TCC - Fernando Mesquita
TCC - Fernando Mesquita
Mairiporã
2021
FERNANDO JOAQUIM COSTA MESQUITA
Mairiporã
2021
FERNANDO JOAQUIM COSTA MESQUITA
Examinadores:
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Prof. Dr. Pe. Roberto Merizalde Escallón - IFAT
______________________________
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______________________________
Resultado
This inquiry aims to study, laconically, the moralizing capacity of Gregorian Chant in the
spirit of man. We dedicate the first part to the examination of music in various field of study
and human activities. In the second place, we analyze the history and specific characteristics
of Gregorian Chant. Finally, we reflect upon this moralizing property of music in general and
of Gregorian Chant in specific.
a. artigo
a.C. antes de Cristo
cap. capítulo
Cf. Conferatur
d.C. depois de Cristo
ed. edição
Ibid. Ibidem
Id. Idem
n. número
Op. cit. Opus citatum
p. página ou páginas
q. questão
S. Th. TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiæ.
séc. século ou séculos
t. tomo
Trad. Tradutor
v. volume
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1. A MÚSICA SOB O PRISMA FILOSÓFICO .................................................................. 12
1.1. Primitivas visualizações da música ................................................................................ 12
1.2. Conceito Pitagórico.......................................................................................................... 12
1.2.1. Matematização da Música .............................................................................................. 13
1.2.2. Música e Filosofia .......................................................................................................... 13
1.3. Conceito Cosmológico de Música ................................................................................... 14
1.4. Conceito Metafísico de Música ....................................................................................... 15
1.5. Conceito Antropológico de Música ................................................................................ 15
1.5.1. Papel artístico e tendencial ............................................................................................. 17
1.5.2. Efeito Medicinal ............................................................................................................. 17
1.6. Conceito Aristotélico ....................................................................................................... 18
1.6.1. Papel Social .................................................................................................................... 18
1.6.2. Papel Educativo .............................................................................................................. 19
2. CANTO GREGORIANO .................................................................................................. 22
2.1. História ............................................................................................................................. 22
2.1.1. Herança Judaica e Greco-Romana .................................................................................. 22
2.1.2. Formação ........................................................................................................................ 23
2.1.3. Idade de Ouro ................................................................................................................. 24
2.1.4. Decadência...................................................................................................................... 25
2.1.5. Restauração ..................................................................................................................... 26
2.2. Características ................................................................................................................. 27
2.2.1. Simplicidade e Beleza .................................................................................................... 27
2.2.2. Ritmo do pensamento ..................................................................................................... 28
2.2.3. Musicalidade da oração .................................................................................................. 29
3. FORÇA MORAL DO CANTO GREGORIANO ............................................................ 31
3.1. Força Moral da Música em Geral .................................................................................. 31
3.1.1. Experiência agostiniana .................................................................................................. 32
3.2. Particularidades do Gregoriano ..................................................................................... 34
3.2.1. Música da reflexão.......................................................................................................... 35
3.2.2. Oito modos, oito estados morais .................................................................................... 36
3.2.3. Cântico Divino................................................................................................................ 39
CONCLUSÃO......................................................................................................................... 41
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 42
11
INTRODUÇÃO
Como definir a música? Pelas suas causas, pelos seus instrumentos, pelos seus efeitos
no homem? Torna-se difícil circunscrever num tão curto trabalho tamanho conceito.
Comecemos por remontar às primeiras noções, examinemos as diferentes concepções dos
filósofos e aprofundemo-nos no conceito aristotélico.
Nos povos antigos encontramos músicas que primavam pelo forte ritmo, enquanto que
as melodias eram mais simples. Com o inegável progresso da linguagem falada, a música
também se desenvolveu, e a melodia passou a ter primazia. O progresso dos diversos idiomas
não constituiu um obstáculo à música mas, ao contrário, ambos progrediram conjuntamente.
Isso porque, até em nossos dias, a música tem uma capacidade superior de transmitir
inúmeros conceitos sensíveis e inteligíveis de que o simples linguajar carece.
Por outra parte, concomitante à função social e linguística, surge também a função
litúrgica da música. O modo mais idóneo que o homem primitivo encontra para louvar um ser
superior é atribuído também à música.2
1
PAHLEN, Kurt. História Universal da Música. São Paulo: Melhoramentos, 1965, p. 14.
2
Cf. CHAMPIGNEULLE, Bernard de. Histoire de la Musique. Paris: Presse Universitaire de France, 1951, p. 6-
7.
13
3
MATTÉI, Jean-François. Pitágoras e os Pitagóricos. Trad. Contança Marcondes Cesar. São Paulo: Paulos,
2000, p. 101.
4
Cf. Ibid., p. 102-105.
5
ABBAGNANO, Nicolás. Historia de la Filosofía. 4. ed. Barcelona: Hora, 1994, v. 1, p. 24. (tradução pessoal).
14
A revolução das sete esferas produz, com efeito, uma suave harmonia, mas
não a percebemos porque não se produz no ar, único meio em que
percebemos sons. Não obstante, diz-se, nossos intervalos musicais derivam
dos sons das esferas celestes. As sete notas da escala vêm daí. Há um tom da
Terra à Lua; um semitom da Lua a Mercúrio; um semitom de Mercúrio a
Vênus; três semitons de Vênus ao Sol; do Sol a Marte, um tom; daí a Júpiter,
um semitom; daí a Saturno, um semitom; daí ao círculo do Zodíaco, três
semitons. Assim como o mundo se compõe de sete tons e nossa música de
sete notas, nós nos compomos de sete ingredientes: os quatro elementos de
nosso corpo e as três faculdades de nossa alma, que a arte musical tempera
naturalmente.6
Por isso mesmo, com razão se diz que “compreender a música é compreender a ordem
do Universo”,8 pois todos os seres se relacionam com todos os que o envolvem, da mesmo
forma que numa polifonia a harmonia se transmite dependendo da relação de uma voz com as
6
GILSON, Etienne, A Filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1995, p. 396.
7
BENEDICTUS XVI, 2006. Discurso ao final de um concerto oferecido em sua honra oferecido pelo
Presidente de Alemanha. 18 nov. 2006. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/november/documents/hf_benxvi_spe_2006111
8_quartett-berlin_sp.html>. Acesso em: 15 out. 2011.
8
YORK, Tomás de, apud. BRUYNE. Op. cit., p.136: “musicam nosse nihil aliud nisi cunctarum rerum ordine,
scire”. (tradução pessoal).
15
outras.
Deveras, cada movimento dos seres individuais repercute em todo o universo, como
numa sinfonia instrumental cada nota afetará toda a harmonia geral da peça.
Sob outro prisma, a harmonia musical, analisada do ponto de vista metafísico, serve de
base para diversos princípios ontológicos.
Na relação matéria e forma, as formas, enquanto unem as partes de um todo, têm seu
paralelo nas relações harmônicas que juntam sons diferentes num único acorde.10
Posto que, tudo o que é, se mantém unido graças à ordem que permite que
cada parte concorde perfeitamente com as outras, a harmonia está em tudo,
no universo e em cada um de seus elementos: por conseguinte, em toda a
criatura há harmonia.11
9
AUVERGNE, Guillaume de, apud, BRUYNE. Op cit., p. 136: “Cum intuearis decorem et magnificentiam
universi... invenies ipsum universum esse velut canticum pulcherrimum... et creaturas pro varietate mira
concordia consonantes concentum nimiae jucunditatis efficere”.
10
Cf. 10 BRUYNE. Op. cit., p. 77.
11
Ibid.
12
Cf. REOMÉ, Aureliano de, apud, BRUYNE. Op. cit., p. 77: “Deprehendis quod omnis creatura mira
harmonía sociata sibi conveniat”.
13
Cf. Ibid., p. 144: “A teoria do prazer, em geral, é de natureza estética ou musical. Os historiadores do
pensamento medieval descuidaram parcialmente este aspecto clássico da psicologia: de novo Boécio traslada a
este terreno a doutrina pitagórica que se baseia na música humana, isto é, na harmonia que une a alma ao corpo”.
16
amado”.14
Por outro lado, comumente, a música se subdivide em três grandes elementos: o ritmo,
a melodia e a harmonia. Ora, no homem, o ritmo tem especial relação com o corpo; a melodia
com a alma; e a harmonia, como se trata da relação de vários sons, relaciona-se sobremaneira
com a união de ambos,15 e também com o homem enquanto “microcosmo”, no qual se
compreende também a “música celeste”.16
Consequentemente, compreende-se que das sociedades primitivas, em que a alma
apenas se vislumbrava, surgissem músicas em que o ritmo ocupava um lugar primordial,
enquanto que de sociedades menos “corpóreas” as músicas tornam-se mais melodiosas que
ritmadas.17
Quanto ao ritmo, é necessário uma distinção que os antigos mantinham entre os ritmos
do corpo e os ritmos da alma, por onde os primeiros influenciavam diretamente os segundos,
e os primeiros eram a manifestação dos ritmos do coração.18
Portanto, uma vez conjugados os três elementos musicais, vemos na música uma
incomparável expressão do íntimo do homem.
14
Ibid., p. 144-145. “Música... est illa naturalis amicitia qua anima corpori non corporeis vinculis sed affectibus
colligatur sica haec est ut ametnr corpus”.
15
Encontramos, ainda, menção a esta ideia com a terminologia “homem interior” para referir a alma e “homem
exterior” ao referir o corpo. Cf. BRUYNE. Op. cit., p. 75.
16
Cf. GILSON. Op. cit., p. 396.
17
Aqui caberia uma menção ao canto gregoriano como o canto da alma por excelência, já que nele o ritmo é
praticamente ausente, porém, essa temática será desenvolvida ao longo do segundo e terceiro capítulos.
18
Cf. BRUYNE. Op. cit., p. 28.
19
SHOPPENHAUER, Arthur, apud SACKS, Olivier. Alucinações musicais. Trad: Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia de Letras, 2007.
20
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 23 mar. 1970. (Arquivo ITTA-IFAT).
17
Essas tendências desordenadas, que por sua própria natureza lutam por
realizar-se, já não se conformando com toda uma ordem de coisas que lhes é
contrária, começam por modificar as mentalidades, os modos de ser, as
expressões artísticas e os costumes, sem desde logo tocar de modo direto —
habitualmente, pelo menos — nas ideias.22
Todavia, apesar de todas as artes possuírem esse efeito tendencial, pode-se atribuir à
música a primazia, pois sem grande esforço, um indivíduo pode afastar o olhar das influências
das artes visuais, ao passo que da arte sonora o receptor necessita fazer um enérgico ato de
rejeição e tapar os ouvidos para não ser afetado.
21
Por exemplo: “A música de Mozart encerra toda a tragédia de ser homem”. RATZINGER, Joseph. La Sal de
la Tierra.
22
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. 6. ed. São Paulo: Retornarei, 2008, p. 41.
(grifo nosso).
23
Ibid., p. 85.
18
Ademais, até em nossos dias, especialistas são afins a esta tese, provando que, de fato,
a música quando bem utilizada pode ser útil até para a saúde:
Diante desta perspectiva, fica patente a força salutar que a música exerce no homem.
24
TAME, David. O poder oculto da música: a transformação do homem pela energia da música. Trad. Mendes
Cajado. São Paulo: Cultrix, 1984, p. 146.
25
Ibid.
26
Quanto ao papel moral , não o aprofundaremos aqui pois será tratado com mais ênfase no terceiro capítulo.
27
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 8. (tradução pessoal).
19
Contudo, não é suficiente afirmar que algo é importante para a educação unicamente
28
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Conversa. São Paulo, 8 jul. 1999. (Arquivo ITTA-IFAT). O trecho citado
sofreu alterações mínimas ao ser passado da linguagem falada à linguagem escrita, sem prévia revisão do autor.
29
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 26 jan. 1995. (Arquivo ITTA-IFAT).
30
Apesar do tema deste subtítulo ser praticamente uma subdivisão do anterior decidimos separá-lo em função de
seu aprofundamento e sua extensão. Ademais, tomaremos por base os comentários de Aristóteles sobre a
educação contidos na Política.
31
ARISTÓTELES. A Política. VIII, 2. Trad. Nestor Silveira Chaves 2 ed. Bauru: EDIPRO, 2009, p. 270.: “ Διò
καὶ τὴν μουσικὴν οἷ πρότερον εἰς παιδέιαν έταξαν οὐχ ὡς ἀναγκαῖον (οὐδέν γὰρ ἔχει τοιοῦτον) οὐδ’ ὡς
χρήσιμον, ὥσπερ τὰ γράμματα πρὸς χρηματισμὸν καὶ πρὸς οἰκονομίαν καί πρὸς μάθησιν καὶ πρὸς πολιτικὰς
πράξεις πολλάς · δοκεῖ δὲ καὶ γραφικὴ χρήσιμος εἶναι πρὸς τὸ κρίνειν τὰ τῶν τεχνιτῶν ἔργα κάλλιον · οὐδ’ αὖ
καθάπερ ἡ γυμναστικὴ πρὸς ὑγίειαν καὶ ἀλκήν · οὐδέτερον γὰρ τούτων δρῶμεν γιγνόμενον ἐκ τῆς μουσικῆς.
Λείπεται τοίνυν πρὸς τὴν ἐν τῇ σχολῇ διαγωγήν, εἰς ὅπερ καὶ φαίνονται παράγοντες αὐτήν · ἣν γὰρ οἶονται
διαγωγὴν εῖναι τῶν ἐλευθέρων, ἐν ταύτῃ τάττουσιν. Διόπερ Ὅμηρος οὕτως ἐποίησεν · άλλ’ oΐov μέν ἐστι καλέῖν
ἐπὶ δαῖτα θαλείην · καί οὕτω προειπὼν ἑτέρους τινὰς « oΐ καλέουσιν ᾀοιδόν » φησίν, «ὅ κεν τέρπησιν ἅπανιας. »
Καὶ ἐν άλλοις δέ φησιν Ὀδυσσεὺς ταύτην ἀρίστην εἶναι διαγωγήν, ὅταν εὐφραινόμενων τῶν ἀνθρώπων «
δαιτυμόνες δ’ ἀνὰ δώματ’ ἀκουάζωνται ἀοιδοῦ ἥμενοι ἑξείης. »”.
20
por ser “melhor que nada”. Será realmente útil para a educação? Servirá meramente como
recreação e distração? Ou será um simples passatempo?32
Entrevê-se, nesse sentido, uma relação entre a música e a felicidade: muito embora a
música não seja necessária para a obtenção da felicidade, em nada lhe é oposta, e constitui,
portanto, um precioso auxílio.
Além disso, é inegável que a música pode inspirar no íntimo de alguém triste e
desalentado novas energias e novo vigor.
Museu disse que o maior prazer dos mortais é o canto. É com razão, pois,
que se admite a música nas reuniões e nos divertimentos, pois que ela faz
nascer a alegria. Este motivo bastaria por si só para fazer com que os jovens
aprendessem a música.34
32
Cf. Ibid., p. 269.
33
Ibid., p. 274.
34
Ibid.
35
Ibid., p. 277. (grifo nosso).
21
Apesar deste reconhecido “poder moral” da música ser comum a todos os gêneros
musicais, certamente haverá alguns em tal propriedade se manifeste mais. E, quem estaria
mais interessado em descobri-lo que a Igreja Católica, mestra e orientadora suprema dos
costumes morais?
Por esse motivo, dedicamos as próximas linhas ao estudo desse peculiar género de
música que, a nosso ver, é nele que mais se manifesta essa propriedade moralizante.
22
2. CANTO GREGORIANO
A música, enquanto um todo, pode ser vista de inúmeros aspectos, alguns tratados no
capítulo anterior. Contudo, entre os distintos gêneros musicais pareceu-nos essencial
desenvolver o Canto Gregoriano pois este é sem dúvida dos mais misteriosos estilos
existentes.
É bem verdade que possui uma finalidade litúrgica bem definida,36 e parece simplório
à primeira vista. Porém, possui uma quase irresistível capacidade de penetração no interior do
homem, reprime as más tendências e impulsiona as boas. E além disso, do ponto de vista
matemático, tem uma amplitude de escalas superior à generalidade das músicas hodiernas.
2.1. História
Apesar de sua origem ocultar-se nos enigmas da história, não se tendo o século exato
de seu nascedouro, sabe-se, isto sim, que sua “pré-história” está vinculada à cultura musical
hebraica e greco-romana.
36
Cf. GILSON, Etienne. Introdução às artes do belo: O que é filosofar sobre a arte? Trad. Érico Nogueira. São
Paulo: É Realizações, 2010, p. 158.
37
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 9. (tradução pessoal).
38
Ibid., p. 8. (tradução pessoal).
23
abandonadas, e até condenadas por alguns santos dos primeiros séculos do cristianismo.39
Fazendo par com a tradição hebraica, segundo a qual os salmos eram cantados por
solistas e o povo cantava uma aclamação final, o sistema sírio também teve seu papel,
segundo este, o salmo era cantado em dois coros que se uniam no final para o refrão ou
antífona.40
Começavam a surgir as regras estéticas do canto gregoriano, apesar de que
provavelmente os primeiros cristãos não estavam muito preocupados com a teoria ou
esquematização desse novo estilo musical, pois seu principal objetivo era louvar o Deus
Encarnado da melhor forma possível.41
2.1.2. Formação
Apesar dos enigmas históricos mencionados, tudo leva a crer que já no período em que
os cristãos viviam em catacumbas, começou a formar-se um incipiente canto litúrgico
antecessor do Gregoriano.
Na brilhante metrópole de Roma, nas suas magníficas ruas e praças, nos seus
palácios, nos seus locais de diversão, nos seus quartéis e bairros pobres,
desaparece o mundo antigo, devagar e quase insensivelmente. Ao mesmo
tempo nasce nos subterrâneos da cidade, nos corredores secretos, nas
catacumbas, uma nova época da humanidade. Ali se reúnem em número
cada vez maior, diariamente, os discípulos do Mestre de Nazaré. (...) Mas
toda verdadeira revolução necessita de música. Também o cristianismo, a
mais profunda revolução da humanidade, em milhares de anos, não podia
dispensá-la.42
A partir do séc. IV, inicia-se, com dados históricos mais precisos, propriamente o
período de “formação” do Gregoriano, encerrando-se em finais do séc. VI, com São Gregório
Magno.
Neste período, destacam-se os hinos compostos por Santo Ambrósio que, estando
escondido numa Igreja com outros católicos durante as perseguições arianas, compunha hinos
de louvor a Deus para encorajar os fiéis a enfrentarem a morte. A grande maioria das
39
Por exemplo: S. Clemente de Alexandria condenava o cromatismo, como inconveniente à gravidade cristã. Cf.
SOUZA, José Geraldo de. Apontamentos de Música Sacra. São Paulo: Salesiana, 1950, p. 23-24.
40
Este sistema foi introduzido pelo Papa Dâmaso em Roma e por S. Ambrósio em Milão. Cf. SOUZA. Op.cit.,
p. 10.
41
Cf. BRUYNE. Op. cit., p. 54-55: “Parece evidente que nas escolas eclesiásticas, onde se devia aprender canto,
se difundiam regras estéticas junto a essas indicações técnicas que desembocariam, entre outras coisas, em
notações musicais novas. Em suas origens, a música eclesiástica estava submetida a uma triple influência:
judaica, síria e grega. Unicamente conhecemos, através de documentos diretos, a teoria musical helênica: chegou
à Idade Média em três ondas sucessivas e constitui a base de una concepção estética do mundo que abarca
infinitamente mais que o exclusivo domínio das percepções sonoras.”
42
PAHLEN. Op. cit., p. 32.
24
Esta etapa inicia-se no séc. VI, com São Gregório Magno e termina no séc. XIII. Foi a
época de seu apogeu, chamada a Idade de Ouro do Gregoriano. Com o impulso dos Papas,
além do esforço e talento de tanta gente, o novo estilo musical toma nova vida. A partir daqui
o então “Canto Romano” passa a chamar-se “Gregoriano”, em função de S. Gregório, patrício
romano, monge beneditino e Papa; o qual se dedicou à importante tarefa de organizar os
cantos romanos, à correção dos cantos antigos, à composição de cantos novos e à sua
codificação, organizando um “Antifonário”, que será a base da liturgia católica romana até
nossos dias. O termo “gregoriano” é encontrado pela primeira vez nos escritos de Guilherme
de Hirschau, entretanto, Leão IV (séc. IX) já o usava.45
Desde este momento (séc. VIII e IX), o canto gregoriano se estenderá muito
rapidamente pelo Ocidente. Os mosteiros beneditinos, que surgem em todas
as partes, tornam a sua divulgação. Em Roma se constitui um centro de
monitores que ensinam a toda a Cristandade. Verdadeiras escolas de música
são então fundadas, que terão um papel importante na expansão do canto
gregoriano. [Entre os principais centros, destacamos] Rouen, onde brilhará
S. Remígio, Metz, e sobretudo o mosteiro de Saint Gall, armazém de
músicos e poetas, a cujo respeito a tradição ensina que esteve um cantor
chamado Romano, enviado pelo Papa a Carlos Magno, com uma cópia do
famoso Antifonário.46
Grande auxílio à expansão deste estilo musical foram os missionários, esparsos pela
43
Cf. SOUZA. Op. cit., p. 9-10.
44
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 9. (tradução pessoal).
45
Cf. BEWERUNGE, Henry. "Gregorian Chant". The Catholic Encyclopedia. Vol. VI. New York: Robert
Appleton Company, 1909. In: GOYARD, Louis. Fundamento histórico de la legislación actual en materia de
música sacra: Tese de mestrado. - Instituto Superior de Direito Canônico da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro, 2011, p. 90. (tradução pessoal).
46
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 11. (tradução pessoal).
25
Europa, onde quer que estivessem, não só transmitiam o Gregoriano, mas sabiam utilizar-se
da força moral deste canto para obter inúmeras conversões por seu meio.
Neste período também se desenvolve a escrita musical. As notas, que antes se
designavam pelas letras do alfabeto tomam as denominações que têm hoje por obra de
Guido,47 baseado no hino Utqueant laxis, dedicado a S. João Batista, muito conhecido na
época.48
A maioria dos cânticos para as missas foi composta nestes séculos.
2.1.4. Decadência
Desde o séc. XIII até à segunda metade do séc. XIV, houve um grande declive do
canto gregoriano. O novo estilo de música eram as cançonetas dos trovadores, as quais
transmitiam apenas os aspectos alegres e triviais da vida.
O canto gregoriano, que tão fielmente refletiu o ideal dos monges da vida
bem-aventurada no além, recua cada vez mais para os mosteiros onde esse
ideal será conservado. A nova música burguesa, da cidade, é uma afirmação
ainda mais forte da vida transitória do que a oferecida pelos trovadores.
Apesar disso, muitas vezes são os seus temas de natureza religiosa, porque o
homem não cessa de crer em Deus.49
Com o progresso artístico, os manuscritos gregorianos iam sendo postos de lado. Sua
execução tornava-se menos aprazível e, cada vez menos se entendia essa misteriosa
linguagem musical. Com o desprezo que o Renascimento ostentava por tudo o que era
medieval, perdeu-se a tradição.
47
Guido (995-1050), monge benedito, natural de Arezzo, Itália.
48
Os nomeação das notas foi baseada no hino: “Utquéant láxis resonáre fíbris míra gestórum fámuli tuórum
sólve pólluti lábii reátum Sáncte Ioánnes”, no qual cada nome coincidia com a própria nota.
49
PAHLEN. Op. cit., p. 43-44.
50
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 12-13. (tradução pessoal).
26
2.1.5. Restauração
Desde o começo do século XIX, por toda a parte, se erguiam vozes pedindo a reforma
do Gregoriano, especialmente nos Concílios Provinciais.53 Foi por este motivo que no final
desse século, o papa São Pio X incentivou um movimento de restauração do canto gregoriano,
já iniciado cerca de meio século antes por monges do mosteiro beneditino de Solesmes, na
França.54
Como o cantochão sempre teve grande força entre os beneditinos, um mosteiro francês
desta ordem atuou sob as ordens de D. Guéranger, estudando e copiando dos velhos
manuscritos, alguns elementos do canto gregoriano,55 e é por esta causa que se tornou
costume remontar a D. Guéranger o mérito da restauração do canto gregoriano, e não há nada
de mais exato, pois foi através dele que o canto gregoriano ressurgiu do esquecimento e
apagamento em que se encontrava, para ecoar novamente dentro das Igrejas e Catedrais.
Assim, D. Guéranger e os monges de Solesmes prepararam um Gradual e um
Antifonário de acordo com a verdadeira tradição.56
A partir daí, apesar de algumas controvérsias, o gregoriano foi recuperando
progressivamente a popularidade que há muito não tinha.
Contudo, as tribulações desta aventura histórica estão longe de terminar. Após a
Reforma Litúrgica do Concílio Vaticano II, o repertório gregoriano foi-se abandonando em
quases todas as paróquias, conservando-se apenas em escassos mosteiros ou comunidades
51
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 17. (tradução pessoal): “Jusqu’à la fin du moyen âge la monodie reste la
forme la plus importante de la musique. La monodie, c’est la mélodie pour une seule voix, sans
accompagnement, c’est le choeur à l’unisson. Elle s’oppose à la polyphonie qui est l’art de traiter simultanément
plusieurs sons”.
52
Cf. PANNAIN, G., CORTE, A. della. Historia de la Música. Barcelona: Labor, 1950. p. 38.
53
Cf. SOUZA. Op. cit., p. 29.
54
Cf. DEWEY, Eleanor Florence. Primeiro ano de canto litúrgico e semiologia gregoriana. Prefácio à edição
Brasileira. São Paulo: Atta Editorial/Palas Athena, 1989, p. 7-8.
55
Cf. COMBE, Dom Pierre. Histoire de la restauration du chant grégorien. Abbaye de Solesmes: Solesmes et
l’Édition Vaticane, 1969, p. 15.
56
Cf. SOUZA. Op. cit., p. 30.
27
religiosas.
Quantos anos mais passarão para que o canto gregoriano, recomendado por Papas,
santos, filósofos e cientistas; o fruto da arte de gênios anônimos, volte a possuir a
popularidade que merece?
Ainda assim, não nos basta conhecer as origens de algo para o definirmos de forma
cabível. Passemos a analisar algumas características do gregoriano para termos uma noção
mais completa a respeito do tema.
2.2. Características
Quiçá seja o único gênero musical que busca a simplicidade, pois seu objetivo não é
atrair a primeiro atenção sobre o canto em si, mas apontar para um bem superior. Seu papel é
servir de digna “moldura” ao sublime quadro delineado pela letra. Para exemplificar,
suponhamos que as placas de trânsito possuíssem caracteres tão artísticos e rebuscados que os
motoristas tivessem dificuldade de compreender. Evidentemente, não cumpririam sua
finalidade. Muito embora devam ser belas, não devem perder sua clareza.
Dir-se-ia que a simplicidade e a pulcritude são conceitos antagónicos. Porém, o
gregoriano prova o contrário se não reduzimos a beleza à significação meramente técnica,
mas abarcamos uma beleza “finalística”.
subproduto.57
Por outra parte, no gregoriano brilha a parcial ausência de ritmo. Qual a duração de
cada nota? O tempo suficiente para se pronunciar a sílaba que lhe corresponde. Portanto, é um
ritmo que se submete à palavra, isto é, procura intensificar o significado de cada termo. 61 Em
via de regra, dependendo da intenção e genialidade do compositor, as músicas de outros
estilos buscam essencialmente a perfeição da melodia, ou da harmonia, ou mesmo do ritmo,
enquanto a letra é praticamente acidental e muitas vezes dispensável. Aqui, a essência está
principalmente na significação de cada vocábulo, o ritmo e até a melodia submetem-se ao
“assunto” das palavras.62
57
GILSON, Etienne. Introdução às artes do belo: O que é filosofar sobre a arte? Trad. Érico Nogueira. São
Paulo: É Realizações, 2010, p. 158-159.
58
Ibid.
59
Ibid.
60
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 13-14. (tradução pessoal).
61
Cf. Ibid.
62
Esta temática será mais desenvolvida do terceiro capítulo.
29
De fato, o anonimato da autoria das mais belas melodias gregorianas deixa entrever o
desprendimento e santidade que abundava no ambiente em que este cântico se desenvolveu.
Outra tese elucida que nesse “crepúsculo místico” as melodias eram inspiradas e transmitidas
por Anjos aos monges e religiosos, assim, quem os escutava não atribuía a si mesmo, por
dever de justiça, a autoria da composição, preferindo deixá-la no anonimato.
Ademais, “o canto gregoriano, com seu estilo monofônico, será a música
especialmente requerida para conferir à oração monástica a elevação sentimental que sua
natureza exige”.64 Será a música orante por excelência.
São Tomás de Aquino se pergunta se se pode orar cantando: Porque é um modo de
exercitar interiormente a devoção, é um modo de render a Deus o que lhe é devido, já que o
homem deve utilizar todas as coisas para fazer referência a Deus, quer dizer, o espírito mas
também o corpo, é um desdobramento da alma no corpo, que se produz debaixo da veemência
do sentimento interior.65
Mas, de per se, a oração já não cumpre totalmente seu objectivo, qual a necessidade de
musicá-la?
Que cântico mais idóneo para estabelecer este sublime contato entre Criador e
63
PAHLEN. Op. cit., p. 37.
64
FOSBERY, Aníbal. La Cultura Católica. Mar del Plata: Fasta, 2011, p. 185.
65
Cf. S. Th. II-II, q. 83, a.12.
66
RATZINGER, Joseph. El Espírito de la Liturgia: Una introducción. Trad. Raquel Canas. Madrid: Cristiandad,
2001, p. 158.
30
criaturas? A longa disputa para definir os limites da arte e do sagrado deixou consignada a
finalidade religiosa do gregoriano.67
67
Cf. GILSON, Etienne. Introdução às artes do belo: O que é filosofar sobre a arte? Trad. Érico Nogueira. São
Paulo: É Realizações, 2010, p. 158-159: “A música religiosa é a forma cantada da oração coletiva; quanto mais
simples, como no cantochão tradicional, mais bem-adaptada a função que lhe cabe no todo do culto”.
31
68
LOSSKY, Nicolas. Essai sur une théologie de la musique liturgique. Paris: Cerf, 2003. p. 11. (tradução
pessoal): “La musique était le sommet de l’art”.
69
Cf. BRUYNE. Op. cit., p. 197-198.
70
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Conferência. São Paulo, 14 set. 1996. (Arquivo ITTA-IFAT).
71
ARISTÓTELES. Op. cit., p. 275.
72
BRUYNE. Op. cit., p. 75. (tradução pessoal).
32
No entanto, mesmo na antiguidade surgiu uma forte censura à real utilidade da música,
já que muitos a tomavam por mero prazer.
Deveras, sua utilidade e suas consequências não são tão imediatas e concretas como
um trabalho servil ou um exercício corporal. Mas, se considerarmos sua influência sobre o
atos morais de um homem, comprovamos sua real utilidade a longo prazo.
Quanto à censura, que fazem alguns à música, de ser uma ocupação baixa e
servil, é fácil refutá-la, considerando até que ponto convém se ocupar da
prática dessa arte, aos homens cuja ocupação tem por fim a virtude política,
quais os acordes e ritmos que devem estudar, e que instrumentos lhes
convêm aprender a tocar. Porque há provavelmente algumas diferenças a
considerar aqui, e nisso é que se encontra a resposta à censura da qual
acabamos de falar. Nada impede, com efeito, que a música tenha certos tons
próprios a produzirem os excessos mencionados.74
Ademais, sua beleza não é percebida por todos da mesma forma, existe uma gradação.
É bem verdade que até certos animais reagem de forma diferente sob influência da música,
entretanto, o homem pode exercitar-se de forma a perceber a real beleza dos cantos e ritmos,
além do simples prazer.75
Note-se que, evidentemente, o homem pode servir-se da música tanto para o bem
quanto para o mal, sem que por isso ela seja intrinsecamente má.77
73
ARISTÓTELES. Op. cit., p. 276.
74
ARISTÓTELES. Op. cit., p. 278.
75
Cf. Ibid.
76
ARISTÓTELES. Ibid., p. 280.
77
As artes, em geral, seguem o mesmo princípio. Além disso, para a brevidade do trabalho, não mencionamos
outros estilos musicais mais recentes (como o Rock’n Roll, etc.), apesar de estes serem um excelente exemplo do
mau uso da música.
33
Porém, antes mesmo de sua conversão, encontramos no olhar da Águia de Hipona uma
raiz musical, a ponto de ter escrito um De Musica, composto de seis livros.
Para Agostinho, a “música é a ciência de modular bem”.80 Ora, a cada um dos termos
desta tão precisa definição cabe uma breve explicação.
Em primeiro lugar, ele inclui o termo “scientia” na definição com o objetivo de
distinguir o canto dos animais, da verdadeira música, pois o canto das aves strictu sensu não
pode ser considerado música.81 Por outro lado, este vocábulo está relacionado com a tradição
pitagórico-platônica, Pitágoras foi o primeiro a considerar a música como uma ciência, o que
Platão tomou para a filosofia.82
Em seguida, “modular” (“modulandi”): “Não incongruentemente se define modulação
como uma certa habilidade de movimento, ou com maior segurança aquilo que resulta de algo
que se move”.83 Para a existência da modulação é indispensável o movimento. Assim, em
78
AGOSTINHO DE HIPONA. Las Confesiones, IX, 6, 14. In: Obras completas de San Agustín. v. II. Madrid:
BAC, 1979, p. 361. (tradução pessoal): “Quantum flevi in hymnis et canticis tuis suavi sonantis ecclesiae tuae
vocibus commotus acriter! Voces illae influebant auribus meis et eliquabatur veritas in cor meum et exaestuabat
inde affectus pietatis, et currebant lacrimae, et bene mihi erat cum eis”.
79
ORTEGA, Jafet. Los seis libros sobre la música de San Agustín: guía para una lectura actualizada. In: Religión
y Cultura, v. 50, 2004, p. 741-747. (tradução pessoal): “El primer libro trata sobre el pie rítmico, siendo el punto
de arranque de todo diálogo así como los diversos conocimientos musicales, como el instintivo o los que se dejan
cautivar por la música y concluye con el ritmo. El segundo libro trata sobre los espacios y el tiempo y sus
combinaciones. Breve-breve, breve-larga, larga-breve y larga-larga. Esto es tanto gramatical usado por ejemplo
en la poesía y en el ritmo de la música. El tercer libro llamado metro como la síntesis de dos elementos. El libro
cuarto es una conjunción entre metro y ritmo y el libro quinto estudia el verso. El libro sexto que es el filosófico
trata de la finalidad de los otros cinco así como la elevación de los sentidos sensibles a las cosas insensibles o
espirituales y fijarse en Dios. Es una exposición sobre su argumento del conocimiento de Dios a través de las
realidades sensibles”.
80
AGOSTINHO DE HIPONA. De Musica, I, 2, 2. In: Obras completas de San Agustín. La música. Vol.
XXXIX. Madrid: BAC, 1988, p. 73. (tradução pessoal): “Musica est scientia bene modulandi”.
81
Cf. AGOSTINHO DE HIPONA. Ibid., p. 80.
82
Cf. OTAOLA, Paloma. La música como ciencia en San Agustín. In: Augustinus, v. 166-167, 1997, p. 344.
83
AGOSTINHO DE HIPONA. Op. cit., p. 76. (tradução pessoal): “Modulatio non incongrue dicitur movendi
quaedam peritia, vel certe qua fit ut bene aliquid moveatur”.
34
certo sentido a música pode ser condiderada também como a arte mover,84 mover não tanto os
corpos, mas sobretudo os espíritos inteligentes. Pois a boa modulação é que estabelece uma
harmoniosa relação entre o mundo externo e a alma.
Por último: “bem”. Esta palavra não é supérflua, mais serve para precisar o termo
“modulatio”, que contém a ideia de medida. Assim, trata-se de saber qual é a medida
adequada.85
Santo Agostinho “legitimou a concepção que o prazer estético ou o gozo da beleza, da
música, ajuda à alma a elevar-se à beleza de Deus”.86 Devido à influência pitagórica, vemos
nos escritos agostinianos uma conexão numérico-estética.
No fundo de toda a beleza, seja qual for, resplandece o mundo imaterial dos
números, que se regem por relações imutáveis. Dito mundo, cujos princípios
são de uma simplicidade tão pura que se estende a todas as coisas, não
depende do homem. Habita em Deus, mas se reflete na matéria e ilumina a
música do mundo.87
Analisando esta força moral aplicada ao gregoriano, podemo-nos perguntar qual a sua
proveniência. Decorre da melodia? Do ritmo? Tudo indica que, apesar de ter seu papel, a
84
Ibid., p. 78. (tradução pessoal): “Musica est scientia bene movendi”.
85
Cf. OTAOLA, Paloma. La música como ciencia en San Agustín. In: Augustinus, v. 166-167, 1997, p. 343-344.
86
PIQUÉ COLLADO, Jorge. Teología y Música. Roma: Editrice Pontificia Universitá Gregoriana, 2006, p. 119.
87
BRUYNE. Op. cit., p. 73.
88
“qui numerus, cum sit praestans delectationem, sensualis congrue nominatur”.
89
GROSSETESTE, Roberto. BRUYNE. Op. cit., p. 143.
35
“essência” dessa força não reside nesses predicados, já que outros estilos podem ser muito
mais aperfeiçoados nestes aspectos sem, contudo, possuírem a força do gregoriano.
Esse “surgimento natural” indica que não foi invento de um único homem, mas leva a
crer que foi a expressão comum da multidão dos crentes.
Além de que o gregoriano tem uma força até pelo que ele tem de implícito e
insinuado, mesmo que o cantor a tenha explícita ou intenção de fazer uso dela.91
Portanto, revela que este canto não tem proporção com a capacidade humana, se o
músico mais genial da história dedicasse sua vida à criação de um estilo similar, certamente
não chegaria aos “calcanhares” do genuíno canto gregoriano. Um exemplo elucidativo: conta-
se que Mozart, ao ouvir a melodia gregoriana do prefácio litúrgico disse que daria toda a sua
obra em troca para ter composto aquela simples melodia.92
O canto gregoriano tem uma proporção muito maior com a alma e com as realidades
espirituais, que com o corpo ou as realidades mais concretas. Daí vem esta força moral.
90
GOYARD, Louis. Fundamento histórico de la legislación actual en materia de música sacra: Tese de estrado.
- Instituto Superior de Direito Canônico da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011. (tradução
pessoal): “La fuerza del gregoriano talvez resida justamente en el hecho de haber brotado así naturalmente –
como manifestación auténtica de una compenetración interior muy grande, de una mentalidad y una mística que
propiamente configuran una determinada mentalidad – y no por ser un estilo de encomienda, creado para
producir un efecto específico. Los efectos producidos son apenas una consecuencia de una autenticidad interior”.
91
Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 6 abr. 1978. (Arquivo ITTA-IFAT).
92
Cf. CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 13.
93
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 9 jun. 1976. (Arquivo ITTA-IFAT).
36
Quase se diria que tanto a melodia quanto o ritmo, aqui, ocupam um lugar acidental
em relação à letra.
Ademais, já Aristóteles corroborava com esta tese ao referir-se aos modos gregos, dos
quais derivaram os modos gregorianos:
94
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 13. (tradução pessoal).
95
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 8 nov. 1975. (Arquivo ITTA-IFAT).
96
Id. Revolução e Contra-Revolução. 6. ed. São Paulo: Retornarei, 2008, p. 85.
37
E os medievais tentaram resumir em uma palavra cada um dos oito estados morais:
primus gravis, secundus tristis, tertius mysticus, quartus harmonicus, quintus lætus, sextus
devotus, septimus angelicus, octavus perfectus.98
Posteriormente, os estudiosos do gregoriano desenvolveram cada um destes termos,
chegando a descrever um “ethos” próprio a cada modo.
“Primus gravis”, diziam os antigos... O que não quer dizer: torpe, pesado,
envelhecido, mas sério e maduro. O I modo é um modo de maturidade
adquirida, que canta com um movimento de dignidade e distinção simples,
que dão a experiência e a reflexão. Tem grandeza, energia e firmeza; é uma
piedade sem presunções. Ajusta-se às grandes obras, e sabe ser magnífico e
sério sem pompa.99
Do segundo modo, os medievais diziam: “Secundus tristis”. Tal título é cabível, mas
não é completo, pois a tristeza não deve ser entendida como desanimadora ou desesperada,
mas, além de certo dramatismo, este modo incute segurança e satisfação. Expressa a situação
da alma que “se sente humilhada por ser pecadora e o reconhece”100
Este modo se adapta aos textos que imprimem grade impetuosidade, desejos
veementes, movimentos de cólera, ardor, diligência e laboriosidade.
Expressa felizmente as ordens, os mandatos e as ameaças. Surpreende por
sua vivacidade; palpita em suas progressões e se aplica aos motivos que
anunciam, orgulho, altivez, crueldade, linguagem dura e aos temas que
tratam de combates espirituais e corporais: desperta com mais prontidão que
qualquer outro modo os afetos do coração, é patético: neste modo, variam
97
ARISTÓTELES. Op. cit., p. 276.
98
Nomenclatura medieval de autoria desconhecida. Cf. SAULNIER, Daniel. Los modos Gregorianos. Abbaye
de Solesmes: Solesmes, 2001, p. 21.
99
SAULNIER. Op. cit., p. 51-52.
100
Ibid., p. 58.
101
Ibid., p. 59.
102
GAJARD, apud SAULNIER. Op. cit., p. 65.
38
O quarto modo é tido como o mais contemplativo e o mais harmônico pois coincide
com o modo dórico dos gregos, o qual era tido por eles como o modo harmônico por
excelência.104
O quinto modo expressa, por sua vez, uma alegria “decidida e triunfal”,105 uma alegria
mais exterior, é o modo menos “confidencial”.106 É considerado o modo mais moderno, por
coincidir com a escala maior hodierna.107
“Sextus devotus”: é o modo da piedade, da verdadeira piedade tranquila e abandonada.
Revestido de aparente pobreza, é um modo ao mesmo tempo profundo, simples e inocente. O
entusiasmo permanece sempre discreto. É o modo mais próprio às crianças.108
O sétimo modo é transparente. É fácil reconhecer sua estrutura, é simples, sem
afetação, possui uma juventude sem complexidade, sem segundas intenções, e um entusiasmo
convencido e natural. “Este modo, chamado angelicus pelos antigos, parece ter asas (…). Dir-
se-ia que carece de peso, e que está cheio de uma alegria ligeira, que é ágil nos grandes
intervalos até o agudo, e sabe manter-se sem esforço nas alturas”.109
Este modo é próprio dos grandes temas, dos grandes movimentos, das
exclamações varonis, dos acontecimentos surpreendentes, assombrosos,
estrepitosos; é majestoso e imperativo; excita e anima a alegria, desperta o
espírito; se expressa com grandiosidade; suas progressões se desenvolvem
mediante saltos e brincadeiras suaves e melodiosas; alenta o gosto pelas
coisas celestes, se presta à admiração, caminha com ar confiante, ousado, e
de ânimo varonil... 110
O oitavo modo é muito solene, suntuoso e sonoro, e pode “adaptar-se a muitos estados
de alma”.111
Esta explanação de cada estado moral poderia prolongar-se por todo um trabalho à
103
POISSON, apud SAULNIER. Op. cit., p. 66.
104
Cf. SAULNIER. Op. cit., p. 77.
105
Ibid., p. 83.
106
Ibid., p. 84.
107
Cf. Ibid, p. 86.
108
Cf. Ibid., p. 89-91.
109
Cf. Ibid., p. 96.
110
POISSON, apud SAULNIER. Op. cit., p. 97.
111
JEANNETEAU, J, apud SAULNIER. Op. cit., p. 102.
112
SAULNIER. Op. cit., p. 102.
39
parte, no nosso âmbito, parece-nos suficiente o acima exposto, tendo por objetivo elucidar que
a cada modo do gregoriano corresponde um estado de espírito enormemente diferente dos
demais.
Apesar de tudo o esclarecido anteriormente, alguém poderia objetar que essa ‘força
moral’ não existe realmente, já que ninguém a utilizou.
Realmente, pode-se admitir como provável que raros são os que a tinham tão clara
como a temos hoje. Mas, inúmeras foram as ocasiões históricas em que esta força mostrou seu
potentado, mormente quando a causa de Deus estava em jogo. Conta-se que depois da
Reforma de S. Gregório Magno, o Canto Gregoriano difundia-se com os missionários que,
conhecendo ou apenas intuindo esta capacidade, convertiam multidões.
Em suma, vislumbramos neste cântico um quê de divino, quer por sua desconhecida
origem, quer por sua inspiração sobre-humana, por sua finalidade litúrgica, por suas regras, ou
mesmo pelos seus efeitos.
É o amor que está no mais fundo da origem do cantar, diz Santo Agostinho:
“O cantar é coisa do amor”.114 Com isso voltamos à interpretação trinitária
da música da Igreja: o Espírito Santo é o amor. E, n’Ele está a origem do
canto. Ele é o Espírito de Cristo, é Ele que atrai ao amor através de Cristo e
desta forma nos conduz o Pai.115
Em última análise, a causa última, a causa final e, também a seu modo, a causa
eficiente remetem unicamente a Deus. Restando ao homem uma participação nesse cântico,
enquanto causa material.
Finalmente, tendo presente, ainda que de modo não inteiramente claro, a força moral
do canto gregoriano, por que não fazemos uso dela em nossos dias? Não nos parece que essa
força goze de um prazo de validade já vencido há séculos, mas, em sentido contrário, parece
113
PAHLEN. Op. cit., p. 33.
114
AGOSTINHO DE HIPONA. Sermão 336. In: Obras completas de San Agustín, v. XXV. Madrid: BAC, 1984,
p. 758: “Cantare amantis est”.
115
RATZINGER, Joseph. El Espírito de la Liturgia: Una introducción. Trad. Raquel Canas. Madrid:
Crinstiandad, 2001, p. 165. (tradução pessoal).
40
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2 ed. Bauru: EDIPRO, 2009.
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Robert Appleton Company, 1909. In: GOYARD, Louis. Fundamento histórico de la
legislación actual en materia de música sacra: Tese de mestrado. - Instituto Superior de
Direito Canônico da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Conversa. São Paulo, 8 jul. 1999. (Arquivo ITTA-IFAT)
GILSON, Etienne. Introdução às artes do belo: O que é filosofar sobre a arte? Trad. Érico
Nogueira. São Paulo: É Realizações, 2010.
______. A Filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. 1. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1995
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actualizada. In: Religión y Cultura, v.50, 2004.
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TAME, David. O poder oculto da música: a transformação do homem pela energia da música.
Trad. Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1984, p. 146.
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