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Dossiê: Comunicação e estudos biográficos

A BIOGRAFIA POSTA À PROVA DA IDENTIDADE NARRATIVA

Biography put to the test of narrative identity

Biografía puesta a prueba de identidad narrativa

François Dosse 1
Tradução Margot Dravet 2

Resumo
O texto discute a história da biografia e sua relação com o conceito de identidade. Desde Plutarco e suas "Vidas
paralelas", passando pelas reflexões de Paul Ricoeur (sobre a mesmidade e ipseidade) e de Roland Barthes sobre
os biografemas. Conclui que o biógrafo não procura mais preencher lacunas a todo custo, mas está interessado
na pluralidade dos modos de apropriação, na diversidade de sua recepção e nos usos do ícone e em suas
flutuações ao longo do tempo.
Palavras-chave: Biografia. História. Identidade. Biógrafo.

Abstract
The text discusses the history of biography and its relationship with the concept of identity. From Plutarch and his
"Parallel Lives", passing through Paul Ricoeur's reflections (on sameness and ipseity) and Roland Barthes on
biographemes. It concludes that the biographer no longer seeks to fill gaps at all costs, but is interested in the
plurality of modes of appropriation, in the diversity of its reception and in the uses of the icon and in its fluctuations
over time.
Keywords: Biography. History. Identity. Biographer.

Resumen
El texto aborda la historia de la biografía y su relación con el concepto de identidad. Desde Plutarco y sus "Vidas
Paralelas", pasando por las reflexiones de Paul Ricoeur (sobre la mismidad y la ipseidad) y Roland Barthes sobre
los biografemas. Concluye que el biógrafo ya no busca llenar vacíos a toda costa, sino que está interesado en la
pluralidad de modos de apropiación, en la diversidad de su recepción y en los usos del icono y en sus fluctuaciones
en el tiempo.
Palabras-clave: Biografía. Historia. Identidad. Biógrafo.

1
Doutor: IUFM de Créteil. Paris XII, Paris. França.
2
Bolsista do CNPq. Mestre em Psicologia Clínica e Cultura (PPG-PsiCC), da Universidade de Brasília - UnB. Brasília, Brasil.
[email protected] | https://orcid.org/0000-0002-3219-2217

Artigo submetido em: fevereiro/2022. Aprovado em: outubro/2022


Esferas, ano 12, vol. 3, nº 25, setembro-dezembro de 2022
ISSN 2446-6190
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Dossiê: Comunicação e estudos biográficos

Introdução

Hoje, aquilo que se expressa com a nova paixão geográfica contemporânea, não é a
figura do mesmo, a da Historia magistra vitae, do culto da vida exemplar, mas uma nova
preocupação com o estudo da singularidade e uma atenção particular aos fenômenos
emergentes, que são considerados objetos interessantes de serem pensados pela sua
complexidade, e pela impossibilidade de reduzi-los a esquemas mecânicos. Debaixo do
mesmo vocábulo, que remete ao “bios” enquanto vida no sentido biológico, mas também
significando uma maneira de viver, o gênero biográfico encarnou exigências diferentes de
acordo com os momentos históricos. Manifestamente ligado à necessidade de construir sua
identidade no tempo e no espaço, o gênero biográfico acompanhou as evoluções de uma
sociedade que concedeu um espaço crescente às lógicas singulares dos indivíduos. À partida,
a pessoa apagava-se por trás do personagem, o retrato se diluía por trás do modelo unitário
concebido para ser imitado e provocar identificação. Lição de vida, Historia magistra vitae
representava uma fonte de inspiração para a própria vida do leitor pelo caráter exemplar do
personagem erigido em herói ou em santo. O biógrafo deixava de aparecer para dar lugar a
seu personagem em um simulacro de realidade que deveria ganhar, por meio da ilusão criada,
força de convicção. A biografia funciona, então, sob o regime da mesmidade, modelo levado
ao seu paroxismo no século XIX por Taine, de acordo com uma leitura científica da identidade
pessoal. Taine se dá por ambição acessar às “regras da vegetação humana”. O biógrafo é,
então, equivalente ao zoologista, ou ao botanista, que elabora suas classificações entre
espécies em função dos retratos psicológicos que ele identifica.

DOSSE, François. A biografia posta à prova da identidade narrativa.


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Essa busca identitária não desapareceu, ela se fragmentou em uma miríade de


“biografemas” que não precisam mais estar vinculados por um ajuste fino. Ao contrário, a
pluralidade é requerida, pressuposta no biografado, atravessado por tensões contraditórias,
que lhe dão uma identidade na maioria das vezes paradoxal. Essa pluralidade também reside
no próprio método do biógrafo impelido a escrever biografias “em coros” (coral), como os
denomina Sabina Loriga, restituindo os fenômenos de interação, o imbricamento das vidas,
assim como a aplicação do biógrafo na sua evocação do outro. A identidade biográfica não é
mais considerada como petrificada no modo de uma estátua, mas sempre entregue a
mutações. Ela não pode ser reduzida à simples transcrição das impressões digitais, e como
afirma Carlo Ginzburg, tal abordagem vem de um ponto de vista estritamente policial. A
identidade biográfica encontra-se confrontada ao atravessamento do tempo, e sofre nesse
percurso múltiplas alterações que suscitam um incessante mover das linhas de acordo com
ritmos não-lineares, a partir de quebras temporais, de fenômenos posteriores e de um futuro do
passado que ultrapassa os limites biológicos da finitude da existência.

I – A identidade entre árvores e rizomas

1. O modelo da mesmidade

O modelo que serve de padrão para toda essa história literária e oferece os meios de se
estabelecer uma relação entre a vida do autor e sua obra é essencialmente inspirado nos
retratos literários de Sainte-Beuve, que fez da história de vida a parte essencial do trabalho do
crítico literário: “Eu posso apreciar uma obra, mas me é difícil julgá-la, independente do

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conhecimento do homem em si” (SAINTE-BEUVE, 1862). A pintura de retratos psicológicos é a


entrada privilegiada por Sainte-Beuve na literatura, ao menos entre 1829 e 1849. Seu modelo
nessa matéria, é, como para todos os retratistas, Plutarco: “Mantenhamos comércio com esses
personagens, peçamos-lhes pensamentos elevados, admiremo-los pelos seus atos heroicos e
desinteressados, como aqueles grandes caráteres de Plutarco, que ainda estudamos e
admiramos pelo que são.” (SAINTE-BEUVE, 1960, p. 1135). A galeria de retratos de Sainte-
Beuve detém-se em glorificar os heróis e heroínas para que deles se possa compartilhar as
qualidades morais: “Há muito tempo, todos os retratos que escrevo não passam para mim de
um pretexto para pequenos ensaios morais, uma sucessão de capítulos cuja etiqueta não
prescreve a finalidade.” (SAINTE-BEUVE, 1973, p. 246). É o caso, por exemplo, entre muitos
outros, de madame Roland, apresentada como a musa do grupo político que anima com seu
marido, e que é apresentada como: “o gênio na sua força, sua pureza e sua graça, a musa
brilhante e severa em toda santidade do martírio” (Idem, p. 1136). Através desse personagem,
toda sua geração política, de que Sainte-Beuve pretende dar conta, percebe em madame
Roland a quintessência daqueles que quiseram 1789, e que 1789 não cansou, nem satisfez
verdadeiramente. Ele fez uso de suas Memórias e sua correspondência para restituir os
combates, simpatias e antipatias, reconfigurando seu percurso de imersão na febre
revolucionária até o golpe diante do horror que lhe inspiram os massacres de setembro:
“Madame Roland e seus amigos, a partir desses dias fúnebres, entregam-se abertamente, de
cabeça erguida, do lado da resistência.” (Idem, p. 1149). Sainte-Beuve partilha do ponto de
vista de Vauvenargues, segundo o qual “os homens nascem sinceros e morrem embusteiros”,
ou seja, a ideia segundo a qual a sociedade suscita um processo de degradação, de
degenerescência, ao qual apenas alguns casos excepcionais conseguem não sucumbir. É o

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caso de gênios cujas qualidades são tais que não podem servir de modelo porquanto escapam
ao destino comum. A função do biógrafo consiste, então, em exaltar tais casos singulares. As
mulheres que não pensem poderem se identificar com madame Roland para imaginar sair de
uma condição de discriminação social, pois “as mulheres como Madame Roland sempre
saberão conquistar seu espaço, mas sempre serão exceção... o gênio que se fazia sentir e
muitas vezes se impunha não pertencia senão a ela, e não poderia, sem causar estranha
impressão, servir para outras.” (Idem, p. 1158). A partir da metade do século, os retratos cedem
espaço a biografias concebidas como um estágio preliminar de toda perspectiva científica no
acesso à literatura: “Só me resta um prazer, analiso, herborizo, sou um naturalista dos espíritos.”
(SAINTE-BEUVE, 1973, p. 25). Esse trabalho de tecelagem visa, portanto, religar a escrita
literária a elementos biográficos, com um contexto preciso para favorecer o seu sentido: cada
obra de um autor visto, examinado dessa forma, no seu lugar, após tê-lo colocado no seu
contexto e cercado de todas as circunstâncias que o viram nascer, adquire todo seu sentido, -
- seu senso histórico, seu senso literário, -- retoma seu justo grau de originalidade, de novidade
ou de imitação.” (SAINTE-BEUVE, 1865, p. 23).
Outra fonte de inspiração dessas notas biográficas literárias e, portanto, da “vidobra” é
a psicologia tal como a definiu o historiador Hippolyte Taine. Ele pretende restituir “as regras da
vegetação humana” (TAINE, 1863, p. XLIII). De forma muito determinista de acordo com o
modelo das ciências naturais. Em seu prefácio ao livro sobre La Fontaine et ses Fables ele
assimila a criação de um poema com um fenômeno bioquímico: “Podemos considerar o homem
como um animal de espécie superior, que produz filosofias e poemas mais ou menos como os
bichos da seda fazem seus casulos, e como as abelhas fazem suas colmeias.” (TAINE, 1987,
p. 35). O biógrafo é, antes de tudo, de acordo com Taine, um observador à maneira do

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zoologista e do botanista, que classifica em um herbário seus retratos psicológicos. Taine aspira
a “adivinhar a verdadeira história, a das almas, a profunda alteração de que sofrem os corações
e os espíritos de acordo com as mudanças do meio físico ou moral no qual estão mergulhados.”
(TAINE, 1909, p. 6). Taine pratica a abordagem biográfica à maneira como a medicina percebe
a dissecação dos corpos, em busca de partículas significantes do funcionamento da psique
humana em sua singularidade:

Acabo de reler Hugo, Vigny Lamartine, Musset, Gautier, Sainte-Beuve, como tipos
da plêiade poética de 1830. Como todos eles se enganaram! Que falsa ideia têm
do homem e da vida!... Como a educação científica e histórica muda o ponto de
vista! Material e moralmente, sou um átomo em um infinito de extensão e de tempo,
um broto em um baobá, uma ponta florida em um coral prodigioso que ocupa um
oceano inteiro. (TAINE, 1909, p. 34-35).

Se Taine imagina a partícula individual como parte de uma totalidade, a maneira de dar
conta dela é partir daquilo que é sua singularidade a partir desses sinais minúsculos que
afloram da dissecação, dos fragmentos conectados uns aos outros. Ao mesmo tempo em que
é crítico com relação aos usos que se faz das informações anedóticas, Taine “insistia na
importância conceitual de todas essas pequenezas individuais desdenhadas por Hegel”
(LORIGA, 1996, p. 225). Para Taine, a chave da obra reside em sua exterioridade, no meio, no
momento, na raça. Seu determinismo é tal que Sainte-Beuve se distanciará de suas teses,
reafirmando o caráter artístico do gênero e, sobretudo, uma certa liberdade que não pode ser
totalmente reduzida em feixes de determinações estritas: “Para o homem, sem dúvida, não será
possível fazer exatamente como para os animais e para as plantas; o homem moral é mais
complexo; ele possui o que chamamos liberdade e que, em todo caso, supõe uma grande

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mobilidade de combinações possíveis.” (SAINTE-BEUVE, 1865, p. 16-17). A posteridade, no


entanto, ficará com suas posições mais causalistas, e a publicação em 1954 de escritos
póstumos de Proust sob o título Contre Sainte-Beuve contribuirá fortemente para o reforço dessa
imagem mecanicista.
A biografia é como a exposição das vias de realização de acordo com uma teleologia
que faz do escritor um indivíduo já dotado, desde o berço, de todas as qualidades requeridas
para tornar-se um criador excepcional. Contenta-se em cumprir um destino que o espera. A
nota biográfica transforma-se em lição de moral, em verdadeira mensagem ética, segundo a
concepção expressa por Sainte-Beuve: “O estudo literário me conduz... naturalmente ao estudo
moral.” (SAINTE-BEUVE, 1862). Além da sua função pedagógica de ferramenta fácil de
manusear e utilizar para a avaliação dos conhecimentos dos alunos, contribuindo para o
exercício de uma ginástica intelectual no uso das interações entre vidas e obras dos escritores,
a nota biográfica deve também contribuir para exemplificar o gênio nacional em torno de um
certo número de figuras. A história literária desempenha nesse plano o papel de complemento
desse breviário nacional que é o Lavisse 3 em história. Os heróis da criação, santificados junto
aos heróis da nação, devem suscitar identificação e imitação, contribuindo para forjar as bases
de um consenso republicano forte e suas vocações. Assim, Molière é “de raça gaulesa pelo
jeito do seu espírito, pelo tom de sua zombaria... seus ancestrais não são nem os gregos, nem
os romanos, nem os espanhóis e seu gênio é de tradição puramente francesa.” (DOUMIC, 1910,
p. 324). Uma verdadeira transferência de sacralidade se cristaliza na sociedade laica em torno
desses novos homens ilustres, que fizeram a literatura francesa com igual talento e senso de

3
NdT: Ernest Lavisse (1842-1922) foi um historiador e professor. Seu Manual de História foi estudado por gerações de estudantes franceses,
desde 1884 até os anos 1950.

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sacrifício quanto tiveram aqueles que, do lado da história, dirigiram o país ou sucumbiram em
suas batalhas. O panteão republicano imaginário, no sentido usado por Malraux para falar de
Museu imaginário, recupera as grandes figuras do Antigo Regime e especialmente o famoso
trio das glórias do teatro, que foram Corneille, Racine e Molière. Junto com essa preocupação
patriota que anima a escritura historiadora 4 tanto quanto a abordagem da literatura, uma
atenção científica guia o método escolhido nas duas disciplinas que seguem a escola das
ciências naturais, das ciências experimentais em seu apogeu no final do século XIX. Semelhante
evolucionismo inspira Jules Michelet que, fascinado pelos trabalhos de Geoffroy Saint-Hilaire e
Sainte-Beuve ou Taine, se apropria da metáfora botânica: “tal árvore, tal fruto”. Uma psicologia
dos humores forma um dos recursos essenciais das distinções que se estabelecem entre os
tipos de caráteres diferentes capazes de restituir os mistérios do gênio criador.

2. A proliferação horizontal do rizoma

A identidade é então concebida como plural, múltipla, proliferante à maneira do rizoma,


segundo agenciamentos variáveis, o que fez Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmarem:
“Escrevemos o Anti-Édipo juntos. Como cada um de nós eram vários, já era muita gente”
(DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 7). Ao paradigma da identidade como uma árvore enraizada e
imutável, a progressão programada e contínua, que dá sempre os mesmos frutos, Deleuze e
Guattari opõem o paradigma do rizoma, dos bulbos, dos tubérculos cuja progressão é
imprevisível e horizontal. Sua visão pode ser sugestiva no plano biográfico, pois ela dá conta

4
Cf. Christian Delacroix, François Dosse, Patrick Garcia, Les courants historiques en France 19e-20e siècle, Armand Colin, 1999.

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de algumas implicações metodológicas que confortam a pluralização identitária. Qualquer


ponto de um rizoma pode estar conectado com qualquer outro, o que induz uma prevalência
dos princípios de heterogeneidade e de conexão. A primazia concedida à multiplicidade supõe
o abandono do princípio unitário em proveito da diversidade das grandezas, à maneira do
esquema das Cités de Luc Boltanski e Laurent Thévenot. Abre para um plano não hierárquico,
sem profundeza, de pura imanência em que se desenvolvem rupturas a-significantes. O rizoma
podendo ser rompido, cortado em qualquer lugar, apenas dá lugar a linhas de segmentação e
a linhas de fuga de acordo com movimentos contraditórios de desterritorialização e
reterritorialização:

Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto


qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços da
mesma natureza, implica em regimes de signo muito diferentes e mesmo a estados
de não-signo. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. Não é
o Uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três, quatro, ou
cinco... ele constitui multiplicidades lineares de n dimensões, sem sujeito nem
objeto. (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 61).

Tal concepção plural leva Deleuze a definir a imanência como “a vida”, em seu último
texto publicado antes de sua morte: “Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada
mais” (DELEUZE, 2003, p. 360). A vida assim concebida tampouco é individuada, mas sim pura
virtualidade, puro evento. Ela dá lugar àquilo que Deleuze qualifica como uma “Hecceidade”,
uma singularidade sem sujeito que não é mais individuação.

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3. A identidade narrativa entre Idem e Ipse

Diante desse impasse feito pelos processos de individualização totalmente


desconstruídos, e para evitar a aporia inversa do retrato de cera petrificado do cientificismo,
Paul Ricoeur apresentou a ideia de uma centralidade da identidade narrativa que responde à
pergunta feita por Hannah Arendt sobre o “Quem?” da ação, o que resulta em:

(...) contar a história de uma vida. A história contada diz o quem da ação. A
identidade do quem é, portanto, ela mesma apenas uma identidade narrativa. Sem
o recurso da narração, o problema da identidade pessoal é fadado a uma
antinomia sem solução: ou se coloca um sujeito idêntico a ele mesmo na
diversidade dos seus estados, ou defendemos, na seara de Hume e de Nietzsche,
que o sujeito idêntico é apenas uma ilusão substancialista. (RICOEUR, 1991, p.
442).

Ricoeur sugere ultrapassar a alternativa entre dissolução da identidade e manutenção


de uma identidade fixa, ao distinguir a identidade entendida como o mesmo (Idem) e a
identidade entendida no sentido de si mesmo (Ipse). É esta segunda forma de identidade que
confronta o sujeito ao tempo, a mudança, as mutações constitutivas na relação com o outro. A
dialetização dessas duas dimensões, a ipseidade e a mesmidade, e somente ela, permite, pela
mediação da identidade narrativa, restituir uma coesão da vida que incessantemente se faz e
se desfaz: “Nossa tese constante será que a identidade no sentido de Ipse não implica
nenhuma asserção concernente a um pretenso núcleo não cambiável da personalidade.”
(RICOEUR, 1990, p. 13). A emergência de um si, que não é mais um eu devido às alterações
provenientes de sua relação com o outro e do atravessamento do tempo, oferece um meio de
sair da “ilusão biográfica”, denunciada pela sociologia bourdieusiana.
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Com seu conceito de “si”, do sujeito que é resultante da ação do eu e reciprocamente,


Paul Ricoeur oferece um meio de pensar em conjunto a tensão, o dilema de todo biógrafo entre
a reprodução de um caráter intangível do sujeito biografado e as mudanças que ele
experimenta ao longo de toda sua existência. Em O si-mesmo como um outro (1990), Ricoeur
retoma uma questão central, que ele tinha deixado em suspenso ao fim de Tempo e narrativa:
a da identidade narrativa. É essa “sobra” que Ricoeur retoma para confrontá-la à questão do
“homem capaz”, do “eu posso”. Essa travessia do pronome reflexivo – o si – traduz bem a
concepção de um cogito fragmentado que torna obsoleta a tentativa tradicional de tomada
interiorizada do “eu”. O sujeito enquanto pessoa não deixa de estar aí, mas se torna ponto
culminante de uma demonstração iniciada em terceira pessoa e de respostas à questão –
quem? – nos domínios do discurso da narrativa e da ação. A pessoa aparece, então, ao fim de
uma operação de clivagem dos modos de inscrição da identidade. Ricoeur distingue de fato,
ao longo de sua demonstração, a mesmidade da ipseidade. A mesmidade evoca o caráter do
sujeito naquilo que ele tem de imutável, à maneira de suas impressões digitais, enquanto a
ipseidade remete à temporalidade, à promessa, à vontade de uma identidade mantida a
despeito da mudança: é a identidade em sua travessia das provações do tempo e do mal.
“Nossa tese constante será de que a identidade no sentido de ipse não implica em nenhuma
afirmação concernente a um pretendido núcleo não cambiante da personalidade” (Idem, p. 13).
A ipseidade não se constrói, portanto, em uma relação analógica de exterioridade com o outro,
mas em uma implicação, um verdadeiro emaranhamento com o outro. É o sentido dado ao título
do livro de um si mesmo “enquanto... outro” (Idem, p. 14).
A hermenêutica do si encontra-se na encruzilhada entre uma dupla dialética do idem e
do ipse e entre a ipseidade e a alteridade interior. O percurso de si aparece então como aquele

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de uma responsabilização, de um engajamento que se encarrega da travessia da experiência


como modo de vir a si mesmo. O si é a esse respeito a dimensão refletida de todos os pronomes
pessoais. Não é nem o eu, nem o tu, nem o ele e ao mesmo tempo engloba-os todos, como sua
forma de secundariedade. A outra vantagem da noção de si é o impossível acesso imediato a
um conhecimento que só pode ser indireto. Ela permite evitar a alternativa destruidora entre um
ego todo poderoso, divinizado, e um sujeito humilhado, dissolvido. Se Ricoeur opõe à potência
absoluta da consciência as múltiplas voltas necessárias, os descentramentos indispensáveis
para apreendê-la, ele salienta frente às filosofias da suspeita, a noção maior do si, aquela da
atestação, que ele define em 1988 em Cerisy como uma maneira de se situar entre
fenomenologia e ontologia (RICOEUR, 1991, p. 381-403).
Essa atestação de si como um ser atuante e passivo que se deixa expressar pelo viés do
testemunho (RICOEUR, 1972, p. 35-61) “continua sendo o último recurso contra qualquer
suspeita” (RICOEUR, 1990, p. 35), e, nesse sentido, a hermenêutica do si, segundo Ricoeur,
pode “pretender manter-se a igual distância do cogito exaltado por Descartes e do cogito caído,
segundo Nietzsche” (Idem, p. 35). Ricoeur realiza o luto de toda posição fundadora do sujeito
e desloca o problema: “é um novo tipo de certeza que se trata de definir. Aqui intervém a noção
de atestação.” (GREISCH, 1995, p. 311). Ao situar essa noção ao centro de sua demonstração
do que é a ipseidade, Ricoeur pretende explicar que não se pode provar nada em definitivo
nesta ordem de coisas. Topa-se inexoravelmente contra a impossível prova segundo a qual a
identidade seria encontrada em determinado modo de ser. Ao contrário, o que pode ser
verificado encontra-se no ato de confiança que o indivíduo investe no agir tanto com relação a
si mesmo, quanto com relação ao outro. A atestação implica em um momento de crença que
escapa ao dilema entre doxa e épistémè: “Crença quer dizer aqui mais créance do que opinião.

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Compreende-se então o parentesco que existe entre a atestação e o testemunho, Bezeugung


e Zeugnis, mesmo que não se confundam” (Idem, p. 311). É essa créance como forma de
confiança, de fiança, que impede o cogito ferido de cair enquanto cogito estilhaçado pelo efeito
da suspeita. O si se define então, ao fim do percurso, como um engajamento ontológico da
atestação, sempre em posição de terra prometida, de horizonte de expectativa: “A atestação é
a certeza – a créance e a fiança – de existir no modo da ipseidade” (RICOEUR, 1990, p.351).
Essa distinção entre “mesmidade” e “ipseidade” pode ser o meio de sair das aporias da
utopia biográfica validando a pertinência do gênero, e evitando as possíveis armadilhas de sua
prática. Ao recusar tanto o encerramento em uma forma estabelecida de uma vez por todas por
um caráter individual, que se desenvolvesse de maneira puramente linear de acordo com sua
lógica endógena própria, que outra armadilha que consistisse em reduzir a pessoa a simples
agente joguete de estruturas exteriores, o distinguo “mesmidade” / “ipseidade” permite pensar
o conjunto daquilo que perdura e daquilo que muda da experiência viva, de sua expressão e
da compreensão que se pode ter.

II – A biografia como modelo identificatório

1. A Historia Magistra

A biografia é um gênero antigo que se difundiu em torno da noção de bioi (bios), que
não remete somente ao fato de redesenhar “a vida”, mas uma “maneira de viver”. Na
antiguidade grega, essa noção é da ordem de um saber filosófico e faz referência, como em
Platão no Górgias, à moralidade. Esse pertencimento do gênero à esfera do julgamento a partir

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do qual se avalia tal ou tal atitude com a vontade de transmitir valores edificantes para as
gerações por vir é um traço fundamental que se encontra ao longo de todo o percurso histórico
do gênero biográfico. Durante muito tempo, esse modo de escrita tem sua marca singular nisto:
“A distinção entre biografia e história é tão antiga quanto a historiografia grega.” (MOMIGLIANO,
1983, p. 108).
O grande mestre da biografia antiga, Plutarco, nasceu por volta de 45 d.C. no reino do
imperador Cláudio. É de acordo com o modelo dos seus escritos que o gênero biográfico vai
se cristalizar como gênero específico. O destino de Plutarco é espetacular, como analisa
François Hartog em sua apresentação da republicação de Vidas paralelas 5 (2004). Deve-se ao
período do renascimento a redescoberta e o verdadeiro gosto por Plutarco, com a edição
completa da sua obra. Os dirigentes dessa época o têm como preceptor, guia em matéria de
conduta no domínio das responsabilidades políticas. O historiógrafo do século XVI, La
Popelinière, vê em Plutarco uma convivência obrigatória para todos os príncipes de seu tempo 6.
Ele é lido como um contemporâneo pelos homens do Renascimento, um companheiro e um
exemplo a ser seguido. Montaigne vai confessar: “Plutarco é meu homem.” (MONTAIGNE, 1969,
p. 26). No século XVII, o poder monárquico em seu esplendor e autocelebração nutre-se de
Plutarco e, quando o dramaturgo Racine lê algo para Louis XIV no seu adoecimento, ele escolhe
as Vidas paralelas de Plutarco. No século XVIII ainda, Rousseau também o tem como leitura
predileta: “Plutarco, sobretudo, tornou-se minha leitura preferida. O prazer que eu tinha em relê-
lo incessantemente me curava um pouco dos romances.” (ROUSSEAU, 1959, p. 9). A paixão
por Plutarco vai até a identificação com seus heróis e se transforma em verdadeiro transporte

5
Cf. François Hartog, « Plutarque entre les anciens et les modernes », dans Plutarque, Vies parallèles, Quarto-Gallimard, 2001, p. 9-49.
6
Cf. La Popelinière, L’Histoire des histoires : l’idée de l’histoire accomplie, (1599), Fayard, 1989, p. 294.

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afetivo, a ponto de Vauvenargues (1857, p. 193) escrever para Mirabeau: “Eu chorava de alegria
enquanto lia essas Vidas: não se passava uma noite sem que eu falasse com Alcibíades,
Agésilas e outros.” Mais tarde, Napoleão também fez dele seu modelo e levou em todo périplo
de suas grandes aventuras as Vidas paralelas. Ele insiste em comparar seu próprio destino com
o dos heróis de Plutarco: “Começa-se com Anibal (a batalha de Itália), segue-se Alexandre (o
Egito), logo César se impõe, mas também Solon e Péricles, e tudo termina com Temístocles.”
(HARTOG, 2001, p. 35). A influência da obra de Plutarco vai crescendo até a Restauração. Até
então, como apontou o biógrafo Jean Sirinelli (2000, p. 7), pode-se encontrar suas Vidas “em
todas as casas nobres e burguesas”. No entanto, a partir da Restauração o brilho da estrela
biográfica enfraquece por muito tempo e o gênero decai no descrédito de uma forma de escrita
entregue aos polígrafos sem talento nem competência.
Como um bom conhecedor da Grécia, onde passou seus primeiros anos de formação,
Plutarco concebeu suas biografias como casais binários, confrontando os méritos e defeitos de
um herói grego e romano. Platonista, não aprecia muito a história e não se atreve a escrevê-la,
dissociando de uma vez sua escrita biográfica do gênero histórico: “Não escrevemos Histórias,
mas Vidas” ele adverte no seu prefácio à “Vida de Alexandre” (PLUTARCO, 1995, p. 39). Ele
explicita logo em que medida seu objeto de curiosidade difere do gênero histórico e define sua
ambição ao dizer: “inclusive, nem sempre as ações as mais estonteantes mostram da melhor
forma a virtude ou o vício: um pequeno feito, uma palavra, uma brincadeira muitas vezes
revelam melhor um caráter do que os combates sanguinolentos, as batalhas organizadas ou os
cercos os mais importantes” (Idem, 39). O que está no coração do projeto de Plutarco é fornecer
ao leitor os traços salientes de um caráter psicológico com suas ambivalências e
complexidades, inaugurando assim o gênero de vida exemplar com visada moral: “Ao situar-se

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em uma dupla referência a Aristóteles e à pintura, Plutarco reivindica para o biógrafo o direito
de estilizar a realidade da experiência vivida para poder fazer testemunhos de valor e alcance
geral.” (REVEL, 2002, p. 471-472). Essa vocação universalizante da biografia é ser, de acordo
com a caracterização de Cícero, uma mestra para a vida, uma Magistra Vitae. A longa
posteridade da obra de Plutarco deve-se essencialmente ao fato de que é nesse modelo que o
gênero vai se impor durante muito tempo, desde a Antiguidade, desde a ruptura no regime de
historicidade que acontece ao longo do século XVIII. Os dois pressupostos desse discurso são
aqueles da continuidade e contiguidade temporais que articulam o presente ao passado como
forma de reprodução do mesmo, tal como analisou Reinhart Koselleck 7 (1990).
Para Plutarco, trata-se de perpetuar pelo exemplum um certo número de virtudes morais.
O comparatismo serve-lhe de suporte para demonstração pela qual ele apresenta traços de
caráter e tendências psicológicas semelhantes, para além da diferença de período entre a
Grécia e Roma. O “bios”, ao mesmo tempo “vida” e “modo de vida” é para ele o suporte
necessário para assentar um certo número de virtudes morais indispensáveis aos dirigentes
políticos e militares. O herói de Plutarco é uma personalidade forte, animado por um ideal ao
qual se dedica. Definido como um ser fora do padrão, marcado pela desmedida, a Ubris, o
herói de Plutarco é por definição sujeito às tentações dos excessos. Deve, portanto, redobrar a
vigilância para evitar cair nas piores armadilhas. Trata-se de uma lição de moral que se quer
sugestiva para qualquer leitor e Plutarco se dirige primeiro aos seus contemporâneos e seus
sucessores. Além da factualidade e da singularidade dos percursos traçados, é a encarnação

7
Cf. Reinhart Koselleck, « Historia magistra vitae. De la dissolution du topos dans l’histoire moderne en mouvement », Le futur passé, (1979)
éd. EHESS, 1990, p. 37-62.

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de valores abstratos que Plutarco almeja, como bem notou o sociólogo Jean-Claude Passeron
(1981, p. 196):

As Vidas paralelas comparam apenas aparentemente César e Alexandre; colocar


em paralelo aquelas duas vidas é uma forma de arrazoar pela narrativa a questão
da escolha para a entrega de um prêmio, qual seja, a questão de saber quem entre
César ou Alexandre encarna melhor a figura do grande guerreiro, do grande
conquistador.

O horizonte da demonstração é aquele de uma filosofia da ação. A narrativa de vida é


uma matéria prima que convida a filosofar sobre as forças e fragilidades dos homens
confrontados a provações históricas, portanto ao trágico. Tal convite à filosofia é apenas um
primeiro estágio, pois a finalidade última é aquela da imitação do modelo virtuoso, e isso justifica
o retrato da virtude tanto quanto do vício para melhor apreciar as diferenças e melhor adquirir
as faculdades do discernimento: “Parece-me que seremos espectadores mais zelosos e
imitadores mais ardentes das melhores vidas se aquelas que foram más e objeto de lástima não
nos forem totalmente desconhecidas”. (PLUTARCO, 1995, p. 290).
As “vidas” escritas por Plutarco não são nem panegíricos, nem elogios. Pelo contrário, o
biógrafo utiliza-se do contraste entre vícios e virtudes para que melhor sobressaia a última
dimensão. Essa contradição pode atuar em um mesmo personagem. Um certo número de
paixões anima a construção de intriga de Plutarco, em primeiro lugar a paixão política. Todo um
jogo conflituoso se desencadeia em torno do poder de representação e, portanto, em torno da
imagem do herói. Ela é o teatro e o árbitro de uma verdadeira competição das ambições
políticas que podem resultar em glória, mas também na pior consequência, que à época, para
além da morte, consiste em cair no ostracismo. A questão decisiva com relação à opinião para

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tornar deslumbrantes as virtudes políticas levam o herói a se tornar não apenas psicólogo, mas
também pedagogo.

2. A hagiografia

A biografia aparecia desde a Antiguidade como um gênero à parte, distinto da história.


Assim também ocorre com a escrita da vida dos santos, a hagiografia. Esse gênero literário
privilegia as encarnações humanas do sagrado e tem por ambição torná-las exemplares para
o resto da humanidade. Enquanto gênero literário, seu regime de verdade permanece distinto
daquele que se espera do historiador. Longe do pacto de verdade que pressupõe a escrita
histórica, a vida dos santos ensina o leitor algo totalmente diferente de um fato atestado. Na
época medieval, a hagiografia é um gênero florescente. “Na Idade Média o gênero literário mais
amplamente difundido e o mais popular é a hagiografia, as ‘Vidas’ de santos”. (GOUREVITCH,
1983, p. 8). As hagiografias tomam de empréstimo aos evangelhos a tensão constante entre o
ser e o parecer. Trata-se menos de conhecer a vida autêntica de um indivíduo do que de buscar
a edificação do leitor. 8
Como nos ensinou Michel de Certeau, as hagiografias são mais propensas a fazer refletir
sobre a concepção de mundo veiculada pelo hagiógrafo do que sobre a vida efetiva do santo
de quem se está relatando a vida. São um concentrado de percepção, de relação com o mundo
de uma época, de uma consciência coletiva. O documento hagiográfico corresponde a uma
organização textual específica, a dos Acta sanctorum: “A combinação dos atos, dos lugares e
dos temas indica uma estrutura própria que se refere não essencialmente a ‘aquilo que

8
Cf. H. Delehaye, Les légendes hagiographiques, Société des Bollandistes, Bruxelles, 1955.

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aconteceu’ como faz a história, mas a ‘aquilo que é exemplar’” (CERTEAU, 1975, p. 275). A
narrativa de vida tem valor de testemunho de uma travessia experiencial, a da relação com
Deus daquele que foi canonizado como santo. A hagiografia corresponde a uma estrutura
particular na qual “a individualidade conta menos do que o personagem” (Idem, p. 281).
Diferente da biografia que desenvolve uma evolução no tempo das potencialidades do
indivíduo, a hagiografia postula que tudo está dado desde a origem. A hagiografia privilegia as
descrições espaciais de lugares sagrados para fincar a figura santa que é seu espírito protetor.
Ela se utiliza da narrativa somente como meio. Por outro lado, a biografia privilegia a narração,
o percurso de uma existência no tempo, e atribui à descrição de estados de alma, retratos e
balanço entre atos e obras apenas um papel secundário para animar a lógica narrativa
temporal. O desenvolvimento da história para o hagiógrafo não passa de epifania progressiva
de um estado inicial de vocação ou de eleição do santo de acordo com uma concepção
fundamentalmente teleológica. A vida deste último situa-se em uma temporalidade estática, a
da constância em ser o que é. A ponto de que “o fim repete o começo. Do santo adulto, retorna-
se à infância, em que já se percebe a efígie póstuma. O santo é aquele que não perde nada
daquilo que recebeu” (Idem, p. 282). O santo se diferencia, portanto, do herói, que é o teatro
de um conflito trágico que o atravessa até estremecê-lo e por vezes até fazê-lo transgredir as
leis divinas e as leis da humanidade. O santo é de uma vez, imutável, pronto a enfrentar todas
as provações sem nenhuma alteração.
Lembrando que a hagiografia é um gênero literário, Michel de Certeau considera que é
vão considerar tal corpus na perspectiva da sua veracidade histórica: “Seria submeter um
gênero literário à lei de outro – a historiografia – e desmantelar um tipo próprio de discurso para
ficar apenas com o que ele não é.” (Idem, p.275). As vidas de santo não se referem àquilo que

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aconteceu, mas àquilo que é exemplar no momento de sua escrita. Sua estrutura específica
visa uma eficácia prática. De acordo com Certeau, a vida de um santo deve ser vista como
documento sociológico, expressão de uma comunidade eclesial: “A esse respeito, ele tem
dupla função de decupagem. Ele distingue um tempo e um lugar do grupo.” (Idem, p. 277).
Desde os primeiros tempos dos livros canônicos, as hagiografias trazem à comunidade um
tempo festivo, situando-se do lado da diversão e do lazer. A hagiografia é fundamentalmente
um discurso das virtudes e institui uma prevalência da lógica dos lugares com relação às
marcações temporais marginalizadas e remetidas ao que é da ordem do imutável: “O hoje
litúrgico prevalece sobre um passado a ser narrado.” (Idem, p. 285). A vida de santo se
desenrola essencialmente como uma configuração de lugares sagrados: “O itinerário mesmo
da escrita conduz à visão do lugar: ler, é ir ver.” (Idem, p. 286). A intriga se desdobra entre um
ponto de partida e um retorno, um fora que conduz a um dentro, designando um não-lugar que
metaforiza a moral da hagiografia, “uma vontade de significar cujo discurso de lugar é um não-
lugar”. (Idem, p. 287).
O elemento da vida dos heróis antigos que se encontram no discurso hagiográfico é o
discurso das virtudes, porém em sua vertente maravilhosa, milagrosa, pois estas obedecem a
uma lógica que não é desse mundo. A hagiografia pressupõe o desaparecimento do santo e
uma construção singular dos testemunhos sobre sua vida, na intenção de mostrar que a lógica
mesma de sua existência sempre foi guiada pela preocupação em doar sua própria vida aos
outros. O caráter exemplar que prevalece tem como efeito congelar o tempo em um retrato: “A
vida se apaga em proveito de uma Figura”. (BOLLÈME, 1985, p. 35). Uma vez exposto, o retrato
torna-se “imitável” (JOLLES, 1972, p. 38). De imediato o santo é santo pelo olhar dos outros,

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daqueles que fabricam sua lenda dourada, logo dos leitores que nela vão buscar uma possível
identificação.

III – A biografia plural: a identidade fragmentada

1. Os biografemas

O retorno progressivo do sujeito ao longo dos anos 70 permite que Roland Barthes se
livre de seu escudo teórico que o impedia de dar livre curso ao seu prazer da escritura. Ele
decide fazer um corte radical no interior da tensão que o atravessava até então entre o homem
de ciência e o escritor, ao escolher dessa vez claramente o segundo personagem. Ele revisita
o sujeito pelo viés daquilo que ele chama, a partir de 1971, em Sade, Fourier, Loyola, de
“biografemas”. Esses detalhes que podem dizer muito sobre um indivíduo não deixam de nos
lembrar Marcel Schwob e suas Vidas imaginárias. O sujeito que está de volta para Barthes no
início dos anos 70 é um sujeito fragmentado, em migalhas, disperso, “um pouco como as cinzas
que se joga ao vento após a morte” (BARTHES, 1980, p. 14). Barthes, então, faz um voto: “Se
eu fosse escritor, e morto, como eu gostaria que minha vida fosse reduzida, pelos cuidados de
um biógrafo amistoso e desenvolto, a alguns detalhes, a alguns gostos, a algumas inflexões,
digamos: ‘biografemas’, cuja distinção e mobilidade poderia viajar afora qualquer destino”
(Idem).
O “biografema” se apresenta em uma relação forte com o desaparecimento, com a
morte; ele remete a uma forma de arte da memória, a um memento mori, a uma possível
evocação do outro que já não é. Barthes sugere uma leve evocação por um detalhe distanciador

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e revelador de uma singularidade: “É um hífen sem conexão... o biografema nunca é definidor.


Não entra em nenhuma definição. Portanto é um bom objeto. Diferentemente da imagem, ele
não adere, não é pegajoso, escorrega...” (GAILLARD, 1991, p. 102). Daí a multiplicação desses
biografemas para falar de Sade, Fourier ou Loyola ao evitar a armadilha da vetorização. Eles
remetiam à singularidade dos gostos e dos corpos dos indivíduos.
Após ter defendido “o prazer do texto” em 1973, Barthes dá mais um passo na direção
da subjetivação de seu modo de escrita ao tomar-se, ele mesmo, por objeto, em uma
autobiografia não linear, feita de coleta de informações parciais e esparsas que foge aos
cânones habituais do gênero. Ele a substitui por “biografemas” que se aplicam a ele mesmo no
modo do: “gosto, não gosto”. Se a forma se mantém fiel a uma certa desconstrução, o retorno
sobre si mesmo, a exposição dos seus afetos, de suas lembranças, a imagem de seus
próximos, revelam a que ponto o retorno do recalcado é espetacular: ele atinge de fato um autor
que tinha sido um dos mais aguerridos teóricos da não pertinência desse nível de análise.
Esses “biografemas” também traçam as linhas de fuga de uma escrita romanesca
secreta. A esse respeito Barthes nos informa, em outra ocasião, sobre o sentido que toda
empresa de ordem biográfica tem para ele: “Toda biografia é um romance que não ousa dizer
seu nome.” (BARTHES, 1971, p. 89). Quando em 1976 sua autobiografia Roland Barthes par
Roland Barthes é publicada, o escrevente dá lugar ao escritor. Por certo, o sujeito-Barthes se
expõe na terceira pessoa, na forma do “ele” que mantém uma distância entre o escritor e seu
objeto. A obra contém todos os lugares comuns, os topoï da arte biográfica. Eles tomam lugar
para serem desviados de sua função clássica: “A infância não é objeto de nenhuma narrativa,
pelo menos de nenhuma narrativa da qual seria objeto... o infante é, para Roland Barthes, um
inscribans, um não escrevente, é, portanto, tomado na imageria, esse túmulo do imaginário.”

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(GAILLARD, 1991, p. 89). A infância é, portanto, colocada fora do jogo por Barthes, no nível
daquilo que está em jogo na escritura. Ao contrário das narrativas biográficas nas quais, como
no Flaubert de Sartre, tudo é determinado nos primeiros anos de vida, a infância aqui é
fragmento sem ligação, e sobretudo nunca assume o estatuto de fundação de uma carreira de
escritura.
Como assinala Françoise Gaillard, o “eu por eu” de Roland Barthes não pode se assimilar
a um ensaio autobiográfico, mas a uma “biografia do eu (não confundir com ‘de mim’), e na
palavra “biografia” é preciso compreender novamente o vocabulário grego: “bios”, ou seja, não
o vivido, mas a vida naquilo que ela tem de mais orgânico: o corpo.” (Idem, p. 87) No entanto,
como ainda observa Françoise Gaillard, o mau objeto é a imagem conduzida pelas seduções
do imaginário: “Se a biografia é, para retomar aqui um termo barthesiano, uma ‘porcaria’, é
precisamente porque ela consagra o reino do mau imaginário, aquele que aprisiona o sujeito
nas imagens, aquele que ao trabalhar o imago, esquece que o eu é em perpétuo deslocamento,
em perpétua invenção.” (Idem, p. 95). A biografia só pode, portanto, falhar quanto a seu objeto,
já que seu objetivo é traçar um retrato, e é justamente dessa imagem fixa que o sujeito Barthes
foge, sem querer de forma alguma tornar-se cativo. Sua recusa da biografia “está relacionada
à recusa de qualquer imago.” (Idem, p. 97).
Entre as inovações editoriais, há uma radical, que é a coleção “L’un et l'autre", animada
pelo psicanalista Jean-Bertrand Pontalis, na Gallimard. Antigo diretor da Nouvelle Revue de
Psychanalyse até o fim dos anos 80, Pontalis decide pôr um fim à sua função de diretor da
revista e concebe um novo projeto: “Era de uma simplicidade espantosa. Tratava-se de

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relacionar um autor com seu herói, secreto ou não secreto.” 9. Essa coleção, como evoca o título,
L’un et l’autre, põe em cena a evocação pelo autor de um personagem que foi importante para
ele e o leitor se encontra, portanto, imediatamente dentro de uma experiência de
intersubjetividade: “Não é concebido como biografia no sentido clássico do termo, mas como
uma evocação subjetiva, totalmente pessoal de alguém.” 10. Tal concepção deve muito,
obviamente, à competência psicanalítica de Pontalis, pois a relação de um com o outro não
deixa de ter semelhanças com a relação analítica, até porque o outro não é tão somente um
outro identificado como pessoa, ele pode ser o outro enquanto inconsciente, estrangeiro íntimo
que habita a morada interior do autor. Dessa analogia com a cura analítica, não resulta de forma
alguma uma coleção de obras que teria a pretensão de oferecer uma série de psicanálises de
tal ou tal personagem, mas isso tem incidências evidentes sobre o modo de regime de verdade
que mistura o ficcional e o factual, à maneira como essas duas dimensões funcionam no
inconsciente:

Quando se está na ordem da evocação subjetiva, se está no ficcional, e tudo é


ficcional nesse âmbito. Inventa-se a vida sobretudo ao escrever e busca-se dar-
lhe, senão um sentido, em todo caso uma orientação. É isso que é incômodo em
uma biografia clássica pois na maioria das vezes, por definição, parte-se do ponto
de chegada, daquilo que a pessoa se tornou e dá-se uma finalidade a essa vida
particular em função do seu devir e do seu fim. 11

9
Jean-Bertrand Pontalis, entretien avec l’auteur.
10
Ibid.
11
Ibid.

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Ainda, a experiência analítica de Pontalis o preserva dessa ilusão retrospectiva própria à


maior parte das biografias e lhe permite insistir, ao contrário, na indeterminação própria àquilo
que foi o presente de um passado singular. Toda coleção dirigida por Jean-Bertrand Pontalis
revela a fecundidade do uso dos “biografemas” e do embaralhamento que ele supõe entre a
dimensão ficcional e a dimensão real.

2. A exceção normal

As insatisfações sentidas pelos historiadores frente às realizações biográficas muito


próximas de ideal-tipos ou conduzidas pela vontade prévia de uma demonstração de
modelização explicam o gosto pelas teses da micro-storia que preconizou uma abordagem
totalmente diferente. Mais do que partir do indivíduo médio ou exemplar de uma categoria
socioprofissional, a micro história na qual Carlo Ginzburg, Edoardo Grendi, Giovanni Levi, Carlo
Poni foram precursores, atém-se ao estudo de caso, o microcosmos, valorizando as situações-
limites de crise. Esses historiadores direcionam uma atenção renovada às estratégias
individuais, à interatividade, à complexidade dos desafios e ao caráter imbricado das
representações coletivas. Os casos de ruptura de que retraçaram a história não são vistos como
uma perseguição à marginalidade, ao reverso, ao recalcado, mas uma maneira rasa de revelar
a singularidade como entidade problemática definida por este oxímoro: “o excepcional normal.”
(GRENDI, 1972, p. 506-520). Com esse paradoxo erigido em método, Grendi considera que
uma boa maneira de apreender uma série de atitudes amplamente difundidas no tecido social
é acessá-la por meio de testemunhos que os apresenta como comportamentos de exceção.

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Privilegia-se, portanto, o estudo de casos-limites na medida em que esses, em realidade, já


integraram a norma.
O estudo de caso mais conhecido é aquele do moleiro Menocchio, exumado por Carlo
Ginzburg (1980). Domenico Scandella, aliás Menocchio, restituído em seu concreto-singular,
não é nem um indivíduo médio nem exemplar, mas uma identidade singular. Há busca de senso
comum a partir do menos ordinário. Menocchio não pode ser tido como um caso típico, ele é
isolado até em sua própria aldeia de Montereale. Ele é um caso-limite e, portanto, nesse sentido,
seu percurso pode “se revelar representativo” (GINZBURG, 1980, p. 16). A enquete feita por
Ginzburg a partir de indícios esparsos deixados por dois processos ocorridos a quinze anos de
intervalo, escritos do próprio moleiro, e pelo conhecimento de suas leituras, permite restituir sua
cosmologia pessoal. Ginzburg mostra no que essa cosmogonia que leva Menocchio à fogueira
é o produto de uma bricolagem que nada tem a ver com uma simples duplicação da cultura
culta conforme era considerado, de acordo com a oposição entre cultura culta e cultura popular:
“A impressionante convergência entre as posições de um obscuro moleiro e as dos grupos
intelectuais os mais conscientes à sua época recoloca com força o problema da circulação
cultural formulado por Bakhtin.” (Idem, p. 15). Em termos de mentalidades, Ginzburg se
diferencia da abordagem de Lucien Febvre que teria, segundo ele, caído na cilada de reduzir
Rabelais às categorias mentais médias de sua época para demonstrar sua impossível
descrença no século XVI. No entanto, o indivíduo não está em nada desconectado do seu tecido
social e não pode ser considerado como lugar de uma singularidade. Ele está, de acordo com
Ginzburg, na interseção de um certo número de conjuntos heterogêneos, e é o jogo complexo
dessas determinações múltiplas que se torna o coração de um estudo de ordem biográfica:

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“Pode-se identificar um indivíduo com suas impressões digitais? Somente do ponto de vista da
polícia”. (GINZBURG, 2003, p. 122).
A micro-storia devolveu seu direito de existir à singularidade, após uma longa fase de
eclipse durante a qual o historiador devia, sobretudo, buscar as médias estatísticas, as
regularidades de uma história quantitativa e serial. Ela permite, ao deslocá-lo sensivelmente,
redinamizar um gênero que se acreditava em vias de extinção, o gênero biográfico. A biografia
defendida pela micro-storia se diferencia de um certo número de abordagens praticadas para
renovar o gênero unanimemente recusado em sua forma tradicional linear e puramente factual.
Ela se distingue das biografias ilustrativas, de formas coletivas de comportamento, mas também
da abordagem biográfica que visa a perseguir fenômenos marginais, assim como da
antropologia interpretativa de Clifford Geertz. A biografia defendida por Giovanni Levi deve
permitir interrogar-se sobre a parte de liberdade de escolha entre as múltiplas possibilidades
de um contexto normativo que inclui muitas incoerências: “Nenhum sistema normativo é, de
fato, suficientemente estruturado para eliminar toda possibilidade de escolha consciente, de
manipulação ou de interpretação das regras, de negociação.” (LEVI, 1989, p. 1333). Ela conduz
a interrogar-se sobre um tipo de racionalidade empreendida pelos atores da história. O que
pressupõe tomar distância com o esquema da economia neoclássica de maximização dos
interesses e de postulado de uma racionalidade total dos atores. Esse modo de biografia
permite definir as bases de uma racionalidade limitada e seletiva, e reinterrogar a interrelação
entre o grupo e o indivíduo ao praticar uma correlação entre a experiência comum e o espaço
de liberdade do indivíduo. Os conflitos de classificação, de distinção e de representação são
tantos meios de dialetizar procedimentos cognitivos diferentes por natureza quando se aplicam
a um grupo ou a um indivíduo.

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Diferentemente da biografia clássica que postula uma harmonia entre o particular do


percurso singular e o geral do contexto no qual se efetua, a biografia coral concebe o singular
do percurso como um elemento de tensão. O indivíduo não se encontra encarregado de uma
missão que deveria encarnar, ou de uma função que deveria representar, ou ainda de uma
virtude que ele exemplificaria em nome de uma essência presumida de humanidade. Em uma
tal abordagem, mais que um ideal-tipo, são os conflitos, as potencialidades múltiplas do agir e
do sofrer que devem ser colocadas no enredo. Nesta abordagem coral, o indivíduo “deve
permanecer particular e despedaçado. Somente assim, por meio de diferentes movimentos
individuais, pode-se romper com as homogeneidades aparentes.” (LORIGA, 1996, p. 230-231).
Desta forma, pode-se ultrapassar, graças a essa forma de entrada no gênero biográfico a partir
da ideia de uma exceção normal, aquilo que o historiador da guerra civil inglesa, Charles Firth
designava como sendo o paradoxo do “sanduíche”, ou seja, uma camada de contexto, uma
camada de existência individual, e novamente uma camada de contexto.
Essa reavaliação do biográfico como entrada privilegiada na micro-storia encontra um
precursor na Itália em Arsênio Frugoni (1914-1970) que foi o professor de história medieval de
Ginzburg em Pisa e que marcou muito sua evolução ulterior. Enquanto Ginzburg estava muito
indeciso sobre aquilo que ia ocupá-lo enquanto pesquisador entre a história da arte, a crítica
literária, a filosofia e a linguística, ele lembra de ter “encontrado um historiador medievalista
digno de atenção: Arsênio Frugoni, autor de um livro da maior importância sobre Arnaldo de
Brescia, um herege do século XII. Frugoni tentou me convencer a estudar sua história.”
(GINZBURG, 2003, p. 115).
Ao contrário dos cenários lisos, de acordo com os escanções de valor universal, Frugoni
privilegia as descontinuidades e a pluralidade dos regimes de veracidade, restituindo, assim,

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não tanto o reconhecimento do mesmo entre o leitor contemporâneo e o sujeito biografado do


século XII, mas buscando, ao contrário, mostrar sua estranheza. Frugoni convida, portanto, a
voltar às fontes em si. A verificar sua autenticidade e a se interrogar sobre o processo de
fabricação da história sem preencher as lacunas documentárias, livrando-se do “ajuste fino”
(FRUGONI, 1993, p. 2) posto pelos historiadores ulteriores que acrescentaram muitos fatos
complementares para obter uma narrativa completa e coerente, baseando-se em hipóteses
verossimilhantes.
Desse processo não resulta, no entanto, uma posição relativista por parte de Frugoni
pois um retrato de Arnaud emerge ao longo das dez versões propostas. Por toques sucessivos,
percebe-se certos aspectos da vida de Arnaud, de suas convicções e de seu combate, sem
nunca costurar o sentido em uma biografia total. Ao contrário, o que se lê muito próximo das
fontes, é a relação entre essas testemunhas com suas motivações e o sujeito biografado: “Essa
análise quis encontrar nos diversos retratos de Arnaud, com a alma de suas testemunhas não
tanto a ocasião de um novo mosaico de conjecturas visando a uma impossível biografia
completa, nem tampouco uma ilusória genealogia de doutrinas desarticuladas, mas a
significação histórica da experiência de um reformador.” (FRUGONI, 1993, p. 173).

3. A biografia posta à prova do imaginário

A vitalidade da escrita biográfica deu origem a grandes empreendimentos, entre os quais


alguns se apresentaram como biografias com total pretensão, mas de acordo com uma lógica
inovadora de deslinearização do gênero, de desconstrução do seu objeto, a fim de realizar em
seguida uma rememoração, uma consolidação de sentido. Ultrapassando o nível estrito da

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restituição dos factos atestados pelos arquivos, esses empreendimentos biográficos têm
procurado questionar as etapas da construção do ícone nos vários locais de produção de um
discurso histórico edificante. Também se esforçaram para examinar a relação desses heróis
com o mundo: seu imaginário, as forças motrizes por detrás das suas ações, as suas escolhas
e o seu comportamento cotidiano.
O caso mais espetacular é o de Jacques Le Goff, com a publicação de seu Saint Louis
(1996). Em 1989 ele denunciou "o simples retorno à tradicional biografia superficial, anedótica
e cronológica... É o retorno dos emigrantes depois da Revolução Francesa e do Império que
nada aprenderam e nada esqueceram" (LE GOFF, 1989, p. 48). Além disso, no mesmo artigo,
ele contestou o pertencimento dos estudos históricos ao gênero biográfico, onde o personagem
é afogado em seu ambiente e em seu tempo. Entretanto, ele escreveu uma biografia de Saint
Louis, que eu chamaria de um objetivo utópico, o de alcançar a totalidade biográfica: “Podemos
conseguir dar uma imagem total de Saint Louis, não simplesmente colocada como um objeto
em seu contexto, mas imersa em seu tempo e em sua sociedade... para alcançar o que eu
chamei, talvez de forma muito ambiciosa, de biografia total” (LE GOFF, 1996, p. 260-261).
Le Goff pretende restaurar o "verdadeiro" Saint Louis que só pode se revelar através do
que ele encarna. É necessário, portanto, desconstruir o mito posterior para reencontrar a figura
do Rei e a figura do Santo, o que implica questionar quais poderiam ser essas duas funções da
imagem real no século XIII. Le Goff justifica essa possibilidade de restaurar a verdade do
indivíduo Saint Louis pelo fato de que foi justamente no século XIII que a sociedade ocidental
tendeu a se individualizar, para dar lugar a lógicas individuais. Além disso, ele tem à sua
disposição um material excepcional, incluindo documentos oficiais dos Atos da chancelaria
real, os dois centros de produção da memória real da época, Saint-Denis, onde foi construída

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a memória do rei, e as ordens mendicantes, onde foi elaborada a memória do santo, e por fim,
e sobretudo, a biografia já escrita por um contemporâneo, uma testemunha e até mesmo um
íntimo, Joinville.
Certamente, há uma certa arrogância em considerar possível uma biografia total e
definitiva, e Jacques Le Goff está ciente, à distância, dessa medida, uma vez que, em um livro
de entrevistas com Jean-Maurice de Montrémy publicado sete anos após seu Saint Louis, ele
retorna a uma condenação do gênero biográfico dando razão às teses de Bourdieu sobre a
não-legitimidade deste tipo de tentativa: "A biografia não me interessa em si mesma. Estou
seguindo aqui Bourdieu, que falou da ilusão biográfica. A biografia só tem meu interesse se eu
puder - como foi o caso de Saint Louis - reunir em torno de um personagem, um arquivo que
lança luz sobre uma sociedade, uma civilização, uma época”. (LE GOFF, 2003, p. 133).
Jacques Le Goff lembra que foi lendo Joinville, que já havia feito uma ruptura com o
gênero hagiográfico, contando suas memórias e escrevendo não uma "Vida de Saint Louis",
mas uma História de Saint Louis (JOINVILLE, 1874), que ele decidiu escrever ele mesmo um
Saint Louis, mas "que, de certa forma, é uma antibiografia" (LE GOFF, 2003, p. 134). Isto mostra
que as ressalvas expressas pela escola dos Annales e há muito expressas vigorosamente por
Le Goff contra o gênero biográfico estão fortemente enraizadas, ao ponto de que a produção
desta enorme súmula em Saint Louis não lhes pôs um fim. Mas é preciso relativizar as últimas
colocações, porque se as relacionarmos às pontuações feitas por Le Goff a Marc Heurgon em
1996, data da publicação de sua biografia, elas são tão contraditórias que perdem muito de
seu significado. Em 1996, Le Goff concluiu seu livro de entrevistas com uma verdadeira ode "a
título de epílogo" a favor de "uma tentativa de biografia total" (Idem, p.257-261) e depois colocou
o projeto biográfico em alto nível, focalizando o indivíduo: "A decisão de escrever uma biografia

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implica que se acredita ser capaz de alcançar da individualidade à personalidade do


personagem que é o sujeito da biografia.” (Idem, p. 257).
Esta ambição por uma história total deve ser vista no contexto do lançamento do Saint
Louis, como discurso de acompanhamento de um sucesso programado. Mas entre os dois, os
comentários de Le Goff de 1996 e 2003, resta sobretudo o próprio trabalho biográfico, que por
si só revela as potencialidades do gênero, e sem dúvida a postura crítica de Le Goff fez muito
para renovar sua perspectiva. Não se pode dizer que este trabalho seja marginal na obra do
"ogro da história", já que suas quase mil páginas foram fruto de cerca de quinze anos de
trabalho. Além disso, ele afirma desde o início a natureza biográfica de seu empreendimento:
"Este livro é sobre um homem e só fala de seu tempo na medida em que ele permite iluminá-lo"
(LE GOFF, 1996, p. 13). É enquanto homem ilustre, segundo os cânones ancestrais, e uma
figura central do cristianismo do século XIII, que o historiador decide que ele merece ser
biografado. Lembrando-se de suas ressalvas em relação ao campo biográfico e sua entrada
relutante neste modo de escrita, Le Goff concorda que longe de ser um gênero fácil, é fonte de
uma complexidade particularmente difícil de administrar: "Eu me convenci assim desta
evidência intimidadora: a biografia histórica é uma das formas mais difíceis de fazer história.”
(Idem, p. 14). Recordando o eclipse do gênero e o papel desempenhado pelos Anais em sua
deslegitimação, Le Goff considera que é chegada a hora de destrancar os cadeados: "A
biografia me parece estar parcialmente liberada dos bloqueios onde os falsos problemas a
mantinham. Pode até se tornar um observatório privilegiado.” (Idem, p.15). Especialista de longa
data no pensamento dos tempos da Idade Média, Le Goff, que já escreveu muitos textos
inovadores sobre a pluralidade temporal (1977; 1991), redescobre esta preocupação com a
biografia, e considera que a pesquisa biográfica enriqueceu sua maneira de ver a questão: "O

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trabalho biográfico me ensinou a olhar para um tipo de tempo ao qual eu não estava
acostumado: o tempo de uma vida que, para um rei e seu historiador, não se funde com a do
seu reinado.” (1996, p. 23). Le Goff endossa assim a ideia, clássica há algum tempo, de que a
infância e o tempo da juventude desempenham um papel considerável na vida adulta.
À maneira como eu quis dizer com o subtítulo de minha biografia de Paul Ricoeur, "Os
sentidos de uma vida", o biógrafo só pode ter acesso ao seu sujeito biografado como uma
identidade plural, sempre recomposta de acordo com um verdadeiro mosaico de diferentes
“enredos”. Não se pode postular uma possível identidade saturada e fixa. Nesse sentido, o
horizonte de uma biografia total é impossível e é da ordem da hubris. A consciência dessa
dimensão fragmentária deslocou o olhar do biógrafo, que rompeu com as ilusões da era heroica
para entrar em nossa era hermenêutica. O biógrafo não procura mais preencher lacunas a todo
custo, mas está interessado na pluralidade dos modos de apropriação, na diversidade de sua
recepção e nos usos do ícone e em suas flutuações ao longo do tempo. O resultado é uma
multiplicidade de significados de acordo com disposições sempre diferentes em uma
abordagem sempre aberta para o outro e para o futuro. Sob a paixão biográfica, sempre
contemporânea, não é o mesmo que retorna porque a busca identificadora de um modelo, de
uma vida mestra se transformou em uma busca por singularidade, por pluralidade de possíveis
identidades plurais.

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