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TCC - Fernando Mesquita

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INSTITUTO FILOSÓFICO ARISTOTÉLICO-TOMISTA

FERNANDO JOAQUIM COSTA MESQUITA

A FORÇA MORAL DO CANTO GREGORIANO À LUZ DO CAPÍTULO


VIII DA POLÍTICA DE ARISTÓTELES

Mairiporã
2021
FERNANDO JOAQUIM COSTA MESQUITA

A FORÇA MORAL DO CANTO GREGORIANO À LUZ DO CAPÍTULO


VIII DA POLÍTICA DE ARISTÓTELES

Trabalho apresentado ao Instituto Filosófico


Aristotélico Tomista como parte dos requisitos
para avaliação final no Curso de Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Pe. Jorge F. Teixeira
Lopes, EP.

Mairiporã
2021
FERNANDO JOAQUIM COSTA MESQUITA

A FORÇA MORAL DO CANTO GREGORIANO À LUZ DO CAPÍTULO


VIII DA POLÍTICA DE ARISTÓTELES

Trabalho apresentado ao Instituto Filosófico


Aristotélico Tomista como parte dos requisitos
para avaliação final no Curso de Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Pe. Jorge F. Teixeira
Lopes, EP.

Examinadores:
______________________________
Prof. Dr. Pe. Roberto Merizalde Escallón - IFAT
______________________________

______________________________

______________________________
Resultado

Mairiporã, 28 de novembro de 2021


DEDICATÓRIA

Ao Ex.mo e Rev.mo Mons. João


Scognamiglio Clá Dias, EP, nosso fundador,
mestre e guia; meio pelo qual escutamos já
aqui na terra as harmonias eternas e nosso
sustento nos combates diários.
AGRADECIMENTO

Ao Rev.mo Pe. Pedro Rafael Morazzani


Arráiz, que, como superior e formador
nosso, zela constantemente pelo pleno
cumprimento de nossa vocação.
Ao Rev.mo Pe. Millon Barros, dedicado
e sacrificado superior, que nos orientou ao
longo dos três anos desta caminhada.
Ao Rev.mo Pe. Roberto José Merizalde,
nosso coordenador de estudos, que
acompanhou com real apreço nosso progresso
acadêmico.
A todos os irmãos de vocação com os
quais atravessamos esta inesquecível etapa.
“Que riqueza uma pessoa estudar
filosofia e música ao mesmo tempo; que
miserável é o músico que não conhece
filosofia, e que tri-miserável é o filósofo que
não conhece música”.
(Plinio Corrêa de Oliveira)
RESUMO

O presente trabalho de pesquisa visa estudar, de forma lacônica, a capacidade moralizadora do


canto gregoriano no espírito humano. A primeira parte foi dedicada ao estudo da música em
vários campos de pesquisa e da ação humanas. Em segundo lugar, detivemo-nos na análise
histórica e características específicas do canto gregoriano. E, por último, aprofundamo-nos
nesta propriedade moralizadora da música em geral e do canto gregoriano mais
especificamente.

Palavras-chave: Música; Canto Gregoriano; Modalidade Gregoriana; Aristóteles.


ABSTRACT

This inquiry aims to study, laconically, the moralizing capacity of Gregorian Chant in the
spirit of man. We dedicate the first part to the examination of music in various field of study
and human activities. In the second place, we analyze the history and specific characteristics
of Gregorian Chant. Finally, we reflect upon this moralizing property of music in general and
of Gregorian Chant in specific.

Keywords: Music; Gregorian Chant; Gregorian Modality; Aristotle.


LISTA DE ABREVIAÇÕES

a. artigo
a.C. antes de Cristo
cap. capítulo
Cf. Conferatur
d.C. depois de Cristo
ed. edição
Ibid. Ibidem
Id. Idem
n. número
Op. cit. Opus citatum
p. página ou páginas
q. questão
S. Th. TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiæ.
séc. século ou séculos
t. tomo
Trad. Tradutor
v. volume
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1. A MÚSICA SOB O PRISMA FILOSÓFICO .................................................................. 12
1.1. Primitivas visualizações da música ................................................................................ 12
1.2. Conceito Pitagórico.......................................................................................................... 12
1.2.1. Matematização da Música .............................................................................................. 13
1.2.2. Música e Filosofia .......................................................................................................... 13
1.3. Conceito Cosmológico de Música ................................................................................... 14
1.4. Conceito Metafísico de Música ....................................................................................... 15
1.5. Conceito Antropológico de Música ................................................................................ 15
1.5.1. Papel artístico e tendencial ............................................................................................. 17
1.5.2. Efeito Medicinal ............................................................................................................. 17
1.6. Conceito Aristotélico ....................................................................................................... 18
1.6.1. Papel Social .................................................................................................................... 18
1.6.2. Papel Educativo .............................................................................................................. 19
2. CANTO GREGORIANO .................................................................................................. 22
2.1. História ............................................................................................................................. 22
2.1.1. Herança Judaica e Greco-Romana .................................................................................. 22
2.1.2. Formação ........................................................................................................................ 23
2.1.3. Idade de Ouro ................................................................................................................. 24
2.1.4. Decadência...................................................................................................................... 25
2.1.5. Restauração ..................................................................................................................... 26
2.2. Características ................................................................................................................. 27
2.2.1. Simplicidade e Beleza .................................................................................................... 27
2.2.2. Ritmo do pensamento ..................................................................................................... 28
2.2.3. Musicalidade da oração .................................................................................................. 29
3. FORÇA MORAL DO CANTO GREGORIANO ............................................................ 31
3.1. Força Moral da Música em Geral .................................................................................. 31
3.1.1. Experiência agostiniana .................................................................................................. 32
3.2. Particularidades do Gregoriano ..................................................................................... 34
3.2.1. Música da reflexão.......................................................................................................... 35
3.2.2. Oito modos, oito estados morais .................................................................................... 36
3.2.3. Cântico Divino................................................................................................................ 39
CONCLUSÃO......................................................................................................................... 41
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 42
11

INTRODUÇÃO

A música pode servir ao homem de descanso no cansaço, de encorajamento na guerra,


de louvor na liturgia, de misteriosa linguagem universal; e ainda de símbolo de realidades
superiores. De fato, quando escutamos determinada peça musical, de imediato, o nosso ser
reage de forma a sermos influenciados com suas modulações, melodias e harmonias sem,
contudo, explicitarmos as sensações que nos foram transmitidas através daquela combinação
sonora.
Mas, entre os diversos estilos musicais, sentimos no Canto Gregoriano este “poder”
ampliado e elevado a uma condição que transcende os sentidos e se projeta nos estados de
espírito dos ouvintes.
Todavia, de onde procede esse “poder” de penetrar no espírito humano, de lhe
influenciar os estados morais e, consequentemente, seus atos?
Tendo em vista a importância cada vez maior que a música vem tendo em nossa
sociedade, e o papel insignificante a que, cada vez mais, vem sido relegado o canto
gregoriano, propomo-nos a descortinar a imensa capacidade que a música, em geral, possui
sobre os estados morais do homem e, mormente, a excelência deste canto litúrgico neste
campo.
Tomamos por base o conceito de música aristotélico, e seus desdobramentos. Qual a
importância e a finalidade da música na filosofia aristotélica? Coincide com o ponto de vista
hodierno?
Em segundo lugar, ocupamos-nos de aclarar a temática do Canto Gregoriano, sua
enigmática história e suas características.
Por último, culminamos as considerações anteriores descrevendo algumas qualidades
dessa “força moral”, especificamente no canto gregoriano.
12

1. A MÚSICA SOB O PRISMA FILOSÓFICO

Como definir a música? Pelas suas causas, pelos seus instrumentos, pelos seus efeitos
no homem? Torna-se difícil circunscrever num tão curto trabalho tamanho conceito.
Comecemos por remontar às primeiras noções, examinemos as diferentes concepções dos
filósofos e aprofundemo-nos no conceito aristotélico.

1.1. Primitivas visualizações da música

Já nos mais primitivos agrupamentos de homens encontramos a presença da música.


Com efeito, desde os primórdios, a relação entre a música e a sociabilidade humana é patente.
Evidentemente, ainda em rudes melodias, o homem via na música o meio de transmitir
aos outros aquilo que acontecia em seu interior. E isso porque o instinto de sociabilidade do
homem não se sacia apenas com o simples vocabulário, mas necessita da modulação musical
para uma transmissão mais completa das noções sensíveis.

Grande foi sempre a influência da música sobre a mente humana. O homem


primitivo dispõe apenas de poucas palavras. Quase somente o que ele vê é
que tem nome. Para exprimir os sentimentos, serve-se de sons e cria a
música que o ajuda a exteriorizar o júbilo, a tristeza, o amor, os instintos
belicosos, a crença nos poderes supremos e a vontade de dançar. Para ele é
parte da vida a música, desde o acalanto até a elegia fúnebre, desde a dança
ritual até a cura dos doentes pela melodia e pelo ritmo.1

Nos povos antigos encontramos músicas que primavam pelo forte ritmo, enquanto que
as melodias eram mais simples. Com o inegável progresso da linguagem falada, a música
também se desenvolveu, e a melodia passou a ter primazia. O progresso dos diversos idiomas
não constituiu um obstáculo à música mas, ao contrário, ambos progrediram conjuntamente.
Isso porque, até em nossos dias, a música tem uma capacidade superior de transmitir
inúmeros conceitos sensíveis e inteligíveis de que o simples linguajar carece.
Por outra parte, concomitante à função social e linguística, surge também a função
litúrgica da música. O modo mais idóneo que o homem primitivo encontra para louvar um ser
superior é atribuído também à música.2

1.2. Conceito Pitagórico

Os gregos desenvolveram a primeira linguagem e notação musicais, chegando a uma

1
PAHLEN, Kurt. História Universal da Música. São Paulo: Melhoramentos, 1965, p. 14.
2
Cf. CHAMPIGNEULLE, Bernard de. Histoire de la Musique. Paris: Presse Universitaire de France, 1951, p. 6-
7.
13

perfeição acústica sem precedentes, desenvolveram enormemente escalas, acordes,


temperamentos, etc.

1.2.1. Matematização da Música

Grande parte dos musicólogos atribui a Pitágoras a mais antiga estruturação e


matematização dos princípios de harmonia, baseada em golpes de martelo.

Pitágoras, passando diante da oficina de um ferreiro, reconheceu os três


acordes de quarta, quinta e oitava, ouvindo os golpes de ferreiros na bigorna.
Supondo que as diferenças de sons estavam ligadas aos pesados martelos,
pesou estes últimos e descobriu que o que produzia o som de oitava pesava a
metade do mais pesado, o que produzia o de quinta pesava dois terços do
mais pesado e o que produzia o de quarta pesava três quartos do mais
pesado.3

Não satisfeito com sua extraordinária descoberta, reproduziu o intento em cordas,


dividindo-as nas mesmas proporções das massas dos martelos, obtendo os mesmos resultados.
A partir daí desenvolveu toda a estrutura matemática que sustenta as relações harmônicas, na
sua maioria utilizadas até hoje.4

1.2.2. Música e Filosofia

Ademais, o conceito musical dos pitagóricos é primordialmente filosófico, assim, a


partir das proporções numéricas escondidas na música obtêm as proporções de uma harmonia
universal:

Os pitagóricos sustentam que a luta entre os opostos se concilia graças a um


princípio de harmonia; e a harmonia, como fundamento e vínculo dos
mesmos opostos, constitui para eles o significado último das cosas. Filolau
define a harmonia como “a unidade do múltiplo e a concórdia do
discordante”. Como em tudo há a oposição dos elementos, em tudo há
harmonia; e igualmente bem se pode dizer que tudo é número ou que tudo é
harmonia, porque qualquer número é uma harmonia do ímpar e do par. A
natureza da harmonia é, revelada pela música: as relações musicais
expressam de maneira mais evidente a natureza da harmonia universal; e em
consequência, os pitagóricos as tomam por modelo de todas as harmonias do
universo.5

Por aí vemos que desde a antiguidade a música e a filosofia estavam intimamente


relacionadas, as relações, ora consonantes, ora dissonantes dos sons eram uma imagem das
relações dos seres.

3
MATTÉI, Jean-François. Pitágoras e os Pitagóricos. Trad. Contança Marcondes Cesar. São Paulo: Paulos,
2000, p. 101.
4
Cf. Ibid., p. 102-105.
5
ABBAGNANO, Nicolás. Historia de la Filosofía. 4. ed. Barcelona: Hora, 1994, v. 1, p. 24. (tradução pessoal).
14

1.3. Conceito Cosmológico de Música

Em diversos escritos antigos encontramos mencionada uma “música das esferas”. De


fato, criam os antigos, e até os medievais, que os movimentos dos astros produziam sons
harmônicos. E era a partir dessa “música celeste” que os homens deveriam haurir as formas e
as leis para a “música terrestre”.

A revolução das sete esferas produz, com efeito, uma suave harmonia, mas
não a percebemos porque não se produz no ar, único meio em que
percebemos sons. Não obstante, diz-se, nossos intervalos musicais derivam
dos sons das esferas celestes. As sete notas da escala vêm daí. Há um tom da
Terra à Lua; um semitom da Lua a Mercúrio; um semitom de Mercúrio a
Vênus; três semitons de Vênus ao Sol; do Sol a Marte, um tom; daí a Júpiter,
um semitom; daí a Saturno, um semitom; daí ao círculo do Zodíaco, três
semitons. Assim como o mundo se compõe de sete tons e nossa música de
sete notas, nós nos compomos de sete ingredientes: os quatro elementos de
nosso corpo e as três faculdades de nossa alma, que a arte musical tempera
naturalmente.6

Deveras, apesar de tal consideração carecer de provas científicas em nossos dias,


revela, ao menos, um caráter simbólico atribuído ao conjunto da criação. Tal simbolismo é
ainda enriquecido pelos mistérios da história, a partir da qual pode deduzir-se que a
combinação geral dos seres contingentes representa uma música divina desconhecida pelos
“instrumentistas” e ouvida unicamente pelo “Divino Regente”. A esse propósito, recorda
Bento XVI:

Com efeito, podemos imaginar a história do mundo como una maravilhosa


sinfonia que Deus compôs e cuja execução Ele mesmo dirige como sábio
regente. Ainda que a partitura nos pareça demasiado complexa e difícil, ele a
conhece desde a primeira nota até à última. Nós não estamos chamados a
manejar a batuta do regente, e muito menos a mudar as melodias segundo o
nosso gosto. Estamos chamados, cada um no seu posto e com suas próprias
capacidades, a colaborar com o grande Regente na execução de sua
estupenda obra-mestra. Durante a execução poderemos também
compreender pouco a pouco o grandioso plano da partitura divina.7

Por isso mesmo, com razão se diz que “compreender a música é compreender a ordem
do Universo”,8 pois todos os seres se relacionam com todos os que o envolvem, da mesmo
forma que numa polifonia a harmonia se transmite dependendo da relação de uma voz com as

6
GILSON, Etienne, A Filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1995, p. 396.
7
BENEDICTUS XVI, 2006. Discurso ao final de um concerto oferecido em sua honra oferecido pelo
Presidente de Alemanha. 18 nov. 2006. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/november/documents/hf_benxvi_spe_2006111
8_quartett-berlin_sp.html>. Acesso em: 15 out. 2011.
8
YORK, Tomás de, apud. BRUYNE. Op. cit., p.136: “musicam nosse nihil aliud nisi cunctarum rerum ordine,
scire”. (tradução pessoal).
15

outras.

Com efeito, a ordem produz na alma a impressão de um concerto


autenticamente belo e divinamente doce. A mesma ideia em Guilherme de
Auvergne, em quem a polifonia ocupa um primeiro plano: “Quando
contemples a beleza e magnificência do universo... descobrirás que o próprio
universo é como um formosíssimo cântico e que as criaturas, emitindo sua
variedade sons extraordinariamente harmoniosos, executam um concerto que
produz um enorme prazer”.9

Deveras, cada movimento dos seres individuais repercute em todo o universo, como
numa sinfonia instrumental cada nota afetará toda a harmonia geral da peça.

1.4. Conceito Metafísico de Música

Sob outro prisma, a harmonia musical, analisada do ponto de vista metafísico, serve de
base para diversos princípios ontológicos.
Na relação matéria e forma, as formas, enquanto unem as partes de um todo, têm seu
paralelo nas relações harmônicas que juntam sons diferentes num único acorde.10

Posto que, tudo o que é, se mantém unido graças à ordem que permite que
cada parte concorde perfeitamente com as outras, a harmonia está em tudo,
no universo e em cada um de seus elementos: por conseguinte, em toda a
criatura há harmonia.11

Acrescente-se ainda, que o princípio de identidade está também vinculado à harmonia,


pois cada ser é necessariamente “harmônico” consigo mesmo.12

1.5. Conceito Antropológico de Música

Praticamente decorrente do prisma ontológico, encontramos no homem uma


“ressonância” especial com a musicalidade. O homem é extremamente sensível a toda
combinação sonora.13
Até mesmo na constituição mais intrínseca do homem, na divisão entre a alma e o
corpo encontramos a música presente. “Música... é aquela amizade natural pela qual se une a
alma ao corpo não com vínculos corpóreos mas afetivos... É uma música tal que o corpo é

9
AUVERGNE, Guillaume de, apud, BRUYNE. Op cit., p. 136: “Cum intuearis decorem et magnificentiam
universi... invenies ipsum universum esse velut canticum pulcherrimum... et creaturas pro varietate mira
concordia consonantes concentum nimiae jucunditatis efficere”.
10
Cf. 10 BRUYNE. Op. cit., p. 77.
11
Ibid.
12
Cf. REOMÉ, Aureliano de, apud, BRUYNE. Op. cit., p. 77: “Deprehendis quod omnis creatura mira
harmonía sociata sibi conveniat”.
13
Cf. Ibid., p. 144: “A teoria do prazer, em geral, é de natureza estética ou musical. Os historiadores do
pensamento medieval descuidaram parcialmente este aspecto clássico da psicologia: de novo Boécio traslada a
este terreno a doutrina pitagórica que se baseia na música humana, isto é, na harmonia que une a alma ao corpo”.
16

amado”.14
Por outro lado, comumente, a música se subdivide em três grandes elementos: o ritmo,
a melodia e a harmonia. Ora, no homem, o ritmo tem especial relação com o corpo; a melodia
com a alma; e a harmonia, como se trata da relação de vários sons, relaciona-se sobremaneira
com a união de ambos,15 e também com o homem enquanto “microcosmo”, no qual se
compreende também a “música celeste”.16
Consequentemente, compreende-se que das sociedades primitivas, em que a alma
apenas se vislumbrava, surgissem músicas em que o ritmo ocupava um lugar primordial,
enquanto que de sociedades menos “corpóreas” as músicas tornam-se mais melodiosas que
ritmadas.17
Quanto ao ritmo, é necessário uma distinção que os antigos mantinham entre os ritmos
do corpo e os ritmos da alma, por onde os primeiros influenciavam diretamente os segundos,
e os primeiros eram a manifestação dos ritmos do coração.18
Portanto, uma vez conjugados os três elementos musicais, vemos na música uma
incomparável expressão do íntimo do homem.

A inexplicável profundidade da música, tão fácil de entender, e no entanto,


tão inexplicável, deve-se ao fato de que ela reproduz todas as emoções do
mais íntimo do nosso ser, mas sem a realidade e distante da dor. (…) A
música expressa apenas a quintessência da vida e dos eventos, nunca a vida e
os eventos em si.19

A música, tal como a linguagem, propõe-se, por meio se símbolos, a comunicar


determinada ideia abstrata. Assim, tanto o pensamento discursivo quanto a música,
comparam-se a uma construção arquitetônica.

A música é uma magnífica arquitetura de sons. Pode ser comparada de


algum modo a um prédio, com as suas massas distribuídas, suas colunas,
seus corpos de edifícios, seus desdobramentos, etc., etc., mas, em que entra
uma coisa mais abstrata do que a expressão de um pensamento humano, mas
entra uma pura ideia de harmonia.20

14
Ibid., p. 144-145. “Música... est illa naturalis amicitia qua anima corpori non corporeis vinculis sed affectibus
colligatur sica haec est ut ametnr corpus”.
15
Encontramos, ainda, menção a esta ideia com a terminologia “homem interior” para referir a alma e “homem
exterior” ao referir o corpo. Cf. BRUYNE. Op. cit., p. 75.
16
Cf. GILSON. Op. cit., p. 396.
17
Aqui caberia uma menção ao canto gregoriano como o canto da alma por excelência, já que nele o ritmo é
praticamente ausente, porém, essa temática será desenvolvida ao longo do segundo e terceiro capítulos.
18
Cf. BRUYNE. Op. cit., p. 28.
19
SHOPPENHAUER, Arthur, apud SACKS, Olivier. Alucinações musicais. Trad: Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia de Letras, 2007.
20
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 23 mar. 1970. (Arquivo ITTA-IFAT).
17

Afinal, conclui-se que qualquer composição harmónica ou rítmica transmitirá


determinado raciocínio, ou simples ideia. Sua intensidade dependerá da intenção e genialidade
do compositor21 e poderá ser recebida como mera sensação ou explicitada pelo ouvinte.

1.5.1. Papel artístico e tendencial

Não poderíamos deixar de tratar da música enquanto arte, porém, pareceu-nos


supérfluo aprofundar esta noção já que o conceito hodierno de música é primordialmente
artístico. Contudo, ressaltamos a seguir a penetração que as artes, em geral, têm no espírito
humano de um indivíduo e, por consequência, na sociedade.
De forma magistral, Plinio Corrêa de Oliveira esclarece que o processo do bem e do
mal, quer numa sociedade, quer em cada indivíduo em particular, pode dividir-se em três
“profundidades”: tendências, ideias e fatos.

Essas tendências desordenadas, que por sua própria natureza lutam por
realizar-se, já não se conformando com toda uma ordem de coisas que lhes é
contrária, começam por modificar as mentalidades, os modos de ser, as
expressões artísticas e os costumes, sem desde logo tocar de modo direto —
habitualmente, pelo menos — nas ideias.22

A etapa mais profunda do processo é a das tendências, e é precisamente nesta


“profundidade” que as artes in genere atuam de forma eficiente.

Quanto às artes, como Deus estabeleceu misteriosas e admiráveis relações


entre certas formas, cores, sons, perfumes, sabores, e certos estados de alma,
é claro que por estes meios se podem influenciar a fundo as mentalidades e
induzir pessoas, famílias e povos à formação de um estado de espírito
profundamente revolucionário.23

Todavia, apesar de todas as artes possuírem esse efeito tendencial, pode-se atribuir à
música a primazia, pois sem grande esforço, um indivíduo pode afastar o olhar das influências
das artes visuais, ao passo que da arte sonora o receptor necessita fazer um enérgico ato de
rejeição e tapar os ouvidos para não ser afetado.

1.5.2. Efeito Medicinal

Um efeito da música pouco desenvolvido é o medicinal. Desde a antiguidade, a


música era utilizada para auxiliar o processo curativo.

21
Por exemplo: “A música de Mozart encerra toda a tragédia de ser homem”. RATZINGER, Joseph. La Sal de
la Tierra.
22
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. 6. ed. São Paulo: Retornarei, 2008, p. 41.
(grifo nosso).
23
Ibid., p. 85.
18

Os sacerdotes do templo e os médicos de Roma fizeram uso da


musicoterapia até a completa cristianização do Império. Os árabes do séc.
XIII tinham salas de música nos hospitais. Paracelso praticava o que ele
denominava ‘medicina musical’, usando composições específicas para
doenças específicas; mentais, morais e físicas. Os médicos da Idade Média
utilizavam, não raro, menestréis, que tocavam para os pacientes em
convalescença acelerando-lhes a recuperação.24

Ademais, até em nossos dias, especialistas são afins a esta tese, provando que, de fato,
a música quando bem utilizada pode ser útil até para a saúde:

As raízes dos nervos auditivos estão mais extensas que as de quaisquer


outros nervos do corpo. Mostrou a investigação que a música influi na
digestão, na circulação, na nutrição e na respiração. Verificou-se que até as
redes nervosas do cérebro são sensíveis aos princípios harmônicos.25

Diante desta perspectiva, fica patente a força salutar que a música exerce no homem.

1.6. Conceito Aristotélico

Ora, um dos grandes aprofundamentos do conceito musical foi o de Aristóteles, o qual


desenvolve o papel social e educativo da música na Política.

1.6.1. Papel Social

Já os pitagóricos atribuíam à música um papel social ou moral,26 que foi tomado e


desenvolvido por Aristóteles. Segundo este prisma, as emoções e paixões humanas são
profundamente influenciadas.

A teoria fundada pelos pitagóricos e desenvolvida por Aristóteles assinalava


à música uma função moral e social capital. Considerava-se que os
fenômenos sonoros, a diversidade dos timbres utilizados e a variedade dos
modos desempenhavam um papel superior e preciso sobre o desabrochar das
emoções e paixões humanas.27

No próprio relacionamento social encontramos a mais perfeita imagem da relação de


diferentes notas, isto é, a harmonia social e a harmonia musical são um mesmo conceito
aplicado a realidades distintas, uma aplicada ao relacionamento humano, outra ao
relacionamento sonoro.

Na música existem notas diferentes que, de acordo com a teoria do


contraponto, se harmonizam para a produção de um determinado fim. Tanto

24
TAME, David. O poder oculto da música: a transformação do homem pela energia da música. Trad. Mendes
Cajado. São Paulo: Cultrix, 1984, p. 146.
25
Ibid.
26
Quanto ao papel moral , não o aprofundaremos aqui pois será tratado com mais ênfase no terceiro capítulo.
27
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 8. (tradução pessoal).
19

na música quanto na vida social humana, o senhor pode encontrar tanto a


ordem como a harmonia. Então, há uma correlação muito grande entre a vida
humana, a sociabilidade humana e a harmonia.28

Da função social desprende-se, necessariamente, o papel linguístico da música. Ao


mesmo tempo que se trata de uma “linguagem universal” é também um dialeto praticamente
intraduzível para qualquer outro idioma. “Pelo próprio imponderável, a música fala o que a
palavra do homem não é capaz de lhe dizer, e que ela é, de certo modo, uma ‘empireorização’
da palavra. Da palavra, logo do conceito”.29

1.6.2. Papel Educativo

Examinamos anteriormente alguns efeitos antropológicos da música, de forma


genérica aplicados a homens adultos. Mas, quais serão suas consequências aplicadas na
educação das crianças?30
Em primeiro lugar, das piores deformações que uma criança pode sofrer é passar o
tempo no ócio, isto é, sem fazer nada. Assim, a música surge já como um benéfico e
agradável meio de ocupar o tempo.

É por isso que os antigos não classificaram a música entre as matérias da


educação, como coisa indispensável, porque ela não constitui uma
necessidade. Nem como coisa útil — como a literatura o é para o comércio,
para a economia, para o Estado e para a maioria do atos da vida civil, como
o desenho que parece útil para um melhor julgamento dos artistas, e
finalmente como a ginástica para a saúde e para a força — porque não nos
parece que que nenhum destes benefícios provenham da música. Resta, pois,
que ela seja útil para as horas de descanso, o que a faz ser admitida como
parte da educação. Compreendeu-se neste nome aquilo que se considera
como uma distração dos homens livres. É por esta razão que Homero diz:
(…) “Um cantor cuja voz encantará a todos os hóspedes”.31

Contudo, não é suficiente afirmar que algo é importante para a educação unicamente

28
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Conversa. São Paulo, 8 jul. 1999. (Arquivo ITTA-IFAT). O trecho citado
sofreu alterações mínimas ao ser passado da linguagem falada à linguagem escrita, sem prévia revisão do autor.
29
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 26 jan. 1995. (Arquivo ITTA-IFAT).
30
Apesar do tema deste subtítulo ser praticamente uma subdivisão do anterior decidimos separá-lo em função de
seu aprofundamento e sua extensão. Ademais, tomaremos por base os comentários de Aristóteles sobre a
educação contidos na Política.
31
ARISTÓTELES. A Política. VIII, 2. Trad. Nestor Silveira Chaves 2 ed. Bauru: EDIPRO, 2009, p. 270.: “ Διò
καὶ τὴν μουσικὴν οἷ πρότερον εἰς παιδέιαν έταξαν οὐχ ὡς ἀναγκαῖον (οὐδέν γὰρ ἔχει τοιοῦτον) οὐδ’ ὡς
χρήσιμον, ὥσπερ τὰ γράμματα πρὸς χρηματισμὸν καὶ πρὸς οἰκονομίαν καί πρὸς μάθησιν καὶ πρὸς πολιτικὰς
πράξεις πολλάς · δοκεῖ δὲ καὶ γραφικὴ χρήσιμος εἶναι πρὸς τὸ κρίνειν τὰ τῶν τεχνιτῶν ἔργα κάλλιον · οὐδ’ αὖ
καθάπερ ἡ γυμναστικὴ πρὸς ὑγίειαν καὶ ἀλκήν · οὐδέτερον γὰρ τούτων δρῶμεν γιγνόμενον ἐκ τῆς μουσικῆς.
Λείπεται τοίνυν πρὸς τὴν ἐν τῇ σχολῇ διαγωγήν, εἰς ὅπερ καὶ φαίνονται παράγοντες αὐτήν · ἣν γὰρ οἶονται
διαγωγὴν εῖναι τῶν ἐλευθέρων, ἐν ταύτῃ τάττουσιν. Διόπερ Ὅμηρος οὕτως ἐποίησεν · άλλ’ oΐov μέν ἐστι καλέῖν
ἐπὶ δαῖτα θαλείην · καί οὕτω προειπὼν ἑτέρους τινὰς « oΐ καλέουσιν ᾀοιδόν » φησίν, «ὅ κεν τέρπησιν ἅπανιας. »
Καὶ ἐν άλλοις δέ φησιν Ὀδυσσεὺς ταύτην ἀρίστην εἶναι διαγωγήν, ὅταν εὐφραινόμενων τῶν ἀνθρώπων «
δαιτυμόνες δ’ ἀνὰ δώματ’ ἀκουάζωνται ἀοιδοῦ ἥμενοι ἑξείης. »”.
20

por ser “melhor que nada”. Será realmente útil para a educação? Servirá meramente como
recreação e distração? Ou será um simples passatempo?32

O primeiro ponto é saber se ela [a música] deve fazer parte da educação, ou


se deve ser excluída, e se é uma ciência, um prazer, ou um simples
passatempo. Ora, é com razão que se lhe dão estas três denominações, e ela
parece reunir todas três. Porque o prazer tem por fim o descanso, e todo
descanso é forçosamente agradável, visto que é uma espécie de remédio
contra a fadiga produzida pelo trabalho. Admite-se geralmente que o
passatempo deve reunir o honesto ao agradável; porque a felicidade se
compõe dessas duas condições, e todos nós concordamos que a música
puramente instrumental ou acompanhada de canto é uma das coisas mais
agradáveis.33

Entrevê-se, nesse sentido, uma relação entre a música e a felicidade: muito embora a
música não seja necessária para a obtenção da felicidade, em nada lhe é oposta, e constitui,
portanto, um precioso auxílio.
Além disso, é inegável que a música pode inspirar no íntimo de alguém triste e
desalentado novas energias e novo vigor.

Museu disse que o maior prazer dos mortais é o canto. É com razão, pois,
que se admite a música nas reuniões e nos divertimentos, pois que ela faz
nascer a alegria. Este motivo bastaria por si só para fazer com que os jovens
aprendessem a música.34

A música tem, portanto, um importante papel educativo. Como se não bastasse, é de


comum acordo, entre os psicólogos modernos, que a capacidade de recepção e retenção das
coisas é tanto maior quanto mais jovem for o indivíduo: assim acontece com o aprendizado de
línguas, de instrumentos musicais, etc. Logo, todos os efeitos mencionados anteriormente têm
sua eficácia aumentada quando tomados por uma criança.
Então, podemos concluir que cada ritmo, cada melodia, cada acorde pode estimular na
criança — também nos adultos, mas menos intensamente — diferentes atitudes.

É o que observam com razão os que se aprofundaram nessa arte da


educação; porque apoiam-se, em seus raciocínios sobre este assunto, no
próprio testemunho dos fatos. O mesmo acontece quanto às diversas espécies
de ritmos, dos quais uns exprimem costumes calmos, pacíficos, e outros
perturbação e movimento; entre estes, uns marcam movimentos bruscos,
outros movimentos mais dignos de um homem livre. É incontestável, pois,
que a música exerce um poder moral. E se ela pode ter essa influência, é
também evidente que se deve a ela recorrer, ensinando-a aos jovens.35

32
Cf. Ibid., p. 269.
33
Ibid., p. 274.
34
Ibid.
35
Ibid., p. 277. (grifo nosso).
21

Apesar deste reconhecido “poder moral” da música ser comum a todos os gêneros
musicais, certamente haverá alguns em tal propriedade se manifeste mais. E, quem estaria
mais interessado em descobri-lo que a Igreja Católica, mestra e orientadora suprema dos
costumes morais?
Por esse motivo, dedicamos as próximas linhas ao estudo desse peculiar género de
música que, a nosso ver, é nele que mais se manifesta essa propriedade moralizante.
22

2. CANTO GREGORIANO

A música, enquanto um todo, pode ser vista de inúmeros aspectos, alguns tratados no
capítulo anterior. Contudo, entre os distintos gêneros musicais pareceu-nos essencial
desenvolver o Canto Gregoriano pois este é sem dúvida dos mais misteriosos estilos
existentes.
É bem verdade que possui uma finalidade litúrgica bem definida,36 e parece simplório
à primeira vista. Porém, possui uma quase irresistível capacidade de penetração no interior do
homem, reprime as más tendências e impulsiona as boas. E além disso, do ponto de vista
matemático, tem uma amplitude de escalas superior à generalidade das músicas hodiernas.

2.1. História

Os peritos costumam dividir a aventura histórica do gregoriano em quatro períodos


principais: formação, perfeição ou idade de ouro, decadência e restauração.

2.1.1. Herança Judaica e Greco-Romana

Apesar de sua origem ocultar-se nos enigmas da história, não se tendo o século exato
de seu nascedouro, sabe-se, isto sim, que sua “pré-história” está vinculada à cultura musical
hebraica e greco-romana.

Os cantos cristãos dos primeiros séculos conservavam alguns resquícios dos


ritos hebraicos. Assim, a recitação dos salmos bíblicos: as salmodias, bem
como os cantos antifónicos – de onde os versículos cantados por um solista
se alternavam com as respostas do povo – têm sua origem nas cerimônias da
religião judaica. (…) Mas, assim como em todos os países penetrados de
cultura greco-romana, é a art antique que deveria servir de modelo.37

Quanto à cultura greco-romana, é necessário fazer uma distinção. Muito embora


ambas as culturas musicais estejam profundamente associadas, “ao adotar a música dos
gregos, os romanos a vulgarizaram, confiando-lhe um papel subalterno nos prazeres públicos,
e lhe fizeram perder muitas de suas altas qualidades e de sua nobreza”.38
Assim, havia a necessidade de “purificar” os elementos musicais recebidos dos
romanos. Até mesmo dos originais modos gregos, foram cuidadosamente extraídos somente
os modos diatónicos, os quais, com algumas alterações, foram adotados pela Igreja e depois
vieram a formar os oito modos gregorianos. As escalas cromáticas e enarmônicas foram

36
Cf. GILSON, Etienne. Introdução às artes do belo: O que é filosofar sobre a arte? Trad. Érico Nogueira. São
Paulo: É Realizações, 2010, p. 158.
37
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 9. (tradução pessoal).
38
Ibid., p. 8. (tradução pessoal).
23

abandonadas, e até condenadas por alguns santos dos primeiros séculos do cristianismo.39
Fazendo par com a tradição hebraica, segundo a qual os salmos eram cantados por
solistas e o povo cantava uma aclamação final, o sistema sírio também teve seu papel,
segundo este, o salmo era cantado em dois coros que se uniam no final para o refrão ou
antífona.40
Começavam a surgir as regras estéticas do canto gregoriano, apesar de que
provavelmente os primeiros cristãos não estavam muito preocupados com a teoria ou
esquematização desse novo estilo musical, pois seu principal objetivo era louvar o Deus
Encarnado da melhor forma possível.41

2.1.2. Formação

Apesar dos enigmas históricos mencionados, tudo leva a crer que já no período em que
os cristãos viviam em catacumbas, começou a formar-se um incipiente canto litúrgico
antecessor do Gregoriano.

Na brilhante metrópole de Roma, nas suas magníficas ruas e praças, nos seus
palácios, nos seus locais de diversão, nos seus quartéis e bairros pobres,
desaparece o mundo antigo, devagar e quase insensivelmente. Ao mesmo
tempo nasce nos subterrâneos da cidade, nos corredores secretos, nas
catacumbas, uma nova época da humanidade. Ali se reúnem em número
cada vez maior, diariamente, os discípulos do Mestre de Nazaré. (...) Mas
toda verdadeira revolução necessita de música. Também o cristianismo, a
mais profunda revolução da humanidade, em milhares de anos, não podia
dispensá-la.42

A partir do séc. IV, inicia-se, com dados históricos mais precisos, propriamente o
período de “formação” do Gregoriano, encerrando-se em finais do séc. VI, com São Gregório
Magno.
Neste período, destacam-se os hinos compostos por Santo Ambrósio que, estando
escondido numa Igreja com outros católicos durante as perseguições arianas, compunha hinos
de louvor a Deus para encorajar os fiéis a enfrentarem a morte. A grande maioria das

39
Por exemplo: S. Clemente de Alexandria condenava o cromatismo, como inconveniente à gravidade cristã. Cf.
SOUZA, José Geraldo de. Apontamentos de Música Sacra. São Paulo: Salesiana, 1950, p. 23-24.
40
Este sistema foi introduzido pelo Papa Dâmaso em Roma e por S. Ambrósio em Milão. Cf. SOUZA. Op.cit.,
p. 10.
41
Cf. BRUYNE. Op. cit., p. 54-55: “Parece evidente que nas escolas eclesiásticas, onde se devia aprender canto,
se difundiam regras estéticas junto a essas indicações técnicas que desembocariam, entre outras coisas, em
notações musicais novas. Em suas origens, a música eclesiástica estava submetida a uma triple influência:
judaica, síria e grega. Unicamente conhecemos, através de documentos diretos, a teoria musical helênica: chegou
à Idade Média em três ondas sucessivas e constitui a base de una concepção estética do mundo que abarca
infinitamente mais que o exclusivo domínio das percepções sonoras.”
42
PAHLEN. Op. cit., p. 32.
24

composições desta época tinha em vista o combate das heresias.43


Nesta fase, as melodias ainda eram transmitidas apenas por tradição oral, mas pouco a
pouco as músicas gregorianas foram sendo colocadas em pergaminhos, através de notações,
que hoje conhecemos como semiológicas.

Boécio, o grande teórico da música (475-524) e, em seguida, Cassiodoro


(482-580) foram os principais codificadores e propagadores dos modos
musicais que eles criam oriundos da música grega. E serão as teorias de
Boécio que alimentarão sobretudo os clérigos até o final da Idade Média.44

E assim, à medida que o Cristianismo se espargia, o Gregoriano ia crescendo e


difundindo-se pela cristandade.

2.1.3. Idade de Ouro

Esta etapa inicia-se no séc. VI, com São Gregório Magno e termina no séc. XIII. Foi a
época de seu apogeu, chamada a Idade de Ouro do Gregoriano. Com o impulso dos Papas,
além do esforço e talento de tanta gente, o novo estilo musical toma nova vida. A partir daqui
o então “Canto Romano” passa a chamar-se “Gregoriano”, em função de S. Gregório, patrício
romano, monge beneditino e Papa; o qual se dedicou à importante tarefa de organizar os
cantos romanos, à correção dos cantos antigos, à composição de cantos novos e à sua
codificação, organizando um “Antifonário”, que será a base da liturgia católica romana até
nossos dias. O termo “gregoriano” é encontrado pela primeira vez nos escritos de Guilherme
de Hirschau, entretanto, Leão IV (séc. IX) já o usava.45

Desde este momento (séc. VIII e IX), o canto gregoriano se estenderá muito
rapidamente pelo Ocidente. Os mosteiros beneditinos, que surgem em todas
as partes, tornam a sua divulgação. Em Roma se constitui um centro de
monitores que ensinam a toda a Cristandade. Verdadeiras escolas de música
são então fundadas, que terão um papel importante na expansão do canto
gregoriano. [Entre os principais centros, destacamos] Rouen, onde brilhará
S. Remígio, Metz, e sobretudo o mosteiro de Saint Gall, armazém de
músicos e poetas, a cujo respeito a tradição ensina que esteve um cantor
chamado Romano, enviado pelo Papa a Carlos Magno, com uma cópia do
famoso Antifonário.46

Grande auxílio à expansão deste estilo musical foram os missionários, esparsos pela

43
Cf. SOUZA. Op. cit., p. 9-10.
44
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 9. (tradução pessoal).
45
Cf. BEWERUNGE, Henry. "Gregorian Chant". The Catholic Encyclopedia. Vol. VI. New York: Robert
Appleton Company, 1909. In: GOYARD, Louis. Fundamento histórico de la legislación actual en materia de
música sacra: Tese de mestrado. - Instituto Superior de Direito Canônico da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro, 2011, p. 90. (tradução pessoal).
46
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 11. (tradução pessoal).
25

Europa, onde quer que estivessem, não só transmitiam o Gregoriano, mas sabiam utilizar-se
da força moral deste canto para obter inúmeras conversões por seu meio.
Neste período também se desenvolve a escrita musical. As notas, que antes se
designavam pelas letras do alfabeto tomam as denominações que têm hoje por obra de
Guido,47 baseado no hino Utqueant laxis, dedicado a S. João Batista, muito conhecido na
época.48
A maioria dos cânticos para as missas foi composta nestes séculos.

2.1.4. Decadência

Desde o séc. XIII até à segunda metade do séc. XIV, houve um grande declive do
canto gregoriano. O novo estilo de música eram as cançonetas dos trovadores, as quais
transmitiam apenas os aspectos alegres e triviais da vida.

O canto gregoriano, que tão fielmente refletiu o ideal dos monges da vida
bem-aventurada no além, recua cada vez mais para os mosteiros onde esse
ideal será conservado. A nova música burguesa, da cidade, é uma afirmação
ainda mais forte da vida transitória do que a oferecida pelos trovadores.
Apesar disso, muitas vezes são os seus temas de natureza religiosa, porque o
homem não cessa de crer em Deus.49

Há nessa quadra histórica uma enorme mudança de mentalidade, a partir da qual a


música toma um novo sentido, o aspecto litúrgico e religioso toma um segundo plano
enquanto o aspecto funcional, artístico e antropológico ocupam a primazia.

O Renascimento humanista, por seu lado, não se acomodou com esta


música, julgada demasiado simples. Os cantos eclesiásticos foram adaptados
ao gosto do tempo. As melopeias ágeis deveram entrar no quadro rígido das
barras de compasso, e se fizeram depois, segundo o novo conceito de
estética, trechos de canto com acompanhamento de órgão. O sentido da
interpretação ameaçava perder-se irremediavelmente.50

Com o progresso artístico, os manuscritos gregorianos iam sendo postos de lado. Sua
execução tornava-se menos aprazível e, cada vez menos se entendia essa misteriosa
linguagem musical. Com o desprezo que o Renascimento ostentava por tudo o que era
medieval, perdeu-se a tradição.

Até o fim da Idade Média, a monofonia era a forma mais importante da


música. A monofonia, é a melodia para uma só voz, sem acompanhamento,

47
Guido (995-1050), monge benedito, natural de Arezzo, Itália.
48
Os nomeação das notas foi baseada no hino: “Utquéant láxis resonáre fíbris míra gestórum fámuli tuórum
sólve pólluti lábii reátum Sáncte Ioánnes”, no qual cada nome coincidia com a própria nota.
49
PAHLEN. Op. cit., p. 43-44.
50
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 12-13. (tradução pessoal).
26

o coro em uníssono. Ela se opôs à polifonia que é a arte de cantar


simultaneamente vários sons.51

Realmente, a partir dos primeiros séculos do segundo milénio encontramos um


gregoriano viciado, tanto na tradição oral, quanto nos manuscritos.52 O verdadeiro gregoriano
perdera sua integridade.
O processo de decadência continuou até o quase desaparecimento do gregoriano no
séc. XVIII.

2.1.5. Restauração

Desde o começo do século XIX, por toda a parte, se erguiam vozes pedindo a reforma
do Gregoriano, especialmente nos Concílios Provinciais.53 Foi por este motivo que no final
desse século, o papa São Pio X incentivou um movimento de restauração do canto gregoriano,
já iniciado cerca de meio século antes por monges do mosteiro beneditino de Solesmes, na
França.54
Como o cantochão sempre teve grande força entre os beneditinos, um mosteiro francês
desta ordem atuou sob as ordens de D. Guéranger, estudando e copiando dos velhos
manuscritos, alguns elementos do canto gregoriano,55 e é por esta causa que se tornou
costume remontar a D. Guéranger o mérito da restauração do canto gregoriano, e não há nada
de mais exato, pois foi através dele que o canto gregoriano ressurgiu do esquecimento e
apagamento em que se encontrava, para ecoar novamente dentro das Igrejas e Catedrais.
Assim, D. Guéranger e os monges de Solesmes prepararam um Gradual e um
Antifonário de acordo com a verdadeira tradição.56
A partir daí, apesar de algumas controvérsias, o gregoriano foi recuperando
progressivamente a popularidade que há muito não tinha.
Contudo, as tribulações desta aventura histórica estão longe de terminar. Após a
Reforma Litúrgica do Concílio Vaticano II, o repertório gregoriano foi-se abandonando em
quases todas as paróquias, conservando-se apenas em escassos mosteiros ou comunidades

51
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 17. (tradução pessoal): “Jusqu’à la fin du moyen âge la monodie reste la
forme la plus importante de la musique. La monodie, c’est la mélodie pour une seule voix, sans
accompagnement, c’est le choeur à l’unisson. Elle s’oppose à la polyphonie qui est l’art de traiter simultanément
plusieurs sons”.
52
Cf. PANNAIN, G., CORTE, A. della. Historia de la Música. Barcelona: Labor, 1950. p. 38.
53
Cf. SOUZA. Op. cit., p. 29.
54
Cf. DEWEY, Eleanor Florence. Primeiro ano de canto litúrgico e semiologia gregoriana. Prefácio à edição
Brasileira. São Paulo: Atta Editorial/Palas Athena, 1989, p. 7-8.
55
Cf. COMBE, Dom Pierre. Histoire de la restauration du chant grégorien. Abbaye de Solesmes: Solesmes et
l’Édition Vaticane, 1969, p. 15.
56
Cf. SOUZA. Op. cit., p. 30.
27

religiosas.
Quantos anos mais passarão para que o canto gregoriano, recomendado por Papas,
santos, filósofos e cientistas; o fruto da arte de gênios anônimos, volte a possuir a
popularidade que merece?
Ainda assim, não nos basta conhecer as origens de algo para o definirmos de forma
cabível. Passemos a analisar algumas características do gregoriano para termos uma noção
mais completa a respeito do tema.

2.2. Características

O Canto Gregoriano encerra inúmeros predicados que o distinguem de todos os


demais estilos musicais.

2.2.1. Simplicidade e Beleza

Quiçá seja o único gênero musical que busca a simplicidade, pois seu objetivo não é
atrair a primeiro atenção sobre o canto em si, mas apontar para um bem superior. Seu papel é
servir de digna “moldura” ao sublime quadro delineado pela letra. Para exemplificar,
suponhamos que as placas de trânsito possuíssem caracteres tão artísticos e rebuscados que os
motoristas tivessem dificuldade de compreender. Evidentemente, não cumpririam sua
finalidade. Muito embora devam ser belas, não devem perder sua clareza.
Dir-se-ia que a simplicidade e a pulcritude são conceitos antagónicos. Porém, o
gregoriano prova o contrário se não reduzimos a beleza à significação meramente técnica,
mas abarcamos uma beleza “finalística”.

A questão não é saber se o canto gregoriano é ou não e a mais bela música


de igreja. Ele tem a sua beleza própria, mas é uma beleza mais religiosa que
artística, pois não foi composto em vista da criação de arquiteturas sonoras
agradáveis por si mesmas, e cuja repetição é em si mesma desejável. A
música propriamente religiosa e a música propriamente artística constituem
duas ordens heterogêneas que não cabe comparar nem confundir. Essa
dificuldade se mostra de maneira exemplar quando, durante um ofício em
que algumas palavras litúrgicas foram cantadas segundo um dos modos
tradicionais, uma orquestra cheia de coros dispara um Kyrie, um Gloria ou
um Credo compostos por algum músico moderno na linguagem musical que
lhe é particular. O disparate não está no estilo musical, é o próprio sentido da
palavra “música” que agora está em causa, pois uma missa de Mozart é o
produto de uma arte concebida por músicos ciosos de criar belezas sonoras
desejadas por si mesmas, enquanto o cantochão e uma arte desejada pelo fim
religioso a que deve servir. Mozart faz o culto servir aos fins da sua arte, o
canto gregoriano faz a arte servir aos fins do culto. A beleza musical que aí
se encontra, amiúde real e verdadeira, não passa de uma espécie de
28

subproduto.57

Apesar do estilo polifônico constituir uma genialidade musical repleta de obras-primas


e sua influência atingir a música moderna, os músicos colocaram a religião a serviço da
música. “Eles têm esse direito, desde que não tomem a própria obra por música sacra. A
‘Missa em Si’ e a ‘Missa em Ré’ são grandes obras-primas da arte musical, mas seriam
monstruosidades litúrgicas se se tentasse introduzi-las no culto, e mesmo as missas de Haydn
e Mozart, de duração mais apropriada, ‘desafinam’ quando executadas durante a
celebração”.58 Essas composições são feitas por si mesmas e não falam de Deus, mas de seus
compositores. Uma arte musical distinta da arte sacra.59

“A arte gregoriana está ao serviço de um conjunto de ideias simples e fortes,


que são ao mesmo tempo uma fé – isto é, a forma mais estimulante e mais
irradiante de energia espiritual”. (…) Apesar de todos os seus recursos
orquestrais e toda a sua complexidade, o repertório moderno não possui a
surpreendente força resplandecente das sóbrias cantilenas gregorianas.
Evitemos de pensar, pois, que a arte mantém necessariamente uma marcha
progressiva. Não falemos de progresso quando apenas vemos mudanças de
estética, pois a beleza da música está longe de confundir-se com
desenvolvimento de seus elementos técnicos.60

Assim, podemos qualificar o gregoriano com uma beleza “despretensiosa”: enquanto


os demais estilos musicais procuram uma beleza “intrínseca”, a pulcritude simples do
gregoriano aponta para a Beleza Absoluta, resultando num irradiante estímulo espiritual.

2.2.2. Ritmo do pensamento

Por outra parte, no gregoriano brilha a parcial ausência de ritmo. Qual a duração de
cada nota? O tempo suficiente para se pronunciar a sílaba que lhe corresponde. Portanto, é um
ritmo que se submete à palavra, isto é, procura intensificar o significado de cada termo. 61 Em
via de regra, dependendo da intenção e genialidade do compositor, as músicas de outros
estilos buscam essencialmente a perfeição da melodia, ou da harmonia, ou mesmo do ritmo,
enquanto a letra é praticamente acidental e muitas vezes dispensável. Aqui, a essência está
principalmente na significação de cada vocábulo, o ritmo e até a melodia submetem-se ao
“assunto” das palavras.62

57
GILSON, Etienne. Introdução às artes do belo: O que é filosofar sobre a arte? Trad. Érico Nogueira. São
Paulo: É Realizações, 2010, p. 158-159.
58
Ibid.
59
Ibid.
60
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 13-14. (tradução pessoal).
61
Cf. Ibid.
62
Esta temática será mais desenvolvida do terceiro capítulo.
29

2.2.3. Musicalidade da oração

Para compreendermos a essência mais profunda deste estilo musical, remontemo-nos


ao que conhecemos de suas origens.

No crepúsculo místico de uma igreja, os monges elevam a voz e entoam uma


oração cantada. Profunda devoção os domina. Sentem-se uma unidade
absoluta; nenhum vale mais, diante de Deus, do que outro; por isso, não
pode haver um solista, nem tampouco "segunda voz". O canto é a mais alta
expressão de sentimento; assim, não pode haver atavio artístico. A
concepção de "arte" ainda não nasceu na Europa; a música, a pintura e a
poesia servem a Deus. São, na formação e na execução, ainda anônimas,
porque nenhuma glória mundana se lhes liga e, menos ainda, vantagem
material.63

De fato, o anonimato da autoria das mais belas melodias gregorianas deixa entrever o
desprendimento e santidade que abundava no ambiente em que este cântico se desenvolveu.
Outra tese elucida que nesse “crepúsculo místico” as melodias eram inspiradas e transmitidas
por Anjos aos monges e religiosos, assim, quem os escutava não atribuía a si mesmo, por
dever de justiça, a autoria da composição, preferindo deixá-la no anonimato.
Ademais, “o canto gregoriano, com seu estilo monofônico, será a música
especialmente requerida para conferir à oração monástica a elevação sentimental que sua
natureza exige”.64 Será a música orante por excelência.
São Tomás de Aquino se pergunta se se pode orar cantando: Porque é um modo de
exercitar interiormente a devoção, é um modo de render a Deus o que lhe é devido, já que o
homem deve utilizar todas as coisas para fazer referência a Deus, quer dizer, o espírito mas
também o corpo, é um desdobramento da alma no corpo, que se produz debaixo da veemência
do sentimento interior.65
Mas, de per se, a oração já não cumpre totalmente seu objectivo, qual a necessidade de
musicá-la?

Quando o homem entra em contato com Deus, as palavras se fazem


insuficientes. Despertam-se esses âmbitos da existência que se convertem
espontaneamente em canto. O próprio ser do homem fica curto para o que
quer expressar, até tal ponto que convida toda a criação a unir-se a ele em
um cântico.66

Que cântico mais idóneo para estabelecer este sublime contato entre Criador e

63
PAHLEN. Op. cit., p. 37.
64
FOSBERY, Aníbal. La Cultura Católica. Mar del Plata: Fasta, 2011, p. 185.
65
Cf. S. Th. II-II, q. 83, a.12.
66
RATZINGER, Joseph. El Espírito de la Liturgia: Una introducción. Trad. Raquel Canas. Madrid: Cristiandad,
2001, p. 158.
30

criaturas? A longa disputa para definir os limites da arte e do sagrado deixou consignada a
finalidade religiosa do gregoriano.67

67
Cf. GILSON, Etienne. Introdução às artes do belo: O que é filosofar sobre a arte? Trad. Érico Nogueira. São
Paulo: É Realizações, 2010, p. 158-159: “A música religiosa é a forma cantada da oração coletiva; quanto mais
simples, como no cantochão tradicional, mais bem-adaptada a função que lhe cabe no todo do culto”.
31

3. FORÇA MORAL DO CANTO GREGORIANO

Como visto anteriormente, é inegável que a música encerra em si uma incrível


capacidade de persuasão. Quantos discursos são necessários para convencer um indivíduo
persistente? A pintura conseguiria movê-lo? Muito dificilmente. A arquitectura?
Provavelmente um pouco mais. Enfim, quantas vezes, uma simples música ambiental é capaz
de mover o estado de espírito de um indivíduo sem que sequer ele se dê conta. Nesse sentido,
“a música é o cume das artes”.68

3.1. Força Moral da Música em Geral

Toda a composição musical transmite um certo estado de espírito, cuja intensidade


dependerá de seu “caráter comovedor”.69 Se um quadro vale “na medida em que ele exprime
uma fisionomia; uma música vale, na medida em que ela também exprima uma fisionomia
moral”.70
Essa capacidade persuasiva, essa expressão e força morais estão intimamente ligadas à
própria natureza da arte musical e à natureza humana, pois todos os homens sentem “um
prazer que toca a própria natureza, que seduz todas as idades, todos os caráteres, e que torna o
seu culto agradável”.71
Assim, já os antigos filósofos atribuíam um primordial aspecto moral à música: “a
tradição fala prioritariamente da música moral, isto é, da criação da harmonia nos atos da
vida: é ao projetar a justa proporção quando a razão produz a beleza. O que pratica o mal
demostra que desconhece a música”.72
A partir desta última frase, entende-se melhor a forte relação entre música e moral no
conceito antigo. A música, considerada uma “imitação sonora” da realidade, era tida como
uma preparação para se enfrentar as mais diversas realidades quando estas se apresentassem.

Ora, nada imita melhor os verdadeiros sentimentos da alma que o ritmo e a


melodia, seja em se tratando da cólera, da meiguice, da coragem, da
temperança ou das afeições opostas e de outras sensações da alma. A prova
disso está nos acontecimentos, pois que a música desperta em nossa alma
todas essas paixões. Quando se tem o hábito de sentir dor ou prazer, quando
surgem coisas que se lhes assemelham, está-se a ponto de experimentar os

68
LOSSKY, Nicolas. Essai sur une théologie de la musique liturgique. Paris: Cerf, 2003. p. 11. (tradução
pessoal): “La musique était le sommet de l’art”.
69
Cf. BRUYNE. Op. cit., p. 197-198.
70
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Conferência. São Paulo, 14 set. 1996. (Arquivo ITTA-IFAT).
71
ARISTÓTELES. Op. cit., p. 275.
72
BRUYNE. Op. cit., p. 75. (tradução pessoal).
32

mesmos sentimentos em presença da realidade.73

No entanto, mesmo na antiguidade surgiu uma forte censura à real utilidade da música,
já que muitos a tomavam por mero prazer.
Deveras, sua utilidade e suas consequências não são tão imediatas e concretas como
um trabalho servil ou um exercício corporal. Mas, se considerarmos sua influência sobre o
atos morais de um homem, comprovamos sua real utilidade a longo prazo.

Quanto à censura, que fazem alguns à música, de ser uma ocupação baixa e
servil, é fácil refutá-la, considerando até que ponto convém se ocupar da
prática dessa arte, aos homens cuja ocupação tem por fim a virtude política,
quais os acordes e ritmos que devem estudar, e que instrumentos lhes
convêm aprender a tocar. Porque há provavelmente algumas diferenças a
considerar aqui, e nisso é que se encontra a resposta à censura da qual
acabamos de falar. Nada impede, com efeito, que a música tenha certos tons
próprios a produzirem os excessos mencionados.74

Ademais, sua beleza não é percebida por todos da mesma forma, existe uma gradação.
É bem verdade que até certos animais reagem de forma diferente sob influência da música,
entretanto, o homem pode exercitar-se de forma a perceber a real beleza dos cantos e ritmos,
além do simples prazer.75

O uso da música não se limita a um só gênero de utilidade, que, antes, ela


deve ter vários. Com efeito, ela pode servir à instrução, à purificação (…);
finalmente, ao prazer, como meio de distração e repouso após uma atenção
prolongada.76

Note-se que, evidentemente, o homem pode servir-se da música tanto para o bem
quanto para o mal, sem que por isso ela seja intrinsecamente má.77

3.1.1. Experiência agostiniana

Um exemplo elucidativo é o de Santo Agostinho, que comprovou e tentou descrever


esta força moral:

Quanto chorei ao ouvir, profundamente comovido, teus hinos e cânticos que


ressoavam suavemente em tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em meus
ouvidos, e destilavam a verdade em meu coração. Acendia-se em mim um

73
ARISTÓTELES. Op. cit., p. 276.
74
ARISTÓTELES. Op. cit., p. 278.
75
Cf. Ibid.
76
ARISTÓTELES. Ibid., p. 280.
77
As artes, em geral, seguem o mesmo princípio. Além disso, para a brevidade do trabalho, não mencionamos
outros estilos musicais mais recentes (como o Rock’n Roll, etc.), apesar de estes serem um excelente exemplo do
mau uso da música.
33

afeto piedoso, corriam-me lágrimas dos olhos, e o pranto me consolava.78

Porém, antes mesmo de sua conversão, encontramos no olhar da Águia de Hipona uma
raiz musical, a ponto de ter escrito um De Musica, composto de seis livros.

O primeiro livro trata sobre o pé rítmico, sendo o ponto de arranque o


diálogo, assim como os diversos conhecimentos musicais, como o instintivo
ou os que se deixam cativar pela música, e conclui com o ritmo. O segundo
livro trata sobre os espaços e o tempo e suas combinações: breve-breve,
breve-larga, larga-breve e larga-larga. Isto é usado tanto na gramática, por
exemplo na poesia, e no ritmo da música. O terceiro livro, chamado métrica,
como a síntese dos elementos. O livro quarto é uma conjunção entre métrica
e ritmo. O livro quinto estuda o verso. O livro sexto, que é o filosófico, trata
da finalidade dos outros cinco, assim como da elevação dos sentidos
sensíveis às coisas insensíveis ou espirituais e fixar-se em Deus. É uma
exposição sobre seu argumento do conhecimento de Deus através das
realidades sensíveis.79

Para Agostinho, a “música é a ciência de modular bem”.80 Ora, a cada um dos termos
desta tão precisa definição cabe uma breve explicação.
Em primeiro lugar, ele inclui o termo “scientia” na definição com o objetivo de
distinguir o canto dos animais, da verdadeira música, pois o canto das aves strictu sensu não
pode ser considerado música.81 Por outro lado, este vocábulo está relacionado com a tradição
pitagórico-platônica, Pitágoras foi o primeiro a considerar a música como uma ciência, o que
Platão tomou para a filosofia.82
Em seguida, “modular” (“modulandi”): “Não incongruentemente se define modulação
como uma certa habilidade de movimento, ou com maior segurança aquilo que resulta de algo
que se move”.83 Para a existência da modulação é indispensável o movimento. Assim, em

78
AGOSTINHO DE HIPONA. Las Confesiones, IX, 6, 14. In: Obras completas de San Agustín. v. II. Madrid:
BAC, 1979, p. 361. (tradução pessoal): “Quantum flevi in hymnis et canticis tuis suavi sonantis ecclesiae tuae
vocibus commotus acriter! Voces illae influebant auribus meis et eliquabatur veritas in cor meum et exaestuabat
inde affectus pietatis, et currebant lacrimae, et bene mihi erat cum eis”.
79
ORTEGA, Jafet. Los seis libros sobre la música de San Agustín: guía para una lectura actualizada. In: Religión
y Cultura, v. 50, 2004, p. 741-747. (tradução pessoal): “El primer libro trata sobre el pie rítmico, siendo el punto
de arranque de todo diálogo así como los diversos conocimientos musicales, como el instintivo o los que se dejan
cautivar por la música y concluye con el ritmo. El segundo libro trata sobre los espacios y el tiempo y sus
combinaciones. Breve-breve, breve-larga, larga-breve y larga-larga. Esto es tanto gramatical usado por ejemplo
en la poesía y en el ritmo de la música. El tercer libro llamado metro como la síntesis de dos elementos. El libro
cuarto es una conjunción entre metro y ritmo y el libro quinto estudia el verso. El libro sexto que es el filosófico
trata de la finalidad de los otros cinco así como la elevación de los sentidos sensibles a las cosas insensibles o
espirituales y fijarse en Dios. Es una exposición sobre su argumento del conocimiento de Dios a través de las
realidades sensibles”.
80
AGOSTINHO DE HIPONA. De Musica, I, 2, 2. In: Obras completas de San Agustín. La música. Vol.
XXXIX. Madrid: BAC, 1988, p. 73. (tradução pessoal): “Musica est scientia bene modulandi”.
81
Cf. AGOSTINHO DE HIPONA. Ibid., p. 80.
82
Cf. OTAOLA, Paloma. La música como ciencia en San Agustín. In: Augustinus, v. 166-167, 1997, p. 344.
83
AGOSTINHO DE HIPONA. Op. cit., p. 76. (tradução pessoal): “Modulatio non incongrue dicitur movendi
quaedam peritia, vel certe qua fit ut bene aliquid moveatur”.
34

certo sentido a música pode ser condiderada também como a arte mover,84 mover não tanto os
corpos, mas sobretudo os espíritos inteligentes. Pois a boa modulação é que estabelece uma
harmoniosa relação entre o mundo externo e a alma.
Por último: “bem”. Esta palavra não é supérflua, mais serve para precisar o termo
“modulatio”, que contém a ideia de medida. Assim, trata-se de saber qual é a medida
adequada.85
Santo Agostinho “legitimou a concepção que o prazer estético ou o gozo da beleza, da
música, ajuda à alma a elevar-se à beleza de Deus”.86 Devido à influência pitagórica, vemos
nos escritos agostinianos uma conexão numérico-estética.

No fundo de toda a beleza, seja qual for, resplandece o mundo imaterial dos
números, que se regem por relações imutáveis. Dito mundo, cujos princípios
são de uma simplicidade tão pura que se estende a todas as coisas, não
depende do homem. Habita em Deus, mas se reflete na matéria e ilumina a
música do mundo.87

Autores posteriores, de cunho agostiniano, ressaltam a íntima relação entre o número e


o deleite, ou seja, a beleza musical.

Quando analisamos o prazer musical, temos de chegar à conclusão de que


uma harmonia psíquica tem que corresponder à harmonia da melodia
objetiva. Existe número e ritmo no som, número e ritmo no sentido, número
e ritmo no encontro de ambos os termos; número e ritmo no deleite
resultante da percepção: “este número, posto que é o que proporciona o
deleite, se denominou acertadamente número sensível”.88 Atrás deste deleite
sensível, espontâneo e irracional, surge o juízo musical, pensado, motivado e
“numerus judicialis”. Restitui a impressão fugitiva dos sentidos às normas
estáveis da harmonia e sabe por que está justificado o prazer, o que produz
um deleite de ordem superior.89

Conclui-se que, aparentemente, esse “deleite de ordem superior”, originado na


harmonia entre número e ritmo, é o ponto de partida para a força moral de determinada
música.

3.2. Particularidades do Gregoriano

Analisando esta força moral aplicada ao gregoriano, podemo-nos perguntar qual a sua
proveniência. Decorre da melodia? Do ritmo? Tudo indica que, apesar de ter seu papel, a

84
Ibid., p. 78. (tradução pessoal): “Musica est scientia bene movendi”.
85
Cf. OTAOLA, Paloma. La música como ciencia en San Agustín. In: Augustinus, v. 166-167, 1997, p. 343-344.
86
PIQUÉ COLLADO, Jorge. Teología y Música. Roma: Editrice Pontificia Universitá Gregoriana, 2006, p. 119.
87
BRUYNE. Op. cit., p. 73.
88
“qui numerus, cum sit praestans delectationem, sensualis congrue nominatur”.
89
GROSSETESTE, Roberto. BRUYNE. Op. cit., p. 143.
35

“essência” dessa força não reside nesses predicados, já que outros estilos podem ser muito
mais aperfeiçoados nestes aspectos sem, contudo, possuírem a força do gregoriano.

A força do gregoriano talvez resida justamente no fato de haver brotado


naturalmente – como manifestação autêntica de una compenetração interior
muito grande, de uma mentalidade e uma mística que propriamente
configuram uma determinada mentalidade – e não por ser um estilo
encomendado, criado para produzir um efeito específico. Os efeitos
produzidos são apenas uma consequência de uma autenticidade interior.90

Esse “surgimento natural” indica que não foi invento de um único homem, mas leva a
crer que foi a expressão comum da multidão dos crentes.
Além de que o gregoriano tem uma força até pelo que ele tem de implícito e
insinuado, mesmo que o cantor a tenha explícita ou intenção de fazer uso dela.91
Portanto, revela que este canto não tem proporção com a capacidade humana, se o
músico mais genial da história dedicasse sua vida à criação de um estilo similar, certamente
não chegaria aos “calcanhares” do genuíno canto gregoriano. Um exemplo elucidativo: conta-
se que Mozart, ao ouvir a melodia gregoriana do prefácio litúrgico disse que daria toda a sua
obra em troca para ter composto aquela simples melodia.92

O gregoriano é, propriamente, a música da alma. Depois que a alma viu


tudo, conheceu tudo, espera. Então, ela musica o estado de alma enquanto
superior a tudo e em tudo superado.93

O canto gregoriano tem uma proporção muito maior com a alma e com as realidades
espirituais, que com o corpo ou as realidades mais concretas. Daí vem esta força moral.

3.2.1. Música da reflexão

Uma característica que intensifica esta “capacidade persuasiva”, já mencionada


anteriormente, é sua “sujeição” ao texto do canto.

O canto gregoriano se caracteriza por uma certa igualdade na duração dos


sons e pela uniformidade de matizes. Ele despreza tudo o que é expressivo,
no sentido que entendemos com esta palavra em nossos dias. De onde vem,
pois, com tal modéstia de meios, o logre atingir uma tal potência, uma tal

90
GOYARD, Louis. Fundamento histórico de la legislación actual en materia de música sacra: Tese de estrado.
- Instituto Superior de Direito Canônico da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011. (tradução
pessoal): “La fuerza del gregoriano talvez resida justamente en el hecho de haber brotado así naturalmente –
como manifestación auténtica de una compenetración interior muy grande, de una mentalidad y una mística que
propiamente configuran una determinada mentalidad – y no por ser un estilo de encomienda, creado para
producir un efecto específico. Los efectos producidos son apenas una consecuencia de una autenticidad interior”.
91
Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 6 abr. 1978. (Arquivo ITTA-IFAT).
92
Cf. CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 13.
93
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 9 jun. 1976. (Arquivo ITTA-IFAT).
36

variedade? Como ele se eleva a esta serenidade grandiosa, a esta paixão


concentrada, e a esta inefável doçura? Aqui, a música segue o ritmo da
palavra; ao contrário do bel-canto, que apenas se serve da palavra à maneira
de suporte para exercícios de virtuosidade vocal, a música assume a forma
das palavras, e parece estar presente apenas para intensificar-lhe o sentido.94

Quase se diria que tanto a melodia quanto o ritmo, aqui, ocupam um lugar acidental
em relação à letra.

Quando se tratar de uma coisa cantada, nunca se deve ir diretamente à


música. Deve-se ir diretamente ao texto, procurar entender e fazer a análise
daquilo que vai ser cantado. Depois se entende melhor a canção. Porque toda
a canção não é senão o fundo sonoro para uma ideia, e toda música não
cantada é, em última análise, uma música que está à espera de uma letra.
Porque o próprio do homem é pensar e cantar e não cantar sem pensar. A
música dá ao pensamento alguma coisa que a palavra não diz. A música e o
pensamento foram feitos para se completarem.95

Vemos aqui a singular profundidade deste cântico, profícuo complemento do


pensamento humano, além de sua utilidade linguística.

3.2.2. Oito modos, oito estados morais

Outra característica singular é a variedade de modos que o gregoriano comporta.


Praticamente todas as melodias se encaixam em oito modos, derivados dos modos gregos.
Assim, neste canto profundamente penetrante na alma humana, cada modo cria um
estado de espírito, ou estado moral, diferente do outro.

Quanto às artes, como Deus estabeleceu misteriosas e admiráveis relações


entre formas, cores, sons, perfumes e sabores de um lado, e de outro lado
certos estados de alma, é claro que por estes meios se pode influenciar a
fundo as mentalidades e induzir pessoas, famílias e povos à formação de um
estado de espírito.96

Ademais, já Aristóteles corroborava com esta tese ao referir-se aos modos gregos, dos
quais derivaram os modos gregorianos:

Ao contrário, a música é a imitação das afeições morais, e isso é evidente,


porque existem diferenças essenciais na natureza dos diversos acordes.
Aqueles que os ouvem se impressionam de diferentes modos a cada um dos
seus acordes: alguns destes, como o tom mixolídio, os predispõem à
melancolia e a sentimentos concentrados: outros inspiram voluptuosidade e
abandono como os tons moderados. Uma outra harmonia intermédia traz à
alma paz e repouso; é só o tom dórico que produz esse efeito, ao passo que o

94
CHAMPIGNEULLE. Op. cit., p. 13. (tradução pessoal).
95
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 8 nov. 1975. (Arquivo ITTA-IFAT).
96
Id. Revolução e Contra-Revolução. 6. ed. São Paulo: Retornarei, 2008, p. 85.
37

frígio excita o entusiasmo.97

E os medievais tentaram resumir em uma palavra cada um dos oito estados morais:
primus gravis, secundus tristis, tertius mysticus, quartus harmonicus, quintus lætus, sextus
devotus, septimus angelicus, octavus perfectus.98
Posteriormente, os estudiosos do gregoriano desenvolveram cada um destes termos,
chegando a descrever um “ethos” próprio a cada modo.

“Primus gravis”, diziam os antigos... O que não quer dizer: torpe, pesado,
envelhecido, mas sério e maduro. O I modo é um modo de maturidade
adquirida, que canta com um movimento de dignidade e distinção simples,
que dão a experiência e a reflexão. Tem grandeza, energia e firmeza; é uma
piedade sem presunções. Ajusta-se às grandes obras, e sabe ser magnífico e
sério sem pompa.99

Do segundo modo, os medievais diziam: “Secundus tristis”. Tal título é cabível, mas
não é completo, pois a tristeza não deve ser entendida como desanimadora ou desesperada,
mas, além de certo dramatismo, este modo incute segurança e satisfação. Expressa a situação
da alma que “se sente humilhada por ser pecadora e o reconhece”100

Desta maneira, o modo segundo apresenta-se como o mais humano. Esta


atitude de alma que se ocupa de si mesma não encontra no ambiente dos
outros modos. De fato, esta atitude de alma, que em parte tem algo de
humildade e muito de bom sentido ou de realismo, é próprio do estado da
alma dos pecadores que confiam. Este clima é ao mesmo tempo muito
humano e muito espiritual. Seria preciso um novo modo para cantar este
equilibrio e esta dupla oração.101

O terceiro modo, “mysticus”, é considerado “o modo mais misterioso de todos".102 E


também o menos moderno, já que dificilmente se adapta às regras harmôncias
contemporâneas.

Este modo se adapta aos textos que imprimem grade impetuosidade, desejos
veementes, movimentos de cólera, ardor, diligência e laboriosidade.
Expressa felizmente as ordens, os mandatos e as ameaças. Surpreende por
sua vivacidade; palpita em suas progressões e se aplica aos motivos que
anunciam, orgulho, altivez, crueldade, linguagem dura e aos temas que
tratam de combates espirituais e corporais: desperta com mais prontidão que
qualquer outro modo os afetos do coração, é patético: neste modo, variam

97
ARISTÓTELES. Op. cit., p. 276.
98
Nomenclatura medieval de autoria desconhecida. Cf. SAULNIER, Daniel. Los modos Gregorianos. Abbaye
de Solesmes: Solesmes, 2001, p. 21.
99
SAULNIER. Op. cit., p. 51-52.
100
Ibid., p. 58.
101
Ibid., p. 59.
102
GAJARD, apud SAULNIER. Op. cit., p. 65.
38

afortunadamente os movimentos de força, grandeza, nobreza e doçura.103

O quarto modo é tido como o mais contemplativo e o mais harmônico pois coincide
com o modo dórico dos gregos, o qual era tido por eles como o modo harmônico por
excelência.104
O quinto modo expressa, por sua vez, uma alegria “decidida e triunfal”,105 uma alegria
mais exterior, é o modo menos “confidencial”.106 É considerado o modo mais moderno, por
coincidir com a escala maior hodierna.107
“Sextus devotus”: é o modo da piedade, da verdadeira piedade tranquila e abandonada.
Revestido de aparente pobreza, é um modo ao mesmo tempo profundo, simples e inocente. O
entusiasmo permanece sempre discreto. É o modo mais próprio às crianças.108
O sétimo modo é transparente. É fácil reconhecer sua estrutura, é simples, sem
afetação, possui uma juventude sem complexidade, sem segundas intenções, e um entusiasmo
convencido e natural. “Este modo, chamado angelicus pelos antigos, parece ter asas (…). Dir-
se-ia que carece de peso, e que está cheio de uma alegria ligeira, que é ágil nos grandes
intervalos até o agudo, e sabe manter-se sem esforço nas alturas”.109

Este modo é próprio dos grandes temas, dos grandes movimentos, das
exclamações varonis, dos acontecimentos surpreendentes, assombrosos,
estrepitosos; é majestoso e imperativo; excita e anima a alegria, desperta o
espírito; se expressa com grandiosidade; suas progressões se desenvolvem
mediante saltos e brincadeiras suaves e melodiosas; alenta o gosto pelas
coisas celestes, se presta à admiração, caminha com ar confiante, ousado, e
de ânimo varonil... 110

O oitavo modo é muito solene, suntuoso e sonoro, e pode “adaptar-se a muitos estados
de alma”.111

Na verdade, o seu múltiplo encanto de que tratamos de oferecer as causas, e


suas formas sempre nobres, o faz perfeito e quase universal, sem ponto débil
nem lacuna. (...) Parece que toma voo, mas se mantém sempre num
equilíbrio e numa força serena que lhe são instintivos.112

Esta explanação de cada estado moral poderia prolongar-se por todo um trabalho à

103
POISSON, apud SAULNIER. Op. cit., p. 66.
104
Cf. SAULNIER. Op. cit., p. 77.
105
Ibid., p. 83.
106
Ibid., p. 84.
107
Cf. Ibid, p. 86.
108
Cf. Ibid., p. 89-91.
109
Cf. Ibid., p. 96.
110
POISSON, apud SAULNIER. Op. cit., p. 97.
111
JEANNETEAU, J, apud SAULNIER. Op. cit., p. 102.
112
SAULNIER. Op. cit., p. 102.
39

parte, no nosso âmbito, parece-nos suficiente o acima exposto, tendo por objetivo elucidar que
a cada modo do gregoriano corresponde um estado de espírito enormemente diferente dos
demais.

3.2.3. Cântico Divino

Apesar de tudo o esclarecido anteriormente, alguém poderia objetar que essa ‘força
moral’ não existe realmente, já que ninguém a utilizou.
Realmente, pode-se admitir como provável que raros são os que a tinham tão clara
como a temos hoje. Mas, inúmeras foram as ocasiões históricas em que esta força mostrou seu
potentado, mormente quando a causa de Deus estava em jogo. Conta-se que depois da
Reforma de S. Gregório Magno, o Canto Gregoriano difundia-se com os missionários que,
conhecendo ou apenas intuindo esta capacidade, convertiam multidões.

Um novo espírito penetrou as velhíssimas melodias. Por dez séculos esse


canto não nos abandonará. Por mil anos encherá toda a história da música,
estreitamente ligada ao desenvolvimento da religião cristã, com o seu triunfo
e expansão no mundo. Os missionários servem-se dele para converter os
pagãos e, assim, levam-lhes ao mesmo tempo uma nova religião e uma nova
música.113

Em suma, vislumbramos neste cântico um quê de divino, quer por sua desconhecida
origem, quer por sua inspiração sobre-humana, por sua finalidade litúrgica, por suas regras, ou
mesmo pelos seus efeitos.

É o amor que está no mais fundo da origem do cantar, diz Santo Agostinho:
“O cantar é coisa do amor”.114 Com isso voltamos à interpretação trinitária
da música da Igreja: o Espírito Santo é o amor. E, n’Ele está a origem do
canto. Ele é o Espírito de Cristo, é Ele que atrai ao amor através de Cristo e
desta forma nos conduz o Pai.115

Em última análise, a causa última, a causa final e, também a seu modo, a causa
eficiente remetem unicamente a Deus. Restando ao homem uma participação nesse cântico,
enquanto causa material.
Finalmente, tendo presente, ainda que de modo não inteiramente claro, a força moral
do canto gregoriano, por que não fazemos uso dela em nossos dias? Não nos parece que essa
força goze de um prazo de validade já vencido há séculos, mas, em sentido contrário, parece

113
PAHLEN. Op. cit., p. 33.
114
AGOSTINHO DE HIPONA. Sermão 336. In: Obras completas de San Agustín, v. XXV. Madrid: BAC, 1984,
p. 758: “Cantare amantis est”.
115
RATZINGER, Joseph. El Espírito de la Liturgia: Una introducción. Trad. Raquel Canas. Madrid:
Crinstiandad, 2001, p. 165. (tradução pessoal).
40

assemelhar-se à perenidade de Deus.


41

CONCLUSÃO

Depois de termos explorado vários conceitos de música, de termos percorrido a


aventura do Canto Gregoriano na história e em suas características; e, por fim, penetrarmos na
“profundidade moral” deste canto, resta-nos findar estas considerações sabendo que o assunto
desenvolvido limitadamente neste trabalho ainda pode ser largamente desenvolvido.
Longe de esgotarmos o tema, pretendemos apenas abrir novas vias, aliás, tão antigas e
tão novas, para futuras pesquisas.
Aprofundada esta “força”, a música poderá curar doenças físicas, restituir o equilíbrio
psíquico ou fomentar as boas atitudes morais?
A resposta escapa ao âmbito lacônico de nosso trabalho. Os filósofos, músicos,
psicólogos e todos quantos se dedicam ao tema tratado no decorrer destas páginas saberão
retirar o suco que compete à respectiva área de pesquisa e fazê-lo render em consequências
para a sociedade atual.
O certo é que esta “força moral” da música in genere e especificamente do Canto
Gregoriano pode ser muito mais explorada do que o é em nossos dias.
42

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