6.0 Cap
6.0 Cap
6.0 Cap
132
Desde meados da década de 50, quando Rogers (1957) apresentou sua
descrição das Condições necessárias e suficientes da mudança terapêutica da
personalidade três atitudes são propostas como síntese deste modo de ser que enseja a
facilitação: consideração positiva incondicional, compreensão empática e
congruência. Rogers (1980) declara que uma das mais vívidas lembranças de sua
carreira profissional refere-se à ocasião em que pela primeira vez, durante palestra
proferida em 1956 na Universidade de Michigan, definiu sua proposta de que para o
sucesso da terapia tão somente importava o jeito de ser do terapeuta na relação,
conforme manifesto e percebido nas suas atitudes para com o cliente:
Eu me apercebia vagamente - ainda bem que só vagamente - que eu estava desafiando
todas as "vacas sagradas" do mundo terapêutico. De fato eu estava dizendo, apesar de
não muito claramente, que não era uma questão de o terapeuta ter sido psicanalizado,
nem de conhecer teoria da personalidade, nem de possuir perícia no diagnóstico, nem de
um amplo conhecimento de técnicas terapêuticas. Ao invés disso eu dizia que a eficácia
do terapeuta na terapia dependia de suas atitudes. Cheguei até a ter a ousadia de definir o
que eu pensava serem estas atitudes. (p. 270)
133
Descrevi anteriormente as características de uma relação que gera crescimento,
investigadas e comprovadas através de pesquisas. Recentemente, no entanto, estendi
minha concepção para uma área nova, ainda não estudada empiricamente.
Quando estou em minha melhor forma, como facilitador de grupos ou como terapeuta,
descubro uma nova característica. Percebo que quando estou o mais próximo possível de
meu eu interior, intuitivo, quando estou de alguma forma em contato com o que há de
desconhecido em mim, quando estou, talvez, num estado de consciência ligeiramente
alterado, então tudo o que eu faço parece ter propriedades curativas. Nestas ocasiões, a
minha presença, simplesmente, libera e ajuda os outros. Não há nada que eu possa fazer
para provocar deliberadamente esta experiência, mas quando sou capaz de relaxar e ficar
próximo do meu âmago transcendental, comporto-me de um modo estranho e impulsivo
na relação, que não posso justificar racionalmente e que não tem nada a haver com meus
processos de pensamento.
Mas esses estranhos comportamentos acabam sendo corretos por caminhos bizarros:
parece que meu espírito alcançou e tocou o espírito do outro. Nossa relação transcende a
si mesma e se torna parte de algo maior. Então, ocorrem uma capacidade de cura, uma
energia, e um crescimento profundos.(1983a, p.47)
134
Psicologia - tornar-se-ia fácil compreender de forma empática a experiência descrita por
Rogers, valorizar e aceitar positivamente esta nova característica, como ainda o
entusiasmaria a possibilidade de a praticar, incorporando-a e a desenvolvendo
congruentemente em seu jeito de ser facilitador. Assim, não fosse por outro dos motivos
já apresentados e ainda por apresentar neste trabalho, creio que a simples formulação
desta nova característica transpessoal proposta por Rogers tornaria necessária uma
aproximação entre a ACP e o campo da Psicologia Transpessoal e, ao mesmo tempo,
seria suficiente para justificar tal empreendimento.
Sem a pretensão de poder esgotar um tão importante assunto - como o
corpo acumulado da teoria, pesquisa e prática da ACP ainda não esgotou a discussão,
investigação e aplicação das atitudes de consideração positiva incondicional,
compreensão empática e congruência - nosso exame e discussão neste capítulo, à luz da
aproximação ACP-Psicologia Transpessoal, procurará aprofundar e esclarecer alguns
aspectos envolvidos na proposição desta nova atitude e algumas das implicações para a
ACP. Para tanto, além da bastante conhecida descrição de Rogers, acima citada, tomarei
por referência outros comentários e colocações suas a respeito, retiradas de obras menos
conhecidas - sendo-nos especialmente útil a entrevista concedida a Antônio Monteiro dos
Santos, em 1981, na qual abordou extensivamente o assunto (Santos, s. d.) - juntamente
com comentários e vivências de outros autores centrados na pessoa relativos à essa nova
atitude transpessoal que vêm emergindo como proposta e possibilidade de acréscimo ao
jeito de ser que caracteriza a ACP.
Na primeira seção, busco aprofundar a compreensão das características do
estado de consciência descrito por Rogers, procurando demonstrar que não só se trata de
um estado alterado de consciência como, mais especificamente, de um estado de
consciência ampliada experimentado com uma qualidade de vivência mística e
espiritual, e associado a uma percepção (ou uma consciência) das dimensões
transcendentais do ser e da realidade, preenchendo assim algumas condições que
permitem descrevê-lo e classificá-lo como uma experiência transpessoal.
Na segunda seção, voltando-nos para o exame das potencialidades
terapêuticas e transformadoras que Rogers afirma estarem presentes e mesmo serem
liberadas quando da vivência deste estado de consciência especial, minha intenção é
demonstrar que certas características destes potenciais autorizam-nos à séria
consideração de que, mais que uma vivência subjetiva de estados transpessoais, Rogers
estava liberando potenciais só compreensíveis dentro da aceitação de um paradigma
transpessoal de mundo e de pessoa, pois vão além do aceitável dentro da mais otimista
das visões humanistas sobre as possibilidades da natureza humana e sua sabedoria
organísmica. Assim, em minha opinião, mais que exercitando as possibilidades de uma
alteração subjetiva de sua consciência, ampliadora de certos potenciais cognitivos do
funcionamento cerebral, o que Rogers descreve é uma liberação de potenciais novos na
qualidade concreta de sua presença, participação e interação no mundo, potenciais estes
que podem ser descritos também objetivamente como transpessoais, isto é, ultrapassando
135
a visão habitual de pessoa, de tempo e espaço, de fronteiras interpessoais, e da própria
natureza da realidade. Parece-me então justo afirmar que, mais que um estado de
consciência ampliada, que contata aspectos e dimensões transpessoais de seu ser e da
realidade, o que Rogers descreve inclui também a expressão atualizadora, o pôr-no-
mundo, destes potenciais vislumbrados, ou, visto de outro modo, o lançar do próprio ser
na vivência das novas dimensões vislumbradas no mundo. Quer seja um lançar no
mundo, um trazer à existência, as novas dimensões de seu ser descobertas pela
consciência ampliada, quer seja um lançar-se no mundo para vivenciar-lhe as novas
dimensões descobertas pela percepção ampliada da realidade, o que vejo é a emergência
de um novo ser-no-mundo, um novo jeito de ser. Sendo transpessoal, em um mundo
transpessoal, Rogers estaria então assumindo, em suas melhores atuações facilitadoras,
um jeito transpessoal de ser
136
associação livre e da atenção flutuante, o método de suave alteração da consciência
criado por Freud para exploração das faixas infra-conscientes do psiquismo. Somente as
terapias transpessoais, entretanto, aceitam as possibilidades transpessoais da consciência
humana, considerando, em conseqüência, que a alteração da consciência é o meio
privilegiado para explorar os potenciais curativos e transformacionais das faixas
superiores e habitualmente supra-conscientes do psiquismo. Assim, em geral, a prática
das terapias transpessoais inclui algum método de indução, ou ao menos de facilitação,
da alteração da consciência do cliente, de modo favorecer, em algum momento do
processo, o contato e a vivência das faixas transpessoais de seu potencial. Mais ainda,
algumas das terapias transpessoais vão além e trabalham a partir da alteração da
consciência, a níveis transpessoais, do próprio terapeuta ou facilitador, o que por vezes
incluiria, na visão de alguns autores, a utilização de certos poderes psíquicos
paranormais por parte deste (aí incluídos poderes como telepatia, transmissão de energias
curativas - inclusive à distância, projeções da consciência, vidência, etc.).
No capítulo anterior vimos que a ACP, de uma maneira não intencionada e
ainda pouco esclarecida, tem se mostrado uma terapia capaz de favorecer a emergência
de vivências transpessoais e espirituais em seus clientes, e que tais vivências, ao menos
potencialmente, mostram-se bastante promissoras como elemento propiciador de
crescimento e transformação psicológica, estando muitas vezes tipicamente ligadas, na
visão dos autores examinados, a casos bem sucedidos ou a momentos culminantes do
processo terapêutico, individual ou grupal. Isto, por si só, já mereceria, por parte dos
rogerianos e mesmo dos psicólogos transpessoais, um esforço de aproximação entre suas
escolas, lucrando os rogerianos uma melhor compreensão do fenômeno e seus potenciais,
e os transpessoais o conhecimento de uma nova via, que me parece extremamente
original e promissora, de acesso às dimensões superiores do psiquismo humano.
Neste capítulo, porém, creio que nosso exame demonstrará que as
possibilidades da ACP como psicoterapia transpessoal vão ainda além, pois se insinua,
nas últimas colocações de Rogers e outros autores, uma prática transpessoal que atinge a
sofisticação da utilização dos potenciais transpessoais da consciência do próprio
terapeuta, novamente por uma via bastante singular e revolucionária, embora ainda um
tanto mal esclarecida e pouco operacionalizada, aspectos aos quais nosso exame e
discussão, nesta e na próxima seção, procurará trazer alguma contribuição.
Em primeiro lugar, tratemos de determinar se aquilo que Rogers - o qual
em 1973 declarara: Eu nunca tive uma experiência mística, nem qualquer experiência
com uma realidade paranormal, e nem, tampouco, qualquer estado induzido por drogas
que me proporcionasse um único vislumbre de um mundo diferente de nosso seguro
mundo "real"(em Rogers & Rosenberg, 1977, p. 179) - está agora tão relutantemente
classificando como talvez um estado de consciência ligeiramente alterado pode de fato
ser considerado como tal. Recordemos a clássica definição de Tart (1991):
De um modo bastante conciso, "um estado de consciência" (SoC) é aqui definido como
um padrão generalizado de funcionamento psicológico. Um "estado alterado da
consciência" (ASC) pode ser definido como uma alteração qualitativa no padrão comum
137
de funcionamento mental em que o experienciador sente que a sua consciência está
radicalmente diferente do seu funcionamento "normal". Deve-se notar que um ASC não
é definido por um conteúdo particular da consciência, por um comportamento, ou por
uma modificação fisiológica, mas em termos de seu padrão total.(Tart, 1991, p. 41)
Como o próprio leitor terá por certo notado, a descrição feita por Rogers a
respeito destes momentos especiais parece bastante distante do padrão de consciência por
nós conhecido como normal, o que ele próprio reconhece na entrevista a Santos (s. d.),
alegando aliás ter sido a percepção desta nítida diferença o que o levou a cogitar se
estaria vivenciando, afinal, um estado alterado de consciência:
SANTOS: Meu objetivo é descobrir como psicoterapeutas usam seu próprio self (eu
interno) na psicoterapia. Eu estudei seus escritos e o que notei foi que a maneira como
você usa seu "estado escondido" [terminologia da teoria de Santos sobre os momentos
mágicos em psicoterapia, que é explicada mais adiante] de consciência na terapia é
através de sua habilidade de se tornar "uno" com o cliente. Quero me aprofundar nisto e
ver se nós podemos falar sobre isto.
ROGERS: Muito bem, eu posso começar daí... Você está falando sobre aspectos
escondidos da consciência que o terapeuta usa no seu trabalho. Recentemente, eu tenho
sido, de certa maneira, quase forçado a pensar nisto, em vista de algumas sessões que
tive até o momento. E concluí que a coisa a que tenho me referido, muitas vezes de uma
maneira brincalhona, é talvez quase que um estado alterado de consciência, onde começo
a realmente ESTAR com o cliente. É um sentimento definido e é, de alguma maneira,
um estado diferente do estado ordinário de consciência. Eu nunca encarei o fato de estar
neste estado alterado, nem o tenho reconhecido como tal - e posso sentir a diferença,
quando o vivencio. Eu sei quando estou realmente devotado àquela pessoa no nosso
encontro e assim por diante, e quando minha mente divaga tendo em vista alguma
distração ou algo neste sentido. E, penso, que este estar com o cliente, sem distração,
contata profundas forças intuitivas... Não sei até quando posso continuar descrevendo
isto como parte do que faço em terapia. Não é algo que necessariamente recomendo ou
alguma coisa parecida. Estou somente tendendo descrever como isto acontece comigo.
(Santos, s.d., p. 53)
138
Santos: Você perde a noção do tempo? (...).
Rogers: Sim, penso que os melhores períodos da terapia são os momentos sem noção de
tempo, em que eu não estou muito consciente do tempo... Exceto pelo fato de que, se eu
tiver outro encontro num determinado horário, então existe alguma consciência disto no
background. (pp. 56-57)
139
(1957b) verifica isso quando indica que nunca se sentia "tão inteiro ou uma pessoa tão
completa como nas suas entrevistas terapêuticas" (p. 230)
140
em geral, e em especial nestes momentos de excelência, quanto os clientes da ACP
(inclusive grupos), estavam desenvolvendo uma elevada capacidade de associar, de
forma harmônica e altamente positiva, os potenciais analíticos e holísticos das duas
formas complementares de pensar e perceber:
Rogers descreve a integração do que é freqüentemente considerado como modos
contraditórios de consciência mas de fato são modos complementares. Um é linear (...)
do modo analítico de consciência; o outro é uma percepção fora do tempo (...) do modo
holístico de consciência. (...) A compreensão empática, em outras palavras, é um estado
de consciência no qual uma pessoa experiência e participa de um fluxo de pensamentos
e sentimentos e significados com outra pessoa enquanto ao mesmo tempo também está
consciente do contexto maior dentro do qual os dois existem. Neste estado, opostos
podem coexistir sem causar preocupação em termos de contradição. (...). Ele está
consciente das duas coisas: da atividade momento a momento e dos padrões que
compõem a vida (pp. 227-228)
141
Vários outros autores (alguns dos quais já referidos no capítulo anterior -
como Nacmias e Arnold), trabalhando numa orientação centrada na pessoa, também
reconhecem, nas descrições da qualidade especial dos melhores momentos terapêuticos,
uma identidade, ao menos aparente, com o relato de vivências místicas e religiosas.
O'Hara (1983), num de seus momentos de simpatia pela perspectiva transpessoal, em seu
artigo A Consciência do Terapeuta, defende a superioridade do modelo de pessoa para
pessoa em psicoterapia, no qual o terapeuta abandona a segurança do conhecido, as
defesas, a posição de expert e, admitindo que este ser diante de nós é tão completamente
único e misterioso como nós somos, é uma pessoa (p.99), entra na relação como um
colaborador, envolvendo-se integralmente na vivência de crescimento e descoberta,
numa atitude que a autora alude metaforicamente como um entrar na dança da vida com
o cliente. Descrevendo o processo que crê ser desencadeado por tal tipo de atitude
terapêutica, e para o qual propõe a exploração de um espectro de experiência humana
que inclua o transpessoal (Devemos confrontar os limites da natureza humana, do mais
profano ao mais sacro, do transcendente ao trivial, p. 99), O'Hara afirma a qualidade
espiritual do estado de consciência experimentado nos momentos culminantes do
encontro terapeuta-cliente. Para ela, estes momentos nos quais se relata a experiência de
unidade na relação e o insight compreensivo, mediante a vivência consciencial direta e
ampliada, dos grandes questionamentos ontológicos e existenciais, são, em essência, a
mesma experiência referida na tradição religiosa de todos os tempos como o momento de
iluminação:
Se nos envolvemos na dança e embarcamos na jornada da vida (...) (uma jornada apenas
obscuramente iluminada pela intuição) ocorrem momentos em que alcançamos nosso
centro, o núcleo de nossa natureza. Experimentamos momentos de iluminação
Terapeutas e clientes descrevem momentos particularmente potentes do processo
terapêutico como um sentimento de unidade, de ser um com o outro. É o estado de
consciência procurado na maior parte das tradições como um estado de sabedoria. É a
experiência culminante, a transformação religiosa, o estado de Zen, de Tao, a
experiência do amor perfeito. É o momento em que os questionamentos cessam. A vida
é, o amor é, Deus é. (pp. 100-101)
O próprio Rogers, que vimos no capítulo anterior afirmar ter concluído que
existe alguma coisa mística e mesmo transcendente nos melhores momentos da
experiência de grupo (in Santos, s.d., p.58), ao descrever a nova característica que
estamos examinando, alega tratar-se de um fenômeno da mesma qualidade da
experiência referida em certos momentos grupais, transcrevendo o relato de uma
participante como exemplo (já citado à pag.104) e concluindo que Este relato, como os
estados alterados de consciência, pertence ao terreno do místico (1983a, p. 48),
acrescentando sua convicção de que as práticas da ACP estavam, nestes casos, lidando
com a dimensão espiritual e transcendente.
Esta conclusão, sobre a natureza espiritual e transcendente envolvida no
estado especial de consciência presente nos melhores momentos da prática da ACP,
recebeu também apoio do autor inglês Brian Thorne, o qual, por um caminho próprio e
independente, havia chegado a uma descrição análoga a de Rogers sobre a qualidade
142
nova e especial que identificava nos momentos culminantes da terapia centrada na
pessoa. Thorne é um importante divulgador da ACP na Inglaterra, onde têm liderado
organizações profissionais, escrito livros e artigos a respeito, colaborado na criação e nas
atividades de centros de formação de conselheiros e facilitadores grupais, participando
ainda da promoção de grandes workshops transculturais. Além de terapeuta é ministro da
Igreja Anglicana, sendo um dos mais destacados simpatizantes e incentivadores do
desenvolvimento de uma perspectiva espiritual para a ACP, elaborando diversas
contribuições originais a respeito - algumas das quais examinaremos neste estudo -
apresentadas em grande parte em seu livro Aconselhamento Centrado na Pessoa:
Dimensões Terapêuticas e Espirituais (Thorne, 1993). Seu interesse no espiritual e no
transcendente foi despertado na infância por uma marcante e espontânea experiência
mística quando, na quinta feira santa de 1946, de forma súbita e inopinada teve a
consciência transformadora de ser amado por Deus (narrado no cap. II de seu livro). É
interessante notar que seu trabalho como psicoterapeuta centrado na pessoa e seu
envolvimento com questões e vivências de teor espiritual seguiram por muito tempo
caminhos diferentes, como dimensões em grande parte independentes de seu
desenvolvimento, antes de começarem a convergir até chegarem a um profundo
entrelaçamento, graças ao qual a prática terapêutica para ele, hoje, chega a ser
considerada, por vezes, seu trabalho de maior significado espiritual, daí retirando,
inclusive, importantes enriquecimentos para sua reflexão teológica e sua atividade
pastoral. Assim, percorrendo um caminho em grande parte original e independente para
descobrir a dimensão espiritual da prática da ACP, chegou ele mesmo a formular, sem
conhecimento ainda da proposta de Rogers, sua própria versão de uma quarta
característica para além das três condições atitudinais básicas da ACP, a qual também
via como associada aos melhores momentos do processo terapêutico. Nomeou esta
quarta característica do terapeuta como a qualidade de tenderness : *
*Preferi manter o termo original pois a tradução, por ternura, deixaria de fora vários significados adcionais que a
palavra tender apresenta na língua inglesa e que, segundo Thorne (op. cit., cap V), são relevantes na conotação da
qualidade terapêutica que o termo denota.
143
encontrou várias coincidências entre a descrição de Rogers e a sua própria: ambas falam
de uma ampliação do estado de consciência (elevada conscientização para Thorne e
estado alterado para Rogers); da manifestação espontânea de uma capacidade intuitiva
altamente complexa, acurada e não-racional; de uma experiência de um nível novo e mais
profundo; assim como da experiência do transcendente (o arrebatamento na torrente de
amor para Thorne e a experiência de se tornar parte de algo maior para Rogers); e,
finalmente, da percepção de que neste estado transcendente há um sentido de ampliação
da energia, do bem estar e do poder de curar (p. 183)
Ao final, comentando a afirmação de Rogers de que tais experiências
pertenciam ao terreno místico e transcendente e seu reconhecimento de que havia
anteriormente negligenciado essa dimensão, Thorne concorda e acrescenta: É minha
convicção, apoiada em minha experiência, que aqueles de nós a quem diz respeito
garantir a vitalidade e o desenvolvimento da tradição centrada no cliente devem tomar
estas palavras de Rogers com a máxima seriedade. (p. 183)
Assim, no prosseguimento de nossa análise da nova característica
vislumbrada por Rogers e outros autores da ACP nos melhores momentos de atuação
facilitadora, após termos determinado que se trata tanto de um estado alterado, como
também de um estado ampliado em que as potencialidades da consciência tornam-se
aprimoradas e otimizadas, damos agora mais um passo na direção da perspectiva
transpessoal típica: trata-se, ao menos na opinião dos autores examinados, de um
experiência especial intrinsecamente relacionada à vivência das dimensões
transcendentais, espirituais, religiosas ou místicas do potencial humano.
Estreitamente relacionado à qualidade espiritual das vivências descritas,
um último aspecto pode ser apontado de forma relacionar o que Rogers, entre outros,
apresenta à temática e pontos de vista típicos da Quarta Força da Psicologia,
demonstrando que sua vivência pode ser classificada enquanto aquilo que é
categoricamente definido como uma experiência transpessoal. Grof (1988), na mais
aceita definição e classificação das experiências transpessoais, inclui sob esta designação
as vivências conscienciais em que é experimentada uma superação, ampliadora, das
fronteiras usuais da identidade pessoal e/ou do tempo e/ou do espaço e/ou da própria
realidade conhecida. Ao falar de uma identidade transpessoal que vislumbra para além
do self organísmico (meu espírito, meu âmago transcendental), ao falar de uma unidade
entre o cliente e o terapeuta que rompe as fronteiras entre o eu e o você (parece que meu
espírito tocou o espírito do outro), ao se referir a vias de comunicação, ou a caminhos
bizarros, que se processam para lá das dimensões espaço temporais que mapeam nossa
compreensão habitual das possibilidades da realidade, e, ainda, ao pressentir em algo
maior, que transcende os participantes, a fonte de cura e energia que está atuando
transformadoramente na relação, Rogers parece, de fato, estar adentrando diversos dos
portais que dão acesso aos domínios transpessoais da consciência e experiência humanas.
Definitivamente, portanto, o estado de consciência subjacente à nova atitude facilitadora
vislumbrada por Rogers atingiu o status de um estado de consciência transpessoal,
144
reclamando, em minha opinião, que os estudos a respeito façam juz, enfoquem e
destaquem esta qualidade transpessoal como característica essencial e necessária das
novas possibilidades curativas e transformadoras aí implicadas, ao invés de ignorá-la,
subestimá-la, ou reduzi-la a alguma versão de funcionamento cerebral modificado, de
comunicação não verbal inconsciente, de sabedoria organísmica na visão humanista
clássica, ou outra forma não transpessoal de compreensão do fenômeno. E fazer justiça à
amplitude, riqueza e implicações do estado aqui descrito, a mim parece, só pode ser feito
por uma psicologia que assuma um modelo transpessoal da consciência humana. Em
outras palavras: uma Psicologia Transpessoal.
Creio que isto se tornará mais claro se encararmos a hipótese de que, mais
que apenas descrever um estado de consciência, Rogers, ao se referir aos aspectos
transpessoais acima citados, estava nos falando de uma qualidade extraordinária de
experiência que, além de nos possibilitar a entrada consciencial e subjetiva numa nova
dimensão dos potenciais do homem e realidade, também parece franquear a entrada -
mediante a transformação pessoal facilitada pela nova consciência - de nosso ser inteiro
nesta realidade ampliada, inclusive com a possibilidade de aí concretamente transitarmos
e atuarmos. Estaríamos, assim, constatando e iniciando o desenvolvimento de novas
potencialidades objetivas para a atuação da dimensão transpessoal de nosso ser (nosso
âmago transcendental) em intercâmbio com as potencialidades energéticas e curativas de
uma realidade percebida como algo maior, na qual entramos em contato e comunhão,
descobrindo novas vias - ou caminhos bizarros - de interação com outros eus interiores,
percebidos agora como espíritos que podem ser diretamente contatados pelo meu, e
dando acesso a instâncias suprapessoais que vão ainda além das pessoas e do próprio
mundo como os temos conhecido. É o que examinamos na próxima seção.
145
direto obtido pela superação das distorções das vias sensoriais e intelectuais habituais,
sendo muito mais acuradas e penetrantemente realistas do que a tradicional atitude
objetiva do cientista, derivada esta de um aprimoramento disciplinado das funções
racionais e sensórias da consciência usual de vigília. Ao alinhar-se na exploração desta
hipótese, e na defesa de uma nova visão ampliada sobre a natureza mais profunda do
mundo e da realidade como um novo modelo a ser adotado para a Ciência em geral, a
Psicologia Transpessoal tem se destacado como o movimento dentro da Psicologia que
melhor se afina e contribui para a perspectiva de revolução paradigmática, conforme
também defendida por destacados expoentes das ciências naturais mais objetivas.
No Capítulo III, ao tratarmos das reações de Rogers às mudanças no
paradigma científico, tivemos oportunidade de verificar sua simpatia por este ponto de
vista, que o levou inclusive a propor (in Rogers & Rosenberg, 1977), como um dos
desafios mais empolgantes para a Psicologia, a investigação da existência desta realidade
transcendente, inacessível aos nossos cinco sentidos, e só atingível por um estado
especial de consciência: quando nos mantemos passivamente receptivos. ao invés de
ativamente decididos a conhecer (p. 181). Noutra parte ainda (1983a) afirma que esta
nova visão da realidade, e a possibilidade humana de contatá-la através da experiência de
alteração da consciência descrita pelos místicos como de união com o universo, era
confirmada por sua experiência mais recente com clientes, especialmente com grupos
(p. 47). Mais ainda, recorrendo às descrições que os novos físicos, assim como antes
deles fizeram os místicos, fazem agora do comportamento, das características e das leis
da nova realidade que se descortina nas pesquisas mais avançadas, vê aí uma
possibilidade de uma validação ainda maior (e, eu diria, não apenas restrita à otimização
de alguns potenciais meramente psicológicos e subjetivos) das experiências
extraordinárias que, como vimos neste e no último capítulo, têm se mostrado
exuberantemente intrínsecas às práticas recentes e avançadas da ACP:
Assim, encontramos provas na Física e na Química Teóricas da validade das
experiências transcendentes, indescritíveis, inesperadas e transformadoras - aqueles
fenômenos que meus colegas e eu temos observado e sentido como concomitantes à
abordagem centrada na pessoa. (p. 49)
Cumpre ressaltar que Rogers não está sozinho, entre os autores da ACP, ao
associar as vivências conscienciais extraordinárias, experimentadas na prática desta
abordagem, à estranha, insólita e maravilhosa realidade descrita pelos físicos e místicos.
Coulson (1995), por exemplo, a partir de sua própria experiência transformacional
experimentada em um workshop da ACP (descrita em Coulson, 1992), conjectura se, ao
propiciar tais intensas alterações da consciência, não estaria a ACP dando acesso à uma
dimensão transcendente e subjacente tanto à realidade psíquica como à material, às
quais incluiria e ultrapassaria ao penetrar o domínio que foi descrito pelo físico David
Bohn como a ordem implicada da realidade:
Eu conjecturei se, abrindo-nos para profundos, transcendentes e transpessoais domínios
da consciência, tais experiências teriam também, em efeito, o potencial de nos conectar
146
com aquilo que David Bohn (1980) chama de "ordem implicada" aquém e além de nossa
própria realidade física e de nossa usual consciência das fronteiras do ego. (p. 3)
147
existindo e atuando em dimensões da realidade onde, para além das limitações físicas e
psicológicas de nossa existência habitual, descobriríamos potencialidades e
possibilidades inerentes à nossa desvelada condição existencial de seres energéticos,
cósmicos, holísticos, espirituais, transmateriais e transpessoais.
Especialmente duas novas classes de potenciais com características
transpessoais, observados na atuação facilitadora e que têm sido descritos na literatura
recente da ACP como fenômenos associados à ampliação da consciência presente nos
melhores momentos da relação terapêutica e grupal, parecem-me autorizar esta
conclusão. Em primeiro lugar, trata-se da crescente ênfase, e das características descritas,
no uso da faculdade da intuição, por parte do terapeuta, dando a entender um
processamento sensorial e cognitivo que ultrapassa o substrato espaço-temporal e
organísmico da pessoa e da realidade conforme compreendida em paradigmas não
transpessoais. Numa outra categoria, referente aos potenciais curativos e transformadores
ativos liberados nos momentos especiais em que está presente o estado transpessoal de
consciência descrito como uma nova característica da relação terapêutica, incluem-se
tanto os fenômenos em que a influência terapeuta-cliente se processa por vias não
conhecidas, como os fenômenos relatados em que os efeitos obtidos parecem provir de
fontes para além dos potenciais e da atuação das pessoas envolvidas. Examinaremos
estes tópicos separadamente.
148