas manteve aquele olhar, decidido e insistente,
como se não aceitasse a rejeição.
Eu nem tinha forças para ficar curioso. Ela não descobrira ou
pensara algo que já não fora descoberto ou pensado, e não aguen-
tei ter de explicar isso a ela, desapontá-la, contar-lhe que todo o
tempo que gastou perto da colmeia somente resultara em obvieda-
des, que todas as suas ideias já tinham sido engendradas milhares
de vezes antes. Abri a porta lentamente, senti como a indolência se
apossara do meu corpo mais uma vez. Um suspiro soltou-se do dia-
fragma, preparei-me para os muitos que viriam de agora em diante.
Na mão, eu apertava a chave da loja, da minha loja de sementes,
simples e rural. Era meu lugar. A swammerpada deixou uma cama-
da de gordura no céu da boca, mas mesmo assim não resisti à ten-
tação de comer mais um pedaço. Já havia devorado duas no decor-
rer da manhã. O cheiro delas emanava da padaria, impondo sua
presença inoportuna também aqui dentro de minha loja. Ele penetra-
va por todas as frestas, até quando a porta estava fechada, lem-
brando constantemente como era fácil comprar mais uma, ou várias.
O padeiro até me dava um desconto, achava que eu estava magro
demais. Mas isso não duraria muito tempo: o corpo já tinha começa-
do a inchar, como se estivesse reencontrando sua antiga forma des-
leixada.
Nenhum vento soprava mais pelas ruas arrastando clientes para
a loja. A atração da novidade definitivamente havia diminuído, e me-
tade do dia já se passara sem que ninguém tivesse entrado. As
grandes encomendas de sementes já haviam sido feitas há tempo,
agora era a época das especiarias. Sementes, só para plantas de
cultivo rápido, como a alface e o rabanete.
Comi mais alguns pedaços da empada, embora estivesse salga-
da demais. Bebi água morna de uma concha para compensar, mas
ajudou pouco.
Então fui até a porta. A carruagem da tarde, que vinha da capital,
passou pela frente da loja e parou no fim da rua. As pessoas saíram
em grande número, mas ninguém veio em minha direção.
Cumprimentei o seleiro, que estava engraxando uma sela ao sol,
sorri educadamente para o carpinteiro, que acabava de sair da ofici-
na com uma roda nova, saudei brevemente minha ex-criada Alberta,
que levava dois grandes rolos de tecido para dentro da mercearia.
Todos formigas trabalhadeiras, muito ocupados. Pelo visto, até Al-
berta conseguira se tornar um pouco útil. Com os quadris rebolantes
e passos ligeiros, ela fez saudações a torto e a direito enquanto su-
bia a escada saltitando.
– Senhor Savage. – Ela sorriu em minha direção.
Então titubeou por um instante, evidentemente se lembrando de
algo.
– Tenho uma coisa que o senhor precisa experimentar! Aguarde
um instante.
Ela desapareceu depressa dentro da loja com os rolos de tecido.
Logo depois, saiu com uma trouxinha em uma das mãos.
Posicionou-se diante de mim. Senti seu odor, que me deixou en-
joado.
– Do que se trata? Estou muito atarefado.
– Fiquei sabendo que o senhor começou a criar abelhas – disse
ela, e sorriu com os dentes tortos atrás de lábios um tanto úmidos.
De repente, lembrei-me dos monstros marinhos de Swammer-
dam, mas afastei o pensamento.
– Meu pai também cria abelhas. Ele tem cinco colmeias. Olhe
aqui. – Ela mostrou a trouxa. – O senhor pode experimentar. É o
melhor.
Sem esperar por um convite, ela entrou na loja. Colocou a trouxa
sobre o balcão e desamarrou o nó. Continha um pão e um pequeno
pote de mel. Ela o segurou, olhou para ele e estalou os lábios ruido-
samente.
– Venha cá. – Fez um gesto para que eu me aproximasse.
Sua pele era áspera, oleosa, duas espinhas estavam brotando
no queixo. Quantos anos ela teria agora? Com certeza bem mais de
vinte. As mãos e o rosto mostravam que já passara horas demais
trabalhando ao sol.
Ela me deu um pedaço de pão e nele despejou um pouco de
mel. Não era límpido, mas de uma coloração turva, e formou cara-
cóis sobre a fatia, espalhando-se e penetrando nela.
– Vamos! Experimente!
Ela mesma pegou um pedaço grande.
O cheiro do mel, dela e da swammerpada comida pela metade
embrulhou meu estômago. Mesmo assim, impulsionado por educa-
ção, por cortesia estúpida, comi um pedaço.
Enquanto aquilo tomava conta da boca, fiz um gesto com a ca-
beça.
– Muito bom.
Mastiguei procurando não pensar nas crias e larvas que se en-
contravam no mel, já que ele fora espremido da colmeia de palha.
Ela ficou de olho em mim o tempo todo enquanto comia. Por fim,
lambeu o mel dos dedos, exageradamente, com uma autoconfiança
que beirava o ridículo.
– Delicioso. Bem, agora está na hora de voltar ao trabalho.
Ela então se retirou, ou melhor, seus quadris passaram ondulan-
do pela porta. Não consegui senão olhar para eles e fiquei parado
assim, no meio da loja.
Finalmente ela se fora. Dei dois passos em torno de mim mes-
mo, a respiração estava acelerada. Na bancada sobrava uma gota
de mel. Limpei-a depressa, suprimindo-a à força, e, com ela, os lá-
bios úmidos de Alberta, as espinhas, o movimento quase obsceno
de seu busto a cada passinho que dava, os quadris contra os quais
eu poderia me impulsionar, como se ela fosse terra. Porém, me con-
tive. Assumi o controle. Mesmo que isso exigisse todas as minhas
forças.
A única cadeira da loja chamou-me. Aos tropeços, fui até ela e
instalei meu traseiro avolumado no assento. Cruzei as mãos sobre o
abdome, como para me manter no lugar.
Permaneci sentado assim, tomando fôlego. Vários minutos se
passaram, meu ardor esfriou, o enjoo diminuiu. Sim, eu era capaz
de me conter.
Estava quente, um feixe de sol revelou as partículas de poeira
dançando no ar bem na minha frente. Movimentavam-se calmamen-
te, pairavam no ar livres da ação da gravidade. Franzi os lábios e
dei um sopro, as partículas foram impelidas para longe, mas torna-
ram a se estabilizar com rapidez surpreendente.
Soprei de novo, mais forte desta vez. Agora também fugiram de-
pressa antes de reencontrar sua antiga existência disforme, tão le-
ves que nada pudesse prendê-las.
Tentei focar em uma partícula por vez. Mas os olhos arderam.
Havia um número grande demais.
Então transferi a atenção para o todo. Mas não havia um todo,
apenas quantidades infinitas de partículas de poeira incontroláveis.
Não adiantou. Nem isso. Elas me venceram. Nem isso eu era ca-
paz de controlar.
E, assim, fiquei sentado, completamente vencido. Mais uma vez,
uma criança impotente. Eu tinha dez anos de idade. Raios de sol
brilhavam por entre a folhagem da floresta, conferindo uma luminosi-
dade dourada a tudo, tudo era amarelo. Eu estava sentado no chão.
A terra emanava calor e umidade pela calça. Imóvel, intensamente
concentrado, eu estava ali, diante do formigueiro: um grande caos à
primeira vista. Cada criatura tão pequena e insignificante, era incon-
cebível que pudessem ter construído um formigueiro que quase se
elevava acima de mim. Mas com o tempo fui compreendendo, e ca-
da vez mais. Pois nunca me cansei, era capaz de ficar observando
as formigas por horas a fio. Movimentavam-se de acordo com es-
quemas claros. Carregando, deixando, buscando materiais. Era um
trabalho meticuloso e tranquilo, sistemático, instintivo, hereditário. E
um trabalho que não dizia respeito a cada indivíduo, mas à comuni-
dade. Sozinhas elas não eram nada, mas juntas formavam o formi-
gueiro, como se ele fosse um único ser vivo.
A compreensão desse cenário despertou algo em mim, um calor
diferente, um fervor. Todo dia eu tentava convencer meu pai a ir co-
migo até lá, até a floresta amarela. Queria tanto mostrar-lhe o que
elas tinham realizado, o que essas pequenas criaturas eram capa-
zes de fazer juntas… Mas ele só dava risada. Um formigueiro? Dei-
xe-o em paz. Faça algo útil, faça um esforço, vamos ver do que vo-
cê efeito.
Tinha sido assim nesse dia também. Ele zombara do meu pedi-
do, e mais uma vez eu estava ali sozinho.
De repente vi algo, uma ruptura no sistema. Um besouro tinha-se
aproximado do lado leste do formigueiro, onde o sol brilhava. Suas
proporções eram ciclópicas em comparação com as das formigas. O
sol atravessou as árvores e um raio atingiu as costas do besouro.
Ele estava completamente imóvel agora. Um espaço abriu-se ao
seu redor. Ninguém passou por ele, as formigas deixaram-no em
paz, continuando com seu trabalho determinado. Nada mais aconte-
ceu.
Mas então notei uma formiga que estava indo em direção ao be-
souro. Ela saíra dos padrões costumeiros, não fazia mais parte do
todo.
E estava levando algo.
Franzi o cenho. O que era? O que ela estava levando?
Larvas. Larvas de formigas.
A essa altura, outras chegaram, mais formigas quebraram os pa-
drões, e todas traziam a mesma coisa. Todas carregavam seus pró-
prios filhos.
Aproximei-me mais para enxergar. As formigas soltavam as lar-
vas na frente do besouro. Depois de ficar parado por um instante,
ele esfregou as patas dianteiras. Então começou a comer.
As mandíbulas do besouro trabalhavam vigorosamente. Cheguei
bem pertinho. As larvas desapareciam goela abaixo, uma depois da
outra. As formigas formavam uma fila comprida, todas elas prontas
para servir ao besouro sua própria prole. Desejei parar de assistir,
mas não consegui.
Uma nova larva foi engolida. E as formigas aguardavam, elas ti-
nham rompido com os padrões habituais, liberando-se do todo para
cometer essa atrocidade.
Aquilo me atingiu, bateu dentro de mim. Minhas faces começa-
ram a arder, o rubor espalhou-se, o sangue tomou cada parte do
meu corpo. Não queria assistir, fiquei nauseado, mas não consegui
me conter. Para minha surpresa, senti uma pulsação sob a bragui-
lha. Uma sensação que eu antes só tinha notado muito de leve, mas
que agora, de repente, me absorveu por completo. Apertei minhas
coxas, pressionando aquilo que tinha endurecido. Mais uma larva foi
triturada na boca do besouro. Os olhos muito separados brilhavam,
as antenas mexiam-se. Deitei-me de bruços, estirado no chão, ba-
tendo o corpo contra a terra. Pensei que a calça ficaria suja e estra-
gada, mas não consegui parar. Ao mesmo tempo, a náusea invadiu-
me porque as larvas estavam sendo mortas, elas desapareciam em
direção às entranhas do besouro. Era diferente de qualquer coisa
que eu já tinha visto. E aquilo me inundou.
Enquanto eu estava deitado assim, golpeando a terra com meu
corpo, ouvi passos atrás de mim, os passos de meu pai. Ele tinha
vindo, apesar de tudo. Parou e observou a cena, mas não viu nada
do que eu gostaria de lhe mostrar. Ele só viu a mim, a criança que
eu era, e minha vergonha infinitamente grande.
Aquele momento… Eu no chão. O espanto inicial de meu pai, se-
guido de sua risada, curta e fria, sem alegria, mas cheia de nojo, de
desdém.
Olhe para você. Você é deplorável. Vergonhoso. Primitivo.
Aquilo foi o pior de tudo, até pior do que as cintadas que levei no
final do dia e a tremenda dor nas costas durante a noite toda. Eu só
quis lhe mostrar, explicar e compartilhar meu entusiasmo, mas tudo
o que ele viu foi a vergonha.
Ge orge

Fui até o centro de Autumn. Se é que se pode chamar aquilo de


centro. Na verdade, Autumn não passava de um único cruzamento.
Uma estrada indo para o norte encontrava outra indo para o sul, e
ali havia uma pequena aglomeração de casas. Eu estava com pou-
ca gasolina, mas não completei o tanque. Nunca enchia mais que
meio tanque, era um novo truque que eu tinha inventado. E aquele
meio tanque, aquele eu espremia até a última gota. Como se cus-
tasse menos dinheiro encher até a metade um tanque vazio do que
completar um tanque meio cheio.
Os desaparecimentos tinham recebido um nome agora. Desor-
dem do Colapso das Colônias.[1] Estava na boca de todo mundo.
Testei as palavras. Elas giravam na minha cabeça. Havia um ritmo
nelas, e letras repetidas. Os cês e os ós e os enes e os esses. Um
pequeno trava língua, Desordem do Colapso das Colônias, Colônia
do Colapso da Desordem, Colapso da Desordem da Colônia, e um
quê de medicina em tudo isso, como se pertencesse a uma sala de
jalecos brancos e aparelhos de monitoramento, não ao meu campo,
lá fora, com as abelhas. De qualquer forma, eu nunca usava aque-
las palavras. Não eram minhas. Preferia falar dos Desaparecimen-
tos, ou dos Problemas, ou, se me sentisse revoltado, o que frequen-
temente era o caso, da Encrenca desgraçada.
Na frente do banco, tinha uma vaga apertada entre uma picape
verde e uma perua preta. Olhei em volta, nenhuma outra vaga no
resto da rua. Manobrei o carro bem rente à picape verde e tentei en-
trar de ré. Nunca gostei de fazer baliza, não sou muito homem nes-
se sentido, evito sempre que possível. Acho que Emma não sabe
como sou péssimo nisso. Mas eu precisava ir ao banco. Hoje. Já ti-
nha esperado demais. Perdia dinheiro a cada dia que passava, a ca-
da dia sem colmeias lá fora no sol, entre as flores.
Girei o volante com força para o lado. Dei ré até o carro passar a
metade da picape. Aí endireitei a direção e continuei de ré.
Mais torto, impossível. Quase subindo na calçada.
Tirei o carro de novo.
Uma mulher passou. Ficou olhando para mim. De repente me
senti como um adolescente, um novato ao volante.
Tentei mais uma vez, respirei fundo. Fui com calma, virei a dire-
ção até o fim, andei devagar de ré, até a metade, e endireitei o car-
ro.
Merda!
A vaga era pequena demais, esse era o problema. Saí, guiei o
carro para o meio da rua e fui em direção ao estacionamento comu-
nitário, um pouco mais adiante. Coisa de preguiçoso querer estacio-
nar logo na frente do banco. O povo era preguiçoso demais neste
país. Eu era bem capaz de caminhar.
No retrovisor, vi um Chevrolet enorme chegar. Ele entrou na va-
ga superapertada num só movimento fluido.
•••
O ar condicionado foi como uma parede que precisei romper assim
que abri a porta do banco. Enfiei as mãos nos bolsos da calça, pois
ainda tremiam um pouco depois da crise da baliza.
Allison estava em sua mesa, digitando no teclado do computa-
dor, como de costume. Tinha o bom senso de se vestir como uma
mulher, blusa com estampa floral, recém-passada, contrastando
com a pele sardenta, jovem, e os olhos totalmente verdes. Parecia
limpinha, tinha um cheiro limpinho também. Ela ergueu o olhar e deu
um sorriso que parecia propaganda de creme dental.
– George. Olá, como vai?
Allison sempre me fazia sentir um pouco especial. Como se eu
fosse seu cliente favorito. Em outras palavras, ela sabia fazer seu
trabalho muito bem.
Eu me acomodei na cadeira em frente à sua mesa. Sentei sobre
as mãos, quis esconder o tremor, mas o tecido de lã turquesa fez as
palmas coçarem. Tornei a tirar as mãos, coloquei-as no colo, e ali
elas ficaram quietas.
– Faz tempo. – Os dentes dela cintilaram para mim.
– Pois é. Faz um bom tempo.
– Tudo bem com vocês?
– Não tão bem como deveria ser.
– É mesmo. Sinto muito. Já ouvi falar.
A brancura dos dentes de repente desapareceu atrás dos lábios
macios, jovens.
– Aliás, espero que você possa nos ajudar a sair do pior aperto –
falei sorrindo.
Nenhum sinal mais daqueles dentes lindos, infelizmente. Ela só
olhou para mim com seriedade.
– Naturalmente, vou fazer o melhor que posso.
– O melhor que pode. Não tenho como pedir mais que isso. –
Dei risada. Logo percebi que estava soando falso e enfiei as mãos
debaixo das coxas de novo.
– Então – ela se virou para a tela. – Vamos ver. Aqui está.
Ficou calada. Conferiu a conta. O que viu não a fez pular de en-
tusiasmo.
– O que você tinha em mente? – perguntou.
– Bem. Teria que ser um pequeno empréstimo, né?
– Então. Quanto?
Falei o valor.
As sardas saltaram em seu nariz. A resposta veio sem uma gota
de consideração.
– Não posso, George.
– Nossa. Você não pode pelo menos fazer os cálculos?
– Não. Posso dizer desde já que não tenho como fazer isso.
– Tudo bem. Você pode conversar com Martin, então?
Martin era seu chefe. Tinha aversão a conflitos, não era o tipo de
entrar numa briga de bar, digamos. Passava a maior parte do tempo
dentro de sua saleta. Saía raras vezes, só quando era para avaliar e
assinar grandes valores. Isso eu soube pelo Jimmy, que tinha aca-
bado de fazer um empréstimo imobiliário. Martin ficava com menos
cabelo a cada vez que o via. Lancei um olhar para ele, estava senta-
do atrás de sua parede de vidro. A careca brilhava sob a luz da lâm-
pada de teto.
– Não vale a pena. Confie em mim – disse ela.
Um nó insistiu em subir na minha garganta. Será que eu teria de
ficar aqui implorando? Era isso que ela queria? Quase vinte anos
mais nova do que eu, era isso que ela era. Emma costumava tomar
conta dela tempos atrás. Frágil como uma fadinha, quem imaginaria
que se tornaria uma sargentona?
– Pelo amor de Deus, Allison.
– Mas George, você realmente precisa de tanto?
Não consegui encontrar os olhos verdes sobre a mesa.
– O apiário está totalmente parado – disse eu em voz baixa para
o chão.
– Mas… – Ela ficou um pouco calada, pensando. – Que tal estu-
dar como colocá-lo para funcionar sem a necessidade de fazer in-
vestimentos tão vultosos?
Eu tinha vontade de berrar, mas não respondi. Ela não sabia por-
ra nenhuma sobre apicultura.
– Onde você acha que está a maior parte de suas despesas?
– Mão de obra, claro. Pago dois homens, você sabe disso, né?
– Sei, sim.
– E aí são os custos de operação. Alimento. Gasolina, esse tipo
de coisa.
– Mas e agora? Os investimentos que você precisa fazer?
– Novas colmeias. Tivemos que queimar um monte.
Ela estava mordendo uma caneta esferográfica.
– Tudo bem. E quanto custa uma colmeia?
– Os materiais. Difícil de dizer. Elas têm que ser construídas.
– Construídas?
– Sim. Eu faço a construção delas do zero. Cada uma. Com a
exceção da tela excluidora.
– A tela excluidora?
– Isso. É o que você tem entre… Esquece.
Ela tirou a caneta da boca. Os dentes tinham deixado marcas na
parte de cima. Se mordesse com mais força, quebraria o plástico,
seus dentes brancos ficariam sujos de tinta. Seria um espetáculo e
tanto. Tinta azul nos dentes brancos, na blusa recém-passada, nos
lábios macios, como uma maquiagem desajeitada de Halloween.
– No entanto… – Ela refletiu. – Já vi Gareth, Gareth Green, rece-
ber entregas de colmeias. Quero dizer, vi colmeias chegando, num
caminhão. Prontinhas.
– É porque Gareth encomenda as colmeias – disse eu com dic-
ção clara, como se falasse com uma criança.
– Fica mais caro do que construí-las?
Ela deixou a caneta sobre a mesa. Pelo visto, não me daria a
alegria de sujar sua aparência limpinha.
O nó estava subindo. Quase atingindo o ponto em que não seria
mais possível escondê-lo.
– Só quero dizer – continuou ela, mais uma vez revelando os
dentes brancos, como se isso fosse bem divertido – que talvez você
possa economizar algum dinheiro encomendando as colmeias. E
tempo. Tempo também é dinheiro. Não fazer mais a construção ca-
seira.
– Entendi – falei baixinho. – Entendi o que você quis dizer.

[1] CCD ou Colony Collapse Disorder no original.


William

Quando enfim aguentei movimentar-me outra vez, já estava comple-


tamente escuro. Lá fora, tudo continuava calmo, com a exceção do
boteco barulhento, que ficava um pouco mais adiante na mesma
rua. Um lugar sem graça, apinhado de gente e abafado, onde os be-
berrões do vilarejo se encontravam noite após noite e bebiam até
cair. Avistei vultos na janela. Alguns indivíduos passaram correndo,
saindo de lá. Houve gritaria, cantoria e risadas grosseiras, que fo-
ram ficando mais fracas conforme eles se afastavam.
A loja já estava mais fria e eu me sentia gelado. O sereno entra-
va pela porta, que eu não tinha chegado a fechar antes de cair no
sono. O pescoço estava duro, havia tombado sobre o peito, e a ba-
ba umedecia a frente da camisa.
Com o corpo todo doído, levantei-me, corri até a porta e fechei-a
depressa.
Imagine se alguém tivesse me flagrado, se os clientes tivessem
espiado aqui dentro e me visto dormindo na loja, em pleno horário
de expediente. Esse tipo de coisa poderia gerar ainda mais histó-
rias, mais uma vez eu poderia ganhar a fama de tolo do vilarejo.
Mas talvez, com sorte, a tarde tenha sido desgraçadamente – ou
abençoadamente – tão sem movimento quanto a manhã.
O estômago gritava por comida e, embrulhado num papel, esta-
va o último pedaço da empada. Seca e fria, a gordura se solidificara,
criando uma borda vermiforme em torno dela. Todavia, comi-a, en-
quanto jurava para mim mesmo que nunca mais me deixaria ser le-
vado a ingerir tal iguaria. Talvez nem sequer empadas em geral.
Também, que diferença isso faria?
Fechei e tranquei a porta e fui rumando para casa.
O volume das vozes do boteco aumentou.
No escuro, as janelas formavam quadrados num tom amarelo
quente. Agora, pela primeira vez na vida, senti-me atraído por elas.
Apenas um cálice de vinho barato. Não devia fazer mal. Parei, fiquei
ali. O fato de eu ser visto ali dentro, de eu me tornar um deles, mu-
daria alguma coisa?
Tudo estava como de costume do lado de fora do boteco. As
mesmas cenas desenrolavam-se nessa noite como em qualquer ou-
tra. Dois peões discutiam ruidosamente, um deu uma cutucada no
outro, começou um empurra-empurra, logo partiriam para as panca-
das. Um zé-ninguém baixote gorgolejava sozinho enquanto atraves-
sava a rua trançando as pernas. Ao mesmo tempo, um brutamontes
saiu cambaleando pela porta, passou a esquina de raspão e vomi-
tou duas vezes onde ninguém poderia vê-lo, mas eram inconfundí-
veis os sons do jantar do dia e do álcool consumido em excesso no
seu caminho de volta para o ar livre.
Não. Rumei para casa. Afinal de contas, tanto assim eu não
afundara.
Ao deixar o boteco para trás, notei que havia ainda mais gente
na rua nessa noite clara de verão.
Os gritinhos vulgares de uma jovem.
– Pare com isso! Não!
Era um não que dizia sim. Seguido de risadinhas intensas.
Reconheci a voz. Era Alberta. Nem precisei vê-la para saber co-
mo os grandes seios com certeza estavam prestes a pular para fora
do vestido. De onde eu estava, poderia literalmente sentir o cheiro
penetrante da fenda entre eles.
Alguém se esfregou contra ela e enfiou as mãos em todas as su-
as curvas, balbuciando incoerências de bêbado. Enlevado pelo pró-
prio desejo, pela própria embriaguez, pela própria luxúria, ele lançou
seu corpo contra essa fruta caída, essa fruta que estava a ponto de
apodrecer, que logo se incharia até ficar irreconhecível, que se estu-
faria por nove meses inteiros. Um jovem. A julgar pela figura magri-
cela, talvez não tivesse mais que uns quinze ou dezesseis anos, a
voz ainda rouca e crua, recém-transformada. Era muito mais novo
do que ela, deveria estar em casa, na cama, dormindo, ou talvez
lendo, estudando, planejando o futuro, para deixar alguém orgulho-
so, ganhar renome. Uma porta abriu-se e deixou a luz sair, revelan-
do com quem Alberta dividia o coito vertical, quem era a jovem figu-
ra que tão precocemente iniciara seu próprio processo de apodreci-
mento, consumido por algo que ele acreditava ser paixão, e que
neste exato momento estava prestes a colocar toda a sua existência
em jogo. E que não me viu a mim, não viu o pai, o pai que pensara
que a vida havia atingido seu ponto mais baixo há tempo, mas a
quem, nesse instante, o chão faltou de vez.
Edmund.
Tao

Continuei seguindo o trilho do metrô, passei diversas estações, mas


não vi uma só pessoa, nenhum sinal de vida de qualquer tipo. Quilô-
metro após quilômetro, sempre correndo, com os pulmões doendo e
o gosto de sangue na boca. Cada estação que eu avistava desper-
tava uma esperança. Mas cada tentativa de abrir uma porta, de che-
gar à plataforma, era o mesmo balde de água fria. Pois não estavam
operando. Eu continuava em terra de ninguém.
Eu não sabia que minhas pernas podiam me levar por tantos qui-
lômetros, que eu era capaz de me forçar a esse ponto. Mas agora
não sobrava mais nada.
Exausta, me agachei rente à parede de uma casa. O peito ardia
por falta de oxigênio. A escuridão apertou o cerco em torno de mim,
em torno da cidade, em torno daquilo que uma vez tinha sido uma
cidade. Logo na minha frente havia um prédio condenado, vandali-
zado até ficar irreconhecível, talvez a última coisa que tivessem feito
aqueles que foram embora daqui. Como se quisessem que nada so-
brasse. Mas por todo lado havia vestígios de pessoas. Velhos carta-
zes de propaganda, uma bicicleta estragada, cortinas puídas osten-
tando as marcas da intempérie atrás de um vidro quebrado, placas
com nomes nas portas de entrada, algumas divertidas, manuscritas,
outras formais e bem produzidas. Onde será que estavam agora to-
dos aqueles que viveram suas vidas aqui?
Eu não tinha notado antes, mas o lixo fora removido. As lixeiras
estavam vazias, alinhadas numa fileira ordenada ao longo da calça-
da, ladeando a rua inteira. Talvez essa realmente tenha sido a última
coisa que aconteceu aqui. Um caminhão de lixo tenha passado ri-
bombando pelas ruas desertas e feito a limpeza, para impedir a in-
festação de ratos. Ou talvez para recolher os últimos restos de ali-
mento, os resíduos orgânicos que pudessem ser resgatados, rea-
proveitados e servidos mais uma vez. De preferência como ração
animal, ou também para nós, como comida humana, disfarçada, ca-
muflada, misturada em picadinhos e salsichas na forma de enlata-
dos, com a adição dos inúmeros componentes artificiais de sabores
e substâncias químicas que tornavam nossos alimentos comestí-
veis.
Minha boca se encheu de saliva. Eu tinha guardado o pacote de
bolacha para a volta. Agora eu não tinha nada.
Tentei me pôr em pé, mas as pernas falharam. Os músculos
queimavam. Fiz mais uma tentativa, me segurando na parede, e
dessa vez consegui.
Passo a passo fui até o portão mais próximo e o empurrei com
cuidado. O movimento fez o metal ranger.
Ali dentro havia um pátio vazio. Folhas tinham sido levadas pelo
vento, formando montículos nos cantos. Dos dois lados havia uma
porta.
Experimentei uma.
Ela levava a uma entrada, uma escadaria estreita. O dia se esva-
ía lá fora, e a luz minguante do crepúsculo atravessava algumas pe-
quenas aberturas na parede e incidia sobre os degraus.
Subi mancando. Cada passo doía, mas a respiração não estava
mais ofegante. Cheguei ao primeiro andar. Uma porta de cada lado.
Tentei a mais próxima. Estava trancada. Então atravessei o patamar
em direção à outra porta e parei. Apertei a maçaneta. Era mais uma
tentativa. Minha mão, porém, esperava encontrar a mesma resistên-
cia, por isso me assustei quando a porta se abriu.
Fiquei parada. O cheiro do apartamento me atingiu. Não havia
nada de especial nele, mas todas as casas têm seu próprio cheiro.
O cheiro das pessoas que moram ali. A comida que comeram, a
roupa que lavaram, os sapatos que usaram, o suor que transpira-
ram, o hálito que expiraram nas horas finais da noite – o cheiro acre
das bocas de pessoas dormindo –, a roupa de cama que talvez pre-
cisasse ser trocada, uma frigideira que era para ter sido limpa, mas
acabou ficando para o dia seguinte, de modo que os restos de comi-
da iniciaram o primeiro estágio da decomposição.
Mas agora só restava a sombra de todos esses cheiros, quase
encoberta pelo abafamento maciço.
Passei pela soleira. O apartamento era pequeno, apenas dois
cômodos. Assim como o apartamento meu e de Kuan. Talvez esse
também tivesse abrigado uma família de três. Um quarto que dava
para os fundos, uma sala com cozinha conjugada que dava para a
rua.
Tranquei a porta e examinei a sala. Estava praticamente vazia,
abandonada, era evidente que só os móveis maiores tinham ficado.
Um desgastado sofá de canto, um tanto grande e com estofado cin-
za, fazia volume, ocupando quase metade do espaço. Uma antiga
cômoda torta de laca preta estava na parede oposta.
Revistei rapidamente os armários da cozinha, não consegui re-
sistir, mesmo sabendo que estariam vazios. Uma panela grande e
surrada estava acomodada no fundo de um dos armários. Além dis-
so, nada.
A cômoda também estava vazia, à exceção de alguns fios velhos
e um telefone rachado na última gaveta.
Depois fui para o quarto. Os guarda-roupas estavam vazios, com
as portas escancaradas, como se alguém não tivesse tido tempo de
fechá-las. Nas paredes, havia alguns pregos e a sombra de quadros
que uma vez estiveram pendurados ali.
Uma estreita cama de casal estava posicionada ao longo de uma
das paredes do quarto. Sem colchão, cobertores ou travesseiros.
Ali, os dois tinham dormido, lido, brigado, dado risada, feito amor.
Onde será que estavam agora? Ainda juntos?
Ao longo da parede oposta havia uma cama de criança. Poderia
ter pertencido a uma criança em idade pré-escolar, era mais compri-
da que um berço e mais curta que uma cama de adulto. Poderia ter
sido de Wei-Wen. Um pequeno travesseiro ainda estava lá. Amassa-
do no meio, onde a cabeça tinha repousado.
De repente, senti as pernas falharem. Sentei-me na pequena ca-
ma e ali fiquei alguns segundos. Não havia outra pessoa por perto,
só eu. Tudo estava abandonado. Vazio. E eu estava tão abandona-
da quanto esse apartamento.
Não.
Uma sensação de vazio no peito. Seria saudade? Eu mal tinha
pensado em Kuan, tinha evitado isso, mantendo-o à distância. Toda
vez que seu rosto surgia em minha mente, eu o afastava à força.
Obrigava-me a pensar apenas em Wei-Wen, em encontrar meu fi-
lho.
Eu me levantei, voltei para a sala, tirei o telefone da cômoda e
olhei em volta rapidamente. Ali, ao lado do sofá, havia uma tomada.
Não era possível que houvesse sinal, não aqui, tão longe de tudo.
Apressei-me a colocar o contato na tomada. Então peguei o fo-
ne.
Ouvi o som de um sinal fraco.
Depressa digitei o número de casa no aparelho rachado.
Primeiro, apenas chiados, sinais mudos enviados por dezenas
de quilômetros através de cabos velhos, quase desintegrados.
E aí tocou.
Uma vez.
Logo uma voz preencheria o vazio em meu peito. A voz de Kuan.
Não tinha feito nenhum plano sobre o que eu diria, só precisava es-
cutá-lo.
Duas vezes.
Pois talvez ainda existisse essa ideia de nós dois, talvez fosse
possível, agora que a distância entre nós era tão grande.
Três vezes.
Será que ele não estava?
Os segundos passaram.
Quatro vezes.
Mas então.
– Alô?
Sua voz no ouvido.
Solucei de alívio.
– Olá…
– Tao!
Não consegui responder, tentei segurar os soluços, mas eles me
venceram.
– O que foi? Aconteceu alguma coisa?
– Estou… Não sei onde estou…
– O que você quer dizer?
– Eu… Não tem ninguém aqui…
A linha chiou, o sinal caiu.
– Kuan? Não!
O telefone soltou um zunido baixo antes de ficar mudo.
Tentei de novo, digitei seu número. Aguardei.
Nada.
Tirei a tomada, recolocando-a em seguida.
O telefone continuou mudo.
Encaixei o fone e deixei o aparelho no chão. Levantei-me e olhei
para ele, inútil ali no chão.
Do nada, meu pé se esticou e chutou o telefone com força total.
Repetidas vezes. O antigo aparelho eletrônico voou para todos os
lados, juntamente com pedaços rachados de plástico.
Depois entrei no quarto, dei dois passos até a cama de criança.
Fiquei sentada na cama enquanto o quarto escurecia. A sensa-
ção de solidão me atingiu com tanta intensidade que tive falta de ar.
O momento se tornou tudo, o momento se tornou uma eternidade.
Eu, sozinha num apartamento abandonado. Não havia mais nada.
Eu tinha perdido tudo. Até o dinheiro tinha desaparecido.
Um segundo filho… Quem ele seria? Outro menino? Uma meni-
na? Parecida comigo? Esquisita, calma, à margem do grupo… Nun-
ca conheceria essa criança. Eu a tinha sacrificado, e nada sobrara.
A vida parava aqui.
Deitei-me de lado, encolhendo as pernas. As cegas, encontrei o
pequeno travesseiro e o agarrei. Puxei-o para mim, abraçando-o,
apertando-o contra o corpo, contra o peito.
Assim eu adormeci.
•••
O cabelo de Wei-Wen cheirava a suor de criança e a algo seco, co-
mo areia. Dei um beijo nele, deixando os lábios capturarem alguns
fios de cabelo. Puxei-os um pouco.
– Ai, mamãe. Você está comendo meu cabelo!
Soltei os fios e dei risada. Encontrei sua bochecha e passei a
beijá-la. Tão macia, surpreendentemente macia, é incrível como as
crianças têm bochechas macias. Era como se eu pudesse pressio-
nar os lábios nelas sem nunca encontrar resistência, não importan-
do a força que empregasse. Apenas ficar deitada assim e ter todo o
tempo do mundo.
– Meu filhinho. Meu fofinho.
Ele fungou fortemente como resposta. Olhou para o teto, onde
alguns adesivos fosforescentes em forma de astros representavam
o sistema solar. Tinham sido meus quando eu era pequena, eu ha-
via implorado para tê-los, embora meus pais na verdade quisessem
me comprar uma boneca. Depois de adulta, quando saí de casa pa-
ra morar sozinha, descolei-os com cuidado do teto de meu quarto de
menina. Coloquei os adesivos num saquinho, guardando-os no fun-
do de uma mala com lembranças da infância, e, quando Wei-Wen fi-
nalmente nasceu, eu os colei de novo. Era como se eu criasse um
vínculo entre minha própria infância e a dele, entre nós e o mundo,
entre o mundo e o universo.
Eu ensinei a ele o nome de todos os planetas, queria que enten-
desse como éramos pequenos, que nós também fazíamos parte de
algo maior. Mesmo que ele ainda fosse novo demais para com-
preendê-lo. As estrelas e os planetas ainda eram apenas adesivos
lá no teto. Para ele, só a lua e o sol tinham existência real, porque
os via no céu com os próprios olhos. Mas não conseguia entender
por que a lua não tinha seu próprio adesivo ali no teto, por que não
se fizera merecedora disso. Afinal, ela era quase tão grande quanto
o sol.
– Aquele é Júpiter. – Ele apontou para o teto.
– Hum.
Eu o cheirei, não consegui resistir. Mas, pelo visto, ele não se
deixou afetar.
– Ele é o maior de todos.
– Sim. Ele é o maior.
– E Saturno. É aquele dos anéis.
– Saturno – corrigi.
– Saturno.
– Pois é. E aquele dos anéis.
– É o mais legal.
Ele pensou um pouco.
– Por que a Terra não tem anéis?
– Bem… não sei.
– Acho que ela deveria arranjar alguns. É mais legal.
Enfiei o nariz em sua bochecha.
Ele se mexeu um pouco, desviou seu rosto do meu.
– Agora você pode sair, mamãe.
– Posso ficar deitada mais um pouco.
– Não.
– Até você adormecer?
– Não. Você pode sair agora.
Ele estava pronto, a cama se tornara segura para a noite. Minha
tarefa como mãe tinha sido realizada.
Eu lhe dei um último beijo na bochecha. Ele não tinha paciência
de esperar, puxou o edredom com força para se cobrir.
– Vá embora. Eu vou dormir.
– Tudo bem. Estou saindo. Boa noite. Até amanhã.
– Boanoitatémanhã – ele repetiu sonolento, comendo as pala-
vras.
•••
A única coisa que eu queria era ficar ali, sob o sistema solar, sob os
anéis de Saturno de plástico fosforescente verde-néon. Mas acordei
com o primeiro indício da aurora. A janela não tinha cortinas, e a luz
do alvorecer espalhou-se lentamente pelo quarto. Fiquei deitada na
mesma posição, tentando encontrar um caminho de volta para o ou-
tro quarto, a outra cama de criança, mas não consegui.
Nessa manhã, nessa cama estranha, a primeira coisa em que
pensei foi a mesma coisa de todas as outras manhãs: seu nome.
Wei-Wen. Wei-Wen.
Meu filho.
Sua fofura. Seu rosto.
Não queria mais nada além de me agarrar a isso. Mas um outro
rosto se impôs. Um rosto desse mundo. O rapaz, o rapaz comprido
e desengonçado, com o pacote de bolacha nas mãos. Seu olhar em
mim, pronto para o ataque.
E os velhos. Muitos deles incapazes de compreender a situação,
incapazes de compreender que tinham sido abandonados para mor-
rer. Mas a mulher que se aproximara de mim, ela sabia. Minha che-
gada a havia despertado. Despertado sua esperança.
O que aconteceria com ela?
O que aconteceria com o rapaz desengonçado?
E o garçom do restaurante?
Seu pai?
O que tinha acontecido com Wei-Wen?
O que tinha acontecido com ele?
Algo que dizia respeito a todos esses outros.
O isolamento da floresta, os militares, a cerca, o sigilo…
Algo que dizia respeito a todos nós.
Eu me sentei depressa.
Entendi agora.
Eu tinha começado pelo lado errado. Eu tinha começado queren-
do achar Wei-Wen. Mas eu não seria capaz de encontrá-lo enquan-
to não soubesse o que o tinha acometido. Qual era o significado dis-
so.
O rosto de Wei-Wen surgiu outra vez. Mas não seu rosto normal
e fofo de criança. Seu rosto daquele dia. Wei-Wen nos braços de
Kuan. A pele que ficava mais branca a cada segundo. A respiração
ofegante. As imagens se tornaram mais claras agora. As imagens
que eu tinha tentado não lembrar, que eu não aguentava encarar.
Deslizei para o chão e me sentei. Dobrei as pernas até encostá-las
no peito, olhando ao longe.
Lá estava ele. O rosto pálido, úmido. Gotas de suor brotando no
dorso do nariz. Seus olhos. Wei-Wen estava consciente quando Ku-
an veio correndo com ele. Seu corpo inteiro lutava com a respiração
que ardia no peito, chiava. E os olhos aterrorizados. Ele fixou os
olhos em mim, incapaz de pedir ajuda.
Depois, na metade do caminho entre a colina e os complexos
habitacionais, sua cabeça pendeu para trás. Ele estava inconscien-
te. Eu vi que isso aconteceu, seu olhar foi se afastando, ele apagou.
Quando chegamos, sua respiração era apenas um fiozinho que o
ligava ao mundo.
Encostei a cabeça nos joelhos. Forcei-me a reviver os minutos lá
nos pomares. Olhe para seu rosto, olhe para ele. O que foi que pa-
rou sua respiração? O que tinha acontecido?
A palidez, a pele suada. Parecia algo que eu tinha visto antes.
De repente, outra imagem veio à tona. Mais um rosto. Daiyu. A festa
ao ar livre. Daiyu estava no chão, vestida com seu macaquinho azul-
claro. Os sapatos pretos brilhavam ao sol. Ela também transpirava,
com suor na testa. Tentou encher os pulmões de ar, a mesma respi-
ração chiada e os mesmos olhos suplicantes. O olhar que dizia “me
ajude”. Estávamos em torno dela, tínhamos brincado no fundo do
jardim. Os adultos estavam numa mesa um pouco distante de nós.
A mão de Daiyu repousava ao lado de seu corpo. Ela segurava algo.
Um pedaço de bolo. O bolo com que se servira logo antes. Ela tinha
acabado de comer do bolo. Tinha tirado o pedaço do prato e dado
uma volta comendo, enquanto a gente brincava.
– Daiyu não consegue respirar. Ela não está respirando!
De repente sua mãe estava ali. Deixamos ela passar. A mãe gri-
tava.
– Minha bolsa, me passe aqui. Minha bolsa!
Então ela abriu a mão de Daiyu e tirou o pedaço de bolo, antes
de se virar para nós.
– Tem nozes no bolo?
Nozes? Nenhuma de nós sabia. Sua expressão era tão insisten-
te que eu me senti responsável. Como se eu devesse saber se ha-
via nozes no bolo.
Alguém veio correndo com a bolsa. A mãe de Daiyu mexeu nela,
não encontrou o que estava procurando. Virou a bolsa de ponta-ca-
beça e tudo o que estava dentro caiu no chão. Vi um batom, lenços
umedecidos, uma escova de cabelo. Ela agarrou algo, uma pequena
embalagem branca com letras verdes. Rasgou a embalagem e tirou
uma seringa.
Naquele momento minha mãe chegou. Ela segurou minha cabe-
ça perto de si, não querendo que eu visse mais. Com jeito, afastou-
me dali.
– O que foi? O que Daiyu tem? – perguntei. – O que ela tem?
William

Era de manhã. As folhas filtravam a luz. Acima de mim, tudo se mo-


vimentava. As árvores ao vento, as nuvens que deslizavam no céu,
nada estava parado. Senti uma tontura e fechei os olhos. Deitado de
costas, imóvel, sobre a terra fria e úmida, deixei a amarelidão me
envolver. Pois não havia nada mais, não havia nada que me pudes-
se tirar dali. Não a pesquisa científica, minha paixão. Não Edmund,
ele estava perdido, estivera perdido o tempo todo. Nem mesmo o
desejo. Este desaparecera. Eu não tinha mais vontade de me esfre-
gar na terra, arrebatado, a caminho do clímax. Queria que ela me
engolisse, até eu mesmo me tornar terra.
Eu não tinha comido, mas isso não importava. As empadas ain-
da reviravam meu estômago, estavam grudadas na garganta, seca-
vam a cavidade bucal.
O vilarejo, o movimento ali e nos arredores, meu próprio lar, tudo
poderia estar a milhares de quilômetros de distância, eu tinha cami-
nhado no escuro até as pernas doerem, até que nenhum ruído de
fora pudesse me alcançar. A floresta era cortada por algumas trilhas
e eu segui uma delas, mas logo a deixei, quis fugir de tudo que lem-
brasse os seres humanos. Por fim, eu simplesmente tombei na rel-
va.
Será que sentiam minha falta? Será que estavam me procuran-
do? Talvez eu logo ouvisse algo, ouvisse seus chamados, as vozes
das meninas em diversos tons, desde a voz fininha e estridente de
Georgiana, no topo da escala, até a mais grave de todas, a da pró-
pria Thilda, que destoava desafinada.
Ou talvez ninguém sentisse minha falta. Talvez estivessem acos-
tumadas a minhas ausências, meus sumiços, talvez nem notassem
que eu não estava presente.
Ou estariam preocupadas com Edmund? Ele devia estar doente
hoje, tinha de estar – hoje, como em tantos outros dias. Provavel-
mente dormiria até o sol passar pelo zênite, sua palidez noturna de-
via-se ao fato de nunca se expor ao ar livre. Mas não se tratava de
doença alguma. Tantas coisas que eu não tinha entendido… E não,
elas não estavam preocupadas com sua saúde. O dia era como
qualquer outro, pois Edmund sempre estivera assim. Todos os dias
que ele desperdiçara, fechado no quarto, dormindo enquanto o or-
ganismo eliminava lentamente o álcool. Nada de melancolia heredi-
tária, apenas indolência e danos autoinfligidos. Ele não era melhor
do que os rudes trabalhadores braçais que deixavam a vida desapa-
recer na caneca de cerveja. Um beberrão.
Segui o trajeto do sol lá em cima. Logo ele estava a pino, secan-
do o que restava de líquido em mim. A transpiração assomou à pele.
Respirei de boca aberta. A língua parecia um musgo seco. Quis er-
guer a mão, enxugar as gotas de suor, mas o braço estava pesado
demais.
O dia passou. O sol desapareceu atrás das árvores outra vez, as
sombras se alongaram, tudo esfriou. A temperatura do meu corpo fi-
cou igual à da terra. Por trás das pálpebras, a escuridão. Será que
eu já tinha sido engolido?
– Pai?
Mais uma chamada. Um tom afinado. No meio da escala.
– Pai?
A voz estava mais alta agora, e logo escutei os passos tranquilos
nas urzes e musgos.
Abri os olhos e me deparei com os olhos claros de Charlotte.
– Boa tarde – disse. Não havia qualquer sinal de surpresa nela.
Talvez elas não tivessem me procurado, nem se dado conta de que
eu tinha desaparecido.
Charlotte simplesmente olhava para mim, estudando-me, como
se eu fosse um inseto, deitado ali de comprido. De repente, senti o
sangue fluir para o rosto.
– Pois é. Aqui estou.
Sentei-me, tirei a sujeira da camisa e passei a mão pelo cabelo,
soltando ciscos e agulhas de pinheiro.
– Foi difícil me achar?
– Como assim?
– Você está me procurando faz tempo?
– Não, não muito tempo. Afinal, o caminho está ali. – Ela apon-
tou para trás e então o descobri, o caminho para casa, e, em segui-
da, não pude deixar de notar algumas árvores muito familiares. Eu
não desaparecera nas profundezas da floresta. A decepção não me
levara tão longe. Estava muito perto de minha própria casa.
Ela se sentou a meu lado, e então percebi que tinha algo na
mão. O caderno, aquele com que sempre andava, aquele em cujas
páginas escrevia com entusiasmo.
– Gostaria de lhe mostrar uma coisa. Posso?
Ela o abriu sem esperar a resposta.
– É uma coisa com que estou trabalhando há tempo.
Tentei focar o olhar, mas os traços de tinta ziguezagueavam co-
mo minhocas sobre o papel.
– Espere. – Ela tirou-me os óculos, limpou-os rapidamente com o
tecido do vestido e colocou-os de volta em meu nariz.
Estavam mais limpos, mas não foi só por esse motivo que endi-
reitei as costas e tentei absorver o que ela tinha a me apresentar. O
pequeno gesto causara-me um nó na garganta. Eu era grato por ter
sido justamente ela quem veio, justamente ela quem me encontrou,
quem me viu assim, e mais ninguém. Engoli e dirigi a atenção para
o que Charlotte queria mostrar.
Um desenho. Uma colmeia. Mas completamente diferente da mi-
nha.
– Pensei que se virássemos a colmeia de ponta-cabeça tudo se-
ria diferente – disse ela. – Se inserirmos os quadros de cima para
baixo, em vez de pendurá-los do teto, se abrirmos a colmeia no to-
po, teremos um controle muito maior.
Fiquei olhando para os desenhos que ela me mostrou. Lenta-
mente as formas foram ficando nítidas no papel.
– Não – disse eu, e pigarreei. – Não… Não vai funcionar. – Pro-
curei as palavras. – Os quadros vão se colar nas laterais da caixa. –
Endireitei-me, afinal eu era uma autoridade. – As abelhas vão colá-
los com própolis e cera, será impossível soltá-los.
Então ela sorriu.
– Se ficarem próximos demais uns dos outros, sim. Cinco milí-
metros ou menos.
– E se ficarem distantes demais, as abelhas vão construir esca-
das, favos de ligação – disse eu. – De qualquer forma, não funciona
de cima para baixo. Já cogitei essa possibilidade. – A última parte
eu disse com um sorriso condescendente.
– Eu sei, mas você não experimentou com alternativas diferen-
tes. A questão é só encontrar a medida certa.
– Não estou entendendo.
Ela apontou para os desenhos outra vez.
– Tem que ter um ponto intermediário, pai. Em que ponto elas
param de produzir cera e própolis? Em que ponto começam a fazer
as construções de escada? Que tal encontrar o ponto zero? Com o
número certo de milímetros entre a borda externa da moldura e a
parede interna, elas não produzirão cera nem farão construções de
escada.
Só pude olhar para ela. Olhar de verdade. Ela estava bem cal-
ma, mas os olhos brilhavam, revelando seu entusiasmo. O que ela
estava dizendo? Cera. Construções de escada. Será que haveria al-
go entre as duas?
As forças aumentaram, pus-me em pé.
O ponto zero.
Ge orge

Depois da reunião no banco de merda, fui para a campina perto do


rio Alabast. Ela estava vazia agora. Sobravam só umas poucas col-
meias num canto lá embaixo. Ainda tinha vida nelas, mas eu não sa-
bia por quanto tempo. Nada distinguia essas das outras. Não tinha
motivo para que elas sobrevivessem.
Andei em círculos. As colmeias tinham deixado marcas na relva
por toda a parte. Grama achatada, morta. Mas entre os talos surgi-
am brotos. Logo, todas as marcas teriam sumido, e não haveria
mais vestígio das colônias de abelhas que tinham vivido aqui.
Fui chegando mais perto do zunido. De repente senti saudades
de uma picada. A dor ardente. O inchaço. Poder xingar em alto e
bom som.
Uma vez, somente uma única vez, fui picado pra valer. Eu tinha
oito anos de idade. Lembro que estava na cozinha. Minha mãe che-
gou do supermercado. Não sei por quê, mas justamente nesse dia
ela trouxe algo para mim. Ah, sim, foi para me agradar. Eu ia ganhar
mais um irmãozinho, o terceiro, e ela devia saber que a notícia não
seria bem recebida. Eu nunca ganhava brinquedos fora do aniversá-
rio e do Natal, mas nesse dia ela excepcionalmente tinha comprado
uma coisa. Um carro de brinquedo. E não era qualquer um. Hot
Wheels. Eu estava querendo um deles fazia um tempão. Fiquei tão
feliz que a cabeça ferveu. E corri para a campina com o carro, antes
mesmo de ela conseguir me contar sobre a barriga.
Lá estava o papai. Com a cabeça numa colmeia. Eu não pensei.
Corri diretamente para ele. Olha! Olha o que ganhei! Olha, papai! Aí
me dei conta de sua expressão atrás do véu. Não chegue perto! Vol-
te! Mas era tarde demais para parar.
Fiquei de cama por vários dias. Ninguém fez a conta, mas devo
ter levado mais de cem picadas. Tive febre alta. O médico veio. Re-
ceitou uns comprimidos tão fortes que seriam capazes de derrubar
um urso. E só fiquei sabendo da criança na barriga bem mais tarde.
Depois disso, passei a evitar picadas a qualquer custo.
Eu costumava pensar nas picadas como um castigo. Como um
sinal de que eu não tinha feito meu trabalho direito. Não tinha me
protegido. Não tinha tomado os devidos cuidados. Uma temporada
sem picadas, essa era a meta, mas sempre acabava com algumas,
nenhum apicultor consegue evitar picadas um verão inteiro. Com ex-
ceção desse ano. Até agora, eu não tinha levado nenhuma picada,
mas por motivos bem diferentes dos que eu desejava.
Andei em círculos, me aproximando cada vez mais. Havia um
zunido fraco. Parei. Calculei a densidade. Não era grande coisa.
Com certeza não tinha 2,5 por metro quadrado.
Pisei com força no chão. Uma abelha solitária saiu voando.
Uma picada. Me pique!
Ela deslizou pelo ar e deu uma guinada, se desviando de mim.
Não queria me fazer esse favor.
Dei meia-volta e fui em direção ao celeiro.
•••
Eu não tinha comprado novos materiais. Num canto, a última enco-
menda da primavera ainda formava uma pilha com cheiro bom e
fresco. Ela me assustava. Entre mim e a pilha estava o tempo. Ho-
ras e mais horas. O trabalho necessário para construir todas as col-
meias. E depois ainda mais. O melhor seria encomendar tábuas no-
vas o quanto antes. Pois eu mesmo ia cuidar da construção. En-
quanto fosse apicultor, eu ia construir minhas próprias colmeias.
Peguei uma tábua, pesei nas mãos. Senti a madeira na pele nua.
Ainda úmida. Com a maleabilidade certa. Viva.
Aí vesti as luvas. Através delas a madeira não era nada além de
uma matéria morta. Peguei os protetores de ouvido. Liguei a serra.
Naquele momento, a luz da porta incidiu sobre o chão. Uma rés-
tia ficou mais larga e uma sombra a preencheu. Então a luz desapa-
receu.
Eu me virei.
Emma estava ali.
Ela olhou para a pilha de tábuas e depois para mim. Sacudiu a
cabeça de leve.
– O que você vai fazer?
Ela sabia a resposta, mas mesmo assim perguntou.
Deu alguns passos em minha direção.
– Isso daqui é loucura.
Ela apontou para as tábuas.
– Você tem que construir tantas. A gente precisa de tantas.
Como se eu não soubesse. Como se não estivesse totalmente
ciente disso.
Encolhi os ombros, fiz menção de colocar os abafadores, mas al-
go em seus olhos me deteve.
– A gente poderia ter vendido – disse ela.
Soltei os protetores auditivos. Eles caíram no chão com um es-
trondo.
– Poderíamos ter vendido no inverno. Ter mudado. Já estar lá no
sul. Ela não disse mais, não o que estava pensando.
Enquanto tínhamos a chance. Enquanto o apiário valia alguma
coisa.
Eu me curvei, peguei os abafadores e os levantei com as duas
mãos, como se uma não bastasse, como se eu fosse uma criança.
Coloquei os abafadores na cabeça e me virei para o outro lado.
Não ouvi Emma sair. Só vi o feixe no chão, ele ficou maior, a
sombra dela o preencheu, aí ele ficou menor e desapareceu.
•••
Não tocamos mais no assunto. Ela não disse mais. Os dias se pas-
saram. Eu trabalhava até ficar com bolhas, até a coluna doer e os
dedos sangrarem de cortes. Não sei o que Emma fazia. Mas ela pe-
lo menos não tocou mais no assunto. Apenas me olhou vez ou outra
com olhos marejados, um olhar que dizia: É sua culpa.
Tentamos viver como antes. Fazer as mesmas coisas. Jantar
juntos todo dia. Tevê à noite. Ela acompanhava muitos seriados.
Chorava e ria na frente da tela. Soltava suspiros. Discutia comigo.
Você já viu isso? Não, não pode ser. Mas ele não merece isso. E
ela, imagine, ela é um doce. Nossa, meu Deus.
E ficávamos sentados juntos no sofá. Nunca em cadeiras sepa-
radas. Ela gostava que eu afagasse seu cabelo. Fazia cafuné. Mas
agora minhas mãos ficavam mais no colo. Estavam doendo demais,
estavam sensíveis demais.
Uma noite, estávamos sentados assim e o telefone tocou. Ela
não fez menção de se mexer. Eu também não.
– Atenda você – disse ela. Estava com os olhos na tevê, aguar-
dando alguma votação, a tensão subindo: quem seria eliminada, a
loira ou a morena? Grande suspense, pelo visto.
– Talvez seja Tom – falei.
– E daí?
– É melhor você falar com ele.
Ela me olhou surpresa.
– Pelo amor de Deus, George.
– O quê?
– Você não pode se recusar a falar com ele.
Não respondi.
O telefone continuou tocando.
– Não vou atender – disse ela, empinando o nariz.
– Tudo bem. Então não vamos atender – falei.
Mas ela ganhou, claro, eu fui até o corredor e atendi.
Era Lee. Ele estava ligando para contar sobre as perspectivas da
safra.
– Saio todo dia – disse ele feliz. – E estão crescendo. Um monte
de mirtilos verdes.
– Nossa – falei. – Apesar da chuva?
– Elas devem ter mandado bem quando o sol saiu. Vai ser um
ano aproveitável, afinal de contas. Melhor do que o esperado.
– Nada mal.
– Não. Só queria que você soubesse. Suas abelhas são boas.
– Foram – falei.
– O quê?
– Foram. Minhas abelhas foram boas.
Ele ficou calado do outro lado da linha. Devia estar digerindo o
que eu tinha dito.
– Não. Aconteceu com você também? Sumiram?
– Sumiram.
– Mas achei que não estava afetando os lugares mais ao norte…
Que era só na Flórida. E na Califórnia.
– Pelo visto, não. – Tentei manter a voz firme, mas ela falhou.
– Ai, George. Meu Deus. O que posso dizer?
– Não há muito o que dizer.
– Não… Você tem seguro?
– Não contra esse tipo de coisa.
– Mas… O que você vai fazer? O que você vai fazer agora?
Enrolei o fio do telefone no dedo indicador. Fez pressão num cor-
te que eu tinha levado durante o dia. Não sabia o que responder.
– Não…
– George. – A voz estava mais alta agora. – Me avise se precisar
de alguma coisa.
– Obrigado.
– Estou falando sério.
– Sei.
– Gostaria de te emprestar algum dinheiro.
– Gostaria nada. – Dei risada.
Ele riu de volta, talvez pensasse que estava tudo bem brincar.
– Também não tenho nenhum. A safra não está tão boa.
– Mesmo com o desconto que ganhou?
– Mesmo com o desconto.
Ele ficou calado.
– Eu não devia ter aceitado aquilo.
– O que você quer dizer?
– Que você me desse um desconto.
– Lee…
– Se eu soubesse…
– Lee. Esqueça.
Desenrolei o fio do dedo indicador. Ele tinha deixado marcas em
espiral até na palma da mão.
– Quer saber? – disse ele de repente, com leveza. – Na verdade
liguei para te contar o contrário. A safra foi à merda. As abelhas fo-
ram péssimas.
Não consegui senão rir.
– Que bom saber.
– Ainda bem que sumiram – disse ele.
– É. Bom que sumiram.
A linha ficou em silêncio.
– Mas George, de verdade. O que você vai fazer?
– Não sei. Talvez eu precise começar a encomendar as colmei-
as.
– Encomendar? Não. Afinal, é sua herança. As colmeias são sua
herança.
– Ela não está valendo grande coisa nesse momento.
– Não…
Ouvi que ele engoliu.
– Mas, de qualquer jeito… Não desista.
– Certo… não.
Não consegui dizer mais. O entusiasmo em sua voz foi o sufici-
ente para me deixar mudo.
– George? Você está aí?
– Estou…
Respirei fundo, me recompus.
– Sim. Estou aqui. Não estou indo para lugar nenhum.
Tao

A uns dois quilômetros de distância do apartamento onde eu tinha


passado a noite, finalmente encontrei uma estação de metrô que es-
tava aberta. Ontem eu havia chegado perto, já me aproximando da
parte habitada da cidade, mas não sabia disso. Duas outras pesso-
as estavam esperando comigo na estação. Uma velhinha cambale-
ante e macilenta, que se arrastou até um banco, e um homem na
casa dos cinquenta, com olhos desconfiados, que carregava sacolas
pesadas e volumosas. Talvez tivesse se abastecido nas casas aban-
donadas.
Só meia hora depois chegou um trem. Muito demorado. Eu preci-
sava voltar já, precisava encontrar uma biblioteca, encontrar respos-
tas. Embarquei sorrateiramente, sem passagem, e mal notei que a
velhinha estava lutando para entrar. Era quase tarde demais quando
percebi seu olhar e corri até ela para ajudar. Ela agradeceu várias
vezes e tentou iniciar uma conversa, mas eu estava sem disposição.
No trem, eu me sentei sozinha. Estava inquieta e teria preferido
ficar em pé, mas o trem sacolejava tanto que não tive coragem. Via-
se que há muito tempo não se cuidava de sua conservação, tam-
pouco de sua limpeza. Talvez décadas. O cheiro era acre. Os vidros
estavam cobertos por uma grossa camada de gordura, formada ao
longo dos anos pelos milhares de dedos que os abriram quando o
sol batia ou os fecharam em dias frios. Do lado de fora estavam
manchados de pó e sujeira.
O trem seguiu chacoalhando pela paisagem urbana, e a baru-
lheira era tão ensurdecedora que quase impossibilitava o raciocínio.
Mesmo assim, eu me sentia como um animal em busca da presa,
seguindo meu faro, determinada. Os mesmos dois rostos giravam
na cabeça. Wei-Wen e Daiyu. A mesma palidez. A mesma respira-
ção chiada.
Eu tive que trocar de trem três vezes. Em nenhuma delas pude
ver uma tabela de horários, todas tinham sido arrancadas, e o siste-
ma eletrônico já não funcionava há muito tempo. A única coisa a fa-
zer era esperar – a primeira vez, exatamente 23 minutos; a segun-
da, 14 minutos; a última, 26 minutos. Cronometrei o tempo todas as
vezes.
Depois de três baldeações, finalmente cheguei. Era quase como
voltar para casa, até que enfim um ambiente familiar, como se eu ti-
vesse ficado fora muito mais do que 24 horas. O corpo inteiro grita-
va de fome, mas eu não tinha tempo de sentar e comer. Devorei um
pacote de bolacha que tinha deixado no hotel e perguntei à recepci-
onista onde ficava a biblioteca mais próxima.
Só havia uma. Uma única biblioteca aberta em toda Pequim. Fi-
cava em Xiacheng, na mesma linha de metrô do hotel. Passei pelo
antigo zoológico no caminho. Os ornamentos do portal de entrada ti-
nham sido corroídos pela intempérie. A vegetação lá dentro amea-
çava se apoderar de tudo, arrebentar a cerca. O que teria aconteci-
do com os animais? As espécies em extinção? O último coala? Tal-
vez estivessem circulando soltos pelas ruas, usando as casas aban-
donadas como abrigo. Era uma ideia reconfortante pensar que eles
ainda seriam capazes de continuar suas vidas aqui na Terra, mesmo
que restassem tão poucos de nós, os seres humanos.
A praça na frente da biblioteca estava deserta. Eu a atravessei
apressada, não tinha tempo de ficar com medo. A porta de entrada
era tão pesada que cheguei a pensar que estivesse trancada, mas,
usando todas as minhas forças, consegui abri-la.
O espaço era enorme, dividido em níveis, como uma escadaria.
As paredes estavam cobertas de livros, milhares deles. No chão, em
fileiras retíssimas, havia mais mesas de trabalho e cadeiras do que
eu poderia contar. O ambiente estava na penumbra, com todas as
lâmpadas apagadas. A única luz vinha das janelas no alto. E não se
via uma única pessoa, como se a biblioteca de fato estivesse fecha-
da.
Dei alguns passos para dentro da sala.
– Alô?
Ninguém respondeu.
Levantei a voz.
– Olá?
Por fim, ouvi passos do lado oposto. Uma vigia jovem apareceu.
– Oi?
Ela trajava um uniforme que em algum momento teria sido preto,
mas que agora estava cinza, desgastado pelo uso e pelas inúmeras
lavagens. Ela olhou surpresa para mim. Talvez eu fosse a primeira
pessoa a entrar em muito tempo.
Ela logo se recompôs e fez um gesto indicando o mar de livros.
– Suponho que queira livros emprestados? Fique à vontade.
– Não preciso me registrar? Você quer meu nome?
Ela me olhou espantada, como se fosse algo em que não tivesse
pensado. Então sorriu.
– Não tem necessidade.
Depois, me deixou em paz.
Pela primeira vez em muitos anos, eu me deixei abraçar por li-
vros, por palavras. Eu poderia ter passado uma vida inteira aqui. Tao
com o lenço vermelho. A que se destacava. Entretanto, aquela era
outra vida.
Comecei na seção de ciências naturais. Wei-Wen tinha sido ex-
posto a algo que seu organismo não tolerava, tinha sofrido um cho-
que anafilático ali nos pomares. Talvez uma picada de cobra? Achei
um livro antigo sobre as serpentes da China. Era grande e pesado.
Eu o deitei na minha frente sobre a mesa e procurei ao acaso no
texto. Sabia que antigamente havia najas na região, mas elas desa-
pareceram, pelo menos foi o que nos disseram. Elas comiam rãs,
que, por sua vez, comiam insetos. E como muitos dos insetos foram
extintos, a base de subsistência da naja também desapareceu. Fo-
lheei até encontrar uma imagem, uma cobra escura com a pele da
nuca dilatada na forma de um capuz, tensa, pronta para o ataque,
exibindo abaixo da cabeça um desenho circular que parecia traçado
com giz branco. Será que havia algumas delas lá fora, mesmo as-
sim?
Li sobre a picada, sobre os sintomas. Dormência, bolhas, dores,
incômodo no peito, febre, garganta inflamada, problemas respirató-
rios. Não tão diferentes das reações de Wei-Wen.
Necrose, foi o que li mais adiante, um ataque por uma naja chi-
nesa sempre levará à necrose, à morte celular, parecida com a gan-
grena, em torno do local da picada.
Não tínhamos visto nenhuma picada. Não seria natural termos
notado?
E mesmo que não tivéssemos notado a picada, mesmo que Wei-
Wen tivesse sido atacado por uma cobra, uma naja, isso não justifi-
caria o sigilo, a tenda e a cerca, o fato de que o tiraram de nós.
Continuei minha busca na seção de medicina. Se não fosse uma
picada de cobra, o que seria? Enquanto eu virava as páginas de en-
ciclopédias médicas e manuais de medicina, a compreensão alcan-
çou-me. Talvez eu estivesse ciente dela o tempo todo, mas não su-
portei assimilá-la, pois era algo grande demais, significativa demais.
•••
Só tocou uma vez, e de repente ele estava lá.
– Tao, o que aconteceu? A linha caiu, onde você estava?
A vigia tinha me dado permissão para usar o telefone, que ficava
numa sala separada, bem no fundo da biblioteca. O aparelho estava
empoeirado, não fora usado há meses.
– Não foi nada – disse eu, quase tinha esquecido a conversa no
apartamento, na noite anterior. – Deu tudo certo.
– Mas… o que aconteceu? Você parecia tão… – Em sua voz ha-
via um carinho que normalmente era reservado a Wei-Wen.
– Eu tinha me perdido. Mas depois achei o caminho – acrescen-
tei depressa. Precisava lhe dar uma explicação para que pudesse
prosseguir.
– Pensei em você o dia todo.
Sua preocupação. Não a aguentei. Não foi por isso que liguei.
Ontem eu a teria recebido de bom grado, agora ela só atrapalhava.
– Esqueça aquilo – falei. – Acho que descobri o que aconteceu
com Wei-Wen.
– O quê?
– Choque anafilático.
– Choque anaf…
– Significa reação alérgica – disse eu, percebendo como soava
meticuloso e didático. Tentei mudar o tom de voz, não quis parecer
uma professora para ele. – Wei-Wen teve um choque anafilático.
Reagiu a algo lá fora.
– Por quê… O que te faz pensar isso? – perguntou.
– Escute – falei. Então li rapidamente um texto sobre os sinto-
mas e o tratamento. Pontuando as menções a dificuldade de respi-
rar, queda de pressão, perda de consciência, adrenalina.
– Tudo bate – disse eu. – Foi exatamente assim que ele reagiu.
– Eles deram adrenalina para ele? – perguntou ele.
– O que você quer dizer?
– Quando eles chegaram, deram adrenalina para ele? Você dis-
se que é preciso administrar adrenalina quando há risco de vida.
– Não sei. Não os vi dando nada.
– Eu também não.
– Mas… eles podem ter feito isso dentro da ambulância. Ele fi-
cou calado, ouvi sua respiração baixa.
– Parece fazer sentido – disse ele enfim.
– Faz sentido. Só pode ter sido assim – falei.
Ele não respondeu. Estava pensando. Eu sabia no quê. Na mes-
ma coisa que eu tinha pensado desde que acordei no apartamento
abandonado. Enfim, ele o articulou.
– Mas a quê? Ele teve alergia a quê?
– Pode ter sido algo que ele comeu – disse eu.
– Sim… Mas então o quê? As ameixas? Ou alguma coisa que
ele achou na floresta?
– Acho que foi algo que ele achou na floresta, mas não algo que
comeu.
Ele ficou quieto, talvez não tivesse entendido.
– Acho que não foi comida – continuei. – Acho que veio de fora.
– Como assim?
– Primeiro pensei que fosse uma picada de cobra. Mas não faz
sentido, os sintomas não batem…
Ele não respondeu, só esperou, sua respiração no telefone esta-
va mais acelerada agora.
– Acho que não foi picada de cobra, mas picada de inseto.
William

Hertfordshire, 4 de agosto de 1852


Prezado Sr. Dzierzon,
Escrevo ao senhor como a um colega, embora o senhor pro-
vavelmente não conheça meu nome. Não obstante, temos mui-
to em comum, e, portanto, julguei forçoso estabelecer contato.
Por muito tempo, eu, o autor desta carta, venho acompanhando
a sua obra, e o novo padrão de colmeias desenvolvido pelo se-
nhor chamou minha atenção em especial. Não posso deixar de
expressar minha admiração ilimitada por seu trabalho notável,
pelos estudos que o senhor tem feito e, enfim, pela própria col-
meia, assim como foi apresentada na publicação Eichstadt Bie-
nenzeitung.
Eu, o autor desta carta, também criei uma colmeia, em parte
baseada nos mesmos princípios da sua. Com toda a modéstia,
desejo apresentá-la ao senhor, na esperança de que talvez pos-
sa dedicar um pouco de seu tempo valioso à expressão de sua
opinião sobre meu trabalho.
Desde cedo, o modelo proposto por Huber instigou-me a
pensar no desenvolvimento de uma colmeia que possibilitasse
a remoção dos quadros sem ter de matar as abelhas, sem ter
sequer que lhes causar aflição. A leitura de suas anotações
também me fez perceber que somos capazes de domar esses
seres maravilhosos num grau muito maior do que antes se pen-
sava. Essa compreensão foi absolutamente essencial para a
continuação de meu trabalho.
Primeiro, desenvolvi uma colmeia que parecia com a do se-
nhor, com uma entrada lateral e molduras superiores móveis.
No entanto, esse dispositivo não ofereceu a solução para todos
os meus desafios. Como o senhor mesmo deve ter percebido,
com esse modelo a remoção dos quadros não é uma operação
simples, sendo antes demorada e trabalhosa. Além do mais, e
muito lamentavelmente, ela só pode ser realizada com o sacrifí-
cio tanto das abelhas como de suas crias.
Mas em raríssimas ocasiões somos tomados por uma epifa-
nia que muda tudo. Em meu caso, ocorreu no fim de uma tarde
de verão, enquanto estava deitado no chão da floresta, em con-
templação intelectual. O tempo todo eu tinha imaginado a col-
meia como uma casa, com janelas e portas, tal qual a colmeia
do senhor. Um lar. Mas por que não enxergar tudo de forma di-
ferente? Pois as abelhas não se tornarão iguais a nós, seres
humanos, elas serão domadas por nós, tornar-se-ão nossos sú-
ditos. Assim como o céu olhou para mim lá embaixo – e talvez
também Deus Pai (sim, acredito que ele tenha dado uma ajuda
naquela tarde de verão) –, nós também vamos olhar para as
abelhas lá embaixo. Nosso contato com elas obviamente deve
ser de cima para baixo.
A mudança foi total quando virei tudo de ponta-cabeça,
quando comecei a pensar em uma colmeia cuja entrada ficasse
precisamente em cima. Isso me levou à ideia que agora é o mo-
tivo de minha carta para o senhor: meus quadros móveis, em
breve patenteados. Nesse modelo, as travessas são afixadas
de forma que não estejam em contato com a própria colmeia,
nem na parte superior, nem no fundo, nem nas laterais. Assim,
posso tirar ou mover as travessas à vontade, sem ter de cortá-
las ou prejudicar as abelhas. E também estou livre para transfe-
rir as abelhas para outras colmeias e tenho um controle muito
maior sobre elas do que antes.
Mas como, o senhor deve se perguntar, podemos evitar que
as abelhas prendam as travessas nas laterais ou em outras tra-
vessas com cera e própolis, ou que façam construções em es-
cada? Bem, isso vou esclarecer agora mesmo! Por meio de cál-
culos e experimentos durante um longo período, cheguei ao nú-
mero decisivo. E este, meu caro amigo, se o senhor me permitir
que o chame assim, é NOVE. Deve haver nove milímetros entre
as travessas. Deve haver nove milímetros entre as travessas e
a lateral, entre as travessas e o fundo, entre as travessas e o
topo, nem mais nem menos.
Espero e acredito que a “Colmeia Padrão de Savage” logo
estará disponível em toda a Europa, sim, e quem sabe até ultra-
passe as fronteiras do continente. No decorrer de meu trabalho,
cultivei a simplicidade como princípio, e o aspecto prático tem
sido essencial. Espero, assim, que a colmeia possa ser utilizada
por todos, desde os apicultores novatos até os mais experien-
tes, com centenas de colmeias. Mas, em primeiro lugar, espero
que a colmeia facilite as condições de observação para nós, na-
turalistas, de modo que possamos continuar a fazer novas des-
cobertas e a nos aprofundar no estudo dessa criatura que é tão
infinitamente fascinante e, sobretudo, tão importante para a hu-
manidade.
Já solicitei uma patente para minha invenção, mas como o
senhor deve estar ciente, a análise desses pedidos pode levar
tempo. Entrementes, estou muito ansioso para receber seus co-
mentários a respeito de meu trabalho. Talvez, quem sabe, o se-
nhor queira desenvolver uma colmeia com base em meus prin-
cípios. Se for o caso, sentir-me-ei mais honrado do que o se-
nhor possa imaginar.
Meus cumprimentos mais humildes,
William Atticus Savage

•••
A primeira carruagem entrou no pátio. Meu coração deu um pulo, a
chegada do primeiro convidado sinalizava que tudo estava come-
çando. Eu vestira a melhor roupa que possuía, recém-engomada,
recém-lavada, e estava de barba feita. Até havia tirado o pó da car-
tola. Já estavam chegando, e eu estava pronto.
As colmeias formavam duas fileiras nos fundos do terreno. Sim,
a essa altura havia muitas delas, Conolly realmente estivera ocupa-
do. O som acumulado de milhares de abelhas era tão alto que pode-
ríamos ouvi-las até dentro de casa. Minhas abelhas, domadas por
mim, meus súditos, que deveras me obedeceram cegamente, já que
dia após dia, cada uma com suas pequenas contribuições, ajudaram
a encher a colmeia com mel brilhante cor de âmbar. E, não menos
importante, faziam sua parte para que a colmeia crescesse, para
que houvesse um número ainda maior de súditos.
Nas últimas semanas, eu tinha enviado uma série de convites
para minha primeiríssima apresentação da “Colmeia Padrão de Sa-
vage”. Os convites foram encaminhados aos agricultores locais, mas
também aos naturalistas da capital. E a Rahm. Eu tinha recebido a
resposta de muitos, mas não dele. No entanto, ele deveria vir. Ele ti-
nha de vir.
Edmund também estava pronto. Parecia ter compreendido a seri-
edade da situação. Sim, até Thilda tinha conversado com ele. Pois
ainda não era tarde demais, ele era jovem, naquela fase da vida em
que é fácil ser levado ao mau caminho, se deixar seduzir pelo sim-
ples prazer. Seguir sua paixão, foi o que dissera. Um argumento pe-
lo qual eu tinha a mais alta estima, agora era só uma questão de
cuidar para que ele encontrasse uma paixão de distinção. Minha es-
perança era que o contato com a ciência, o contato direto com a na-
tureza, o inspirasse. Que o orgulho que eu despertaria nele, o orgu-
lho de fazer parte dessa família, de levar nosso nome adiante, o
conduzisse de volta ao caminho do dever.
Num esforço coletivo, as mulheres da família tinham levado ca-
deiras e bancos até as colmeias. Ali, o público ficaria sentado, assis-
tindo à minha apresentação. Durante dias, Thilda e as meninas cor-
taram, assaram, ferveram e refogaram iguarias na cozinha. Haveria
comes e bebes, claro que sim, embora nosso derradeiro dinheiro,
até o dinheiro da faculdade, fosse gasto. Pois só se tratava de um
investimento a curto prazo. Depois deste dia, eu estava certo, tudo
se resolveria.
Charlotte ficara a meu lado o tempo todo. Desde aquele momen-
to na floresta fazíamos tudo juntos. Sua serenidade me contagiou,
seu entusiasmo tornou-se meu. Este dia era também dela, mas ha-
via um entendimento implícito de que seu traje branco de apicultora
permaneceria no baú de roupas do quarto das meninas. Seu lugar
era entre as outras mulheres. E ela parecia sentir-se à vontade com
uma bandeja na mão e as faces rubras do calor da cozinha. Mas às
vezes me mandava sorrisos alegres, ansiosos, reveladores de que
aguardava com tanta expectativa como eu.
A primeira carruagem parou diante de mim, preparei-me para re-
ceber o convidado. Só então vi quem era. Conolly, apenas Conolly.
Estendi a mão, mas ele não a apertou, apenas me deu um tapa
no ombro.
– Passei a semana contando os dias – disse ele sorrindo. – Nun-
ca participei de uma coisa assim.
Sorri de volta, tentando parecer condescendente, não querendo
admitir que eu também não tinha participado de nada igual. Mas ele
me cutucou com o cotovelo.
– Você também está ansioso… Estou vendo.
Então ficamos ali, feito dois menininhos no primeiro dia de aula,
mexendo os pés com impaciência.
Primeiro chegaram os agricultores locais – dois que já faziam cri-
ação de abelhas e um que estava pensando em começar. Eles des-
ceram até as colmeias enquanto nós aguardávamos os demais con-
vidados.
Um pouco mais tarde, dois senhores, desconhecidos para mim,
chegaram montados a cavalo. Ambos portavam cartola e trajavam
roupa de cavaleiro. Estavam cobertos de poeira, como se tivessem
feito uma longa viagem. Desmontaram, vieram em minha direção e
só então os reconheci. Eram meus velhos colegas de faculdade,
ambos barrigudos, com calvas incipientes e rostos com poros dilata-
dos, cheios de rugas. Como eles envelheceram; não, eles não, nós.
Como nós envelhecemos.
Cumprimentaram-me, agradeceram o convite, deram uma olha-
da em volta e fizeram um gesto de aprovação. Comentaram as van-
tagens de morar assim, tão integrado à natureza, e não como eles,
que tinham escolhido viver na floresta urbana, onde as árvores eram
edifícios de alvenaria, o solo fértil eram paralelepípedos, e tudo o
que se via ao virar o rosto para o céu eram andares de prédios, te-
lhados e chaminés.
As pessoas chegaram em grande número. Vários agricultores,
alguns somente por curiosidade, e até três zoólogos da capital, que
vieram na diligência da manhã e desceram na estrada logo abaixo
de nossa propriedade.
Mas nada de Rahm.
Entrei em casa rapidamente, consultei o relógio em cima da la-
reira. Minha intenção era iniciar à uma em ponto. Só então, quando
todos estivessem em seus lugares, eu desceria e me posicionaria
diante deles. E Edmund, meu primogênito, estaria ali na plateia, ele
me veria ali na frente de todo mundo.
•••
Já era uma e meia. Os convidados estavam ficando um pouco inqui-
etos. Alguns pescavam discretamente o relógio do bolso do colete,
dando uma rápida olhada nele. Tinham-se servido bem da comida e
da bebida que Thilda e as meninas ofereceram a todos, e provavel-
mente estavam bastante satisfeitos. Fazia calor, várias pessoas tira-
vam o chapéu, pegavam lenços e enxugavam o pescoço úmido.
Meu próprio chapéu era uma escaldante estufa negra que fazia
pressão sobre a cabeça, dificultando o pensamento. Arrependi-me
do traje. Cada vez mais pessoas lançavam olhares para as colmeias
e depois me fitavam com ar interrogativo. A conversa deixou de fluir,
sobretudo a minha. Não conseguia manter a atenção no interlocutor,
os olhos sendo sempre atraídos para o portão. Ainda nada de
Rahm. Por que será que ele não vinha?
Eu teria de começar de qualquer forma. Precisava começar.
– Vá buscar as crianças – falei para Thilda.
Ela fez que sim. Com voz baixa, começou a reunir as meninas
em torno dela, enquanto Charlotte foi encarregada de buscar Ed-
mund.
Comecei a andar calmamente em direção às colmeias e o públi-
co percebeu que algo, enfim, estava acontecendo. As conversas
dispersas dissolveram-se e as atenções se voltaram para mim.
– Prezados senhores, por favor, tomem seus lugares – disse eu,
fazendo um gesto para as cadeiras e bancos que foram colocados
lá embaixo.
Os convidados atenderam de imediato. Os assentos estavam na
sombra, eles já deveriam estar ansiosos para se acomodar ali.
Assim que todos os presentes se sentaram, percebi que tínha-
mos exagerado, pois a plateia não era tão numerosa como o espe-
rado. Entretanto, as meninas chegaram, e Edmund também. Elas fi-
zeram bastante volume, espalhando-se de forma desorganizada, do
jeito que só as crianças sabem fazer, e preencheram as maiores la-
cunas.
– Bem. Então me parece que todos estão sentados – disse eu.
Mas minha vontade era gritar o contrário. Pois ele não estava aqui,
sem ele o dia não tinha sentido. Logo captei os olhos de Edmund ali
na frente. Não, não sem sentido. Apesar de tudo, era por causa de
Edmund que eu fazia aquilo.
– Peço que me desculpem por um momento, enquanto visto a
roupa de proteção. – Esbocei um sorriso. – Afinal, não sou nenhum
Wildman. – Todos, até os agricultores, deram risadas, altas e mui-
tas. E eu, que pensara ter oferecido uma piada aos poucos inicia-
dos, algo que separaria eles de nós… Mas não fazia mal. O que im-
portava agora era a colmeia, e eu sabia que nunca tinham visto na-
da igual.
Entrei depressa em casa e me troquei, tirando a roupa pesada
de lã e vestindo a roupa branca. O tecido fino parecia fresco na pe-
le, e era um alívio substituir a cartola preta pelo chapéu branco e le-
ve de apicultor, com o véu diáfano na frente do rosto.
Espiei pela janela. Estavam quietos nas cadeiras e nos bancos.
Agora. Eu precisava fazê-lo agora. Com ou sem ele. Para o inferno
com Rahm, claro que eu estaria muito bem sem sua presença pro-
fessoral de sabe-tudo!
Saí e fui descendo a trilha para as colmeias. Ela agora estava
mais larga por causa dos sulcos abertos pelas rodas da carroça ve-
lha e rangente de Conolly, e em alguns lugares havia buracos fun-
dos. Eu mesmo levara as colmeias até lá embaixo, pois Conolly não
se atrevia a chegar nem perto. E foi a duras penas que consegui
voltar com a geringonça ladeira acima.
Os rostos sorriram para mim, todos numa expectativa amigável.
Isso me fez sentir seguro.
E então me posicionei diante deles e fiz meu discurso. Finalmen-
te, eu compartilhava minha invenção com o mundo pela primeira
vez, finalmente, tinha a oportunidade de apresentar a “Colmeia Pa-
drão de Savage”.
•••
Depois, todos se aproximaram, apertando minha mão, um por um.
Fascinante, incrível, impressionante, os elogios choviam sobre mim,
não consegui distinguir quem dizia o quê, tudo se misturava. Mas o
principal eu percebi: Edmund estava ali, vendo tudo. O olhar alerta e
consciente, o corpo, excepcionalmente, nem inquieto nem letárgico,
apenas presente. Sua atenção estava voltada para mim, o tempo to-
do.
Ele viu tudo, todas as mãos, até a última mão que foi estendida
para mim.
Eu havia tirado a luva, e os dedos frios tocaram os meus. Um
choque percorreu o corpo todo.
– Parabéns, William Savage.
Ele sorriu, não uma ponta de um sorriso, mas um sorriso que se
prolongou, permaneceu no rosto, sim, que de fato pertencia a ele.
– Rahm.
Ele segurou minha mão e fez um gesto indicando as colmeias.
– Isso é outra coisa.
Eu mal consegui falar.
– Mas… Quando o senhor chegou?
– A tempo para pegar a parte importante.
– Eu… eu não o vi…
– Mas eu vi você, William. E, além do mais…
Ele passou a mão esquerda sobre a manga de minha roupa,
senti os pelos se eriçarem ali dentro num arrepio maravilhoso.
– … você sabe que não me atrevo a ficar perto das abelhas sem
estar devidamente paramentado. Por isso fiquei aqui, bem no fundo.
– E eu… pensei que não…
– Pois é. Mas o fato é que estou aqui.
Com suas duas mãos, ele segurou a minha. O calor delas fluiu
para mim, e foi bombeado pelo sangue até os mais ínfimos compo-
nentes do meu ser. Com o rabo do olho, vislumbrei Edmund. Ele es-
tava ali ainda, continuava olhando para nós, para mim, ainda estava
igualmente atento e alerta. Ele viu.
Tao

Passei o dia todo na biblioteca. Li livros, antigos ensaios e pesqui-


sas, assisti a filmes num velho projetor guardado no subsolo. Tinha
que ter certeza absoluta.
Muita coisa fazia parte do currículo da escola primária. Eu me
senti transportada às aulas demoradas de história natural, nas quais
a professora proferia sermões sobre nossa história num tom lúgubre
e monótono. Tão monótono que logo batizamos as aulas de História
do Sono. Éramos pequenos demais para entender a dimensão da-
quilo que se buscava transmitir. Quando a professora cravava em
nós seus olhos emoldurados por rugas, a gente se virava para a luz
do sol na janela e fantasiava sobre as formas das nuvens brancas
que passavam, ou conferia o relógio na parede para ver quanto tem-
po faltava para o próximo intervalo.
Agora reencontrei as informações que a professora tentara nos
passar naquela época. Algumas datas ainda estavam gravadas na
memória.
2007. Foi o ano em que o Colapso recebeu um nome. DCC –
Desordem do Colapso das Colônias.
No entanto, tinha começado muito antes. Achei um filme sobre o
desenvolvimento da apicultura no século passado. Depois da Se-
gunda Guerra, fora uma atividade próspera. Somente nos Estados
Unidos havia 5,9 milhões de colônias. Mas os números diminuíram,
tanto lá como no resto do mundo. Em 1988, o número de colmeias
havia caído pela metade. A morte das abelhas afetou muitos luga-
res, e já na década de 1980 atingiu a província de Sichuan. Mas só
quando se fez sentir nos Estados Unidos, e de forma tão drástica
como em 2006 e 2007, quando apicultores com milhares de colmei-
as assistiram ao desaparecimento em massa de suas abelhas no
decorrer de poucas semanas, só então o Colapso recebeu um no-
me. Talvez por ter acontecido nos Estados Unidos; naquela época
nada era realmente importante antes de acontecer nos Estados Uni-
dos. A morte em massa na China nem mereceu um diagnóstico glo-
bal. Assim eram as coisas naquela época. Depois tudo mudou.
Numerosos livros foram escritos sobre o DCC. Dei uma passada
de olhos neles, mas não encontrei respostas claras. Não existia con-
senso sobre a causa do Colapso, pois não havia uma causa única.
Havia muitas. Os pesticidas tóxicos foram o primeiro fator a ser es-
tudado. Na Europa, certos pesticidas chegaram a ser temporaria-
mente proibidos em 2013 e, aos poucos, no resto do mundo. Só os
Estados Unidos resistiram. Alguns cientistas achavam que os pesti-
cidas afetavam o sistema de navegação interno das abelhas, impe-
dindo-as de encontrar o caminho de volta à colmeia. As substâncias
tóxicas comprometiam o sistema nervoso de pequenos insetos, e
muitos estavam convencidos de que esta era, em grande parte, a
causa da morte das abelhas. Diziam que a proibição desses pestici-
das seguia o princípio de que é melhor prevenir do que remediar.
Entretanto, os resultados das pesquisas não foram suficientemente
conclusivos. As consequências da proibição dos pesticidas eram
graves demais. Safras inteiras foram dizimadas por pragas, com
subsequente escassez de alimentos. A agricultura moderna era invi-
ável sem pesticidas. E a proibição de seu uso acabou não tendo o
impacto esperado: as abelhas continuaram a desaparecer. Em
2014, foi constatado que a Europa havia perdido sete bilhões de
abelhas. De acordo com alguns, isso acontecia porque as substân-
cias tóxicas estavam no solo, as abelhas morriam porque continua-
vam expostas aos pesticidas. Mas poucos prestavam atenção. E de-
pois de um período experimental, a proibição foi revogada.
Os pesticidas não eram os únicos culpados. O ácaro Varroa Des-
tructor, um parasita minúsculo que atacava as abelhas, também era
uma causa. O ácaro grudava no corpo da abelha como uma grande
bola, sugava a hemolinfa e transmitia um vírus que com frequência
só era detectado muito tempo depois.
Além disso, havia as alterações climáticas. O clima do planeta já
vinha, aos poucos, mudando. Do ano 2000 em diante as transforma-
ções ganharam um ritmo cada vez mais rápido. Os verões secos e
quentes, sem flores e néctar, matavam as abelhas. Os invernos rigo-
rosos matavam as abelhas. E a chuva. As abelhas ficavam dentro
de casa na chuva, assim como os seres humanos. Os verões chu-
vosos significavam uma morte lenta.
As monoculturas eram um terceiro fator. Para as abelhas, o mun-
do se tornara um deserto verde. Quilômetros e mais quilômetros de
plantações idênticas, sem áreas silvestres. O que significava desen-
volvimento para o ser humano era um desastre para as abelhas.
E elas desapareceram.
Sem as abelhas, milhares de hectares de terra lavrada de repen-
te estavam em pousio. Campos floridos sem bagas, árvores sem
frutos. Subitamente, produtos agrícolas que antes faziam parte do
cardápio do dia a dia se tornaram escassos: maçãs, amêndoas, la-
ranjas, cebolas, brócolis, cenouras, mirtilos, nozes e grãos de café.
A produção de carne caiu no decorrer da década de 2030, já não
era possível produzir os tipos de ração mais adequados para o ga-
do. Da mesma forma que com a escassez de carne, as pessoas ti-
veram de se acostumar com a falta de leite e queijo, mais uma vez
porque os animais não tinham alimento suficiente. E a produção de
biocombustíveis – por exemplo, o óleo de girassol –, em que se in-
vestira pesadamente para substituir o petróleo, de repente estava
fora de cogitação, pois dependia da polinização. De novo, houve um
retorno às energias não renováveis, algo que, por sua vez, acelerou
o aquecimento global.
Ao mesmo tempo, o crescimento demográfico estagnou-se. Pri-
meiro parou; em seguida, a curva começou a cair. Pela primeira vez
na história da humanidade nossa população não estava aumentan-
do. A espécie estava em declínio.
A morte das abelhas afetou os continentes de maneiras diferen-
tes. A agricultura americana foi a primeira a entrar em crise. Ao con-
trário dos chineses, os americanos não conseguiam fazer a poliniza-
ção manual. Não tinham mão de obra. Não trabalhavam por salários
baixos o suficiente, nem em jornadas longas o suficiente, ou duro o
suficiente. A mão de obra importada tampouco solucionou o proble-
ma. Esses trabalhadores também precisavam ser alimentados e,
embora fossem mais esforçados e resistentes do que os america-
nos, não produziam muito mais do que o necessário para a própria
subsistência.
O Colapso nos Estados Unidos levou a uma crise alimentar glo-
bal. Ao mesmo tempo, as abelhas também morriam na Europa e na
Asia.
A Austrália foi o último país a ser atingido. Soube como isso
ocorreu por meio de um documentário de 2028. A Austrália era a es-
perança de todos, lá ainda não havia chegado o ácaro Varroa Des-
tructor, lá parecia que as abelhas não reagiam aos pesticidas da
mesma forma que nos outros lugares. Da Austrália vinham abelhas
saudáveis, e a apicultura acabou se tornando uma atividade econô-
mica significativa no país. A Austrália também passou a ocupar uma
posição de vanguarda na área de pesquisas relativas a abelhas, po-
linização e apicultura.
Num dia de primavera de 2027, porém, um apicultor de Avon Val-
ley percebeu que havia algo errado em uma de suas colmeias. Mark
Arkadieff administrava um apiário orgânico. Ele fazia tudo certo. Po-
linização em pequena escala, apenas poucas colmeias eram deslo-
cadas por vez, gentil e cuidadosamente, e somente para as fazen-
das que pudessem garantir que não usavam pesticidas. Ele tratava
bem das suas abelhas, trocava os quadros de fundo quando esta-
vam sujos, cuidava para que sempre tivessem alimento suficiente. O
próprio Arkadieff dizia que as abelhas eram donas dele, não o con-
trário. Ele era seu servo humilde, elas governavam sua vida, seu ci-
clo anual, o horário em que se levantava e se deitava. Ele tinha pe-
dido a esposa, Iris, em casamento enquanto cuidadosamente tenta-
vam conduzir para uma nova colmeia uma colônia prestes a enxa-
mear.
Não era justo que o apiário de Arkadieff, a Happy Bees Honey
Farm, tenha sido o primeiro lugar no continente australiano a ser
afetado pelo ácaro. Talvez fosse culpa da irmã. Ela morava na Cali-
fórnia e recentemente tinha passado duas semanas na fazenda. É
possível que tenha trazido algo contaminado na bagagem. Ou será
que foram as roupas de trabalho encomendadas da Coreia do Sul?
O fato é que nenhum deles percebeu nada quando abriram a emba-
lagem de papel pardo com aspecto inocente e tiraram os macacões
para usar no apiário. Ou seria algo no fertilizante que a fazenda vizi-
nha acabara de receber, grandes sacos produzidos na Noruega?
Mark não sabia, a mulher não sabia. A única coisa que sabiam
era que naquela primavera suas abelhas adoeceram, e eles não
perceberam até ser tarde demais.
Ele mostrou o apiário para a equipe de jornalistas enquanto con-
tava sua história. Não conseguiu esconder as lágrimas ao abrir as
colmeias vazias, com apenas algumas abelhas moribundas no fun-
do.
Agora, nenhum país estava protegido. O mundo se encontrava
diante do maior desafio da história da humanidade. Um último gran-
de esforço foi feito. O ácaro Varroa Destructor foi parcialmente com-
batido. Houve tentativas de diversificar as monoculturas em alguns
lugares. Foram inseridos canteiros de flores entre as plantações.
Proibiram-se as substâncias tóxicas mais uma vez. Mas em conse-
quência dessa proibição safras inteiras foram consumidas por pra-
gas.
Experimentos feitos por cientistas ingleses tinham resultado na
criação de plantas geneticamente modificadas que possuíam (E)-be-
ta-farneseno, feromônio próprio dos insetos. A substância era secre-
tada pelos insetos para indicar que há um perigo por perto. Essas
plantas geneticamente modificadas passaram a ser usadas em larga
escala. A China, desesperada pela escassez alimentar, foi o primei-
ro país a adotar esse novo padrão. Seus governantes sustentavam
que os feromônios não afetariam as abelhas. Os ambientalistas pro-
testaram ruidosamente, afirmando que as abelhas reagiriam aos fe-
romônios da mesma forma que os insetos-praga. Mas não foram ou-
vidos. Alegava-se que era uma situação de ganho mútuo. Os seres
humanos poderiam continuar com sua agricultura industrial – outra
coisa seria inimaginável – e as abelhas estariam livres das substân-
cias neurotóxicas dos pesticidas.
Assim, os campos se encheram de plantas geneticamente modi-
ficadas. E os resultados foram bons. Tão bons que o mundo inteiro
apostou nisso. E as plantas geneticamente modificadas se espalha-
ram em ritmo frenético. Tomaram conta de tudo. Mas a mortandade
das abelhas não só continuou como se agravou. Em 2029, a China
tinha perdido cem bilhões de abelhas.
Nunca se pôde constatar se as abelhas de fato reagiam aos fero-
mônios ou não. De qualquer forma, era tarde demais. As plantas
cresciam descontroladamente. Em cada beira de estrada havia plan-
tas que afugentavam os insetos.
O mundo parou.
Na biblioteca encontrei entrevistas com apicultores de todas as
partes do mundo. A resignação era generalizada. Eles tinham se tor-
nado os porta-vozes e representantes da crise. Nas entrevistas mais
antigas, alguns estavam furiosos, jurando que continuariam a lutar,
mas, conforme as datas avançavam, mais evidente era a resigna-
ção. Se eu tivesse visto esses filmes antes, não me deixaria impres-
sionar. Eram depoimentos de outros tempos. Homens cansados,
com roupas de trabalho gastas, feições rudes, pele queimada pelo
sol, uma fala banal; eles não tinham nada a ver comigo. Mas nesse
momento cada pessoa se destacou para mim, cada desastre indivi-
dual. Cada uma delas deixou marcas.
Ge orge

Um dia ele simplesmente apareceu. Talvez Emma tivesse telefona-


do para ele. Ouvi sua voz quando saí do celeiro. Lá dentro, com os
protetores de ouvido, eu não escutava nada, nem se havia carros
chegando ou saindo, nem as vozes no pátio, nem Emma me cha-
mando.
A voz de um homem adulto. Primeiro, não entendi quem era. De-
pois percebi que era ele. Afinal, sua voz agora era assim.
Atravessei o pátio com pressa. Ele tinha chegado! Emma devia
ter contado a ele como as coisas estavam. Parece que se falavam
toda hora, e ele tinha vindo para ajudar! Com ele aqui, tudo seria
mais fácil. Com ele, eu aguentaria qualquer coisa. Me dedicaria à
carpintaria vinte horas por dia. Trabalharia mais duro do que nunca.
Mas aí escutei o que ele estava dizendo. Falava sobre seu em-
prego de verão. Entusiasmado. Parei, fiquei ali, não me atrevi a en-
trar.
– Era sobre tomates – disse ele. – Mas de certa forma tudo fica
interessante quando você aprende mais sobre o assunto. Eu nunca
tinha visto tomates tão grandes. O fotógrafo também não. E o horti-
cultor que ganhou o concurso estava muito orgulhoso. A matéria foi
publicada na primeira página, imagine só! A primeira matéria que
escrevi foi direto para a primeira página!
Pus a mão na maçaneta.
Emma dava risada e fazia elogios efusivos, como se ele fosse
um menino de cinco anos que acabara de aprender a andar de bici-
cleta.
Apertei a maçaneta e abri a porta. Ficaram calados imediata-
mente.
– Olá – falei. – Não sabia que você vinha.
– Aí está você – disse Emma para mim.
– Quis surpreender minha mãe – falou Tom.
– Ele fez toda essa longa viagem mesmo tendo que voltar no do-
mingo – disse Emma.
– Mas para quê? – perguntei.
– Afinal é o aniversário da mamãe – disse Tom.
Eu tinha me esquecido disso. Fiz uma contagem rápida e che-
guei aliviado à conclusão de que era só amanhã.
– E aí eu queria ver como está indo – disse ele baixinho.
– Para quê?
– George – disse Emma com voz ríspida.
– Aqui está tudo bem – falei para Tom. – Mas foi bom você vir
para o aniversário.
•••
No dia seguinte comemoramos com peixe, eu não tinha comido pei-
xe desde sua última vinda aqui. Tom contou histórias do jornal local
onde trabalhava. Ele não o disse diretamente, mas pelo que entendi
recebia muitos elogios. O editor achava que ele “levava jeito para a
coisa”, o que quer que essa “coisa” de fato fosse. Emma dava risada
o tempo todo, eu quase tinha esquecido como era o som daquela ri-
sada.
Afobado, eu tinha ido à cidade comprar uma meia-calça cara e
um creme de mão para ela.
– Ah. Eu não precisava de nada este ano – disse ela quando
abriu o presente.
– É claro que precisava ganhar um presente – falei. – Além do
mais, são coisas úteis, coisas que você vai usar.
Ela fez que sim, murmurou obrigada, mas vi que seus olhos pas-
saram pela etiqueta meio raspada do preço. Devia estar pensando
em quanto eu havia gastado do dinheiro que a gente não tinha.
Tom deu-lhe um livro grosso com a imagem de uma fazenda na
capa. Ela gostava de livros que levavam muito tempo para ler.
– Comprado com meu primeiro salário – disse ele sorrindo.
Por esse presente ela agradeceu profusa e sorridentemente. Aí,
de repente, tudo ficou em silêncio. Tom pegou um pedaço de peixe.
Mastigou devagar, percebi seus olhos em mim.
– Me conte então, pai – disse ele do nada.
Será que ele quis dizer sobre as abelhas? Provavelmente, só
queria ser educado.
– Bem. Escuta só. Era uma vez… – disse eu.
– George – disse Emma.
Tom continuou olhando para mim, o mesmo olhar aberto.
– Eu e a mamãe conversamos um pouco, mas ela disse que vo-
cê é que tem que explicar direito, você que é o especialista.
Ele fez perguntas como um adulto. Como se ele fosse o adulto.
Eu me retorci, uma sensação de desconforto no traseiro, a cadeira
apertava a região lombar.
– Nossa, como você ficou interessado de repente – falei.
Ele deixou os talheres na mesa, enxugou a boca meticulosamen-
te com o guardanapo.
– Andei lendo bastante sobre o CCD ultimamente. Mas tudo não
passa de hipóteses. Pensei que talvez você, que lida com abelhas
todos os dias, tivesse algumas outras ideias sobre o porquê…
– O jornalista veio nos visitar, pelo visto. Você vai escrever uma
matéria sobre isso agora?
Ele piscou, fez uma careta. Aquilo pegou nele.
– Não, pai. Não. Não é por isso.
Então ficou calado.
De repente não aguentei mais o cheiro de peixe, ele irritava mi-
nhas narinas, grudava no cabelo e na roupa. Levantei-me brusca-
mente.
– Temos outra coisa?
– Tem mais peixe – disse Emma, pondo de lado o livro que segu-
rava nas mãos até agora.
Fui em direção à geladeira, não olhei para nenhum dos dois.
– Quis dizer outra coisa além de peixe.
– Vai ter sobremesa. – A mesma alegria e leveza na voz.
– Sobremesa não mata minha fome.
Eu me virei, cravei os olhos nela, depois olhei de relance para
Tom. Os dois olharam para mim, continuaram sentados à mesa, per-
to um do outro, só olhando para mim, de um jeito meio meigo, mas
com certeza achavam que eu era um idiota.
Tom se virou para Emma.
– Você não precisava ter feito peixe por minha causa. Afinal é
seu aniversário e tudo. Você deveria ter feito uma coisa de que gos-
ta.
– Eu por mim gosto bastante de peixe – disse ela. Parecia estar
lendo alguma coisa de um livro em voz alta.
– Amanhã vocês podem muito bem servir o que costumam servir
para o jantar – continuou Tom. Ainda com aquela educação desgra-
çada. Isso daqui não parecia acabar nunca.
– De qualquer jeito, você não está indo embora amanhã? – per-
guntei.
– Na verdade, sim – disse Tom em voz baixa.
– Mas dá tempo para ele jantar cedo – disse Emma. – Não é,
Tom?
– Claro – respondeu ele.
– Cedo quer dizer o quê? – perguntei. – Queria trabalhar umas
boas horas antes de comer. – Minha voz soava grossa e áspera,
contrastando com o arrulho meigo dela.
– Lá pelas duas da tarde, não foi isso que a gente tinha falado? –
disse Emma a Tom.
– Talvez eu consiga ficar um pouco mais – disse Tom.
Ignorei-o.
– Umas duas da tarde? É o que chamo de almoço – disse eu pa-
ra Emma.
– Não se estresse por minha causa – disse Tom.
– Não é nenhum estresse preparar um jantar simples – arrulhou
Emma.
– Temos muito o que fazer por aqui agora, como você deve ter
percebido – falei. Pelo menos um de nós poderia ser franco.
– Eu me disponho a ajudar enquanto estou aqui – disse Tom de-
pressa.
– Algumas horinhas de músculos de universitário não vão real-
mente dar conta do recado.
Emma nem me respondeu, continuou com aquela fofura na voz
falando com Tom.
– Seria ótimo se você pudesse ajudar o papai, sim.
– ÓTIMO – repeti.
Ninguém respondeu nada. Felizmente. Eu ia vomitar se escutas-
se mais vozes meigas agora.
Tom pegou os talheres outra vez, cutucou a comida. Usou o gar-
fo para tirar algumas espinhas de peixe e uma pele cinza brilhante.
– Gostaria de poder ficar um pouco mais.
Gostaria. Como se fosse alguma coisa que já acontecera. Algu-
ma coisa que ele não podia mudar.
– Não seria o caso de você ligar e perguntar se pode chegar
mais tarde? – sugeriu Emma.
– Fui um de 38 candidatos para aquele emprego – disse Tom
baixinho. Dei passos largos em direção à porta. Não aguentava
mais escutar as desculpas dele.
Eu tinha chegado ao meio do pátio quando ele me alcançou.
– Pai… Espere.
Eu não me virei, continuei andando em direção ao celeiro.
– Preciso trabalhar.
– Posso ir junto?
– Você precisa se inteirar de muita coisa. Não faz sentido para
um tempo tão curto.
– Mas eu quero. Quero mesmo.
Nossa. Essa insistência era nova. As palavras se insinuaram e
desataram um nó desagradável na minha garganta. Será que ele
estava falando sério? Eu precisava me virar e olhar para ele.
– Vai ser uma trapalhada só – falei.
– Pai. Não é porque sou jornalista. É porque… Eu me importo.
De verdade.
Ele olhou para mim. Olhos grandes, bem abertos.
– É meu apiário também.
Então ele se calou. Ficou parado ali. Parecia não querer dizer
mais. Só me perturbar com o olhar. Não aguentei aquele olhar,
aqueles olhos bonitos, meu filho. Criança e adulto ao mesmo tempo.
Ele estava falando sério.
– Tudo bem. – Fiz que sim, um incômodo na voz. – Está tudo
bem. – Pigarreei um pouco para limpar a voz, mas parece que não
tinha mais a dizer.
Aí entramos juntos no celeiro.
William

A carta chegou com a carruagem da tarde. Eu ainda estava flutuan-


do depois do dia de ontem, que tinha transcorrido tal como eu dese-
jara. Sim, talvez melhor ainda, minha vida nova havia começado ali.
Aquele instante ainda estava preservado dentro de mim, o momento
entre Edmund, Rahm e eu, o instante em que tudo era exatamente
como deveria ser, em que a Ideia sobre o momento e o próprio Mo-
mento formavam uma unidade maior.
Comecei a tremer ao ver o carimbo postal de Karlsmarkt. Era de-
le, um reconhecimento, não poderia ser outra coisa. Mandei minha
carta semanas atrás, sua resposta poderia ter chegado em qualquer
dia, mas imagine, ela veio exatamente agora, exatamente hoje. Tre-
mi. Era demais. Teria me tornado um Ícaro? Minhas asas poderiam
pegar fogo? Não, não se tratava de presunção ou soberba, isso era
o resultado de trabalho duro, era merecido.
Levei a carta para meu quarto, onde me acomodei na cadeira, e,
com a mesma reverência com que encontraria o próprio São Pedro,
quebrei o selo.
•••

“Karlsmarkt, 29 de agosto de 1852


Prezado Sr. William Savage,
Recebi sua carta com grande entusiasmo. É um trabalho
muito interessante o que o senhor tem feito. Imagino que os
apicultores de seu distrito poderão beneficiar-se muito de suas
colmeias.
Suponho, no entanto, que algumas mudanças tenham ocor-
rido desde que o senhor me escreveu, e que agora já esteja ci-
ente da obra do pastor Lorenzo Langstroth. Talvez até o pedido
de patente do senhor já tenha sido rejeitado? Perdoe-me, por-
tanto, se eu apresentar informações das quais o senhor já te-
nha conhecimento.
Ao que me parece, o senhor teve exatamente as mesmas
ideias de um apicultor do outro lado do oceano Atlântico. Devo
dizer que li a descrição de sua colmeia com surpresa, já que é
muito parecida com a do pastor. Eu mesmo tive o prazer de
manter correspondência com o pastor Langstroth durante o últi-
mo ano e sei por certo que ele agora recebeu a patente dos
quadros, tais como são descritos em sua carta. Ele também fez
os cálculos no intuito de chegar à medida de ouro para a distân-
cia entre a parede da colmeia e os quadros, bem como a dis-
tância entre cada um dos quadros; no entanto, o resultado dele
foi 9,5 milímetros.
Espero que o senhor continue sua pesquisa extremamente
frutífera, pois estou convencido de que, quando se trata do co-
nhecimento sobre a vida das abelhas, ainda estamos apenas
nos estágios iniciais. Ficaria feliz em receber mais notícias suas
e espero que possamos iniciar uma correspondência entre nós,
que somos pares nesta área.
Atenciosamente,
Johann Dzierzon”

•••
Segurei a carta com as duas mãos, mas mesmo assim ela tremia,
as letras balançavam, mal eram legíveis. Uma risada tilintava nos
ouvidos.
Pares nesta área. Repeti as palavras para mim mesmo, mas não
faziam sentido.
Era tarde demais. Eu não era par de ninguém.
Eu deveria ser colocado numa caixa com tampa, onde poderia
ser observado e controlado de cima. Agora eu fora domado, pela
própria vida.
Soltei a carta e me levantei. Eu precisava derrubar, destruir, des-
pedaçar alguma coisa. Qualquer coisa para estancar o furacão den-
tro de mim. Abruptamente, as mãos dispararam, arrastando os li-
vros, o tinteiro e os desenhos que estavam sobre a mesa. Tudo caiu
no chão. A tinta saiu num jorro, transformando-se numa pupila in-
sondável sobre as tábuas de madeira. Ela ali permaneceria para
sempre como um lembrete ocular de meu fracasso. Como se isso
fosse necessário. Todo o meu ser, meu corpo disforme e pachorren-
to, era um lembrete.
A estante de livros teve o mesmo destino que o tinteiro, depois
foi a vez da cadeira de trabalho. Rasguei as ilustrações na parede.
Os monstros marinhos de Swammerdam foram feitos em pedaços,
nunca mais fixaria os olhos neles, nunca mais enxergaria Deus nos
menores componentes da Criação.
Em seguida, o papel de parede. O desgraçado papel de parede
amarelo. Arranquei-o, uma tira depois da outra, até só restarem far-
rapos e grandes feridas na parede crua de tijolos que estava por
trás.
E então, por fim, eu estava com eles nas mãos, os desenhos da
colmeia. Inúteis. Deveriam ser destruídos para sempre.
Os músculos das mãos ficaram tensos. Eu queria amassá-los,
rasgá-los, mas não consegui.
Não consegui.
Pois não era eu quem poderia fazer isso. Não eram meus, não
caberia a mim destruí-los, mas a ele. Tudo era sua culpa, e, portan-
to, também sua responsabilidade.
Saí correndo no corredor.
– Edmund!
Não bati à porta. Entrei feito um furacão, ele não tinha se dado
ao trabalho de trancá-la.
Ele pulou da cama. Estava com o cabelo em pé, os olhos injeta-
dos de sangue. Fedia a álcool. Afastei-me do fedor quase sem pen-
sar, como sem dúvida eu já fizera antes, tentando não ver, tentando
me enganar. Fingindo que aquilo não existia.
Não. Hoje não, e nunca mais. Ele seria castigado. Espancado
com a fivela do cinto sobre as costas até a pele ficar cheia de ver-
gões e o sangue escorrer.
Mas primeiro isso.
– Olhe aqui! – Joguei os desenhos sobre sua cama. – Aqui es-
tão!
– O quê?
– Foi você quem me instigou. Aqui estão! O que devo fazer com
eles?
– Pai… Eu estava dormindo.
– Não valem nada. Você compreende isso?
Seu olhar desembaçou-se, ele se recompôs. Pegou um deles.
– O que é isso?
– Não valem o papel em que foram desenhados! São inúteis!
Ele passou os olhos pelos traços de tinta sem sentido.
– Ah. A colmeia. É a colmeia – disse ele em voz baixa.
Respirei com dificuldade, tentei acalmar-me.
– São seus agora. Os desenhos. Foi você quem quis que eu co-
meçasse com isso. Você pode fazer o que quiser com eles.
– Quis que você começasse… O que você quer dizer?
– Você deu início a isso. Agora pode destruí-los. Queimá-los.
Rasgá-los, fazer o que quiser.
Ele se levantou devagar e tomou um gole de água de um copo,
com a mão surpreendentemente firme.
– Não entendo o que você quer dizer, pai.
– É sua obra. Fiz isso aí por você.
– Mas por quê? – Ele fixou os olhos em mim. Não consegui lem-
brar a última vez em que havíamos nos olhado. Agora tinha os olhos
apertados. Ele parecia mais velho do que seus dezesseis anos.
– O livro! – gritei.
– Que livro? Do que você está falando?
– O livro de Huber. François Huber! O apicultor cego!
– Pai. Não estou entendendo. – Ele olhou para mim como se eu
fosse louco, como se pertencesse ao manicômio.
Encolhi-me. Ele nem se lembrava disso. Aquele momento que ti-
vera um significado tão grande para mim.
– Aquele que você deixou comigo… depois daquele domingo…
quando todas estavam na igreja.
De repente pareceu que ele começava a entender.
– Aquele dia, sim. Na primavera…
Fiz que sim.
– É algo que nunca vou esquecer. Que você, por livre e espontâ-
nea vontade, foi me ver naquele dia.
Seu olhar desviou-se, ele mexeu as mãos como se tentasse
agarrar alguma coisa, mas não achou nada além de grãos de pó no
ar.
– Foi a mãe que me pediu para ir – disse ele enfim. – Ela pensou
que poderia ajudar.
Thilda, ele era dela, ainda e para sempre.
Ge orge

Ficamos construindo colmeias o resto do dia. Até escurecer. Ele tra-


balhou duro. Não com aquela má vontade de antes. Agora estava
disposto. Não parava de fazer perguntas, aprendia depressa, era
meticuloso e ligeiro.
O som do martelo contra o prego, ritmo. A serra sibilando, músi-
ca. E às vezes o silêncio. O vento, os pássaros lá fora.
O sol batia no teto do celeiro, o suor pingava da gente. Ele pôs a
cabeça debaixo da torneira para se refrescar, sacudiu-a como um
cão e deu risada. Mil gotas de água fria me atingiram, me refresca-
ram, e claro que não pude deixar de rir de volta.
O domingo passou do mesmo jeito. Trabalhamos, falamos sobre
pouca coisa além das colmeias. Parecia que ele estava se divertin-
do. Não o via assim desde a época de garotinho. Ele comeu bem.
Até pegou um pedaço de presunto na hora do almoço.
•••
Olhei para o relógio. Estávamos do lado de fora, tomando um cafezi-
nho. Eram quase duas horas da tarde. O ônibus sairia dali a pouco.
Não falei nada. Talvez ele tivesse esquecido. Talvez ele tivesse mu-
dado de opinião.
Ele também verificou a hora.
Tirou o relógio, olhou. E enfiou o relógio no bolso.
– Pai. Como foi? Na primeira?
Ele olhou para mim, de repente sua grande seriedade estava de
volta.
– O que você quer dizer?
– Na primeira colmeia que você abriu?
– O que você acha? Um horror total.
– Mas… O que foi diferente? Por que agora é diferente?
Tomei um gole de café, ele ficou dançando na boca, estava difícil
engolir.
– Ah, não sei… Elas simplesmente somem. Só algumas poucas
sobram no fundo. É horrível. Apenas a rainha e as larvas. Totalmen-
te sozinhas.
Eu me virei para o lado, não quis que ele visse meus olhos mo-
lhados.
– E acontece tão depressa, um dia elas estão saudáveis, no dia
seguinte, simplesmente sumidas.
– É diferente da mortandade invernal – observou ele.
Fiz que sim.
– Não se compara. Naquele caso a gente entende a causa. Ou é
o clima, ou é a falta de alimento, ou os dois.
Ele ficou calado, segurou a xícara com as duas mãos, refletiu.
– Mas você vai ter mortandade invernal de novo – disse ele en-
fim.
Fiz que sim.
– Obviamente. Às vezes, o inverno é rigoroso.
– E vão ficar cada vez mais rigorosos – continuou ele. – Vamos
ter ventanias, tempestades.
Eu deveria dizer alguma coisa, contribuir, mas não sabia com
quê.
– E a mortandade de verão – continuou ele. – Você vai ter mais
mortandade de verão também. Porque os verões estão ficando mais
úmidos, mais instáveis.
– Pode ser – falei. – Mas a gente não sabe direito.
Ele não olhou para mim, só continuou, a voz ficou mais alta.
– Você vai ter mais colapsos também, pai. Vai acontecer de no-
vo. – Ele falava em voz alta agora. – As abelhas estão morrendo,
pai. Nós somos os únicos que podemos fazer algo em relação a is-
so.
Eu me virei para ele. Nunca ouvira ele falar assim. Tentei dar um
sorriso, mas só saiu uma careta torta.
– Nós? Você e eu?
Ele não sorriu, mas também não parecia bravo. Apenas total-
mente sério.
– Os seres humanos. Temos que mudar. Foi sobre isso que falei
no Maine, entende? Não podemos participar do sistema. Temos que
mudar antes de ser tarde demais.
Engoli em seco. De onde vinha isso daí? O envolvimento? Ele
nunca tinha sido assim antes. De repente, fiquei orgulhoso, senti
uma necessidade de olhar para ele. Mas ele estava mostrando um
súbito interesse pela xícara de café.
– Vamos retomar o trabalho? – perguntou em voz baixa.
Fiz que sim.
•••
O crepúsculo chegou. A noite caiu.
Estávamos sentados na varanda, todos os três. O céu estava
claro.
– Você se lembra da serpente? – perguntei.
– E das abelhas – acrescentou Tom.
– A serpente? – perguntou Emma.
Tom e eu trocamos olhares e sorrimos.
•••
No dia seguinte, dormi até tarde. Acordei com um sorriso estampado
no rosto. Pronto para novas colmeias.
Emma estava sentada à mesa quando entrei na cozinha. Ela ti-
nha começado o livro grosso.
Um único prato estava na frente dela. Olhei em volta.
– Onde ele está?
Ela largou o livro. Puxou os cantos da boca para baixo formando
um bico triste.
– Ah, George.
– O quê?
– Tom foi embora cedo. Antes do café da manhã.
– Sem falar tchau?
– Ele disse que não queria te acordar.
– Mas achei…
– É. Eu sei. – Ela pegou o livro outra vez, como que se agarran-
do a ele, mas não disse mais nada.
Também não aguentei dizer nada. Virei a cabeça para o lado.
A sensação era que Deus havia tirado um sarro de mim. Tinha
pendurado uma escada para o céu e me deixado subir para dar uma
olhada, ver anjos em prados de algodão-doce, antes de me empur-
rar bruscamente de uma nuvem e me fazer cair na Terra de novo.
Na Terra num dia de chuva. Cinzento. Lamacento. Pobre.
Só que o sol continuava brilhando com a mesma obstinação. Es-
caldando o planeta até a morte.
Eu tinha perdido as abelhas.
E, pelo visto, tinha perdido Tom também. Faz tempo. Só que ti-
nha sido burro demais para perceber isso.
Tao

– Senhora? Estamos fechando agora.


A vigia estava na minha frente chacoalhando um pesado molho
de chaves na mão.
– Volte amanhã, será bem-vinda. E, se quiser, leve algum livro
emprestado.
Eu me endireitei.
– Obrigada.
Diante de mim, havia um longo artigo sobre a morte dos abe-
lhões. Os abelhões e as abelhas silvestres desapareceram ao mes-
mo tempo que as abelhas melíferas criadas em colmeias, mas sua
morte não foi tão visível ou alarmante. O número de espécies ficou
cada vez menor, sem que alguém de fato soasse o alarme. As abe-
lhas silvestres eram responsáveis por dois terços da polinização no
mundo. Nos Estados Unidos, eram as abelhas melíferas que faziam
a maior parte do trabalho, mas, nos outros continentes, as espécies
silvestres eram definitivamente as mais importantes. Era difícil de-
tectar e medir a constante redução das espécies e populações des-
sas abelhas, mas elas também estavam sendo afetadas por ácaros,
vírus e pelo clima instável. Além das substâncias tóxicas. Elas esta-
vam no solo em quantidades suficientes para envenenar as futuras
gerações, tanto de abelhas quanto de seres humanos.
Intensificou-se a pesquisa sobre a domesticação de insetos que
pudessem ser apropriados para uma polinização eficiente. Os pri-
meiros a serem testados foram as abelhas silvestres, mas foi em
vão. Em seguida, houve tentativas de criação de diversos tipos de
moscas polinizadoras, como Ceriana conopsoides, Chysoroxum oc-
tomaulatum e Cheilosia reniformis, mas sem resultados. Ao mesmo
tempo, as mudanças climáticas transformaram o mundo num lugar
mais inóspito. A elevação do nível do mar e as condições meteoroló-
gicas extremas levaram multidões a migrar, e a escassez alimentar
tornou-se aguda. Enquanto as pessoas antigamente iniciavam guer-
ras por poder, agora se travavam guerras por comida.
Esse artigo também parava no ano de 2045. Cem anos depois
do fim da Segunda Guerra, a Terra não era mais – como o homem
moderno a tinha conhecido – um lugar que poderia ser povoado por
bilhões de pessoas. Em 2045, não existiam mais abelhas no plane-
ta.
Fui até as prateleiras onde tinha encontrado muitos dos livros
mais recentes sobre o Colapso, com a intenção de colocar alguns
deles de volta. Estava prestes a inserir um dos livros na estante
quando notei uma lombada verde ali perto. Não era particularmente
grosso ou alto, não se tratava de um livro grande, mas a cor verde
atraiu meu olhar. Em ideogramas amarelos, o título: O apicultor ce-
go.
Peguei no livro, quis retirá-lo da estante. Mas o livro resistiu, o
plástico da capa tinha grudado nos livros vizinhos. Ele soltou um pe-
queno suspiro quando o separei dos demais.
Abri-o. A capa estava ressequida, mas as folhas cediam facil-
mente ao manuseio, me dando as boas-vindas. Tinha lido esse livro
na modesta biblioteca da escola, mas daquela vez se tratara de uma
impressão surrada, uma cópia. Agora eu tinha um exemplar virgem
em minhas mãos. Dei uma olhada na folha de rosto: 2037. Primeira
edição.
Depois passei para o primeiro capítulo, e ali encontrei as ima-
gens outra vez. A rainha e as crias, que não passavam de larvas em
alvéolos, e todo o mel dourado de que se cercavam. Abelhas api-
nhadas num quadro dentro da colmeia, todas iguais, impossível dis-
tinguir uma da outra. Corpos listrados, olhos negros, asas iridescen-
tes que brilhavam.
Continuei virando as páginas. Cheguei às passagens sobre o co-
nhecimento, as mesmas frases que eu tinha lido quando criança, e
que agora me impressionaram ainda mais: “A fim de viver na nature-
za, com a natureza, precisamos nos distanciar de nossa própria na-
tureza… Educar significa desafiar a nós mesmos, desafiar a nature-
za, os instintos…”
Passos me interromperam, a vigia vinha em minha direção. Ela
não disse nada, mas chacoalhou as chaves de novo. Dessa vez, os-
tensivamente.
Fiz um gesto rápido de assentimento para mostrar que estava
saindo.
– Gostaria de levar esse emprestado. – Mostrei o livro.
Ela encolheu os ombros.
– Fique à vontade.
•••
Deixei o livro sobre a cama junto com uma pilha de outros. Eu pega-
ra emprestado tantos quanto fui capaz de carregar. Depois eu conti-
nuaria a leitura. Só precisava de um banho.
Ainda em pé, tirei a roupa, bem no meio do quarto. Tirei tudo de
uma vez, as meias ficaram presas nas pernas das calças. A roupa
ficou amontoada no chão.
Tomei banho até acabar a água quente. Lavei o cabelo três ve-
zes, esfreguei o couro cabeludo com as unhas para tirar o pó das
ruas da cidade morta. Depois me enxuguei por bastante tempo, o
banheiro estava embaçado e a umidade persistia na pele. No fim es-
covei os dentes longamente, senti como a sujeira e as bactérias de-
sapareciam, me enrolei na toalha e voltei para o quarto.
A primeira coisa que vi foi que minhas roupas tinham sido arru-
madas. O chão estava vazio. Eu me virei para a cama. Uma mulher
estava sentada ali. Ela era mais nova do que eu. A pele lisa, nada
de sujeira debaixo das unhas. As roupas eram limpas e impecáveis,
alinhadas, como um uniforme. Essa era uma mulher que certamente
não trabalhava ao ar livre entre as árvores. Fazia algo muito diferen-
te.
Na mão ela segurava um dos livros, não consegui ver qual.
Ela levantou a cabeça e olhou para mim, séria, impassível. Não
fui capaz de dizer nada, o cérebro estava trabalhando intensamente
para fazer as coisas se encaixarem. Será que eu deveria conhecer
essa mulher?
Ela se levantou calmamente, pôs o livro de lado, e então me es-
tendeu a pilha de roupa, que, a essa altura, estava cuidadosamente
dobrada.
– Seria bom você se vestir.
Fiquei parada. Ela se comportou como se sua presença ali fosse
natural. E talvez fosse. Fitei seu rosto. Tentei extrair alguma recorda-
ção. Mas nada veio à tona. Percebi que a toalha de banho estava
prestes a se soltar, a cair, me deixando nua, e, se isso fosse possí-
vel, ainda mais vulnerável. Puxei a toalha para cima. Apertei os bra-
ços para segurá-la, me sentindo desajeitada e exposta.
– Como você entrou? – perguntei, me surpreendendo ao perce-
ber que a voz de fato saiu.
– Com uma chave emprestada. – Ela o disse com um pequeno
sorriso para o nada, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
– O que você quer? Quem é você? – balbuciei.
– Você precisa se vestir e me acompanhar.
Não foi uma resposta, foi uma ordem.
– Por quê? Quem é você?
– Olhe aqui. – Mais uma vez ela me estendeu a pilha de roupa.
– Você quer dinheiro? Só tenho um pouco. – Fui até a gaveta da
mesa de cabeceira, onde eu ainda tinha algumas moedas, me virei
e as ofereci a ela.
– Fui enviada pela Comissão – disse ela. – Você deve me acom-
panhar.
William

Os desenhos estavam no meu colo. Eu me sentara num banco do


jardim, a certa distância das colmeias, próximo o suficiente para ou-
vir e vê-las bem, mas afastado o suficiente para não ser picado. Eu
estava imóvel como um animal a farejar uma presa que logo seria
atacada.
Mas o ataque já havia terminado. Agora eu era uma carniça.
A abelha morre quando as asas não servem mais, tornam-se
desgastadas, usadas em demasia, assim como as velas do navio
fantasma. Ela morre no meio do salto, no momento em que vai alçar
voo, com uma carga pesada que talvez tenha sido mais pesada do
que de costume, quando está quase estourando de néctar e pólen,
e dessa vez chegou ao seu limite. As asas não aguentam mais. Ela
nunca retorna à colmeia, mas despenca no chão, com todo o seu
fardo. Se tivesse emoções humanas, estaria feliz nesse momento,
pois entraria pelas portas do céu sabendo ter sido fiel à ideia de si
mesma, da Abelha, assim como Platão a teria formulado. O exauri-
mento das asas, sim, todos os aspectos de sua morte são o sinal
claro de que ela fez o que lhe foi dado fazer na Terra. Realizou uma
obra imensa, levando em consideração seu corpo minúsculo.
Eu nunca teria uma morte assim. Não havia nenhum sinal claro
de que eu tinha feito na Terra o que me fora destinado fazer. Eu não
realizara nada. Ficaria velho, meu corpo incharia e depois esmore-
ceria sem ter deixado marcas, e nada sobraria, além, possivelmen-
te, de uma empada salgada que deixava uma camada de gordura
no céu da boca. Nada além da swammerpada.
Então não faria diferença se o fim viesse já. O cogumelo ainda
estava lá, na gaveta de cima, no canto esquerdo da loja, devida-
mente trancado com uma chave à qual eu tinha acesso exclusivo.
Seu efeito era rápido, em poucas horas eu ficaria mole e letárgico,
em seguida, inconsciente. Um médico diagnosticaria o caso como
falência múltipla dos órgãos, ninguém saberia que fora uma morte
autoinfligida. E eu estaria livre.
Mas não consegui, pois era incapaz de me mexer do banco.
Também não consegui destruir os desenhos, as mãos recusaram-se
a fazer aquele movimento simples, o impulso muscular tinha parado
na ponta do dedo, paralisando-me.
•••
Não sei por quanto tempo fiquei sozinho.
Ela veio sem eu perceber. De repente, estava sentada no banco
a meu lado. Silenciosa, nem mesmo sua respiração era audível. Os
olhos muito próximos, meus próprios olhos, estavam voltados para
as abelhas que zuniam a nossa frente, ou talvez para o nada.
Na mão, ela segurava a carta de Dzierzon. Deve tê-la achado no
caos do quarto, achado e lido, assim como ela antes também procu-
rara e encontrara coisas entre meus pertences. Pois havia sido ela o
tempo todo, a loja arrumada, o livro sobre a mesa de estudo. Eu
simplesmente não percebera isso, não queria percebê-lo.
A presença de outro ser humano fez a paralisia soltar suas gar-
ras de mim. Ou talvez ela soltasse as garras porque se tratava justa-
mente de Charlotte. Agora ela era a única coisa que eu tinha.
Passei os desenhos para o colo dela.
– Destrua-os para mim – disse eu em voz baixa. – Não consigo.
Ela não reagiu. Tentei olhar nos olhos dela, mas ela os desviou.
– Ajude-me – implorei.
Ela pôs as mãos sobre os desenhos, ficou calada por um breve
momento.
– Não – disse ela então.
– Mas são lixo, você não entende? – Minha voz falhou, mas não
a abalou.
Só sacudiu a cabeça lentamente.
– É prematuro, pai, talvez ainda possam ter algum valor. Respirei
fundo, consegui falar com calma, tentei soar racional.
– Eles não têm utilidade. Eu realmente só quero que você os
destrua, pois eu mesmo não consigo. Leve-os embora, para um lu-
gar onde eu não os possa ver e não possa detê-la… Queime-os!
Uma grande fogueira, chamas subindo até o céu.
Desejei que as palavras lhe dessem um pontapé, fizessem com
que ela se levantasse e obedecesse minha súplica, da mesma for-
ma que normalmente acatava todos os meus pedidos. Mas ela ape-
nas continuou sentada, folheando os papéis, passando um dedo de
leve sobre os traços que eu tinha me esforçado tanto para deixar re-
tos, os detalhes com os quais eu tinha lutado tanto.
– Não, pai. Não.
– Mas é só isso que quero! – Senti um aperto repentino no peito
outra vez. Eu tinha a mão de meu próprio pai no pescoço, sua risa-
da desdenhosa nos ouvidos, terra nos joelhos e um cinto que me
aguardava. Ela era a adulta, eu era a criança, mais uma vez com
dez anos de idade, com a vergonha pesada sobre os ombros, pois
mais uma vez eu fracassara. – Queime-os… Por favor.
Só agora notei as lágrimas em seus olhos. Suas lágrimas. Quan-
do eu as vira pela última vez? Não quando ela passou horas a fio
comigo durante o inverno, não quando ela chegou em casa com Ed-
mund bêbado como um gambá, não no momento em que me encon-
trou quase engolido pela terra.
E então entendi. Esses desenhos eram seus também, sua obra.
Ela estivera ali o tempo todo, mas eu havia olhado apenas para mim
mesmo, minha pesquisa, meus desenhos, minhas abelhas. Só ago-
ra realmente me dei conta de que tínhamos estado juntos nisso des-
de o primeiro dia, elas também eram suas, as abelhas também eram
suas.
– Charlotte. – Engoli. – Ai, Charlotte. Quem tenho sido para você
de verdade?
Ela ergueu os olhos com surpresa.
– O que você quer dizer?
– Quero dizer… Você deveria ter tido… algo mais.
Ela passou a mão sobre os olhos, agora havia apenas espanto
em seu olhar.
– Algo mais? Não…
Eu quis dizer-lhe tanta coisa, que ela merecia um pai melhor, al-
guém que também pensasse nela, que eu tinha sido um idiota, so-
mente me interessava por minhas próprias coisas, enquanto seu
apoio era inabalável, não importando o que eu fizesse. Mas as pala-
vras cresceram até ficarem grandes demais, não fui capaz de articu-
lá-las.
Tudo o que consegui fazer foi pegar sua mão. Ela deixou, mas
se apressou a firmar a outra de forma protetora sobre os desenhos
para que o vento não os levasse.
Ficamos sentados em silêncio.
Ela respirou fundo várias vezes, como se quisesse dizer algo,
mas não veio nenhuma palavra.
– Você não pode pensar assim – disse ela enfim. Então virou a
cabeça e olhou para mim com seus olhos claros, cinzentos. – Já ga-
nhei mais do que uma menina possa esperar. Mais do que qualquer
outra menina que conheço. Tudo o que você me mostrou, me con-
tou, de que me deixou participar… Todo o tempo que passamos jun-
tos, todas as conversas, tudo que você me ensinou… Para mim vo-
cê é… eu…
Ela não concluiu a frase, apenas permaneceu sentada. Depois
de um tempo, disse:
– Não poderia ter tido um pai melhor.
Um soluço escapou de mim, olhei para o ar, focando cegamente
no nada, enquanto lutava contra a vontade de chorar.
Ficamos sentados, o tempo passou. A natureza estava em torno
de nós, com todos os seus sons, o canto dos pássaros, o sopro do
vento, o coaxo de uma rã. E as abelhas. Seu zunido brando acal-
mou-me.
Com delicadeza, Charlotte desvencilhou sua mão da minha e fez
um leve gesto com a cabeça.
– Você será poupado de ver os desenhos outra vez.
Levantou-se, levando os desenhos consigo, segurando-os com
ambas as mãos, como se ainda fossem algo valioso, e desapareceu
em direção à casa.
Soltei um suspiro profundo, de gratidão e alívio, mas também
com a certeza de que agora, agora tudo terminara.
Continuei sentado ali, olhando para as abelhas, sua perseveran-
ça, indo e voltando, nunca descansando.
Nunca. Até que as asas não aguentassem mais.
Ge orge

Eu estava acordado na cama outra vez. Com tudo preparado para


uma boa noite de sono. O quarto estava fresquinho, silencioso. E
escuro. Aliás, escuro demais. Muito mais escuro do que antes. Aí
me lembrei da lâmpada. Esse era o motivo. Nunca cheguei a con-
sertá-la. Os fios continuavam soltos lá no alto da parede, minhocas
com cabeças de fita isolante. Eu passava e via aqueles fios todos os
dias, todas as vezes, e eles sempre me deixavam de mau humor.
Uma das muitas coisas que eu nunca dava conta de fazer. Não era
importante, eu sabia disso. Não precisava daquela luz, ninguém de
nós precisava dela. Emma também não pegava no meu pé. Acho
que ela nem percebia. Mas os fios soltos eram parte de tudo que
não estava do jeito que deveria estar, tudo que não funcionava.
Preciso de sete horas de sono. Pelo menos. Sempre tive inveja
daqueles que dormem pouco. Aqueles que acordam depois de cinco
horas e já estão prontos para tudo. Ouvi falar que são os que vão
longe na vida.
Eu me virei para o rádio relógio. Mais de meia-noite. Estava na
cama desde 23h08. Emma tinha caído no sono imediatamente. Eu
até cochilei, mas foi rápido. Logo estava desperto, com a cabeça a
mil, alerta. E o corpo trabalhava, não ficava quieto, não entrava em
acordo com o colchão. Mudava de posição, mas qualquer uma esta-
va errada, me incomodava.
Eu precisava dormir. Não seria capaz de funcionar amanhã se
não dormisse agora. Talvez uma bebida ajudasse.
A gente nunca tinha destilados, raramente eu bebia destilados.
Não tomava muitas outras bebidas tampouco. Mas achei uma cerve-
ja na geladeira. E um copo no armário. Aí faltava o abridor. Ele não
estava na parede, pendurado no seu lugar de costume, um gancho
sobre a pia, o quarto gancho da direita, entre a tesoura e uma espá-
tula. Onde será que estava? Abri a gaveta dos talheres. No fundo da
gaveta encontrei o saca-rolhas e alguns elásticos podres. Mas o
abridor não estava ali. Abri mais uma gaveta. Nada. Será que ela ti-
nha mudado o sistema? Dado novos lugares para as coisas? Em to-
do caso, não seria a primeira vez.
Continuei procurando, uma gaveta depois da outra. Larguei a
cerveja para usar as duas mãos, já não me preocupava com o baru-
lho. Se ela tinha inventado de mudar tudo, que aturasse isso. Droga,
quantas gavetas nessa cozinha e quanta porcaria! Utensílios que
estavam só juntando poeira. Um cozedor de ovos, um pimenteiro
elétrico, um dispositivo que cortava as maçãs em seis pedaços. As
tranqueiras se acumularam durante décadas. Emma era responsá-
vel pela maioria. Fiquei com vontade de pegar um saco, começar a
jogar tudo fora o quanto antes. Arrumar.
Mas aí o abridor apareceu. Estava na gaveta grande com as co-
lheres de pau, as conchas e as batedeiras. Bem na parte de trás.
Bem no fundo. Pelo visto, tinha ganhado um lugar novo, sim. Abri lo-
go a cerveja. Minha vontade era de acordar Emma, pedir que paras-
se de mudar as coisas, caramba. Mas em vez disso tomei um gran-
de gole da cerveja. Desceu gelada pela garganta.
A barriga estava roncando, mas não quis pegar nada para co-
mer. Nada me apetecia. A cerveja também tinha valor nutritivo. Eu
estava inquieto, sem um pingo de sono. Dei alguns passos para a
frente e para trás, fui até a sala, peguei o controle remoto. Mas parei
no meio do movimento, porque de repente dei de cara com uma coi-
sa na parede da sala de jantar.
Fui até lá. Fiquei parado na frente deles. Os desenhos. A col-
meia padrão de William Savage. Que a bem dizer não tinha sido pa-
drão para ninguém além da família Savage. Estavam numa parede
que o sol nunca alcançava. Dentro de molduras grossas, douradas,
sem um grão de pó nos vidros. Emma cuidava disso. Tinta preta so-
bre papel amarelado. Números. Medidas. Descrições simples. Nada
mais. Mas por trás de tudo havia uma história que minha família ti-
nha guardado desde que os desenhos foram feitos, em 1852. A col-
meia padrão era para ser a grande inovação de William Savage. Por
causa dela, ele se inscreveria nos livros de história. Mas ele não
contava com um americano esperto, Lorenzo Langstroth. Langstroth
ganhou, foi ele quem definiu as medidas que mais tarde se tornari-
am o padrão. E ninguém deu bola para Savage. Ele simplesmente
chegara depois da hora. Foi o que tinha de ser, já que ambos esta-
vam trabalhando com a mesma coisa em lugares distintos, separa-
dos pelo oceano, sem telefone, fax ou e-mail.
Atrás de todo grande inventor sempre há uma dúzia de caras hu-
milhados que chegaram um pouco atrasados. E Savage foi um de-
les. Por isso não obteve nem riquezas nem honras para si e sua fa-
mília.
Felizmente, a esposa conseguiu casar a maioria das filhas. Mas
o filho Edmund foi um caso mais complicado. Nada estava em or-
dem com ele, era um encrenqueiro, um dândi, desde cedo tomou
gosto pela bebida e acabou sumindo nas sarjetas de Londres.
Só uma das filhas nunca se casou: Charlotte, a mais inteligente.
A matriarca de nossa família. Ela comprou uma passagem só de ida
para fazer a travessia do Atlântico. Seu baú está no sótão. Foi com
ele que ela viajou, ela e um bebezinho. Ninguém sabia quem era o
pai. Os dois e o baú chegaram sozinhos à América. Nele, ela trouxe
todas as suas posses. Está agora com um cheiro mofado, de velho.
A gente não usa para nada, mas não tenho coragem de jogar fora.
Charlotte pôs sua vida inteira naquele baú. Incluindo os desenhos
da colmeia padrão feitos pelo pai.
E foi ali que começou. Charlotte passou a se dedicar à apicultu-
ra. Não em tempo integral, mas como atividade secundária, pois tra-
balhava como professora e diretora de escola. Só três colmeias,
mas as três colmeias foram o suficiente para que a criança, um me-
nino, pegasse gosto. E acrescentasse mais algumas colmeias. As-
sim como seu filho. E o filho de seu filho. E, enfim, meu avô, que
apostou na apicultura em grande escala e fez daquilo um ganha-pão
de verdade.
Desenhos desgraçados!
De repente dei um murro num dos quadros. O vidro estalou, a
dor passou da mão para o corpo todo. O quadro tremeu um pouco,
mas continuou pendurado como antes.
Eles tinham que vir abaixo. Os três quadros tinham que vir abai-
xo.
Desenganchei todos eles e levei-os até a entrada. Ali peguei
meus calçados mais pesados, as botas de inverno com sola grossa.
Coloquei as botas, saí pelo pátio.
Estava prestes a dar um fim neles, uma boa pisada em cada um,
mas no mesmo instante me lembrei de Emma, do barulho que aqui-
lo faria. Olhei para a janela do quarto. Nenhuma luz. Ela ainda esta-
va dormindo.
Levei os quadros até o celeiro, abri a porta e deixei os três no
chão.
É claro que eu podia simplesmente abrir as molduras e tirar os
desenhos, mas era o barulho do vidro que eu queria escutar. Os es-
talos sob a bota.
Pisei com força, repetidas vezes, pulei em cima deles. Os vidros
se despedaçaram, as molduras quebraram. Exatamente do jeito que
eu tinha imaginado.
Aí desprendi os desenhos. Eu tinha torcido para que os cacos de
vidro os destruíssem, mas eles continuavam inteiros. O papel era
surpreendentemente duro e resistente. Coloquei um em cima do ou-
tro, seis ao todo, numa pilha. Fiquei parado com eles na mão. Pode-
ria queimá-los, encostar um fósforo e deixar a obra vitalícia de toda
a família ser consumida pelo fogo. Não.
Deixei a pilha na mesa de trabalho, olhei um pouco para ela.
Malditos desenhos. Não tinham levado a nada. Mereciam um fim mi-
serável. Não uma fogueira, isso seria dramático demais, digno de-
mais. Algo diferente.
E aí eu sabia.
Concentrei minhas energias, peguei a pilha, as mãos hesitaram,
mas forcei-as. Então comecei a rasgar. Queria tiras compridas, tão
uniformes quanto possível. Mas a pilha ficou grossa demais com to-
dos os seis de uma vez. Difícil conseguir a precisão que eu queria.
Tive que dividir a pilha. Três folhas por vez. Só que assim seria mui-
to rápido. Eu queria demorar. Por isso acabei pegando uma folha
por vez.
Gostei do som. Era como se o papel gritasse. Misericórdia. Mise-
ricórdia!
A sensação era mais do que boa. A sensação era maravilhosa,
finalmente eu estava fazendo alguma coisa, fazendo uma coisa de
verdade. Podia ter continuado a noite inteira.
Mas em certo momento tive que parar. Não valia a pena dividir
os desenhos em pedaços muito pequenos, pois aí não serviriam pa-
ra o que eu pretendia.
Juntei as tiras e as levei comigo. Não tinha força para arrumar as
molduras e o vidro, isso ficaria para amanhã. Simplesmente saí pela
noite, atravessei o pátio e abri a porta da frente.
Entrei no alpendre, segui para o corredor. Ali, abri a primeira por-
ta do lado direito. Então, dois passos na escuridão. Um som gorgo-
lejante me informou que a válvula da descarga estava presa, como
de costume. Provavelmente precisaria ser trocada. Não me dei ao
trabalho de acender a luz e conferir isso agora. Só deixei os dese-
nhos, os papéis, no chão. Prontos para serem usados. No seu devi-
do lugar. Ao lado do vaso sanitário.
Tao

Estávamos num carro elétrico antigo. Muitos desses foram fabrica-


dos na década de 2020, quando a energia solar realmente decolou.
Na época em que visitei a cidade com meus pais, as ruas estavam
cheias deles, quase todos velhos e surrados. O carro estava bem
conservado, muito mais do que a maioria. Grande, preto e brilhante,
com certeza tinha sido construído para clientes exigentes. Nunca vi-
ra esse tipo de veículo em posse de particulares, tampouco sendo
usado por pessoas abaixo de certo nível hierárquico. Os carros que
existiam em nossa cidade sempre pertenciam à polícia ou ao servi-
ço de saúde, assim como aquele no qual transportaram Wei-Wen.
Eram furgões simples de material leve, feitos para gastar o mínimo
possível de energia. Esse carro era maior, mais imponente. Em ra-
ras ocasiões carros como este visitavam nossa cidade, passando
pelas ruas com vidros escurecidos, e a gente sempre se perguntava
o que eles estavam fazendo ali no nosso fim de mundo.
Foi a primeira vez na vida que pus os pés dentro de um veículo
tão belo. Passei a mão no assento de couro sintético. Algum dia ele
tinha sido liso, mas agora estava cheio de rachaduras. Pois o carro
era velho. Os assentos o entregavam, o cheiro o entregava. Os pro-
dutos de limpeza serviam apenas de disfarce para o odor de antigui-
dade impregnado no acabamento interior e na carroceria.
A mulher tinha me indicado a fileira do meio. Ela mesma se sen-
tou na frente e leu um endereço para o piloto automático. Era o no-
me de um lugar que não me dizia nada. Então a viagem começou.
Eu só via seu pescoço. Ela se mantinha em silêncio. Por um instan-
te, cogitei pedir que parasse, que me deixasse sair, mas eu sabia
que não valia a pena. Ela não me deu qualquer opção. E algo em
seus olhos me dizia que haveria consequências caso não fizesse o
que ela mandasse.
Além do mais… Talvez ela pudesse me levar a Wei-Wen. Isso
era tudo o que importava.
O trajeto durou quase uma hora. Encontramos alguns poucos
carros enquanto ainda estávamos no centro, mas depois só restou o
nosso. Nenhum dos semáforos por que passamos estava funcionan-
do, mas podíamos atravessar as ruas sem preocupação. Estavam
todas vazias. As placas indicavam que seguíamos para Shunyi. Eu
não sabia nada sobre a área, mas os edifícios revelavam que fora
habitada por pessoas abastadas. Casas espaçosas e privativas,
com três ou quatro andares, no meio de jardins enormes. Em algum
momento, devem ter sido suntuosas, mas agora as construções es-
tavam decadentes e os jardins, repletos de vegetação descuidada.
Passamos por um terreno que havia sido um campo de golfe. Agora
era um descampado coberto de ervas daninhas. Num dos cantos,
notava-se que houvera tentativas de cultivo. Muita terra fértil ainda
estava em pousio, era estranho que ninguém tentasse fazer algo
crescer ali. Mas talvez todos tivessem ido embora.
Enfim paramos. A mulher abriu a porta e saiu, pedindo que eu a
seguisse.
Estávamos numa praça. No meio dela, um chafariz, que já fora
imponente, estava enferrujando. Uma estátua de uma ave, um grou,
jazia no fundo da piscina. Talvez tenha sido arrastada por forças da
natureza, talvez pela ação de vândalos. Nada se ouvia ali, apenas o
vento que batia contra os edifícios, dos quais, no decorrer do tempo,
telhas e vidraças haviam se desprendido. O som dos músculos da
própria Terra, que lenta e inevitavelmente se impunham com mais
vantagem, em vias de extinguir a civilização.
Vozes me fizeram voltar os olhos para cima. No teto de um pré-
dio alto havia duas pessoas, só consegui enxergar as silhuetas con-
tra o céu. E ouvi uma conversa, mas não as palavras. Elas tinham
algo nas mãos, mas que agora soltavam. Sombras arredondadas
deslizaram pelo ar e foram se afastando dali, tomando a direção do
centro. Eu tinha lido sobre os computadores voadores, operados por
controle remoto, que existiam antigamente. Os drones.[2] Será que
isso era a mesma coisa? Quem eles iam seguir? De repente me
ocorreu que talvez eles tivessem me seguido também, por mais
tempo do que eu imaginava, talvez já soubessem muita coisa.
– Vamos entrar aqui – disse a mulher.
O prédio não tinha nome, nenhuma placa dava pistas do que es-
condia. A mulher apoiou a mão num painel de vidro na parede, to-
dos os dedos sobre cinco pontos no painel. De repente, duas gran-
des portas se abriram. Eram movidas a energia elétrica, embora a
área em torno parecesse estar sem eletricidade há tempo.
Ela me conduziu ao interior do grande prédio. Levei um susto
quando quase esbarramos num jovem guarda que estava do lado
de dentro. Virei-me e vi mais guardas. Eles usavam uniformes iguais
ao da mulher e fizeram uma breve saudação. Ela acenou de volta e
continuou andando depressa.
Eu a segui por um grande saguão e, depois, entramos num es-
critório panorâmico. Em todo lugar passamos por pessoas. Algo que
parecia irreal depois de semanas na cidade deserta. Todos eram co-
mo o guarda: gentis, limpos, sem marcas de trabalho manual ou sol.
Estavam ocupados, muitos diante de grandes telas, e alguns partici-
pavam de reuniões conduzidas em voz baixa, sentados em sofás
macios ou em volta de mesas redondas de conferência. A decora-
ção era transparente. As paredes eram de vidro e as salas, abertas,
mas o som se espalhava pouco. Era abafado por carpetes grossos e
móveis pesados. Em vários lugares, estive a ponto de tropeçar em
aspiradores de pó redondos e achatados que circulavam sozinhos
pelo chão, sugando sujeiras que eu não conseguia enxergar.
A decadência não tinha chegado aqui, era como se eu tivesse
aportado num mundo que pertencia ao passado.
Finalmente, ela parou. Estávamos no fim de um corredor. À nos-
sa frente havia uma parede. Diferentemente das demais, esta não
era de vidro. Era de madeira escura e lustrosa. Uma porta alta e lar-
ga, parecia ter sido talhada na madeira. A mulher bateu à porta. Al-
guns poucos segundos se passaram. Então ouvi um zumbido e um
clique e a porta se abriu.
Wei-Wen. Será que ele estava aqui? Senti um tremor repentino.
– Por favor – ela fez um gesto para a porta aberta.
Entrei hesitante.
A porta se fechou às minhas costas. Ouvi o som se repetir, o
zumbido e o clique. Ela me trancou sozinha ali dentro.
A sala era grande e clara, mas não possuía janelas. Aqui tam-
bém o piso tinha carpete. As paredes eram revestidas de tecidos, ta-
peçarias pesadas, do teto ao chão. Será que havia mesmo paredes
por trás? Ou será que escondiam outra coisa? Pessoas, aberturas
para outras salas? Será que eu vi um tênue movimento ali à direita?
Eu me virei depressa. Mas não, a cortina continuava imóvel. O som
abafado e discreto que se ouvia do lado de fora pareceria um ruído
ensurdecedor se comparado ao silêncio aqui de dentro. Talvez esta
fosse uma sala em que nenhum som devesse entrar. Ou sair. A
ideia fez meu pulso acelerar.
Houve um farfalhar no tecido ao meu lado direito e, de repente,
as cortinas se abriram, dando passagem a uma idosa. Ela deu um
sorriso suave. Havia algo de familiar nela, a maneira como posicio-
nava a cabeça, o colarinho apertado. A teia de rugas em torno dos
olhos. Eu a tinha visto antes, muitas vezes, mas nunca na vida real.
Pois ela era Li Xiara. A voz do rádio, a chefe da Comissão, o ór-
gão máximo de nosso país.
Dei um passo para trás, mas ela continuou sorrindo.
– Lamento ter tido de promover nosso encontro dessa forma –
disse ela em voz baixa. – Mas já não poderíamos deixar de falar
com você.
Ela colocou a mão no espaldar de uma poltrona macia.
– Por favor, sente-se.
Não esperou, mas se sentou numa poltrona igual à que havia me
indicado. Uma de frente para a outra.
– Sei que tem muitas perguntas. Peço desculpas por eu mesma
não ter podido buscá-la. Espero que possamos resolver tudo. – Ela
falava de forma suave e controlada, como se estivesse lendo um ro-
teiro.
Ficamos sentadas face a face, com as cabeças na mesma altu-
ra.
Não pude deixar de olhar para ela. Sem o filtro das imagens, o
semblante parecia vulnerável. Era insólito tê-la tão perto, vê-la na vi-
da real.
Eu me afligi. Essa mulher… Que decisões tinha tomado? O que
era responsabilidade dela? A morte das cidades? A situação do jo-
vem do restaurante? Os velhos, abandonados para morrer? Os jo-
vens, não mais que fantasmas, tão desesperados que tomavam ou-
tros seres humanos como presas?
Minha própria mãe?
Não. Eu não deveria pensar nisso, não deveria deixar minhas
perguntas, minha crítica, atingi-la, pois ela sabia mais do que eu.
– Eu agradeceria se você pudesse me dizer por que estou aqui.
– Imitei sua maneira de falar, pronunciando as palavras com a maior
suavidade e delicadeza possível.
Ela pousou os olhos em mim.
– No início, achamos que você era inoportuna.
– O quê?
– Especialmente quando veio para Pequim. – Ela fez uma pausa.
– Mas depois… De fato, nossa intenção era entrar em contato com
você, não queríamos que você, que vocês, vivessem na inseguran-
ça por tanto tempo. Só que primeiro precisávamos ter certeza abso-
luta.
– Certeza de quê?
Ela se inclinou para a frente na poltrona, como que para se apro-
ximar mais de mim.
– Agora temos.
Não respondi. A voz calma, monótona, despertou-me raiva, mas
eu não estava chegando a lugar nenhum com minhas perguntas.
– E talvez tenha sido melhor assim – continuou ela. – Que você
mesma fosse obrigada a encontrar as respostas.
Respirei fundo para buscar ar, tentando me manter calma.
– Não entendo o que você quer dizer.
– De agora em diante, você vai ter a possibilidade de desempe-
nhar um papel. E esperamos que queira colaborar.
– O que você quer dizer?
– Vou chegar a isso. Primeiro, gostaria que você me contasse o
que acha que aconteceu com seu filho. O que você descobriu?
Eu me esforcei para manter a calma. Ela definira a agenda, eu
não tinha outra opção senão segui-la, colaborar. O que aconteceria
se eu não fizesse isso?
– Acho que algo aconteceu com Wei-Wen que tem significado
para muitas outras pessoas além de mim – disse eu lentamente. –
Além dele.
Ela fez que sim.
– E que mais?
– Acho que é por isso que vocês o pegaram. E que aquilo que
aconteceu, poderá… mudar tudo.
Ela aguardou.
– Você não pode me contar onde ele está? – A essa altura, eu
estava implorando. – Não sei mais que isso!
Ela ficou em silêncio. O olhar suspenso no ar.
De repente foi como se tudo dentro de mim parasse. Não aguen-
tava mais sua voz calma e monótona, as charadas, o olhar neutro e
aquele meio sorrisinho impossível de decifrar.
– Não sei de nada! – Num salto eu estava ao lado dela.
Ela pareceu se encolher na poltrona.
Eu a agarrei, e pela primeira vez ela mudou de expressão. Um
vislumbre minúsculo de medo se insinuou na máscara de magnani-
midade.
– Onde está Wei-Wen? – gritei. – Onde ele está? O que aconte-
ceu com ele?
Tentei puxá-la da cadeira.
– Não aguento mais! Você entende isso? É meu filho!
Eu a segurei em pé, sacudi-a. Eu era mais forte, mais resistente,
depois de uma vida de trabalho manual. Ela não tinha qualquer
chance, eu a espremi contra a porta, batendo-a contra a madeira.
Seu rosto se contorceu, finalmente eu havia causado algum abalo
dentro dela. Mas não a soltei, segurei-a com firmeza e gritei.
– Onde está Wei-Wen? Onde ele está?
No mesmo instante os guardas estavam ali. Eles chegaram por
trás, me soltaram dela, me jogaram no chão. Me seguraram. Solu-
ços profundos subiram do diafragma.
– Wei-Wen… Wei-Wen… Wei-Wen…
Ela estava em pé diante de mim. Mais uma vez com a mesma
calma de sempre, ajeitou um pouco a roupa, recuperou o fôlego.
– Podem soltá-la.
Hesitantes, os guardas me soltaram. Fiquei sentada, inclinada
para a frente, não ofereci mais resistência, não sobrava mais nada.
Lentamente, Xiara se aproximou de mim, curvou-se e pôs a mão na
parte de trás da minha cabeça. Ela a manteve ali por um instante,
então passou-a pela face e pegou meu queixo. Gentilmente, virou
meu rosto para cima, de modo que encontrasse o seu olhar.
Então ela fez um gesto com a cabeça.
•••
Ele estava deitado sobre um lençol branco, numa sala fortemente
iluminada. Dormia. O corpo estava coberto por uma manta. Só a ca-
beça era visível. O rosto ainda era fofo, porém estava mais magro
do que antes. As órbitas oculares destacavam-se como sombras ní-
tidas. Eu me aproximei, e então descobri que haviam raspado seu
cabelo em um lado da cabeça. Dei mais um passo e entendi por
quê. Uma área atrás da orelha, perto da raiz do cabelo, estava ver-
melha. A picada. Resisti à vontade de correr para a frente. Eu esta-
va sozinha, mas sabia que eles me viam. Eles sempre me viam.
Mas não foi por isso que fiquei parada.
Enquanto eu permanecesse aqui, a dois metros de distância,
ainda poderia acreditar que ele estava dormindo.
Eu poderia acreditar que ele estava dormindo e não notar que os
cristais de gelo subiam como trepadeiras do chão para cima dos pés
da cama.
Eu poderia acreditar que ele estava dormindo e não notar que
uma nuvem branca pairava no ar, diante de mim, cada vez que eu
deixava o calor escapar dos pulmões.
Eu poderia acreditar que ele estava dormindo e não notar que
nenhuma nuvem branca saía dele, que acima de sua cama, do len-
çol branco, o ar estava parado, límpido e frio.

[2] Em inglês, a palavra “drone” também significa “zangão”.


Ge orge

A fazenda do Gareth estava com um cheiro de queimado. O cheiro


adocicado de mel quente e gasolina. Senti a fumaça no momento
que abri a porta do carro.
Ele estava de costas, com o rosto voltado para a fogueira. Ela ti-
nha vários metros de altura, as colmeias não estavam empilhadas,
mas jogadas uma em cima da outra. A fogueira rugia, crepitava e
estalava. Curiosamente, foi assim que me veio à cabeça. Como se
tivesse vida própria. Como se estivesse se deleitando por destruir a
obra de uma vida. Ele estava com uma lata de gasolina na mão, tal-
vez tivesse esquecido que a segurava, o braço parecia frouxo.
Ele se virou e me viu. Não parecia surpreso.
– Quantas? – perguntei, indicando a fogueira.
– Noventa por cento.
Não o número de colmeias, não o número de colônias, mas o
percentual. Como se fosse só uma questão de matemática. Mas
seus olhos disseram outra coisa.
Ele deu alguns passos, pousou a lata no chão. Mas pegou-a de
novo, provavelmente percebeu que não poderia deixá-la ali no meio
do pátio.
Estava vermelho, a pele seca a ponto de rachar. Um eczema se
estendia do pescoço bronzeado para cima.
– E você? – Ele ergueu a cabeça.
– A maioria.
Ele fez um gesto de compreensão.
– Você queimou elas?
– Não sei se adianta alguma coisa, mas sim.
– É melhor não usar as colmeias de novo. Estão impregnadas
daquilo.
Ele tinha razão, elas fediam a morte.
– Achei que não fosse chegar aqui – disse ele.
– Achei que era falta de cuidados – falei.
Gareth puxou os cantos da boca para cima, formando algo que
deveria ser um sorriso.
– Eu também.
Ele lembrava o menino que fora lá atrás, aquele que ficava sozi-
nho no pátio da escola. A mochila revirada no chão a sua frente, os
livros pisoteados, os lápis jogados, tudo cheio de lama. Mas naquela
época ele não desistia nunca, nunca fugia, somente se agachava,
pegava os livros, enxugava a lama com a manga da blusa, juntava
os lápis, arrumava tudo, assim como tinha feito centenas de vezes
antes.
Não sei por quê, mas de repente estiquei a mão, apertei seu bra-
ço.
Aí ele curvou a cabeça, o rosto rebentou, como que se dissol-
vendo na minha frente.
Três soluços profundos saíram.
Seu corpo estava em tormenta sob minha mão. Contraía-se, ha-
via mais coisas que queriam sair. Eu só continuei a segurá-lo. Mas
não saiu mais nada. Os três soluços foram tudo.
Então ele se endireitou, passou o dorso da mão sobre os olhos,
sem olhar para mim. No mesmo instante, uma rajada de vento atra-
vessou o pátio, a fumaça da fogueira veio em cima da gente. E as
lágrimas escorriam livremente.
– Fumaça desgraçada – falei.
– É – disse ele. – Fumaça desgraçada.
Ficamos calados, ele estremeceu um pouco, se recuperou. Aí
abriu seu sorriso costumeiro.
– Bem, George, o que posso fazer por você hoje?
•••
Gareth tinha razão. As colmeias chegaram prontamente. Allison
concedeu o empréstimo sem pestanejar, e apenas dois dias mais
tarde um caminhão cinza entrou no meu pátio. Um cara rabugento
saiu, perguntando onde eu queria pôr as colmeias.
Ele descarregou todas na campina, antes de eu ter tempo de
chegar. Não disse uma palavra, só estendeu uma prancheta com
uma folha e pediu que eu desse um visto para confirmar a entrega.
Então elas estavam ali. Rígidas. Com a mesma cor de aço do
caminhão no qual tinham chegado. Cheiravam a tinta industrial.
Uma longa fileira. Todas idênticas. Senti um arrepio desagradável,
me virei para o outro lado.
Só torcia para que as abelhas não percebessem a diferença.
Mas era óbvio que iam perceber a diferença.
Elas percebiam tudo.
Tao

O rapaz deixou o arroz frito na mesa, diante de mim. Na última vez


havia um pouco de ovo e alguns pedaços de legumes misturados ao
arroz. Hoje, apenas o molho de soja artificial. O cheiro ardeu no na-
riz, quase precisei me virar para não ficar com ânsia de vômito. Mal
havia comido nos últimos dias, embora Xiara tivesse me dado di-
nheiro suficiente. Mais do que suficiente. Mas eu não conseguia co-
mer nada além das bolachas secas. Cada nervo queimava, a boca
estava seca, a pele das mãos rachava. Eu estava desidratada, tal-
vez por quase não ter ingerido líquido, talvez por causa de todas as
lágrimas que derramei. Eu tinha chorado até secar, não restavam
mais lágrimas. Tinha chorado até me esvaziar, ao som da voz de Xi-
ara. Ela me visitara diariamente, falando sem parar, explicando e
tentando me convencer. E lentamente, com o passar do tempo, suas
palavras acabaram fazendo sentido. Agarrei-as, quase avidamente.
Talvez eu quisesse que fizessem sentido. Bastava segui-las, sem ter
que pensar por conta própria.
– Você o amou demais – disse ela.
– É possível amar alguém demais?
– Você foi igual a qualquer mãe. Você quis dar tudo a seu filho.
– Sim, eu quis lhe dar tudo.
– Tudo é mais que demais.
Por frações de tempo, segundos, minutos, eu acreditava que es-
tava entendendo. Mas depois me deparava com a falta de sentido.
O que ela dizia não passava de palavras, pois eu só conseguia pen-
sar em Wei-Wen. Wei-Wen. Meu filho.
Ontem ela veio pela última vez. Não iríamos conversar mais, dis-
se. Eu precisava voltar para casa, superar o meu luto. O dever me
aguardava. Ela queria que eu fizesse discursos, falasse sobre Wei-
Wen. Sobre as abelhas que tinham voltado. Sobre nosso, sobre seu,
objetivo de criá-las como plantas alimentícias em ambientes contro-
lados, fazer todos os esforços para que se reproduzissem outra vez,
num ritmo tão acelerado que tudo logo ficasse como antes. Wei-
Wen se tornaria um símbolo, disse ela. E eu seria a mãe enlutada
capaz de erguer a cabeça e deixar os próprios interesses de lado
em prol da comunidade. Se eu, que perdi tudo, consigo, vocês tam-
bém conseguem. Ela não me deu opção. Algo dentro de mim enten-
deu por quê. Entendi que ela também fazia o que precisava fazer,
ou o que achava que precisava fazer. Mesmo que eu ainda não sou-
besse se seria capaz, se aguentaria fazer o que ela queria que eu fi-
zesse.
Pois a única coisa que fazia sentido era ele. Seu rosto. Tentei
guardar a imagem, seu rosto entre o meu e o de Kuan. Ele olhava
para nós. Mais. Mais. Um, dois, três, e pule! O lenço vermelho que o
vento agitava.
Amanhã eu iria embora. Wei-Wen teria que ficar. Mais tarde eu
talvez pudesse enterrá-lo. Mas isso não era importante. De qualquer
forma, o pequeno corpo frio coberto por uma fina camada de gelo
não era ele. Aquele rosto não era o dele, não o rosto de que eu ten-
tava me lembrar o tempo todo.
Empurrei a tigela na direção do rapaz.
– É para você.
Ele olhou interrogativo para mim.
– Mas você não vai comer nada?
– Não, comprei isso para você.
Ele ficou parado, balançando sobre os pés.
– Venha sentar aqui. – Ouvi o tom suplicante de minha voz.
Ele puxou a cadeira depressa e aproximou a tigela de si. Por um
instante olhou-a quase com felicidade, antes de erguê-la e começar
a devorar o arroz.
Era bom vê-lo comer. Vê-lo manter-se vivo. Fiquei simplesmente
sentada assim, estudando-o, enquanto ele empurrava o arroz para
dentro da boca, quase sem mastigar antes de a próxima porção es-
tar a caminho.
Depois de saciar o pior de sua fome de lobo, ele se acalmou,
concentrando-se em levar os pauzinhos mais devagar à boca, como
se um professor interno de etiqueta de repente o lembrasse de co-
mo deveria se comportar.
– Obrigado – disse ele baixinho.
Sorri em resposta.
– Você sabe mais alguma coisa? – perguntei depois de deixá-lo
comer mais um pouco.
– Sobre o quê?
– Sobre vocês. Vocês vão continuar aqui?
– Não sei. – Ele olhou para a superfície da mesa. – Só sei que
meu pai se arrepende todo dia. Pensávamos que aqui estaríamos
bem, que era aqui que deveríamos ficar, mas aí tudo mudou. Somos
apenas um incômodo agora.
– Não podem ir embora?
– Para onde? Não temos dinheiro, não temos nenhum lugar para
onde ir.
A impotência me consumiu outra vez. Mais uma coisa que eu
não poderia mudar.
Não. Isso não era insuperável. Isso eu poderia conseguir. Essas
pessoas eu poderia ajudar.
Levantei a cabeça.
– Venham comigo.
– O que você quer dizer? – Ele me olhou surpreso.
– Voltem comigo.
– Você está indo para casa?
– Sim. Agora estou indo para casa.
– Mas… Não temos autorização, eles vão nos impedir. E traba-
lho? Tem trabalho para nós lá?
– Prometo que vou ajudar vocês.
– E comida?
– Aqui tem menos ainda.
– Sim… – Ele deixou os pauzinhos na mesa. A tigela de arroz
estava vazia. Apenas um único grão de arroz sobrava no fundo. Ele
viu, levantou os pauzinhos para pegá-lo, mas os soltou depressa
quando percebeu que eu o estava observando.
– Vocês precisam ir – falei baixinho. – Aqui vocês vão morrer.
– Talvez seja melhor assim.
Havia uma ferocidade em sua voz, e ele não me encarou.
– O que você quer dizer? – Eu me esforcei para articular as pala-
vras, não suportei isso. Não nele, que era tão jovem.
– Não importa o que aconteça com a gente – disse ele cabisbai-
xo. – Comigo e com o papai. Onde moremos. Aqui. Se juntos. Ou
sozinhos. Não importa. – Sua voz de repente ficou rouca. Ele pigar-
reou, tentando se livrar da rouquidão. – Nada disso importa mais.
Você não percebe?
Não aguentei responder. Suas palavras eram uma distorção das
de Xiara. Cada um de nós não é importante. Mas se ela falava de
coletividade, ele falava de solidão.
Eu me levantei abruptamente, tive que fazê-lo calar. A frágil es-
perança a que me agarrava estava prestes a se despedaçar. Olhei
para qualquer coisa, menos para ele, enquanto fui em direção à por-
ta.
– Vocês precisam fazer as malas – disse eu em voz baixa. – Va-
mos embora amanhã.
•••
Arrumei a mala depressa. Não demorou muito juntar as poucas coi-
sas que eu tinha trazido. As roupas, alguns artigos de higiene pes-
soal, um par extra de sapatos. Dei uma conferida no quarto, queren-
do ter certeza de que tinha pego tudo. E então os vi: os livros. Esti-
veram aqui o tempo todo, mas não se faziam notar, tinham se torna-
do parte do quarto. Estavam empilhados na mesa de cabeceira, eu
não tinha tocado neles desde o dia em que os trouxera. Não tinha li-
do nenhum deles, deveria saber que as palavras fariam tão pouco
sentido quanto todo o resto.
Precisava devolvê-los, talvez ainda desse tempo de passar na
biblioteca. Peguei os livros, mas não me movi. Fiquei parada segu-
rando a pilha. Senti o plástico liso da capa do último livro grudar nas
mãos.
Deixei os outros na cama e escolhi apenas esse. Era O apicultor
cego. Quando a vigia me pedira para sair, não tinha terminado de lê-
lo. Mas agora o abri.
Ge orge

Emma estava chorando de novo. Descascando batatas e chorando,


de costas para mim. Deixava as lágrimas escorrerem livremente,
não as continha, soltava pequenos soluços o tempo todo. Ultima-
mente, elas vinham com frequência. Ela chorava como num enterro,
em qualquer lugar e a qualquer momento, sobre baldes de limpeza,
enquanto preparava o jantar ou escovava os dentes. Toda vez que
acontecia eu só queria fugir dali, não conseguia lidar com isso, ten-
tava encontrar uma desculpa para sair de perto.
Felizmente eu não passava muito tempo dentro de casa. Traba-
lhava de sol a sol. Contratei Rick e Jimmy em tempo integral. O di-
nheiro, o dinheiro emprestado, derretia da conta. Depois de um tem-
po, desisti de verificar. Não aguentava ver o saldo cada vez mais
minguado. A questão agora era trabalhar. Só trabalhar. Sem traba-
lho não haveria rendimento. Ainda podia salvar parte da colheita.
Conseguir dinheiro para pagar o empréstimo.
Os quilos derretiam do meu corpo, grama após grama. Dia após
dia. E noite após noite, pois eu dormia mal. Emma cuidava de mim,
me servia, enfeitava a comida com fatias de pepino e tiras de cenou-
ra, mas não adiantava. A comida não tinha gosto de nada, era como
serragem, eu só me alimentava porque precisava, para ter forças e
voltar ao trabalho. Eu sabia que Emma gostaria de fazer bife todo
dia, mas ela também economizava. A gente não dizia nada a respei-
to disso, mas imagino que eu não fosse o único a acompanhar o en-
colhimento do saldo bancário.
Pensando bem, ultimamente a gente não dizia nada sobre nada.
Eu não sabia o que estava acontecendo conosco. Sentia saudades
da minha esposa, ela estava presente, mas ao mesmo tempo não.
Ou talvez na verdade eu não estivesse presente.
Ela suspirou. Quis abraçá-la, do jeito que costumava fazer. Mas
meu corpo resistia. Todas as suas lágrimas se juntavam nessa poça
que nos separava.
Saí de fininho da cozinha, torcendo para que ela não tivesse per-
cebido.
Mas ela se virou.
– Você vê que estou chorando.
Não respondi. Não tinha muito o que dizer.
– Venha cá, então – disse ela de mansinho.
Foi a primeira vez que ela me pediu isso. Mesmo assim, fiquei
parado.
Ela esperou. Ainda segurava o descascador de batatas em uma
das mãos, uma batata na outra. Eu também esperei. Acho que tor-
cia para conseguir esperar até a coisa toda passar. Mas não.
Ela choramingou baixinho.
– Você não se importa.
– Claro que me importo – respondi, mas não fui capaz de encon-
trar seu olhar.
Ela ergueu os braços um pouco.
– Não ajuda nada chorar – falei.
– Não ajuda nada a gente não consolar um ao outro.
Ela distorceu minhas palavras, muitas vezes fazia isso.
– Se eu só ficar aqui te consolando, não vamos ter mais colmei-
as – disse eu. – Nem mais rainhas, nem mais abelhas. Nem mais
mel.
Os braços caíram. Ela se virou.
– Vá trabalhar, então.
Mas eu fiquei parado.
– Vá trabalhar! – repetiu ela.
Dei um passo em sua direção. E mais um. Eu poderia colocar a
mão em seu ombro. Eu poderia fazer isso. Com certeza ajudaria. A
nós dois.
Estendi a mão na direção das costas dela. Ela não viu, já estava
ocupada com as batatas, retirava mais uma da água suja da pia. Ar-
rancou a casca com movimentos rápidos, assim como tinha feito
centenas de vezes antes.
Minha mão estava suspensa no ar, mas não chegou até ela.
No mesmo instante tocou o telefone.
O braço caiu. Eu me virei, fui até o corredor e atendi.
A voz era jovem, quase de menina. Queria saber se era eu. Eu
disse que sim.
– Lee me indicou seu nome – disse ela. – Nós estudamos juntos.
– Certo. – Em outras palavras, ela não poderia ser tão nova co-
mo parecia.
Ela falava depressa. Tinha facilidade com as palavras, fluidez.
Ela trabalhava para um canal de tevê. Explicou que estavam fazen-
do um filme.
– É sobre o DCC.
– Ah, é?
– Desordem do Colapso das Colônias. – Ela o disse pausada-
mente e com clareza exagerada.
– Sei o que é DCC.
– Estamos fazendo um documentário sobre a morte das abelhas
e suas consequências. Você mesmo sentiu isso na pele, não é?
– Lee contou?
– Gostaríamos de dar um toque pessoal à matéria – disse ela.
– Pessoal, tudo bem. E então? – falei.
– Será que poderíamos passar um dia com você, sair com você,
ouvir sua experiência com tudo isso?
– Minha experiência? Isso não deve ser de grande interesse.
– Grande interesse? Sim, de interesse bem grande. É justamen-
te o que queremos mostrar. Como cada um de nós é afetado por is-
so. Como isso destrói o ganha-pão das pessoas. Você teve essa ex-
periência. Tem sido difícil para você?
– Não chegou exatamente a destruir meu ganha-pão – respondi.
De repente não estava gostando do tom que ela usava. Era como se
falasse para um cão ferido.
– Não? Eu tinha entendido que você perdeu quase todas as suas
abelhas.
– Sim. Mas agora já substituí muitas delas.
– Ah.
Houve um silêncio.
– As operárias só vivem por algumas semanas no verão – expli-
quei. – Não demora tanto para colocar outras colmeias em opera-
ção.
– Entendi. Então é isso que você está fazendo agora, colocando
novas colmeias em operação?
– Correto.
– Ótimo! – disse ela.
– Como assim?
– Podemos usar isso. Excelente! Será que poderíamos ir até aí
na semana que vem?
•••
Desliguei. O fone estava suado. Eu tinha vontade de ir ao banheiro.
Tinha me tornado alguém que eles “podiam usar”. Parecia impossí-
vel fugir. Tentei, mas ela me convenceu. Pelo visto era pior do que
Emma.
Televisão nacional. O país inteiro podia assistir. Meu Deus.
Emma tinha entrado no corredor. Enxugava as mãos numa toa-
lha. Os olhos estavam vermelhos, mas felizmente secos.
– Quem era?
Expliquei para ela quem tinha ligado.
– Uma entrevista sobre as abelhas? Por que nós teríamos que
fazer isso?
– Nós não. Eles só vão falar comigo.
– Mas por que você aceitou?
– Pode causar algum impacto. Talvez as autoridades façam algo.
– Me peguei repetindo as palavras que a moça da tevê tinha usado.
– Mas por que nós?
– Eu, nós não – falei em tom duro e me virei para o outro lado.
Não queria mais saber de perguntas, choradeira, amolação.
Do nada fui tomado por ela outra vez. A fadiga. Não a tinha sen-
tido mais desde a visita de Tom no inverno. Fazia muitas semanas.
Mas agora ela veio. Eu seria capaz de me deitar e dormir ali mesmo,
no chão do corredor. O piso desgastado de madeira parecia convi-
dativo. Pensei no termômetro de ursinho, nos pios que ele emitia.
Queria que ele mostrasse temperaturas elevadas, uma febre altíssi-
ma. Então eu teria direito de ficar de cama. Um travesseiro macio,
um edredom quente, como um revestimento sobre meu corpo intei-
ro. Desejei que o termômetro medisse uma febre que nunca baixas-
se.
Mas eu não podia me dar ao luxo de deitar. Nem sequer de me
sentar.
Porque as colmeias estavam lá fora. Vazias e cinzentas. Leves
demais. Precisavam ser preenchidas. E não havia mais ninguém pa-
ra fazer isso. E agora, pelo visto, eu ia aparecer na tevê. Precisava
mostrar que já tinha posto mãos à obra. Que não me deixara abater
por causa de um CCD.
O macacão estava pendurado frouxamente no gancho. O véu e
o chapéu, logo em cima. Embaixo estavam as botas. Parecia um ho-
mem disfarçado, achatado na parede. Tirei o macacão. Comecei a
me trocar. Puxei o zíper, verifiquei se estava bem fechado, vedei to-
das as aberturas.
– Mas logo é hora do almoço – disse Emma. Ela estava ali, com
suas mãos vazias, seus braços vazios.
– Posso comer à noite.
– Mas é bolo de carne. Fiz bolo de carne.
– Temos micro-ondas.
Seu lábio inferior tremeu, mas ela não disse nada. Só ficou as-
sim, imóvel, enquanto eu pus o chapéu, pendurei o véu sobre o ros-
to e saí.
•••
Fui até a campina perto do rio Alabast e passei o resto do dia lá. Pri-
meiro, trabalhei. O tempo estava irritantemente bom. Não deveria
estar tão bom. Não combinava. O sol pairava grande sobre o céu a
oeste, sobre a campina florida. Belo como a imagem de um calendá-
rio.
Mas aí tudo ficou muito pesado. Os braços pareciam quase para-
lisados, o cansaço tomou conta de mim. Não consegui outra coisa
senão caminhar. Dar voltas em torno das novas colmeias. Vazias.
Cinzentas.
Fiquei ali até as abelhas começarem a se recolher. A natureza
serenou.
Só então atravessei a campina. Fui até o outro canto. As pernas
simplesmente me levaram até lá. Em direção às colmeias antigas de
cores carnavalescas, aquelas que restavam e onde ainda tinha vida.
Por que será que justamente essas foram poupadas? Quem ti-
nha decidido isso, que exatamente essas poderiam viver?
Respirei com dificuldade e parei ao lado de uma colmeia amare-
la. Toda vez que ia verificar uma colmeia, eu meio que me encolhia.
Toda vez eu esperava a mesma coisa. Já imaginava as abelhas mo-
ribundas zunindo no fundo da colmeia, o vazio, a rainha a sós com
umas poucas abelhas jovens.
E havia algo de errado com essa também. Tudo quieto demais.
Com certeza tinha algum problema. Conferi a abertura da colmeia.
Só umas poucas abelhas. Não em número suficiente.
Não tive forças.
Mas era necessário.
Com os olhos fechados, peguei a tampa. Então abri a colmeia.
Logo ouvi o som de insetos voando, o zum-zum. Como eu não tinha
ouvido? Estava tudo normal. Totalmente normal, do jeito que deveria
ser. As abelhas zuniam ali dentro. Algumas dançavam. Vislumbrei a
rainha, a marca cor de turquesa nas costas. Vi as crias. O mel límpi-
do e dourado. Elas trabalhavam, elas estavam vivas. E elas esta-
vam aqui.
Minha cabeça girava. Estava tão cansado… Eu me deixei desa-
bar no chão. Fiquei estendido ali. O solo estava quente, a relva ma-
cia. Os olhos se fecharam.
Mas não adormeci. Porque tinha um aperto no peito. A poça de
Emma tinha me alcançado. A água subiu. Bateu nos pés.
Eu não parava de engolir. Não conseguia respirar. Estava me
afogando. Mas lutei. Levantei outra vez. Fiquei olhando para as abe-
lhas, que também lutavam lá embaixo. Travavam a batalha diária
para a prole, para ter pólen o suficiente, para o mel.
Elas também iam morrer. O que eu fazia não era viável. Toda vez
que abrisse uma colmeia seria desse jeito. A mesma sensação, não
importando se elas vivessem ou tivessem sumido. Não valia a pena.
Não valia a pena!
Todos os músculos do meu corpo ficaram tensos. Toda a força
se juntou numa das pernas, no pé, e de repente dei um chute.
A colmeia foi ao chão com um estrondo, e o enxame de abelhas
subiu de uma só vez.
Arranquei os quadros. A essa altura, as abelhas estavam por to-
do lado. Furiosas e apavoradas. Queriam me pegar, se vingar. Pisei
nelas, nas larvas, nas suas crias. Mas o som era vazio, quase não
audível. Não como o vidro quebrado. Mesmo assim continuei. Des-
truindo. Esmagando-as. Arrancando as suas asas. Porque elas es-
tavam me destruindo.
E agora me dei conta. De como era simples.
Podíamos nos destruir mutuamente.
Eu estava no meio de uma nuvem de abelhas furiosas. Elas me
rodeavam, iradas.
Era tão simples.
Levei a mão até o zíper, o véu.
Era só uma questão de dobrar o véu.
Tirar o chapéu.
Arrancar as luvas.
Abrir o zíper depressa, sair do macacão.
Me livrar das botas com um chute.
E só ficar parado aqui, deixando que elas fizessem o trabalho.
Elas iam me picar para se defender. Enfiar o ferrão em mim, sa-
crificar a vida para tirar a minha. E dessa vez meu pai não estaria
aqui. Não me colocaria nos braços e sairia correndo comigo, com
uma nuvem de abelhas em cima de nós, nos seguindo até o rio, on-
de ele mergulharia comigo, me segurando debaixo d’água até elas
pararem o ataque.
Dessa vez eu ia cair. Ficar no chão. O veneno ia passar por mi-
nhas veias. Eu deixaria que elas me picassem e, se parassem, eu
as chutaria com os pés descalços, pisoteando-as, para que continu-
assem, para que me picassem até eu ficar irreconhecível.
Elas teriam sua vingança. Elas mereciam isso.
E aí tudo acabaria.
Eu faria isso agora.
Nesse instante.
Os dedos agarraram o véu. O tecido fininho entre as luvas gros-
sas.
Levantei o véu.
Agora?
Mas então…
Passos atravessando a campina. Vindo na minha direção.
Alguém gritou.
Primeiro com calma, depois mais insistente. Mais alto.
De macacão branco. Chapéu, véu. Todo paramentado, pronto
para trabalhar. Mais uma vez ele tinha chegado sem avisar. Ou tal-
vez Emma soubesse.
Ele tinha chegado. De vez?
Ele já estava correndo. Será que me viu? Viu o que estava pres-
tes a acontecer?
Os gritos ficaram mais altos. Ressoaram estridentes pelo ar.
– Papai? Papai!
Tao

O pai e o menino estavam atrás de mim quando inseri a chave na


fechadura e abri a porta para encontrar uma escuridão noturna va-
zia.
A jaqueta de Kuan não estava pendurada no gancho da entrada.
Os sapatos tinham sumido.
Apertei a maçaneta do banheiro.
A prateleira dele sobre a pia estava vazia. Só um vestígio de sa-
bão onde a gilete costumava ficar.
Ele tinha se mudado sem avisar. Teria ido embora porque que-
ria? Porque achava que eu queria? Porque tudo sobre minha pes-
soa o fazia lembrar de Wei-Wen, assim como tudo sobre sua pessoa
me fazia lembrar dele?
Porque me culpava?
Mais um que desaparecia. Mas dessa vez eu não podia procurar.
Não podia perguntar, não podia entrar em contato com ele. Essa era
sua escolha, eu não tinha direito nenhum de questioná-la. Pois a
culpa ainda era minha.
O rapaz e seu pai continuaram na entrada. Eles me olharam in-
decisos, eu precisava dizer alguma coisa.
– Vocês podem ficar no quarto. – Indiquei-lhes a porta.
Deixei a mala no meio da sala e fiz minha própria cama no sofá.
Ouvi o rapaz falar lá dentro. A voz veio em ondas, entusiasmada,
detalhes práticos que lhe davam energia. Ele tinha reencontrado um
futuro. A escuridão dentro dele tinha desaparecido. Ou talvez eu ti-
vesse exagerado na interpretação de suas palavras da noite anteri-
or. Feito uma leitura delas que incluía minhas próprias questões.
Fui até a janela. A cerca ainda estava lá. Acima dela, um helicóp-
tero circulava no ar. As abelhas estavam resguardadas, como num
casulo, para que nenhuma escapasse, não antes de se tornarem
muitíssimo mais numerosas e de realmente haver certeza de que
poderiam ser controladas. Era isso que Xiara queria.
Ela queria domesticá-las. Elas nos salvariam. Ela queria domá-
las, assim como domava a mim. E eu me deixava ser domada. Era
mais simples assim. Segui-la, não pensar.
O rapaz riu lá dentro do quarto. Foi a primeira vez que o ouvi rir.
Como a risada era jovem e radiante… Eu tinha conseguido fazer al-
guma coisa por ele e por seu pai. O som aumentou, minha respira-
ção ficou mais leve. Quando terá sido a última vez que alguém riu
entre essas quatro paredes?
Atrás de mim estava a mala. Nela estava o livro. Em vez de de-
volvê-lo, eu o lera inteiro, do início ao fim. Guardava as palavras co-
migo, mas não sabia o que fazer com elas. Aquilo era grande de-
mais, eu não tinha forças.
•••
Estavam fazendo os preparativos na praça, arrumando um espaço.
Um pódio foi construído, câmeras foram montadas. Várias equipes
trabalhavam ao mesmo tempo, pois o discurso seria transmitido pa-
ra o mundo inteiro. Uma enérgica produtora dava ordens a torto e a
direito. Ela mandou dispor no fundo grandes cestas repletas de pe-
ras recém-colhidas. O simbolismo parecia exagerado. Mas talvez
fosse necessário.
Ganhei meu próprio camarim. Uma mulher entrou com algumas
roupas para eu escolher. Nada vistoso, mas tudo totalmente novo.
Um corte discreto, parecia o uniforme da fase inicial do Partido, co-
mo que para lembrar aos espectadores de onde eu vinha, que eu
era um deles, alguém do povo. Peças um pouco duras, com vincos
de dobra, mas mesmo assim um tecido macio.
– É algodão – disse a mulher. – Algodão reciclado.
Eu nunca antes tinha sido dona de uma roupa de algodão. Cada
metro custava um salário mensal. Escolhi um terninho azul e o vesti.
O tecido respirava, mal o senti na pele. Dirigi o olhar para o espelho.
Ficava bem em mim. Eu parecia uma delas, talvez aquela que eu re-
almente estava destinada a ser. Parecia Xiara, não uma das traba-
lhadoras dos pomares.
Eu era outra pessoa com esse terninho, a pessoa que ela me pe-
dira para ser. Eu me virei, olhei para o espelho por cima do ombro, o
casaco tinha um caimento perfeito sobre os ombros, a calça ficava
bem no quadril. Puxei as mangas um pouco, elas acabavam exata-
mente no ponto certo.
Então encontrei meu próprio olhar. Meus olhos… Como eram pa-
recidos com os olhos dele. Mas quem era eu? Olhei para baixo.
Wei-Wen nunca tinha vestido uma roupa de algodão. Ele nunca pos-
suíra uma roupa de algodão, e sua breve vida não tivera qualquer
sentido.
Forcei-me a erguer a cabeça outra vez, a olhar para mim mes-
ma. Uma idiota útil olhou de volta para mim.
Não. De repente o tecido estava pinicando a pele. Arranquei a
blusa. Tirei a calça e a deixei jogada no chão.
Tinha que fazer sentido. Aliás, eu sabia como.
Vesti minha própria blusa puída, pus a calça velha, abotoei-a de-
pressa e calcei os sapatos.
Em seguida, peguei minha bolsa no chão, abri a porta do cama-
rim e saí rapidamente. Achei a chefe de produção e a agarrei.
– Onde está Li Xiara? Preciso falar com Li Xiara.
•••
Ela se encontrava no prédio da Comissão do vilarejo, concederam-
lhe o maior escritório. Na hora que cheguei, três homens estavam
sendo enxotados de lá por um guarda, embora fosse evidente que a
conversa entre eles estivesse longe de ser encerrada.
Xiara se levantou rapidamente, foi a meu encontro, esboçou um
de seus sorrisos gentis, mas isso agora era dispensável.
– Olhe aqui. – Estendi-lhe o livro.
Ela o pegou, mas não o abriu, nem olhou para ele.
– Tao, estou aguardando seu discurso ansiosamente.
– Então você precisa ler o livro – respondi.
– Se quiser, podemos dar mais uma repassada nele, estou à dis-
posição. O teor. Talvez possamos fazer alguns ajustes…
– Só quero que você leia – falei.
Enfim ela dirigiu o olhar para o livro, passou um dedo sobre o tí-
tulo.
– O apicultor cego?
Fiz que sim.
– Não faço nada, não faço discurso nenhum antes de você ter li-
do esse livro.
Ela levantou os olhos depressa.
– O que você está dizendo?
– Vocês estão fazendo tudo errado.
Os olhos se estreitaram.
– Estamos fazendo tudo ao nosso alcance.
Eu me inclinei para a frente, encarei-a e disse em voz baixa:
– Elas vão morrer. De novo.
Ela olhou para mim. Esperei uma resposta, mas ela não veio.
Será que estava refletindo? Digerindo o que eu havia dito? Ou será
que minhas palavras sequer significavam alguma coisa para ela?
Senti a raiva subir. Será que ela não poderia dizer alguma coisa?
Não consegui ficar mais ali, virei-me e fui em direção à porta. En-
tão ela finalmente reagiu.
– Espere.
Abriu o livro e passou calmamente para a folha de rosto.
– Thomas Savage. – Ela olhou o nome do autor. – Americano?
– Foi o único livro que ele escreveu – disse eu prontamente. –
Mas isso não o torna menos importante.
Ela levantou a cabeça e olhou para mim outra vez. Então fez um
gesto em direção a uma cadeira.
– Sente-se. Conte-me.
•••
Primeiro me afobei, desatei a falar desordenadamente, saltando as
explicações para trás e para a frente. Mas então entendi que ela es-
tava me concedendo tempo. Varias vezes houve batidas à porta,
muitos estavam esperando, mas ela rejeitou todos os chamados, e
pouco a pouco me acalmei.
Falei sobre o autor, Thomas Savage. O livro se baseava em suas
experiências e em sua vida. A família Savage contava várias gera-
ções de apicultores. O pai de Thomas esteve entre os primeiros a
serem afetados pelo Colapso e foi um dos últimos a desistir. E ele
trabalhou com o pai até o fim. Eles logo fizeram a transição para a
apicultura orgânica, foi uma exigência de Thomas. Nunca forçavam
as abelhas a viajar, não tiravam mais mel do que o necessário para
sobreviver. Mesmo assim, não foram poupados. A morte das abe-
lhas se repetia. Vezes sem fim. No final, foram obrigados a vender o
apiário. Só então, aos cinquenta anos de idade, Savage sentou para
escrever sobre sua vivência, sobre o futuro. O apicultor cego era vi-
sionário, mas mesmo assim realista e concreto, pois se baseava nu-
ma vida toda de experiência prática.
O livro foi publicado em 2037, somente oito anos antes de o Co-
lapso tornar-se um fato global. O autor previu o destino da humani-
dade. E como talvez pudéssemos nos reerguer das cinzas.
Quando terminei, Xiara ficou calada. Ela manteve as mãos quie-
tas sobre o livro. O olhar, impossível de decifrar, pousou em mim.
– Você pode sair agora.
Será que estava me expulsando? Se eu recusasse, ela buscaria
os guardas, dando-lhes ordem de me levar para casa? Exigiria que
eu ficasse lá no apartamento até o momento do discurso e então me
obrigaria a fazê-lo? E outros mais, contrários às minhas convicções?
Mas ela não fez nada disso. Apenas abriu o livro no primeiro ca-
pítulo e voltou sua atenção para o texto.
Fiquei parada. Então ela ergueu os olhos mais uma vez e fez um
gesto indicando a porta.
– Agora gostaria de ficar só. Obrigada.
– Mas…
Ela colocou uma das mãos sobre o livro, como que para protegê-
lo. Em seguida disse baixinho:
– Eu também tenho filhos.
William

Nas paredes, o papel pendia em farrapos, sua amarelidão ainda era


invasiva. E Charlotte estava cantando. Hoje, como todos os dias,
cantarolava melodiosamente tons suaves, enquanto varria o chão
com movimentos precisos. Com o rosto voltado para a janela, eu
acompanhava o esvoaçar das folhas marrons ao vento.
Ela juntou a sujeira numa pá e deixou-a ao lado da porta. Depois
se virou para mim.
– Quer que bata seu cobertor?
Sem esperar a resposta, ela tirou o cobertor e o levou em dire-
ção à janela. Fiquei deitado só de camisola, sentindo-me despido,
mas ela não olhou para mim.
Charlotte abriu a janela, o ar fluiu para dentro. Estava mais frio
desde ontem. Senti um arrepio nas pernas e me encolhi.
Ela estendeu o cobertor do lado de fora e sacudiu-o com movi-
mentos amplos. Ele se erguia como uma vela, antes de ela deixá-lo
cair. Quando estava pendurado para baixo, em linha quase vertical,
ela dava mais um puxão e levantava-o na frente da janela.
Depois de terminar, estendeu o cobertor sobre mim, ele estava
tão frio quanto o ar lá fora. Então ela trouxe uma cadeira para perto
da cama e ficou em pé com a mão no espaldar.
– Quer que eu leia para você?
Ela não esperou a resposta. Nunca esperava a resposta, sim-
plesmente foi até a estante de livros, que mais uma vez estava orga-
nizada com esmero. Hesitou um pouco, deixou o dedo indicador
passar rapidamente sobre as lombadas. Então ela parou e tirou um
deles.
– Vamos pegar este.
Não vi o título. Ela também não o leu para mim, devia saber que
não fazia diferença. O importante não era o que ela lia, mas o fato
de que lia.
– Charlotte – disse eu, com a voz enferrujada de um velhinho,
que não era a minha. – Charlotte…
Ela ergueu os olhos. Sacudiu a cabeça de leve. Eu não precisa-
va dizê-lo, não deveria dizê-lo. Pois eu já o repetira inúmeras vezes,
e ela o sabia tão bem. O que eu lhe pedia era que saísse. Fosse
embora, me abandonasse. Pensasse cm si mesma. Vivesse, não
para mim, mas para ela.
Sua resposta, porém, era sempre a mesma. De qualquer forma,
eu continuaria a dizer a mesma coisa, vezes sem fim. Não poderia
deixar de fazê-lo. Eu devia isso a ela, pois ela me doava toda a sua
vida. No entanto, palavra alguma era capaz de tirá-la daqui, palavra
alguma era capaz de impedi-la.
Ela só queria estar comigo.
Sua voz preencheu o quarto juntamente com o ar frio de outono.
Mas eu já não sentia frio. As palavras envolviam-me. Agora ela con-
tinuaria a leitura por muito tempo, nunca se deixava perturbar.
Estendi a mão, sabendo que ela a pegaria.
Assim ela ficou sentada, hoje como nos outros dias, com a mão
tranquilamente na minha, deixando o silêncio encher-se de palavras.
Ela desperdiçava as palavras comigo, desperdiçava seu tempo, sua
vida. Isso por si só seria razão suficiente para eu me pôr em pé.
Mas eu não tinha forças. Foram-me roubadas. Não, não me foram
roubadas, eu dissipara tanto minha vontade quanto minha paixão.
Então, de repente, um som subiu do andar de baixo. Um som
que eu não ouvia há muitos anos. O choro de um bebê. Um bebê?
Não era meu. Talvez de alguém que estivesse fazendo uma visita?
Mas quem? Meses haviam-se passado sem que eu ouvisse na casa
vozes que não fossem de minha família.
Charlotte interrompeu a leitura. De fato, ela se deixou perturbar e
inclinou-se um pouco para a frente, como se estivesse prestes a sair
correndo.
Alguém acalentou a criança lá embaixo. Teria sido Thilda?
O bebê choramingou, mas pareceu se consolar. Aos poucos,
acalmou-se.
Charlotte reclinou-se na cadeira, pegou o livro e retomou a leitu-
ra.
Fechei os olhos. Sentia sua mão na minha e percebia as pala-
vras que ondulavam no ar entre nós. Os minutos passaram. Ela lia e
eu me mantinha em silêncio absoluto, tomado por uma profunda
gratidão.
Mas então o choro do bebê recomeçou. Mais alto agora. Charlot-
te parou.
Puxou a mão para si.
O choro intensificou-se até se tornar desesperado, inconsolável,
abalando as paredes.
Então ela se levantou e deixou o livro de lado. Foi depressa em
direção à porta.
– Sinto muito, pai.
Ela abriu a porta. O choro encheu o quarto.
– O bebê… – disse eu.
Ela parou no vão da porta.
Tentei encontrar as palavras.
– Chegou alguma visita?
Ela sacudiu a cabeça.
– Não… Eu… O bebê é nosso agora.
– Mas como…?
– A mãe morreu ao dar à luz. E o pai… não consegue cuidar de-
le.
– Quem é? – perguntei. – Ele está aqui?
– Não, pai… – Ela hesitou. – Está em Londres.
Subitamente compreendi. Soergui-me na cama, tentei olhar com
severidade para ela, fazer com que dissesse a verdade.
– É filho dele, não é? De Edmund?
Ela piscou em ritmo acelerado. Não respondeu, mas também
não precisou.
– Sinto muito – repetiu.
Então ela se virou e saiu.
Deixou a porta aberta. Ouvi seus passos ligeiros na escada, de-
pois no térreo, caminhando depressa.
– Estou chegando.
Ela parou.
– Já estou com ele…
A voz ficou mais baixa.
– Assim… xu xu… xu xu… shh…
E então.
Seu canto suave e sussurrado.
Mas agora ela não estava cantando para mim.
Por fim não estava mais cantando para mim. Estava cantando
para o bebê em seus braços, embalando-o lentamente.
Ge orge

Os grandes tremores. Estavam em mim. Há dias. De manhã, de tar-


de, de noite.
Eu tinha dificuldade de segurar os talheres. Emma via isso, mas
não dizia nada. Tinha dificuldade de usar as ferramentas, a chave
de fenda caía no chão, a serra fazia desvios feios.
Toda santa manhã eu acordava com o coração acelerado e te-
meroso de uma lebre.
Acordava, descia e ali estava ele. Ele só olhava para mim de-
pressa, dava um alô com um breve gesto de cabeça, e mergulhava
outra vez num livro. Mas estava tudo bem.
Porque ele não tremia.
Ele não vacilava. Mesmo quando virava as páginas de um livro
seus movimentos eram seguros, determinados e calmos. A xícara
de café era levantada com a mão firme. Os passos que iam para a
campina, para as colmeias, exatamente iguais, o pé tocando o chão
com precisão.
E eu ia atrás. O tempo todo com essa tremedeira dentro de mim.
Mas eu via seus passos sobre a campina. Via-o pegar peso
usando as pernas, não as costas, se flexionando, carregando as coi-
sas, colocando-as no chão, repetidas vezes. Conforme eu via esses
movimentos, minha tremedeira ia melhorando. A cada dia ficava
mais fácil segurar o garfo.
E aí, enquanto a gente extraía o mel, enquanto o sol de outono
estava baixo e suave no céu, tão amarelo como as gotas que a gen-
te tirava dos quadros, de repente me dei conta: ela tinha sumido. A
tremedeira tinha sumido.
Trabalhei com mãos calmas, tranquilas. Como ele. Ao lado dele.
E exatamente no mesmo ritmo.
Tao

A colmeia ficava a céu aberto na margem dos pomares, perto da flo-


resta. Ela era vigiada, mas a tenda já fora retirada.
As pessoas tinham se reunido a uma distância segura, estavam
ali observando calmamente a colmeia. Ninguém a temia, as abelhas
não eram perigosas. A alergia de Wei-Wen fora um caso isolado.
Em torno de nós, havia flores por todo lado, arbustos recém-planta-
dos, vermelhos, cor-de-rosa, laranja, o mesmo mundo de conto de
fadas que eu tinha visto dentro da tenda, mas que agora se estendia
sobre uma grande área, pois as árvores frutíferas dali tinham sido
cortadas e substituídas por novas plantas.
Os militares tinham ido embora, o cercado fora derrubado, a ten-
da, removida. O casulo se abrira, e a colmeia vivia entre nós. As
abelhas poderiam voar onde quisessem, completamente livres.
Ela estava a dez metros de distância de mim, na sombra das ár-
vores, o sol se infiltrando por entre a folhagem, não muito longe do
lugar onde a primeira colmeia silvestre tinha sido encontrada. Não
muito longe do lugar onde Wei-Wen fora picado. A colmeia padrão
de Savage, tal e qual Thomas Savage a havia desenhado no livro O
apicultor cego. A colmeia que estivera com sua família desde 1852,
cujos desenhos desapareceram em algum momento da história,
mas cujas medidas e aspecto Savage havia memorizado e dese-
nhado outra vez. Da mão do inventor, a colmeia fora destinada à
produção de mel e à observação, nela ele desejava domar as abe-
lhas.
Mas as abelhas não podem ser domadas. Só podem ser cultiva-
das, receber nossos cuidados. Apesar do objetivo original da col-
meia, ela era uma boa casa para as abelhas. Aqui tudo tinha sido
adaptado para que elas pudessem se multiplicar e reproduzir. O mel
ficaria para elas mesmas, nada seria colhido, jamais explorado. Ele
desempenharia o papel que lhe tinha sido atribuído pela natureza: o
de alimento para os recém-nascidos.
O som era diferente de tudo o que eu já tinha ouvido. Entrando e
saindo, entrando e saindo, as abelhas não paravam. Levavam con-
sigo néctar e pólen, nutrição para a prole. Mas não para as poucas
crias que eram suas, cada abelha trabalhava para a colônia, para to-
das as demais abelhas, para o organismo que elas juntas constituí-
am.
O zunido pulsava no ar, fez algo vibrar dentro de mim. Um tom
que me acalmou, deixando mais leve minha respiração.
Fiquei parada assim. Tentei seguir com os olhos uma abelha de
cada vez, ver o trajeto de cada uma da colmeia para as flores, de
flor em flor, e depois de volta para a colmeia. Mas eu as perdia de
vista. Elas eram numerosas demais, e o padrão dos movimentos,
impossível de compreender.
Então resolvi pousar o olhar no todo, na colmeia e em toda a vi-
da que a cercava, toda a vida que ela sustentava.
Enquanto eu estava ali, alguém surgiu a meu lado. Eu me virei.
Era Kuan. Ele estava prestando atenção na colmeia, levantara a ca-
beça para enxergar melhor. Mas então ele me viu.
– Tao…
Ele se aproximou de mim. Um andar desconhecido, mais pesa-
do, como se ele já tivesse ficado velho.
Ficamos de frente um para o outro. Kuan fixou os olhos em mim
e não os baixou, como muitas vezes tinha feito. Os olhos estavam
rodeados de sombras escuras. Seu rosto estava abatido, pálido.
Senti saudades dele. Saudades daquele que ele tinha sido. De
seu lado radiante, leve, de seu contentamento, da alegria com o fi-
lho que ele tinha tido. E com o filho que ia ter. Eu desejava dizer al-
go que trouxesse essa luz de volta, mas não encontrei nenhuma pa-
lavra.
Nós nos viramos para a colmeia, ficamos assim, lado a lado,
olhando para ela. Nossas mãos quase se tocaram, mas nenhum de
nós pegou a mão do outro, dois adolescentes que não tinham cora-
gem. O calor entre nós. Ele estava de volta.
Uma abelha passou por nós a apenas um metro de distância.
Deu uma guinada para a direita, um movimento aparentemente não
planejado, e então voou entre nós – pude sentir na face o ar se des-
locar –, e desapareceu entre as flores.
Naquele momento ele pegou minha mão.
Respirei aceleradamente. Foi ele quem teve coragem dessa vez.
Enfim ele me tocou de novo. Minha mão ficou pequena ao en-
contrar a dele. Ele compartilhou seu calor comigo.
Simplesmente ficamos ali, de mãos dadas, enquanto olhávamos
para a colmeia.
E então.
Ele pronunciou as palavras, as palavras pelas quais eu tinha an-
siado tanto.
Em voz baixa e clara, com uma seriedade incomum nele. Não
como algo que precisava dizer, mas que queria dizer:
– Não foi sua culpa, Tao. Não foi sua culpa.
•••
Mais tarde, depois de termos nos despedido, segui sozinha pelo ca-
minho dos pomares. As abelhas ainda vibravam dentro de mim. E
as palavras dele liberavam palavras dentro de mim.
Continuei andando, cada vez mais devagar, até cessar o movi-
mento. Fiquei parada entre as árvores frutíferas. Tudo estava aber-
to, não havia vestígio das cercas e dos militares, tudo estava como
antes, como nessa mesma época do ano passado. Folhas amarelas
caíam como neve, recobrindo o chão. Logo as árvores estariam nu-
as. Todas as peras tinham sido colhidas, cada uma apanhada cuida-
dosamente, embalada em papel e levada embora. Peras de ouro.
Mas no horizonte vislumbravam-se mudanças. As fileiras de ár-
vores frutíferas já não eram intermináveis. Os trabalhadores esta-
vam desenterrando as raízes e arrancando as árvores. A visão de
Thomas Savage finalmente se tornaria realidade. Abrimos mão do
controle, a floresta teria chance de se espalhar. No solo, outras plan-
tas seriam semeadas, grandes áreas ficariam sem cultivo.
Sim. Eu queria fazer o discurso agora, assim como ela desejava.
Pois eu mesma também desejava isso, falar sobre Wei-Wen. Eu fa-
laria sobre o que ele significava para todos nós, o que ele passaria a
representar. Grandes bandeiras perto da praça, cartazes nas pare-
des das casas, faixas sobre as portas dos edifícios públicos exibiam
sua imagem.
Era uma das poucas fotografias que possuíamos dele, um retrato
fora de foco e desbotado, tirado contra um fundo neutro, cinzento,
mas nos cartazes as cores eram claras, os contrastes definidos, e
uma luz especial fora atribuída aos olhos.
Essa imagem colorida e nítida era o que o mundo via, e era so-
bre isso que eu iria falar. Não sobre ele, Wei-Wen, ninguém jamais o
teria. As pessoas lá fora nunca sentiriam sua excitação, sua teimo-
sia, sua birra. Nunca saberiam como ele às vezes acordava cantan-
do desafinado, mas com entusiasmo. Nunca ouviriam falar de seu
nariz eternamente escorrendo, das trocas de calças molhadas de xi-
xi, da massagem de pés gelados, ou da sensação de um corpo
quente de sono a meu lado, à noite. Para eles, ele nunca seria nada
disso. Por isso já não importava. Por isso quem ele tinha sido não
era mais importante. A vida de um único ser humano, a carne, o
sangue, os fluidos corporais, os sinais nervosos, os pensamentos,
os medos e os sonhos de uma única pessoa não significavam nada.
Meus sonhos para ele também não significavam nada. Não enquan-
to eu não fosse capaz de inseri-los num contexto mais amplo, de
perceber que os mesmos sonhos teriam de valer para todos nós.
Mesmo assim, Wei-Wen teria importância. A imagem dele. O me-
nino com o lenço vermelho, seu rosto, isso representava a nova era.
Para milhões de pessoas, o rosto redondo, os olhos grandes e bri-
lhantes fitos num céu azul intenso estariam associados a uma única
palavra, um único sentimento unificador: a esperança.
Agradecimentos

Um grande agradecimento a todos os profissionais que dispende-


ram tempo para ler o manuscrito e responder às minhas perguntas:
historiadores Ragnhild Hutchinson e Johanne Nygren; especialista
em cultura chinesa Tone Helene Aarvik; zoólogo Petter Bøckman;
médico Siri Seterelv; consultor sênior dos apicultores noruegueses
Bjørn Dahle; orientador acadêmico da Bybi Ragna Ribe Jørgensen;
autor e apicultor Roar Ree Kirkevold; apicultores Ingar Tallakstad Lie
e Per Sigmund Bøe; além de Isaac Barnes da Honeyrun Farm em
Ohio.
Agradeço também ao comprometimento de todas as pessoas
que leram, comentaram e apoiaram este projeto durante seu anda-
mento: Hilde Rød-Larsen, Joakim Botten, Vibeke Saugestad, Guro
Solberg, Jørgen Lunde Ronge, Mattis Øybø, Hilde Østby, Cathrine
Movold, Gunn Østgård e Steinar Storløkken.
Não menos importante, agradeço a minha sábia editora Nora
Campbell e todos os seus talentosos colegas da Aschehoug, que
têm demonstrado enorme entusiasmo com Tudo que deixamos para
trás desde o primeiro dia.
Utilizei uma ampla gama de fontes para estruturar este romance.
Entre os mais importantes incluem-se os livros The Hive, de Bee
Wilson; Ingar’sis birøkt, de Roar Ree Kirkevold; Langstroth’s Hive
and the Honey-Bee, do Rev. Lorenzo Lorraine Langstroth, A World
Without Bees, de Alisson Benjamin e Brian McCallum; bem como
Det nye Kina, de Henning Kristoffersen, além dos documentários Va-
nishing of the Bees, More than Honey, Who killed the Honey Bee, Si-
lence of the Bees e Queen of the Sun.
Oslo, maio de 2015.
Maja Lunde
MAJA LUNDE
é autora e roteirista norueguesa. Ela nasceu e cresceu em
Oslo, onde vive até hoje com seu marido e três filhos. Pos-
sui mestrado em Mídia e Comunicação pela Universidade
de Oslo e escreveu aclamados livros infantojuvenis. Maja
também escreve roteiros para programas de televisão, in-
cluindo o drama Hojm e a série de humor Side om Side,
ambas com grande sucesso de audiência. Tudo Que Dei-
xamos Para Trás é seu primeiro livro adulto e seus direitos
já foram vendidos para mais de 25 países.

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