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nossas atividades e experiências nestas novas dimensões do ser e da realidade a que
nossa prática e reflexão nos estão levando?
Uma das principais críticas relativas às direções que o pensamento de
Rogers toma após a década de 60, e sobretudo na fase que se segue nos anos 70 e 80, é a
crescente fragilidade - em comparação às fases anteriores, sobretudo a da década de 50 -
da estrutura teórica e da fundamentação empírica. De fato, não conta a ACP em seus
desenvolvimentos recentes com um modelo teórico de hipóteses organicamente
estruturadas em proposições empiricamente testáveis comparável ao elaborado nas
tradicionais formulações da Terapia Centrada no Cliente. Assim, um dos principais
desafios que se coloca aos autores atuais, é reformular e ampliar a teoria para dar conta,
de forma adequada, das direções diversificadas e abrangentes que a prática da ACP tem
tomado nas últimas décadas. Na sua mais clássica e completa formulação da teoria de
terapia, personalidade e relacionamento (Rogers, 1959) - posteriormente complementada
na fase de Wisconsin (entre 1957 a 1963) por estudos sobre a natureza processual da
mudança da personalidade, pela inclusão crescente do conceito gendliniano de
experienciar na compreensão do processo terapêutico e pela descrição das características
ideais de uma personalidade sadia - Rogers sistematiza os elementos de sua visão de ser
humano em uma configuração que se ajusta perfeitamente aos procedimentos
tradicionais da Terapia Centrada no Cliente. A relação Teoria-Prática, entretanto, começa
a apresentar sérias lacunas quando confrontada com as aplicações grupais e educacionais
típicas do que aqui neste estudo chamo de fase dos grupos de encontro (1964-1974) de
seu trabalho. Tais lacunas vão se tornando cada vez maiores quando, na última década de
sua vida, seus interesses, afastando-se cada vez mais da sistematização teórica e da
fundamentação empírica, voltam-se para o trabalho com Grandes Grupos e aplicações
políticas e sócio-culturais de suas idéias, e finalmente chegamos às raias da perplexidade
ao consideramos, à luz da estrutura teórica formal da ACP, a tendência mistico-espiritual
que emerge em sua prática e pensamento nessa última fase, conforme vimos examinando
neste estudo. Como relacionar e integrar à tradicional visão humanista, assumida pela
ACP em sua teoria oficial relativa à estrutura, ao desenvolvimento, à dinâmica e à
mudança da personalidade, as últimas observações de Rogers sobre alteração da
consciência, poderes psíquicos, fenômenos transpessoais, etc..., assim como suas idéias
mais especulativas sobre o potencial humano e a natureza da realidade?
Ora, é justamente no centro do domínio teórico, no alicerce da visão
filosófica de homem que sustenta sua teoria e orienta todo seu trabalho, que Rogers, em
meados dos anos 70, propõe uma extraordinária e revolucionária modificação: uma nova
formulação da hipótese fundamental da ACP. Apresentada pela primeira vez em 1975,
em palestra (publicada em Rogers, 1978) proferida na abertura da Conferência sobre
Teoria promovida pela Associação de Psicologia Humanista, e tendo exposição mais
elaborada no seu livro Um Jeito de Ser em capítulo intitulado Os Fundamentos de uma
Abordagem Centrada na Pessoa (Rogers, 1983a, cap. III), esta mudança, embora assaz
divulgada e conhecida, em minha opinião, não foi ainda devidamente conscientizada e
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explorada em suas implicações pela maior parte de seus seguidores. Trata-se, na verdade,
de uma reformulação que coloca como fundamento da ACP uma hipótese transpessoal
em substituição a uma hipótese humanista! Pretendo neste capítulo demonstrar que, com
esta nova hipótese, e com as implicações nela indicadas para uma teoria do
desenvolvimento, estrutura e mudança da personalidade que fundamente as aplicações
práticas, Rogers, agrade isto ou não aos seus seguidores, inclui a sua ACP no grupo das
Psicologias Transpessoais. Vejamos como isto se dá.
A hipótese humanista, que até então fundamentava a ACP, diz respeito a
existência de uma tendência básica no ser humano, a tendência atualizante relacionada à
tendência de auto-realização e crescimento que, como vimos, os humanistas americanos
em geral consideram existir em todos organismos vivos, impulsionando-os para um
crescimento e desenvolvimento para além da simples auto-manutenção, mas em direção
a uma crescente complexidade, autonomia, diferenciação, funcionalidade e atualização
de seus potenciais. Com a reformulação do final dos anos 70, a tendência atualizante
passa a ser considerada apenas como um aspecto ou faceta de uma tendência muito mais
ampla, a que Rogers intitula Tendência Direcional Formativa do Universo:
Defendo a hipótese de que existe uma tendência direcional formativa no universo, que
pode ser rastreada e observada no espaço estrelar, nos cristais, nos microrganismos, na
vida orgânica mais complexa e nos seres humanos. Trata-se de uma tendência evolutiva
para uma maior ordem, uma maior complexidade, uma maior inter-relação. Na espécie
humana, essa tendência se expressa quando o indivíduo progride de seu inicio uni-
celular para um funcionamento orgânico complexo, para um modo de conhecer e sentir
abaixo do nível de consciência, para um conhecimento consciente do organismo e do
mundo externo, para uma consciência transcendente da harmonia e da unidade do
sistema cósmico, no qual se inclui a espécie humana. É muito provável que esta hipótese
seja um ponto de partida para uma teoria da psicologia humanística. Mas ela é, sem
dúvida, o fundamento da abordagem centrada na pessoa. (1983a, p. 50)
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No Capítulo II, ao apresentar as características que identificam a visão de
homem adotada pelas teorias transpessoais, em especial as que permitem distinguir o
ponto de vista transpessoal do humanista nos tópicos normalmente abrangidos por uma
teoria de personalidade, apontei diversos aspectos diferenciais entre as duas correntes.
De uma maneira geral, a característica principal da posição transpessoal não é de
oposição à visão humanista, que é aceita mas relativizada, sofrendo seus conceitos uma
expansão tal que passam por um salto qualitativo e uma ampliação de perspectivas e
possibilidades tão significativa que permitem falar de uma nova posição teórica, no caso,
referente à visão de ser humano, sua natureza e possibilidades.
Nesta seção, tendo por parâmetro os critérios diferenciadores entre a
posição humanista e a posição transpessoal, examinaremos, em dois itens, as principais
mudanças de teor transpessoal, implicadas para a teoria de personalidade da ACP, de
forma explícita ou implícita, a partir da proposição de uma nova hipótese fundamental.
No primeiro ítem, abordarei os dois aspectos mais explícitos destas mudanças, e que
dizem respeito às modificações declaradamente introduzidas por Rogers, com sua nova
hipótese, em suas postulações teóricas sobre a motivação e o desenvolvimento humanos,
tecendo ainda alguns comentários sobre estes temas enquanto inseridos na perspectiva
mais ampla de uma teoria da evolução, e a conseqüente adoção de uma nova visão de
mundo, contexto no qual Rogers agora deseja incluir sua formulação de uma teoria da
personalidade.
No segundo ítem abordarei outros dois aspectos importantes da Teoria
Rogeriana: sua visão e conceitualizações referentes aos temas identidade e consciência.
Também aí, embora de forma não tão explícita, Rogers, com sua formulação da hipótese
da tendência formativa como fundamento da ACP, parece-me ter realizado consistente
modificação ampliadora de sua teoria em direção a uma aproximação do ponto de vista
transpessoal.
Uma Teoria Transpessoal de Motivação, Desenvolvimento e Evolução
As modificações mais explícitas introduzidas por Rogers com sua nova
hipótese fundamental dizem respeito diretamente à teoria de motivação e de
desenvolvimento que propõe para ACP. Assim como a anterior hipótese fundamental, a
nova hipótese é, essencialmente, uma afirmação sobre a natureza da motivação mais
básica que impulsiona e direciona o comportamento e o desenvolvimento da
personalidade humana. Será portanto oportuno relembrarmos, resumidamente, as
diferenças entre a posição humanista e a transpessoal nestas questões:
Enquanto as teorias humanistas tendem a defender, como a motivação mais
básica e intrínseca do ser humano, o impulso para a auto-realização, para o crescimento,
para a atualização dos potenciais e para o desenvolvimento dos organismos em direção à
uma maior diferenciação, complexidade e integradora autonomia, a posição transpessoal
costuma reconhecer a tendência à auto-realização como sendo apenas uma faceta de
uma tendência mais ampla, voltada em última instância à auto-transcendência, para além
da auto-realização, à vivência de estados últimos, no dizer de Sutich (1973), em que a
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consciência é expandida até incluir a totalidade cósmica. De maneira correspondente,
agora na questão do desenvolvimento, as teorias transpessoais também vão além da
posição humanista típica, que vê no objetivo do desenvolvimento sadio e pleno da
personalidade humana a possibilidade última de uma existência organísmica, processual
e integrada ao aqui-agora, expressando-se em respostas originais, criativas, e
espontâneas que sintetizem e afirmem à cada novo momento e a cada nova situação as
possibilidades mais plenas e únicas de um indivíduo aberto à totalidade de sua
experiência. Para a posição transpessoal, neste tópico do desenvolvimento da
personalidade, é previsto um momento em que a auto-afirmação organísmica é
transcendida em uma nova etapa de desenvolvimento, na qual, indo além da própria
vivência organísmica e do momento existencial envolvente de sua experiência mais
imediata, a pessoa pressente e se lança na vivência de possibilidades mais cósmicas,
infinitas e intemporais que se abrem à medida em que são superadas todas as noções de
uma individualidade separada do todo.
Assim, ao propor a tendência formativa como fundamento da ACP, Rogers
afastou-se (embora sem o negar, mas ultrapassando-o, o que é justamente o que fazem as
teorias transpessoais em geral) de um dos pontos mais fundamentais e típicos do
humanismo americano: a teoria humanista de motivação, que vê no impulso para a auto-
realização a motivação mais básica e abrangente do comportamento humano. A hipótese
da tendência atualizante, até então defendida por Rogers como o fundamento da ACP,
consiste numa asserção, tipicamente humanista, sobre a natureza mais profunda e
genérica da motivação humana. A nova hipótese, ampliando a visão anterior, altera a
concepção rogeriana humanista, transformando-a numa teoria de motivação transpessoal.
Isto se dá, basicamente, em dois aspectos que dizem respeito à resposta que é agora
apresentada às questões: Qual a origem, a base, o fundamento da motivação humana? E
qual a direção, o sentido, a finalidade última a que se dirigem os impulsos motivacionais
do ser humano?
Em resposta à primeira questão, a nova formulação de Rogers coloca o
fundamento da motivação humana em uma instância transcendente a todos os processos
naturais, sejam orgânicos ou inorgânicos, sejam minerais, vegetais ou animais. Como
afirmou em entrevista a Bergin (apud Wood, 1994): Creio que existe certo tipo de
influência organizadora transcendente no universo que também opera no homem (p.
232). É portanto a mesma tendência formativa que atua em todos os níveis - no espaço
estrelar, nos cristais, nos microrganismos, na vida orgânica mais complexa e nos seres
humanos - direcionando o comportamento, o desenvolvimento e a evolução do todo
universal para uma maior ordem, uma maior complexidade, uma maior inter-relação.
Mais ainda, não só esta tendência dirige a evolução universal, como, no dizer de Rogers
(1983a), trata-se de algo que subjaz na própria origem e início deste movimento
cósmico: uma tendência criativa poderosa, que deu origem ao nosso universo, desde o
menor floco de neve até a maior galáxia, da modesta ameba até a mais sensível e bem
dotada das pessoas (p. 50).
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Ora, parece-me claramente que, com estas formulações sobre a natureza
mais profunda dos impulsos motivacionais, Rogers está retirando o fundamento último
da motivação humana do interior do organismo, do centro da pessoa, para localizá-lo
numa instância que permeia, origina, direciona e transcende toda existência universal.
Assim, com esta nova teoria de motivação, Rogers está fincando na dimensão cósmica
transcendente os pilares fundamentais de sua teoria da personalidade, o que constitui,
obviamente, uma aproximação da visão de homem defendida pelas teorias transpessoais.
Com a modificação teórica proposta por Rogers o centro direcionador mais intrínseco e
fundamental da pessoa está, paradoxalmente, além da pessoa, sendo, por definição,
transpessoal!
O segundo aspecto transpessoal da nova formulação teórica de Rogers
sobre a motivação humana relaciona-se à questão da direção e finalidade a que somos
impulsionados a partir das tendências mais profundas e intrínsecas de nosso ser. Mais
especificamente, a questão que nos interessa aqui esclarecer é: em que sentidos a nova
formulação da hipótese fundamental da ACP modifica, e eventualmente amplia na
direção de um ponto de vista transpessoal, as tradicionais concepções rogerianas sobre as
direções a que o desenvolvimento da personalidade humana é levado quando submetido
à livre manifestação de seus impulsos motivacionais mais fundamentais e saudáveis?
Para respondê-la, adentramos agora o tema teoria do desenvolvimento, outro tópico a ser
examinado neste ítem.
De acordo com a teoria de desenvolvimento da personalidade apresentada
por Rogers nas suas formulações mais clássicas, tradicionais e humanistas, o tornar-se
pessoa, a direção tomada por um desenvolvimento psicológico saudável ou por um
processo terapêutico bem sucedido, tende a aproximar-se de um estágio final ideal em
que a tendência atualizante não encontra obstáculos à sua atuação, levando ao
funcionamento ótimo da personalidade (Rogers, 1959), à pessoa plenamente
funcionante, à vida plena (Rogers, 1982) em que o ser humano é capaz do exercício total
e adequado de suas potencialidades organísmicas.
Na nova formulação, ao descrever as direções que a tendência direcional
formativa do universo imprime ao desenvolvimento e evolução humanos, ainda é
afirmada a existência de um estágio em que o desenvolvimento atinge um conhecimento
consciente do organismo e do mundo externo, confirmando assim a postulação anterior
do nível de funcionamento ótimo da personalidade em que a pessoa atua a partir da
integração consciente das informações recebidas e processadas pelo organismo em
interação experiencial com o meio ambiente mais imediato. Agora, porém, as
possibilidades do desenvolvimento humano não são aí limitadas, sendo identificado um
novo estágio. Rogers indica que o prosseguir direcional da atuação da tendência
formativa do universo sobre o indivíduo e a espécie humana caminha para uma outra
etapa, na qual se torna possível à pessoa atingir uma consciência transcendente da
harmonia e da unidade do sistema cósmico, no qual se inclui a espécie humana.
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Atribuindo, para além da auto-realização enquanto organismo plenamente
funcionante, um sentido de auto-transcendência à direção em que a motivação intrínseca
do ser humano o encaminha até a culminância da experiência consciencial de unidade
com o cosmos - designada pelos transpessoais como a experiência de consciência
cósmica - Rogers indica agora que o desenvolvimento último de nossas potencialidades
leva à superação de nossa identificação com o fluxo da experiência organísmica para
atingir uma fusão, colaborativa e consciente, com o fluxo evolutivo do próprio universo à
medida em que este, entre outras coisas, forma e transforma a espécie humana. Temos aí,
portanto, uma modificação ampliadora, com características transpessoais, da tradicional
teoria rogeriana de desenvolvimento, justo no ponto mais relevante, sua teoria do
desenvolvimento ótimo da personalidade, que nos fala da direção final a que nos
impulsiona nossa motivação intrínseca para buscar o desenvolvimento pleno de nossas
potencialidades. Transcender-se, ir além de si mesmo, do próprio organismo e da
existência pessoal, redescobrir sua dimensão cósmica, trans-temporal, trans-espacial,
trans-material, transpessoal: tal é agora a direção que Rogers aponta como meta última
do desenvolvimento psicológico humano!
Se Rogers coloca o todo cósmico transcendente como estando associado
tanto à origem como à direção do desenvolvimento da personalidade, na qualidade de
fundamento da motivação mais intrínseca para o desenvolvimento do indivíduo e da
espécie humana, como ademais de tudo o que existe, sua hipótese vai além da
formulação das bases para uma teoria psicológica de motivação e desenvolvimento,
imbricando-se na formulação de uma teoria geral da evolução. De fato, Rogers se inspira
para propor a hipótese da tendência formativa, ao mesmo tempo em que aí também se
fundamenta, no pensamento, coincidente com o seu, de diversos autores que estão
buscando uma compreensão holística e sistêmica dos processos da evolução universal.
Neste sentido, relaciona com a sua hipótese proposições equivalentes de autores como
Lancelot White, que fala de uma tendência mórfica; Albert Szent-Gyoergyi, que refere-
se à sintropia; Jan Christian Smuts, que há décadas já postulava a existência de uma
tendência holística; e Ilya Prigogine, com sua concepção de uma ciência da
complexidade na qual os sistemas abertos, inclusive inorgânicos, indo do Ser para o
Tornar-se (Prigogine, 1979), caminham em saltos de auto-transcendência na direção de
todos mais complexos, ordenados e coerentes. Outros pensadores ainda poderia Rogers
ter citado em apoio a esta visão evolucionista que ganha ampla e crescente aceitação no
contexto da moderna revolução paradigmática, como é o caso, para citar um dos mais
completos e destacados exemplos, de Teilhard de Chardin (1970), que postulando em sua
teoria da evolução a lei da complexidade e consciência, afirma que a tendência universal
em direção à complexidade crescente é acompanhada por uma crescente ampliação da
faculdade de conscientização, que atingiria seu ápice na espiritualidade humana. Para
estes autores todos, a tendência do universo para a entropia, enunciada na Física Clássica
pela segunda lei da termodinâmica de Newton e que se refere à tendência universal dos
sistemas para a desagregação crescente, é apenas uma faceta parcial de um processo mais
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amplo no qual se inclui, de forma predominante ou pelo menos equivalente, uma
tendência para o desenvolvimento e para ascendentes estágios de maior ordem,
amplitude, complexidade e organização, cuja influência é observável em todos os níveis
do sistema cósmico, e que estaria recebendo, segundo Rogers (1983a) muito menos
atenção que o devido:
Assim, sabe-se muito sobre a tendência universal de todo sistema a se degenerar em
direção a um estado cada vez mais desordenado, cada vez mais caótico. O
funcionamento deste sistema é como uma rua de mão única: o mundo é visto como uma
grande máquina, que vai reduzindo a marcha e se desgastando.
Mas a tendência formativa, muito mais importante, e que pode ser igualmente observada
em qualquer nível do universo, é muito menos reconhecida e ressaltada. Afinal de
contas, toda forma que vemos ou conhecemos surgiu de uma outra mais simples, menos
complexa. Este fenômeno é, no mínimo, tão significativo quanto a entropia. Poderíamos
dar exemplos extraídos tanto da vida orgânica quanto da inorgânica. (pp.44-45)
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recentemente vinha sendo defendida pelas psicologias existenciais-humanistas como
sendo restrita tão somente à compreensão do homem, conforme a proposição, defendida
por essas teorias, de um modelo distinto para as ciências humanas. Estamos lançados em
plena revolução paradigmática, para a qual o universo, na afirmação do físico James
Jeans, que Rogers gostava de citar, assemelha-se mais a um pensamento do que a uma
máquina.
É a esta nova visão de mundo, a qual tanto entusiasmo lhe despertou,
conforme examinamos no Capítulo IV desta monografia, que Rogers (1983a) vai recorrer
para responder àqueles que, discordando de suas idéias sobre a dimensão espiritual e
mística que seu pensamento e sua prática vinham desvendando como intrínseca à ACP,
eventualmente o questionassem: E a lógica, perguntarão eles, a ciência, a sagacidade?
(p. 48). Para estes, a resposta de Rogers é apontar para a visão de mundo emergente nas
ciências do novo paradigma, como a física teórica divulgada por Capra, para quem a
visão dos místicos encontra coerência no retrato fornecido pelas mais avançadas
pesquisas e concepções sobre a natureza última da realidade:
Antes que me abandonem por completo, gostaria de mencionar algumas provas
surpreendentes dessa concepção, vindas de áreas as mais inesperadas.
Fritjof Capra (...), um conhecido físico teórico, mostrou que a física moderna aboliu por
completo quaisquer conceitos sólidos sobre o nosso mundo, com exceção do conceito de
energia. Numa afirmação que resume essa observação, ele diz: "Na Física moderna, o
universo é concebido como um todo indivisível, dinâmico, no qual o observador
participa de um modo essencial. Nessa concepção, os conceitos tradicionais de espaço e
tempo, de objetos isolados e de causa e efeito perdem o sentido. Tal concepção, no
entanto, é muito semelhante à dos místicos orientais." (...). (p.48)
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desenvolvimento generalizado da capacidade de consciência cósmica o passo seguinte da
evolução filogenética que anteriormente possibilitara à espécie humana superar a
consciência simples dos animais atingindo a capacidade de auto-consciência.
A nova hipótese fundamental da ACP, sendo apresentada por Rogers no
contexto mais amplo de uma teoria da evolução universal afinada a uma posição que
reconhece um fundamento transcendente para a realidade e para o ser humano, tenta dar
conta, de uma forma unificada e coerente, tanto desta nova visão de mundo e de pessoa
como dos fenômenos transpessoais emergentes no panorama sócio-cultural atual e na
própria prática da ACP. Representa assim um nítido movimento de aproximação da
mesma visão e paradigma que tem sido apresentada como fundamento de praticamente
todas as escolas do Movimento Transpessoal, desconhecendo eu escolas de outras
correntes, inclusive da Psicologia Humanista mais típica, que se fundamentem em
hipóteses análogas ou equivalentes. Fora do contexto da moderna Psicologia
Transpessoal e das visões mais arrojadas de algumas ciências do novo paradigma, uma
compreensão da trajetória evolutiva do universo conforme a apresentada por Rogers,
desde uma origem anterior a toda manifestação cósmica até um destino de retorno
consciente ao mesmo todo transcendente que lhe deu origem, só encontra paralelo em
relatos das tradições místicas. É o caso deste belo poema de Abdullah Ansari, poeta e
mestre Sufi do século XI que, retratando a evolução da mente através das eras e dos
reinos naturais, concebe que a criatura humana pode, pela via do desenvolvimento
espiritual e consciencial, atingir um novo ir além, ultrapassando a dualidade eu-mundo e
acessando possibilidades trans-humanas inimagináveis mediante sua absorção em Deus,
a inefável fonte e destino último da existência universal:
Do não manifesto eu vim
E armei minha tenda,
Na Floresta da Existência Material.
Passei através,
Dos reinos mineral e vegetal,
E minha bagagem mental
Levou-me ao reino animal;
Lá chegando, fui além;
E na concha cristalina do coração humano
Em Pérola, cuidadosamente, a gota do eu tornei.
E associado a bons homens
Andei ao redor da Casa de Oração,
E tendo isso experimentado, fui além;
Tomando o Caminho que leva a Ele,
Converti-me num escravo em Seu Portal;
Então a dualidade desapareceu;
Tornei-me absorvido Nele. (Ansari, 1990, p. 12)
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observado por alguns autores (Van Belle, 1990, Van Kalmthout, 1995) e convém
apresentar alguns esclarecimentos quanto a esta questão antes de examinarmos as
modificações, de teor transpessoal, que a nova formulação teórica da hipótese
fundamental vêm trazer para estes tópicos.
Na questão da identidade, amplamente desenvolvida na teoria do eu (self)
que integra a explanação mais completa de sua teoria de personalidade (Rogers, 1959), a
confusão é causada pela indiscriminação com que é utilizado o termo self, ora entendido
como sinônimo de auto-conceito, imagem de si, ou estrutura do eu, ou seja, a gestalt
cognitiva-experiencial que o indivíduo associa à sua identidade e que se mostra
freqüentemente rígida e incongruente com a totalidade organísmica, ora é utilizado para
indicar a direção ideal do processo de desenvolvimento saudável, descrito como tornar-
se o próprio self.
Creio que não haverá maiores objeções teóricas em se afirmar
explicitamente aquilo que me parece amplamente implícito nas formulações de Rogers:
na verdade ele está se referindo a dois tipos, ou qualidades, de eu. Um primeiro tipo, é o
auto-conceito estruturado em um impermeável sistema do eu, isto é, o eu cristalizado a
partir de simbolizações rígidas que o indivíduo faz a respeito de si e que são, em grande
medida, incongruentes com a experiência total do organismo. O segundo tipo de eu, que
traduz a identificação com a totalidade do organismo, incluindo mente e corpo integrados
e congruentes na experienciação, seria um eu flexível, fluido e processual, intrínseco à
natureza mais profunda da pessoa e sempre potencialmente pronto a emergir quando
forem relaxadas as defesas. Poderíamos assim falar de um falso eu, representado pelo
auto-conceito rígido e experiencialmente incongruente, e de um verdadeiro eu, um eu
organísmico, que representaria nossa real natureza e, portanto, nossa verdadeira
identidade. Assim, superar as limitações impostas por nossa identificação com o primeiro
e redescobrirmos nossa identidade real na experiência plena e não distorcida do segundo
consistiria, em resumo, a finalidade do processo do tornar-se pessoa.
No caso da consciência, dualidade análoga à observada na questão da
identidade se dá a partir da relação entre os conceitos rogerianos de consciência e
experiência. Na sua teoria clássica (1959), o termo consciência é considerado sinônimo
da capacidade de simbolizar ou representar mentalmente a experiência, a qual, por sua
vez, é entendida como o processo mais amplo pelo qual o organismo vivencia
integradamente a totalidade de informações, provenientes do meio interno e do ambiente,
a que tem acesso num dado momento, e que, potencialmente ao menos, pode ser
acessada pela consciência. Para Rogers, no entanto, a representação (ou a consciência)
nem sempre retrata fidedignamente a experiência, pois, agindo defensivamente contra
experiências que ameaçam a integridade do eu (conceito de eu, ou o falso eu a que me
referi), distorce ou elimina a simbolização de grande parcela do que é experienciado pelo
organismo total (o verdadeiro eu, como acima defini). Poderíamos aqui falar também de
dois tipos, ou níveis, ou estados, ou qualidades ou ainda atitudes da consciência. Uma
poderíamos chamar de falsa consciência, identificada por Rogers como uma atitude
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defensiva contra a experiência, colocada a serviço da manutenção do falso eu e que
distorce a correta apreensão da experiência real. Outra uma verdadeira consciência,
construída a partir da atitude de confiança no próprio organismo (verdadeiro eu) que foi
nomeada por Rogers, em consagrada expressão, como a atitude de abertura à
experiência, capaz de tornar facilmente disponível à correta simbolização a totalidade da
experiência organísmica.
Desta forma, na teoria clássica, os tópicos consciência e identidade
encontram-se intimamente intrincados, pois, se de um lado é graças à capacidade
simbolizadora da consciência que ao indivíduo é possível distinguir e organizar uma
porção de seu campo fenomenal (ou experiencial) total numa estrutura, ou gestalt, que
identifica como o próprio eu, é, por sua vez, a partir da estruturação da própria
identidade (o auto-conceito) que o indivíduo passa a realizar a conscientização de sua
experiência, simbolizando e dando acurado acesso à percepção consciente somente
àquelas experiências que se ajustam, sem ameaçá-lo, ao seu conceito de eu.
Com base nestas idéias, podemos distinguir duas situações em que
associação eu-consciência se dá: uma doentia e limitadora, outra, sempre potencialmente
presente, em que o organismo humano funcionaria na plenitude de seu potencial. No
primeiro caso temos a consciência (falsa consciência ou consciência defensiva) e o eu
(falso eu ou auto-conceito rígido) apartados da experiência e do organismo total. No
segundo, uma consciência a tal ponto congruente com a experiência e um eu a tal ponto
coerente com o organismo integral, que se torna quase impossível distinguir os termos
um do outro, de tal forma que eu e processo organísmico, assim como experiência e
auto-consciência, passam a ser praticamente sinônimos, tornando-se a pessoa
conscientemente o eu que ela realmente é, ou seja, seu próprio organismo e a totalidade
de sua experiência. É o que Rogers (1982), em seu livro Tornar-se Pessoa de 1961,
descreve ao falar da finalidade do processo terapêutico em sua abordagem:
... a psicoterapia (pelo menos a psicoterapia centrada no cliente) é um processo pelo qual
o homem se torna o próprio organismo - sem deformação, sem se iludir sobre si mesmo.
O que é que isto significa?
(...) Na terapia a pessoa acrescenta à experiência ordinária a consciência integral e não
distorcida da sua experiência - das suas reações sensoriais e viscerais. (...) Pode tomar
consciência daquilo que está realmente experienciando, não simplesmente daquilo que se
permite experimentar depois de ter passado por um filtro conceitual. Neste sentido, a
pessoa torna-se pela primeira vez o potencial total do organismo humano, com o
elemento enriquecedor da consciência livremente acrescentada ao aspecto fundamental
das reações sensoriais e viscerais. A pessoa torna-se no que é, como o cliente diz com
tanta freqüência durante a terapia. O que isto parece querer indicar é que o indivíduo se
torna - na sua consciência - aquilo que é - na experiência. O indivíduo é, em outras
palavras, um organismo humano completo e em pleno funcionamento. (pp. 104-105)
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complexidade total da experiência organísmica num dado momento. O mesmo contínuo,
tomando-se por critério a questão da identidade, varia de um extremo de um auto-
conceito rígido, impermeável e incongruente à realidade organísmica total, até outro
extremo em que o sentido de identidade decorre da auto-identificação com a unidade
processual que envolve a experiência sempre cambiante de seu organismo em constante
interação com o meio.
As novas colocações de Rogers, assim me parece, vêm acrescentar uma
terceira possibilidade à expansão, ou abertura, da consciência, assim como uma terceira
possibilidade para a auto-identificação. Do ponto de vista do modelo de um contínuo,
pode-se dizer que foi acrescentado ao mesmo um novo seguimento, no qual a
consciência da experiência pessoal e a auto-identificação da pessoa com a totalidade de
seu organismo plenamente funcionante não representam mais o ponto extremo na direção
do desenvolvimento saudável da personalidade. São apontadas agora, como vimos
brevemente no subtópico anterior, perspectivas ainda mais amplas para a expansão da
consciência e para a própria fundamentação de nosso sentido de identidade,
possibilidades estas que só encontram adequada conceitualização dentro do ponto de
vista de uma teoria transpessoal. Examinemos pois as novas possibilidades que a
hipótese da tendência formativa traz, implicadas, para a concepção da consciência e
identidade na teoria rogeriana.
No capítulo de seu livro de 1980 (Rogers, 1983a, cap. III) em que expõe a
hipótese da tendência formativa, Rogers, ao falar de sua concepção de consciência e da
função que esta representa na evolução da espécie e no desenvolvimento do indivíduo,
inicialmente apresenta sua posição em termos bastante semelhantes ao que já afirmara
em fases anteriores de sua obra. Compreende assim a consciência como uma recente
aquisição da evolução, representando uma pequena, mas muito importante, parte do
processo. Descrevendo a auto-consciência, na imagem que utiliza, como o topo
iluminado de uma vasta pirâmide, a qual representa o fluxo da vida que se processa tanto
a níveis conscientes como inconscientes da vivência organísmica, Rogers afirma que o
aumento da consciência de si, isto é, dos estímulos internos e externos que se processam
no organismo, possibilita uma escolha livre de introjeções e mais afinada ao fluxo
evolutivo. Ao final destas afirmações, apresenta a situação de uma pessoa que tornou sua
consciência congruente ao que realmente ocorre na vivência organísmica, numa
descrição condizente à sua proposição anterior do ideal de pessoa de vida plena, salvo
pela substituição da expressão tendência atualizante pelo conceito mais amplo, agora
proposto, de tendência formativa:
O importante é que quando uma pessoa está funcionando plenamente, não há barreiras,
inibições, que impeçam a vivência integral do que quer que esteja presente no
organismo. Esta pessoa está se movimentando em direção à inteireza, à integração, à
vida unificada. A consciência está participando dessa tendência formativa mais ampla e
criativa. (p. 47)
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poderíamos concluir, como muitos rogerianos parecem fazer, que a hipótese da tendência
formativa pouco mais trouxe para a teoria que uma ampliação do contexto em que esta se
insere. A motivação e o desenvolvimento humanos seriam agora entendidos como
associados a um processo isomórfico da evolução natural e universal mais ampla, da
qual, entretanto, continuaríamos mantidos distintos e apartados dentro dos limites de
nossas potencialidades e identidade como organismos espaço-temporalmente limitados,
cujas possibilidades experienciais conseqüentes, inclusive, representariam os limites
máximos para a expansão da consciência, ou seja, a vivência integral do que quer que
esteja presente no organismo. Rogers, porém, desta vez não pára neste extremo do
contínuo que sua teoria anteriormente traçara e dá um passo além, admitindo novas
possibilidades expansivas para a consciência e a identidade, abertas pela vivência de
estados alterados e ampliados de consciência conforme revelado pelos estudos de
renomados psicólogos transpessoais, como John Lilly e o casal Grof:
Pesquisadores como Grof e Grof (1977) e Lilly (1973) acreditam que as pessoas são
capazes de ultrapassar o nível comum de consciência. Seus estudos parecem revelar que
em estados alterados de consciência as pessoas entram em contato com o fluxo da
evolução e apreendem seu significado. Este contato é vivenciado como um movimento
que os aproxima de uma experiência de transcendente unidade. É como se o eu se
dissolvesse numa região de valores superiores, especialmente de beleza, harmonia e
amor. A pessoa sente como se ela e o cosmos fossem um só. A realização obstinada de
pesquisas parece que vem confirmando as experiências de união dos místicos com o
universo.
Minha experiência mais recente, especialmente com grupos intensivos, tem confirmado
esta concepção. (p. 47)
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Vemos assim a consciência abandonando as fronteiras da experiência organísmica usual
e atingindo uma região de valores superiores onde, se algum campo fenomenal ainda
persiste, não se limita mais ao campo experiencial restrito às experiências emocionais,
cognitivas e sensoriais do aparato orgânico, estando agora ampliado à uma nova região
da realidade, inacessível e transcendente às nossas habilidades conscienciais usuais. Ora,
qualquer consciência que ultrapasse as possibilidades cognitivas e perceptivas do
organismo, que ultrapasse a simbolização da experiência sensorial e visceral no aqui-
agora imediato e sempre mutante, não encontra respaldo no campo teórico da Psicologia
Humanista. Como o modelo humanista, com toda ênfase na experiência organísmica
como fonte e limite máximo das possibilidades da consciência, poderá incluir a
possibilidade de uma consciência que perscruta o sentido evolucionário do mais
profundo background cósmico e abrange, em sua unidade inclusiva, o todo do universo,
conscientizado desde uma perspectiva que se coloca para além do tempo, do espaço e de
uma identidade organísmica, histórica e temporal? A própria noção de eu, não mais
limitada pela totalidade das experiências de um organismo funcionando plenamente,
parece agora dissolver-se para, entretanto, reencontrar-se num nível de identidade muito
maior e que, por ser ilimitado, inclui em seu campo, com um sentido de unidade
indissolúvel, o cosmos inteiro! Como, mais uma vez, o modelo humanista, com toda sua
ênfase na identidade organísmica pessoal, poderá incluir um nível de identificação e
fusão com o todo universal? Isto só pode ser feito no contexto de uma teoria de
personalidade que adote um modelo transpessoal. Abandonamos assim, definitivamente,
o modelo humanista e rogeriano clássico sobre consciência, identidade e possibilidades
para o desenvolvimento sadio e adentramos o terreno conceitual das teorias transpessoais
sobre as possibilidades últimas da consciência e da identidade humanas.
No modelo transpessoal de pessoa, conforme síntese elaborada, com muita propriedade,
por Walsh & Vaughan (1980, 1991), à consciência são atribuídas possibilidades
ilimitadas, sempre potencialmente presentes e disponíveis quando relaxado o caráter
defensivo de nosso estado de consciência habitual. Ora, não será difícil reconhecer a
semelhança entre esta visão e a tradicional concepção da teoria rogeriana de que a
experiência total é disponível à uma consciência que troque uma atitude defensiva por
uma de abertura à experiência. A única diferença é que a teoria centrada na pessoa
anterior à reformulação agora examinada limitava a experiência total às possibilidades de
coleta de informação do organismo. Com as possibilidades transpessoais cósmicas e
transcendentes que Rogers agora reconhece para a consciência que vá além dos estados
habituais, sua teoria, ao menos neste tópico, tornou-se mais uma versão do ponto de vista
transpessoal, revelando-se análoga à síntese que Walsh e Vaughan elaboraram da visão
transpessoal de consciência. O mesmo se dá na questão da identidade. Se a identificação
saudável com o próprio self organísmico era descrita, na teoria anterior de Rogers, como
o limite último para o eu, vemô-lo agora falar de um eu
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