Tudo Que Deixamos para Trás - Maja Lunde
Tudo Que Deixamos para Trás - Maja Lunde
Tudo Que Deixamos para Trás - Maja Lunde
Página de título
Créditos
Dedicatória
Capítulo 1: Tao
Capítulo 2: William
Capítulo 3: George
Capítulo 4: Tao
Capítulo 5: William
Capítulo 6: George
Capítulo 7: Tao
Capítulo 8: William
Capítulo 9: George
Capítulo 10: Tao
Capítulo 11: William
Capítulo 12: Tao
Capítulo 13: George
Capítulo 14: Tao
Capítulo 15: George
Capítulo 16: William
Capítulo 17: Tao
Capítulo 18: George
Capítulo 19: William
Capítulo 20: Tao
Capítulo 21: George
Capítulo 22: William
Capítulo 23: George
Capítulo 24: William
Capítulo 25: Tao
Capítulo 26: William
Capítulo 27: George
Capítulo 28: William
Capítulo 29: Tao
Capítulo 30: George
Capítulo 31: William
Capítulo 32: Tao
Capítulo 33: George
Capítulo 34: Tao
Capítulo 35: George
Capítulo 36: William
Capítulo 37: Tao
Capítulo 38: George
Capítulo 39: William
Capítulo 40: George
Capítulo 41: Tao
Capítulo 42: William
Capítulo 43: George
Capítulo 44: William
Capítulo 45: Tao
Capítulo 46: William
Capítulo 47: George
Capítulo 48: Tao
Capítulo 49: William
Capítulo 50: Tao
Capítulo 51: George
Capítulo 52: William
Capítulo 53: George
Capítulo 54: Tao
Capítulo 55: William
Capítulo 56: George
Capítulo 57: Tao
Capítulo 58: George
Capítulo 59: Tao
Capítulo 60: George
Capítulo 61: Tao
Capítulo 62: William
Capítulo 63: George
Capítulo 64: Tao
Agradecimentos
Sobre a autora
Para Jesper, Jens e Linus
Tao
Com frequência ela ficava sentada ali, ao lado de minha cama, de-
bruçada sobre um livro. Virava as folhas devagar, lendo concentra-
damente. Minha filha Charlotte, de catorze anos de idade, deveria
ter muito mais a fazer do que procurar minha companhia silenciosa.
No entanto, suas visitas eram cada vez mais frequentes. Eu distin-
guia a noite do dia por sua presença e sua leitura incessante.
Hoje Thilda não tinha passado por aqui. Agora, ela vinha me ver
raramente e nem arrastava mais o médico de família para cá. Talvez
o dinheiro tivesse acabado de verdade.
Thilda não citara o nome de Rahm uma única vez. Isso eu teria
sabido, mesmo que ela viesse a mencioná-lo enquanto eu estivesse
em meu sono mais profundo. O nome dele seria capaz de me des-
pertar do reino dos mortos. Provavelmente, ela nunca se deu conta,
nunca compreendeu que a conversa com Rahm naquele nosso últi-
mo encontro, a risada dele, me conduzira até aqui, até este quarto,
esta cama.
Foi ele quem me pediu que fosse a sua casa. Eu não sabia por
que ele queria me encontrar. Não o visitava há anos. Somente troca-
va as palavras obrigatórias de cortesia com ele nas raras vezes em
que nos encontrávamos na cidade, e era sempre ele quem interrom-
pia a conversa.
Quando fui visitá-lo, o outono estava no auge de seu esplendor.
As folhas compunham um intenso jogo de cores – amarelo límpido,
marrom quente, vermelho encarnado. Foi antes de o vento ter con-
seguido arrancá-las, forçando-as ao chão e ao apodrecimento. A na-
tureza transbordava de frutos: árvores pesadas de maçãs, ameixas
suculentas, peras melífluas que vertiam doçura. E a terra, sua co-
lheita ainda não terminara, estava repleta de cenouras crocantes,
abóboras, cebolas e ervas aromáticas que se espalhavam pelos
campos, tudo pronto para ser colhido, para ser comido. Era possível
viver tão despreocupadamente como no Jardim do Éden. Meus pés
se movimentavam com facilidade sobre o chão enquanto eu passa-
va por um arvoredo coberto de hera verde-escura a caminho da ca-
sa de Rahm. Estava ansioso para revê-lo, para ter tempo de conver-
sar direito com ele, assim como fazíamos anos atrás, muito antes de
eu me tornar pai de tantos filhos, antes de a loja de sementes tomar
todo o meu tempo.
Ele me recebeu na porta. Ainda usava o cabelo à escovinha, ain-
da era magro, musculoso, forte. Deu um sorriso rápido, seus sorri-
sos nunca duravam muito tempo, mas eram reconfortantes mesmo
assim. Então Rahm conduziu-me a seu gabinete de estudo, no qual
se viam numerosas plantas e recipientes de vidro. Dentro de vários
deles eu vislumbrava anfíbios – rãs e sapos adultos – criados desde
o estágio de girino, eu imaginava. Todo o seu interesse estava dire-
cionado para essa área das ciências naturais. Ao procurá-lo depois
de me formar, dezoito anos atrás, estava esperançoso para estudar
insetos, em particular as espécies sociais, cujos indivíduos funcio-
nam em conjunto quase como um organismo, um superorganismo.
Nisso residia minha paixão, nos abelhões, vespas, marimbondos,
cupins, abelhas. E formigas. Em sua opinião, porém, isso viria de-
pois, e logo eu também estava muito ocupado com esses seres in-
termediários que enchiam seu escritório, seres que não eram inse-
tos, nem peixes, nem mamíferos. Sendo apenas seu assistente de
pesquisa, eu não podia protestar. Era uma honra trabalhar para ele,
eu estava muito ciente disso e procurava mostrar uma gratidão reve-
rente em vez de fazer exigências. Tentei adotar seu fascínio pelos
anfíbios, imaginando que, quando chegasse a hora, quando eu esti-
vesse pronto, ele me deixaria dedicar algum tempo a meus próprios
projetos. No entanto, esse dia nunca chegou, e logo ficou claro para
mim que seria melhor realizar estudos individuais nas horas livres –
começar pelo básico e progredir lentamente, com esforço. Mas tam-
pouco tive tempo para isso, nem antes nem depois de Thilda.
A governanta trouxe biscoitos e chá, que tomamos em xícaras
delicadas e tão finas que quase desapareciam entre os dedos. Ele
próprio comprara essas peças em uma das muitas viagens que fez
ao Extremo Oriente antes de fixar residência aqui no campo.
Enquanto bebericávamos o chá, ele me contou sobre o trabalho.
Sobre a pesquisa que estava fazendo, sobre suas palestras científi-
cas mais recentes, sobre seu próximo artigo. Escutei, com gestos de
aprovação, fiz perguntas, esforcei-me para me expressar de forma
qualificada, e tornei a escutar. Mantive o olhar nele, esperando ser
retribuído. Mas Rahm olhava pouco para mim, preferindo deixar os
olhos passarem sobre o ambiente, os objetos, como se estivesse fa-
lando com eles.
Então houve um silêncio. O único som era o do vento, que arran-
cava folhas acastanhadas das árvores lá fora. Tomei um gole de
chá, e o som do trago ruidoso cresceu no silêncio do escritório. O
calor subiu-me até as faces e me apressei a colocar a xícara na me-
sa. Mas ele parecia não ter notado nada, continuava calado, sem
prestar a mínima atenção a mim.
– É meu aniversário hoje – disse ele enfim.
– Peço desculpas… não fazia ideia… meus parabéns!
– Sabe quantos anos faço? – Dirigiu os olhos para mim.
Hesitei. Quantos anos teria? Muitos. Deveria ter bem mais que
cinquenta. Talvez estivesse perto dos sessenta? Contorci-me, per-
cebendo de repente como o escritório estava quente, e tossi. O que
deveria responder?
Já que eu não disse nada, ele baixou o olhar.
– Não importa.
Será que estava desapontado? Eu o teria desapontado? Mais
uma vez?
No entanto, seu rosto não indicou nada. Ele pôs a xícara de chá
na mesa, pegou um biscoito, algo tão trivial, um biscoito – embora a
conversa que estávamos prestes a iniciar fosse tudo menos trivial –,
e o colocou no prato.
Não comeu, simplesmente o deixou ali. Havia um silêncio incô-
modo no escritório. Eu precisava dizer algo, era minha vez agora.
– O senhor pretende comemorar o dia? – perguntei, e me arre-
pendi no mesmo instante. Que pergunta mais ridícula, como se ele
fosse uma criança.
Ele nem se dignou a responder, ficou ali sentado com o prato na
mão, mas sem comer, apenas olhando para o pequeno biscoito se-
co. Mexeu os dedos, o biscoito deslizou em direção à borda do pra-
to, mas ele rapidamente o endireitou, salvando-o no último segundo,
e colocou o prato na mesa.
– O senhor era um estudante promissor – disse de repente.
Tomou fôlego, como se fosse dizer algo mais, mas não veio ne-
nhuma palavra.
Pigarreei.
– Ah, é?
Ele mudou de posição.
– Quando o senhor me procurou, eu tinha grandes esperanças. –
Deixou os braços caírem, o tronco ereto. – Foi seu tremendo entusi-
asmo e sua paixão que me convenceram. De outro modo, não teria
pensado em aceitar um assistente.
– Obrigado, professor. São palavras muito lisonjeiras.
Rahm endireitou as costas, ficou sentado em ângulo reto, como
se ele próprio fosse um aluno, e lançou-me um rápido olhar.
– Mas aconteceu algo… com o senhor?
Senti um aperto no peito. Uma pergunta. Era uma pergunta. Mas
o que eu responderia?
– Já tinha acontecido quando fez a apresentação sobre Swam-
merdam? – continuou ele, fitando-me mais uma vez brevemente. O
olhar firme de costume tornou-se vago.
– Swammerdam? Mas isso já faz tantos anos… – disse eu de-
pressa.
– Exatamente. Muitos anos… E foi lá que o senhor a conheceu?
– O senhor quer dizer… minha esposa?
Seu silêncio confirmou minha pergunta. Sim, conheci Thilda lá,
depois da palestra. Ou melhor, as circunstâncias levaram-me até
ela. As circunstâncias… Não, Rahm levou-me até ela. Foi sua risa-
da, seu desdém, o que me fez olhar para o outro lado, para o lado
dela.
Quis dizer algo sobre isso, mas não encontrei as palavras. Como
continuei calado, ele se inclinou ligeiramente para a frente e tossiu
baixinho.
– E agora?
– Agora?
– Por que, afinal, o senhor trouxe filhos ao mundo?
A frase foi dita numa voz mais alta, uma voz quase esganiçada,
e agora ele me encarou, não cedeu, um gelo havia brotado dentro
dele.
– Por quê…? – Apressei-me a desviar o olhar, era incapaz de
encará-lo, encarar a dureza em seus olhos. – Hum… É o que se
faz…
Ele pôs as mãos nos joelhos, de modo retraído e inquisitório ao
mesmo tempo.
– É o que se faz? Bem, talvez seja assim. Mas por que o se-
nhor? O que o senhor tem para dar a eles?
– O que dar? Comida, roupa.
Abruptamente, ele levantou a voz:
– Não me venha com sua maldita loja de sementes!
Inclinou-se bruscamente para trás outra vez, como se quisesse
se manter afastado de mim, e esfregou as mãos no colo.
– Não… – Lutei contra o menino humilhado de dez anos que ha-
via dentro de mim e tentei manter a calma, mas percebi que estava
tremendo. Quando finalmente consegui dizer algo mais, a voz soou
aguda e forçada. – Gostaria muito. Mas é só que… Como o profes-
sor com certeza entende… O tempo não permite.
– O que o senhor quer que eu diga? Que isso é perfeitamente
aceitável? – Ele se levantou. – É aceitável que o senhor não tenha
tempo? – Ficou em pé diante de mim, deu um passo em minha dire-
ção, cresceu, tornou-se grande e sombrio. – É aceitável que o se-
nhor ainda não tenha terminado de escrever um único artigo científi-
co? É aceitável que suas prateleiras estejam cheias de livros que
não foram lidos? E aceitável que eu tenha gasto todo esse tempo
com o senhor e o senhor não tenha realizado mais nesta vida do
que um reprodutor mediano?
A última expressão ficou vibrando no ar entre nós.
Um reprodutor. Para ele, eu era isto. Um animal reprodutor.
Um fraco protesto cresceu dentro de mim. Será que ele realmen-
te tinha gastado tanto tempo comigo ou apenas me usara a serviço
de seus projetos? Pois talvez fosse isso o que na verdade ele qui-
sesse, que eu herdasse sua pesquisa, a mantivesse viva. Que o
mantivesse vivo. Mas engoli as palavras.
– É isso que o senhor deseja ouvir? Não é? – perguntou, com os
olhos tão vazios quanto os dos anfíbios que olhavam para nós dos
recipientes de vidro. – Que a vida é assim? A vida é assim, eu deve-
ria dizer, você se reproduz, tem uma prole, instintivamente coloca as
necessidades dela em primeiro lugar, são bocas para alimentar, vo-
cê se torna um animal provedor, o intelecto dá lugar à natureza. Não
é sua culpa. E ainda não é tarde demais. – Ele me encarou até doer.
– E isso que o senhor quer ouvir? Que ainda não é tarde demais?
Que seu tempo chegará?
Então ele riu bruscamente. Aquela risada curta e dura, sem ale-
gria, cheia de escárnio. Foi breve, mas permaneceu dentro de mim.
A mesma risada de antes.
Rahm se calou, mas não esperou por minha resposta. Deveria
saber que eu não teria forças para dizer nada. Ele simplesmente foi
até a porta e a abriu.
– Lamento ter de pedir ao senhor que vá embora. Tenho trabalho
a fazer.
Ele me abandonou sem dizer adeus, deixando a governanta
acompanhar-me até a saída. Vagueei de volta até meus livros, mas
não tirei nenhum para folhear. Nem aguentei olhar para eles, só me
enfiei na cama e fiquei lá, fiquei aqui, enquanto os livros juntavam
poeira… Todos os textos que eu uma vez tinha desejado ler e com-
preender.
Eles ainda estavam ali, ajeitados de forma desorganizada, al-
guns com a lombada mais para fora do que os outros, como dentes
desiguais na prateleira. Virei-me para o outro lado, não suportei vê-
los. Charlotte ergueu a cabeça, notando que eu estava acordado, e
de pronto pôs o livro de lado.
– Está com sede?
Ela se levantou, pegou uma caneca com água e estendeu-a para
mim.
Virei a cabeça para o outro lado.
– Não. – Ouvi o tom categórico de minha própria voz e me apres-
sei a acrescentar: – Obrigado.
– Quer alguma outra coisa? O médico disse…
– Nada.
Ela tornou a se sentar e me olhou atentamente, como se estives-
se me estudando.
– Você parece melhor. Mais alerta.
– Não fale asneiras.
– Sim. Acho que sim. – Ela sorriu. – Pelo menos você está res-
pondendo.
Eu me abstive de dizer mais, já que palavras adicionais reforçari-
am a impressão de melhora. Preferi deixar o silêncio confirmar o
contrário. Desviei o olhar, como se não mais a percebesse.
Mas ela não desistiu. Postou-se de pé ao lado do meu leito, jun-
tou as mãos, esfregou-as e voltou a soltá-las. Por fim, articulou a
pergunta que evidentemente estava ruminando.
– Será que Deus te abandonou, pai?
Imagine se fosse tão simples, se tivesse algo a ver com Nosso
Senhor. Perder a fé, contra isso havia um remédio simples: reencon-
trá-la.
Durante a época de faculdade, aprofundei-me no estudo da Bí-
blia. Estava sempre com ela, levava-a para a cama toda noite. Eu
procurava constantemente a ligação entre ela e minha área, entre
as pequenas maravilhas da natureza e as grandes palavras no pa-
pel. Em especial, detive-me nos escritos paulinos. Não tenho conta
de quantas horas passei absorto na carta de São Paulo aos roma-
nos, pois nela se encontravam suas ideias fundamentais, era o mais
próximo do que se poderia chamar de uma teologia paulina. Vocês
foram libertados do pecado e tornaram-se escravos da justiça. O
que isso significava? Que talvez somente o cativo fosse realmente
livre? Fazer o certo pode ser uma prisão, um cativeiro, mas o cami-
nho havia sido indicado. Por que éramos incapazes de segui-lo?
Nem mesmo diante da Criação divina, tão imponente que nos tira o
fôlego, o ser humano consegue fazer o certo.
Nunca encontrei uma resposta, e passei a pegar o pequeno livro
preto com frequência cada vez menor. Ele acumulava poeira na es-
tante, junto com todos os outros. O que eu deveria então dizer a
Charlotte? Que este meu chamado leito de enfermo era banal e des-
prezível demais para ter a ver com o Senhor? Que o crucial se en-
contrava única e exclusivamente dentro de mim, em minhas esco-
lhas, na vida que eu havia vivido?
Não. Talvez um outro dia, mas agora não. Desisti assim de lhe
dar uma resposta. Apenas balancei a cabeça levemente e me aco-
modei com a intenção de cair no sono.
•••
Ela ficou comigo até a casa se acalmar lá embaixo. Escutei o folhear
do livro, agora mais rápido, e o som suave de musselina em movi-
mento quando ela mudava de posição. Charlotte parecia estar acor-
rentada aos livros, assim como eu estava acorrentado à cama, em-
bora ela fosse inteligente o suficiente para saber que não valia a pe-
na. A erudição seria desperdiçada, pois ela jamais teria a chance de
usar seus conhecimentos pelo simples fato de ser filha e não filho.
Mas de repente sua leitura foi interrompida. A porta abriu-se.
Passos rápidos pesaram no chão.
– E aqui que você está? – A voz severa de Thilda, o olhar tam-
bém severo certamente cravado em Charlotte. – Está na hora de
dormir – avisou, como se isso fosse uma ordem por si só. – Você
precisa lavar a louça da ceia. E Edmund está com dor de cabeça,
por isso quero que ferva água para o chá dele.
– Sim, mãe.
Ouvi Charlotte se levantar e deixar o livro sobre o console. Seus
passos leves em direção à porta.
– Boa noite, pai.
Então ela desapareceu. Sua serenidade foi substituída pela mo-
vimentação enérgica da mãe. Thilda foi até a lareira e, com gestos
ruidosos e bruscos, colocou mais lenha. A essa altura, tratava disso
sozinha, a empregada já fora obrigada a encontrar outro trabalho. E
agora Thilda sofria diariamente por ter de cuidar do aquecimento
sem ajuda, um sofrimento que não procurava esconder. Ao contrá-
rio, ela o ressaltava por meio dos suspiros e gemidos que acompa-
nhavam todos os seus movimentos.
Depois de enfim terminar, ela permaneceu parada junto à lareira.
Entretanto, tive apenas um instante de silêncio antes de sua orques-
tra incessante começar. Não era preciso abrir os olhos para saber
que ela estava ali ao lado do fogo, deixando as lágrimas rolarem li-
vremente. Já o ouvira inúmeras vezes antes, e o som era inconfun-
dível. O crepitar do coque acompanhava sua cena. Eu me contorci,
encostei a orelha no travesseiro para abafar o som pela metade,
mas sem muito êxito.
Um minuto passou. Dois. Três.
Então ela finalmente parou e encerrou a lamentação assoando o
nariz com força. Devia ter entendido que hoje também não conse-
guiria nada. O muco morno era expelido pelo nariz com sons altos,
quase mecânicos, de pressão. Ela sempre foi assim, tão cheia de
mucosidades e lubrificação, quer chorasse ou não. Exceto lá embai-
xo. Lá tudo era lamentavelmente seco e frio. E mesmo assim ela ti-
nha dado a mim oito filhos.
Puxei o cobertor sobre a cabeça, quis bloquear o som.
– William – disse ela em tom cáustico. – Posso ver que não está
dormindo.
Tentei manter a respiração calma.
– Sou capaz de ver isso.
Voz mais alta agora, mas não havia motivo para me mexer.
– Você precisa escutar. – Ela soltou um soluço especialmente
profundo. – Fui forçada a dispensar Alberta. Agora a loja está vazia.
Tive que fechar.
Não! Não consegui senão me contorcer. A loja fechada? Vazia.
Escura. A loja que sustentaria todos os meus filhos?
Ela deve ter notado meu movimento, pois se aproximou.
– Fui obrigada a pedir fiado ao merceeiro hoje. – A voz continua-
va chorosa, como se a qualquer momento pudesse sucumbir de no-
vo. – A compra toda foi feita a crédito. E ele olhou tanto para mim,
com dó. Mas não disse nada. Afinal, é um cavalheiro.
As últimas palavras foram engolidas por um soluço.
Um cavalheiro. Ao contrário de mim. Que provavelmente não
despertava nenhuma admiração no resto do mundo, muito menos
em minha esposa, do jeito que eu estava deitado aqui, sem chapéu
e bengala, sem monóculo e educação. Sim, imagine que eu era tão
sem educação que deixava minha própria família em apuros.
E agora as circunstâncias haviam se deteriorado significativa-
mente. A loja estava fechada, a família não daria conta dela sem
mim por mais tempo, embora seu funcionamento diário fosse funda-
mental para todos. Pois eram as sementes, as especiarias e os bul-
bos de flores que garantiam a comida na mesa para a família.
Eu deveria levantar, mas não consegui, não sabia mais como. A
cama me paralisava.
E Thilda também desistiu de mim hoje. Ela inspirou com força,
um suspiro fundo, trêmulo. Então assoou o nariz uma última vez,
provavelmente para se certificar de que tinha expelido toda a secre-
ção da região.
O colchão reclamou quando ela se deitou. O fato de que suporta-
va dividir a cama com meu corpo suado e sujo estava além de mi-
nha compreensão. Na verdade, dizia tudo sobre seu grau de teimo-
sia.
Lentamente, sua respiração acalmou-se. No fim ficou pesada e
profunda, uma convincente respiração do sono, totalmente diferente
da minha.
Virei-me. A luz da lareira moveu-se em ondas sobre o rosto dela.
As longas tranças estavam estendidas no travesseiro, soltas do co-
que apertado da parte de trás da cabeça. O lábio superior cobria o
lábio inferior, afundando a boca, como se fosse uma velha desden-
tada. Fiquei assim a observá-la, tentando reencontrar aquilo que eu
uma vez tinha amado e aquilo que eu uma vez tinha desejado, mas
o sono me venceu antes de isso acontecer.
Ge orge
Emma estava certa sobre a neve. No dia seguinte ela já derretia por
todos os lados, escorrendo e gotejando de tal modo que não se ou-
via outra coisa. O sol batia nas tábuas da casa, desbotando mais
um pouco a cor da parede do lado sul. A temperatura subiu bem, e o
calor era suficiente para a revoada de purificação das abelhas. Elas
não fazem as necessidades na colmeia, são animais limpos. Mas
quando o sol finalmente está ardendo, saem voando e esvaziam os
intestinos. Na verdade, eu tinha torcido para que isso acontecesse,
para que o inverno abrandasse agora, enquanto Tom estivesse em
casa. Porque então ele poderia ir comigo para as colmeias e fazer a
limpeza dos fundos das caixas. Eu até tinha dado uma folga a
Jimmy e Rick, assim poderia trabalhar sozinho com Tom. Mas no fim
acabamos indo só na quinta, três dias antes de ele ter que voltar pa-
ra a faculdade.
Foi uma semana silenciosa. Eu e ele ficamos nos rodeando. Em-
ma se manteve entre nós, rindo e conversando como de costume.
Era evidente que ela se empenhava de corpo e alma a encontrar co-
midas que agradassem a Tom, pois não tinha fim o número de pra-
tos com peixe que ela fazia aparecer como por encanto. Quanto pei-
xe “interessante” e “saboroso” apareceu de repente no setor de con-
gelados do mercado… E Tom, ele agradecia muito, estava “tããão fe-
liz com toda essa comida deliciosa”. Depois de consumir mais um
prato de peixe, ele geralmente ficava sentado à mesa da cozinha.
Lia livros tão grossos que era de assustar, dedilhava com fervor as
teclas do computador ou ficava mergulhado numa espécie de pala-
vras cruzadas japonesas que ele chamava de Sudoku. Parecia não
lhe ocorrer que era possível se deslocar para qualquer outro lugar.
Que o sol de repente inundava a paisagem lá fora, como se alguém
tivesse substituído a lâmpada antiga por uma mais potente.
Encontrei coisas para fazer, obviamente, pois eu também sabia
me manter ocupado. Um dia fui até Autumn comprar tinta de parede.
Enquanto estava pintando o lado sul da casa, senti como o sol batia
forte. Já dava para arriscar uma ida às colmeias. Na verdade, não
era preciso limpar os fundos tão logo, mas era a última chance para
Tom. Não faria mal começar com algumas poucas colmeias. As abe-
lhas já estavam fora há algum tempo, coletavam pólen enquanto o
sol brilhava.
Tom costumava gostar disso. Costumava me acompanhar lá fora
toda vez. Durante o inverno, Jimmy e eu limpávamos os alvados al-
gumas vezes, mas de resto a gente deixava as abelhas em paz. Por
isso, a primeira visita às colmeias na primavera era sempre um mo-
mento especial. Poder rever as abelhas, o zumbido familiar, aquilo
era matar as saudades, era como uma festa de reencontro superle-
gal.
– Preciso de ajuda com os fundos – falei.
Eu já tinha me trocado, estava no meio da cozinha com botas de
borracha e macacão, sentindo uma inquietação nas pernas, uma
empolgação. O véu estava dobrado para eu enxergar melhor. Tinha
trazido mais um kit completo, que estendi para ele com as duas
mãos.
– Já agora? – perguntou Tom sem erguer os olhos. Era mais ler-
do que uma lesma. Continuou sentado ali, com a palidez acentuada
pela luz do computador, os dedos sobre o teclado.
De repente percebi que minhas mãos avançavam um pouco de-
mais com o macacão e o véu, como se eu estivesse prestes a lhe
dar um presente que ele não queria. Enfiei as duas coisas debaixo
de um dos braços e pus a outra mão no quadril.
– Está ficando tudo podre debaixo delas. Você sabe disso. Nin-
guém gosta de viver na sujeira. Você também não, mesmo que
aqueles alojamentos estudantis não sejam exatamente os mais lim-
pos do mundo.
Tentei rir, mas o que saiu não passou de um coaxo. Além do
mais, aquela mão estava num ângulo estranho. Tirei-a do quadril. Fi-
cou caída de um jeito frouxo, parecia vazia. Cocei a testa só para
ocupar minha mão com alguma coisa.
– Mas você costuma esperar mais umas duas ou três semanas,
não é? – perguntou ele.
Agora ergueu o olhar. Seus olhos lindos me fitavam.
– Não. Não costumo fazer isso.
– Pai…
Ele viu que eu estava mentindo. Olhou para mim com uma das
sobrancelhas levantadas, tinha adquirido um ar sarcástico.
– Está quente o suficiente – me apressei a dizer. – E vamos só
fazer algumas. Você escapa do resto. Vou dar um jeito nelas com
Jimmy e Rick na semana que vem.
Tentei lhe dar o macacão e o chapéu de novo, mas ele não acei-
tou. Na verdade, não fez menção nem de se mexer, só apontou para
o computador.
– Estou fazendo um trabalho de faculdade.
– Você não está de férias?
Pus o equipamento na mesa, bem na sua frente. Tentei encará-lo
com determinação, deixando os olhos dizerem que ele tinha mais
era que ajudar, agora que finalmente dera uma passada em casa.
– A gente se vê lá fora em cinco minutos.
•••
Tínhamos 324 colmeias. Trezentas e vinte e quatro rainhas, cada
uma com seu enxame, distribuídas pela região em lugares diferen-
tes, raramente mais do que vinte num lugar só. Se a gente estivesse
em outro estado, poderia ter até setenta colmeias no mesmo local.
Conheci um apicultor em Montana, ele tinha umas cem reunidas. A
área era tão viçosa que as abelhas só precisavam voar alguns me-
tros para encontrar tudo de que necessitavam. Mas aqui, em Ohio, a
agricultura era muito pouco diversificada. Quilômetros e mais quilô-
metros de milho e soja. Pouco acesso ao néctar, não o suficiente
para as abelhas se sustentarem.
Ao longo dos anos Emma tinha pintado as colmeias, todas elas,
com cores de doces. Cor-de-rosa, turquesa, amarelo-claro e uma
espécie de cor de pistache esverdeada, todas tão artificiais quanto
doces com aditivos. Na opinião dela, ficavam com um aspecto diver-
tido. Por mim, poderiam muito bem ser brancas, do mesmo jeito que
antes. Meu pai sempre pintou as colmeias de branco, assim como
seu pai e seu avô. Eles costumavam dizer que era a parte interna
que contava, o mais importante era como as abelhas estavam den-
tro da colmeia. Mas, de acordo com Emma, as abelhas gostavam
das colmeias desse jeito, ficavam mais personalizadas. Quem sabe,
talvez ela tivesse razão. E eu tinha de admitir que o espetáculo das
caixas coloridas espalhadas pela paisagem, como se um gigante ti-
vesse perdido suas balas, sempre me deixava com uma sensação
agradável por dentro.
Começamos na campina entre a fazenda de Menton, a estrada
principal e o rio Alabast, que, apesar de seu nome chique, não era
muito mais que um leito de córrego nesse trecho mais ao sul. Aqui
eu tinha reunido o maior número. Vinte e seis colônias. Primeiro pe-
gamos uma colmeia rosa-choque. Era bom estar em dois. Tom se-
gurava a caixa enquanto eu trocava o quadro. Tirava o velho, que
estava cheio de detritos e abelhas mortas depois do inverno, e colo-
cava um novo e limpo. No ano passado, investimos em fundos mo-
dernos, com telas e travessas soltas. Foi muito dinheiro, mas valeu
a pena. Melhorou a ventilação e facilitou a limpeza. A essa altura, a
maioria dos apicultores de nosso porte pulava a troca dos fundos,
mas eu não aceitava deixar as coisas de qualquer jeito. Minhas abe-
lhas deveriam se sentir bem.
No decorrer do inverno, muita sujeira tinha se juntado nos fun-
dos, mas de resto tudo parecia bem. Tivemos sorte, as abelhas per-
maneceram calmas, poucas saíram voando. Era bom ver Tom aqui
fora. Ele trabalhava com habilidade e rapidez, estava de volta, no lu-
gar ao qual pertencia. Às vezes, queria dobrar as costas para pegar
peso, mas aí eu o detinha.
– Dobre as pernas.
Eu conhecia várias pessoas que acabaram com prolapso e lum-
bago e todo tipo de problema na coluna porque pegaram peso de
forma errada. E as costas de Tom teriam que durar muitos anos,
aguentar milhares de movimentos com peso.
Trabalhamos sem parar até a hora do almoço. Não falamos mui-
ta coisa, apenas algumas poucas palavras, e somente sobre o tra-
balho. “Pega aqui, isso, sim, ótimo”. Fiquei esperando que ele pedis-
se uma pausa, mas ele não disse nada. E quando chegou perto das
onze e meia, meu estômago já gritava, e fui eu quem acabou suge-
rindo uma boquinha.
A gente se sentou na beira da caçamba balançando as pernas.
Eu tinha levado café numa garrafa térmica e alguns sanduíches. A
pasta de amendoim tinha sido absorvida pelo pão esponjoso e as fa-
tias estavam grudentas, mas é incrível como tudo tem um gosto
bom quando o tempo está agradável e você trabalha ao ar livre. Tom
não disse nada. Esse meu filho certamente não era conversador.
Mas se era assim que ele queria as coisas, tudo bem pra mim. Con-
segui trazer Tom para cá, isso era o mais importante. Só torcia para
que curtisse um pouco isso daqui e que estivesse gostando do reen-
contro.
Eu tinha terminado meu lanche e pulei para o chão a fim de vol-
tar a trabalhar, mas Tom ainda estava lutando. Comia pedacinhos
minúsculos e estudava o pão minuciosamente, como se tivesse algo
de errado com ele.
E aí, de repente, Tom soltou uma frase.
– Tenho um professor de inglês muito bom.
– É mesmo? – disse eu, e parei. Tentei sorrir, mesmo que hou-
vesse algo na maneira como ele falou essa coisa totalmente normal
que me deu um frio na barriga. – Que bom.
Ele beliscou o pão mais uma vez. Não parou de mastigar, pare-
cia ser incapaz de engolir.
– Está me incentivando a escrever mais.
– Mais? Mais de quê?
– Ele diz que…
Tom ficou quieto. Largou o sanduíche e agarrou a xícara de café.
Mas não bebeu. Só agora percebi que sua mão estava tremendo um
pouco.
– Ele diz que tenho uma voz.
Uma voz? Bobagem de intelectual. Abri um sorriso irônico, não
aguentei levar isso daí a sério.
– Isso eu poderia ter te contado faz tempo – falei. – Especial-
mente quando você era pequeno. Ela era alta e estridente, sua voz.
Graças a Deus que você chegou à idade de mudar a voz. Já não
era sem tempo.
Ele não sorriu da piada. Só ficou quieto.
Meu sorriso sumiu. Ele quis dizer alguma coisa, não havia dúvida
disso. Estava ali guardando alguma coisa grande, e eu suspeitava
fortemente que era algo que eu não tinha a mínima vontade de ou-
vir.
– É bom que os professores estejam contentes com você – ob-
servei enfim.
– Ele me incentiva muito a escrever mais – disse Tom baixinho,
com ênfase em muito. – Diz também que posso pedir uma bolsa de
estudo e talvez ir mais longe com isso.
– Mais longe?
– Um doutorado.
Senti um aperto no peito, um nó na garganta. O sabor da pasta
de amendoim ficou enjoativo na boca, mas não consegui engolir.
– É mesmo? Foi isso que ele disse?
Tom fez que sim.
Tentei manter a voz calma.
– Quantos anos leva um doutorado desses?
Ele só olhou para as pontas de seus sapatos, sem responder.
– Não estou ficando mais jovem – continuei. – As coisas não se
fazem sozinhas por aqui.
– Não, sei disso – disse ele em voz baixa. – Mas pelo menos vo-
cê tem ajuda, não é?
– Jimmy e Rick entram e saem quando querem. O apiário não é
deles. Além do mais, não trabalham de graça.
Comecei a trabalhar outra vez, transferindo os fundos sujos para
a caçamba. A madeira dos quadros provocava um tinido estridente
ao bater no metal da caçamba. Pois a gente já tinha ouvido de ou-
tros professores que Tom levava jeito com as palavras. Ele sempre
tirava A em inglês, isso não era novidade, não tinha nada de errado
com sua cabeça. Mas não era o inglês que a gente tinha em mente
quando mandou Tom para a faculdade. Era para ele aprender admi-
nistração e marketing, esse tipo de coisa, preparar o apiário para o
futuro. Expandir, modernizar, conseguir uma operação mais eficien-
te. E talvez um site decente na Internet. Era esse tipo de coisa que
ele deveria aprender. Por isso que a gente tinha feito tanto esforço
para juntar o dinheiro que pagaria a faculdade, desde quando ele
era um bebezinho. Durante todos esses anos, a gente não se dera
ao luxo de fazer uma única viagem de férias de verdade, nenhuma.
Tudo tinha ido para a conta da faculdade.
O que um professor de inglês sabia na verdade? Com certeza, fi-
cava naquele seu escritório empoeirado de faculdade cheio de livros
que pretendia ler depois em casa, agasalhado por um cachecol, sor-
vendo chá e aparando a barba com uma tesoura de bordado. En-
quanto isso, dava “bons” conselhos para jovens rapazes, que por
acaso escreviam relativamente bem, sem saber porra nenhuma do
que estava desencadeando.
– Vamos falar mais sobre isso depois – arrematei.
•••
Não tivemos aquela conversa. Ele foi embora antes de a gente ter
tempo. Decidi que “depois” seria bem mais tarde. Ou talvez tenha si-
do ele quem decidiu isso. Ou talvez Emma. O fato é que nós, eu e
Tom, não ficamos a sós no mesmo lugar uma única vez durante o
resto do tempo que ele passou em casa. Emma arrulhava em torno
da gente feito uma pomba silvestre sob efeito de anfetamina, servin-
do, arrumando, não parando de falar sobre absolutamente nada.
Eu andava tão cansado esses dias. Adormecia no sofá o tempo
todo. Tinha uma longa lista de tarefas que deveria fazer, velhas col-
meias que precisavam de manutenção, pedidos que eu deveria
acompanhar. Mas não aguentava. Era como se eu estivesse ligeira-
mente febril o tempo todo. Só que eu não estava com febre. Até
conferi isso. Subi no banheiro às escondidas e achei um termômetro
no fundo da caixa de primeiros socorros. Azul-claro com ursinhos,
um que Emma tinha comprado para Tom quando ele era pequeno.
De acordo com o manual de instruções, era para ser especialmente
rápido, de modo que não incomodasse a criança por mais tempo do
que o necessário. Mas é certo que demorava um bom tempo. Em al-
gum lugar da casa, ouvi o arrulho de Emma e, de tempos em tem-
pos, as respostas de Tom. E ali estava eu, com a ponta fria de metal
enfiada no traseiro, aquela que tinha sido introduzida no meu filho
centenas de vezes, com certeza. Emma não era do tipo que pensa-
va duas vezes antes de conferir a temperatura. Senti de novo aque-
la sonolência enquanto aguardava o bipe digital que me contaria
que o corpo estava do jeito que deveria estar, mesmo que me pare-
cesse ter corrido uma maratona.
Depois de enfim confirmar que estava sem febre, simplesmente
fui dormir, sem avisar. Eles que continuassem.
O arrulho durou até ele sentar-se no ônibus. Aí, com Tom lá den-
tro, seu rosto grudado no vidro de trás e o alívio estampado na face,
ela finalmente ficou quieta.
Ali estávamos nós, dando tchau, de forma tão automática que
era como se fôssemos movidos a pilha, a mão para cima e para bai-
xo, para cima e para baixo, em sincronia total. Os olhos de Emma
brilharam, ou talvez fosse apenas o vento, mas graças a Deus ela
não chorou.
O ônibus entrou na estrada, o rosto de Tom brilhava pálido para
nós, ficando cada vez menor. De repente me lembrei de uma outra
vez que ele fora embora de ônibus. Aquela vez também o rosto dele
tinha brilhado pálido e aliviado. Mas ao mesmo tempo havia medo
nele.
Sacudi a cabeça. Quis me livrar da recordação.
Enfim o ônibus sumiu na curva. Baixamos as mãos ao mesmo
tempo, ficamos parados olhando para o ponto onde desaparecera,
como se fôssemos estúpidos o bastante para acreditar que ele de
repente voltaria.
– Bem – disse Emma. – Já se foi.
– Já se foi? O que você quer dizer?
– Só nos são emprestados. – Ela enxugou uma lágrima que o
vento tinha feito saltar do olho esquerdo.
Senti muita vontade de dar uma resposta ríspida para ela, mas
deixei passar. Tinha respeito demais por aquela lágrima. Por isso
me virei e foi em direção ao carro.
Ela me seguiu, arrastando os pés. Também parecia ter encolhi-
do.
Sentei-me ao volante, mas não consegui ligar o motor. Minha
mão estava como que frouxa, exausta de todos os acenos.
Emma colocou o cinto de segurança, sempre fazia questão dis-
so, e se virou para mim.
– Você não vai dirigir?
Eu quis levantar a mão, mas ela não me obedeceu.
– Ele falou com você sobre aquilo? – disse eu, voltado para o vo-
lante.
– O quê? – perguntou Emma.
– Sobre o que está planejando? Para o futuro?
Ela ficou calada por um instante. Depois respondeu em voz bai-
xa.
– Você sabe que ele adora escrever. Sempre adorou.
– Eu adoro Guerra nas estrelas. Nem por isso virei Jedi.
– Pelo visto, ele tem um dom especial.
– Você o está apoiando? Você acha que o plano dele é inteligen-
te? Muito sábio? Uma boa escolha de caminho? – Agora me virei
para ela, endireitei o pescoço, tentei parecer duro.
– Só quero que ele seja feliz – disse ela com voz mansa.
– É isso que você quer, não é?
– Sim, é isso que quero.
– Você não pensou que ele precisa viver também? Ganhar di-
nheiro, afinal?
– Mas o professor já disse que ele tem muito a oferecer.
Ela estava sentada ali com aquele grande olhar escancarado, to-
talmente franca; não estava brava, só tinha uma crença inabalável
de que estava certa.
Espremi a chave do carro na mão e de repente reparei que esta-
va doendo, mas não consegui soltar.
– Você pensou no que a gente vai fazer com o apiário, então?
Ela ficou em silêncio. Por muito tempo. Desviou o olhar, mexeu
um pouco com o anel de casamento, puxando-o sobre a primeira ar-
ticulação do dedo. A faixa branca da pele ficou visível, a marca do
anel que tinha ficado ali durante 25 anos.
– Nellie ligou na semana passada – ela disse enfim, mas para o
ar, não para mim. – Já há temperaturas de verão em Gulf Harbors.
Vinte graus na água.
Lá vinha ela de novo. Gulf Harbors. Embora a menção ao lugar
flutuasse, o nome desse condomínio me atingia feito uma pancada
de tijolo na cabeça toda vez que ela o dizia.
Nellie e Rob eram amigos nossos de infância. Infelizmente, eles
se mudaram para a Flórida. Desde que isso aconteceu, a insistência
deles tomara proporções homéricas, não só para que fizéssemos
uma visita a esse suposto oásis nos arredores de Tampa, mas tam-
bém para que nos mudássemos para lá. A toda hora Emma me vi-
nha com novos anúncios de imóveis em Gulf Harbors. Muito barato.
No mercado fazia tempo. Podíamos fazer um bom negócio. Píer e
piscina, casa recém-reformada, praia e quadras de tênis comunitá-
rias, como se a gente tivesse necessidade disso. Parecia que tinha
até golfinhos e peixes-boi que ficavam brincando na água, bem na
porta da casa. Quem precisava disso? Peixes-boi? Bichos feios.
Nellie e Rob se gabavam muito. Diziam que tinham um monte de
novos amigos. Citando ao acaso: Laurie, Mark, Randy, Steven. Era
demais. Todo domingo eles tomavam brunch no salão de festas, um
brunch completo por apenas cinco dólares, incluindo panquecas, ba-
con, ovos e batatas assadas. E agora estavam tentando atrair a
gente para lá, todo mundo, sim, estavam enchendo o saco de mais
pessoas além de nós, pareciam querer a cidade de Autumn inteira lá
no sul. Mas eu sabia do que se tratava, afinal. Eles estavam se sen-
tindo solitários naquele seu canal de águas profundas, lá embaixo.
Era uma desgraça viver tão longe da família e dos amigos, ter larga-
do tudo o que você teve à sua volta a vida inteira. Além do mais, o
verão na Flórida: não há nada mais próximo do inferno, abafado e
quente e horrível, com trovoadas insanas várias vezes por dia. E
mesmo que o inverno seja mais decente, com temperaturas de ve-
rão e pouca chuva, quem quer viver sem um inverno de verdade?
Sem a neve e o frio? Tudo isso eu tinha dito a Emma muitas vezes,
mas mesmo assim ela não desistia. Alegava que a gente precisava
fazer planos sérios, planos para a velhice. Não entendia que era
exatamente o que eu tinha feito. Eu queria construir algo sólido, dei-
xar um legado substancial, em vez de ficar sentado o dia todo numa
casa de férias meio velha e impossível de vender. Pois é. Afinal, eu
tinha lido um pouco sobre o estado atual do mercado imobiliário da
Flórida. Tinha feito minha pesquisa. Havia boas razões para que es-
sas casas não fossem vendidas no primeiro fim de semana de expo-
sição, por assim dizer.
No entanto, meu plano era outro. Alguns novos investimentos.
Mais colmeias. Muitas mais. Caminhões. Carretas. Empregados fi-
xos. Conseguir alguns acordos com fazendas na Califórnia, na Ge-
órgia, talvez na Flórida.
E Tom.
Era um bom plano. Realista. Ponderado. Antes de Tom se dar
conta, ele também teria uma esposa e um filho. Aí seria bom que
seu pai tivesse planejado direito as coisas, que o apiário se encon-
trasse em boas condições, bem cuidado, que a operação estivesse
adaptada ao mundo moderno, que Tom tivesse trabalhado aqui por
tempo suficiente para conhecer o ofício a fundo. E que talvez até
houvesse algum dinheiro guardado no banco. Os tempos eram in-
certos. Eu criava segurança. Era o único que criava segurança para
essa família. Um futuro. No entanto, parecia que ninguém entendia
isso.
Fiquei cansado só de pensar a respeito, no plano. Antes, ele me
dera forças para trabalhar mais, mas agora o caminho até lá parecia
longo e sinuoso, como uma trilha lamacenta na chuva de outono.
Não tive energia para dar uma resposta a Emma. Enfiei a chave
na ignição, ela estava pingando de suor e tinha me deixado uma
marca vermelha na palma da mão. Eu precisava dirigir agora, antes
de adormecer. Emma não ergueu os olhos, tinha tirado o anel de ca-
samento, estava esfregando os dedos sobre a faixa branca da pele.
Ela não se esquivava de mim com mentiras, mas estava disposta a
colocar nossa vida inteira em jogo.
Tao
– …Edmund?
– Boa tarde, pai.
Ele estava sozinho ao lado de minha cama. Eu não fazia ideia de
há quanto tempo estava no quarto. Havia-se tornado outra pessoa,
estava mais alto, e o nariz, a última vez que o vi, era grande demais.
Nos jovens, o nariz muitas vezes cresce em seu próprio ritmo, dá
saltos à frente do resto do corpo, mas agora combinava com o sem-
blante, suas feições já haviam se ajustado ao órgão do olfato. Ele ti-
nha ficado bonito, adquirira uma beleza que sempre estivera latente
nele. Vestia-se de modo elegante, mas um tanto descuidado, um
lenço verde-garrafa pendurado frouxamente ao pescoço, a franja
comprida demais. Ficava bem nele, mas tornava difícil ver seus
olhos. Além do mais, estava pálido. Será que não dormia o suficien-
te?
Edmund, meu único filho homem. O único filho homem de Thilda.
Não se passou muito tempo até eu entender que ele era dela, por
completo. Desde o dia em que nos conhecemos, ela deixou claro
que seu maior desejo era um menino, e, com a chegada dele um
ano mais tarde, sua missão na vida estava cumprida. Dorothea e
Charlotte, e, em seguida, as outras cinco meninas, tornaram-se me-
ras sombras dele. De certa forma, eu a entendia. As sete meninas
davam-me uma dor de cabeça constante. Seus intensos e incessan-
tes gritos, berros, passos arrastados, choradeiras, risos, correrias,
tosses, soluços e, mais que tudo, sua tagarelice – era incrível o tan-
to que falavam, falavam pelos cotovelos –, todos esses ruídos cer-
cavam-me desde a hora de levantar até a hora de ir para a cama. E,
como se não bastasse, elas não paravam durante a noite. Sempre
havia uma criança que chorava por causa de um sonho, outra que
chegava na ponta dos pés, vestida só de camisola, pisando de leve
nas tábuas frias do assoalho, antes de subir na cama com um ruído
qualquer, alguns gemidos tristes ou uma exigência quase agressiva
de se colocar entre nós na cama.
Elas pareciam incapazes de ficar quietas, e por isso era difícil
trabalhar, era impossível escrever. Pois eu realmente tentara, não ti-
nha desistido de imediato, como Rahm supunha. Mas foi em vão.
Mesmo que eu fechasse a porta de meu quarto com a ordem ex-
pressa de que não me perturbassem, pois precisava trabalhar, mes-
mo que eu amarrasse um cachecol na cabeça para abafar o barulho
ou enchesse os ouvidos de lã, ainda assim, eu as escutava. Não
adiantava. No decorrer dos anos, sobrava cada vez menos tempo
para meu próprio trabalho, e logo eu não passava de um simples co-
merciante que se esforçava para alimentar as bocas eternamente
vorazes das meninas, que eram sacos sem fundo. O naturalista pro-
missor tinha cedido o lugar para um abatido comerciante de semen-
tes de meia-idade, com as pernas cansadas por ter passado horas
ao balcão, as cordas vocais enferrujadas depois de tantas conver-
sas com os fregueses, e os dedos eternamente contando o dinheiro
que nunca era suficiente. Tudo por causa das meninas.
Edmund estava completamente imóvel, congelado. Antes, seu
corpo era como o mar próximo a uma península, onde os ventos e
as ondas encontravam-se e se chocavam caoticamente, sem re-
gras. A inquietação não era apenas física, residia também em sua
alma. Não havia método nele. Num momento ele poderia mostrar
seu lado bondoso e buscar um balde de água só para ser gentil; no
momento seguinte, derramaria o balde no chão para, de acordo com
sua própria explicação, fazer um lago. As repreensões não o afeta-
vam em nada. Se levantávamos a voz, ele só ria e saía correndo.
Sempre correndo, era assim que eu me lembrava dele, os pezinhos,
nunca parados, sempre fugindo de algum pequeno desastre que ele
tinha causado – um balde derrubado, uma xícara de porcelana que-
brada, um trabalho de tricô desfeito. Quando isso acontecia, e era
com frequência, eu não tinha outra alternativa senão pegá-lo e se-
gurá-lo enquanto tirava o cinto do cós de minha calça. Cheguei a
detestar o som sibilante do couro contra o tecido e o tilintar da fivela
ao atingir as tábuas do assoalho. O receio do que viria era quase pi-
or do que os próprios golpes. A sensação do couro e da fivela que
eu agarrava na mão. Nunca batia com aquela ponta, não como meu
pai, que sempre fazia a fivela atingir as costas com força. Eu, ao
contrário, apertava-a, deixando-a espetar a palma da mão com tanta
força que ficavam marcas. O couro nas costas despidas, as marcas
vermelhas que afloravam na pele branca como fios retorcidos. Em
outras crianças, esses vergões vermelhos contribuíam para estan-
car a agitação, e a lembrança do castigo evitava que voltassem a
cometer o mesmo erro. Mas não no caso de Edmund. Era como se
não compreendesse que seus atos impetuosos o levavam ao cinto,
que havia uma ligação entre o lago no chão da cozinha e os golpes
subsequentes. Não obstante, era minha responsabilidade continuar,
e eu esperava que ele no fundo também percebesse meu amor.
Compreendesse que eu não tinha escolha. Eu castigava, logo, era
pai. Eu batia com o choro preso no peito, com o suor escorrendo e
as mãos tremendo, queria tirar-lhe a inquietação às chicotadas. Mas
nunca adiantava nada.
– Onde estão as outras? – perguntei, pois a casa estava estra-
nhamente silenciosa.
Arrependi-me no mesmo instante. Não deveria ter perguntado
por elas. Não quando ele enfim viera me ver. Não quando enfim éra-
mos só eu e ele.
Edmund estava ali de pé, balançando ligeiramente, como se lu-
tasse para manter o equilíbrio, não sabendo em qual perna colocar
mais peso.
– Na igreja.
Era domingo, então.
Tentei sentar na cama. Levantei o cobertor minimamente. Meu
próprio fedor chegou-me às narinas. Quando tomei banho pela últi-
ma vez?
Se ele percebeu alguma coisa, não o deixou transparecer.
– E você? – disse eu. – Por que ficou em casa?
Soou como uma acusação. Quando deveria ter sido um agrade-
cimento.
Ele não olhou para mim, fitou os olhos na parede, acima da ca-
beceira.
– Eu… eu esperava ter uma chance de falar com você – disse
por fim.
Fiz um gesto lento com a cabeça, enquanto me esforçava para
não deixar o rosto revelar a imensa felicidade que sua visita me cau-
sava.
– Muito bem – falei. – Aprecio muito que tenha vindo… E há tem-
po esperava que você aparecesse.
Tentei ficar sentado numa posição ereta, mas era como se o es-
queleto não fosse mais capaz de me sustentar. Por isso me apoiei
em uma almofada. O que por si só era um esforço enorme. Resisti à
vontade de puxar o cobertor até os ombros para conter o fedor.
Quase não aguentava meu próprio cheiro. Como eu não tinha per-
cebido isso antes, o quanto precisava de um banho? Pus a mão no
rosto. Minha barba, que nunca fora muito basta, havia crescido e se
transformado numa juba desgrenhada de vários centímetros de
comprimento. Eu deveria parecer um homem das cavernas.
Ele olhou para os dedos de meus pés, que despontavam do co-
bertor. As unhas estavam compridas e sujas. Rapidamente, tirei os
pés de vista e soergui-me na cama.
– Edmund. Diga-me. O que está te preocupando?
Ele não me olhou nos olhos, mas tampouco mostrou acanha-
mento ao apresentar sua mensagem.
– Talvez o pai possa se levantar logo?
O rubor da vergonha subiu-me às faces. Thilda tinha pedido. As
meninas tinham pedido. O médico tinha pedido. Mas Edmund não…
– Aprecio imensamente que tenha vindo – disse eu com a voz a
ponto de falhar. – Gostaria de me explicar.
– Explicar-se? – Ele passou uma das mãos pela franja. – Não
preciso de nenhuma explicação. Só peço que se levante.
O que eu deveria dizer? O que ele esperava de mim? Dei alguns
tapinhas com a mão no colchão, um gesto convidativo.
– Venha sentar-se aqui, Edmund. Vamos conversar um pouco. O
que você tem feito ultimamente?
Ele não se mexeu.
– Conte-me sobre os estudos. Com sua agilidade mental, imagi-
no que esteja progredindo rapidamente.
Ele devia estar se preparando para o outono, quando iria estudar
na capital. Havíamos feito um grande esforço para amealhar o di-
nheiro destinado à sua educação, e enfim ele estava quase pronto.
De repente senti uma pontada no peito. Pois o dinheiro para os es-
tudos, será que Thilda o tinha gastado, agora que eu me encontrava
acamado dessa forma?
– Imagino que nada tenha mudado. Os planos para os estudos
continuam em pé? – perguntei depressa.
Ele fez que sim, sem entusiasmo evidente.
– Trabalho quando estou inspirado – disse.
– Bem. A inspiração é um importante motivador.
Estendi a mão para ele.
– Venha sentar-se aqui. Vamos conversar um pouco. Ter um diá-
logo de verdade. Faz tanto tempo…
Mas ele continuou em pé.
– Eu… preciso descer.
– Só alguns minutinhos? – Tentei manter a voz leve.
Ele deu uma sacudida na franja, não olhou para mim.
– Vou estudar.
Alegrava-me o fato de ele estar empenhado, mas poderia gastar
um pouquinho mais de tempo agora que finalmente viera aqui.
– Só quero segurar sua mão – disse eu. – Só por um breve mi-
nuto.
Um suspiro quase inaudível escapou de seus lábios, mas ele se
aproximou de mim. Finalmente sentou-se a meu lado, hesitou por
um instante e me deu a mão.
– Obrigado – disse eu baixinho.
Ela era quente e lisa na minha. Irradiava uma luz, transformava-
se numa ligação entre nós, como se o sangue novo dele fluísse den-
tro de mim. Eu só queria ficar assim, mas não havia como ignorar
sua eterna inquietação. Ele não conseguia manter o braço quieto,
trocava de posição, não parava de mexer os pés.
– Sinto muito, pai. – Levantou-se abruptamente.
– Não – falei. – Não precisa se desculpar. Entendo. É claro que
precisa trabalhar.
Ele fez que sim. Seus olhos estavam grudados na porta. Só que-
ria escapar, deixar-me sozinho outra vez.
Deu alguns passos e então se deteve, como se tivesse lembrado
de alguma coisa. Virou-se para mim outra vez.
– Mas pai… Você não pode pelo menos buscar a vontade de le-
vantar?
Engoli em seco. Devia-lhe uma resposta verdadeira.
– Não é a vontade que me falta… é… a paixão, Edmund.
– A paixão? – Ele levantou a cabeça, a palavra parecia ter des-
pertado algo nele. – Então precisa reencontrá-la – disse logo. – E
deixar que ela te impulsione.
Tive de sorrir. Palavras tão grandes naquele corpo desengonça-
do.
– Sem paixão não somos nada – arrematou, com uma gravidade
que nunca percebi antes nele.
Não disse mais. Apenas saiu do quarto. A última coisa que ouvi
dele foi o som dos passos no assoalho do corredor. Seguiram em di-
reção à escada e depois desceram e foram embora. Mesmo assim
senti que nunca estivera tão perto dele.
Rahm tinha razão, eu havia esquecido a paixão, deixando-me
ser tragado por trivialidades. Não demonstrei entusiasmo em meu
trabalho, por isso perdi Rahm. Mas Edmund ainda estava aqui, eu
ainda poderia mostrar isso a ele, deixá-lo orgulhoso. Assim nos
aproximaríamos um do outro. Por meio da honra que eu traria ao
nome da família, nosso relacionamento floresceria e daria frutos.
Dessa forma eu talvez pudesse encontrar o caminho de volta a
Rahm, e então, apesar de tudo, seríamos três: o pai, o filho e o
mentor.
Virei-me para o lado. Afastei o cobertor de meu corpo fedorento
e então me levantei. Desta vez era definitivo.
Ge orge
Até que enfim chegou o Dia de Folga. Sem aviso prévio, como sem-
pre. Somente na véspera fomos informados de que a Comissão ti-
nha decidido que os habitantes afinal se fizeram merecedores de
um dia de folga. Foi anunciado por Li Xiara, a chefe da Comissão.
Uma mulher que sempre apresentava as últimas decisões da Co-
missão para nós, via rádio e em desgastadas telas informativas. Sua
voz desapaixonada e monocórdica era a mesma, fosse a notícia boa
ou ruim. Agora ela comunicou que a polinização estava feita e a flo-
rada, praticamente no fim. Eles poderiam nos dar esse luxo, disse
ela; nós, a comunidade, poderíamos nos dar esse luxo.
Tínhamos esperado por esse dia durante semanas. Mais de dois
meses tinham se passado desde a última folga. Trabalhávamos e
esperávamos enquanto os tendões do antebraço ficavam cada vez
mais inflamados em decorrência do movimento repetitivo com o pin-
cel, enquanto os braços e os ombros ficavam cada vez mais duros e
as pernas, eternamente cansadas de permanecer em pé.
Para variar, não acordei por causa do despertador, mas por cau-
sa da luz. O sol aqueceu meu rosto. Continuei deitada de olhos fe-
chados, sentindo a temperatura subir aos poucos dentro do quarto.
Então finalmente consegui abri-los e olhar em volta. A cama estava
vazia. Kuan já tinha levantado.
Fui para a cozinha e o encontrei sentado com uma xícara de
chá, olhando para os pomares, enquanto Wei-Wen brincava no
chão. Tudo estava muito tranquilo, um dia de descanso para todos
nós, tal como fora decidido. Até Wei-Wen estava brincando mais cal-
mamente do que de costume. Ele conduzia um carrinho de brinque-
do pelo chão, imitando baixinho um ronco de motor.
A nuca fofa com o cabelo curtinho, os dedos pequenos que se-
guravam o carrinho vermelho, a boca que zunia fazendo a saliva
sair por entre os lábios. O entusiasmo de Wei-Wen. Com certeza ele
seria capaz de ficar assim por horas a fio, construir estradas ali no
chão, com todos os veículos que ele tinha, cidades cheias de vida.
Sentei-me ao lado de Kuan, tomei um gole de seu chá. Estava
quase frio. Ele já deveria estar aqui há um bom tempo.
– O que você quer fazer? – perguntei enfim. – Como quer passar
nosso dia?
Ele tomou mais um gole de chá, somente um gole pequeno, co-
mo se estivesse economizando.
– Hum… não sei… o que você acha?
Eu me pus de pé. Ele sabia o que queria fazer. Já o ouvira falar
com alguns dos colegas de trabalho sobre o que ia acontecer no
centro do pequeno vilarejo que chamamos de cidade. Estavam fa-
zendo preparativos para servir comida na praça, mesas compridas e
entretenimento.
– Quero dedicar o dia a Wei-Wen – disse eu em tom ameno.
Ele riu suavemente.
– Eu também quero isso.
Mas não me olhou nos olhos.
– Temos muitas horas, podemos fazer bastante coisa. Eu adora-
ria ensinar-lhe os números – disse eu.
– Hum. – Ainda aquele olhar evasivo, como se cedesse, só que
eu sabia que era o contrário.
– Você me perguntou o que eu queria – falei. – E isso o que eu
quero.
Ele se levantou, aproximou-se de mim e pôs a mão em meu om-
bro, massageando-o de leve. Uma massagem persuasiva, tentando
encontrar meu ponto fraco. Sabia que eu era capaz de resistir a ele
verbalmente, mas raras vezes o conseguia fisicamente.
Eu me desvencilhei de mansinho de sua mão, ele não ia ganhar.
– Kuan…
Mas ele apenas sorriu, pegou na minha mão e me puxou em di-
reção à janela. Posicionado atrás de mim, deslizou suas mãos de
meus ombros até minhas mãos.
– Olhe lá fora – disse em voz baixa, entrelaçando seus dedos
aos meus.
Tentei me soltar com jeito, mas ele me impediu com firmeza.
– Olhe lá fora.
– Por quê?
Ele me segurou calmamente perto de si, e fiz o que pediu. Lá fo-
ra o sol brilhava. Pétalas brancas caíam como flocos de neve. O
chão estava coberto. As pétalas flutuavam no ar, adquiriam uma
brancura fosforescente por causa do sol. As fileiras de pereiras
eram intermináveis. A quantidade de flores me deixou tonta. Eu as
via todos os dias, cada árvore individual. Mas não as via como hoje.
Juntas.
– Acho que a gente deveria se arrumar e ir até a cidade. Colocar
uma roupa bonita, comprar uma coisa gostosa para comer. – Sua
voz era meiga, como se ele estivesse determinado a não ficar bravo.
Tentei sorrir, contemporizar com ele, não podia começar esse dia
com uma briga.
– Por favor, a cidade, não.
– Mas todo mundo está lá.
Ele queria andar em fila, como fazíamos todo dia. Tomei fôlego.
– Não poderíamos ficar só nós três?
Ele puxou os cantos da boca para cima, numa tentativa de sorri-
so.
– Tanto faz para mim. Desde que a gente saia.
Virei-me para a janela outra vez, para as flores, o mar branco.
Nunca ficávamos lá fora sozinhos.
– Talvez a gente simplesmente pudesse ir ali?
– Ali? Para os pomares?
– Afinal, é ao ar livre, não é? – Ensaiei um sorriso, mas ele não o
retribuiu.
– Não sei…
– Vai ser bom. Só nós três.
– Eu meio que combinei de encontrar alguns…
– E aí não há necessidade de fazer uma caminhada tão longa
com Wei-Wen. Não seria bom poupá-lo disso, só dessa vez?
Pus a mão na parte superior de seu braço, um gesto carinhoso,
evitando dizer mais sobre a aula. Mas ele adivinhou minhas inten-
ções.
– E os livros?
– Podemos levar alguns, não? E não preciso dar aula o dia intei-
ro.
Finalmente ele me olhou nos olhos. Deu-se por vencido, mas
com um pequeno sorriso.
William
Era noite. Mas não estávamos dormindo. É claro que não estáva-
mos dormindo.
Inicialmente, achamos que íamos para nosso pequeno hospital
local no vilarejo, mas em vez disso fomos trazidos para o grande
hospital de Shirong. Ele cobria o distrito inteiro. Ninguém nos contou
por que fomos trazidos para cá. A ambulância mudou de direção no
meio do caminho e, como estávamos sozinhos na frente, não havia
ninguém a quem perguntar.
Fomos colocados num quarto para acompanhantes. Vez ou outra
escutávamos pessoas passando no corredor, mas a porta nunca foi
aberta. Parecia que o quarto seria só nosso.
Eu estava perto da janela. A vista dava para o pátio da recepção,
que ficava no centro das edificações, cinco braços brancos e baixos
que se estendiam para lados diferentes. Havia luz em algumas das
janelas, mas não em todas, longe disso. Uma ala inteira estava es-
cura. O hospital fora projetado para um número de habitantes muito
maior do que o distrito tinha hoje, fora construído para outra época.
De vez em quando, alguns veículos entravam no pátio, e até um he-
licóptero pousou ali. Não conseguia me lembrar da última vez que ti-
nha visto um helicóptero. Deve ter sido vários anos atrás, pois não
eram usados mais, gastavam muito combustível. O movimento dos
rotores agitava o ar, levantando os jalecos brancos da equipe, como
se fossem decolar. A porta do helicóptero se abriu, e dele saíram
uma mulher de tailleur e dois homens. Nenhum dos três parecia do-
ente, mas andaram a passos largos em direção à entrada principal,
dando a impressão de estarem com pressa.
Às vezes a chegada de alguma ambulância era acompanhada
de um alarme alto e estrondoso. Então apareciam muitas pessoas,
que ficavam a postos formando uma fila de recepção. E o paciente
era transferido em ritmo frenético do carro para dentro do hospital,
enquanto os enfermeiros e os médicos o atendiam. Foi assim quan-
do nós chegamos também. Mas não o vimos. Aconteceu tão rápido.
Wei-Wen já fora levado embora quando autorizaram nossa saída da
ambulância. Vimos as costas dos profissionais de saúde desapare-
cerem com uma maca. Ele devia estar deitado naquela maca, mas
não consegui enxergá-lo, as costas brancas o encobriram. Tentei
correr atrás deles, só queria ver meu filho. Mas a porta se fechou e
foi trancada.
Ficamos parados ali no pátio. Estiquei a mão para Kuan, mas ele
estava muito afastado de mim. Não consegui alcançá-lo. Ou talvez
ele não quisesse ser alcançado.
Em seguida a porta se abriu, e dois homens vestidos de branco
saíram. Médicos? Enfermeiros?
Puseram as mãos em nossos braços, compassivamente, e pedi-
ram que os acompanhássemos.
Eu os segui com todas as minhas perguntas. Onde estava Wei-
Wen? O que ele tinha? Ele estava ferido? Teríamos permissão para
vê-lo logo? Mas eles não tinham respostas. Só disseram que nosso
filho, disseram filho, talvez nem soubessem o nome, estava em bo-
as mãos. Daria tudo certo. Então, eles simplesmente nos puseram
aqui dentro e sumiram.
•••
Depois de ter ficado horas junto à janela, parada, finalmente ouvi a
porta se abrir. Uma médica entrou no quarto. Ela se apresentou co-
mo a dra. Hio, sem nos encarar, e fechou a porta atrás de si.
– Onde ele está? Onde está Wei-Wen? – perguntei. A voz vinha
de um lugar bem distante.
– Eles ainda estão atendendo seu filho – disse a mulher, aproxi-
mando-se um pouco mais.
Ela tinha cabelos grisalhos, mas o rosto era liso, não tinha ex-
pressão.
– Ele se chama Wei-Wen – falei. – Posso vê-lo?
Dei um passo em direção à porta. Ela tinha que me levar até ele.
Tinha que ser possível. Eu não precisava necessariamente estar a
seu lado, talvez ficasse atrás de um vidro, desde que pudesse vê-lo.
– Atendendo? O que você quer dizer com isso? – perguntou Ku-
an.
Ela ergueu a cabeça e olhou para ele. Não me encarou.
– Estamos fazendo tudo que podemos.
– Ele vai sobreviver, não vai? – perguntou Kuan.
– Estamos fazendo tudo que podemos – ela repetiu num tom su-
ave.
Kuan levou a mão à boca. Mordeu os nós dos dedos. Senti um
frio súbito me abalar.
– Temos que vê-lo – falei, mas as palavras eram tão fracas que
quase desapareceram.
Ela não respondeu, apenas sacudiu a cabeça levemente.
Não podia ser verdade. Devia haver algum engano. Tudo o que
tinha acontecido era um engano. Não era ele que estava deitado lá
dentro. Não Wei-Wen. Ele estava na escola, ou em casa. Era outra
criança, um equívoco.
– Vocês devem confiar em nós – disse a dra. Hio calmamente, e
se sentou. – E enquanto isso preciso que vocês me respondam al-
gumas perguntas.
Kuan fez que sim e se instalou numa cadeira. Continuei em pé.
Ela pegou papel e caneta e se preparou para fazer anotações.
– Seu filho já esteve doente antes?
– Não – respondeu Kuan obedientemente. E virou-se para mim.
– Ele já esteve doente? Você consegue se lembrar?
– Não. Somente otite – disse eu. – E gripe.
Ela escreveu algumas poucas palavras no bloco.
– Nada fora do comum?
– Não.
– Outras infecções respiratórias? Asma?
– Nada – falei, num tom duro.
A dra. Hio se virou para Kuan outra vez.
– Ele estava exatamente onde quando vocês o encontraram?
Kuan se inclinou para a frente, encolhendo-se, como se quisesse
se proteger daquelas perguntas.
– Entre as árvores, perto do pomar 458, ou talvez 457. Logo ao
lado da floresta.
– E o que ele estava fazendo?
– Estava sentado. Curvado. Estava pálido. Suava.
– E foi você quem o achou?
– Sim, fui eu.
– Ele estava com tanto medo – disse eu. – Ele estava apavora-
do.
Ela fez um gesto de compreensão.
– Ele tinha comido ameixas – continuei. – Tínhamos levado uma
lata de ameixas. Ele comeu todas.
– Obrigada – ela tomou mais uma nota em seu pequeno bloco.
Em seguida, virou-se de novo para Kuan, como se ele tivesse to-
das as respostas.
– Você acha que ele tinha entrado na floresta?
– Não sei.
Ela hesitou.
– O que vocês estavam fazendo lá?
Kuan inclinou-se para a frente outra vez. Lançou-me um olhar
inexpressivo, um olhar que não revelava o que estava pensando.
Senti a tensão aumentar, ficou difícil respirar. Não disse nada. Só
fixei os olhos nele, tentei implorar, fazer com que ele encobrisse a
verdade. Dissesse que fora nossa ideia ir até lá, talvez até ideia de-
le, quando na verdade era só minha.
Era por minha culpa que a gente estava lá fora.
Kuan não retribuiu meu olhar, só se virou para a médica e tomou
fôlego.
– Estávamos fazendo um passeio – disse ele. – Queríamos pas-
sar nosso dia de folga de um jeito agradável.
Talvez ele não colocasse a culpa em mim, talvez não me conde-
nasse. Continuei olhando para ele, mas ele não olhou em minha di-
reção. Não ofereceu nada, nenhuma resposta, mas tampouco veio
com acusações.
E talvez fosse assim. Talvez essa fosse a verdade. Estávamos
juntos nisso, juntos na ida para os pomares. Uma decisão tomada a
dois e consensualmente, um meio-termo, não apenas ideia minha.
A dra. Hio parecia não perceber tudo o que havia entre nós. Ape-
nas olhou de um para o outro, compassiva, mais do que puramente
profissional.
– Prometo voltar assim que tiver mais informações.
Dei um passo para a frente.
– Mas o que aconteceu? O que ele tem? – Minha voz tremia
agora. – Alguma coisa vocês têm que saber, não?
A mulher só sacudiu a cabeça lentamente. Não tinha uma res-
posta.
– Tentem descansar. Vou ver se consigo arranjar alguma comida
para vocês.
Ela saiu, nos deixando sozinhos outra vez.
•••
Havia um relógio na parede. O tempo dava saltos irregulares. Uma
vez olhei para o relógio e haviam se passado vinte minutos; outra
vez, apenas vinte segundos.
O tempo todo Kuan se encontrava no outro canto do quarto. On-
de quer que eu estivesse, ele estava longe de mim. Não era apenas
a sua vontade, era igualmente a minha. O obstáculo entre nós era
grande demais, intransponível. Diante disso, cada um de nós se
transformou numa camada de gelo tão fina como a que se formava
nas poças no outono e se despedaçava ao toque mais leve.
Tomei um gole de água. Deixou um gosto azedo na língua, era
água de algum tanque, água que sempre havia ficado parada.
Já tinha escurecido. Nenhum de nós acendeu a luz. Para que
luz? Uma hora se passara desde a visita da médica.
Conferi o corredor. Não havia ninguém atrás do balcão.
Continuei a andar, só encontrei portas trancadas. Encostei o ou-
vido numa delas, mas não escutei nada. O zumbido intenso do ar
condicionado abafava tudo.
De volta outra vez. Só ficar aqui. Esperar.
Ge orge
– Quer que eu faça para você? – perguntou Thilda. Ela estava perto
da porta com os instrumentos de barbear e um espelho nas mãos.
– Você pode se cortar com a navalha – respondi.
Ela fez que sim. Sabia tão bem quanto eu que nunca tivera muita
firmeza nas mãos.
Um pouco mais tarde, ela entrou com uma bacia de rosto, sabo-
nete e escova. Colocou tudo na mesa de cabeceira, que em seguida
encostou na cama, de modo que proporcionasse um bom ângulo de
trabalho. Por fim, pôs o espelho ali. Ficou aguardando enquanto eu
o erguia. Será que estava receosa de minha reação?
Era um homem diferente que olhava para mim. Eu deveria ter fi-
cado assustado, mas não fiquei. Pois o aspecto desleixado, rechon-
chudo, tinha sumido. Foi-se o comerciante prazenteiro. Aquele que
retribuía meu olhar era outro, alguém experimentado. Uma ideia pa-
radoxal, já que eu havia ficado de cama durante meses e não tivera
outra experiência além de meus pensamentos desprezíveis. Mas a
imagem refletida no espelho não disse nada disso. O homem ali
dentro lembrava um marinheiro do Pacífico que retorna depois de
meses no mar, ou talvez um mineiro que sobe à superfície depois de
uma longa jornada no subterrâneo, ou um cientista que volta para
casa após uma longa e dramática viagem na selva. Era um homem
marcante, esbelto, curtido com elegância. Ele era vida vivida.
– Você tem uma tesoura?
Thilda olhou-me confusa.
– Está comprida demais para eu começar com a navalha.
Ela fez um gesto indicando que entendera.
Logo retornou com uma tesoura de costura. Era desajeitadamen-
te pequena, feita para delicados dedos femininos, mas consegui cor-
tar boa parte da barba desgrenhada.
Lentamente, mergulhei o pincel na água e esfreguei-o no sabão.
Formou-se uma espuma com aroma fresco do zimbro.
– Onde está a navalha? – Olhei em volta.
Ela permanecia parada com as mãos fechadas sobre o avental e
os olhos fitos no chão.
– Thilda?
Enfim, estendeu-me a navalha que estava em seu bolso. Ela tre-
mia levemente na mão que a segurava, como se Thilda não estives-
se totalmente convencida de que deveria soltá-la. Peguei-a e come-
cei a fazer a barba. A lâmina raspou na pele, não havia sido amola-
da.
Thilda continuou a me observar.
– Obrigado. Você pode sair agora – disse eu a ela.
Mas ela permaneceu. Os olhos estavam em minha mão, na na-
valha. E de repente entendi o que a preocupava. Baixei a mão.
– Não é um sinal de sanidade eu estar fazendo a barba?
Ela precisou refletir, como de costume.
– Estou muito agradecida porque você está com disposição para
isso – respondeu por fim, mas permaneceu na mesma posição.
Se fosse para fazer algo assim, a questão seria encontrar um
método que pudesse dar a impressão de uma morte completamente
normal. Dessa forma, eu pouparia Edmund. Eu tinha diversos proce-
dimentos em mente, tive bastante tempo para concebê-los, mas era
óbvio que Thilda não estava ciente disso. Ela apenas supôs que, se
me deixasse sozinho num quarto com uma ferramenta pontuda, eu
agarraria a oportunidade como se fosse a única. Este era o tamanho
de sua simplicidade.
Se eu quisesse passar uma borracha em tudo, teria saído na ne-
ve há tempos, usando apenas uma camisola. Teria sido encontrado
morto de frio no dia seguinte, com a barba e os cílios cobertos de
gelo, e a morte seria exatamente isto: o comerciante de sementes
perdeu-se no escuro e morreu de frio, pobre coitado.
Ou um cogumelo. A floresta estava cheia deles, e no outono pas-
sado alguns foram parar numa gaveta da cômoda do canto esquer-
do da loja, devidamente trancada com uma chave à qual eu era o
único a ter acesso. O efeito do cogumelo era rápido, em poucas ho-
ras a pessoa ficava mole e letárgica, depois passava para um esta-
do de inconsciência, e então se seguiam alguns dias em que o orga-
nismo se degradava, antes de entrar em colapso. Um médico atri-
buiria a morte à falência múltipla dos órgãos. Ninguém saberia que
fora autoinfligida.
Ou afogamento. O rio atrás do terreno corria impetuoso até no
inverno.
Ou o canil de Blakes, e os sete cães bravios que rosnavam na
cerca.
Ou o despenhadeiro íngreme na floresta.
As possibilidades eram muitas, mas agora eu estava aqui ras-
pando a barba e não tinha intenção de recorrer a nenhuma delas,
nem à navalha que tinha na mão. Eu me levantara e nunca mais co-
gitaria tais ações.
– Não se prenda por mim – disse eu a Thilda. – Com certeza vo-
cê tem afazeres lá fora.
Apontei para a porta, como uma referência para o resto da casa
e suas intermináveis exigências: cozinhar, espanar, varrer e esfregar
roupas, pisos e tudo o mais que as mulheres fazem questão de
manter sempre limpo.
Ela fez que sim e finalmente saiu.
Houve momentos em que tive a impressão de que Thilda ficaria
mais do que grata se eu pegasse uma navalha ou talvez, de prefe-
rência, uma faca de trinchar, a enfiasse no pescoço e deixasse o
sangue jorrar da aorta até não sobrar outra coisa de mim além de
uma pele vazia, um casulo abandonado no chão. Thilda nunca o dis-
sera de forma direta, mas tanto ela como eu amaldiçoávamos aque-
le raio de sol que incidira justamente no nariz dela no salão comuni-
tário, há mais de dezessete anos. Poderia ter incidido em tantos ou-
tros, ou em nenhum.
Eu tinha 25 anos, chegara ao vilarejo cerca de um ano antes.
Não sei se ocorrera algo com o clima naquele mês, talvez um vento
seco tivesse soprado pela região por muito tempo, tornando os lá-
bios de Thilda vermelhos e ressecados, o que a levava a umedecê-
los constantemente com saliva. Ou talvez ela tivesse mordido os lá-
bios às escondidas, assim como as moças fazem para ter bocas se-
dutoras. De qualquer forma, naquele dia, não reparei de modo al-
gum que ela praticamente não tinha lábios. Só me lembro que esta-
va no meio da palestra quando a avistei.
Havia-me preparado muitíssimo bem. Em primeiro lugar, por cau-
sa de Rahm. Meu maior desejo era impressioná-lo tremendamente.
Sabia que tivera sorte, tantos de meus colegas da universidade fo-
ram incumbidos de tarefas muito menos interessantes. Como re-
cém-formado, não poderia fazer muitas exigências. Ficar sob a tute-
la de um cientista de renome era a melhor oportunidade que alguém
poderia ter para ser bem-sucedido. Nessa fase de minha vida,
Rahm era a única pessoa que importava. Desde o momento em que
passei pela soleira de seu gabinete de estudo, eu estava determina-
do: ele seria minha relação mais importante. Não apenas minha al-
ma gêmea e meu mentor, mas também meu pai. Eu não tinha mais
contato com meu próprio pai, tampouco desejava tê-lo, pelo menos
era o que repetia para mim mesmo. Mas sob a tutela do professor
eu cresceria e me desenvolveria. Ele me transformaria naquele que
eu era de verdade.
Minha falta de experiência também me instigou a fazer preparati-
vos especialmente meticulosos. De fato, nunca tinha dado uma pa-
lestra. Quando Rahm pediu minha colaboração para a tarde temáti-
ca de zoologia que estava organizando, aceitei, mas me pareceu al-
go insignificante. Era um evento modesto, para os habitantes de
Maryville. Com o passar dos dias, porém, aquilo tomou uma dimen-
são enorme para mim, crescendo de tal forma até se transformar
numa situação quase fora de controle. Como seria a sensação? Fi-
car ali na frente de tantas pessoas, todas ouvindo minha voz, a
atenção voltada para mim? Embora os moradores do vilarejo fos-
sem pessoas mais simples – mais, digamos, do que meus pares na
universidade –, tratava-se, de qualquer forma, de uma conferência
científica. Será que eu estaria à altura de realizar tal tarefa?
E o que me encheu de um temor reverente não foi só o fato de
que seria a primeira apresentação da minha vida, mas o que o even-
to poderia significar para o público. As ciências naturais representa-
vam uma área desconhecida para os moradores do vilarejo. A visão
que tinham do mundo baseava-se na Bíblia, o único livro em que
confiavam. Percebi que teria a possibilidade de mostrar algo mais a
eles, de apresentar as ligações entre o pequeno e o grande, entre a
força criadora e a Criação. Eu teria a oportunidade de abrir seus
olhos e mudar sua visão do mundo, sim, da própria existência.
Mas como mostrar tudo isso da melhor forma? Escolher o tema
tornou-se uma tarefa desmedida, que me fez andar em círculos.
Praticamente qualquer assunto era interessante se abordado do
ponto de vista das ciências naturais. Os frutos da terra, a descoberta
das Américas, as estações do ano. Quantas opções!
No final, foi Rahm quem decidiu tudo para mim. Ele pôs sua mão
fria sobre a minha, sorrindo de meu anseio confuso.
– Fale sobre o microscópio – disse. – Sobre as possibilidades
que ele nos deu. A maioria deles nem sabe o que é esse instrumen-
to.
Foi uma ideia brilhante, eu mesmo nunca a teria concebido. As-
sim, aderi a ela.
O dia chegou, com aquele vento seco e o sol brilhando no céu.
Não sabíamos ao certo quantas pessoas viriam. Vários dos morado-
res mais velhos tinham se manifestado contrários ao evento. Afirma-
vam que o que estávamos fazendo era uma blasfêmia, que não ha-
via necessidade de outros livros além da Bíblia. Mas pelo visto a cu-
riosidade incitara a maioria, pois o salão comunitário logo estava tão
cheio que o calor subiu a temperaturas de verão, embora o frio de
abril reinasse lá fora. Era uma raridade a pequena Maryville sediar
eventos como este.
Fui o primeiro a falar, Rahm quis que fosse assim. Talvez dese-
jasse me exibir, como se eu fosse seu próprio filho recém-nascido,
talvez ainda tivesse orgulho de mim naquele momento. Depois de
alguns longos minutos, com minha voz a tremer no mesmo ritmo
dos joelhos, encontrei a segurança. Apoiei-me nas palavras que fo-
ram tão meticulosamente preparadas. Descobri que tinham alcance,
que não perdiam sua credibilidade ao sair do papel e se propagar no
ar entre mim e a plateia. Elas atingiam seu alvo.
Iniciei com uma rápida delimitação histórica, falando sobre a len-
te convergente que entrou em uso já no século XVI e, em seguida,
sobre o microscópio óptico composto, descrito por Galileu Galilei em
1610. Para mostrar a importância do microscópio na prática, eu ti-
nha decidido falar sobre uma pessoa específica. Escolhi o zoólogo
holandês Jan Swammerdam. Ele viveu no século XVII e nunca foi
devidamente reconhecido por seus contemporâneos, era pobre e
solitário. Para a posteridade, porém, foi um verdadeiro monumento
da história natural, talvez precisamente por vincular a Criação à for-
ça criadora com tanta clareza.
– Swammerdam – disse eu, passando os olhos pela plateia. –
Nunca se esqueçam de seu nome. Seu trabalho nos mostrou que os
diversos estágios da vida de um inseto, ovo, larva e pupa, de fato
são formas diversas do mesmo inseto. O próprio Swammerdam de-
senvolveu um microscópio que lhe permitiu estudar os insetos de
perto. Durante seus estudos, elaborou desenhos que se diferencia-
ram de tudo que já tinha sido visto.
Com um gesto dramático, que fora muito ensaiado, apresentei
uma ilustração que mandara pendurar atrás de mim.
– Eis aqui a representação da anatomia da abelha, tal como
Swammerdam a desenhou em sua Biblia Naturae.
Permiti-me uma pausa retórica, deixei o olhar pousar sobre o pú-
blico, enquanto assimilava os desenhos extraordinariamente deta-
lhados. Naquele exato momento, o sol primaveril, em sua passagem
sobre o telhado do salão comunitário, tinha atingido a janela de meu
lado esquerdo. Um único raio entrou, expondo as manchas gorduro-
sas de um dos vidros e os grãos de pó rodopiando no ar. Era evi-
dente que o salão não vinha sendo limpo com a devida frequência.
Alcançando uma das fileiras de bancos, o raio de sol atingiu a pes-
soa que estava sentada na ponta esquerda, ao lado de duas ami-
gas: Thilda.
Posteriormente, entendi que aquilo de modo algum fora tão sur-
preendente para ela como o fora para mim. Era óbvio que eu estava
na mente de muitas moças, o jovem naturalista formado na capital,
com vestes modernas, eloquente, de estatura um pouco baixa tal-
vez, não o mais atlético – para falar a verdade, eu já lutava contra
uma obesidade incipiente. Porém, o que me faltava em termos de
vantagens físicas eu compensava em termos intelectuais. Os óculos
no nariz, por si só, eram testemunhas disso. Eu costumava posicio-
ná-los um pouco para baixo, de modo que pudesse expor meu olhar
sábio por cima da armação. Quando os adquiri, gastei uma noite in-
teira para encontrar a posição perfeita, o ponto exato no nariz onde
ficariam firmes e ao mesmo tempo permitiriam que eu olhasse dire-
tamente nos olhos das pessoas, sem a interferência das pequenas
lentes ovais, pois bem sabia que as lentes côncavas faziam os olhos
parecer menores. Também sabia que muitas moças achavam minha
vasta cabeleira atraente. Usava o cabelo no comprimento médio pa-
ra valorizá-lo ao máximo. Talvez Thilda já estivesse de olho em mim
há tempos, avaliando-me, comparando-me aos outros jovens do vi-
larejo, percebendo o respeito com que me tratavam, as reverências
profundas e os olhares humildes, tão diferente do que se observava
com os homens de seu círculo. Estes eram todos grosseiros, com
certeza, tanto no trajar quanto na conduta, e eram tratados de forma
correspondente.
Thilda usava sua melhor roupa domingueira, alguma coisa azul,
um vestido, ou talvez uma blusa, que tinha um caimento bonito so-
bre o busto. De cada lado do rosto arredondado, os cachos desciam
em direção aos ombros, o penteado num padrão que ela comparti-
lhava com todas as amigas e que também poderia ser visto em mui-
tas mulheres casadas – embora o bom senso indicasse que elas de-
vessem ter superado essas futilidades estéticas. No entanto, não fo-
ram os cachos nem a roupa que me chamaram a atenção. O que o
raio de sol solitário atingiu ao atravessar o ar pesado do salão co-
munitário foi um nariz excepcionalmente reto e bem proporcionado,
como uma ilustração de um livro de anatomia. Era um nariz clássico,
e logo fiquei com vontade de desenhá-lo, estudá-lo. Um nariz cujo
formato estava em absoluta sintonia com a função. Mas, como fica-
ria evidente mais tarde, lamentavelmente não havia essa sintonia no
caso de Thilda, já que seu nariz vivia vermelho e escorrendo por
causa de uma rinite eterna. Mas naquele dia ele somente reluzia,
nem brilhante nem vermelho, muito interessado em mim e em mi-
nhas palavras, e não consegui tirar os olhos dele.
A pausa retórica alongou-se demais. O público mexeu-se inquie-
to e ouvi um ruído longo e afetado de pigarro vindo de Rahm, que
estava atrás de mim. A ilustração ainda estava pendurada ali, sem
ter sido comentada.
Apressei-me a apontar para ela.
– Cinco anos inteiros Swammerdam gastou para estudar a vida
na colmeia. Tudo feito pelo microscópio, que lhe deu a possibilidade
de captar cada pequeno detalhe. Aqui, sim… Aqui vemos os ovários
da rainha. Por meio de seus estudos, Swammerdam constatou que
uma única rainha põe os ovos para os três diferentes tipos de abe-
lha: zangões, operárias e novas rainhas.
O público ficou olhando para mim, alguns se contorciam, nin-
guém parecia entender.
– Isso foi revolucionário naquele tempo, pois muitos até então
acreditaram que era um rei, ou seja, um macho, que governava a
colmeia. No entanto, com verdadeiro fascínio, com enorme entusias-
mo, Swammerdam dedicou-se ao estudo dos órgãos reprodutores
do macho da abelha. E aqui podem ver o resultado. – Peguei outra
ilustração.
– Estas são as genitálias do macho.
Havia rostos inexpressivos diante de mim.
A plateia mexeu-se inquieta. Alguns viraram os olhos para o co-
lo, a fim de examinar detalhadamente um fio solto de tecido no vesti-
do, outros mostraram um interesse súbito pelas formações irregula-
res das nuvens no céu, que podiam avistar através das janelas.
Dei-me conta de que provavelmente nenhum deles sabia o que
eram ovários ou genitálias e senti uma necessidade urgente de que
entendessem. Chegou então o momento da palestra que nunca se
tornaria parte da história que Thilda contava a nossos filhos e tam-
pouco seria mencionado entre mim e ela. Durante anos, a mera lem-
brança do que aconteceu me fez arder de vergonha.
– Os ovários são as glândulas genitais… Quer dizer, o sistema
reprodutor feminino. Neles são produzidos os ovos… que se trans-
formam em larvas.
Assim que as palavras saíram entendi no que tinha embarcado,
mas não podia parar agora.
– E as genitálias, por sua vez, são a mesma coisa que, hum… os
órgãos reprodutores do macho da abelha. São essenciais no pro-
cesso de, hum… criar novas abelhas.
Um murmurar de espanto passou pela plateia tão logo se tornou
claro o que os desenhos representavam. Por que eu não tinha pre-
visto o efeito que esse tema teria? Para mim, era uma parte óbvia
das ciências naturais, mas para eles era assunto pecaminoso, sobre
o qual se guardava segredo, sobre o qual jamais se falava. A seu
ver, minha paixão por esse assunto era imunda.
Entretanto, ninguém saiu, ninguém me interrompeu. Se pelo me-
nos alguém tivesse feito isso… Somente alguns ruídos sinalizavam
que tudo estava dando errado: traseiros que se mexiam nos bancos
de madeira, botas que raspavam no chão, pigarros fracos. Thilda
baixou a cabeça. Será que estava corando? Suas amigas entreolha-
ram-se, mal disfarçando a risada, e eu, a besta que sou, continuei,
na esperança de que o resto da palestra deslocasse a atenção das
palavras que acabara de proferir para aquilo que de fato importava.
– Três páginas inteiras ele dedicou a isso na obra de sua vida, a
Biblia Naturae, ou a Bíblia da Natureza. Aqui vemos algumas de su-
as ilustrações incrivelmente detalhadas das geni… genitálias do
zangão, o macho da abelha. – A palavra pesava na boca. – Os dife-
rentes estágios, como se abrem, se desenvolvem e hum… intumes-
cem plenamente na maturidade. – Será que eu de fato disse isso?
Um olhar de relance para o público me confirmou que sim. Forcei os
olhos a voltarem para o texto e continuei lendo, embora só ficasse
cada vez pior.
– O próprio Swammerdam comparou-as a… monstros marinhos
exóticos.
A essa altura, elas, as amigas, já estavam dando risadinhas.
Não tive coragem de olhar para elas, preferindo pegar a obra de
Swammerdam e citar as palavras incríveis sobre as quais eu mesmo
tinha ponderado tanto. Agarrei-me ao livro, torcendo para que os ou-
vintes finalmente percebessem a verdadeira paixão.
– Se o leitor olhar para a estrutura admirável deste órgão, desco-
brirá arte da mais alta qualidade e compreenderá que Deus, até no
menor inseto, até nos órgãos minúsculos deste, esconde milagres
arrebatadores.
Atrevi-me a erguer os olhos e ficou muito óbvio, absolutamente
claro, que eu fora derrotado, pois os rostos que olhavam para mim
estavam, na melhor das hipóteses, abalados, alguns até furiosos. E
enfim compreendi, captei plenamente o que eu tinha feito. Não con-
seguira lhes falar sobre as maravilhas da natureza, tinha ficado aqui
no palco discursando sobre as maiores obscenidades e, ainda por
cima, misturando Deus naquilo tudo.
Não contei o resto da história: que o pobre Swammerdam nunca
foi capaz de qualquer outra coisa depois disso, que sua carreira ter-
minou. O estudo das abelhas lançou-o num turbilhão de ruminações
religiosas, pois a perfeição do inseto assustou-o, e ele se viu força-
do a lembrar a si mesmo, constantemente, que só Deus, e não es-
sas pequenas criaturas, era digno de suas investigações, seu amor
e sua atenção. Em face da abelha, era difícil acreditar que houvesse
algo mais perfeito, nem mesmo Deus. Os cinco anos em que prati-
camente viveu numa colmeia destruíram-no para sempre.
Naquele momento, percebi que se contasse isso eu não seria
apenas ridicularizado, mas odiado, pois ninguém desafia o todo-po-
deroso.
Dobrei o manuscrito enquanto o rubor subia-me às faces e trope-
cei como um menino ao descer do palco. Rahm, a quem eu quisera
impressionar, mais do que a qualquer outra pessoa, estava com o
rosto congelado num sorriso estranho, visivelmente lutando para
conter uma risada. Ele me fez lembrar meu pai, meu pai de verdade.
Apertei a mão de várias pessoas que tinham ouvido a palestra.
Muitas não sabiam o que dizer, e notei os cochichos à minha volta,
ora acompanhados de risadinhas incrédulas, ora denotando raiva e
choque. O rubor espalhou-se do rosto para a espinha dorsal e se
propagou pelas pernas, que foram tomadas por um tremor incontro-
lável. Procurei, em vão, disfarçar. Rahm deve ter notado, pois colo-
cou uma das mãos em meu ombro e disse baixinho:
– Estão presos às trivialidades. Nunca serão como nós.
O consolo não ajudou, só ressaltou a diferença entre mim e ele.
Rahm jamais escolheria exemplos que ofendessem os ouvintes. En-
tendia o que poderiam suportar, sabia lidar com o equilíbrio entre
nós e eles, sabia que o mundo da ciência e o do povo eram espaços
distintos. Como para frisar o que tinha dito e minha evidente falta de
compreensão do público, ele de repente riu. Foi a primeira vez que
ouvi sua risada. Era breve e baixa, mas tive um sobressalto mesmo
assim. Virei-me para o outro lado, não suportei olhar para ele. A ri-
sada pesava demais dentro de mim, esvaziava todo o consolo, ma-
chucava tão intensamente que dei um passo para me afastar dele.
E ali estava ela.
Talvez tenha sido a fraqueza, a vulnerabilidade mal escondida
em mim naquele dia que motivara Thilda a se expor. Eu já não era
apenas o forasteiro misterioso que se ocupava com algo sublime e
incompreensível na casa do professor. Pois ela não riu. Ofereceu-
me a mão enluvada, fez uma reverência e agradeceu-me pela
“hum… estupenda” palestra. Um pouco atrás, as amigas continua-
vam a dar risadinhas. Mas o ruído delas desapareceu para mim,
elas desapareceram para mim. Nem vi Rahm, somente a mão. Se-
gurei-a por muito tempo na minha, senti como o calor da pele irradi-
ou através da luva, como a força dentro de mim retornou por meio
dessa mão. Ela não zombou nem riu de mim, e eu me senti infinita-
mente grato. Os olhos brilhavam em cima do belo nariz. Eram um
tanto afastados um do outro e pareciam estar bem abertos para o
mundo e para a vida, mas sobretudo para mim. Imagine, para mim!
Nunca antes uma moça tinha me olhado assim. Era um olhar que
deixava transparecer que ela estava disposta a se entregar por com-
pleto, a me dar tudo, e só a mim. Pois só para mim olhou desse jei-
to, para mais ninguém ali. Essa ideia causou novo tremor em mi-
nhas pernas, o que me levou a olhar para baixo. Foi como cortar um
cordão, era fisicamente dolorido, e eu não desejava outra coisa se-
não retomar esse contato visual e esquecer o mundo em volta.
Durante meses o povo do vilarejo não parou de falar sobre mi-
nha apresentação. Se antes me cumprimentavam unicamente com
respeito e deferência, agora várias pessoas, sobretudo os homens,
apertavam minha mão com mais força, davam-me tapinhas nas cos-
tas e falavam comigo com meios sorrisos e ironia mal velada. As pa-
lavras intumescer plenamente, a Bíblia da Natureza e monstros ma-
rinhos exóticos perseguiram-me durante anos. Da mesma forma,
ninguém jamais se esqueceu de Swammerdam, e seu nome passou
a ser usado em muitos e distintos contextos. Quando os cavalos se
acasalavam no prado, aquilo era descrito como uma “atividade
swammerdamiana”. Homens bêbados que precisavam se aliviar no
botequim de noite diziam que só dariam uma saída para “arejar o
swammerdam”. E a especialidade da padaria local, uma empada
alongada recheada de carne, de repente ficou conhecida por
“swammerpada”.
Por incrível que pareça, isso me incomodou pouco. De certa for-
ma, o declínio de minha posição social estava sendo bem compen-
sado. Pelo menos foi assim que pensei ao me casar com Mathilda
Tucker alguns meses depois da palestra. No momento em que des-
cemos do altar da igreja, eu já sabia havia tempo que seus lábios
eram estreitos, tipicamente britânicos. Tinha-me atrevido a um beijo
ao pedi-la em casamento e, para meu pesar, descobri que de modo
algum possuíam a capacidade de se abrir como uma flor grande, se-
creta e úmida, ou talvez um monstro marinho, como eu fantasiara
nas altas horas da noite. Eram tão secos e duros como pareciam. E
o nariz, a bem da verdade, era um tiquinho grande demais. Mesmo
assim, senti um ardor nas faces quando nosso matrimônio foi aben-
çoado pelo padre. Afinal de contas, eu estava me casando e a ponto
de assumir a vida adulta de verdade. Não percebia, naquele mo-
mento, que as imposições dessa vida adulta impossibilitariam a mai-
oria de meus sonhos, obrigando-me a me afastar do mundo da ciên-
cia. Pois Rahm tinha razão. Embora eu mantivesse alguns trabalhos
científicos sem grande convicção, havia optado por abandonar mi-
nha paixão pela disciplina.
Mas eu estava seguro, completamente convencido, de que Thil-
da era a pessoa certa para mim. Seu comedimento me fascinava,
ela sempre pensava bem antes de responder a uma pergunta. Seu
comportamento orgulhoso, idem, eu admirava o modo como ela de-
fendia suas opiniões, era uma qualidade raras vezes encontrada em
jovens mulheres. Só mais tarde, embora não muito mais tarde, ape-
nas alguns meses após o casamento, entendi que na realidade ela
avaliava cada resposta durante tanto tempo porque não era especi-
almente inteligente. E reconheci o orgulho pelo que de fato era: uma
teimosia invencível. Pois ficaria evidente que ela nunca cedia. Ja-
mais.
No entanto, o desejo de me casar com ela tinha uma motivação
mais importante, que eu não quis admitir sequer para mim mesmo.
Só agora, em meu leito de doente, fui capaz de aceitá-la, reconhe-
cer que eu ainda era tão primitivo e voraz como uma criança de dez
anos: o fato de que ela era um corpo vivo, macio. Que ela era mi-
nha, que seria acessível para mim. Que muito em breve eu poderia
achegar-me a seu corpo, deitar-me em cima dele, impulsionar-me
contra ele, como se ele fosse terra bruta e úmida.
Só que essa parte também não saiu como eu tinha sonhado. Fo-
ra antes uma ocorrência fria e apressada, com botões e fitas em ex-
cesso, barbatanas de espartilho, meias de lã que pinicavam e um
cheiro acre de axilas. Mesmo assim, fui atraído para ela com o ins-
tinto de um animal, de um zangão. Vezes sem conta, pronto para a
procriação, embora nunca tivesse desejado descendentes. Assim
como o zangão, sacrifiquei a vida pela procriação.
Tao
Não achei placa alguma, o mapa não fazia sentido. E não encontrei
ninguém a quem perguntar. Mas a certeza de que estava num lugar
onde não deveria estar cresceu dentro de mim. Eu estava nas áreas
que a recepcionista tinha indicado, aquelas sobre as quais as autori-
dades não tinham mais controle. Aqui estavam apenas os que se re-
cusaram a sair. Os que foram abandonados. Os que se esconde-
ram.
Dobrei uma esquina. Diante de mim, havia mais uma rua deser-
ta. A escuridão parecia cada vez maior, as sombras ficavam cada
vez mais longas, o silêncio era grande demais. Um movimento cap-
tado pelo canto do olho chamou minha atenção. Eu me virei abrup-
tamente. Um portão escancarado dava para um pátio interno. Será
que havia alguém lá dentro?
Continuei em frente e passei pelo portão. Até agora não tinha
pensado em estar com medo, só em escapar daqui. Mas de repente
percebi como todos os músculos do meu corpo ficaram tensos. Será
que eu deveria dar meia-volta?
Dei mais alguns passos. Um pouco mais lentos agora. Nada
aconteceu. Talvez fosse algo da imaginação. Ou talvez um animal.
Um gato, uma ratazana. Algo que em vão tentou continuar sua vida
nesse lugar afastado e abandonado, onde não havia comida para
nenhum ser vivo. Mal havia pragas, apenas algumas plantinhas fra-
cas que brotavam com esforço nas rachaduras do asfalto.
Levantei a cabeça. No fim da rua, vislumbrei algo azul e branco.
Apertei o passo. Ficou mais nítido para mim, o símbolo branco com
o fundo azul. Estava piscando, o fornecimento de energia talvez não
fosse estável. Mas mesmo assim não havia dúvida: o metrô ficava
no fim da rua.
A essa altura eu estava trotando. Não era garantido que a esta-
ção estivesse em uso, mas provavelmente haveria um mapa ali. E
talvez eu pudesse seguir os trilhos de lá até as áreas habitadas.
Aqui na periferia o metrô ainda ficava a céu aberto, não dentro de
túneis como no centro da cidade.
Só que não corri rápido o suficiente. Pois algo saiu do pátio atrás
de mim. Deu tempo de ver um corpo comprido e desengonçado se
movimentar em minha direção. Um assobio penetrou o ar. De repen-
te, notei que mais duas pessoas surgiram atrás de mim, uma de ca-
da lado. De onde saíram? Onde estavam escondidas? Não tinha a
menor noção.
Talvez estivessem a uns vinte metros de distância, mas eram ve-
lozes. Correram em meu encalço e estavam se aproximando de-
pressa. Uma moça alta e magra e dois rapazes. Não crianças, não
adultos. Com a pele lisa e os olhos de idosos. Os três eram magros,
estavam prestes a sucumbir. Mas parecia que minha presença lhes
dera muito mais força do que o peso corporal indicaria.
Não esperei, sabia o que queriam. Seus olhares me diziam que
estavam dispostos a qualquer coisa para aliviar a fome. Era como
se carregassem todo o desespero dos velhos do hospital, mas tives-
sem a energia e o físico para agir em nome de sua aflição.
Mais uma vez, eu corri. Só que dessa vez era diferente. Quando
deixei os velhinhos, tinha fugido de meu próprio nojo, dessa vez cor-
ri para salvar a vida.
E eles estavam chegando mais perto. Não tive coragem de me
virar, mas os ouvia. Os passos contra o asfalto. Os seis pés que
atingiam o chão num ritmo irregular. O som ficou cada vez mais alto.
Diante de mim, a placa azul cresceu. Se desse tempo de eu che-
gar ali, se desse tempo de eu entrar na estação, se um trem che-
gasse…
No entanto, sabia que estava me iludindo. Nenhum trem chega-
ria, aqui não. Aqui havia só eu. E eles. Três jovens desesperada-
mente famintos, sem a esperança de uma vida. Mas, mesmo assim,
impulsionados pela força da autopreservação inerente ao ser huma-
no. Impulsionados pelo instinto. Eles também eram nosso mundo.
Agora estavam a apenas poucos metros de distância. Escutei
sua respiração. Logo estariam em cima de mim. Agarrando minhas
costas, me derrubando no chão.
Eu não tinha escolha.
Virei-me bruscamente, sem uma palavra, e ergui as mãos sobre
a cabeça num sinal de que estava me rendendo.
Os três pararam. Um ar de surpresa passou sobre seus sem-
blantes, substituindo por um instante a selvageria. Encarei a meni-
na. Por que ela? Talvez por ser mulher, como eu. Talvez fosse a
mais fácil de convencer. Tentei deixar o olhar transmitir todos os
meus pensamentos sobre compaixão. Fiquei olhando para ela, for-
çando seus olhos a permanecerem focados nos meus. Se tivesse
acontecido mais tarde, talvez ela não conseguisse me olhar nos
olhos. Mas duas piscadas rápidas me contaram que eu a tinha to-
mado de surpresa. Pois ela continuou parada, passou os olhos de
mim para os outros dois. Ficamos parados assim, os quatro. Ousei
mover o olhar agora. De um para o outro, deixando os olhos pousa-
rem por um tempo em cada um, querendo que me vissem, realmen-
te me enxergassem, tivessem tempo de refletir. Para que eu me
transformasse em algo além de costas em fuga, uma presa. Para
que me transformasse num ser humano.
– Vocês estão sozinhos aqui? – perguntei baixinho.
Ninguém respondeu.
Dei um passo para a frente.
– Precisam de ajuda?
Um pequeno som escapou da menina, um gemido, um “sim”. Ela
se apressou a olhar para um dos meninos, o mais alto. Talvez ele
fosse o líder.
Eu me arrisquei e me dirigi a ele.
– Posso ajudar vocês. Podemos sair daqui. Juntos.
Um sorriso enviesado passou sobre seus lábios.
– Você está com medo. – A voz era aguda, mais aguda do que
eu tinha imaginado.
Fiz que sim com um gesto lento da cabeça, continuando a enca-
rá-lo.
– Você tem razão. Estou com medo.
– E aí as pessoas dizem qualquer coisa – ele falou.
Eu me abstive de responder, preferindo fazer uma pergunta:
– O metrô está funcionando?
– O que você acha?
– Vocês já tentaram ir para algum outro bairro?
Ele riu. Uma risada cortante.
– A gente tentou quase tudo.
Dei mais um passo em sua direção.
– Onde eu moro tem comida. Posso comprar para vocês.
– Que tipo de comida?
– Que tipo? – A pergunta me fez hesitar. – Coisas comuns. Ar-
roz.
– Coisas comuns – ele imitou. – Você quer que a gente deixe
nossa casa por uma porção de arroz?
Olhei para a rua atrás dele. Deserta. Empoeirada. Nada que indi-
casse uma casa habitada.
Ele fez um gesto para o outro menino e a menina. Eles se apro-
ximaram de mim. Será que estavam se preparando para me atacar?
– Não. Esperem. – Coloquei a mão na bolsa. – Tenho dinheiro!
Mexi lá dentro. Os dedos encostaram num papel estaladiço.
– E comida. Bolacha.
Tirei um pacote e o estendi para eles.
A menina chegou a meu lado no mesmo instante, apanhou o pa-
cote de minha mão e estava prestes a arrancar o papel.
– Ei! – O rapaz alto avançou para ela num pulo. A menina fechou
o punho, ouvi como as bolachas foram esmagadas e transformadas
em migalhas dentro da embalagem.
Depressa, eu me afastei alguns metros.
Ela fez menção de sair correndo, mas o rapaz já estava em cima
dela. A força, ele abriu seus dedos e tirou o pacote de bolacha. Ela
não disse nada, mas os olhos se encheram de lágrimas.
O rapaz ficou parado com o pacote nas mãos. A logomarca era
simples, em preto e branco. A estampa estava um pouco manchada,
talvez por causa do suor das mãos da menina.
– A gente precisa dividir – disse o rapaz, e olhou para a menina.
– A gente precisa dividir.
Os três estavam ocupados uns com os outros agora.
Será que eu deveria tentar correr? Não. Eu precisava lhes dar tu-
do que eu tinha, ser generosa. Não fugir. Senão eles voltariam para
cima de mim. Eu não tinha escolha.
Enfiei a mão na bolsa de novo. Engoli em seco, hesitei, mas ti-
nha que fazer aquilo.
– Olhem aqui. Dinheiro.
Não tive coragem de me aproximar mais deles e deixei algumas
notas surradas no chão, as últimas. Na lata que deixei no quarto do
hotel só sobravam umas moedinhas.
O rapaz fixou os olhos nelas.
Recuei um passo. Senti um nó na garganta.
– Agora já lhes dei tudo que tenho.
Ele continuou olhando para o dinheiro.
– E agora estou indo embora.
Dei mais um passo. Aí dei meia-volta.
Calmamente, fui me afastando em direção ao metrô.
Um passo.
Dois. Três.
As pernas queriam correr, mas eu as forcei a andar devagar.
Continuar a ser uma pessoa para eles, não me tornar uma presa,
não reiniciar a caçada. Manter a cabeça erguida, não me virar.
Ouvi que eles se moveram um pouco atrás de mim. O raspar do
tecido de uma jaqueta, um leve pigarro. Cada som minúsculo se
destacou no silêncio. Mas nenhum passo soou no asfalto.
Sete. Oito. Nove.
Ainda estava quieto.
Onze. Doze. Treze.
Eu me atrevi a apertar o passo. Cheguei mais perto da estação,
que estava trancada com uma corrente e um cadeado. Só então eu
me virei.
Eles ainda estavam ali, no mesmo lugar, me seguindo com os
olhos. Todos os três igualmente inexpressivos. Nenhum sinal de mo-
vimento.
Segui em frente, de olho neles o tempo todo.
Logo dobrei uma esquina. Não consegui mais ouvi-los. Diante de
mim, havia outra rua deserta. À minha direita estavam os trilhos do
metrô; à esquerda, uma fileira morta de casas. Aqui não havia vival-
ma.
Então corri.
William
•••
A primeira carruagem entrou no pátio. Meu coração deu um pulo, a
chegada do primeiro convidado sinalizava que tudo estava come-
çando. Eu vestira a melhor roupa que possuía, recém-engomada,
recém-lavada, e estava de barba feita. Até havia tirado o pó da car-
tola. Já estavam chegando, e eu estava pronto.
As colmeias formavam duas fileiras nos fundos do terreno. Sim,
a essa altura havia muitas delas, Conolly realmente estivera ocupa-
do. O som acumulado de milhares de abelhas era tão alto que pode-
ríamos ouvi-las até dentro de casa. Minhas abelhas, domadas por
mim, meus súditos, que deveras me obedeceram cegamente, já que
dia após dia, cada uma com suas pequenas contribuições, ajudaram
a encher a colmeia com mel brilhante cor de âmbar. E, não menos
importante, faziam sua parte para que a colmeia crescesse, para
que houvesse um número ainda maior de súditos.
Nas últimas semanas, eu tinha enviado uma série de convites
para minha primeiríssima apresentação da “Colmeia Padrão de Sa-
vage”. Os convites foram encaminhados aos agricultores locais, mas
também aos naturalistas da capital. E a Rahm. Eu tinha recebido a
resposta de muitos, mas não dele. No entanto, ele deveria vir. Ele ti-
nha de vir.
Edmund também estava pronto. Parecia ter compreendido a seri-
edade da situação. Sim, até Thilda tinha conversado com ele. Pois
ainda não era tarde demais, ele era jovem, naquela fase da vida em
que é fácil ser levado ao mau caminho, se deixar seduzir pelo sim-
ples prazer. Seguir sua paixão, foi o que dissera. Um argumento pe-
lo qual eu tinha a mais alta estima, agora era só uma questão de
cuidar para que ele encontrasse uma paixão de distinção. Minha es-
perança era que o contato com a ciência, o contato direto com a na-
tureza, o inspirasse. Que o orgulho que eu despertaria nele, o orgu-
lho de fazer parte dessa família, de levar nosso nome adiante, o
conduzisse de volta ao caminho do dever.
Num esforço coletivo, as mulheres da família tinham levado ca-
deiras e bancos até as colmeias. Ali, o público ficaria sentado, assis-
tindo à minha apresentação. Durante dias, Thilda e as meninas cor-
taram, assaram, ferveram e refogaram iguarias na cozinha. Haveria
comes e bebes, claro que sim, embora nosso derradeiro dinheiro,
até o dinheiro da faculdade, fosse gasto. Pois só se tratava de um
investimento a curto prazo. Depois deste dia, eu estava certo, tudo
se resolveria.
Charlotte ficara a meu lado o tempo todo. Desde aquele momen-
to na floresta fazíamos tudo juntos. Sua serenidade me contagiou,
seu entusiasmo tornou-se meu. Este dia era também dela, mas ha-
via um entendimento implícito de que seu traje branco de apicultora
permaneceria no baú de roupas do quarto das meninas. Seu lugar
era entre as outras mulheres. E ela parecia sentir-se à vontade com
uma bandeja na mão e as faces rubras do calor da cozinha. Mas às
vezes me mandava sorrisos alegres, ansiosos, reveladores de que
aguardava com tanta expectativa como eu.
A primeira carruagem parou diante de mim, preparei-me para re-
ceber o convidado. Só então vi quem era. Conolly, apenas Conolly.
Estendi a mão, mas ele não a apertou, apenas me deu um tapa
no ombro.
– Passei a semana contando os dias – disse ele sorrindo. – Nun-
ca participei de uma coisa assim.
Sorri de volta, tentando parecer condescendente, não querendo
admitir que eu também não tinha participado de nada igual. Mas ele
me cutucou com o cotovelo.
– Você também está ansioso… Estou vendo.
Então ficamos ali, feito dois menininhos no primeiro dia de aula,
mexendo os pés com impaciência.
Primeiro chegaram os agricultores locais – dois que já faziam cri-
ação de abelhas e um que estava pensando em começar. Eles des-
ceram até as colmeias enquanto nós aguardávamos os demais con-
vidados.
Um pouco mais tarde, dois senhores, desconhecidos para mim,
chegaram montados a cavalo. Ambos portavam cartola e trajavam
roupa de cavaleiro. Estavam cobertos de poeira, como se tivessem
feito uma longa viagem. Desmontaram, vieram em minha direção e
só então os reconheci. Eram meus velhos colegas de faculdade,
ambos barrigudos, com calvas incipientes e rostos com poros dilata-
dos, cheios de rugas. Como eles envelheceram; não, eles não, nós.
Como nós envelhecemos.
Cumprimentaram-me, agradeceram o convite, deram uma olha-
da em volta e fizeram um gesto de aprovação. Comentaram as van-
tagens de morar assim, tão integrado à natureza, e não como eles,
que tinham escolhido viver na floresta urbana, onde as árvores eram
edifícios de alvenaria, o solo fértil eram paralelepípedos, e tudo o
que se via ao virar o rosto para o céu eram andares de prédios, te-
lhados e chaminés.
As pessoas chegaram em grande número. Vários agricultores,
alguns somente por curiosidade, e até três zoólogos da capital, que
vieram na diligência da manhã e desceram na estrada logo abaixo
de nossa propriedade.
Mas nada de Rahm.
Entrei em casa rapidamente, consultei o relógio em cima da la-
reira. Minha intenção era iniciar à uma em ponto. Só então, quando
todos estivessem em seus lugares, eu desceria e me posicionaria
diante deles. E Edmund, meu primogênito, estaria ali na plateia, ele
me veria ali na frente de todo mundo.
•••
Já era uma e meia. Os convidados estavam ficando um pouco inqui-
etos. Alguns pescavam discretamente o relógio do bolso do colete,
dando uma rápida olhada nele. Tinham-se servido bem da comida e
da bebida que Thilda e as meninas ofereceram a todos, e provavel-
mente estavam bastante satisfeitos. Fazia calor, várias pessoas tira-
vam o chapéu, pegavam lenços e enxugavam o pescoço úmido.
Meu próprio chapéu era uma escaldante estufa negra que fazia
pressão sobre a cabeça, dificultando o pensamento. Arrependi-me
do traje. Cada vez mais pessoas lançavam olhares para as colmeias
e depois me fitavam com ar interrogativo. A conversa deixou de fluir,
sobretudo a minha. Não conseguia manter a atenção no interlocutor,
os olhos sendo sempre atraídos para o portão. Ainda nada de
Rahm. Por que será que ele não vinha?
Eu teria de começar de qualquer forma. Precisava começar.
– Vá buscar as crianças – falei para Thilda.
Ela fez que sim. Com voz baixa, começou a reunir as meninas
em torno dela, enquanto Charlotte foi encarregada de buscar Ed-
mund.
Comecei a andar calmamente em direção às colmeias e o públi-
co percebeu que algo, enfim, estava acontecendo. As conversas
dispersas dissolveram-se e as atenções se voltaram para mim.
– Prezados senhores, por favor, tomem seus lugares – disse eu,
fazendo um gesto para as cadeiras e bancos que foram colocados
lá embaixo.
Os convidados atenderam de imediato. Os assentos estavam na
sombra, eles já deveriam estar ansiosos para se acomodar ali.
Assim que todos os presentes se sentaram, percebi que tínha-
mos exagerado, pois a plateia não era tão numerosa como o espe-
rado. Entretanto, as meninas chegaram, e Edmund também. Elas fi-
zeram bastante volume, espalhando-se de forma desorganizada, do
jeito que só as crianças sabem fazer, e preencheram as maiores la-
cunas.
– Bem. Então me parece que todos estão sentados – disse eu.
Mas minha vontade era gritar o contrário. Pois ele não estava aqui,
sem ele o dia não tinha sentido. Logo captei os olhos de Edmund ali
na frente. Não, não sem sentido. Apesar de tudo, era por causa de
Edmund que eu fazia aquilo.
– Peço que me desculpem por um momento, enquanto visto a
roupa de proteção. – Esbocei um sorriso. – Afinal, não sou nenhum
Wildman. – Todos, até os agricultores, deram risadas, altas e mui-
tas. E eu, que pensara ter oferecido uma piada aos poucos inicia-
dos, algo que separaria eles de nós… Mas não fazia mal. O que im-
portava agora era a colmeia, e eu sabia que nunca tinham visto na-
da igual.
Entrei depressa em casa e me troquei, tirando a roupa pesada
de lã e vestindo a roupa branca. O tecido fino parecia fresco na pe-
le, e era um alívio substituir a cartola preta pelo chapéu branco e le-
ve de apicultor, com o véu diáfano na frente do rosto.
Espiei pela janela. Estavam quietos nas cadeiras e nos bancos.
Agora. Eu precisava fazê-lo agora. Com ou sem ele. Para o inferno
com Rahm, claro que eu estaria muito bem sem sua presença pro-
fessoral de sabe-tudo!
Saí e fui descendo a trilha para as colmeias. Ela agora estava
mais larga por causa dos sulcos abertos pelas rodas da carroça ve-
lha e rangente de Conolly, e em alguns lugares havia buracos fun-
dos. Eu mesmo levara as colmeias até lá embaixo, pois Conolly não
se atrevia a chegar nem perto. E foi a duras penas que consegui
voltar com a geringonça ladeira acima.
Os rostos sorriram para mim, todos numa expectativa amigável.
Isso me fez sentir seguro.
E então me posicionei diante deles e fiz meu discurso. Finalmen-
te, eu compartilhava minha invenção com o mundo pela primeira
vez, finalmente, tinha a oportunidade de apresentar a “Colmeia Pa-
drão de Savage”.
•••
Depois, todos se aproximaram, apertando minha mão, um por um.
Fascinante, incrível, impressionante, os elogios choviam sobre mim,
não consegui distinguir quem dizia o quê, tudo se misturava. Mas o
principal eu percebi: Edmund estava ali, vendo tudo. O olhar alerta e
consciente, o corpo, excepcionalmente, nem inquieto nem letárgico,
apenas presente. Sua atenção estava voltada para mim, o tempo to-
do.
Ele viu tudo, todas as mãos, até a última mão que foi estendida
para mim.
Eu havia tirado a luva, e os dedos frios tocaram os meus. Um
choque percorreu o corpo todo.
– Parabéns, William Savage.
Ele sorriu, não uma ponta de um sorriso, mas um sorriso que se
prolongou, permaneceu no rosto, sim, que de fato pertencia a ele.
– Rahm.
Ele segurou minha mão e fez um gesto indicando as colmeias.
– Isso é outra coisa.
Eu mal consegui falar.
– Mas… Quando o senhor chegou?
– A tempo para pegar a parte importante.
– Eu… eu não o vi…
– Mas eu vi você, William. E, além do mais…
Ele passou a mão esquerda sobre a manga de minha roupa,
senti os pelos se eriçarem ali dentro num arrepio maravilhoso.
– … você sabe que não me atrevo a ficar perto das abelhas sem
estar devidamente paramentado. Por isso fiquei aqui, bem no fundo.
– E eu… pensei que não…
– Pois é. Mas o fato é que estou aqui.
Com suas duas mãos, ele segurou a minha. O calor delas fluiu
para mim, e foi bombeado pelo sangue até os mais ínfimos compo-
nentes do meu ser. Com o rabo do olho, vislumbrei Edmund. Ele es-
tava ali ainda, continuava olhando para nós, para mim, ainda estava
igualmente atento e alerta. Ele viu.
Tao
•••
Segurei a carta com as duas mãos, mas mesmo assim ela tremia,
as letras balançavam, mal eram legíveis. Uma risada tilintava nos
ouvidos.
Pares nesta área. Repeti as palavras para mim mesmo, mas não
faziam sentido.
Era tarde demais. Eu não era par de ninguém.
Eu deveria ser colocado numa caixa com tampa, onde poderia
ser observado e controlado de cima. Agora eu fora domado, pela
própria vida.
Soltei a carta e me levantei. Eu precisava derrubar, destruir, des-
pedaçar alguma coisa. Qualquer coisa para estancar o furacão den-
tro de mim. Abruptamente, as mãos dispararam, arrastando os li-
vros, o tinteiro e os desenhos que estavam sobre a mesa. Tudo caiu
no chão. A tinta saiu num jorro, transformando-se numa pupila in-
sondável sobre as tábuas de madeira. Ela ali permaneceria para
sempre como um lembrete ocular de meu fracasso. Como se isso
fosse necessário. Todo o meu ser, meu corpo disforme e pachorren-
to, era um lembrete.
A estante de livros teve o mesmo destino que o tinteiro, depois
foi a vez da cadeira de trabalho. Rasguei as ilustrações na parede.
Os monstros marinhos de Swammerdam foram feitos em pedaços,
nunca mais fixaria os olhos neles, nunca mais enxergaria Deus nos
menores componentes da Criação.
Em seguida, o papel de parede. O desgraçado papel de parede
amarelo. Arranquei-o, uma tira depois da outra, até só restarem far-
rapos e grandes feridas na parede crua de tijolos que estava por
trás.
E então, por fim, eu estava com eles nas mãos, os desenhos da
colmeia. Inúteis. Deveriam ser destruídos para sempre.
Os músculos das mãos ficaram tensos. Eu queria amassá-los,
rasgá-los, mas não consegui.
Não consegui.
Pois não era eu quem poderia fazer isso. Não eram meus, não
caberia a mim destruí-los, mas a ele. Tudo era sua culpa, e, portan-
to, também sua responsabilidade.
Saí correndo no corredor.
– Edmund!
Não bati à porta. Entrei feito um furacão, ele não tinha se dado
ao trabalho de trancá-la.
Ele pulou da cama. Estava com o cabelo em pé, os olhos injeta-
dos de sangue. Fedia a álcool. Afastei-me do fedor quase sem pen-
sar, como sem dúvida eu já fizera antes, tentando não ver, tentando
me enganar. Fingindo que aquilo não existia.
Não. Hoje não, e nunca mais. Ele seria castigado. Espancado
com a fivela do cinto sobre as costas até a pele ficar cheia de ver-
gões e o sangue escorrer.
Mas primeiro isso.
– Olhe aqui! – Joguei os desenhos sobre sua cama. – Aqui es-
tão!
– O quê?
– Foi você quem me instigou. Aqui estão! O que devo fazer com
eles?
– Pai… Eu estava dormindo.
– Não valem nada. Você compreende isso?
Seu olhar desembaçou-se, ele se recompôs. Pegou um deles.
– O que é isso?
– Não valem o papel em que foram desenhados! São inúteis!
Ele passou os olhos pelos traços de tinta sem sentido.
– Ah. A colmeia. É a colmeia – disse ele em voz baixa.
Respirei com dificuldade, tentei acalmar-me.
– São seus agora. Os desenhos. Foi você quem quis que eu co-
meçasse com isso. Você pode fazer o que quiser com eles.
– Quis que você começasse… O que você quer dizer?
– Você deu início a isso. Agora pode destruí-los. Queimá-los.
Rasgá-los, fazer o que quiser.
Ele se levantou devagar e tomou um gole de água de um copo,
com a mão surpreendentemente firme.
– Não entendo o que você quer dizer, pai.
– É sua obra. Fiz isso aí por você.
– Mas por quê? – Ele fixou os olhos em mim. Não consegui lem-
brar a última vez em que havíamos nos olhado. Agora tinha os olhos
apertados. Ele parecia mais velho do que seus dezesseis anos.
– O livro! – gritei.
– Que livro? Do que você está falando?
– O livro de Huber. François Huber! O apicultor cego!
– Pai. Não estou entendendo. – Ele olhou para mim como se eu
fosse louco, como se pertencesse ao manicômio.
Encolhi-me. Ele nem se lembrava disso. Aquele momento que ti-
vera um significado tão grande para mim.
– Aquele que você deixou comigo… depois daquele domingo…
quando todas estavam na igreja.
De repente pareceu que ele começava a entender.
– Aquele dia, sim. Na primavera…
Fiz que sim.
– É algo que nunca vou esquecer. Que você, por livre e espontâ-
nea vontade, foi me ver naquele dia.
Seu olhar desviou-se, ele mexeu as mãos como se tentasse
agarrar alguma coisa, mas não achou nada além de grãos de pó no
ar.
– Foi a mãe que me pediu para ir – disse ele enfim. – Ela pensou
que poderia ajudar.
Thilda, ele era dela, ainda e para sempre.
Ge orge