Tese - Jefferson Domingos de Assuno 2022

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CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS

DIRETORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens

JEFFERSON DOMINGOS DE ASSUNÇÃO

POR UM CINEMA IMPURO: A VIOLÊNCIA E O TRÁGICO EM AS VINHAS DA IRA E


ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ

Orientador: Prof. Dr. Wagner José Moreira

Belo Horizonte (MG), Junho de 2022


Jefferson Domingos de Assunção

POR UM CINEMA IMPURO: A VIOLÊNCIA E O TRÁGICO EM AS VINHAS DA IRA E


ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) como
requisito parcial para obtenção do título de Doutor em
Estudos de Linguagens.

Área de concentração: Tecnologias e processos


discursivos

Linha de pesquisa: Literatura, cultura e tecnologia

Orientador: Prof. Dr. Wagner José Moreira

Belo Horizonte (MG), Junho de 2022


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Aos amores da minha vida: minha esposa, Daysi; meus “pais-avós”, Elza e Noé; minha tia e madrinha, Sheila;
minha sogra, Meire; e meus gatinhos, que, com sua fofura, me ajudaram a descontrair nos momentos de tensão
da escrita.
AGRADECIMENTOS

À Daysi, minha esposa e parceira de todos os momentos. Agradeço a ela pelo amor,
carinho e apoio diário que me dão forças para continuar.
À minha família pelo amor e carinho: meus avós, Elza e Noé; minhas tias, Grace e
Sheila; minha sogra, Meire; minha cunhada, Dávila; e minhas tias “emprestadas”, Cristiane e
Kety.
Ao meu orientador, Wagner, sem o qual esta tese não teria sido construída e a quem
devo uma imensa e eterna gratidão pelos ensinamentos valiosos, não apenas nos campos da
Literatura, da Filosofia e da Política, mas, principalmente, sobre a vida.
À amiga Alba Durães por seus conselhos que me ajudaram em momentos difíceis da
pesquisa.
Ao meu primeiro orientador, João, que me ajudou imensamente, durante os dois
primeiros anos de doutorado.
Ao CEFET-MG e ao POSLING, por toda a estrutura que me possibilitou cumprir este
Doutorado com êxito e mérito.
Aos professores da Pós-graduação em Estudos de Linguagens, que fizeram uma
grande diferença em minha vida, especialmente a Cláudia Cristina Maia, o Luiz Carlos
Gonçalves Lopes, a Mírian Sousa Alves, a Olga Valeska e o Rogério Barbosa.
Aos meus gatinhos que me ajudaram a descontrair nos momentos de tensão da escrita.
Ao André Bazin e a seus pensamentos que ainda ressoam nas mentes dos mais atentos
críticos, teóricos e pesquisadores de cinema, bem como a todos os outros pensadores do
cinema e da filosofia que, com suas reflexões, me ajudaram a construir esta tese, com especial
menção para Friedrich Nietzsche, Félix Guattari e Gilles Deleuze.
RESUMO

Esta tese tem como objetivo estudar a adaptação criativa dos filmes As vinhas da ira
(1940), de John Ford, e Onde os fracos não têm vez (2007), de Ethan e Joel Coen,
respectivamente baseados nos textos As vinhas da ira (1939), de John Steinbeck, e Onde os
velhos não têm vez (2005), de Cormac McCarthy. Isto se dará pelo viés de conceitos como
“cinema impuro”, de André Bazin, e “criação”, de Gilles Deleuze, assim como outros
conceitos trabalhados pelo filósofo Friedrich Nietzsche, por Deleuze (em sua parceria com
Félix Guattari), por Roland Barthes e Umberto Eco. O intuito será pensar essas obras
cinematográficas através de um olhar que observe os filmes como criações que se amparam
no material literário no qual se inspiraram, mas que se tornam independentes dentro de outra
arte, no caso, o cinema. Estes filmes, assim, ganham outras camadas de sentidos em suas
significações alegóricas ao pensarem, violentado o pensamento de seu espectador, o mundo
violento do capital.

PALAVRAS-CHAVE: Cinema; Literatura; Filosofia; Capitalismo.


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ABSTRACT

This thesis aims to study the creative adaptation of the films The grapes of wrath
(1940), by John Ford, and No country for old men (2007), by Ethan and Joel Coen,
respectively based on the texts The grapes of wrath (1939), by John Steinbeck, and No
country for old men (2005), by Cormac McCarthy. This will be through the bias of concepts
such as “impure cinema”, by André Bazin, and “creation”, by Gilles Deleuze, as well as other
concepts worked by the philosopher Friedrich Nietzsche, by Deleuze (in his partnership with
Félix Guattari), by Roland Barthes and Umberto Eco. The intention will be to think about
these cinematographic works through a look that observes the films as creations that are
supported by the literary material in which they were inspired, but that become independent
within another art, in this case, the cinema. These films, thus, gain other layers of meanings in
their allegorical significance when they think, violating the thought of their spectator, the
violent world of capital.

KEYWORDS: Cinema; Literature; Philosophy; Capitalism.


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LISTA DE FIGURAS

Figura I......................................................................................................................................12
Figura II.....................................................................................................................................47
Figura III...................................................................................................................................59
Figura IV...................................................................................................................................62
Figura V....................................................................................................................................62
Figura VI...................................................................................................................................66
Figura VII............................................................................................................................70, 85
Figura VIII................................................................................................................................72
Figura IX...........................................................................................................................76, 109
Figura X..............................................................................................................................82, 89
Figura XI...................................................................................................................................90
Figura XII..................................................................................................................................94
Figura XIII................................................................................................................................94
Figura XIV................................................................................................................................96
Figura XV...............................................................................................................................103
Figura XVI..............................................................................................................................103
Figura XVII.............................................................................................................................105
Figura XVIII...........................................................................................................................106
Figura XIX..............................................................................................................................108
Figura XX...............................................................................................................................114
Figura XXI......................................................................................................................125, 164
Figura XXII.............................................................................................................................136
Figura XXIII...........................................................................................................................136
Figura XXIV...........................................................................................................................136
Figura XXV.............................................................................................................................138
Figura XXVI...........................................................................................................................139
Figura XXVII..........................................................................................................................140
Figura XXVIII.........................................................................................................................142
Figura XXIX...........................................................................................................................142
Figura XXX.............................................................................................................................144
Figura XXXI...........................................................................................................................145
Figura XXXII..........................................................................................................................147
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Figura XXXIII.........................................................................................................................155
Figura XXXIV........................................................................................................................156
Figura XXXV..........................................................................................................................158
Figura XXXVI........................................................................................................................160
Figura XXXVII.......................................................................................................................168
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: ANDRÉ BAZIN E A DEFESA DA ADAPTAÇÃO - POR UM CINEMA IMPURO .............. 12


CAPÍTULO I: SOBRE ALGUNS DOS CONCEITOS TRABALHADOS NESTA TESE ................................ 16
I.I: SOBRE A RELAÇÃO CINEMA/LITERATURA ......................................................................... 16
I.II: TEXTO, ESCRITURA E OBRA ABERTA................................................................................ 21
I.III: IMAGEM-TEMPO ............................................................................................................. 31
I.IV: TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA......................................................................................... 32
I.V: TRAGÉDIA, SEGUNDO FRIEDRICH NIETZSCHE ................................................................. 34
I.VI: DO CAOS AO CÉREBRO - ALGUNS CONCEITOS DE FRIEDRICH NIETZSCHE, GILLES
DELEUZE E FÉLIX GUATTARI ................................................................................................. 35
I.VII: SOBRE “UM” REAL E O REALISMO IMPOSSÍVEL E VISADO .............................................. 43
CAPÍTULO II: LITERATURA E CINEMA, UNI-VOS! - O OLHAR MARXISTA DE JOHN STEINBECK SE
ESBOÇA NO CINEMA DE JOHN FORD EM AS VINHAS DA IRA .......................................................... 57

II.I: A EXISTÊNCIA AUTÔNOMA, A CRIAÇÃO E O ESCREVER COM A CÂMERA NA TRAVESSIA DAS


PÁGINAS LITERÁRIAS DE AS VINHAS DA IRA PARA A TELA GRANDE .......................................... 57

II.II: AS VINHAS DA IRA E A TRAVESSIA DAS PÁGINAS LITERÁRIAS PARA A TELA GRANDE ........ 78
II.III: A POESIA REALISTA DE JOHN FORD EM AS VINHAS DA IRA NA ANÁLISE DE ALGUMAS

CENAS .................................................................................................................................... 88

CAPÍTULO III: O HOMEM É O ABISMO DO HOMEM - A VIOLÊNCIA EXISTENCIAL (OU O

EXISTENCIALISMO VIOLENTADOR) DE CORMAC MCCARTHY SE ESPELHA NO CINEMA DOS

IRMÃOS COEN EM ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ .................................................................... 111


III.I: A VIOLÊNCIA E O DESEJO EM UM PRIMEIRO OLHAR SOBRE ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ
............................................................................................................................................ 111
III.II: OS IRMÃOS COEN, OS DESCONSTRUTORES DOS GÊNEROS CINEMATOGRÁFICOS, E COMO
ISTO SE DÁ EM ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ A PARTIR DA ANÁLISE DE ALGUMAS CENAS ... 130

III.III: OS CORPOS, AS INTERPRETAÇÕES, AS CONSTRUÇÕES DE PERSONAGENS E A

MONSTRUOSIDADE HUMANA, DEMASIADO HUMANA, DE ANTON CHIGURH EM ONDE OS FRACOS

NÃO TÊM VEZ ......................................................................................................................... 149

CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAVESSIA DO FIM AO COMEÇO ....................................................... 166


BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................... 169
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Lembrar um filme é sonhar que estamos sonhando. Escrever sobre um filme é falar ao mesmo tempo de duas
imagens superpostas: a efetiva, a que está mesmo no filme, e a afetiva, a que o espectador inventa a partir do
filme.
José Carlos Avellar, 1995, p. 17

Todo grande artista faz de três pedaços de pau uma grande obra de arte.
Glauber Rocha, 2004, p. 382
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INTRODUÇÃO: ANDRÉ BAZIN E A DEFESA DA ADAPTAÇÃO - POR UM CINEMA

IMPURO

O cineasta não é somente o concorrente do pintor e do dramaturgo, mas se iguala enfim ao romancista.
André Bazin, 2014, p. 112

O título desta tese, Por um cinema impuro, propositalmente não é uma expressão
original do autor do texto que irá se seguir. Trata-se de um empréstimo tomado
carinhosamente de um estudioso prestigiado dos estudos sobre cinema, essencialmente do que
diz respeito ao chamado “realismo cinematográfico”, questão que será melhor trabalhada no
capítulo I.VII da tese. O estudioso referido é o francês André Bazin (1918-1958), que teve
uma vida breve, interrompida pela leucemia, mas cujo pensamento reverbera até os dias atuais
e continuará reverberando sempre. Mesmo com uma existência curta, Bazin escreveu muito.
Um dos criadores da influente e significativa revista Cahiers du Cinéma – de onde depois
despontaram os rebeldes críticos e cineastas Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques
Rivette, Eric Rohmer e Claude Chabrol, os denominados “jovens turcos” –, Bazin firmou-se
como um dos mais importantes pensadores do cinema. Não é demais dizer que ele foi o
principal responsável por mostrar que o cinema poderia ser interpretado não como uma mera
arte de massas e menor comparativamente às outras artes (daí, aliás, surgiu o termo “sétima
arte”).

Em primeiro lugar, é preciso dizer que Bazin é uma referência eminente para o autor
desta tese há pelo menos 15 anos, quando entrou em contato com os textos do crítico e
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pesquisador francês. Desde então, devorar os textos e teorias bazinianos tornou-se uma paixão
pessoal.
Segundamente, ao se abordar a ideia de adaptação literária, mas com um viés criativo,
como se pretende nesta tese, seria impossível não se ter Bazin como principal baliza
pensativa. No texto A evolução da linguagem cinematográfica, síntese de três artigos
publicados entre 1950 e 1955, Bazin já dava indícios de que via o cinema em pé de igualdade
com as outras artes, não inferior a elas. Neste texto, Bazin (2014, p. 112) afirmava, ao final,
que “o cineasta não é somente o concorrente do pintor e do dramaturgo, mas se iguala enfim
ao romancista”.
Enquanto isso, no artigo Por um cinema impuro - Defesa da adaptação – o qual o
título desta tese, como apontado antes, alude por diálogo –, publicado em 1952, Bazin (2014,
p. 113) afiança que os vários autores adaptados para o cinema ao redor dos tempos “fornecem
aos cineastas apenas personagens e aventuras cuja expressão literária é em larga escala
independente”.
A adaptação é, de fato, uma criação que tem uma história conjugada ao texto literário
e, como um conceito, guardadas as distinções, tem sua história coadunada a outros conceitos,
algo ratificado com antecedência por Bazin:

Quanto mais as qualidades literárias da obra são importantes e decisivas, mais a


adaptação perturba seu equilíbrio, mais também ela exige um talento criador para
reconstruir segundo um novo equilíbrio, de modo algum idêntico, mas equivalente
ao antigo. Considerar a adaptação de romances um exercício preguiçoso com o qual
o verdadeiro cinema, o “cinema puro”, não teria nada a ganhar é, portanto, um
contrassenso crítico desmentido por todas as adaptações de valor. São os que menos
se preocupam com a fidelidade em nome de pretensas exigências da tela que traem a
um só tempo a literatura e o cinema (BAZIN, 2014, p. 127).

Bazin advoga, assim, por um cinema “impuro”, um cinema gerado da associação com
as outras artes e que não tem vergonha das suas relações interartes. O autor considera que o
cinema, como uma arte relativamente jovem, buscou seus principais temas na literatura e no
teatro, quer seja via adaptação, quer seja através da inspiração em textos de autores diversos.
Todavia, como demonstra o autor mais à frente em seu texto, a história da arte é permeada de
artistas que se inspiraram em outros, isto é, não existe uma arte “pura”, nascida de geração
espontânea. Neste ponto, frisa-se o fato de que, mesmo em suas origens, a literatura toma
emprestado narrativas de cunho oral, como demonstram, por exemplo, a Ilíada e a Odisseia,
de Homero.
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Notemos, para começar, que a adaptação, considerada mais ou menos como um


quebra-galho vergonhoso pela crítica moderna, é uma constante da história da arte.
Malraux mostrou o que o Renascimento pictórico devia, em sua origem, à escritura
gótica. Giotto pinta em relevo; Michelangelo recusou voluntariamente os recursos
da tinta a óleo, porque o afresco era mais conveniente a uma pintura escultural. E,
sem dúvida, isso não passou de uma etapa, logo ultrapassada, para a liberação da
pintura “pura”. Mas será que se pode dizer que Giotto é inferior a Rembrandt? O que
significaria essa hierarquia? (BAZIN, 2014, p. 116).

Tanto não se pode hierarquizar uma arte sobre a outra quanto não se deve classificar o
livro frente ao filme adaptado deste. Muitos anos antes das críticas de cinema que buscam
exigir uma fidelidade canina dos filmes adaptados de textos literários, Bazin já defendia a
impossibilidade de um “cinema puro”.
O cineasta, ator e comediante norte-americano Woody Allen costuma contar uma
anedota, que muitos dizem ter se dado após um produtor de cinema ter lhe pedido uma
adaptação do caudaloso romance Guerra e paz, publicado em 1867 pelo russo Liev Tolstói.
Segundo Allen, ele teria feito um curso de leitura dinâmica e lido o livro de Tolstói em 20
minutos, concluindo que ele fala sobre a Rússia. Obviamente que o texto tolstoista é muito
mais do que uma narrativa sobre a Rússia – ele relata um panorama ficcional do país no
momento histórico das Guerras Napoleônicas (1803-1815) –, mas essa historieta humorística
de Allen serve para ilustrar qual é, com efeito, o papel da adaptação literária para o cinema:
mesmo com as mudanças necessárias para se adequar uma linguagem a outra, o cerne da
narrativa é sempre mantido. No caso de uma adaptação de Guerra e paz, ela sempre falará
sobre a Rússia.
A influência da literatura sobre o cinema é tão grande que o russo Sergei Eisenstein,
no texto Dickens, Griffith e nós, publicado em 1944 e presente no livro A forma do filme,
percebia a presença do formato de narrativa fragmentado do romance natalino The cricket on
the hearth: A fairy tale of home, escrito pelo inglês Charles Dickens e publicado em 1845,
sobre o cinema do precursor David Wark Griffith com sua montagem paralela de sequências.
A dita montagem paralela se trata do desenvolvimento de uma cena ao mesmo tempo em que
outra decorre, sendo que ambas possuem ligação narrativa. Eisenstein afirma em seu texto:

“A chaleira começou...” Assim Dickens abre seu The Cricket on the Hearth. [...]
Porém, por mais estranho que pareça, o cinema também estava fervendo naquela
chaleira. Disto, de Dickens, do romance vitoriano, brotam os primeiros rebentos da
estética do cinema norte-americano, para sempre veiculado ao nome de David Wark
Griffith (EISENSTEIN, 2002, p. 176).
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Por fim, chega-se à seguinte pergunta: por que a escolha dos objetos em questão, no
caso os filmes As vinhas da ira (1940), de John Ford, e Onde os fracos não têm vez (2007), de
Ethan e Joel Coen, respectivamente adaptados dos livros As vinhas da ira (1939), de John
Steinbeck, e Onde os velhos não têm vez (2005), de Cormac McCarthy? Seria uma falsa ilusão
criar justificativas alhures, pois não poderia haver melhor argumento do que o afetivo, isto é,
a ligação fortemente sentimental que o autor desta tese possui com os objetos da pesquisa em
questão. John Ford foi estudado entre 2010 e 2011 na monografia de formação no curso de
Comunicação Social com Habilitação em Cinema e Vídeo do Centro Universitário UNA,
intitulada Nos rastros de Ford: A desmistificação do herói nos westerns “Sangue de herói” e
“O homem que matou o facínora”. Para tanto, a filmografia de Ford, até mesmo como paixão
pela obra deste diretor, foi esmiuçada, inclusive o filme As vinhas da ira, o qual o livro de
Steinbeck, que foi o material original desta adaptação, já havia sido lido. Devido a seu olhar
sócio-antropológico, aliado a uma visão poética única, Steinbeck, aliás, encontra-se entre os
escritores preferidos do autor desta tese, assim como também o é Cormac McCarthy, em razão
de seu ímpar ponto de vista existencial de mundo. Já o filme Onde os fracos não têm vez
sempre foi um objeto de fascínio, sendo revisitado em inúmeras oportunidades, bem como a
filmografia dos Irmãos Coen, destrinchada em detalhes graças à atratividade imposta por seu
sui generis olhar cômico, irônico e desolador da vida humana, conjugado a toques oníricos.
Optou-se, portanto, por um filme da Hollywood clássica (As vinhas da ira) e outro realizado
em tempos contemporâneos, no caso Onde os fracos não têm vez.
Sendo assim, afirma-se novamente que o panorama norteador e o baluarte desta tese
residirão na concepção baziniana de adaptação literária, que vê o cinema como uma arte
“impura”, pois é aberta ao diálogo criativo com as outras artes, particularmente a literatura. O
adjetivo “impuro” jamais é um julgamento de valor, uma vez que Bazin atribui ao cinema
uma influência dialógica com outras artes, o que é natural dentro do seu desenvolvimento
moderno como uma arte de existência autônoma, todavia, ao mesmo tempo, que interage e se
completa através da literatura. Adaptar um livro, portanto, é criar outro objeto artístico
autossuficiente, mas que não deixa de fazer uma interlocução com suas origens literárias,
somando-se a elas, não se excluindo como algo menor em uma suposta hierarquia errônea.
Além disso, a adaptação será tratada aqui como uma criação, dentro de um olhar próprio do
filósofo Deleuze, estudioso e complementador da obra de Bazin.
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CAPÍTULO I: SOBRE ALGUNS DOS CONCEITOS TRABALHADOS NESTA TESE

[...] em arte, tanto o real como o imaginário pertencem apenas ao artista, a carne e o sangue da realidade não
são mais fáceis de cair nas malhas da literatura ou do cinema do que as fantasias mais gratuitas da imaginação.
André Bazin, 2014, p. 290

Toda criação é singular, e o conceito como criação propriamente filosófica é sempre uma
singularidade.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, 2010, p. 13

[...] para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é a palavra.


Clarice Lispector, 1979, p. 19

I.I: SOBRE A RELAÇÃO CINEMA/LITERATURA

O cinema, arte surgida no final do século XIX e que teve o desenvolvimento de sua
linguagem no início do século XX, sempre flertou com a literatura1. Isso se dá quer seja
devido ao fato de um filme ser realizado a partir de um material literário com descrições de
ações, personagens e diálogos, no caso o roteiro, quer seja porque alguns dos pressupostos da
gramática cinematográfica possuem elementos retirados da literatura. A própria literatura
evoca, outrossim, imagens oníricas construídas no choque com o pensamento, o que faz
pensar que a tradição audiovisual, de certa forma, sempre existiu no inconsciente humano
através dos sonhos. O cinema, visto assim, encontra-se no meio caminho entre a
representação da realidade e o contato com o sonho.
É habitual, dentro do mercado editorial atual, por exemplo, a publicação de roteiros
cinematográficos em formato de livro, sem que estes tenham os seus conteúdos alterados.
Além do mais, conceitos como “diegese” (a visão da ficção de uma narrativa como uma
realidade dentro dela mesma) e “elipse” (a supressão de algo na narrativa que fica, então,
subentendido) provêm da literatura e se tornaram costumeiros dentro do campo do cinema.
No período primevo do cinema silencioso, antes de 1927, era comum a figura do
“comentador” durante as exibições de filmes, ou seja, uma espécie de narrador das imagens
vistas na tela à maneira do narrador literário, profissional que, posteriormente, foi substituído
pelos letreiros inseridos no meio das imagens e que também possuíam função narrativa

1
Além de também com a fotografia, uma vez que o cinema é a arte da imagem em movimento, e com o teatro,
este último através da questão de intepretação e do espaço cênico.
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fortemente ligada à tradição literária. Como aponta José Tavares de Barros em sua tese de
doutorado, A imagem da palavra: Texto literário e texto fílmico,

é fácil verificar que o cinema dos primeiros tempos, identificado com idéias de
modernidade e de progresso tecnológico que a passagem do século assinalava,
começa desde logo a afirmar-se como nova instância veiculadora de mensagens
narrativas, até então do exclusivo domínio da tradição literária (BARROS, 1990, p.
17).

Ademais, um dos pioneiros do cinema americano, D. W. Griffith, por exemplo, retirou


a ideia da montagem paralela da literatura do inglês Charles Dickens, isto ao mesmo tempo
em que outros diretores precursores e diretoras pioneiras (como a francesa Alice Guy-Blaché,
a americana Lois Weber e o italiano Giovanni Pastrone, por exemplo) também aprimoravam
os primeiros experimentos com a montagem cinematográfica.
Em seguida, Sergei Eisenstein, cineasta experimental russo que teve seu auge criativo
nos anos de 1920 e 1930, inspirando-se em Griffith, desenvolveu a montagem
cinematográfica para além do simples paralelismo entre uma narrativa de uma personagem e
outra, procurando criar sentidos a partir desta, o que está registrado em seu texto Dickens,
Griffith e nós, último capítulo de seu livro A forma do filme.
Além disso, nos primórdios do cinema, várias adaptações literárias ocorreram. O
citado Dickens, por exemplo, teve textos adaptados já em 1897, com Death of Nancy Sykes, e
várias outras que se seguiram nos anos decorrentes. Fiódor Dostoievski teve alguns de seus
textos mais celebrados, como Crime e castigo e O idiota, adaptados para o cinema em 1909 e
1910, respectivamente. Outros escritores notáveis também tiveram textos adaptados para o
cinema, entre o final do século XIX e o início do XX, como Bram Stoker, F. Scott Fitzgerald,
James Fenimore Cooper, Johann Wolfgang von Goethe, Liev Tolstói, Lewis Carroll, Mary
Shelley, Miguel de Cervantes, Robert Louis Stevenson, William Shakespeare, entre outros.
Alguns escritores americanos, também, escreveram roteiros para o cinema, como
Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, John Steinbeck e William Faulkner, isto ainda sem se
contar os movimentos cinematográficos do cinema moderno que flertaram com a literatura,
como a Nouvelle Vague francesa, surgida quase que paralelamente à renovação literária
proposta pelo movimento intitulado Nouveau Roman – de onde despontaram como diretores e
roteiristas alguns romancistas, como Alain Robbe-Grillet, Marguerite Duras e Pierre Kast –, e
pelo Cinema Novo brasileiro, que buscou inspiração (inclusive, com adaptações diretas de
textos) nas três gerações do Modernismo, a de 1922, a de 1930 e a de 1945. Na Nouvelle
Vague, por exemplo, o cineasta Jean-Luc Godard começou a traçar os primeiros caminhos de
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seu cinema multireflexivo, em que citações a escritores e pensadores diversos da literatura


universal e das ciências humanas pululam na tela em diálogos e via narrativa de forma
metalinguística e, na maioria das vezes, sem uma referenciação a estes. Trata-se de um estilo
análogo ao do brasileiro Glauber Rocha, estilo este que o escritor e cineasta francês Alexandre
Astruc, em seu manifesto ensaístico Naissance d’une nouvelle avant-garde: La caméra-stylo
(publicado na revista L’Écran français em 1948), nomeava como “escrever com a câmera”.
Segundo Astruc, “o diretor/autor escreverá com a câmera como um escritor escreve com sua
caneta” (ASTRUC, 1948, p. 22 apud COUTINHO, 2010, p. 15). Mário Alves Coutinho, na
conclusão do livro Escrever com a câmera: A literatura cinematográfica de Jean-Luc
Godard, reforça essa ideia:

uma quantidade significativa de escritores importantes, em geral romancistas [...]


foram capazes [...] de passar para a realização de filmes. De uma certa maneira,
transformaram a palavra em imagem, sem nunca deixar a palavra de lado, pois o
cinema desses escritores procurou, sempre, integrar palavras e imagens
(COUTINHO, 2010, p. 228).

No Brasil, a primeira adaptação – que veio não de um livro, mas da peça A quadrilha
da morte, de Rafael Pinheiro e Figueiredo Pimentel – ocorreu em 1908 com aquele que é
considerado o primeiro filme de ficção (ao lado do curta Nhô Anastácio chegou de viagem, de
Julio Ferrez): Os estranguladores, de Francisco Marzullo. O primeiro escritor brasileiro que
trabalhou com roteiros de cinema, já em 1910, foi José Carlos do Patrocínio Filho, que
escreveu Paz e amor e Logo cedo, ambos filmes dirigidos pelo pioneiro Alberto Botelho.
Machado de Assis, por exemplo, só foi adaptado para o cinema em 1939 (ano de seu
centenário) pelo mineiro Humberto Mauro, no curta-metragem Um apólogo, baseado em um
conto homônimo do escritor, filme entre vários realizados por Mauro no INCE (Instituto
Nacional de Cinema Educativo), órgão então vinculado ao Ministério da Educação e Saúde
Pública do governo de Getúlio Vargas.
Apresentadas essas considerações, pretende-se com esta tese de doutorado estudar
algumas adaptações de textos para o cinema. São elas: As vinhas da ira (1940), de John Ford,
e Onde os fracos não têm vez (2007), de Ethan e Joel Coen2, respectivamente adaptados dos
textos As vinhas da ira (1939), de John Steinbeck, e Onde os velhos não têm vez (2005), de
Cormac McCarthy. Esses filmes serão analisados em sua multiplicidade de elementos
cinematográficos, tentando-se perceber como as palavras dos autores foram traduzidas para a
imagem fílmica em si através dos elementos cinematográficos, como em sons, diálogos, trilha

2
Doravante denominados como Irmãos Coen ou simplesmente “os Coen”.
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sonora musical, cenografia, mise en scène, cores e enquadramentos da fotografia, montagem


etc., enfim, todo o processo e os recursos de edição.
Não se pleiteia estudar na pesquisa pura e simplesmente os roteiros dos filmes
elencados, que, por si só, são traduções dos universos de Steinbeck e McCarthy para outro
tipo de texto literário que, em sua natureza, permite apenas a descrição de ações, personagens
e diálogos, mas não a poesia e a abstração, características estas resguardadas ao processo de
direção do filme. Buscar-se-á, no entanto, como tais roteiros foram retraduzidos, pelos
respectivos diretores e diretoras dos filmes estudados, para a imagem visual cinética e como
foram captados pelo olhar das câmeras e transpostos para a tela grande.
Da mesma maneira, não se ficará preso nesta tese somente ao comparativismo entre os
filmes e os textos de Steinbeck e McCarthy ou em julgamentos de valores que criem
dicotomias ou maniqueísmos que separam uma chamada “fiel” ou “boa” adaptação de uma
adaptação “ruim”, uma vez que este tipo de análise é o que geralmente baliza a crítica literária
e/ou cinematográfica, sem que, com isto, esteja se pretendendo desprezar ou depreciar o
trabalho dos profissionais desta área, porém procurar-se-á escolher aqui outro caminho de
escrita que transite por certa intensidade filosófica. Como sugere Jacques Rancière, no
capítulo A imagem intolerável, do livro O espectador emancipado, a respeito de uma suposta
oposição hierárquica entre palavra e imagem, não qualquer tipo de imagem, mas imagens de
conteúdo sócio-político que levam à provocação do desagrado e forçam o pensamento,

o problema não é opor as palavras às imagens visíveis. É subverter a lógica que faz
do visual o quinhão das multidões e do verbal o privilégio de alguns. As palavras
não estão no lugar das imagens. São imagens, ou seja, formas de redistribuição dos
elementos da representação. São figuras que subsistem uma imagem por outra,
formas visuais por palavras, ou palavras por formas visuais (RANCIÈRE, 2014, p.
95).

Correlativamente, Ismail Xavier assinala, no capítulo Do texto ao filme: A trama, a


cena e a construção do olhar no cinema, presente no livro Literatura, cinema e televisão,
organizado por Tânia Pellegrini, que

livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm exatamente a
mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar, que a adaptação
dialogue não só com o texto de origem, mas com seu próprio contexto, inclusive
atualizando a pauta do livro (XAVIER, 2003, p. 62).

Pleiteia-se forçar a pensar as imagens e os elementos cinematográficos dos filmes em


estudo a partir de teorias filosófico-literárias e da emoção social que eles suscitam sobre a
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travessia das personagens pelo mundo em confronto com a instância esmagadora da técnica
do processo civilizatório, sem que, com isto, se perca o caminho da travessia principal,
embreada nos filmes e na poesia evocada por seus componentes estéticos, pois, como pontua
Gilles Deleuze (2006, p. 88-89) no capítulo Série e grupo, do livro Proust e os signos, “sem
algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais
importante do que o pensamento é o que ‘dá a pensar’”.
Logo, a proposta da tese tem sua importância acadêmica ao procurar trazer uma nova
visão sobre a questão da adaptação literária para o cinema, buscando-se o encontro ctônico
entre ambas as artes que produzem o filme, isto sem apenas o olhar dogmático da comparação
com o texto literário. Além disso, pretende-se pensar as inúmeras camadas dos significantes
de um filme, vendo-o, desta forma, como outra mídia que traduz intersemioticamente as
palavras literárias, tendo-se em vista que elas evocam imagens e sons mentalmente oníricos.
Sabe-se, assim, que o cinema por si só é a conjuração de uma poética do olhar que leva o
espectador a universos igualmente oníricos, porém previamente construídos sonoro-
imageticamente em uma tradução operada pela direção a partir de sua interpretação da
literatura a qual buscou adaptar. Ambos, cinema e literatura, são poéticos, cada um à sua
maneira, cada um com arquiteturas de significantes e signos distintos para edificar suas
respectivas poiesis, pois, para Christian Metz, no texto Cinema: Língua ou linguagem?,
presente no livro A significação no cinema, “o cinema é uma linguagem; o cinema é
infinitamente diferente da linguagem verbal” (1972, p. 60), uma vez que “o filme é uma
mensagem para que não se lhe tenha imaginado um código” (1972, p. 56).
Destarte, o estudo em questão tenciona enveredar por outras estradas, adentrando a
filosofia, a análise fílmica e os estudos literários, trazendo conceitos destes campos do saber
para se interpretar e criar inferências na análise dos filmes elencados – penetrando-se,
principalmente, nos “afectos” e “perfectos” (as sensações) das personagens, conceitos estes
citados por Deleuze e Félix Guattari, no livro O que é a filosofia?. No capítulo O que é um
conceito?, Deleuze e Guattari (2010, p. 32) esclarecem que “a filosofia procede por frases,
mas não são sempre proposições que se extraem das frases em geral”. Deste modo, os dois
filósofos conjecturam que

das frases ou de um equivalente, a filosofia tira conceitos (que não se confundem


com idéias gerais ou abstratas), enquanto que a ciência tira prospectos (proposições
que não se confundem com juízos), e a arte tira perceptos e afectos (que também não
se confundem com percepções ou sentimentos). Em cada caso, a linguagem é
submetida a provas e usos incomparáveis, mas que não definem a diferença entre as
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disciplinas sem constituir também seus cruzamentos perpétuos (DELEUZE;


GUATTARI, 2010, p. 32-33).

Enquanto isso, no capítulo Os personagens conceituais, Deleuze e Guattari apontam


que

As grandes figuras estéticas do pensamento e do romance, mas também da pintura,


da escultura e da música, produzem afectos que transbordam as afecções e
percepções ordinárias, do mesmo modo os conceitos transbordam as opiniões
correntes. [...] A arte e a filosofia recortam o caos, e o enfrentam, mas não é o
mesmo plano de corte, não é a mesma maneira de povoá-lo; aqui constelação de
universo ou afectos e perceptos, lá complexões de imanência ou conceitos. A arte
não pensa menos que a filosofia, mas pensa por afectos e perceptos. Isto não impede
que as duas entidades passem freqüentemente uma pela outra, num devir que as leva
a ambas, numa intensidade que as codetermina (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.
80-81).

Ambiciona-se, assim, levar o leitor desta tese a compreender sua proposta em relação
às adaptações escolhidas para investigação – no caso, os livros As vinhas da ira e Onde os
velhos não têm vez, adaptados, respectivamente, para os filmes As vinhas da ira e Onde os
fracos não têm vez –, ou seja, com quais conceitos irá se perfazer a pesquisa. Para tanto,
propõe-se trabalhar com alguns conceitos-chave que irão orientar os caminhos pelos quais a
tese irá percorrer, conceitos estes que serão definidos a seguir.

I.II: TEXTO, ESCRITURA E OBRA ABERTA

Um dos conceitos é o de “texto”, outro de “escritura”. Ambos estão correlacionados e


foram cunhados por Roland Barthes. Segundo Barthes (2003, p. 201), no capítulo O mito,
hoje, do livro Mitologias, o texto é “toda unidade ou toda síntese significativa, quer seja
verbal, quer visual”. Ainda de acordo com o pensador (2012, p. 66, grifo do autor), no
capítulo Da obra ao texto, do livro O rumor da língua, “diante da obra – noção tradicional,
concebida durante muito tempo, e ainda hoje, de maneira por assim dizer newtoniana –,
produz-se a exigência de um objeto novo, obtido por deslizamento ou inversão das categorias
anteriores. Esse objeto é o Texto”.
Apreende-se, com isso, que existe uma distinção entre obra e texto, pois “a obra é
clássica, o texto é de vanguarda” (BARTHES, 2012, p. 67). A obra tem um caráter estático,
acabado, enquanto o texto se encontra em eterno movimento, nunca está de fato finalizado,
pois “o seu movimento constitutivo é a travessia (ele pode especialmente atravessar a obra,
várias obras)” (BARTHES, 2012, p. 67). Entrementes, João Batista Santiago Sobrinho (2011,
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p. 18), na introdução do livro Mundanos fabulistas: Guimarães Rosa e Nietzsche, afirma que
o texto apresenta “movimento paradoxal, descentralizado, subversivo, sem fechamento”.
Desta maneira, o texto abrange inúmeras interpretações, está ligado ao signo e ao significante
e não ao significado, pois “o Texto tenta colocar-se exatamente atrás do limite da dóxa [...];
tomando-se a palavra ao pé da letra, poder-se-ia dizer que o Texto é sempre paradoxal [...]
aborda-se, prova-se com relação ao signo” (BARTHES, 2012, p. 68). O texto, por
conseguinte, “não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois,
depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma
disseminação” (BARTHES, 2012, p. 70). Para Haroldo de Campos (2006, p. 125), no capítulo
Sobre Roland Barthes, do livro Metalinguagem & outras metas, o texto é “regido por lógica
não-monovalente, não linear, mas de ruptura”. Assim, o texto, por sua característica paradoxal
por natureza é e não é várias coisas ao mesmo tempo, possui inúmeras interpretações e
significantes, além de ser contestatório dos discursos de poder vigentes na sociedade.
No capítulo O que é a escritura?, do livro O grau zero da escritura, Barthes (1971, p.
25) define esta como uma “realidade ambígua: de um lado, nasce incontestavelmente de uma
confrontação do escritor com a sociedade; de outro lado [...], ela remete o escritor, dessa
finalidade social, para as fontes instrumentais de sua criação”. A escritura se liga às questões
sociais, históricas e políticas, além de possuir relação com o significante, uma vez que “língua
e estilo são objetos; a escritura é uma função: é a relação entre a criação e a sociedade, é a
linguagem literária transformada por sua destinação social, é a forma apreendida na sua
intenção humana e ligada assim às grandes crises da História” (BARTHES, 1971, p. 23).
Analogamente, Leyla Perrone-Moisés (2005, p. 31-32) aponta, no capítulo Crítica e escritura,
do livro Texto, crítica, escritura, que “a escritura está igualmente amarrada a dois objetivos
contraditórios: dizer a história (voltar-se para o mundo) e dizer a literatura (voltar-se para ela
mesma)”.
Por conseguinte, os filmes analisados nesta tese serão compreendidos, dentro de uma
complexidade de leituras interpretativas plausíveis, como escrituras e textos. Interpretar o
cinema como escritura e texto na perspectiva barthesiana – para além de se observar o
primeiro caráter óbvio de sua linguagem visual conjugada à verbal – se liga a examinar as
imagens fílmicas como se lê um romance (ou outro tipo de texto literário), isto é, indo na
direção não do que simplesmente é dito pela imagem, mas também do que não é dito, do que
fica nas entrelinhas, nas lacunas, em suma, no “entrecorpo” do filme em si, o que na literatura
o escritor estadunidense Ernest Hemingway chamava de “teoria do iceberg” ou “teoria da
omissão”, ou seja, aquilo que fica propositalmente implícito na narrativa. Se, como coloca
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Barthes, o texto, ao contrário da obra, está em constante travessia de significações e de


intepretações infinitas, logo, o cinema pode ser visto, então, como texto, pois as
especificidades especulativas de leitura facultadas ao espectador criam inúmeras
interpretações que não anulam umas às outras, mas se somam consigo mesmas, demonstrando
a riqueza catártica e fruitiva do cinema como arte. O filme enquanto escritura, portanto,
constrói-se em sua função criativa e, ao mesmo tempo, sócio-histórica, como aponta Barthes.
Com isso se cria uma espécie de “espectador emancipado”, tal como conceito
trabalhado por Rancière, em seu livro homônimo, isto é, de um espectador que entra em
contato com a obra de arte e suas inúmeras lacunas e cria, através de sua bagagem cultural,
interpretações várias para esta obra. O filósofo, no capítulo A imagem pensativa, trabalha um
conceito de mesmo nome, que pode ser pensado, também, em relação ao cinema:

Não se supõe que uma imagem pense. Supõe-se que ela é apenas objeto de
pensamento. Imagem pensativa, então, é uma imagem que encerra pensamento não
pensado, pensamento não atribuível à intenção de quem a cria e que produz efeito
sobre quem a vê sem que este ligue a um objeto determinado (RANCIÈRE, 2014, p.
103).

Observar os filmes analisados nesta tese (As vinhas da ira e Onde os fracos não têm
vez) como escrituras e textos se dá porque as obras cinematográficas pesquisadas são
paradoxais, apresentam inúmeras vozes referenciais e citações indiretas em suas estruturas
narrativas e estéticas, vindas dos objetos literários dos quais foram adaptados. De mais a mais,
esses filmes são conotativos, líricos, poéticos, metafóricos, têm amplos sentidos e
significantes, são paradigmáticos, refletem a história e a sociedade. As imagens de tais filmes
se voltam também para si mesmas, isto é, são autoreflexivas sobre seus dispositivos em si, ao
buscarem um realismo que afronte um cinema monolítico, homogêneo e rútilo. Essas imagens
se revertem para um cinema hermético da imagem-tempo3, uma vez que os discursos estético-
narrativos dos três filmes são contestatórios dos discursos de poder e não se fecham em si
mesmos, pois estão em constante travessia interpretativa.
De um lado, tem-se As vinhas da ira, criado por John Ford, na era do cinema clássico
hollywoodiano e que imprime no celulóide uma visão crua e dura de mundo, seca como o solo
da terra natal de suas personagens, no Oklahoma, ficcionalizando, com isso, “um” real
próximo da realidade pela qual os EUA passavam nos anos 1930, tudo isso vindo da criação
de Steinbeck traduzida para o cinema. De outra ponta, há Onde os fracos não têm vez, em que

3
Conceito que será explicado no capítulo I.III.
P á g i n a | 24

o desalento frente à violência mundana e a debilidade diante do acontecimento e do acaso são


postas em imagens horrendas e brutais na tradução do universo abstrato de McCarthy.
Além disso, os filmes analisados nesta tese serão entendidos também como “obras
abertas”, conceito este provindo dos estudos de Umberto Eco. Segundo Eco, no capítulo A
poética da obra aberta, do livro Obra aberta: Forma e indeterminação nas poéticas
contemporâneas, referindo-se à música moderna (porém, em uma leitura que permite a
mesma conceituação para outras formas de arte), as obras de arte modernas não consistem

numa mensagem acabada e definida, numa forma univocamente organizada, mas


sim numa possibilidade de várias organizações confiadas à iniciativa do intérprete,
apresentando-se, portanto, não como obras concluídas, que pedem para ser revividas
e compreendidas numa direção estrutural dada, mas, como obras “abertas”, que
serão finalizadas pelo intérprete no momento em que as fruir esteticamente. [...]
Tem-se discutido, de fato, em estética, sobre a “definitude” e a “abertura” de uma
obra de arte: e esses dois termos referem-se a uma situação fruitiva que todos nós
experimentamos e que freqüentemente somos levados a definir: isto é, uma obra de
arte é um objeto produzido por um autor que organiza uma seção de efeitos
comunicativos de modo que cada possível fruidor possa recompreender [...] a
mencionada obra, a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido, o autor
produz uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja
compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos
estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação
existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma
determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais, de modo que a
compreensão da forma originaria se verifica segundo uma determinada perspectiva
individual. [...] Neste sentido, portanto, uma obra de arte, forma acabada e fechada
em sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é também aberta, isto é,
passível de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração de sua
irreproduzível singularidade. Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma
execução, pois em cada fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original
(ECO, 1991, p. 39-40)

Segundo Eco, a obra de arte é, assim, ao mesmo tempo fechada – isto quando o artista
a “finaliza”, entretanto, deixando lacunas em seu interior a serem preenchidas pelo público – e
aberta, o que se dá quando esta entra em contato com o intérprete, ou seja, o espectador, que
transmite camadas de significantes vindas de sua bagagem de fruição artística e transmitida
para sua interpretação da obra de arte em questão, interpretação esta sempre aberta a novas
reinterpretações e ressignificações. Todavia, não se deve confundir esse processo incessante
de fruição reinterpretativa e ressignificativa com o ato de recognição, uma vez que a arte força
o espectador a pensar não através do reconhecimento, mas sim do estranhamento e do choque,
pois, como aponta Deleuze, no capítulo A imagem do pensamento, do livro Diferença e
repetição,
P á g i n a | 25

não contemos com o pensamento para fundar a necessidade relativa do que ele
pensa; contemos, ao contrário, com a contingência de um encontro com aquilo que
força a pensar, a fim de elevar e instalar a necessidade absoluta de um ato de pensar,
de uma paixão de pensar (DELEUZE, 2006, p. 203).

Depreende-se que o pensamento não evoca, ou não deveria evocar, o reconhecimento


ou a recognição, mas o estranhamento, a criação, o acontecimento, pois ele propaga e produz
a diferença. No capítulo O pensamento como ultrapassamento da representação clássica, do
livro Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, Regina Shöpke
(2012, p. 32) expõe que, segundo Deleuze, “em momento algum o pensamento tem uma
função recognitiva”. Tem-se em vista, com isso, que a “recognição está no centro da filosofia
platônica. É preciso lembrar que conhecer, para Platão, é ‘relembrar’, é ‘reconhecer’”
(SHÖPKE, 2012, p. 33). O pensamento deleuziano, portanto o pensamento que se pede um
ato de violentação mental, é anti-platônico, pois ele não é mimético: é criação.
A literatura, o cinema e a obra de arte em si estão em constante movimento, em um
devir da diferença, uma vez que, de acordo com Deleuze, no início do capítulo A literatura e
a vida, do livro Crítica e clínica,

escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A
literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento [...]. Escrever é um
caso de devir, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria visível
ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de vida que atravessa o visível e o
vivido (DELEUZE, 1997, p. 11).

A fotografia, base primeva do cinema como captação de imagens, teria o poder,


segundo Barthes, no livro A câmara clara: Nota sobre a fotografia, de trazer de volta o
passado, de trazer à vida mecanicamente o que se encontra morto fisicamente:

O que a Fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete


mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Nela, o
acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa: ela reduz sempre o corpus de
que tenho necessidade ao corpo que vejo; ela é o Particular absoluto, a Contingência
soberana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e não a Foto), em suma a Tique, a
Ocasião, o Encontro, o Real, em sua expressão infatigável (BARTHES, 2017, p. 12,
grifos do autor).

Se a fotografia pode ser vista como essa espécie de portal para o passado, como afirma
Barthes, o cinema (que capta a imagem em movimento e, por isto, é ainda mais realista), vai
mais à frente nesse retorno. No que se liga a essa sensação de movimento captada pelo olho
humano (bastião do cinema), ela muitas vezes é atribuída à teoria da persistência retiniana,
que consiste basicamente no fato da retina reter durante um segundo um número superior a
P á g i n a | 26

dez quadros seguidos, em que, entre um e outro, há uma pequena mudança que causaria a
percepção de movimento e a continuidade, o que explica o porquê dos primeiros filmes serem
registrados inicialmente em dezesseis quadros por segundo, depois em vinte e quadro (o que
se tornou convenção universal a partir dos anos 1920) e, mais recentemente em trinta, padrão
do cinema digital. Como afirma Deleuze (2018a, p. 18, grifo do autor), no capítulo Teses
sobre o movimento (primeiro comentário a Bergson, do livro Cinema 1 - A imagem-
movimento, o “cinema é o sistema que reproduz o movimento em função do instante
qualquer, isto é, em função de momentos equidistantes, escolhidos de modo a dar a impressão
de continuidade”. Entretanto, Jacques Aumont, no capítulo Do visível ao visual, do livro A
imagem, renega essa teoria da persistência retiniana e prefere ver de outra maneira o modo
como o olho humano consegue enxergar a simulação do movimento:

Há várias teorias que visam explicar a percepção de movimento; hoje a mais adotada
é a que atribui essa percepção a dois fenômenos: o primeiro é a presença no sistema
visual de detectores de movimento capazes de codificar os sinais que afetam pontos
vizinhos na retina; o segundo é uma informação sobre nossos próprios movimentos,
que permite não atribuir aos objetos percebidos um movimento aparente, decorrente
de nossos deslocamentos ou de nossos movimentos oculares (AUMONT, 1993, p.
47).

No caso da percepção do movimento no campo do cinema, afirma Aumont:

O cinema utiliza imagens imóveis, projetadas em uma tela com certa cadência
regular, e separadas por faixas pretas resultantes da oscilação da objetiva de um
projetor por uma paleta rotativa, quando da passagem da película de um fotograma
ao seguinte. Ou seja, ao espectador de cinema é proposto um estímulo luminoso
descontínuo, que dá [...] uma impressão de continuidade, e além disso uma
impressão de movimento interno à imagem por meio de movimento aparente
(AUMONT, 1993, p. 51).

Nesta tese, se a teoria da persistência retiniana está correta ou não, fica-se com a noção
de imagem cinematográfica de Deleuze citada antes a respeito do cinema como uma
reprodução do movimento em “função do instante qualquer”, ponto de vista este que Aumont
acima se aproxima ao ver o cinema como uma “impressão de continuidade” e o movimento da
imagem cinética como “aparente”.
Dessa maneira, a imagem cinematográfica ou fílmica é definida por Bazin, em A
evolução da linguagem cinematográfica, artigo presente no livro O que é o cinema?:

Por “imagem”, entendo de modo bem amplo, tudo aquilo que a representação na
tela pode acrescentar à coisa representada. Essa contribuição é complexa, mas
podemos reduzi-la essencialmente a dois grupos de fatos: a plástica da imagem e os
P á g i n a | 27

recursos da montagem (que não é outra coisa senão a organização das imagens no
tempo) (BAZIN, 2014, p. 96, grifo do autor).

Quando fala da plástica da imagem, Bazin se refere, nesse trecho, à estética, ou seja, à
técnica adotada para se trabalhar a imagem, no que se inclui o enquadramento, os movimentos
de câmera, a iluminação etc. No que diz respeito à montagem, Bazin acima apenas afirma sua
primeira função, ou seja, a organização temporal das imagens para se construir uma narrativa.
Aumont e Marie, no Dicionário teórico e crítico de cinema, definem o conceito de imagem
fílmica da seguinte maneira:

A imagem cinematográfica é plana, enquadrada, o que a assemelha às imagens da


pintura e da fotografia. Como essas imagens, ela possui uma “dupla realidade
perceptiva”: é percebida, a um só tempo, como bidimensional e tridimensional.
Pode-se até mesmo sustentar, sem a percepção da realidade bidimensional – a da
superfície da imagem – seria difícil, e até mesmo impossível, perceber corretamente
a “realidade” tridimensional (a profundidade representada), e isso foi verificado,
experimentalmente, em laboratório (Pirenne). No cinema, isso implica que a
imagem de filme seja percebida, a um só tempo, como plana e “profunda”
(AUMONT; MARIE, 2006, p. 161).

Por mais que se adote nesta tese uma visão deleuziana do cinema como criação, bem
como da adaptação literária como a criação de algo novo em cima de um material textual,
Bazin fala, em citação anterior, na imagem cinematográfica como “representação”. Isto talvez
levaria à ideia de semelhança, tão combatida por Deleuze em sua filosofia da diferença. Se,
em uma primeira leitura, os olhares deleuziano e baziniano parecem excludentes, na verdade
eles são complementares. Nos livros Cinema 1 - A imagem-movimento e Cinema 2 - A
imagem-tempo (publicados, respectivamente, em 1983 e 1985) Deleuze dialoga com a teoria
realista de Bazin sobre o Neorrealismo italiano e a leva bem mais à frente, isto até pelo fato
do primeiro ter escrito sua teoria filosófica a respeito do cinema em um momento histórico
posterior ao do segundo. Deleuze contou com mais distanciamento crítico do que Bazin, que
morreu muito jovem, em 1958, alguns anos após o fim do Neorrealismo italiano como
movimento cinematográfico. Por isso se diz que, quando Deleuze faz uma leitura filosófica do
cinema em suas duas obras citadas, acaba por ser complementar a Bazin. De qualquer forma,
como afirmado antes, nesta tese usa-se o conceito deleuziano de criação, mas Bazin é citado
por sua importância como pensador crítico e teórico do cinema, mesmo que com as ressalvas
apresentadas.
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Dessa maneira, o cinema, além de trazer influências da literatura – na estrutura


narrativa do roteiro e nos diálogos – e do teatro (nas atuações e na mise en scène4), possui
também uma forte ligação com a pintura e com a fotografia. O enquadramento
cinematográfico leva o olhar do espectador para além das bordas, para o fora-de-campo, e o
quadro pictórico conduz o espectador ao centro, pois, como afirma Bazin (2014, p. 206, grifo
do autor), em Pintura e cinema, texto que se encontra no livro O que é o cinema?, “os limites
da tela não são, como vocabulário técnico daria por vezes a entender, a moldura da imagem,
mas a máscara que só pode desmascarar uma parte da realidade”.
Para além das questões subjetivas de construção de interpretações, tal como colocado
por Deleuze acima (na citação do capítulo A literatura e a vida, do livro Crítica e clínica),
segundo Aumont (2011, p. 111), no capítulo De um quadro a outro: A borda e a distância, do
livro O olho interminável (cinema e pintura), “o quadro fílmico, por si só, é centrífugo: ele
leva a olhar para longe do centro, para além de suas bordas; ele pede, inelutavelmente, o fora-
de-campo, a ficcionalização do não-visto”. Ou seja, o quadro fílmico bordeja
provocativamente seu espectador, ao mesmo tempo em que transborda para fora da tela e
caminha em direção ao mundo, misturando-se a este no entrechoque criativo de violento
pensamento onde o espectador é conclamado a ter sensações com seus afectos e perceptos.
Esse entrechoque passa ao largo da recognição, indo em direção ao estranhamento, o
que, na filosofia, se encontra apenas no domínio da dóxa, uma vez que, de acordo com
Deleuze (2006, p. 15), no capítulo Signo e verdade, do livro Proust e os signos, “a filosofia
atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem perturbam”. Seria preciso,
assim, o encontro, que causa o choque e o estranhamento, pois, para Deleuze (2006, p. 15), “o
acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado”. Esse encontro seria
possível, para Deleuze, mormente na literatura e na arte, que podem ir além dos limites da
dóxa, pois, como ele afirma, no capítulo Série e grupo de Proust e os signos, “sem algo que
force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais importante do
que o pensamento é o que ‘dá a pensar’; mais importante que o filósofo, é o poeta” (2006, p.
88-89). Como afirma Friedrich Nietzsche (2007, p. 171), no aforismo trezentos e trinta e três
de A gaia ciência, “o pensamento consciente, sobretudo o do filósofo, é o menos violento de
todos e, por conseqüência, o mais suave e tranqüilo: em função disso o filósofo é
precisamente o mais exposto a enganar-se quanto à natureza do conhecimento”. Não que o

4
De acordo com Massaud Moisés (2004, p. 298), no Dicionário de termos literários, a mise en scène se liga ao
“cenário, vestimenta, mobiliário, colocação e movimentação dos atores, etc., de uma peça teatral”. Devido às
influências que o cinema sofreu do teatro, o primeiro tomou emprestado do último este conceito.
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filósofo não tenha qualquer tipo de importância, mas a arte, para além de criar o pensamento,
também o violenta, ela leva a pensar pela força, sem contar que ela é mais acessível ao
público de massas em geral.
Caio Augusto Teixeira Souto (2010, p. 40), no artigo Deleuze, a imagem do
pensamento e a literatura, publicado na revista Trilhas filosóficas, reafirma o que discute
Deleuze, ao dizer que “somente por encontros violentos é que pode brotar um verdadeiro ato
de pensamento, o que teria sido plenamente atingido, não pela filosofia, mas pela literatura”.
O autor ainda corrobora o que é apontado por Deleuze, em Proust e os signos:

[...] é a memória involuntária que nos impele à busca pelo tempo perdido, que nos
mergulha no inesgotável universo das reminiscências e dos inúmeros envolvimentos
possíveis entre sensações, lugares, gostos, aromas que constituem nossa vida e nosso
ser. Enfim encontrada está na literatura a verdadeira força criadora, o verdadeiro ato
de pensar proveniente do encontro essencial suscitado pelo signo, pois é a arte quem
comporta os signos essenciais. E isso não pode ocorrer senão de maneira violenta,
inesperada (SOUTO, 2010, p. 43, grifo do autor).

Benjamin, em dois momentos distintos, resume as questões antes citadas do quadro


fílmico como centrífugo e construtor de uma violência no pensamento. Primeiro no livro
Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo, onde, no capítulo Sobre alguns temas
em Baudelaire, Benjamin (1989, p. 125) assevera que, no cinema, “a percepção sob a forma
de choque se impõe como princípio formal. Aquilo que determina o ritmo da produção na
esteira rolante está subjacente ao ritmo da receptividade, no filme”. Depois, em A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica:

Compara-se a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro.
Na primeira, a imagem se move, mas na segunda, não. Esta convida o espectador à
contemplação; diante dela, ele pode abandonar-se às suas associações. Diante do
filme, isso não é mais possível. Mal o espectador percebe uma imagem, ela não é
mais a mesma. Ela não pode ser fixada, nem como um quadro, nem como algo de
real. A associação de idéias do espectador é interrompida imediatamente, com a
mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema,
que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda.
O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos
com os quais se confronta o homem contemporâneo (BENJAMIN, 2012, p. 207).

O cinema, como se vê nos apontamentos de Benjamin, acima relacionados à “cultura


de massas”, estudada arduamente pelo autor e seus outros colegas da Escola de Frankfurt,
possui uma potência de confecção intersubjetiva de se chegar ao inconsciente e ao
subconsciente humanos a partir de seus recursos expressivos. Estes manipulam e arquitetam
uma realidade ficcionalizada modelada pela direção de cinema através da montagem de
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imagens, da decupagem de cenas e, mais precisamente, do direcionamento do olhar do


espectador para um determinado espaço, objeto, rosto etc., de modo a conduzir este olhar
rumo a algo que fará a audiência erigir um pensamento sobre alguma coisa. Dessa maneira,
complementando a fala de Benjamin, no artigo Modernidade - Mundo de sonho, experiência
do choque, Milena Travassos aponta que

a obra de arte tradicional (clássica) é marcada por uma relação de recolhimento


individualizado que suga a quem a observa, ela se dispõe à contemplação do
observador pelo tempo que ele deseje. Já no cinema, as imagens impõem uma
visibilidade “autoritária” e fragmentada, mas são elas que mergulham no fluxo
disperso do espectador. Ante a sucessão de imagens do filme, o espectador precisa
estar totalmente presente e disponível, de outra forma, os choques das imagens não
poderiam ser absorvidos. É essa condição de percepção da arte que o cinema
instaura (TRAVASSOS, 2009, p. 43-44).

Retomando o que se citou previamente sobre a experiência do choque e da violentação


do pensamento do espectador no cinema, que o leva a pensar sobre a sua própria existência no
mundo, Taisa Helena Pascale Palhares (2006, p. 66), no livro Aura: A crise da arte em Walter
Benjamin, itera que o “espectador fica submetido a choques ininterruptos, cuja repetição
rigorosa os transforma com o passar do tempo em hábito. Ocorre que esses choques são
semelhantes àqueles sentidos por cada indivíduo nas grandes cidades”.
Nesse sentido, Miriam Hansen (2012, p. 251), refletindo sobre o texto A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica, em seu artigo Benjamin, cinema e experiência: A flor
azul na terra da tecnologia, presente no livro Benjamin e a obra de arte: Técnica, imagem,
percepção, organizado por Tadeu Capistrano, afirma que o autor “enfatiza o efeito
fragmentador, destrutivo e alegorizador dos recursos cinematográficos, sua tendência a cortar
o tecido da realidade como um instrumento cirúrgico”. Hansen (2012, p. 251) ainda ratifica
que “assim como Freud alterou nossa consciência da linguagem, diz Benjamin, as técnicas
cinematográficas, como o close-up, o intervalo temporal e a fotografia em câmera lenta, e
acima de tudo a montagem, modificaram nossa percepção do mundo visual”.
O ato de adaptação de um texto literário, que já apresenta suas próprias lacunas, é per
se um processo de criação. Logo, quando John Ford e os Irmãos Coen adaptam os textos de,
respectivamente, John Steinbeck e Cormac McCarthy, eles o fazem criando outras escrituras
independentes, que apresentam outras lacunas e atravessam o tempo com outras camadas de
significações. Assim sendo, quando o espectador, em sua forma emancipada, como disposto
por Rancière antes, concebe inumeráveis interpretações destes filmes, vistos, então, numa
perspectiva de obra aberta, texto e escritura, este espectador também está criando outros
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mundos através de sua leitura pessoal vinda de seu repertório sociocultural, participando de
outro ato de criação. Depreende-se, portanto, que este ato de criação se dá não pelas mãos dos
diretores e das diretoras de cinema, mas também via a intepretação do público, sendo, com
isto, ininterrupta.

I.III: IMAGEM-TEMPO

Os filmes baseados nas literaturas de John Steinbeck e Cormac McCarthy serão


analisados também como imagens pensantes descoladas da pura e simples comparação com
os textos dos quais foram adaptados, mas sim conectadas com o cerne filosófico que tais
textos e filmes conclamam. Por esta razão, os filmes serão compreendidos nesta tese como
“imagens-tempo”, conceito formulado por Deleuze no livro Cinema 2 - A imagem-tempo e
que se refere, sem se adentrar aqui nos pormenores desta definição, como o cinema moderno,
ou seja, um tipo de cinema vindo no período pós-Segunda Guerra Mundial e em um momento
de desencantamento do ser humano com o mundo e com as políticas nazifascistas – que
prometiam a criação de um novo homem racionalmente tecnicista (tudo isso sem se desgarrar
do fato aporético de que o cinema, como arte por si só, é uma arte técnica). A imagem-tempo
trata-se de um cinema que não mais visava a mera encenação frente à câmera e a
representação ou simples reprodução da realidade na tela, pois “o real não era mais
representado ou reproduzido, mas ‘visado’” (DELEUZE, 2018b, p. 11). Roberto Machado, no
artigo Deleuze e a crise do cinema clássico, presente no livro Do abismo às montanhas,
organizado por Fernando Pessoa e Ronaldo Barbosa, afirma que

o cinema é constituído, primeiro, por imagens-movimento, imagens em que o


movimento subordina o tempo. Depois, quando deixa de subordinar o tempo ao
movimento e faz o movimento dependente do tempo, a imagem cinematográfica se
torna imagem-tempo (MACHADO, 2010, p. 201).

Essa imagem-tempo, além de dependente do tempo e testemunha do contexto e do


período histórico com o qual se reconcilia, é centrífuga, isto é, aponta para longe do centro,
chocando-se com o espectador e evocando seu pensamento sobre o que ele vê na tela através
de suas próprias subjetividades, ou “uma máquina que produz subjetivações” (AGAMBEN,
2009, p. 46), tal como rememora Giorgio Agamben, no capítulo O que é um dispositivo?, do
livro O que é um contemporâneo? e outros ensaios. Como aponta Aumont (2011, p. 111), no
capítulo De um quadro a outro: A borda e a distância, do livro O olho interminável (cinema e
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pintura), “o quadro fílmico, por si só, é centrífugo: ele leva a olhar para longe do centro, para
além de suas bordas; ele pede, inelutavelmente, o fora-de-campo, a ficcionalização do não-
visto”.
O conceito de imagem-tempo se une fortemente à ideia de realismo, principalmente a
uma espécie de realismo moderno que questiona suas próprias origens como criação
ficcionalizada reflexiva sobre o mundo. Estreitamente relacionado aos dois objetos desta tese,
os filmes As vinhas da ira e Onde os fracos não têm vez, responsáveis cada um à sua maneira
por apresentar formas de captação de “um” realismo, o conceito de imagem-tempo será, por
conseguinte, melhor explorado no capítulo I.VII desta tese e, posteriormente, junto aos
capítulos de análises destes filmes.

I.IV: TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA

Outro conceito preponderante na pesquisa é o de tradução intersemiótica. De acordo


com Barros (1990, p. 56), discutindo a teoria de Emilio Garroni, apresentada no livro
Proyecto de semiótica, “as formas visuais, mesmo em sua dimensão puramente figurativa, já
estariam contaminadas por siglas língüísticas explícitas”. Isto se dá porque “a leitura de uma
imagem, como reprodução fotográfica do real, não é tão imediata quanto pode parecer, pois os
elementos que a compõem (ambiente, pessoas, objetos, movimentos) quase sempre conotam
significados menos aparentes” (BARROS, 1990, p. 56). Segundo Garroni, citato por Barros, a
“dimensão verbal [...] não é estranha à imagem, mas interna em relação a ela, como uma das
condições de sua estrutura e da sua legibilidade” (GARRONI, 1973, p. 360 apud BARROS,
1990, p. 56).
Para Julio Plaza (2001, p. 39), a respeito da tradução de um texto de uma língua para
outra, no capítulo Invenção, do livro Tradução intersemiótica, “fazer tradução toca no que há
de mais profundo na criação. Traduzir é pôr a nu o traduzido, tornar visível o concreto do
original, virá-lo pelo avesso”. De acordo com Haroldo de Campos, em Da tradução como
criação e como crítica, artigo presente no livro Metalinguagem & outras metas: Ensaios de
teoria e crítica literária,

tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma


porém recíproca. Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável,
mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. Numa tradução dessa
natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua
fisicalidade, sua materialidade mesma [...]. O significado, o parâmetro semântico,
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será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora.


Está-se pois no avesso da chamada tradução literal (CAMPOS, 2006, p. 35).

Ressalta-se, todavia, que a ideia de tradução intersemiótica, apresentada por Plaza e


Campos, refere-se à tradução de um texto literário de sua língua original para outra, dentro da
acepção do que Campos chama de “recriação” ou que poderia ser também nomeado como
“transcriação”. Entretanto, tais definições podem ser estendidas para a compreensão da
adaptação literária para o cinema como uma tradução de uma mídia (ou de uma forma de arte)
para outra, principalmente se se pensar que ambas estas mídias são linguagens inseridas no
panorama da língua, pois, como bem lembra Metz, no texto Cinema: Língua ou linguagem?,
o cinema é uma linguagem, caso se perceba o filme como uma mensagem. Ao falar de uma
“possibilidade aberta de recriação” e que “não se traduz apenas o significado, traduz-se o
próprio signo”, Campos – quando se procura inserir suas afirmações no território da
adaptação literária como tradução – leva a pensar novamente tanto no conceito de obra aberta
de Eco quanto na questão da transformação do signo literário em signo fílmico. Ou seja, há
uma tradução das imagens evocadas pelas palavras do texto literário para imagens
audiovisuais de fato (conjugadas a outros elementos estéticos) que estarão presentes no texto
cinematográfico. Para além disto, Claus Clüver, no texto Intermidialidade, publicado na
revista PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, aponta este
novo termo do título de seu artigo como uma possibilidade de interação e correlação entre as
mais diversas e distintas mídias e manifestações artístico-culturais que se influenciam e criam
algo novo junto ao diálogo intertextual.

“Intermidialidade” é um termo relativamente recente para um fenômeno que pode


ser encontrado em todas as culturas e épocas, tanto na vida cotidiana como em todas
as atividades culturais que chamamos de “arte”. Como conceito, “intermidialidade”
implica todos os tipos de interrelação e interação entre mídias; uma metáfora
frequentemente aplicada a esses processos fala de “cruzar as fronteiras” que separam
as mídias (CLÜVER, 2012, p. 9).

Logo, como será mostrado nos capítulos II e III desta tese, respectivos sobre os objetos
de estudo, no caso os filmes As vinhas da ira e Onde os fracos não têm vez, perceber-se-á que
os diretores deles conseguem, cada um a seu modo, tal como cita Campos, virar do avesso o
objeto traduzido e os abrir para várias possibilidades de recriação que modificam os textos
originais adaptados, além de, como expõe Clüver, “cruzar as fronteiras que separam as
mídias”. Isto se dá pelo simples fato primário de o cinema ser uma mídia que possibilita criar
imagens a partir das imagens sugeridas pelas palavras literárias. O diretor ou diretora de
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cinema criam, assim, uma interpretação própria do material que adaptam vertida em imagem
cinematográfica. Em um segundo momento, modifica-se o que é necessário de se mudar para
se conseguir adequar a literatura ao cinema, uma vez que ambas são veículos comunicacionais
e criativos distintos. Novas lacunas interpretativas são acrescentadas nesse processo e o
espectador acaba por trazer, com sua bagagem sociocultural, outras possibilidades de leitura,
o que faz do filme uma obra aberta, tal como concepção de Eco apresentada antes. Em suma,
ao analisar-se os objetos desta tese mais à frente, ver-se-á que eles, no ato de adaptação
criativa, passam por esse movimento de constante travessia.

I.V: TRAGÉDIA, SEGUNDO FRIEDRICH NIETZSCHE

Faz-se importante salientar que as dimensões metafísicas da escritura de Steinbeck e


McCarthy e dos filmes analisados serão compreendidas dentro do universo da linguagem e do
simbolismo, isto é, como adereço e verossimilhança. Muitas vezes, salienta-se, sobremaneira,
em estudos em geral, uma suposta metafísica do judaísmo-cristão nesses autores – questão,
deveras, indissociável inconscientemente, tendo-se em vista que os ocidentais vêm de uma
tradição judaico-cristã secular –, o que, nesta lógica purista, reducionista e simplificadora, se
converteria para os filmes adaptados de seus textos. Consequentemente, a tese também partirá
e se transfigurará em uma reflexão sobre o trágico da existência frente aos dispositivos da
técnica e do processo civilizatório. Desta maneira, se vinculará ao conceito de tragédia grega,
compreendido por Friedrich Nietzsche, em O nascimento da tragédia, em que o filósofo
perscruta a relação desta com os deuses Apolo e Dioniso relacionados nas características da
beleza e da embriaguez, respectivamente, e no modo como estes deuses, ao lado de outros,
conjuntamente às tragédias, são modos de resistir ao peso da vida e de suplementar o vazio da
existência. Nietzsche vê nestas narrativas um esforço dos gregos de sobrelevarem o peso de
suas existências por intermédio da invenção e da plasticidade.

Para poder viver, os gregos, impelidos pela mais imperiosa necessidade, tiveram de
criar esses deuses; devemos imaginar isso, sem dúvida, como um processo em que
esse instinto apolíneo de beleza foi desenvolvido em lentas transições, a partir
daquela primitiva ordem divina titânica do horror, a ordem divina da alegria: da
mesma maneira que as rosas brotam de um arbusto espinhento. Como esse povo de
emoções tão delicadas, de desejos tão impetuosos, esse povo tão excepcionalmente
capacitado para o sofrimento, teria podido suportar a existência, se não a tivesse
contemplado em seus deuses, circundada de uma glória radiante? (NIETZSCHE,
2013a, p. 61).
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Sobre os citados aspectos da tragédia, ainda reflete Nietzsche, em O nascimento da


tragédia:

[...] devemos entender a tragédia grega como o coro dionisíaco, que sempre se
descarrega num mundo apolíneo de imagens. Aquelas partes de coro, com as quais a
tragédia é entrelaçada, são assim, até certo ponto, o seio materno de todo pretenso
diálogo, isto é, de todo o mundo da cena, do verdadeiro drama. Em diversas
descargas sucessivas dessa espécie irradia esse fundamento primitivo da tragédia,
essa visão do drama, que é em sua totalidade uma aparição percebida no sonho e,
enquanto tal, de natureza épica, mas que, por outro lado, como objetivação de um
estado dionisíaco, representa não a liberdade apolínea na aparência, mas, pelo
contrário, a destruição do indivíduo e sua identificação com o ser primordial. Assim
o drama é a materialização apolínea de noções e de influências dionisíacas e isso,
como um abismo insondável, o separa da epopéia. O coro da tragédia grega, o
símbolo de toda a multidão exaltada pela embriaguez dionisíaca, encontra então sua
explicação total (NIETZSCHE, 2013a, p. 101).

Assim, as imagens da ficção em geral, podem, por encadeamento inconscientemente


relacional e referencial, serem observadas, fruídas e estudadas como símbolos oníricos que
representam “um” real e que levam aspectos próprios do apolíneo e do dionisíaco, o que se
dá, fundamentalmente, em sua conexão com o coro das tragédias, espécie de comentário sobre
o que é encenado, analogamente ao discurso indireto livre da literatura, o qual é trabalhado
por Steinbeck e McCarthy, concomitantemente aos outros citados elementos da tragédia, e
traduzido em recursos cinematográficos pelos diretores dos filmes que adaptaram seus textos.

I.VI: DO CAOS AO CÉREBRO - ALGUNS CONCEITOS DE FRIEDRICH NIETZSCHE, GILLES


DELEUZE E FÉLIX GUATTARI

Neste momento serão apresentados alguns conceitos de Friedrich Nietzsche e de Gilles


Deleuze junto a Félix Guattari preponderantes na escrita da tese que se segue.
No que diz respeito a uma visão de mundo transcendente, com causa inicial e final,
Friedrich Nietzsche (2008, p. 310), no capítulo A vontade de poder como conhecimento, do
livro A vontade de poder, expõe que “’fim e meio’, ‘causa e efeito’, ‘sujeito e objeto’, ‘fazer e
sofrer’, ‘coisa em si e manifestação’ como interpretações (não como fato) e em que medida
talvez como interpretações necessárias? (como ‘interpretações que conservam’)” encontram-
se “todas no sentido de uma vontade de poder” (NIETZSCHE, 2008, p. 310). A verdade ou a
representação desta, portanto, não existe, uma vez que só há a interpretação dos fatos como
tal. Esse ponto de vista transcendente encontra-se presente nas religiões, principalmente as de
matriz judaico-cristã. Ressalta-se, porém, que esse olhar judaico-cristão presente nas
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escrituras estudadas nesta tese aparece como artifício de verossimilhança e adereço por parte
dos autores. Mais à frente, no capítulo O eterno retorno, Nietzsche assevera:

Se o mundo tivesse um fim, ele haveria de já ter sido alcançado. Se houvesse para
ele um estado final não intencional, então este haveria de já ter sido, do mesmo
modo, alcançado. Se ele fosse capaz, em geral, de um persistir, de um tornar-se
petrificado, de um “ser”, tivesse ele, em todo o seu devir, somente por um momento,
essa capacidade do “ser”, então ele teria chegado, mais uma vez, há muito tempo, ao
fim do devir, também ao fim do pensar, ao fim do “espírito”. O fato do “espírito”
como um devir prova que o mundo não tem nenhum fim, nenhum estado final e é
incapaz de ser (NIETZSCHE, 2008, p. 509).

O primeiro dos conceitos importantes de Deleuze e Guattari nesta tese é o de “plano


técnico”. No capítulo Percepto, afecto e conceito, do livro O que é a filosofia?, Deleuze e
Guattari afirmam ser o plano técnico, englobante dos afectos e perceptos, parte de um “plano
de composição”:

o plano técnico, com efeito, é necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de


composição estética. É sob esta condição que a matéria se torna expressiva: o
composto de sensações se realiza no material, ou o material entra no composto, mas
sempre de modo a se situar sobre um plano de composição propriamente estético
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 231).

Em Autopsicografia, o eu lírico de Fernando Pessoa (2011, p. 28) diz que “O poeta é


um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras
sente”. O artista, na figura da personagem conceitual, é um fingidor: contaminado de
“afectos” e “perceptos”, ele impõe um encontro entre a arte e a reflexão, entre as dissonâncias
e as consonâncias. No capítulo Percepto, afecto e conceito, os dois autores vão mais à frente
em sua explanação do conceito de afecto e percepto, ao apontarem ser a arte

independente do criador, pela autoposição do criado, que se conserva em si. O que


se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto
de perceptos e afectos. Os perceptos não mais são percepções, são independentes do
estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou
afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações,
perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido.
Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é
fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de
perceptos e de afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe
em si (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 193-194).

Deleuze conceitua a “sensação” presente na escritura. Em Francis Bacon: Lógica da


sensação, ao se referir ao trabalho do artista plástico Paul Cézanne, Deleuze afirma:
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A sensação é o contrário do fácil ou do já feito, do clichê, mas também o contrário


do “sensacional”, do espontâneo... etc. A sensação tem uma face voltada para o
sujeito (o sistema nervoso, o movimento vital, o “instinto”, o “temperamento”, todo
um vocabulário comum ao naturalista e a Cézanne), e a outra face voltada para o
objeto (o “fato”, o lugar, o acontecimento). Ela pode também não ter face nenhuma,
ser as duas coisas indissoluvelmente, ser o estar-no-mundo como dizem os
fenomenologistas: por sua vez eu me torno na sensação e alguma coisa me acontece
pela sensação, um pelo outro, um no outro (DELEUZE, 2007, p. 42).

Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari (2010, p. 196) indicam que “as sensações,
como perceptos, não são percepções que remeteriam a um objeto (referência): se se
assemelham a algo, é uma semelhança produzida por seus próprios meios”. Ou seja, as
sensações não produzem a semelhança, mas sim a diferença, a singularidade. O que se repete
em alto grau na obra de arte é a diferença e não a equivalência. O filme como obra de arte
encontra-se em um eterno retorno da diferença, em um constante devir. A obra de arte nunca
está de fato finalizada, sempre se encontra em um entrechoque explosivo do pensamento
criador do artista que busca violentar o pensamento do espectador.
O conceito de eterno retorno foi pensado pelo filósofo pré-socrático Heráclito de
Éfeso. Ele afirma em um aforismo que “tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque
novas águas correm sempre sobre ti” (ÉFESO apud PESSANHA, 1996, p. 25). Sua definição
foi interpretada pela via da criação de outra maneira por Nietzsche, na segunda metade do
século XIX, em livros como Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro5,
Assim falava Zaratustra6 e Ecce homo: como se chega a ser o que se é7. O eterno retorno
relaciona-se a algo que retorna incessantemente na vida, libertando a vontade de potência
criadora do ser humano. O conceito foi melhor esboçado por Nietzsche no aforismo 341, do
livro quarto de A gaia ciência:

E se um dia ou uma noite, um demônio se introduzisse na tua suprema solitária


solidão e te dissesse: “Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai-te ser
necessário recomeçá-la sem cessar, sem nada de novo, ao contrário, a menor dor, o
menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que pertence à vida
voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de indizivelmente grande ou pequeno,
tudo voltará a acontecer, e voltará a verificar-se na mesma ordem, seguindo a mesma
impediosa sucessão, esta aranha também voltará a aparecer, este lugar entre as
árvores, e este instante, e eu também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem
descanso, e tu com ela, ínfima poeira das poeiras!” (NIETZSCHE, 2007, p. 179).

5
Neste livro, Nietzsche (2012, p. 69) cita, no aforismo 56 da terceira parte, a expressão “circulus vitiosus deus”,
que significa “círculo vicioso”.
6
Nietzsche (2013, p. 450) afirma, no Canto da embriaguez, da quarta parte: “tudo de novo, tudo eternamente,
tudo encadeado, tudo enlaçado, tudo ligado, assim é que amastes o mundo. Vós, os eternos, vós amais o eterno e
para sempre e dizeis também à dor: ‘Vai embora, mas volta! Porque toda a alegria quer eternidade!’”.
7
No capítulo Por que escrevo livros tão bons, Nietzsche (2009, p. 68) aponta ser a doutrina do eterno retorno
“um ciclo incondicionado e infinito de todas as coisas”.
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Para Deleuze, o eterno retorno se vale daquilo que retorna diferente do que foi. No
capítulo A diferença em si mesma, do livro Diferença e repetição, Deleuze afirma:

O eterno retorno não pode significar o retorno do Idêntico, pois ele supõe, ao
contrário, um mundo (o da vontade de potência) em que todas as identidades prévias
são abolidas e dissolvidas. Retornar é o ser, mas somente o ser do devir. O eterno
retorno não faz “o mesmo” retornar, mas o retornar constitui o único Mesmo do que
devêm. Retornar é o devir idêntico do próprio devir. Retornar é, pois, a única
identidade, mas a identidade como potência segunda, a identidade da diferença, o
idêntico que se diz do diferente, que gira em torno do diferente... O caráter seletivo
do eterno retorno aparece nitidamente na idéia de Nietzsche: o que retorna não é o
Todo, o Mesmo ou a identidade prévia em geral. Tal identidade, produzida pela
diferença, é determinada como “repetição”. Do mesmo modo, a repetição do eterno
retorno consiste em pensar o mesmo a partir do diferente. Mas este pensamento já
não é de modo algum uma representação teórica: ele opera praticamente uma
seleção das diferenças segundo sua capacidade de produzir, isto é, de retornar ou de
suportar a prova do eterno retorno. O caráter seletivo do eterno retorno aparece
nitidamente na idéia de Nietzsche: o que retorna não é o Todo, o Mesmo ou a
identidade prévia em geral. Não é nem mesmo o pequeno ou o grande como partes
do todo ou como elementos do mesmo. Só as formas extremas retornam – aquelas
que, pequenas ou grandes, se desenrolam no limite e vão até o extremo da potência,
transformando-se e passando umas nas outras. Só retorna o que é extremo,
excessivo, o que passa no outro e se torna idêntico (DELEUZE, 2006, p. 73-74).

Assim, o eterno retorno pressupõe a diferença no devir do que retorna, em razão de o


estar do ser humano no mundo ser rizomático e se tornar, quer se queira, quer não, diferença.
Isso inclui, entre outras coisas, os acontecimentos não previstos, as idiossincrasias de um ser
para outro e as percepções que cada um adquire singularmente em suas experiências pessoais
formadoras de um ser como distinto dos outros.
Quanto à citada “vontade de potência”, ou “vontade de poder”, esta é definida por
Nietzsche, no prefácio do livro A vontade de poder:

“A vontade de poder. Tentativa de uma transvaloração de todos os valores” – com


essa fórmula expresso um contramovimento, no que toca ao princípio e à tarefa: um
movimento que substituirá em algum futuro aquele niilismo consumado; mas que,
todavia, o pressupõe, lógica e psicologicamente, que tão somente pode vir sobre ele
e a partir dele [auf ihn und aus ihm]. Por que o advento do niilismo é doravante
necessário? Porque nossos valores até agora são aqueles mesmos que o acarretam
como a sua última consequência; porque o niilismo é a lógica de nossos grandes
valores e ideais pensada até o fim, – porque nós primeiro tivemos que vivenciar o
niilismo para descobrir, ver por trás o que era propriamente o valor desses
“valores”... Teremos necessidade, algum dia, de novos valores (NIETZSCHE, 2008,
p. 23-24).

Na apresentação do livro, o filósofo Gilvan Fogel esclarece que a

vontade fala da espontaneidade do irromper da vida, de seu livre movimento de


autoexposição ou aparição. Espontaneamente, gratuitamente, vida é acontecimento
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de vir à luz, fazer-se visível e, assim, crescer, isto é, agravar-se, intensificar-se. E


isso mesmo é poder, à medida que é realização e, então, assim, impõe-se, impera,
vige e vale. É força – esta força – concretizada. Vida é vontade de poder, quer dizer,
desde nada, a partir de nada, movimento livre (gratuito, sem porquê, sem causa) de,
para [zur] aparição e, então, assim, imposição, vigência – poder. Vida, enquanto e
como vontade de poder, é a fala do extraordinário, do milagre que o grego
experimentou como o elementar de ser-aparecer (FOGEL, 2008, p. 11).

Já a filósofa Scarlett Marton (1990, p. 33), no capítulo A constituição cosmológica:


Vontade de potência, vida e forças, do livro Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores
humanos, elucida que a “vontade é livre, não porque pode escolher, mas porque implica um
sentimento de superioridade”. Ainda segundo a autora, “não existe nenhum objetivo a atingir,
nenhuma meta a alcançar; a vontade de potência é desprovida de qualquer caráter teleológico
– assim como a luta que se desencadeia pelo fato de ela exercer-se” (MARTON, 1990, p. 39).
No capítulo Ativo e reativo, do livro Nietzsche e a filosofia, Deleuze afiança o pensamento de
Nietzsche:

A vontade de poder é, então, o elemento genealógico da força, ao mesmo tempo


diferencial e genético. A vontade de poder é o elemento do qual decorrem, ao
mesmo tempo, a diferença de quantidade das forças postas em relação e a qualidade
que, nessa relação, cabe a cada força. A vontade de poder revela aqui sua natureza:
ela é princípio para a síntese das forças. É nesta síntese, que se relaciona com o
tempo, que as forças repassam pelas mesmas diferenças ou que o diverso se
reproduz. A síntese é a das forças, de sua diferença e de sua reprodução; o eterno
retorno é a síntese da qual a vontade de poder é o princípio (DELEUZE, 1976, p. 40-
41).

Assim, a vontade de poder não é fundamentada por forças deíficas manifestadas em


um suposto bem e mal, mas sim catapultada e siderada pelo caos do universo em seu
constante devir, sendo orgânica e constituinte de cada ser. Desse modo, o mundo
suprassensível de Platão e o paraíso judaico-cristão não encontram legitimidade. Como
assinala Roberto Machado (2009, p. 34), no capítulo A geografia do pensamento, do livro
Deleuze, a arte e a filosofia, “a filosofia de Nietzsche é, como ele próprio a denominou, um
‘platonismo invertido’ (umgedrehter Platonismus)”.
Outra definição importante no pensamento de Deleuze e Guattari é a de “máquina
despótica”. No capítulo Selvagens, bárbaros, civilizados, de O anti-Édipo: Capitalismo e
esquizofrenia 1, os dois autores compreendem a máquina despótica da seguinte maneira:

É a máquina social que mudou profundamente: em vez da máquina territorial, há a


“megamáquina” de Estado, pirâmide funcional que tem o déspota no cume como
motor imóvel, que tem o aparelho burocrático como superfície lateral e órgão de
transmissão, que tem os aldeões na base e como peças trabalhadoras (DELEUZE;
GUATTARI, 2011, p. 258).
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A máquina despótica engloba uma “máquina de guerra”. Ambas podem conviver


paradoxal e simbioticamente, ou a máquina despótica pode ter sido em algum instante uma
máquina de guerra que se reterritorializou. No capítulo Tratado de nomadologia: A máquina
de guerra, do volume 5 de Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e Guattari (2012,
p. 13) afirmam ser a máquina de guerra “efetivamente irredutível ao aparelho de Estado,
exterior a sua soberania, anterior a seu direito: ela vem de outra parte”. Os autores ainda
afiançam que, “sob todos os aspectos, a máquina de guerra é de uma outra espécie, de uma
outra natureza, de uma outra origem que o aparelho de Estado” (DELEUZE; GUATTARI,
2012, p. 13).
Enquanto isso, há também o conceito de “acontecimento”. No capítulo Segunda série
de paradoxos: Dos efeitos e da superfície, do livro Lógica do sentido, Deleuze (1974, p. 9)
aponta que “o acontecimento é coextensivo ao devir e o devir, por sua vez, é coextensivo à
linguagem; o paradoxo é, pois, essencialmente ‘sorite’ isto é, série de proposições
interrogativas procedendo segundo o devir por adições e subtrações sucessivas”. O vocábulo
“sorite”, citado por Deleuze, se refere, segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa 3.0, a um “polissilogismo no qual o atributo da primeira proposição se torna
sujeito da segunda, o atributo da segunda, sujeito da terceira, e assim sucessivamente, e no
qual a conclusão une o sujeito da primeira e o atributo da última” (HOUAISS, 2009). O sorite
é, em suma, o caos de um mundo de incertezas. Ainda de acordo com Deleuze:

O devir-ilimitado torna-se o próprio acontecimento, ideal, incorporal, com todas as


reviravoltas que lhe são próprias, do futuro e do passado, do ativo e do passivo, da
causa e do efeito. O futuro e o passado, o mais e o menos, o muito e o pouco, o
demasiado e o insuficiente ainda, o já e o não: pois o acontecimento, infinitamente
divisível, é sempre os dois ao mesmo tempo, eternamente o que acaba de se passar e
o que vai se passar, mas nunca o que se passa (cortar demasiado profundo mas não o
bastante) (DELEUZE, 1974, p. 9).

A respeito da ideia de acontecimento, em O vocabulário de Deleuze, François


Zourabichvili elucida o que pontua o filósofo:

Ora, a distinção por meio da qual Deleuze pretende remediar essa dupla
desnaturação passa ao mesmo tempo pela linguagem e pelo mundo: o paradoxo do
acontecimento é tal que, puramente “exprimível”, nem por isso deixa de ser
“atributo” do mundo e de seus estados de coisas, de modo que o dualismo da
proposição e do estado de coisas correspondente não se acha no plano do
acontecimento, que só subsiste na linguagem ao pertencer ao mundo. O
acontecimento está portanto dos dois lados ao mesmo tempo, como aquilo que, na
linguagem, distingue-se da proposição, e aquilo que, no mundo, distingue-se dos
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estados de coisas. Melhor: de um lado, ele é o duplo diferenciante das significações;


de outro, das coisas (ZOURABICHVILI, 2004, p. 16-17).

Um conceito que está profundamente ligado ao de acontecimento é o de


“agenciamento”. De acordo com Deleuze e Guattari (2017, p. 147) no capítulo O que é um
agenciamento?, do livro Kafka: Por uma literatura menor, o agenciamento “tem duas faces: é
agenciamento coletivo de enunciação, é agenciamento maquínico de desejo”. Ainda segundo
os autores, “o agenciamento maquínico de desejo é também agenciamento coletivo de
enunciação” (DELEUZE; GUATTARI, 2017, p. 148). No capítulo Introdução à
esquizoanálise, de O anti-Édipo (lançado três anos antes de Kafka: Por uma literatura
menor), Deleuze e Guattari (2011, p. 390) afirmam que “o desejo é máquina, síntese de
máquinas, agenciamento maquínico – máquinas desejantes. O desejo é da ordem da produção;
toda produção é ao mesmo tempo desejante e social”. A respeito do agenciamento,
Zourabichvili, em O vocabulário de Deleuze, faz dois apontamentos preponderantes para se
apreender o conceito. No primeiro, ele afirma:

Esse conceito pode parecer à primeira vista de uso amplo e indeterminado: remete,
segundo o caso, a instituições muito fortemente territorializadas (agenciamento
judiciário, conjugal, familiar etc), a formações íntimas desterritorializantes (devir-
animal etc), enfim ao campo de experiência em que se elaboram essas formações
(ZOURABICHVILI, 2004, p. 20).

Depois, o autor reitera que “o conceito de agenciamento substitui, a partir do Kafka, o


de ‘máquinas desejantes’” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 21). As máquinas desejantes, que
podem atuar tanto como máquinas despóticas do capital quanto máquinas de guerra da
esquizofrenia em um sistema de corte-fluxo, são, conforme Deleuze e Guattari, no capítulo As
máquinas desejantes, do livro O anti-Édipo,

máquinas binárias, com regra binária ou regime associativo; sempre uma máquina
acoplada a outra. A síntese produtiva, a produção de produção, tem uma forma
conectiva: “e”, “e depois”... É que há sempre uma máquina produtora de um fluxo, e
uma outra que lhe está conectada, operando um corte, uma extração de fluxo (o seio
– a boca). E como a primeira, por sua vez, está conectada a uma outra relativamente
à qual se comporta como corte ou extração, a série binária é linear em todas as
direções. O desejo não para de efetuar o acoplamento de fluxos contínuos e de
objetos parciais essencialmente fragmentários e fragmentados. O desejo faz correr,
flui e corta (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 16).

Já o “desejo”, segundo Deleuze e Guattari, no capítulo Introdução à esquizoanálise de


O anti-Édipo, é
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um exílio, o desejo é um deserto que atravessa o corpo sem órgãos, e nos faz passar
de uma das suas faces à outra. Ele nunca é um exílio individual, ele nunca é um
deserto pessoal, mas um exílio e um deserto coletivos. É muito evidente que a sorte
da revolução está unicamente ligada ao interesse das massas exploradas e
dominadas. Mas o problema está na natureza desse liame: como liame causal
determinado ou como ligação de um outro tipo. Trata-se de saber como se realiza
um potencial revolucionário em sua própria relação com as massas exploradas ou
com os “elos mais frágeis” de um dado sistema (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p.
500).

O desejo seria, com isso, uma potência de um agenciamento coletivo em uma


transvaloração de valores. O que os autores chamam de “corpo sem órgãos” é, de acordo com
eles próprios, no capítulo As máquinas desejantes,

o improdutivo; no entanto, é produzido em seu lugar próprio, a seu tempo, na sua


síntese conectiva, como a identidade do produzir e do produto (a mesa
esquizofrênica é um corpo sem órgãos). O corpo sem órgãos não é o testemunho de
um nada original, nem o resto de uma totalidade perdida. E, sobretudo, ele não é
uma projeção: nada tem a ver com o corpo próprio ou com uma imagem do corpo. É
o corpo sem imagem. Ele, o improdutivo, existe aí onde é produzido, no terceiro
tempo da série binário-linear. Ele é perpetuamente re-injetado na produção
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 20-21).

Grosso modo, o “corpo sem órgãos” é a fuga das estruturas em busca de um


paradigma aniquilador dos modelos pré-concebidos.
Outro conceito importante no pensamento deleuze-guattariano é o de rizoma.
Originário da biologia (que designa o rizoma como um caule subterrâneo que cresce
horizontalmente), este conceito, cunhado por Deleuze e Guattari, refere-se à multiplicidade
como construção da realidade e do conhecimento em oposição à segmentaridade e ao
positivismo, sendo ele um paradoxo. O rizoma é algo que, de acordo com Deleuze e Guattari
(1995, p. 18), no capítulo Introdução: Rizoma, do volume 1 de Mil platôs: Capitalismo e
esquizofrenia, “compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado,
territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de
desterritorialização pelas quais ele foge sem parar”.
Entrementes, os conceitos de Deleuze e Guattari vistos até aqui se ligam a
singularidades, que são uma produção vinda de um “socius”. No capítulo As máquinas
desejantes, do livro O anti-Édipo, Deleuze e Guattari definem o socius como podendo

ser o corpo da terra, ou o corpo despótico ou, então, o capital. É dele que Marx diz:
não é o produto do trabalho, mas aparece como seu pressuposto natural ou divino.
Ele não se contenta, com efeito, em se opor às forças produtivas em si mesmas. Ele
se assenta sobre toda a produção, constitui uma superfície na qual se distribuem as
forças e os agentes de produção, de modo que se apropria do sobreproduto e atribui
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a si próprio o conjunto e as partes do processo, que, então, parecem emanar dele


como de uma quase-causa (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 22).

Apresentados estes conceitos, que serão trabalhados dentro das respectivas análises
dos filmes e livros nos capítulos II, III e IV desta tese, segue-se agora para uma discussão
também preponderante a respeito da ideia de realismo versus real.

I.VII: SOBRE “UM” REAL E O REALISMO IMPOSSÍVEL E VISADO

Esta parte tem como perspectiva um experimento investigativo a partir da adaptação


criativa e artífice dos livros As vinhas da ira e Onde os velhos não têm vez para o cinema, que
inspiraram, respectivamente, a produção do filme homônimo de John Ford e do filme Onde os
fracos não têm vez, de Ethan e Joel Coen. Pensar-se-á aqui, principalmente, o que envolve o
conceito de máquina despótica: as imagens da violência, do Estado, do sistema financeiro, dos
dispositivos, em suma, das organizações de poder em si, principais responsáveis pelas crises
econômicas, do eterno estado de instabilidades que retroalimentam o próprio capital e pela
desigualdade social afligidora apenas das populações menos favorecidas em geral. Essas
imagens violentas são vivenciadas pelas personagens ficcionais das obras abertas estudadas.
Os livros e filmes serão tratados aqui, conforme conceitos trabalhados anteriormente
em outra parte da introdução desta tese, como escrituras produzidas por sensações em um
ininterrupto movimento sígnico. Essas escrituras são produtoras, também, de outras
sensações, porque se instauram, como obras de arte, em uma imorredoura travessia, sendo,
assim, violentadoras do pensamento e antirrecognitivas. Logo, estão sempre abertas a novas
construções, criações e interpretações por parte de seu espectador. Enquanto isso, o filme per
se, como uma criação autônoma ao livro, encontra-se em um eterno retorno da diferença, em
um constante devir, pois leva-se em conta o fato de que a obra de arte nunca está de fato
finalizada. Ela sempre se encontra em um entrechoque explosivo da arte criada pelo artista –
mais especificamente o diretor ou a diretora de cinema, que escreve com sua câmera à
maneira citada por Alexandre Astruc em Naissance d’une nouvelle avant-garde: La caméra-
stylo, ou seja, “como um escritor escreve com sua caneta” (ASTRUC, 1948, p. 22 apud
COUTINHO, 2010, p. 15). Este diretor ou esta diretora, enquanto um signo vivo, violenta o
espectador com suas imagens.
John Ford, diretor de As vinhas da ira, e Ethan e Joel Coen, os irmãos diretores de
Onde os fracos não têm vez, compreendem isso bem e, na busca por um realismo em parte
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impossível – uma vez que as virtualidades cinematográficas, principalmente de um cinema


como o de Hollywood, representam ou reproduzem, em um constructo, um suposto real – vão
na direção da afirmação de André Bazin (2016, p. 182), em A propósito do realismo, de que
“o cinema não pode evadir-se de sua essência. Ele não pode chegar ao eterno senão aceitando
sem reserva procurá-lo na exatidão do instante”.
O cinema é, conforme pontua Agamben (2009, p. 46), a respeito do conceito de
“dispositivo”, no capítulo O que é um dispositivo?, do livro O que é um contemporâneo? E
outros ensaios, “uma máquina que produz subjetivações”. Como afirma José Carlos Avellar
(1995, p. 16-17), no livro Deus e o diabo na terra do sol: A linha reta, o melaço de cana e o
retrato do artista quando jovem, “cinema não é apenas o que se dá no instante da projeção,
nem se limita ao que efetivamente se encontra registrado na película. É um provocador de
imagens. O cinema é um provocador onírico”. As subjetividades provocativas inerentes à
criação cinematográfica encontram-se em um intercurso de dialéticas imensuráveis,
rizomáticas. Quando as imagens cinematográficas criativas provêm de uma adaptação de um
texto, buscando-se inventar algo novo – porém, uma espécie de eterno retorno da diferença
em outro campo artístico –, há um choque ctônico que leva o espectador a pensar violentando-
se seu pensamento. Ou seja, para além de criar um pensamento, há também a violentação do
pensamento, no sentido de que se leva a pensar pela força. A imagem cinematográfica vai de
encontro ao olhar do espectador e o coage a pensar sobre o que vê na tela, como se fosse uma
catarse coletiva ou purgação onírica da qual não há escapatória. A reflexão proposta por um
cinema que violenta o pensamento do espectador se dá porque muitas vezes não se busca
confortar o olhar deste espectador somente com imagens que causem identificação, mas sim o
estranhamento, tal como ocorre, muitas vezes, no universo dos sonhos que traduzem os
emaranhados do inconsciente e do subconsciente o qual o ser humano não acessa no dia-a-dia
da labuta diária da vida capitalista. Nietzsche, em A visão dionisíaca de mundo, expõe essa
questão:

[...] não são somente as imagens agradáveis e amistosas que procuramos em nós
com aquela inteligibilidade universal: também o grave, o triste, o baço, o sombrio
são contemplados (angeschaut) com o mesmo prazer, com a ressalva de que também
aqui o véu da aparência precisa estar em movimento flutuante e não pode recobrir
completamente as formas fundamentais do real. Enquanto, portanto, o sonho é o
jogo do homem individual com o real, a arte do escultor (em sentido lato) é o jogo
com o sonho. A estátua como bloco de mármore é deveras real. Todavia, o real da
estátua como figura de sonho é a pessoa viva do deus. Enquanto a estátua continuar
pairando como imagem de fantasia diante dos olhos do artista, ele se manterá como
o real. No momento em que traduz a imagem para o mármore, ele joga com o sonho
(NIETZSCHE, 2005, p. 6, grifos do autor).
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Não que a obra de arte, como obra aberta (sempre disposta a novas interpretações),
deva ter um papel comunicacional, pois, afinal, como afirma Deleuze (1999, p. 4-5), na
palestra O ato de criação, proferida em 1987 e transcrita e publicada no jornal Folha de São
Paulo, “a obra de arte não é um instrumento de comunicação. [...] A obra de arte não contém,
estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre
a obra de arte e a resistência”. A obra de arte, ao contrário, provoca e leva a um universo
onírico que não tem, necessariamente, compromisso com o real, mesmo que ele seja visado,
pois, conforme coloca Deleuze (2018b, p. 11), ao discutir o Neorrealismo italiano do pós-
Segunda Guerra Mundial, no capítulo Para além da imagem-movimento, do livro Cinema 2 -
A imagem-tempo, sob seu ponto de vista, neste movimento “o real não era mais representado
ou reproduzido, mas ‘visado’”.
Para que fique mais deslindado, quando se afirma que as imagens cinematográficas
criativas levam “o espectador a pensar violentando-se seu pensamento” está sendo dito que há
em tais imagens fílmicas uma reflexão obtida à força, no sentido de que se pede um
pensamento por parte do espectador sobre aquilo a que ele está assistindo. Não há ali um
entretenimento ou uma alienação puros e simples. Não que esses aspectos sejam ruins. Muito
pelo contrário! Muitas vezes, o entretenimento e a alienação são necessários para se
sobreviver ao peso do viver. Apesar disso, o ato de pensar também é matéria essencial ao
existir para se ruminar sobre o ser/estar no mundo e sobre as relações humanas, sociais, de
poder etc., tudo isso em prol de se tentar de alguma forma desterritorializar-se.
Reiteram-se todas as questões ditas previamente pelo fato de, por exemplo, o filme As
vinhas da ira ter sido lançado exatamente em 1940, um ano depois de obras clássicas que
redefiniram Hollywood em sua Era de Ouro dos grandes estúdios ao se partir para pontos de
vista mais complexos sobre o mundo, ainda que, paradoxalmente, com um olhar deveras
inocente de certa maneira atado aos filmes de anos anteriores, algo que mudaria no decorrer
dos anos 1940. Das obras antes de 1940, mais precisamente de 1939, ano prolífico para o
cinema hollywoodiano, cita-se Adeus, Mr. Chips, de Sam Wood; A lei da fronteira, de Allan
Dwan; Aliança de aço, de Cecil B. DeMille; A mocidade de Lincoln, Ao rufar dos tambores e
No tempo das diligências, os três de John Ford; A mulher faz o homem, de Frank Capra; Atire
a primeira pedra, de George Marshall; Carícia fatal (adaptação do romance Ratos e homens,
de 1937, de John Steinbeck), de Lewis Milestone; ...E o vento levou e O mágico de Oz, ambos
de Victor Fleming; Gunga Din, de George Stevens; Heróis esquecidos, de Raoul Walsh; Jesse
James, de Henry King; Ninotchka, de Ernst Lubitsch; O morro dos ventos uivantes, de
William Wyler; Paraíso infernal, de Howard Hawks; Vitória amarga, de Edmund Goulding.
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Os referidos filmes de Ford (A mocidade de Lincoln, Ao rufar dos tambores e No


tempo das diligências) encontravam-se em uma revolução constante e desterritorializadora
estético-narrativa nesse período, o que fica patente em sua criação de As vinhas da ira a partir
do texto de Steinbeck, mais próxima de um realismo do que outra aludida adaptação do autor,
Carícia fatal, a qual o livro adaptado (Ratos e homens8) já continha muito da observação
lírica e documental sobre os efeitos da Grande Depressão nos EUA. O próprio Steinbeck
ratifica as diferenças entre os filmes Carícia fatal e As vinhas da ira, mas deixando claro que
gostou de ambas as adaptações, em uma carta destinada à sua irmã Elizabeth, descrevendo
uma viagem com sua esposa Carol, em dezembro de 1939, publicada no livro John Steinbeck:
Uma biografia, de Jay Parini:

Saímos à tarde e naquela noite assistimos a As vinhas na Twentieth-Century.


Zanuck9 mais que manteve a palavra. Fez um filme duro, direto, em que os atores
submergem tão complemente que a impressão é de um documentário, e certamente
tem uma aura dura, autêntica. Não tiraram nada – na verdade, com a eliminação do
material descritivo, ficou uma coisa mais áspera que o livro, muito mais. Parece
inacreditável, mas é verdade. Na tarde seguinte, fomos ver Ratos, e é um belo
serviço. Aqui, Milestone fez algo lírico, é curioso. É coeso e interpretado de maneira
discreta (STEINBECK, 1939 apud PARINI, 1998, p. 274).

John Ford inaugura sua filmografia nos anos 1940 com As vinhas da ira e, depois,
com A longa viagem de volta, Caminho áspero e Como era verde o meu vale (os dois últimos
de 1941) com um olhar mais denso, maduro e melancólico sobre o mundo, mesmo que ainda
transite pela verve cristã, purista e nostálgica das origens de seu cinema. Posteriormente, Ford
filmou in loco documentários sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como A batalha
de Midway (1942), Torpedo Squadron (1942), December 7th (1943) e How to operate behind
enemy lines (1943), o que lhe custou um olho, devido ao fato de filmar de muito perto os
ataques e explosões, tendo de usar um tapa-olho para o resto de sua vida, e, ironicamente,
uma mudança em sua visão de mundo ao ver cenas monstruosas produzidas pela guerra.
Portanto, nesta tese, os filmes examinados, As vinhas da ira e Onde os fracos não têm
vez, serão tratados, cada um a seu modo, como imagens-tempo testemunhas de seu tempo e no
limiar para um cinema mais maduro e moderno. Isso se dá em razão do caráter centrífugo das
imagens desses filmes, à sua capacidade de se desterritorializar para além do território da tela
de cinema, de visar o real, de conciliar o movimento e o tempo e de violentar o pensamento
de seu espectador para pensar a respeito dos caminhos da violência na vida moderna. Quando

8
Livro que teve outra adaptação para o cinema em 1992 sob o título Ratos e homens e foi dirigida pelo ator Gary
Sinise.
9
Produtor de As vinhas da ira.
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se fala em um “caráter centrífugo das imagens desses filmes” compreende-se, principalmente,


as particularidades e a força de suas imagens que saem das bordas limitadoras da tela de
cinema em direção ao olhar do espectador e em um módulo reflexivo que força o espectador –
a partir do concatenamento dessas imagens via a montagem cinematográfica – a pensar sobre
a condição social em que se insere na instância da comunidade humana na qual vive. Essa
força se faz principalmente por meio dos close-ups dos rostos dos atores dentro de um
mecanismo de emoção social que, como afirmou antes Miriam Hansen (2012, p. 251), corta
“o tecido da realidade como um instrumento cirúrgico”, como se vê, por exemplo, na figura II
abaixo. Por isso, sanciona-se o fato dessas imagens se desterritorializarem para além do
território da tela de cinema.

A técnica e o dispositivo cinematográficos por eles mesmos, bem como os efeitos


ideológicos produzidos por ambos, passaram a ser questionados mais diretamente com o
Neorrealismo ao filmar as ruas destroçadas da Itália no pós-guerra, mas o que é configurado
como um cinema moderno rompedor, como o do início dos anos 1940 em Hollywood, já
realizava em si essa tarefa. Com isso, a ação e a emoção fechadas em si só passaram a ser
refutadas, pois tendem a ser vistas como elementos criadores de certa alienação e ilusão, bem
como de imagens que não refletiam propriamente sobre o mundo. Deleuze (2018b, p. 13) vê o
Neorrealismo italiano como “um cinema de vidente, não mais de ação. O que define o
neorrealismo é essa ascensão de situações puramente óticas [...], que se distinguem
essencialmente das situações sensório-motoras da imagem-ação no antigo realismo”. Dessa
forma, a imagem-ação no cinema moderno dá lugar, então, à imagem-fato, testemunha de seu
próprio tempo, que Bazin define, ao analisar o filme Paisà (1946), de Roberto Rossellini, em
O realismo cinematográfico e a escola italiana da liberação, texto encontrado no livro O que
é o cinema?:
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A unidade da narrativa cinematográfica em Paisà não é o “plano”, ponto de vista


abstrato sobre a realidade que se analisa, mas o “fato”. Fragmento de realidade
bruta, por si só múltiplo, e equívoco, cujo “sentido” sobressai somente a posteriori,
graças a outros “fatos” entre os quais a mente estabelece relações. [...] Mas a
natureza da “imagem-fato” não é apenas entreter com outras “imagens-fatos” as
relações inventadas pela mente. Estas são, de certo modo, propriedades centrífugas
da imagem, as que permitem constituir a narrativa. Considerada por si só, cada
imagem sendo apenas um fragmento de realidade anterior ao sentido, toda a
superfície da tela deve apresentar uma mesma densidade concreta (BAZIN, 2014, p.
303).

A imagem-ação é o cerne do cinema clássico, um realismo mais pueril, pois, como


aponta Deleuze (2018a, p. 193), no capítulo Do afeto à ação: A imagem-pulsão, do livro
Cinema 1 - A imagem-movimento, entra-se no campo da imagem-ação “quando as qualidades
e potências são apreendidas já atualizadas em estados de coisas em meios geográfica e
historicamente determináveis”. Dessa maneira, a imagem-ação é o principal elemento do
cinema clássico e a crise deste último, vinda com o cinema moderno e depois com o
Neorrealismo, se deu exatamente a partir da imagem-ação, pois, de acordo com Roberto
Machado, no artigo Deleuze e a crise do cinema clássico,

essa crise significa que não se acredita mais que uma situação dê lugar a uma ação
capaz de modificá-la, nem que uma ação possa forçar uma situação a se revelar
mesmo parcialmente. Quer dizer, essa crise leva ao questionamento dos liames
sensório-motores constitutivos da imagem-ação, dando nascimento a um cinema que
exige cada vez mais pensamento (MACHADO, 2010, p. 203-204).

Com isso, compreende-se que, como afirmam Bazin e Deleuze acima, a imagem-fato
(que perpassará todo o cinema moderno vindo pouco antes do Neorrealismo italiano) explora,
pela primeira vez, a natureza centrífuga da imagem cinematográfica, ao levar o olhar do
espectador para além de suas bordas, em direção ao mundo, para, assim, questionar o
dispositivo e a técnica, bem como a própria realidade em si, ou seja, seu papel não é mais
apenas o da visão e o da imersão na ilusão, mas o da reflexão e da subordinação ao tempo,
como resume Deleuze abaixo, no capítulo Para além da imagem-movimento, do livro Cinema
2 - A imagem-tempo:

O tempo é o pleno, quer dizer, a forma inalterável preenchida pela mudança. O


tempo é a “reserva visual dos acontecimentos em sua justeza”. [...] Na banalidade
cotidiana, a imagem-ação e até mesmo a imagem-movimento tendem a desaparecer
em prol de situações ópticas puras, mas estas descobrem ligações de um novo tipo,
que não são mais sensório-motoras, e põem os sentidos liberados em conexão direta
com o tempo, com o pensamento (DELEUZE, 2018b, p. 34-35).
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Machado corrobora a visão de Deleuze, ao afirmar que o cinema moderno questionará


os clichês (repetições estereotípicas) do mundo:

[...] o neorrealismo realiza a substituição do cinema de ação por um cinema de


voyance, de vidência. Trata-se de um cinema visionário, que substitui a simples
visão, a visão empírica, por uma visão pura ou superior, por um “uso superior” da
faculdade de ver, um “exercício transcendental” da faculdade de sentir. [...] Esse
cinema moderno se dá conta de que os esquemas sensório-motores não permitiam
ver o mundo, se dá conta de que eles reproduziam clichês, davam respostas prontas.
E, ao mesmo tempo, ele é capaz de escapar dos clichês criando uma verdadeira
imagem. Pois, para Deleuze, não vivemos propriamente num mundo de imagens,
mas num mundo de clichês (MACHADO, 2010, p. 206).

Esse devir da câmera de cinema que “visa o real” e conjuga o movimento e o tempo
trata-se de uma imagem real-virtual, pois, como discutido, “o” real (com artigo definido) não
pode ser assimilado nem captado, mas pode-se apenas apreender-se “um” real (com artigo
indefinido) reimaginado e reinventado. Por conseguinte, mesmo John Ford e os Irmãos Coen
visando o real pelo ponto de vista do realismo, este não pode ser atingido, uma vez que o real
é um acontecimento. Este jamais pode ser confundido com a realidade em si, pois, como
proclama Nietzsche, em Sämtliche werke, kritische studienausgabe, escrito entre 1886 e 1887,
citado por Scarlett Marton, em Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos, “não há
fatos, apenas interpretações” (NIETZSCHE apud MARTON, 1990, p. 218). Em Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral, texto presente na compilação Antologia de textos
filosóficos, organizada por Jairo Marçal, Nietzsche (2009, p. 535) alega que a verdade é um
“batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações
humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas”. Depois de
um largo uso, essas verdades, ainda segundo o filósofo,

parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das


quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível,
moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal,
não mais como moedas (NIETZSCHE, 2009, p. 535).

No capítulo Paixão pelo real e montagem do semblante, do livro O século, Alain


Badiou aponta que o realismo é uma construção:

o real, tal como concebido em sua absolutidade contingente, nunca é bastante real
para não se suspeitar que seja semblante. A paixão pelo real é também
necessariamente a suspeita. Nada pode atestar que o real é real, nada senão o sistema
de ficção no qual ele virá desempenhar o papel de real (BADIOU, 2007, p. 88-89).
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Essa reflexão leva a pensar que o cinema pode ser visto como o ato de esquartejar a
realidade através do enquadramento fílmico, uma imposição do olhar da direção sobre o que
se filma ao se partir para um emolduramento através das bordas opressivas da imagem, de
modo a reconstruir o real e, paradoxalmente, lançar a visão do espectador para além das
bordas, de modo centrífugo, em direção ao pensamento sobre o real e sobre o mundo. Como
sugere Bazin, em Por uma estética realista, presente no livro O realismo impossível,

na nossa civilização mecanizada, onde o homem é devorado pela tecnicidade do seu


trabalho, normalizado pelas constrições políticas e sociais, o cinema, antes de
qualquer inquietação artística, existe para responder às imprescritíveis necessidades
psíquicas coletivas reprimidas. [...] A estética cinematográfica será social ou o
cinema não terá uma estética (BAZIN, 2016, p. 179-180).

Tem-se em vista o fato de o que é registrado no filme é, conforme afirma Deleuze


(2018b, p. 123-124), no capítulo Os cristais de tempo, do livro Cinema 2 - A imagem-tempo,
“a imagem atual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva”. A
travessia conjunta entre o presente e o passado desse realismo criado no filme pela direção de
cinema pertence a um tempo que desacredita a cronologia e concebe o que Deleuze chama de
“imagem-cristal”, “cristal de tempo” ou “cristal de inconsciente”. Todos estes termos referem-
se a uma imagem em estado permanente de eterno devir e de constante travessia, nos quais o
que se conserva é o caminho, não as chegadas e saídas:

O que constitui a imagem-cristal é a operação mais fundamental do tempo: já que o


passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas ao mesmo tempo, é
preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado, que por
natureza diferem um do outro, ou, o que dá no mesmo, desdobre o presente em duas
direções heterogêneas, uma se lançando em direção do futuro e a outra caindo no
passado. É preciso que o tempo se cinda ao mesmo tempo que se afirma ou
desenrola: ele se cinde em dois jatos dissimétricos, um fazendo passar todo o
presente, e o outro conservando todo o passado. O tempo consiste nessa cisão, e é
ela, é ele que se vê no cristal. A imagem-cristal não era o tempo, mas vemos o
tempo no cristal. Vemos a perpétua fundação do tempo, o tempo não cronológico
dentro do cristal, Cronos e não Chronos. É a poderosa Vida não orgânica que
encerra o mundo (DELEUZE, 2018b, p. 123).

Mesmo tendo-se consciência que, devido ao período histórico no qual foi produzido,
As vinhas da ira muitas vezes é apontado como clássico (por consequência imagem-
movimento), ele será problematizado aqui como um filme moderno, como uma imagem-
tempo observante e relacionável sensorialmente à fatídica crise financeira atravessada pelos
EUA entre 1929 e meados dos anos 1940. O filme é tratado como moderno porque ele se
localiza em um momento de transição narrativa dentro de Hollywood, quando os diretores
P á g i n a | 51

passaram a discutir, a partir de estéticas pretensamente realistas, temas mais intensos e


complexos que estavam na ordem do dia, como a desigualdade social e a não distribuição de
renda, por exemplo. Compreende-se, assim, que uma certa “pureza”, “inocência” ou mesmo
um “primitivismo” ligam-se muito mais a um primeiro cinema anterior ao período entre
guerras mundiais, uma vez que os conflitos bélicos produziram imagens e memórias trágicas
que levaram a feridas incuráveis despertadoras do mundo para um horror trágico perpetrado
pela máquina despótica. Quanto ao outro filme, Onde os fracos não têm vez, devido ao
momento histórico em que foi produzido (os anos 2000) não se tem a menor dúvida de que
ele se encaixa claramente na categoria de cinema moderno, isto é, imagem-tempo.
A questão de se encaixar o cinema de Ford do início dos anos 1940 como imagem-
tempo se liga principalmente a uma curta parceria com o diretor de fotografia Gregg Toland,
responsável por modernizar o cinema americano com o uso mais preciso da profundidade de
campo e do plano-sequência em uma estética visadora do real, na linha do trabalho plástico
realizado pelos estrangeiros Billy Wilder, Elia Kazan e William Wyler em Hollywood, pelo
diretor francês, do movimento do Realismo Poético, Jean Renoir – principalmente no filme
pioneiro A regra do jogo (1939) – e por Humberto Mauro no Brasil. Quanto a Toland, ele
seria responsável em seguida pela fotografia de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, filme
que reconfigurou o uso da profundidade de campo e a estética realista no cinema dentro de
uma obra com roteiro que constrói inúmeros pontos de vista (a partir de flashbacks) da
personagem principal do título. Trabalhar a profundidade de campo em cinema liga-se,
sobretudo, à supressão da imagem com bordas desfocadas, substituindo-a por todos os
elementos do quadro fílmico em destaque e em foco. Já o plano-sequência, de acordo com
Aumont e Marie (2006, p. 231), no Dicionário teórico e crítico de cinema, “trata-se de um
plano bastante longo e articulado para representar o equivalente de uma seqüência”, ou seja, é
uma tomada equivalente entre o início e o fim de um rolo de película, sem cortes. No entanto,
têm-se em vista que o olhar da câmera é um recorte virtual do mundo estabelecido pela
direção de cinema junto da direção de fotografia. Portanto, por mais artifícios realistas
utilizados em um filme, ele não chega a ser de fato o real. Bazin, em A evolução da linguagem
cinematográfica, fala sobre o efeito de recursos expressivos, como a profundidade de campo,
nos filmes do francês Jean Renoir nos anos 1930, que contribuíram com o uso de novas
técnicas no cinema americano posterior ao dizer que

graças à profundidade de campo, cenas inteiras são tratadas numa única tomada, a
câmera ficando até mesmo imóvel. Os efeitos dramáticos, que anteriormente se
exigia da montagem, surgem aqui do deslocamento dos atores dentro do
P á g i n a | 52

enquadramento escolhido de uma vez por todas. [...] Jean Renoir já a tinha
perfeitamente compreendido quando escreveu em 1938, ou seja, depois de A besta
humana [La Bête humaine, 1938] e A grande ilusão [La Grande Illusion, 1937] e
antes de A regra do jogo [La Règle du jeu, 1939]: “Quanto mais avanço em minha
profissão, mais me sinto inclinado a fazer a mise-en-scène em profundidade em
relação à tela; quanto mais isso funciona, mais evito criar o confronto entre dois
atores colocados obedientemente diante da câmera como no fotógrafo”. [...] Em
Renoir, a busca da composição em profundidade da imagem corresponde
efetivamente a uma supressão parcial da montagem, substituída por frequentes
panorâmicas e entradas no quadro. Ela supõe o respeito à continuidade do espaço
dramático e, naturalmente, de sua duração (BAZIN, 2014, p. 105-106).

Sobre esses mecanismos estéticos, que ganharão ainda mais força no Neorrealismo
italiano e depois nos cinemas novos de vários países do mundo10, mas já presentes no início
dos anos 1940 em outras cinematografias, como a do americano John Ford, ratifica Deleuze,
em Para além da imagem-movimento, do livro Cinema 2 - A imagem-tempo:

Contra aqueles que definiam o neorrealismo italiano por seu conteúdo social, Bazin
invocava a necessidade de critérios formais estéticos. [...] Em vez de representar um
real já decifrado, o neorrealismo visava um real, sempre ambíguo, a ser decifrado;
por isso o plano-sequência tendia a substituir a montagem das representações
(DELEUZE, 2018b, p. 11).

A montagem de representações ou de atrações, segundo Bazin (2014, p. 97), em A


evolução da linguagem cinematográfica, “poderia ser definida [...] como o reforço do sentido
de uma imagem pela aproximação com outra imagem que não pertence necessariamente ao
mesmo acontecimento”. Ela nasce do conflito entre planos, que, de acordo com o cineasta e
teórico do cinema político soviético dos anos 1920, Sergei Eisenstein (2002, p. 43), no
capítulo Fora de quadro, do livro A forma do filme, “é montagem em potencial, que, no
desenvolvimento de sua intensidade, fragmenta a moldura quadrilátera do plano e explode seu
conflito em impulsos de montagem entre os trechos da montagem”. Apesar da montagem
desse cinema socialista soviético também ter procurado criar um senso crítico em seu público,
amparado na dialética de choque de imagens de conteúdos distintos, de uma maneira ou de
outra, ela vinha junto de um discurso que induzia as pessoas a reagirem dessa ou daquela
maneira.
Quando se pontua a questão do realismo em outras filmografias anteriores ou
simultâneas ao Neorrealismo italiano – como a de John Ford, a de Billy Wilder, a de Elia
Kazan, a de William Wyler, a do francês Jean Renoir, ou a do brasileiro Humberto Mauro (ou

10
Como o brasileiro, do qual Nelson Pereira dos Santos é considerado o pai do movimento Cinema Novo, com
filmes pioneiros como Rio, 40 graus (1955), Rio, zona norte (1957), Mandacaru vermelho (1961) e Vidas secas
(1963).
P á g i n a | 53

mesmo a dos japoneses Kenji Mizoguchi, Sadao Yamanaka e Yasujiro Ozu) –, ancora-se no
fato de que o registro em locação (isto é, fora de um estúdio que maquia e falseia uma
realidade), de uma outra realidade vivenciada, já era operada previamente a esse movimento
cinematográfico da Itália com completa consciência disso por parte dos diretores. John Ford,
por exemplo, filmou em locação vários westerns anteriores aos anos 1930 e, de No tempos
das diligências em diante, passou a utilizar em seus faroestes a paisagem desértica e
montanhosa do Monument Valley, localizada na reserva dos indígenas Navajos no estado do
Arizona. Billy Wilder, Elia Kazan e William Wyler também filmaram em locações reais. Em
relação a Wilder, Ana Lúcia Andrade, no livro Entretenimento inteligente: O cinema de Billy
Wilder aponta que

para dar maior veracidade à uma história, Wilder gostava, quando possível, de
filmar em locações que serviam de “palco” para suas representações da realidade,
procurando fazer com que o público se identificasse mais com a trama e seus
personagens. Estes poderiam parecer mais humanos, em “cenários” reais. Por este
motivo, Wilder filmou a cidade de Los Angeles em Pacto de sangue (1944) e
Crepúsculo dos deuses (1950); Nova York, em Farrapo humano (1945) e O pecado
mora ao lado (1955) e Se me apartamento falasse. Para A mundana (1948), utilizou
imagens reais da Alemanha destruída do pós-guerra (ANDRADE, 2004, p. 227)

No caso da filmagem em locação anterior ao Neorrealismo italiano, isto é atestado em


uma fala de Humberto Mauro, em uma entrevista de 1964 para a revista Manchete e
reproduzida por Sheila Schvarzman, no livro Humberto Mauro e as imagens do Brasil:

Em 1938, fui a primeira pessoa a representar o Brasil num Festival Internacional11


[...] Dei entrevista na Itália explicando que, enquanto nós fazíamos Favela dos Meus
Amores12, eles mostravam elefantes em Cipião, o africano13, ou filmavam Os
últimos dias de Pompéia14. Nós queríamos conhecer a vida da Itália como ela é.
Muito tempo depois é que veio o neo-realismo (MAURO, 1964 apud
SCHVARZMAN, 2004, p. 218).

Ao se analisar a fala de Mauro, diretor inserido em uma cinematografia que, por sua
independência e baixos recursos financeiros, se fazia in loco, pode-se afirmar que ele fazia um
cinema neorrealista antes do Neorrealismo italiano surgir e ser assim nomeado, isso durante
os anos 1920 na cidade de Cataguases, interior de Minas Gerais, e, posteriormente, no Rio de
Janeiro da década de 1930 em diante. Pode-se estender tal provocação de Mauro para o

11
Mauro representou o Brasil no Festival de Veneza de 1938 com o longa O descobrimento do Brasil (1937) e
os curtas Victória régia (1937) e O céu do Brasil (1937).
12
O diretor subiu ao morro carioca para filmá-lo em 1935, em Favela dos meus amores, filme hoje perdido.
13
Filme de Carmine Gallone.
14
Mauro possivelmente se refere ao filme de 1935, de Ernest B. Schoedsack e Merian C. Cooper.
P á g i n a | 54

terreno do próprio cinema hollywoodiano também, estritamente John Ford, que, desde os seus
primeiros filmes, no final da década de 1910, quase sempre filmou em locação, com cenários
reais, esquivando-se dos estúdios.
De qualquer maneira, sabe-se que o cinema, mesmo encenado, já nasceu realista: seus
potenciais inventores, os franceses Auguste e Louis Lumière (criadores do cinematógrafo,
protótipo das primeiras câmeras e dos projetores) filmaram a saída dos empregados de sua
fábrica de películas fotográficas, registraram a chegada de um trem na estação de La Ciotat
etc. Os cientistas americanos Thomas Edison e William Kennedy Laurie Dickson (chefe-
engenheiro da Edison Manufacturing Company, companhia fundada por Edison em 1889),
que inventaram em 1891 o cinetoscópio – aparelho anterior ao cinematógrafo dos Lumière,
que permitia também captar e reproduzir imagens em movimento, mas apenas com uma
projeção individual das imagens – filmaram, já em 1894, o show itinerante de Buffalo Bill
Cody (o Wild West Show ou Buffalo Bill’s Wild West), caubói até então conhecido como um
batedor de cavalarias e caçador de búfalos, que fora alçado a celebridade pelo jornalista Ned
Buntline, responsável por narrar de forma exagerada suas aventuras em uma série de
reportagens. Eles filmaram também uma dança dos indígenas da tribo dos Sioux no mesmo
ano de 1894. As imagens de Dickson e Edison podem ser consideradas como o primeiro
registro documental do Oeste americano na história do cinema, realizado mais como
curiosidade científica e histórica. Por sua importância histórica, essas imagens estão
preservadas na Biblioteca do Congresso americano.
No entanto, ao se dizer, no início do parágrafo anterior, que “o cinema, mesmo
encenado, já nasceu realista” tem-se consciência que a busca por um realismo enquanto
estética ligada à política e à reflexão social com o mínimo de intervenção possível na imagem
– uma vez que a simples escolha de um enquadramento como recorte do mundo retratado já
se configura como uma intervenção – só irá ganhar corpo dos anos 1930 em diante,
principalmente a partir do Neorrealismo italiano, devido, essencialmente, às chagas trazidas
pela turbulência da destruição perpetrada pelo Nazi-Fascismo e pela Segunda Guerra
Mundial. Esse olhar realista presente tanto no cinema de John Ford da década de 1930, quanto
em filmes de outros diretores (como os já citados Billy Wilder, Elia Kazan, William Wyler,
Jean Renoir, Humberto Mauro, Kenji Mizoguchi, Sadao Yamanaka e Yasujiro Ozu), é
posterior, por exemplo, ao Impressionismo francês ou ao Realismo socialista e construtivista
soviético, ambos movimentos da década de 1920 que apresentavam espécies de realismos
mais pueris e com certo intervencionismo estético por parte dos diretores de cinema.
Independente de se buscar atribuir uma paternidade ou um nascedouro para esse “neo” ou
P á g i n a | 55

novo realismo, a fala do brasileiro Humberto Mauro citada serve para caracterizar que muitas
das características marcantes atribuídas ao Neorrealismo italiano, e aos movimentos que
sofreram influência direta dele, já se encontravam presentes em cinematografias alhures,
como a de John Ford, entre o final dos anos 1930 e o início dos 1940, por exemplo. Esse
cinema que pensa a sociedade, se desterritorializa para além do território da tela de cinema,
tenta não manipular as sensações do espectador através da montagem de atrações, visa o real
(com filmagens em locação e não em estúdios, uso de pouca ou nenhuma maquiagem),
concilia o movimento e o tempo e violenta o pensamento de seu espectador são a tônica
dominante desse período na carreira de Ford.
Sabe-se, abrindo parênteses, que outras cinematografias das décadas de 1950 em
diante, posteriores ao Neorrealismo italiano, extrapolaram todos os limites de uma busca por
“um” real. Estão nesse grupo de cinematografias o Cinema Novo brasileiro, as Nouvelles
Vagues francesa e tcheca, a Nova Hollywood norte-americana, o Free Cinema britânico, o
Novo Cinema alemão, entre outros. Citam-se também os desdobramentos pós-modernos das
teorias da Kino-Pravda do documentarista soviético Dziga Vertov15, como o Cinéma Vérité do
francês Jean Rouch (em seus documentários sobre o continente africano que trabalhavam uma
espécie de “cine-transe”) em parceria com o filósofo, sociólogo e antropólogo Edgar Morin, o
coletivo Grupo Dziga Vertov, formado, entre outros, por Jean-Luc Godard e Jean-Pierre
Gorin (que mesclava documentário e ficção), ou mesmo o Cinema Direto norte-americano dos
documentaristas Albert e David Maysles, D. A. Pennebaker e Robert Drew. Todas estas
cinematografias, é bom ressaltar, sofreram larga influência do brasileiro cosmopolita Alberto
Cavalcanti, autor de vários documentários na Inglaterra na década de 1930. Quaisquer um
desses citados buscava questionar o poder da encenação, mesmo no cinema documentário
(que apresenta também certa encenação), através da quebra da quarta parede e radicalizavam
as questões da procura por “um” real a partir da fabricação de uma realidade diante da
câmera. Se o cinema anterior ao Neorrealismo italiano chegou ao limiar de “um” real ou de
um realismo impossível, tudo o que foi feito em matéria de cinema independente e fora do
controle industrial entre o final dos anos 1950 e os 1970, chegou aos extremos da
experimentação artística e criativa. O cinema é arte fugaz que lança sobre o mundo um olhar
fabricado pelo enquadramento cinematográfico e este olhar se perpetua no que é filmado e
montado. Como lembra Bazin (2016, p. 182), em A propósito do realismo, texto presente no

15
Contemporâneo de Eisenstein, que acreditava em um cinema que procuraria ir com sua câmera além do
alcançado pelo olhar humano.
P á g i n a | 56

livro O realismo impossível, “o cinema não pode evadir-se de sua essência. Ele não pode
chegar ao eterno senão aceitando sem reserva procurá-lo na exatidão do instante”.
É interessante notar, ademais, a título de reflexão, que, na literatura, a chamada
“Geração de 1930” – a qual pertencem Graciliano Ramos (autor de Vidas secas, de 1938,
romance adaptado por Nelson Pereira dos Santos em 1963), Jorge Amado (que teve vários
livros adaptados para o cinema), José Lins do Rêgo (que escreveu Menino de engenho, de
1932, texto adaptado por Walter Lima Jr. em 1965), Rachel de Queiroz, entre outros –, tida
como a segunda fase do Modernismo brasileiro, é muitas vezes chamada também de
Neorrealismo. Isso se dá porque os escritores desse período buscaram influências diretas da
escola literária do Realismo, localizada na segunda metade do século XIX. Enquanto esta
escola literária se voltava para a realidade brasileira dos subúrbios, principalmente do Rio de
Janeiro, os autores da Geração de 1930 reinventaram essa forma de fazer realismo na
literatura. Os escritores de prosa dessa fase do Modernismo eram em sua maioria nascidos no
Nordeste e voltaram-se para a realidade da desigualdade social nordestina frente aos estados
centrais do Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais). Logo, eles fizeram um “neo” ou
novo realismo ainda mais cru e visceral em comparação com o anterior Realismo do século
XIX.
Após todas as discussões empíricas sobre os conceitos que permearão esta tese e sobre
a questão do realismo no cinema, parte-se agora para a análise dos filmes (conjuntamente aos
livros) em si.
P á g i n a | 57

CAPÍTULO II: LITERATURA E CINEMA, UNI-VOS! - O OLHAR MARXISTA DE JOHN


STEINBECK SE ESBOÇA NO CINEMA DE JOHN FORD EM AS VINHAS DA IRA

[...] a liberdade depende da quantia que uma pessoa pode pagar por ela.
John Steinbeck, 1972, p. 160

E nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. E nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as
vinhas da ira diluem-se e espraiam-se com ímpeto, crescem com ímpeto para a vindima.
John Steinbeck, 1972, p. 480

Eles não podem acabar conosco. Não podem nos vencer. Nós viveremos para sempre [...] porque nós somos o
povo.
As vinhas da ira, 1940

II.I: A EXISTÊNCIA AUTÔNOMA, A CRIAÇÃO E O ESCREVER COM A CÂMERA NA TRAVESSIA

DAS PÁGINAS LITERÁRIAS DE AS VINHAS DA IRA PARA A TELA GRANDE

Publicado em 1939 e com mais ou menos dez anos de reflexões sobre os efeitos da
Grande Depressão pós-Crise de 1929 em cima das anotações recolhidas por Steinbeck em
várias andanças por Oklahoma e pelas fazendas da Califórnia, As vinhas da ira registra, de
forma poética e, ao mesmo tempo, realista, a trajetória da família Joad. Primeiro, sua procura
por sobrevivência frente à violência capitalista ao ser expulsa de sua pequena casa, localizada
na capital do estado de Oklahoma, no meio-oeste dos EUA, por um banco, que cobra o não
pagamento da hipoteca. Soma-se a isso a terra seca do local que, despojada de umidade,
causou um desastre natural, conhecido como dust bowl (ou cinturão de poeira), onde o solo
era erguido pelo vento forte e criava nuvens de poeira que tapavam o sol por dias a fio. Os
familiares, então, se unem ao filho Tom, recém-libertado, em condicional, da prisão por um
crime de assassinato, e ao ex-reverendo Jim Casy. Juntos, eles rumam à terra de falsas
esperanças da Califórnia, onde buscarão subempregos nas grandes fazendas e serão mais uma
vez explorados pelo mesmo sistema que os tirou de sua cidade. Estarão, dessa vez, sob o jugo
dos latifundiários até não terem mais forças para lutar e verem a família se desestruturar aos
poucos.
O texto escritural de John Steinbeck possui algumas particularidades “transcriadas” ou
traduzidas intersemioticamente em imagens por John Ford para o seu filme, lançado em 1940,
e alicerçado pelo roteiro de Nunnally Johnson. No romance, há uma alternância entre extensos
P á g i n a | 58

capítulos, narrativamente descritivos e dialogais, e sucintos capítulos de observações poéticas


– em que os diálogos se misturam ao texto em si, sem o uso de travessões – sobre a natureza e
a vida no campo frente a uma crise econômica que assola os mais pobres e os faz terem de
abandonar suas casas e, consequentemente, as afetividades sociais que nelas percutiam.
O olhar de Steinbeck, que assume um narrador em terceira pessoa e onisciente, é
semidocumental, buscando registrar as agruras sociais que se abatem sobre a população das
margens, tendo em vista a violência do Estado, mas sem perder a ternura do lirismo jamais.
Todos esses capítulos criam, assim, uma espécie de sensação alusiva aos agenciamentos
produzidos pela Grande Depressão e captada por Steinbeck em suas viagens e anotações
produzidas nos locais onde eventualmente ocorreram os acontecimentos narrados pelo
escritor.
Os capítulos de natureza mais voltada à prosa poética soam como uma fabulação da
“tragédia humana”, num sentido mais genérico de tragédia, um “poematizar” por parte das
personagens para suportarem o peso da existência, de certa forma à maneira como a mitologia
funcionava para os antigos gregos. Como aponta Nietzsche (2013a, p. 224), em O nascimento
da tragédia, “sem o mito, porém, toda cultura fica desprovida de sua força natural, sadia e
criadora; somente um horizonte constelado de mitos outorga a unidade de uma época inteira
de cultura”.
Um exemplo de momento mais poético da escrita de Steinbeck dá-se no capítulo três,
no qual o escritor narra a trajetória de uma pequena tartaruga pelas estradas áridas do
Oklahoma tentando vencer o forte vento seco, isso pouco antes de se encontrar com Tom
Joad, que retornava da prisão para encontrar-se com sua família:

O sol brilhava sôbre a grama e esquentava-a, e na sombra sob a grama os insetos


moviam-se e caíam nas armadilhas dos bichos maiores, e gafanhotos e louva-a-deus
saltitavam no ar transparente sacudindo por um instante as asas amarelas e
escaravelhos arrastavam-se lentos entre as raízes das hastes. E, transposto o tapête
de grama, rente à margem da estrada, uma tartaruguinha avançava indolente, rumo
ao nada, esbarrando de encontro a gravetos, refletindo no casco, em parte encoberto
de barba de cevada, os raios dourados do sol. Sua bôca córnea estava parcialmente
aberta e os olhos furiosos e ao mesmo tempo humorísticos, debaixo das
sobrancelhas em forma de tachas, olhavam fixos para a frente. Torceu agora a
direção para penetrar no tapête de grama, deixando atrás de si um sulco na poeira e
estacando indecisa ante a pequena saliência de terra endurecida, uma espécie de
barranco que constituía a linha divisória entre a estrada e o tapete verde das culturas.
Moveu a cabecinha comprida, inquieta, para a esquerda e a direita, os olhinhos a
piscarem muito, e foi avançando com a mesma lentidão decidida, contornando as
saliências mais elevadas com resignação filosófica. [...] Joad foi andando, arrastando
atrás de si as nuvens de poeira. Não tardou a avistar o casco da tartaruguinha a
arrastar-se, devagar, sob o sol escaldante, os pèzinhos trabalhando com afinco na
poeria. Joad parou a fim de olhá-la e sua sombra projetou-se sôbre o bichinho.
Imediatamente, cabeça e pés foram encolhidos e a curta e dura cauda uniu-se ao
P á g i n a | 59

casco. Joad levantou-a e virou-a. O casco da tartaruguinha era marrom-acinzentado,


qual a poeira, mas o ventre era amarelo-claro, muito limpo e liso e polido. Joad
empurrou o volume do casaco e botinas mais para cima do braço, e premiu o ventre
amarelo da tartaruguinha com o polegar direito. Era bem mais mole que o casco. A
cabeça velha e dura do bichinho surgiu assustada e procurou enxergar o dedo que o
machucava, e os pèzinhos pularam aflitos. A tartaruguinha urinou na mão do homem
e lutou inùtilmente para se libertar. Joad fê-la voltar de nôvo à posição normal e
meteu-a no bôlso do casaco, onde a sentia mexer-se e arranhar para sair, depois
apressou os passos (STEINBECK, 1972, p. 26-29).

Por mais que Ford suprima essas observações dos capítulos mais poéticos de As vinhas
da ira, no filme, elas estão lá de outa maneira. Por intermédio da câmera escrevente de olhar
realista, Ford observa, e transfere esse olhar ao seu espectador, os acontecimentos e as
sensações aferidas pelas sequelas da enfermidade social do capitalismo no decorrer da Grande
Depressão. Tudo isso se dá em uma pujança de imagens cruas, poéticas e semidocumentais,
como, por exemplo, no seguimento de abertura do filme, no qual Tom Joad16 é libertado sob
condicional da prisão e ruma um caminho aparentemente incerto até conseguir chegar a sua
casa e rever, depois de muitos anos, seus familiares (que já fazem planos para saírem de
Oklahoma), isso comparativamente à imagem final de Tom após partir, aí sim, para um trajeto
incerto, mas de certeza de lutas futuras por justiça social. Abaixo, na figura III, demonstra-se
essa comparação das duas imagens:

No texto Os pés do herói17, Jacques Rancière reflete sobre essas duas imagens:

No início de As vinhas da ira [...], vemos de longe uma silhueta de um homem que
avança na estrada seguindo sua sombra, à qual se misturam as sombras dos postes de
eletricidade. Tirando alguns discretos cantos de pássaros, a banda sonora só nos

16
Interpretado por Henry Fonda, Tom Joad é um papel extremamente complexo e cheio de nuances sobre um
rapaz explorado pelo sistema e, consequentemente, revoltado com este, ao contrário de outras personagens
anteriores do ator, que se enquadravam mais em uma espécie de “bom mocismo”.
17
Escrito originalmente em 2005 para a revista Trafic e republicado em português no catálogo da mostra John
Ford, realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em 2010. O catálogo foi organizado por Ruy Gardnier,
Leonardo Levis e Raphael Mesquita.
P á g i n a | 60

permite ouvir os ruídos dos passos que se aproximam de nós. Ao fim do filme [...]
vemos uma minúscula silhueta que se locomove lateralmente, no costado de uma
colina, em contraluz na claridade da manhã, enquanto a chega ao fim a melodia de
“Red River Valley”, que acompanhava a cena de despedida de Tom Joad à sua mãe.
Esta entrada e esta saída do herói encarnado por Henry Fonda poderiam simbolizar a
relação ambígua do cinema de John Ford com as duas forças cuja conjunção fez o
sucesso do filme: a cinematografia hollywoodiana e a cultura da América
progressista da era Roosevelt. O problema, antes de tudo, é que este “fim”, que
difere daquele do livro de Steinbeck, também não é aquele do filme que vemos. No
final do livro, a irmã de Tom, Rosa de Saron, após ter perdido seu filho, dá o peito a
um homem faminto. Esta cena, sem dúvida inspirada pelo tema iconográfico da
caridade romana, faz com que as duas linhas narrativas entrecruzadas pelo romance
se encontrem: a história individual da família Joad e a história coletiva do povo que
atravessa o deserto em direção a uma terra prometida, ainda no horizonte para os
imigrantes à mercê dos proprietários, de seus capatazes e da polícia. Esta história
coletiva une, por sua vez, a referência bíblica ao povo do Êxodo à referência da
grande alma coletiva [...]. [...] A ambiguidade do filme, a ambiguidade da imagem
do cinema de John Ford que esta sequência imortalizou, pode ser resumida aí. Ao
mesmo tempo em que coloca de lado a complexidade narrativa, o estilo coral dos
episódios coletivos e o peso da referência bíblica e da filosofia transcendentalista
que marcam o romance de Steinbeck, o filme fixa uma imagem sintética da América
da qual ele é testemunha: a América da luta de classes sem trégua, cujo
enfraquecimento da referência bíblica reforça ainda mais a crueza; a América
militante dos artistas da Farm Security Administration e da esquerda antifascista
hollywoodiana (RANCIÈRE, 2010, p. 67-68).

Essa imagem final de Tom Joad, centrífuga e que conduz o olhar do espectador para
além das bordas da imagem, busca um realismo ao não se conduzir em uma aproximação do
rosto da personagem que causaria comoção no público. De grandeza narrativa pujante, a
imagem da solidão de Joad diante do horizonte, tal como exposto por Rancière, é ambígua
quando vista em retrospecto dentro do cinema de Ford, diretor sempre afeito às tramas
coletivas, à visão comunitária de mundo. É ambígua porque, apesar da solidão de Joad,
poucos minutos antes, ele houvera afirmado à sua mãe que estaria em qualquer lugar onde
alguém estivesse sendo maltratado ou explorado. Apesar da natureza ubíqua e de verniz
cristão dessa fala, de fato Joad – que se torna alguém com maior consciência de classe ao
redor da narrativa – assume-se como uma espécie de símbolo coletivista dos trabalhadores e
trabalhadoras que lutam por melhores condições de vida. Em vista disso, a imagem final de
Tom Joad é ambígua porque fisicamente ela mostra a individualidade, mas alegoricamente ela
transmite a ideia de coletividade contida nos homens e mulheres que lutam pela igualdade de
direitos dentro da sociedade.
A canção citada por Rancière, Red River Valley, inspirou a trilha sonora de As vinhas
da ira, composta por Alfred Newman. Música de tradição folk, que remete aos westerns pelos
quais John Ford é mais lembrado na história do cinema, não se sabe ao certo sua origem nem
sua autoria, porém especula-se que ela remonta à Expedição Wolseley, na qual tropas
governamentais do Canadá, em 1870, se movimentaram para a recém-criada província de
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Manitoba, para prender Louis Riel, líder dos Métis (grupo de povos nativos do país) e da
Rebelião de Red River. A canção fala sobre o desalento de uma mulher local
(presumivelmente uma Métis), enquanto seu amante soldado se prepara para retornar ao leste
do Canadá, compreendendo que possivelmente não mais o voltará a ver. Executada nos
créditos iniciais de As vinhas ira, e repetida quando cantada por Tom Joad enquanto baila
com sua mãe pouco antes de ir embora do acampamento onde eles se encontravam, a letra de
Red River Valley diz: “From this valley they say you are going. / We will miss your bright
eyes and sweet smile, / For they say you are taking the sunshine / That has brightened our
pathway a while. / So come sit by my side if you love me. / Do not hasten to bid me adieu. /
Just remember the Red River Valley, / And the cowboy that has loved you so true” ([18--])18.
A antes citada fabulação por parte tanto do narrador (a escrita em si, no caso do livro,
e a imagem verbal, no que diz respeito ao filme) quanto das personagens de As vinhas da ira,
é um instrumento complexo e potencializador do falso de uma ficção criada que, ao contrário
do que se pensa no senso comum, não se opõe ao real em um maniqueísmo. No capítulo As
potências do falso, do livro Cinema 2 - A imagem-tempo, Deleuze tenta esclarecer essa
questão da fabulação como recurso da narrativa por parte do autor como criador e como
instrumento utilizado pelas personagens ficcionais como sobrevivência de seus pesares,
ambos os aspectos agentes impulsionadores do falso como um devir próprio da existência.
Sustenta Deleuze abaixo:

O que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade que é sempre a dos senhores ou
dos colonizadores, é a função fabuladora dos pobres, na medida em que dá ao falso a
potência que faz deste uma memória, uma lenda, um monstro. [...] O que o cinema
deve apreender não é a identidade de uma personagem, real ou ficcional, através de
seus aspectos objetivos e subjetivos. É o devir da personagem real quando ela
própria se põe a “ficcionar”, quando entra “em flagrante delito de criar lendas”, e
assim contribui para a invenção de seu povo. A personagem não é separável de um
antes e de um depois, mas que ela reúne na passagem de um estado a outro. Ela
própria torna-se outro, quando se põe a fabular sem nunca ser fictícia. E, por seu
lado, o cineasta torna-se outro quando assim “se intercede” personagens reais que
substituem em bloco suas próprias ficções pelas fabulações próprias deles
(DELEUZE, 2018b, p. 218).

Logo, essa fabulação é diferente das ideias de imagem do pensamento platônica ou de


recognição, pois é uma forma de desterritorialização que, posteriormente, tornar-se-á

18
“Deste vale dizem que você vai. / Sentiremos falta de seus olhos brilhantes e sorriso doce, / Pois eles dizem
que você está tomando sol / Isso iluminou nosso caminho por um tempo. / Então venha sentar ao meu lado se
você me ama. / Não se apresse em me despedir. / Basta lembrar o Vale do Rio Vermelho, / E o cowboy que te
amou de verdade” ([18--], tradução do autor desta tese).
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reterritorialização quando as personagens ficcionais passam por novos modos de exploração


por parte das máquinas despóticas.
Enquanto isso, o realismo de John Ford parece saído das fotografias em preto-e-branco
registradas dos trabalhadores braçais nas fazendas da Califórnia durante o período da Grande
Depressão, principalmente no que diz respeito ao trabalho de Dorothea Lange, que, durante os
anos 1930, sob incumbência da Farm Security Administration – programa social criado em
1937, no decurso da administração do presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo
de desenvolver as áreas agrícolas –, percorreu vinte e dois estados do sudoeste americano para
registrar, em imagens memoriais, a impactante tragicidade da Grande Depressão no dia-a-dia
dos camponeses. Uma dessas imagens parece ter influenciado em larga escala a personagem
da mãe de As vinhas da ira: a fotografia Migrant mother, de 1936, na qual Lange retrata a
camponesa Florence Owens Thompson.

Em Migrant mother, a imagem de Florence Owens Thompson, com a mão no rosto,


próxima ao queixo, parece posada, isto é, como se ela estivesse encenando para a câmera de
Dorothea Lange. Mesmo isso sendo uma mera especulação a qual não pode ser provada por
fatos concretos, ela passa pela inferência de que a maioria das pessoas diante de uma câmera
se sentem impelidas a agir, consciente ou inconscientemente, com modos afetados não
condizentes com seu comportamento rotineiro. A postura de seus filhos de certa maneira
evidencia isso, pois eles escondem seus rostos da câmera, como se estivessem com vergonha
de aparecer na fotografia. Encenada ou não, a expressão facial de Florence é de desolação,
melancólica. Quer se queira, quer não, ela possui uma carga sentimental que direciona o olhar
do espectador para o centro da imagem, ou seja, os olhos perdidos de Florence a observarem o
nada. A imagem é, portanto, centrípeta. Enquanto isso, a imagem da mãe, em As vinhas da
ira, assim como outras imagens da personagem que se sucederão nas páginas seguintes deste
capítulo da presente tese, evocam o fora de campo, pois seu olhar se direciona para fora, no
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sentido do olhar do espectador, conquanto seu olhar seja desolador e melancólico tal como
Florence, em Migrant mother. Sobre a procura de Ford por um olhar realista em seu filme se
aproximando das imagens históricas de Dorothea Lange, Scott Eyman e Paul Duncan (2005,
p. 109), em John Ford: A filmografia completa, destacam que em As vinhas da ira os “actores
não tinham maquilhagem, nem filtros na câmara. Toland filmava o filme de forma severa,
dura e fria, para se assemelhar às fotografias que Dorothea Lange e outros fotógrafos haviam
tirado dos trabalhadores rurais”.
Tem-se em vista que mesmo o real ou a realidade não sendo concretos ou palpáveis –
são construções humanas abstratas e subjetivas do ponto de vista de quem observa o mundo –,
sabe-se que a fotografia estática e o cinema são o mais próximo que se pode chegar de um
real ou de uma realidade, apesar de serem fabricados pelo olhar de um artista criador, quer
seja via reprodução ou quer seja por meio de um real “visado”, como dantes apontou Deleuze.
Quanto ao livro As vinhas da ira em si, por mais que a pátria e a Igreja Católica sejam
dispositivos de poder e máquinas despóticas, Steinbeck, que era católico e nacionalista como
a maioria dos americanos – e, adequando-se ou não a esses dispositivos, compreende-se que
eles são aspectos formadores da cultura e da sociedade dos EUA –, faz uma menção no título
de sua obra, As vinhas da ira (The grapes of wrath, no original em inglês) à música The battle
hymn of the republic (ou O hino de guerra da república). Escrita pela poeta e abolicionista
Julia Ward Howe em 1861, ela foi uma canção de cunho patriótico muito popular durante a
Guerra Civil dos EUA (1861-1865). Nessa música, os versos do eu lírico de Howe dizem:
“Mine eyes have seen the glory of the coming of the Lord; / He is trampling out the vintage
where the grapes of wrath are stored; / He hath loosed the fateful lightning of His terrible
swift sword: / His truth is marching on” (1861, grifo do autor desta tese)19. A presença desta
referência à música de Howe não é mero acaso. No livro John Steinbeck: Uma biografia, Jay
Parini aponta que, na primeira edição do livro, a pedido do autor “’O Hino de Guerra da
República’ [...] fora impresso como apêndice” (1998, p. 256).
A expressão “vinhas da ira” é aludida no final do capítulo vinte e quatro do livro: “E
nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. E nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma
do povo, as vinhas da ira diluem-se e espraiam-se com ímpeto, crescem com ímpeto para a
vindima” (STEINBECK, 1972, p. 480, grifo do autor desta tese). O excerto citado de The
battle hymn of the republic, apoiado na visão judaico-cristã de um mundo livre da opressão e

19
“Os meus olhos viram a glória da vinda do Senhor; / Ele está pisoteando a colheita onde as vinhas da ira
estão armazenadas; / Ele libertou o relâmpago fatídico da Sua terrível espada repentina: / A Sua verdade está
marchando” (HOWE, 1861, grifo e tradução do autor desta tese).
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com justiça social após a morte, faz referência a um fragmento do livro bíblico do Apocalipse
de João do Novo Testamento, capítulo 14, versículo 19: “O Anjo lançou a foice afiada na terra
e colheu as uvas da videira da terra. Depois despejou as uvas no grande lagar do furor de
Deus” (BÍBLIA SAGRADA, 1990, p. 1605).
Há nesse trecho do Apocalipse de João toda uma carga de visão judaico-cristã de
mundo de, mesmo diante de todas as adversidades possíveis, buscar-se ter paciência, fé e
esperança em dias melhores. Há também o temor a Deus, esta instância criada pelos seres
humanos e vista por eles como capaz de amar e culpabilizar as pessoas para que estas vivam
uma vida inteira purgando os pecados para arrependerem-se após a morte e padecerem em um
imaginário “paraíso”, tudo isso de maneira sempre humilde, sem reclamar, procurar melhores
condições de vida ou se revoltar. A ira, ressalta-se também, é um dos sete pecados capitais
contidos na Bíblia. Na mesma proporção, há subjetivamente, na passagem transcrita de The
battle hymn of the republic, um amor à pátria acima de qualquer coisa, acima, inclusive, de
um orgulho próprio ou de uma criação de uma consciência política que leva o ser humano a se
rebelar contra as agressões do Estado. Mesmo que, como dito, Steinbeck (assim como Ford)
tenha sido um católico nacionalista e suas personagens assim o sejam também, como adereço
e verossimilhança, há em suas respectivas criações uma crítica aos dispositivos de poder que
oprimem e exploram os seres humanos.
Em As vinhas da ira (livro e filme), ainda há, similarmente, uma tentativa de
fabulação da tragédia humana. Esta funciona como uma “força plástica” dentro das narrativas
de Steinbeck e de Ford, em que as personagens, como singularidades dentro de ambas as
narrativas, buscam criar diante do trágico de modo a suportá-lo. A força plástica é um
conceito trabalhado por Nietzsche (2003, p. 10), em Segunda consideração intempestiva: Da
utilidade e desvantagem da história para a vida, texto no qual o filósofo diz que pensa “esta
força crescendo singularmente a partir de si mesma, transformando e incorporando o que é
estranho e passado, curando feridas, reconstituindo por si mesma as formas partidas”.
Publicado quatro anos após a Segunda consideração intempestiva, que data de 1874,
Humano, demasiado humano: Um livro para espíritos livres, em seu primeiro volume, traz
um pensamento muito próximo do anterior. Segundo Nietzsche (2005, p. 8), “a vida não é
excogitação da moral: ela quer ilusão, vive da ilusão”. Sobre a cura das feridas existenciais
como ornamento para a dureza do viver, ainda no campo da força plástica, Nietzsche afirma,
no segundo volume de Humano, demasiado humano:
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A arte deve, sobretudo e principalmente, embelezar a vida, ou seja, tornar a nós


mesmos suportáveis, e se possível, agradáveis para os outros: com essa tarefa diante
de si, ela nos modera e nos contém, cria formas de trato, vincula os não educados a
arte do decoro, limpeza, cortesia, do falar e calar no momento certo. Depois a arte
deve ocultar ou reinterpretar tudo o que é feio, o que é doloroso, horroroso, nojento,
que, apesar de todos os esforços, sempre torna a irromper, em conformidade com a
origem da natureza humana: deve assim proceder, em particular no tocante as
paixões e angustias e dores psíquicas, e no que é inevitavelmente ou
insuperavelmente feio deve fazer com que transpareça o significativo (NIETZSCHE,
2017, p. 67-68).

Por mais que o lirismo do texto steinbeckiano e das imagens-tempo fordianas tenham
sido tratados como realismo, do ponto de vista imanente, ambos são sensações. Quando se diz
isso, fala-se não em um sentido pejorativo, isto é, em que a estética se sobrepõe ao todo da
obra de arte, banalizando a tragicidade da existência de suas personagens dentro de algo tolo e
sem aura. Fala-se, sim, em uma lógica de criação de um real em um constructo ficcional
arquitetado entre os autores e o espectador em uma violência do pensamento que projeta uma
realidade. Quando se fala em “aura”, usa-se aqui o conceito de Walter Benjamin, exposto em
Pequena história da fotografia e em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,
em que, no último, ele afirma ser a aura uma estrutura sui generis constituída de “elementos
espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja.
Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um
galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse
galho” (BENJAMIN, 2012, p. 184).
Porém, reafirma-se: a arte também tem o papel de violentar o pensamento do
espectador. Este, suscetível às máquinas capitalistas que o fazem se reterritorializar como
parte da máquina despótica sedenta de vontade de poder, muitas vezes passa por um devir de
pensamentos revolucionários e desterritorializantes quando em contato com a arte. Susan
Sontag, afirma, a respeito do citado trabalho da fotógrafa Dorothea Lange (o que se poderia
estender para a arte em geral), no capítulo Evangelhos fotográficos:

Na visão fotográfica, mostrar algo, seja o que for, é mostrar que isso está oculto.
Mas, para os fotógrafos, não é necessário enfatizar o mistério com temas exóticos ou
extraordinariamente chocantes. Quando Dorothea Lange exorta seus colegas a
concentrar-se no “familiar”, é com o entendimento de que o familiar, interpretado
por um emprego sensível da câmera, se tornará, desse modo, misterioso. O
compromisso da fotografia com o realismo não a restringe a determinados temas,
tidos como mais reais do que outros, mas antes ilustra o entendimento formalista do
que se passa em toda obra de arte: a realidade é, nos termos de Viktor Chklóvski,
desfamiliarizada (SONTAG, 2004, p. 137).
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A realidade, em Steinbeck e Ford, é, como indica Sontag, desfamiliarizada. Tanto um


quanto outro utilizam-se de certo formalismo artístico: as divagações poéticas do primeiro e a
fotografia do filme dirigido pelo segundo, que em muitos momentos flerta com um claro-
escuro expressionista20, mesmo visando um real, por isto tratando-se de um realismo
impossível, como se observa na figura VI abaixo:

O claro-escuro reflete em muito uma suposta dualidade humana entre um bem e um


mal que se conjectura estarem em batalha interna na formação do caráter humano e é uma
dimensão estético-narrativa muito presente no cinema em geral até meados dos anos 1950,
quando as personagens como esferas humanas passam a ser criadas nos filmes de forma mais
multidimensional e com maiores nuanças psicológicas e sociais. Afinal de contas, o ser
humano não pende unicamente para o lado do bem ou do mal: há, para além disso, uma
complexidade cheia de muitos matizes psicossociais na existência.
A “realidade desfamiliarizada”, como referido por Sontag, no nível da ficção, não se
dá sem que as visões criativas expostas nas narrativas das escrituras de Steinbeck e de Ford
deixem de conter a tragédia humana. Ela se dá, ao contrário, em função intradiegética, ou
seja, dentro do universo ficcional. Isso é perceptível no modo como as personagens, diante do
trágico, fabulam sobre a sua existência de maneira a resistir ao peso da vida, sem que, com

20
Fotografia que, aliás, tem grandes semelhanças com filmes anteriores e posteriores de Ford, como
Peregrinação (1934), O delator (1935), Como era verde o meu vale (1941) e O homem que matou o facínora
(1962). O movimento denominado Expressionismo Alemão foi um estilo no qual se destacavam a fotografia em
claro-escuro e as formas tortuosas do cenário. O estilo do Expressionismo Alemão – combinado às estéticas do
Romantismo alemão, do Expressionismo das artes plásticas do início do século XX e da Staatliches Bauhaus ou
simplesmente Bauhaus, escola de arte vanguardista fundada pelo arquiteto germânico Walter Gropius, em 1919
– até hoje, influencia gerações de cineastas, artistas e movimentos artísticos em geral, o que pode ser visto nos
filmes do estadunidense Tim Burton, no movimento musical Pós-punk e na subcultura gótica, estes dois últimos
com auges entre o final dos anos 1970 e início dos 1980.
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isto, deixem de ter consciência da semiescravidão que sofrem nas mãos do capital. Ao
contrário: com essa fabulação, as personagens criam expectativas em dias vindouros, o que
lhes dá força para continuar diante das adversidades, em que pese o espectro da utopia,
perdendo contornos imanentes.
Por exemplo, a sonhadora e travessa personagem do avô afirma, em certo momento,
pouco antes da viagem dos Joad para a Califórnia: “Deus do céu, as uvas ali chegam a
debruçar-se sôbre as estradas. Tem cada cacho! Sabe o que é que eu vou fazer? Vou encher
um balde de uva e vou me sentar no balde e me esfregar, deixando o suco escorrer pelas
calças” (STEINBECK, 1972, p. 123). Em outra passagem, ele diz algo parecido: “Quando a
gente chegar na Califórnia, vou ter o tempo todo cachos de uva nas mãos, pra comer quando
quiser, sim senhor” (STEINBECK, 1972, p. 138).
Há nas falas do avô um olhar paradisíaco: os cachos de uvas não chegam a ser
dionisíacos. Estão movidos antes por uma crença e menos pelo que, de fato, deverá se
converter a sua estada na Califórnia, tendo em vista os agenciamentos de poder. O avô, assim
como outras personagens no momento anterior à viagem, lança mão de uma causa, no caso o
Deus judaico-cristão, este sumo representante mítico das organizações de poder e das
máquinas despóticas. Imbuídas nessa ilusão, as personagens tornam-se mais facilmente
subservientes e, dentro das razões sociais que as afligem, se submeterão ao trabalho ladino do
capital até que percebam, à sua maneira, toda a exploração pela qual passam. Assim, elas se
transformam em máquinas de guerra que se desterriorializarão para se reterritorializar
novamente.
Já a mãe é mais cautelosa, possui uma racionalidade terriginosa, com os pés no chão,
embora não deixe de devanear sobre dias melhores na Califórnia, fantasiando uma vida
satisfatória para a sua família, o que é perceptível em um diálogo entre ela e Tom (que se
mostra incrédulo com a esperança de um futuro melhor), diálogo este que não pertence ao
filme, cujo momento anterior à viagem é bem mais sucinto21:

– Tom – disse ela, afinal –, eu espero que as coisas lá na Califórnia sejam boas.
Tom voltou-se e encarou-a.
– Por que a senhora suspeita que não sejam? – inquiriu.
– Bem, por nada. É que parece tudo bom demais. Eu vi no impresso que êles
procuram gente pra colher uvas e laranjas e pêssegos. Isso seria um belo trabalho.
Tom, eu gosto de apanhar pêssegos. Mesmo que êles não deixem a gente comer
nenhum, sempre dá pra engolir um ou outro. E seria bom ficar debaixo das árvores,
trabalhando na sombra. Mas tudo isso ‘tá bonito demais, Tom. Tenho mêdo. Não
tenho fé nisso.

21
Pede-se a compreensão do leitor ao se citar um trecho tão longo do livro, uma vez que ele é necessário à
análise em questão.
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– Não force a fé até à altura do vôo dos pássaros e não rastejará como os vermes –
disse Tom.
– Sim, eu sei que é assim. Tá na Escritura, não?
– Acho que sim – falou Tom. – Sempre confundo as Escritura com um livro
chamado A Vitória de Bárbara Worth.
[...]
Olha, mãe, a senhora não se preocupe, ouviu? Faça como eu, como todos que ‘tão na
cadeia. A gente não deve pensar em quando vai ser sôlto. Acabava maluco. A gente
pensa no dia de hoje, depois no dia de amanhã, depois no jôgo de futebol de
domingo, e assim por diante. É o que a senhora deve fazer. Os antigos fazem assim.
Só os novatos encostam a cabeça nas grades da cela e ficam cismando, pensando
quanto tempo ainda vai durar aquêle inferno. A senhora faça como os presos
antigos, só pense no dia de hoje.
– É um bom meio, êsse – falou a mãe, e encheu o balde de água que estivera
esquentando sôbre o fogão, e enfiou no balde mais roupa suja e começou a esfregá-
la na espuma. – Sim, êsse é um bom meio. Mas eu gosto de pensar que talvez será
bom pra gente lá na Califórnia. Nunca faz frio. E tem tantas frutas, em tôda a parte, e
as pessoas moram em casas bonitas, em pequeninas casas brancas no meio de
laranjeiras. Eu imagino que – se todos nós arranjasse trabalho e todos trabalhasse – a
gente talvez podia comprar uma casinha assim. E as crianças bastava pôr o pé pra
fora de casa e podia apanhar quantas laranjas quisesse; era só subir no pé. Garanto
que eles não aguentava sem trepar nas árvores.
Tom olhou sua mãe trabalhar e seus olhos sorriam.
– Faz bem a senhora pensar assim. Eu conheci um sujeito que era lá da Califórnia.
Êle não falava que nem a gente. Bastava ouvir êle falar e a gente já sabia que êle não
era daqui, que era de longe. E então êle diss’ que tem muita gente procurando
trabalho lá na terra dêle. E diss’ que o pessoal que trabalha nas safra de frutas vive
em lugares imundos e nem tem o que comer direito. E que assim mesmo é bem
difícil arranjar trabalho.
Uma sombra perpassou pelo rosto dela.
– Oh, não, não é assim – disse. – Seu pai recebeu um impresso, em papel amarelo,
dizendo que se procurava gente pra trabalhar. Êles não ia escrever isso se não tivesse
bastante trabalho. Custa muito dinheiro mandar fazer êsses impresso. Pra que êles ia
mentir e gastar dinheiro com mentiras?
Tom sacudiu a cabeça.
– Não sei, Mãe. A gente não pode saber por que êles faz isso. Quem sabe?... – êle
olhou para fora, onde o sol quente torrava a terra vermelha.
– Quem sabe o quê?
– Quem sabe é mesmo bom aquilo lá, como a senhora diz (STEINBECK, 1972, p.
120-122).

Mais à frente, pouco antes da família embarcar para a Califórnia, o avô tem uma crise
de pânico, como se predissesse o futuro, diz ter pensado melhor e, como Muley Graves, um
dos vizinhos, irá ficar e resistir aos bancos, novos donos das improdutivas terras, que irão em
breve destruir as casas com seus tratores e, consequentemente, toda a memória semeada de
inúmeras gerações de famílias que ali viveram ao redor dos anos. Tom, seu pai e sua mãe
embebedam o velho com um xarope misturado a café e, após ele dormir, o levam junto na
viagem. Logo, pouco após o início do trajeto, o avô vem a ter um derrame cerebral e falece. A
avó, já doente desde antes da viagem, piora com a morte do marido, vem a óbito assim que os
Joad chegam a uma estação no meio da estrada e, assim como o marido, é enterrada como
indigente, uma vez que a família conta com pouquíssimo dinheiro. Ressalta-se e chama-se
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atenção para o fato das personagens que representam os bancos serem máquinas-despóticas,
agentes simbólicos do sistema capitalista. Como apontam Eyman e Duncan (2005, p. 111), no
livro John Ford: A filmografia completa, “as pessoas que vieram expulsar os trabalhadores
das suas terras mantêm-se dentro dos carros ou nos tractores, agentes do sistema”.
Se, como dito en passant, os instantes anteriores ao caminho rumo à Califórnia são
transcorridos mais sinteticamente no filme do que no texto, suprimindo-se passagens, como o
diálogo entre Tom e sua mãe citado na página anterior, o filme de Ford ilustra, concisa e
sensivelmente, com maestria, esse momento melancólico de ter de deixar para trás mais do
que uma terra onde se fincou raízes, mas também memórias de um passado todo construído
nesta terra. Elucida-se, para auxiliar na comparação entre as situações narrativas do filme
(mais concisas) e do livro, que a versão utilizada neste trabalho é a primeira edição publicada
no Brasil pela editora Abril Cultural, em 1971. Nela, a viagem ocorre na página 153, isso em
um livro com 629 páginas. No filme, essa passagem se dá por volta dos 30 de seus 129
minutos. O ter de deixar para trás as memórias pode ser exemplificado na cena na qual a mãe
queima no braseiro do fogão uma caixa com algumas lembranças: cartas, recortes de jornal
(um deles sobre o julgamento de Tom) e fotografias. Ela guarda em um envelope, colocado
depois dentro do bolso de seu vestido, um par de brincos, um anel, uma corrente de cabelos e
um elo de uma pulseira, todos objetos de ouro.
O grau de detalhismo lírico de Steinbeck é levado por Ford para a imagem-tempo ao
se deter durante essa sequência no rosto da mãe, em suas mãos e em seus olhos marejados e
melancólicos, como exemplificado na figura VII abaixo. No filme, a cena ocorre pouco antes
da viagem. A mãe guarda apenas um souvenir de uma miniatura de um cão e os brincos, mas
o efeito continua sendo similar. Depreende-se e infere-se que as lembranças devem ser
queimadas como forma de deixar o passado para trás para abrir espaço para o novo recomeço
na Califórnia. Afinal, essas memórias, se apagadas fisicamente, estarão guardadas no
subconsciente da mãe como em um eterno retorno da diferença, uma vez que elas são distintas
do que de fato se passou, são interpretações, para se ficar com as palavras de Nietzsche (apud
MARTON, 1990, p. 218): “não há fatos, apenas interpretações”. Correlatos à poeira do lugar,
as cartas e recortes queimados pela mãe tornam-se pó. A poeira e o vento são a herança
memorialística de um eterno retorno da diferença que embala a família rumo a um recomeço
em que a fuga da opressão a leva a uma nova exploração. As novas formas de exploração
também são um eterno retorno da diferença, pois se manifestam em um constante devir da
opressão e da violência às quais os mais pobres parecem infindavelmente destinados pelas
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mãos do sistema capitalista e do Estado, em suma, pelos tentáculos rizomáticos da máquina


despótica com sua vontade de poder desejante de corpos sem órgãos.
Para onde os Joad vão não precisam dessas cartas ou desses recortes, pois não
possuem mais um teto e perderam sua identidade, uma vez que não dispõem mais de suas
terras. A terra é o único elemento que os identificava como indivíduos autossustentáveis e que
lhes dava uma razão para viver. Apesar disso, eles seguem em frente e criam fabulações de
uma vida melhor em um futuro muito próximo, presos, então, à força plástica, que é aquilo
que lhes resta. O ato de queimar esses papéis conjuga, antagonicamente, o desfazer-se das
memórias e o guardá-las junto a si, dentro da mente. A mãe acondiciona os objetos de ouro e
o souvenir porque estes são as suas últimas ligações físicas com o passado, tendo-se em vista
que a terra onde sua família se assentou já não mais existirá dentro em breve. O modo como
ela toca esses objetos e coloca os brincos diante do espelho, com um olhar desolado e
melancólico, demonstra que eles são mais do que simples objetos: são artefatos memoriais,
são seu elo de ligação com o passado.
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Entretanto, a mãe é, para além do símbolo irrevogável da memória e da sensibilidade


familiares, o sustentáculo e o bastião da família Joad, aquela que fabula, quando é necessário
anestesiar o peso trágico do mundo, e a que percebe com clareza as adversidades vindas da
opressão sofrida pelas mãos dos poderosos, traduzindo-as de maneira racional, indignada e,
simultaneamente, esperançosa no que aguarda pelas novas gerações a virem no futuro, como
pode ser conferido em um diálogo entre ela e Tom, presente no meio do livro:

Olha, Tom, a nossa gente estará viva ainda quando já êsse pessoal não existir mais.
Nós vivemos, Tom, iremos viver sempre. Ninguém nos pode destruir. Nós somos o
povo, vamos sempre pra adiante. [...] Talvez seja por isso que a gente se torne tão
forte e rija. Aquela gente rica é criada e morre, e seus filhos não prestam e se
extinguem. Mas nós, Tom, nós continuamos a avançar. Não perca a calma, Tom,
outros tempos vêm chegando. [...] A gente vai aonde quiser, nem que tenha que se
arrastar por aí (STEINBECK, 1972, p. 383-384).

No filme, esse diálogo é transposto para a cena final em uma conversa dentro do carro
entre a mãe e o pai. Sua ordem é parcialmente mudada: “Os ricos nascem, morrem, e seus
filhos também não prestam e desaparecem. Mas nós continuamos. Somos nós que vivemos.
Eles não podem acabar conosco. Não podem nos vencer. Nós viveremos para sempre, pai,
porque nós somos o povo”. A sequência final do filme tornou-se, assim, uma criação, via
tradução de um pensamento violento, sobre a eterna semiescravidão pela qual passam os mais
pobres e um depósito de confiança em dias melhores, isto devido às falas transformadas quase
em frases de efeito.
Por mais que a família como simbologia da coletividade venha perdendo sua força
pelas esmagadoras garras da máquina despótica capitalista – e ressalta-se aqui que, mesmo o
coletivo sendo uma máquina de guerra, quando ele apaga as individualidades ele,
paradoxalmente, se reterritorializa como uma máquina despótica também –, as comunidades
humanas tentam sobreviver frente ao capital em uma eterna batalha tal como Davi versus
Golias. Ou seja, é uma luta inglória, na qual o capital e seus vários representantes tentam
aniquilar o ser familiar, a pertença a uma comunidade. O povo, traduzido como representante
dos assalariados esmagados pelos agenciamentos coletivos da máquina despótica capitalista,
sobrevive a trancos e barrancos, de geração em geração, com imperecíveis explorações da
força de seu trabalho, tentando manter suas raízes como é possível mantê-las.
Contrariamente, poder-se-ia ler esse momento do filme também como uma maneira
mais amena de ver a luta de classe e, além disso, afirmativa de dias melhores, isso se se levar
em conta o fato do cinema americano das décadas de 1930 e 1940 ter como objetivo levantar
o ânimo da população. A tragicidade do encerramento do livro de Steinbeck é substituída por
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uma suposta esperança frente a um momento de ebulição no mundo, com uma crise
econômica que causava fome, desemprego e busca por subempregos, além do crescimento do
Nazi-Fascismo na Europa que levaria à Segunda Guerra Mundial. Alan Brinkley, no texto
Vinhas da ira, presente no livro Passado imperfeito: A história no cinema, organizado por
Mark C. Carnes, aponta essas questões:

Há em As vinhas da ira uma aura de otimismo que contagia, uma alegria de viver
em comunidade que é central na obra de John Ford durante os anos 40. Mesmo
assim, ele precisou de considerável coragem para rodar um filme no limite de culpar
o sistema capitalista e funcionar quase como um brado pelo socialismo. O magnata
da Twentieth Century-Fox, Darryl F. Zanuck, preservou o romance de Steinbeck,
pelo qual havia pagado a quantia impressionante de 100 mil dólares, incluindo no
contrato a promessa de que o filme “manteria, na medida do possível, a ação
principal e a intenção social da referida propriedade literária”. Zanuck emendou de
próprio punho o roteiro de Nunnally Johnson e, com a aprovação de Steinbeck,
inseriu a famosa fala de Jane Darwell: “Nós somos a gente que vive”. Ford elogiou
os esforços de Zanuck, confirmando que, “com as alterações de Zanuck, o filme
acabou levantando o ânimo (BRINKLEY, 1997, p. 225).

Todavia, de fato esta cena foi imposta pelo produtor Darryl F. Zanuck, vice-presidente
da 20th Century Fox, estúdio responsável pela produção de As vinhas da ira. O final
originalmente constante no roteiro de Nunnally Johnson e filmado por John Ford ocorria após
Tom seguir solitário pelo campo depois de se despedir de sua mãe. A cena do carro com seu
discurso de clamor por dias esperançosos calca-se no momento político pelo qual passava os
EUA com a série de planos conhecidos como New Deal com o intuito de recuperar a
economia amplamente afetada pela Grande Depressão, programas estes implementados pelo
presidente democrata Franklin Delano Roosevelt, que ficou durante quatro mandatos no
poder.
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Ford, mesmo tendo se declarado socialista nos anos 1930, era, muito embora, uma
personalidade controversa. Na década de 1940, se revelou um conservador de direita, que, em
inúmeros filmes, ao contrário, retratou as desigualdades sociais do mundo capitalista, o que
poderia ser atribuído, talvez, à sua infância pobre de filho de irlandeses imigrados para os
EUA no início do século XX. No entanto, o que entra em cena, ao dirigir As vinhas da ira, é a
personagem conceitual de Ford imbuída de um plano técnico escritural de crítica aos
agenciamentos da máquina despótica do capital. Quanto ao roteirista Nunnally Johnson, não
existe registro de sua afiliação política. John Steinbeck, mesmo não tendo ingressado no
Partido Comunista, era um simpatizante da causa que retratou os conflitos de classes em
praticamente todos os seus livros22. O conservadorismo tanto de Ford quanto de Darryl F.
Zanuck, aliado a um possível apoliticismo de Johnson e ao estabelecimento do Código de
Produção de Cinema (o chamado Código Hays) desde 1930, explicam a mudança na cena
final em relação ao livro. No encerramento do romance, Rosa de Sharon, uma das irmãs de
Tom, alimenta um homem faminto dando-lhe de mamar, pois houvera gestado uma criança
recentemente que nascera morta e, por causa disto, ainda estava em período de lactação. No
entanto, mesmo conservadores diante da passagem final do livro, Ford e Zanuck tinham
sensibilidade diante dos problemas sociais de seu país, o que Jay Parini, descreve em John
Steinbeck: Uma biografia, a respeito da escrita do roteiro de As vinhas da ira por Johnson e
do início da produção do filme enquanto Carícia fatal (adaptação de Ratos e homens) era
filmado:

O roteiro de As vinhas da ira estava em andamento na mesma época, e Steinbeck


encontrou-se várias vezes com Johnson. O roteirista assegurou-lhe que faria tudo
para manter o espírito, se não a letra, do romance. O medo, claro, era que o produtor
Darryl F. Zanuck tentasse aguar a mensagem política. Para seu crédito, Zanuck não
fez isso. Segundo Johnson, fazer As vinhas da ira mudou a política pessoal de
Zanuck. Após visitar diversos acampamentos de migrantes, ele ficou horrorizado
com a crueza do que viu (PARINI, 1998, p. 268-269).

Retornando à cena final do livro, o fato do filho de Rosa de Sharon ter nascido morto e
o ato de amamentar um homem em estado de inanição diz respeito à força dos menos
afortunados em dividir o pouco que têm com o seu próximo, mesmo nos momentos mais
calamitosos, além de demonstrar uma desesperança no futuro da humanidade no que diz
respeito à desigualdade social. Já a fala da mãe, se, no romance, transparecia sua força
plástica de curar feridas, reconstituir por si mesma as formas partidas e lutar pela

22
O acampamento do governo onde os Joad se instalam, por exemplo, é o mais próximo de uma utopia
socialista.
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sobrevivência, no filme, ao se introduzir essa fala na sequência final, aponta-se, mesmo frente
à calamidade instalada, um horizonte de dias melhores e uma resistência do povo perante
todos os infortúnios da vida, o que indica na personagem da mãe uma tentativa de fabular em
face da tragédia.
Mesmo as personagens estando presas em um universo metafísico, cujas aspirações
encontram-se adornadas por uma esperança calcada na religiosidade judaico-cristã, a ficção
de Ford conclama o que Deleuze chama em Cinema 2 - A imagem-tempo de “povo por vir” ou
“povo que falta”. No capítulo Cinema, corpo e cérebro, pensamento, Deleuze (2018, p. 314)
afirma: “o povo já não existe, ou ainda não existe... o povo está faltando”. Assim, é
necessário, como pontua Deleuze (2018, p. 315), “que a arte, particularmente a arte
cinematográfica, participe dessa tarefa: não se dirigir a um povo suposto, já presente, mas
contribuir para a invenção de um povo”.
Na metade da narrativa, a família Joad se abriga em um acampamento. Lá, Tom se
mete em uma briga com um guarda e o fere. O guarda seguia um fazendeiro que oferecia
trabalho no acampamento. O mesmo policial implica com um homem que reclama das formas
semiservis de trabalho e exige no mínimo um contrato dizendo quanto os trabalhadores irão
ganhar. O policial persegue o homem, pois iria prendê-lo, e atira, acertando o braço de uma
mulher. Tom bate na cabeça do policial. Este desmaia. Esta passagem indica a mão
violentamente invisível do Estado contra os menos favorecidos. Como Tom está em
condicional, Casy assume a culpa, é preso e desaparece, reaparecendo em um instante
posterior quando lidera uma greve em uma fazenda na qual os Joad estavam trabalhando
colhendo pêssegos. Casy é, em seguida, encontrado e morto por um policial: novamente a
representação da violência do Estado. Tom mata o policial, passando a ser cassado pela
polícia sob a acusação de “agitação política”. Ele pensa em fugir, mas sua mãe o dissuade, e
os Joad retornam à estrada.
Próximo ao final do texto de Steinbeck (e também do filme de Ford) e
precedentemente às cenas de encerramento discutidas anteriormente – respectivamente, Rosa
de Sharon amamentando um homem faminto, no livro, e a conversa do pai e da mãe dentro do
carro, no filme –, a família, após ser explorada em subempregos, consegue um lugar em um
acampamento do Ministério da Agricultura, onde as condições de vida são melhores. Após
um baile no local, durante a madrugada, Tom vê a polícia rondando o lugar e reconhecendo a
placa da caminhonete da família. Ele resolve fugir e tem um último diálogo de despedida com
a mãe (diálogo este transposto para o filme), em que afirma certa ubiquidade dos menos
afortunados, uma vez que estão em todas as partes, e um desejo de justiçar seu povo via uma
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espécie de revolução propulsada por um socialismo “vulgar” fundado na práxis, muito


distante do discurso intelectual:

– Bom, pode ser que o Casy acertou quando diss’que a pessoa não tinha alma
própria, mas só parte duma alma grande... e aí...
– Aí o quê, Tom?
– Aí, isso tudo não tem importância. Aí eu estarei em qualquer lugar, na escuridão,
estarei no lugar que a senhora olhar à minha procura. Em tôda parte onde tenha briga
pra que a gente com fome possa comer, eu estarei presente. Em tôda a parte onde um
polícia ‘teja maltratando um camarada, eu estarei presente. Imagine, se o Casy
soubesse disso! Estarei onde a nossa gente ‘teja berrando de raiva... e estarei onde
crianças ‘tejam rindo porque sentem fome e sabem que vão logo ter comida. E
quando a nossa gente fôr comer o que plantou e fôr morar nas casas que construiu...
aí eu também estarei presente (STEINBECK, 1972, p. 580).

Abrem-se parênteses aqui para se elucidar uma questão importante para o


entendimento do discurso de insurreição que a personagem Tom Joad vai tomando aos poucos
no desenrolar da narrativa de As vinhas da ira, tanto no livro quanto no filme. Quando se
falou no parágrafo anterior a respeito de uma práxis de um socialismo mais “vulgar”, longe de
uma intelectualidade, não se está de forma alguma querendo dizer que a erudição (acadêmica
ou não) viva somente na teoria ou em uma espécie de mundo das ideias platônicas. Pelo
contrário, afirma-se com isso que existem diferentes maneiras de práxis. O próprio
pensamento em si, quando violentador e transgressor, é uma espécie de ação revolucionária.
Contudo, o discurso da personagem Tom Joad desde o início (no livro e no filme) vai
tomando formas de um tipo de socialismo marcado por uma noção mais calcada na vivência
de quem é infindavelmente explorado em todo tipo de trabalho que leva à semiservidão nos
universos rurais ou urbanos, nos campos ou nas fábricas, isto é, de um tipo de trabalhador
que, por todas as ações dos agenciamentos coletivos da máquina despótica capitalista não teve
acesso aos meios intelectivos, mas que tem uma consciência de classe. Karl Marx, em sua
obra máxima, O capital: Crítica da economia política, em um trecho do Livro 1: O processo
de produção do capital, discute o trabalho, a práxis e a relação do homem moderno com
ambas, ajudando a compreender o que se afirmou até aqui a respeito de Tom Joad:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este


em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo
com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência
natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil
para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua
corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa
e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua
própria natureza (MARX, 2013, p. 326-327).
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No livro Cangaceiros e fanáticos: Gênese e lutas, Rui Facó, mesmo discutindo a


exploração pela qual passavam os trabalhadores do campo no Nordeste brasileiro em meados
do século XX23, afirma algo que pode ser estendido para a apreensão da semiescravidão que
outros tipos de trabalhadores em outros países passam. Facó (2009, p. 50) diz que os
trabalhadores “tinham forçosamente que ser revoltados. Sem terra, sem ocupação certa, a mais
brutal exploração de seu trabalho, revoltar-se-iam qualquer que fosse a dosagem de seu
sangue, sua origem racial, o meio físico que atuasse sobre seu organismo”.
Na citação do livro As vinhas da ira apresentada na página anterior, bem como as
imagens do filme (presentes na figura IX abaixo deste parágrafo), como instrumento
exemplificador e comparativo das reações emocionais das personagens, depreende-se que esse
socialismo “vulgar” de Tom Joad toma arroubo em sua fala marcada pela ubiquidade ao
afirmar que estará em qualquer lugar. Em um primeiro momento, essa fala sobre uma
aparente onipresença metafísica pode parecer tipicamente cristã – e Tom, até mesmo como
artifício de verossimilhança por parte dos autores Steinbeck e Ford, é cristão –, o que não a
afasta de todo de uma prática política revolucionária socialista, pois o próprio Jesus Cristo, à
sua maneira, conclamou uma rebelião contra os romanos em sua época. Todavia, mais do que
um socialismo cristão ou religioso – pois sabe-se que a religião em si, principalmente nos
moldes modernos, é também um dispositivo de poder que reterritorializa o ser humano –, o
ideal revolucionário de Tom Joad explicitado máxime na expressão “eu estarei em qualquer
lugar” embute mormente uma ideia alegórica de não aceitar mais ser explorado nem ver
outras pessoas pobres como ele sendo oprimidas.

23
Situação revertida por políticas públicas de Estado do início dos anos 2000, implementadas nos dois governos
do presidente Luís Inácio Lula da Silva e seguidas pelo primeiro mandato de Dilma Rousseff. Isso pode ser
constatado em um filme emblemático que sintetiza essas questões chamado Que horas ela volta? (2015), de
Anna Muylaert. Apesar dessas políticas públicas terem sido freadas pelos governos seguintes, de ponto de vista à
direita e mais próximos dos agenciamentos coletivos fundamentados pela máquina despótica capitalista, o
Nordeste brasileiro seguiu crescendo devido a governadores locais de olhar mais social e progressista.
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Com a família perdendo a sua unidade24 – depois das mortes do avô e da avó, e com
Connie, marido de Rosa de Sharon, abandonando a esposa grávida –, sem emprego, sem casa
(após o xerife local retirá-los do abrigo, mais uma vez uma marca da violência estatal), os
Joad agora não têm mais terra, raízes ou esperança, mas possuem uma liberdade incerta.
Trata-se de uma liberdade incerta no ir e vir, sem fincar bases e bastiões de uma vivência
pacífica, porque apenas os poderosos vivem sem maiores preocupações. Os menos
favorecidos, como os Joad, na maioria das vezes não vivem, apenas sobrevivem à vida.
Mesmo com consciência social, quando se desterritorializa para fugir de uma situação de
opressão, quase sempre a reterritorialização em direção à exploração é certa. Em outras
palavras, alude-se aqui a uma liberdade sem se ser livre, uma liberdade contraditória, pois,
afinal, no mundo capitalista, o dinheiro, como dispositivo das máquinas despóticas de poder,
exige dos desvalidos ter de aceitar certas situações de exploração que levam a mais
exploração, a uma espécie de semiescravidão moderna e permanente.
Tal como a representação bíblica (presente no livro do Êxodo, do Velho Testamento)
dos judeus fugindo dos egípcios, guiados por Moisés, em busca de uma suposta terra
prometida, a procura pela liberdade por parte dos Joad os leva a um alto preço pago com mais
um eterno retorno da exploração. Como se afirma em uma passagem do livro, “a liberdade
depende da quantia que uma pessoa pode pagar por ela” (STEINBECK, 1972, p. 160). Se os
Joad agora rumam “livres” sem estar presos às amarras de um patrão opressor, eles estão
presos, quer se queira, quer não, a um sistema tentacular muito maior: o capitalismo, que usa
a mão de obra barata e substitui os seres humanos insatisfeitos como peças de uma
engrenagem. Todavia, o parcial encanto anterior por um futuro melhor é sobreposto por uma
consciência política de classe. Não que outrora ela não existisse, mas era tímida. A força
plástica, que noutro tempo funcionava como força propulsora de fabulação perante a tragédia,
assume ares de propagadora da resistência, da multivocidade onipresente do povo. O povo,
assim, continuará lutando, em devir, de geração em geração, independente de todas as
adversidades e agruras trazidas pelo contraditório e violento capitalismo.
No filme, essa questão da liberdade incerta fica talvez mais patente pelo
desenvolvimento da narrativa na trajetória da já citada cena final na qual se conclama um
povo por vir. A expressão “eu estarei em qualquer lugar”, dita por Tom Joad à sua mãe, é
axiomática em meio à última fala da mãe junto do pai no carro (conferir figura VIII). Cita-se
essa fala novamente: “Os ricos nascem, morrem, e seus filhos também não prestam e

24
No livro, o irmão de Tom, Noah (um jovem introspectivo e taciturno), resolve deixar de viver em sociedade,
indo para o meio do mato, o que não é transposto para o filme.
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desaparecem. Mas nós continuamos. Somos nós que vivemos. Eles não podem acabar
conosco. Não podem nos vencer. Nós viveremos para sempre, pai, porque nós somos o povo”.
Ora, deduz-se que o povo é figurativamente ubíquo porque sempre existirá em qualquer parte
do mundo. Quando se aponta que a força plástica passa a assumir outro aspecto – o de uma
resiliência diante dos infortúnios e fatalidades da vida – é porque aos poucos essa força se
torna uma via de mão dupla, tal como citado por Nietzsche precedentemente. A força plástica
é ilusão nos momentos de frustação que se pede a alienação para suportar o sofrimento, é uma
procura pela cura das feridas através da resistência para buscar se desterritorializar dentro da
consciência social e é uma maleabilidade para se reterritorializar quando necessário, uma vez
que o mundo capitalista e opressivo, na maioria das vezes, esmaga, esmigalha e engole o ser
humano, substituindo-o por outro como uma reles peça de engrenagem no intercurso do
maquinismo social.

II.II: AS VINHAS DA IRA E A TRAVESSIA DAS PÁGINAS LITERÁRIAS PARA A TELA GRANDE

Uma das questões trabalhadas nesta tese e que perpassa toda a filosofia nietzsche-
deleuzeguattariana é o fato do ser humano não ser de natureza boa ou má, como se na vida
houvesse duas estradas que podem ser escolhidas para se seguir. Ao contrário dessa visão
maniqueísta e unidimensional, o ser humano não é isso “ou” aquilo, ele é isso “e” aquilo, ou
seja, o ser humano é várias coisas ao mesmo tempo, é uma miscelânea de inúmeras
características altamente paradoxais que formam o que ele é e como ele se apresenta diante da
sociedade. Em suma, o ser humano é uma multiplicidade. Como afirma o ex-reverendo Jim
Casy, no início do texto de Steinbeck (1972, p. 35-36), “não existe pecado, nem virtude. Só
aquilo que a gente faz, seja lá o que fôr. Tudo é parte de uma só coisa igual. Algumas coisas
que a gente faz são boas e outras não prestam”. Reafirma-se isso aqui porque a principal
leitura que se pode extrair de As vinhas da ira (filme e livro) é exatamente sobre essa essência
multidimensional do ser humano que o faz reterritorializar-se na vida entre ser uma máquina
de guerra e uma máquina despótica. Isso está posto em um trecho do livro contido no capítulo
XIII:

É isto o que se pode dizer a respeito do homem; quando teorias mudam e caem por
terra, quando escolas filosóficas, quando caminhos estreitos e obscuros das
concepções nacionais, religiosas, econômicas alargam-se e se desintegram, o homem
se arrasta para diante, sempre para a frente, muitas vêzes sob o efeito de dores,
muitas vêzes inùtilmente. Tendo dado um passo à frente, pode voltar atrás, mas não
mais que meio passo, nunca o passo todo que já deu. Isto se pode dizer do homem,
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dizer-se e saber-se. Isto se pode saber quando bombas caírem dos aviões negros
sôbre a praça do mercado, quando prisioneiros são tratados como porcos imundos,
quando corpos crivados de balas rolarem na poeira (STEINBECK, 1972, p. 201-
202).

Em John Steinbeck: Uma biografia, Jay Parini ratifica essa questão ao apontar que a
visão de Steinbeck sobre o ser humano era exatamente esta:

As vinhas da ira não deve ser encarado apenas como uma história sobre migrantes
de Oklahoma, nem visto como uma narrativa alegórica sobre a interminável busca
do sonho americano de uma vida melhor. Tampouco é um simples protesto contra a
“desumanidade do homem com o homem”, como afirmaram vários críticos. Ao
contrário, o romance conta a história do que Steinbeck chama de o “Próprio
Homem”. Trata da busca humana de auto-realização, como grupo e como indivíduos
isolados (PARINI, 1998, p. 260).

Como assegura a personagem Riobaldo, em Grande sertão: Veredas, “o diabo não há!
É o que eu digo, se fôr... Existe é homem humano. Travessia” (ROSA, 1972, p. 460). Ou seja,
falar, como ocorre no senso comum, de humanidade ou humano como uma categoria ligada
ao bem e de desumanidade ou desumano como algo ligado ao mal apenas reforça uma
oposição entre o bem e o mal. O ser humano é simplesmente humano em seu caos interno,
cheio de contradições e capaz de fazer o bem e o mal.
Diz-se isso até aqui porque é importante ressaltar o fato de que, em uma análise direta,
a adaptação literária concebida pela personagem conceitual de John Ford, em As vinhas da
ira, traduziu intersemioticamente (ou “transcriou”) essa preponderante característica do plano
técnico escritural do romance de Steinbeck ligada a seus afectos, perceptos e sensações. As
alterações narrativas não importam, pois mesmo partindo de uma criação outra, Ford
translitera uma narrativa que mantém o cerne do livro de crítica sócio-política-econômica
acrescentando novas camadas de afectos, perceptos e sensações. A multiplicidade do texto
steinbeckiano continua intacta. Ao se alegar isso, não se está fazendo uma hierarquização
entre filme e livro, mas sim sustentando que a criação fordiana de As vinhas da ira traduz, via
intermidialidade, a escritura original para uma outra mídia, fazendo as mudanças necessárias
para se adequar à linguagem cinematográfica e continua a carregar a sua basilar visão
desoladora e trágica de mundo. É também uma visão calcada no marxismo, pois remonta à
eterna revolução do povo por vir, na qual Karl Marx e Friedrich Engels (2001, p. 84), no
Manifesto do Partido Comunista, afirmam que “os proletários nada têm a perder, exceto os
seus grilhões. Têm um mundo a ganhar”.
Esse etos humano do plano técnico que Ford traduz em sua criação escritural de As
vinhas da ira expressa toda uma visão trágica de um período de descrença no modelo
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capitalista – de fato, quem crê no modelo capitalista são apenas os representantes da máquina
despótica – e no que a máquina despótica do capital e seus agenciamentos coletivos
maquínicos traziam de problemáticas às comunidades. Por mais que, como apontado antes,
Ford tenha sido uma figura politicamente controversa (com pontos de vista à direita e à
esquerda, aqui e acolá), seu cinema é essencialmente sobre a força das comunidades humanas
em sua consequente reterritorialização e transvaloração da busca por sobrevivência.
Quando se pontua aqui que a personagem conceitual Ford mantém o âmago do texto
de Steinbeck em sua tradução de As vinhas da ira, faz-se para se tangenciar o ponto de vista
salvaguardado na introdução desta tese a respeito de uma defesa de um cinema impuro, à
maneira de André Bazin, em seu clássico texto Por um cinema impuro - Defesa da
adaptação. Adaptar textos literários para o cinema, isto é, traduzir a escritura literária em
cinematográfica é tarefa sempre das mais complexas para um roteirista e para um diretor ou
uma diretora de cinema. A tarefa de transformar a imagem da palavra em imagem fílmica é
árdua, pois envolve uma tradução criativa que consiga verter o verbo no visual, por mais
“verbivocovisual” que seja o texto literário o qual se adapta. E, como se não bastasse isso,
cineastas e roteiristas ainda têm de lidar com as apreciações críticas de seus filmes que, na
maioria das vezes, comparam o texto com o filme buscando algum tipo de fidelidade
impossível de ser concretizada, descambando em falas que buscam apontar ser o texto
original “melhor” do que o filme etc. Em Do texto ao filme: A trama, a cena e a construção
do olhar no cinema, Ismail Xavier desconstrói essas noções:

A questão da adaptação literária pode ser discutida em muitas dimensões. E o debate


tende a se concentrar no problema da intepretação feita pelo cineasta em sua
transposição do livro. Vai-se direto ao sentido procurado pelo filme para verificar
em que grau este se aproxima (é fiel) ou se afasta do texto de origem. Nessa maneira
de proceder, vale a interpretação do crítico, tanto do texto escrito quanto do filme,
como referência para julgar o trabalho do cineasta e suas “traições”. Houve época
em que era comum certa rigidez de postura, principalmente por parte dos
apaixonados pelo escritor cuja obra era filmada. [...] No entanto, nas últimas décadas
tal cobrança perdeu terreno, pois há uma atenção especial voltada para os
deslocamentos inevitáveis que ocorrem na cultura, mesmo quando se quer repetir, e
passou a se privilegiar a ideia do “diálogo” para pensar a criação das obras,
adaptações ou não. O livro e o filme nele baseado são vistos como dois extremos de
um processo que comporta alterações de sentido em função do fator tempo, a par de
tudo o mais que, em princípio, distingue as imagens, as trilhas sonoras e as
encenações da palavra escrita e do silêncio da leitura. A interação entre as mídias
tornou mais difícil recusar o direito do cineasta à interpretação livre do romance ou
peça de teatro, e admite-se até que ele pode inverter determinados efeitos, propor
outra forma de entender certas passagens, alterar a hierarquia dos valores e redefinir
o sentido da experiência das personagens. A fidelidade ao original deixa de ser o
critério maior de juízo crítico, valendo mais a apreciação do filme como nova
experiência que deve ter sua forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu
próprio direito (XAVIER, 2003 p. 61-62)
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Ao se insistir na questão da adaptação literária para o cinema como uma tradução


criativa intenta-se desviar sempre de qualquer forma de julgamento pelo caminho
interpretativo que transita o cineasta, neste caso específico aqui a personagem conceitual John
Ford. Sua leitura do texto de Steinbeck é viva e atravessa o tempo. Ford, por exemplo, traduz
as personagens de As vinhas da ira ao seu cinema de marcas comunitárias, fortemente calcado
na família como microcosmo da sociedade. Os traços individualistas, como o do andar
solitário de Tom Joad no início e ao final do filme, são vistos como uma travessia ligada à
ubiquidade do ser humano como ser social. Em O inverno da nossa desesperança, último
livro de Steinbeck, publicado em 1961, há uma passagem ao final na qual o filho do
protagonista, Ethan Allen Hawley, escreve uma carta para participar de um concurso
parafraseando discursos de alguns dos políticos fundadores da democracia estadunidense,
como Henry Clay25, Daniel Webster26, Thomas Jefferson e Abraham Lincoln, na qual é dito:

O que é um indivíduo? Um átomo, quase invisível sem a ajuda de uma lupa: um


mero ponto sobre a superfície do universo; nem um segundo no tempo quando
comparado à eternidade incomensurável, sem começo e sem fim, uma gota d’água
nas grandes profundezas que evapora e é carregada pelos ventos, um grão de areia
que logo volta à poeira de onde surgiu (STEINBECK, 2011, p. 320).

A citação acima ajuda a se pensar, por exemplo, a primeira e a última aparições de


Tom Joad no filme As vinhas da ira, na qual seu andar em direção ao horizonte é visto em
plano geral, em que a personagem figura como um minúsculo grão de areia perante o
esmagador céu, ou um “um mero ponto sobre a superfície do universo”. Diante da
composição dos filmes de Ford, que prima pela comunhão dos povos, essa imagem (ilustrada
na figura abaixo) soa ambígua, como lembrou Rancière, no texto Os pés do herói. Mesmo
marcando-se pela individualidade da diferença, o ser humano é um ser social e que vive em
comunidade, é um socius. As imagens de um minúsculo Tom Joad em meio ao horizonte são,
no entanto, imagens modernas porque transpõem as bordas do quadro fílmico. Elas são
rizomáticas.
Ora, esses quadros cinematográficos da escritura fílmica de As vinhas da ira que
extravasam as bordas em direção ao fora de campo do universo do público, do espectador
emancipado, são imagens-tempo, no sentido de que a personagem conceitual John Ford busca

25
Advogado e político que foi congressista e senador pelo estado do Kentucky, duas vezes presidente da Câmara
de Representantes dos EUA e Secretário de Estado no governo de John Quincy Adams, entre 1825 e 1829.
26
Foi congressista e senador pelo estado de Massachusetts e Secretário de Estado na gestão do presidente
Millard Filmore entre 1850 e 1852.
P á g i n a | 82

narrar não só apenas uma ficção criada em cima dos fatos históricos da Grande Depressão
econômica dos anos 1930, mas, para além disso, criar um irrefutável testemunho imagético de
seu tempo que transpasse outros tempos. Logo, Ford narra o devir, o que poderia vir a ser ao
clamar um povo por vir ao final quando a personagem da mãe afirma serem eles, a família
Joad, o povo, e que ninguém poderia conter o povo, pois ele, como máquina de guerra,
sempre existirá. Como alega o filósofo grego Aristóteles, em seu livro Arte poética,

não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter
acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade. O historiador e
o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e
o segundo em verso [...] Diferem entre si porque um escreveu o que aconteceu e o
outro o que poderia ter acontecido (ARISTÓTELES, 2007, p. 43).

O poeta Ford, à linha do que reflete Aristóteles, filma “o que poderia ter acontecido”
porque cria em cima da tragédia humana da máquina despótica capitalista. Seu cinema, assim
como a personagem Tom Joad, é uma multiplicidade de uma máquina de guerra que encena
ficcionalmente as desventuras da família Joad como miniatura do enorme mundo de
catástrofes humanas. O povo que sempre padece nas crises econômicas dos agenciamentos
capitalistas é o mesmo de sempre, que, no eterno retorno da diferença, reaparece em cada
nova recessão.

A comunidade tem na terra sua única raiz, a terra que é quase uma personagem
prosopopeica em As vinhas da ira, esta terra dura e seca como os homens e mulheres ali
nascidos e que têm de abandonar seus laços em busca de uma vida um pouco mais digna. A
mesma terra na qual se cimentou a conquista sangrenta do Oeste a partir do massacre dos
povos indígenas, carnificina esta varrida para debaixo dos tapetes da história pelo homem
branco. Esse vincular-se quase que indissociavelmente à terra é o que marca a passagem do
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filme na qual o avô, em desespero, não quer seguir em viagem com a família Joad, pois não
quer se afastar de suas raízes. Tanto é que, mesmo a família conseguindo embebedar o idoso
para conseguir levá-lo, ele não suporta o peso dessa existência vazia sem seus vínculos
terrígenos e acaba por falecer vítima de um derrame cerebral.
No entanto, mesmo mantendo o cerne do livro de Steinbeck, Ford confere concisão à
narrativa. John Ford trabalhou na indústria cinematográfica desde 1914 nos filmes do seu
irmão, Francis Ford, como ator, aderecista e diretor de segunda unidade ou assistente de
direção, isso quando tinha apenas 20 anos. Tornou-se diretor em 1917, com o curta O
furacão, com a idade de 23 anos. Até a chegada do cinema falado – cujo marco inicial
considera-se o lançamento do filme O cantor de jazz, em 1927, dirigido por Alan Crosland –,
Ford dirigiu 67 filmes27, dentre os quais filmes de dois ou três rolos de película28 (isto é, de
curta duração) e épicos como os westerns O cavalo de ferro (1924) e Três homens maus
(1926). Muito experiente, Ford dirigiu As vinhas da ira em uma fase madura, quando tinha 46
anos e possuía 95 filmes em sua bagagem. Percebe-se com esse panorama que Ford transitou
durante muito tempo pelo cinema silencioso e ao observar qualquer um de seus filmes
apreende-se que ele aprendeu a arte da concisão, ou seja, a comunicar bastante com as
imagens e gestos dos atores em cena, sem precisar recorrer a muitos diálogos. Foi o que ele
tentou imprimir em As vinhas da ira ao abreviar muitas das digressões poéticas do texto de
Steinbeck em imagens de igual carga lírica. É o que aponta o crítico e professor de cinema
norte-americano Andrew Sarris, no texto O poeta festejado29:

[...] o problema de adaptar o romance de Steinbeck para a tela deve ter sido mais de
ordem poética do que política. [...] Como está, As vinhas da ira dura 129 minutos,
não muito longo se comparado à duração de ...E o vento levou30, mas notadamente
mais extenso que 91 minutos, aproximada duração média dos 26 longas de Ford da
década de 1930. Por outro lado, a lógica que orienta a elaboração de roteiros durante
esta década clássica em Hollywood tornou-se progressivamente menos orientada à
fala. Ford, especialmente, tornou-se uma lenda no set ao substituir complexas
articulações literárias por silêncios eloquentes. O truque era encontrar equivalências
visuais para enredos gárrulos. Não fale, mostre. [...] Por este motivo, o processo de
redução e simplificação de um romance para o cinema desfrutava da mais alta
sanção estética (SARRIS, 2010, p. 143-144).

Talvez, a melhor definição para essa prática do silêncio e das imagens dizendo mais
do que extensos diálogos seja a do cineasta francês Robert Bresson (2000, p. 44), em seu livro
27
Seu primeiro filme sonoro foi A guarda negra, de 1929.
28
Um rolo de película dura aproximadamente 12 minutos.
29
Originalmente, um trecho do capítulo 1940-1947: The poet laureate do livro The John Ford Movie Mystery,
publicado em 1975, e republicado em português, no catálogo da mostra John Ford, realizada pelo Centro
Cultural Banco do Brasil, em 2010.
30
Cuja duração é de 3 horas e 58 minutos.
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de máximas sobre o cinema Notas sobre o cinematógrafo: “O cinema sonoro inventou o


silêncio”. Em As vinhas da ira, provavelmente a cena mais exemplar sobre esse prisma do
silêncio e das imagens que dizem por si mesmas, assim como da tradução intersemiótica das
palavras de um romance para imagens fílmicas, seja o momento em que a mãe, pouco antes
da viagem da família Joad para a Califórnia, se despede de sua terra. No livro, essa sequência
ocorre assim:

O pregador disse:
– Ela parece que está cansada.
– As mulheres sempre se cansam – disse Tom. – São assim mesmo. Só não ficam
cansadas quando estão no culto.
– Sim, mas ela está cansada demais. Como se estivesse doente, até.
Mãe ainda não tinha fechado a porta atrás de si e ouvira estas palavras. Lentamente,
o relaxamento dos músculos de suas faces sumiu-se, para dar lugar à antiga
expressão de energia. Seus olhos brilharam e os ombros se lhe endireitaram. Lançou
um olhar ao quarto desnudo. Nada havia ali dentro, a não ser trastes sem o menor
valor. Os colchões, que tinham sido postos no chão, já estavam lá fora. As mesas
tinham sido vendidas. Um pente quebrado estava jogado ao chão, tendo ao lado uma
caixa de pó de arroz vazia e um montículo de fezes de rato. Ela colocou a lanterna
no chão. Pôs a mão atrás de um caixote que servira de cadeira e tirou de lá uma
caixa de papel de carta, já bastante velha e quebrada nos cantos. Sentou-se e abriu a
caixa. Havia cartas na caixa. Recortes, fotografias, um par de brincos, um anel de
sinête muito pequeno, um chaveiro de cabelos trançados e ligados por fios de ouro.
Ela tocou as cartas com os dedos, tocou-as de leve, e separou um maço de recortes
de jornal que tratavam do caso de Tom. Longo tempo ficou a segurar a caixa,
olhando-a, depois seus dedos espalharam o maço de cartas e tornaram a ordená-lo.
Mordeu o lábio inferior, pensativa, recordando coisas. E, afinal, tomou uma decisão.
Tirou da caixa o anel, a châtelaine, os brincos, meteu a mão por baixo do maço de
cartas e achou o elo de uma pulseira de ouro. Tirou uma carta de um envelope e pôs
todos esses pequenos objetos no envelope. Fechou-o e escondeu-o no bôlso do
vestido. Depois, delicada e cuidadosamente, tornou a pôr a tampa na caixa e
acariciou-a com os dedos. Seus lábios entreabriram-se. A seguir, levantou-se, pegou
na lanterna e voltou à cozinha. Tirou uma das trempes do fogão e enfiou, devagar, a
caixa para dentro do braseiro. Depressa o calor avermelhou a caixa de papelão. Uma
chama viva envolveu-a. Ela recolocou as trempes do fogão, e instantâneamente a
caixa foi consumida pelas chamas (STEINBECK, 1972, p. 144-145).

Qualquer outro diretor utilizaria quiçá uma narração ou, então, transformaria parte da
ação do texto steinbeckiano em diálogos, o que reduziria a força e o poder da imagem. Ford,
longe disso, prima pela imagem, pelos sons diegéticos e por uma leve trilha sonora
melancólica incidental, o que de fato se traduz em um silêncio interno da personagem da mãe
em um raro momento que possui para si mesma, pois em outros instantes está sempre
atarefada com os afazeres domésticos ou cuidando dos outros membros da família, já que é
seu baluarte, sua força plástica para seguir em frente. A câmera escrevente de Ford nesse
instante poético aproxima-se do rosto da mãe, iluminado em meio à escuridão da casa.
Achega-se também nos objetos em planos-detalhes deles nas mãos da mãe. O olhar profundo
e pesaroso da mãe salta as bordas da imagem rizomaticamente. A ação, se comparados filme e
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livro, é praticamente a mesma. Enquanto, no texto de Steinbeck, a mãe apenas separa


delicadamente alguns dos objetos para guardá-los no envelope e queimar o restante das coisas
na caixa, na imagem fordiana, há um pequeno detalhe criativo de diferença em relação ao
texto: a mãe experimenta os brincos e se olha em frente a um espelho com um olhar
lacrimoso, como se imaginasse como seria sua vida caso não fosse tão dura e trágica (repete-
se abaixo, a título de ilustração, a figura VII, já apresentada nesta tese).

Apesar da narrativa ser estritamente importante no cinema de Ford, a estética e a


forma muitas vezes se sobressaem. Não que ele seja um esteta (ele estaria mais para um poeta
das imagens ou um artesão), mas o realismo fordiano seria o mais próximo do que se poderia
chamar de realismo lírico. Pode-se deduzir que os afectos, perceptos e sensações encontram-
se na cinematografia de Ford na pujança de suas imagens que dizem mais do que um milhão
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de palavras. Na citada sequência da mãe, discutida no parágrafo anterior, por exemplo, a


fotografia expressionista de um claro-escuro singular marca o momento junto da lamuriosa
trilha sonora, mas, mesmo assim, o espectador se sente como se estivesse diante do silêncio,
como se presenciasse uma fatia de vida e dificilmente não entra em prantos. Como isso é
possível, sendo que há uma interferência da câmera recortando os espaços e o corpo da mãe,
com uma iluminação e uma música que induz os sentimentos do público? Talvez, porque o
rapsodo fordiano seja único e intenso. Talvez, porque, mesmo com seu estilo moderno para a
época, Ford consiga de alguma maneira transportar seu público para dentro da história,
consiga fazer cada espectador lembrar-se de sua própria mãe, não através da identificação
pura e simples, pois o cinema, ao contrário do que se propaga no senso comum, clama a
diferença e não a semelhança. Afinal, cada mãe e toda memória pessoal de cada indivíduo
sobre sua mãe é distinta. Sobre essa questão formalista e plástica, assevera o crítico de cinema
e historiador estadunidense Tag Gallagher, no texto O estilo em John Ford31:

Ford deve ser classificado ao lado de artistas como Murnau 32, von Sternberg33,
Vidor34, Renoir, Ophüls35, Mizoguchi e Rossellini, diretores de um cinema cuja

31
Originalmente publicado como a conclusão do livro John Ford: The man and his films, datado de 1986, e
republicado em português no catálogo da mostra John Ford, realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em
2010.
32
F. W. Murnau, diretor do movimento chamado Expressionismo Alemão. Dono de um estilo único, Murnau
dirigiu obras importantíssimas no panorama do cinema mundial, como O castelo Vogelöd (1921), Nosferatu
(1922, inspirado no romance Drácula, de Bram Stoker), Terra em chamas (1922), Fantasma (1922), As finanças
do Grão-Duque (1924), A última gargalhada (1924, também conhecido como O último homem), Tartufo (1925,
baseado na peça homônima do dramaturgo, ator e encenador francês Jean-Baptiste Poquelin, o Molière), Fausto
(1926, adaptada do livro de mesmo nome do escritor romântico alemão Johann Wolfgang von Goethe), Aurora
(1927), O pão nosso de cada dia (1930) e Tabu (1931), trabalho colaborativo com o documentarista norte-
americano Robert J. Flaherty. Aurora foi produzido nos EUA pela Fox Film Corporation e encantou Ford, que,
ao assisti-lo teria sofrido enorme influência de Murnau. Como apontam Eyman e Duncan (2005, p. 67), em John
Ford: A filmografia completa, ao ir para Hollywood realizar Aurora, Murnau iniciou com Ford “uma relação de
amizade [...]. Ford retribuiu, combinando os seus interesses – família, comunidade – com o estilo de Murnau –
direção artística de estúdio estilizada e filmagens em movimento”. Murnau faleceu prematuramente aos 42 anos,
em 1931, vítima de um acidente de carro.
33
Josef von Sternberg, outro diretor do Expressionismo Alemão que fez carreira em Hollywood e apresentou ao
mundo a atriz Marlene Dietrich, mulher muito à frente de seu tempo e que ajudou a incorporar no vestuário
feminino o uso de calças, na linha do que já vinha ocorrendo desde a década de 1920 pelas mãos da estilista
francesa Gabrielle Bonheur Chanel, mais conhecida como Coco Chanel. Sternberg dirigiu na Alemanha O anjo
azul (1930), um dos últimos exemplares do Expressionismo Alemão antes da chegada ao poder de Adolf Hitler,
o que modificou amplamente a indústria cinematográfica germânica, que passou a produzir essencialmente
filmes de propaganda nazista. Em Hollywood, Sternberg ajudou a fomentar o cinema policial e o filme Noir, este
último com narrativas de crimes e vingança e estética inspirada no Expressionismo Alemão. Nos EUA,
Sternberg realizou Paixão e sangue (1927), A última ordem (1928), O super-homem (1928), Docas de Nova York
(1928), O romance de Lena (1929), O homem de mármore (1929), Marrocos (1930), Desonrada (1931), Uma
tragédia americana (1931), O expresso de Shanghai (1932), A vênus loura (1932), A imperatriz vermelha
(1934), Mulher satânica (1935), Crime e castigo (1935, adaptado do romance homônimo do russo Fiódor
Dostoievski), entre outros.
34
King Vidor, diretor norte-americano de origem húngara. Foi um dos grandes nomes do cinema silencioso, com
obras como O grande desfile (1925) e A turba (1928). No sonoro, dirigiu outros filmes marcantes, como O
campeão (1931), Stella Dallas, mãe redentora (1937), A cidadela (1938), Bandeirantes do norte (1940), Duelo
P á g i n a | 87

expressão é sentida por meio de uma forma estética. Um filme fordiano é aquele que
apresenta uma completa estilização de todos os elementos. Todo conteúdo é
formalizado; qualquer qualidade de som e imagem é completamente estetizada. [...]
Um nível tal de estilização, longe de ser antipático à ideia de realismo, trata nosso
senso de realidade como um sentimento que pode ser formalizado e intensificado
(GALLAGHER, 2010, p. 102).

É com muita precisão que Gallagher aponta que o traço estilístico de Ford não seria
antipático ao realismo. Como antes pontuado nesta tese, há, sim, um grau de realismo em As
vinhas da ira na captura do período histórico eternizado na película e a urgência da vinda de
um povo por vir para uma possível luta de classes sempre massacrada pela vontade de
potência da máquina despótica do capital, assim como o eterno retorno da diferença de suas
guerras (físicas e virtuais) e sanções econômicas contra nações que se insurgem contra o
sistema capitalista. Mesmo Ford assumindo indiretamente mais tarde uma ideologia mais à
direita, sua personagem conceitual criou em sua tradução intersemiótica do universo de
Steinbeck afectos, perceptos e sensações que trilham caminhos de um cinema de máquina de
guerra, ainda que inserido em uma máquina despótica como Hollywood, que oprime as
cinematografias periféricas. Essa tradução se vale das composições de luz e sombra, dos
close-ups nos rostos dos atores com seus olhares profundos (poder-se-ia dizer, infinitos),
flagelados e cansados de tamanha exploração, dos efeitos sonoros com os sons diegéticos
sempre marcados pelo som do vento e da direção de arte que concebe em estúdio a paisagem
desértica do cinturão de poeira do meio-oeste dos EUA. Se o livro de Steinbeck é uma prosa
intercalada por um olhar poético, o filme de Ford é definido por imagens poéticas, momentos
contemplativos e poucos diálogos, com vários trechos do texto steinbeckiano convertidos em
imagens. Como reitera Sarris, afiançando a ideia de um realismo lírico em Ford,

os críticos poderiam [...] aplaudir a contribuição estilística de John Ford para As


vinhas da ira sem sugerir, sob qualquer ângulo, que ele estava relegando a força do
romance de John Steinbeck ou do roteiro de Nunnally Johnson. Aludir a uma
contradição ideológica entre as belas imagens de Ford e Toland contra as palavras
furiosas de Steinbeck e Johnson pareceria tão estranho na década de 1940 quanto
viria a ser, na década seguinte, qualquer crítica similar às belezas estilísticas dos
filmes neorrealistas. Em última instância, Ford e Toland poderiam ser acusados pelo
tribunal retroativamente revolucionário de diminuir a urgência dessa empreitada
graças às composições cativantes de luz e sombra a partir das paisagens varridas
pelo vento e rostos açoitados pelo tempo. [...] Assim, mais um clássico do cinema
acaba sendo mais expressionista do que a sua reputação realista indicaria. O termo

ao sol (1946), Homem sem rumo (1955) e Guerra e paz (1956), baseado no livro de mesmo nome escrito por
Liev Tolstói.
35
Max Ophüls, cineasta alemão que se notabilizou nos EUA, com filmes como O exilado (1947), Carta de uma
desconhecida (1948) e Na teia do destino (1949). No final de sua vida, se desencantou com Hollywood e foi para
a França, onde realizou, entre outros, A ronda (1950), Desejos proibidos (1953) e Lola Montes (1955).
P á g i n a | 88

usado para circunscrever essa contradição estilística é “realismo poético” (SARRIS,


2010, p. 144).

Realismo poético ou lirismo realista, o quer que seja, as imagens de Ford, em As


vinhas da ira, são uma força brutal violentadora do pensamento do espectador a favor do
questionamento dos ditames da máquina despótica. Ainda que recorra ao melodrama presente
no tom dado pela trilha sonora e na abordagem das imagens, a intensidade do filme de Ford
está exatamente no não-dito, nas entrelinhas e lacunas deixadas por estas mesmas imagens
fílmicas como tradução criativa do texto de Steinbeck.

II.III: A POESIA REALISTA DE JOHN FORD EM AS VINHAS DA IRA NA ANÁLISE DE ALGUMAS


CENAS

Colocado no subcapítulo anterior como produto criativo independente do livro de John


Steinbeck, o filme As vinhas da ira, de John Ford, apresenta algumas singularidades de
concisão em relação ao texto escritural do autor. Apresenta-se primeiro abaixo um resumo de
parte da narrativa para depois se esmiuçar analiticamente algumas cenas.
As vinhas da ira narra a história da família Joad tentando sobreviver após ser expulsa
de suas terras em Oklahoma. A bordo de um velho, carcomido e pequeno caminhão, os Joad
vão para a Califórnia, impulsionados por um folheto que receberam anunciando trabalho fácil
em um vinhedo. Na viagem, eles levam apenas o que lhes restou: sua esperança de dias
melhores, seu amor uns pelos outros e sua dignidade. Os poucos bens materiais ficaram todos
para trás.
Durante o trajeto, os Joad terminam por descobrir (após uma jornada trágica na qual os
avós da família morrem no caminho) que foram enganados, pois o tal folheto foi distribuído a
milhares de pessoas e, desta forma, não haveria emprego para eles. Em busca de uma forma
de se sustentarem, eles terminam por encontrar emprego em uma fazenda de pêssegos, onde
se paga muito pouco e vive-se em condições subumanas. Lá, o filho mais velho, Tom Joad,
recém-saído em condicional da prisão por homicídio culposo, acaba se envolvendo em uma
confusão ligada a uma greve local, na qual o seu amigo, o ex-reverendo Jim Casy, está
implicado, e acaba assassinando um dos guardas da fazenda.
A família abandona o local e, no caminho de seu calvário, encontra um acampamento
do governo, onde passam a viver em condições mais favoráveis. Tom, com temores de ser
perseguido e passando a entender seu dever social de luta pelos menos favorecidos, conclui
P á g i n a | 89

que deve fugir. Posteriormente, sua mãe (o sustentáculo da família e grande força por trás
dessa), a bordo outra vez do caminhão, já que os Joad receberam uma nova oferta de
emprego, faz, em diálogo com seu marido, uma fala sobre o papel do povo na sociedade:
“Nós viveremos para sempre, pai, porque nós somos o povo”.
Como uma espécie de road movie (ou filme de estrada) trágico, As vinhas da ira traz
alguns momentos que merecem ser analisados mais a fundo. Em primeiro lugar, a cena citada
no final do parágrafo anterior foi acrescentada pelo estúdio à revelia de John Ford. Caso ela
não estivesse presente, poder-se-ia dizer que a narrativa cumpriria, supostamente, uma
trajetória circular, uma vez que a primeira imagem de Tom e a última são semelhantes: ele
aparece como um minúsculo ponto no meio da paisagem, conforme se ilustra novamente com
a figura abaixo.

Entretanto, por mais semelhantes que ambas as imagens-tempo acima possam ser
(inclusive, soando como pontos de fuga), elas são de fato diferentes. Na primeira, Tom anda
em direção ao espectador e às bordas da tela. Enquanto isso, na segunda, ele sai pela tangente,
indo da esquerda para a direita, até pegar o caminho contrário da primeira imagem, indo no
trajeto oposto ao das bordas da tela. Há aí um efeito de dramaticidade tipicamente teatral.
Nenhum problema em copiar efeitos do teatro – e grande parte dos filmes realizados no
período anterior aos anos 1950 o fizeram –, pois o cinema, como afirmou Bazin na introdução
desta tese, é uma arte impura. O efeito teatral se dá no sentido de que a primeira e a última
aparições de Tom, em As vinhas da ira, se assemelham a, respectivamente, uma entrada e
uma saída de um ator ou uma atriz em um palco de teatro.
Esta, aliás, é uma marca estético-dramática muito comum na mise en scène do cinema
escritural de John Ford. Relembra-se, a título de exemplificação, a abertura e fechamento do
trágico western Rastros de ódio (1956), no qual a personagem do caubói John Wayne, Ethan
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Edwards, surge pela primeira vez em cena, na abertura do filme, após uma porta se abrir e ele
vir em direção às bordas da tela, e aparece pela última vez indo no rumo contrário, se
alonginquando das bordas da tela. A porta que, nesta ordem, se abre e se fecha diante de
Ethan possui uma funcionalidade tal qual as cortinas do teatro.
Para além dessas questões, as duas imagens de Tom, em As vinhas da ira, possuem
também um caráter pictórico em suas composições estéticas. Percebe-se como Ford localiza o
horizonte nas partes de cima das respetivas imagens, de modo a tornar a composição plástica
mais orgânica e realista. No entanto, ao contrário da pintura (que leva o olhar do espectador
ao centro da imagem centrípeta, para um ponto de fuga), o quadro fílmico é centrífugo, suas
imagens se direcionam às bordas da tela no caminho do olhar do espectador, pedindo a
imaginação quanto ao fora de campo, ao que não está enquadrado.

Há uma anedota a respeito de Ford que ajuda a compreender o porquê dessa sua
escolha por enquadramentos que emulam o pictórico para o quadro cinematográfico, mas, de
forma moderna, se adaptam às características próprias do cinema. Essa história é narrada pelo
diretor e produtor norte-americano Steven Spielberg, no documentário Directed by John Ford
(1971/200636), dirigido pelo cineasta, crítico, pesquisador e curador de cinema estadunidense
Peter Bogdanovich. Spielberg conta que, quando tinha quinze anos (em 1961), visitou o
escritório de Ford nos estúdios da Paramount. Nessa época, Ford filmava O homem que
matou o facínora. Segundo relata Spielberg, ele disse ao velho realizador de westerns que
gostaria de se tornar um diretor de cinema após se formar no colégio. Ford o mandou observar

36
Este documentário foi lançado em 1971, quando Ford ainda estava vivo. Em 2006, Bogdanovich filmou
depoimentos inéditos de diretores de cinema admiradores de Ford e reeditou o filme acrescentando estas
entrevistas.
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alguns quadros no escritório com pinturas de cenários do Velho Oeste e perguntou diante de
cada um onde se localizava o horizonte. Após isso, Ford disse a Spielberg: “Quando você
chegar à conclusão de que colocar o horizonte na parte de baixo ou de cima do
enquadramento é melhor do que no meio, então talvez algum dia você seja um bom diretor de
cinema. Dê o fora daqui.”
De qualquer jeito, mesmo com a adição do epílogo no carro com o diálogo entre a mãe
e o pai e a fala final dela, As vinhas da ira não deixa de cumprir esse itinerário circular
mencionado antes. Contudo, quando se avalia o cinema como uma criação da vida na tela,
pensa-se que, como a vida, nenhum caminho é circular, pois a circularidade dá a entender que
se volta para o mesmo lugar do início. Mesmo que se volte para o lugar de partida, depois de
toda a travessia e de todas as reterritorializações, quando se retorna, este local de partida não é
mais o mesmo. Só é possível o eterno retorno da diferença, pois, como aponta o filósofo
grego pré-socrático Heráclito de Éfeso (apud PESSANHA, 1996, p. 25), em um aforismo já
citado nesta tese, “tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm
sempre sobre ti”.
O curso da vida é, por fim, rizomático, pois ele é, tal como o rizoma, segmentado,
estratificado, territorializado e, ao mesmo tempo, desterritorializado. Ele se faz, a propósito,
nas reterritorializações. A vida é, portanto, uma travessia. O ser humano se preocupa tanto
com as chegadas e saídas que se esquece disso. Conforme diz a personagem Riobaldo, em
Grande sertão: Veredas, “eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só
estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada” (ROSA, 1972, p. 30). Tanto é
assim que o mais importante na rota de Tom não é sua chegada e sua saída, mas a sua
travessia, isto é, o seu devir, o vir a ser como povo por vir, as suas reterritorializações em suas
linhas de fuga. O mais significativo são as lacunas impostas pela narrativa da imagem-tempo
de Ford ao se pensar qual poderia ter sido o destino de Tom.
A composição de Henry Fonda como Tom Joad – ainda em um período que os atores
do star system hollywoodiano traziam influências do teatro clássico e no qual os
ensinamentos de Constantin Stanislavski, até então, não tinham se difundido no cinema norte-
americano37 – cria uma personagem triste, melancólica, de olhos marejados e profundos. É
como se seu olhar contivesse toda a sua trajetória de vida. Concomitantemente, a criação de
Fonda carrega uma espécie de selvageria e violência contidas, manifestadas quando
assassinou um homem (o que o fez ser preso) e, de certa forma, amansadas pelas garras dos

37
O sistema Stanislavski de preparação do ator, construção da personagem e criação de um papel será um pouco
melhor detalhado no subcapítulo III.III desta tese.
P á g i n a | 92

agenciamentos maquínicos do capital com a prisão (e tudo o que ela envolve) como uma de
suas instâncias. Além disso, Tom (na atuação de Fonda) desenvolve, ao redor da narrativa,
consciência de classe de suas condições como ser humano.
Essa selvageria contida é tamanha que, após ser solto da penitenciária, quase todos que
ousam perguntar de onde Tom veio ou se ele fugiu da prisão, recebem em troca palavras duras
de sua parte. É o que ocorre com um caminhoneiro que lhe dá carona no início do filme.
Apesar disso, essa brutalidade é ainda mais contida, no tocante a perguntas sobre o seu
passado recente, junto à família Joad ou a outras pessoas próximas, como Jim Casy. Quando
Tom é questionado por cada membro de sua família, ao voltar para a casa, se teria fugido, ele
responde que não, de forma seca, mas esboçando um grande incômodo em suas feições. No
decorrer da narrativa, os caracteres de brutalidade e selvageria de Tom são cada vez mais
direcionados contra o capital e os agenciamentos de sua máquina despótica. Tom, aos poucos,
vai deixando aflorar a sua máquina de guerra interna. Ao final, na conversa com sua mãe, ele
demonstra saber a sua força para lutar, mesmo percebendo que as chicotadas da cruel máquina
despótica do capital doem fortemente e, quase sempre, impossibilitam a continuidade da
batalha contra ela. Tom compreende que tem de combater violentamente, de maneira
subversiva e transgressora, as violências outras do capital, mesmo se sabendo que o capital
sempre se reconstrói e se reterritorializa.
A personagem de Tom Joad, principalmente com a personificação de Henry Fonda, se
tornou um símbolo tão grande da luta contra as desigualdades e a máquina despótica que
entrou para a cultura popular em músicas do cancioneiro estadunidense, como, se pode citar,
as canções Tom Joad, escrita e gravada em 1940 por Woody Guthrie (um dos maiores nomes
da folk music norte-americana), e The ghost of Tom Joad, escrita e gravada por Bruce
Springsteen em 1995 no álbum homônimo, e regravada por bandas como Rage Against the
Machine e a sueca Junip. Ademais, na canção Diamonds in the mine, presente no disco Songs
of love and hate, lançado em 1971, o eu lírico do cantor e compositor canadense Leonard
Cohen faz no refrão uma referência intertextual a As vinhas da ira, ao afirmar “And there are
no letters in the mailbox / And there are no grapes upon the vine, / And there are no
chocolates in the boxes anymore, / And there are no diamonds in the mine” (COHEN, 1971,
grifo do autor desta tese)38. A canção, cantada em tom de protesto político e desalento por
Cohen, parece saída da garganta da personagem Tom Joad com sua vontade de potência de
máquina de guerra de transvalorar todos os valores. Tal como o eu poético de Cohen, a

38
“E não há cartas na caixa de correio / E não há uvas na videira, / E não há mais chocolates nas caixas, / E
não há diamantes na mina” (COHEN, 1971, grifo e tradução do autor desta tese).
P á g i n a | 93

família Joad não encontra na Califórnia as desejadas uvas nas vinhas, mas apenas a ira do
ressentimento da máquina despótica do capital. As uvas na vinha são, é claro, uma metáfora
para uma esperança em dias melhores de abastança – como sonha o avô com a imagem do
suco das uvas escorrendo por entre suas calças. Infelizmente, nem sempre a abundância a qual
deseja a classe trabalhadora é alcançável. De fato, espera-se o povo por vir, não milagres
divinos que vençam um suposto mal, ou, como diria a personagem Riobaldo, em Grande
sertão: Veredas, “existe é homem humano. Travessia” (ROSA, 1972, p. 460).
Retornando à análise de As vinhas da ira, após o motorista de caminhão deixar Tom
próximo ao local das terras de sua família, ele se encontra com Casy e eles logo se
reconhecem. Casy, que vive sem rumo pelas terras áridas do Oklahoma, revela a Tom que não
é mais reverendo e confessa uma série de dúvidas sobre sua fé e sua descoberta de não ser
vocacionado para ser pastor de igreja. Casy decide se juntar a Tom em sua caminhada e,
pouco depois, ambos chegam à casa da família Joad. Todo o lugar encontra-se deserto. Venta
muito, mas um vento seco, poeirento. Os Joad não estão mais vivendo em sua casa, assim
como outras famílias também não estão mais em suas residências. Ao entrar na casa, Tom se
depara com Muley Graves, seu antigo vizinho. Muley revela que as famílias foram expulsas
por uma empresa agropecuária que arrendou as terras junto a um banco. Ele resolveu ficar.
Tom descobre que seus familiares estão na casa de seu tio John. Com um discurso
incongruente, Muley culpa além dos bancos o vento, que trouxe todas as nuvens de poeira que
tapavam o sol e “castigavam” a terra local a tornando desértica. Em suma, Muley culpa a
natureza. Obviamente, culpar a natureza por qualquer coisa é um disparate, mas no fundo a
fala de Muley, por mais incoerente que possa parecer (e o que leva Tom a questionar se ele
estaria louco), tem suas razões. De fato, a natureza não é a culpada, mas sim a forma como os
agenciamentos coletivos do capital a exploram e alteram seus rumos. Há também o fator do
acontecimento, o qual não se controla. O ser humano tenta e acha que pode, mas não
consegue. A máquina despótica, então, culpa os pobres agricultores locais e os expulsa de
suas terras. Os agricultores, ressentidos, buscam culpados para seu infortúnio.
Há nesse ponto um flashback visto pelo olhar de Muley ao se mostrar a sua reação ao
receber a notícia de um funcionário do banco de que teria de deixar suas terras. Essa cena foi
retirada do capítulo IV do livro de Steinbeck. Nele não se mencionava o nome de alguma
personagem, o que dava um caráter universal às lutas individuais dos agricultores do
Oklahoma expulsos de suas terras ou a qualquer outro ser humano em situação parecida. Esse
momento foi adaptado no roteiro de Nunnally Johnson para se acrescentar a personagem
Muley.
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Junto de sua família armada, Muley questiona ao homem do banco em quem deve
atirar para reaver suas terras. Ele busca um culpado e, ao não ter respostas, se acocora no
chão, pega um volume de terra com suas mãos e diz que ninguém o tirará da terra a qual
nasceu e trabalhou durante toda a vida. Não há um culpado na figura de um homem. Os
homens do banco e da empresa agropecuária só seguem ordens, tal como diz o funcionário
que dá a notícia a Muley. O grande responsável é o desumanizado capital e suas grandes
corporações. O capital é desumanizado, nesse sentido, porque não se concentra em um único
ser humano, mas em toda uma máquina despótica invisível que age através de homens
engravatados que executam suas determinações.

O gesto de Muley de pegar um punhado de terra em suas mãos é repetido outras vezes
em As vinhas da ira, como pelo avô quando teima em não ir para a Califórnia e novamente
por esta personagem quando ela tem um derrame no meio da viagem, pouco antes de falecer.
Essa atitude de pegar parte da terra arenosa em uma das mãos demonstra, talvez, uma
simbologia para as pessoas nascidas ali nesse local encontrarem-se unidas à terra como se
houvesse um cordão umbilical oculto ligando-as, como se fossem uma coisa só, tamanho o
tempo que passaram vivendo ali, tal qual seus antepassados.
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O movimento de Muley acocorado no chão, parecido com o avô sentado em cima de


alguns degraus de uma escada de madeira, é um trejeito típico de quem está resignado em sua
posição de não aceitar o que virá, mas saber que não pode fazer muita coisa. Elias Canetti, no
capítulo Os aspectos do poder, do livro Massa e poder, explica um possível significado para o
acocorar-se do ser humano:

O acocorar-se expressa uma ausência de necessidades, um recolhimento do homem


rumo ao seu interior. Este se curva o mais possível e nada espera dos outros.
Renuncia a toda e qualquer atividade que pudesse ter seu prolongamento numa
outra, recíproca. Nada acontece que possa desencadear uma reação. [...] Mas
também a resignação com o que possa vir a acontecer é própria dessa maneira de
acocorar-se (CANETTI, 1995, p. 394).

Essa sujeição ao destino no gesto acocorado de Muley (e em uma acomodação


corporal semelhante como à do avô sentado) não quer dizer que ele irá assentir com o
acontecimento, mas, mesmo arranjando culpados alhures, ele se conforma que não pode
mudar as coisas como são, não pode impedir a máquina despótica, ainda que resista a ela. O
curvar-se ao seu próprio interior, como dito por Canetti, é, no caso de Muley e do avô, um
voltar-se para dentro de si, para suas origens ligadas à terra na qual nasceram, foram criados e
trabalharam nela. É interessante notar que a imagem do avô próximo da morte pegando um
volume de terra nas mãos é correlativo à definição dada por Canetti para o acocorar-se, pois o
avô está deitado e em um estado de delírio causado pelo derrame. Ele se encontra dormindo
em algo próximo a um coma, balbuciando palavras relativas a ninguém tomar suas terras. Os
estágios do sono e do coma são igualmente um voltar-se para dentro de si, um “recolhimento
do homem rumo ao seu interior”.
Muley, em seguida, em um novo flashback, revela que, mesmo resistindo, um rapaz
com um trator, contratado pela empresa agropecuária, passou por cima das casas daqueles que
não queriam ir embora, inclusive a residência do próprio Muley. Descobre-se que quem está
no trator é o filho de uma das pessoas que vivia na terra e foi empregado para fazer este tipo
de serviço sujo, pois precisa alimentar sua família. O operador do trator acaba por passar com
o veículo por cima da casa de Muley, ainda que este último tente ameaçar o rapaz com uma
arma, mas não faz nada ao ver que é inútil matar, pois outro virá em seu lugar para derrubar
mais casas.
Após o ocorrido, enquanto Muley e sua família observam impassíveis a casa destruída,
a câmera escrevente de Ford enquadra as suas sombras no chão, como se essas pessoas
fizessem parte da terra, fossem uma só coisa. O rapaz contratado para agir contra os seus
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vizinhos e amigos é uma demonstração das forças da máquina despótica, que coloca pessoas
de condições sociais correlatas umas contra as outras. O garoto que maneja o trator não ficará
rico. No entanto, ele precisa trabalhar e alimentar sua família. Se ele rejeitasse o trabalho,
outro aceitaria. Os agenciamentos do capital conseguem levar o ser humano ao extremo de
defender a sua individualidade contrariamente à coletividade. É curioso atentar para o detalhe
de que o sobrenome de Muley, Graves, é o sinônimo, na língua inglesa, de túmulos,
sepulturas, no plural. As sombras da família de Muley projetadas no solo são também uma
forma alegórica de sepultar, após a expulsão pelo banco e pela empresa agropecuária, suas
vidas conectadas àquela terra, vidas estas enterradas violentamente pela máquina despótica
com as casas colocadas no chão. Nada mais emblemático desse movimento do que um
homem manobrando um trator, uma máquina da brutalidade do capital, um tratado entre
homem e máquina unidos simbioticamente como os tempos modernos pós-Revolução
Industrial39 inauguraram.

Após esses instantes das analepses de Muley, ele ouve um som de carro e vê algumas
luzes pela janela. Muley logo conclui se tratarem dos guardas contratados pelo banco que
estão vindo. A função desses guardas é não deixar ninguém ficar perambulando pelas casas.
Muley, Tom e Casy saem e ficam escondidos no mato. Muley conta que os vigias atualmente
só iluminam o matagal com suas lanternas, mas não entram lá, isto depois de ele ter dado uma
pancada na cabeça de um destes guardas. Tom e Casy resolvem seguir seu caminho em
direção à casa do tio John.

39
Período histórico localizado entre 1760 e 1820 a 1840 em que as indústrias e fábricas manufatureiras em
novos processos tecnológicos tomaram conta da Inglaterra e depois se expandiram para outros países.
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Depois de toda a surpresa da família Joad pelo retorno de Tom e subsequentemente à


viagem, há alguns momentos que ilustram a trajetória da família e que devem se comentados.
Ao chegarem à Califórnia, o avô vem a falecer. A família o enterra em um local no meio da
estrada e coloca um bilhete informando quem é o idoso sepultado ali e como ele morreu, isso
para comunicar-se com alguma autoridade que venha a passar pelo lugar e a encontrar o
corpo.
Os Joad param para abastecer e calibrar o carro. Depois que eles se vão, dois frentistas
dialogam entre eles mesmos e um deles conclui dizendo que a família não é humana, pois
nenhum ser humano suportaria tanta miséria. Esse comentário dos dois homens, vindo
exatamente de dois trabalhadores assalariados que devem ser explorados em seus empregos,
soa classista, mas, concomitantemente, é uma espécie de ponderação que poderia ser dita por
algum espectador. É quase como se houvesse nessa cena uma quebra da quarta parede em
uma explicação dirigida ao público. Essa quebra da quarta parede – efeito dramático muito
utilizado no teatro épico do pioneiro dramaturgo, encenador e poeta alemão Bertolt Brecht –
se tornou muito comum no cinema contemporâneo (muitas vezes chamado de pós-moderno)
de meados dos anos 1980 em diante, sobretudo pela influência dos dois diretores mais
representativo dessa geração, Quentin Tarantino e Spike Lee. É um recurso usado também
nesse período com abundância por Martin Scorsese, um dos grandes nomes da Nova
Hollywood dos anos 1970, período de renovação do cinema norte-americano. No entanto,
Ford já empregava esse efeito moderno quando realizava filmes mudos e voltou a usá-lo em
filmes como Juiz Priest (1934)40.
Dentro da boleia da caminhonete, Connie, o marido de Rosa de Sharon, que está
grávida, começa a questionar junto à esposa se deveria ter seguido viagem com a família, se
não teria sido melhor ter feito um curso por correspondência de conserto de rádios e tentado
prosperar neste tipo de trabalho autônomo. Os Joad encontram, em seguida, abrigo em um
acampamento provisório onde as pessoas estendem barracas improvisadas para passar os dias.
A mãe faz um guisado e algumas crianças famintas se aproximam. Ela fica com pena e
manda-lhes achar uma lata para dar-lhes o resto da comida. Apesar da pouca comida para
alimentar muitas pessoas, o espírito de comunhão se faz presente, o que faz da mãe também
uma máquina de guerra à sua maneira de lutar contra as desigualdades socioeconômicas, isto
é, usando a única arma que ela conhece: a repartir o pouco que tem. A mãe é, assim, um
devir-mulher.

40
O mineiro Humberto Mauro também se valeu do mesmo efeito, em Canto da saudade (1952).
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No volume 4, de Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e Guattari afirmam


sobre o devir-mulher:

Ora, se todos os devires já são moleculares, inclusive o devir-mulher, é preciso dizer


também que todos os devires começam pelo devir-mulher. É a chave dos outros
devires. Que o homem de guerra se disfarce de mulher, que ele fuja disfarçado de
donzela, que ele se esconda como donzela, não é um incidente provisório
vergonhoso em sua carreira. Esconder-se, camuflar-se, é uma função guerreira; e a
linha de fuga atrai o inimigo, atravessa algo e faz fugir o que a atravessa, é no
infinito de uma linha de fuga que surge o guerreiro (DELEUZE; GUATTARI, 2012,
p. 74).

O devir-mulher passa ao longe das demarcações da sociedade patriarcal e


conservadora sobre os papéis de gênero e ao largo das delimitações entre os papéis dos corpos
e dos socius masculino e feminino. De acordo com Deleuze e Guattari (2012, p. 71), esse
devir-mulher não se trata de “imitar nem tomar a forma feminina, mas emitir partículas que
entram em aproximação de movimento e repouso, ou na zona de vizinhança de uma
microfeminilidade, isto é, produzir em nós mesmos uma mulher molecular, criar a mulher
molecular”. Como apontam os pesquisadores Losandro Antônio Tedeschi e Sirley Lizott
Tedeschi (2021, p. 15), no artigo Devir-mulher como potência para uma história outra,
publicado na revista Projeto história, “o devir-mulher, na história, não é imitação, não é
tomar a forma feminina, mas emitir partículas que, pelas linhas de fuga, ultrapassam as
fronteiras de uma microfeminilidade. É produzir em nós mesmos um devir-mulher”. Guattari
e a escritora e psicanalista brasileira Suely Rolnik, no livro Micropolítica: Cartografias do
desejo, chama o devir-mulher de devir feminino e, ao ligá-lo ao feminismo, alega:

O feminismo também tem isso: ele não coloca só o problema do reconhecimento dos
direitos da mulher em tal ou qual contexto profissional ou doméstico. Ele é portador
de um devir feminino que diz respeito não só a todos os homens e às crianças, mas,
no fundo, a todas às engrenagens da sociedade. Aí não se trata de uma problemática
simbólica – no sentido da teoria freudiana, que interpretava certos símbolos como
sendo fálicos e outros maternos – e sim de algo que está no próprio coração da
produção da sociedade e da produção material. Eu o qualifico como um devir
feminino por se tratar de uma economia do desejo que tende a colocar em questão
um certo tipo de finalidade da produção das relações sociais, um certo tipo de
demarcação, que faz com que se possa falar de um mundo dominado pela
subjetividade masculina, no qual as relações são justamente marcadas pela proibição
desse devir. Em outras palavras, não há simetria entre uma sociedade masculina,
masculinizada, e um devir feminino. (GUATARRI; ROLNIK, 1986, p. 73)

O devir-mulher ou devir feminino é que irá levar aos outros devires. Por isso, Deleuze
e Guattari declaram que o devir-mulher é “a chave dos outros devires”. Como apontam
Tedeschi e Tedeschi (2021, p. 15), no texto Devir-mulher como potência para uma história
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outra, “ser mulher na história implica em criar um corpo aberto, inacabado, impreciso, ou,
como dizem Deleuze e Guattari (2012), um corpo aberto a todos os outros devires que o
possam povoar: devir-animal, devir-vegetal, devir-máquina, devir-molécula”. O devir-mulher,
portanto, se desvincula das garras do poder e do mundo das ideias, cria linhas de fuga para
desterritorializações daquilo que nega a diferença e a multiplicidade, ou seja, entre outras
coisas, a máquina despótica e os agenciamentos. Não é por menos que a mãe Joad, em As
vinhas da ira, é um devir-mulher: além de trazer toda a carga dos afectos, perceptos e
sensações do texto steinbeckiano, o filme da personagem conceitual Ford carrega junto em
sua criação as várias personagens de matriarcas das escrituras fordianas em geral. Estas
sempre se demonstraram como arquétipos da força feminina e como o sustentáculo das
famílias que Ford retratou em suas obras abertas, além de devires-mulheres que afirmam a
diferença e a multiplicidade. Além disso, há também toda a carga interpretativa da atriz Jane
Darwell, que já havia dado vida a matriarcas no cinema, como, por exemplo no western Jesse
James (1939), de Henry King – filme no qual, inclusive, ela atuou como a mãe de uma
personagem de Henry Fonda.
No acampamento, um fazendeiro oferece empregos para colher frutas em uma fazenda
pagando alguns poucos centavos. Um homem questiona porque ele não coloca as condições
de trabalho e o valor do pagamento pelo serviço em um papel para que os trabalhadores
assinem e torne a negociação mais transparente e legal. O fazendeiro diz que o homem é um
agitador. O latifundiário se vira para um policial que o acompanha e diz que conhece o
homem. O policial diz tê-lo visto envolvido em uma briga. Provavelmente, uma mentira para
prender injustamente o homem. O policial sai do carro para capturar o homem, que sai
correndo41. O guarda atira e a bala acerta uma mulher no braço. Tom e Casy derrubam o
policial e batem em sua cabeça. Casy manda Tom se esconder, já que o policial teria visto seu
rosto e Tom está em condicional. Tom obedece ao amigo. Casy retira as balas do revólver e o
joga bem longe. Casy é preso. O ex-reverendo, que até então não via mais propósito em sua
vida e tinha dúvidas quanto à sua fé, passa a ser uma máquina de guerra com a consciência
social adquirida na estrada. Algum tempo depois, ele retornará como um dos líderes de uma
greve.
Após todo esse imbróglio, Connie, que antes houvera manifestado a vontade de não
seguir em viagem com a família, foge e abandona Rosa de Sharon, com o filho do casal no
ventre, à sua própria sorte. Por mais que se compreenda a atitude de Connie como a de

41
Diga-se de passagem, como observação afastada da cena, que, atualmente, há quem ainda acredite em
negociação justa, igualitária e isonômica entre patrões e empregados.
P á g i n a | 100

alguém que não mais suporta desterritorializar-se do Oklahoma sem rumo e em uma busca de
reterritorialização que parece impossível, não se pode mascará-la somente nisso. Afinal, trata-
se de um comportamento individualista e machista típico de homens tanto daquele período
quanto dos dias atuais que não assumem as suas responsabilidades como pais e deixam a
mulher sozinha para criar os filhos. A família Joad, assim, vai aos poucos se fragmentando,
perdendo seus laços, suas teias da costura que os interligava. Os elos da corrente familiar vão
se desfazendo.
A família Joad resolve sair do acampamento porque Tom ouve falar que pessoas de
fora irão atear fogo no local. Essas pessoas (seguidores do xerife) estão iradas com os
chamados “agitadores” ou “vermelhos”. Rememora-se que, em outro momento posterior, ao
ouvir a palavra “vermelhos”, Tom pergunta quem são estas tais pessoas e porque elas causam
tamanho medo nas autoridades, mas não é lhe dada uma explicação. Os “vermelhos” são, em
verdade, uma expressão pejorativa para denominar não só os comunistas filiados a algum
partido, entidade sindical ou movimento social, mas também qualquer pessoa com o mínimo
de consciência de classe e que lute por seus direitos. Após deixarem o acampamento, no meio
da estrada, os Joad são surpreendidos por um bando de pessoas que os afugentam dali,
dizendo que mal há trabalho para os moradores da Califórnia, quanto mais para gente do
Oklahoma, um tipo de xenofobia com quem não é da Califórnia, vista, inclusive, na maneira
como os cidadãos naturais do Oklahoma são chamados depreciativamente de “Okies”.
Durante a trajetória incerta da família, a avó, que antes já manifestava saudades do seu
marido, adoece e vem a falecer. Alguns policiais param os Joad na estrada para verificarem se
eles estão transportando frutas ou legumes no carro. Para fazer a vistoria, todos teriam que
sair do veículo. A mãe afirma que a avó está doente e que nenhum familiar está levando
algum alimento proibido. Ao ver que a mãe fala a verdade, um dos guardas deixa a família
seguir. Posteriormente, a mãe revela a Tom que a avó, na realidade, houvera falecido, mas
que não disse nada para não ter problemas. A idosa é enterrada, tal como seu marido, como
uma indigente, pois os Joad não possuem recursos financeiros para um sepultamento formal.
O fato de haver patrulheiros do governo na estrada vigiando se os passantes estão
levando frutas ou legumes é estranho. Não é explicado o porquê disso, mas, como as estradas
dos EUA possuem muitos pedágios (e algumas delas são privatizadas), subentende-se que
transportar algum tipo de alimento é passível de multa. Entretanto, percebe-se aí outras garras
da máquina despótica, pois o que haveria de errado em uma família de pessoas quase
indigentes e famintas conduzir alimentos para o seu próprio consumo? A máquina despótica
P á g i n a | 101

leva a população menos favorecida ao estado da fome e a proíbe de se alimentar em sua busca
por melhores condições de vida.
A situação dos Joad é tão paupérrima que, em um momento anterior, quando eles
param para colocar água no motor superaquecido da caminhonete, o pai vê uma lanchonete
próxima ao posto de gasolina e entra no local para tentar comprar um pão para dar de comer à
avó faminta. Como a idosa não tem dentes nem uma dentadura, o alimento ideal seria um pão
para amolecê-lo na água e ela conseguir se alimentar. A garçonete retruca que os pães são
para fazer sanduíches para os clientes e pergunta porque ele não compra um sanduíche. O pai
revela que só tem 10 centavos, pois o dinheiro está contado. A mulher argumenta que os pães
custam 15 centavos. O cozinheiro (e possivelmente dono do estabelecimento) intervém
mandando a funcionária dar o pão ao pai. A mulher entrega o pão, mas o pai insiste que ela
deve cortar um pedaço correspondente aos 10 centavos, pois não quer dar prejuízo à
lanchonete. O cozinheiro insiste para o pai levar o pão, dizendo ser aquele um alimento do dia
anterior. O pai acaba aceitando. Ao ver seus filhos pequenos, Ruthie e Winfield, observando
alguns doces próximos ao caixa, o pai pergunta se são doces de frutas. A garçonete responde
que dois desses doces custam um penny, ou seja, uma ninharia, algo de menor valor do que
um centavo, visto que esta é a menor fração monetária do dólar. O pai paga a mulher pelo pão
e pelos doces e se retira do local junto das crianças. Um caminhoneiro que se encontra
lanchando, diz à garçonete que os doces custam dois a um centavo ou cada um sai a um
penny. Ela responde a ele: “o que você tem com isso?”. Ao sair, o homem paga sua conta e
abre a porta para se retirar. A funcionária diz para ele não esquecer o seu troco, no que ele
repete de maneira provocativa a mesma fala dela: “o que você tem com isso?”.
Mesmo relutante em ser caridosa com os Joad, a garçonete, uma assalariada em
condição hierárquica socioeconomicamente um pouco melhor do que os familiares, logo
muda de posição ao ver que eles realmente estão necessitados e mente quanto ao preço dos
doces como quebra ao orgulho do pai, que queria antes partir o pão para chegar à fração de 10
centavos. Esse momento serve para ilustrar o quão sem recursos os Joad se encontram.
Quando pelo menos tinham suas terras, eles podiam viver do que plantavam, da carne dos
animais que criavam, tinham a sua própria subsistência. Ao se desterritorializarem, eles
perderam o pouco que tinham e passaram a seguir sem um rumo certo. E pensar que, na
opinião de alguns economistas, financistas e ministros de estado da economia neoliberais
contemporâneos, operadores dos agenciamentos coletivos do capital, parte significativa da
população em geral é pobre porque não poupa o seu salário.
P á g i n a | 102

No dia seguinte à saída do acampamento, os Joad, ao pararem em uma estrada para


trocarem o pneu da caminhonete, veem um homem passar de carro. Este para e oferece
emprego a eles em uma fazenda de plantação de pêssegos. Ao chegar à fazenda, a família
observa várias pessoas que estão na entrada impedindo a passagem. A polícia também está no
local e deixa os Joad entrarem. Ao seguirem, um homem grita que eles são “fura-greve”, o
que dá a entender que essas pessoas são trabalhadores da fazenda em greve, provavelmente
por baixos salários e péssimas condições de trabalho. A família passa pelas cercas, que são
fechadas. Crianças que se encontram do lado de fora da cerca são enquadradas pela escrita da
câmera de Ford. Por trás da cerca, as crianças mais parecem um bando de encarcerados em
uma prisão ou prisioneiros de um campo de concentração. E, com efeito, a placa com o nome
do local (Rancho Keene) mais parece a entrada do campo de concentração de Auschwitz, na
Polônia, onde o Terceiro Reich levava os judeus entre 1940 e 1945 para realizarem trabalhos
forçados e serem exterminados nas câmaras de gás. Logicamente, sabe-se que As vinhas da
ira é um filme lançado em 1940, portanto alguns anos antes da descoberta mundial sobre as
atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus e outros povos e grupos, mas essa
imagem, hoje vista com o distanciamento crítico-histórico, apresenta um aspecto dramático
muito forte. Registra-se aqui também que jamais quer se comparar o Holocausto com as
condições de trabalho semiescravas dos trabalhadores norte-americanos durante o período da
Grande Depressão, muito embora tudo se resuma aos agenciamentos da máquina despótica e
o que se cometeu em relação aos semiservos das plantações de uva e pêssego da Califórnia
seja uma espécie de carnificina lenta e atroz da população mais pobre.
Retornando à análise de As vinhas da ira, o enquadramento de Ford sobre as crianças
na cerca, antes um plano médio, se aproxima em um primeiro plano próximo aos rostos das
crianças. Ford trabalha, com isso, em duas frentes de estratégias dramáticas. A primeira é a
humanização dessas crianças de olhares profundos e pesarosos sem compreender
profundamente a realidade bruta e trágica pela qual passam seus pais. Mesmo não havendo
uma identificação nominal das personagens, ao mostrá-las de perto, Ford torna-as humanas ao
achegá-las ao olhar do espectador e ao descortinar sua câmera escrevente para os rostos
fragilizados destas crianças, tal como as fotografias, já citadas nesta tese, de Dorothea Lange
faziam. Há uma chamada para a tomada de consciência do público. Em vez de apenas fazer
uma panorâmica longínqua, Ford, de modo poeticamente realista, traz novamente à tona sua
marca de coletivização dos povos ao dar atenção estético-formal a personagens figurantes –
assim como no Neorrealismo italiano, posteriormente.
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A segunda estratégia dramática de Ford, muito comum em seu cinema, diz respeito a
uma recorrência aos recursos do melodrama. Massaud Moisés, no Dicionário de termos
literários, define assim o melodrama:

A história do vocábulo acompanha, paulatinamente, a evolução do objeto por ele


designado. A partir do século XVI, assinalava-se a tentativa de reproduzir as
características do teatro greco-latino, buscando o enlace entre a ação teatral e a
música [...] Caracteriza o novo melodrama o ser uma peça em prosa, em torno de
ingredientes fáceis, explorados ilimitadamente: o sentimentalismo [...], a comicidade
ocasional, assassínios, mistérios, o suspense, incêndios, cenas de medo, equívocos
que se desfazem como por milagre, segundo um ritmo ofegante, sem obediência à
verossimilhança, linguagem despojada, “popular”, de imediato entendimento.
Enfim, é uma forma de arte frívola, que faz o mais óbvio apelo a um público
destituído de senso crítico [...]. Implicando [...] as forças naturais, sem tensões
íntimas, numa unilateralidade que se espelha no desenlace, ora feliz, ora desastroso,
uma vez que o melodrama se caracteriza pela monopatia [...], identificadora das
personagens e dos conflitos entre elas (MOISÉS, 2004, p. 278, grifo do autor).

No que tange ao cinema, Flávia Cesarino Costa (2006, p. 28), no texto Primeiro
cinema, presente na antologia História do cinema mundial, organizada por Fernando
P á g i n a | 104

Mascarello, aponta que o melodrama possui “moralidade polarizada e defesa da ordem


social”. Na mesma linha de raciocínio, ainda nessa coletânea editorada por Mascarello,
Leandro Saraiva, no texto Montagem soviética, afirma:

O melodrama, que se desenvolveu na fase heróica da burguesia, contra o teatro


aristocrático, era também uma pedagogia para o olhar. Mas a dramatização moral do
mundo buscada pelo melodrama é tão mais eficiente quanto mais consiga ocultar
suas operações, transmitindo a idéia de uma ordem natural das coisas (SARAIVA,
2006, p. 115).

Conquanto a conceituação anterior de melodrama por parte de Moisés soe elitista ao


falar de suas características serem “ingredientes fáceis” e “uma forma de arte frívola” voltada
para “um público destituído de senso crítico”, o melodrama no cinema, como exposto por
Costa e Saraiva acima, se desenvolveu como algo popular com aspectos morais, não
moralizantes (estes últimos ligados ao sentido de tentar se passar ensinamentos ou dogmas). O
cinema de Ford, apesar de seu verniz popular e de linguagem atrativa a espectadores de
inúmeras camadas sociais, escolaridades ou formações educacionais, é complexo quando
analisado a fundo por trazer em seu conteúdo o trágico da existência humana. Ainda que,
muitas vezes, Ford invista em oposições maniqueístas de personagens como artifício
dramático de verossimilhança dentro de sua poética realista e melodramática, quando as
personagens tidas como vilãs são vistas com o devido afastamento necessário para análise,
percebe-se que, em verdade, elas são seres da multifacetada máquina despótica que age por
seus agenciamentos. Já as personagens caracterizadas como heroínas são marcadas pela
multiplicidade da existência humana. Em sua criação, Ford, por conseguinte, traz o seu
espectador para dentro da narrativa ficcional, ao mesmo tempo em que leva seu olhar para
adiante das bordas do quadro cinematográfico como forma de reflexão.
Se, como ressalta Moisés, o melodrama nasce como um “enlace entre a ação teatral e a
música” como forma de pontuar e manipular os sentimentos do público, Ford, apesar disso,
não usa nenhuma trilha sonora musical na cena da chegada dos Joad ao Rancho Keene para
trabalharem colhendo pêssegos. O som que mais se destaca nesse momento é o do motor
defeituoso da velha e carcomida caminhonete na qual eles estão. Se a caminhonete é uma
espécie de microcosmo da família Joad e do povo como coletivo da máquina de guerra, logo o
som do carro que domina a cena é o som do povo explorado no presente e também do povo
por vir.
Ao adentrarem a fazenda, os Joad são colocados em uma minúscula e imunda casa,
que terá de comportar seis pessoas. Cada membro da família irá receber 5 centavos por dia
P á g i n a | 105

trabalhado ou um total de 30 centavos. Como eles chegaram no meio do dia, acabam


recebendo menos dinheiro, quantia que se converte em alimentos comprados em uma
mercearia da fazenda. A mãe faz o jantar à noite. Tom reclama que, mesmo depois de comer,
ainda tem fome. A mãe diz que não foi possível comprar muita comida porque eles não
cumpriram um dia inteiro de trabalho e os itens da mercearia são muito caros. A máquina
despótica e os agenciamentos do capital concentram-se não só na exploração da mão-de-obra
a pagamentos extorsivos e baixos, mas também na forma de retirar o salário pelo trabalho ao
não dar outra opção ao trabalhador do que consumir produtos dentro do local de trabalho a
preços exorbitantes. O empregado fica sem a sua remuneração e sem recursos financeiros de
abandonar o local de trabalho. Isso cria, assim, uma relação semiescrava em que as algemas
são invisíveis, mas são fisicamente sentidas de outras formas. Sem contar com o fato de que,
em um eterno retorno da diferença, os Joad se reterritorializam em uma condição próxima à
de sua vida anterior, isto é, retornando a uma pequeníssima casa, só que com a distinção de
que este casebre atual não pertence a eles, é de propriedade do dono da fazenda, também dono
da vasta extensão de terra ao redor e além.

Após o jantar, Tom tenta ir à entrada do local para ver qual era a confusão da hora em
que eles chegaram, mas um policial, que trabalha patrulhando a fazenda, o impede. Tom pega
outro caminho. Ele encontra alguns homens acampados perto de um rio e vê que Casy está
com eles. Ele não foi preso quando da confusão no abrigo, mas apenas expulso da cidade na
qual estava. Casy informa a Tom que os homens fora da fazenda faziam mesmo uma greve,
pois os fazendeiros queriam lhes pagar 2,5 centavos de dólar por dia trabalhado, uma vez que
eles eram muitos homens. O ex-reverendo diz que assim que a polícia e os latifundiários
dessem um jeito de acabar com a greve, todos os trabalhadores da fazenda passariam a
receber exatamente 2,5 centavos, o que daria 1 tonelada de pêssegos colhidos e transportados
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por 1 dólar, ou seja, um enorme lucro para os fazendeiros em troca de um trabalho


semiescravo. Os outros homens tentam convencer Tom a entrar na greve junto de sua família,
pois poderiam conseguir com a luta receber melhores salários. Eles sabem que, após a
colheita, serão expulsos e considerados vadios. Esta seria a sua última oportunidade de
trabalho antes do fim da colheita. Tom argumenta que sua família precisa comer e Rosa de
Sharon, que está grávida, precisa de leite. Casy diz que está aprendendo e que por isto não é
mais pregador, pois um pregador precisa saber das coisas e ele não sabe. Aliás, nenhum ser
humano sabe o suficiente e está sempre em busca de mais respostas. Os homens ouvem a
polícia vindo e fogem. A polícia chega ao encalço deles. Um policial para Tom e Casy e mata
o último covardemente. Tom bate no policial, que bate nele de volta e deixa uma marca em
seu rosto. Tom assassina o policial, foge e volta para a casa. No dia seguinte, Tom não vai
trabalhar e a polícia procura por ele. Ele diz à mãe que irá embora, mas a mãe pede a sua
ajuda para manter a família unida, pois esta está se desintegrando. Em seguida, uma nova
família chega à fazenda e, assim como Casy houvera falado, é oferecido a ela 2,5 centavos
pelo dia trabalhado. Ao anoitecer, os Joad vão embora da fazenda, levando Tom escondido na
boleia da caminhonete.

Se minutos antes dessa sequência parecia que os Joad, ainda que explorados, teriam
um trabalho certo e um teto para viverem, apresenta-se ao redor dessa cena que não é possível
fingir que a opressão não existe, nem fugir da luta. A mãe de Tom, que antes dele sair,
procura o filho para pedir que ele não se meta em nenhuma confusão, buscando protegê-lo, vê
aos poucos que não é Tom quem caça os problemas, são eles que caem em sua cabeça, pois
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não é possível escapar do acontecimento, nem dos agenciamentos do capital. Tanto é assim
que os policiais presentes ali na fazenda, como ferramentas da máquina despótica e seus
sumos representantes, estão sempre presentes na narrativa, como entidades onipresentes e
onipotentes, criando um ar de vigilância constante. Muito anterior ao capital, a técnica, diga-
se de passagem, sempre se dotou dessa característica de vigilância semi-invisível.
Os Joad encontram, pouco depois, um abrigo em um acampamento do Ministério da
Agricultura. Não há policiais no acampamento. Eles só podem entrar com um mandato, mas
ficam rondando o espaço. A estadia no acampamento custa 1 dólar por semana, que pode ser
adquirido com alguns serviços, como coleta de lixo e limpeza. Em cada setor do
acampamento um líder entre os moradores é eleito. Cada um desses líderes faz as regras de
seu setor, que devem ser seguidas. Há uma unidade sanitária com banheiros e água corrente
para tomar banho e lavar roupas. O acampamento é bem próximo de uma utopia socialista,
isso, ironicamente, dentro do capitalista EUA. As crianças se encantam com os banheiros da
unidade sanitária, pois, nunca viram nada parecido. Estão acostumadas com cisternas, latrinas
em banheiros externos, ou até mesmo a usarem o mato para fazer as suas necessidades. Isso
enquanto crianças ricas nessa época já possuíam o que hoje é algo básico na maior parte das
casas: um banheiro interno, bem higienizado e com encanamento.
Tom consegue um trabalho e o fazendeiro que o emprega dá um aviso a ele e a seus
colegas de serviço para tomarem cuidado, pois no baile do próximo sábado foi anunciado que
várias pessoas enfurecidas com os “vermelhos” irão invadir o acampamento para incendiá-lo,
uma vez que é o que este grupo de pessoas vem fazendo com acampamentos ao redor do país.
É nesse momento que Tom pergunta quem são os tais “vermelhos” e porque se usa tanto esta
palavra.
Durante o baile, Tom pede para sua mãe lhe conceder uma dança. Ao som da citada –
no capítulo II.I desta tese – Red River Valley, Tom canta um trecho da canção para sua mãe.
Posteriormente, a rara e breve alegria se acaba quando alguns homens estranhos entram
dizendo terem sido convidados por outra pessoa. Coincidência ou não, o nome da música é
justamente, em tradução para o português, Vale do Rio Vermelho. “Vermelhos” são como os
trabalhadores que se revoltam, em outras palavras, as máquinas de guerra, são chamados
pelos fazendeiros, policiais, cidadãos conservadores e sem senso crítico, bem como pela
grande imprensa, em As vinhas da ira. O eu lírico de Red River Valley, como apontado no
capítulo II.I desta tese, inclusive com a citação de trechos da canção, trata-se de um soldado
que está voltando para a guerra, tal como Tom, que, em breve, retornará para a luta mais
fortalecido e mais consciente.
P á g i n a | 108

Esses momentos de dança e confraternização social de bailes e festas são muito


comuns em grande parte da filmografia de Ford, mesmo em suas escrituras mais trágicas. Elas
funcionam como algo de uma celebração comunitária dos povos em geral em torno de sua
cultura e dos costumes coletivos e como uma reafirmação das tradições sobre as quais a
sociedade estadunidense gira. Enquanto em outros filmes mais solenes quanto a essas
tradições42 são dedicados longos minutos aos bailes tradicionais, em As vinhas da ira, a festa
dura pouco (por volta de sete minutos de projeção), isto porque a ubíqua polícia e seus
capangas conseguem uma maneira de invadir o acampamento e terminar com o evento.

Os homens que adentram a festividade buscam arrumar alguma confusão para


poderem chamar a polícia para dentro do acampamento alegando desordem. É o que eles
acabam fazendo em um horário específico combinado com os policiais. Porém, os líderes dos
setores do acampamento, desconfiados, se adiantam e retiram os homens que começaram o
tumulto, isso antes da polícia vir. A polícia é, assim, impedida de entrar no acampamento,
pois, se não há tumulto, ela não pode entrar sem um mandato. Pouco depois, de madrugada,
Tom vê policias rondando dentro do acampamento (provavelmente, eles conseguiram um
mandato) e percebe que eles reconhecem a placa da caminhonete da família Joad. Por isso,
Tom tem de fugir. É a partir daí que se desenrola o representativo diálogo entre Tom e sua
mãe, no qual ele diz ao final palavras praticamente exatas às do texto de Steinbeck citado no
capítulo II.I desta tese (e repete-se a figura IX a título de ilustração):

Eu estarei nos cantos escuros. Estarei em todo lugar. Onde quer que olhe. Onde
houver uma luta para que os famintos possam comer, eu estarei lá. Onde houver um
policial surrando um sujeito, eu estarei lá. Estarei onde os homens gritam quando

42
Cita-se, por exemplo, Paixão dos fortes (1946), Sangue de heróis (1948), Legião invencível (1949), Rio Bravo
(1950), Depois do vendaval (1952), O sol brilha na imensidão (1953), Rastros de ódio, entre outros.
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estão enlouquecidos. Estarei onde as crianças riem quando estão com fome e sabem
que o jantar está pronto. E quando as pessoas estiverem comendo o que plantaram e
vivendo nas casas que construíram, eu estarei lá (AS VINHAS DA IRA, 1940).

A fala de Tom causa impacto em sua mãe. Ela também, assim como o filho, começa a
ver sementar em si uma consciência de classe, aflorando outros aspectos de uma máquina de
guerra, pois a mãe sempre foi, deveras, uma máquina de guerra, considerando-se que ela é o
ponto nuclear da família Joad, sua fortaleza. É interessante notar que a mãe se preocupa em
vários momentos com a perda da força e protagonismo de seu marido. Por mais patriarcal que
seja a sociedade per se, a família Joad é liderada por uma matriarca. Os patriarcas (o pai, o tio
John e, antes de falecer, o avô) de fato só resolvem assuntos de ordem mais prática, mas quem
toma as decisões é a mãe. Ela é o porto seguro, a força plástica dos familiares, a que suporta
as maiores dores, conseguindo se reerguer para sempre se reterritorializar em uma nova luta e
seguir em frente. Em suma, ela é, como já afirmado antes, um devir-mulher. O ímpeto de Tom
em enfrentar os agenciamentos da máquina despótica, mesmo compreendendo que esta é uma
batalha praticamente perdida, vem não só da influência de Casy ou da sua tomada de
consciência, mas maiormente da força plástica da mãe. A fala de Tom para sua mãe, com sua
ubiquidade tácita, é muito mais uma chamada ao povo por vir.
Na cena seguinte, os Joad encontram trabalho em uma colheita em um local próximo e
vão embora do acampamento. Na caminhonete, a mãe não mais lamenta a desintegração da
família, pois sabe que não é possível controlar isto diante da brutalidade da máquina
despótica. É, então, que ela diz ao pai: “Eles não podem acabar conosco. Não podem nos
vencer. Nós viveremos para sempre, pai, porque nós somos o povo”. Por mais que essa cena
tenha sido acrescentada posteriormente pelo estúdio sem a autorização de Ford e sua principal
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interpretação possa passar por uma esperança pueril em dias melhores, sua subjacência diz
muito mais respeito ao povo por vir em devires revolucionários, pois, como proclamam Marx
e Engels (2001, p. 84), no Manifesto do Partido Comunista, “os proletários nada têm a perder,
exceto os seus grilhões. Têm um mundo a ganhar”.
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CAPÍTULO III: O HOMEM É O ABISMO DO HOMEM - A VIOLÊNCIA EXISTENCIAL


(OU O EXISTENCIALISMO VIOLENTADOR) DE CORMAC MCCARTHY SE ESPELHA
NO CINEMA DOS IRMÃOS COEN EM ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ

Aquela não é terra para velhos. Gente


jovem, de braços dados, pássaros nas ramas
– gerações de mortais – cantando alegremente [...].
[...]
Ao som da música sensual, o mundo esquece
as obras do intelecto que nunca envelhece.
William Butler Yeats, 1928

E então eu acordei.
Cormac McCarthy, 2006, p. 252

Você não pode impedir o que virá. As coisas não são como você quer. É muita presunção.
Onde os fracos não têm vez, 2007

III.I: A VIOLÊNCIA E O DESEJO EM UM PRIMEIRO OLHAR SOBRE ONDE OS FRACOS NÃO TÊM
VEZ

Onde os fracos não têm vez conta a história do caçador Llewelyn Moss, que, no início
dos anos 198043, esbarra com um cenário violento de uma negociação criminosa de drogas
malsucedida no deserto do Texas. Ao ver que todos os envolvidos estão mortos, Moss resolve
ficar com uma mala, contendo dois milhões de dólares, encontrada no local. Sai em seu
encalço o psicopata Anton Chigurh e entre os dois se interpõe o xerife Ed Tom Bell, homem
da lei melancólico, amargurado, descrente, niilista e pessimista quanto ao futuro do ser
humano, que abnega a chegada do que a sociedade capitalista moderna considera como
progresso.

43
Período nunca mencionado, mas que aparece apenas como detalhe em dois momentos distintos da narrativa. O
primeiro se dá quando Anton Chigurh literalmente joga com a vida de um homem ao decidir no cara ou coroa se
deve mata-lo ou não. Ao ver que o homem venceu no jogo da moeda, Anton a entrega a ele dizendo ser esta a
sua moeda da sorte e que ela é de 1958 e teria viajado 22 anos até chegar ali, ou seja, depreende-se que a
narrativa se passa em 1980. O segundo momento se dá no enterro da sogra de Llewelyn Moss, que morre de
câncer. Na lápide, consta a inscrição “Agnes Cracik, 1922-1980, Beloved mother”.
P á g i n a | 112

O filme se inicia de forma peculiarmente nietzsche-deleuzeguattariana, ou seja, sem


um início construído de forma transcendental. Ele lança seu espectador no meio do mundo e
da violência inerente a este. Isso se dá através de imagens que recorrem ao horror da
existência humana. Não são abertas concessões em prol de uma falsa alegoria platônica de
mundo embelezado plasticamente.
Isso porque Onde os fracos não têm vez evoca um estranhamento que foge da
concepção do “mundo das ideias” ou do bem de Platão, ideais estes que primam pela
recognição e são a base do modelo judaico-cristão de vida. Tanto é assim que Nietzsche
(2012, p. 8), no prefácio de Além do bem e do mal: Prelúdio de uma filosofia do futuro, indica
que o “cristianismo é platonismo para o povo”.
Recorda-se que, como colocado no capítulo I desta tese, Shöpke (2012, p. 33) expõe
que a “recognição está no centro da filosofia platônica. É preciso lembrar que conhecer, para
Platão, é ‘relembrar’, é ‘reconhecer’”. O filme em si, ao contrário, não vai na direção do
“reconhecimento” ou da “identificação”, pois ele é um mergulho na paradoxal vida humana e
nos perigos do mundo, pois, assim como assegura a personagem Riobaldo, em Grande sertão:
Veredas, “viver é muito perigoso” (ROSA, 1972, p. 16).
Como afirma Nietzsche (2012, p. 8), no prefácio de Além do bem e do mal, “o mais
demorado e perigoso de todos os erros [...] fora um erro dogmático, isto é, a invenção
platônica do espírito puro e do bem em si”. Ainda segundo Nietzsche, em Sämtliche werke,
citado por Oswaldo Giacóia Júnior, no prefácio do livro de Mauro Araujo de Sousa, Alma em
Nietzsche: A concepção do espírito para o filósofo alemão,

não temos quaisquer categorias que autorizem separar ‘um mundo em si’ de um
mundo como aparência. Todas as nossas categorias da razão são de proveniência
sensualista, decalcadas do mundo empírico: ‘a alma’, o ‘Eu’ – a história deste
conceito mostra que também aqui a mais antiga separação (‘respirar’, ‘viver’)
(NIETZSCHE apud GIACÓIA JÚNIOR, 2013, p. 12-13, grifo do autor).

Sobre o que afirma Nietzsche, Giacóia Júnior (2013, p. 12-13, grifos do autor) aponta
que “ao escrutínio genealógico, essa acepção platônica representa apenas um sentido da
palavra espírito; mas, como todo dogmatismo, orientado pelo absoluto, pretende fazer-se
passar pelo único e verdadeiro sentido, um ideal, remetendo à objetividade e pureza de um
‘em si’”. O autor ainda discute outra questão sobre esse ponto de vista ligado ao bem e ao
mundo como algo belo de Platão:
P á g i n a | 113

Nietzsche acompanha em Platão, fio por fio, uma sólida rede de correspondências
entre a doutrina das ideias e a teoria do espírito. Com efeito, a suprema perfeição do
mundo das ideias é dada precisamente pela ideia do Bem, ideia a que corresponde o
ápice da ascese platônica do saber e da dialética. Do mesmo modo como o sol está
para o mundo sensível, como a fonte de vida e crescimento, que ilumina as coisas
existentes e permite ao olhar humano discerni-las como elas são, assim também está,
no mundo inteligível, a ideia do Bem: ela é a fonte do ser e do saber, é ela que torna
possível a cognoscibilidade e o conhecimento das ideias. E como o sol é superior à
luz que promana e ao olho que ilumina, assim também a ideia do Bem é superior ao
ser e ao saber (GIACÓIA JÚNIOR, 2013, p. 12-13).

Logo, por estar-se desgarrado nesta tese da visão platônica de mundo, mas sim
atrelado a um olhar nietzschiano da existência humana, foi dito acima que “não são abertas
concessões em prol de uma falsa alegoria platônica de mundo embelezado plasticamente”.
Na citada primeira sequência de Onde os fracos não têm vez, vê-se a personagem de
Anton Chigurh – assassino de aluguel contratado por um poderoso cartel de drogas, isto é, um
corpo sem órgãos da máquina despótica em nome do capital – ser presa, junta de seu
indefectível cilindro de compressão de ar, por um subdelegado de uma pequena cidade do
Texas. No desenrolar da cena de Onde os fracos não têm vez, há uma narração pronunciada
pelo protagonista da trama, o xerife Ed Tom Bell, relato este no qual os Irmãos Coen
misturam vários trechos do livro de Cormac McCarthy que adaptaram:

Fui xerife desse condado quando tinha 25 anos. Difícil de acreditar. Meu avô era um
homem da lei. Meu pai também. Éramos xerifes ao mesmo tempo. Ele em Plano e
eu aqui. Acho que ele tinha bastante orgulho disso. Eu tinha. Naquele tempo, alguns
dos xerifes nem mesmo carregavam uma arma. Muitos não acreditam. Jim
Scarborough nunca carregou uma. Gaston Boykins não carregaria uma. E no
Condado de Comanche. Nunca perdi uma chance de ouvir uma história dos antigos.
Não se pode evitar comparações com as histórias deles. Imagino como eles agiriam
nos dias de hoje. Mandei um garoto para a cadeira elétrica em Huntsville há um
tempo. Eu o prendi e fui testemunha. Ele matou uma garota de quatorze anos. Os
jornais disseram que foi passional, mas ele me garantiu que não. Me disse que
planejava matar alguém há muito tempo. Disse que iria para o inferno. Estaria lá em
quinze minutos. Não sei o que pensar sobre isso. Não sei mesmo. Se o soltassem,
faria novamente. Os crimes que vemos hoje são difíceis de compreender. Não é que
eu tenha medo disso. Sempre soube que tínhamos que estar dispostos a morrer para
trabalhar nesse emprego. Mas eu não estou disposto a me arriscar à toa, sair por aí e
encontrar uma coisa que não compreendo. O cara tem que pôr a alma em jogo. Tem
que dizer: “Tudo bem. Vou participar desse mundo” (ONDE OS FRACOS NÃO
TÊM VEZ, 2007).

Em um primeiro momento, são apresentadas imagens da paisagem árida e montanhosa


do Texas, categorizadoras do modo seco de sentir a vida dos habitantes do local e da dureza
do mundo, respectivamente. As imagens da geografia texana são signos de uma cartografia
que atua diretamente no modo de agir das pessoas viventes do Texas. Deleuze e Guattari
(1995, p. 13), na introdução do volume 1 de Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia,
P á g i n a | 114

entendem que “escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar,
mesmo que sejam regiões ainda por vir”. Para a personagem Ed Tom, o narrar é, mesmo que
de modo inconsciente, agrimensar, cartografar o que está por vir e aquilo que o assusta. Trata-
se da violência, ou de um mundo cada vez mais violento, cuja ação humana do vir a ser
converte-se em um horror o qual não se pode impedir. Não se inibe o acontecimento ou a
violência que se aproxima. Eles estão em eterno devir. Não existe fundamento: a violência
está posta e nada se pode fazer quanto a isso. Isto, aliás, encontra-se posto na tragédia desde
tempos remotos, como, por exemplo, na peça Édipo rei, escrita por Sófocles por volta de 427
a.C.
No momento em que o xerife, em Onde os fracos não têm vez, afirma em sua narração
que “os crimes que vemos hoje são difíceis de compreender”, entra em cena Anton. Por mais
difícil que seja depreender o devir da violência, ela se desterritorializa e reterritorializa em
outras máquinas despóticas. Tal como aponta Nietzsche, não há um fim para o qual se possa
correr em direção a uma salvação celestial e um recomeço teleológico dentro de um mundo de
paz. Coincidência ou não, Anton é um agenciamento maquínico do abismo humano no qual o
ser humano se encontra.

Em Onde os fracos não têm vez, Anton não representa metafisicamente o mal. Trata-se
de um agente de enunciação do paradoxo, do caos, da violência que se desterritorializa de um
lado e se reterritorializa de outro, da monstruosidade humana a qual o ideário da
representação se recusa a encarar. Essa monstruosidade se assoma tanto nos microfascismos,
aos quais todos estão sujeitos, quanto nos fascismos de ordem maior, negadores da vida.
Como afirma Nietzsche (2012, p. 90), no aforismo 146 da quarta parte, de Além do bem e do
mal: prelúdio de uma filosofia do futuro, “quem luta com monstros deve ter cuidado para não
se tornar um monstro. E se olhas demoradamente, o abismo olha para dentro de ti”. Anton
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assumiu seu monstro em prol de negar a vida. Como ele, há muitos no mundo. E é isso que
assusta Ed Tom, pois, afinal, ver e constatar o lado mais vil da existência humana (por si só já
vil), bem como testemunhar a escalada da violência e a precariedade institucional para
defrontá-la, é algo assustador, capaz de causar impotência.
Muitas vezes, no senso comum, as pessoas falam, a respeito de homens ou mulheres
que cometem atrocidades, que estes não são humanos. As religiões em geral fazem separações
entre o bem e o mal em esferas antagônicas, quando de fato essas forças convivem juntas.
Inclusive, no campo acadêmico, o vocabulário jurídico, cita, com demasiada frequência, o
conceito de “pessoa humana”. Todas essas são visões puristas, idealistas, metafísicas e
maniqueístas do humano. É como se o ser humano, sob esse ponto de vista, se constituísse em
uma figura tomada pela tríade platônica do verdadeiro, do bem e do belo. Essa leitura
platônica desembocou no judaísmo-cristão, uma herança civilizacional ainda presente nos dias
de hoje. Sobre o maniqueísmo e a oposição de ordem judaico-cristã criada a partir dos valores
do bem e do mal, Nietzsche sintetiza a questão, no capítulo Contribuição à história dos
sentimentos morais, do livro Humano, demasiado humano: Um livro para espíritos livres:

O conceito de bem e mal tem uma dupla pré-história: primeiro, na alma das tribos e
castas dominantes. Quem tem o poder de retribuir o bem com o bem, o mal com o
mal, e realmente o faz, ou seja, quem é grato e vingativo, é chamado de bom; quem
não tem poder e não pode retribuir é tido por mau. Sendo bom, o homem pertence
aos “bons”, a uma comunidade que tem sentimento comunal, pois os indivíduos se
acham entrelaçados mediante o sentido da retribuição. Sendo mau, o homem
pertence aos “maus”, a um bando de homens submissos e impotentes que não têm
sentimento comunitário. Os bons são uma casta; os maus, uma massa como o pó.
Durante algum tempo, bom e mau equivalem a nobre e baixo, senhor e escravo. Mas
o inimigo não é considerado mau: ele pode retribuir. Em Homero, tanto os troianos
como os gregos são bons. Não aquele que nos causa dano, mas aquele desprezível, é
tido por mau. Na comunidade dos bons o bem é herdado: é impossível que um mau
cresça em terreno tão bom. Apesar disso, se um dos bons faz algo que seja indigno
dos bons, recorre-se a expedientes; por exemplo, atribui-se a culpa a um deus: diz-se
que ele golpeou o bom com a cegueira e a loucura. – Depois, na alma dos oprimidos,
dos impotentes. Qualquer outro homem é considerado hostil, inescrupuloso,
explorador, cruel, astuto, seja ele nobre ou baixo. “Mau” é a palavra que caracteriza
o homem e mesmo todo ser vivo que se suponha existir, um deus, por exemplo;
humano, divino significam o mesmo que diabólico, mau. Os signos da bondade, da
solicitude, da compaixão são vistos medrosamente como perfídia, prelúdio de um
desfecho terrível, entorpecimento e embuste, como maldade refinada, em suma.
Com tal mentalidade no indivíduo, dificilmente pode surgir uma comunidade, no
máximo a sua forma mais rude: de modo que em toda a parte onde predomina essa
concepção de bem e mal o declínio dos indivíduos, de suas tribos e raças está
próximo. – Nossa moralidade atual cresceu no solo das tribos e castas dominantes
(NIETZSCHE, 2005, p. 48-49).

O ser humano, ao contrário, é um paradoxo, é bom e mau ao mesmo tempo. É capaz,


quando menos se espera, de ações fascistas, mas também de, antiteticamente, afirmar a vida.
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Não se tratam de antagonismos: são forças distintas que atuam juntas. Humano tornou-se
sinônimo de bom, isto quando deveria ser sinônimo de todas as contradições inerentes ao ser,
dentro de todas as diferenças singulares e multiplicidades que englobam cada um. Enfim, o
ser humano é uma integralidade de forças que formam tramas, raízes ou rizomas, conforme
conceito trabalhado por Deleuze e Guattari, no volume 1 de Mil platôs. A personagem
ficcional, então, é um reflexo do ser humano em suas incongruências.
Anton, portanto, escolheu aflorar seu fascismo, que é o seu ganha-pão, como
agenciamento da máquina despótica contratada por uma máquina despótica ainda mais forte:
o capital. Da mesma forma que ele mata em nome dos cartéis de drogas, poderia matar pago
pelos bancos, pelas grandes empresas, pelo Estado etc. Em suma, ele é a face travestida em
corpo humano dessas máquinas despóticas controladoras do mundo, apesar da personagem ter
regras próprias sobrepujantes ao dinheiro e ao poder. Ele executa a negação da vida por ela
mesma, sem fundamentos que o perpassem, assim como os acontecimentos e as forças da
natureza. Esses não podem ser impedidos e não possuem causas iniciais ou finais para sua
ação, pois esta ação nunca irá ter fim, uma vez que é rizomática. As causas são produzidas nas
relações de cortes e fluxos que fazem das singularidades o que elas são no socius.
Tais questões repercutidas no parágrafo anterior são ilustradas na segunda cena de
Onde os fracos não têm vez. Na delegacia, após a prisão de Anton, ele chega sorrateiramente
pelas costas do subdelegado e o enforca com as algemas. Sua expressão nesse momento,
como demonstra a escrita da câmera dos Coen ao se aproximar aos poucos de seu rosto, é
tomada pela frieza e pelo esforço físico de matar seu oponente. Anton não possui mais
consciência alguma: ele é uma máquina de matar, um vírus. Utiliza-se para assassinar
pessoas, por exemplo, mais à frente, de um cilindro de compressão de ar empregado para
matar bois, como se executasse uma tarefa simples, mas também sem demonstrar prazer
algum naquilo. Ele é uma força destrutiva que não para, deixando suas ruínas para trás sem
que, no entanto, deixe rastros para que se possa encontrá-lo. Quem passa por seu caminho,
com raras exceções, morre. A máquina despótica capitalista age dessa maneira: age pela
destruição e sempre deixa em sua trilha as destruições de sua passagem.
A vontade de potência da máquina despótica do capital sempre deixa os rastros de sua
destruição no planeta, mas Anton, como sumo-sacerdote do capital, mesmo causando
devastações por onde passa, quando se aponta que ele não deixa rastros é porque há certas
marcas na personagem que tornam quase impossível encontrá-lo. Anton é metódico, usa
silenciadores em suas armas, não tem suas impressões digitais registradas, e, por isto, o xerife
Ed Tom está sempre um passo atrás. Tanto é assim que, no livro de McCarthy, em parte da
P á g i n a | 117

narrativa não transposta para o filme, um homem inocente é condenado no lugar de Anton e,
mesmo Ed Tom sabendo disto, ele nada pode fazer, pois o verdadeiro assassino não foi
descoberto para se libertar o homem injustamente acusado. Já no filme, tudo isso se mostra
principalmente em uma das cenas finais, quando Anton, após matar a esposa de Llewelyn,
sofre um acidente de carro, fica com uma fratura exposta e, mesmo assim, consegue fugir sem
que a polícia o alcance ou tenha qualquer pista para onde ele possa ter ido.
O que leva essa força destrutiva de Anton a seguir em frente é Llewelyn Moss,
caçador de veados que se depara com um cenário de desavença entre bandidos ligados ao
tráfico de drogas em pleno deserto do Texas na fronteira com o México. Em meio a vários
corpos mortos, Llewelyn encontra uma mala com dois milhões de dólares e resolve ficar com
ela, independente do perigo que isto pudesse acarretar. Afinal, o perigo encontra-se no próprio
viver e na constante guerra que se trava com os acontecimentos da vida. Como afirma a
personagem Riobaldo, em Grande sertão: Veredas, “viver é muito perigoso” (ROSA, 1972,
p. 16). O ser humano vive em um mundo onde se encontra na “rua da guerra... O demônio na
rua, no meio do redemunho” (ROSA, 1972, p. 77, grifo do autor). Em busca de Anton e na
tentativa de salvar Llewelyn, entra o xerife Ed Tom Bell, que age a partir da experiência
própria e da dos seus antecessores, ou, por outra via, da tradição local. Ele enxerga os perigos
do viver e tem medo do que está por vir, da violência mundana e dos devires reservados pela
vida.
A citada abertura de Onde os fracos não têm vez apresenta uma narração reflexiva de
Ed Tom sobre como a violência, vinda nos momentos em que menos se espera, tem se
tornado cada vez mais uma incógnita. Segundo suas palavras, seu pai e seu avô foram xerifes
também, mas em épocas (talvez, infere-se, os anos 1920 e o final do século XIX,
respectivamente) em que não era necessário portar armas e em que os crimes se davam por
contendas locais e pequenos assaltos, sendo que, exponencial e quantitativamente, o número
de crimes era muito menor.
A propósito, o gangsterismo surgiu em meados dos anos 1920 após a instituição da Lei
Seca, que proibia o consumo e a comercialização de bebidas alcóolicas, e cresceu depois do
colapso causado pela crise de 1929. O crime explodiu nas grandes cidades americanas a partir
desses dois períodos históricos citados. A narração do xerife – retirada de vários excertos do
texto de McCarthy, que aparecem em capítulos de, em média, duas páginas, escritos em
itálico e em primeira pessoa pela personagem de Ed Tom, em tom meditabundo e pesaroso –,
de certa maneira, corresponde à realidade histórica da constituição civilizatória da América do
Norte, entre o final do século XIX e o início do XX.
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Obviamente que não se exclui o fato irrevogável da conquista dos vários territórios,
que hoje constituem os EUA, ter sido perpetrada – tanto pelas mãos dos colonizadores
ingleses quanto pelo espírito imperialista e expansionista dos colonos – em cima do genocídio
dos povos indígenas e da escravidão dos africanos, o que gerou, inclusive, inúmeras guerras,
entre elas, a Guerra de Secessão ou Guerra Civil.
Inversamente ao que se pensa, a história da violência nos redutos das comunidades
norte-americanas, sucedida entre o século XIX e a primeira metade do XX, foi difundida, de
modo glamourizado e mitificador44, através do boca-a-boca, da música folk45, da literatura
pulp e do cinema popular, que contribuíram para a criação de heróis e vilões e para a ascensão
do afamado gênero western. Essa questão é corroborada por A. C. Gomes de Mattos (2004, p.
15), em Publique-se a lenda: A história do western quando ele afirma, no prefácio do livro,
que os “heróis do Oeste real foram os humildes fazendeiros e os vaqueiros que conduziam as
boiadas e os ‘vilões’ não eram os pistoleiros, mas sim o vento, a chuva, o frio, a solidão, o
isolamento”. Ismail Xavier, no artigo John Ford e os heróis da transição no imaginário do
western, publicado na revista Novos estudos, corrobora esses pontos ditos por Mattos:

O western, como ficção literária e gênero do cinema, construiu um imaginário que


transfigura uma experiência histórica em termos de uma épica que trabalha a
conquista territorial como um eixo central da formação dos Estados Unidos, no
plano da ordem social e dos valores fundamentais que prepararam a nação no
sentido moderno. Essa formação, como foi o caso de outros países emergidos de
situações coloniais, envolveu processos migratórios os mais variados e a prolongada
guerra de extermínio contra as populações nativas que fez dessa expansão um
processo representado, grosso modo, do ponto de vista dos vencedores (XAVIER,
2014, p. 171-172, grifo do autor).

Adiante, Mattos cita uma entrevista do roteirista de westerns, Borden Chase, à revista
Film comment, em 1971, na qual ele conta que conversou com alguns habitantes ainda vivos
do Oeste americano. Ao perguntar a um idoso ex-delegado se ele alguma vez desafiou
qualquer pessoa a sacar sua arma, “o ancião respondeu: ‘Que diabo!, você acha que eu queria
ser morto?’” (MATTOS, 2004, p. 17), fala convergente ao que diz Ed Tom em certo momento
em Onde os velhos não têm vez46:

44
Ressalta-se que quando se fala da violência “difundida de modo glamourizado e mitificador”, não se faz um
julgamento de valor que considere essa mitificação como algo puramente nocivo (uma vez que a história termina
por misturar-se ao mito e é sempre contada pelo ponto de vista dos vencedores), pois, como aponta Nietzsche
(2013b, p. 224), em O nascimento da tragédia, “sem o mito, porém, toda cultura fica desprovida de sua força
natural, sadia e criadora; somente um horizonte constelado de mitos outorga a unidade de uma época inteira de
cultura”.
45
Ou música folclórica (folk pode ser traduzido como “povo”).
46
Relato transposto em parte para a narração da abertura de Onde os fracos não têm vez.
P á g i n a | 119

Nunca tive que matar ninguém e fico muito feliz com esse fato. Alguns dos xerifes
dos velhos tempos nem chegavam a levar armas de fogo. Um bocado de gente acha
difícil acreditar nisso mas é um fato. Jim Scarborough jamais carregou uma arma.
O Jim mais novo. Gaston Boykins não levava. Lá no norte em terra comanche
(McCARTHY, 2006, p. 56).

Ao se ouvir o que narra Ed Tom, na abertura de Onde os fracos não têm vez, assim
como outras reflexões desta personagem sobre seus antepassados, expostas no decorrer do
filme, é impossível não se pensar na relação estabelecida por Mattos com o testemunho do
velho delegado dito a Borden Chase. Por mais que a visão de Ed Tom sobre um passado que
não viveu se revele romantizada, de fato, tal olhar tem um substrato historial fundamentado,
pois, realmente, “os caras das antigas” (McCARTHY, 2006, p. 56), conforme expressão de
Ed Tom, não presenciaram a forma de violência dos dias de hoje, que, muitas das vezes, não
parece fazer sentido algum, estando sempre à espreita de todos.
Há uma quebra do encanto com esse passado quando se descobre que parentes de Ed
Tom sofreram com a violência: seu tio-avô Mac, morto por bandidos em 187947, e seu tio
Ellis, que vive entrevado em uma cadeira de rodas após ter ficado paraplégico por uma lesão
causada por ferimento a bala. Entretanto, as feridas de ambos vieram de uma violência local,
foram tencionadas por vinganças oriundas de contendas ou de caráter histórico48, roubo ou
qualquer outro motivo que parece não mais estar presente nos princípios ilógicos da violência
contemporânea, pelo menos não na visão de Ed Tom.
Não obstante, fala-se em vários momentos, principalmente em uma conversa de Ed
Tom com Ellis, em uma bruteza da terra na qual eles vivem, em uma espécie de herança
sangrenta – como se a terra fosse vermelha devido ao sangue derramado ali no passado –,
pensamento que parte, em essência, do racionalismo terriginoso e chão de Ed Tom. Essa
herança é obtida pelas gerações vindouras como em um processo de eterno retorno da
diferença, uma teleologia que se inicia, termina e retorna em travessias de devires da
brutalidade, da agressividade, do sangue alastrado e da morte como índice metonímico maior
disso tudo. Ao contrário do que acredita Ed Tom, a violência faz parte da condição humana,
repetindo-se, diferencial e incessantemente, na história. Aliás, diga-se de passagem, a
simbólica fala de Ellis é ilustrada pela câmera escrevente dos Coen ao redor da narrativa de
Onde os fracos não têm vez, através da montagem, com imagens sintagmáticas de rastros de

47
No filme a data é referida como 1909.
48
Ellis, por exemplo, menciona a Ed Tom que um dos homens que fazia parte do grupo que assassinou Mac teria
dito algo em uma língua indígena, sugerindo que eles poderiam ser povos originários buscando vingança face ao
homem branco e ao poder representado pela figura do xerife encarnada por Mac, que parece ter sido, também,
um Texas Ranger, milícia criada por Stephen F. Austin, em 1823.
P á g i n a | 120

sangue no território, como se as trilhas da violência ficassem marcadas de forma imanente


para se reterritorializarem simbolicamente nos eternos retornos de novas violências.
Nessa conversa com Ellis, Ed Tom diz, também, que sempre esperou Deus entrar em
sua vida, mas Ele nunca apareceu. Essa esperança na insinuação da presença de Deus é como
uma forma de crença em dias melhores, sem violência. No entanto, o Deus bíblico como
personagem ficcional criado pelo ser humano para confortá-lo nos momentos de dificuldade,
apenas versa sobre dias melhores caso se tenha uma vida plena e se se arrependa de seus
pecados antes da morte para viver uma nova vida em um imaginário “paraíso”, onde tudo
seria entremeado, à maneira da tríade platônica, pelo verdadeiro, o bem e o belo. Isso porque
o mundo humano, a partir do momento em que os primeiros viventes, Adão e Eva, no livro do
Gêneses, na Bíblia, teriam experimentado do fruto proibido, isto é, do pecado, e sido expulsos
do paraíso, para viverem uma vida mundana abdicando da sua condição imortal e de seres à
semelhança de Deus. Esta é apenas uma anedota cristã para transferir para o ser humano a
culpa pelas desigualdades e violências geradas pela máquina despótica do capital. Vê-se com
isso que a religião em si é também um agenciamento coletivo da máquina despótica que atua
junto ao capital. Deus não teria entrado na vida de Ed Tom não porque ele possui tamanha
consciência e teria se tornado, assim, um ateu, mas sim porque ele não consegue crer em um
mundo melhor pós-morte, sabendo que a violência cada vez mais alarmante é inexplicável
para si mesmo. O mais próximo de um paraíso seria o sonho com seu pai. Acordar e ver que
foi somente um sonho é o algo similar a um inferno. Deus não teria entrado na vida de Ed
Tom porque, talvez, ele prefira crer que um ser divino e dotado de tantos poderes não deixaria
a vida ser bruta como ela é.
Os Irmãos Coen, a partir do livro de Cormac McCarthy, criam essas personagens
ficcionais e as características que levam o seu espectador a violentar assertivamente seu
pensamento no que diz respeito a pensar sobre a própria vida para além de uma mera narrativa
fílmica de ação incessante. Ao tratar de uma violência cancerosa, o filme se constitui em uma
violência afirmativa. Aqui, quando se fala em “violentar o pensamento”, pensa-se junto a
Nietzsche, Deleuze e Guattari. Ou seja, pondera-se sobre outro tipo de violência algures que
sujeite o pensamento do ser humano. Os Coen, em Onde os fracos não têm vez, produzem
signos capazes de violentar o pensamento, considerando que esta violência, conforme Deleuze
e Guattari, é aquilo que produz o pensamento e o leva a pensar.
No filme Onde os fracos não têm vez, isso se traduz no eterno retorno da violência da
máquina despótica Anton que sempre retorna com mais e mais destruição. Mesmo Ed Tom
não se conformando com esse agenciamento retornante da violência do mundo com suas
P á g i n a | 121

diferenças, ele não pode impedir tal coisa. Por mais que os fascismos das máquinas despóticas
tentem impor formas únicas de ser e de estar no mundo, a diferença enquanto tal irá
prevalecer como transvaloração.
Portanto, dentro do universo ficcional de Onde os fracos não têm vez, não existe uma
salvação divina para esse mundo terreno, como pressupõe Ed Tom em um escapismo de
esperança cristã. Nem há, consoante, uma purgação dos “pecados” ou dos atos de Anton ou
mesmo um inferno onde ele irá após a sua morte. Afinal, não há nem mesmo um após ou um
antes: há somente o meio. Se existe um inferno, ele é o próprio viver. Por isso, tem de se
afirmar a vida para não se cair nas armadilhas do ressentimento e da busca de fundamentos.
Logo, para Nietzsche, a arte seria capaz de atingir a transvaloração para se suportar o
peso da existência e para se refletir sobre ela. Isso é confirmado pelo filósofo (2008, p. 397),
no capítulo A vontade de poder como arte, do livro A vontade de poder: “Nossa religião,
moral e filosofia são formas de décadence do homem. – O contramovimento: a arte. [...] O
filósofo-artista. Conceito mais elevado da arte. Acaso poderia o homem colocar-se assim tão
distante dos outros homens, para plasmá-los?”. Posteriormente, Nietzsche afirma:

A arte e nada como a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande sedutora
para a vida, o grande estimulante da vida... A arte como única força contrária
superior, em oposição a toda vontade de negação da vida; anticristã, antibudista e
antiniilista par excellence. A arte como a redenção de quem conhece, – daquele que
vê e quer ver o caráter temível e problemático da existência, do conhecedor [-]
trágico. A arte como a redenção do homem de ação, – daquele que não apenas vê o
caráter terrível e problemático da existência, mas antes o vive e quer vivê-lo, do
homem que é guerreiro trágico, do herói. A arte como a redenção do sofredor, –
como caminho para estados nos quais o sofrer é querido, transfigurado, divinizado;
nos quais o sofrer é uma forma do grande arrebatamento (NIETZSCHE, 2008, p.
427).

Através dessa potência criadora da arte como “possibilitadora” e “estimulante” da vida


– indo de encontro às palavras de Nietzsche – as personagens conceituais Joel e Ethan Coen,
recorrem, em Onde os fracos não têm vez, a um contramovimento de sua vontade de potência
que force a violência do pensamento. Em meio a suas sensações, a seus afectos e perceptos, os
Irmãos Coen plasmam em sua escritura personagens ficcionais que levam a interpretações dos
agenciamentos coletivos e das multiplicidades da vida humana. Como seres da potência e do
“desejo”, eles produzem. Para os Coen, produzir o desejo artístico porque se deseja se opõe “a
toda vontade de negação da vida”, segundo as palavras de Nietzsche. Como destacam Deleuze
e Guattari (2011, p. 43), esse “desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de
realidade”.
P á g i n a | 122

O desejo dos Coen em sua arte é, então, indo de encontro a Deleuze e Guattari (2011,
p. 43), “esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os
corpos, e que funcionam como unidades de produção”. Partindo de um nível molar de
organização de ideias (o roteiro, a decupagem), os Coen como personagens conceituais
vivenciam um campo artístico molecular (o cinema) para criar sensações via afectos e
perceptos. Por mais sistematizado que esse campo possa muitas vezes ser, ele permite a
prática molecular no nível de um corpo sem órgãos, de um devir vindo de uma “máquina
desejante” (o homem), que se permite experimentar em seu plano técnico da criação
escritural. Esta prática encontra-se nas inúmeras camadas de lacunas deixadas na obra de arte
que a tornam aberta, em constante travessia violentadora do pensamento de seu espectador.
Em análise do filme Onde os fracos não têm vez, infere-se que Llewelyn, no momento
em que desafia a máquina despótica desejante Anton, atua como uma máquina de guerra
esquizofrênica desafiadora do capital, se desterritorializando e traçando uma linha de fuga.
Anton é uma singularidade dos agenciamentos coletivos de uma produção do território vinda
do processo civilizacional, do capital. Ele se desterritorializa na produção de seu desejo.
Quando se diz que Llewelyn o desafia, pensa-se no fato do caçador, em forma de um
acontecimento, adentrar o descaminho desterritorializado de Anton, ao fazê-lo ter que tomar
rumos não planejados. O caçador se transforma na caça em uma espécie de jogo de gato e
rato. Llewelyn também se desterritorializa ao abandonar sua vida comum para responder ao
seu desejo de capital e ter de tornar a sua vida uma fuga. Porém, se antes Llewelyn aparentava
ser uma máquina de guerra, quando ele insiste em sua ganância, em seu desejo maquínico de
dinheiro e em seu desejo de suplantar seu oponente, acaba por se reterritorializar em uma
máquina despótica apropriada pelo capital. No capítulo As máquinas desejantes, de O anti-
Édipo, Deleuze e Guattari discutem a violência incutida nas máquinas despóticas no universo
do capital:

Quando a máquina territorial primitiva deixou de ser suficiente, a máquina


despótica instaurou uma espécie de sobrecodificação. Mas a máquina capitalista, à
medida que se estabelece sobre as ruínas mais ou menos longínquas de um Estado
despótico, encontra-se numa situação totalmente nova: a descodificação e
desterritorialização dos fluxos. Não é de fora que o capitalismo enfrenta essa
situação, pois ele vive dela, nela encontra tanto a sua condição como a sua matéria, e
a impõe com toda sua violência. É este o preço da sua produção e repressão
soberanas. Com efeito, ele nasce do encontro de dois tipos de fluxos: os fluxos
descodificados de produção sob a forma do capital-dinheiro e os fluxos
descodificados do trabalho sob a forma do “trabalhador livre”. Assim, ao contrário
das máquinas sociais precedentes, a máquina capitalista é incapaz de fornecer um
código que abranja o conjunto do campo social. No dinheiro, ela substituiu a própria
ideia de código por uma axiomática das quantidades abstratas que vai sempre mais
longe no movimento da desterritorialização do socius. O capitalismo tende a um
P á g i n a | 123

limiar de descodificação que desfaz o socius em proveito de um corpo sem órgãos e


que libera, sobre este corpo, os fluxos do desejo num campo desterritorializado
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 51-52).

O combate entre Anton e Llewelyn passa a ser entre máquinas desejantes de capital e
não se configura em polos opostos, e sim em polos que se assomam no mesmo espaço. A
disputa deixa de ser pelo dinheiro, passando a centrar-se no poder, na superioridade. Nessa
travessia, no meio das duas personagens despóticas, encontra-se o xerife Ed Tom Bell. Ele
pode ser visto, em um primeiro momento, como uma máquina de guerra sem forças para lutar
contra os ditames do capital e da violência impregnada nisso. Sua impotência – caracterizada
por suas reflexões, por seu olhar profundo e por seu andar pesaroso – encontra-se no fato de
Ed Tom não poder parar o vir a ser, o devir, a cada vez mais poderosa e esmagadora instância
capitalista com suas tentaculares garras fascistas de suas máquinas despóticas. Essa
impotência também esbarra na inépcia das instituições para enfrentar a violência. Como esta
violência é uma produção do próprio Estado, então uma produção da violência deste, Ed Tom,
em um olhar mais aprofundado, não é, rigorosamente, uma máquina de guerra, mas também
uma máquina despótica. O estado de estupefação em que se encontra Ed Tom, ao se dar conta
da derrocada do processo civilizatório, nos termos antropológicos em que este se propõe, faz
com que a personagem se reterritorialize.
Ao redor da narrativa, Ed Tom demonstra perceber que uma visão romântica do
passado não é possível, pois o Texas, bem como os EUA, foi construído em cima de tragédias
humanas, do sangue alheio, de massacres e genocídios contra os povos originários e contra os
escravizados e que, além disso, a camada menos favorecida financeiramente da população
sofreu os seus pesares também. O que efetivamente leva Ed Tom ao pessimismo e ao niilismo
é observar uma perversão gradual de certos valores morais e éticos, os quais ele acredita,
assim como seus pais, seus avós e seus demais antepassados acreditavam. Ele está preso ao
passado.
Porém, como afirma Ellis a Ed Tom, no filme – em que os questionamentos são em
parte mais diretos e secos, mas não menos profundos em relação ao texto –, “você não pode
impedir o que virá. As coisas não são como você quer. É muita presunção”. Ou seja, não há
como tolher a manifestação de futuras tragédias, pois a vida é incontrolável, cheia de
contradições, de incertezas e de acasos. Os destinos não podem ser traçados como a cultura
judaico-cristã quer fazer acreditar.
Do mesmo modo que é ingênuo crer na ideia de um progresso ou de uma evolução do
ser humano, é errôneo enxergar aquilo que está acontecendo ou que virá como um ocaso, uma
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eversão ou um declínio, do mesmo jeito que não há picos de aclives e de declives, uma vez
que a vida é cíclica, para não se dizer que é um rizoma, e não deve ser resumida a forças
maniqueístas, mas sim ser percebida como um paradoxo. Como afirma Nietzsche (2011, p.
14, grifo do autor), no aforismo 4 de O anticristo, “ao contrário do que hoje se crê, a
humanidade não representa uma evolução para algo melhor, de mais forte ou de mais elevado.
O ‘progresso’ é simplesmente uma ideia moderna, ou seja, uma ideia falsa”.
O próprio conceito de evolução pelo qual se pressupõe passar eternamente planeta não
se liga a uma ideia de progresso ou de esperança na vinda de um mundo melhor. Qualquer
estudo histórico aprofundado faz ver que a humanidade sempre foi tomada por opressões,
violência sistêmica – o que principalmente desde a primeira Revolução Industrial passou a ser
simbolizada no capital – e forças tentaculares e tirânicas das máquinas despóticas. Em
Questões de método, capítulo do livro O século, Badiou descreve o século XX, período de
inúmeras guerras, como um período trágico que teve suas reverberações horríficas em um
crescente desde o final do século XIX e que ainda ressoa no XXI. Badiou (2007, p. 11) vê o
século XX como “o lugar de acontecimentos tão apocalípticos, tão apavorantes, que a única
categoria com que seja apropriado pronunciar sua unidade é a de crime”.
Em uma visão judaico-cristã, muitas vezes espera-se a vinda um mundo melhor, sem
guerras, epidemias, opressões e violência, porém isto é possível e atingível apenas em uma
quimera. O mundo humano, com todos os seus horrores, aproxima-se mais do que afirma o eu
lírico do poeta pré-modernista Augusto dos Anjos (2015, p. 85), em Versos íntimos: “Vês!
Ninguém assistiu ao formidável / Enterro de tua última quimera. / Somente a Ingratidão – esta
pantera – / Foi tua companheira inseparável! / Acostuma-te à lama que te espera! / O Homem,
que, nesta terra miserável, / Mora, entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser
fera”.
Por maior nostalgia ou saudosismo pelo passado que se possa ter, tal como Ed Tom se
apresenta, é preciso racionalizar e apreender, desencantada e antirromanticamente, que cada
ser humano é um ser humano de seu tempo. Contudo, a personagem, dentro de suas
antinomias internas, parece demonstrar esse entendimento ao afirmar, em certa passagem do
livro: “Não sou o homem de antigamente que dizem que eu sou. Gostaria de ser. Sou um
homem dos dias de hoje” (McCARTHY, 2006, p. 228).
Os Coen ilustram isso com a sequência final de Onde os fracos não têm vez, embebida
em mistério. Anton consegue cumprir seu papel de assassinar Llewelyn e sua esposa, Carla
Jean. Ele sai de carro da casa de Carla Jean e sofre um acidente (o acontecimento, o devir),
ficando com uma fratura exposta. Ajudado por dois meninos, Anton improvisa uma faixa para
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seu braço com a camisa de um deles e foge sem deixar rastros, tal como a força sociocultural,
produto de uma sociedade perversa, que ele é. Ed Tom, após uma conversa com seu tio Ellis –
que lhe diz: “você não pode impedir o que virá. As coisas não são como você quer. É muita
presunção” –, resolve se aposentar e, na cena final, se lembra de um sonho que teria tido com
seu pai na noite anterior. A narração sobre o sonho foi transposta, quase palavra por palavra,
do livro de McCarthy para o filme como diálogo:

Estava frio e havia neve no chão e ele passou por mim a cavalo e continuou em
frente. Não chegou a dizer nada. Apenas seguiu em frente e tinha um cobertor em
volta do corpo e sua cabeça estava baixa e quando ele passou por mim eu vi que ele
estava levando fogo dentro de um chifre do jeito como as pessoas costumavam fazer
e eu podia ver o chifre pela luz de dentro dele. Tinha mais ou menos a cor da lua. E
no sonho eu sabia que ele estava indo na frente e que ele ia fazer uma fogueira em
algum lugar no meio de toda aquela escuridão e de todo aquele frio e eu sabia que
quando chegasse lá ele estaria lá. E então eu acordei (McCARTHY, 2006, p. 252).

No sonho, assim como durante todo o filme, Ed Tom constrói através deste devaneio
um passado idealizado e nostálgico que nunca existiu. O passado, como exposto na conversa
com seu tio citada antes, era também violento. As máquinas desejantes também desejavam a
violência e a punham em prática. Tanto é assim que o pai de Ed Tom leva fogo dentro de um
chifre e busca fazer uma fogueira, podendo o elemento do fogo ser visto como o signo da
civilização como expressão da barbárie.

O fogo muitas vezes remete ao titã Prometeu. Por amor à humanidade, ele roubou o
fogo do Monte Olimpo para entregá-lo aos homens e foi condenado por Zeus a viver
acorrentando a uma rocha enquanto uma águia comia seu fígado, que, no dia seguinte, crescia
novamente. Com isso, Prometeu teria levado a humanidade à barbárie civilizatória, à técnica.
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O fato do pai de Ed Tom carregar o fogo consigo no sonho pode ser um signo de um pacto
prometeico de um período de entrância em mais barbáries, em uma maior concentração de
capital, em mais violências cancerosas do processo dos agenciamentos coletivos da
civilização.
O sociólogo português Hermínio Martins (2012, p. 35-36), no capítulo Tecnologia,
modernidade e política, do livro Experimentum humanum: Civilização tecnológica e
condição humana, afirma que “a tradição prometéica liga o domínio técnico da natureza a fins
humanos e sobretudo ao bem humano, à emancipação da espécie inteira e, em particular, das
‘classes mais numerosas e pobres’”. Na mesma linha de Martins, a antropóloga, ensaísta e
pesquisadora argentina Paula Sibilia (2002, p. 13), na introdução O corpo obsoleto e as
tiranias do upgrade, do livro O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias
digitais, indica que a tradição prometeica “pensa a tecnologia como a possibilidade de
estender e potencializar gradativamente as capacidades do corpo (sem aspirar ao infinito,
guardando certo respeito pelo que é humanamente possível e pelo que ainda pertence ao
território divino)”. O conceito de Sibilia, aliás, é algo bem próximo da ideia de corpo sem
órgãos. O prometeico seria aquele que crê na neutralidade do capital e da técnica e nas
capacidades de tanto um quanto outro tornarem o ser humano livre. O prometeico deseja mais
capital, pois a técnica tem desejo de técnica como marca da era de capitalismo cada vez mais
destrutivo do século XX. Tem-se consciência que o capital se apropriou da técnica, pois esta
última, vista sobretudo como exploração desenfreada dos meios naturais, é muita mais antiga
do que o sistema capitalista. A técnica nasce com o ser humano. O sistema capitalista tem
suas origens no surgimento da burguesia no período da Alta Idade Média (entre os séculos V
e XV) e do Mercantilismo dos séculos XVI a XVIII. Tudo isso chegou ao seu auge com as
revoluções burguesas – que, com ideais iluministas, pregavam a liberdade e o livre mercado
para a derrubada do Absolutismo –, com destaque para as Revoluções Inglesa (1640-1688) e
Francesa (1789-1799), que derrubaram as monarquias absolutistas, mas trouxeram para as
próximas gerações outro tipo de absolutismo ou tirania autocrática da máquina despótica
capitalista com seus agenciamentos coletivos e sua vontade de poder.
Retornando a Onde os fracos não têm vez, Llewelyn responde ao seu desejo e à sua
vontade de poder. Tal como Prometeu, rouba algo de Anton, um “deus” da violência
pestilenta. Todavia, se Llewelyn se converte em uma máquina despótica desejante, há uma
máquina despótica ainda mais forte, violenta e explosiva, capaz de, como agenciamento
coletivo, destruir tudo o que desvia sua rota em nome do capital e de seu desejo.
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O filme se encerra, assim, com a câmera bastante próxima do rosto de Ed Tom, de seu
olhar melancólico e profundo ao proferir “E então eu acordei”. Seu olhar, aliás, é, em uma
intepretação intermidiática, como o que é descrito pelo eu lírico do cantor e compositor Zé
Ramalho, na canção Avôhai: “Pares de olhos tão profundos / Que amargam as pessoas que
fitar” (RAMALHO, 1978). É como se Ed Tom, em um primeiro momento, ainda absorvido e
sobrecarregado de metafísica, fundamento e purismo, demonstrasse não haver compreendido
o recado do sonho e dissesse ter percebido, ao acordar, que não havia retornado ao passado ou
a esse passado ideal. No entanto, ao dizer “eu acordei” com um olhar extremamente
desolador, Ed Tom desperta não só de seu sonho de um mundo ideal e utópico, mas também
desperta, em uma visão sintagmática, para além da enunciação, do ficcional, direto à realidade
da violência do capital. Tanto é assim que seu olhar evoca as bordas da imagem, o próprio
olhar do espectador.
O segundo plano da imagem do rosto de Ed Tom é composto por uma luz estourada do
sol vinda da janela e uma árvore retorcida na paisagem ao fundo, causando um duplo efeito
quando analisada. Em um primeiro momento, trata-se de uma espécie de adequação imagética
e lírica ao celestial, etéreo e transcendental sonho da personagem. Todavia, infere-se essa
iluminação nas costas de Ed Tom como uma luz lançada na escuridão de seus pensamentos
rizomáticos, simbolizados pela árvore da paisagem, que funciona mais como uma alegoria do
que meramente como um elemento cenográfico. Os Coen, tal como poetas violentadores do
pensamento, encerram dessa forma sua narrativa, isto é, no entremeio de um devaneio de Ed
Tom, sem colocar um enganador ponto final autoexplicativo.
A necessidade premente de Ed Tom narrar, textualmente no livro de McCarthy e
verbalmente na imagem-tempo dos Coen (ambas as instâncias formas de oralidade), soa como
uma espécie de tentativa de cura para a agonia e a angústia, suscitadas rizomaticamente por
ter de conviver com seus demônios internos e com suas lembranças, que o atormentam. É
como se o procedimento de externar em palavras e fabulações as suas memórias ajudasse em
sua diligência de compreender o incompreensível mundo. O narrar da personagem dá-se no
devir, no entrechoque com a vida e com suas elucubrações mentais. Sua fala sobre o mundo,
ao mesmo tempo proverbial, dura, redundante e verborrágica, alude ao relato quanto à
experiência referenciada por Benjamin (2012, p. 123), em Experiência e pobreza: “sabia-se
também exatamente o que era a experiência: ela sempre fora comunicada pelos mais velhos
aos mais jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma
prolixa, com a sua loquacidade, em histórias”.
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O ato de narrar (via reflexões ou diálogos) a sua insipiência concernente aos mistérios
da vida e aos caminhos e descaminhos da violência, misturada à revisita de suas memórias,
funciona para Ed Tom, também, como um balbucio reminiscente de quem busca passar sua
reflexão desalentada para as gerações seguintes, conformando-se com o que virá, como
descreve Benjamin, em O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov:

A memória é a faculdade épica por excelência. Somente uma memória abrangente


permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se,
por outro, com o desaparecimento dessas coisas, com a violência da morte. [...] A
rememoração funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de
geração em geração. [...] Como disse Pascal, “ninguém morre tão pobre que não
deixe alguma coisa atrás de si”. Em todo o caso, ele deixa recordações, embora nem
sempre elas encontrem um herdeiro. O romancista recebe essa herança, e quase
sempre com uma profunda melancolia (BENJAMIN, p. 227-229).

Os citados olhos profundos de Ed Tom são como o abismo humano da existência


exposto por Nietzsche, em Assim falava Zaratustra e em Além do bem e do mal, abismo este
símbolo dos perigos e incertezas da vida, mas, ao mesmo tempo, metáfora para o lado
monstruoso do homem, que tem dificuldade de observar a si mesmo. No capítulo Da visão e
do enigma, de Assim falava Zaratustra, o filósofo (2013a, p. 224-225) alemão afirma que “a
coragem mata também a vertigem à beira dos abismos. E haverá lugar, onde o ser humano
não está à beira de abismos? Mesmo olhar, não é ver abismos?”. Entrementes, no aforismo
146 da quarta parte de Além do bem e do mal, Nietzsche (2012, p. 90) afirma categoricamente
que “quem luta com monstros deve ter cuidado para não se tornar um monstro. E se olhas
demoradamente, o abismo olha para dentro de ti”. Não obstante, os olhos de Ed Tom são
também enraizados, como a multiplicidade e o paradoxo do rizoma de Deleuze e Guattari.
O abismo de Ed Tom consiste nas lembranças da guerra, que o perseguem diariamente
como fantasmas. Enquanto no filme tais lembranças ficam subentendidas, pelo fato da
personagem ter idade suficiente para ter lutado na Segunda Guerra Mundial, no livro elas são
reveladas em sua conversa com Ellis. Ed Tom, durante um ataque dos alemães, ficou
escondido junto a seu pelotão ferido e, ao cair de uma noite, fugiu em disparada para poupar
sua vida. Ironicamente, ele foi condecorado com uma medalha algum tempo depois. Ed Tom
se culpa por seu ato de tentativa de sobrevivência e vê-se como um covarde, quando deveria
pensar que, como afirma a personagem do Soldado Zab no filme Agonia e glória (1980), de
Samuel Fuller, “sobreviver é a única glória na guerra”. Se na imagem-tempo dos Irmãos Coen
esse segredo não é revelado, Ed Tom é ilustrado, por consequência, através de uma mise en
scène que o estampa como um homem covarde e medroso.
P á g i n a | 129

Se, por um lado, esse atributo o torna verossímil, uma vez que todo ser humano possui
seus medos e não é completamente destemido, por outro prisma se demonstra que, em
verdade, Ed Tom procura não se defrontar com o perigo. Ele sempre está à espreita de seu
subdelegado quando os dois vão dar batidas em lugares onde o perigoso Anton Chigurh
esteve ou coloca sua arma em punho sem muita segurança, com uma expressão facial e uma
postura corporal que parecem dizer que, internamente, ele está torcendo para que não se
encontre cara a cara com o bandido.
Ed Tom não está preparado para a violência do mundo contemporâneo. E, aliás, quem
está disposto a desafiar a morte, a enfrentar a violência de frente, a confrontar os perigos
insondáveis da vida? A resposta para essa pergunta seria: apenas as personagens truculentas
de filmes de ação inverossímeis ou os super-heróis e as super-heroínas, sempre construídos
(as) nas ficções em geral como homens e mulheres com aspectos humanos, mas revestidos
(as) de couraças de coragem infinita.
Taciturno, pensativo e melancólico, revelando palavrório apenas no seu narrar
meditativo ou dialógico, Ed Tom é um ser remanescente do horror da guerra, à maneira
retratada por Benjamin, em Experiência e pobreza, a respeito dos combatentes que retornaram
da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) no final de 1918, ponderação esta que pode ser
levada para se interpretar igualmente os efeitos de outras guerras sobre o ser humano:

Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo


de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros
de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham
experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho.
Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a
experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela
inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes.
Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se
abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em
cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o
frágil e minúsculo corpo humano (BENJAMIN, 2012, p. 124).

Silencioso e sem uma experiência transmissível acerca da violência, uma vez que
padeceu o desencanto e foi sobrelevado ao ápice da tragicidade humana, Ed Tom é uma
espécie de homem-memento. Ele rememora intentando, sem sucesso, esquecer, recobrar e/ou
cicatrizar suas feridas, o que se dá por intermédio do narrar suas elucubrações atarantadas e
desarrazoadas. Ele abjura a vinda de um futuro incerto e frustra-se por ter de seguir vivendo
em um presente violento, onde a guerra deixou de ser restrita aos campos de batalha e a
tragédia campal corporificou-se no dia a dia, tornando-se objeto comum das comunidades
humanas como um todo.
P á g i n a | 130

Enquanto os sonhos de Ed Tom com seu pai remetem-lhe ao saudosismo por um


passado inexistente, irreal e romantizado, a fatalidade de acordar para a realidade diária o leva
a encarar, abalroado, as adversidades trágicas da vida. Apesar disso, é preciso, como seu pai
no sonho narrado, seguir em frente, movimentar-se junto ao devir e, independente de todos os
percalços, “fazer uma fogueira em algum lugar no meio de toda [...] escuridão”
(McCARTHY, 2006, p. 252) para se “perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN,
2009, p. 62) abismal da existência humana e os rumos tomados pela sociedade
contemporânea, que correspondem à repetição da diferença e à diferença da repetição que Ed
Tom tem dificuldades de absorver e suportar.

III.II: OS IRMÃOS COEN, OS DESCONSTRUTORES DOS GÊNEROS CINEMATOGRÁFICOS, E

COMO ISTO SE DÁ EM ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ A PARTIR DA ANÁLISE DE ALGUMAS

CENAS

A relação tácita e intrínseca entre escrita, imagem-tempo e mise en scène é um


leitmotiv explorado pelos Irmãos Coen desde o início de sua carreira cinematográfica
conjunta, principalmente a partir de narradores-personagens (tanto protagonistas quanto
coadjuvantes) oniscientes e cônscios, que surgem no início da história ficcional (e depois
desaparecem como em um passe de mágica), apresentam-na e introduzem uma reflexão
existencial-filosófica sobre o vazio do ser humano. Isso se dá em produções como Gosto de
sangue (1984), Arizona nunca mais (1987), Na roda da fortuna (1994), O grande Lebowski
(1998) e Bravura indômita (2010), este último, tal como Onde os fracos não têm vez, baseado
em um romance, mas escrito por Charles Portis.
Há também o narrador-personagem, cuja identidade pertence ao protagonista, de O
homem que não estava lá (2001), que permanece durante toda a narrativa fílmica em um
procedimento diegético que flerta e tangencia com muitos filmes do segmento noir (vindo por
sua vez da literatura policial pulp49), que é homenageado e desconstruído pelos Coen nessa
produção.
Em contrapartida a esses estilos de narrador, há a reflexão sobre o processo de criação
de histórias e de imagens retratada em Barton Fink, delírios de Hollywood (1991), cujo fio
narrativo se desenvolve através de um tour de force seguido pela personagem principal, um

49
Pulp (polpa em inglês) se refere ao principal material desses livros: a polpa da celulose, que possuía baixa
qualidade de impressão e era financeiramente barata, custando alguns meros centavos.
P á g i n a | 131

jovem dramaturgo contratado para trabalhar como roteirista em Hollywood e que se depara
com uma crise criativa e existencial.
Por fim, cita-se também as narrativas em moldura, ou mise en abyme50, inseridas no
desenrolar da trama de Um homem sério (2009) e as cenas de abertura deste e de O amor
custa caro (2003), ambas de caráter fabular. Essa fabulação também se encontra presente,
mas de modo indireto e lacunar (via reflexões de personagens), nas tramas do próprio Onde os
fracos não têm vez, além de Fargo: Uma comédia de erros (1996), Queime depois de ler
(2008), Ave, César! (2016), A balada de Buster Scruggs (2018) e no recente A tragédia de
Macbeth – filme dirigido somente por Joel Coen e inspirado na peça Macbeth, de 1623,
escrita por William Shakespeare.
A dita homenagem e desconstrução de gêneros cinematográficos, citada anteriormente
ao se falar de O homem que não estava lá, localiza-se no cerne da imagem-tempo praticada
pelos Coen, passando, entre outros, pelo filme noir, o cinema de gângster, o policial, a
comédia romântica, o melodrama, o musical, a screwball comedy (ou comédia maluca51) e o
western, este último subvertido em Bravura indômita, A balada de Buster Scruggs e Onde os
fracos não têm vez, objeto desta tese em questão. Aliás, poder-se-ia especular que o filme em
análise forma uma espécie de trilogia – cujo tema seria os caminhos e descaminhos da
violência e o fim dos valores morais clássicos da América estadunidense – com Gosto de
sangue e O grande Lebowski, ou com Fargo substituindo este último. Essa especulação é feita
em função do mote e da estrutura narrativa em comum dessas produções.
Além dessas relações intertextuais mais diretas e explícitas, os Coen também possuem
um filme em particular, uma comédia livremente inspirada na Odisseia, poema épico do
século VIII a. C. atribuído ao grego Homero e transposta pelos diretores para o sudeste dos
EUA da década de 1930. Trata-se de E aí, meu irmão, cadê você? (2000), cujo título é uma
referência ao filme Contrastes humanos (1941), de Preston Sturges, no qual um cineasta de
Hollywood deseja fazer um filme realista sobre a população menos favorecida alcunhando
este título para a sua obra (E aí, meu irmão, cadê você?) e, para tanto, sai pelas ruas vestido
como um morador de rua para experimentar como é ser pobre.
Onde os fracos não têm vez trata-se, portanto, da primeira adaptação direta da
literatura para o cinema levada a cabo pelos Coen. Isso caso não se leve em conta a tradução
livre realizada no citado E aí, meu irmão, cadê você? e a refilmagem empreendida em

50
Segundo Moisés (2004, p. 297), no Dicionário de termos literários, narrativa com “localização em abismo”.
51
Vista principalmente nos citados Arizona nunca mais e Na roda da fortuna, mas também em Matadores de
velhinha (2004).
P á g i n a | 132

Matadores de velhinha a partir do clássico inglês Quinteto de morte (1955), de Alexander


Mackendrick, o qual o roteiro foi escrito por William Rose.
A desconstrução da qual partem os Coen, em Onde os fracos não têm vez, se inicia
pelo fato de ele ter em seu âmago uma aura de western, o chamado “gênero americano por
excelência” por se tratar de um gênero cinematográfico afeito a narrativas com uma estética
própria que contam de forma ficcionalizada e mitificada os vários momentos de conquista e
assentamento do denominado Velho Oeste norte-americano. Sabe-se que os italianos com o
western spaghetti – além de outros europeus, do leste e de países como a Espanha, e até
mesmo os brasileiros com o western feijoada e o Nordestern – já cumpriram entre os anos
1960 e 1970 essa tarefa de desconstruir o faroeste estadunidense, inclusive de maneira
paródica e sarcástica ao debocharem da cultura dos EUA.
Todavia, os Coen fazem a sua desconstrução desse gênero à sua maneira, com toques
de estranhamento e de um humor sutil, como a caracterização da personagem Anton Chigurh
com seu cabelo escovado. Por outro lado, recorre-se ao western para atualizá-lo e questionar
cínico-criticamente a história de formação dos EUA. O principal foco para tanto são os
faroestes de uma época de maturidade do cinema hollywoodiano, vinda entre as décadas de
1940 e 1970. Nesse período, com a derrocada do cinema de estúdio, devido à concorrência
com a televisão, as grandes produtoras abriram um pouco mais de espaço para filmes que
fugiam do convencional, o que levou a uma crise do cinema tido como clássico.
Principalmente durante o pós-Segunda Guerra Mundial surge o que o francês Jean-Louis
Rieupeyrout nomeou de “superwestern”, no seu livro O western ou o cinema americano por
excelência, e Bazin chamou de “metawestern”, no texto Evolução do western:

Chamarei por convenção “metawestern” o conjunto de formas adotadas pelo gênero


depois da guerra. Mas não procurarei dissimular que a expressão vai encobrir, por
necessidade da exposição, fenômenos nem sempre comparáveis. Ela pode,
entretanto, justificar-se negativamente, por oposição ao classicismo dos anos 1940 e,
sobretudo, à tradição de que é o termo. Digamos que o “metawestern” é um western
que teria vergonha de ser apenas ele próprio e procuraria justificar sua existência por
um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica,
política, erótica..., em suma, por algum valor extrínseco ao gênero e que
supostamente o enriqueceria (BAZIN, 2014, p. 249).

Nos idos de 1960 em diante, aparecem produções hoje denominadas de westerns


revisionistas, ou seja, que buscavam recapitular a história dos EUA trazendo novas visões
indagadoras da heroicidade e da mitologia, mostrando de fato o que haveria por trás da lenda.
É interessante notar que essa mudança no olhar surge junto de um dos baluartes do gênero
western, o diretor John Ford, em filmes como Sangue de heróis – no qual Henry Fonda, o
P á g i n a | 133

intérprete de Tom Joad, em As vinhas da ira, dá vida a um autoritário tenente-coronel que


parte em um ataque suicida e autocrático contra os indígenas da tribo Apache e, ao final,
quando é morto no combate, é, ironicamente, transformado em herói –, Rastros de ódio, filme
no qual a disputa entre homens brancos e povos originários é vista pelo viés trágico, e,
principalmente, O homem que matou o facínora (1962), de onde surge a emblemática frase
formulada por um jornalista: “Estamos no Oeste. Quando a lenda se torna fato, publica-se a
lenda”.
Os Coen seguem uma cartilha semelhante em Onde os fracos não têm vez ao
reposicionarem o western em tempo e espaço deslocando-o do século XIX para os anos 1980
do século XX e do Oeste dos EUA para o sul, mais precisamente o Texas. Os heróis e vilões
clássicos dos antigos faroestes são substituídos por personagens humanas multifacetadas. O
protagonista não é mais um “mocinho” em busca de vingança ou um homem branco intrépido
sobre seu cavalo que corre atrás de bandidos ou de assassinar indígenas. É um homem da lei
que já não vê mais sentido na própria lei em si nem na própria existência. Os Estados Unidos
de Onde os fracos não têm vez é o local das incertezas, do devir. O xerife Ed Tom é uma
espécie de herói trágico que carrega um peso nas costas, uma culpa cristã, à maneira do titã
Atlas (da mitologia grega), filho do deus-titã Jápeto e da ninfa Clímene e irmão de Prometeu.
Atlas foi o responsável por um ataque ao Monte Olimpo junto a outros titãs e foi sentenciado
por Zeus a segurar o céu em suas costas por toda a eternidade. Ed Tom segura,
figurativamente, o céu em suas costas, com o agravante de não conseguir mais se encaixar no
mundo moderno de jovens, como diz a própria personagem em um de seus relatos, “com
cabelo verde e ossos no nariz” (McCARTHY, 2006, p. 241), isto é, jovens bastante diferentes
dos de sua geração. Como no título original do filme e do livro (No country for old men ou
Este país não é para os velhos, em português), que faz referência a um poema de William
Butler Yeats, Viajando para Bizâncio, publicado em 1928, o mundo moderno não é uma terra
para os velhos presos a um passado inexistente, enxergado pela couraça romântica e
nostálgica, o que, efetivamente, é sempre um traço humano, principalmente ligado ao
processo de envelhecer, de usar expressões como “na minha época era diferente”.
Ed Tom carrega, assim, culpa por não se considerar um herói de guerra e por não ser,
na sua visão, um homem como os “das antigas”. Aliás, cabe sempre perguntar: o que é esse
“homem das antigas”? É o homem que resolvia tudo ao seu modo? É um homem forte e
destemido? É um homem violento e selvagem? A propósito, ser homem é isso? Não seria esse
tipo de homem portador do que se chama hoje de “masculinidade tóxica”, ou seja, um tipo de
masculinidade que não suporta a exposição de sentimentos e preza pela abusividade em
P á g i n a | 134

relação às mulheres e pela misoginia? Ora, como já discutido aqui, homens truculentos como
esses são os dos filmes de ação, que existem apenas no universo ficcional. A própria
mitologia do western se deu conta de desmontar os seus típicos mitos a partir dos anos 1950 –
o que se deu principalmente com o filme O homem que matou o facínora –, demonstrando
que esse tipo de homem só existe no imaginário popular, que o ser humano, por mais forte
que seja, possui suas fraquezas e necessita do medo como estratégia de sobrevivência, pois
não é possível ir sempre “de peito aberto” em direção aos perigos insondáveis da vida. Ao
contrário do incorreto título em português dado ao filme (Onde os fracos não têm vez), os
ditos fracos são os que suportam a dureza do existir, pois o fraco nada mais é do que o
humano, esse ser contraditório e imperfeito.
Ao não se encaixar no mundo, o velho Ed Tom, desejoso de um retorno a um passado
inexistente, apenas em saudosismos, é como o eu lírico do citado poema Viajando para
Bizâncio, de William Butler Yeats. Apresenta-se abaixo o poema, em tradução de Augusto de
Campos:

Aquela não é terra para velhos. Gente / jovem, de braços dados, pássaros nas ramas /
– gerações de mortais – cantando alegremente, / salmão no salto, atum no mar,
brilho de escamas, / peixe, ave ou carne glorificam ao sol quente / tudo o que nasce
e morre, sêmen ou semente. / Ao som da música sensual, o mundo esquece / as
obras do intelecto que nunca envelhece. / Um homem velho é apenas uma ninharia, /
trapos numa bengala à espera do final, / a menos que a alma aplauda, cante e ainda
ria / sobre os farrapos do seu hábito mortal; / nem há escola de canto, ali, que não
estude / monumentos de sua própria magnitude. / Por isso eu vim, vencendo as
ondas e a distância, / em busca da cidade santa de Bizâncio. / Ó sábios, junto a Deus,
sob o fogo sagrado, / como se num mosaico de ouro a resplender, / vinde do fogo
santo, em giro espiralado, / e vos tornai mestres-cantores do meu ser. / Rompei meu
coração, que a febre faz doente / e, acorrentado a um mísero animal morrente, / já
não sabe o que é; arrancai-me da idade / para o lavor sem fim da longa eternidade. /
Livre da natureza não hei de assumir / conformação de coisa alguma natural, / mas a
que o ourives grego soube urdir / de ouro forjado e esmalte de ouro em tramas, /
para acordar do ócio o sono imperial; / ou cantarei aos nobres de Bizâncio e às
damas, / pousado em ramo de ouro, como um pássaro, / o que passou e passará e
sempre passa (YEATS, 1928).

A Bizâncio do título seria a terra fundada na Grécia Antiga em 658 a. C., tendo
recebido este nome do rei Bizas ou Bizante, seu fundador. O nome em grego da cidade seria
Βυζάντιον e, após a invasão romana, o nome foi latinizado para Byzantium ou Bizâncio, em
tradução para o português. Em 196 d. C., a cidade foi destruída, sendo reconstruída em 330
pelo imperador Constantino e renomeada de Nova Roma, se tornando parte do Império
Bizantino. Após a morte de Constantino, passou a se chamar Constantinopla, vindo a ser a
capital do Império Romano do Oriente. Em 1453, os turcos a tomaram e ela converteu-se na
capital do Império Otomano. Seu nome foi modificado para Istambul em 1930 após a
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independência do Império Otomano, que houvera se tornado a República da Turquia em 1923.


Bizâncio em seus primórdios era considerada na mitologia grega como uma terra de utópica
paz. O poema – cuja frase “aquela não é terra para velhos” inspirou o título original do livro e
do filme (No country for old men, ou Este país não é para os velhos em português) – é sobre
um velho que, à medida da aproximação de seu fim, se pergunta como seria a vida após a
morte. Este tema é muito explorado pelo mundo do exausto Ed Tom, que pondera como será
sua vida depois que deixar a “vida” como um homem da lei.
De maneira melancólica, Ed Tom não compreende os rumos da vida humana e da
violência cada vez mais injustificada e brutal, se é que algum dia houve justificativa para a
violência ou ela foi em algum momento menos cruel. Logo, Ed Tom é, como afirmado antes,
uma espécie de herói trágico que se defronta contra o seu destino e o destino do mundo,
sempre insatisfeito com os rumos do universo e reflexivo a respeito disso. Flávio R. Kothe, no
capítulo Heróis clássicos, do livro O herói, define a tragédia e o herói trágico a partir de
questões que se ligam à moral e à luta contra o destino:

O herói trágico é a dominante do sistema constituído pela tragédia. Ele vai


aparecendo como trágico à medida que se desenrola a tragédia que ele mesmo
desenvolve com a força do destino. A tragédia (= ode do bode) se origina de uma
cerimônia religiosa em que um bode era sacrificado em favor da comunidade, para
expiar-lhe as culpas. O herói trágico é, originalmente, um bode expiatório. Diz-se
que “bom cabrito não berra”. Mas o herói trágico, pelo contrário, é um bode que
berra ao ser sacrificado, expõe publicamente o que lhe acontece, enquanto o destino,
com mãos de ferro, pendura-o de cabeça para baixo e se prepara para cortar-lhe o
pescoço (KOTHE, 1985, p. 13).

Não obstante, os Coen desconstroem o western de outras formas em Onde os fracos


não têm vez. Este gênero se diferencia dos outros (ação, aventura, comédia, drama, ficção
científica, policial, romance, suspense, terror) por, em primeiro lugar, um detalhe ligado à
questão histórica, pois um western só o é classificado assim porque sua narrativa transcorre
em um período específico à história de formação dos EUA, entre o século XIX e as duas
primeiras décadas do XX. Em segundo lugar há também algumas marcas estéticas típicas do
faroeste, como o fato de desenrolar-se predominantemente em espaços abertos, onde se
sobressaem os grandes planos gerais da natureza – que, muitas vezes, colocam a figura
humana de forma minúscula em meio à paisagem – e os chamados planos americanos, tipos
de enquadramentos criados para as cenas de duelos nos quais se mostra o corpo do ator do
joelho para cima. O diretor italiano Sergio Leone, pai do western spaghetti, já havia quebrado
nos anos 1960 a estética do western clássico ao usar enquadramentos muito próximos do rosto
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das personagens conhecidos como extreme close-up ou primeiríssimo plano, o que fazia com
que seus filmes se aproximassem dos corpos humanos e não das paisagens.
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O western clássico também é permeado por ação contínua acompanhada de trilha


sonora mista de orquestral e baladas folks. Onde os fracos não têm vez prima pela espera e
não pela ação. Há sim cenas de ação com violência, à maneira de um western, mas a maior
parte do filme é marcada pelo dilatamento do tempo, muitas vezes com um olhar quase
fruitivo sobre a violência gráfica da estética sanguinolenta. Cita-se sete momentos onde isso
se dá: a primeira aparição de Anton Chigurh, depois quando ele ameaça um dono de um
comércio de beira de estrada, quando ele assassina alguns homens contratados para irem
também ao encalço de Llewelyn Moss, a cena em que Llewelyn aguarda pacientemente Anton
em um quarto de hotel para tentar matá-lo, a sequência em que Anton assassina Carson Wells
(homem contratado para tentar convencer Llewelyn de desistir do dinheiro), quando Anton
mata o chefe do cartel do qual faz parte e, ao final, quando ele mata Carla Jean, esposa de
Llewelyn.
A primeira cena citada se dá logo após a narração inicial de Ed Tom. Entremeado por
imagens da geografia texana, logo essas imagens se concentram em personagens e mostram
Anton sendo preso por um delegado. O homem estranha o cilindro portado por Anton, que na
verdade é uma arma de matar gado. Enquanto o delegado conversa com o xerife por telefone,
Anton aguarda sentado atrás dele e algemado. Os Coen optam por um enquadramento aberto
de frente, onde se vê o delegado em foco e Anton no canto direito um pouco fora de foco e
nas sombras, de modo que não é possível ver detalhes de seu rosto. Até então, aliás, sua face
não havia sido mostrada de forma próxima e era permeada por sombras, de modo que a
personagem não é construída de maneira clássica, isto é, narrando-se de onde ela veio, quem
ela é, etc.
Aos poucos a câmera se aproxima do corpo do delegado em um leve e quase
imperceptível travelling52 para a frente. Anton se levanta sem que o delegado perceba e se
aproxima dele pelas costas. Quando o delegado desliga o telefone, Anton passa suas mãos
algemadas através do pescoço dele e começa a sufocá-lo com o metal das algemas. Anton
joga o corpo do delegado no chão enquanto mata-o. O enquadramento passa a ser superior aos
corpos de Anton e do delegado no chão, aos poucos se aproximando do rosto monstruoso do
assassino para mostrá-lo em detalhes pela primeira vez. Anton é, desse jeito, apresentado. Sua
expressão é, ao mesmo tempo, fria e comedida (como se executasse uma tarefa rotineira
qualquer) e de grande prazer, como se estivesse atingindo um orgasmo.

52
Plano em que a câmera se desloca, horizontal ou verticalmente, aproximando-se, afastando-se ou contornando
as personagens ou objetos enquadrados, sendo para isso utilizado algum tipo de veículo (carrinho ou dolly),
sobre rodas ou sobre trilhos, com a câmera na mão ou ainda com algum tipo de estabilizador.
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Posteriormente, logo depois de Llewelyn encontrar a mala de dinheiro, ser perseguido


por homens do cartel de drogas e conseguir se safar matando-os, a figura de Anton começa a
ter sua personalidade construída. Ele encontra-se em um pequeno comércio de beira de
estrada onde abastece seu carro e se alimenta. Anton se aproxima do balcão e coloca uma
embalagem vazia de chocolate por cima dele. O pacote, que se encontra amassado, começa a
distender, abrindo-se, fazendo um som característico. Os Coen acompanham com sua câmera
escrevente esse movimento da embalagem com um poético e contemplativo plano de detalhes
que dura vários segundos que parecem infindáveis. Em um primeiro olhar, esse momento
admirativo causa estranhamento ao espectador. Quando Anton vai pagar o que deve, o dono
do local pergunta a ele se tem chovido muito de onde ele veio, simples questionamento de
quem queria apenas começar uma conversa despretensiosa e que não soa bem aos ouvidos de
Anton. Ele logo ameaça o homem com perguntas sobre como ele teria adquirido seu
comércio. Anton, por fim, retira uma moeda do bolso e insiste para que o homem escolha cara
ou coroa. Quando o homem hesita e diz que não apostou nada, Anton responde que ele
apostou “toda a sua vida, só não sabia disso”, como se no subtexto dissesse que, caso o
homem perca no jogo de cara ou coroa, seria morto. Por último, Anton diz que a moeda é do
ano de 1958 e viajou 22 anos até estar ali. O homem termina por escolher cara, Anton, que
estava com a mão direita sobre a moeda, revela a face desta que estava voltada para cima,
mostrando que o homem havia acertado, era mesmo cara, o que poupa a sua vida. Tanto é
assim que, em seguida, Anton fala ao homem para ele não guardar a moeda no bolso, pois é
sua moeda da sorte e não poderia se misturar com outras moedas.
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Após esse momento inquietante, no qual a montagem da cena aumenta a angústia ao


retardar o tempo, compreende-se a metáfora com a embalagem de chocolate, que representa
esse prolongamento do tempo e a luta do comerciante por sua vida, pois uma simples escolha
errada mudaria completamente o seu destino. Esse é o tom adotado durante toda a narrativa de
Onde os fracos não têm vez: as escolhas e os encontros nos caminhos da vida é que moldam o
destino ao lado, principalmente, do acontecimento, cujo controle escapa às mãos humanas.

Nessa sequência analisada, os Coen optam por alternar planos e contra-planos das
duas personagens. Esse artifício de montagem é o mais utilizado em cenas de diálogos,
cortando-se do rosto de uma personagem para a outra. No entanto, os diretores acionam
alguns detalhes a esse tipo de montagem que conferem um tom ameaçador e claustrofóbico
para a cena. Ao enquadrar o comerciante, inicialmente há um close-up mais aberto, onde se vê
as costas do ameaçador Anton e, ao fundo, alguns objetos de borracha pendurados que pairam
sobre a cabeça do dono do estabelecimento e que mais parecem símbolos de um
enforcamento, ou seja, da morte iminente. A cada instante que há um corte do rosto de Anton
para o rosto do homem, o enquadramento está mais fechado, de modo que o espectador sente
a ameaça pela qual passa a personagem pelas mãos de Anton. Além disso, há também um leve
travelling para frente em direção ao rosto do homem, ampliando ainda mais a sensação de
claustrofobia e direcionando o olhar do espectador pelas bordas. A tensão nessa sequência se
dá não por uma trilha sonora que cria um clima artificial, mas pela montagem e pelos
enquadramentos fechados que dilatam o tempo. Aliás, não há uma trilha sonora nessa cena
nem em todo o filme. Este é o único filme dos Coen onde não há uma trilha sonora, nem
original, nem com músicas populares. A trilha é criada pelos sons diegéticos, isto é, os efeitos
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sonoros das cenas em si, o que confere um caráter mais realista ao filme. No caso específico
desta cena, o que se destaca é o citado som do pacote de chocolate se abrindo diante do olhar
do espectador. Quando a ameaça passa, o enquadramento retorna ao mesmo do local inicial,
ou seja, volta a ser mais aberto. Os Coen usam as bordas da imagem para pedir o fora de
campo, jogando com o olhar do público ao transportá-lo para a cena.
A sequência em que Anton mata impiedosamente outros homens contratados pelo
mesmo cartel para o qual ele trabalha é marcada pela montagem paralela e por extrema
violência gráfica. Anton, que se encontra na posse de um receptor de localização
estrategicamente interligado a um localizador velado dentro da mala de dinheiro, consegue
encontrar Llewelyn, que está hospedado em um hotel de beira de estrada. O assassino se
hospeda em um quarto próximo ao de Llewelyn. Este último havia escondido a mala no duto
de ventilação. Ao perceber uma movimentação estranha no hotel e desconfiar que poderia
estar sendo perseguido, ele tenta remover a mala do esconderijo. Anton, em seu quarto, retira
os sapatos, pega suas duas armas (o cilindro para matar gado e uma enorme escopeta com um
igualmente gigante silenciador) e anda pé ante pé pelo corredor, de forma altamente
sorrateira, isso enquanto Llewelyn está na sua tarefa de retirar a mala do duto de ventilação.
Anton abre a porta do quarto 138 com o cilindro e atira nos três homens que se encontravam
ali. Tratavam-se de mexicanos contratados pelo cartel de drogas para localizar mais
rapidamente o dinheiro.
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Os Coen não poupam o olhar do espectador da violência: há planos de detalhes nos


buracos de tiros nas paredes, sangue voando para todos os lados e cobrindo os corpos. As
mortes perpetradas por Anton são sempre instantâneas, apesar de chocantes, tal como se
passou a matar o gado após a adoção do cilindro que o bandido usa para assassinar seres
humanos. Não há qualquer sentimento ou remorso em Anton. Ele apenas se senta na cama
proximamente a um dos corpos, retira suas meias sujas de sangue e as joga no chão do
banheiro, deixando seus rastros para trás.
Algum tempo depois o confronto entre Llewelyn e Anton finalmente ocorre quando o
primeiro se hospeda em outro hotel. Durante a noite, enquanto dorme, Llewelyn tem um
“insight” ao pensar que poderia estar sendo seguido porque há um localizador na maleta de
dinheiro. Ele se levanta e procura até encontrar, até perceber que seu perseguidor está
chegando próximo de seu quarto, isso devido ao fato da luz do aparelho localizador piscar de
forma mais intensa. Llewelyn apaga as luzes de seu quarto, pega uma arma e aguarda. Uma
sombra aparece por debaixo da porta, tapando a luz que entrava ali. De repente, a porta é
aberta por Anton com o cilindro. Como a sombra, a escuridão e o contraste com a luz
dominam a fotografia nesse momento, não é possível ver Anton. Apenas ouve-se o tiro da
arma de Llewelyn, que impede a entrada imediata de Anton. Llewelyn dá um jeito de pular a
janela e ganhar tempo. Na rua é onde se dá o confronto violento entre os dois.
Nessa cena, os Coen optam por dilatar o tempo, por “cozinhá-lo”, isso antes da ação
de cortes rápidos e precisos, à maneira dos western spaghetti do já citado Sergio Leone53.
Enquanto esse tipo de ação na não-ação causa ansiedade e apreensão no espectador, que fica à
espera de algum acontecimento, há, na prática, um efeito realista ao se utilizar tempos mortos.
Anton e Llewelyn jogam um tipo de jogo de gato e rato entre polos do mesmo espaço do
capital, onde alternam-se máquinas despóticas e máquinas de guerra, mas, em suma,
máquinas desejantes de capital e violência.

53
Leone dirigiu duas trilogias fundamentais da história do cinema moderno. Uma é a chamada trilogia dos
dólares, formada por Por um punhado de dólares (1964), Por uns dólares a mais (1965) e Três homens em
conflito (1966). Outra é a trilogia do “era uma vez”, sobre períodos de formação da América: Era uma vez no
oeste (1968), Quando explode a vingança (1971) e Era uma vez na América (1984), este último um filme de
gângsteres.
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Em outra cena citada, Anton e um de seus outros antagonistas, Carson Wells, se


encontram. Carson fora contratado pelo cartel de drogas para o qual Anton também trabalha
para tentar encontrar uma solução “pacífica” ou, no mínimo, menos violenta para o empasse
com Llewelyn. Após o confronto violento da sequência discutida nos dois parágrafos
anteriores, Anton e Llewelyn saem feridos. O bandido, como um agente do caos, explode um
carro em frente a uma farmácia apenas para poder distrair as pessoas e roubar o que necessita
para tratar das suas feridas físicas.
Anton, como se vê, tenta não deixar rastros, como se fosse um fantasma, mas, ao
mesmo tempo, sua busca por não chamar a atenção para si chama atenção para o pandemônio
que ele cria como máquina despótica e desejante do caos por si mesmo. Anton é o senhor dos
paradoxos. Se todo ser humano já o é, devido a suas contradições, Anton é mais do que
qualquer outro, pois, como símbolo da máquina despótica do capital, assim como ela, Anton
não quer deixar marcas, impressões digitais, algo que o rastreie, porém ele deixa para trás
outro tipo de marcas destrutivas presentes no caos perpetrado por ele.
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Enquanto isso, Llewelyn atravessa a fronteira dos EUA com o México, adormece na
rua e é levado para um hospital por um grupo de cantores nômades. Lá, ele é visitado por
Carson, que tenta convencer Llewelyn a entregar a mala de dinheiro, que ele houvera jogado
em um matagal próximo da fronteira. Um diálogo interessante sai da conversa dos dois:
Llewelyn confunde o sobrenome de Anton, Chigurh, com a palavra “sugar” (açúcar em
inglês) e Carson diz que Anton não tem nada de doce. Este é o ponto: Anton, como o capital,
não é doce nem possui senso de humor. As poucas vezes que se vê seu sorriso em cena
transparece para o espectador um riso forçado, de quem nunca está satisfeito com o que
possui e deseja sempre mais e mais capital. Em suma, Anton é, ao contrário, amargo como o
fel. Carson afirma para Llewelyn que se ele devolver o dinheiro, poderia até deixar ele ficar
com uma pequena parte, entretanto Anton não faria o mesmo, pois Anton estaria atrás de
Llewelyn não pelo dinheiro em si, mas porque Llewelyn entrou no seu caminho. Anton é,
como afirma Carson para Llewelyn, um bandido que, estranhamente, tem princípios, regras:
ele mata apenas porque as pessoas atrapalharam o curso de seu caminho e interferiram no seu
status quo, não poupa nada nem a ninguém e quando demonstra algum tipo de misericórdia,
ele apenas joga sua moeda para jogar com a vida das pessoas como se a vida delas nada
valesse.
Carson localiza pouco depois a mala de dinheiro, mas não a pega, pois prefere pensar
em outra maneira de tomá-la de Llewelyn. Carson não é um homem da violência, ele é um
homem da razão, da lógica, o que já era perceptível na primeira cena em que ele aparece no
filme, quando é contratado pelo chefe do cartel. Carson questiona ao chefe dizendo ter
contado os andares do prédio onde se encontram e que estaria faltando um andar. Parece uma
piada, mas trata-se da lógica racional, matemática e metódica de procurar peças faltantes nos
lugares, como em um jogo de quebra-cabeça. Afinal, a vida é um eterno jogo de quebra-
cabeça no qual está-se sempre buscando peças para completá-lo.
Quando Carson volta para o seu hotel, Anton surge misteriosamente como uma
assombração, armado com sua escopeta com silenciador. O bandido leva Carson para o
quarto. Carson afirma que sabe onde o dinheiro está, mas Anton retruca que sabe onde ele
estará em breve, ou seja, que será entregue por Llewelyn. O telefone toca. Anton atira e mata
Carson. Ele atende o telefone. É Llewelyn do outro lado da linha. Anton diz que irá ao
encalço da esposa de Llewelyn, Carla Jean. Ela encontra-se em Odessa, vivendo com a mãe
adoentada. Anton faz uma oferta a Llewelyn, dizendo que se ele entregar o dinheiro poupará a
vida de Carla Jean, mas Llewelyn se recusa. Durante a conversa ao telefone, o sangue de
Carson começa a escorrer pelo chão e Anton suspende seus pés em cima da cama. Não é a
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primeira vez que ele demonstra ter certa repulsa de sangue. É uma excentricidade da persona
de Anton que, novamente, reforça suas características simbólicas ligadas ao capital, afinal este
último destroça tudo, mas não quer ser associado ao sangue humano derramado pelas atitudes
aniquiladoras de sua máquina despótica.
É interessante notar que, bem como em outras cenas de violência ao redor do filme, os
Coen optam por enquadrar o sangue escorrendo no chão com um enquadramento que coloca o
ângulo da câmera de cima para baixo, neste caso assumindo o ponto de vista de Anton. No
entanto, o sangue flui, enquanto cresce em volume, em direção às bordas da imagem. A
violência dirige-se ao espectador, não poupa seu olhar. O espectador moderno, muitas vezes
colocado frente a imagens violentas dos noticiários sensacionalistas, sempre se sente
incomodado com a violência posta na arte, mesmo quando se pensa que imagens violentas se
associam à arte desde seus primórdios (no teatro, na literatura, na música etc.) como
representação da violência do mundo humano, mas isso incomoda porque o olhar do ser
humano moderno está tão anestesiado em sua inércia para a violência “real” que ver isso na
ficção, cujo papel para muitas pessoas seria o de mera alienação, inquieta. Não que toda arte
deva ter violência gráfica, mas que pelo menos violente o pensamento do seu espectador,
fazendo-o sair da posição de mero espectador dos problemas de seu mundo que precisam ser
refletidos para se tomar posições quanto a eles. O público tem como opção ver o sangue
escorrendo de dentro para fora da tela, vertendo a seus pés, e fazer como Anton, ou seja,
apenas levantar seus pés afastando-se com nojo e ojeriza, ou buscar compreender e questionar
os porquês de tanto sangue derramado pelas máquinas despóticas.

Pouco depois, Anton adentra o escritório do chefe do cartel usando o seu mesmo
modus operandi: ele estoura o trinco da porta com sua arma cilíndrica e, ardilosamente, entra,
atira no chefe do cartel sem nem pensar duas veze e observa impassível o homem se
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debatendo e sangrando enquanto morre. Anton toma tal atitude porque se irrita com o fato de
outras pessoas terem sido contratadas para irem ao encalço de Llewelyn. Isso se deu pelo
motivo do chefe, como sumo representante da máquina despótica do capital, agir sempre pelas
costas dos seus lacaios ou de quem considera como seus lacaios. Em sua visão, o capital
sempre quer reaver o que é dele o mais rápido e eficientemente possível. Essa questão fica
bem clara ao Anton estabelecer um diálogo com outro homem que estava no exato momento
se reunindo com o chefe. Anton pergunta quem ele é. Ele, tremendo de medo do bandido,
responde primeiro: “Ninguém”. Em seguida se corrige dizendo: “Um contador”. Anton afirma
que o chefe houvera dado um localizador da maleta de dinheiro para os mexicanos que ele
matou. O contador diz que o chefe pensava que quanto mais pessoas procurando, melhor
seria. Então, Anton responde: “Que idiotice! Ele escolheu a ferramenta certa”.
Ao usar a expressão “ferramenta certa”, Anton estaria se referindo a si mesmo. Ele se
vê como uma ferramenta do capital. Todavia, sua crueldade e seu rigor metódico estão tão
acima de qualquer outro valor que Anton passa até mesmo por cima da hierarquia, mata quem
o contratou para recuperar a valise de dinheiro e continua, sem embargo, na caça a Llewelyn.
Anton demonstra com isso ser mais do que uma ferramenta da máquina despótica que executa
ordens, pois ele segue apenas a sua própria consciência e suas regras. Como indicado antes,
ele é uma máquina desejante que deseja somente a destruição e o caos. Em seguida, o
contador pergunta a Anton se ele seria morto. O bandido afirma: “Depende. Você vai me
identificar?”. Há um corte para a cena seguinte sem que se saiba o destino do contador. A aura
misteriosa, espartana e sistematicamente cheia de regras de Anton não permite vislumbrar
algo a se inferir. Sabe-se que ele demonstra ao redor da narrativa jogar com a vida das
pessoas, tal como faz com suas moedas no jogo de cara ou coroa. Ao mesmo tempo, Anton
geralmente não poupa a vida de ninguém e sempre busca apagar rastros que levem a polícia a
ele, mesmo se sabendo que os estragos consumados pela máquina despótica sempre são
visíveis.
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A antepenúltima cena de Onde os fracos não têm vez reserva muita tensão ao
espectador. Após Anton conseguir matar Llewelyn, a mãe de Carla Jean falece de câncer. Ao
retornar para casa vindo do cemitério, ela observa que há um carro estacionado no seu quintal.
Ao entrar no quarto, Anton está sentado em uma cadeira a aguardando. Carla Jean diz não
estar com o dinheiro e que está cheia de dívidas, inclusive do enterro da mãe, que não pudera
pagar. Anton afirma ter feito uma promessa a Llewelyn de que mataria a esposa. Carla Jean
responde o óbvio: “Isso não faz sentido.”. Para Anton, a lógica do mundo, o notório, não faz
sentido em seu mundo. Suas regras metódicas que o levam sempre a traçar caminhos
violentos é que valem. Como o capital, Anton não hesita em nenhum momento em abrir mão
daquilo que acredita ou de abdicar do que se propôs a fazer. Sua “missão” de matar quem se
interpôs em seu caminho e de fazer aquilo que prometeu fazer deve ser levada até o fim,
independente das consequências e dos rastros de violência e caos que deixar para trás. Anton,
demonstrando algo como uma pseudo-piedade por Carla Jean, joga sua moeda e diz que isso é
o melhor que pode fazer por ela. Anton pede para Carla Jean escolher cara ou coroa, repetindo
isso de forma impassível várias vezes. Ela se recusa. Alega ser Anton quem escolhe e não a
moeda. Anton refuta a fala de Carla Jean dizendo ter ele chegado ali do mesmo que a moeda.
O subtexto deixado nas entrelinhas por essa fala de Carla Jean diz muito da
personalidade de Anton. Ele é como a moeda. Ambos são símbolos representativos do capital.
É axiomático o fato de ser Anton quem escolhe e não a moeda, afinal ele é um ser humano
dotado de consciência e de vontade de poder. A moeda é apenas um instrumento usado por
Anton, mas ele escolhe seguir o indicado pela moeda no jogo. A moeda é o caminho do
capital e faz bastante sentido pensar nela sendo utilizada para um jogo, pois o capital joga
com as vidas humanas. Estas não fazem a menor diferença para o capital. Moedas e dinheiro
são invenções do mundo capitalista como ferramentas de troca por serviços, negociações e
compras. O dinheiro já foi aplicado em tempos não tão remotos para se escravizar pessoas.
Hoje ele é empregado para novas formas de escravização pelos poderosos donos do poder, em
suma, pelas máquinas despóticas desejantes de mais e mais poder, de mais e mais capital. Se
Anton e a moeda chegaram ali na casa de Carla Jean do mesmo jeito é porque ambos são
baluartes do capital, são seus sumos representantes, são ferramentas de um mesmo jogo, pois
o próprio Anton se enxerga como no mesmo prisma da moeda. Ele mesmo alegara antes ser
uma “ferramenta”. Os seres humanos desejantes de poder e capital são exatamente
ferramentas da máquina despótica.
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É curioso notar que, ao contrário de outras cenas de Onde os fracos não têm vez, não é
mostrado ao espectador se Anton assassinou ou não Carla Jean. Há um corte para a parte
externa da casa, onde se vê Anton saindo e limpando seus sapatos. Associa-se esse ato
“higiênico” à cena na qual ele matou Carson Wells e levantou seus pés quando viu o sangue
escorrer pelo chão. Anton gosta de matar e mata como se executasse uma simples tarefa
rotineira, mas não gosta do contato com o sangue. Depreende-se que Anton teria, assim,
matado Carla Jean. No entanto, o espectador é indiretamente poupado nesse momento da
violência ao se abrir espaço para a lacuna, para a elipse.
Não é por acaso que a história de Onde os fracos não têm vez se inicia numa planície
isolada em meio à imensidão de uma natureza rarefeita e depois se desenrola quase toda em
pequenos quartos de hotéis ou outros locais fechados (salas de escritório, trailers etc.), estes
não-lugares em que tempo/espaço são tão efêmeros. Como anteriormente afirmado, as
narrativas dos westerns clássicos geralmente se passam em lugares abertos, com ação
ininterrupta, sem ou com pouco espaço para tempos mortos, reflexões e quaisquer outras
questões de fora de seu universo. Tudo começou a mudar com os metawesterns, definidos por
Bazin algumas páginas atrás, onde a ação transcorre quase que inteiramente em ambientes
fechados, como, por exemplo, O proscrito (1943), de Howard Hughes (marcado por cenas de
erotismo que escandalizaram o público, a crítica e a censura da época), Matar ou morrer
(1952), de Fred Zinnemann – filme cujo subtexto alegórico é a perseguição aos comunistas na
Hollywood daquela época –, e Onde começa o inferno (1959), de Howard Hawks, espécie de
resposta, em formato clássico e conservador, ao filme de Zinnemann.
Os Coen seguem nessa linha desconstrutiva, mas com o adendo de se valerem das
cenas internas como, para além da claustrofobia criada, adentrarem os “demônios” internos
das personagens ali retratadas, personagens essas ilustrativas da ganância, das dúvidas quanto
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à existência e ao destino, do cometer atos de violência apenas por cometer, etc., traços típicos
do humano, demasiado humano, e de suas idiossincrasias contraditórias e, muitas vezes,
perturbadoras que o tornam também ora uma máquina despótica ora uma máquina de guerra.
Os dois diretores criam, desse modo, uma espécie de neo western ou western new wave.
Inferno rodado em cores pardas e expressionistas, alternando cenas ao dia claras à luz
do sol e cenas noturnas marcadas pela oposição de sombras e luzes, que demarcam a
multidimensionalidade humana, Onde os fracos não têm vez é o rompimento do rompimento
com a tradição do western clássico, sempre filmado ou em preto-e-branco ou em cores vivas
do technicolor, utilizado pelos estúdios de Hollywood até o início da década de 1950. Tudo
em Onde os fracos não têm vez soa estranho para os olhos acostumados ao clássico: as cores
que remetem à natureza humana, o corte de cabelo de Anton (causador de um efeito de
humor), o xerife temeroso e questionador, etc. O estranho é conjuntamente identificável, pois
o subtexto de Onde os fracos não têm vez trata das guerras internas renhidas e sanguinolentas
que a sociedade movimenta contra ela mesma. Esse estranhamento é um paradoxo tal como o
é o ser humano. Talvez por isso os espaços fechados que se sobrepõem aos abertos, visto que
a sociedade moderna tem cada vez mais se voltado para dentro de si com a violência urbana
crescente. Aqueles que também não se encaixam na sociedade moderna, como a personagem
do xerife Ed Tom, se viram para si próprios e terminam por adentrar-se no seu próprio mundo
como ponto de fuga da violência inexplicável do mundo humano.
Ao fim e ao cabo, o que conclui Onde os fracos não têm vez é que, se cada escolha
molda o futuro das pessoas, incongruentemente não se pode esculpir o destino ou o tempo ao
seu bel-prazer. Não há como se controlar o que poderá vir ou não vir. Existe apenas o vir a
ser, o devir. Os acontecimentos, o acaso por assim se dizer, não são plasmáveis. Eles apenas
são. Independentemente de ser bom ou ruim, a vida se renova e as coisas novas tomam a
frente em um indo e vindo de um looping eterno de travessias. Aliás, estes contrastes (bom ou
ruim) são relativos e sempre são passíveis de interpretações. De fato, as renovações são, como
a vida, e como o ser humano, boas e más simultaneamente. Dentro de uma visão
intermidiática, como afirma o eu lírico do cantor e compositor Belchior na música Como
nossos pais, “é você que ama o passado e que não vê / Que o novo, o novo sempre vem”
(BELCHIOR, 1976). Ou então é, mais especificamente, o que declarou o eu poético do cantor
e compositor Lulu Santos na canção Como uma onda (Zen-surfismo), escrita em parceria com
Nelson Motta: “Tudo o que se vê não é / Igual ao que a gente viu há um segundo / Tudo muda
o tempo todo no mundo” (SANTOS; MOTTA, 1983). É o que ratifica a personagem
Riobaldo, em Grande sertão: Veredas: “No real da vida, as coisas acabam com menos
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formato, nem acabam. Melhor assim” (ROSA, 1972, p. 67). Reitera-se, enfim, o que a
personagem Ellis, de Onde os fracos não têm vez, diz ao seu sobrinho Ed Tom: “você não
pode impedir o que virá. As coisas não são como você quer. É muita presunção”. A vida não
começa nem termina, ela é um vendaval rizomático constante de acontecimentos
incontroláveis.

III.III: OS CORPOS, AS INTERPRETAÇÕES, AS CONSTRUÇÕES DE PERSONAGENS E A

MONSTRUOSIDADE HUMANA, DEMASIADO HUMANA, DE ANTON CHIGURH EM ONDE OS

FRACOS NÃO TÊM VEZ

É interessante notar que há outros pontos da criação de Onde os fracos não têm vez
que interferem bastantemente na interpretação do espectador. No cinema, convencionou-se a,
quase sempre, a atribuir tudo o que é visto na tela a tomadas de decisão da direção. A isso, os
franceses da revista Cahiers du Cinéma nos anos 1950 – essencialmente, François Truffaut,
Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Éric Rohmer e Jacques Rivette, apadrinhados por André
Bazin – vieram a chamar como “politique des auteurs” ou “política dos autores”. Ou seja, eles
viam a pessoa por trás da direção de um filme como um artista responsável por controlar
todos os aspectos criativos de um filme e por tomar todas as decisões a respeito de não só sua
função, mas também do roteiro, da fotografia, da direção de arte, da montagem, das atuações
e construções de personagens por parte dos intérpretes, etc. O diretor ou diretora seria uma
espécie de gênio criativo. Quando se chama o diretor de autor ou a diretora de autora, eles são
igualados aos escritores de romances. A política dos autores claramente tinha sua inspiração
maior na teoria do “escrever com a câmera” propagada por Alexandre Astruc e discutida no
início do primeiro capítulo desta tese.
Muitos críticos, teóricos e pesquisadores de cinema ainda acreditam nesta teoria da
política dos autores e escrevem artigos, ensaios e livros colocando o diretor de cinema como
um autor ou a diretora de cinema como uma autora encarregados de decidirem tudo a respeito
de seu filme. A despeito disto, esta mesma teoria vem sendo questionada, pois o cinema, ao
contrário da literatura, é uma arte de conjunto. Qualquer pessoa que esteve em um set de
filmagens – e Truffaut, Godard, Chabrol, Rohmer e Rivette, enquanto formulavam sua ideia
da política dos autores, foram os artífices do movimento da Nouvelle Vague – sabe que há
diretores e diretoras controladores e outros que deixam sua equipe criar apenas para dar a sua
palavra final concordando ou não com essa e aquela decisões criativas. A maioria dos grandes
diretores da era clássica de Hollywood se viam como meros operários contratados pelos
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estúdios para executarem a tarefa de dirigirem um filme. Outros, como John Ford, se viam
como artesãos ou arquitetos esculpindo/esboçando um filme. Pelo menos uma coisa é fato:
praticamente todos os cineastas da chamada Era de Ouro de Hollywood (entre as décadas de
1930 e 1940) não escreviam roteiros. Podiam até dar palpites na escrita dos roteiristas, mas
não eram afeitos a escrever. Com efeito, esses diretores escreviam com as suas câmeras, isto
é, não escreviam roteiros, mas escreviam no set de filmagem.
Enfim, de qualquer forma, uma característica atribuída pela política dos autores que é
acertada trata-se de observar marcas de cada diretor ou diretora em suas obras abertas que as
tornariam identificáveis como sendo dirigidas somente por eles e não por outros artistas.
Evidentemente que isso é um tipo de coisa reparado apenas por cinéfilos, estudantes, críticos,
teóricos e pesquisadores de cinema. Com isso, distingue-se por características próprias um
filme de John Ford de outro de Alfred Hitchcock, por exemplo. Os Coen, ao contrário da
maioria dos diretores, dominam de forma direta vários dos aspectos da criação de suas
escrituras fílmicas. Desde o seu primeiro filme, Gosto de sangue, eles produzem, roteirizam e
dirigem a maioria dos seus filmes. E, como se não bastasse, os Coen montaram a maioria
deles sob o pseudônimo de Roderick Jaynes. Aliás, este pseudônimo se tornou uma
personagem conceitual, quase um heterônimo, pois Roderick Jaynes é inscrito como montador
na Motion Picture Editors Guild (a associação dos editores dos EUA) e já concorreu a alguns
prêmios do Oscar, distribuídos pela Associação de Artes e Ciências Cinematográficas de
Hollywood, causando, inclusive, piadas internas.
Todavia, não quer dizer que, porque os Coen se encaixam na definição de autores,
incluindo as marcas que diferenciam o cinema feito por eles de outras obras, que não é aberto
espaço para a criação por parte de outros membros da equipe de seus filmes. Afirma-se isso
para se chegar a um ponto chave da análise fílmica de Onde os fracos não têm vez
empreendida até aqui: há uma liberdade criativa conferida pelos Coen para que seus atores
construam suas personagens. Isso torna estes atores coautores do filme. Além disso, há outros
pontos inseridos em demais elementos cinematográficos do filme que contribuem para a
criação, como por exemplo a narrativa engendrada pelo roteiro (neste ponto escrito pelos
próprios Irmãos Coen) e a fotografia, assinada pelo experiente profissional inglês Roger
Deakins, parceiro de longa data dos dois diretores.
No que diz respeito às atuações, um ponto a se notar é que quase todos os atores
contemporâneos ou que iniciaram suas carreiras a partir do final dos anos 1940, foram
formados em escolas de orientação vinda do sistema de atuação do russo Constantin
Stanislavski, ator, diretor e teórico de teatro. Este sistema, criado no início do século XX,
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propunha vários métodos e caminhos para preparação do ator para dar vida à sua personagem.
Isso se dá, primeiro, pela preparação com o chamado “laboratório”, no qual o ator recorre à
pesquisa para construir seu papel. Depois, há a busca de emoções vindas das experiências
pessoais do ator. Por último, há a criação da personagem, isso a partir da concepção
psicológica e física de características próprias desta que fazem o ator não encenar, mas viver
seu papel, abolindo-se, com isso, a hierarquia de personagens umas sobre as outras, tendo
todas a mesma importância dentro da história. A difusão do sistema Stanislavski se espalhou
pela Europa e pelos EUA tanto com a publicação de livros que continham suas teorias – A
preparação do ator, de 1936, A construção da personagem, de 1938, e A criação de um
papel, publicado postumamente em 1961 – quanto pelas excursões do Teatro de Arte de
Moscou (TAM), fundado em 1897 por Stanislavski e pelo diretor e dramaturgo georgiano
Vladímir Ivânovitch Niemiróvitch-Dântchenco. O TAM se apresentou nos EUA em janeiro
de 1923 e causou um verdadeiro furor. A respeito disto, Iná Camargo Costa, no artigo
Stanislavski na cena americana, publicado na revista Estudos avançados, em 2002, afirma:

A imprensa deu conta de registrar as mais importantes unanimidades americanas a


respeito dos espetáculos do TAM: a barreira lingüística não prejudicou a fruição dos
espetáculos porque se tratava de entender e sentir o que acontecia em cena; no palco
assistia-se a uma fatia de vida e não a uma peça de teatro; os atores vivem seus
papéis, não os interpretam; e, independentemente de haver hierarquização dos
personagens, todos os atores têm igual importância na realização do espetáculo, o
que resulta do trabalho conjunto (ensemble), coisa jamais vista nos Estados Unidos.
[...] Uma das atrizes do elenco, Maria Uspenskaia, resolveu permanecer nos Estados
Unidos e, junto com Richard Boleslavski, veterano do TAM que se encontrava no
país, acabaram sendo contratados para dar aulas de interpretação num
empreendimento [...] que se chamou “American Laboratory Theatre” iniciado já no
ano de 1924. Na verdade, Boleslavski cuidava da teoria que expunha em palestras e
Uspenskaia cuidava da prática em suas aulas. Assim como esses dois, alguns outros
veteranos do TAM vieram para os Estados Unidos ao longo dos anos de 1920 e
início dos anos de 1930, onde se estabeleceram e assumiram a missão de transmitir o
legado de Stanislavski, dos quais vale mencionar Maria e Ivan Lazariev, Leo e
Barbara Bulgakov e, finalmente, Mikhail Tchékhov, sobrinho do dramaturgo, que
passou primeiro pela Inglaterra, onde fundou um estúdio, e só chegou em Nova
York no final dos anos de 1930 (COSTA, I. C., 2002, p. 107-108, grifos da autora).

Com os ensinamentos dos atores, diretores e professores Maria Uspenskaia (ou


Ouspenskaya), Richard Boleslavski e outros citados, aconteceram conflitos de compreensão
do sistema Stanislavski por parte de estudantes de teatro à época da excursão do TAM pelos
EUA. Essas divergências levaram mais tarde à criação de escolas teatrais dissidentes, como
foram o Actors Studio – fundado em 1947, pelo diretor de cinema e teatro turco Elia Kazan e
pela diretora de teatro Cheryl Crawford e pelo ator e dramaturgo Robert Lewis, ambos norte-
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americanos, escola cuja direção artística ficou a cargo do ucraniano Lee Strasberg – e o Stella
Adler Studio of Acting, formado em 1949 pela atriz e professora de teatro Stella Adler.
Não se entrará aqui em pormenores sobre os principais embates entre os dois métodos
discrepantes desenvolvidos nestas escolas de teatro nem em questões sobre o
desenvolvimento do sistema Stanislavski nos EUA. Este não é o ponto principal desta tese.
Citou-se a descoberta das teorias de Stanislavski pelos norte-americanos apenas para se
chegar aos três protagonistas de Onde os fracos não têm vez, que tem algum tipo de formação
stanislavskiana. Tommy Lee Jones e Josh Brolin, intérpretes das personagens Ed Tom Bell e
Llewelyn Moss, respectivamente, já afirmaram em entrevistas terem lido as obras de
Stanislavski e procurarem aplicar suas ideias em seus trabalhos. Enquanto isso, Javier
Bardem, ator espanhol que deu vida a Anton Chigurh, estudou no Estudio Corazza para la
Actuación, criado pelo diretor e professor de teatro argentino Juan Carlos Corazza, que possui
influência de Stanislavski.
A escalação de Tommy Lee Jones para o papel de Ed Tom talvez seja a mais acertada.
O ator chegou, em Onde os fracos não têm vez, a um momento mais maduro de sua vida no
qual o seu próprio corpo tornou-se veículo de sua interpretação. Não que isto não ocorresse
em etapas anteriores de sua longa carreira. Porém, do início dos anos 2000 para cá, após
passar dos 50 anos, as ofertas de papéis para Jones são, em sua maioria, de personagens como
Ed Tom, isto é, homens melancólicos, contidos e taciturnos que viram muitas coisas em suas
trajetórias de vida e que carregam todos os seus fantasmas e trevas no olhar profundo de
assombro e impotência diante dos rumos do mundo. Atuações mais histriônicas como as dos
filmes JFK: A pergunta que não quer calar (1991), de Oliver Stone, A força em alerta
(1992), O fugitivo (1993), os dois de Andrew Davis, Assassinos por natureza (1994), de
Oliver Stone, Batman eternamente (1995), de Joel Schumacher, entre outros, deram lugar às
atuações mais comedidas de Regras do jogo (2000), de William Friedkin, Cowboys do espaço
(2000), de Clint Eastwood, No vale das sombras (2007), de Paul Haggis, Lincoln (2012), de
Steven Spielberg, além dos filmes que Jones dirigiu a si mesmo, como o neo-western Três
enterros (2005), The Sunset Limited (2011) – filme para a TV baseado, diga-se de passagem,
em uma peça do autor de Onde os velhos não têm vez, Cormac McCarthy – e o sensível
faroeste Dívida de honra (2014).
A persona de Jones se confunde com suas personagens, essencialmente com Ed Tom,
no sentido de que seu olhar penetrante – lembra-se novamente trecho da canção Avôhai, de Zé
Ramalho: “Pares de olhos tão profundos / Que amargam as pessoas que fitar” (RAMALHO,
1978) – salta os limites da tela comunicando-se com o olhar do espectador analogamente
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horrorizado com a violência do mundo retratada em Onde os fracos não têm vez. Não se quer
dizer com isso que Jones não representa ou que ele estaria apenas encarnando a si mesmo.
Muito pelo contrário! O ator consegue trazer aspectos do Sistema Stanislavski para a
construção de sua personagem e a criação de seu papel, como o de buscar internamente nas
suas próprias emoções sentimentos para a personagem e utilizar o seu próprio corpo como
ferramenta de atuação. No capítulo O corpo como expressão e a fala, de Fenomenologia da
percepção, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty faz apontamentos sobre a utilização do
corpo como expressão de emoções e sentimentos por parte do ser humano:

Não basta que dois sujeitos conscientes tenham os mesmos órgãos e o mesmo
sistema nervoso para que em ambos as mesmas emoções se representem pelos
mesmos signos. O que importa é a maneira pela qual eles fazem uso de seu corpo, é
a enformação simultânea de seu corpo e de seu mundo na emoção. O equipamento
psicofisiológico deixa abertas múltiplas possibilidades e aqui não há mais, como no
domínio dos instintos, uma natureza humana dada de uma vez por todas. O uso que
um homem fará de seu corpo é transcendente em relação a esse corpo enquanto ser
simplesmente biológico. Gritar na cólera ou abraçar no amor não é mais natural ou
menos convencional (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 256-257).

Se no dia-a-dia o ser humano, que muitas vezes faz o uso inconsciente de um tipo de
interpretação para conviver em sociedade, imagine-se, então, no teatro ou no cinema. Nestes
mundos ficcionais, amplamente inspirados nos mundos reais, é que o corpo do ator se mostra
precisamente frente ao público para transmitir-lhe os afectos, perceptos e sensações da obra
aberta. No livro A construção da personagem, no capítulo Para uma caracterização física,
Stanislavski afirma categoricamente algo similar a isso:

[...] se não usarmos nosso corpo, nossa voz, um modo de falar, de andar, de nos
movermos, se não acharmos uma forma de caracterização que corresponda à
imagem, nós, provavelmente, não poderemos transmitir a outros o seu espírito
interior, vivo (STANISLAVSKI, 2001, p. 27).

O professor e crítico teatral brasileiro Décio de Almeida Prado, no texto A personagem


no teatro, reunido na compilação A personagem de ficção, vai de encontro à teoria
stanislavskiana ao dizer:

Não importa, por exemplo, que o ator sinta dentro de si, viva, a paixão que lhe cabe
interpretar; é preciso que a interprete de fato, isto é, que a exteriorize, pelas
inflexões, por um certo timbre de voz, pela maneira de andar, pela expressão
corporal etc. (PRADO,1972, p. 92).
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No teatro, os espectadores estabelecem uma aproximação física com os atores ao


verem seu corpo disposto no palco. No entanto, nessa proximidade o público vê o ator de
corpo inteiro. Por isso, sua atuação deve ser mais exagerada nos gestos e na impostação da
voz para que todos na plateia (independentemente de onde se sentam) vejam e sintam a
atuação, o que é alterado em raras exceções de espetáculos modernos cuja iluminação detalha
apenas o rosto do ator de forma similar a um close-up ou primeiro plano do cinema. Enquanto
isso, no cinema, a câmera orienta o olhar dos espectadores com close-ups e planos de
detalhes. À vista disto, adquire-se um grau de intimidade com a personagem. No texto A
personagem cinematográfica, encontrado na coletânea A personagem de ficção, o crítico de
cinema Paulo Emílio Sales Gomes discorre a respeito das diferenças entre estes dois tipos de
atuação (teatral e cinematográfica):

De um certo ângulo, a intimidade que adquirimos com a personagem é maior no


cinema que no teatro. Neste último a relação se estabelece dentro de um
distanciamento que não se altera fundamentalmente. Temos sempre as personagens
da cabeça aos pés, diferentemente do que ocorre na realidade, onde vemos ora o
conjunto do corpo, ora o busto, ora só a cabeça, a boca, os olhos, ou um olho só.
Como no cinema. Num primeiro exame, as coisas se passariam na tela de forma
menos convencional do que no palco, e decorreria daí a impregnância maior da
personagem cinematográfica, o desencadeamento mais fácil do mecanismo de
identificação. O prolongamento da reflexão nos leva porém a recordar que, se no
espetáculo teatral as personagens estão realmente encarnadas em pessoas, já na fita
nos defrontamos, não com pessoas, mas com o registro de suas imagens e vozes
(GOMES, 1972, p. 112).

Logo, a atuação de Tommy Lee Jones se beneficia dessa aproximação com o público
ao ter sua expressão facial recortada pela câmera em inúmeros primeiros planos que conectam
seu olhar ao olhar do espectador, quase como em uma conversa intimista. Ora, então, em uma
encenação fatalista de uma tragédia humana moderna, como a de Onde os fracos não têm vez,
nada mais natural do que Tommy Lee Jones trazer suas características físicas, como seu olhar
profundo, para incorporar a sua personagem. Para além disso, o ator também se faz uso de
outros aspectos, como os ombros muitas vezes curvados quando sua personagem Ed Tom se
encontra em profunda neurastenia e sem respostas para os fenômenos do acontecimento, a
expressão facial melancólica, mesmo quando ri involuntário e nervosamente para situações
que não consegue explicar, e o ato de sempre ficar atrás de seu jovem delegado Wendell
quando ambos estão armados prestes a invadir algum local à procura de Anton Chigurh.
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Já a atuação de Javier Bardem como Anton Chigurh é extremamente criativa. Ele


assume um corte de cabelo não descrito no livro de Cormac McCarthy, o que dá um tom
cômico e estranho à personagem. Apesar de ser um corte de cabelo (com seu formato armado)
típico dos anos 1980, algo que conecta o espectador visualmente ao período histórico no qual
a narrativa se passa, a construção dessa peculiaridade da personagem por parte de Javier
Bardem traz um tom cômico enquanto ironia picaresca, pois a personalidade da personagem
Anton Chigurh é completamente diferente do seu corte de cabelo contemporâneo para a
época. Anton é, ao contrário, um ser obscuro e sisudo. Isso se vê em sua indumentária de
roupas pretas e em sua expressão facial sempre fechada. Anton é, de fato, um ser da
escuridão. No livro Da natureza dos monstros, no capítulo Psicanálise existencial dos
monstros, o professor e pesquisador de cinema Luiz Nazário (1998, p. 299) afirma que a
escuridão “é outra forma de buraco, de dentro da qual saem o assassino, o inimigo, o monstro.
Ela protege e alimenta as forças do Mal, que chegam a confundir-se com as sombras e as
trevas. A consciência enfraquece no crepúsculo e declina à noite”.
Anton é um paradoxo do devir e do acontecimento, pois ele busca controle sobre as
situações, mas sua ação ocorre à maneira do acontecimento, sem que se possa controlá-la, e é
símile ao devir, visto que sempre vem a ser mais e mais alguma coisa, no seu caso mais e
mais violência. Ele é uma máquina de matar, desejante de violência e despótica enquanto
constructo da destruição e do caos correlata ao capital como representante dele. Por isso,
Anton age na maioria das vezes à noite ou coberto pela escuridão. Tanto é assim que só se vê
ele matar à luz do dia em apenas uma cena, na qual rouba o carro de um senhor à beira da
estrada logo no início do filme.
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Mesmo em outras cenas que Anton mata durante o dia – como o delegado da primeira
sequência da narrativa e a esposa de Llewelyn Moss, Carla Jean, ao final – os atos de
violência ocorrem em ambientes fechados pouco iluminados, nos quais a personagem se
confunde com a escuridão, pois, afinal, ela é um ser das trevas. Mesmo sendo um ser humano
cheio de contradições como qualquer outro, Anton deixou-se aflorar por suas trevas, por seu
lado obscuro.
Anton é, portanto, um monstro. Quando se fala em monstros, lembra-se sempre das
personagens clássicas do lobisomem, lenda que tem sua origem ligada à mitologia grega
(principalmente à obra As metamorfoses, de Ovídio), ou das figuras monstruosas descritas nas
obras Frankenstein ou o Prometeu moderno, publicada em 1818 pela britânica Mary Shelley,
O médico e o monstro, livro de 1886 escrito pelo escocês Robert Louis Stevenson, e Drácula,
romance datado de 1897 do autor irlandês Bram Stoker. Este último é inspirado, inclusive, na
figura real do cruel Vlad III, conhecido também como Vlad Drácula ou Vlad, o empalador,
voivoda e príncipe da Valáquia (hoje uma província da Romênia) no século XV. Inimigo dos
turco-otomanos, Vlad foi capturado por eles com apenas 13 anos e lhe foi ensinado a técnica
do empalamento, que consiste em colocar os inimigos em estacas untadas de óleo que
atravessam o corpo destas pessoas (muitas vezes através do ânus ou da vagina) e matam
lentamente. Esta técnica de execução passou a ser usada por Vlad e alguns historiadores até
chegam a dizer que ele fazia as suas refeições em frente aos corpos agonizantes empalados. Já
Frankenstein é uma crítica aos cientistas ambiciosos que se acham deuses. Enquanto isso, O
médico e o monstro é uma metáfora para os paradoxos da existência humana. Daí percebe-se
que os monstros humanos estão também na vida real, pois o monstro nada mais é do que
aquele que exteriorizou as suas trevas, ou um simbolismo para o inconsciente deixando
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emergir o lado monstruoso do ser humano, à maneira da personagem Anton Chigurh. No


capítulo O que é o monstro?, ainda no livro Da natureza dos monstros, Nazário alega:

[...] o monstro surge sempre do Além: de uma cidadezinha isolada, da selva


primitiva, de uma ilha solitária, das profundezas do mar, do sono eterno, de um
mundo desconhecido, do abismo sem fim, de uma civilização extinta, do passado
remoto, de lagoas estagnadas, do futuro imprevisível, de um pântano ermo, de poços
abandonados, do reino das trevas, de laboratórios secretos – numa palavra: do
Inconsciente (NAZÁRIO, 1998, p. 22).

No que se liga ao corpo do monstro, o autor informa o seguinte:

A monstruosidade começa verdadeiramente a impor-se a partir dos olhos, da boca e


das mãos. São essas as partes do corpo que mais exteriorizam o desejo e, quando
pervertidas, na máscara monstruosa, externam o desejo perverso, desencadeado
fisiologicamente e sem controle, separado de qualquer sentimento amoroso e
inseparável do instinto de posse e destruição (NAZÁRIO, 1998, p. 12-13).

A atuação de Javier Bardem como Anton Chigurh vai na direção do que diz Nazário.
A máscara e o corpo monstruosos de Anton na construção de Bardem se valem exatamente
dos olhos, da boca e das mãos como exposição do desejo de destruição e violência da
personagem. Os olhos de Anton são sempre de uma íris parcialmente dilatada, fixa em algum
ponto e marcada pela cor escura análoga às suas vestimentas. Não é um olhar estereotípico de
um psicopata, apesar de em alguns momentos soar assim, mas é um olhar que transmite frieza
e falta de sentimentos de empatia e amor ou mesmo de ódio, pois Anton não é uma figura do
ódio ou do ressentimento, ele é a figura da carência de emoções. Já a sua boca é circunscrita
pela ausência de sorriso. Anton é um ser severo, circunspecto, que age com extrema
seriedade. Seu rosto esboça sorrisos bizarros apenas em momentos nos quais ele sente gozo ao
matar ou ao se sentir vencedor, como quando mata o delegado no início do filme ou quando
encontra-se com Carson Wells, seu último oponente no caminho de Llewelyn Moss. Por
último, as mãos de Anton sempre se mostram em gestos muitos bem pensados e suaves, pois
ele planeja cada passo de sua destruição violenta, como se ele buscasse não fazer barulho ou
chamar atenção para si, mas os rastros de sua crueldade e devastação são deveras perceptíveis.
Como discute Jeffrey Jerome Cohen (2000. p. 27), no texto A cultura dos monstros: Sete
teses, presente na antologia Pedagogia dos monstros - Os prazeres e os perigos da confusão
de fronteiras, “vemos o estrago que o monstro causa, os restos materiais [...], mas o monstro
em si torna-se imaterial e desaparece, para reaparecer em algum outro lugar”.
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Para ilustrar o caráter sombrio de Anton, entra em cena o trabalho do citado diretor de
fotografia Roger Deakins. Ele opta por uma construção de iluminação cinematográfica que
poderia ser descrita como uma tradução intersemiótica do claro-escuro do expressionismo em
uma fotografia a cores, na qual há um contraste significativo de luzes e sombras nas cenas
noturnas ou nas diurnas transcorridas em ambientes fechados. Anton, como já discutido, é
enquadrado sempre nas sombras, como se fizesse parte do escuro ou da noite. Ele torna-se
quase uma ferramenta da fotografia, uma vez que a luz é sempre desviada da personagem,
como demonstra a figura XXIV. Este contraste criado pela iluminação não tenta associar
Anton à escuridão como símbolo do mal e qualquer outra personagem às luzes como alegoria
do bem. Anton é colocado nas trevas porque ele é o ser da violência que surge do escuro e se
esconde nele, mas Anton não é o mal, ele apenas pratica o que o ser humano convencionou
chamar de mal, o que, no entanto, é nada mais do que a prática do capital. A paleta de cores
usada por Deakins para a fotografia do filme concentra-se, além do jogo de luzes e sombras,
nos tons marrons e ocres como a terra árida e dura do Texas, que, inconsciente e
metaforicamente, se reflete nas personalidades de seu povo nativo, tal como afirma Ellis a Ed
Tom ao final do filme: “esta terra é dura com as pessoas”.
No que tange outras personagens de Onde os fracos não têm vez, há aquelas
localizadas na trama como criação de confrontos com o monstruoso Anton, casos dos
antagonistas Llewelyn, Ed Tom, Carson Wells e Carla Jean. Isso se dá porque entre estas
personagens e Anton existem divergências, não porque são criados maniqueísmos. Prado,
novamente no texto A personagem no teatro, aponta o seguinte:
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Alguns teóricos chegam [...] a definir o teatro como a arte do conflito, porque
somente o choque entre dois temperamentos, duas ambições, duas concepções de
vida, empenhando a fundo a sensibilidade e o caráter, obrigaria todas as
personalidades submetidas ao confronto a se determinarem totalmente. Esta seria a
função do antagonista, bem como das personagens chamadas de contraste, colocadas
ao lado do protagonista para dar-lhe relevo mediante o jogo de luz e sombra
(PRADO, 1972, p. 92).

Llewelyn, Ed Tom, Carson Wells e Carla Jean possuem, cada um a seu modo (pois são
seres diferentes), seus próprios temperamentos, ambições e concepções de vida. Carson Wells
é interpretado pelo ator norte-americano Woody Harrelson, natural do Texas, que empresta
características de sua vivência, cultura e de seu corpo para a personagem, como o sotaque
específico dessa região do sul dos EUA, a forma de andar como um cowboy dos westerns, e o
seu figurino, formado por uma roupa estilo esporte fino e um grande chapéu. Usando a cor
cinza em sua indumentária (cor representativa da terra dura do Texas, a qual a personagem é
ligada umbilicalmente), Wells é o contraste do obscuro Anton. Carla Jean é vivida pela atriz
escocesa Kelly MacDonald, cujo forte sotaque inglês característico da Escócia – o qual a
lembrança salta a alguns filmes britânicos nos quais ela atua, como Trainspotting: Sem limtes
(1996), de Danny Boyle, Elizabeth (1998), de Shekhar Kapur, e Assassinato em Gosford Park
(2001), de Robert Altman – é substituído por uma pronúncia típica do Texas, o que é um
trabalho de preparação, construção de personagem e criação de papel muito difícil para um
ator ou uma atriz.
Entrementes, a personagem de Ellis seria o que Prado chama de contraste. Ellis,
representado pelo texano Barry Corbin (com um olhar tão profundo quanto o de Tommy Lee
Jones), é um contraste de seu sobrinho Ed Tom, pois é mais pragmático do que ele, aceitando
o fato de não poder controlar nada na vida nem no mundo. Mesmo Llewelyn sendo um dos
antagonistas de Anton, ele é um ser do agenciamento movido pelo desejo do capital. Em
suma, é o desejo do corpo sem órgãos. Llewelyn é um simples caçador aposentado e ex-
combatente da Guerra do Vietnã (1959-1975) cuja ambição fala mais alto, a ponto de arriscar
a sua vida e a de sua esposa. No entanto, como ser humano contraditório, ele possui alguma
empatia, em certo sentido motivada por uma culpa judaico-cristã, que o faz até mesmo
colocar-se em perigo, como quando, logo após pegar a mala de dinheiro no local da
negociação de drogas malsucedida, ele retorna à noite ao mesmo lugar para levar água para
um homem mexicano que viu agonizar dentro de uma picape, isso depois de não conseguir
dormir devido à culpa de haver deixado o homem sedento por um gole d’água. Quando volta
ao local, Llewelyn é perseguido por homens do cartel de drogas, por um cão treinado para
matar e acaba levando um tiro de raspão.
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Anton, ao contrário, é bastante meticuloso e metódico. Ele não se coloca em perigo,


pois mede muito seus passos. A personagem é movida pelo mesmo agenciamento maquínico
de capital de Llewelyn, mas um desejo de capital relativo à violência e à destruição. Como
ilustração do jogo de gato e rato estabelecido entre Anton e Llewelyn associado a polos do
mesmo espaço do capital, os Coen utilizam-se de enquadramentos análogos das duas
personagens em alguns momentos específicos, como se pôde ver na figura acima.
A personagem de Ed Tom é, como o balizador da narrativa, uma espécie de deus que
observa os acontecimentos sem nada poder fazer e, ao mesmo tempo, sentindo-se impotente
por isso. Segundo a linguísta e crítica literária Beth Brait, no livro A personagem, no capítulo
A construção da personagem,

o narrador pode apresentar-se como um elemento não envolvido na história,


portanto, uma verdadeira câmera, ou-como uma personagem envolvida direta ou
indiretamente com os acontecimentos narrados. De acordo com a postura desse
narrador, ele funcionará como um ponto de vista capaz de caracterizar as
personagens (BRAIT, 1985, p. 53).

O roteiro assinado pelos Coen coloca Ed Tom como narrador onisciente em primeira
pessoa apenas na cena inicial, de onde são retirados trechos de vários momentos de reflexão
da personagem do romance Onde os velhos não têm vez, de Cormac McCarthy. No restante do
filme, Ed Tom não narra da maneira epistolar como a da primeira cena, mas aparece em
vários momentos comentando as situações ocorridas na narrativa ou notícias trágicas que lê
no jornal ou anedotas violentas do Texas com outras personagens, quer seja com seu delegado
Wendell, com Carla Jean, com um velho xerife de outra cidade igualmente nostálgico pelo
passado como ele, ou com seu tio Ellis. De qualquer forma, mesmo a câmera funcionando
como o narrador durante todo o restante da história, essa narração da abertura de Onde os
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fracos não têm vez abre caminho para se pensar que tudo ali é visto pelo ponto de vista do
olhar profundo e melancólico de Ed Tom, o velho sem lugar assombrado diante do terror da
violência. Se, como dito por Aristóteles (2007, p. 43) anteriormente (no capítulo de análise de
As vinhas da ira), em Arte poética, “o historiador e o poeta não se distinguem um do outro,
pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso [...] Diferem entre si porque
um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido”, Ed Tom, por
conseguinte, narra o que aconteceu indo na direção de suas elucubrações/fabulações sobre o
que ele gostaria que tivesse acontecido. A câmera dos Coen, em um primeiro olhar,
funcionaria como um narrador em terceira pessoa, descrito por Brait (1985, p. 57) como
aquele que “simula um registro contínuo, focalizando a personagem nos momentos precisos
que interessam ao andamento da história e à materialização dos seres que a vivem”. Todavia,
em uma observação mais aprofundada e complexa, vê-se, como discutido antes, que a
narrativa conduzida pelo narrador em primeira pessoa na figura de Ed Tom logo no começo
do filme permeia toda a história. Sobre esse tipo de narrador, aponta Brait:

A condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica,


necessariamente, a sua condição de personagem envolvida com os “acontecimentos”
que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos selecionados pelo escritor
para descrever, definir, construir os seres fictícios que dão a impressão de vida
chegam diretamente ao leitor através de uma personagem. Vemos tudo através da
perspectiva da personagem, que, arcando com a tarefa de “conhecer-se” e expressar
esse conhecimento, conduz os traços e os atributos que a presentificam e
presentificam as demais personagens (BRAIT, 1985, p. 60-61).

No livro de McCarthy, os capítulos narrados em primeira pessoa por Ed Tom são


monólogos interiores, reflexões a respeito da própria existência e sobre o espanto diante da
violência inexplicável do mundo. No roteiro dos Irmãos Coen elas são todas reunidas nas
cenas inicial e final de Onde os fracos não têm vez e, no restante, das cenas, pelo olhar de Ed
Tom. Começar e terminar com o seu narrar é uma forma implícita de mostrar que a narrativa
ocorre sob seu ponto de vista de maneira congênere à argumentada por Brait. Mesmo a
narrativa se passando supostamente sob o olhar introspectivo de Ed Tom, como lembra o
crítico de cinema Rafael Amaral (2022), no texto Onde os fracos não têm vez, de Ethan e Joel
Coen, “durante o filme todo, esses três homens aproximam-se mas não se olham nos olhos um
momento sequer. Gravitam em um mesmo mundo sem que possam pedir ao outro uma
explicação”. Ainda a respeito do voltar-se para dentro de si, como faz Ed Tom, Brait reitera:

Quando a personagem expressa a si mesma, a narrativa pode assumir diversas


formas: diário íntimo, romance epistolar, memórias, monólogo interior. Cada um
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desses discursos procura presentificar a personagem, expondo sua interioridade de


forma a diminuir a distância entre o escrito e o ‘vivido’. [...] O monólogo interior é o
recurso de caracterização de personagem que vai mais longe na tentativa de
expressão da interioridade da personagem (BRAIT, 1985, p. 61).

Repete-se aqui o mais importante e revelador monólogo interior do livro Onde os


velhos não têm vez, brilhantemente traduzido quase palavra a palavra em um diálogo entre Ed
Tom e sua esposa, Loretta, no filme Onde os fracos não têm vez, conversa esta terminada com
o seguinte solilóquio:

Dois sonhos foram com o meu pai. É estranho. Sou 20 anos mais velho do que ele.
De certa forma, ele é o mais novo. Bem, o primeiro não lembro muito bem, mas eu o
encontrava em algum lugar e ele me dava dinheiro. Acho que depois perdi. O
segundo, parecia que havíamos voltado no tempo. E eu ia atravessando as
montanhas de cavalo, à noite. Por uma trilha de montanhas. Estava frio e havia neve
no chão e ele passou por mim e continuou em frente, sem dizer nada, apenas passou.
Estava com o cobertor enrolado no corpo e a cabeça estava baixa. Quando ele
passou por mim, eu vi que ele estava levando fogo dentro de um chifre como se
fazia antigamente e eu podia ver o chifre pela luz de dentro dele quase da cor da lua.
E no sonho eu sabia que ele estava indo na frente e que ele ia fazer uma fogueira em
algum lugar no meio de toda aquela escuridão e de todo aquele frio e eu sabia que
quando eu chegasse lá ele estaria lá. E então eu acordei (ONDE OS FRACOS NÃO
TÊM VEZ, 2007).

O sonho de Ed Tom traduz-se em algo pelo que se idealiza, isto é, suas meditações
internas, seus monólogos interiores sobre fazer-se “uma fogueira [...] no meio de toda aquela
escuridão e de todo aquele frio” como metáfora para o lançar-se luz para iluminar o coração
humano tomado de violência. Querer estar neste lugar de um devaneado bem é seu desejo
vindo do seu desencaixe no mundo. Acordar é para Ed Tom um pesadelo. Não há como
segurar o mundo em suas mãos e moldá-lo ou controlá-lo como se quer. Não é que se deve
conformar-se com os acontecimentos e acasos da existência, mas é compreender que o ego
não está acima dos caminhos rizomáticos do universo. Ele não gira ao redor de ninguém. Para
o universo o ser humano é nada mais do que um grão de poeira. Há sempre o inesperado
devir. A cena final de Onde os fracos não têm vez, colocada em conjunto à obscurecência de
Anton, rememora o poema As trevas do romântico George Gordon Byron, o Lord Byron,
traduzido e publicado pelo brasileiro Castro Alves no livro Espumas fluctuantes: Poesias de
Castro Alves, de 1870, cuja descrição do mundo pelo eu lírico passa pela sujeira e pela
violência ligadas às trevas como condições inerentes ao viver e ao contraditório humano,
demasiado humano. Apresenta-se o poema abaixo tal como a sua primeira publicação no
Brasil em 1870, com a reprodução do português arcaico do período:
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Tive um sonho que em tudo não foi sonho!... / O sol brilhante se apagara: e os
astros, / Do eterno espaço na penumbra escura, / Sem raios, e sem trilhos,
vagueavam. / A terra fria balouçava cega / E tetrica no espaço ermo de lua. / A
manhã ia, vinha... e regressava... / Mas não trazia o dia! Os homens pasmos /
Esqueciam no horror d’essas ruínas / Suas paixões: E as almas conglobadas /
Gelavam-se n’um grito de egoísmo / Que demandava «luz. » Junto às fogueiras /
Abrigavam-se... e os thronos e os palácios, / Os palácios dos Teis, o albergue e a
choça / Ardiam por fanaes. Tinham nas chammas / As cidades morrido. Em torno às
brasas / Dos seus lares os homens se grupavam, / P’ra à vez extrema se fitarem
junctos. / Feliz de quem vivia juncto às lavas / Dos volcões sob a tocha alcantilada! /
Horrida esp’rança acalentava o mundo! / As florestas ardiam!... de hora em hora /
Cahindo se apagavam; crepitando, / Lascado o tronco desabava em cinzas. / E tudo...
tudo as trevas envolviam. / As frontes ao clarão da luz doente / Tinham do inferno o
aspecto... quando as vezes / As faíscas das chammas borrifavam-nas. / Uns, de
bruços no chão, tapando os olhos / Choravam. Sobre as mãos crusadas —outros— /
Firmando a barba, desvairados riam. / Outros correndo à toa procuravam / O ardente
pasto p’ra funereas pyras. / Inquietos, no esgar do desvario, / Os olhos levantavam
p’ra o céu torvo, / Vasto sudario do universo —espectro—, / E após em terra se
atirando em raivas, / Rangendo os dentes, blasphemos, uivavam! / Lugubre grito os
pássaros selvagens / Soltavam, revoando espavoridos / N’um vôo tonto eo’as inúteis
azas! / As feras ‘stavam mansas e medrosas! / As víboras rojando s’enroscavam
Pelos membros dos homens, sibilantes, / Mas sem veneno... a fome lhes matavam! E
a guerra, que um momento s’extinguira, / De novo se fartava. Só com sangue /
Comprava-se o alimento, e após à parta / Cada um se sentava taciturno, / P’ra fartar-
se nas trevas infinitas! / Já não havia amor!... O mundo inteiro / Era um só
pensamento, e o pensamento / Era a morte sem gloria e sem detença! / O estertor da
fome apascentava-se / Nas entranhas... Ossada ou carne pútrida / Resupino,
insepulto era o cadáver. / Mordiam-se entre si os moribundos: / Mesmo os cães se
atiravam sobre os donos, / Todos excepto um só... que defendia / O cadáver do seu,
contra os ataques / Dos passaros, das feras e dos homens; / Até que a fome os
extinguisse, ou fossem / Os dentes frouxos saciar algures! / Elle mesmo alimento
não buscava... / Mas, gemendo n’um uivo longo e triste / Morreu lambendo a mão,
que inanimada / Já não podia lhe pagar o affecto. / Faminta a multidão morrerá aos
poucos. / Escaparam dous homens tão somente / De uma grande cidade. E se
odiavam. / ...Foi juncto dos tições quasi apagados / De um altar, sobre o qual se
amontoaram / Sacros objectos p’ra um profano uso, / Que encontraram-se os dous....
e, as cinzas mornas / Reunindo n’as mãos frias de espectros, / De seus sopros
exhaustos ao bafejo / Uma chamma irrisória produziram!.... / Ao clarão que tremia
sobre as cinzas / Olharam-se e morreram dando um grito. / Mesmo da própria
hediondez morreram, / Desconhecendo aquelle em cuja fronte / Traçara a fome o
nome de Duende! / O mundo fez-se um vácuo. A terra esplendida, / Populosa
tornou-se n’uma massa / Sem estações, sem arvores, sem herva, / Sem verdura, sem
homens e sem vida, / Cahos de morte, inanimada argila! / Calaram-se o Oceano, o
rio, os lagos! / Nada turbava a solidão profunda! / Os navios no mar apodreciam /
Sem marujos! os mastros desabando / Dormiam sobre o abysmo, sem que ao menos
Uma vaga na queda alevantassem, / Tinham morrido as vagas! e jaziam / As marés
no seu túmulo... antes d’ellas / A lua que as guiava era já morta! / No estagnado céu
murchara o vento; / Esvairam-se as nuvens. E nas trevas / Era só trevas o universo
inteiro (BYRON, 1870, p. 157-160).

O mundo é violento como o ser humano o é em suas mais variadas formas de violência
humanas, mas também é um retrato das várias máquinas despóticas do capital. Categorias
tolas como otimismo e pessimismo não dão conta de desenhar a complexidade do mundo.
Resta-se acordar para a tão brutal realidade e encará-la, ainda que se use artifícios de
alienação nos momentos de dificuldade como fogueiras feitas “em algum lugar no meio de
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toda aquela escuridão e de todo aquele frio” para se suportar o peso do existir em meio às
trevas do “universo inteiro”. O fogo do sonho de Ed Tom é como o abrigo diante do pavor do
poema de Byron, onde os “homens pasmos esqueciam no horror d’essas ruínas suas paixões”
e “gelavam-se n’um grito de egoísmo que demandava luz” (a título de ilustração, repete-se
abaixo, após a citação, a figura XXI, já apresentada nesta tese). É como medita o filósofo
alemão Martin Heidegger em Introdução à metafísica:

Quando o mais afastado rincão do globo tiver sido conquistado tecnicamente e


explorado economicamente; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a
qualquer tempo se tiver tornado acessível com qualquer rapidez: quando um
atentado a um Rei na França e um concêrto sinfônico em Tóquio poder ser “vivido”
simultaneamente; quando tempo significar apenas rapidez, instantaneidade e
simultaneidade e o tempo, como História, houver desaparecido da existência de
todos os povos; quando o pugilista valer, como o grande homem de um povo;
quando as cifras em milhões dos comícios de massa forem um triunfo, – então.
Justamente então continua ainda a atravessar tôda essa assombração, como um
fantasma, a pergunta: para que? para onde? e o que agora? A decadência espiritual
da terra já foi tão longe, que os povos se vêem ameaçados de perder a última fôrça
de espírito, capaz de os fazerem simplesmente ver e avaliar, como tal, a decadência
(entendida em sua relação com o destino do Ser). Essa simples constatação não tem
nada a ver com pessimismo cultural nem tão pouco, como é óbvio, com um
otimismo. Com efeito o obscurecimento do’mundo, a fuga dos deuses, a destruição
da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e
livre, já atingiu, em todo o orbe, dimensões tais, que categorias tão pueris, como
pessimismo e otimismo, de há multo se tomaram ridículas (HEIDEGGER, 1999, p.
64-65).

O capital causa destruições infinitesimais e constantes, mas leva o ser humano a crer
que precisa sempre de consumir mais e mais para esquecer-se do horror que é o mundo, de
seus inúmeros tipos de violência assoladores de tantos indivíduos e populações ao redor do
globo. O capital funciona como Anton Chigurh fugindo dos destroços deixados por ele em
sua última aparição em Onde os fracos não têm vez? Porém, pergunta-se, fugindo para onde?
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O capital deixa para trás seu arrasamento e ficam os seres humanos tal como os meninos que
ajudam Anton, em troca de dinheiro, entregando-lhe a camisa de um deles para fazer uma
tipoia improvisada para o braço com fratura exposta do vilão. Os meninos, depois da partida
de Anton, ficam discutindo de quem é o dinheiro e como usá-lo. O capital é assim: ele deixa
para trás as suas fraturas expostas, faz curativos provisórios e enganosos e foge, se
reterritorializando em outros espaços, tudo isso diante da passividade humana que está mais
preocupada em consumir. Não se quer, com isso, jogar culpa no ser humano. Muito pelo
contrário! Sabe-se que esse é um artifício ilusório do capital em si e sabe-se, também, que o
ser humano precisa da ilusão para viver e suportar o peso da existência. Entretanto, alguns
seres humanos mais questionadores da sua própria existência, como Ed Tom, nunca estão
conformados com esses descaminhos demolidores da eterna aporia dos agenciamentos do
capital.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAVESSIA DO FIM AO COMEÇO

Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem
na chegada: êle se dispõe para a gente é no meio da travessia.
Guimarães Rosa, 1972, p. 52

No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim.
Guimarães Rosa, 1972, p.67

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da
pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o que,
mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito
trabalho. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.
Clarice Lispector, 1979, p. 15

A proposta inicial do pré-projeto de doutorado que levou à elaboração da tese Por um


cinema impuro: A violência e o trágico em “As vinhas da ira” e “Onde os fracos não têm
vez” indicava, inicialmente, um estudo comparativista entre cinema e literatura tendo como
objetos de estudo algumas adaptações cinematográficas de contos de João Guimarães Rosa,
autor que ainda se faz presente, via citações de sua obra máxime, Grande sertão: Veredas, no
texto final da tese.
Contudo, logo no início da pesquisa, percebeu-se que era necessário a troca dos
objetos de análise. Isto se deu porque Guimarães Rosa havia sido estudado em profundidade
na dissertação de mestrado do autor desta tese, intitulada Travessia em transe: Guimarães
Rosa e o cinema de cangaço, defendida em 2016 no CEFET-MG, sob a orientação do
professor doutor João Batista Santiago Sobrinho. Nesta dissertação comparou-se o romance
Grande sertão: Veredas e outros textos de Guimarães Rosa, presentes no livro Sagarana, com
o filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, tentando se apreender e
investigar a influência sofrida pelo cineasta Rocha do escritor Rosa. O mergulho no universo
rosiano foi tamanho que foi necessário um afastamento crítico do estudo de sua obra para ir
na direção de outros mundos literários e cinematográficos de igual afeição, mas até então não
explorados pelo autor desta tese na vida acadêmica. Percebeu-se, assim, que a posterior
mudança de objetos (para As vinhas da ira e Onde os fracos não têm vez) alterou o olhar do
percurso, mas não o seu trajeto, isto é, o “meio da travessia”, para se ficar ainda em um
palavreado rosiano.
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Por fim, parte do olhar da pesquisa também foi modificado ao se sair do terreno do
comparativismo entre literatura e cinema para um ponto de vista que contempla o modo como
cada uma dessas mídias ou formas de arte se complementam e suplementam, não só na
influência que o cinema recebe da literatura, mas principalmente quando se pensa em
específico na adaptação cinematográfica em si. É como afirmam Sabrina Sedlmayer e Maria
Esther Maciel (2004, p. 7), na apresentação do livro Textos à flor da tela: Relações entre
literatura e cinema: “além de ambos serem capazes de mostrar qualquer coisa – a mesma
coisa e outra coisa – quando estão juntos [...], texto e imagem são como o corpo e a alma:
cada um é o limite do outro”. Por isso se chegou à definição de cinema impuro, de André
Bazin, acrescida da concepção de criação, de Gilles Deleuze. Desta maneira, ambos os
conceitos se tornaram acessórios e daí a pesquisa partiu com maior fluidez, trazendo-se ainda
à baila o panorama trágico e da violência do capital que perpassa as narrativas de As vinhas da
ira e Onde os fracos não têm vez.
Planejou-se colocar um filme brasileiro para análise na tese: Vidas secas (1963), de
Nelson Pereira dos Santos, ou A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral, respectivamente
adaptados dos livros Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, e A hora da estrela (1977), de
Clarice Lispector. Entretanto, não foi possível a inserção de um destes filmes. Mesmo assim,
tem-se em mente um estudo futuro sobre estas obras, que também são objetos de afeição do
autor desta tese, em projetos futuros, quer sejam artigos ou um pós-doutorado.
Constatou-se, então, nesta tese que os filmes estudados (As vinhas da ira e Onde os
fracos não têm vez) são, dentro dos conceitos de Bazin e Deleuze, adaptações criativas e
“impuras” dos livros em que seus respectivos roteiros foram baseados, o que passa, também,
por todo o processo de direção per se que envolve a realização de um produto audiovisual. A
análise demonstrou que os responsáveis pela direção dos filmes citados tomaram diversas
liberdades criativas junto à sua equipe de produção, mas mantiveram o cerne das histórias
adaptadas. Isto implica repetir que tais filmes conseguem mostrar que cinema e literatura,
apesar de suas relações uníssonas e complementares, são, concomitantemente, artes distintas,
cada uma com linguagens próprias, e, no caso do cinema, uma linguagem aperfeiçoada ao
redor do século XX através da transcriação e da intermidialidade, conceitos, nesta ordem, de
Haroldo de Campos e Claus Clüver.
Ao mesmo tempo, foi exposto na tese o caráter trágico, nos termos nietzschianos, das
escrituras de As vinhas da ira e Onde os fracos não têm vez. Elucidou-se a presença nas
respectivas narrativas de aspectos da violência do capital e de suas máquinas despóticas,
dentro de definição de Deleuze e Félix Guattari, que criaram obras abertas. Estas levam o
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espectador a pensar sobre seu mundo violentando seu pensamento na condução de seu olhar
por um caminho de imagens cinematográficas que narram desventuras de personagens
oprimidas e/ou brutalizadas pelas garras do capital.
Portanto, ao se chegar a um aparente ponto final nesta tese, acredita-se que este ponto
é apenas a afiguração inicial de outro télos, o prenúncio de novos devires, uma vez que o
estudo não termina por aqui, o que, como dito, abre novos caminhos para análises futuras, que
tragam outras perspectivas sobre a adaptação literária para o cinema vista pelo olhar da
criação. As possibilidades de posteriores estudos estão sempre em jogo, pois não há na vida
saídas e chegadas, mas sim a eterna travessia, em meio ao transe da transitoriedade que
constitui a vida em si ou ao “demônio na rua, no meio do redemunho” (ROSA, 1972, p. 77,
grifo do autor).
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