6.0 Cap

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Capítulo VI

UM NOVO JEITO DE SER (UM JEITO TRANSPESSOAL DE SER?)


Elementos transpessoais emergentes em mudanças no jeito de ser facilitador na
ACP

No primeiro capítulo, ao tratarmos dos métodos e técnicas da Psicologia


Humanista, vimos que uma das mais fortes tendências entre as terapias humanistas é a
ênfase colocada na pessoa do terapeuta ou profissional de ajuda. Para além dos aspectos
teóricos e técnicos de sua formação, é enfatizada a presença autêntica e expressiva do
profissional, despojado de suas máscaras profissionais ou pessoais, numa disposição de
fundamentar a relação de ajuda em sua dimensão humana básica de um encontro entre
pessoas reais e não entre papéis ou fachadas de terapeuta e paciente. Assim, contestando
o modelo behaviorista que enfatiza as técnicas, e a artificialidade do modelo
transferencial da Psicanálise que estimula a inexpressividade do terapeuta numa atitude
de tela em branco e catalisador silencioso como forma de promover as transferências e
projeções regressivas que serão interpretadas no processo, muitas terapias humanistas
defendem o modelo do encontro pessoa a pessoa, da relação Eu-Tu, do ser-com, como
base e condição de qualquer ajuda psicológica efetiva.
Creio que não será exagero afirmar que Rogers, dentre todos o humanistas,
foi quem levou mais longe esta concepção. Mesmo para as psicoterapias existenciais,
que se constróem sobre esta proposta, o ser-com-o-outro é apenas uma parte, uma
condição necessária mas não suficiente para a psicoterapia, que deve ser complementada
dialeticamente pela intervenção mais técnica e pelo exercício da dimensão de
especialista do profissional de ajuda:
Este novo (...) nunca pode nascer do próprio "ser com o outro", mas somente da atenção
médica ao dever médico "concreto", ou seja, do saber médico psicológico e do atuar
segundo este saber. (...) A comunicação na existência e o atuar com o fim de liberar e
dirigir as forças biológicas são os dois pólos dialéticos da psicoterapia médica, dos quais
nenhum pode aparecer sozinho nem tampouco pode retroceder totalmente em favor do
outro. Quer dizer, como psicoterapeuta médico nunca poderei ser "somente" o amigo
nem o simpatizante do doente, como no caso das relações puramente existenciais, ainda
que nunca tampouco estarei exclusivamente consagrado à tarefa. (Binswanger, 1973,
p.120)

Já para Rogers, que reiteradamente rejeitou a identificação da ACP com


qualquer técnica, é a presença genuína do terapeuta, traduzida em determinadas atitudes
- e não técnicas - que propicia, não só como condição necessária, mas também suficiente,
o crescimento nas relações de ajuda:
A terapia centrada no cliente é melhor caracterizada como uma abordagem, uma atitude,
uma maneira de ser, e não como uma técnica - "não diretiva", "reflexiva", ou outra
qualquer. O primeiro pré-requisito para se fazer terapia não é uma teoria ou um dogma,
mas um modo de ser que enseja a facilitação. (Rogers & Wood, 1978, p. 194)

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Desde meados da década de 50, quando Rogers (1957) apresentou sua
descrição das Condições necessárias e suficientes da mudança terapêutica da
personalidade três atitudes são propostas como síntese deste modo de ser que enseja a
facilitação: consideração positiva incondicional, compreensão empática e
congruência. Rogers (1980) declara que uma das mais vívidas lembranças de sua
carreira profissional refere-se à ocasião em que pela primeira vez, durante palestra
proferida em 1956 na Universidade de Michigan, definiu sua proposta de que para o
sucesso da terapia tão somente importava o jeito de ser do terapeuta na relação,
conforme manifesto e percebido nas suas atitudes para com o cliente:
Eu me apercebia vagamente - ainda bem que só vagamente - que eu estava desafiando
todas as "vacas sagradas" do mundo terapêutico. De fato eu estava dizendo, apesar de
não muito claramente, que não era uma questão de o terapeuta ter sido psicanalizado,
nem de conhecer teoria da personalidade, nem de possuir perícia no diagnóstico, nem de
um amplo conhecimento de técnicas terapêuticas. Ao invés disso eu dizia que a eficácia
do terapeuta na terapia dependia de suas atitudes. Cheguei até a ter a ousadia de definir o
que eu pensava serem estas atitudes. (p. 270)

A proposição das três atitudes facilitadoras, mais que qualquer outra


concepção, define, sintetiza e identifica a ACP como proposta de trabalho com pessoas.
Representam, talvez, a mais original formulação teórica e metodológica de Rogers e
ainda a mais significativa contribuição da ACP para o patrimônio da Psicologia
contemporânea, no campo das psicoterapias e da relação de ajuda em geral. Graças às
pesquisas desenvolvidas por ele e seus seguidores, é hoje generalizadamente aceito que
estas são condições efetivamente facilitadoras - embora se questione se seriam de fato
necessárias ou suficientes - para o desenvolvimento saudável da personalidade em uma
relação interpessoal. Representam, em minha opinião, o maior tesouro da ACP. Três
singelas atitudes que, à semelhança dos três desejos ou dons mágicos dos contos de fada,
tornam tudo possível a quem as possui e manifesta. Presentes e percebidas em qualquer
situação de bloqueio, limitação, incongruência, conflito e sofrimento psicológico, estas
três atitudes, este jeito de ser, por si só, tem o poder de transformar, restaurar e curar,
propiciando e pondo em movimento a ação das naturais e intrínsecas tendências à auto-
realização e crescimento positivo dos seres humanos. Esta é a proposição mais básica e
característica da ACP em todos os seus campos de atuação, permanecendo sua
formulação praticamente inalterada desde a década de 50. Ou não? Serão apenas três as
atitudes que Rogers propõe para o facilitador?
Qualquer pessoa familiarizada com a importância que a formulação
histórica das três atitudes representa para a ACP naturalmente compreenderá a revolução
que consistiria o acréscimo de uma quarta atitude ao jeito de ser rogeriano. Ora, é
exatamente isto que Rogers parece fazer, em meados da década de 70, ao começar a falar
de sua percepção de uma nova característica, envolvida em seu próprio jeito de ser
facilitador, a qual considera associada às suas melhores atuações em entrevistas
terapêuticas ou no trabalho grupal:

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Descrevi anteriormente as características de uma relação que gera crescimento,
investigadas e comprovadas através de pesquisas. Recentemente, no entanto, estendi
minha concepção para uma área nova, ainda não estudada empiricamente.
Quando estou em minha melhor forma, como facilitador de grupos ou como terapeuta,
descubro uma nova característica. Percebo que quando estou o mais próximo possível de
meu eu interior, intuitivo, quando estou de alguma forma em contato com o que há de
desconhecido em mim, quando estou, talvez, num estado de consciência ligeiramente
alterado, então tudo o que eu faço parece ter propriedades curativas. Nestas ocasiões, a
minha presença, simplesmente, libera e ajuda os outros. Não há nada que eu possa fazer
para provocar deliberadamente esta experiência, mas quando sou capaz de relaxar e ficar
próximo do meu âmago transcendental, comporto-me de um modo estranho e impulsivo
na relação, que não posso justificar racionalmente e que não tem nada a haver com meus
processos de pensamento.
Mas esses estranhos comportamentos acabam sendo corretos por caminhos bizarros:
parece que meu espírito alcançou e tocou o espírito do outro. Nossa relação transcende a
si mesma e se torna parte de algo maior. Então, ocorrem uma capacidade de cura, uma
energia, e um crescimento profundos.(1983a, p.47)

Esta declaração de Rogers representa um extraordinário acréscimo,


realizado na fase final de sua vida, ao corpo teórico e metodológico da ACP. Além de
vislumbrar uma nova característica no tópico tão essencial das condições necessárias e
suficientes para a relação de crescimento, afirma tratar-se de algo ligado à sua melhor
forma, à sua excelência como terapeuta. Afirma ainda mais: o potencial terapêutico ou
transformador desta nova característica é extraordinário, permitindo uma capacidade de
cura, uma energia, e um crescimento profundos. Trata-se, portanto, de um assunto da
mais elevada importância, que convida os estudiosos e praticantes da ACP à maior
seriedade e ao maior empenho no sentido de esclarecer e desenvolver este novo e
importante acréscimo ao jeito de ser rogeriano, ampliado agora para esta área nova,
ainda não estudada empiricamente.
Com respeito ao caso específico do presente estudo, em que examinamos
elementos de aproximação entre a perspectiva mais recente do pensamento de Rogers e a
Psicologia Transpessoal, maior relevância ainda esta importante mudança adquire pois,
como o leitor certamente já o fez, constatamos que o que Rogers está descrevendo, até
mesmo pelo vocabulário de que lança mão no esforço de transmitir a qualidade especial
de sua vivência nesse momento, parece ser, nitidamente, uma experiência transpessoal!
A maior parte dos termos que utiliza para descrevê-la refere-se muito mais à temática, ao
vocabulário e às concepções teóricas características da Psicologia Transpessoal que às da
Psicologia Humanista, onde a falta de familiaridade com tais experiências e concepções
podem levar os rogerianos humanistas a uma certa sensação de perplexidade,
estranhamento e mesmo desconforto ao considerar tais afirmações de Rogers. Talvez por
isso, como eu creio tem acontecido, grande parte dos profissionais e estudiosos da ACP
não tem dedicado ao assunto a atenção que ele merece, tendendo a não valorizar em sua
extraordinária importância, ou a não compreender na amplitude de seu revolucionário
significado, e ainda a não aceitar, em suas fecundas e transformadoras possibilidades de
aplicação prática, esta nova característica de uma relação que gera crescimento, agora
proposta. Já para um rogeriano transpessoal - isto é, aquele profissional da ACP que
adotasse, ou ao menos estivesse familiarizado com, a perspectiva transpessoal em

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Psicologia - tornar-se-ia fácil compreender de forma empática a experiência descrita por
Rogers, valorizar e aceitar positivamente esta nova característica, como ainda o
entusiasmaria a possibilidade de a praticar, incorporando-a e a desenvolvendo
congruentemente em seu jeito de ser facilitador. Assim, não fosse por outro dos motivos
já apresentados e ainda por apresentar neste trabalho, creio que a simples formulação
desta nova característica transpessoal proposta por Rogers tornaria necessária uma
aproximação entre a ACP e o campo da Psicologia Transpessoal e, ao mesmo tempo,
seria suficiente para justificar tal empreendimento.
Sem a pretensão de poder esgotar um tão importante assunto - como o
corpo acumulado da teoria, pesquisa e prática da ACP ainda não esgotou a discussão,
investigação e aplicação das atitudes de consideração positiva incondicional,
compreensão empática e congruência - nosso exame e discussão neste capítulo, à luz da
aproximação ACP-Psicologia Transpessoal, procurará aprofundar e esclarecer alguns
aspectos envolvidos na proposição desta nova atitude e algumas das implicações para a
ACP. Para tanto, além da bastante conhecida descrição de Rogers, acima citada, tomarei
por referência outros comentários e colocações suas a respeito, retiradas de obras menos
conhecidas - sendo-nos especialmente útil a entrevista concedida a Antônio Monteiro dos
Santos, em 1981, na qual abordou extensivamente o assunto (Santos, s. d.) - juntamente
com comentários e vivências de outros autores centrados na pessoa relativos à essa nova
atitude transpessoal que vêm emergindo como proposta e possibilidade de acréscimo ao
jeito de ser que caracteriza a ACP.
Na primeira seção, busco aprofundar a compreensão das características do
estado de consciência descrito por Rogers, procurando demonstrar que não só se trata de
um estado alterado de consciência como, mais especificamente, de um estado de
consciência ampliada experimentado com uma qualidade de vivência mística e
espiritual, e associado a uma percepção (ou uma consciência) das dimensões
transcendentais do ser e da realidade, preenchendo assim algumas condições que
permitem descrevê-lo e classificá-lo como uma experiência transpessoal.
Na segunda seção, voltando-nos para o exame das potencialidades
terapêuticas e transformadoras que Rogers afirma estarem presentes e mesmo serem
liberadas quando da vivência deste estado de consciência especial, minha intenção é
demonstrar que certas características destes potenciais autorizam-nos à séria
consideração de que, mais que uma vivência subjetiva de estados transpessoais, Rogers
estava liberando potenciais só compreensíveis dentro da aceitação de um paradigma
transpessoal de mundo e de pessoa, pois vão além do aceitável dentro da mais otimista
das visões humanistas sobre as possibilidades da natureza humana e sua sabedoria
organísmica. Assim, em minha opinião, mais que exercitando as possibilidades de uma
alteração subjetiva de sua consciência, ampliadora de certos potenciais cognitivos do
funcionamento cerebral, o que Rogers descreve é uma liberação de potenciais novos na
qualidade concreta de sua presença, participação e interação no mundo, potenciais estes
que podem ser descritos também objetivamente como transpessoais, isto é, ultrapassando

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a visão habitual de pessoa, de tempo e espaço, de fronteiras interpessoais, e da própria
natureza da realidade. Parece-me então justo afirmar que, mais que um estado de
consciência ampliada, que contata aspectos e dimensões transpessoais de seu ser e da
realidade, o que Rogers descreve inclui também a expressão atualizadora, o pôr-no-
mundo, destes potenciais vislumbrados, ou, visto de outro modo, o lançar do próprio ser
na vivência das novas dimensões vislumbradas no mundo. Quer seja um lançar no
mundo, um trazer à existência, as novas dimensões de seu ser descobertas pela
consciência ampliada, quer seja um lançar-se no mundo para vivenciar-lhe as novas
dimensões descobertas pela percepção ampliada da realidade, o que vejo é a emergência
de um novo ser-no-mundo, um novo jeito de ser. Sendo transpessoal, em um mundo
transpessoal, Rogers estaria então assumindo, em suas melhores atuações facilitadoras,
um jeito transpessoal de ser

1. UM ESTADO DE CONSCIÊNCIA ESPECIAL: VISLUMBRANDO UMA


REALIDADE TRANSPESSOAL

A definição de estado alterado de consciência, como vimos no Capítulo II


deste estudo, foi proposta inicialmente por Charles Tart, por volta de 1969, tendo se
mostrado um conceito especialmente útil para a atividade teórica e metodológica no
estudo da consciência e seus potenciais, ultrapassando mesmo as fronteiras dos interesses
e pontos de vista específicos da Psicologia Transpessoal e fazendo hoje parte do
vocabulário geral da Psicologia, sobretudo no tópico de Psicologia da Consciência e
assuntos correlatos (sono, sonho, intoxicação, hipnose, etc.). A utilização desta
expressão, portanto, não é por si só indicativo de que se está adotando uma perspectiva
transpessoal. Por outro lado, é sem dúvida no Movimento Transpessoal que se
congregam a maior parte das pesquisas relativas à exploração e compreensão destes
estados, assim como das formulações teóricas decorrentes. Em especial algumas
categorias dos estados alterados, entendidas pelos autores da corrente transpessoal como
sendo de consciência ampliada, ou de consciência superior (alguns descritos como de
consciência transpessoal ou ainda como de consciência cósmica), são, como vimos,
temática privilegiada e típica das psicologias transpessoais, as quais desenvolvem
modelos teóricos, a partir desse estudo, que caracteristicamente adotam, em sua visão de
homem, um espectro transpessoalmente ampliado das possibilidades da consciência
humana.
Mais especificamente, no campo das psicoterapias, dos métodos e técnicas
para a promoção de crescimento psicológico, a questão dos estados ampliados e
transpessoais fornece alguns critérios que nos permitem classificar uma psicoterapia
como sendo transpessoal. Naturalmente, muitas, talvez todas, psicoterapias não-
transpessoais utilizam, dando ou não este nome, tecnologias ou procedimentos de
alteração da consciência, bastando citar como exemplo as bem conhecidas utilizações
clínicas da hipnose, das diversas formas de imaginação dirigida, ou ainda as técnicas da

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associação livre e da atenção flutuante, o método de suave alteração da consciência
criado por Freud para exploração das faixas infra-conscientes do psiquismo. Somente as
terapias transpessoais, entretanto, aceitam as possibilidades transpessoais da consciência
humana, considerando, em conseqüência, que a alteração da consciência é o meio
privilegiado para explorar os potenciais curativos e transformacionais das faixas
superiores e habitualmente supra-conscientes do psiquismo. Assim, em geral, a prática
das terapias transpessoais inclui algum método de indução, ou ao menos de facilitação,
da alteração da consciência do cliente, de modo favorecer, em algum momento do
processo, o contato e a vivência das faixas transpessoais de seu potencial. Mais ainda,
algumas das terapias transpessoais vão além e trabalham a partir da alteração da
consciência, a níveis transpessoais, do próprio terapeuta ou facilitador, o que por vezes
incluiria, na visão de alguns autores, a utilização de certos poderes psíquicos
paranormais por parte deste (aí incluídos poderes como telepatia, transmissão de energias
curativas - inclusive à distância, projeções da consciência, vidência, etc.).
No capítulo anterior vimos que a ACP, de uma maneira não intencionada e
ainda pouco esclarecida, tem se mostrado uma terapia capaz de favorecer a emergência
de vivências transpessoais e espirituais em seus clientes, e que tais vivências, ao menos
potencialmente, mostram-se bastante promissoras como elemento propiciador de
crescimento e transformação psicológica, estando muitas vezes tipicamente ligadas, na
visão dos autores examinados, a casos bem sucedidos ou a momentos culminantes do
processo terapêutico, individual ou grupal. Isto, por si só, já mereceria, por parte dos
rogerianos e mesmo dos psicólogos transpessoais, um esforço de aproximação entre suas
escolas, lucrando os rogerianos uma melhor compreensão do fenômeno e seus potenciais,
e os transpessoais o conhecimento de uma nova via, que me parece extremamente
original e promissora, de acesso às dimensões superiores do psiquismo humano.
Neste capítulo, porém, creio que nosso exame demonstrará que as
possibilidades da ACP como psicoterapia transpessoal vão ainda além, pois se insinua,
nas últimas colocações de Rogers e outros autores, uma prática transpessoal que atinge a
sofisticação da utilização dos potenciais transpessoais da consciência do próprio
terapeuta, novamente por uma via bastante singular e revolucionária, embora ainda um
tanto mal esclarecida e pouco operacionalizada, aspectos aos quais nosso exame e
discussão, nesta e na próxima seção, procurará trazer alguma contribuição.
Em primeiro lugar, tratemos de determinar se aquilo que Rogers - o qual
em 1973 declarara: Eu nunca tive uma experiência mística, nem qualquer experiência
com uma realidade paranormal, e nem, tampouco, qualquer estado induzido por drogas
que me proporcionasse um único vislumbre de um mundo diferente de nosso seguro
mundo "real"(em Rogers & Rosenberg, 1977, p. 179) - está agora tão relutantemente
classificando como talvez um estado de consciência ligeiramente alterado pode de fato
ser considerado como tal. Recordemos a clássica definição de Tart (1991):
De um modo bastante conciso, "um estado de consciência" (SoC) é aqui definido como
um padrão generalizado de funcionamento psicológico. Um "estado alterado da
consciência" (ASC) pode ser definido como uma alteração qualitativa no padrão comum

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de funcionamento mental em que o experienciador sente que a sua consciência está
radicalmente diferente do seu funcionamento "normal". Deve-se notar que um ASC não
é definido por um conteúdo particular da consciência, por um comportamento, ou por
uma modificação fisiológica, mas em termos de seu padrão total.(Tart, 1991, p. 41)

Como o próprio leitor terá por certo notado, a descrição feita por Rogers a
respeito destes momentos especiais parece bastante distante do padrão de consciência por
nós conhecido como normal, o que ele próprio reconhece na entrevista a Santos (s. d.),
alegando aliás ter sido a percepção desta nítida diferença o que o levou a cogitar se
estaria vivenciando, afinal, um estado alterado de consciência:
SANTOS: Meu objetivo é descobrir como psicoterapeutas usam seu próprio self (eu
interno) na psicoterapia. Eu estudei seus escritos e o que notei foi que a maneira como
você usa seu "estado escondido" [terminologia da teoria de Santos sobre os momentos
mágicos em psicoterapia, que é explicada mais adiante] de consciência na terapia é
através de sua habilidade de se tornar "uno" com o cliente. Quero me aprofundar nisto e
ver se nós podemos falar sobre isto.
ROGERS: Muito bem, eu posso começar daí... Você está falando sobre aspectos
escondidos da consciência que o terapeuta usa no seu trabalho. Recentemente, eu tenho
sido, de certa maneira, quase forçado a pensar nisto, em vista de algumas sessões que
tive até o momento. E concluí que a coisa a que tenho me referido, muitas vezes de uma
maneira brincalhona, é talvez quase que um estado alterado de consciência, onde começo
a realmente ESTAR com o cliente. É um sentimento definido e é, de alguma maneira,
um estado diferente do estado ordinário de consciência. Eu nunca encarei o fato de estar
neste estado alterado, nem o tenho reconhecido como tal - e posso sentir a diferença,
quando o vivencio. Eu sei quando estou realmente devotado àquela pessoa no nosso
encontro e assim por diante, e quando minha mente divaga tendo em vista alguma
distração ou algo neste sentido. E, penso, que este estar com o cliente, sem distração,
contata profundas forças intuitivas... Não sei até quando posso continuar descrevendo
isto como parte do que faço em terapia. Não é algo que necessariamente recomendo ou
alguma coisa parecida. Estou somente tendendo descrever como isto acontece comigo.
(Santos, s.d., p. 53)

Mais adiante, na mesma entrevista, descrevendo seus melhores momentos


como terapeuta, Rogers nos oferece um maior detalhamento da extensão da mudança
percebida em vários aspectos de sua consciência, fazendo novamente alusão a diferenças
que percebe em relação ao seu estado habitual:
Santos: Como você se sente por dentro, internamente, quando você vivencia estes
momentos?
Rogers: Eu suponho que me sinto todo num só pedaço, numa coisa só...e como se eu
estivesse completamente focalizado. Todavia...na minha vida cotidiana penso: "Oh! Meu
Deus, como vou conseguir fazer tudo antes de partir para a Europa? Existe a reunião no
Centro...". Você sabe, é muito fragmentada. E uma coisa de que eu gosto, a respeito de
terapia ou de ser um facilitador num grupo, e que é consideravelmente profunda, é que
me sinto completamente focalizado somente em uma coisa e eu sou um pedaço só, uma
coisa só, naquele momento.
Santos: Estou curioso a respeito dos tipos de pensamento que vêm à sua mente.
Rogers: Não existe muito em forma de pensamento. É um momento muito existencial,
pois quando termino uma entrevista realmente boa, minha memória para com ela é
geralmente péssima. Mais tarde, quando penso nela, algumas partes da mesma voltam à
memória... mas o meu lado intelectual não está muito presente. Bem, o lado intelectual
está presente também, mas está tudo focalizado neste momento com nenhum intento de
pensar nele, com nenhum intento de tentar relembrá-lo... assim, todas as minhas
potencialidades estão presentes, mas penso que elas estão presentes, neste momento, não
com o pensamento de preservar algo para o futuro, ou de formar alguma teoria sobre o
que está acontecendo, ou alguma coisa assim.

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Santos: Você perde a noção do tempo? (...).
Rogers: Sim, penso que os melhores períodos da terapia são os momentos sem noção de
tempo, em que eu não estou muito consciente do tempo... Exceto pelo fato de que, se eu
tiver outro encontro num determinado horário, então existe alguma consciência disto no
background. (pp. 56-57)

Em outros textos, Rogers observa que, habitualmente, tal alteração da


consciência associada aos melhores momentos da terapia e liberadora de possibilidades
inacessíveis no estado normal, é vivenciada não apenas pelo terapeuta, mas também pelo
cliente, no contexto da relação interpessoal:
Sinto que nos melhores momentos da terapia há um mútuo estado alterado de
consciência. Que ambos, realmente de alguma forma, transcendemos um pouquinho o
que somos ordinariamente, e que há uma comunicação acontecendo, que nenhum de nós
compreende mas que é muito reflexiva. (Rogers, apud Wood, 1991, p. 71).

O fenômeno, aliás, conforme ocorre na consciência do terapeuta, ou de


ambos os participantes do encontro terapêutico, parece ser basicamente o mesmo que, no
capítulo anterior, vimos estar emergindo como uma das características, também lá
demonstrando elevado potencial curativo e transformacional, dos melhores momentos
dos Grandes Grupos, onde por vezes é vivenciado coletivamente por mais pessoas ainda,
conforme confirma Wood baseado em observações próprias e de outros investigadores:
Não apenas duas pessoas, no ambiente especial da psicoterapia individual, entram nesse
relacionamento especial. Tanto o observador pessoal quanto uma literatura abundante
sugerem que grupos de pessoas também podem entrar em estados alterados de
consciência juntos, o que talvez seja responsável por muitas das habilidades do grupo
delineadas anteriormente (Wood, 1991, p. 71)

Assim, frente a definição de estados alterados apresentada por Tart, a


relutância de Rogers em classificar estes importantes momentos especiais, da terapia ou
da vivência grupal, como uma experiência de alteração da consciência, parece cada vez
mais despropositada e podemos, decididamente, concluir que ele está vivenciando o que
é definido como um estado alterado de consciência. É o que, com muita propriedade,
afirma Wood (1994) ao analisar as descrições que Rogers faz de suas vivências nestes
episódios:
O terapeuta e o cliente participam de uma experiência integrativa que transcende o
tempo, que transcende os limites da identidade presumida do cliente e do terapeuta. (...)
Nesse estado, ele pode perder a consciência do que está ao seu redor e até do sentido do
tempo. Voltando ao seu estado habitual, ele pode experienciar uma amnésia parcial. Em
outras palavras, nesses momentos intensos e vitais ele está, por definição, em um estado
alterado de consciência. (p.229)

Wood (1994), entretanto, continua seus comentários, parcialmente


concordando com a categoria de leve alteração com que Rogers insiste em classificar sua
vivência:
(...) mas não se trata de um transe profundo, que possui a pessoa, capturando sua
vontade e incapacitando sua habilidade de pensar. As faculdades críticas de Rogers estão
atuando. É um estado disciplinado no qual os modos complementares de consciência
estão ambos funcionando plenamente. (...) De fato, nesse estado, o terapeuta está
aparentemente mais e não menos consciente do que em outros momentos. Rogers

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(1957b) verifica isso quando indica que nunca se sentia "tão inteiro ou uma pessoa tão
completa como nas suas entrevistas terapêuticas" (p. 230)

Nesta passagem, em minha opinião, evidencia-se a superioridade do


conceito de estado alterado de consciência sobre o de estado de transe na definição de
Shor, que Wood diversas vezes usa alternativamente ao de estados alterados, e que eu já
havia criticado no capítulo anterior, por dar margens a mal entendidos. Se transe é
definido como qualquer estado em que a orientação generalizada para a realidade se
desvanece numa consciência relativamente não funcional (Shor, apud Wood, 1985, p.
56), o que Rogers descreve não é transe leve nem intenso: não é transe nenhum, pois
embora vivenciando um padrão de funcionamento mental distintamente diferente do
padrão habitual - e, portanto, um estado alterado de consciência - está, não obstante, no
pleno, e ampliado, exercício de suas faculdades psicológicas, como o próprio Wood
observa. Trata-se assim de uma qualidade especial de consciência ampliada, em que
estão ausentes os aspectos ambivalentes de grande parte dos estados alterados de
consciência - ou de transe - que, se de um lado abrem possibilidades construtivas, de
outro podem nos tornar muito mais limitados e vulneráveis em aspectos que em nosso
estado habitual funcionam de forma mais adequada e adaptativa. Aparentemente o que
Rogers descreve, e o que Wood confirma, aproxima-se do que Tart (1991) definiu,
chegando na ocasião a duvidar que tal experiência fosse possível, como um estado
superior de consciência, isto é, o estado em que não só estejam preservadas todas as
funções disponíveis no estado habitual como também em que: (1) algumas ou todas estas
funções funcionarem mais eficientemente e/ou (2) algumas funções novas, de valor
positivo, estiverem presentes (...) (p. 67)
É o que Natiello (1982) parece descrever ao analisar o estado de
receptividade e elevada conscientização, que vê como a forma de conhecer cujo
desenvolvimento é facilitado em experiências grupais de aprendizagem da ACP,
permitindo uma experiência direta e holística da realidade, a qual:
(...) ocorre em um estado de receptividade e elevada conscientização quando a mente
racional - ferramenta com a qual nós filtramos certos aspectos da experiência para
reflexão - está em descanso. Ele envolve a pessoa inteira, com o subconsciente,
inconsciente e consciente agindo com unidade. Ele coloca juntos o intelecto e emoções.
É, apesar disso, não irracional, mas supra-racional. Está associado à condição de ser
plenamente aberto para, e absorto na, experiência; integrado, fluindo. (p. 4)

Podemos então agora dar mais um passo na caracterização do estado de


consciência que Rogers descreve como associado a suas melhores atuações: trata-se não
só de um estado alterado de consciência, como é um estado ampliado, quiçá mesmo um
estado de consciência superior na completa acepção do termo. É bastante conhecida - e
foi perifericamente indicada no trecho de Wood acima citado - a complementaridade, em
geral pouco desenvolvida e explorada, dos dois modos de funcionamento da consciência
humana, em grande parte identificados pelas diferentes atividades e funções
desempenhadas pelos dois hemisférios cerebrais. Wood (1994) aprofunda a temática,
defendendo a hipótese de que tanto Rogers, na sua forma de exercer a atitude de empatia

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em geral, e em especial nestes momentos de excelência, quanto os clientes da ACP
(inclusive grupos), estavam desenvolvendo uma elevada capacidade de associar, de
forma harmônica e altamente positiva, os potenciais analíticos e holísticos das duas
formas complementares de pensar e perceber:
Rogers descreve a integração do que é freqüentemente considerado como modos
contraditórios de consciência mas de fato são modos complementares. Um é linear (...)
do modo analítico de consciência; o outro é uma percepção fora do tempo (...) do modo
holístico de consciência. (...) A compreensão empática, em outras palavras, é um estado
de consciência no qual uma pessoa experiência e participa de um fluxo de pensamentos
e sentimentos e significados com outra pessoa enquanto ao mesmo tempo também está
consciente do contexto maior dentro do qual os dois existem. Neste estado, opostos
podem coexistir sem causar preocupação em termos de contradição. (...). Ele está
consciente das duas coisas: da atividade momento a momento e dos padrões que
compõem a vida (pp. 227-228)

A conclusão equivalente, a respeito da habilidade de Rogers em suas


melhores atuações, chega Santos, ao concluir que os momentos mais poderosos de
transformação em terapia (os momentos mágicos que estudou através de entrevistas com
destacados mestres terapeutas, inclusive Rogers) consistem na utilização integrada do
estado aparente de consciência (associado por Santos à mente racional, analítica e
objetiva, identificada com o hemisfério cerebral esquerdo que utilizamos
predominantemente em nossa cultura) e do estado escondido (identificado com os
potenciais intuitivos, holísticos e criativos do hemisfério direito). Santos, entretanto, vai
ainda além deste entendimento baseado na estrutura cerebral e orgânica mais estrita,
encontrando na vivência de tais momentos uma qualidade espiritual de percepção e
participação de uma ordem mais elevada de integração universal, o que associaria estes
momentos especiais a toda uma tradição de relatos de místicos de todos os tempos:
Este é um livro sobre momentos especiais que acontecem na psicoterapia e comunicação
humana e que são considerados significantes acontecimentos no processo de cura. (...).
Nestes momentos algo especial está presente, que pode ser chamado de alma, self (Eu
interno), consciência maior, força da vida, Tao, vibração fundamental e muitos outros
nomes. (...) E também tem a ver com aquela idéia de saber que vai além das explicações,
com aquela idéia de infinidade que vai além do self (Eu), aquela idéia de amor que vai
além das palavras, aquela idéia de pertencer que vai além do espaço. (...) E ela nos
coloca em conexão com tudo o mais no Universo, fazendo-nos sentir parte de um todo, o
que, conseqüentemente, nos faz sentir que não estamos isolados nos nossos mundos
particulares de bons e maus momentos. (p. 161)

De maneira semelhante, Bowen (1985b) descreve estes momentos de


mudança em terapia, como uma experiência essencialmente espiritual, em que a
expansão consciencial permite a vivência direta da unidade transcendente de todas as
coisas proposta pelos místicos como fundamento da realidade e de nossa própria
identidade:
Eu gosto de descrever o momento de mudança em terapia como um momento espiritual.
Por "espiritual" quero dizer um momento no qual operamos a partir do Self interno e,
conseqüentemente, nós nos sentimos interligados com a energia do Universo. Em
momentos como estes nós não somos uma parte fragmentada do todo. Nós "somos" o
todo. Limites entre Eu-Você-Ele-Natureza-Deus desaparecem. Não existe nada de
pensamento envolvido, nós somos pura consciência, pura vivência. (p. 111)

141
Vários outros autores (alguns dos quais já referidos no capítulo anterior -
como Nacmias e Arnold), trabalhando numa orientação centrada na pessoa, também
reconhecem, nas descrições da qualidade especial dos melhores momentos terapêuticos,
uma identidade, ao menos aparente, com o relato de vivências místicas e religiosas.
O'Hara (1983), num de seus momentos de simpatia pela perspectiva transpessoal, em seu
artigo A Consciência do Terapeuta, defende a superioridade do modelo de pessoa para
pessoa em psicoterapia, no qual o terapeuta abandona a segurança do conhecido, as
defesas, a posição de expert e, admitindo que este ser diante de nós é tão completamente
único e misterioso como nós somos, é uma pessoa (p.99), entra na relação como um
colaborador, envolvendo-se integralmente na vivência de crescimento e descoberta,
numa atitude que a autora alude metaforicamente como um entrar na dança da vida com
o cliente. Descrevendo o processo que crê ser desencadeado por tal tipo de atitude
terapêutica, e para o qual propõe a exploração de um espectro de experiência humana
que inclua o transpessoal (Devemos confrontar os limites da natureza humana, do mais
profano ao mais sacro, do transcendente ao trivial, p. 99), O'Hara afirma a qualidade
espiritual do estado de consciência experimentado nos momentos culminantes do
encontro terapeuta-cliente. Para ela, estes momentos nos quais se relata a experiência de
unidade na relação e o insight compreensivo, mediante a vivência consciencial direta e
ampliada, dos grandes questionamentos ontológicos e existenciais, são, em essência, a
mesma experiência referida na tradição religiosa de todos os tempos como o momento de
iluminação:
Se nos envolvemos na dança e embarcamos na jornada da vida (...) (uma jornada apenas
obscuramente iluminada pela intuição) ocorrem momentos em que alcançamos nosso
centro, o núcleo de nossa natureza. Experimentamos momentos de iluminação
Terapeutas e clientes descrevem momentos particularmente potentes do processo
terapêutico como um sentimento de unidade, de ser um com o outro. É o estado de
consciência procurado na maior parte das tradições como um estado de sabedoria. É a
experiência culminante, a transformação religiosa, o estado de Zen, de Tao, a
experiência do amor perfeito. É o momento em que os questionamentos cessam. A vida
é, o amor é, Deus é. (pp. 100-101)

O próprio Rogers, que vimos no capítulo anterior afirmar ter concluído que
existe alguma coisa mística e mesmo transcendente nos melhores momentos da
experiência de grupo (in Santos, s.d., p.58), ao descrever a nova característica que
estamos examinando, alega tratar-se de um fenômeno da mesma qualidade da
experiência referida em certos momentos grupais, transcrevendo o relato de uma
participante como exemplo (já citado à pag.104) e concluindo que Este relato, como os
estados alterados de consciência, pertence ao terreno do místico (1983a, p. 48),
acrescentando sua convicção de que as práticas da ACP estavam, nestes casos, lidando
com a dimensão espiritual e transcendente.
Esta conclusão, sobre a natureza espiritual e transcendente envolvida no
estado especial de consciência presente nos melhores momentos da prática da ACP,
recebeu também apoio do autor inglês Brian Thorne, o qual, por um caminho próprio e
independente, havia chegado a uma descrição análoga a de Rogers sobre a qualidade

142
nova e especial que identificava nos momentos culminantes da terapia centrada na
pessoa. Thorne é um importante divulgador da ACP na Inglaterra, onde têm liderado
organizações profissionais, escrito livros e artigos a respeito, colaborado na criação e nas
atividades de centros de formação de conselheiros e facilitadores grupais, participando
ainda da promoção de grandes workshops transculturais. Além de terapeuta é ministro da
Igreja Anglicana, sendo um dos mais destacados simpatizantes e incentivadores do
desenvolvimento de uma perspectiva espiritual para a ACP, elaborando diversas
contribuições originais a respeito - algumas das quais examinaremos neste estudo -
apresentadas em grande parte em seu livro Aconselhamento Centrado na Pessoa:
Dimensões Terapêuticas e Espirituais (Thorne, 1993). Seu interesse no espiritual e no
transcendente foi despertado na infância por uma marcante e espontânea experiência
mística quando, na quinta feira santa de 1946, de forma súbita e inopinada teve a
consciência transformadora de ser amado por Deus (narrado no cap. II de seu livro). É
interessante notar que seu trabalho como psicoterapeuta centrado na pessoa e seu
envolvimento com questões e vivências de teor espiritual seguiram por muito tempo
caminhos diferentes, como dimensões em grande parte independentes de seu
desenvolvimento, antes de começarem a convergir até chegarem a um profundo
entrelaçamento, graças ao qual a prática terapêutica para ele, hoje, chega a ser
considerada, por vezes, seu trabalho de maior significado espiritual, daí retirando,
inclusive, importantes enriquecimentos para sua reflexão teológica e sua atividade
pastoral. Assim, percorrendo um caminho em grande parte original e independente para
descobrir a dimensão espiritual da prática da ACP, chegou ele mesmo a formular, sem
conhecimento ainda da proposta de Rogers, sua própria versão de uma quarta
característica para além das três condições atitudinais básicas da ACP, a qual também
via como associada aos melhores momentos do processo terapêutico. Nomeou esta
quarta característica do terapeuta como a qualidade de tenderness : *

Inesperadamente eu sinto uma sensação de elevada conscientização (...). Eu me sinto em


tal grau de contato comigo mesmo que não é necessário nenhum esforço para pensar ou
saber o que eu estou sentindo. É como se energia fluísse através de mim e eu
simplesmente lhe desse livre passagem. (...) Eu me sinto pleno de poder e, ao mesmo
tempo, quase insignificante. Meu cliente parece estar mais acuradamente focalizado (...).
Quando ele fala, as palavras pertencem unicamente a ele. (...) É como se por um espaço,
mesmo que breve, dois seres humanos estivessem plenamente vivos porque deram a si
mesmos e um ao outro permissão para arriscarem ser plenamente vivos. Em tais
momentos eu não tenho hesitação em afirmar que meu cliente e eu fomos arrebatados
numa torrente de amor [a stream of love]. Do interior desta torrente emerge uma
compreensão sem esforço ou intuitiva e o que é surpreendente é o quão complexa essa
compreensão pode ser... Há então sempre uma sensação de bem estar, de ser bom estar
vivo, e isto a despeito do fato de que os problemas ou dificuldades que confrontam o
cliente permanecerem aparentemente inalteradas e tão intratáveis como sempre. (p. 183)

Thorne afirma que ficou muito surpreso ao conhecer as declarações de


Rogers sobre uma quarta e poderosa característica nova da relação terapêutica, pois logo

*Preferi manter o termo original pois a tradução, por ternura, deixaria de fora vários significados adcionais que a
palavra tender apresenta na língua inglesa e que, segundo Thorne (op. cit., cap V), são relevantes na conotação da
qualidade terapêutica que o termo denota.

143
encontrou várias coincidências entre a descrição de Rogers e a sua própria: ambas falam
de uma ampliação do estado de consciência (elevada conscientização para Thorne e
estado alterado para Rogers); da manifestação espontânea de uma capacidade intuitiva
altamente complexa, acurada e não-racional; de uma experiência de um nível novo e mais
profundo; assim como da experiência do transcendente (o arrebatamento na torrente de
amor para Thorne e a experiência de se tornar parte de algo maior para Rogers); e,
finalmente, da percepção de que neste estado transcendente há um sentido de ampliação
da energia, do bem estar e do poder de curar (p. 183)
Ao final, comentando a afirmação de Rogers de que tais experiências
pertenciam ao terreno místico e transcendente e seu reconhecimento de que havia
anteriormente negligenciado essa dimensão, Thorne concorda e acrescenta: É minha
convicção, apoiada em minha experiência, que aqueles de nós a quem diz respeito
garantir a vitalidade e o desenvolvimento da tradição centrada no cliente devem tomar
estas palavras de Rogers com a máxima seriedade. (p. 183)
Assim, no prosseguimento de nossa análise da nova característica
vislumbrada por Rogers e outros autores da ACP nos melhores momentos de atuação
facilitadora, após termos determinado que se trata tanto de um estado alterado, como
também de um estado ampliado em que as potencialidades da consciência tornam-se
aprimoradas e otimizadas, damos agora mais um passo na direção da perspectiva
transpessoal típica: trata-se, ao menos na opinião dos autores examinados, de um
experiência especial intrinsecamente relacionada à vivência das dimensões
transcendentais, espirituais, religiosas ou místicas do potencial humano.
Estreitamente relacionado à qualidade espiritual das vivências descritas,
um último aspecto pode ser apontado de forma relacionar o que Rogers, entre outros,
apresenta à temática e pontos de vista típicos da Quarta Força da Psicologia,
demonstrando que sua vivência pode ser classificada enquanto aquilo que é
categoricamente definido como uma experiência transpessoal. Grof (1988), na mais
aceita definição e classificação das experiências transpessoais, inclui sob esta designação
as vivências conscienciais em que é experimentada uma superação, ampliadora, das
fronteiras usuais da identidade pessoal e/ou do tempo e/ou do espaço e/ou da própria
realidade conhecida. Ao falar de uma identidade transpessoal que vislumbra para além
do self organísmico (meu espírito, meu âmago transcendental), ao falar de uma unidade
entre o cliente e o terapeuta que rompe as fronteiras entre o eu e o você (parece que meu
espírito tocou o espírito do outro), ao se referir a vias de comunicação, ou a caminhos
bizarros, que se processam para lá das dimensões espaço temporais que mapeam nossa
compreensão habitual das possibilidades da realidade, e, ainda, ao pressentir em algo
maior, que transcende os participantes, a fonte de cura e energia que está atuando
transformadoramente na relação, Rogers parece, de fato, estar adentrando diversos dos
portais que dão acesso aos domínios transpessoais da consciência e experiência humanas.
Definitivamente, portanto, o estado de consciência subjacente à nova atitude facilitadora
vislumbrada por Rogers atingiu o status de um estado de consciência transpessoal,

144
reclamando, em minha opinião, que os estudos a respeito façam juz, enfoquem e
destaquem esta qualidade transpessoal como característica essencial e necessária das
novas possibilidades curativas e transformadoras aí implicadas, ao invés de ignorá-la,
subestimá-la, ou reduzi-la a alguma versão de funcionamento cerebral modificado, de
comunicação não verbal inconsciente, de sabedoria organísmica na visão humanista
clássica, ou outra forma não transpessoal de compreensão do fenômeno. E fazer justiça à
amplitude, riqueza e implicações do estado aqui descrito, a mim parece, só pode ser feito
por uma psicologia que assuma um modelo transpessoal da consciência humana. Em
outras palavras: uma Psicologia Transpessoal.
Creio que isto se tornará mais claro se encararmos a hipótese de que, mais
que apenas descrever um estado de consciência, Rogers, ao se referir aos aspectos
transpessoais acima citados, estava nos falando de uma qualidade extraordinária de
experiência que, além de nos possibilitar a entrada consciencial e subjetiva numa nova
dimensão dos potenciais do homem e realidade, também parece franquear a entrada -
mediante a transformação pessoal facilitada pela nova consciência - de nosso ser inteiro
nesta realidade ampliada, inclusive com a possibilidade de aí concretamente transitarmos
e atuarmos. Estaríamos, assim, constatando e iniciando o desenvolvimento de novas
potencialidades objetivas para a atuação da dimensão transpessoal de nosso ser (nosso
âmago transcendental) em intercâmbio com as potencialidades energéticas e curativas de
uma realidade percebida como algo maior, na qual entramos em contato e comunhão,
descobrindo novas vias - ou caminhos bizarros - de interação com outros eus interiores,
percebidos agora como espíritos que podem ser diretamente contatados pelo meu, e
dando acesso a instâncias suprapessoais que vão ainda além das pessoas e do próprio
mundo como os temos conhecido. É o que examinamos na próxima seção.

2. SENDO TRANSPESSOAL NUM MUNDO TRANSPESSOAL: UM JEITO


TRANSPESSOAL DE SER

Como vimos no segundo capítulo deste estudo, um dos principais fatores


impulsionou o desenvolvimento do Movimento Transpessoal em Psicologia, realçando-
lhe a relevância frente a comunidade científica mais ampla, relaciona-se à aparente, e
surpreendente, coincidência entre a realidade descrita em certas vivências transpessoais,
categorizadas como místicas ou de consciência cósmica, e algumas das conclusões, sobre
a natureza mais profunda da realidade, que têm emergido em estudos de ponta da ciência
natural. Cogita-se assim, ao se comparar as descobertas e teorias dos físicos modernos
com a vivência milenar dos místicos, se estas últimas, além do aspecto subjetivo de
vivências simbólicas interiores - que poderia perfeitamente ser abrangido por um
paradigma (subjetivista e intrapsíquico) psicológico tradicional - não estariam na verdade
dando acesso a uma dimensão muito mais fundamental e real, objetivamente falando, da
natureza profunda do universo aparentemente material que nos circunda e interpenetra.
Teriam assim tais experiências o valor epistemológico de um conhecimento intuitivo

145
direto obtido pela superação das distorções das vias sensoriais e intelectuais habituais,
sendo muito mais acuradas e penetrantemente realistas do que a tradicional atitude
objetiva do cientista, derivada esta de um aprimoramento disciplinado das funções
racionais e sensórias da consciência usual de vigília. Ao alinhar-se na exploração desta
hipótese, e na defesa de uma nova visão ampliada sobre a natureza mais profunda do
mundo e da realidade como um novo modelo a ser adotado para a Ciência em geral, a
Psicologia Transpessoal tem se destacado como o movimento dentro da Psicologia que
melhor se afina e contribui para a perspectiva de revolução paradigmática, conforme
também defendida por destacados expoentes das ciências naturais mais objetivas.
No Capítulo III, ao tratarmos das reações de Rogers às mudanças no
paradigma científico, tivemos oportunidade de verificar sua simpatia por este ponto de
vista, que o levou inclusive a propor (in Rogers & Rosenberg, 1977), como um dos
desafios mais empolgantes para a Psicologia, a investigação da existência desta realidade
transcendente, inacessível aos nossos cinco sentidos, e só atingível por um estado
especial de consciência: quando nos mantemos passivamente receptivos. ao invés de
ativamente decididos a conhecer (p. 181). Noutra parte ainda (1983a) afirma que esta
nova visão da realidade, e a possibilidade humana de contatá-la através da experiência de
alteração da consciência descrita pelos místicos como de união com o universo, era
confirmada por sua experiência mais recente com clientes, especialmente com grupos
(p. 47). Mais ainda, recorrendo às descrições que os novos físicos, assim como antes
deles fizeram os místicos, fazem agora do comportamento, das características e das leis
da nova realidade que se descortina nas pesquisas mais avançadas, vê aí uma
possibilidade de uma validação ainda maior (e, eu diria, não apenas restrita à otimização
de alguns potenciais meramente psicológicos e subjetivos) das experiências
extraordinárias que, como vimos neste e no último capítulo, têm se mostrado
exuberantemente intrínsecas às práticas recentes e avançadas da ACP:
Assim, encontramos provas na Física e na Química Teóricas da validade das
experiências transcendentes, indescritíveis, inesperadas e transformadoras - aqueles
fenômenos que meus colegas e eu temos observado e sentido como concomitantes à
abordagem centrada na pessoa. (p. 49)

Cumpre ressaltar que Rogers não está sozinho, entre os autores da ACP, ao
associar as vivências conscienciais extraordinárias, experimentadas na prática desta
abordagem, à estranha, insólita e maravilhosa realidade descrita pelos físicos e místicos.
Coulson (1995), por exemplo, a partir de sua própria experiência transformacional
experimentada em um workshop da ACP (descrita em Coulson, 1992), conjectura se, ao
propiciar tais intensas alterações da consciência, não estaria a ACP dando acesso à uma
dimensão transcendente e subjacente tanto à realidade psíquica como à material, às
quais incluiria e ultrapassaria ao penetrar o domínio que foi descrito pelo físico David
Bohn como a ordem implicada da realidade:
Eu conjecturei se, abrindo-nos para profundos, transcendentes e transpessoais domínios
da consciência, tais experiências teriam também, em efeito, o potencial de nos conectar

146
com aquilo que David Bohn (1980) chama de "ordem implicada" aquém e além de nossa
própria realidade física e de nossa usual consciência das fronteiras do ego. (p. 3)

Argumentando em apoio à sua hipótese, Coulson relata o aspecto místico


das vivências de grupo e sua coincidência com descobertas da moderna pesquisa
quântica e cosmológica, no que se referenda na conclusão de Rogers aqui citada:
Entre os efeitos relatados por membros de tais grupos e workshops estão o senso de
totalidade e unidade, sensações de "pertencer" e de "fluir", experiências de intensidade
perceptual, graus inusuais de energia física, e espontâneos sentimentos de elação e
alegria. Estas características são encontradas em todas as culturas e tradições religiosas,
e o próprio Carl Rogers (1980: 128) conclui que "pesquisas de ponta parecem confirmar
a experiência dos místicos de comunhão com o universal". (Idem)

É também o que Natiello (1982) conclui, ao analisar as implicações para a


educação do elevado (e alterado) estado de conhecer (state of knowing) que a ACP
facilita aos participantes nos melhores momentos da experiência comunitária de
aprendizagem:
Eu acredito que a facilitação e o destaque de tal estado de conhecer pode ser a maior
contribuição que a abordagem centrada na pessoa pode trazer para a aprendizagem. Pois
este é o estado no qual nós atingimos nosso potencial, nossa conexão com o eu, com o
outro, com o universo. É a condição na qual nós alcançamos a natureza holística, inter-
relacionada e interdependente da realidade que está sendo descrita pelos físicos
contemporâneos (p. 10)

Vejo aí, portanto, um novo e revolucionário aspecto que das alterações


transpessoais da consciência observadas nos desenvolvimentos recentes da prática da
ACP, quer como efeito da aplicação de suas metodologias de trabalho individual e
grupal, quer como fundamento das novas características propostas para atuação do
facilitador. Não se tratariam apenas de ampliações subjetivas do potencial humano, mas
de experiências que poderiam também colocar aquele que as vivencia em contato com
uma dimensão objetiva (ou talvez fosse melhor dizer trans-objetiva) da realidade,
desconhecida para o comum das pessoas, abrindo-lhe talvez novas possibilidades de
atuação concreta, também estas desconhecidas e inacessíveis ao comum das pessoas em
sua consciência habitual. Pode parecer uma conclusão bastante ousada, indo inclusive
além do tradicional ponto de vista humanista-fenomenológico-existencial - que restringe
e privilegia para Psicologia o campo da experiência subjetiva, fenomenológica e pessoal
- pois estaríamos adentrando agora o campo das ciências naturais e objetivas do qual a
tanto custo vínhamos tentando nos afastar. Entretanto, como procurarei demonstrar neste
tópico, esta revolucionária possibilidade - de estarmos descobrindo novos potenciais que
nos permitiriam o trânsito e a atuação nas insólitas dimensões da realidade apontadas
tanto nas descobertas recentes dos físicos como na milenar visão dos místicos e das
tradições espirituais - é algo que, ao menos a julgar por alguns indicativos, está
realmente emergindo como fato concreto e crescente nas atuações da ACP. Estaríamos
assim mais uma vez, e agora de uma forma objetiva, rompendo a fronteira da pessoa e da
vivência pessoal como limite de nossa atuação. Indo além da pessoa e lançando-nos num
contato psicológico direto com dimensões subjacentes à realidade física, aí atuando,
estaríamos não só tendo uma consciência transpessoal, como sendo transpessoais, isto é,

147
existindo e atuando em dimensões da realidade onde, para além das limitações físicas e
psicológicas de nossa existência habitual, descobriríamos potencialidades e
possibilidades inerentes à nossa desvelada condição existencial de seres energéticos,
cósmicos, holísticos, espirituais, transmateriais e transpessoais.
Especialmente duas novas classes de potenciais com características
transpessoais, observados na atuação facilitadora e que têm sido descritos na literatura
recente da ACP como fenômenos associados à ampliação da consciência presente nos
melhores momentos da relação terapêutica e grupal, parecem-me autorizar esta
conclusão. Em primeiro lugar, trata-se da crescente ênfase, e das características descritas,
no uso da faculdade da intuição, por parte do terapeuta, dando a entender um
processamento sensorial e cognitivo que ultrapassa o substrato espaço-temporal e
organísmico da pessoa e da realidade conforme compreendida em paradigmas não
transpessoais. Numa outra categoria, referente aos potenciais curativos e transformadores
ativos liberados nos momentos especiais em que está presente o estado transpessoal de
consciência descrito como uma nova característica da relação terapêutica, incluem-se
tanto os fenômenos em que a influência terapeuta-cliente se processa por vias não
conhecidas, como os fenômenos relatados em que os efeitos obtidos parecem provir de
fontes para além dos potenciais e da atuação das pessoas envolvidas. Examinaremos
estes tópicos separadamente.

Uma Nova Qualidade de Intuição: A Abertura Transpessoal das Portas da


Percepção
Uma das habilidades mais freqüentemente referidas como associadas à
nova característica facilitadora descrita por Rogers é a manifestação, em graus
extraordinários a ponto de sugerir tratar-se de um fenômeno parapsicológico e nos levar
a cogitar a natureza transpessoal da relação, da faculdade da intuição. Mas o que é
intuição?
O termo intuição, utilizado de forma imprecisa e ambígua na linguagem
comum, e definido de múltiplas e muitas vezes contraditórias formas no tradicional
campo da Filosofia, tem também recebido diferentes concepções nos estudos e teorias
da moderna Psicologia. Assim, delimitar e descrever a faculdade humana que o termo
pretende nomear oferece, justamente por tantos enfoques pelos quais tem sido abordada,
definida e estudada, uma série de dificuldades conceituais. Como diz a Encyclopedia of
Psychology (Corsini, Ed., 1984), referindo-se aos diversos sentidos que este termo tem
recebido no campo da Filosofia: Concepções de intuição na filosofia, portanto, variam

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