Texto 15 - Aula 6 - História Medieval, Vol. 2, Aula 17, P. 193-221

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Aula

A Igreja
Católica na
Europa medieval
ocidental
História Medieval

Meta da aula

Apresentar as características fundamentais da inserção da Igreja Católica na


formação da Europa medieval ocidental, ao longo de suas várias etapas históricas.

Objetivos

Ao final do estudo do conteúdo desta aula, você será capaz de:

1. identificar as características principais da formação da Igreja Católica e da sua


hierarquia de poder entre o fim do mundo antigo e o início da Idade Média;

2. reconhecer as relações de trocas, poder e legitimidade instituídas entre o Estado e a


Igreja no período carolíngio;

3. apresentar as características principais da teocracia pontifícia que marcaram o


apogeu do poder da Igreja Católica no período da Idade Média central, entre os
séculos XI e XIII.

Pré-requisitos

Para uma eficiente compreensão desta aula, recomendamos a revisão das Aulas 3, 6,
14 e 16, com especial atenção para a contextualização e os conceitos relacionados
com a atuação da Igreja Cristã apresentados nessas aulas.
O uso de um atlas favorecerá a sua compreensão das noções espaciais das regiões
e localidades citadas nesta aula; recomendamos, dentre outros, o Atlas de História
Medieval do historiador e demógrafo Colin McEvedy (2007).

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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

INTRODUÇÃO

Devido ao grande poder e riqueza do segmento eclesiástico


naquela época, as heresias medievais funcionaram muitas vezes Heresias
como uma transferência de aspirações socioeconômicas para o Vem do grego hairesis,
que significa escolha;
plano espiritual.
interpretações e práticas
Nesta aula, você identificará as principais etapas constitutivas religiosas contrárias

da história da Igreja Católica medieval em seu processo de àquelas oficialmente


adotadas pela
organização institucional e de formação de suas crenças e valores;
Igreja Católica eram
você também analisará as relações entre a Igreja e as monarquias consideradas heresias.
medievais, principalmente a monarquia franca e o Império
Carolíngio, que favoreceram a organização do patrimônio da Igreja
e o fortalecimento de seu poder político e ideológico; você também
estudará o período de apogeu da Igreja medieval, ocorrido entre
os séculos XI e XIII, quando se formou a concepção da teocracia
pontifícia.

Nesse período da história medieval, o papa proclamou a sua


condição de monarca secular, representante de Deus na Terra (vigário
de Deus), chefe único e infalível do poder espiritual. Assim, buscava
projetar o seu poder sobre os demais monarcas seculares. A reforma
gregoriana, a teocracia pontifícia, o movimento das Cruzadas, a
criação do Direito Canônico e a organização da Inquisição foram
manifestações desse período de apogeu do poder pontifício.

O Cristianismo no mundo antigo e a


formação da Igreja Cristã

Por volta do ano de 64, o governo imperial romano adquiriu


consciência de que o cristianismo era algo mais do que uma nova
seita do judaísmo. Isso ocorreu porque o cristianismo, ao romper
com seu parente mais próximo – o judaísmo – acabou por fazer
concessões ao helenismo, fato que, do ponto de vista judaico, era

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História Medieval

um escândalo e, do ponto de vista romano, um perigo. Ao contrário


da ordem de prioridades estabelecidas pelo judaísmo, a primeira
preocupação da Igreja cristã não era apenas a preservação própria,
mas a conversão do resto da humanidade. Tão logo começou a
conquistar adeptos não judeus, o cristianismo isentou-os do rito da
circuncisão e da observação da Lei Mosaica, exceto num mínimo de
pontos fundamentais. Tornou-se também atraente para os helenos,
pela não observância dos dois primeiros dos Dez Mandamentos.

Se suas concessões ao helenismo tivessem sido feitas ao


ponto de abandonar o sectarismo e a intolerância, que constituíam
a característica cultural mais fechada do monoteísmo judaico, o
cristianismo poderia ter sido tão inofensivo para o governo imperial
como qualquer outra religião missionária oriental com a qual o
Império romano estava em competição. Mas, ao mesmo tempo
em que abria seus braços ao helenismo, tentando as “famintas”
almas helênicas a procurarem apoio espiritual no seio da Igreja, “o
cristianismo mostrava a mesma intransigência judaica na rejeição
de todos os aspectos do modo de vida helênico que não lhe
pareciam dignos de serem adotados” (TOYNBEE, 1983, p. 207).
O cristianismo era, portanto, tão pernicioso como tentador para os
helenos.

Para Arnold Toynbee, “a força de todas as religiões


missionárias residia na sua capacidade de devolver à vida helênica
um pouco do significado e do estímulo que havia perdido” (1983,
p. 208). Quando a Igreja cristã adotou as artes visuais helênicas, as
línguas grega e latina, a filosofia helênica e as instituições políticas
romanas como meios de se colocar em contato com os helenos
passíveis de conversão, ela “não só conseguiu obter meios eficientes
de comunicação, como também os revigorou, insuflando nova vida
cristã nas ressecadas veias helênicas” (ALFÖLDY, 1989, p. 225).

Uma das razões da insipidez que predominava no mundo


helênico se assentava no fato de que a retardada paz mundial
privava a maioria das pessoas da oportunidade de arriscar – e, se
fosse o caso, perder – a vida por uma causa que transcendesse os

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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

pequenos interesses pessoais. Antes que os cristãos começassem a


ser vítimas de martírios, os únicos habitantes do Estado mundial que
tinham uma função estimulante eram os soldados que guardavam
as fronteiras contra os partos e os bárbaros. Logo que os cristãos
tiveram de começar a arriscar a vida – uma parte cada vez maior da
população das cidades do interior reconquistou a satisfação de viver
perigosamente, gozada pelos cidadãos das mesmas cidades numa
época em que estas lhes exigiam o risco da vida em seu serviço.
Surpreendentemente, os novos heróis eram recrutados nas fileiras
da classe média inferior, desprezada pela classe média superior e
pela aristocracia helênica.

O cristianismo difundiu-se no mundo greco-romano


apresentando uma concepção de mundo profundamente pacifista
e agregadora. De forma peculiar, quando comparado a outras
religiões de mistérios e salvação populares nesse período, o
cristianismo realizou diversas concessões e trocas simbólicas em
prol de um ideal universalizante e agregador. Assim, garantiu a
rápida expansão entre os segmentos inferiores e médios da estrutura
social do mundo helênico e romano. O cristianismo foi eficiente em
tornar sua mensagem religiosa e sua cosmovisão compreensíveis
para ouvintes não-judeus ou familiares a outras culturas religiosas.
Conforme identificou Christine Prieto:

Para os pregadores, tratava-se de adaptar seus discursos a


esse universo cultural novo, para valorizar a especificidade
do Evangelho, apoiando-se em modos de pensamento
diferentes. Era também necessário ditar linhas de conduta,
que poderiam funcionar como sinais de identidade cristã,
demarcando seus limites em relação às mentalidades
e comportamentos pagãos. E para convencer, a fim de
converter, era necessário não se chocar de frente com
mentalidades estrangeiras, mas mudar interiormente as
pessoas, tomando por base de argumentação o próprio
sistema de pensamento delas (PRIETO, 2007, p. 5).

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História Medieval

Ao longo do século III, as conversões em massa se aceleram.


Com a crescente orientalização do culto, as características
notadamente romanas vão ficando para trás. É o cristianismo
que passará a sustentar o esqueleto do Império Romano em crise,
trazendo uma nova moral e um conjunto de novas expectativas com
os ensaios teológicos dos santos padres da Igreja. Ao final do século
IV, o cristianismo triunfou definitivamente sobre o Império Romano
e suas áreas de influência no mundo mediterrâneo, alcançando a
posição de religião de Estado. O progressivo declínio do Império

Pais da Igreja Romano exigiu da Igreja Cristã uma nova orientação em prol de sua
Conceito que designa autonomia de poder e de sua identidade moral. Assim, conforme
os teólogos gregos e definiu Josef Lenzenweger,
latinos dos primeiros
séculos cristãos,
Não questionavam o principio da coordenação. O
cujas obras são
caracterizadas pela modelo tradicional da religião como fundamento do
defesa da ortodoxia, bem-estar público continuava dominando as consciências,
pela santidade de
embora a instabilidade política e a experiência dos
vida. Em virtude da
aprovação que suas cismas eclesiásticos exigissem uma Com a integração do
idéias receberam da cristianismo na estrutura do Império Romano, a Igreja ficou
Igreja construíram exposta ao crescente risco de perder sua autonomia. As
de forma coletiva
críticas contra abusos do poder estatal praticamente nova
e metódica os
fundamentos da orientação (LENZENWEGER, 2006, p. 85).
teologia cristã, entre o
fim do mundo antigo Essa nova orientação fundada na autonomia teológica e na
e o início da Idade
identidade ética cristãs foi construída pela Patrística grega e latina.
Média. Destacam-se, no
Ocidente, as obras de Graças a esse movimento, as leis mosaicas e gregas são revisitadas; é
Tertuliano (150-222), aceita a influência da filosofia grega, apesar da recusa dos costumes
Ambrósio (330-397),
gregos, que são condenados. É diante desse processo seletivo que
Jerônimo (347-420),
está a força da filosofia dos Pais da Igreja em definir quem são
Agostinho (354-430),
Gregório Magno pagãos e quais práticas devem ser condenadas. Esse é o momento
(540-604) e Isidoro em que os cristãos se afastam definitivamente do judaísmo.
de Sevilha (570-636).
Destacam-se, no oriente, Mais tarde, o imperador Constantino (312-337) percebeu o
as obras de Clemente caráter irrevogável da existência de um crescente avanço da prática
de Alexandria († c.
cristã. Assim, em 312, concedeu aos cristãos a liberdade religiosa,
215) e de Orígenes (†
254). por meio de um decreto, o Edito de Milão. Cabe aqui uma pergunta:

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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

teria o imperador Constantino se convertido ao cristianismo?


As fontes para responder a essa pergunta são diversas e variadas
em seus conteúdos, mas nenhuma permite alcançar uma certeza
sobre a sua conversão.

O Edito de Milão é também referenciado como Edito da


Tolerância, declarava que o Império Romano seria neutro
em relação ao credo religioso, acabando oficialmente com
toda perseguição sancionada oficialmente, especialmente
do Cristianismo. O edito foi emitido nos nomes do tetrarca
ocidental Constantino I, o Grande, e do tetrarca oriental Licínio,
Sua aplicação deu ao cristianismo (e a todas as outras religiões)
o estatuto de legitimidade, comparável com o paganismo e, com
efeito, levou ao fim do paganismo como a religião oficial do Império
Romano e dos seus exércitos.

Portanto, ao levarmos em consideração a dificuldade em


datar o ano da conversão do Imperador; a dúbia interpretação da
inscrição no arco do triunfo de Roma, e; por último, a reforma do
Direito Romano realizada por Diocleciano e Constantino, poderemos
chegar à conclusão de que Constantino foi, na verdade, um hábil
político, pois ao perceber o irreversível processo de cristianização
do Império, manteve a governabilidade de suas instituições por meio
de sua neutralidade religiosa.

Somente mais tarde, no ano de 380, com o imperador


Teodósio, o cristianismo viria a se tornar a religião oficial do Império
Romano. Na segunda metade do século IV, o cristianismo ultrapassou
as fronteiras do mundo romano e projetou sua influência sobre
diversas outras regiões e culturas, dentre as quais destacamos:

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História Medieval

1. a Pérsia da dinastia Sassânida;

2. a Armênia;

3. as regiões do Cáucaso;

4. as tribos árabes;

5. a Etiópia.

Desenvolveu-se nesse período a liturgia dos sacramentos,


as formas de piedade, o culto dos mártires, as peregrinações, a
cristianização dos costumes, o desenvolvimento das instituições de
caridade e a organização institucional da Igreja Cristã. Assim, ao
final do século IV, conforme a precisa definição de Henri Marrou: "Ser
cristão é antes de tudo ocupar um lugar em uma sociedade original
e fortemente estruturada: a Igreja" (MARROU, 1963, p. 349).

A hierarquização da Igreja Católica na


primeira Idade Média

Nascida nos quadros do Império Romano, a Igreja ia aos


poucos preenchendo os vazios deixados, até, em fins do século IV,
identificar-se com o Estado, quando o cristianismo foi reconhecido
como religião oficial. A Igreja passava a ser a herdeira natural do
Império Romano. Mas, para tanto, ela precisava ter sua própria
hierarquia, realizando e supervisionando os ofícios religiosos,
orientando os fiéis quanto às questões de dogma, executando obras
sociais, combatendo o paganismo. A concentração de todas essas
atividades nas mãos de apenas alguns cristãos era aceita com
certa naturalidade pelo conjunto dos fiéis, já que tal poder lhes fora
atribuído pela própria Divindade: segundo o texto bíblico, Cristo
teria dado aos apóstolos autoridade para expelir demônios; por
sua vez, eles transmitiram esse poder aos bispos, isto é, os anciãos
da comunidade, que fizeram o mesmo com seus auxiliares. Logo,
“o clero se formava pela transferência de certo poder extra-humano
por parte de quem o possuía, para indivíduos que, desde então,

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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

passavam a integrar a mesma comunidade sagrada” (FRANCO,


2001, p. 68). Desde o princípio, por sua própria natureza, o clero
estava distanciado dos demais cristãos.

Nos primeiros tempos, não havia condições definidas


para o acesso à função eclesiástica. Apenas no século IV, deter-
minou-se que somente homens livres poderiam ingressar no clero,
e proibiu-se a passagem direta do laicato para o episcopado, Laicato
tornando-se necessário exercer antes uma função inferior. O sustento Refere-se ao conjunto
dos cristãos laicos,
do clero advinha das esmolas dadas pelos fiéis, de acordo com
ou seja, que não
o princípio, expresso na Bíblia, de “quem serve ao altar vive do pertencem ao clero nem
altar” (1 Coríntios 9,13). O celibato não era obrigatório, apenas a uma ordem religiosa.

recomendado, tendo surgido a primeira legislação a respeito na


Espanha, onde o sínodo de Elvira proibiu, em 306, o casamento Sínodo
É uma assembleia
aos clérigos, sob pena de destituição. Apoiada pela autoridade dos
periódica de bispos
Pais da Igreja, a prescrição foi aos poucos se impondo ao clero de todo o mundo que,
de outros locais. Também ao longo do século IV firmaram-se outros presidida pelo papa,
elementos e o privilégio de um tribunal próprio, a que mesmo os se reúne para tratar de

leigos estavam às vezes submetidos.

Para a formação e a organização da hierarquia eclesiástica,


acabou contribuindo bastante, paradoxalmente, um elemento que
punha em risco a própria existência da Igreja: as heresias. Essas eram
produto do sincretismo que fazia a força, mas também a fraqueza,
do cristianismo. De fato, ao reunir e harmonizar componentes de
várias crenças da época, a religião cristã tornava-se mais facilmente
assimilável, porém passível de interpretações discordantes do
pensamento oficial do clero cristão. Do ponto de vista deste, heresia
era, portanto, um desvio dogmático que colocava em perigo a
unidade da fé. Essa unidade fundamentava-se na busca de uma
doutrina cristã coerente com as concepções transmitidas a partir das
comunidades cristãs primitivas, fundadas e organizadas em torno
dos apóstolos. Assim, segundo a definição de Josef Lenzenweger,

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História Medieval

(o) surgimento das heresias não corresponde à imagem


de uma fonte inicialmente pura, e que, aos poucos, tivesse
sido conspurcada por doutrinas falsas, mas deve-se à
multiplicidade dos testemunhos da fé, a qual, por causa
de escolhas unilaterais, levou à formação de comunidades
segregadas (seitas), desviando-se da doutrina. O confronto
com as heresias foi conduzido com grande veemência;
contribuiu substancialmente para a evolução da doutrina da
Igreja e para o a confirmação dos fiéis (LENZENWEGER,
2006, p. 24).

Qualquer ideia que parecesse herética era, então, submetida


à apreciação do bispo local. Este, geralmente, colocava a questão
perante seus pares nas assembleias episcopais ou sínodos que,
já desde meados do século II, se reuniam para tratar de tudo que
interessasse à igreja local. Mas as questões de doutrina eram
debatidas sobretudo nos concílios ecumênicos, que congregavam
bispos de todas as regiões. O Concílio de Niceia, em 325, visava
fundamentalmente a se posicionar diante do arianismo, corrente
para a qual Cristo, por ter sido criado pelo Pai, não era da mesma
substância Dele, sendo-lhe inferior. Logo, como concluiu o concílio, tal
ideia contrariava o dogma da Trindade, daí ter sido condenada.

Enfim, todos os 19 concílios ecumênicos reunidos até


o século XVI tiveram papel fundamental na definição e
estruturação da Igreja. Sua cronologia indica o próprio
ritmo de organização da Igreja: dois no século IV, dois
no século V, um no VI, um no VII, um no VIII, um no IX,
três no XII, três no XIII, um no XIV, dois no XV, dois no XVI
(FRANCO, 2001, p. 69).

Entretanto, a figura dos concílios não eliminava uma tendência


que se fazia sentir desde os primeiros tempos, a da constituição de
uma monarquia eclesiástica. Havia para isso uma fundamentação
religiosa (um só Deus, uma só fé, uma só Igreja) e a crescente

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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

necessidade de se preservar a autoridade moral dos sínodos, que


se contradiziam, mostrando que era preciso um poder acima de
todos, uma monarquia como a que Cristo exerce sobre o universo.
Foi em razão disso que o bispo de Roma se sobrepôs a seus pares,
passando a usar, a partir de fins do século IV, o título de papa, quer
dizer, pai de todos os cristãos. Baseado em quê, o Bispo de Roma
pretendeu tal supremacia?

Na verdade, não houve, nos três primeiros séculos da


História cristã, uma busca consciente e deliberada de preeminência
por parte do bispo de Roma. Seu poder foi se constituindo ao sabor
das circunstâncias.

Por exemplo, o prestígio da cidade de Roma, por tantos


séculos centro político e cultural do mundo mediterrâneo,
levou sua imagem idealizada pelos pagãos a ser aceita
pelos cristãos. Igualmente, foi um processo espontâneo
e natural a sobreposição da geografia eclesiástica à
geografia civil romana – a diocese clerical era, grosso
modo , a diocese imperial; a província eclesiástica
correspondia à província civil – o que induzia a ver no
centro do Império o centro da Igreja. Outro fator foi o
apoio que o bispo de Roma recebeu – a autoridade sobre
os outros bispos foi-lhe concedida em 378 e confirmada e
ampliada em 445 – do imperador, desejoso, de fortalecer e
dar prestígio à sua capital. Por fim, o crescente patrimônio
do bispo romano advinha de doações somente possíveis
numa cidade com população de Roma e, acima de tudo,
residência do imperador (FRANCO, 2001, p. 69).

Por fim, gozando na prática de um poder e de um prestígio que


não tinha, a princípio, buscado, o bispado de Roma elaborou, em
meados do século VIII, a grande justificativa para aquela situação. Era
um documento pelo qual o imperador romano Constantino lhe teria
pretensamente transferido o poder imperial sobre todo o Ocidente.
Sabemos que essa “Doação de Constantino” não é legítima, mas

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História Medieval

não se pode considerá-la uma falsificação no sentido moderno do


termo, visto que essas falsificações eram provas documentais que
asseveravam justificativas plausíveis para aqueles que as faziam.

Paralelamente a esse clero voltado para atividades em


sociedade – ministrar sacramentos, orientar espiritualmente, ajudar
os necessitados – e por isso chamado clero secular, surgia outro
clero, com características diversas.

Vejamos, em primeiro lugar, a multidão dos monges, todos


"filhos de São Bento", mas submetidos, de fato, a formas
mais ou menos variadas da primitiva lei beneditina: mundo
dividido e vibrante, continuamente sacudido entre a ascese
pura e as preocupações mais comezinhas impostas pela
gestão duma rica fortuna, e até a humilde ameaça da
carência do pão de cada dia. Aliás, não o imaginemos
separado do povo laico por barreiras intransponíveis.
As próprias regras que o mais intransigente espírito de
solidão inspirava tiveram sempre que inclinar-se, no fim
de contas, perante as necessidades de ação. Monges
cuidam das almas, nas paróquias; mosteiros abrem suas
escolas a alunos que nunca vestirão a cogula (BLOCH,
1982, p. 69).

A descrição esboçada anteriormente pelo medievalista Marc


Bloch identifica o modo de viver do chamado clero regular, ou seja,
grupo de clérigos sujeitos a um conjunto de regras específicas de
vida. A primeira experiência do tipo deu-se com São Bento (480-
547), que, em sua Regra, elaborada em 534, aproveitava muito de
similares anteriores, porém com clareza e simplicidade novas. Por
ela, a vida do monge beneditino transcorre em função do preceito
ora et labora. Oração e trabalho num duplo sentido, numa dupla
forma de alcançar Deus: rezar é combater as forças maléficas,
contribuindo para a salvação não apenas da alma do próprio
monge, mas também de toda a sociedade; trabalhar é afastar a
alma de seus inimigos, a ociosidade e o tédio, é alcançar por meio

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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

dessa forma de ascese uma fonte de alegria. Tanto quanto o trabalho


manual, o intelectual, a leitura de textos sagrados, prepara a alma
para a oração. Enfim, orar é uma forma de trabalhar; trabalhar é
uma forma de orar.

Atende ao Objetivo 1

1. Explique e descreva a formação da Igreja Cristã em seu processo de hierarquização


institucional entre o fim do mundo antigo e o início da Idade Média.
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Comentário
Em sua resposta, você deverá explicar e descrever o contexto de surgimento do cristianismo
no mundo antigo a partir de sua herança judaica e grega. Deverá explicar e descrever o
processo de formação de uma identidade cristã, em sua ruptura com valores da cultura antiga,

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História Medieval

que se manifestou na organização da Igreja cristã em suas hierarquias e no cristianismo como


religião dotada de universalismo sobre as demais religiões e povos.

O Estado e a Igreja na Alta Idade Média

Em virtude de sua experiência e estrutura administrativa, de


seu prestígio moral e de sua capacidade de penetração e atuação
no Ocidente cristão, a Igreja constituiu-se no arcabouço natural do
Império Carolíngio e de suas pretensões imperialistas e unitárias. Mais
ainda, somente ela – argumentando com a Doação de Constantino
– poderia transformar um rei germânico como Carlos Magno em
“imperador dos romanos”. Levada pelos acontecimentos, a Igreja
estabeleceu com os francos “uma sociedade onde o papa ocupou,
primeiro, o lugar de sócio menor, depois de igual, pretendendo, por
fim, a direção suprema” (LOPEZ, 1965, p. 85).

Na primeira das fases descritas por Robert


Lopez, o papado buscou o apoio do chefe franco
Pepino, o Breve contra os lombardos, reconhecendo-lhe
em troca o título de rei. Por sua vez, Pepino entregou ao
papa Estêvão II, entre 754 e 756, terras na Itália Central,
dando origem ao Estado pontifício. Como protetor da Igreja,
o monarca franco promoveu uma reforma eclesiástica em seu
reino, vinculando o episcopado ao poder real. Na mesma
linha, regulamentou o pagamento de dízimo por parte dos
fiéis. Costume antigo, ele era entregue espontaneamente até o
sínodo de Mâcon, em 585, quando passou a ser obrigatório,
sob pena de excomunhão e, em 765, Pepino deu-lhe peso de
sanção estatal. Segundo Jacques Le Goff:

206
Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

Nesta paisagem, o acontecimento essencial


foi a aliança entre os francos e o papado. Os
papas buscaram e encontraram nos soberanos
francos um braço secular que os protegeu de seus
inimigos, particularmente dos lombardos. Os frutos
dessa aliança são, em primeiro lugar, para os
soberanos franceses. É a sagração de Pepino e de
seus filhos. Numa segunda etapa, o papado parece
pensar numa empresa de caráter 'europeu'.Trata-se
de estabelecer o extremo Ocidente cristão como
império em torno dos francos. No Natal do ano
800, por ocasião de uma estada de Carlos Magno
em Roma, o Papa Leão III coroa o soberano franco
como imperador (LE GOFF, 2007, p. 52-53).

Estreitavam-se, portanto, as relações entre o Estado e a Igreja,


com predomínio do primeiro na época de Carlos Magno. Nesse
período, os clérigos participavam então do conselho real, os bispos
tinham poderes civis, os cânones ganhavam força de lei. Além disso,
o monarca presidia os sínodos, punia os bispos, regulamentava com
eles a disciplina eclesiástica e a liturgia, intervindo até mesmo em
questões doutrinais. Segundo Jean Favier, em sua extensa biografia
do imperador Carlos Magno:

A Igreja franca não se alinhou com a Igreja do Oriente.


A partir daí, Carlos se arroga um papel que deveria ser
o do papa e que este praticamente não exercita ... O rei
dos francos assume, assim, a liderança de um movimento
de reflexão teológica ... o rei dos francos reconhece
claramente a autoridade do papa, mas se permite o direito
de lhe soprar as decisões (FAVIER, 2004, p. 360).

207
História Medieval

As conquistas territoriais de Carlos Magno permitiram,


também, a expansão da Igreja Católica. Foram criadas novas
dioceses e arquidioceses. Com isso, a Igreja ampliou ainda mais o
seu patrimônio em terras e rendas, principalmente. No começo do
século V, ela tinha sido a segunda maior proprietária imobiliária do
Ocidente, ficando atrás somente do Império Romano que, com seu
desmantelamento, fez com que a instituição herdasse a sua posição.
Mesmo a chegada de bárbaros não a prejudicou; pelo contrário,
diante das inseguranças, muitos indivíduos vieram a entregar suas
terras ao patrocinium da Igreja.

A recomendação de Santo Agostinho (354-430) era


seguida com freqüência: “todo cristão deveria deixar à
Igreja em testamento ‘a parte do filho’; e caso não tivesse
descendentes, deveria nomeá-la sua única herdeira.
(FRANCO, 2001, p. 72).

Além disso, o celibato clerical também impedia a divisão


do patrimônio eclesiástico. Alargado pelas conquistas de Carlos
Magno, esse patrimônio representava, no século IX, uma terça parte
das terras cultiváveis do Ocidente cristão. Dessa forma, a expansão
do império significava, também, a dilatação da fé cristã. Segundo
Jean Favier:

O Império é também um encargo religioso. O imperador


não é indiferente a uma justificação pela missão cristã.
Antes de tomar a coroa que se encontra sobre o altar e
com ela cingir a fronte de seu filho, Carlos faz a Luís um
verdadeiro sermão sobre suas obrigações de imperador
cristão. Não nos enganemos: Carlos preocupa-se tanto
com sua autoridade sobre a Igreja como com a unidade
do reino. A missão divina sela a unidade (FAVIER, 2004,
p. 506).

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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

Na terceira fase das relações entre o Império Carolíngio e o


alto clero, completou-se a reforma monástica sob o governo de Luís,
o Pio, que encarregou Bento de Aniane de realizá-la. Este, em 817,
procurou inicialmente combater o relaxamento que tomara conta
da vida monástica, impondo certa uniformização na aplicação da
regra beneditina. Sua interpretação enfatizava a união com Deus
mediante a oração e a contemplação, colocando em segundo plano
a ação direta, tanto a atividade missionária que caracterizara os
beneditinos no século VII quanto a atividade intelectual no século
VIII. Desde então, os monges entregaram-se especialmente ao culto.
O clero secular retomava a direção do movimento de cristianização
e o episcopado aumentava seu poder político.

A partir do início do século IX, inspirada no Direito Direito Canônico


Canônico e em Santo Agostinho, ganhou terreno a teoria do É o direito particular da
Igreja, formado pelas
agostinianismo político, que afirmava a superioridade espiritual
decisões dos concílios
sobre a temporal, dos bispos sobre os reis. Apesar de não ter sido e pelas Decretais.
intenção clerical enfraquecer a monarquia, tal teoria contribuiu para Esse vasto material
foi compilado pela
aumentar a autonomia da nobreza, o que provocou reflexos negativos
primeira vez, por volta
sobre a Igreja, com a generalização do sistema de “igreja própria”, de 1140, pelo monge
já existente no século VII e que se estenderia até o século XII. toscano Graciano,
na Concordantia
Segundo essa concepção, quando um senhor de terras Discordantium
levantava uma igreja ou mosteiro em sua propriedade, mantinha Canonum, que
esse bem como plena propriedade, podendo vendê-lo, doá-lo ou permaneceu como base
do Direito Canônico até
transmiti-lo em herança. Este senhor poderia, também, apropriar-se
1918.
das esmolas e dízimos recebidos pela igreja ou mosteiro. Detinha,
ainda, o poder de nomear quem quisesse como sacerdote, função
que, desde o século VIII, era atribuída como beneficium ou feudo.

Logo, tais “igrejas próprias” escapavam à jurisdição do


bispo, a quem caberia a nomeação dos clérigos e a administração
de todo o patrimônio eclesiástico da diocese. Pior ainda, a discutível
atuação daqueles sacerdotes abalava o prestígio moral da Igreja.
Na avaliação de Francis Oakley, as igrejas particulares ou
senhoriais,

209
História Medieval

(nos) piores casos, estiveram sujeitas a uma desenfreada


exploração nas mãos de abades laicos. Nos melhores
casos, se converteram em comunidades que existiam
para servir às necessidades familiares e espirituais de
seus fundadores e benfeitores aristocráticos, oferecendo
uma carreira de honras a filhos caçulas sem terras e
filhas não casadas, e, através de sua incessante rotina de
devoções populares, substituia as pesadas penitencias que
seus patronos julgavam excessivas para realizarem eles
próprios (OAKLEY, 1980, p. 82).

Atende ao Objetivo 2

2. Explique e descreva o fundamento da relação de trocas materiais e simbólicas entre a


Igreja e o Estado durante o Império Carolíngio.
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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

Comentário
Em sua resposta, você deverá explicar e descrever a relação de troca material na qual a
monarquia franca no Império Carolíngio protegia e garantia a sobrevivência do papado por
meio de concessão de terras, rendas e proteção militar, destacadamente frente às ameaças
dos borgúndios. Em troca, o papado legitimava simbolicamente a monarquia franca por meio
da coroação de Carlos Magno como imperador sobre os romanos.

A teocracia pontifícia na Idade Média


Central

A teocracia pontifícia deve ser entendida a partir de uma


dimensão complexa da disputa pelo poder, na qual identificamos
dois aspectos que se sobressaem: o religioso e o político. Entre os
séculos X e XI, a Igreja já havia consolidado o seu patrimônio e
ampliado o seu prestígio social. Entretanto, desde suas origens na
comunidade cristã primitiva, não havia empreendido em profundidade
sua organização formal e institucional. Cuidara preferencialmente
da fé, da teologia e do movimento missionário. O seu progressivo
fortalecimento patrimonial durante o período carolíngio impunha,
agora, a necessidade de organizar, administrar e governar, pois
o patrimônio eclesiástico confundia-se com o patrimônio secular.
Conforme identificou Josef Lenzenweger:

As ricas doações, públicas e privadas, que a Igreja


recebia tiveram por consequência uma intrincada mistura
das organizações eclesiásticas e temporal. Foi concedida
imunidade pessoal aos clérigos e igualmente aos senhores
feudais da Igreja. Isso teve por conseqüência que,
com relação a seus súditos, as autoridades espirituais
tiveram de assumir tarefas temporais (LENZENWEGER,
2006, p. 129).

211
História Medieval

Internamente, a teocracia pontifícia significou a primeira


grande reforma da Igreja em prol de sua organização institucional,
do estabelecimento de suas hierarquias de poder, da definição
de suas instâncias administrativas e da supremacia do papa
frente aos demais membros eclesiásticos e frente aos patriarcas
bizantinos da Igreja Oriental. Busca-se a liberdade da Igreja frente
ao mundo secular que, progressivamente, havia se apoderado
de suas instâncias de poder. A teocracia pontifícia, amparada
na Reforma Gregoriana, internamente buscou a sacralização e a
pureza dos membros do clero frente aos laicos. Promoveu o celibato
dos clérigos, a organização da eleição do papa por um colégio
de cardeais, questionou a investidura de funções clericais por
indicação de senhores feudais e reis, definiu a autoridade absoluta
do papa sobre a hierarquia clerical como fonte de poder superior
às demais e apontou para o caráter infalível das decisões papais
frente às concepções eclesiásticas e seculares. Assim, originadas,
a partir de um centro de poder em Roma, observamos mudanças
profundas na organização institucional da Igreja que, nos dizeres de
Jérôme Baschete:

Visam a uma reestruturação global da sociedade cristã,


sob a firme condução institucional eclesial. Os seus eixos
principais são a reforma da hierarquia secular sob a
autoridade centralizadora do papado e o reforço da
separação hierárquica entre laicos e clérigos. Trata-se
de nada menos que reafirmar e consolidar a posição
dominante da Igreja no seio do mundo feudal (BASCHET,
2006, p. 190).

Numa reação às formações heterogêneas dos diversos


grupos que a compunham e, tendo como objetivo alcançar a plena
autonomia administrativa, a Igreja procurava concretizar assim o
agostinianismo político e, impedindo que prosseguisse a sujeição
aos leigos. O primeiro passo nesse sentido foi dado no século X,
quando da fundação do mosteiro de Cluny, na Borgonha, França.

212
Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

Trata-se de buscar o ponto de equilíbrio entre a autoridade espiritual


do papa (Summa Autorictas) e o poder temporal dos reis (Summa
Potestas). Segundo Franco Pierini:

Essa tomada de consciência da necessidade de uma


reforma eclesiástica transformou-se rapidamente – inclusive
por obra do mosteiro de Cluny, na Borgonha, sem nenhum
vínculo com os poderes seculares e feudais – numa luta
pela causa da "liberdade da Igreja", o que significou
concretamente um retorno ao "agostinismo político"
que havia inspirado a coroação de Carlos Magno, uma
recuperação do ideal de uma cristandade liderada pelo
Papa e administrada pelo imperador, o primeiro com a
autoridade espiritual; o segundo, com o poder material
(PIERINI, 1998, p. 95).

Vejamos um trecho do documento, para observarmos o quanto


ele enfatiza a não sujeição aos leigos ou a qualquer representante
de poderes terrenos:

Deus proporcionou aos homens ricos um caminho para


a recompensa eterna, se empregarem retamente os seus
bens terrenos. Por isso, eu, Guilherme, pela graça de
Deus, duque e conde, considerando seriamente como
posso promover a minha salvação, enquanto ainda é
tempo, julguei conveniente e necessário dedicar parte dos
meus bens temporais à salvação da minha alma. Nenhum
caminho parece melhor para este fim que o indicado nas
palavras de Senhor: ‘eu farei dos pobres os meus amigos’.
É por isso que manterei em perpétuo uma comunidade
de monges. (...) Em Cluny construir-se-á um mosteiro
regular, no qual os monges sigam a regra de São Bento.
Lá se dedicarão ardentemente às práticas espirituais e
oferecerão orações e petições a Deus, tanto por mim como
pelos demais. Os monges e as suas posses ficarão sob o

213
História Medieval

abade Berno e os que após ele sejam eleitos de acordo


com a graça de Deus e a regra de São Bento, nem pelo
nosso poder nem por nenhum outro serão dissuadidos de
realizar uma eleição canônica. (...) Os monges não estarão
sujeitos a nós, nossos pais, o poder real ou qualquer outra
autoridade terrestre. (...) Se alguma pessoa fizer isto, fique
o seu nome riscado do livro da vida (PEDRERO-SANCHÉZ,
2000, p. 81-82).

Externamente, a Igreja, entre os séculos XI e XIII, vivia em um


mundo de transformações que exigia uma condução política diferente
da adotada até então. Desde o declínio do Império Carolíngio,
formaram-se diversas nacionalidades que se manifestaram no
surgimento de nações governadas por monarquias, tais como a
França, a Polônia, Castela, e tantas outras espalhadas na Europa.
Assim, a ação externa do papa passa a considerar também sua
posição de autoridade superior legitimada por Deus, como monarca
frente a imperadores e reis. Sua condição superior decorria da
representação da autoridade divina na Terra, ou seja, sua condição
de vigário de Cristo. Assim, conforme apontou Jeannine Quillet:

O Papa detém toda a autoridade para dirigir a cristandade


e os príncipes cristãos, pois detém a cura total das almas.
Detém o primado da razão por sua filiação espiritual com
Pedro, príncipe dos Apóstolos; seu encargo é diretamente
divino. É o representante imediato da autoridade de
Deus; àquela a partir da qual o imperador é investido, é
imediatamente humana. O Papa é o herdeiro do poder
de unir e de desligar sobre a terra e no céu e detém a
plenitude do poder espiritual. Não pode, em conseqüência,
ser julgado por outra pessoa, pois está acima da lei. Sua
soberania é absoluta (QUILLET, 1972, p. 45).

Buscando restabelecer a paz social e tornar-se sua guardiã, a


Igreja promoveu, em fins do século X, o movimento conhecido como
Paz de Deus. Ameaçados de excomunhão e de suas decorrentes

214
Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

punições sobrenaturais, os guerreiros foram pressionados a jurar Relíquias


sobre relíquias que respeitariam as igrejas, os membros do clero Significando literalmente
“restos”, indica partes
e os bens dos humildes. Tal movimento estendeu-se até por volta
de um corpo santo ou
de 1040, sem conseguir pacificar completamente a sociedade objetos que estiveram
cristã ocidental. O clima de violência expressava as necessidades em contato com ele.
Representa, portanto,
da aristocracia laica, mais numerosa devido ao crescimento
a principal espécie de
demográfico, e a consequente disputa entre ela e a aristocracia amuleto cristão. Sendo
eclesiástica pela posse das riquezas geradas pelos camponeses. fragmentos materiais

Os contingentes demográficos gerados pela expansão europeia de do mundo divino, as


relíquias protegem
meados do século XI não poderiam ser inteiramente absorvidos por
seus possuidores,
sua estrutura socioeconômica. Conforme apontou Paul Rousset, sacralizam o local em
que se encontram,
No final do século XI e nos primeiros anos do século XII, atraem, conforme sua
importância, multidões
o número excessivo de nascimentos na Europa ocidental
que vão venerá-las.
criava uma situação difícil para os cavaleiros privados
de terras e desocupados, e aos quais só restava escolher
entre a guerra de conquista e as aventuras nos países
longínquos, ou entre a pilhagem e a desordem em sua
própria terra (...) aos pregadores não faltavam argumentos
para exortar grandes e pequenos a se lançarem na rota
da Síria (ROUSSET, 1980, p. 14).

Diante disso, a solução encontrada foi a organização


das Cruzadas, como forma de desafogar o modelo econômico
eminentemente ligado à terra, trazendo novas oportunidades de
atividade comercial no contato entre o Ocidente cristão e o Oriente,
terra dos “infiéis” de religião muçulmana, conforme a opinião
ocidental de então. O papado, inclusive, tinha a pretensão de unir e
reconciliar as cristandades oriental e ocidental sob a sua autoridade,
a partir do sucesso que poderia obter no movimento das Cruzadas
e na retomada de Jerusalém. A retomada das rotas de peregrinação
à Terra Santa e o espírito de alcançar a remissão de pecados e
a salvação em obras pias, destacadamente em uma guerra justa
e santa, por parte dos leigos, explica o ambiente espiritual que
envolveu o período das cruzadas.

215
História Medieval

Além disto, Jerusalém ocupava um lugar privilegiado na


geografia simbólica e espiritual cristã, fato que motivou intimamente
o espírito dos cruzados, pois, segundo Jacques Le Goff:

O tema da libertação de Jerusalém e dos lugares santos


esteve no centro da idéia de Cruzada desenvolvida por
Urbano II e da noção de guerra santa fixada por seus
predecessores. Para ele, o tempo da ocupação muçulmana
das terras cristãs chegara ao fim. Resultado de um castigo
divino provocado pelos pecados do povo cristão, este
tempo passara: Deus convida agora seu povo a libertar
a Igreja e a Cristandade, e a reconquistar as terras que
um dia tinham sido cristãs, em particular os lugares
santos de Jerusalém e o Santo Sepulcro. Operação militar
de reconquista, a Cruzada também é, por sua própria
destinação – Jerusalém – uma peregrinação. Esta dimensão
junta-se com a da guerra santa, reforçando-a e não a
ocultando (LE GOFF; SCHMITT, 2006, p. 20).

Já que as Cruzadas deveriam funcionar não só como elemento


de pacificação interna da Europa católica, levando para fora
dela a irrequieta nobreza feudal, mas especialmente como um
“fenômeno aglutinador com a remissão dos pecados, a proteção
eclesiástica sobre suas famílias e bens, a suspensão do pagamento
de juros” (LE GOFF, 2005, p. 66). Lutando sob a égide da Igreja,
os cruzados deveriam agir como guerreiros imbuídos de seus ideais.
Na montagem dessa ideologia, “Cluny desempenhou papel central,
vendo-se como a principal responsável pela salvação dos homens,
graças às suas infindáveis orações e cantos” (FRANCO, 2001, p.
75). Ora, a Guerra Santa aliviava o trabalho dos monges, pois quem
morresse nela tinha a alma automaticamente salva, sem necessidade
da intervenção cluniacense. É significativo que a Cruzada tenha sido
concebida pelo papa Gregório VII e pregada anos mais tarde, em
1095, por Urbano II, ambos monges cluniacenses. É significativo,
também, que a igreja abacial de Cluny, a mais imponente construção

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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

da época, tenha sido erguida sobretudo com recursos obtidos na


luta contra os muçulmanos ibéricos e doados à Ordem pelos reis
de Castela.

Sentindo-se suficientemente fortalecido pela preponderância


política de Cluny, o papa Nicolau II estabeleceu, em 1059,
uma nova regulamentação para a eleição do pontífice. Ficava
reservado esse direito aos cardeais, eliminando-se as constantes
intervenções da nobreza da cidade de Roma e especialmente do
imperador. Realmente, desde Carlos Magno, e, mais claramente,
desde Oto I (962-973), a escolha do papa sempre passara,
direta ou indiretamente, pelas mãos do imperador. A reforma
eclesiástica preocupou-se também com a condenação da vida
conjugal dos clérigos, cujos praticantes eram excomungados, e os
leigos impedidos de ouvir missa rezada por eles. Para combater os
problemas causados pelas “igrejas próprias”, proibiu-se aos clérigos
receber sob qualquer condição uma igreja de um leigo. Insistiu-se
sobre a obrigatoriedade do pagamento do dízimo, que deveria ficar
à disposição dos bispos.

Tais determinações causaram esperadas reações por parte


do imperador germânico que, no entanto, só se concretizaram em
atitudes práticas diante do prosseguimento da reforma eclesiástica,
com Gregório VII (1073-1085). Aliás, com esse papa, a política de
independência e moralização da Igreja atingiu tal ponto que todo
o processo ficou conhecido por Reforma Gregoriana.

Contra esses males que afetavam a Igreja, o papa expôs


seu programa político-eclesiástico em 1075, mediante um
conjunto de 27 sentenças, conhecido por Dictatus Pape.
Reafirmando o poder pontifício de punir os clérigos faltosos,
Gregório VII declarava-se o único com “autoridade para
depor ou restabelecer bispos sem necessidade de convocar
sínodo”. Acrescentava que o papa ‘não pode ser julgado
por ninguém’. Aliás, afirmava em outra sentença que “a sé
romana nunca errou, nem errará por toda a Eternidade”.

217
História Medieval

Buscando atingir o que lhe parecia a causa primeira dos


problemas eclesiásticos – a interferência laica nos assuntos
da Igreja –, ele decretava que “o papa pode absolver
súditos de homens injustos de seu juramento de fidelidade”
(FRANCO, 2001, p. 76).

Concretizando esse programa reformista, no mesmo ano


de 1075, Gregório proibiu a outorga de ofícios eclesiásticos por
parte de leigos. Quebrava assim uma tradição antiga, o que veio a
prejudicar o poder temporal, originando a Questão das Investiduras.
No entanto, vale lembrar que as disputas entre poder eclesiástico e
poder laico ficaram em aberto, como mostrou a continuidade dos
freqüentes choques entre papas e imperadores.

Enfim, no século XIII estavam reunidas todas as condições para


o exercício do poder papal sobre a comunidade cristã. Em relação
aos clérigos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fiscaliza
universidades, institui dioceses, nomeia para todas as funções,
reconhece novas ordens religiosas. Em relação aos leigos, julga em
vários assuntos, cobra dízimo, determina a vida sexual (casamento
e abstinência), regulamenta a atividade profissional (trabalhos lícitos
e ilícitos), estabelece o comportamento social (roupas, palavras e
atitudes), estipula os valores culturais. Com Inocêncio III (1198-
1216), o papado atingia seu momento de maior força e prestígio,
colocando-se acima da sociedade.

Atende ao Objetivo 3

3. Explique e descreva os fundamentos da teocracia pontifícia no contexto de transformações


da sociedade europeia medieval, entre os séculos XI e XII.

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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

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Comentário
Em sua resposta, você deverá explicar e descrever os seguintes aspectos, dentre outros, no
contexto de disputas entre os poderes medievais: o papado e a busca da primazia do poder
frente aos reis; a organização institucional e hierárquica da Igreja; o centralismo do papado
em Roma; as reformas pontuais determinadas neste período.

A crise da baixa Idade Média

Naquele mesmo momento, porém, apareciam as primeiras


nuvens ofuscando o fulgor da Igreja. A autonomia, em relação aos
leigos, que a Igreja tanto buscara, num certo sentido chegou tarde,
permitindo inúmeras censuras ao envolvimento eclesiástico com
interesses políticos e materiais. O quase total controle da camada
clerical sobre o conjunto da comunidade cristã acentuava o azedume
das críticas. Estas refletiam as transformações socioeconômicas da
Idade Média Central. Entre esses grupos, estavam os cistercienses,
franciscanos e dominicanos, que viam na pobreza e na penitência
uma forma de criticar o enriquecimento e institucionalização
da Igreja.

219
História Medieval

Seguindo a mesma linha de crítica, pouco depois, em 1216,


surgia outra ordem mendicante, com a liderança do espanhol São
Domingos (1170-1221). No entanto, os dominicanos não adotaram
uma pobreza tão rigorosa e envolveram-se mais diretamente na
luta contra as heresias, tanto que em 1231, o papa Gregório IX
entregava-lhes a direção da Inquisição. Nessa fase, portanto, houve
vários choques entre mendicantes e clérigos seculares. Os primeiros
criticavam os costumes mundanos dos segundos, e estes acusavam
aqueles de incitar a discórdia no seio da cristandade.

A grande questão da Igreja na baixa Idade Média foi, porém,


um prolongamento da antiga disputa entre o poder espiritual e o
poder temporal. Em fins do século XIII, o papa Bonifácio VIII, defensor
da monarquia universal pontifícia, proibiu que os eclesiásticos
fizessem doações sem autorização da Santa Sé e que os poderes
laicos cobrassem taxas sobre bens da Igreja. Na França, em pleno
processo de afirmação da monarquia nacional, o rei Filipe IV, em
resposta, proibiu a saída de metais preciosos de país e baniu os
coletores de impostos papais. Pouco depois, o monarca francês
prendeu um bispo, levantando fortes protestos do papa. Filipe
acusou Bonifácio de ter sido eleito papa ilegalmente e, em 1303,
conseguiu prendê-lo na cidade de Anagni. Apesar de solto logo
depois, o papa estava claramente desmoralizado, e o sonho da
Teocracia Pontifícia, falido.

Atividade Final

Atende aos Objetivos 2 e 3

Explique e descreva, em uma síntese, o processo de fortalecimento institucional, espiritual


e material da Igreja ocidental entre o período carolíngio e seu apogeu durante a teocracia
pontifícia.
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Aula 17 – A Igreja Católica na Europa medieval ocidental

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Comentário
Em sua resposta, você deverá sintetizar os seguintes aspectos: acúmulo de bens materiais
e expansão do cristianismo sob o Império Carolíngio; fortalecimento da Igreja; as
transformações do século XI e as novas necessidades da Igreja; a definição da primazia
do poder papal frente aos imperadores e reis.

RESUMO

A Igreja Cristã medieval esteve inserida em um lento e longo


processo de transformações que alteraram suas estruturas ao longo
da Idade Média. No princípio da Idade Média, a Igreja organizou
as comunidades cristãs primitivas, o monacato e formulou a teologia
cristã. Sob o Império Carolíngio, a Igreja acumulou propriedades,
construções, rendas e expandiu a cristianização sobre outros povos.
Entre os séculos XI e XII, atingiu seu apogeu expresso na Reforma
Gregoriana e na Teocracia Pontifícia, período no qual disputou a
primazia do poder frente aos monarcas medievais.

221
História Medieval

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, vamos estudar as estruturas de poder da


monarquia medieval, contextualizando e aprofundando as
estruturas de poder que atuaram no fortalecimento das monarquias
medievais e se relacionaram com a formação dos Estados
nacionais ao longo da baixa Idade Média.

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