O Diabo No Meio Do Redemoinho
O Diabo No Meio Do Redemoinho
O Diabo No Meio Do Redemoinho
Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicação ISSN 1981-9943 Blumenau, v. 4, n. 1, p. 44-57, jan./mar. 2010
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RESUMO
Neste estudo, coteja-se heresias que povoam o imaginário popular brasileiro. Supõe-se que a
Inquisição e o exílio de cristãos novos (hereges) no Brasil - importante contingente na
formação da população no País - contribuiu significativamente para difusão de ideias
provenientes de heresias condenadas ao mesmo tempo em que promoveu a assimilação de
anátemas contra tais heresias.
ABSTRACT
The article examines heresies entrenched themselves in the Brazilian imaginary. Its assumed
that the presence of the Inquisition and the exile of new Christians to Brazil - where they
constituted a significant demographic contingent - stimulated both the dissemination of
condemned heresies and the assimilation of anathemas against these heresies.
Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não?
Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela já o
campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço.
(p.7)
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Mas minha alma tem de ser de Deus: se não, como é que ela podia ser minha? O
senhor reza comigo. A qualquer oração. Olhe: tudo o que não é oração, é
maluqueira... Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não
vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu
medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente
vende, só, é sem nenhum comprador... (p. 693).
Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore,
está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o
Romãozinho, um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com
lanterninha, em o meio certo do sono (p. 405).
Item, se sabeis, vistes ou ouvistes que algumas pessoas ou pessoa, fizeram ou fazem
certas invocações dos diabos, andando como bruxas de noite em companhia dos
demônios, como os maléficos feiticeiros, maléficas feiticeiras, costumam fazer, e
fazem encomendando-se a Belzebut, e a Sathanaz, e a Barrabás, e renegando a nossa
Sancta Fé Catholica, oferecendo ao diabo a alma, ou algum membro, ou membros de
seu corpo e crendo em ele, e adorando o, e chamando o para que lhes diga cousas
que estão por vir, cujo saber a só Deus todo poderoso pertence. (FURTADO DE
MENDONÇA, 1591, p. 34).
A crença no Diabo e a prática do pacto com Satanás foram tematizadas por Johann
Wolfgang Von Goethe e, antes dele, por Christopher Marlowe. O problema do Mal se coloca
para os seres humanos desde a Antiguidade e foi objeto de normatizações por parte das
diferentes religiões. O diabo aparece mais fortemente durante a Inquisição. Sua propagação
no imaginário popular brasileiro deve-se aos reflexos da Inquisição e as leituras bíblicas, e
não aos autores acima mencionados. Daí que Riobaldo tome esta temática como parâmetro de
avaliação de sua existência, ainda que o Autor, João Guimarães Rosa, tenha lido e aproveitado
impulsos sobre o assunto a partir dos dois Faustos, sobretudo do de Goethe.
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João Guimarães Rosa foi leitor interessado de temas relativos à espiritualidade e à
geografia, além de literatura – e tinha memória prodigiosa. Pode ter lido acerca de heresias,
ainda que não houvesse este tipo de livros em sua biblioteca. As heresias apresentaram a
moldura para a perseguição e, pois, para a configuração do diabo. Analisaremos alguns dados
a seguir.
Orígenes, teólogo de Alexandria (séc. III d.C.), mistura elementos da gnose do
platonismo e do cristianismo, afirmando uma restauração final de todos os seres, inclusive o
demônio e os condenados. Os monges da Palestina debatem a questão, exigindo a intervenção
das autoridades. Foi o que se deu em 539: o Patriarca de Jerusalém pediu ao Imperador
Justiniano de Constantinopla que se pronunciasse contra o origenismo, especificamente contra
a teoria da reencarnação (naquela época os temas teológicos interessavam ao Imperador tanto
quanto as questões de administração pública). Justiniano, em resposta, escreveu um tratado
incisivo e violento, que se encerrava com uma série de dez anátemas contra Orígenes, dos
quais merecem a nossa atenção os seguintes:
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Observamos, pois, que:
As condenações proferidas por bispos e sínodos no séc. VI sobre o origenismo
versam explicitamente sobre as doutrinas da preexistência e da restauração das almas, o que
naturalmente implica a condenação da própria tese da reencarnação, na medida em que esta
depende daquelas doutrinas e era professada pelos origenistas.
A doutrina da reencarnação foi rejeitada não somente pelo magistério ordinário da
Igreja - baseado na palavra da Sagrada Escritura - desde os tempos mais remotos, mas
também pelo magistério extraordinário dos concílios ecumênicos de Lyon em 1274 (“As
almas... são imediatamente recebidas no céu”) e de Florença em 1439 (“As almas... passam
imediatamente para o inferno a fim de aí receber a punição”) Cf. Denzinger-Schönmetzer,
Enquirídio nº 857 (464) e 1306 (693).
A palavra usada por Menas para indicar a rejeição da doutrina da reencarnação foi
“seja anátema”, seja excomungado. Banir alguém do grupo do poder da Igreja correspondia a
forte marginalização. A mesma Igreja criou forma mais colorida e menos abstrata para
expressar o anátema: a figura do diabo, a encarnação do Mal. Era a maneira de demonizar as
crenças não aceitas pela Igreja Católica, para que a religião cristã se prestasse como nova
ferramenta de poder e de controle sobre os diversos povos que viviam dentro das fronteiras do
decaído Império Romano, fornecendo uma base de cultura comum para um mundo
extremamente diverso e conflitivo.
Hoje, a Igreja não usa mais a personificação do Mal para intimidar os crentes, até
porque perdeu o controle e poder sobre as populações, que aderiram a miríades de
movimentos religiosos. No imaginário popular do Brasil, sobretudo na primeira metade do
séc. XX, Satanás ainda imperava poderoso como corruptor da humanidade, levando à
perdição do pecado e para o Inferno. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o menino menor
pergunta sobre o inferno. Guimarães Rosa coloca o diabo como ameaça para Riobaldo.
Ameaça de pecado, de estar tomado por ele, de perder o Reino do céu, de culpa maior.
A ideia da reencarnação existiu também no catarismo. Os cátaros acreditavam que o
mundo não havia sido criado diretamente por Deus. Seria uma materialização do Mal e,
portanto, os que aqui viviam estavam destinados à expiação até que, após uma vida destinada
ao bem, voltassem ao Paraíso perdido. Enquanto não conseguissem isso, teriam que
reencarnar em sucessivas vidas na Terra. Algumas ideias do catarismo reapareceram mais
tarde, em diversos momentos, como no Movimento da Reforma Protestante e nas doutrinas
que visam resgatar o cristianismo primitivo como a doutrina espírita.
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A ideia da reencarnação é debatida por Riobaldo, que acaba duvidando da pertinácia
desta hipótese, já que a purificação do pai das crianças cegas nesta reencarnação depende do
sofrimento de cada uma das crianças1. Quelemém pondera que também as crianças teriam
sido más em outra encarnação. Mas e o velhinho assassinado pelo Aleixo? Riobaldo se
pergunta a respeito da reencarnação, mas o verdadeiro problema é a dor, o Mal. Afinal, como
entender a necessidade do Mal no mundo?
Como diversas doutrinas trabalharam com oposições, o princípio dualista, opositivo,
impregnou mentes, metodologias, e continua fortemente incorporado nos caminhos
reflexivos. Os cátaros eram dualistas, acreditavam no conflito entre o bem e o mal, o espírito e
a carne, o superior e o inferior. Para eles, toda a Criação estava imersa em uma guerra eterna
entre os dois princípios irreconciliáveis: A luz e a escuridão, em outras palavras, o espírito e a
matéria; sendo a primeira de origem Divina, do Bem; e a segunda criação do Mal.
Riobaldo narrador passa pelo recurso do método reflexivo dualista. O que não é de
Deus, seria do Demônio.
Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até:
nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas
plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes. ... O diabo na rua, no meio do
redemunho (p. 7).
O diabo existe nas criaturas, até nas crianças, e em tudo: natureza, mundo.
Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a
água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo.
Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem
ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está
misturado em tudo (p. 8).
É concepção que lembra também o deísmo, segundo o qual Deus criou o mundo e
não interfere na realidade criada. A lei natural é o critério moral para os homens. Não existem
revelações verdadeiras, nem o conhecimento da natureza ética ou intelectual de Deus.
Riobaldo, em seu questionamento sobre a existência e a natureza do diabo passa por
explicações do mundo e das forças criadoras provenientes de diferentes heresias. Na verdade,
estes tipos de considerações e justificativas tornaram-se muito difusos no mundo,
especificamente no Brasil, onde a população inicial foi composta por grande número de
considerados hereges, expulsos de Portugal. Isto é, eram cristãos novos que, aqui, voltaram à
prática oculta do judaísmo. O medo da punição deve ter expandido a imagem da encarnação
do mal, do diabo como forma de controle das mentes. Assim, encontramos, no interior de
qualquer Estado, indivíduos que partilham destas ideias.
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Em Grande Sertão: Veredas há momentos em que a natureza bela é reveladora de
Deus, tanto que lembra o panteísmo, que afirma que deus é o mundo, que ao conhecermos o
mundo, conhecemos Deus. (“Deus está em tudo – conforme a crença?” p. 439). Não haveria
transcendência para fora do mundo. Em Caos e Cosmos, uma das tentações dos humanos é o
rebaixamento do panteão divino, o que ocorre quando o crente pede a Deus cura, riqueza,
amores, a compra de uma casa, a solução de litígios, coisas que seitas religiosas
contemporâneas tantas vezes prometem.
As seitas falam de Deus de maneiras diferentes, atribuindo-lhe um lugar, poderes e
características que não condizem com o cristianismo. Riobaldo não diz ao leitor que tais
ponderações provêm de diferentes heresias. Mas sua consciência está construída em cima de
uma ideia de justiça, de Bem e de Beleza que orientam suas reflexões. Daí surgirem dúvidas
sobre o Diabo, figura sempre presente na crítica às heresias.
O deus da gnose é um deus impessoal. É um princípio constitutivo e unificador do
cosmos. Seus adeptos acreditam na emanação do mundo a partir de Deus (ou na expansão da
divindade). A doutrina católica não aceita a ideia de mutações na divindade. Tudo aquilo que
muda e se transforma por definição não é Deus. A criação do mundo, segundo o catolicismo,
foi feita a partir do nada e a realidade criada é necessariamente diferente de Deus. Segundo o
catolicismo, tudo aquilo que muda e que se transforma, necessariamente, é parte da realidade
criada. Riobaldo apresenta um Deus mutante, que é paciência2, mas que também é traiçoeiro:
E, outra coisa: o diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de
traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! (p. 25)
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Para os gnósticos, existem dois deuses: o deus criador imperfeito, que eles associam
ao Jeová do Velho Testamento, e outro, bom, associado ao Novo Testamento. O primeiro
criou o mundo com imperfeição, e desta imperfeição se origina o sofrimento humano, que
aprisiona. Mas a essência humana seria oriunda de uma "centelha divina" que perpassa todo o
cosmos mesmo sem nele se situar, e o deus bom teve pena e deu aos homens a capacidade de
despertar deste mundo de ilusões e imperfeição.
Para que o homem possa se libertar dos sofrimentos deste mundo, segundo os
gnósticos, ele deve retornar ao Todo Uno, por ascensão ao Pleroma, e isto só pode ser
alcançado pelo Conhecimento Verdadeiro (representado pela Gnose). Este despertar só pode
ocorrer se o homem se descobre, conhecendo a si próprio. Neste ponto, reconhecemos
claramente o lema socrático “conhece-te a ti mesmo”. O gnosticismo tem algo do platonismo.
Este intertexto ajuda a compreender Guimarães Rosa e suas leituras espirituais, religiosas,
filosóficas. Já o contraponto cristão ameaça sempre com a figura satânica.
Gnose tem por origem etimológica o termo grego gnosis, conhecimento. Não um
conhecimento racional, científico, filosófico, teórico e empírico (a episteme dos gregos), mas
de caráter intuitivo e transcendental: sabedoria. Seria um conhecimento profundo e superior
do mundo e do homem, capaz de dar sentido à vida humana, que a torna plena de significado
porque permite o encontro do homem com sua Essência Eterna, maravilhosa e Crística pela
via do coração. É uma realidade vivente sempre ativa, que apenas é compreendida quando
experimentada e vivenciada. Assim sendo, jamais pode ser assimilada de forma abstrata,
intelectual e discursiva.
Em Grande Sertão: Veredas não há tais definições, nem dois deuses, um imperfeito e
outro perfeito. Há um deus perfeito. A imperfeição é do demônio. Mas a necessidade do
conhecimento é manifesta:
É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele
nenhuma existência. O que há é uma certa coisa – uma só, diversa para cada um –
que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo têm maus e bons – todo grau
de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? Ah,
para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na
consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais por
que. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas;
também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!
Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. É preciso negar
que o “Que-Diga” existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes,
em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem
medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que Ele é
bondade adiante, quero dizer (p. 440).
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“O que há é uma certa coisa – uma só, diversa para cada um – que Deus está
esperando que esse faça”. Esta posição lembra os cátaros, que acreditavam na salvação pela
ação pessoal. Cada indivíduo era responsável por sua própria salvação através de seus atos.
Isso implicava a salvação irrestrita (todos teriam direito à salvação, tudo dependia de suas
ações – aliás, todos, menos o Hermógenes), e na crença de que a relação Deus-homem não
necessitava de intermediários.
Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o
razoável sofrer. E a alegria de amor – compadre meu Quelemém, diz (p.9).
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Quando Riobaldo, velho e barranqueiro, fala de religião, diz que todas o refrescam.
Portanto, o estado de religião, de busca da ascese e de plenitude o leva a buscar todas as
religiões. E neste afã, tem a necessidade de negar a existência do diabo, ao mesmo tempo em
que o convoca; pretende fazer um pacto, nega o pacto e evita o demônio. Para Riobaldo, o
corpo é bom e as relações sexuais também, mas quando o medo aperta, ele decide fazer um
período de jejum de sexo. Teria isto relação longínqua com o que ensinavam os cátaros? Que
o espírito foi criado por Deus e era bom, enquanto o corpo teria sido criado pelo Mal? Para os
cristãos, havia valido esta postura até que se pensou na reprodução da espécie e o corpo
passou a ter esta função precípua. Como se vê, mesmo aceitando esta função, o cristianismo
balança entre a satanização do corpo e o seu resgate do Mal.
Dentre as repercussões de leituras e do pensamento difuso da crítica a doutrinas
consideradas heréticas, que estimularam o ser humano pensante a refletir sobre o Bem e o
Mal, sobre a ação humana e suas dimensões morais e éticas, a partir ou não de um
pensamento religioso, existe o maniqueísmo. O que dele nos veio foi uma caricatura
opositiva, que lembra: “Neste mundo tem maus e bons – todo grau de pessoa. Mas, então,
todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons?” (p. 440).
Segundo Mani (Pérsia, século III), fundador do maniqueísmo, o mundo foi dividido
entre duas metades. Um mundo seria o das trevas, governado por Satanás, o Príncipe das
Trevas. O outro seria o mundo da luz, governado por Deus. Um conceito tão categórico se
aplica ao mundo das ideias. Na lei maniqueísta, é verdade não há zona cinzenta: as coisas, as
ações são radicalmente más ou boas. Especialmente interessante para quem estuda Grande
Sertão Veredas é que Mani divide o mundo em três tempos, ligados ao precedente e
caracterizados pela divisão absoluta e não misturada entre as trevas e a luz. As últimas
pareceriam ignorar a sua existência mútua. Nem as trevas, nem a luz podem ser aniquiladas.
Portanto, o estado anterior a sua criação é considerado um estado perfeito do mundo. O
segundo tempo é o momento do meio, central, ou presente. Este começa com a criação da
humanidade e se caracteriza pela mistura instável de trevas e luz. O terceiro tempo é o
momento posterior. Ele é totalmente idêntico ao momento anterior. As almas humanas, que
provêm da essência do homem primordial, repousam em um imenso carma luminoso que
representa o homem primordial.
O maniqueu (que vê o mundo misturado) tenta constantemente atingir um ideal: o de
restabelecer a divisão entre treva e luz, separando nitidamente o espírito do corpo. A ideia é
expandir o espírito e reduzir o espaço ocupado na vida pelo corpo. Para chegar a isto, o
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maniqueu deverá reduzir as manifestações materialistas e a sensualidade. Estas
corresponderiam ao mundo demoníaco. O desgosto de Riobaldo com seô Habão (cf. Sperber
2000 e outros) reflete a crítica ao materialismo. E a sua vinculação com o diabo.
A mistura entre os dois reinos, de luz e de trevas, produziu uma espécie de fermento
que mergulhou o reino das trevas em uma dança turbilhonante, em um redemoinho caótico
através do qual surgiu a morte, elemento que deu ao homem uma espécie de
transubstanciação. Tal fenômeno se dá tão bem e fortemente, que carrega em si o germe de
seu aniquilamento – vale dizer, para o ser humano, uma transmutação em luz que passa pelo
extraordinário fulgor da morte. Parece que é o que acontece com Diadorim. “Diadorim vivia
só um sentimento de cada vez.” E quando morre, revela sua natureza, seu gênero, seu espírito:
Existe um pensamento profundo neste relato. O reino das trevas deve ser ultrapassado
pelo reino da luz; não pelo castigo, mas pela doçura; não se opondo ao Mal, mas misturando-se a
ele, a fim de redimir o Mal enquanto tal. A morte acontece em dose dupla: a de Hermógenes – o
pactário e, por extensão, o demônio – e Diadorim – que sente um só sentimento por vez, é capaz
de ódio, mas também de extrema doçura, e tem marcas duplas, ao mesmo tempo de deus (di) e do
diabo (dia) (SPERBER, 1976 e 1982). Hermógenes – nome composto de Hermes e genes
(poderia ser a unidade da mensagem, ou a mensagem unitária) – acaba-se em sangue e pó, num
homem sem cara, portanto o diabo:
Pelejei para recordar as feições dele, e o que figurei como visão foi a de um homem
sem cara. Preto, possuindo a cara nenhuma, feito se eu mesmo antes tivesse
esbagaçado aquele oco, a poder de balas... E tudo me deu um enjôo. (p. 692)
O Hermógenes e a luta contra ele sempre é anunciada pelo diabo e pelo redemoinho:
“O diabo na rua, no meio do redemunho... Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro
humano, esfaqueavam carnes.” A luta foi do uno – mas não todo - contra o duplo, dos opostos
que se entrelaçam (di e diá). A morte de Diadorim redime os jagunços e acaba com a
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jagunçagem, pelo menos do jagunço Riobaldo. Di-diá: Diadorim tem este nome para
Riobaldo. Para os jagunços ele é o Reinaldo. Decompondo o nome, sabemos o que é rei,
palavra que vem da realeza, mas que pode vir de coisa, res, sendo rei um genitivo ou dativo:
da coisa ou para a coisa. Naldo é palavra teutônica que significa “o admirável, o corajoso”.
Corajoso e admirável: cabe em Diadorim. E só esta força e integridade - em certa medida
pureza feita de virgindade - é capaz de vencer o diabo na forma de Hermógenes.
A figura do diabo ocupa Riobaldo por culpa e medo de ser responsabilizado – por si
mesmo – pela morte de Diadorim. Reflete, como propus no começo deste texto, a crítica da
Igreja às heresias. Mas as heresias se ocuparam de pensar o Bem, o Mal, o mundo, Deus. E
Guimarães Rosa estudou obras e refletiu sobre problemas que têm um viés e ecoam aspectos
de diversas heresias. Estes se encontram difusos no imaginário popular rural. De qualquer
maneira, Riobaldo está atento ao pecado, às forças do diabo e afirma com segurança que não
se uniu a ele, porque não foi soberbo. Portanto, mesmo recorrendo a aspectos de heresias, não
quer ser um herege.
O estigma da heresia foi e é sempre o orgulho. A humildade sempre foi e é o
baluarte, a defesa mais segura da fé. Disse Santo Agostinho: "Há diversos caminhos que
conduzem ao conhecimento da verdade, o primeiro é o da humildade; humildade é o segundo
e o terceiro é ainda a humildade. Eu fiquei crente, porque me pus a crer o que não
compreendia". Riobaldo segue caminho paralelo. Mesmo perseguido pela ameaça do diabo,
pelo medo de ter feito o pacto, mesmo pecador, Riobaldo repete que
Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros:
eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo
a alegria e as misérias todas... Nessas e noutras muito extremadas coisas eu tornava a
pensar, o espírito em meia-mão, por diante permeio os outros meus entretimentos de
verdade (p. 825).
E repete que não existe aquele que ocupa a sua mente, que o diabo não há.
Voltando ao diabo sob a pele do Mefistófeles goetheano, este diz que Fausto pare. O
diabo exige a parada do movimento que seria a morte. Já Riobaldo entende as coisas de outro
modo:
Deus está em tudo – conforme a crença? Mas tudo vai vivendo demais, se
remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por uma vez.
Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente estando ocupado com
estes negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a
gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua... Viver é
muito perigoso; e não é não (439).
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É que o diabo roseano é o do redemoinho, aquele de Maniqueu, ou Mani,
redemoinho caótico gerador da morte, enquanto que o deus roseano pede a parada que
transubstancia. Pois é: caos e cosmos no Grande Sertão.
NOTAS DE FIM
1
Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo,
despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os
meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca
saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de
Sapiranga à rebelde; e susseguinte – o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo
outro e outro – eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O
senhor imagine: uma escadinha – três meninos e uma menina – todos cegados. Sem remediável. O
Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo – agora vive da banda de Deus,
suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz,
que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele,
transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo
castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?! Compadre meu Quelemém
reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido
os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que
acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que
ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Se a gente – conforme compadre meu
Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte
pode vir como filho do inimigo. (p. 9, 10)
2
Moço!: Deus é paciência. O contrário é o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca – e afia –
que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o
riachinho rola. (p.17).
REFERÊNCIAS
GUIMARÃES ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
Disponível em: http://www.scribd.com/doc/2208932/Rosa-J-G-Grande-Sertao-Veredas?ga_
related_doc=1. Acesso em janeiro de 2010.
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II, Minas, 2002. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e do CESPUC, v. 5, nº
10, Belo Horizonte, 2002, p. 334-342.
Suzi Frankl Sperber: possui graduação (1965), mestrado (1967) e doutorado (1972) em Letras
pela Universidade de São Paulo (USP). È membro do conselho editorial da Revista Lume, da
Revista Letras & Letras, da Revista Mafuá e da Revista Afrika Asien Brasilien. É Bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; Livre-docente e professora
titular da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Letras, com ênfase
em Teoria Literária, especificamente: literatura brasileira, literatura comparada, hermenêutica,
Guimarães Rosa, teatro - pesquisa e ação dramática & quot. Coordena o Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais (LUME) e possui Bolsa de produtividade do CNPq,
com duas linhas de pesquisa fundamentais: oralidade e a função de dramaturgista.
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