Amor Conjugal

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A RELEVANCIA JURIDICA
DO AMOR CONJUGAL

MONS. RAFAEL LLANO e/FUENTES

SUMÁRIO. 1. O. «CONSORTIUM TOTIUS VITAE». 11. A RELEVANCIA WRÍDICA DO


AMOR CONJUGAL. III. o CONCEITO DO AMOR CONWGAL. A. o que nao é amor
conjuga!. B. O que é o amor conjuga!. C. Os diferentes estágios do amor. 1. Em rela-
ello ao bem deleitável. 2. Em relaeao ao bem útil. 3. Em relaeao ao bem em si. D. A
identidade miníma do amor conjugal. IV. A POSI<;ÁO DA DOUTRINA E DA
WRISPRUD~NCIA. V. A DELIMITA<;ÁO DO PROBLEMA EM REFER~NCIA AO MA-
TRIMONIO «IN FIERI» E «IN FACTO ESSE». A. Em referencia ao matrimonio «in facto
esse». B. Em referencia ao matrimonio «in fieri». 1. A relevancia jurídica do amor na
prestaeao do consentimento. 2. A relevancia jurídica do amor e o «error pervicax». 3. A
relevancia jurídica do amor na simulaeao. VI. A RELEVANCIA DO AMOR NAS
CAUSAS DE NULIDADES DO MATRIMONIO. VII. SíNTEsE DE NOSSA POSI<;ÁO.

l. O «CONSORTIUM TOTIUS VITAE»

Dissemos em artigo anterior (vid. «Ius Canonicum», XXVII, n. 54,


1987, 557-590), que o «consortium totius vitae» constitui a essencia do
matrimonio. Detenhamo-nos nesta considera~ao.
As ComissOes do Código, antes de incluir a palavra «consortium»
como definitiva, empregaram os termos «coniunctio» e «communio»
-uniao e comunhao- porque em realidade estes tres termos estaD numa
mesma linha de significado: participa~ao íntima e integral de duas exis-
tencias humanas. A expressao «consortium», na sua raíz etimológica
genuína, significa a participa~ao numa mesma sorte, num mesmo

rus CANONICUM, xxx, n. 59, 1990,243-286


244 MONS. RAFAEL LLANO CIFUENfES

destino 1• Isto de per si já indica que os contraentes nao possuem apenas o


direito sobre o corpo em rela~ao aos atos conjugais -tal como aparece no
c. 1081 do CIC de 1917 -mas algo muito mais completo: outorga o
direito a compartilhar a mesma existencia. Se acrescentarmos ainda a
expressao «totius vitae», o quadro fica completo: significa o engajamento
de dois destinos em toda a sua extensao e profundidade.
Esta uniao total e pessoal é, como escreve José de Salazar, «o elemento
constitutivo essencial e imutável do matrimonio». E acrescenta: «a entrega
pessoal em todos os seus aspectos e realidades é también o que especifica, o
que distingue o matrimonio de qualquer outra uniáo ou entrega. Podem unir-
se um homem e urna mulher por muitas e diversas razoes, por exemplo,
economicas etc.; mas nunca existirá a entrega da pessoa mesma e, ao mesmo
tempo, em todas as suasfacetas inclusive a sexual.
O matrimonio significa que cada urna das pessoas dá e recebe nao somente
um valor particular, algo da outra, mas a sua pessoa inteira. Esta reciprocidade
e comunidade de posse e perten9a, este dom total dado a este dom total
recebido entre dois seres humanos é o matrimonio»2.

Como muito bem assinalou Fumagalli, a alian~a que compromete os


nubentes numa comunhao total e mútua, numa intercomunica~ao integral,
deve ter a sua correspondente relevancia jurídica. Assim como no código
anterior se falava do «ius in corpus», hoje é absolutamente válido falar do
«ius ad totius vitae consortium»3.
Um direito a compartilhar a vida toda do outro conjuge que se
desmembra em diferentes direitos específicos:
1º) O «totius vitae» -no sentido mais real de posse total e exclusiva-
implica o direito a· unicidade ou exclusividade do matrimonio que
concorda como urna das suas propriedades essenciais.
2º) O «totius vitae» entende-se também no seu sentido de extensao
temporal: compreende e engloba a vida toda seja qual for a sua dura~ao, o
que implica igualmente no direito a indissolubilidade do vínculo ou do

1. Vid. HERVADA, J., ¿Qué es el matrimonio?, em «Ius Canonicum» XVII, n. 33


(1977) p. 26; DE SALAZAR, J., Derecho matrimonial, em «Nuevo Derecho canónico».
Varios Autores. BAC, n. 445, Madrid 1958, p. 117
2. DE SALAZAR, J. o.c., p. 119.
3. FUMAGALLI CARULLI, O. em seu trabalho canonístico, elaborado a partir do
Concílio Vaticano TI e em face do novo Código, pOs claramente em relevo o contraste
entre a «comunitas vitae et amoris» da «Gaudium et Spes» (n. 48) e aquele restrito «Ius
in corpus» do c. 1081 do CIC de 1917 (Vid. FumagaBi CaruBi, O. «Intelletto e volontá
nel consenso matrimoniale en Diritto canonico», Milano 1974, p. 171 s.
A RELEvÁNCIA JURIDtCA DO AMOR CONJUGAL +45
consórcio, que representa a segunda propriedade essencial do matri~
monio.
É por isto que na defini9ao de matrimonio que dávamos no artigo
anterior colocávamos, depois do consórcio da vida toda, entre paren teses ,
exclusivo e indissolúvel, porque na própria expressao «totius vitae» está
incluída essa dupla adjetiva9ao.
3º) A intercomunicat;áo pessoal e total, que se poderia desdobrar
numa série de aspectos impossíveis de determinar exaustivamente, por-
que abrangem toda a realidade existencial. Enumeremos apenas os mais
importantes: a) a comunidade do lar; b) a ajuda mútua; c) a tarefa solidária
nos encargos familiares e na educa9ao dos filhos; d) o amor conjugal e
dentro dele o «remedium concupiscentiae» (c. 1013 § 1 CIC 1917),
sedativo do impulso sexual, e o «ius in corpus». Este aparecia incluído
no c. 1081 § 2 CIC 1917 da seguinte maneira: «o consentimento
matrimonial é o ato de vontade pelo qual ambas as partes dao e aceitam o
direito perpétuo e exclusivo sobre o corpo, em ordem aos atos de per si
aptos para gerar a prole».
É necessário ressaltar que o Canon correspondente e paralelo do ac-
tual Código -c. 1057 § 2- nao faz men9ao do «ius in corpus» e o substitui
por esta expressao: «o consentimento matrimonial é o ato de vontade pelo
qual o homem e a mulher se entregam e aceitam mutuamente em aliant;a
irrevogável para constituir o matrimónio».
Isto quer dizer que o consentimento se destina a algo bem mais amplo
e superior do que o «ius in corpus» porque visa urna entrega mutua
selada por urna alian9a irrevogável para constituir o matrimonio, ou seja
«o consortium totius vitae». Esta mudan9a, além de representar a supe-
ra9ao de uma perspectiva ao nosso modo de ver demasiado estreita no seu
tecnicismo jurídico, permite inserir o «ius in corpus» dentro do « con-
sortium totius vitae».
Neste sentido podemos dizer também que o «ius in corpus» ficou
incorporado e fundido dentro do «ius ad totius vitae consortium», «via
amoris», pela trilha do am()r.

É necessário que sublinhemos que a ~nfase dada a fórmula «ius in corpus» é


relativamente recente. Entrou no funbito canonístico principalmente através de
Gasparri. Nno tem fortes raízes na tradif!ri\o canónica.
Esta sempre considerou o amor conjugal como parte integrante do «debitum ·
conjugale» ou do «ius in corpus» e procurou ressaltar a relevancia que tinha a
246 MONS. RAFAEL LLANO CIFUENTES

«unitas cordium» sobre a simples «commixtio sexuum». Como nao recordar


-pergunta Fumagalli- as expressOes de Ivo de Chartres (t 1116) ou de Rugo de
S. Vitor (t 1141) sobre o amor conjugal -a «charitas conjugalis»- colocada ao
lado da essencia do matrimonio?.. SÓ urna gravíssima cegueira histórica
poderá induzir a identificar o conceito de «una caro», sobre o que está inclusive
biblicamente fundado o matrimono cristao, com a mera materialidade da
«copula camalis»4. Como poderíamos esquecer -acrescentaríamos nós- as
profundas coloca~Oes em torno da uniao conjugal e da comunidade de vida e
amor feitas por Pedro Lombardo (t 1160), Graciano (séc. XII), e S. Raimundo
de Peñafort (t 1275)?
Nestes dois últimos autores, aliás, há urna clara conota~ao do conceito de
«affectus maritalis» -tomado do Direito romano- dentro do próprio conteúdo do
consentimento matrimonial 5•
A tendencia personalizante que é tao notória na doutrina contemporanea nao
é, pois, urna inova~ao introduzida pelo Concílio Vaticano 11 e pelos seus
desdobramentos posteriores; é melhor urna retomada de consciencia de valores
anteriores ao próprio Concílio de Trento, que sofre em um período histórico
um hiato de descontinuidade vinculado la fixa~ao de conceitos excessivamente
legalistas. Inclusive Goti Ordeñana chega a afirmar que «na doutrina jurídica se
estruturou, durante longos séculos de história, o elemento radical do matri-
m6nio que é o direito fundamental do homem a dar com toda a liberdade o seu
consentimento e sem que possa ser substituído por ninguém. Ora, através de
toda a história, há um conflito de for~as para determinar o conteúdo desse
consentimento e apesar de que juridicamente se inclinou a dizer que é o ato de
vontade, constantemente novos fatores existenciais voltam a apresentar o tema
para que em tal conteúdo se inclua a rela~ao intersubjetiva e se considere o
amor conjugal»6.

4. Cfr. FUMAGALLI CARULLI, O, lnTWvazioni conciliari e matrimonio canonico, em


«Il Diritto Ecclesiastico» n. 1-2 janeiro-junho (1978), p. 382. Vid. S. Ivo DE CHARTRES
PL, 162; VIRILLAS, L'esprit d'Yves de Chartres dans la conduite de sa diocese et dans les
cours de France et de Rome, Paris 1701; FORNIER, P., lves de Chartres, et le Droit
Canonique, «Revue des questions historiques» LXID (1898), pp. 51-98 e 384-405.
5. Vid. nota 8; NOONAN, J., Marital affection in the caTWnista, em «Studia
Gratiana» (1967), p. 606 e s., cit. por GOTI ORDE¡i¡'ANA, J., Amor y matrimonio en las
causas de nulidad por medo en la jurisprudencia de la Sagrada Rota Romana. Oviedo
1978, p. 39; Vid. VERNET, T. HUGUES DE SAINT VICTOR em DTC (Dictionnaire de
Théologie Catholique, Paris 1903-50), VII pp. 240-308; HAUREAU, G., Les ouvres de
Rugues de Saint-Victor. Éssai critique, reed. Francfort 1963; GHELLlCNK, J., Pierre
Lombard, em DTC cit. XII, pp. 1941-2019; idem «Le mouvement théologique au XII sie-
ele, 2& ed. Brujas 1948, reed. Bruselas 1969 p.a 13-249; 250-277 e 285 -288;
TORQUEBIAU, F. DDC (Dictionnaire de Orqitcanonique) N pp. 611-627; KUTTNER, S., De
Gratiani opere TWviter edendo, em «Apollinaris» 21 (1948), pp. 118-128; GARCIA y
GARCIA, A., Valor y proyecci6n hist6rica de la obra jurídica de S. Raimundo de Peñafort,
em «Revist¡"española de Derecho Can6nico».,1<t8 (1963), pp. 233-251.
6. GOTI ORDRÑANA, J., O.c., p. 43.
A RELEVANCIA JURIDfCA DO AMOR CONJUGAL 247

Vemos assim como o terna do amor conjugal entra com plena for~a na
corrente conciliar -que presidiu toda a revisao do código -tendente a
tutelar todos os aspectos da personalidade humana. Há urna preocupa~ao
mareante em salvaguardar ao máximo a dignidade do relacionamento
conjugal valorizando em profundidade o amor conjugal. A legisla~ao e a
jurisprudencia canónica, cada vez mais, buscam religar a mais c1ássica
doutrina canonista -eminentemente personalizante- com a mesma dimen-
sao humanista e espiritualista as sumida pelo Concílio, encerrado dentro
de um parentese histórico atendencia marcadamente legalista que presidiu
alguns tra~os do código de 1917. De urna forma frisante quer-se assinalar
a importancia que tem a «una caro» (dois numa só carne)7 nao apenas
num nível de relacionamento f(sico destinado a satisfa~ao sexual e a
procria9áo, más também, num ni vel de relacionamento espiritual e de
integra9ao recfproca. Nao menoS indispensável de que o «remédio da
concupiscencia» (c. 1013 § 1 CIC 1917) apresenta-se neste mundo
despersonalizado -escreve Furnagalli- o «remédio da solidaO»8.
E daí brota com pleno direito o tema da relevancia jurídica do amor
conjugal.

11. A RELEVANCIA JURÍDICA DO AMOR CONWGAL

Em nenhum manual ou tratado de Direito matrimonial poderia


encontrar-se -no contexto do código anterior- um capítulo com este título.
É um tema novo, aberto pela profunda aten~ao prestada ao amor pelo

7. «Et erunJ in una caro» (Gen. 2, 24) SANTO TOMAS sustenta que a una caro consti-
tui a essencia do matrimonio. EDUARDO MOLANO, escreve nessa linha que «o matrimonio
é em essencia una caro, como expressao certa da única e indissolúvel unidade de ambos
conjuges. La Naturaleza del matrimonio en la doctrina de Santo Tomás, em «Persona y
Derecho». 1 (1974), p. 69.
8. FUMAGALU CARULLI, O., lnnovazioni Conciliari e Matrimonio Canonico, em «11
Diritto Ecclesiastico» n. 1-2 janeiro-junho (1978), p. 382; GARCIA BARBERENA, T., Sobre
el matrimonio «in fleri» . «Salmanticensis» 1 (1954), p. 439 e HERVADA, J., La simula-
ción total, en «Ius Canonicum», vol. 11, 2 (1962), p. 738, pensam que nao está de
acordo com a realidade psicológica dos contraentes julgar que eles desejam o «ius in cor-
pus» em si mesmo considerado. Aliás -como aponta Hervada- o Decreto de Graciano, as
Decretais e demais fontes antigas se referem sempre ao «animus maritalis» (que implica,
além da unilio camal, o desejo de coabitar, etc.), enfim a vontade de estabelecer urna co-
munidade de amor marital e nunca ao 8nimo de dar e receber apenas o «ius in corpus»,
fórmula técnica que só aparece em épocas tardias.
248 MONS. RAFAEL LLANo ClFuENI'ES

Concílio Vaticano n. Desde que a sua Constitui9ao Pastoral Gaudium et


Spes se referiu ao matrimonio como urna «íntima communio vitae et
amoris conjugalis»9, o amor, como elemento inspirador de toda a comu-
nidade matrimonial, tem cobrado um notável relevo tanto na doutrina
canonística quanto nos últimos documentos do Magistério.
Vejamos apenas dois exemplos: «A farmlia constitui mais do que urna
unidade jurídica, social e economica, uma comunidade de amor», diz o
Preambulo da «Carta dos Direitos da Família». E Joao Paulo 11, na
Familiaris consortio, reafIrma: «O amor é ... a fundamental e nativa vo-
ca9ao de todo ser humano»10. «Este amor constituí o princípio e a for9a
vívificante da família. Sem amor a família nao pode viver, crescer e
aperfei90ar-se como comunidade de pessoas»l1.
O amor conjugal forma, assim, parte integrante e fundamental do
«Consortium totius vitae». Porque se a comunhao de vida é total, o amor
é o elemento psicológico que a toma entranhável e íntima. Se é verdade
que «quando o amor nos invade -na expressao de Goethe- tudo parece
novo, os deveres mais sagrados, as afei90es mais vivas, os conheci-
mentos mais claros, os talentos mais patentes e os propósitos mais deci-
didos»12, também deverá ser verdade que o amor tome mais forte e
profunda a vivencia desse destino comum, que representa o «consortium
totius vitae».
Nao vale a pena insistir neste ponto porque a alta significa9ao do
amor no relacionamento conjugal é algo indiscutfvel depois da valoriza9ao
conciliar dos elementos personalísticos do matrimonio. Devemos acres-
centar, entretanto, em contraposi9aao, que nao há na atual jurisprudencia
e doutrina canonística nada mais discutido do que a relevancia jurídica do
amor13 •
Poderíamos neste sentido perguntar: é admissível falar em verdade de
um direito ao amor ou de um direito a ser amado?; poderia o direito
regulamentar algo tao íntimo como esse sentimento?; o desaparecimento
do amor comprometeria a existencia do vínculo matrimonial?; a falta de

9. Constitui~ilo Pastoral Gaudium el Spes. Concílio Vaticano n. n. 48.


10. JOAO PAULO n. Familiaris c07lSor.tio. n. 11.2.
11. /dem. n. 18. 2.
12. GOETHE. Sobre el amor incipiente de Wilhem Meister. hacia Mariane. Madrid
1953. p. 72.
13. Cfr. FuMAGALLI CARULLI. O .• /nnovazioni Conciliari .... o.c .• p. 374.
A RELEVANCIA JURIDtCA DO AMOR CONruGAL 249

amor ou a sua exclusao voluntária seria capaz de provocar a nulidade do


consentimento matrimonial?
Questoes todas elas altamente complexas que tem levantado a sua
volta, no mundo do canonístico pós-conciliar, as mais diversas opiniOes
doutrinais, nas quais nem sempre dominou a clareza de conceitos. Por-
que, ao lado dessas questoes, poderíamos também acrescentar outras
paralelas ainda mais complexas: qual é o conceito desse amor ao qual se
pretende outorgar relevancia jurídica?; esta teria significa~ao apenas no
ato constitutivo ou também no estado matrimonial?; ou, por outras
palavras, o desaparecimento do amor seria causa de dissolu~ao do
matrimonio já constituído (<<in facto esse»), ou a sua inexistencia ou
exclusao causaria a nulidade do consentimento matrimonial (»infieri»)?
Precisamos, pois, delimitar os conceitos seguindo um esquema claro
e simples.

III. O CONCEITO 00 AMOR CONmGAL

Nao é fácil marcar nitidamente os contornos conceituais do amor


conjugal. Tal vez nao exista urna matéria em que a terminologia seja mais
equívoca: a palavra amor reveste a mais variada gama de significados. «O
amor -escreve Marañon- é urna coisa muito complexa e de variado e
equívoco conteúdo; chama-se amor a muitas coisas que sao muito dife-
rentes, ainda que a raiz última seja a mesma»14. Tentaremos no entanto
delimitar o conceito em dois sentidos: indicando o que náo é o amor
conjugal e mostrando o que ele é nos seus diferentes níveis.

A. O que náo é amor conjugal

O amor conjugal diferencia-se de outras figuras que ficam para além


das suas fronteiras como mostraremos a seguir, utilizando a terminologia
canonística mais comum:

14. MARAiIl'ON, O., Ensayo sobre la vida sexual, Madrid 1969, p. 186, cit. por
OUITARTE IZQUIERDO, V., Amor y matrimonio en la Exhortación «Familiaris consortio»,
em «Revista Española de Derecho Canónico», n. 109 (1982), p. 112.
250 MONS. RAFAEL LLANO CIFUENI'ES

12) Amor fornicário: é o mantido -através de um relacionamento


sexual completo- entre um homem e urna mulher solteiros.
22) Amor adulterino é o sustentado por urna pessoa casada, com outra
diferente do próprio conjuge, através de urna rela~ao sexual completa.
32) Amor concubinárioé a rela~ao sexual completa habitual, com um
certo propósito de continuidade, entre duas pessoas de sexo diferente.
42 ) Amor onan(stico é a rela~ao sexual completa realizada de tal modo
que nao seja possível a gera~ao.
52) Amor homossexual é a rela~ao sexual entre pessoas do mesmo
sexo lS •

B. O que é amor conjugal


Bem diferente é o amor conjugal, caracterizado por Paulo VI na
«Humanae vitae» com estas notas fundamentais:
12) Amor plenamente humano.
22) Ato de vontade livre: nao um simples ímpeto do instinto ou do
sentimento.
32 ) Total, quer dizer, urna forma muito especial de amizade pessoal:
compartilha generosamente tudo, sem reservas nem egoísmos.
42 ) É, portanto, o dom de si próprio.
52) Éfiel e exclusivo até a morte.
62 ) É fecundo, pois nao se esgota na comunhao mútua mas está des-
tinado a continuar suscitando novas vidas l6•
. Este é o conceito ideal de amor conjugal, mas nao o seu conceito
jur(dico. Queremos dizer com isto que, se pretendemos dutorgar rele-
vancia jurídica ao amor conjugal, teremos de saber antes qual é o con-

15. Cfr. DEL AMO, L., El amor conjuga/, y la nulidad del matrimonio en la jurispru-
dencia, en «Ius Canonicum» XVII, n. 34 (1977), p. 90.
16. PAULO VI, Encíclica Humanae Vitae, n. 9.
A RELEVANCIA JURIDfCA DO AMOR CONruGAL 251

ceito a ser as sumido por um ordenamento jurídico ou por urna jurispru-


dencia e nao nos contentarmos com o conceito oferecido por urna Encí-
clica como a «Humanae vitae».
Nesse sentido, de Jorio disse significativamente ao referir-se ao Vaticano 11,
que o «Concilio pOe o amor como fundamento do matrimonio, mas um fun-
damento psicológico e n~o jurídico» 17 •

Observamos, por exemplo, que o conceito de amor que delimita a


«Humanae vitae» nao seria possível aplicar aQ tema da simula~ao do
consentimento, porque -como depois veremos- nunca se poderiaalegar
que um matrimonio é nulo porque se exclui voluntariamente esse tipo de
amor ideal. Se fosse assim, urna imensa percentagem de matrimonios
seriam nulos pela simples razao que poucos, em realidade, ao casar tem a
respeito do amor um conceito tao elevado.
Entao qual seria o nível mínimo que, ao ser excluído, invalidaria o
consentimento? Isto é muito difícil de determinar. Sabemos muito bem
que o amor conjugal comporta muitos estratos: o sexual e o erótico; o afe-
tivo e o sentimental: o intelectivo-volitivo, o estimativo, o espiritual e o
sobrenatural. Será pois necessário deter-mo-nos e analisar os diferentes
estágios para determinar mais tarde um conceito jurídico rigoroso apli-
cável ao direito matrimonial canonico.

C. Os diferentes estágios do amor


De acordo com a filosofia escolástica, o amor se enquadra numa
hierarquia escalonada segundo o bem que procural8 •

1. Em re/a~áo ao bem deleitável

a) O amor de apetencia: atra~ao física e sexual.


b) O amor de complacencia: atra~ao pelas qualidades de caráter.
Coincide -incluindo o anterior- com o conceito jurídico romano do «affec-
tus maritalis» que nao tem característica de permanencia.

17. S.R.R. 6.2.1974 «coram» DE JORIO.


18. Acompanhamos nesta parte o trabalho Los diversos planos de la relación fami-
liar, LLANO CIFUENTES. C. IPADE. México 1982.
252 MONS. RAFAEL LLANo CIFUENfES

2. Em relar;áo ao bem útil

a) O amor de conveniencia: procura-se a ajuda e a utilidade reCÍ-


proca.
b) O amor de convivencia: representa o acompanhamento mútuo, a
vida em comum e a vivencia familiar.
c) O amor de beneficencia (<<benefacere»: fazer o bem): busca-se nele
remediar a carencia do ser amado.
d) O amor de concorrencia: entrela~a dois seres na medida em que
ambos concorrem numa finalidade comum; significa querer com o outro
conjuge as mesmas coisas.

3. Em reLar;áo ao bem em si

a) O amor de benevolencia (<<bene volere»): deseja querer o bem do


outro esqueddo do próprio bem.
b) O amor de transcendencia: tributa-se ao outro esse amor, nao só
por ele mas por Deus.
Desenvolvemos a seguir, mais amplamente, este esquema.

1. Em rela,áo ao bem deidtáve/


a) O amor de apetencia. Constitui o nível mais baixo do amor. A beleza
física, o atrativo corporal suscita a apetencia do amor puramente sexual que,
de acordo com a mitologia grega, está posto sob o amparo de Afrodite. Mas
por 'ser o homem urna unidade psicossomática este amor puramente sexual
nao se dá normalmente de urna forma exclusiva porque seria chegar ao limite
dos animais: está habitualmente presente, ao menos, um tra~o de afetividade
espiritual, ou seja, algo que pertence mais ao amor de complacencia.
b) O amor de complacencia. Neste segundo nível entra um componente
superior; o atrativo pelas qualidades do caráter e do temperamento. A cultura
grega via em Eros a deidade protetora do amor de complacencia. Nele costuma
apresentar-se um fenómeno inverso ao que acontece no amor de apetencia:
enquanto a beleza corporal vai gradualmente declinando com o tempo, a beleza
psíquica tende a aumentar mediante um esfor~o consciente, como bem soube '
mostrar Aristóteles na sua Ética a Nicómaco: «quando a flor da idade murcha,
acontece que também se desvanece o amor, a vista do amado nao deleita já ao
amante, já nao se dirigem solicitudes e cuidados ao ser amado. Pelo contrário,
A RELEVÁNCIA JURIDfCA DO AMOR CONJUGAL 253

a unido persiste quando urna longa rela~áo faz com que o caráter do outro se
torne algo querido» 19.
Estas duas espécies integram o conceito do chamado amor de conscu-
pisciencia (que nao significa aqui amor pecaminoso mas, na expressao de
Santo Tomás, querer ao amado como bem para si pr6prio). Este amor, ao
nosso modo de ver, coincide, por sua vez, com o chamado em Direito romano
«affectus maritalis». Para os romanos, o matrimónio durava o que durava o
«affectus maritalis»; faltava, pois, o compromisso de permanencia, elemento
essencial exigido pela conce~ao crista do matrimónio natural2o.
Pensarnos também que dentro desse amor de concupiscencia (apetencia mais
complacencia) está incluído implicitamente o desejo de procria~ao porque,
como dizem Hervada e Lombardia, «amar urna mulher como esposa é amá-la
em toda a sua dimensao de mulher ... e portanto na sua potencia generativa.
Amar urna mulher e nao amar ao mesmo tempo sua potencial matemidade nao
é um amor conjugal. Ou é urna simples amizade, ou um amor platónico, ou
um amor fomicário»21.

2. Em rela~áo ao bem útil


a) O amor de conveniencia. Homem e mulher -ao lado da atra~ao mútua
pelos seus atributos físicos e psíquicos- proporcionam-se urna utilidade recí-
proca Normalmente pelas suas características pr6prias a mulher tenderá ao
cuidado do lar e dos filhos -«mater munium» (matrimónio)- e o homem se
inclinará para os encargos económicos -«pater munium» (património)- e a
seguran~a física e social da familia. Sem querer isto dizer, evidentemente, que
o «munus» ou encargo peculiar do homem ou da mulher sejam exclusivos e
excludentes. Serao, isso sim, geralmente prevalentes, sem que isto signifique
que o marido nao deva dedicar-se ao lar e a educa~ao dos filhos -é esta urna
responsabilidade solidária de ambos os cónjuges- e a mulher nao deva cola-
borar na estrut~ao patrimonial e social da familia. A consciencia helenística
confiava a Hermes -o deus do comércio- este nível do amor conjugal.
b) O amor de convivencia. O acompanhamento mútuo, a vida em comum,
representa o eixo desta nova dimensao do amor conjugal, em que se procura
nao somente a pura utilidade, como acontecia no amor de convivencia, mas a
pessoa como tal na sua individualidade peculiar: deseja-se conviver nao apenas
com qualquer homem ou com qualquer mulher -com atrativos físicos, beleza
de caráter, útil e servi~al- mas com este homem ou esta mulher. Nao se
ultrapassou ainda o nível do bem útil mas este se apresenta mais persona-

19. ARISToTELES, Ética a Nicomaco 1157.


20. MANENTI, e., mostrou que o matrimonio romano era urna situ~ao de fato (a
uniao enquanto permanecesse o «affectus maritalis») com relevancia jurídica; quando a si-
tuayao de fato acabar, acabará a relayao jurídica matrimonial «<Delia inapponabilidade
delle condizioni apposte al matrimonio,). Siena 1889, cit. por GONZALEZ DEL VALLE,
J.M., Derecho can6nico matrimonial, Pamplona 1983, p. 14).
21. HERVADA, J.-LOMBARDIA, P., El derecho del Pueblo de Dios, ID Derecho
Matrimonial, Pamplona 1973, p. 95.
254 MONS. RAFAELLLANOCIFuENTES

/izado. Na antiguidade clássica reconhecia-se a um conjunto de diminutas


deidades, que viviam em torno da lareira, a tarefa de reunir os membros da
família: chamaram-nos de deuses Lares. Significativa denomina~no que
representava essa unmo, entretecida com os minúsculos detalhes quotidianos,
em torno do calor aconchegante de um amor humano.
c) O amor de beneficencia. A beneficencia na sua raiz etimol6gica -bene
facere- significa fazer o bem. O amor de beneficencia consistirá, pois, em
procurar solucionar a carencia do ser amado. Cada cónjuge singular tem a sua
carencia específica: carencia fisica -dor, indigencia-; carencia moral -senti-
mento de incapacidade ou de inferioridade-; carencia de compreensao e calor
humano -solirlno, frieza-; carencia de seguran~ -medo, inibi~ao, ansiedade-;
carencia de motiva~ao -monotonia, desestímulo-; carencia de esperan~a
-desanimo, pessimismo-; carencia de alegria -nostalgia, tristeza-; carencia de
sentido para viver -depressllo, angústia existencial-; carencia de Deus, de ple-
nitude, de eternidade, que é a suprema carencia e que envolve, em certo
sentido, as restantes ... Pois bem, o amor de beneficencia sai ao encontro de
todas estas necessidades como remédio específico, abrindo campo a urna va-
riada gama de possibilidades. Talvez, por exemplo, o amor possa falhar no nÍ-
vel afetivo ou sexual porque este exige urna determinada disposi~o sensitiva e
sentimental, unida a estados de animo eminentemente subjetivos e íntimos de
difícil gesta~no. No entanto o amor, bloqueado nessas vias, pode encontrar o
seu canal condutor através do bene-facere, do querer fazer ao outro cónjuge,
num nível operacional mais objetivo, substituindo o sentir do «affectus mari-
talis» pelo fazer prático de urna a~no concreta e eficaz. Porque toda ~oo exter-
na, pelo que realiza e pelo esfor~o que representa, tem um valor em si mesma
independente do sentimento subjacente ou do estado de animo. Pode-se de-
monstrar um amor pela via da a~ao quando noo é possível manifestá-Io pela
via da afei~no. Refor~am-se assim eventualmente os liames debilitados do
amor de apetencia com os la~os mais fortes e eficientes do amor de benefi-
cencia.
Para os gregos era tao importante esta faceta do amor que escolheram como
padroeiro para protege-la a Zeus, que q-a a divindade mais poderosa na qual os
mortais e os outros deuses deveriam procurar remédio para a sua indigencia.
d) O amor de concO"encia. Este amor entrela~ dois seres na medida em que
ambos concorrem numa finalidade comum. Nao é o mesmo querer a alguém
do que querer com alguém as mesmas coisas. Homem e mulher conseguem
urna íntima coesno, em grande parte, na medida em que concorrem nos
mesmos fins, especialmente nos filhos que geralmente contribuem de modo
fundamental a solidez do amor conjugal. «É pr6prio dos que se amam
-comenta Arist6teles- querer e decidir as mesmas coisas ... Por isso os filhos
constituem um la~o para ambos e, em conseqüencia, as unioes estéreis se
desfazem mais rapidarnente ... porque todo bem comum mantém a conc6rdia
dos paÍS»22. É por isso que quando se secam as fontes da vida, geralmente se
estagnam tambén as nascentes do amor: é difícil garantir a permanencia de urn

22. ARISTOTELES, O.C., 1167 b e 1167 a-b.


A RELEVÁNCIA JURIDfCA DO AMOR CONRJGAL 255

amor voluntariamente estéril. Com cazao dizia Saint-Exupéry que amar n~o
consiste tanto em olbar um para o outro quanto em olbar os dois juntos para a
mesma dir~ao E -perguntamos- que dir~~o pode existir mais naturalmente
unitiva do que os filhos, fruto comum da relalr~o conjugal? Na mitologia
grega o amor de concorrencia era encomendado aos cuidados de Apolo que com
a sua lira conseguia desfazer as desavenlras quotidianas unindo a familia toda a
noite num canto comum.
As quatro espécies, assinaladas dentro do capítulo do bem útil, induem o
que juridicamente se denomina «vida em comum», «coabitalr~» e «ajuda
mútua».

3. Em relafán ao bem em si
a) O amor de benevolencia. No seu sentido etimológico -bene volere- a
benevoléncia significa querer bem a alguém. Assim como fazer o bem se
dirige a assisrencia de urna necessidade, o querer o bem supera a inten~o de
remediar simplesmente urna carencia para irromper em cheio ná :nterioridade
pessoal do outro ser. No pensamento grego este amor era custodiado pela
deusa Filia. O nome preciso de filia deriva da conce~ao clássica que
considerava o amor da mae para com os seus filhos o paradigma da entrega
absoluta, que consiste em querer apenas o bem do outro: representa o esque-
cimento de si próprio, o sacrifício em benefício de outrem. Aqui chegamos a
fronteira limite do amor humano na conce~~o grega. A distancia entre
Afrodite e Filia é imensa. Coube aos gregos o mérito de distinguir com
precis~ os perfis de cada patamar. Mas o quadro estava incompleto. Era ne-
cessária a chegada do Cristianismo para romper os moldes clássicos do amor
humano e entrar no ambito transcendente do amor divino.
b) O amor de transcendencia. O amor de transcendéncia tributa-se ao outro
n~ s6 por ele, mas por Deus. Aqui n~o encontramos deidades pag~ prote-
toras. Aqui encontramos a Cristo: é a Caritas crista. Ela faz possível que o
amor persista apesar das limitalr1ks e dos defeitos; ela supera os aspectos par-
ciais do amor humano que se prendem ao físico, ao estético, ao psicológico e
ao utilitário; ela ultrapassa inclusive o tralr0 mais elevado do amor puramente
humano: querer bem ao outro por ele mesmo no seu caráter pessoal, único e
intransferível. A Caritas alcanlra o homem, ~o somente enquanto pessoa no
sentido mais nobre da palavra, mas enquanto filho de Deus, característica
fundamental do cristao. A característica mais radical deste amor de transcen-
déncia é a de amar aos inimigos23 • I •

b
Nao se pense que cada um destes planos dispensa inferior ou anula
o anterior. Nao os dispensa nem os anula, mas pelo c~ntrário os assume
e incorpora. As rela~Oes conjugais entrela~am-se de utA modo semelhante
ao que fazem os fios que constituem una corda. Todos contribuem para a

23. Mt. 5, 43 -48.


256 MONS. RAFAEL LLANO CIFUENrnS

sua for~a e coesao. O amor de transcendéncia sup6e e ainda reclama que a


apeténcia, a complacéncia, a conveniéncia, a beneficéncia ou a benevo-
léncia ocupem o lugar que em justi~a devem ocupar. Cada nível com-
preende, supera e toma mais pleno o anterior: todos eles, portanto,
abrangem o amor sexual, porque, caso contrário, nao formariam parte do
amor conjugal; mas nele nao se detém; vao se incorporando e elevando, a
modo de piramide, até o seu cume que é o amor de transcendéncia. Se
algum deles se fecha em si mesmo, fica estagnado e apodrece. N a
expressao de Santo Agostinho no amor nao se pode dizer basta: a medida
do amor é ndo ter medida. Se nao se lhe dá cada vez mais combustível o
fogo do amor se apaga: esta é a esséncia do seu dinamismo. A Caritas
crista, deste modo, outorga ao amor humano, inclusive nas suas mani-
festa~6es mais primitivas, a potencialidade capaz de superar as limita~6es
do humano para chegar a transcendéncia do divino.
Poderíamos neste sentido estabelecer como que duas leis: a lei da autode-
grada9áo do amor e a Iei da complementa9áo do amor.
A lei da autodegrada9áo do amor ou da auto-voracidade do amor nos ensina
que o amor ou se eleva ou se degrada, ou cresce ou se desvirtua, ou se enaltece
ou se autodevora. Assim, se fica estagnado no puro amor de apetencia -amor
afrodítico, sexual-, nao consegue manter nem sequer o mais ínfimo nível hu-
mano e se degrada até o plano do animalesco. Se o sexo nao tem um compo-
nente afetivo -subindo até a altura do amor de complacencia-, termina rebai-
xando-se até a esfera puramente biológica. E chega ainda mais baixo: até a
perversao, o vício, a paixao obsessiva e a anormalidade sádica, que nunca se
encontra no mundo animal. Se, por sua vez, o amor de complacencia nao se
eleva até o plano da benevolencia, nao chega a sustentar-se no escalao afetivo
e pouco a pouco vai resvalando para o declive do mero egoísmo sexual.
Enfim, quando o amor de benevolencia nao se abre, no matrimonio cristao,
para a ordem sobrenatural do amor de transcendencia, é muito difícil que man-
tenha o seu equilíbrio e a sua harmonia. A Caritas sobrenatural e a gra~a
sacramental específica representam urna imensa for~a que consegue superar os
percal~os matrimoniais, os defeitos, erros e pecados do outro conjuge que é
amado neste plano de transcendencia nao como simples ser humano, mas
como filho de Deus: se por Deus se amam até os inimigos, como nao se de-
verá amar -por muitas limita~Oes e mazelas que tiver- aquele filho de Deus
que, através do Sacramento do matrimonio, veio a compartilhar o mesmo des-
tino, a mesma sorte, para toda a vida nesse «consortium totius vitae» que sig-
nifica o matrimonio?
Nos diferentes desdobramentos desta lei compreenderemos o porque de tantos
naufrágios matrimoniais: ou a pirfunide chega ao seu cume de transcendencia
-ao amor sobrenatural, a santidade matrimonial- ou é muito fácil que toda ela
se desmorone até o nível da decadencia ...
A RELEVÁNCIA JURlDtCA DO AMOR CONJUGAL 257
A lei da complementa9áo do amor nos diz que, quando falha um detenninado
aspecto do amor, outro deve vir em sua ajuda para refor~á-Io. Se, como já dis-
semos em outro momento, em detenninadas circunstancias físicas ou psico-
lógicas, algum dos cónjuges é incapaz de satisfazer ao outro cónjuge num
nível sexual ou afetivo -amor de apetencia ou complacencia-, deve compensar
essa deficiencia com elementos tomados do amor de conveniencia -aprimo-
rando a ajuda mútua-; ou do amor de beneficencia -solucionandQ de urna ma-
neira objetiva e eficaz as carencias do consorte-; ou daquele de convivencia
-procurando tomar amável a vida de família, agradável e acolhedor o lar e as
atividades comuns-; ou empenhando-se a fundo no amor de concorrencia: pro-
curando compreender os ideais e preferencias do ontro cónjuge e envidando es-
for~os na educa~o solidária dos fllhos. Quando a convivencia se torna difícil,
no nível de comunidade familiar, será necessário estreitar os vínculos mais ín-
timos e individuais da ternura e do afeto marital. Enfim, em todas as circuns-
tancias -mas especialmente nos momentos difíceis e críticos-, será necessário
esquecer-se de si próprio, sacrificando-se generosamente, enxertando-se no
amor de benevolencia, que estava sob o amparo de Filia -a deusa da abnega~ao
e do desprendimento-, para superar o egoísmo e os defeitos do outro cónjuge
como faz a m~e com o filho doente e problemático. E, em última análise,
cada um dos diferentes aspectos encontrará na Caritas Christi -amor de trans-
cendencia- o maior impulso e o supremo exemplo de un amor que n~o ama
apenas o que é bom mas que quer tornar bom aquilo que ama: oferecendo in-
clusive a vida por amor -como Cristo na cruz- em benefício dos inimigos que
lhe arrancam a própria vida. Se se chegasse a entender o matrimónio n~o
como urna auto-satisfa~~o ou auto-realiza~~o mas como urna entrega, quase
todos os problemas conjugais encontrariam a sua solu~~o.
Oeste modo entendemos a lei da complementa9áo do amor: quando algum
dos diferentes elementos que integram a vida matrimonial -como os diversos
fios que se entre~am numa corda- acaba por se debilitar, os outros elementos
hao de concorrer para reforear a consistencia desse vínculo conjugal que n~o
deve pennanecer apenas como urna mera indissolubilidade jurídica mas perdu-
rar -forte e dinfunico- numa renovada comunháo íntima de vida e amor, se-
gundo a feliz expressao do Vaticano n.

D. A identidade m(nima do amor conjugal

Nesta gama tao diversa, onde colocaríamos os limites do amor eonju-


gal?; ou melhor, quando o amor deixaria de ser amor eonjugal no sentido
jurídico influindo de alguma maneira, eom a sua ausencia, na contextura
jurídica do matrimonio?; em que patamar seria neeessário colocar o amor
eonjugal para que, por exemplo, a sua exclusao pudesse porventura afetar
-como mais tarde veremos- um «elemento esseneial do matrimonio» (c.
1101 § 2), prejudieando assim a validade do mesmo? Qual seria, enfim, a
258 MONS. RAFAEL LLANO CIFUENfES

identidade mínima do amor conjugal que pudesse servir de padrao para


detenninar positivamente a sua relevancia jurídica?
A resposta, como já dissemos, está eri~ada de dificultades24 ; pensa-
mos, porém, ser possível marcar os contornos aproximados dos seus
limites inferiores e superiores.
1. O umbral inferior (o que nao chega ao limite mínimo do amor
conjugal humano) estaria determinado por duas fronteiras:
a) O amor de pura amizade ou de puro namoro (em sentido estrito),
sem um compromisso de relacionamento sexual, nao pode ser considera-
do amor conjuga!. Poderá ser amor, mas nao amorconjugal: o compro-
misso de relacionamento sexual é indispensável25 •
Teoricamente também poderiam incluir-se aqui as modalidades do
amor de conveniencia, convivencia, beneficencia, concorrencia e benevo-
lencia, considerados isoladamente, sem nenhuma conota~ao do amor de
concupiscencia ou de abertura ao relacionamento sexual. Pense-se num
casamento em que, por exemplo, só se visa ao benefício economico, ou a
convivencia agradável num mesmo lar excluindo positivamente o rela-
cionamento sexual. Isto poderia considerar-se urna sociedade comercial
ou de beneficencia mas nao um matrimonio. Já dizíamos, porém, que
-dentro da piramide do amor conjugal -cada camada inclui a anterior e a

24. HERVA DA escreve que «o objeto específico do amor conjugal é a humanidade do


homem enquanto homem (virilidade) e a humanidade da mulher enquanto mulher
(feminilidade) para constituir una caro» (HERVADA, J., Matrimonio y Derecho Natural.
«Persona y Derecho» I (1974), p. 81). Mas, evidentemente, esta conceitua~ao se coloca
mais num plano de Filosofia do Direito do que num terreno de Direito positivo. Neste
sentido esta conceitua~ao, como outras situadas no mesmo plano, nao sao úteis para o
nosso intento.
25. É preciso, porém, esclarecer que, como diz PRUMER, «entre a B. Virgem Maria e
S. José houve um verdadeiro matrimonio ... como ensinam quase todos os antigos e mo-
dernos autores» (cfr. S. Theol. 3, q. 29, a.2) ... No Evangelho, com efeito, o anjo diz a
José: «nao temas receber Maria como tua esposa» (Matth. 1, 20). É de fé, porém, que
Maria foi Virgem antes e depois do parto» (PRUMER M., Manuale Theologiae moralis, t.
m, edito Herder Barcelona-Friburgo-Roma 1961, n. 631). Santo Tomás a respeito escreve
que «a bem-aventurada Virgem antes de casar com S. José foi divinamente certificada que
José se tinha proposto igualmente a permanecer virgen;,; e por isso Maria nao se expos a
nenhum perigo casando-se con ele» (IV Sent. d.30 q.2, a.1, q.1 2 , 2 ad secundum). Pode
existir, sem dúvida, um matrimonio verdadeiro ainda que antes se tenha prefixado a
promessa de nao consumá-Io de fato. O uso do matrimonio nao constitui, efetivamente, a
sua essencia; para que o matrimonio subsista validamente, basta queoutorgue a possibi-
lidade e o direito de usar do matrimonio, ainda que este direito, por qualquer razao, nao se
exer~a nunca (cfr. FANFANI, L., Teologia para seglares, v. 11, p. 321. Madrid 1958, p.
221).
A RELEvÁNCIA JURIDíCA DO AMOR CONJUGAL 259

inferior e, portanto, todas el as incorporam -por exigencia do amor


conjugal- a primeira da série, isto é, a abertura para o amor sexual.
b) O amor relacionado com o bem deleitável. Para nós é evidente que
a sua primeira espécie, o puro amor de apetencia -amor afrodítico- nao
chega ao limite do amor conjugal humano: identifica-se mais com o
encontro físico ou, em todo caso, com o amor fornicário. Mas também
julgamos que a sua segunda espécie -o amor de complacencia, o puro
amor erótico- nao atinge o nível suficiente para que surja o conceito de
amor conjugal humano. Se nao está possuido de um compromisso de
permanencia, identifica-se melhor com o amor concubinário, que está
revestido de urna certa continuidade mas nao de permanencia.
2. O umbral superior (o que ultrapassa o limite máximo do amor
conjugal), estaria determinado pelo amor de transcendencia. O conceito
humano de amor conjugal bao exige a presen~a de um elemento transcen-
dente ou sobrenatural: pode haver amor conjugal genuino no matrimonio
natural, que é, para os nao batizados, verdadeiro matrimonio. Por isso
nao se pode postular que para a consuma~ao autentica do matrimonnio
seja necessária, como sustentam algumas correntes de opiniao, urna con-
sumafiío existencial e nafé. A este ponto nos referiremos mais adiante.
O amor de Afrodite e Eros nao chega até a faixa do amor conjugal: a
Caritas a ultrapassa.
Entre esses dois umbrais teremos de procurar o conceito do amor
conjugal. Para chegar a tanto partiremos de urna prime ira evidencia: o
amor de apetencia e de complacencia unidos -amor sexual mais «affectus
maritalis», que leva incluído o desejo potencial de procria~ao ou pelo
menos a nao exclusao voluntária da prole-, é urna condi~ao indispensável
do amor conjugal. Condi~ao necessária, mas nao suficiente.
Quais seriam os elementos exigíveis para complementar essa insufi-
ciencia?
Estudemos a questao por partes.
Dentro também do bem útil, a respeito do amor de beneficiencia, de
convivencia e de concorrencia -que giram em torno da chamada coabi-
ta~ao ou vida em comum- pensamos que é indispensável o direito a um
mínimo de coabitar;iío, de vida em comum e ajuda mútua necessário para
conseguir o relacionamento sexual e o «affectus maritalis». De tal maneira
que, se por um ato positivo da vontade se excluís se o direito a esse míni-
mo necessário, o matrimonio seria nulo. Esta nossa conclusao é con se-
260 MONS. RAFAEL LLANo CIFUENfES

qüencia da concep~ao personalizante que sustentamos porque pergun-


tamos: como se poderia manter um relacionamento sexual humano, se
nao há um mínimo de coabita~ao? O ato mecanico, produto de impulsos
hormonais, mais se assemelha a rela~ao eventual própria da fornica~ao do
que a urna verdadeira rela~ao conjugal.
Precisamos fazer, a este respeito, um esclarecimento importante. Nao é la
mesma coisa a vida em comum e a coabita\(ao. Em determinadas situa\(Oes em
que nao há obriga\(ao atua[ de coabitar -como no matrimónio de consciencia ou
quando os dois cónjuges estao legalmente separados- permanece, porém, o di-
reito potencial para essa coabita\(ao. Pois bem, nós entendemos que o que
tomarla nulo o matrimónio seria a exclusao desse direito potencial a um mí-
nimo necessário de coabita\(ao.

Há também dois elementos ligados ao amor de benevolencia indis-


pensável ao conceito de amor conjugal. Estes elementos sao apermanen-
cia e a exclusividade. Permanencia e exclusividade que nao se conseguem
sem um certo espírito de renúncia ao próprio bem, para querer o bem do
outro, que é a característica principal do amor de benevolencia. Sem esta
permanencia e esta exclusividade o amor de apetencia, unido ao de com-
placencia, nao ultrapassa o limite do concubinato ou da rela~ao poliga-
mica.
Pensemos, porém, que para preencher a identidade m(nima do amor
conjugal é necessário apenas o espírito de doa~ao suficiente para garantir
o cmpromisso de permanencia e exc/usividade. Dizemos isto porque, ao
nosso modo de ver, náo se pode exigir que os nubentes tenham urna con-
cep~áo do amor táo elevada como a do amor de benevolencia integral-
mente considerado. Esse amor de benevolencia integral corresponderia
aquele amor ideal, de que já falamos, delineado pela «Humanae vitae»
(<<amor plenamente humano»; «desprovido de toda reserva e egoísmo»;
«aberto a urna entrega total», etc.).
Encontramos o mesmo parecer em Lombardía e Hervada: «todo amor
conjugal -escrevem-, para que exista matrimonio, tem que conter um
certo grau de amor de benevolencia, já que o pacto conjugal por ser
minimamente possível exige urna entrega. Mas só em casos muito excep-
cionais chega a ser puro amor benevolentiae, ainda que este último seja o
ideal »26.

26. HERVADA, J.-LoMBARDIA, P., El Derecho del Pueblo de Dios, O.C., p. 102.
A RELEVANCIA JURIDfCA DO AMOR CONJUGAL 261

Reafirmamos, pois, que esse amor de benevolencia integral, esse


amor ideal, ultrapassa a identidade mfnima que estamos procurando.
Em conclusao, sustentamos que a identidade mínima do amor conju-
gal humano se poderia definir por quatro elementos indispensáveis e
inseparáveis:
1º) A disponibilidade para o relacionamento sexual (que incluiría a
náo exclusáo do «ius in corpus»).
2º) A intencionalidade de um mínimo de «afectus maritalis» que
permitisse um relacionamento sexual «humano modo» (no qual consi-
deramos implícito o desejo potencial de procriaráo ou pelo menos a 000-
exclusáo voluntária de prole). Esta condi~ao nao se daria, se alguém se
casasse, por exemplo, para fazer sofrer o outro conjuge, por ódio ou
sadismo.
3º) A intencionalidade de um mínimo de coabitaráo e de ajuda mútua
necessário para conseguir o relacionamneto sexual e o «affectus mari-
talis» de quefalam os itens anteriores (que incluiría a náo exclusáo do
direito a esse mínimo necessário).
4º) Uma intencionalidade de permanencia e exclusividade no amor,
porque, se nao fosse assim, o consentimento se prestaria para urna unHio
fomicária ou concubinária.
Estamos conscientes do caráter limitado destes delineamentos, esbo-
~os insuficientes que, aos poucos, a doutrina e a jurisprudencia elaborada
a partir do Código irao perfilando com maior precisaD e rigor científico.

IV. A POSI~ÁO DA OOUTRINA E DA JURISPRUDENCIA


o posicionamento dos canonistas sobre este tema tem sido muito
variado. Sem pretender ser exaustivo, apresentamos a seguir um quadro
-que vá da posi~ao mais fechada para a mais aberta- das diferentes opi-
ni6es da doutrina. Fedele27 e Navarrete28 , reconhecendo que o amor

27. FEDELE, L.,L·ordinatio ad prolem e i fin.i del matrimonio com particolare refe-
rimento al/a constiluzione «Gaudium el Spes», cit por FuMAGALLl CARULLI, O., O
«/nlelello e Volontá» ...• O.C. , p. 202.
262 MONS. RAFAEL LLANo CIFUENTES

conjugal é um elemento psicológico importante, entendem que nao goza


de nenhuma relevancia jurídica; na mesma linha se mantém d' Avack29 ,
Robleda30, e Molan031 . De la Hera, muito embora pondere a importancia
do movimento atual, mostra-se pessimista di zendo que a estrutura~ao
jurídica do amor conjugal «nao encontrou ainda efetivamente urna
fórmula científica nem provavelmente a encontrará»32. Gutiérrez sustenta
que o amor, entendido corno apetite racional ou da vontade, é elemento
constitutivo do mesmo ato com que se instaura o matrimoni033 . Fagiolo
considera o amor um elemento essencial para a validade do rnatrimonio34
e Lenar chega a pensar que, em virtude do consentimento, o amor se con-
verte radicalmente em obriga~ao de justi~a entre os esposos35. Nesta
linha, Viladrich considera que o pacto conjugal é um ato de amor fun-
damental do matrimonio, que dá lugar a urna realidade traduzível em ter-
mos jurídicos corno o próprio vínculo jurídico matrimonial e os direitos e
deveres conjugais36. De Salazar outorga abertamente ao amor conjugal
-sem definir como- a capacidade de influir na própria validez ou nulidade
do matrimoni037 . No ponto mais extremado encontrarnos, entre outros,
Bernhard -defensor da tese da «consuma~ao existencial da fé»- que
atribui ao amor amadurecido -as sumido existencial e espiritualmente-, e
só a ele, a capacidade de consumar ou realizar por completo o matri-

28. NAVARRETE, U., Strutura iuridica matrimonii secundum concilium Vaticanum l/.
Momentum Iuridicum Amoris Coniugalis, Roma 1968, pp. 107 ss.
29. D'AvACK, P., Il matrimonio canonico oggi, en «11 Diritto Ecclesiastico», 1979.
Parte 1, p. 15 .
30 . ROBLEDA , D., Amore coiugale e atto giuridico , em «Annali di dottrina e
giurisprudenza canonica 1. L'amore coniugale», Vaticano 1971, pp. 215 ss.; citado por
LOPEZ ALARCON, M., NAVARRO VALLS, R., Curso de Derecho Matrimonial Canónico y
Concordatario, Madrid 1984, p. 70.
31. M OLA NO, E., Contribución al estudio sobre la essencia del matrimonio,
Pamplona 1977, pp. 72 ss.
32. DE LA HERA, A., La signification de l'amour dans le mariage, «Apollinaris»
1967, pp. 269 ss.
33. GUTIERREZ, A., Il matrimonio. Essenza, fine, amore coniugale, Napoli 1974, p.
63. Citado por LoPEZALARCON, M.-NAVARRO VALLS, R., ob. cit.
34. FAGIOLO, V., Amore coniugale ed essenza del matrimonio, em «Annali di dottri-
na e giurisprudenza canonica. 1. L'amore nel matrimonio». Vaticano 1971, p. 182 ss.
35. LENER, S., L'oggetto del consenso e l'amore nel matrimonio, en «Annali di dot-
trina e giurisprudenza canonica», 1, L'amore coniugale, pp. 165-172. Citado por LoPEZ
ALARCON, M-Navarro Valls, R., O.c ., p. 69.
36. VILADRICH, J., Amor conyugal y essencia del matrimonio, en «Ius Canonicum»
(1972), p. 313 .
37. DESALAZAR, J., O.c ., p. 119.
A RELEVÁNCIA JURIDfCA DO AMOR CONWOAL 263

monio, confirmando a indissolubilidade do vínculo; de tal maneira que,


antes dessa consuma9ao, o matrimonio poderia ser dissolvido pelo Ro-
mano Pontífice a teor do c. 114238.
A jurisprudencia rotal tem-se mantido numa posi9ao reservada. Po-
deria resumir essa posi9ao numa frase bem expressiva recolhida numa
das su as senten9as: «nunca houve em nenhum tribunal balan9as que
servissem para medir o amor»39.
Como tem mostrado de urna maneira muito clara Del Amo, a juris-
prudencia, de fato, até agora, nao se mostrou em nenhum caso favorável
a considerar a ausencia ou a exclusao do amor como causa suficiente para
anular o matrimonio: «o consentimento matrimonial pode e deve ser
amoroso, segundo norma ideal, plenamente amoroso .. . ; mas necessa-
riamente nem se funda no amor nem se decide em último termo pelo
amor»40.
Poe, como exemplo, a Senten~a de 30 de julho de 1969 (<<coram» Pinto) que
afIrma: «como a falta de amor nao impede o consentimento nem faz ao con-
traente incapaz de conseguir os fins do matrimonio, ao menos essencialmente,
nem repugna que celebrado o matrimonio nas~a o amor, nunca até o dia de
hoje o direito exigiu para a validez do matrimonio este elemento psicológico
do amor» .. . «Portanto, quem contrai matrimonio nao por amor, mas para
libertar-se de urna situa~ao injusta no lar paterno, contrai matrimonio
verdadeiro». .

Concluindo, determina Del Amo que «o amor nao é o consentimento,


nem elemento essencial que invalide o matrimonio, ainda que pelo nexo
entre ambos afalta de amor pode assinalar como indício afalta de con-
sentimento genuíno, se concorrem outros indícios e circunstáncias coe-
rentes»41. Mais adiante veremos o significado real que tem estas últimas
palavras.
Nao é difícil compreender os reparos com que a jurisprudencia encara
a relevancia jurídica do amor. Sao várias as razoes que poderíamos
aduzir:

38. BERNHARD, A propos de l'indissolubilité du mariage chrétien, em «Revue des


Sciences Religieuses» (1970), pp. 49 e ss.; IDEM, Reinterprétation (Existentielle et dans
la ¡oi) de la législation canonique concernant et l'indissolubilité du mariage chértien, en
«Revue de Droit Canonique» (1971), pp. 243 ss.
39. S.R.R.D. Sev . Sent. 61, p. 703, 3 coram ABBO.
40. DEL AMO, L., Amor conyugal y la nulidad del matrimonio, en <<lus Canonicurn»
xvn (1966) 34, p. 60.
41. DEL AMO, L., arto cit., p . 95.
264 MONS. RAFAEL LLANO CIFUENfES

a) O temor de que o desaparecimento do amor ven ha a ser consi-


derado como uma causa do divórcio.
b) O respeito que deve ser mantido ao direito natural que toda pessoa
tem para casar, ainda que seja muito primária a conceitua~ao que
porventura fizer do amor conjugal.
c) A irrelevancia jurídica que até agora teve no sistema canonico o
chamado «fmis operantis», isto é, as finalidades ou motivos, elevados ou
baixos, que movem urna pessoa a casar-se. (Veja-se, por exemplo, que o
chamado «metus ab intrinseco», o medo causado pela própria mente de
quem o sofre, nao invalida o consentimento: c. 1103).
d) A dificuldade que sofrem os juristas para encontrar o ponto preciso
onde se possa inserir a relevancia jurídica do amor: dentro do capítulo da
ignordncia (c. 1096); ou do «error pervicax» (em referencia ao c. 1099);
ou no da simula~ao parcial (c. 1101 § 2).
e) A difícil tarefa -como já observamos- para delimitar o conceito de
amor, susceptível de relevancia jurídica42.
f) Os perigos que pode acarretar urna interpreta~ao apressada e pouco
amadurecida do Concílio Vaticano 11, que fez tomar aos Tribunais
romanos atitudes de reserva.
Vejamos um exemplo na senten~a da Signatura Apostólica que a
seguir transcrevemos:
«Sendo as 10cu~oes 'communio vitae', 'consortium vitae', a se-
melhantes, frequentíssimas na tradi~ao canonica,daquela defini~ao con-
ciliar do matrimonio que o denomina lntima comunidade de vida e amor,
nao se pode deduzir que traga consigo algo de novo a respeito da tra-
dicional n~ao do consentimento matrimonial, que incite a substituí-lo por
outro consentimento por assim dizer existencial -o amor verdadeiramente
existe em cada momento- cessando o qual deixaria de existir o vínculo
matrimonial»43.
Fumagalli, comentando esta decisao, acrescenta significativamente:
«nao me parece porém de todo convincente a afmna~ao de que o objeto

42. CfL FUMAOALLI CARULLI, O., lnnovl!I~ni conciliari... oh cit., p. 375.


43. Sente"fa da Signatura Apostólica 25.11.1975 «coram quinque cardinales».
A RELEVÁNCIA JURIDfCA DO AMOR CONJUGAL 265

essencial do consentimento tenha permanecido depois do Conselho


limitado só aquele «ius in corpus et exclusivum in ordine ad actus per se
aptos ad prolis generationem»44.
A visao personalizante do Concilio e a tendencia para urna abertura a
integra~ao completa dos esposos reclamam, sem dúvida, a supera~ao de
urna visao restrita a es se «direito-obriga~ao» sobre o corpo em rela~ao
aos atos sexuais. De fato o novo Código inseriu esse direito dentro do
que denominávamos o «ius ad consortium totius vitae» onde se encontra,
sem dúvida, inclusive, o direito ao amor conjugal.
Por esta razao -que nos parece convincente em face da maior sensibi-
lidade eclesial pelos aspectos espirituais do matrimonio -tentaremos dar
un passo a frente no esclar~cimento do problema, distinguindo em face
do mesmo a dupla vertente do matrimonio «in fieri» e «in facto esse».

V. A DELIMITAc;.ÁO DO PROBLEMA EM REFERÉNCIA AO MA1RIMÓNIO


«IN FIERI» E «IN FACTO ESSE»

A doutrina canonística contemporanea nem sempre tem delimitado


com claridade o tipo de relevancia jurídica que possui o amor conjugal:
concretamente nao está perfilado com rigor até que ponto e em que
medida influi no momento de contrair o matrimonio (in fieri) ou afeta
inclusive o próprio estado matrimonial (infacto esse). Vamos deter-nos
. neste ponto absolutamente necessário para o esclarecimento do problema.

A. Em referencia. ao matrimonio «infacto esse».

A doutrina atribui ao amor urna importante presen~a no matrimonio


«in facto esse».
Tem sublinhado reiteradamente na última década que o amor eleva a
urna dignidade superior o exercício da sexualidade conjugal. Identifica-se
como o «bonum coniugum» (c. 1055 § 1), quer dizer, constitui o coniu-
gum auxilium et complementum em todas as dimens5es -humana, moral,

44. FUMAGALLI CARULLI, O., oh. cit., p. 374.


266 MONS. RAFAEL LLANO CIFUENfES

espiritual e sobrenatural- e, no dizer, de López Alarcón e Navarro Valls,


configura um fim autonomo do matrimoni045 •
Mas isto representa apenas um aspecto -e nao precisamente o mais
direto- da problemática levantada por algumas corren tes de opiniao que
condicionam a permanencia do vínculo a presen~a do amor conjugal.
É evidente, nesse sentido -de acordo com as raízes mais profundas do
matrimonio cristao-, que a presen~a ou ausencia do amor nao pode influir
na permanencia do vínculo: este é indissolúvel. Com o decorrer do tempo
o amor pode esmorecer ou inclusive desaparecer, mas o estado matrimo-
nial permanece. Deste angulo podemos dizer, em termos absolutos, que o
amor nao tem nenhuma relevancia jurídica.
Com clareza meridiana manifestou-se nesse sentido Paulo VI, em importante
alocu~ao a Sagrada Romana Rota, saindo ao encontro de diferentes desvios
doutrinais que consideram «o amor conjugal como um elemento de tao grande
importancia, inclusive no direito, que submete a ele a mesma validade do
vínculo matrimonial, e por isto abrem a porta ao divórcio ... como se ao faltar
o amor ... faltasse a mesma validez da irrevogável alian~a conjugal, que surgiu
do livre e pleno consentimento. É preciso negar que faltando o elemento
subjetivo, entre os quais está em primeiro lugar o amor conjugal, o matri-
monio nao existe mais como realidade jurídica, que nasee pelo consentimento
e que permanece sempre juridicamente eficaz. Esta realidade, no que diz
respeito ao direito, nllo depende absolutamente do amor, e permanece sempre
ainda que a afei~llo do amor se tenha totalmente extinguido»46.
O Supremo Tribunal da Signatura Apostólica sintetizou os mesmos princí-
pios na seguinte á~i:cr!!lina~llo: «De acordo ,com toda a tradicllo da Igreja ... o
vínculo nao deixa de existir ainda que desap~ o amof»47.

Neste ponto nao há divergencias na jurisprudencia. Serrano o mani-


festa de urna forma contundente: «as decisOes da Rota Romana mais re-

45. LoPEZALARcoN, J.-NAVARRO VAUS, R., ob.cit.


46. PAULO VI, Alocuyao AIla lnaugurazione dell'ano Giudiziario 1976 deIla Sacra
Romana Rota, in «Ephemerides Iuris Canonici» (1976), p. 299.
47. STSA Nullit matrimonium (29.11.75) coram cardo STAFFA, em «Periodica»,
66 (1977), pp. 304-306. No mesmo sentido a S.R.R. Nullit matrimonium (4.12.75),
coram ANNÉ, em «Ephemerides Iuris Canonici», 33 (1977), 1-2, p. 177: «Pela
irrevogabilidade do seu consentimento no matrimonio in [acto esse ambas as partes
estao vinculadas durante toda a vida, ainda que a vida em comum falte de todo ou se
arruinem de todo ao falhar plenamente os conjuges na construyao do consórcio da vida
conjugal». Cfr. tambén S.R.R. Nullit. matrimonium (22.2.72) coram PARISELA, ibidem
pp. 119 ss.
A RELEVÁNCIA JURIDíCA DO AMOR CONJUGAL 267

centes negam com desacostumada unanimidade que exista nulidade do


matrimonio derivada da falta do amor»48.
Mas o problema nao fíca tao claro quando se refere ao matrimonio «in
fíeri».

B. Em referéncia ao matrimonio «in fieri»

A problemática apresenta agora outra fei~ao e levanta um outro ques-


tionamento que se poderia formular assim: até que ponto a presen~a ou
ausencia do amor pode tornar válido ou inválido o consentimento e, por-
tanto, o ato constitutivo do matrimonio?
Também neste sentido as senten~as rotais manifestavam-se em geral
de urna forma negativa.
Vejamos um exemplo: «a falta de amor de per si nao impede o consenti-
mento matrimonial .. . até o presente o direito nunca requereu este elemento
psicológico de amor para a validez. E isto nao mudou por causa do Vaticano
II. Já que, nem no texto definitivo, nem nos esquemas prévios, nem nas re-
la\(<ks, nem nos atentos exames realizados pelas Comiss<ks se afirma que seja
o amor matrimonial essencial da alianca matrimonial, desaparecido o qual ou e
excluido positivamente, o matrimonio venha a ser nulo. Pelo contrário, no
Anexo sobre o amor se le isto: a validez do consentimento e, por conseguinte,
do mesmo matrimonio, nao depende de um grau particular de perfei\(lío desse
amor, enquanto o consentimento seja livre e nao se exclua positivamente a
unidade, a indissolubilidade ou a fecunda\(lío49.

Dada, porém, a importancia que tem assumido o tema do amor con-


jugal, desde o Concflio até a «Familiaris consortio», parece-nos neces-
sário nos aprofundarmos mais no problema e matizar algumas facetas
fundamentais.

48. SERRANO, J.M., El derecho a la comunidad de vida y amor conyugal como objeto
del consentimiento matrimonial: aspectos jurídicos y evoluci6n de la jurisprudencia de la
S. Rota Romana, em «Ephemerides Iuris Canonici», 1-4, p. 63. Cfr. tambén NAVARRETE,
U., Structura iuridica matrimonii secundum Concilium Vaticanum l/. Momentum iuridicum
amoris coniugalis» , Romae 1977, pp. 107 ss.
49. SRRD, seu Sent. vol. 61, p. 902, n. 3 «coram» PINTO; vid. GUITARTE
IZQUIERDO, Y., Amor y matrimonio en la Exhortaci6n «Familiaris consortio» de JUAN
PABLO l/, em «Revista Española de Derecho Canónico» 109 (1982), pp. 109 ss.; LOPEZ
ILLANA, F., recolhe numerosos casos de jurisprudencia rotal sobre a irrelevancia jurídica
do amor conjugal (Sobre el amor conyugal y la estructura jurídica del matrimonio, em «El
consentimiento matrimonial hoy», Salamanca 1976, pp. 303 ss.).
268 MONS. RAFAEL lLANo CIFUENIES

1. A releváncia jurídica do amor na presta~tío do consentimento

Reparemos que as variadas senten9as rotais que negam a relevancia


jurídica do amor na realiza9ao do ato constitutivo (in fieri) se assentam em
geral no pivo deste clássico brocardo jurídico: «Matrimonium non facit
amor sed consensus». Diz, por exemplo, urna senten9a «coram». Prior:
«nao afeta a validez do matrimonio que se contraia sem amor pois o amor
nao faz o matrimonio, mas o consentimento»50. Concordamos. Mas ao
mesmo tempo perguntamos: o amor ou o desamor nao faz também, por
sua vez, o consentiillento?
O «quid» do problema, ao nos so modo de ver, nao está no ato cons-
titutivo do matrimonio mas na raiz ou na fonte desse alto constitutivo.
De acordo com a doutrina de S. Tomás o amor como «virtus unitiva»
é causa da uniao entre amante e amadoS!. O amor será ordinariamente a
for9a (<<vis unitiva») que impele a prestar o consentimento. Mas sendo o
consentiment.:> um ato de vontade, o amor estará presente nele na medida
em que seja as sumido pelo ato de vontade. Quando isto aconte9a, o
matrimonio estará causado por um amor de dil~ao e ele será a via normal
do consentimento matrimonial. Também neste caso continua sendo válido
o princípio (imatrimonium non facit amor sed consensus», mas o ato do
consentimento matrimonial estará informado pelo amor52•
Em certas ocasi6esparece-nos que, ao repetir talvez rotineiramente
que «non amor sea c~~~ensus facit nupcias», fica esquecida essa idéia
que acabamos de sublinhar: que habitualmente o consentimento matri-
monial está motivado pelo amor.
Goti Ordeñana escreve neste sentido: «nos auditores rotais, influen-
ciados pela psicologia clássica, prepondera urna COnCep9aO intelectua-
lista ... no entanto, na solu9aO prática dos problemas, sobretudo nas cau-
sas de nulidade por medo, continuamente entram a analisar a influencia

50. SRRD, seu Sent. vol. 9, dec. 14, n. 17, p. 134 «coram» PRIOR, «A carencia do
amor nao prejudica a validez, sendo assim que o matrimonio o faz o consentimento e nao
o amor» (SRRD seu Sent. vol. 9, dec. 22, n. 7, p. 214 «coram» PRIOR) «O amor ... é
conveniente como elemento moral, mas nao se requer como elemento jurídico contrac-·
tual, o qual está só no consentimento livre» (SRRD, vol. 60, n. 8, p. 935, «coram»
PARISELLA); etc. etc.
51. S. TOMAS I-II, q.25, a.2, n.2.
52. Cfr. MOLANO, E., La naturaleza del Matrimonio en la doctrina de Santo Tomás,
en «Persona y Derecho», 1 (1974), p. 162.
A RELEVANCIA JURIDfCA DO AMOR CONJUGAL 269

que o amor teve na realiza~ao do ato consensual, e consideram que o


consentimento nao é só o ato de decisao da vontade mas que inclui um
longo processo, desde que se conhece o objeto até que se decide; nesse
intervalo atuam fatores que valorizam o bem que se vai aceitar ou rejeitar,
e naturalmente o que faz que a vontade se decida num ou noutro sentido
sao as motiva~6es, já que em toda decisao, mas especialmente no que se
ordena ao matrimonio, hao de preponderar as tendencias afetivas»53.
Há nesse sentido muitas sentenc;as rotais. Citaremos a seguir como
exemplo urna «coram» Jullien que é, de certo modo, antológica: «Huma-
namente ninguém costuma casar com aquela pessoa que odeia, a nao ser
que esta vontade tenha sido superada internamente com a esperanc;a de
um grande bem ou pela ac;ao de uma forc;a estranha, caso em que a aver-
sao grave e constante demonstrada com continuidade ant~s, durante e
depois do matrimonio faz presumir que houve cOac;aO»S4.
«A constante denega~ao do amor induz a deduzir que nao existiu li-
berdade», sustentam outras sentenc;as 55 . «De tal forma que o amor
considerado como um movimento para o amado -afirma Goti Ordeñana-
aparece desde as primeiras senten~as56 como teste que distingue o con-
sentimento matrimonial daquele que é coagido, pois se se sente amor
conjugal nao se pode dizer que se contraiu por pressao de uma for~a
externa»57.
Neste sentido sao muito claras as palavras de Vicenzo Fagiolo: «Para
o Concílio a pessoa humana nao pode ser jamais instrumento nem con-
siderada como meio ... ». «Perguntemo-nos agora como o direito pode
continuar a ser justo, a tutelar a dignidade da pessoa humana, a favorecer
o bem comum e da farru1ia, quando sustenta a validade de um matrimonio
no qual um dos contraentes há de tal maneira en ganado ao outro (com o
qual deveria ter formado uma comunidade de amor e de vida), que casou
com ele unicamente para faze-Io sofrer? A casuística precedente respondia
que sim, que podia considerar-se justo, porque dizia: aquilo que faz o
matrimonio é o consentimento. E eu acrecento, perguntando: mas qual é o

53. OOTI ORDEÑANA, J., ob. cit., , p. 147.


54. Corarn JULLlEN, 9 de dezembro de 1935, vol. 27, D. 76, n. 2, p. 639.
55. Vid. Coram CHIMENTI, 28 de janeiro de 1920 vol. 12, D. 4, n. 3, p. 20.
56. 0011 ORDEÑANA, l, O.C., p. 149.
57. Coram ANNE, 13 de julho de 1962, vol. 54, D. 77, n. 2, p. 388.
270 MONS. RAFAELLLANOCIFUENTES

consentimento que produz o matrimonio? Nao é porventura só aquele


consentimento que tem por objeto a essencia do matrimonio? Isto é, o
consentimento que nao é apenas urna declara9ao exterior mas aquele que é
a efetiva voluntas, ou seja, aquele que nao é consentimento simulado mas
verdadeiro ... E qual é essencia do matrimonio que deve ser objeto do
consentimento, para que este seja válido e constitua portanto o matri-
monio? Citando Santo Tomás, P. Lener tem recordado que o objeto do
consentimento está no querer dos nubentes «ut invicem se spontanee
recipiant» como marido e mulher; é o as sumir recíproco da posi9ao mútua
de marido e mulher. O consentimento que produz o matrimonio é o
querer dos contraentes para constituir e instaurar entre eles «la total e
perfezionante unione delle loro persone»; é querer aquela «communitas
vitae et amoris» que constitui, segundo a Gaudium et Spes, o matri-
monio. Se este é o objeto do consentimento, como se pode dizer que é
válida aquela vontade que queira a uniao conjugal nao por si mesma, mas
para fins tao diversos se nao verdadeiramente contrastantes»?58. Fagiolo
chega inclusive a urna conclusao -que precisaria ser analisada com maior
rigor- de que -«o amor conjugal tem relevancia como causa do matri-
monio enquanto que se identifica com o consentimento qui matrimonium
facit»59. Goti Ordeñana, paralelamente, chega também a conclusao
-suscetípvel igualmente de urna pondera9ao mais acurada- de que «muito
embora tenhamos que mover-nos dentro das limita96es que imp6e a
seguran9a jurídica, devemos afirmar que o consentimento conjugal como
categoria jurídica é a expressao jurídico-formal do amor conjugal, por-
quanto este é a «conditio sine qua non» de que se de um consentimento
verdadeiramente matrimonial e que se produza urna «comunitas vitae et
amoris»60.
Mais adiante nos referiremos a algum outro aspecto deste interessante
tema, quando tratarmos da falta de amor como indício ou prova pro-
cessual para demonstrar a falta de consentimento.
Agora vamos analisar a relevancia jurídica do amor em dois capítulos
significativos: o «error pervicax» e a simula9ao.

58 . FAGIOLO, Y., Amore coniugale ... o.c., pp. 183 e 184.


59. lbidem, p. 185.
60. GOTI ORDEÑANA , J., o.c., p. 292.
A RELEVANCIA JURIDíCA DO AMOR CONJUGAL 271

2. A releváncia jurfdica do amor e o «error pervicax»

o consentimento, dizíamos antes, ordinariamente, deve estar infor-


mado pelo amor, mas também pode, extraordinariamente, estar defor-
mado pela falsidade do amor.
Pode existir um erro a respeito do amor, tao profundamente radicado
no intelecto (<<error pervicax»), que defonna por completo o consenti-
mento até o ponto de que o nubente fa~a um contrato de vida amorosa
completamente diferente daquela do matrimonio católico. Pense-se, por
exemplo, na prolifera~ao atual de filosofias exiStencialistas, «hippies»
etc., que sustentam um tipo de matrimonio poligamico ou em grupo,
sempre dissolúvel a merce dos sentimentos61 •
Devemos levar em considera~ao que na época atual a ideologia sobre
o amor tem maior influencia popular do que a ideologia sotre o matri-
monio. A imagem do matrimonio como institui~ao está com freqüencia
defonnada por causa da concep~ao que se faz do amor. Urna desfigu-
ra~ao do amor conjugal pode levar, hoje em dia mais do que nunca, a um
completo desvio sobre a própria natureza do matrimonio, viciando,
assim, o seu consentimento. Por isso este tipo de erro sobre o amor, as
vezes tao profundamente arraigado em certos grupos sociais do nos so
meio ambiente, pode trazer consigo amÍude uma inten9iio imp[(cita contra
a indissolubilidade e unidade do matrimonio, o que poderia redundar na
nulidade do consentimento se «determina a vontade» de acordo com o
c.I 099. Em alguns autores e na própria jurisprudencia rotal esta menta-
lidade está adquirindo cada vez maior relevo62• É evidente que por este

61. o erro «pervicax» pass a da mente para a vontade condicionando o consenti-


mento: «Pode acontecer que o erro de tal maneira penetre e arraste a personalidade de
quem celebra o matrimonio que este já nao queira outra coisa senao o que pensa e nao
fa~a senao o que tem na sua mente» (Cfr. Coram SABATTANI em SRR. Dec. sen Sent. vol.
56 (1964), p. 927; decisao de 11 de dezembro de 1964). Também a S.R.R. determina:
«Tal convic~ao (contrária a indissolubilidade) fez-se neles como que urna segunda nature-
za da que nao podem afastar-se» (Coram FILlPIAK 23 de mar~o de 1956 ibid. vol. 48
(1956), p. 256.
62. Cfr. MOSTAZA, A., Nuevo Derecho Canónico, BAC nQ. 445. Madrid 1983; p.
273; Vid. GROCHOLEWSKI, De Exclusione indissolubilitas ex consensu matrimoniale
eiusque probatione (Nápoles 1973); mEM, Crisis doctrinale et iurisprudentiae sacramentis
in contractu matrimoniali, «Periodica» 67 (1978), 283-96; GRATIANI, E., Mentalitá di-
vorzista ed esclusione della indissolubilita del matrimonio. Studi in onore di P.A.
D'AvACK, vol. 2, Milán 1976, pp. 681-702. PARISELLA, J., De Pervicaci seu radicato
errore circa matrimonii indissolubilitatem lurisprudentia rotalis recentior: ius populi dei,
vol. 3. Roma 1971, pp. 513-540; cfr. Sent. coram ANNÉ (27-10-64, vol. 56, 765); co-
ram FELlCI (17.12.57), vol. 48, 844, nn. 3-4.
272 MONS. RAFAEL LLANo CIFUENTEs

título pode produzir-se uma perigosa fenda na indissolubilidade do ma-


trimonio, mas também é necessário levar em considera~ao a importancia
de um consentimento juridicamente sao, indispensável para a validade do
ato constitutivo.

3 . A releVllncia jurídica do amor na simular;éío


Foi neste ponto onde o novo código esteve perto de introduzir o «ius
ad vitae communionem» que seria algo muito próximo ainser~ao do «ele-
mentum amoris» no sistema matrimonial canonico. Mas nao foi assim.
O antigo c. 1088 § 2 do CIC de 1917 dizia: «Se uma das partes ou as
duas, por um ato positivo da sua vontade, excluem o mesmo matrimonio
ou todo o direito ao ato conjugal ou alguma propriedade essencial do
matrimonio, contraem invalidamente». A Comissao para a revisao do có-
digo, em uma primeira reda~ao -movida sem dúvida por essa tendencia
personalizante e espiritualista a qual nos referimos várias vezes- subs-
tituiu o texto que sublinhamos por este outro: «O direito a comunhao de
vida» (ius ad vitae communionem). Esta substitui~ao foi bem acolhida
por uma parte da doutrina, mas encontrou forte resistencia em alguns
canonistas e na própria Comissao revisora63 • Na assembléia plenária da
Comissao revisora (outubro de 1981), a pedido de varios cardeais, mu-
daram-se os dois textos por um terceiro: «ou algum eleménto essencial do
matrimonio». E assim foi acolhido no C. 1101 § 2.
Parece-nos que dentro desta fórmula «elementum essentialem» está
incluído o direito ao ato conjugal, mas também, o «elementum amoris»64.
Se bem interpretada esta afirma~ao nao diverge da sistemática geral
do direito matrimonial canonico.
, Assim, por exemplo, o tribunal da Signatura Apostólica considerou
nulo o caso, que se tornou clássico, de matrimonio contraído com a
inten~ao positiva de fazer sofrer o consorte. Aqui vemos como o «bonum

63. Esquema de 1975 c. 303 Communicationes, 9 (1977), p. 375. Cfr. NAVARRETE,


U., De iure ad vitae communionem: observationes ad novum schema canonis 1086 § 2,
«Periodica» (1877), pp. 249-70.
64. Vid. GIACCHI, O., L'esclusione del «matrimonium ipsum» l'esclusione dello «ius
ad vitae communionem» , em «Quademi romani di Diritto canonico». Dirigido por P.
FEDELE. Roma 1977; SERRANO RUIZ, J.M., El derecho a la comunidad de vida y amor
conyugal como objeto del consentimiento matrimonial: aspecto jurídicos y evolución de
la S. Rota Romana, em «Ephemerides iuris canonici», 1976, pp. 43 ss.
A RELEVANCIA JURIDfCA DO AMOR CONJUGAL 273

amoris» -que autores como Navarrete65 consideram um «direito-obri-


ga~ao» essencial e diferente de todos os outros «direitos-obrlga~6es»­
enquanto objeto de exclusao tem relevancia jurídica66•
É preciso levar em considera~ao, porém, que aJalta do amor «sim-
pliciter» nunca pode levar a anular o consentimento matrimonial, mas
apenas poderla causá-Io quando existía um «positivo voluntatís actu»,
urna positiva inten~ao de excluí-lo: nao basta pois que alguém case por
ódio -como no exemplo que acabamos de citar- sem amor, por puro in-
teresse -como quem o faz para conseguir a heran~a de alguém que está
para morrer- porque isto nao invalidaría o casamento (sao meros motivos
subjetivos de caráter intelectual: «finis operantis»), mas é necessário que
se demonstre urna exclusao explícita por um ato positivo da vontade.
Aqui, como se ve, nao se exige a presenr;a de um específico tipo de
amor -alto ou baixo- mas a inexistencia de um ato positivo de vontade
pelo que se tenciona excluir o «elementum amoris». Parece-nos que neste
sentido preciso e técnico é susceptível de ser colocado o problema na
«balan~a do Tribunal», como se exprimia -em diversa dire~ao- a senten~a
da SRR «coram» Abbo já citada67 •
Nao foge, aliás, esta coloca~ao doutrinal de alguma tomada de posi~ao da
S.R.R. Por exemplo, urna senten~a rotal refere-se a um caso já decidido por
urn tribunal de Roterdam como matrimonio inválido e confmnado pelo respec-
tivo tribunal de apela~o, no qual a mulher tinha casado para um fim comple-
tamente estranho ao matrimonio, nao havia demonstrado verdadeiro amor, e,
mais ainda, tinha impedido com o seu comportamento que surgisse entre ela e
o consorte urna verdadeira comunidade de vida e amor.
Ainda que a Senten~a fosse decidida pela validade do matrimonio por fala de
provas, infacto. suficientes acerca da exclusao do «ius ad vitae communio-
nem», a pr6pria senten~ admite, in iure. como possível este novo capítulo de
nulidade precisando que «as causas de nulidade do matrimonio por falta de ver-
dadeiro amor conjugal devem ser tratadas também do mesmo modo que as
causas por falta de acei~ao e concessao do direito ao «consortium vitae» ou
por falta de aceita~ao ou doa~ao dos direitos e ofícios substanciais da vida con-
jugal. Pois existe urna simul~ao parcial quando, por um ato positivo da von-

65. NAVARRETE, U., Problemi sulla autonomía dei capi di nullita del Matrimonio per
difetto di consenso causato da perturbazioni della persona/ita. in AA.VV., Perturbazioni
Psichiche e consenso matrimonial nel Diritto Canonico. Roma 1976, pp. 134 ss.
66. JEMOLO, A.C., II matrimonio in diritto canonico. Milano 1941, p. 76: «É inte-
ressante que um exemplo extremo como o indicado no texto nao foi considerado por
JEMOLO um caso de nulidade em face da antiga legisla~ao. Pensamos que hoje as coisas
tem evoluido nesse sentido consideravelmente.
67. SRRD Seu Sent., vol. 61. p. 703, n. 3 «coram» ABBO.
274 MONS. RAFAEL LLANo CIFUENTES

tade, ao menos virtual (<<saltem virtuali»), se excluam, no todo ou em parte


estes direitos e ofícios»68.
Muito claramente esta senten~a da S.R.R. estabelece em síntese que quando
por um ato positivo da vontade ao menos virtual se exclui o verdadeiro.amor é
como se se excluísse o direito ao «consortium vitae» e neste caso existe um
verdadeiro caso de simulafáo parcial e portanto de nulidade do matrimOnio.
Fumagalli coloca esta questao em concreto em termos de progresso e
renova~ao jurídica, escrevendo: «Este renovado humanismo, desenvolvi-
do pelo Concilio Vaticano n, nao pode ser ignorado pela Igreja no seu di-
reito, mas pelo contrário deve ser traduzido em formas jurídicas precisas,
respeitosas do sistema constituído mas também receptivas a novos valo-
res. Isto parece-nos concretizado na minha proposta de considerar como
causa de simula~ao parcial a exclusao do «ius ad vitae communionem».
Prop5e-se, deste modo, ao menos substancialmente, um novo capítulo de
nulidade, mas deverá ser aplicado com a máxima precisao.Nao se me
escondem os perigos de decis5es arbitrárias mas é um risco que se deve
correr como pre~o de urna necessária evolu~ao guiada pelo espírito con-
ciliar e compatível com as exigencias técnicas do Sistema Canonico»69.
Mostaza, referindo-se depois dapublica~ao do Código -a este tema
em concreto, escreve: «Prescindindo da ambigüidade ... da frase «ius ad
vitae communionem» ... está claro em primeiro lugar que nao invalida o
matrimonio a exclusao do direito acomunidade de vida enquanto significa
mera coabita~ao ou convívio, pois este nao é essencial ao matrimonio. Se
por «comunhao de vida» entendemos o núcleo fundamental do amor,
quer dizer, o amor de benevolencia (desejo de fazer o bem a pessoa
amada), estimamos que esta classe de amor -o único que depende da
vontade, ao contrário do chamado de concupiscencia- forma parte essen-
cial da «comunhao de vida e amor» que é o matrimonio, e queem conse-
qüencia, «o contraente que exclui tal amor por um ato positivo da vontade
contrai invalidamente ... » Com isto, de maneira nenhuma pretendemos
afirmar que só «o matrimonio por amor» seja válido e nao o seja o cele-
brado por outros motivos alheios ao mesmos, como o chamado «de con-

68. S.R.R. (4 de dezembro de 1975), «coram» Amffi.


69. FUMAGALU CARULU, O., Innovazioni Conciliari e matrimonio canonico. O .C.,
p. 381, 384; vid. também FuMAGALU CARULU, O., La dimensione Spirituale del matri-
monio e la sua traduzione giurídica em «11 Diritto Ecclesiastico» (1979), pp. 49 ss.
A RELEVÁNCIA JURIDtCA DO AMOR CONJUGAL 275

vivencia», etc. mas que toda exclusao do amor no sentido indicado impli-
carla na nulidade do mesmo»70.
Ao nosso modo de ver, nao é exigível para invalidar o consenti-
mento, como anterionnente apontamos, que se exclua o amor de benevo-
lencia «in genere», como indica Mostaza, ou o amor de benevolencia
integralmente considerado -parece-nos um nível excessivamente alto- mas
basta a «mínima identidade do amor conjugal no sentido estrito de pala-
vra. Este reclama apenas um grau de amor de benevolencia suficiente para
garantir o compromisso de pennanencia e exclusividade do amor con-
jugal».
Nao foge a nossa considera~ao, por outro lado, que a exclusao do
«elementum amoris» parecerá com freqüencia redutível a exclusao do
mesmo matrimonio ou de alguma das suas propriedades essenciais. Com
efeito, excluindo a pennanencia do amor poderíamos cair na exclusao da
indissolubilidade; excluindo a identidade m(nima do amor conjugal glo-
balmente considerada, tal como nós a apresentamos, pareceria que se está
excluindo o próprio matrimonio, etc. Mas, se se presta urna maior aten-
~ao, se verá que existem algumas diferen~as.
Há um núcleo central do «elementum amoris» que é autónomo e
irredut(vel. Esse núcleo está fonnado -como já apontamos- por quatro
unidades fundidas e compenetradas: 11) a disponibilidade para o relacio-
namento sexual: 21) um mínimo de «affectus marltalis» (onde está in-
cluída a abertura para a procria~ao); 31) um mínimo necessário de coabi-
ta~ao e de ajuda mútua para conseguir o relacionamento sexual e o «affec-
tus maritalis» a que se referem as duas unidades anteriores; 4 1 ) urna
pennanencia no amor exclusivo.
Estimamos que este núcleo guarda autonomía a respeito da exclusao
do próprio matrimonio, ou da exclusao da indissolubilidade e da unidade,
assim como da exclusao do «direito ao ato conjugal» (c. 1086 § 2 CIC
1917). Porque nao é o mesmo excluir essa identidade m(nima do amor do
que excluir o direito ao ato conjugal; este, com afeito, nao exige tecnica-
mente o «affectus maritalis» e os outros componentes acima indicados.
Também nao é o mesmo excluir a estabilidade do amor do que excluir a
indissolubilidade do matrimonio porque esta propriedade tem um conteú-
do juridicamente mais definido. Assim, por exemplo, o c. 1096, para

70. MOSTAZA, A., Nuevo Derecho Canónico, B.A.e. n Q 445. Madrid 1983, p. 276.
276 MONS. RAFÁEL LLANO CIFUENfES

falar da ignorancia que torna inválido o casamento, nao exige o conheci-


mento da indissolubilidade mas apenas o da permanencia; e Viladrich, no
seu comentário a este canon, diz: «que os nubentes devem saber que o
matrimonio é um consórcio «permanente»; permanente, isto é, que tem
urna estabilidade ou dura~ao da que carecem as meras rela~6es esporádi-
cas, casuais ou transitórias, sem que seja necessário o estrito conhecimeto
da indissolubilidade» 71. Nao tem o mesmo sentido a indissolubilidade do
vínculo conjugal -tal como a entende o código- e a permanencia do amor
conjugal. A primeira possui um cunho jurídico muito definitivo; a
segunda representa urna questao de fato, urna situa~ao anímica. Um con-
juge pode aceitar a indissolubilidade do vínculo sem urna perspectiva de
amor: pense-se em alguém que se quer unir a urna pessoa por motivos
economicos, sucessórios, dinásticos, etc., desejando a forte estrutura do
vínculo indissolúvel mas excluindo o amor. Também, em sentido con-
trário, pode desejar-se a permanencia de um amor sem que se deseje a
indissolubilidade do vínculo com todo os perfis e conseqüencias jurídicas
desta figura. Pode-se, enfim, cogitar de alguém -exemplo nao tao inco-
mum- que está casado legalmente com «a esposa» por quem sente absolu-
ta indiferen~a ou aversao e com quem está unido pelo vínculo da indis-
solubilidade para cumprir urna fun~ao social ou doméstica, como ocupar-
se da casa, da educa~ao dos filhos, etc.; mas paralelamente sustenta urna
«amante» com quem mantém um autentico amor conjugal. No primeiro
caso caberia a exclusao do amor permanente; no segundo -se o
matrimonio pudesse realizar-se- caberia a exclusao da indissolubilidade.
Exatamente a mesma argumenta~ao se poderia fazer a respeito da
sacramentalidade do matrimOnio. Alguém pode excluir de modo preva-
lente a sacramentalidade do matrimonio canonico e desejar o amor perma-
nente, inclusive fecundo, porque o matrimonio canonico possui urna
carga jurídica e religiosa talvez indesejada, mas procura-se a uniao estável
com urna pessoa a quem se ama. Em sentido contrário, alguém pode de-
sejar o matrimonio canonico pela sua conota~ao religiosa, social, familiar,
etc., e excluir -por urna deforma~ao do modelo matrimonial- um amor
permanente. Aqui a exclusao se operaria pelo «caput amoris conjugalis».

71. VILADRICH, P., Comentários ao c. 1096 do «Codigo de Derecho Canónico» na


ediláo da «Universidad de Navarra», Pamplona 1983, p. 658.
A RELEVÁNCIA JURIDfCA DO AMOR CONJUGAL 277

Há outras diversas hipóteses em que o «elementum amoris» mantém


a sua autonomía. Imagine-se que algúem, por exemplo, casa sem excluir
o que o matrimonio canonico representa como institui~ao social e reli-
giosa, mas padecendo de urna anomalia sexual, como o homossexua-
lismo, é incapaz de expressar um amor conjugal normal. Aqui -além da
possibilidade de anula~ao por incapacidade (c. 1095)- caberia se há um
ato positivo da vontade, intervir com urna a~ao de anula~ao por exclusao
de amor conjugal. De forma parecida se procedeu na senten~a «coram»
Anné (25 de fevereiro de 1969), precisamente por um motivo de homos-
sexualismo.
No nosso modo de entender, a jurisprudencia estava concordando com a anu-
la~ao de matrimonio por exc1usao do «elementum amoris» sem que isto apare-
cesse de um modo explícito. Vamos apresentar apenas dois casos a título de
exemplo. A Sagrada CongregaQao do Santo Ofício (19.8.1875) contemplou a
hipótese de um católico que nao queria viver se nao em concubinato com urna
protestante taitiana mas por conveniencia celebrou o matrimonio canonico. A
resposta da Congrega~ao foi: que se o homem «non vult vivere nisi in concu-
binato», se consta no foro externo que os conjuges contrariam contrariam fic-
ticiamente, deste modo o matrimonio declara-se nulo»72.
O segundo exemplo é similar. A Instru~ao ao Vigário Apostólico de
Constantinopla dada a 1.10.1785 pela Sagrada Congrega~ao da «Propaganda
Fide», analisa a situa~ao dos que «desejam unir-se a urna concubina e nao
querem celebrar o contrato matrimonial mas só, através dele, encobrir a sua
paixao libidinosa». Oa matrimonios em tais casos -diagnostica- sao «nulos e
ÚTitos, já que o consentimento deles é dirigido apenas ao concubinato e no en-
tanto externamente dizem que celebram o matrimonio, querendo, sob esta más-
cara, cobrir a sua incontinencia»73.
En ambos os casos, para nós, a nulidade poderia acionar-se (como determi-
naram ambas as senten~as) por causa de urna simula~ao total, isto é, por ex-
clusao do próprio matrimonio, mas também de urna forma mais apropriada o
matrimonio poderia anular-se hipoteticamente, por ausencia de amor marital
ou pela substitui~o do mesmo por um amor que está aquém do umbral infe-
rior do amor conjugal (como é o concubinato). Na altura em que as senten~as
foram proferidas nao existia a possibilidade de enquadrar o caso dentro do capí-
tulo de exclusao de um elemento essencial mas hoje depois da refrma do
Código pode fazer-se.
Hipoteticamente seria cabível pensar neste procedimento por algumas raz5es
ponderáveis. Com efe'ito, quando se exclui o matrimonio em si mesmo con-
siderado (<<matrimonium ipsum»: c. 1101 § 2) exclui-se o matrimonio como

72. C.LC. Fontes W, «Typis Polyglottis Vaticanus» (1951), 945, pp. 219 ss.
73. C.LC. Fontes /l. «Typis Polyglottis Vaticanis» (1935), 4607, pp. 161 ss.
278 MONS. RAFAEL LLANO CIFUENfES

wn todo: diz-se que há simula~~o total precisamente porque, em realidade do


matrimonio náo se quer nada. Ora, nos casos analisados algo se deseja: deseja-
se inclusive urna comunidade de vida, urna uni~o estável, um amor humano
que nao chega a ser conjugal mas fica na fronteira do concubinato. O consen-
timento nao está totalmente esvaziado. O que está prejudicado é o conteúdo do
amor conjugal que n~o é a tota/idade do matrimonio mas um elemento
essencial. Neste sentido concordamos com Bernárdez quando diz que «poderla
dar-se a exclusao de todas as obriga~oes conjugais, mas com a intenr;áo de
contrair matrimonio. Esta hipótese possível embora tenha de vir de urna
mentalidade muito deformada do sujeito, leva-nos a comprovar que a simula~~o
total nao é precisamente a soma das diversas formas possíveis de simula~~o
parcial e a afirmar que a diferenr;a entre wna e outra náo é quantitativa mas
qualitativa. Em resumo, na simula~ao total trata-se de discernir se houve ou
náo consentimento matrimonial; na simula~~o parcial trata-se de induzir se o
objeto consentido era ou náo suficiente para considerar aceite o matrimonio»74.
Voltamos a dizer que nos casos analisados n~o há propriamente uma simu-
~~o total porque:
1º) houve realmente um consentimento, mas este n~o incidía no amor con-
jugal, porém, no concubinato;
2°) n~o se excluía o matrimonio como wn todo, isto é, n~o existía essa
diferen~a qualitativa (a «totalidade») que discrimina a simul~~o total da par-
cial: de fato algo se desejava e em algo se consentia. Por isso precisamente
diríamos que a hipótese analisada -que seria uma verdadeira abe~~o denomi-
ná-Ia matrimonio- poderia ser anulada por exclu~ de um elemento essencial
(c. 1101 § 2): o amor marital (que é um amor permanente).
Hervada, comentando ambas as senten~as, num trabalho que se caracteriza
pela sua profundidade e sutileza, vem dizer que é necessário «ressaltar que a
nulidade do matrimonio se estabelece em raz~ da carencia da vontade matri-
monial, que aparece substituída pela inten~~o concubinária»7s. Ele distingue a
vontade marital da vontade de realizar o ato conjugal simples ou do ius in
corpus, que para ele é urna plasma~~o técnica, isto é, jurídica, da vontade
maritaf16.
Que é essa vontade marital? Para nós n~o é outra coisa que o amor conjugal
tal como nós o consideramos. Hervada concluí: «onde há vontade marital, há
consentimento e pode haver matrimonio; contrariamente é preciso dizer que

74. BERNARDEZ CANTON, A., Curso de Derecho Matrimonial, Madrid, 1981, p. 230.
75. HERVADA, J., La simulaci6n total, en «Ius Canonicum», n, 2 (1962), p. 754.
76. HERVADA, J., idem. p. 738. Na nota 8 fazíamos urna referencia ao trabalho de
GARCIA BARBERENA, T. e a este de HERVADA, onde claramente se mostra que nao está de
acordo com o desejo dos conjuges PeI1$4f que eles pretendem o ius in corpus. em si
mesmo considerado. Aliás, o Decreto de Graciano, as Decretais e demais fontes antigas
se referem ao ,<animus maritalis» que implica além da uniao camal, o desejo de coabitar,
etc., enfim il~vontade de estabelecer urna comomdade de amor marital e nunca o animo de
dar e receber apenas o ius in corpus. fórmula técnica que só apareceu em épocas tardias.
A RELEVÁNCIA JURIDfCA DO AMOR CONJUGAL 279
onde ~ há vontade marital, nno há matrimonio ainda que se pretenda produzir
o signo externo, já que entilo fica afetada a essencia do matrimonio»77.
Esta importante considera~o nos diz que MO é estranho a sistemática tradi-
cional da legisla~no canonica de nulidade de um matrimonio por exclusáo da
vontademarital que para nós nlio representa outra coisa que a exclusáo do amor
conjugal-«elemento essencial do matrimonio» (c. 1101 § 2)- tal como nós o
entendemos.
Reflitamos, aliás, na significa~ao que tem a mudan~a operada pelo
novo código, e chegaremos a conc1usao da relevancia da exc1usao do
amor conjugal como «elementum essenciale matrimonii» (c. 1101 § 2):
12) Suprimiu-se, no tema da simu1a~ao, a referencia que na antíga leí
se fazia a «exc1usao do direito ao ato conjugal», porque esta fórmula nao
correspondia ao sentido integral -físico, afetivo e espiritual- que o
Concílio Vaticano II concedeu arela~ao conjuga!.
22) Este direito foi substituído: numaprimeira tentativa, por outro tí-
tulo: «o direito acomunhao de vida» (que para muitos autores significava
uma ressonancia daquela «íntima comunhao de vida e amor conjugal» de
que falava o Concílio Vaticano II), porque se pensava que a realíza~ao
daquela «una caro», que entranhava o ato conjugal, nao se completaria se
nao existisse uma comunhao de vida.
32 ) Optou-se, enfim, definitivamente pela expressao «um elemento
essencial do matrimonio», talvez porque a frase anterior poderia dar lugar
a equívocos. Mas em todas estas modifica~6es parece subtender-se que
dentro desses «elementos essenciais» cabe «o direito ao ato eonjugal
considerado no sentido de intereomuniea9ao pessoal e nao apenasftsieo»;
isto é, o direito ao ato eonjugal unido a um m(nimo de amor humano: e é
isto precisamente o que n6s ehamamos de «elementum amoris» ou a
«identidade m(nima do amor eonjugal» que quando exclu(da por «ato
positivo da vontade» (c. 1101 § 2) abriria a hipótese da invalidade con-
sensual.
De urna forma muito significativa Serrano, Auditor da Rota Romana,
se refere a estas mudan~as: «Certo que a comunhao é rela~ao e também
direito-dever. Mas se reduziria a nada o sentido dé renova~ao conciliar do
matrimonio e nao sairia dos moldes atuais da norma positiva (estava ainda
em vigencia o CIC de 1917), quem nao estimas se tal rela~ao impregnada

77. HERVADA, J., ídem, p. 755.


280 MONS. RAFAEL LLANo CIFUENTES

de amor e afetividade. Nao é outro ... o sentido óbvio da palavra comun-


haO»78.
De alguna maneira López Alarcón e Navarro Valls reconhecem a autonomia
do «elementum amoris» quando afmnam que «o direito ao amor de benevolen-
cia» n~o coincide com o direito «ad vitae communionem», ainda que existen-
cialmente esteja presente nela» ... e que «a exclus~o do ius ad vitae commu-
nionem se refere ao direito a mútua entrega e aceita~~o pessoal do var~o e da
mulher» ... (o «elementum amoris» está aqui incluido) «o qual acarretaria
-acrescentam- a exclus~o da causa do matrimonio e estaríamos na presenr;a de
simular;áo parcial por reserva excludente de um elemento essencial»79.
Em sentido paralelo, Viladrich, comentando a nova cláusula do Código atual
(c. 1101 § 2), quando fala da exclus~o de «algum elemento essencial do
matrimonio», comenta: esta «nova cláusula abrange o direito ao ato conjugaI;
o direito ti comunidade de vida no seu sentido essencial de co-possessáo e co-
participar;áo entre os conjuges como bem recíproco e mútuo de vida e amor
devido em justir;a» Reconhece, pois, que dentro da exclusa<> do «elemento
essencial» está a exclus~o do «elementum amoris», no sentido indicado por
ele, e que portanto, ao excluí-lo, invalidaria o matrimoni08o•
Em «El Derecho del Pueblo de Dios» anterior ao Código atuaI, Lombardía e
Hervada escrevem: o «amor concupiscentiae» conjugal atinge o seu grau mais
ínfimo, quando se quer ser conjuge, n~o movido pela conjugalidade do outro
-mas por outros bens do outro (fortuna, posiCao social, colaboraCao profis-
sional, etc.). Este tipo de amor conjugal é de grau ínfimo e a linguagem vul-
gar, ou n~o o designa com a palavra amor -chama-o interesse-, ou acrescenta
um adjetivo que o tipifica: «amor interesseiro» ... Mas «se o interesse n~o dá
lugar ao ato da vontade, pelo que se aceita a conjugalidade do outro (amor-con-
jugal reflexivo, sendo desde logo esta «dilectio» um «amor concupiscentiae»)
haverá o vício de consentimenta chamada simular;áo total»81. O matrimonio,
em decorrencia, será inválido.
Lombardía e Hervada, deste modo, parecem indicar que a exclusao do amor de
concupiscencia traz consigo a nulidade do matrimonio.
Rá de ficar claro que a doutrina canonista em geral e os próprios tra-
balhos preparatórios do Código nao cogitaram em nenhum momento de
subordinar a validez do matrimonio a presen~a do amor: «matrimonium
non facit amor sed consensus». Para a validez do vínculo nao é preciso
casar com amor; muito menos por amor. Mas parece-mos que a dignidade
do sacramento exige que nao se exclua um mínimo de amor. Quando al-

78. SERRANO RUIZ, J.M., Curso de Derecho Matrimonial y Procesal Can6nico.


(Incapacidad y Exclusi6n: afinidades y divprgencias entre los grandes temas de nulidad del
matrimonio). Salamanca 1982, p. 184.
79. LoPEZALARCON, M.-NAVARRO VALLS, R., O.c., pp. 178 e 179.
80. VILAbRICH, Comentario a o.c. 1101, '" 665.
A RELEVÁNCIA JURIDfCA DO AMOR CONJUGAL 281

guém casa por ódio, ou com manifesta frieza e aversao, desejando talvez
a estrutura jurídica do matrimonio, mas afastando-se do que representa
urna comunidade de vida e amor, ou quando igualmente um dos nubentes
sofre urna anomalia, como o homossexualismo ou o sadismo82 que o
impede de amar verdadeiramente o outro conjuge; ou quando estejam pre-
sentes outras causas semelhantes, a estabilidade do «consortium totius
vitae» fica abalada, a dignidade e felicidade do consorte inocente com-
proinetidos, e igualmente degradada a sacramentalidade do matrimonio,
símbolo do amor humano e divino de Cristo pela Igreja. Se a isto se une a
exclusao por «um ato positivo da vontade» (c. 1101 § 2) -requisito
jurídico indispensável- parece-nos que existem os pressupostos
necessários para invalidar o matrimonio por exclusao de «um elemento
essencial do matrimonio».

VI. A RELEVANCIA DO AMOR NAS CAUSAS DE NULIDADE DO


MATRIMÓNIO

Por último nos referiremos el relevancia que tem a ausencia do amor


como elemento de prova nas causas de nulidade do matrimonio por de-
feito de consentimento.
12) Processualmente parte-se de modo habitual de um princípio como
este enunciado por Jullien: «ninguém costuma casar com a pessoa que
odeia»83, ou deste outro recolhido de urna senten~a de Pinna: «O
matrimonio é, a diferen~a dos demais contratos, urna uniao de mútuo
amor»84, e, em concordancia com outros vários semelhantes, ao seguinte
especificado por Anné: «É próprio que o matrimonio se fa~a com
amor»85.
22) Daí se pode deduzir que a presen~a do amor conjugal serve de
presun~ao de matrimonio válido. Por isso na senten~a «coram» Manmicci
se diz que «provada a existencia do amor presume-se inútil continuar as
alega~6es pela nulidade pois provado o amor perde todo fundamento

81. Coram JULLIEN, 9 de dezembro de 1935, vol 27, D. 76, n. 2, p. 639.


82. SERRANO RUIZ, J.M., o.c., pp. 175 ss. mostra como as anomalías sexuais po-
dem tanto entrar no capítulo da incapacídade como no da exclusao.
83. Coram JULLIEN, 9 de dezembro de 1935, vol. 27, D.76, n. 2, p. 639.
84. Coram PINNA, 22 de dezembro de 1952, vol. 44, D. 103, n. 2, p. 703.
85. Coram ANNE, 8 de junho de 1963, vol. 55, D. 78, n. 7, p. 436.
282 MONS. RAFAEL LLANo ClFuENTEs

qualquer comentário sobre a possibilidade de existir um consentimento


simulado ou viciado pelo medo»86. Esta presun~ao é um princípio con-
sagrado nas decisOes rotais 87 •
3º) Em sentido inverso define urna senten~a coram Hindringer se-
gundo a qual «é comum e frequentemente definido na nossa jurispruden-
cia que a aversao e o ódio de um esposo ao outro constitui urna presun~ao
pergrave (isto é, muito grave) de que houve um casamento for~ado»88.
4º) Entre as fórmulas utilizadas pela jurisprudencia da Rota Romana
para indicar que a falta de amor ou a aversao é indício de um consenti-
mento viciado podem destacar-se as seguintes: «a falta de amor é indício
de que a vontade nao foi espontanea ou libre»89, «a constante denega~ao
de qualquer amor é indício contrário a vontade de casar»90; «a falta de
amor é indício de positiva aversao»91.
5º) Existem muitas senten~as em que se deu por provada a existencia
de medo mediando apenas a prova de aversao92. Paralelamente a simples
falta de amor é suficiente para considerar feita a prova indireta e proceder
aprova direta da coa~ao exterior.
Goti Ordeñana conclui depois de um apurado estudo sobre as sen-
ten~as da Romana Rota neste particular que «muito embora a juris-
prudencia recorra ao princípio de que o consentimento e nao o amor é o
que realiza o matrimonio, no entanto no exame de cada caso se estuda o
amor conjugal como elemento que há de estar presente no momento es-
timativo e deliberativo e que condiciona que seja ou nao válido, pelo que
nao se deve considerar como princípio contraposto ao amor».
«Conseqüencia da constante estima do amor conjugal como elemento
prévio do ato conjugal, é que a jurisprudencia chegou a enunciar este

86. Coram MANNUCCI, 22 de junho de 1926, vol. 14, D. 26, n. 9, p. 212.


87. Cfr. 0011 ORDEJÍlANA, 1., o.c, pp. 199 s.
88. Coram HINDRIGER, 8 de junho de 1925, vol. 17, D. 19, n. 4, p. 232.
89. Coram CATTANI-AMADORI, 26 de maio de 1913, vol. 5, D. 29, n. lO, p. 329.
90. Coram CHIMENTI, 28 de janeiro de 1920, vol. 12, D. 4, n. 2, p. 20.
91. Coram SEBASTIANELLI, 20 de outubro de 1916, vol. 8, D. 29, n. 6, p. 330.
92. Vid. por exemplo coram MASSIMI, 30 de junho de 1928, vol. 20, D. 30, n. 4, p.
274; coram MANNUCCI, 15 de janeiro de 1929, vol. 21, D. 3, p. 25; coram QuATRACOLO,
7 de agosto de 1929, vol. 21, D. 59, n. 9, p. 499; coram HEARD 18 de julho de 1942,
vol, D. 60, n. 2, p. 672; coram PEcORARI, 23 de abril de 1947, vol. 39, D. 34, n. 8, p.
264; coram BONET, 7 de maio de 1955, vol. 47, D. 95, n. 6, p. 386.
A RELEVANCIA JURIDfCA DO AMOR CONnJGAL 283

outro princípio, complementar do anterior: é próprio do matrimonio que


se fa~a por amor ou com a fundada previsao de que este vai nascer»93.
Deduzimos nós de tudo isto, ao menos, urna conclusao muito segura
em termos processuais: sobre um matrimOnio no qual está ausente o amor
no momento da celebrar;áo gravita a séria suspeita de que tem algum de-
feito ou vfcio no consentimento e, outrossim, que a ausencia do amor
pode ser, positivamente, um indfcio dafalta de consentimento livre.

VII. SÍNTESE DE NOSSA POSI<;ÁO

1. A importancia que tem as sumido o tema do amor conjugal e a sua


relevancia jurídica é de tal ordem que pode ser considerado um daqueles
«sinais dos tempos» a que se referia o Concílio Vaticano 11. Mas é um
ponto muito delicado em que é necessário distinguir tanto o conceito do
amor quanto a impossibilidade de identificar o amor com a essencia do
matrimonio. A jurisprudencia, porém, deverá levar em considera~ao, sem
dúvida, a nova coloca~ao do código em que se substitui o «ius in corpus»
por esse outo «ius ad totius vitae consortium».
2. O «ius in corpus» de que falava o c. 1081 § 2 do CIC de 1917 foi
suprimido na sua antiga formula~ao, excessivamente formalista. Mas,
sem dúvida, ficou incorporado dentro do conceito do consortium totius
vitae, que pela sua própria índole natural se ordena ao bem dos conjuges
e a procria~ao e educa~ao da prole. Porque nao há possibilidade de que
essa comunhao e educa~ao da prole. Porque nao há possibilidade de que
essa comunhao íntima -espiritual e corporal- se realize, e muito menos a
procria~ao, se nao existe o direito arela~ao sexual.

3. Mas esse «ius in corpus», já nao se pode entender hoje da maneira


como se entendia no contexto do código de 1917. A incorpora~ao ao con-
sortium totius vitae nao é apenas terminológica. Pelo contrário foi reab-
sorvido a encarnado por toda urna concep~ao personalística do
matrimonio que eleva.o ato sexual até adignidade do amor.
Este idéia é marcante no novo Código e pode ser destacada em tres
pontos principais:

93. Gon ORDEJ'il'ANA, O.C., p. 292.


284 MONS. RAFAELLLANOCIFUENfES

1º) na troca da locu~ao «ius in corpus» (c. 1081 § 2), ClC (1917),
pela fónnula «entrega e aceita~ao mútua dentro do consortium totius vitae
(c. 1057 § 2 e c. 1055 § 1 ClC 1983);
2º) na mudan~a operada pelo c. 1101 § 2 (ClC 1983), que substitui a
expressao «ato conjugal» (c. 1086 § 2 ClC 1917) por «um elemento
essencial do matrimonio»;
3º) na introdu~ao da cláusula humano modo (c. 1061 § 1, ClC 1983)
-que nao existia no Código anterior (Vid. c. 1051 § 1, ClC 1917)-
quando se refere ao matrimonio consumado: a consuma~ao nao se dá se o
ato conjugal nao se realiza de modo humano. Observa-se como o
Legislador quis impedir que a men~ao do «ato conjugal» aparecesse no
corpo nonnativo, pennitindo apenas que tal acontecesse quando acom-
panhado do adjetivo humano; igualmente salta aos olhos que assumiu a
mesma posi~ao a respeito do ius in corpus: a expressao foi suprimida de
vez e substituída por outras que apontem claramente para o amor conjugal
considerado integralmente nos seus aspectos sexuais, volitivos e afetivos.
Tudo isso leva a pensar claramente que o o ato conjuga! deve ser inserido
dentro do amor conjuga! e através debe ser interpretado. Como escreve
Serrano: «Se antes pode ter havido alguma razao para estimar o
matrimonio urna alian~a limitada a faculdade sobre os atos próprios da
gera~ao, hoje nao há dúvida quanto aimplica~ao de toda a pessoa (no seu
ser mais essencial no que se define como tal) nele; de onde se enriquecem
ao mesmo tempo o própri0 matrimonio e a característica rela~ao con-
jugal»94.
4. O amor, por sua vez -de acordo com Fumagalli- deve ser incluído,
como urna espécie dentro do genero consortium totius vitae95 • Nesta
perspectiva pode chegar a fonnar um elemento de relevo jurídico maior
do que até agora se lhe tem concedido.
5. Sustentamos que a identidade mínima do amor conjuga!, que ao
ser excluída anularla o matrimonio, poderia definir-se por quatro elemen-
tos indispensáveis e inseparáveis:
1º) A disponibilidade para o relacionamento sexual (que incluíria a
nao-exclusao do ius in corpus);

94. SERRANO RUIZ, 1.M., O.C. , p . 190.


95. FUMAGALLI CARULLI,1ntelletto e volonta .. . O .C., p. 228
A RELEVANCIA JURlDtCA DO AMOR CONruGAL 285

2º) A intencionalidade de um mínimo de affectus maritalis, que per-


mitisse um relacionamento humano modo (no qual consideramos implíci-
to o desejo potencial de procria~ao ou pelo menos a nao-exclusao volun-
tária da prole). Esta condi~ao nao se verificará se alguém casa, por exem-
plo, para fazer sofrer o outro conjuge, por ódio, sadismo, etc.;
3º) A intencionalidade de um mínimo de coabita~ao e de ajuda mútua
necessário para conseguir o relacionamento sexual e o affectus maritalis a
que se referem os dois elementos anteriores (que incluiria a nao exclusao
do direito a esse mínimo necessário).
4º) Urna intencionalidade de permanencia e exclusividade no amor,
porque, caso contrário, o consentimento se prestaria para urna uniao for-
nicária, concubinária, polígama ou poliandrica.
Nao nos parece, porém, que dentro da identidade mír.~ma do amor
conjugal deva entrar o amor de benevolencia integralmente considerado.
6. «Em referencia ao matrimonio in facto esse. O amor nao tem
nenhuma relevancia jurídica: «o vínculo conjugal -sao palavras de Paulo
VI- nao depende absolutamente do amor e permanece sempre ainda que a
afei~ao do amor se tenha totalmente extinguido»96.

7. «Em rela~ao ao matrimonio in fieri destacaremos vários pontos:


a) É válido o princípio matrimonium nonfacit amor sed consensus. O
matrimonio é constituído pelo consentimento, e nao pelo amor, mas o
amor -como virtus unitiva de acordo com S. Tomás97 - pode e deve in-
formar o consentimento.
b) Se o consentimento ordinariamente deve estar informado pelo
amor também pode extraordinariamente estar deformado pelo amor.
Neste sentido o amor pode influir, e de fato influi consideravelmente na
qualifica~ao do consentimento. A influencia poderia ser determinada em
dois núcleos:
1º) o error pervicax
2º) a simuIafao
c) o error pervicax -Um sobre a concep~ao do amor profundamente
deformante- pode trazer consigo urna inten~ao implícita contra a indisso-

96. PAULO VI, Alocu~lio «Alla Inaugurazione dell'ano Giudiziario» 1976, O.C.,
p.299.
97. S. TOMAS I-TI, 9, 25 a. 2, n. 2.
286 MONS. RAFAEL LLANo ClFuENTEs

lubilidade e unidade do matrimonio, redundando na nulidade do con sen-


timento se «determina a vontade» de acordo como o c. 1099.
d) No respeitante asimula~áo consideramos cabíveis concluir dentro
da exclusao de algum «elemento essencial do matrimonio» (c. 1101 § 2),
o «elementum amoris». De forma que nao parece contrariar a sistemática
geral do direito matrimonial afIrmar que, se se demonstra que existe um
ato positivo da vontade pelo qual se tenciona excluir, ao menos virtual-
mente (saltem virtuali), a identidade mínima do elementum amoris, o con-
sentimento é inválido.
e) Dentro dessa identidade mínima nao podemos incluir o amor de
benevolencia in genere, muito menos se entendido de forma integral e
perfeita, mas apenas aquela parcela sufIciente para garantir o compro-
misso de permanencia e exclusividade.
f) Todas estas coloca~Oes doutrinais vindas de diferentes angulos
poderao ajudar a jurisprudencia a delimitar com mais precisao e cuidado o
conteúdo da exclusao do elementum essentialem como novo caput nulli-
tatis do consentimento.
8. Em termos processuais podemos afirmar que a jurisprudencia
chegou a conclusao de que o principio do amor está habitualmente inte-
grado no princípio do consentimento. Isto é, que se é praxe dizer que «é
o consentimento e nao o amor o que faz o matrimonio», também é regra
acrescentar que «é próprio do matrimonio que se fa~a por amor ou com a
fundada previsao de que este vai nascer». Por tudo isto deduzimos, como
conclusao segura, que, sobre um matrimonio no qual está ausente o amor
no momento da sua celebra~ao, gravita a séria suspeita de que tem algum
defeito ou vício no consentimento e, outrossim, que a ausencia do amor
pode ser, positivamente, um indício de falta de consentimento livre.
9. Somos conscientes dos perigos que urna imprecisa interpreta~ao
do elementum amoris pode trazer para a solidez do matrimonio, mas tam-
bém devemos levar em alta considera~ao, por um lado, a dignidade do
consentimento matrimonial -defendendo-o de deturpa~Oes degradantes e
de simula~oes caricaturescas- e, por outro lado, a fidelidade ao pensa-
mento do Legislador que quis acunhar o novo direito matrimonial no pro-
fundo sentido humano e pastoral do Concíclio Vaticano II.

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