Sandra Pesavento - Porto Alegre Caricata - A Imagem Conta A História-UE - Secretaria Municipal Da Cultura (1993)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 100

COORDENA AVENTO

CD
Prefeifnra m
de Porto Alegre
•CMINISTOUCO BOPVJL"
MAIS CIDADE. MAIS CIDADANIA.

SECRETARIA MUNICIPAL DA CULTURA

TARSO GENRO
Prefeito

RAULPONT
Vice-Prefeíto

LUIZ PAULO DE PILLA VARES


Secretário
PORTO ALEGRE CARICATA:

A IMAGEM CONTA A HISTÓRIA

Coordenação
Sandra Jatahy Pesavento

1994
ARICATA

Ficha Técnica:

O
Coordenação: Sandra Jatahy Pesavento
Pesquisa: Adriana Tyburski
s AÍice Trusz
Cláudia Mauch
Maria Angélica Zubaran
Ricardo Pacheco
Sônia Ranincheski

Reproduções fotográficas: Rogério Ribeiro


(Assessoria de Comunicação Social/Prefeiturade Porto Alegre)
Capa: Lisiane Schüler
Revisão: Ângela Fronckowiak

Edição: Susana Gastai

P472P Pesavento, Sandra Jatahy,


Porto Alegre caricata:" a imagem conta a história.
Coordenação de Sandra Jatahy Pesavento. Porto Ale
gre, UE/Secretaria Municip^ da Cultura, 1993.
70 p. ilust. 21 cm.

1. Caricaturas - Porto Alegre - História 1. Título

CDD 741.590981651

Catalogação elaborada pela Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães


CJ ARICATA

r''\
,v V^^
*» • 'í-VJf.

,:ÍC?1
•.
vVí !./•*•- .••1.
V-.
•••

^7Y'«^"' i.'-'* *t '

CliHpéus a Io telhado, ultima moda do Pariz.


E Im ruoçap de tao máo gosto que põom uma indeoeucía deeaaa
na f'uh'ítii I...

O Século, 13jan. 1884


AGRADECIMENTOS:

Museu de Porto Alegre


Arquivo Histórico de Porto Alegre
Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
ARICATA

ü
u

<

g SUMARIO

O
a.

ARISTÓTELES NA RUA DA PRAIA 7

O DIABO ESCONDIDO (DA ARTE DO CÔMICO) 9


ALEGORIAS DO PROCESSO POLÍTICO:
DA MONARQUIA À REPÚBLICA 31

A CONSOLIDAÇÃO DO PRR:
O AUTORITARISMO ILUSTRADO 41

REPRESENTAÇÕES DO SOCIAL:
NEGROS E BRANCOS, POBRES E RICOS 51

A MULHER COMO ALEGORIA DO PODER:


O LUGAR SIMBÓLICO DISTANTE DO REAL 61

MÚLTIPLOS RETRATOS DA MULHER:


MORAL. MODA, SEDUÇÃO 69

A TRAGICÓMICA CIDADE:
ADMINISTRAÇÃO, RUAS. SAÚDE PÚBLICA 75
wm

aparec
ARICATA
c

g
ü
u

i
0
cS' Aristóteles na Rua da Praia
0
Jorge Pozzobon

Imaginemos que um dia se achasse o tropólogo sobre o outro cultural, pois, quando
célebre ensaio desaparecido de Aristóteles, se põe a pesquisaro imaginário de outra época,
Sobre o Riso. Os filósofos talvez quisessem o historiador é uma espécie de antropólogo na
verificar se ele desenvolve o que escreveu na máquina do tempo. É o que faz este livro de
Poética: o cômico é algo feio ou equivocado Sandra Pesavento e das pesquisadoras de sua
que não provoca dor ou dano. Os leigos, como equipe. Ao nos apresentarem a história da
monges de Umberto Eco em O Nome da Rosa, caricatura em Porto Alegre no século passado,
procurariam, quem sabe, umas boas piadas. E elas nos jogam dentro de um tempo em que os
os historiadores, o que fariam? critérios do cômico, de certo, eram outros. Mas
Não precisamos recuar dois mil anos na de que natureza seria essa alteridade? Se
história para acharmos tipos de humor diferen descontarmos os conteúdos de época, será
tes do nosso. Uma vez um índio Tucano me que existe uma sintaxe do cômico capaz de
contou uma história: "Um dia, o corococó cha atravessar os tempos? A comicidade é sempre
mou as minhocas e disse: - Saiam da toca, que resultado do equívoco, como quer Aristóteles?
eu vou lhes contar uma história. As minhocas Se um livro se avalia pelas questões que
saíram e foram todas devoradas pelo corococó." coloca mais do que pelas respostas que dá, eis
O índio me contou isso e desatou a rir. Natural aí um exemplo do que este livro pode ensejar.
mente, é preciso buscar o lugar do corococó e Aliás, sua divisão em blocostemáticos já é uma
das minhocas no imaginário indígena para en pista para a formulação de uma série de hipó
tendera piada, coisa que não vem ao caso aqui. teses: Alegorias do processo político; A
O que nos interessa é o olhar do an consolidação do Partido Republicano
Q ARICATA

g
O
w Riograndense; Representações do social; A
Q mulhercomo alegoria do poder; Múltiplos retra-
S tos da mulher, A tragicômica cidade,
o
a.
Esse caráter plural do cômico nos remete
de novo a Aristóteles. Ele escreveu na Metafísica
que o ser se diz de muitos modos. Se concor
darmos com Heidegger em que o ser e o tempo
se pertencem, podemos dizer o mesmo dessa
crônica dos tempos que é a história: ela tam
bém se diz de muitos modos, inclusive através
dos vários modos de achar graça. (Que o leitor
vá desculpando essa seqüência de considera
ções sérias e de citações vetustas, mas uma
apresentação engraçada seria pleonasmo.)
Resta dizer, enfim, que este livro resulta
de uma exposição com o mesmo título, inaugu
rada em novembro de 1993 no Museu de Porto
Alegre - um órgão da Secretaria Municipal da
Cultura que vem se mostrando cada vez mais
apto a expressar a riqueza histórica da cidade,
quer através de iniciativa própria, quer através
de colaborações como esta, em que a Prefeitu
ra Municipal e a Universidade Federal do Rio
Grande do Sul estiveram concretizando o con
vênio firmado no início do ano.

Jorge Pozzobon: Doutor em Antropologia Social

8
ARICATA

s
ü
u
o DIABO ESCONDIDO
<
O (DA ARTE DO CÔMICO)
H
tí. Sandra Jatahy Pesavento
O
O.

O historiador se defronta com discursos e ambiguas: a da caricatura, da charge, do cômi


imagens enviados pelo passado, que se repor co, enfim.
tam a fatos e personagens de outras épocas. Este foi, sem dúvida, um uso da imagem
Ou seja, o historiador de hoje se depara com que muito se difundiu no século passado. O
representações de ontem e, de posse deste século XIX foi um momento de ampla divulga
material, vai tentar desvelar significados, des- ção e socialização das imagens. Marcado, por
fazerintrigas, solucionar enredos, construindo, um lado, pelo advento da fotografia, que
porsua vez, uma nova imagem e discurso sobre eternizou o instante e trouxe o longe para perto,
aquilo que teria se passado. e, por outro, pelo cinema, que captou o movi
Este enunciado, sem dúvida, tem um mento, o século XIX ainda viu nascer o cartaz
aporte de acentuado relativismo e mais suscita publicitário, esta espécie de jornalpopular que,
indagações do que certezas. Mas então, a com o mínimo de palavras e o máximo de
história não é senão representação? Não é Imagens, atraía a atenção dos transeuntes
possível atingir o real? Sim, para a primeira para eventos, personagens e locais. Sem dúvi
questão, uma vez que o que acontece uma vez da, o século passado foi ainda uma época de
não pode jamais ser resgatado na sua integri proliferação dos jornais, vendo surgir, ao lado
dade. Talvez, para a segunda indagação, uma da imprensa maior, séria e de grande tiragem,
vez que as representações do mundo social uma multiplicidade de pequenos periódicos,
são também constitutivas daquilo que chama com fotos e ilustrações satíricas.
mos realidade. Muito provavelmente, até sejam Estaríamos, por um lado, diante dos efei
mais sedutoras, atraentes e belas enquanto tos da aplicação da ciência á tecnologia, num
representação, do que o tal concreto que lhes mundo embalado pelos ventos do progresso e
deu nascimento... balizado pelo aparecimento e aperfeiçoamento
Mas voltemos aos discursos e imagens das máquinas. Não há como desvincular os
de representação do coletivo e nos detenha- avanços da impressão e a popularização da
mos numa de suas manifestações mais litografia deste contexto geral de avanço
•p.

li" Y- cBtfl % tow «{«MkWV luiri «(«lAAt»

Alusão ao relacionamento do Partido Liberal, liderado por Gaspar Silveira Martins, com seus eleitores antes e depois
das eleições.O Século, 25 jun. 1862

tecnológico. Mas, por outro, as grandes tira da impressão, concebida para ser um suporte
gens, a preço mais acessível para as camadas da mensagem discursiva, tornou-se também
populares, foram ao encontro do aumento das um veículo de propagação da imagem visual.^
populações urbanas e da complexificação da Conquistando as ruas e os espaços públi
vida social. cos tanto quanto o interior do lar burguês, as
É neste contexto que o desenvolvimento imagens do cômico, associadas às legendas

Agulhon, Maurice, Préface. In: Mlchaut, Stéphane et alli. Usages de rimage au XIXe siècle. Paris. Créaphis, 1992.
'••He*'/

• :í4t^ • J^ ^"/nrC^-r. ^
y^J - í.-.^:. í»;''c--r«-. i j!íUi i>
•-'y *

O Guarani, 21 mar. 1875

Tocaáo moderno è fa gwm.


A Sentinela do Sul, 09 abr. 1869
ARICATA

ü espirítuosas, tiveram, no século passado, um infinita em relação ao ser absoluto do


vasto campo de expansão. qual ele possui a concepção, grandeza
o
Numa sociedade convulsionada pela infinita em relação aos animais.^
2 modemidade, onde velhos valores eram sola Miséria e grandeza do ser humano, medi
pados e novos surgiam, onde a cada dia se da de distância dos seres perfeitos e absolutos,
revelavam atores sociais inusitados para os deve-se ver nele um sinal de racionalidade e de

quadros do "Ancien Régime", uma combinação manifestação do sentido crítico ou a sobrevi


de talento artístico, ironia e irreverência fez vência de uma força primitiva e satânica, voltada
explodir um novo olhar sobre o mundo, que para a animalidade e o prazer? Apoio ou Dionísio,
despertou algo como o "diabo escondido" que sorriso do anjo ou rictus do diabo?^ A arte de rir
cada um abrigava no âmago de seu ser. Coisas tem, seguramente, demonstrado serinquietan-
de demônio, arte maldita, meio de expressão te, pois se opõe à vida "normal", dela fornecendo
reprovável? Talvez, mas como dizia Baudelaire: uma caricatura, uma representação abstrata e
O riso é satânico, é, portanto, profunda desprovida de "realidade'"'. Todavia, o seu
mente humano. Ele é no homem a conteúdo referencial é a própria realidade e,
conseqüência da idéia de sua própria como toda imagem, mede sua força pelos efei
superioridade e, com efeito, como o ríso tos mobilizadores que produz, e não pela sua
é essencialmente humano, é essencial veracidade.®

mente contraditório, quer dizer, é ao Ou seja, se a arte de rir obtém o seu


mesmo tempo sinal de uma grandeza intento - a risada - é porque houve uma epifania,
infinita e de uma miséria infinita, miséria revelação de sentido.

2Baudelaire, Charles. Da essência do riso e, de um modo geral, do cômico nas artes plásticas. In; Baudelaire, Charles. Escritos sobre arte.
Org. Plínio Augusto Coelho. Sâo Paulo, Imaginário/Ed. da USP, 1991. p.34-5.
^Vailiant, Alain. Le rire. Paris, Quintette, 1991. p.6.
* Ibidem, p.15.
^ Marín, Louis. Despouvoirs de llmage. Paris, Seuil, 1992. p.14.

12
â
i
%

ifiit ate 3e reparar para •«c#fo 1'«^LÍíLÈíÍLÍ•


í?ai» Jt,m\ tn^re-se «me e^pelRe, e^ep»i.
n ^«ílaf e ralada al?.e í«ea
o Século, 10 jul. 1881

O objetivo da caricatura, da charge, da parte de um mesmo ato de linguagem. Mas,


sátira é despertar o riso pela apresentação do sendo esta representação o despertar do "dia-
cômico, realizando-se no explodir da risada, boescondido"e, ao mesmo tempo, a revelação
que é a consagração do humor, fazendo ambos do gênio humano de representar o mundo, a
(2 ARICATA

arte de rir traz em si a revelação de um sentido prima o presente e expressa a cotidianeidade


secreto, O cômico comporta uma teia de rela através do humo^^ Mas, diz Baudelaire, além
ções que, porcáustica ou grotesca, proporciona do cômico significativo, satírico, de crítica soci
a teatralizaçâo de uma identidade que se de al, "mais fácil de compreender pelo vulgo", há
nuncia. Através do humor e produzindo o rir, as o cômico absoluto, que se dirige ao âmago da
caricaturas proporcionam, como disse natureza humana, expondo a nu o indivíduo
Baudelaire, o poder do ser humano de serás com suas tragédias e mazelas®.
vezes si próprio e um outro^. Na verdade, a caricatura, ao registrar
Mas, muitas vezes, parece que a arte de
rir não consegue atingir os seus objetivos. Há
como que um elo perdido, uma lacuna que não
deixa de chegar até o presente os nexos que
permitem identificar as alusões e que constitu
em a alma do gracejo. Por outra, a comicidade,
a sátira social e o deboche se revelam claros,
perceptíveis, apreendidos por nós.
Em especial, a caricatura foi objeto da
análise arguta de Baudelaire, que a analisou 7^
não só como uma iconografia altamente comu-
nicativa, mas como todo um estilo de expressão,
com formas próprias. No discurso crítico de •r.. :n. -nt«>?

Charles Baudelaire, a caricatura se acha asso


o Século. 07 ago. 1881
ciada á modernidade, que toma como matéria-

®Bertrand, JeanPierre, Uhumorjaunedescomplaints. In:Romantísme, Revuedu DixneuvièmeSiècle. Les petitsmaítresdu rire. Paris. CDU
SEDES, n. 75, 1992. p.3,
' Gonçalves, Aguinaldo José. 0 olhar refratãrlo de Charles Baudelaire. In: Baudelaire. op. cit., p. 16-7.
®Baudelaire, op.cit., p.39-40.
Q ARICATA

• . ií •> %,v- •.^-

1
j 4\ -h à..^'

.•í-r;',-;; . -«-iç...- .--/;-<^,-

, pcWe racft 4oi <3iar

o Século, 10jul. 1881

personagens estereotipados, captando com o deboche, o sarcasmo e dele achar graça.


argúcia as características essenciais e Neste sentido, a caricatura revela um
marcantes deste ou daquele indivíduo, o outro olhar sobre o real, um outro lado da
reapresentava dentro de um contexto de signi história, mais distante das intencionalidades
ficações que exploravam o grotesco, o insólito, oficiais,da manipulaçãodas intenções, do fausto
odescabido. Enquanto imagem, éaenundaçáo das seduções. Mas então, a caricatura tem o
de um ausente, mas que é revelado em função dom ou o poder de desfazer a ordem fetichizada?
de uma crítica, percebida pelos "iniciados". Há, Não exatamente, mas, sem dúvida, ela é fruto
pois, indícios de que os nexos devem ser per de uma irreverência, de um olhar que revela
cebidos pelo público, que é capaz de identificar intenções, desmascara aparências, desafia a
C ARICATA

0 ordem estabelecida. É, nestesentido, ousada e sempre identificam traços e comportamentos


desestabilizadora, subversiva e irreverente. por certos parâmetros de senso comum, -que
1 Mas, por outro lado, a caricatura pode ser são o cerne da críticas e da legibilidade.
2 também um chamamento à ordem, um alerta De qualquer forma, é só recentemente
sobre comportamentos desviantes, uma exi que as imagens visuais do humor têm se torna
gência de normas e regras que são do objeto de estudo dos historiadores, embora
desrespeitadas. estas imagens tenham, por si sós, uma longa
Em um e em outro caso, ela sempre é história. Foi preciso que se difundisse a nova
crítica e não descritiva, e envolve um apelo a um • tendência da história cultural, ainda pouco de
outro sentido. Entendemos que as caricaturas, senvolvida entre nós, para que as imagens do
enquanto imagem visual, por vezes não repre humor tivessem o estatuto de "matéria

sentam personagens "reais", mas constróem histórica"e, principalmente, fossem abordadas


tipos estereotipados, típico-ideais, como é o
caso do Zé Povo, das páginas do Fon-Fon!, do
Zé Povinho da Gazetinha ou do Zé Gaúcho da
revista Kodak, só para invocar exemplos brasi
leiros. Por outras, ela pode se apresentar sem
a estereotipização do ator social ou do persona
gem, com desenhos de homens "comuns"e
"díspares". Todavia, a sua inserção social,
política ou de gênero, raça e credo deve ser
sempre, senão evidente, pelo menos insinua
(.rMUi.ü DÁ jnuí;ni h)ai>í:
da, para que o humor seja captado. Relatando liüo, fu iiio vou tiuii» iilisTiAtir o 1'ciuiotft. IVu-
njt iiijih il^T ili> civiilí I... iiiwiiii» Ciii timis feliíimv
t viuva lio |iiiiiio llriiriijiK' foiimin! KíHn ituu o vwitrv"
cenas cômicas, tais charges podem, a nosso iinhuiio u ittii criíuiilii i|iio i- viuihci nitiila- .
-- Jl» lio MM' írinii, Miiirhilm; Im forlai»
• cin id icloa |<laiiiluliiK,in
ver, ser enquadradas no espírito do registro
O Século. 22 out. 1882
caricatural de imagem visual, uma vez que
Q ARICATA

Parodiando Cario Ginzburg^, poderíamos con


siderar tais traços como um "paradigma
indiciário", através do qual o historiador divisa
uma porta de entrada para o acesso ao passa
do. Sem dúvida alguma, este é um caminho não
linear e um olharnão reflexo, mas sim uma trilha
que se multiplica em inúmeras correlações a
serem traçadas e que possibilita a construção
de vários sentidos.

Estaríamos diante de uma tentativa de

reconstituíçào do passado através dos "cacos


da história", dos fragmentos de que fala Benja-
min? Não necessariamente, se nos ativarmos
ao sentido do resgate da voz e do olhar dos
vencidos. Todavia, o endosso da arte do cômi
co como fonte documental vem realizar a
Kodak, 07jun.1913 possibilidade de recuperação de uma outra
na sua faceta de representação do mundo perspectiva de registro ou representação do
social e de elementos integrantes do imaginário passado. Este se apresenta não mais sob o
coletivo. prisma monocórdio de um discurso oficial, na
A história cultural, que se propõe a resga medida em que se insere esta dimensão
tar o real através das suas representações, tem polifônica: a irreverência do cômico, a
nas imagens gráficas um manancial riquíssimo. "carnavalização"^°do real aflora das imagens

®Ginzburg, Cario Mitos, emblemas, sinais. Sâo Paulo, Companhia das Letras, 1989.
No sentido usado por:
BsMhm.MikhaW.WoeuvredeFrançoisRabelaisetIaculturepopulaireau Moyen âge et sousia Renaissance. Paris, Galíimard, 1970.
C ARICATA

caricaturais, fazendo chegar até o presente do racional, a leitura da crítica deve ser resga
uma visão alternativa e dissonante. Neste sen tada na legenda completa que acompanha o
tido é que a concepção benjaminiana pode ser desenho: "La fantasia abandonada de Ia razón,
resgatada, entendendo a caricatura como par produce monstruos imposibles: unida con ella,
te do imaginário de uma época que, do passado, es madre de Ias artes y origen de sus
nos acena com uma outra possibilidade de maravillas..."^L A concepção, implícita, a nosso
atingi-la. ver, recupera a força criadora da imaginação
Por outro lado - ainda usando Walter

Benjamin como inspiraçâo^^ - as imagens cômi


cas do passado nos permitem enxergara nossa
própria época, reconstituindo uma comunidade
de sentidos e visualizando na sátira de ontem

os dilemas da sociedade contemporânea.


Recuperando a visão da caricatura como
associada à modernidade, encontramosque, já
na virada do século XVIII para o século XIX, os
"dibujos" de um Goya desnudavam a hipocrisia
e as crendices da sociedade pré-revolução e
anunciavam os novos caminhos e o novo ethos

racionalista. Como não se deliciar com a rique


za de significados do conhecido desenho de
Goya: EIsuenodela razónproduce monstruos?
Freqüentemente associada a uma crítica ao
C_.
obscurantismo da época e à apologia absoluta Kodak, 08 mar. 1913

" Benjamin. Walter. Paris, capitale du XIXe siécie. Lelivre des passages. Paris, CERF, 1989.
" Goya, Francisco. Los caprichos. New York, Dover Pubíications, 1969.
ARICATA

S como base da atividade artística e científica, povo francês. Cremos que Daumier, com argú
Ü
3 enquanto formas de representar o real ou para cia e traço fino, ultrapassou o anedótico e a
<
o ele voltar-se como objeto de análise. A partir daí crítica de costumes e chegou a captar a fragili
o é que podemos apreciar a obra satírica do dade das relações entre os homens e suas
Om

artista,que tem como referencial a própria rea fraquezas mais íntimas^^.


lidade e dele fornece uma representação Neste contexto, a história em quadrinhos
cáustica e criativa. fez sua estréia decompondo o cômico em se
É, todavia, no século XIX que os jornais qüências encadeadas de desenhos que
satíricos e as revistas caricaturais passaram a narravam situações engraçadas. Na França, as
circular com desenvoltura, obtendotim suces aventuras da Famille FenouiUard inauguraram
so considerável junto ao público. o gênero, contando as desventuras de um
Os avanços da impressão e da litografia grupo familiar na Paris do século XIX.
foram responsáveis pela difusão dos jomais Entretanto, os usos da imagem, associa
satíricos franceses La Caricature, fundado em dos aos "usos do rir", não se resumiram às
1830, e Le Charivari, em 1832, aos quais se publicações de jomais e revistas que conhece
seguiram Le Joumal Amusant e Le Rire, entre ram um sucesso considerável. Mesmo a
outros. Os dois primeiros tiveram, entre seus chamada "grande arte" foi afetada pela
colaboradores, o genial Daumier, verdadeiro intencionalidade do cômico, do caricatural e da
"leitor" da sociedade de sua época pela ótica do visão critica sobre o cotidiano ou o grande
cômico. Célebre caricaturista, sua obra é plena evento. Numa dimensão mais popularesca,
de críticas às personalidades marcantes do seu porque associada à produção de cartazes de
tempo, às inusitadas situações vivendadas num divulgação, encontramos a obra de Toulouse
mundo renovado por valores e práticas burgue Lautrec, com seu acentuado tom cáustico de
sas, e aos acontecimentos que mobilizavam o fixar personagens e ambientes. Mas a introdu-

''Daumier. 120great Êhographs. Edited by Charles Ramus. New York, Dover Publications, 1978.

20
ARICATA

mmJMi
GOYA -LOS (^APRICIIoy
Q ARICATA

S ção do cômico na arte remete mais uma vez a sonagens e condutas, estabelecendo uma
^ Baudelaire, com a sua concepção do "cômico verdadeira crítica social do cotidiano.

2 absoluto", cuja essência seria desenvolver no Na tropical monarquia dos Bragança, a


os
g espectador (ou no leitor) a alegria de sua pró caricatura estreava em 1837, com o apareci
pria superioridade e a revelação de sua mento da primeira charge no Jornaldo Comércio,
superioridade sobre a natureza^". Mas, na ver feita por Manoel de Araújo Porto Alegre.
dade, este "cômico absoluto", que poderia A esta publicação se seguiram outras,
exprimir-se na manifestação da alegria na arte, com as caricaturas não mais apresentadas em
estaria um pouco distante das nossas preocu folha solta dentro do jornal, mas já integradas
pações, que visam surpreender a ironia, o ao corpo do periódico^^. É o caso da Lanterna
deboche, a "blague" numa forma de produção Mágica, surgida em 1844, d' A Marmota
gráfica que objetiva produzir o riso pela revela Fluminense, d' O Brasil ilustrado, d' A Semana
ção de um sentido especifico. ilustrada e muitíssimos outros periódicos de
Mas não foi somente na França que tais nomes pitorescos, como O D/abo Coxo,Cabrião,
representações irreverentes do real se restrin O Mequetrefe, O Besouro , O Mosquito.
giram. Na Inglaterra, o Punch exibia o célebre Particularmente, a Revista iiiustrada, de Ânge
"sense of humour" dos britânicos em desenhos lo Agostini, conseguia a "leitura" até de
que faziam uma leitura debochada da socieda analfabetos, que, pela alta expressividade dos
de da época, satirizando os acontecimentos desenhos, captavam a mensagem e a crítica
políticos e o cotidiano do espaço público ou da subjacentes naqueles conturbados anos do
vida privada. final da monarquia no Brasil.
Nos Estados Unidos, o Harpei^s Bazaar As representações de D. Pedro II eram
cumpria, no outro lado do Atlântico, a tarefa de particularmente muito expressivas, assim como
atacar costumes e instituições e ironizar per personalidades do mundo político de então.
'*Cf.Darragon, Eric. Usages de rimage, usages du rire. Autour de La Cigale de Meilhac et Halévy. In: Mlchaud, Stéphane,dir. Usages
de llmage au XIXesiècle. Paris, Créaphis, 1992.
'®Távora, Araken. O. Pedro lie o seu mundo através da caricatura. Rio de Janeiro, Documentário, 1978. p.S.

22
C ARICATA
ARICATA

2 que tinham seus traços fisionômicos muito bem "No caso específico do Zé do Povo, a
^ caracterízados. Há quem diga, inclusive, que o vontade de crítica, expressa na denúncia dos
Imperador devesse grande parte de sua popu- efeitosproblemáticos que 'coisas governamen
laridade às inúmeras caricaturas que tais' e outros núcleos de poder produziam em
popularizavam a sua imagem, e também à sua vida, evidencia articulações explícitas com
tolerância com que enfrentava seus críticos, a vida social brasileira. Seu próprio nome fazia
ficando por vezes envaidecido de ser o tema de referência ao regime político ( república, 'coisa
tantos artistas gráficos.. do povo'), aproximando-o do desengano crítico
Parte significativa deste universo em relação as virtuais dimensões igualitárias
caricatural foi resgatada pela obra de Herman anunciadas quando da luta por sua instaura
Lima, História da Caricatura no Brasil, editada ção'"^.
pela José Olympio. E como se comportaria frente a este estilo
República proclamada, o gênero irreverente e transgressor da ordem o Rio Gran
caricatural ganhou novo alento com as revistas de do Sul, que tradicionalmente tem o seu papel
Fon-Fon! , O Malho e Careta, nas quais se associado a imagens tão sérias quanto a guer
destacava a representação esteriotipada do Zé ra, o positivismo, os grandes líderes políticos,
Povo^^. etc., etc.?
Personagem síntese do tipo popular bra Na Porto Alegre da virada do século aos
sileiro, Zé Povo vivia a reclamar da injustiça anos 10, jornais e revistas caricaturavam a vida
social e de sua situação como cidadão de político-partidária e as instituições da terra,
segunda classe, fazendo reflexões sobre o aludiam à precariedade dos serviços públicos
regime e a vida das camadas subalternas. urbanos e às más condições de vida e trabalho
Refere Marcos Silva: do povo, zombando também dos hábitos da

'®lbidem. p. 12-3.
^^Silva, MarcosA. da. CaricataRepúbBca. Zé Povo e o Brasil. São Paulo, MarcoZero/CNPq, 1990.
Ibidem, p.10.

24
(2 ARICATA

:. HC íki

1 ^

^v.. •.••''^•?0 Acr

nascente burguesia. Personalidades políticas jornal O Século: Jacob Weingartner, Araújo


e populares, mulheres e negros, padres e frei Guerra e Joaquim Samaranch, o combativo
ras, maridos e esposas não eram poupados ilustradordojornal Gazetinha, Francisco Xavier
pelo desenho irreverente dos caricaturistas da da Costa, os impagáveis Phoca, Raul e Luiz,
época: o Cafunguista desconhecido do jornal seguidos de Nero e Giga, da fartamente ilustra
Guarani, o anônimo desenhista da Sentinelia da revista Kodak.
do Sul, que se assinava J.W. (e que depois se Resgatar estas imagens e percorrer es
descobriu ser Jacob Weingartner), os caricatu tes caminhos é surpreender"um outro lado" da
ristas que se sucederam nas páginas do famoso história, comumente esquecido. Sem dúvida
Q ARICATA

que se trata de um lado "mais leve" de vislum Mais do que isto, resgatar as imagens do
brar o passado, mas a seriedade nào pode ser cômico implica surpreender novas facetas da
confundida com a sisudez.., vida da cidade, descobrindo uma alegre - ou
Caricaturas, charges, piadas e sátiras trágica - Porto Alegre, que se expressou no
revelam um olhar crítico e mordaz sobre o real, traço ágil dos seus caricaturistas, verdadeiros
cabendo ao historiador realizar as mediações espectadores do urbano.
necessárias, possiveis e múltiplas com o con Encarada desta forma, a arte do cômico
texto econômico, social e político onde pode ser um assunto muito sério...
medrarem aquelas expressões da arte do cômi-
Sandra Jatahy Pesavento: Doutora em História

7 X:-
Q ARICATA


... >.V'**-

Moh\s DK p\iu/
Míi^fKili .1 l.f chfvai
A Sentinella do Sul, 08 dez. 1867
ARICATA

O
"Os nossos pinta-monos'

' 'como disse onosso bom eerudito amigo dr. Alcides Cruz, acaricaturaéaalma-
mater do jornal moderno. Sem ella, hoje em dia, a vista do jornal ou da revista literária
é monotona e a leitura despida do attractivo confortante do riso.
A critica perde aquele sabor picante que reside na ironia do traço e somente
nelle, para assumir, muita vez, a attitudéoffensiva de um termo que não representa
fielmente o que queremos enunciar.
A caricatura é o meio termo, malhavel por excellencia, tem a feitura bifronte de
Jano, interpreta, quasi sempre, o pró e o contra veladamente.
Nisto consiste sua necessidade nas revistas de arte, em que a crítica se impõe
aos homens e ás coisas, de um modo frisante, porem macio e educado. (...)

Texto da revista Kodak homenageando seus caricaturistas, publicado em 27 de setembro de 1913.

29
(2 ARICATA

L'

il
O civilista Rui e o militarista Hermes, segundo a Careta
ARICATA

g
O
u
I - ALEGORIAS DO PROCESSO POLITICO:
o DA MONARQUIA À REPÚBLICA
Oí Ricardo Pacheco
2

O contexto do início do século, quando se cartunistas que aludem o limite desse processo
alterava o regime político do país, é marcado político.
pela existência de três partidos políticos: o Como cães que disputam um osso, como
Conservadore o Liberal, oriundos e comprome a briga de cão e gato ou como Dom Quixote que
tidos com a monarquia, e o Republicano, ataca inimigos imaginários, a disputa política
precursor do novo regime. entre os partidos de então não envolve, como
O tom da sátira política desse momento, nos mostram essas representações, profundas
porém, trata essas diferentes estruturas parti diferenças ideológicas. Ao contrário, cada um
dárias como possuidoras de uma identidade dos grupos espera, como bezerros desmama-
comum. Quando observa-se a prática política dos, o momento de desfrutar das tetas da mãe
mostram-se, os três, elitistas e fisiológicos. pátria.
Tratam, os grupos sociais agremiados, de man Não se apresenta, entre os diferentes
ter as camadas subaltemas da sociedade partidos políticos, discórdia quanto ao objetivo
isoladas do processo político, fazendo desse a primeiro da prática política ou quanto ao papel
arte de manter, através do controle absoluto do a ser desempenhado pelos grupos subaltemos
Estado, as estruturas que estabelecem a desi nessa esfera. Estando baseados na mesma
gualdade da sociedade. classe social- a dos proprietários dos meios de
Assim, não é de estranhar que o Zé produção - os partidos estão dispostos a pro
Povinho, personagem caricato dos grupos su mover, sempre que for preciso evitar a
balternos, não tenha seu retrato nessas participação popular, uma ampla conciliação.
alegorias ou o tenha como um coitado, a quem A adesão ás causas populares, tais como
tudo é ofertado no momento do voto para, a abolição, são tomadas e cobradas no mo
depois das eleições, ser chutado do cenário mento oportuno, quando essas já se tomam
político. A compra de votos e o peso do dinheiro inevitáveis. O adesismo é visto, então, ou como
no processo eleitoral, mais do que metáforas, uma postura para agradar ao eleitorado
são denúncias apresentadas claramente pelos ou como uma imposição que não encabula

31
ARICATA

eí OS parlamentares. O que está em jogo, nesses cartunistas, mais uma troca do grupo político
ü
Cd momentos, é que as reformas se façam, antes dirigente do Estado.
O
que as forças populares se descontrolem, pe
los grupos políticos dominantes. Ricardo Pacheco: bolsista de iniciação científica curso
de História/UFRGS
2 Enquanto isso, a cidade, os serviços ur
banos e as camadas populares ficam
abandonadas por esses administradores públi
cos. O Estado, refém dos propósitos políticos
das elites, se encontra descomprometido com
as condições de vida da maior parte da popula
ção e não investe na infra-estrutura urbana.
Cidadania é, nesse momento, um concei
to obtuso. Responde por cidadão, de um lado,
as elites que, administradoras do Estado, se
pronunciam defensoras do bem comum e, por
outra parte, é um cidadão de bem aquele popu
lar que aceita as arbitrariedades do processo
político estabelecido e não questiona a estrutu
ra excludente então montada.
Vemos, então, que as desigualdades so
ciais e a irresponsabilidade dos homens públicos
não é originalidade de nossa época, assim
como encontramos, já naquele momento, críti
cos corrosivos dispostos a denunciar as
contradições de uma estrutura que comporta
mais excluídos que inclusos no sistema político.
As alegorias do processo político: da mo
narquia à república nos mostram, assim como
concluem diversos estudos com outras fontes,
que a passagem da monarquia à república não
causou grandes transtomos nas estruturas so
ciais existentes. Foi, como denunciavam os

32
Q ARICATA

ASSieRlTURtS ♦ itj;n \i r«> n


Para a Cap>>il

MIGUEL DE WERNA^
.\llIIO f>- /hrfo . ffeffrr Ifíilr Smrmltfn i/r /v.Vj N 201

'tm* um

r-, >» f r

(li«-M< ai «uCTM 0) ^40 4«« C V


<o<ft t MM I i fa<
t«v ikiil f

l»'\i ti 99^'
fé**"!
«•♦<« W *"*•

Crítica à prática dos partidos políticos imperiais (Partido Liberal e Partido Conser
vador), extensiva ao recente Partido Republicano, representado pelo barrete frígio.
O Século. 16 nov, 1884
CJ ARICATA

•v "s •. çy I Ê

•m

7/i» ''

•vV**-^.

" queoIrapera^lor, ao rocpl.eUüw.lv


caiiiu redoHdameutó. r op^.em,
«)m üuni«ro (U díU
• diipuáaát Uv«i»n,
do'<aÍ« i-l ch«Jqu«
i.., ———
i

A linguagem republicana do jornal gaúcho A Federação assusta o Imperador


D.Pedro II, O Século. 20 nov. 1884
Q ARICATA

IW<a .Miyry1 1 xs20,l

A força do Partido Liberal no Rio Grande do Sul é respon


sável pelo enraizamento da monarquia no estado, dificul
tando a ação política dos republicanos. O Século, 14 dez.
1884

Sátira às lutas internas do Partido Conservador no Rio


Grande do Sul. O Século. 30 abr. 1882
zm
m]

A livirior,). mi-u) ;:0(h |>)ríju.lv. tcfií njv<frTiiÍ4i ''Mnim a Vai XwU* rw'- \'ai ;i.ui-.;í. <M,uir.»'.uíli

A Federação, Jornal do Partido Republicano Riograndense, fundado em 1884, ataca a Monarquia. O Século. 20jan
AJRICATA

4 ' í']ic('í'!.(i KIJCiTíínA!

o tjiuhriro voihm^ íudu !

Fraude eleitoral no quarto distrito de Porto Alegre. O Século, 16 sei. 1886


ARICATA

\ //

:w

míM
• • ••'-•• I' ni iiri-iM-:: i«;-i ,' iimn
r- (^ iHll.l.i IikÍiI ,l illl[>;.ll-.l H <-st!l MTll-M ' \ ..
• •í í- h>-..l;<i<il!>.;:.i, .(.ii.ii.Io i,i-í.iil.' piiia'. :.M,, .. •••'•'. : ilíl HT. «1111
• >. \Clll:r> i:i!..-in) <• Sl!vu (i, „,,||M. u.||;m IuI
' • ' !l -.lli .lll fMi- Ilill ili l;:;.
• .iM-i.. j...l,r..; iii";;asc

Crítica d'0 Sécu/o àqueles conservadores que se apegaram à Leido Ventre Livre de 1871 como solução final da questão
servií. O Século. 20 ago. 1884
m !I
'p{' • i
ARICATA

o
(d
II - A CONSOLIDAÇÃO DO PRR:
O O AUTORITARISMO ILUSTRADO
Cláudia Mauch
2

Ao longo da República Velha, o poder A Constituição Estadual possibilitava a


político no Rio Grande do Sul esteve nas mãos reeleição do presidente do estado por tempo
do Partido Republicano Riograndense-PRR, indeterminado, desde que conseguisse dois
partido disciplinado e autoritário liderado por terços dos votos, que, aliás, não eram secretos,
Júlio de Castilhos. Após a sua morte em 1903, pois os castilhistas seguiam a máxima comtiana
a personalidade de Castilhos passou a ser do viver às claras. Graças a esse recurso,
cultuada pelos republicanos, talvez seguindo Borges de Medeiros cumpriu cinco mandatos,
Augusto Comte, que dizia que os vivos são governando o estado de 1898 a 1907 e de 1913
sempre, e cada vez mais, govemados pelos a 1927. A continuidade administrativa também
mortos. vigorava no governo municipal, onde José
A Constituição Estadual de 1891, elabo Montaury permaneceu no cargo de intendente
rada por Castilhos, baseou-se declaradamente por 27 anos.
nos preceitos de conduta e organização gover Durante quatro décadas, o PRR teve de
namental do positivismo de Augusto Comte. O enfrentar uma oposição organizada e poderosa
positivismo foi a base doutrinária a partir da qual que resistiu ao seu alijamento do poder por
o PRR instituiu um Estado autoritário que se parte dos republicanos castilhistas. Se esta
apresentava à sociedade como seu protetor e bipolarização partidária, tão característica do
organizador, capaz de atender a demandas de Rio Grande do Sul, por um lado enfraquecia o
diferentes setores e de promover o progresso. estado nas disputas pelo comando da política
Esse projeto político não oligárquico e antilibe- nacional ao tempo da política dos govemado-
ral, aliado à estruturação da eficiente Brigada res, por outro forjou a coesão interna do partido
Militar e ao recurso à fraude eleitoral, permitiu em torno de lideranças como Júlio de Castilhos
ao PRR construir uma sólida base de apoio e, após sua morte, Borges de Medeiros e Pi
dentro da sociedade gaúcha. nheiro Machado.

41
Q ARICATA

Encarregado de manter as complicadas


relações de um governo estadual antiliberal e
não oligárquico com uma república liberal
oligárquica, o senador Pinheiro Machado atua
va como um representante do PRR na política
nacional. O coronel dos coronéis, como ficou
conhecido, adquiriu maior poder ao conse
guir o controle de algumas oligarquias do
norte e nordeste, a ponto de ter sido um dos
principais articuladores da candidatura do
Marechal Hermes da Fonseca para a presi
dência da República em 1909, e ser cotado
VlICIO '4^ dUfftr/\ íif I ^{|
para sucedê-lo em 1913. Em 1911, Pinheiro
Machado criou um partido nacional, o PRC
- Partido Republicano Conservador - para
dar sustentação ao governo Hermes e à
política das salvações militares, tendo do
minado o quadro político nacional até o seu
assassinato, em setembro de 1915.
Autoritarismo, sectarismo, antilibera-
lismo, continuísmo administrativo e outros
tantos traços da prática política do PRR
estimulavam as críticas ao partido e a seus
membros, habilmente expressas pelos de
senhistas da Revista Kodak ou pelo
dissidente republicano Ramiro Barcellosem
Antonio Chimango.
liüi <MaH» •

Cláudia Mauch: Mestre em HIstória/UFRGS. Professora


de História do Brasil/ULBRA

Crítica à prática dos partidos políticos em tentar usufruir


das benesses do Estado imperial. O Século, 14 out. 1883
.!. ! • lllU' IJllf

Alusão ao retorno de Borges de Medeiros à Presidência d


mandato) e aos princípios políticos orientadores do Pa
Riograndense, o PRR. Kodak, 30 nov. 1912
h

UY
I
Accidcntc' ! ! ! Um dos i)alrador('s do casarão rua da
I.urcja, depois de muito falar, cahiu exhaiisto, vSeudo,
carinhosamente, conduzido para a sua residência pela
nossa ei uz vermelha^ .
Sátira alusiva aos longose cansativos discursos proferidos pelos deputados na Assembléia Legislativa. Kodak. 151
1913
CJARICATA

Ecos da eleição

L \ t Jísl
<Ji
^I

li-
— O seu coroné stá ?
— Está; diga o que quer.
—Vancê diga a eile que eu já votei naa
quatro, si é pereiso Ir votá eni Canoa...

Crítica ao clientelismo político e à fraude eleitoral no Rio Grande do Sul na


República Velha. Kodak, 23 mar. 1913
ARICATA

O
NA GAMARA
u

o
06

Alto lá, >cii cIicIm, aíjiii não entra com ^-narda-iáuiva


IN-rdão, mas (Üs.scram-ine (jUe a sessão ia sei' lein|>('>lno>.i .
Alusão à violência nas sessões da câmara de Vereadores de Porto Alegre. Kodak, 26 abr. 1913

47
ARICATA
Afino I *• Porto Alegre - Sabbado. 7 de Dezembro de 1912 » N. II

l'..i IV—), .un-i»it;ií!io^ ijni; í» si'iw<l(>f Pir»lU'iro eslcjii, ih' facto, a i'PCM'v<'i c.irtav
. .íiM.iv iiiima^ i-anas, /»<j/s une só n-i larUf r •/"•' /••'i/mif stUenr H sua sifnaiva.
íT. Ki;i,tma tfu C<irnn> Je
/< <unc.li,e ecinruiamlo: I),* cscít-vci i' |oi;;íi
nuiiio ni>^ia ti v.utnj, I
— Ctanlei/er .•simIíi.i . .h .. j
A charge evoca a atuação do senador gaúcho Pinheiro Machado e seus conchavos políticos em
nível nacional, envolvendo a articulação das pequenas oligarquias regionais com a sustentação
do PRR frente à aliança café com leite (São Paulo e Minas Gerais) através da criação de uma nova
agremiação partidária, o Partido Republicano Conservador (PRC). Kodak, 07 dez. 1912
A.

dente da República,
achado, queagiu com(
913
Q ARICATA

T-v;-. 3C^3 .-'íi-A:íj I Ptrtj —Siiíísá}. 15á» áí 1513- M. 22

Fum

L^s

i''"'!!!,!!;!! \t\|-|l.\tii I ; ;;• Iiiii:. .-..i-:! i-!ii:rii.,,i.lii .--;i lli.v.ríii .|i. iti.-ii'i- |«--u.fu cjiif .. -••r.
' I!'» i; i> «irii» ••Hjjravs'!" o nmmliU' ilvirr na.-» iiiãu» |>'rB nii-i il»*
n r<ifila. r , .
A liii-hars.la *a<-«v pijiJjím, 'À-

Sátira à manipulação realizada pelo senador Pinheiro Machado no processo


político-eleitoral da época. Pinheiro Machado detinha importante cargo no Senado,
controlando a Comissão de Verificação de Poderes, responsável pela diplomação
ou "degola" dos candidatos eleitos, prática que se constituía no elemento-chave
da política dos governadores. Kodak, 15 mar. 1913
ARICATA

g
O
u III - REPRESENTAÇÕES DO SOCIAL:
O NEGROS E BRANCOS, POBRES E RICOS
Sônia Ranincheski
2

Final do século XIX. Porto Alegre vive este personagem questiona a desatenção do
uma nova realidade. Crescimento industrial, poder público ao cidadão pobre, de segunda
passagem para o trabalho livre, expansão urba categoria, marginalizado social e politicamen
na e modificações econômicas. Este contexto te. Ser Zé Povinho era ser subalterno, andar
de mudança, contudo, não altera a questão mal vestido, viver precariamente. Direitos, pou
social; continua a diferenciação entre pobres e cos podiam ter. Ao trabalhador, ao Zé Povinho,
ricos, negros e brancos. Em poucas palavras, a só tocavam deveres.

cidade se transforma sem deixar, porém, de Além dessa diferenciação social, havia
reproduzir mecanismos e situações de discrimi outro tipo de preconceito: o preconceito moral.
nação, segregação e confinamento. A condição de pobreza estava associada à
A utopia é de progresso ilimitado. No vagabundagem, gatunagem, vadiagem. E a
entanto, esse progresso não é voltado para a ação repressiva da polícia traduzia essa visão.
população em geral. Persistem as péssimas Expoente máximo do Zé Povinho era o
condições de trabalho, a miséria da população, negro, que carregava um duplo estigma: a
a carência de moradia, o alto custo de vida, a miséria e a falácia da condição de liberto.
permanente falta de direitos para os de baixo. Ambas se relacionavam. A libertação não signi
A crítica a toda essa situação se dá de ficou melhoria social, pois, se antes eram
várias maneiras. Uma delas é a caricatura. O discriminados por serem escravos, continua
deboche mais uma vez é usado para questionar vam a ser discriminados por serem negros e
a condição imposta a uma parcela da popula pobres. Na tentativa de ascensão social, o
ção... negro vai buscar atingir o ideal da branquidade,
Surge o Zé Povinho. De forma burlesca. difundido pela elite da época, através da misci-

51
ARICATA

ü
genaçâo ou da absorção dos valores do bran
Cd
co. Éa contradiçãodoeufemismo da democracia
g racial (e social) que ao longo da história perma-
O neceu como uma verdade, procurando ocultar
a realidade da discriminação.
Pobres e ricos, negros e brancos. O bene
fício do tempo mostrou que o recurso da
caricatura foi um importante meio de represen
tação da desigualdade social. Veiculada com o
apoio da elite alfabetizada, reproduziu pela
ironia uma situação trágica, sem compromisso
de mudança. Na Porto Alegre da virada do
século, democracia poderia ser uma realidade
para brancos ricos. Para negros e pobres - a
imensa maioria - era um conceito vazio, tão
distante quanto a possibilidade de acesso a
estas caricaturas...

Sônia Ranincheski: Graduada em História/UFRGS -


Mestranda em Ciência Política/UFRGS

52
ARICATA

g
o
(d

O
a.

X^VK^ ^
' <U> /xX^ ÀâxO jfeSESjáBSi ^yiovot, rC^vut» c A^vU#
fruBlo^ /H0W XíHfiUftAA^

Zé Povinho; caricatura do cidadão de segunda classe, trabalhador pobre,


esquecido pelo poder público, marginalizado social e politicamente. Gazetinha, 10
de nov 1895

53
ARICATA

ü
Cd
V
O

2

/ •é

|ti5 íi ío ^0- de f<^ •..

Crítica ao relacionamento patrâo-empregado no final do século XIX.


Gazetinha, 24 nov. 1895

54
•PHRASES FEITAS-
® • »
1
ij
ENTRE OPERÁRIOS

f-W
mcm I

A vida está cada ve/ mais cara. A Mnliniliiiinh', a pro-


tcctora dos pobj*es, a subir o alui;uel das casas; e, por ciitia
disso tudo, principia a canicula a desperdiçar-nos „ suor e as
forças, eiiiquanto esperamos o bond de UH) rs.
í*''^'.<-'i^cia, meu amigo, é preciso paciência. Roma nâo se
le/ 11 um dia. O sr. dr. Intendente pronietteu tomar em conside
ração o nosso memorial, quanto ao preço exhorbitante das casas-
f o major Virgílio do Valle...
Qual Virgílio nem Virgílio, s*. Zé helix, você ainda acre
dita em almas do outro mundo : aquillo é um vallc th- lagrimas.

Queixas sobre a carestía e as difíceis condições devida dos trabalhadores urbanos.


Kodak, 12 out. 1912
ARICATA

.. s t r.i
•\Ai t'-í

C- '-'d •-'

r t ,C cgnojitigLJgmefncg„
• ^co;iíe/ii8«?gí e-y^flc cenfrí? a^rcpa^n^cio.
\ Qi( imrn^^sti utiliiah wcasw p&lres,
L —iBõa mite^ ..
) mhj maltiPr^/iÀn .. .^h!

o jornal recomenda o "controle da natalidade" como forma de impedir a "propaga


ção" dos pobres! O Século. 12 fev. 1882
Alegoria á libertação dos escravos; negro naimente" bem vestido
convida os eleitores d' O Século a participa onativos da quermesse
em prol da libertação de escravos. Essas qu iveram papeldestacado
na campanha abolicionista no Rio Grande Século. 17 aao. 1884
Q AMCATA

.v • •,.

-*y-U • J

Porqueque. í.stás arrurnaiRionscliaruí'


nas botas do teu senhor ?
-- Porque chegando no Pio íirandc, <>
vindo os charutos nas bolas, o iihofdüí
ticô COíft iiojo^ irOt>s d*'* |»«ra'*11 íoniaf
Piada preconceituosa a respeito do comportamento dos escravos com seus
senhores. A Sentinella do Sul, 03 nov. 1867
c ARICATA

g
0
tà IV - A MULHER COMO ALEGORIA DO PODER:
1
O O LUGAR SIMBÓLICO DISTANTE DO REAL
Oi Adriana Cristina Tyburski
o
eu

Os caricaturistas e chargistas da imprensa por- ideal para o exercício da maternidade dedicada


to-alegrense também fizeram uso da alegoria e do matrimônio complacente, ambos
feminina, tão utilizada na construção do imagi enfatizados pelo ideário positivista que atribuía
nário republicano francês, onde a figura á mulher importância destacada na manuten
feminina, inspirada nos clássicos, passou a ção da ordem social.
representar os novos ideais vigentes (revolu Concepções idealizadas da mulher como
ção, liberdade, república e pátria). mãe e esposa também estavam presentes no
No entanto, a idealização da figura femi imaginário proletário. O que não significava que
nina na simbologia francesa era mesclada com as dificuldades enfrentadas pelas mulheres
elementos da vida real que registravam a atua pobres, submetidas, não raramente, ao traba
ção feminina no processo revolucionário. No lho fora de casa não fossem visualizadas por
que se refere á criação da simbologia republica olhares mais incisivos.
na nacional isto não foi possível, visto que a Neste sentido, a imprensa caricata atri
participação feminina no cenário político buiu à mulher, enquanto alegoria, silhuetas,
inexistiu. vestes,expressões e posições de destaque,
O que não nos surpreende, já que a compondo um perfil de representatividade que
política estava relacionada á vida pública bem contrastou profundamente com a mulher da
como a figura do homem, portanto, não era vida real que possuía outros contornos e habi
recomendável à mulher ultrapassar esta fron tava outros espaços.
teira, pois vida pública feminina significava vida
desregrada, prostituição.
Adriana Tyburski: Bolsista de iniciação científica, Curso
Restava-lhes de efetivo o domínio da vida de História/UFRGS
privada, mais especificamente a casa, espaço
61
>resentando a ab(
a sete de setemb
m
CJARICATA
•} / ..M

m'^:m

Km (juiuiio a Cainara <l{'R(n5rar tios


intoreHHOH j)ublii*(>H a nossa polav vi
íiadt? viverá empestada, inutimida o
yjal calçada.
Mulher andrajosa, representando o estado calamitoso da cidade de
Porto Alegre. O Século, 16 set. 1883
ARICATA

t-í^l >. -L •^fe'llM':r;


CTr^V-A
- A V^ / \ lLé>Ay -ji ^jmíÜKü .•:-v , --..
••U l'.-..-
• r-^'*i-U:^..
% •; .

r ^

i... ívi-

_ L-t?"*
_C^-í--®
f : n
^-•4 L^

f.i ini-( ir li.iliiTi.i il cl M.'i i-i .il

Na intenção de minimizar o poder de Solano Lopez, destaca-se a figura


poderosa de sua esposa, a inglesa Madame Linch, durante a guerra do
Paraguai (1865-1870). A Sentinella do Sul. 21 jul. 1867
. •'3

81
ARICATA

s
o
bd
V - MÚLTIPLOS RETRATOS DA MULHER:
O MORAL, MODA, SEDUÇÃO
Mana Angélica Zubaran
2

As charges, caricaturas e chistes das dores da imprensa caricata porto-alegrense, os


folhas porto-alegrenses do final do século objetos mais recorrentes de hilaridade sobre a
dezenove revelam na pena e nos crayons alma feminina são a moda e a infidelidade
elaborados dos ilustradores da época um olhar conjugai.
masculino moralizadore vigilante. As múltiplas Os figurinos caricatos de suas belas e
representações da mulher, ou seja, do outro, amadas leitoras têm como alvo predileto os
parecem contribuir para reforçar os estereóti penteados - apliques de coque, chignon à Ia
pos culturais-sexuais a respeito da identidade cheval, tocado a Ia gata - os chapéus e
feminina ideal e para ridicularizar o comporta chapeilinhas, os vestidos e os assessòrios -
mento desviante da mulher que rompe ou que entre os quais as famosas anquinhas- associ-
se afasta da moralidade vigente. ando-as às últimas novidades da moda francesa.
Os principais atributos que configuravam As caricaturas contribuíam assim para reforçar
o modelo ideal de feminilidade, construído a a exigência da preocupação feminina com a
partir de um paradigma ocidental cristão e de estética e com a moda, e também para identifi
uma vivência social patriarcal, eram a pureza/ car a mulher com os produtos do imperalismo
castidade e a submissão. A identidade femini cultural francês do fin de siècle. A mulher
na era associada à fragilidade, à dependência elegante era aquela que se vestia à francesa...
e à passividade. A mulher virtuosa era caracte Ao mesmo tempo, o olhar vigilante masculino
rizada como tema, cheia de pudore graça, um ridicularizava o excesso de vaidade feminina,
ser angelical cuja realização pessoal estava representando-a como exagerada, passagei
circunscrita ao binômino casamento-materni- ra, inconstante, banal, fortalecendo assim a
dade no exercício de sua função social de imagem ideal da mulher pura e contida através
esposa fiel e mãe dedicada. da sátira de seu contratipo, a mulher mundana
Na pena jocosa e irreverente dos ilustra e fútil.

69
Q ARICATA

A sexualidade feminina era vigiada e con


trolada no seu dia-a-dia pelo olhar do chargista,
como também o foi pelo discurso médico sani-
tarista e criminológico. O comportamento sexual
feminino ideal foi construído no discurso mora
lista associado à imagem da mulher-esposa fiel
e casta, confinada á esfera doméstica, defen
sora e rainha do lar. O menor deslize podia
significar a perdição, a má fama e a identifica
ção com o adultério. Representada como presa
fácil dos galanteies dos sedutores, o retrato da
mulher na esfera pública, especialmente se
desacompanhada do marido, foi
freqüentemente ridicularizado pelos chargistas
em oposição ao comportamento ideal da espo-
sa-dona-de-casa-màe-de-famífia.
Portanto, se por um lado o estilo humorís
tico da imprensa caricata oportunizou a aparição
da mulher na cena pública, por outro lado,
revelou uma percepção hierárquica e moraliza-
dora do feminino, contribuindo para reforçar a
normalização do outro.

Maria Angélica Zubaran: Graduada/UFRGS. Mestre e


doutoranda em História/ State University of New York.
Professora de História do Brasil/ULBRA

Muda iiiuderna para a prifua-


vcra. Veslid<^íi lá Darbí)Ií'iUi.
A Sentinella do Sul, 21 jun, 1868
ARICATA

\ Ü

Á Sra. lí*** u-n .-..jiio aiHjuiíílwi nrn coIcbiVo. E como Itio poso muito,
n'i j^uiiir «lits n iiü,'..-. ii noutíi, obriga o pobro timritlo « levar aquelia

O Século. 28 out. 1883


CJ ARICATA

í%
O
>v '--
N 'N

lí y:

A senhora não sente a cabeça mais aliviad


Sim, senhor.
E' que perdeu alguma cousa.
A Sentinella do Sul. 19 abr.1868
ARICATA

'' AÍSISHATURAS
ASSISttATUKtS . "^'.'1^. ' '•'/.'^J KKOA" TI» IC •-, AJii :•< AI u» *S
AI UR â3

Ptra
Ptr> áCapílal:
a Capi»!; •- " •^- ^J •••>''» CAüj<3I
''íCip;!»!
=.j • miguelTiewerna' ••••• •; «
[ ""Altlio"^^'- [ Pttriu .f/rt/tf •U)llr Uu,-r„ ./,• /V '• / \'' i(>ij
•iTi' •1'nii II '^^

r_--^A N

I •

'.- ->•'. . •

Crítica ao falso moralismo da Igreja Católica. O Século. 30 mar. 1884


o 'ji;'; i' !-(<•, L. •- ),r-p''y< à'-^ sH.'. ••."lnf «{it- tnm.m-lürnnto uin Hiiiio <}no oPtivo lUiwiUe?
Ná-> V: ' .-I.arj ii.,; rj^ninta nt» .«<'U .Uove«lxv
i-t. .'• .iVvi.iu * in;;!i friii;ir .{Uf iipiinh.'i ii/i Pra<;a d ílaripoisia. iVrj^nin
^í!

Alusão sarcástica à infidelidade conjugai. O Século, 23 abr. 1882


c ARICATA

g
Ü
Cx]

o VI - TRAGICÔMICA CIDADE:
os
o
Om
ADMINISTRAÇÃO, RUAS, SAÚDE PÚBLICA
Alice Dubina Tmsz

Uma cidade existe no tempo e no espaço. A Porto Alegrte de 1885-1915 era uma
No espaço porque constitui um quarto de ocu cidade pequena, mas era a capital. O século
pação e povoamento-que se traduz na ação do XiX foi um período de grande crescimento da
homem sobre o meio, transformando-o e sendo cidade, em área e demografia. Vivia-se a "Era
por ele influenciado em suas determinações e dos transportes mecânicos", da máquina a
construções. vapor. A indústria progredia neste ritmo. Para o
A população mantém com a estrutura deslocamento, a população dispunha de bar
urbana uma relação dialética, portanto. Este cos a vapor, locomotivas e bondes movidos a
movimento dinâmico e ininterrupto é a base do tração animal. No final do século, duas compa
desenvolvimento da comunidade, do seu cres nhias dividiam os serviços de abastecimento de
cimento quantitativo e qualitativo. O aumento água, que eram insatisfatórios. A rede pública
da população e a complexificação social de de encanamento atingia apenas algumas ruas.
sencadeiam uma necessidade de reordenação Em 1867, passava a ser utilizado, no consumo
da vida, provocando a multiplicação de meca doméstico e na iluminação da zona central, o
nismos que possam atender às novas gás de hidrogênio. Nos subúrbios, a Intendên-
exigências, o que é fundamental para o funcio cia (Prefeitura) instalara lampiões a querosene.
namento e vitalidade do complexo urbano. Neste O serviço era deficitário e a ampliação da rede
sentido, são mecanismos os serviços de forne de abastecimento esbarrava nos custos do

cimento de água e luz, transporte, saúde, combustível. Apenas em 1908 seria criada a
segurança, etc... Usina Municipal, permitindo a extensão da luz

75
ARICATA

elétrica aos bairros. O recolhimento do lixo foi mostrada de forma crítica e inteligente pelos
ü

urbano era realizado por empresas privadas cartunistas e chargistas daquela antiga Porto
<
O até 1898, quando seria municipalizado. Alegre, que optaram por rir de si próprios e de

s A cidade em expansão começava a con sua cidade, ao invés de chorar por ela. Porque
viver também com problemas como a o riso é a melhor arma contra a acomodação, o
especulação imobiliária. Se, por um lado, cres desleixo e a prepotência. Embora possa pare
cia o número de prédios, fábricas e residências cer apenas "engraçado".
de luxo, por outro, proliferavam os casebres,
porões e cortiços superlotados e sem qualquer Alice Dubina Trusz: Bolsista de iniciação científica no
curso de História/UFRGS
higiene. Essa questão estava intimamente liga
da à incidência de epidemias e ao crescimento
da criminalidade. O combate desta última cabia

a uma guarda municipal desqualificada tanto


no que respeita aos recursos materiais, quanto
aos humanos.

O quadro era de déèorganização geral


dos serviços urbanos e obras públicas, mono
polizados por um grupo de capitalistas que
lucravam com a manutenção da situação de
precariedade, fato que era conhecido pelo po
der público e pela população.
A imprensa da época foi muito atuante e
lúcida enquanto conhecedora e denunciadora
dos problemas da cidade que procurava
urbanizar-se e modernizar-se e que , por isso,
era exigente em sua apresentação. A realidade

76
C ARICATA

I ^ M
>
f

.. A ^1
I J|#JÍ , *-•.•
•>~ •><»•. u*^ «. ..li i«w •'
4^ V it r < L

^ \ d i .
ri ^
•/

liS^i
V -- ^ **$1^ W^
^ "ÍSwipÍfcà f#»p«»- «i*« Wl** I •••- •>♦• • ••'•• '*»• ' € .. •A..
^ ^v». •«»—«» a*^ •»«. •*-. . • •.' • ^ -1—> .— •
J»»»**»» .t* t" mfllia, <t«M , lv«. -V^». '. .• -V .•«/ S ... .
< «wf».i i wM —J-s*. )..f.
,v-^^H-;:'. •"• •;

As pequenas tragédias do dia-a-dia no espaço público urbano. Gazetinha, 24 nov. 1895


ARICATA

UriiachMTN iii\ rf.stís

í porto p^U'c\vc

?cv; jV

•X^ A
\\

/'pW - (ih qno rna ! ílom ofTcilo. bem se ?6 quea capital tia província ostá 4>rivaJa do reprósôntaçüo
Í|-.ll, / i ,
^''•' M.'.ii aiiHi di'M.'u»dar um prrnas du páu como aquelle seiibor que afl Y|Í. ^

O mau estado das ruas da capital. A SentinellBdo Sul, 18 age. 1867


Oi Cèis Vfr st dlcBuças oJÍÍ, anfn àe r»celliep-íp^ ^ar# eonfrafereiR co/it e
aí»/«.^íçáj p«Oií. -—' ü) e^re-ijg^ gc^Vtn^tfS ^ senío elíe te esconde! ftfiâç «xs»

Na falta de uma atuação governamental eficaz, só resta esperar pelas forças da natureza \
O Século. 07 aao. 1881
ARICATA

O
bS
2
f

•' f. ,|||*| . À"ii

_íl^UMDO AS /^vess-^s
?.- tsl/v W;ÜU/. ac /.i^S -t. ÍROrtlBiDO TEÍ^ Soa\£ Oí VâSmoS C^Va^LLO,OU PíSSO^S /JÍSÉ«í1^0/S
ou Dt\T\aos.\yt eSTO\.. V c, ri\«rfsÍTO. PtNA 6coo i^eiS Dl MULTA.
VrcT'. í^/-. «Ul-u - -r.' nçJvV^Cs'Yijjos ».^CÍ\^HÍí^iOÍ<t 0»V.Ti^:^í/«uifTW?
Descaso para com a observância das normas municipais tanto por parte dos moradores, como do poder público. O
Guarani, 15 nov. 1874

81
(J lARICATA
ARICATA

AvUUVTtTTs J IVfilin U)rí*N. lÍHíT.stj

*jhino ír Bovto Aleí\ri'. .4^/A

sysliMna «lií iiluniinayAo pubiica era Porto Alegre.

Crítica aos deficientes serviços de iluminação pública e limpeza da cidade. A Sentinella do Sul, 03 nov. 1867
ARICATA
Pi".;íieiras instrucçòes à Guarda do Convênio

O major (cnfiuvcido); l*riinoira fórina n. 2!... prfníoira


fóriiia o iiao baía com a arma na cabo^a ilo n. 1.
O n. 1 (apif^f-iitíindo arman): Com suas Jicenvas, seu
majíí, cDe faiz de apreposito, o cu inlé Jsi stava com von
tade de varrcr-llu' as ventas com duas vassouradas.
Deboche sobre a inoperância da polícia municipal. Kodak, 28 jun. 1913
m

ma.x uo MLHCaíK)
- Ki« fi praça principal de nossacapital t
- Tuis a^si-íikíllia-se tnais a um poiuode Uopciros
— \ á •*»«) visua a nossa edilidade

Critica ao incômodo aspecto "rural"que persiste na zona central da cidade. O Guarani. 06 dez. 1874
PORTO ALEGRE


C/)
CD

5' : »
ÇD
S' ^-.L-.4 - • í ^ r
CL
O
OO
c_
o
CO
cn
JD

CO
(3>
--g

•n
a>
/>
v>

3*
W •\
g
•t

R
B
o
a
ta
-t
a
ta

•4

s.

.-.í^ '
s
a
?
o

! ?-
. • l

is
r^«:íw»-k
ARICATA

.;?g&>-iVi.-^,-v-»-. '.r\' t'.y , •--/ -•

í'<-.; j>u'<!;i>! ii;r.Mi .'- . .i u... -ii.- |i!i-'i.- •:• i.i'i '•••..••
í'' ••,l.|, |-.;lu-i-.'< • Ml; Il-Mv jl;.; 1.. .-..ifs iMll-i,-.
•;••. ... ; ,.. , .)...,. !.,; ,,1,.,,.,,.. .!•,. ..,.1,.,^ '..l.,.

O descuido da saúde pública; dos mosquitos à cólera. O Século, 11 nov. 1883


é^NNlNHA^
wb ANTONí
CJ ARICATA

ISHATUb!®
• *c»oini- •:SN^^:'•'J.^1^-r ^
JIKUA» TÍMl íSS C'-«luttiS

'""'^^'f^r^HlGUELlEWERfiÃ' .'••^ "


Alliio Parto Áhpre i dfyot rmhttt tlf \-'jííO

' *

c ^ ' '^

i2;

A "iN Ts^:
*•' i'>' •%

La Sí^unds > r.iü- BíTflUnlivv. de-x itr hsje &entrada (f.umjha' «' iunt(*gr'.n !• -i fii.-.trn - «(_• -.ajrf
íAÀ StllW. ma a KMiWÍ. Hfjuf csRtlit» u? «m n IfUa 4f [naflc l-ri-a- ca.:

O Século. 02 nov. 1884


ARICATA

Miu- <|Uiiii<!» loiiii^.io n nii'lar virc^-ni Nixfii <>« IkiikIh f<H'liailoa, do ür. £ina, afio um sup
Sciili-Tn • São tiiiin- "m niiúlnra* lie r«<'aliK'vU'*'' pliriii! Hiii jiitnulM ainda. d2o é nada
i> rnii!i>ir<i c!a )iuiiiaiii'lii-lf ! a|>ptma <i iHvortiiitPiito de unia meia doziadepul
gftj» o oiitroa UiitoB p«scvejo8...

Ml

I
fSS'"

fimí I

K' ]>rcd!«i Bcr marínlieiro da longo cano pan &lo deitarcargaao mar.
(h spiui luiuda, Sr. £lras. nto ato bonda, sBo vomltorioa l...

O Século, 21 out. 1883


ARICATA

Oi transeantti èa /-m* ío •M:)enmo Deui em jiflfts^JarMhíK ^yuçat eio ^eU Ím noisa <5()('íc^í(í)e
Jjetn Ififa • Luainòo Je òii aj Xi EJgi^inho atit «eíeiíáe munictyí etoma tuatte seriaj ellt n-if' g
yUayiro, le^ur u nrn« <* chapinha marcada 3«iii}e a //íiarág^p ( . 0 «pi

J^Tf^Ti >'•

Crítica à acomodação doZé Povinho frente aos problemas urbanos, deixando de exercer seus direitos de cidadão na
hora das eleições. O Século. 07 ago. 1881
ARICATA

L6C0M0ÇÃÕ RAPID/\

£f

de ^Or
T^ort^

yr !&,<>„. ^
L,__J
/jÍ*j OAT'f'ÍI(^: —Bhos dias sru iiii'oI.., \;;:;í't' assim itrsh' |iassÍ!i!i'* '
Ka«íado nslo chc^a ao tmaia» «Ia jnruada !
Í)R. M()XTAriiY:--\'occ nào salii' o ípir di/. >i'ii /('. a h)c<)íií(a;:"ni inai*'
^iifíi ó osta. Assim cíhuo vocò nw \ i'-. m csi'!!! livre d.i* mii posir i"
trmde ou do um descarrüaimailo iiixppcriuth».
Pi/MjO. Diano si va loola-uj . ^ :
Kodak, 24 maio 1913
o século XIX foi
um momento de ampla
divulgação e socialização
das imagens. Marcado
pelo advento da foto
grafia, pelo cinema e pelo
nascimento do cartaz pu
blicitário. viu ainda surgir,
ao lado da grande
imprensa, uma multipli
cidade de pequenos
jornais com fotos e
ilustrações satíricas.
Numa sociedade
convulsionada pela mo
dernidade e pela urbani
zação. de valores cambi-
antes, uma combinação
de talento artístico, ironia
e irreverência fez explodir
um novo olhar sobre o
mundo, produzindo uma
arte que mede sua força
pelos seus efeitos mobilí-
zadores e não pela sua
veracidade: a caricatura.
o cômico com
porta uma teia de
relações que, por
cáustica ou grotes
ca, proporciona a
teatralização de
uma identidade
que se denuncia.
Através do humor
e produzindo o rir,
as caricaturas
proporcionam, co
mo disse Baude-
laire, o poder do
ser humano de ser
às vezes si próprio
e um outro.

Você também pode gostar