Brasil Paralelo e A Mem - Ria Sobre o Regime Militar - Tese de Doutorado

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Cleto, Murilo Prado.

Novas direitas, memória e revisionismo : como a Brasil Paralelo


contou a história do Regime Militar. Curitiba, 2024.
Doutorado (Tese em História) – Universidade Federal do Paraná,
Setor de Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História.

Formatação de uma memória hegemônica, de


caráter social, elaborada especialmente por atores da imprensa, das universidades,
das artes e dos movimentos sociais. Para o historiador Marcos Napolitano, a história
da memória social do regime militar brasileiro tem quatro fases: de 1964 a 1974,
quando o golpe ainda era considerado um processo em aberto por seus agentes e
fiadores; de 1974 a 1994, quando se constituiu uma memória crítica ao autoritarismo
militar; de 1995 a 2003, quando esta última passou a ser incorporada por políticas
de Estado; e de 2003 até os dias de hoje, quando o debate público se viu inundado
por iniciativas de revisionismo ideológico. (NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer: as
dinâmicas e vicissitudes da construção da memória
sobre o regime militar brasileiro. Antíteses, Londrina, v. 8, n. 15esp., p. 09-44, nov. 2015.) p. 153

A posição institucional dos jornais nos primeiros anos de


ditadura também reproduz boa parte da perspectivação oferecida pelo próprio
governo, como se pode verificar pelo léxico utilizado. O termo “revolução”, por
exemplo, predominante até o fim dos anos 1970, ajudou a escamotear por um bom
tempo o caráter golpista da intervenção. Além de partilhar com os militares a
genuína repulsa por João Goulart e pelos radicais a ele associados, a imprensa
liberal também acreditava que, por ter bancado a derrocada esquerdista, teria
cadeira cativa para ditar os rumos do regime, como bem demonstra o professor
Napolitano num artigo que avalia diferentes editoriais de aniversário do golpe em O
Globo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo durante todo o
período. (NAPOLITANO, Marcos. A imprensa e a construção da memória do regime militar
brasileiro (1965-1985). Estudos Ibero-Americanos, vol. 43, n. 2, p. 346-366, mai.-ago. 2017) p. 154

O ocaso do superciclo de crescimento — este ainda agravado pela crise do


petróleo — e da resistência guerrilheira ao regime, no final do mandato Médici,
foram decisivos para a inauguração do que Napolitano chama de uma “nova dobra
do tempo histórico”, caracterizada por essa inflexão no campo da memória. Se, no
fim de seu governo, Castelo Branco era caracterizado como um “ditador”, agora
consolidou-se uma visão de que o general era o portador de um projeto desvirtuado
pelos rumos autoritários conduzidos pela cúpula militar, como uma consequência
indigesta de 1968 e não de 1964, que continuou poupado nesse exercício de
revisão. Essa também foi uma maneira que os liberais encontraram para eximir-se
da responsabilidade pelo legado de violência que, já se sabia, estava sendo deixado
pela ditadura. Para todos os efeitos, a “revolução” continuou sendo celebrada pelos
jornais. (idem) p. 155

a segunda metade dos anos 1970 foi fundamental para


adensar uma memória hegemônica crítica à ditadura. Essa memória, no preciso
resumo de Marcos Napolitano,
em que pese a incorporação de elementos importantes da cultura de
esquerda, é fundamentalmente uma memória liberal, que tende a
privilegiar a estabilidade institucional e criticar as opções radicais e
extrainstitucionais. Essa memória liberal condenou o regime, mas
relativizou o golpe. Condenou politicamente os militares da linha dura,
mas absolveu os que fizeram a transição negociada. Não por acaso,
na memória liberal, Geisel é um quase herói da democracia, enquanto
Médici e Costa e Silva são vilões do autoritarismo, por ação ou
omissão. Denunciou o radicalismo ativista da guerrilha de esquerda,
mas compreendeu o idealismo dos guerrilheiros. Condenou a censura
e imortalizou a cultura e artes de esquerda dentro da lógica abstrata
da “luta por liberdade”. E, mais do que tudo, a memória liberal
autoabsolveu os próprios liberais que protagonizaram o liberticídio de
1964 — na imprensa, nas associações de classe, nos partidos
políticos —, culpando a incompetência de Goulart e a demagogia de
esquerda pelo golpe. (Idem) 156

Durante a transição, se consolidou a ideia de uma sociedade brasileira, tida


como um corpo mais ou menos coeso, vítima do autoritarismo militar. Ela foi
importante para incorporar ao novo sistema político todos aqueles personagens que
ofereceram alguma resistência ao regime, mesmo os que, como destaca
Napolitano, chegaram de última hora, casos de Antônio Carlos Magalhães e José
Sarney. 527 Foi para responder a essa memória, excessivamente conivente com
diversos personagens que instigaram, legitimaram e apoiaram o golpe e o Estado
de exceção que dele se seguiu que muitos historiadores têm mobilizado esforços
para caracterizar a ditadura como “civil-militar” ou, em algumas variações,
“empresarial-militar”, enfatizando seu caráter de classe. (exemplo: DREIFUSS, René Armand.
1964, a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.) p. 159

Possibilitado pela Anistia, o retorno ao Brasil de ex-combatentes do regime


também ensejou, durante os anos 1980, a proliferação de memórias produzidas por
esses agentes, que passaram a produzir, eles próprios, balanços acerca da
experiência. O naco mais popular dessa literatura esteve nas obras que, embora
mantivessem o espírito de compreensão ao idealismo dos guerrilheiros, fizeram
retrospectivas críticas da luta armada no país. 529 Publicado ainda em 1979, O que é
isso companheiro?, de Fernando Gabeira, especificamente sobre o sequestro do
embaixador americano Charles Elbrick pelo Movimento Revolucionário 8 de Outubro
e pela Aliança Nacional Libertadora, foi sem dúvidas um dos livros de maior
repercussão, servindo como paradigma interpretativo da guerrilha no interior desta
memória hegemônica, que logo se fez presente também no cinema. p. 159

Segundo Seliprandy e Napolitano, entre as principais abordagens exploradas


pela matriz da “resistência democrática” ao regime, estão, além da leitura da teoria
dos “dois demônios” e da “inocência juvenil”, presentes em O que é isso,
companheiro?, o “isolamento da luta armada”, a “leitura monumentalizante”, o
“enfoque sobre as vítimas” e, ainda, a “leitura da ‘luta contínua’” — esta que conecta
pautas do presente e do passado. (NAPOLITANO, Marcos; SELIPRANDY, Fernando. O cinema e a
construção da memória sobre o regime militar brasileiro: uma leitura de Paula: a história de uma
subversiva (Francisco Ramalho Jr.,In: MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos. O cinema e
as ditaduras militares: contextos, memórias e representações audiovisuais. São Paulo: Intermeios,
2018. p. 77-100.) p. 160

Em 1964 - O Brasil entre armas e livros, a ditadura militar propriamente dita


não tem início com o golpe de 31 de Março, conforme estabelecido pela
periodização consagrada entre os públicos dominantes nas memórias social e
histórica. Lucas Berlanza, economista que presidiria mais tarde o Instituto Liberal,
descreve os anos iniciais de regime como uma “meio-ditadura”:
“então existe uma força — embora ela não tenha o poder total, ela
não exerça o poder total —, ela se sente no direito de obrar acima da
Constituição. Então você pode falar que é uma meio-ditadura, vamos
dizer assim. Uma ditadura abstrata. Uma ditadura iminente, pairando
sobre as regras.” (BRASIL PARALELO. 1964 - O Brasil entre armas e livros. YouTube, 2 abr.
2019. Disponível em
https://youtu.be/yTenWQHRPIg. Acesso em 15 fev. 2023. 1:11:52BRASIL PARALELO. 1964 - O
Brasil entre armas e livros. YouTube, 2 abr. 2019. Disponível em
https://youtu.be/yTenWQHRPIg. Acesso em 15 fev. 2023. 1:11:52) p. 162

“O regime começa a assumir a cara que a


linha-dura queria: um regime tecnocrático, um regime dos militares,
promovendo desenvolvimento de cima, da sociedade, das instituições
e da economia. A partir daí não há como tratar essa situação política,
tecnicamente falando, de outra forma que não como uma ditadura. Há
uma ditadura militar no Brasil a partir de 1968”. (Ibid. 1:30:38) p. 162

Essa não é a primeira vez que a periodização de 1964 a 1985 é publicamente


questionada. Às voltas com a efeméride de 40 anos do golpe, outros exercícios de
revisão buscaram novos enquadramentos possíveis. Um exemplo muito conhecido
e debatido é o do historiador Marco Antonio Villa, para quem também somente a
partir do AI-5 pode-se falar numa ditadura. (VILLA, Marco Antonio. Ditadura à brasileira. Folha de
S. Paulo, 5 mar. 2009. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0503200908.htm. Acesso em: 24 jun. 2023.) Outro é o
do ex-guerrilheiro e também historiador Daniel Aarão Reis, que entende a Lei da Anistia como
marco temporal conclusivo do período ditatorial, responsável por inaugurar um longo período de
transição até a promulgação da Constituição de 1988. (REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar,
esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.) Por se presumir nelas uma
relativização do Estado de exceção, ambas as noções foram duramente criticadas
nos anos a seguir. (MELO, Demian Bezerra de. O Golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o
estado atual da questão. In: _____ (org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. p. 157-188.) p. 162-63

O documentário admite, no entanto, que mesmo a “meio-ditadura” era


marcada por desvios da ordem democrática. Para Silvio Grimaldo, cientista social e
editor de Olavo de Carvalho,
não importa o que o Congresso decidiu, o que o presidente decidir.
Porque, afinal das contas, tem um órgão superior a todos eles, que é
esse Supremo Comando da Revolução, que são os generais, que no
fim das contas é quem manda. E sempre com o discurso, assim, de
manter a Revolução. (1964 - O Brasil entre armas e livros. op. cit. 1:11:37) p. 163

Para Grimaldo, “toda sociedade entende como um governo legítimo, porque


foi eleito pelo Congresso”. (Ibid. 1:13:29) Thomas Giulliano vai além:
ele (Castelo Branco) foi escolhido de maneira democrática, tanto que
recebeu votos do próprio Juscelino Kubitschek e do próprio Ulysses
Guimarães. O interesse de homens, como o próprio Juscelino
Kubitschek, o próprio Lacerda e da própria população brasileira em
um certo sentido, era de que fosse uma transição, e que então o
Lacerda e o Juscelino Kubitschek disputassem nas urnas o próximo
presidente do Brasil. Era este jogo que estava basicamente
demarcado. (Ibid. 1:13:01) p. 163

Como muitos dos liberais que apoiaram o golpe, a Brasil Paralelo também
partilha da percepção de que o 31 de Março teria um caráter meramente saneador.
O léxico do tempo presente é acionado por Luiz Philippe de Orléans e Bragança
para explicar: “(a população) queria de fato que houvesse eleições num período
muito curto. Que isso não perdurasse mais como um regime, né? Que era uma
intervenção militar e não a criação de um regime militar”. (Ibid. 1:13:15), p. 165

De todo modo, a despeito do pretenso ineditismo da abordagem, Entre armas


e livros endossa alguns preceitos importantes da memória hegemônica sobre o
regime. O mais notável deles aqui é a avaliação do castelismo como a expressão de
uma linha moderada das Forças Armadas, sufocada depois pela ascensão da
linha-dura. (NAPOLITANO. Recordar é vencer. op. cit. p. 21-25.). p. 166

Segundo essa linha de interpretação, Castelo Branco teria sido vítima de uma
manobra que o manteve no poder por dois anos além do combinado e ampliou de
maneira expressiva as atribuições da presidência durante o processo de
“normatização autoritária” do regime, nos termos de Napolitano. (NAPOLITANO. História do
regime militar. op. cit. p. 66-88) p. 166

A narração em off prossegue:


Quando chegou a vez das eleições para governadores e prefeitos, a
oposição aos militares conseguiu a vitória em estados importantes.
Percebendo a derrota política, o governo e o Comando Supremo
decidem baixar mais um Ato Institucional. O novo ato estendia as
eleições indiretas para os governadores estaduais, que passavam a
ser eleitos por seus respectivos deputados. Os governadores eleitos
nomeavam os prefeitos de cada capital. A linha-dura do Exército
avançava cada vez mais no controle das instituições. ( 1964 - O Brasil entre armas e livros. op. cit,
1:18:02) p. 167

Representante inequívoco da linha-dura, Costa e Silva seria desde sempre


“essa figura que [...] já tinha essa índole autoritária. Era uma figura que não se dava
bem com Castelo Branco, que tinha intenção muito bem definida de fazer com que o
regime rompesse com o modus operandi do governo castelista”. (Ibid. 1:19:38) p. 167

Se, para a historiografia crítica à memória hegemônica da ditadura, o governo


Castelo foi artífice da institucionalização do autoritarismo militar, com três Atos
Institucionais, Lei de Imprensa, uma Lei de Segurança Nacional anabolizada e uma nova
Constituição, suplantando a Carta promulgada de 1946, (FICO, Carlos. Como eles agiam: Os
subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia
política. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 33-70; e NAPOLITANO. História do regime militar. op.
cit. 66-88) Berlanza, no entanto, compreende o presidente como uma espécie de freio de contenção
à linha-dura diante da inevitabilidade do processo de fechamento do regime, e esta contenção seria
o AI4, convocando a constituinte. (1964 - O Brasil entre armas e livros. op. cit. 1:18:33) p. 168

Outra preocupação marcante na produção é demonstrar o vigor da oposição


neste período. Mais uma vez, cabe a Lucas Berlanza o papel de tentar desmistificar
qualquer interpretação contrária:
Bipartidarismo: você passa a ter Arena representando o governo, e
MDB, que seria uma oposição consentida. Mas era uma oposição
consentida, que às vezes as pessoas exageram, como se os
emedebistas fossem ‘pianinho’, não falavam contra o governo,
fingiam que eram oposição. Mas eles falavam no parlamento,
atacavam no parlamento o governo militar, sim. Havia vitalidade
nessa oposição. (Ibid. 1:16:54)
Thomas Giulliano vai além e lembra que “existem documentos e existem
vertentes que dizem que núcleos da esquerda estavam dentro do MDB de uma
maneira intensa”. (Ibid. 1:17:18) Noutro trecho, o jornalista prossegue: “O Roberto Campos
enfatiza em A Lanterna da Popa, que é o livro de memórias dele, que foi uma
Constituinte mesmo: teve discussão, teve discordância, o pessoal se reuniu,
debateu”. (Ibid. 1:19:03) P. 168

No entanto, embora o AI-2 tenha instigado algumas iniciativas de contrapeso


no Congresso, boa parte da oposição parlamentar já tinha sido simplesmente
suprimida até o início daquela Constituinte, com 67 mandatos federais cassados até
outubro de 1966. Graças ao arcabouço dos Atos Institucionais, o governo Castelo
Branco imprimiu sanções legais a 3.644 adversários políticos, o que corresponde a
65% desse expediente durante todo o regime. Os militares considerados rebeldes
também não foram poupados: 90% dos 1.230 punidos durante as duas décadas de
ditadura o foram durante o mandato castelista. (NAPOLITANO. História do regime militar. op. cit.
p. 78-79 e 69) Até 1966, a demissão ou a
aposentadoria compulsória chegou para cerca de 2 mil funcionários públicos. (GASPARI, Elio.
Ditadura envergonhada. São Paulo: Intrínseca: 2014. p. 132-133)
Antes do primeiro “mesversário” de governo, o decreto 53.897, de 27 de abril de
1964, instituiu a Comissão Geral de Investigação, que por sua vez ensejou a
Comissão de Investigação Sumária, abastecendo Inquéritos Policiais Militares e
espraiando a política de expurgos para o interior do Brasil. (CAVALCANTI, Erinaldo Vicente.
Investigar, processar e punir: um tribunal de exceção ou a Comissão de Investigação Sumária –
1964. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 11, n. 28, p. 445-468, set./dez. 2019) p. 169

O documentário, no entanto, vai além e justifica a limpa. Apresentado como


pesquisador do StB no Brasil, projeto que divulga documentos do serviço tcheco de
inteligência, (STB NO BRASIL. Disponível em https://stbnobrasil.com/pt/. Acesso em: 24 jun.
2023) Renor Filho é o encarregado principal para essa tarefa: As listas de cassação dos Atos
Institucionais até que não erraram muito, entendeu? Porque as
pessoas ali cassadas, muitas delas estavam realmente implicadas
com relações com o serviço secreto estrangeiro, entendeu? E isso
representava um crime realmente e tinha, como a gente já falou
antes, a consequência da perda dos direitos políticos. (1964 - O Brasil entre armas e livros. op. cit.
1:14:12) p. 170

Diferente do que avaliaram as primeiras publicações repercutindo na


imprensa o lançamento do documentário, 1964 - O Brasil entre armas e livros não
faz uma defesa explícita da ditadura, ainda mais se se considerar que, para a
produtora, o período ditatorial só tem início com a decretação do AI-5. p. 170

Segundo Olavo, antes disso,


num primeiro momento eles salvaram. Realmente eles
desmantelaram uma revolução comunista. Sim. Mas começaram a
fazer cagada no dia seguinte. Todo mundo tinha expectativa de que
haveria novas eleições em seis meses. Ninguém pediu para eles
tomarem o poder. Aí fizeram o segundo golpe dentro do golpe, né? (1964 - O Brasil entre armas e
livros. op. cit. 1:17:26) p. 170

Olavo não explica em detalhes o que entende por “cagada” dos militares
pós-golpe, mas fica mais do que sugerido que ele, alinhado com boa parte dos
setores liberais que apoiaram a derrubada de Jango, entende a prorrogação do
mandato de Castelo Branco como um equívoco. Entretanto, não o suficiente para
qualificá-lo como uma ditadura e, mais ainda, para manchar a imagem do general, já
que, como vimos, o documentário entende a manobra como uma obra exclusiva da
linha-dura. p. 170

A crítica à ditadura, tal como periodicizada por Entre armas e livros, se


resume a três aspectos, fundamentalmente, dos quais dois serão observados aqui:
a progressiva adoção de fundamentos estatistas na economia a partir de Costa e
Silva, o que ajuda a explicar a simpatia da ultraliberal Brasil Paralelo a Castelo
Branco, e a tecnocracia militar, que minou o exercício da política.
Para Olavo de Carvalho,
É uma herança não reconhecida. Tem muita ideia que os milicos
aderem, eles não sabem que a origem é positivista. Então você fala
“positivismo”, ele: “não, imagina, nunca liguei para isso”. Mas o
próprio Augusto Comte dizia que a vida dos vivos é determinada por
filósofos mortos, dos quais provavelmente você nunca ouviu falar, né?
E essa influência positivista acredita na tecnocracia. Quer dizer, é um
governo que não tem disputa política. Não tem luta política. São
técnicos-cientistas que resolvem todos os problemas. E foi assim que
os milicos tentaram governar. Chamavam os melhores técnicos de
todas as áreas: economia, minas e energia, transportes e etc e etc.
Tomavam as decisões e a classe política só servia para carimbar os
decretos. Então eles reduziram o Congresso a uma espécie de
cartório. Estava lá só para registrar os documentos. Acabaram com a
política, acabaram com as lideranças. (1964 - O Brasil entre armas e livros. op. cit. 1:20:08) p. 172

Do ponto de vista econômico, não restam dúvidas de que a produção se


identifica com os anos Castelo Branco, de forte ajuste fiscal, alinhamento aos
Estados Unidos e abertura econômica. E a crítica à inflexão nacional-desenvolvimentista do regime
adquire contornos anti-esquerdistas, como explica Lucas Berlanza:
Depois disso, começa a haver um feitiço keynesiano, uma ilusão
keynesiana desenvolvimentista, que, apoiada nessa base que foi
preparada antes, surte efeitos imediatos e a população se sente num
país... realmente a economia se agiganta, se torna uma das maiores
economias do mundo. E o mundo começa a olhar para o Brasil até
com interesse, com curiosidade. (1964 - O Brasil entre armas e livros. op. cit. 1:33:24) p. 172

Diante da desproporção entre os números da direita e da luta armada, o


documentário recorre, como vimos no texto que abre o trecho sobre os “anos
tenebrosos”, à genérica estimativa de “50 milhões de assassinatos” no mundo.
Como vimos anteriormente, a superlativização é um recurso retórico importante para
o olavismo. O desejo de ilustrar o terror da luta armada brasileira era tão grande que
a Brasil Paralelo incluiu — sem autorização — uma fotografia feita por Sebastião
Salgado no garimpo de Serra Pelada, no Pará, sem conexão alguma com os
eventos debatidos. Mais tarde, ela acabaria suprimida do vídeo após interpelação
judicial do autor. (PAULO, Diego Martins Dória. Brasil Paralelo tenta censurar debate. Le Monde
Diplomatique Brasil, 21 jul. 2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/brasil-paralelo-tenta-
censurar-debate/. Acesso em: 14 dez. 2023) p. 181

A narração prossegue, adiante, atribuindo o “ambiente de guerra” no país à


ação de “psicopatas, torturadores e criminosos de ambos os lados”:
Com o terrorismo comunista cada vez mais crescente, a esquerda
radical deu o pretexto para que a população sentisse medo e a
linha-dura do Exército conseguisse expandir seu poder. E foi nesse
ambiente de guerra que psicopatas, torturadores e criminosos de
ambos os lados se valiam para praticar as suas perversidades em
nome de uma causa ou de outra. A tortura contra opositores já era
presente na política desde a ditadura de Getúlio Vargas. Infelizmente,
ela não teve o seu fim no regime militar. (1964 - O Brasil entre armas e livros. op. cit. 1:27:34) p.
181

Utilizada especialmente para descrever o contexto de radicalização política


nas ditaduras do Cone Sul, tomando como pressuposto a ideia de que haveria duas
forças extremas em evolução, uma da esquerda e outra da direita, a “teoria dos dois
demônios” 618 é aqui mobilizada pela Brasil Paralelo, mas com um considerável toque
a mais de anticomunismo que hiperboliza as ações da luta armada para minimizar o
papel exercido pelos agentes da repressão, com um demônio claramente maior e
mais ardiloso do que outro. As únicas vezes em que o termo “tortura” é utilizado no
filme são para caracterizar especificamente o modus operandi da esquerda, para
atribui-la a “ambos os lados” ou para descrevê-la como algo “presente na política
desde a ditadura de Getúlio Vargas”. p. 182

Vários pressupostos do documentário da Brasil Paralelo estão na obra de Olavo, que no


documentário tem a oportunidade de apresentar seu objeto de antagonismo:

E, junto com Antonio Gramsci, veio o negócio da Escola de Frankfurt,


que ia mais ou menos na mesma direção. Por exemplo, para o
pessoal da Escola de Frankfurt, o proletariado já não era mais da
classe revolucionária. Ele poderia ser uma das classes
revolucionárias, mas não tinha o papel preponderante. Então, eles
admitiam a entrada de novas classes revolucionárias, como os
intelectuais, os estudantes, o lumpemproletariado, prostitutas,
drogados, bandidos. A bandidagem toda, evidentemente. (Ibid. 1:39:35) p. 192

O raciocínio é uma retomada da grande causa da vida do ideólogo a partir da


década de 1990. Publicada originalmente em 1994 pela modesta editora de Stella
Caymmi, neta do compositor baiano Dorival Caymmi e grande entusiasta de
Carvalho, A nova era e a revolução cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci é uma
obra de pouco fôlego. Algumas edições não chegam a uma centena de páginas.
Mas, além de símbolo da viragem na trajetória de Olavo, o livro apresenta
importantes bases do seu pensamento e que irão norteá-lo nas publicações a seguir. Na verdade, A
nova era e a revolução cultural é o primeiro texto de uma
trilogia que mais tarde o consagrou no panteão de intelectuais do campo
conservador brasileiro, seguido de O jardim das aflições e O imbecil coletivo. p. 192-93

No prefácio à segunda edição de A nova era, que foi reproduzido também em


lançamentos seguintes, pode-se conhecer o germe da elaboração desenvolvida no
documentário da Brasil Paralelo. Seu raciocínio pode ser dividido em pelo menos
três temáticas, embora o próprio autor as tenha misturado durante a escrita. Em
primeiro lugar, Olavo denuncia o uso das artes e da universidade como instrumento
político:
O rebaixamento das artes, da filosofia e até de algumas ciências à
condição de megafones da propaganda revolucionária, que os
melhores pensadores marxistas sempre rejeitaram como uma
tentação aviltante, tornou-se a praxe estabelecida, que ninguém ousa
contestar, menos pelo temor de um revide explícito do que pela
certeza absoluta de que seus ouvintes já não poderão
compreendê-lo, tão longe estão de imaginar que a cultura possa ter
outros e mais elevados fins. [...] Pelo efeito conjugado da decadência
norte-americana e da ação local tendente a amassar e fundir todos os
cérebros deste país na fôrma sem rosto do "intelectual coletivo"
gramsciano, o fato é que a inteligência nacional está indo ladeira
abaixo, ao mesmo tempo que sobe, das ruas e dos campos, o rumor
sombrio de uma revolução em marcha. Sim, o Brasil está
inequivocamente entrando numa atmosfera de revolução comunista.
[...] A geração que, derrotada pela ditadura militar, abandonou os
sonhos de chegar ao poder pela luta armada e se dedicou, em
silêncio, a uma revisão de sua estratégia, à luz dos ensinamentos de
Antonio Gramsci. [...] A conversão formal ou informal, consciente ou
inconsciente da intelectualidade de esquerda à estratégia de Antonio
Gramsci é o fato mais relevante da História nacional dos últimos trinta
anos … O que Gramsci lhe ensinou foi abdicar do
radicalismo ostensivo para ampliar a margem de alianças; foi
renunciar à pureza dos esquemas ideológicos aparentes para ganhar
eficiência na arte de aliciar e comprometer; foi recuar do combate
político direto para a zona mais profunda da sabotagem psicológica. (CARVALHO, Olavo de. A
Nova Era e a Revolução Cultural: Prefácio à segunda edição.
Sapientiam autem non vincitmalitia, 9 fev. 1994. Disponível em:
https://olavodecarvalho.org/a-nova-era-e-a-revolucao-cultural-prefacio-a-segunda-edicao/.
Acesso em: 15 fev. 2023) p. 193-94

Com Gramsci ela aprendeu que uma revolução da mente deve


preceder a revolução política; que é mais importante solapar as bases
morais e culturais do adversário do que ganhar votos; que um
colaborador inconsciente e sem compromisso, de cujas ações o
partido jamais possa ser responsabilizado, vale mais que mil
militantes inscritos. Com Gramsci ela aprendeu uma estratégia tão
vasta em sua abrangência, tão sutil em seus meios, tão complexa e
quase contraditória em sua pluralidade simultânea de canais de ação,
que é praticamente impossível o adversário mesmo não acabar
colaborando com ela de algum modo, tecendo, como profetizou
Lênin, a corda com que será enforcado. (Idem), p. 194

As ideias de Olavo não são exatamente novas. Paul Weyrich, ativista


conservador norte-americano, já havia difundido nos anos 1970 a teoria de
metamorfização do movimento comunista na direção das agendas LGBTQIA+,
negra, feminista, autóctone, contracultural e multilateralista diplomática. p. 194

Em 1989, William Lind foi o primeiro a


adotar o uso da expressão “guerra de 4a geração”, que pressupõe o uso de
ferramentas políticas, sociais, econômicas e também tecnológicas para o combate a
adversários não estatais. Um dos seus pilares, argumenta o professor Eduardo
Costa Pinto, é o pressuposto de que o Ocidente cristão estaria sob ameaça diante
da emergência do multiculturalismo. (PINTO, Eduardo Costa. Bolsonaro, quartéis e marxismo
cultural: a loucura como método. p.232-246 In MARTINS FILHO, João Roberto (org.) Os militares
e a crise brasileira. São Paulo: Alameda, 2021)

Dois anos antes do lançamento da obra que inaugura a série de Olavo, o


norte-americano Michael Minnicino publicou, na revista do movimento LaRouche, o
artigo The New Dark Age: The Frankfurt School and `Political Correctness’, que
acusa Theodor Adorno de participar de um experimento social cujo objetivo final
seria manipular as massas em favor de um novo paradigma cultural:

Talvez o mais importante, embora menos conhecido, dos sucessos da


Escola de Frankfurt tenha sido a transformação da mídia eletrônica
de rádio e televisão nos poderosos instrumentos de controle social
que eles representam hoje. Isso surgiu do trabalho feito,
originalmente, por dois homens que ingressaram no instituto no final
da década de 1920: Theodor Adorno e Walter Benjamin [...] Apesar
do brilho oficial, as atividades do Projeto de Rádio deixaram claro
que seu objetivo era testar empiricamente a tese de Adorno e
Benjamin de que o efeito líquido dos meios de comunicação de
massa poderia ser atomizar e aumentar a labilidade — o que as
pessoas mais tarde chamariam de “lavagem cerebral”. (MINNICINO, Michael. A nova idade das
trevas: a Escola de Frankfurt e o “politicamente correto”. Políticas Culturais em Revista, v. 15, n.1,
Salvador, jan./jun. 2022, p. 229 e 240) p. 195

Adorno dedicou anos, através da e com a colaboração de demais


representantes da Escola de Frankfurt — corrente filosófica de orientação marxista
associada ao Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, na Alemanha — a uma
pesquisa sobre música, cujos resultados são amplamente conhecidos em artigos
como A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas, assinado a
quatro mãos com Max Horkheimer, que critica os métodos de produção e circulação
de canções no alvorecer da era do rádio. Grosso modo, o que fazem Adorno e
Horkheimer no texto é queixarem-se da insistência da indústria fonográfica na
combinação de fórmulas comerciais que acabam por tornar a música cada vez mais padronizada e,
no limite, pasteurizada. Os ouvintes, por conseguinte, ficariam
menos dispostos a consumir expressões culturais mais autênticas, esvaziando o
potencial inovador da quarta arte. (HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. A indústria cultural:
o iluminismo como mistificação de massas. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São
Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 169-214) Isso tudo quase um século antes dos algoritmos
digitais. Para Minnicino, no entanto, a crítica seria um endosso. Ou, para ser mais
preciso, essa seria a fórmula da Escola de Frankfurt para o processo de
implantação do comunismo. p. 195-96

Procedimento semelhante ao de Minnicino com Adorno ocorre na leitura de


Olavo sobre a obra de Antonio Gramsci. Em seu Cadernos do cárcere, o filósofo
italiano, preso nos anos 1920 pelo regime de Mussolini, questiona-se sobre o
insucesso da repetição da revolução bolchevique em outros lugares pelo mundo e
chega à conclusão de que o capitalismo só é capaz de manter-se em pé porque,
além de dispor de uma estrutura repressiva, também administra mecanismos de
consolidação de valores, que, por fim, tendem a tornar o exercício do poder também
resultado de algum consentimento social. A isso, Gramsci deu o nome de
hegemonia. Foi o suficiente para que Carvalho enxergasse uma trama mundial,
conformando todos os acontecimentos da política e do cotidiano ao que seria um
grande plano de dominação. O autor de A inversão revolucionária em ação (2015)
diminuiu os contornos antissemitas da teoria conspirativa e passou a difundi-la junto
a uma geração de anticomunistas. (SILVA, Wellington T.; SUGAMOSTO, A; IRIGARAY A. U. O
marxismo cultural no Brasil: origens e
desdobramentos de uma teoria conservadora. Revista Cultura & Religión, v. 15, n. 1, p. 180-222,
jan.-jun. 2021.) p. 197

Olavo foi fundamental, nesse sentido, para dar uma roupagem intelectual a
essa mentalidade algo paranoica presente no interior das Forças Armadas e, ainda,
para ajudar a identificar essa figura do inimigo interno, antes concentrada no
tradicional guerrilheiro comunista, agora difusa em diferentes atores sociais
aplacados pela estratégia gramscista: feministas, “gayzistas”, ecologistas,
globalistas e indigenistas, por exemplo. Estes seriam os representantes do
“politicamente correto”, que Olavo classificou como “uma imbecilidade, [...] um moralismo, [...]
uma espécie de neototalitarismo [...]” que significa “o crescimento do Estado para dentro da psique
humana”. (OLAVO. O que é o Politicamente Correto. YouTube, 2 abr. 2018. Disponível em:
https://youtu.be/q4CIbQxL1JE. Acesso em: 30 jan. 2023) p. 202

Esse quadro pode induzir à intuitiva conclusão de que Forças Armadas e


Olavo estabeleceram uma relação de simbiose absoluta desde a redemocratização,
mas, na prática, o que se viu é algo muito distante disso. Em primeiro lugar, porque
os militares nunca formaram um corpo homogêneo do qual seria possível extrair
uma única posição acerca dos diferentes fenômenos sociais que pululam na
realidade. A história brasileira, incluindo a própria história do regime militar,
demonstra que diversos são os episódios em que diferentes grupos e
personalidades disputaram espaço no interior das FA, divergindo sobre diagnósticos
e propostas de intervenção. E, em segundo lugar, porque Carvalho lhes deu muita
dor de cabeça. p. 202

Carvalho atribui aos militares a culpa pelo avanço da esquerda no tecido social
brasileiro ainda durante a ditadura. Para Olavo, “a esquerda já dominava a imprensa
brasileira inteira” durante o regime. E, “na década de 1990, a revolução cultural no
Brasil [já] estava 100% vitoriosa”. 683 Em outra publicação, diz que “foi a brandura do
governo militar que permitiu a entronização da mentira esquerdista como história
oficial”. (CARVALHO, Olavo de. A história oficial de 1964. Sapientiam autem non vincit malitia,
19 jan. 1999) p. 203

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