Aventuras Na História #230 - 24jun22
Aventuras Na História #230 - 24jun22
Aventuras Na História #230 - 24jun22
JULHO DE 2022
A DESCOBERTA
DA EUROPA PELOS
POVOS DO LESTE
DIRETOR EDITORIAL:
Pablo de la Fuente
EDIÇÃO:
Izabel Duva Rapoport
REVISÃO:
Hellen Ribeiro
EDIÇÃO 230
SÃO PAULO
EDITORA CARAS
2022
EDITORIAL
“POLÍTICA” MILITAR
E
m tempos de debate sobre a politização forma a vanguarda da classe média, que,
das Forças Armadas no Brasil, a assim como eles, estava à margem de um
AVENTURAS NA HISTÓRIA deste regime que favorecia apenas as oligarquias.
mês resgata o centenário de uma das mais E não por acaso, também, o protesto
importantes mobilizações nacionais vindas acontecia na ocasião de uma nova eleição
de uma categoria profissional: o Movimen- presidencial, ocorrida em 1922, como uma
to Tenentista, que surgiu entre militares de tentativa dos militares conseguirem mais
média e de baixa patentes para protestar participação no sistema. Assim como em
contra a República Velha e as regalias do 1910, aliás, com a vitória do militar gaúcho
arranjo político chamado Café com Leite, Hermes da Fonseca. Anos fatídicos em que
em que paulistas e mineiros se revezavam militares tornaram-se figuras centrais do
no poder. Entre as reivindicações dos te- cenário eleitoral brasileiro.
nentes, além de um governo democrático, Boa leitura!
estavam o fim do voto aberto e melhorias
políticas e sociais no país. Izabel Duva Rapoport
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
Não por acaso, representavam de certa
Editora
"#$%
&"' (
")*+,
-./012/ "01
"01 (
! ! "
!34,"#/5 6" 7
SUMÁRIO
30
CAPA: A REVOLTA
DOS 18 DO FORTE
DE COPACABANA
FOI A PRIMEIRA
MANIFESTAÇÃO
DO MOVIMENTO
TENENTISTA
6 GALERIA
Comida de rua 16 DÚVIDA CRUEL
Como os 24 RELIGIÃO 56
revela a tradição portugueses Sufismo: a vertente mística COLUNA
de um povo derrubaram a RICARDO
muçulmana que prega a união
ditadura em um dia? LOBATO
total com o divino
12 HOJE NA
HISTÓRIA
Aconteceu em 20 COMO
FAZÍAMOS SEM 40 GUERRAS 58
julho Portas MEMÓRIA
Para além da Ucrânia: oito
AS DUAS
conflitos que recebem pouca
14 21
MÚSICA DITO E FEITO MORTES DE
atenção e ajuda humanitária EVITA PERÓN
Gravações em Nomes de pessoas
chapas de raio-X que viraram palavras
driblam censura 50 CIVILIZAÇÕES
na URSS
22 ILUSTRADA
O cerco de Lampião
Rumo ao Novo Mundo, povos
do leste partiram para um lugar
que hoje chamamos Europa
GALERIA
COMIDA
DE RUA
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
MAIS DO QUE
ALIMENTO, ELA
REVELA HISTÓRIAS
E A TRADIÇÃO
CULTURAL DE UM
POVO, ALÉM DA
CAPACIDADE DE ELE
SE REINVENTAR AO
LONGO DO TEMPO,
MANTENDO SUAS
RAÍZES NO COTIDIANO
DAS CIDADES
POR IZABEL DUVA RAPOPORT
6 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
GAFANHOTOS MEXICANOS
FOTO MARCOS ELIHU CASTILLO RAMIREZ / GETTY IMAGES
Não, você não leu errado. Segundo a Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e Alimentação, o México contempla o maior número de insetos
comestíveis do mundo. São cerca de 500 espécies, entre elas, os chapulines
(gafanhotos, em português) são os mais populares – foram até inspiração para o
nome de um dos personagens mais famosos da TV mexicana: Chapolin Colorado.
Fritos e torrados, os chapulines são temperados com alho, limão, sal e pimenta, e
adicionados em diversos pratos tradicionais do país, como tacos (foto acima) e
tlayudas, tortilhas típicas da região de Oaxaca. O consumo do bicho remonta ao
século 16, quando os insetos eram a principal fonte de proteína, antes de os
colonizadores espanhóis incluírem a carne de animais domesticados no dia a dia.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 7
GALERIA
O DOCE
COLORIDO
DAS FILIPINAS
Com base em gelo raspado misturado
com leite evaporado, cuja água é
reduzida em 60%, o Halo-Halo (Mix-Mix
em português) é a sobremesa mais
popular das Filipinas. Ela inclui ingredien-
tes como frutas, grãos adocicados,
gelatinas e raízes, além da influência de
diversas culturas. Sua origem provavel-
mente deriva de um doce japonês
chamado kakigori – raspas de gelo
servidas com feijão doce, levado aos
filipinos por imigrantes nos anos 1900.
Neste mesmo período, com a ocupação
dos Estados Unidos no país asiático, foi
fundada uma usina de gelo americana,
que passou a produzir e fornecer a base
essencial da iguaria com facilidade. Já a
parte láctea, há indícios de que veio do
pudim de leite da era colonial espanhola.
Na hora de consumir, é preciso mexer
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
tudo até que um arco-íris apareça,
permitindo um deleite completo a cada
colherada: o frescor do gelo traz o tom
frio; a maciez do feijão e da gelatina
contrasta com o arroz torrado; e a
doçura das frutas e dos tubérculos locais
(como jaca, banana e inhame roxo) se
mescla com o leite – e, se o felizardo
desejar, com uma bola de sorvete.
8 AVENTURAS NA HISTÓRIA
HERANÇA DO APARTHEID
Um dos pratos de comida de rua mais populares
da África do Sul é o bunny chow, um pedaço
generoso de pão branco com um buraco no
centro, servindo de recipiente para uma porção
de cordeiro, frango ou peixe bem temperada com
curry e pimenta – assim como manda a tradição
indiana, muito presente na costa sul-africana, que
une a África e a Índia. Com origem na década de
1940 em Durban, o bunny chow foi criado pelos
indianos que trabalhavam nas plantações de
açúcar da região como uma maneira de carregar
seu curry sem derrubar. O pão branco era o mais
barato e acessível e, por isso, era escavado e
usado como uma espécie de tigela. Durante o
Apartheid, quando negros não podiam se sentar
em restaurantes, o bunny chow também era uma
alternativa de comida para viagem, vendida
geralmente nos fundos das cozinhas.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 9
GALERIA
ETIÓPIA: O
BERÇO DO CAFÉ
Diz a lenda que no século 9 um
jovem pastor chamado Kaldi,
cuidando de seu rebanho de cabras
em uma montanha na Absínia (atual
Etiópia), observou que seus animais
comiam os frutos vermelhos de um
arbusto e ficavam frenéticos e
saltitantes, até mesmo os mais
fraquinhos. Intrigado com aquilo,
Kaldi resolveu experimentar sua
descoberta e, ao perceber que
também ficava mais disposto e
alegre, levou um ramo da planta
para o monastério local, contando
sua história. Logo, um monge
queimou aquilo, desconfiado ser
obra do diabo. Mas o odor que
exalava dos grãos torrados caiu tão
bem, que os próprios monges
mudaram de ideia: como algo com
aquele cheiro poderia ser pecado?
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS Começaram, então, a preparar as
cinzas e a estranha fruta com água,
até que a nova bebida virou costume
e acabou com o sono das orações.
Em pouco tempo, o grão chegou à
Turquia, onde surgiu o que hoje
chamamos de café, e se espalhou
pelo mundo. Na Etiópia, porém, a
bebida é muito mais do que um
combustível matinal – é uma parte
fundamental da vida social e cultural
do povo que se autodenomina o
“berço do café”. Não à toa, realizam
OVO CENTENÁRIO CHINÊS diariamente a jebena buna, a
Embora o pidan, iguaria típica da culinária chinesa, seja tradicional cerimônia do café, feita
conhecido por ovo milenar, ovo preservado ou até definitivamente para quem não tem
mesmo ovo de 100 anos, seu preparo não costuma levar pressa ou intolerância à cafeína. O
mais de um mês. Feito com ovos de pato, ganso, galinha ritual começa com a anfitriã, sempre
ou codorna, é coberto com sal, argila e cal e enterrado. mulher, espalhando ervas pela mesa
Com o tempo, ele fica duro, com a gema esverdeada, a e pelo chão e acendendo incensos.
clara marrom, o aroma muito acentuado e o sabor Em seguida, o preparo lento dos
parecido com o de um queijo forte. A origem do método grãos exala o cheiro, que se mistura
de produção provavelmente surgiu de uma tentativa de com o aroma da casa, criando um
estender o tempo de conservação de ovos em tempos efeito inebriante. Moído, o café é
de escassez de comida. Porém, há quem diga que, adicionado à jebena (jarra especial
durante a dinastia Ming, um chinês descobriu por acaso de bico) com água fervente e levado
que os ovos que um pato havia enterrado na terra de sua ao carvão para fermentar até ficar
propriedade tinham mudado de cor e de sabor. amargo, espesso e potente.
10 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
FOTOS SERGIO AMITI E TIM E. WHITE / GETTY IMAGES
AVENTURAS NA HISTÓRIA 11
HOJE NA HISTÓRIA
ACONTECEU
EM JULHO
1 Começa a
Batalha de
1863 Gettysburg,
2 O conde Ferdi-
nand von Zeppe-
1900 lin fez a primeira
3
987
É coroado rei da
França Hugo
Capeto, que
na Pensilvânia, em meio à demonstração de uma governou até a morte, em
Guerra Civil dos EUA. aeronave na Alemanha. 996. Ele foi o primeiro
Durante todo o conflito, O LZ-1 tinha 140 metros monarca da Casa de
esse foi o combate com o de comprimento e sua Capeto e sucedeu Luís V,
maior número de vítimas criação deu errado devido o último rei carolíngio.
fatais: 28 mil pessoas. a uma falha mecânica.
4 em nosso Canal
Entre 5 no Telegram:
por Thomas 6 t.me/BRASILREVISTAS
Grupo liderado
8 Nasce Manuel de
Arriaga, primeiro
1840 presidente da
9 No Congresso de
Tucumán é
1816 proclamada a
10 Henrique VI, rei
da Inglaterra, é
1460 feito prisioneiro
11 813
Para salvar a
própria vida, o
imperador
República Portuguesa. independência das após perder a Batalha de bizantino Miguel I abdica
Foi bastante conhecido Províncias Unidas do Rio Northampton, na Guerra em favor do general Leão
por sua firme defesa de da Prata da Espanha, que das Rosas (1455-1487). As V, o Armênio. Mudou seu
valores democráticos. passam a se chamar casas Lancaster (à qual nome para Atanásio e
Argentina. pertencia) e York lutaram tornou-se monge. Seus
pelo trono do país. filhos foram castrados.
12 São Tomé e
Príncipe declara
1975 independência
13 Líder jacobino
durante a Revolu-
1793 ção Francesa,
14 Durante a
Primeira Cruza-
1099 da (1095-1099),
15 O padre John Ball,
líder da Revolta
1381 Camponesa de
de Portugal. O arquipéla- Jean-Paul Marat é exércitos cristãos tomam 1381, é enforcado e
go africano foi explorado assassinado pela jovem Jerusalém. Incentivados esquartejado. O conflito
pelos navegadores Charlotte Corday com pelo papa francês Urbano nasceu da cobrança de
portugueses João de uma punhalada no II, os cristãos lutaram para impostos, por conta da
Santarém e Pedro coração. acabar com o domínio Guerra dos Cem Anos
Escobar, em 1470. islâmico na Terra Santa. contra a França.
12 AVENTURAS NA HISTÓRIA
16 O imperador Haile
Selassie assina e
1931 decreta a primei-
17 Nicolau II, último
czar da Rússia, é
1918 fuzilado com a
ra Constituição da esposa e cinco filhos por
Etiópia. O decreto revolucionários bolchevi-
estabeleceu padrões ques, que temiam ser
democráticos, mas descoberto o local da
manteve privilégios da prisão do czar.
nobreza.
20 em nosso Canal
Entre 21 no Telegram:
Data provável
em que Alexan-
356 a.C. dre, o Grande,
22 t.me/BRASILREVISTAS
23Setecentas e
oitenta e quatro
2005 pessoas são
Durante a Guerra
dos Farrapos,
1839 Giuseppe
Os Estados
Unidos lançam o
1972 Landsat 1, o
nasceu, na Macedônia. feridas e 56 morrem num Garibaldi toma Laguna, primeiro satélite criado
Ele assumiu o poder em atentado em Londres. em Santa Catarina. Quatro para observar e coletar
336 a.C., reinou por 13 Terroristas islâmicos meses depois, o local foi dados da superfície
anos e conquistou boa explodem quatro bombas retomado e os farroupilhas terrestre. Até 1978,
parte do mundo conheci- pela cidade, três no metrô iniciaram a retirada por transmitiria mais de
do da época. e mais uma num ônibus. terra. 100 mil imagens.
24 Nasce em
Caracas Simón
1783 Bolívar, líder
25 Constantinopla
é retomada pelas
1261 forças do Império
26796
Morre o Rei Offa,
da Mércia, líder
anglo-saxão.
27 É assinada a
Convenção de
1929 Genebra. Firmado
político venezuelano e de Niceia, sob o comando Cristão, unificou o por 53 nações, esse
peça fundamental para a de Alexios Strategopou- território inglês, difundiu a tratado define os direitos
independência do país e los, o que permitiu a religião e introduziu a e deveres das pessoas
de outros territórios da restauração do Império moeda de prata para durante tempos de guerra.
América espanhola, como Bizantino. pagamentos.
Colômbia, Bolívia e Peru.
28 Os EUA aumen-
tam o número de
1965 soldados na
29 Vincent Van
Gogh morre nos
1890 braços do irmão
30 O último Fusca do
mundo sai da linha
2003 de montagem no
31711
Árabes vencem os
visigodos na
Batalha de
Guerra do Vietnã de 75 Theo dois dias depois de México, único país a ainda Guadalete, na Andaluzia,
mil para 125 mil homens, dar um tiro no peito. fabricar o carro na época. o que marca o fim do
marcando o auge do Segundo Theo, as últimas No Brasil, a produção reino visigótico e início do
conflito. Diante de massiva palavras do pintor foram: parou em 1993. Os domínio muçulmano na
pressão pública, o país se “A tristeza durará para mexicanos o chamam Península Ibérica.
retiraria em 1973. sempre”. de Vocho (besouro).
AVENTURAS NA HISTÓRIA 13
MÚSICA
DISCOS DE
VINIL EM RAIO-X
PARA DRIBLAR A CENSURA E LEVAR MÚSICA OCIDENTAL PARA A URSS, OBRAS
FORAM COPIADAS E GRAVADAS DE FORMA CASEIRA EM CHAPAS DE RADIOGRAFIA
POR WALLACY FERRARI EDIÇÃO IZABEL DUVA RAPOPORT
N
os a nos após a Segunda Guerra Mun- músicas em vinil – porque, além de arriscado,
dial, o contexto cultural da União Sovi- o material era caro e raro, como tantos outros
ética era de divisão. O Estado havia proi- produtos petrolíferos depois da guerra –, en-
bido a entrada de material artístico do lado do controu outro meio para copiar e gravar obras
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
Ocidente, que passou a ser visto como prejudi-
cial, ou seja: sem filmes, sem programas de
como Beatles, Beach Boys e até Elvis Presley:
chapas de raio-X descartadas em abundância
televisão e sem músicas internacionais, princi- nos hospitais locais. Naquela época, a lei russa
palmente oriundos dos EUA e Grã-Bretanha. havia instaurado uma ordem exigindo a des-
Mas muita arte russa, por incrível que pare- truição deste material após um ano de armaze-
ça, também foi censurada. “Qualquer coisa fei- namento, devido à sua composição inflamável.
ta por emigrantes estava fora dos limites por- O resultado de suas cópias não apenas sur-
que, por definição, qualquer russo que tivesse preendeu pela fidelidade do som, como conse-
deixado o país deliberadamente ou que ficasse guiu riscar, meticulosamente, as linhas que
fora por escolha, agora era considerado um poderiam ser reproduzidas por vitrolas, crian-
traidor – independentemente do repertório e do um substituto barato e sem intermédio es-
mesmo que tivesse sido aprovado anteriorman- tatal para a produção dos discos. Durante três
te”, descrevem os artistas Stephen Coates, Alex décadas, Ruslan produziu inúmeros álbuns ile-
Kolkowski e Paul Heartfield, criadores do pro- gais (embora não com a mesma qualidade do
jeto The X-Ray Audio (O Áudio do Raio-X, em vinil original), que, por causa das imagens de
tradução livre), que reúne diversos materiais esqueleto que apareciam na base, eram chamados
como arquivo on-line, livro e documentário de Bone Music (Música de Osso): uma prática
dedicados à comunidade underground de que surgiu das mãos de um engenheiro de som
amantes da música e contrabandistas que de- e ganhou força em São Petersburgo, onde era
safiaram a censura na URSS da Guerra Fria mais fácil conseguir registros proibidos, e depois
para fazer e distribuir músicas proibidas. em Moscou e outros estados da URSS.
IMAGENS REPRODUÇÃO
14 AVENTURAS NA HISTÓRIA
sentenciando-o a cinco anos em regime fe-
chado na Sibéria – uma pena relativamente
pequena, visto que não havia como mensurar
o tamanho de sua atividade comercial.
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
Ao longo do tempo, a abertura cultural foi
se expandindo e os discos ilegais caindo em
desuso, com Moscou sediando, pouco antes
do fim da União Soviética, o maior festival
de rock internacional de todos os tempos, o
Monsters of Rock, que colocou Pantera, Black
Crowes e Metallica em um só palco.
PEÇAS RARAS
Apesar de não serem mais usados (e nem
proibidos), os discos de ossos tornaram-se
objetos de coleção de extrema raridade, prin-
cipalmente nos casos em que músicas estran-
geiras estão gravadas de maneira nítida.
Para registrar a história de Ruslan e de
outros produtores e até de vendedores e com-
pradores, o The X-Ray Audio lançou os livros
Bone Music e The Strange Story of Soviet Mu-
sic on the Bone (o último já esgotado). “Numa
época em que a indústria fonográfica era
implacavelmente controlada pelo Estado, eles
encontraram um meio incrivelmente arris-
cado de fazê-lo. Foi um ato de empreendi-
mento de rua, resistência cultural, engenho-
sidade técnica e esforço humano”, revelam os
donos do projeto em x-rayaudio.com.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 15
DÚVIDA CRUEL
COMO OS PORTUGUESES
DERRUBARAM A DITADURA
EM UM DIA?
EM ABRIL DE 1974, SOLDADOS LIDERADOS POR UM CAPITÃO DO
EXÉRCITO DEIXARAM OS QUARTÉIS RUMO À SEDE DO GOVERNO.
SAUDADOS PELA POPULAÇÃO, QUE OS PRESENTEARAM COM
CRAVOS VERMELHOS E BRANCOS, ELES MARCHARAM PARA
DERRUBAR UMA DITADURA QUE JÁ DURAVA MAIS DE 40 ANOS
POR LINCOLN SECCO
P
Entreassavam
em20nosso Canaldeno
minutos da meia-noite 25 de Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
ro carro se havia detido diante de um sinal ver-
abril de 1974 quando os acordes de Grân- melho. O condutor, no cumprimento das leis de
dola, Vila Morena tocavam numa rádio de trânsito (e do bom senso dos dias comum, num
Lisboa. Os poucos ouvintes estranharam, afinal, dia incomum), havia atrasado em alguns minutos
era uma música proibida, cujos versos foram cen- o, naquele momento, irrevogável curso da histó-
surados pelo governo: “Em cada esquina um ami- ria. Contornado o problema, o comboio seguiu.
go / Em cada rosto igualdade / Grândola, Vila Amanhecia quando os militares revolucioná-
Morena / Terra da fraternidade”. A canção, que rios chegaram ao Terreiro do Paço, onde ficavam
havia se tornado um hino dos jovens e intelectu- os ministérios. Não foram necessários combates
ais contra a ditadura que já durava mais de 40 – apenas alguns tiros para o alto foram dispara-
anos, naquela noite, era um sinal: a revolução dos – ou escaramuças. As tropas mobilizadas
começara. Próximo de Lisboa, sob o comando do ganhavam cada vez mais adesões e o povo tomou
capitão Salgueiro Maia, as tropas do quartel de as ruas, apoiando o movimento. Alguns telefo-
Santarém começaram a movimentar-se. O mesmo nemas, emissários e um ultimato. Em poucas
ocorria em vários pontos do país. horas o governo de Marcelo Caetano – que assu-
Fundamental em todo movimento de suble- mira o poder depois de Oliveira Salazar, o ditador
vação, naquela madrugada, a velocidade de mar- que governou Portugal de 1933 até a morte, em
cha era um fator especialmente importante. Era 1970 – foi deposto. Ainda na manhã do dia 25, a
preciso deslocar-se num ritmo maior que as no- cidade foi tomada por manifestações populares,
tícias, pois os revolucionários deveriam tomar cartazes e flores. Sem ninguém saber bem a ra-
Lisboa antes que o governo descobrisse as ope- zão, floristas de Lisboa distribuíam cravos, sím-
rações. Às portas da capital, no entanto, a coluna bolos da cidade desde os tempos imemoriais, para
de carros de combate parou abruptamente. Sal- os soldados que os exibiam, gloriosos, nas lapelas.
gueiro Maia, que estava à retaguarda, gritou para Mas uma revolução não nasce do dia para a
saber o que tinha ocorrido. Por que parou? Ouviu noite. E um governo que durou mais de 40 anos
risadas, antes de lhe darem a resposta. O primei- não acaba assim de repente. Quando o capitão
16 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Soldados portugueses
com cravos na lapela
AVENTURAS NA HISTÓRIA 17
DÚVIDA CRUEL
Entre em nosso
Após governos
provisórios, Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
Salgueiro Maia colocou seus homens na rua, império periférico, que cedia, cada vez mais, a
Mário Soares, do
Partido Socialista,
assumiu a expressava um sentimento comum a militares e exploração de suas colônias a empresas estran-
presidência civis de todo o país: pôr fim à ditadura e, sobre- geiras e vinculava-se ao mercado europeu. Em
tudo, terminar com a Guerra Colonial na África. 1961, teve início a chamada Guerra no Ultramar.
A questão do ultramar era um espinho na Tropas guerrilheiras em Moçambique, Angola e
garganta do governo português desde os anos Guiné-Bissau rebelaram-se contra o governo
1950. No século 19, Portugal viveu o desejo e a português, que obrigou o país a desviar ainda
ilusão de continuar sendo o grande império da mais recursos do orçamento para manter o con-
época dos descobrimentos. Depois da indepen- flito que durou até 1974. A revolução lusa colocou
dência do Brasil, em 1822, Portugal sonhava com um ponto final no sonho colonial português, que
o projeto de reviver na África os lucrativos negó- fora moldado com ideias e práticas do século 19.
cios que tinha por aqui. Por uma série de razões, Pode parecer estranho fazer uma revolução
não funcionou. No entanto, nas negociações da para depor um governo cujo ditador havia mor-
divisão dos territórios africanos com outras po- rido alguns anos antes. Mas foi o que ocorreu. FOTOS JEAN-CLAUDE FRANCOLON, JACQUES HAILLOT / GETTY IMAGES
tências europeias, mesmo sem poder econômico Salazar tomou o poder em Portugal em 1933 e
e militar comparável ao de Inglaterra e França, governou com mão de ferro. Na década de 1930,
os portugueses mantiveram Angola, Moçambi- ele não estava sozinho e, ao lado de Francisco
que, Guiné-Bissau e outras possessões menores. Franco, da Espanha, de Benito Mussolini, da
No século 20, o período do pós-guerra deto- Itália, e Adolf Hitler, da Alemanha, integrou o
nou uma série de movimentos de libertação nes- clube dos ditadores que fizeram o auge do tota-
ses países. A presença portuguesa era garantida litarismo na Europa. Quando a Segunda Guerra
à custa de uma dispendiosa ocupação militar, que explodiu, no entanto, o governo português tinha
cada vez mais indispunha o governo com os se- muitos interesses econômicos fora do Eixo e, ao
tores da sociedade que não estavam mais dispos- lado dos espanhóis, preferiu a neutralidade. Nos
tos a pagar por isso. Portugal tornava-se um anos seguintes, o país mergulhou numa mórbida
18 AVENTURAS NA HISTÓRIA
placidez. Salazar desestimulou a economia, in- um de seus líderes civis mais proeminentes, Má-
centivando o grosso da população a permanecer rio Soares, do Partido Socialista, que depois as-
no campo. As elites viviam do que conseguiam sumiria a presidência do país, em alusão aos
tirar da África e qualquer crítica ao governo era moderados que perderam a batalha para os bol-
punida pela Polícia Interna de Defesa do Estado, cheviques de Lênin, em 1917. O fato é que a re-
que prendia, torturava e matava os opositores. volução, que tinha um discurso socialista, foi,
Quando Salazar morreu, em 1970, a ditadura pouco a pouco, caminhando para um regime
seguiu com o professor de direito Marcelo Cae- social-democrata, mais preocupado em integrar
tano, que, na prática, já governava como ministro Portugal à comunidade europeia e ao capitalismo.
de Salazar (depois de um derrame, em 1968, ele No entanto, naquele 25 de abril de 1974, en-
ficou impedido de exercer o cargo de presidente). quanto nascia o Portugal de hoje, com flores
Os anos de repressão haviam colocado no mesmo vermelhas na lapela, os soldados e o povo, sem
Manifestação lota as ruas de
barco um largo espectro de descontentes: socia- imaginar o que viria, mas confiantes no futuro, Lisboa durante a Revolução
listas, comunistas, liberais, ex-combatentes na entoavam em conjunto a música proibida. dos Cravos, em 1974
África, exilados e desertores. Porém a revolta
estourou só quatro anos após a morte do ditador.
É por isso que, naquela madrugada fria, o ca-
pitão Salgueiro Maia e seus homens sabiam o que
iriam fazer em Lisboa. O governo tinha de cair a
qualquer custo. E caiu com uma facilidade im-
pressionante. Nos dias em que se seguiram ao
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
exílio de Marcelo Caetano – primeiro na Ilha da
Madeira e depois no Rio de Janeiro –, a felicidade
parecia fácil de ser alcançada. Lisboa viu-se toma-
da por protestos de todo tipo, com murais inspi-
rados na Revolução Cultural de Mao Zedong (Mao
Tsé-tung) e mulheres pedindo liberdade sexual,
entoando em conjunto uma das estrofes mais fe-
ministas da história: “Homens na cozinha!”
A troca de governo foi tão rápida que para
muitos permaneceu, naqueles primeiros dias, a
sensação de que não havia governo algum. Como
em qualquer revolução, a disputa pelo poder foi
acirrada. No primeiro momento, assumiu o go-
verno o general António Spínola, antigo aliado
do governo de Caetano, mas já rompido com ele
quando eclodiu o movimento. Nos anos de 1975
e 1976, uma sucessão de governos provisórios,
golpes e contragolpes culminou no afastamento
de Spínola, na estatização dos bancos e outras
medidas socialistas e radicais. Um alto membro
do governo americano, assustado com a influên-
cia do Partido Comunista Português, chegou a
lamentar a perda dos “irmãos lusos para os ini-
migos vermelhos da URSS”. Um exagero. Talvez
a Revolução dos Cravos não tenha sido aquela em
que os mencheviques venceram, como afirmou
AVENTURAS NA HISTÓRIA 19
COMO FAZÍAMOS SEM
PORTAS
CASAS NÃO TINHAM PROTEÇÃO
NEM PRIVACIDADE POR REDAÇÃO AH
U
m exemplo vivo de como era a vida sem portas é a
vila indiana de Shani Shingnapur. Seus 11 mil
habitantes moram em casas sem elas e sem vidros
nas janelas. Confiam no deus Shani, que, acreditam,
pune os ladrões. Como têm muita fé e poucas posses, a
taxa de furtos é próxima de zero. Ruínas incas de 800
anos mostram casas retangulares, sem janelas e também
com uma entrada permanentemente aberta. Já por aqui,
em terras brasileiras, tribos indígenas vivem até hoje em
grandes ocas sem paredes internas, num único e grande
cômodo comunitário – já era assim em 1500, quando os
portugueses encontraram ocas com até 50 moradores.
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
E era assim também na maioria das casas medievais
europeias, das mais simples às mais nobres. “Na época
feudal, o espaço jamais estava previsto, no interior das
grandes moradas, para a solidão individual”, escreve o
historiador francês Georges Duby, autor de História da
Vida Privada. A planta mais comum consistia de um
único cômodo, uma pequena janela, uma lareira e, às
vezes, uma área isolada para o forno. A família compar-
tilhava o espaço escuro, úmido, esfumaçado e pouco
higiênico para comer, dormir (em camas para 2 a 8
pessoas), tomar raros banhos... Quem tentasse se isolar
era visto como estranho ou louco.
Na virada do século 13 para o 14, a valorização do
indivíduo sobre o coletivo (um dos pilares do Renasci-
mento) criou uma nova concepção de vida privada: “Ser
si mesmo no meio dos outros, no quarto, com seus bens,
sua bolsa, seus sonhos, seu segredo”, relata Duby. Nesse
espaço em vias de se fechar, um anteparo teria que se
colocar entre a pessoa e o olhar alheio. Não demorou
para a porta cumprir essa função. Apesar da populari-
zação tardia, a porta é coisa antiga – especialmente entre
os ricos, que tinham mais a perder no caso de ataques
IMAGENS GETTY IMAGES
20 AVENTURAS NA HISTÓRIA
DITO E FEITO
PESSOAS QUE
VIRARAM PALAVRAS
GRANDES OBRAS E MENTIRAS CRIARAM
ALGUNS TERMOS DO DICIONÁRIO POR REDAÇÃO AH
J
á imaginou se você deixasse à humanidade uma palavra
derivada de si mesmo? Só em português existem quase mil
palavras derivadas do nome de pessoas – denominadas epô-
nimos. “A maioria concentrada no vocabulário médico e cientí-
fico, como ‘mal de Parkinson’, ou em avanços tecnológicos”, dizia
o linguista John Schmitz (1936-2017). Abaixo, veja algumas mar-
cas que figuras históricas deixaram em nossa língua.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 21
ILUSTRADA
O CERCO A LAMPIÃO
TESE MAIS DEFENDIDA DIZ QUE ELE FOI MORTO NUMA EMBOSCADA POR TÂMIS PARRON
D
epois de 18 anos de cangaço, questros e mor tes em sete estados
QUEIXO DE VIDRO
Virgulino Ferreira da Silva já nordestinos, parecia que tudo cons- Acordado pelos tiros, o grupo reage
tinha levado ba laços no om- pirava pa ra que o Rei do Cangaço a bala. Em 15 minutos, 11 dos 30
homens e seis mulheres são mortos.
bro e na virilha e perdido o olho di- mor resse em 28 de ju lho de 1938. Lampião, em frente à sua barraca,
reito. Mas ninguém acreditava que Lampião e seu grupo dormiram no é um dos primeiros a cair, atingido
por tiros no tórax e na cabeça.
Lampião morreria. Nem Joca Ber- leito seco de um rio, cercados por Todos os capturados são decapitados
nardes, que mostrou à polícia o es- xiquexiques e aroei ras ao fundo e
conderijo dele e de seu bando: a fa- encostas aos lados. Naquela madru-
zenda Angico, em Sergipe. Após a gada, sinos amarrados em arames ao
de núncia, uma equipe par tiu da redor da toca não foram instalados.
cidade de Piranhas (AL), para cortar E até os cães, que costumavam latir
a cabeça do cangaceiro. diante de intrusos, permaneceram
Depois de saques, estupros, se- misteriosamente quietos.
TESOURO PIRATA
INFOGRÁFICO LUIZ IRIA, ÉBER EVANGELISTA, DIEGO SANCHES, BERNARDO BORGES E LEANDRO NARLOCH
22 AVENTURAS NA HISTÓRIA
DUELO CARA DE PAU
O policial Adrião de Souza espanca o Como as roupas dos cangaceiros são pouco
cangaceiro Mergulhão, dizendo “Morre, bandido diferentes da indumentária policial, que
da peste!”. A humilhação provoca o cangaceiro já adotara o chapéu de couro e as perneiras,
Balão, que parte para um corpo a corpo com o cangaceiro Zé Sereno tem uma ideia marota.
o policial. Na confusão, cada um encosta o fuzil Corre em direção aos policiais dizendo “não
no outro. Mergulhão leva um tiro na perna; Adrião, atirem, sou companheiro”. Consegue
um tiro fatal. Foi o único policial a morrer no cerco passar entre eles e fugir
DEGOLADA VIVA
Maria Bonita é ferida no ventre
e nas costas logo no início do ataque,
mas se mantém consciente. A mulher
de Lampião agonizou até o último estam-
pido de fuzil. Foi degolada pelos policiais
ainda viva, gritando e esbracejando
Pela corrente
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
DANÇARINOS, AVENTUREIROS,
MÍSTICOS. PIONEIROS
DO CAFÉ E DO HAXIXE.
RELIGIOSOS E CONDENADOS
O Paquistão é um dos países mais con-
servadores do mundo. Bebidas alco-
ólicas são proibidas. A maioria das
mulheres só sai na rua coberta por véus. O go-
verno censura filmes e novelas, perseguindo até
COMO HEREGES. CONHEÇA os mais suaves conteúdos sexuais. Mas em um
dos mais importantes santuários do país – o
OS SUFIS, OS AMOROSOS
Mausoléu de Abdullah Shah Ghazi, um santo
MUÇULMANOS QUE PREGAM muçulmano do século 8 –, o odor que permeia
A UNIÃO TOTAL COM O DIVINO o ar durante as festas religiosas não é o de velas
POR JOSÉ FRANCISCO BOTELHO ou incenso. É o cheiro de haxixe. Nas noites de
quinta-feira, o santuário, em Karachi, fica cheio
de homens de solidéu e mulheres cobertas pelo
véu islâmico que espalham guirlandas de flores
sobre as lajes azuis do túmulo, entoando hinos
ao som de tambores – enquanto os fiéis passam
entre si cachimbos cheios de Cannabis sativa.
IMAGENS GETTY IMAGES
24 AVENTURAS NA HISTÓRIA
mística do Islã
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
do Islã. Em outras partes da Ásia Central, as no âmago. Por isso, a ortodoxia islâmica muitas
festividades sufis envolvem não só o consumo vezes os considerou heréticos.”
de haxixe, como danças vertiginosas em que
homens, mulheres e não muçulmanos se mis- ÊXTASE MÍSTICO
turam em caóticos carnavais religiosos. A tole- Ao longo de sua história, os sufis pregaram não
rância e o gosto pela perda coletiva de sentidos só a união entre o humano e o divino, mas tam-
é um traço do sufismo desde seu surgimento, bém a convivência pacífica entre diferentes
na Idade Média. Os sufis foram por séculos uma crenças. E, de acordo com alguns relatos, deram
mistura de monges, santos, andarilhos, hereges, outra contribuição à humanidade, sem a qual
aventureiros e mendigos. Embora hoje a maio- o mundo seria muito mais tedioso e sonolento:
ria dos adeptos se declare muçulmano devoto, o café. Como você verá adiante, o expresso que
os dervixes muitas vezes se defrontaram contra bebemos todo santo dia surgiu como um anjo
a sharia (lei religiosa islâmica) em sua busca da guarda na busca do homem por Deus.
pelo contato de primeiro grau com Deus. “Entre Não se sabe ao certo quem foi o primeiro
muitos intelectuais árabes, o sufismo é uma sufi. Segundo lendas medievais, o sufismo co-
espécie de resistência à cultura oficial, à orto- meçou no século 7, entre alguns dos primeiros
doxia e à repressão do poder instituído”, des- seguidores de Maomé. Se os grandes líderes
creveu Mamede Mustafá Jarouche, tradutor da buscavam a criação de uma comunidade islâ-
obra Mil e Uma Noites para o português. “Os mica unificada – a umma –, os sufis preferiam
sufis praticavam o que em árabe se chama de a busca individual pela santidade. A marca dos
batinismo – a crença interiorizada, a fé que está primitivos dervixes era a opção por uma vida
AVENTURAS NA HISTÓRIA 25
RELIGIÃO
26 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Ibrahim ibn Adham – místico nascido no atu- Em algumas ordens, as técnicas
al Afeganistão, no século 8, cuja biografia tem
semelhanças com a de Sidarta Gautama, o de união com Deus são extremas,
Buda. Ibrahim nasceu príncipe – sua família revelando cenas que, aos olhos
governava a cidade de Balkh ou Bactra – e re-
nunciou ao poder após uma iluminação divina. ocidentais, podem ser chocantes
Trocou seu manto dourado pela túnica de um
pastor, passou o resto da vida peregrinando Em algumas ordens, as técnicas de união
pelo Oriente Médio e – segundo os fiéis – rea- com Deus são mais extremas. Em 1974, o an-
lizando milagres. tropólogo holandês Martin van Bruinessen
O sufismo também tem um mártir crucifi- frequentou cultos sufis no Curdistão – territó-
cado: o persa Mansur Al- Hallaj, nascido no rio habitado pela etnia curda na Síria, Turquia,
século 9. Após peregrinar à Índia e à China, Iraque e Irã. A experiência – descrita na obra
onde entrou em contato com o hinduísmo e o Agha, Shaikh and State: On the Social and Poli-
budismo, foi viver em Bagdá, centro do mundo tical Organization of Kurdistan – contém cenas
islâmico. Reuniu ao seu redor um grande grupo que, aos olhos ocidentais, podem ser chocantes
de seguidores – e levou tão a sério a união mís- ou inacreditáveis. Repetindo centenas de vezes
tica entre o humano e o divino que, durante um a profissão de fé islâmica – la illaha illallah,
momento de transe, exclamou: Ana al-Haqq! “não há deus além de Deus” –, os dervixes
(“Eu sou a Verdade”, em árabe). Al-Haqq, no entraram em um estado semelhante à hip-
entanto, é um dos 99 nomes de Deus listados nose, balançando as cabeleiras em movimentos
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
pelo Alcorão – por isso, Al-Hallaj foi acusado
de heresia. Por ordens do califa Al-Muqtadir,
circulares. “De repente, um deles se levantou
num salto e apanhou um espeto com cerca de
foi amarrado a uma cruz às margens do Tigre.
Em outras versões, ele foi queimado, após ser
desmembrado a golpes de espada.
A partir do século 14, os sufis passaram a se
organizar em confrarias, chamadas turuq em
árabe e tariqat em persa. Muitas existem até
hoje. Cada ordem sufi segue o ensinamento de
um santo fundador – e as confrarias distin-
guem-se umas das outras pelas técnicas de me-
ditação e contemplação. Além dos rituais mu-
çulmanos – como as cinco preces diárias – os
adeptos do sufismo praticam um rito especial,
o dikhr. Em árabe, a palavra significa “lembran-
ça” ou “invocação”. Praticada em grupo, geral-
mente ao som de tambores, f lautas, sinos e
outros instrumentos, a dikhr pode se resumir à
repetição ritmada dos nomes de Deus. Em al-
gumas confrarias, o ritual envolve danças – é o
caso da ordem Mevlevi, da Turquia. Seus der-
vixes são famosos no mundo islâmico pela prá-
tica da sema – uma dança vertiginosa, em que
os fiéis fazem giros de 360 graus ao redor do
próprio corpo, durante vários minutos, ao som
de músicas, hinos e versos do Alcorão.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 27
RELIGIÃO
40 cm de comprimento... Ajoelhou-se à minha era feito de forma brusca, sem preparação, e era
frente e, abrindo bem a boca e jogando a cabe- evidente que não havia nenhum truque envol-
ça para trás, enfiou o espeto na base da língua. vido”, disse Bruinessen. Segundo ele, as auto-
Pressionou o cabo com força, até que a ponta mutilações não eram feitas como forma de
apareceu embaixo do seu queixo”, escreve Brui- mortificação ou tortura (os sufis pareciam não
nessen. “Cerca de cinco minutos depois, ele sofrer dor alguma), mas como demonstração
tirou o espeto da boca e fechou a ferida com o de tawakkul – a confiança absoluta em Deus,
dedão. Não houve mais que algumas gotas de um dos estágios mais elevados no “caminho
sangue. Poucos minutos mais tarde, ele estava místico” do sufismo.
tomando uma xícara de chá.” Práticas como essas nem sempre são aceitas
Em rituais semelhantes, o antropólogo tes- pelo Islã ortodoxo – até mesmo a dança dos
temunhou sufis mastigando vidro, engolindo dervixes mevlevi é considerada herética por
pregos, andando sobre espadas afiadas, beben- alguns adeptos do salafismo, a vertente extrema
do inseticidas e agarrando fios elétricos – com da religião muçulmana (os talibãs do Afeganis-
direito a faíscas saindo das mãos. “Tudo isso tão, por sinal, consideram qualquer música pe-
caminosa). Mas a prática que mais atraiu con-
denações foi o consumo de haxixe – hoje quase
As bebidas alcoólicas são proibidas desaparecido no mundo islâmico, era um hábi-
pelo Alcorão – que nada diz sobre to comum na Idade Média. As bebidas alcoólicas
são proibidas pelo Alcorão – mas nada diz sobre
substâncias como a Cannabis substâncias como a Cannabis e seus derivados.
Entre em nosso sativa
Canale seus
no derivados
Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
Alguns historiadores árabes atribuíram a des-
28 AVENTURAS NA HISTÓRIA
coberta das propriedades alucinógenas da erva cretos religiosos proibindo o consumo da erva
a um santo sufi, o persa Shayk Haydar. De acor- foram emitidos no século 13 no Oriente Médio.
do com textos medievais árabes, o dervixe teria Em 1532, no Egito, beber café passou a ser crime
colhido uma folha da erva durante um passeio passível de pena de morte. O haxixe desapareceu
por volta do ano 1115 do calendário cristão. nos países de maioria muçulmana. Outras prá-
Após mastigá-la, convenceu-se de que era uma ticas também foram perseguidas – como o culto
dádiva divina e levou-a em segredo até seus dis- dos santos. Nas últimas décadas, centenas de
cípulos: “Deus lhes deu o privilégio de conhecer pessoas foram mortas em atentados contra san-
os poderes desta planta”, teria dito Haydar, se- tuários no Paquistão. Especialistas garantem:
gundo um fragmento atribuído ao erudito egíp- acostumado a perseguições, o excêntrico misti-
cio al-Din al-Zarkashi, do século 14. “Quando cismo sufi deve sobreviver à onda fundamenta-
a consumirem, suas preocupações se dissiparão lista. Para Nicholas Schmidle, da revista New
e suas mentes ficarão mais nítidas. Cultivem Yorker, é uma pena que os radicais atraiam toda
essa planta e guardem seu segredo.” a atenção. “O Talibã pode ter as armas – mas o
sufismo ainda tem as multidões.”
PERSEGUIÇÕES
Os seguidores de Haydar passaram a cultivar
haxixe – mas não guardaram o segredo até que
ele se espalhou por todo o Oriente Médio. Era A EXPANSÃO DO SUFISMO
consumido de diversas maneiras: alguns tosta- Não se sabe ao certo onde o sufismo
vam as folhas e as mastigavam com punhados surgiu, mas no século 8 o movimento já
era forte desde o Egito até o Irã e a Ásia
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
de açúcar e gergelim, outros a usavam como
ingrediente para tortas. Por fim, passou a ser
Central. Sua expansão para outras partes
do mundo foi fácil. A tolerância religiosa
fumada em cachimbos. Com o tempo, seu uso
pregada pelos dervixes transformou-o em
se tornou generalizado mesmo fora do sufismo. um grande abre alas do Islã. Para os sufis
Mas a erva sempre ficou associada aos dervixes medievais, havia muitas rotas em direção
– tanto que um de seus apelidos medievais, em a Deus. Um exemplo é o sufi indiano
árabe, era “erva dos sufis”. Shabaz Qalandar, do século 12, que
Outra inovação foi o hábito de beber qahwa pregou a convivência pacífica entre
– o café. De acordo com uma lenda (como reve- muçulmanos e hindus e atraiu seguidores
la a página 11 desta edição), peregrinos teriam de diversas religiões. O sufismo também
encontrado a planta em suas andanças pela entrou pacificamente entre as populações
Etiópia e Sudão. No século 14, o hábito de con- cristãs da Anatólia e do Cáucaso – regiões
sumir os grãos de café se espalhou pelos mos- que acabaram se convertendo ao Islã por
volta do século 13. O sufismo chegou até
teiros do Iêmen e do Egito. No início, os grãos
a China no século 17 – e até hoje é
de café eram mastigados. Depois, fervidos com
seguido entre a população da etnia uigur
água. Os sufis persas acrescentaram o último na província de Xinjiang, no noroeste do
toque: os grãos passaram a ser torrados antes país. A tolerância dos sufis medievais em
da infusão. Com o tempo, a beberagem passou relação às crenças animistas africanas o
a ser consumida em todos os países islâmicos. tornou popular em países como o Mali, a
No século 17, foi levada à França por um em- Somália e o Senegal. Hoje, contudo, o
baixador do império otomano e logo passou a sufismo é perseguido em muitos países
ser bebido por europeus ricos. Para satisfazer a de maioria muçulmana. Na Arábia Saudita,
sede europeia, o café passou a ser plantado nas onde o Islã nasceu, livros de autores sufis
Américas – eis como o misticismo islâmico são proibidos. Na Somália, sufis já
pegaram em armas contra o grupo
influenciou a História do Brasil.
fundamentalista Al-Shabab.
O haxixe e o café atraíram perseguições. De-
AVENTURAS NA HISTÓRIA 29
CAPA
DEU
AR TÉIS IAIS
DO S QU AS SOC TRE
SPAC
H
TRO OR M RIGO
O
D AIS
ICO MO OR
OLÍT AM PRO LEIT
T
O P S E
AT AV DE
N
O S, UM E B USC R FRAU
E
N U RR A
EM A OLTAS Q NCE
HÁ C V E E
M
E A
OAR VELH
INÍCI ÚBLICA
NA R
EP
O V I
O M
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS TEN
30 AVENTURAS NA HISTÓRIA
TISTA
EN
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
AVENTURAS NA HISTÓRIA 31
CAPA
32 AVENTURAS NA HISTÓRIA
2
R E V O LTA D O S
19 2 18 DO F O R T E
Um capitão
4 tenentes
2 sargentos
Um cabo
5 civis
Forte de Copacabana
Marcha dos 18
FONTE INFOGRÁFICOS: ATLAS HISTÓRICO DO BRASIL - FGV / CPDOC
Tropas legalistas
Local do combate
AVENTURAS NA HISTÓRIA 33
CAPA
34 AVENTURAS NA HISTÓRIA
4
R E V O LTA
19 2 PA U L I S TA
AVENTURAS NA HISTÓRIA 35
CAPA
Foram criados quatro “destacamentos”, lide- bate pesado ou quartel. A Coluna Prestes per-
rados por Cordeiro de Farias, João Alberto, correu quase três vezes a distância percorrida
Djalma Dutra e Siqueira Campos, um dos so- pelo comunista Mao Tsé-tung na mundial-
breviventes dos Dezoito do Forte. O outro mente famosa Longa Marcha, realizada uma
remanescente do confronto em Copacabana, década mais tarde.
Eduardo Gomes, foi preso antes que pudesse A distância percorrida foi imensa, assim
integrar o grupo. Miguel Costa seria o coman- como as dificuldades e as controvérsias. Por
dante-geral da “Primeira Divisão Revolucio- onde passaram, os soldados roubaram cavalos,
nária”, enquanto Prestes seria o chefe do Es- roupas e joias, extorquiram comerciantes, as-
tado-Maior e Juarez Távora, o subchefe. saltaram as coletorias e libertaram presos.
Isidoro Dias, já com 60 anos de idade e menos “Libertar o homem do interior do chefe polí-
otimista quanto ao resultado do movimento, tico ou do coronel despótico, senhor de braço
refugiou-se na Argentina com a missão de e cutelo, parecia-nos um grande passo para o
encontrar apoio externo. “A guerra no Brasil, progresso do país”, escreveu o pernambucano
qualquer que seja o terreno, é a guerra do mo- João Alberto. A propaganda governista, no
vimento. Para nós, revolucionários, o movi- entanto, ajudou a disseminar a ideia de terror
mento é a vitória”, afirmou Prestes em carta – favorecida pela própria tática adotada pelos
ao general. A partir rebeldes, que usava de
daí, a guerrilha seria a emboscadas para ame-
ma rc a d a nome ad a
A COLUNA PRESTES drontar as tropas do
Coluna Miguel Costa- PERCORREU QUASE 25 governo, além de co-
Entre em nosso Canal MIL
-Prestes , em pouco
tempo chamada apenas
no KM
Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
EM DOIS ANOS,
meter u ma série de
atrocidades. Embora
de Coluna Prestes, da- VENCEU MAIS DE 90 também tenham distri-
dos a lidera nça e o buído viveres para a
prest íg io a lca nçado CONFRONTOS E NUNCA população carente dos
pelo capitão gaúcho. SOFREU DERROTA povoados, na maioria
Depois do Paraná, a dos lugares quando a
Colu na Prestes iria SIGNIFICATIVA Coluna Prestes se apro-
percorrer o Mato Gros- ximava, a população
so, Goiás, Minas Gerais, Maranhão, Piauí, deixava suas casas em pânico. Tropas do go-
Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernam- verno federal, milícias estaduais e grupos de
buco e a Bahia, retornando pelo Centro-Oes- cangaceiros particulares tentaram barrar a
te para depor armas já em território boliviano, marcha, mas salvo alguns poucos mortos ou
sem rendição ou uma derrota sequer – resta- capturados, não obtiveram êxito. Apesar de
vam pouco mais de 600 homens, 90 fuzis, não se renderem, a situação dos rebeldes era
quatro metralhadoras pesadas, dois fuzis me- difícil e poucas foram às adesões. Apenas no
tralhadoras e munição para 8 mil tiros. Ha- Nordeste houve um número maior de alista-
viam percorrido, segundo registros do próprio mentos voluntários. Ainda assim não chega-
movimento, 24.947 quilômetros em dois anos, ram a 500, a maioria no Piauí e no Ceará.
um mês e sete dias (abril/1925 – junho/1927). Motivo pelo qual a Coluna Prestes nunca pas-
Segundo alguns historiadores, a Coluna Pres- sou de pouco mais de 1,2 mil homens, a pé ou
tes venceu mais de 90 confrontos e nunca so- a cavalo. Enfrentar o interior brasileiro, atra-
freu derrota significativa. O motivo não era a vés da mata virgem, da caatinga e do Pantanal,
tática de guerrilha, anunciada por Prestes. era pouco encorajador. Não havia serviço de
Como não combatia como o exército regular, ambulâncias nem aparelhos cirúrgicos, os me-
preferia fustigar o inimigo e fugir a dar com- dicamentos eram raros e os rebeldes conta-
36 AVENTURAS NA HISTÓRIA
-19 2 7 COLUNA
19 2 5 PRESTES
Formação da
Coluna Prestes
Maiores batalhas
Levante paulista
Levante gaúcho
COLUNA PRESTES:
Grosso da tropa
Destacamento
Siqueira Campos
AVENTURAS NA HISTÓRIA 37
CAPA
vam com apenas um médico e um veterinário. chegou a receber 80 mil dólares de Vargas para
Do ponto de vista militar, foi feito extraordi- compra de armamento. O dinheiro, porém,
nário, mas no aspecto político foi um fracasso. seria destinado ao movimento comunista, de
Não derrubou os presidentes Arthur Bernar- quem o capitão se aproximava. Sem sucesso,
des e Washington Luís, tampouco conseguiu ele tentou convencer os antigos companheiros
incluir qualquer de suas propostas e aspirações de Coluna Prestes, Siqueira Campos (que aca-
na pauta do governo. baria morrendo num acidente aéreo), Juarez
Távora e Isidoro Dias, de que a Aliança Liberal
ALIANÇA LIBERAL seria uma simples troca de oligarquias no po-
Quando a marcha foi encerrada, Prestes se der e não uma revolução social como o espe-
exilou na Bolívia, onde trabalhou em obras de rado e propagado. Isolado, Prestes lançou seu
saneamento e abertura de estradas. Ali, en- Manifesto Comunista.
controu-se com Astrogildo Pereira, secretário- Quando a derrota aliancista foi confirmada
-geral do Partido Comunista do Brasil, e com nas urnas em 1930, os demais líderes tenen-
outros líderes comunistas, como Rodolfo tistas aderiram todos ao movimento que pla-
Ghioldi e Abraham Guralski, dirigente da nejava levar Vargas ao Palácio do Catete, a
Internacional Comunista. Enquanto isso, o sede do governo, por meios não democráticos.
presidente Washington Quando João Pessoa, o
Luís quebrava com a vice de Vargas durante
política do “Café com
NO GOLPE DE 1937, O as eleições, foi assassi-
Leite” – o acordo entre MOVIMENTO TENENTISTA nado em Recife, o cri-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
os políticos mineiros e
paulistas para a suces- ACABOU SENDO
me passional serviu de
pretexto político. Além
são presidencial – indi- CONSUMIDO PELO de Isidoro Dias e Juarez
cando o governador de Távora, Cordeiro de
São Paulo Júlio Prestes PRÓPRIO GOVERNO QUE, Farias, Miguel Costa e
e não o candidato mi- POR ANOS, AJUDOU A João Alberto também
neiro, como seria de se participaram da cha-
esperar. Traída, Minas ALCANÇAR O PODER mada “Revolução Libe-
Gerais se aliou ao Rio ral”, o movimento cívi-
Grande do Sul e à Paraíba, formando a Alian- co-militar que derrubou Washington Luís em
ça Liberal. Getúlio Vargas e João Pessoa se- outubro de 1930 e impediu a posse do eleito
riam os candidatos de oposição a Júlio Prestes. Júlio Prestes. Depois de anos de luta, a “hora
Mas desde o início da campanha eleitoral, do triunfo” havia chegado. Apoiado pelos “te-
iniciada em 1929, os aliancistas sabiam que nentes”, Vargas daria início à centralização do
era muito pouco provável que obteriam a vi- poder, o que acabaria culminando com um
tória nas urnas, já que o sistema eleitoral era golpe de estado no próprio governo, a imple-
controlado pelo governo. Seria necessário o mentação do Estado Novo, em 1937. Neste ano,
uso de força militar. Siqueira Campos e Luiz porém, muitos dos antigos líderes do movi-
Carlos Prestes eram os nomes mais cotados mento de 1922 já não apoiavam mais o caudi-
para liderar um movimento armado contra lho gaúcho. O movimento tenentista acabou
Washington Luís. O capitão gaúcho agradava sendo consumido pelo próprio governo que
aos líderes civis e contava com a admiração de ajudara a alcançar o poder.
muitos militares, tinha prestígio popular, ex-
periência em conf litos armados, preparo e
inteligência. Exilado em Buenos Aires, Prestes Rodrigo Trespach é historiador e escritor, autor de Grandes Guerras
e A Revolução de 1930 (HarperCollins Brasil, 2021 e 2022)
começou a negociar com a Aliança Liberal e
38 AVENTURAS NA HISTÓRIA
MARECHAL HERMES ARTUR BERNARDES
AVENTURAS NA HISTÓRIA 39
GUERRAS
SEM
40 AVENTURAS NA HISTÓRIA
VISTA COM ATENÇÃO AOS OLHOS DO MUNDO, A
GUERRA RUSSO-UCRANIANA É PREOCUPANTE E
MOTIVO DE ALERTA. NO ENTANTO, NÃO É O ÚNICO
CONFLITO GRAVE QUE ACONTECE NO PLANETA
POR DIEGO ANTONELLI
O
som das bombas, tiros e explo- nal. A maioria está localizada na Ásia e
sões silencia dia após dia o cho- na África. Para a professora de Relações
ro de dor e desespero de mi- Internacionais do Centro Universitário
lhões de pessoas ao redor do Sagrado Coração, Letícia Rizzotti, douto-
mundo. Destruição, mortes, fome, sangue randa e mestre pelo Programa de Pós-
e fuga não são novidades, mas tornaram- -Graduação em Relações Internacionais
-se constantes também na história recen- San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-
te: o planeta enfrenta hoje, de acordo com -SP) na Área de Concentração de Paz,
a Organização das Nações Unidas, o Defesa e Segurança Internacional, esses
maior número de conflitos desde o fim conflitos tendem a trazer consequências
da Segunda Guerra, atingindo direta- geopolíticas. “O ponto é a área estratégica
mente 25% dos habitantes do globo que em debate. Qual potência internacional
vivem em áreas afetadas por guerras. está envolvida e o quanto ela tem interes-
E mesmo assim, diante de uma parce- se naquela região? Trata-se de um debate
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
la considerável de gente sem paz, o mun-
do se depara com ataques diários contra
sobre o interesse de ‘quem e onde’ e é a
partir daí que o processo de chamar aten-
a lei internacional de direitos humanos e ção se inicia. A divulgação na imprensa
com a ampliação de arsenais nucleares. internacional é necessariamente vincula-
Segundo a ONU, só no ano passado, mais da a esses grandes polos”, diz.
de 84 milhões de pessoas saíram de suas A polêmica da guerra na Ucrânia, se-
casas por causa das guerras e, neste ano, gundo a especialista, também está rela-
a entidade estima que 274 milhões de ho- cionada a este fato. “Quando tratamos do
mens, mulheres e crianças precisarão de Leste Europeu, um espaço situado nas
algum tipo de ajuda humanitária para franjas do centro do capitalismo, há a pre-
sobreviver. ocupação de um transbordamento dos
Embora o foco mundial de 2022 seja conflitos que possa atingir o centro da
especialmente a guerra entre Rússia e Europa”. Além disso, Letícia destaca que
Ucrânia, informações do Rastreador de a maior parte da produção do conheci-
Conflito Global, do Conselho de Relações mento sobre guerras é feita nesses grandes
Estrangeiras dos Estados Unidos (CFR) centros. “A lente pela qual olhamos esses
e do Projeto de Dados de Localização e fenômenos vem da Europa e dos Estados
Eventos de Conflitos Armados (ACLED, Unidos. Isso faz com que os conflitos na
sigla em inglês) apontam a ocorrência de periferia do capitalismo sejam vistos
cerca de 30 outros conflitos armados pelo como de segunda ordem”, explica, sem
mundo, oriundos de diversas naturezas, deixar de reconhecer, no entanto, que na
como questões políticas, religiosas, étni- última década houve uma virada nesse
cas e territoriais. sentido, considerando uma produção de
Muitas destas guerras, porém, estão registros mais intensa sobre cada conflito
longe dos holofotes diplomáticos, rece- a partir de seu local de origem. Confira a
bendo menos atenção e ajuda internacio- história de guerras atuais a seguir.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 41
GUERRAS
À BEIRA DA FOME
A situação no Iêmen é considerada pela
ONU o pior desastre humanitário na
atualidade. A guerra, iniciada em 2014, já
para o sul. Em dez meses, os rebeldes to-
maram a capital, Sanaa. Comprometido a
voltar ao poder, o ex-presidente autoritário
resultou em 233 mil mortes, sendo 131 mil Saleh aliou-se militarmente aos antigos
provocadas por falta de comida, serviços inimigos: os houthis, que tomaram o palá-
de saúde e infraestrutura. Mais de 10 mil cio presidencial em janeiro de 2015, levan-
crianças morreram. Todo esse horror co- do Hadi a renunciar e fugir para o exterior.
meçou após a Revolução Iemenita de 2011, No mês seguinte, porém, emitiu um comu-
que fez o ditador Ali Abdullah Saleh (no nicado rescindindo sua renúncia.
233 MIL governo do país desde a sua unificação, em
1990) entregar o poder ao vice, Abdrabbuh
O conflito escalou drasticamente em
março, quando a intervenção de uma alian-
MORTES, SENDO Mansour Hadi, que passou a conviver com ça liderada pela Arábia Saudita, EUA e
131 MIL ataques de jihadistas, aumento de casos de
corrupção e, consequentemente, com de-
Emirados Árabes Unidos realizou uma
série de ataques aéreos contra os houthis,
PROVOCADAS semprego, falta de alimento e combustíveis. na tentativa de restaurar o governo de Hadi
POR FALTA DE
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
A esperança de estabilidade política foi e combater a presença de xiitas no país. Em
COMIDA, SAÚDE E minando até que, em 2014, a guerra civil setembro, o ex-presidente voltou a Áden,
INFRAESTRUTURA eclodiu. O movimento Houthi – que defen- segunda cidade mais importante do Iêmen,
de a minoria muçulmana xiita Zaidi – to- após seis meses de exílio na Arábia Saudita.
mou o controle da região central do norte O esforço da ONU para intermediar as
4 MILHÕES da província de Saada e começou a avançar negociações de paz entre os houthis e o
governo iemenita (reconhecido internacio-
DE PESSOAS nalmente pela figura do presidente Hadi)
FORAM foi interrompido em 2016. Assim, em de-
OBRIGADAS A zembro de 2017, segundo consta em relató-
FUGIR DE SUAS rio do Rastreador Global de Conflitos, Hadi
passou a se exilar mais uma vez na Arábia
CASAS Saudita (no mesmo mês em que Saleh rom-
peu com os houthis e pediu que seus segui-
dores pegassem em armas contra eles).
Resultado: o tirano foi morto e suas forças
derrotadas em dois dias.
Em abril desse ano, Hadi renunciou ao
cargo novamente em favor de um conselho
formado por oito pessoas em meio a nego-
ciações de paz lideradas – outra vez – pela
ONU. Até o momento, 4 milhões de pesso-
as foram obrigadas a fugir do país e mais
Garota iemenita
em um campo de 20,7 milhões (71% da população) preci-
de deslocados sam de assistência humanitária. Segundo
internos na
província de Amran a ONU, 5 milhões vivem sem comida.
42 AVENTURAS NA HISTÓRIA
O CONFLITO
ÉTNICO DA
1 MILHÃO
gundo a Anistia Internacional, o conflito estopim do conflito. Abiy condenou as
é marcado por extrema violência: estupros eleições regionais de Tigré, acusou o
em massa contra mulheres e meninas e o FLPT de atacar um acampamento militar MUDARAM
assassinato de diversos civis. e saquear bens militares federais e, em
INTERNAMENTE
A região é ocupada pela etnia tigré, seguida, declarou um estado de emergên-
responsável pela criação da Frente de Li- cia de seis meses, enviando tropas para
MOHAMMED HAMOUD; YASUYOSHI CHIBA / GETTY IMAGES
bertação do Povo Tigré (FLPT), partido Mekelle, capital de Tigré, em uma ofen-
político que assumiu o poder em 1991 e siva direcionada aos líderes rebeldes. Des-
foi sucedido por Abiy em 2018. No gover- de então, as atrocidades não cessam e não
no, o FLPT liderou uma coalizão de qua- há qualquer negociação para pacificar a
tro partidos e implementou uma série de situação. O conflito também desencadeou
reformas políticas que marginalizaram uma crise contínua de refugiados e des-
outros grupos étnicos. Assim, ao mesmo locamentos. Mais de 61 mil pessoas fugi-
tempo em que dados sinalizavam uma ram para o Sudão e mais de 1 milhão
Etiópia mais próspera em termos econô- mudaram internamente.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 43
GUERRAS
EA
VIOLÊNCIA
SEM FIM
Gangues armadas que atuam em Por-
to Príncipe não são novidade, mas, nos
Manifestantes da últimos anos, o domínio por elas sobre a
oposição queimam pneus
enquanto marcham pelas
capital aumentou e o país, em geral, sofre
ruas de Porto Príncipe com falta de segurança, assassinatos e
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS sequestros, além do agravamento da cri-
NO ANO D
esde 2021, a população do Haiti con-
vive com uma onda de violência que
parece não ter fim. A situação culminou
se política. “As operações de gangues
estão frequentemente ligadas a movimen-
tos políticos e, às vezes, são supostamen-
PASSADO,
com o assassinato do presidente Jovenel te conduzidas em conluio com a elite
MAIS DE
Moïse, baleado 12 vezes em julho daque- dominante”, descreve relatório do
800 le ano, com tiros que atingiram sua cabe-
ça e peito. A polícia haitiana acredita que
ACLED. Porém, antes mesmo do assas-
sinato do presidente, havia uma forte
PESSOAS FORAM um grupo de mercenários, principalmen- mobilização antigovernamental, motiva-
SEQUESTRADAS te estrangeiros, foi responsável pela bar- da por divergências sobre o fim do man-
NO HAITI bárie. O reflexo disso foi uma nova espi- dato de Moïse. Membros da oposição
ral de violência, que afeta também a alegaram que ele terminaria em fevereiro
distribuição de alimentos para 45% da de 2021, cinco anos depois de o ex-presi-
população ou 4,5 milhões de pessoas. dente Michel Martelly deixar o cargo, no
Segundo o ACLED, a situação do país está entanto, Moïse permaneceu no poder
entre os dez conflitos mais preocupantes afirmando que ficaria até fevereiro de
do mundo atualmente. 2022 – cinco anos após sua posse.
Ariel Henry, o então primeiro-minis- Grande parte das manifestações no
VALERIE BAERISWYL; AAREF WATD / GETTY IMAGES
tro, assumiu o comando do Haiti de forma primeiro semestre do ano passado foi
interina. Contudo, diversos grupos e fac- realizada contra o governo e suas refor-
ções contestam seu mandato, exigindo que mas, no mesmo período em que houve
Henry renuncie. O premiê chegou a esca- aumento de registros sobre casos confli-
par de um atentado contra sua vida em tantes entre gangues e de ataques a civis.
janeiro, somando à violência que percorre Para piorar a situação, o Haiti sofreu um
pelo país: no ano passado, mais de 800 terremoto em agosto de 2021 que matou
pessoas foram sequestradas no Haiti. mais de 2 mil pessoas.
44 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Para agravar o cenário, em março de
2013, o Estado Islâmico conquistou uma
grande faixa do território sírio e chegou
a declarar a criação de um califado em
junho de 2014. Uma coalização coman-
380 MIL
remos a queda do regime”. A resposta do íses, a maioria em nações vizinhas. Além PESSOAS
ditador Bashar Al-Assad foi prender e disso, há mais 6,7 milhões de pessoas
torturar cerca de 15 jovens, dando início deslocadas dentro do próprio país. De
a uma guerra civil que já vitimou mais de acordo com o ACNUR, órgão da ONU Família síria quebrando o jejum
380 mil sírios, destruiu cidades e tem em prol de refugiados, cerca de 70% dos do mês sagrado muçulmano do
Ramadã, no meio dos escombros
mais de 200 mil pessoas desaparecidas. que deixaram a Síria vivem na pobreza e de sua casa destruída por um
A prisão dos estudantes gerou uma mais de 2 milhões sofreram algum tipo ataque militar
AVENTURAS NA HISTÓRIA 45
GUERRAS
O TALIBÃ NO PODER
A pós os atentados de 11 de Setembro de
2001 nos EUA, tropas americanas in-
vadiram o país asiático e destituíram o
cessidades básicas como moradia e comi-
da. Estima-se em 2,6 milhões o número
de refugiados do país. Especialistas ainda
Talibã do poder, alegando que o grupo temem que o Afeganistão passe por uma
fundamentalista islâmico abrigou e prote- das mais graves crises humanitárias devi-
geu a rede terrorista Al-Qaeda, autora dos do às sanções e ao isolamento impostos
atentados. Duas décadas depois, com a por grande parte do mundo.
saída da ocupação militar dos EUA no país, A volta do Talibã ao poder começou a
o Talibã retornou ao poder. Grupos mino- se desenhar no início de 2021, em meio a
2,6 ritários étnicos e religiosos, além de mu-
lheres e membros do antigo governo são
negociações de paz que estavam em anda-
mento – enfrentando, porém, ataques re-
MILHÕES alvos constantes da perseguição do “novo
e velho” regime. Em paralelo, os confron-
gulares do Talibã contra as forças do então
Estado afegão. Neste período, a ACLED
DE REFUGIADOS
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
DO PAÍS
tos armados também não dão trégua.
Diante desta realidade, a ACNUR
registrou aumento nos confrontos arma-
dos. Poucos meses depois, os EUA anun-
aponta que metade dos cerca de 40 mi- ciaram que retirariam as tropas do Afega-
lhões de afegãos precisa de ajuda para ne- nistão, aumentando de forma significativa
as ofensivas terrestres por parte dos talibãs
– avanços que foram ganhando fôlego até
tomarem capitais provinciais estratégicas
do país. Em 15 de agosto, após uma verti-
ginosa campanha militar de duas sema-
nas, as forças do Talibã entraram em Ca-
bul e derrubaram o governo afegão. Em
seguida, o que se viu foi um êxodo em
massa de afegãos e estrangeiros, deixando
caótica a situação do Aeroporto Interna-
cional Hamid Karzai, na capital.
A resistência armada dos civis contra
o Talibã continuou até o final do ano,
quando dois principais grupos armados,
a Frente de Resistência Nacional e o Esta-
do Islâmico, entraram em confronto com
as forças do movimento fundamentalista.
Ao mesmo tempo, civis têm sido alvos
Membro da milícia também de grupos armados entre agosto
anti-Talibã dispara
durante conflito e o final de 2021: registros da ACLED
com insurgentes apontam mais de 420 mortes e 290 ata-
talibãs na vila de
Mukhtar ques contra afegãos.
46 AVENTURAS NA HISTÓRIA
E O GOLPE
DE ESTADO
Manifestante com
barricada improvisada
em chamas durante um
protesto contra o golpe
militar em Yangon
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
O estopim para o início de uma guerra
civil que já matou mais de 12 mil pes-
soas em Mianmar (antiga Birmânia, lo-
país mais mortal do mundo para mani-
festantes no ano passado. O grau de vio-
lência contra civis pelas forças estatais
A GUERRA CIVIL JÁ
MATOU MAIS DE
calizada no Sudeste Asiático) foi um
golpe de Estado. Enquanto a Liga Nacio-
desde o golpe tem sido extremamente
grave, com um aumento de 620% em 2021
12 MIL
nal para a Democracia (NLD) se prepa- quando comparado com 2020. PESSOAS
rava para iniciar um segundo mandato Vários casos de civis queimados até a
em 1º de fevereiro de 2021, os militares morte foram relatados pela imprensa local VIOLÊNCIA
tomaram o poder no país, declarando – em 24 de dezembro, por exemplo, mais
CONTRA CIVIS
estado de emergência. de 30 pessoas foram incineradas pelos
Após a eclosão de manifestações em militares no município de Hpruso, no PELAS FORÇAS
oposição ao golpe, os militares responde- estado de Kayah. Além disso, quem se ESTATAIS TEVE
ram assassinando centenas de manifes- manifesta contra o golpe é preso arbitra- AUMENTO DE
620%
tantes nos primeiros dias de conflito. “À riamente. Os militares ainda são acusados
medida que a repressão se intensificava, de torturarem detidos e cometerem atos
muitas comunidades começaram a pegar de violência sexual contra mulheres.
em armas para se defender, levando à for- O Exército de Mianmar ocupou o po-
mação de forças de defesa locais”, aponta der de 1962 a 2011. Após quase meio sé-
RASHID DURRANI; STR / GETTY IMAGES
relatório da Fundação ACLED. Com o culo de ditadura, o país vivia uma fase
tempo, milícias locais que passaram a se democrática. Segundo a ONG Interna-
autodenominar Forças de Defesa do Povo tional Rescue Committee, mais de 14
atacaram comboios militares como res- milhões de pessoas (mais de um quarto
posta à repressão do regime. De acordo da população local) precisam de algum
com dados da instituição, Mianmar foi o tipo de ajuda humanitária no país.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 47
GUERRAS
Um menino palestino
observa fumaça saindo
de alvos durante ataques
aéreos israelenses na
região sul de Gaza de
Khan Yunis, controlada
pelo movimento Hamas
DUELO ETERNO
A guerra entre Israel e Palestina, que
teve início em 1948 quando foi decla-
rada a criação do Estado de Israel, envol-
passa pelo debate em torno da cidade de
Jerusalém, que os palestinos – cuja região,
composta formalmente pela Faixa de Gaza
ve a disputa sobre a posse do território e a Cisjordânia, é reconhecida por 138 dos
palestino e mistura, ainda, elementos 193 membros da ONU – defendem ser sua
políticos e religiosos. Desde então, mui- capital. Hoje, porém, Jerusalém é capital
MAHMOUD KHATAB; THOMAS COEX / GETTY IMAGES
tas pessoas perderam a vida em diversos de Israel. Diante disso, historicamente, são
e graves conflitos. vários os períodos em que se registra o
Em novembro de 2012, a Assembleia aumento da tensão e a escalada da violên-
Geral da ONU reconheceu a Palestina cia. Mais recentemente, em maio de 2021,
como um Estado observador, fato que não o Movimento de Resistência Islâmica, o
pacificou a disputa pela região e nem di- Hamas, e Israel entraram em conflito por
minuiu a luta palestina para ser reconhe- 11 dias, matando cerca de 250 pessoas – até
cida como um Estado independente. Isso acertarem um cessar-fogo.
48 AVENTURAS NA HISTÓRIA
JIHADISTAS NA como minérios e petróleo, que vivem o
mesmo drama. Em Moçambique, acredi-
ta-se que a milícia tenha ligações com o
próprio Estado Islâmico. Grupos de direi-
tos humanos dizem que houve extensa
destruição em todo o norte pelos militan-
tes, com relatos de assassinatos e seques-
tros. Há registros de que 50 pessoas te-
nham sido decapitadas em um campo de
560
A situação afeta mulheres e crianças de
forma particular pela ameaça da violência
MORTES
de gênero. Nas estradas, episódios de em-
boscadas e roubos de carros aumentam os
DE CIVIS desafios das entidades que procuram levar
ajuda humanitária. Algo frequente em
NO NÍGER
regiões que sofrem com as tragédias, in-
justiças e complexidades das guerras.
Um soldado da
força militar
antijihadista
francesa patrulha
as ruas de Gao
AVENTURAS NA HISTÓRIA 49
CIVILIZAÇÕES
50 AVENTURAS NA HISTÓRIA
A DESCOBERTA
DA EUROPA
N
EM BUSCA DE UM uma terra praticamente virgem, ho-
mens, mulheres e crianças viviam em
NOVO MUNDO, POVOS bandos de 60 ou 100 indivíduos. Isola-
DO LESTE PARTIRAM dos uns dos outros, os maiores podiam chegar
RUMO AO DESCONHECIDO, a 400 pessoas. Alimentavam-se do que conse-
AO LUGAR QUE, HOJE, guiam com uma agricultura muito rudimentar,
da caça e do que simplesmente catavam no mato.
CHAMAMOS EUROPA
Eram seminômades, ou seja, ficavam num lugar
POR BETO GOMES apenas tempo suficiente para comer o que esta-
va ao seu alcance, aí levantavam acampamento
e iam embora. Suas vilas eram mesmo pouco
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
mais que isso: acampamentos. Não construíam
muita coisa além de totens ou amontoados de
pedras. Não criaram escrita. Não tinham siste-
ma político e seus líderes eram uma mistura de
patriarca com guia espiritual. Viviam como
selvagens. E eram europeus.
Estamos em 3000 a.C. e, nessa época, o centro
do mundo não é a Europa. A 5 mil quilômetros
dali, na Mesopotâmia, região entre os rios Tigre
e Eufrates, no atual Iraque, vicejam cidades com
mais de 10 mil habitantes. Lá os sumérios desen-
volvem leis e códigos para orientar a vida em
sociedade. No norte da África, o Baixo e o Alto
Egito se unem para formar um dos maiores im-
périos do mundo antigo, capaz de erguer colossos
como a enorme esfinge de pedra a espiar a pla-
nície de Gizé. Constroem canais e dominam os
ciclos de cheia do Rio Nilo. No Extremo Oriente,
pequenos reinos vivem sob um só signo: o dragão.
A China está prestes a despertar, mas já domina
a matemática e a agricultura. Nos três cantos, a
Os exploradores Pré-História ficou para trás. Eles inventaram a
da Europa criavam
porcos e cavalos escrita. E com ela preenchem notas fiscais, escre-
e plantavam vem livros sagrados, assinam recibos, contratam
algumas raízes
serviços, registram casamentos e filhos. Fazem
cálculos e poesia. Inauguram a História.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 51
CIVILIZAÇÕES
52 AVENTURAS NA HISTÓRIA
LONGA ESTRADA DA VIDA
As ondas migratórias duraram mais de 2 mil anos
4400 – 4200 a.C. 3500 – 3000 a.C. 3000 – 2500 a.C. MIGRAÇÕES SUCESSIVAS
Os indo-europeus partiram da As migrações eram muito lentas. Os povos das estepes russas Apesar da unidade linguística,
região do Cáucaso por volta do Podiam demorar séculos e até chegaram à Europa Setentrional os indo-europeus continuaram
ano 4000 a.C., em direção à milênios. Por volta do ano 3000 por volta de 2500 a.C. Depois de migrando de maneira
Europa e à Índia. Foi a primeira de a.C., os indo-europeus estavam assimilar e influenciar as culturas independente, em diferentes
uma série de ondas migratórias, próximos aos Bálcãs. Mas locais, acredita-se que deram épocas e para diferentes lugares.
que mudaram a história dos chegaram de vez à região apenas origem aos eslavos, germânicos Eles nunca formaram uma
povos antigos 500 anos depois e celtas sociedade sólida e organizada
praticam rituais xamânicos e adoram entidades comuns. O idioma dos tocarianos (que viveram
da natureza), como a ideia de que se tratava de numa região próxima à China), por exemplo,
uma sociedade matriarcal, Gimbutas batizou os tem uma forte ligação com o dos germânicos”,
primeiros indo-europeus de Cultura Kurgan. afirmou o antropólogo americano Roger Pear-
Eram assim chamados porque enterravam seus son. Já para o especialista também em antropo-
mortos em covas profundas, um método não logia, Jos Stepahnek, essas coincidências lin-
muito convencional para a época e que caracte- guísticas são, ainda, um forte indício da
riza, segundo ela, esse período, sendo um traço presença de um elemento novo, que se impôs e
comum aos povos que migraram para a Europa. se espalhou por todo o continente.
Outra coisa em comum é a língua. Em turco,
a palavra “kurgan” quer dizer túmulo, sepultu- O INVASOR
ra. O mesmo significado que ela tem em eslavo. Mas afinal, quem eram os kurgans? Stepahnek
“De fato, a língua é a chave mais importante descreveu que eram politeístas que acreditavam
nesse tipo de pesquisa que procura revelar a num deus principal e cultuavam divindades da
origem tão distante de civilizações tão díspares. natureza, como a Lua e a aurora. Não eram tão
Ela mostra que povos que hoje são separados avançados quanto as civilizações que começavam
por milhares de quilômetros têm ancestrais a se formar nos vales dos rios Nilo, Tigre e
AVENTURAS NA HISTÓRIA 53
CIVILIZAÇÕES
Eufrates. Não chegavam nem perto disso. Mas mas ainda não dominavam as técnicas de fundi-
estavam à frente dos povoados que já existiam na ção do bronze, o que só viria a acontecer séculos
Europa. Tinham domesticado o cavalo, usavam mais tarde, quando já estavam na Europa. “Os
carroças de duas ou quatro rodas feitas de ma- primeiros indo-europeus não eram guerreiros.
deira maciça, produziam objetos de cobre (facas, Além disso, poucos povos dominavam a meta-
adagas e punhais) e possuíam utensílios de ouro lurgia do bronze no terceiro milênio antes de
e prata, como vasos, contas de colares e anéis. Cristo”, disse o antropólogo Brunetto Chiarelli.
Diversos animais faziam parte de seu dia a Para Stepahnek, no entanto, os povos da cultura
dia. Criavam porcos, ovelhas e cabras, mas o kurgan já possuíam espadas quando começaram
cavalo era o mais importante de todos. Além de a migrar para lugares mais distantes, levando sua
servirem como meio de transporte, alguns es- cultura às populações menos avançadas. “Eles
pecialistas sugerem que os kurgans sacrificavam conheciam o bronze e produziam armas. Foi
cavalos em rituais de sepultamento. Nos sítios assim que resistiram aos conflitos entre vizinhos
arqueológicos da Rússia e da Ucrânia, os ossos em seu próprio território, algo muito comum e
dos equinos eram os mais numerosos. Mas tam- que, em determinado momento, pode até ter
bém foram achados ossos de cervos, alguns contribuído para que migrassem rumo à Europa”,
dentro dos túmulos de crianças. Sobras de ca- afirmou Sarac. “Porém, não foi encontrado nada
ças? Não exatamente. É certo que os primeiros que indique que a ocupação da Europa tenha sido
indo-europeus não foram caçadores e nem gran- feita à força. Nada parecido com os indícios de
des agricultores. Então, o que os ossos faziam massacres da América. Parece que, embora eles
na tumba dos pequenos kurgans? Provavelmen- não fossem essencialmente guerreiros – ao con-
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
te não passavam de simples regalos da vida ter-
rena, pois funcionavam como uma espécie de
trário, o pastoreio era a principal atividade –,
sabiam se defender muito bem.”
dado em inocentes jogos de apostas. Além dos vizinhos, eles tinham outro inimi-
Para os adultos, os ossos serviam apenas como go no Cáucaso: as baixíssimas temperaturas,
ornamentos e pequenos utensílios (furadores, que chegavam fácil, fácil nos 20 graus negativos.
talhadeiras e polidores, por exemplo). Suas armas Para eles, qualquer pontinho acima do zero grau
já estavam em outro estágio de evolução, embo- já era lucro. Por isso, suas casas tinham funda-
ra o tipo e o grau de desenvolvimento também ções de pedra e eram semissubterrâneas – ou
dividem os pesquisadores. É certo que eles pos- seja, metade embaixo da terra, metade em cima.
suíam objetos de cobre e conheciam o estanho, Nada muito diferente do que acontecia em ter-
PASSADO EUROPEU
Vestígios de pedra e de barro. De ferro e cerâmica
54 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Quando chegaram à Europa, alguns minho, muitos povos resultantes dessa misci-
genação simplesmente desapareceram sem dei-
grupos foram rechaçados, no entanto, xar qualquer rastro. Outros sofreram tantas
mudanças que a principal herança dos antepas-
a maioria deles foi incorporada sados manteve-se presente apenas na língua – e,
pelas comunidades locais mesmo assim, com muitas transformações.
Mas essas interações originaram subgrupos
ras armênias até pouco tempo atrás e que ainda que mais tarde atingiram um alto grau de de-
hoje existe no Deserto de Gobi. Os kurgans senvolvimento. Os celtas, por exemplo, estão
moravam em dois tipos de povoados. Os mais entre os mais antigos e espalharam-se por boa
simples não passavam de pequenos vilarejos, parte da Europa até serem conquistados pelos
sempre ao lado de rios ou córregos, e tinham de romanos. Hábeis na fabricação de objetos de
dez a 20 casas retangulares, com telhados sus- bronze, foram um dos povos europeus mais
tentados por toras finas de madeira. Todas as importantes nos séculos que antecederam a
moradias possuíam pelo menos uma lareira, supremacia de Roma. Acredita-se que sua terra
geralmente feita de pedra. As vilas maiores che- de origem seja a região onde hoje ficam a Suíça,
gavam a pouco mais de 200 casas e também Áustria e Alemanha, mas eles chegaram até a
ficavam perto de rios e florestas. As vilas eram Grã-Bretanha e a Península Ibérica.
bem protegidas e cercadas por muros de pedra, Outro grupo descendente dos kurgans que
que podiam chegar a 3 metros de altura. viveu dias de glória foram os aqueus. Eles chega-
Quando chegaram à Europa, os kurgans não ram aos Bálcãs por volta de 2000 a.C. e fundaram
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
mantiveram uma unidade social. Alguns grupos
foram rechaçados, outros, a maioria, foram in-
diversas cidades, como Micenas e Tirinto. Cinco
séculos depois, invadiram a Ilha de Creta e assi-
corporados pelas comunidades locais. Eles tro- milaram sua cultura. Aperfeiçoaram a agricul-
caram inf luências e deram origem a outros tura, navegação, comércio e construção de armas.
povos. Alguns se estabeleceram na parte seten- Foi aí que nasceu a civilização creto-micênica,
trional, outros foram para o norte, uma leva foi que serviu de base para a sociedade grega.
para o sul e alguns chegaram até a Grã Bretanha. No Oriente, os indo-europeus chegaram pra-
Obviamente, esse processo não aconteceu da ticamente até a China e deram origem a povos
noite para o dia. Séculos e séculos de migrações como os hititas e indo-iranianos. Mas esta já é
e miscigenações se passaram. No meio do ca- outra história.
3000 a.C.
MESOPOTÂMIA
Enquanto outros povos não passavam
de comunidades agrícolas, a Meso-
potâmia já possuía cidades, havia
inventado a escrita cuneiforme e uma 2000 –
organização político-social jamais 1500 a.C.
vista na história GREGOS
Sofreram intensa
influência dos
povos indo-europeus
chamados aqueus.
Eles dominaram a
3000 a.C. região dos Bálcãs no
EGÍPCIOS século 15 a.C., após
Na época em que os indo-europeus estavam engati- invadirem e assimi-
nhando, os egípcios davam os primeiros passos para larem a cultura da
a formação de uma civilização organizada. Já domi- Ilha de Creta, uma
navam técnicas avançadas de irrigação e construção das civilizações mais
de canais e haviam criado a escrita hieroglífica avançadas da época
AVENTURAS NA HISTÓRIA 55
COLUNA RICARDO LOBATO
Legionários aguardam
trem na Sibéria
A LEGIÃO
PARTE 2
Q
uerido(a) leitor(a), na coluna do mês passado uma “traição a outro monarca”, no caso, o imperador
demos início a um dos acontecimentos mais Habsburgo da Áustria. Mas, como guerra é guerra,
fantásticos do século 20: a saga da Legião Tche- e diante do bom desempenho demonstrado pelo que
coslovaca. Falamos de suas aventuras na França e na viria a ser a Legião já nos primeiros embates, o czar
Itália, no entanto, a cereja do bolo ficou para este passou a vê-los com bons olhos. Além do mais, o
mês: a epopeia dos legionários na Rússia. Esta ex- soberano Romanov tinha outros problemas. Sob a
pressão, aliás, não poderia ser outra, afinal uma Rússia, pairava o espectro da revolução e, embora
FOTO REPRODUÇÃO / BIBLIOTECA NACIONAL DA REPÚBLICA TCHECA
epopeia se dedica “à exaltação de feitos históricos, não lhe dissessem respeito, os legionários se veriam
lendários ou míticos considerados representativos no epicentro do evento que definiu o resto do século
de uma determinada cultura”, exatamente o que 20: o Outubro Vermelho.
esses homens passaram nas frias estepes russas. Quando a revolução naquele mês de 1917 foi de-
Como dito no mês passado, com exceção da Áus- flagrada, Lenin e os demais bolcheviques tinham um
tria-Hungria, a maior concentração de tchecos, mo- objetivo muito claro: tirar a todo custo a Rússia da
rávios e eslovacos ficava no Império Russo e, quando guerra. Para isso, abriram negociação com os alemães
estourou a Grande Guerra, muitos se mobilizaram no que viria a ser conhecido como o Tratado de
a favor do czar Nicolau II – que até chegou a descon- Brest-Litovsk. Os membros da Legião Tchecoslovaca
fiar de suas intenções, pois, num primeiro momento, não tinham nada a ver com isso, e não eram inimigos
achava que ter esses homens em suas fileiras seria dos comunistas, pelo contrário, para eles, a principal
56 AVENTURAS NA HISTÓRIA
preocupação continuava sendo a derrota das potên- mília terem sido executados), já, em outro, tomaram
cias centrais e o estabelecimento de um Estado tche- Kazan, onde se encontrava boa parte das tão cobiça-
coslovaco independente. Como a luta seguia no Oci- das reservas de ouro do czar. Isso serviu para aumen-
dente, acordaram com os bolcheviques uma saída da tar o moral da tropa, pois, além das dificuldades
Rússia. Porém, em pleno processo de negociação, os diárias, estavam lutando há meses sem soldo.
alemães e austríacos não deixariam que mais de 60 Quando os legionários estavam finalmente che-
mil homens armados e com experiência de combate gando à última parada da jornada, um novo desafio
cruzassem suas linhas para se juntar a seus compa- surgiu. O general Kolchak, um dos mais importantes
triotas na França e na Itália. A única solução encon- comandantes do Exército “branco” – já em séria
trada pela legião foi, literalmente, dar a volta. Com o desvantagem contra os “vermelhos” – fez contato
caminho pelo oeste bloqueado, tiveram de voltar para com a Legião. Sabendo que não se podia confiar em
leste e atravessar a extensão da Transiberiana até Kolchak e não desejando mais problemas com os
chegar a Vladivostok no Pacífico e, de lá, seguirem bolcheviques, os comandantes da Legião fizeram um
em comboios navais para a Europa ocidental. acordo final: trocaram Kolchak e a carga de ouro sob
E é aqui que a epopeia toma contornos realmen- sua posse por livre trânsito até o mar. De lá, foram
te épicos. Como se isso já não fosse problemático o resgatados por navios japoneses, britânicos e ameri-
suficiente, os alemães atacaram o que hoje é a Ucrâ- canos, e deram uma volta ao mundo que passava por
nia para pressionar os bolcheviques na mesa de Suez ou Panamá para, finalmente, chegarem em casa.
negociação em Brest-Litovsk. A Grande Guerra já havia
Adivinha onde estava estacio- acabado, mas, ainda assim, che-
nada a Legião? Sim, na Ucrânia.
A Rússia revolucionária garam a tempo para lutar contra
Entre em nosso Canal
Os legionários tiveram de lutar eraTelegram:
no um barril de pólvora.
t.me/BRASILREVISTAS húngaros e poloneses que ame-
contra os alemães para que con- Tinham que negociar ou açavam a recém-criada Tchecos-
seguissem sair rumo à Vladi- lováquia. Juntando-se aos cama-
vostok. No caminho, porém, lutar por onde passavam radas que lutaram na França e
começou a guerra civil russa – na Itália, os legionários passa-
tomando para si mais um problema com o qual, a ram a compor não apenas as Forças Armadas do país,
princípio, não tinham relação. Numa guerra entre mas também serviram de base para muitas outras
“brancos” e “vermelhos”, não estavam de nenhum instituições – já que, em suas fileiras, havia profes-
lado e precisavam se virar como podiam. sores, advogados, artistas e diversos profissionais
Desconfiado de que os legionários pudessem se necessários para uma jovem nação.
unir aos “brancos”, o comissário do povo no sul da A Legião, no entanto, foi celebrada só até 1939
Rússia – ninguém menos que Josef Stalin – fez com porque anos de dominação nazista seguida de co-
que entregassem a maior parte das armas pesadas, munista fizeram com que sua história fosse esque-
AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA
mantendo apenas armamentos leves para a própria cida, sendo novamente trazida a público apenas com
defesa. Ainda que tivessem um acordo com Stalin, o fim da Cortina de Ferro. Quem visita Praga hoje
a Rússia revolucionária era um barril de pólvora, e em dia se depara com um monumento curioso sobre
os bolcheviques não detinham o controle de todo seus feitos, a fachada do Legiobanka – com anos de
o território. Por onde passavam, fossem contra os salários não pagos acumulados, e (reza a lenda) com
“brancos” ou contra os “vermelhos”, os legionários uma parte do ouro do czar ainda sob sua custódia,
eram forçados a lutar ou negociar. os legionários precisavam de um lugar seguro para
Em um dos embates, tomaram a cidade de Eca- guardar seus proventos, uma justa recompensa por
terimburgo (uma semana depois de o czar e sua fa- tudo o que passaram.
RICARDO LOBATO É SOCIÓLOGO E MESTRE EM ECONOMIA, OFICIAL DA RESERVA DO EXÉRCITO BRASILEIRO E CONSULTOR-
CHEFE DE POLÍTICA E ESTRATÉGIA DA EQUILIBRIUM – CONSULTORIA, ASSESSORIA E PESQUISA @EQUILIBRIUM_CAP
AVENTURAS NA HISTÓRIA 57
MEMÓRIA
AS DUAS
MORTES DE
EVITA PERÓN
Há 70 anos, no dia 27 de julho
de 1952, Eva Perón, vítima
de um câncer de útero, se
despedia, encerrando os 33
anos de sua vida. Seu último
suspiro, no entanto, dava
início a uma outra existência:
a de um corpo inerte, que
vagou por 24 anos, sendo
usado até mesmo em rituais
de exorcismo. Naquela noite,
seu corpo foi embalsamado
até ficar incorruptível. E seria
velado pelos 13 dias seguintes
por 2 milhões de argentinos,
que faziam filas para além das
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
30 quadras do Ministério do
Trabalho, cuja fachada chegou
a sumir, coberta por mais
de 18 mil coroas de flores.
Três anos depois, enquanto
sindicalistas esperavam a
construção de um mausoléu
erguido em sua honra (projeto
que nunca saiu do papel), os
militares tomaram o poder no
país e decidiram sumir com
os restos mortais de Eva para
evitar que se tornassem objeto
de culto peronista. Roubado, o
corpo enfrentou uma odisseia:
atravessou continentes,
passando pela Itália e
Espanha, até retornar para a
Argentina em 1974, numa saga
que só terminou dois anos
depois, com o golpe de 1976,
IMAGEM WIKIPEDIA COMMONS
58 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
Entre em nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
#JuntosÉpossível
doe.wwf.org.br
O WWF-Brasil desenvolve, há mais de 23 anos, projetos e iniciativas de
SIGA NOSSAS REDES
conservação do meio ambiente para que a sociedade brasileira conviva
WWF-Brasil
em harmonia com a natureza, em benefício das gerações atual e futura.
wwf.org.br
ISBN: 9786557940259
R$ 20,00