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O TESTEMUNHO1

Michael Pollak
Nathalie Heinich

RESUMO
Uma análise comparativa de diferentes tipos de testemunhos dados por mulheres
sobreviventes do campo de Auschwitz-Birkenau, desde depoimentos judiciais até
histórias de vida coletadas como parte de um projeto de história oral, passando
pela obra de caráter autobiográfico, mostram que o uso de cada uma dessas
diferentes formas de testemunho implica um conteúdo diferente em termos
do que é relatado e um significado diferente em termos de sua função (desde
a restituição dos fatos até a recuperação de um sentido de identidade). Uma
análise desse tipo mostra como procedimentos de amostragem, o método e o
objeto analisado são mutuamente interdependentes: se apenas um desses três
elementos constitutivos de uma construção científica variar, os outros dois também
mudarão. Essa abordagem permite então reconsiderar as várias interpretações
teóricas sobre a sobrevivência em situações extremas (em que as teorias de Bruno
Bettelheim e Terrence Des Près representam os dois principais polos opostos) e

Tradução | Translation
como elas se posicionam em relação ao material empírico que as endorsam ou
contradizem. Dessa forma, podemos lançar luz sobre certos problemas que não
foram adequadamente abordados por essa literatura.
Palavras-chave: testemunho, sobrevivência; campos de concentração, identidade,
métodos de pesquisa.

ABSTRACT
The testimony.
A comparative analysis of various types of testimonies by survivors from
Auschwitz-Birkenau, ranging from legal depositions to autobiographical writings
and life stories collected in the context of an oral history project, shows that
recourse to each of these different forms of testimony implies a different content
as regards what is related, and a different meaning as regards its function (ranging
form the reconstitution of events to the regaining of a sense of identity). Such
an analysis makes it possible to show how sampling procedures, the method,
and the object analysed are mutually interdependent : if any one of these
three constitutive elements of a scientific construct varies, then the other two
also change. By this means one is able to reassess how the various theoretical
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interpretations of survival in situations of extremity (in which the theories of


Bruno Bettelheim and Terrence Des Près represent the two opposing poles)
stand in relation to the empirical material which supports or contradicts them.
It thus becomes possible to shed light on certain problems which have not been
adequately addressed in this literature.
Keywords: testimony, survival, concentration camps; identity; research methods.

Esta obra está licenciada sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.
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“O testemunho é frágil,
pois nós mesmos sempre seremos”.
Louise Alcan, 1980.

Toda experiência extrema é reveladora dos elementos constitutivos


e das condições da experiência dita “normal”, cuja característica
familiar geralmente filtra a análise. Em nossa pesquisa, a experiência
concentracionária2, enquanto uma experiência extrema, é considerada
como um elemento revelador da identidade como uma autoimagem para
si mesmo e para os outros. Os condicionamentos associados a uma classe
particular de condições de existência produzem sistemas de disposição
duráveis e transponíveis, princípios geradores e organizadores das práticas
e das representações. A conformidade e a constância das práticas ao longo
do tempo, produzidas pelo habitus (Bourdieu, 1980, p. 91), indicam
sua proximidade fenomenológica com a noção de identidade, cujas
características distintivas são a coerência e a continuidade física e psíquica
do indivíduo. O habitus de uma pessoa gera todas as manifestações que
permitem que ela seja identificada e reconhecida entre todas as outras.
Ao mesmo tempo, e na medida em que os habitus são a incorporação
da mesma história compartilhada por um grupo, «as práticas que eles
engendram são mutuamente compreensíveis [...] e dotadas de um sentido
objetivo que é ao mesmo tempo unitário e sistemático, transcendendo
as intenções subjetivas e os projetos conscientes, individuais e coletivos»
(Bourdieu, 1980, p. 97).
Dessa forma, emerge um sentido comum que retira de cada indivíduo,
considerado separadamente, uma parte da preocupação existencial com
sua identidade. Esta só se torna uma preocupação e, indiretamente, um
objeto aberto à observação sociológica, quando não é mais evidente,
quando o sentido comum não é mais dado de antemão e quando os habitus
dos atores em questão, portanto suas histórias individuais, são marcadas
por muitas divergências para permitir uma compreensão recíproca quase
automática. Não é de surpreender, portanto, que os objetos empíricos de
quase todos os estudos sobre a identidade sejam avaliados em situações
de transição ou trauma que colocam os indivíduos em ruptura com seu
mundo habitual. A abordagem biográfica torna-se, então, um instrumento
privilegiado de investigação.
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Nas ciências sociais, a escolha de abordagens qualitativas, baseadas


em técnicas de tipo etnológico ou em entrevistas não dirigidas, responde
muitas vezes a problemas de delimitação da população estudada, bem
como à falta de conhecimentos prévios. São, portanto, as características
da população em questão, muito mais do que pressupostos ideológicos
e metodológicos a favor do “qualitativo” e contra o “quantitativo”, que
impõem uma abordagem baseada em histórias de vida (Catani; Mazé,
1982, p. 27; Becker, 1985, p. 191)3. Na verdade, o método biográfico nas
ciências sociais produziu os resultados mais convincentes quando aplicado
aos fenômenos de aculturação, da imigração e das relações interétnicas,

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e em momentos importantes de mudança social e econômica – cada
vez, então, que um grupo social precisa se adaptar a um novo contexto
e redefinir sua identidade e suas relações com outros grupos (Kohli,
1981, p. 273-293).4 É exatamente nessas mesmas áreas que o conceito de
identidade tem encontrado uma aplicação sociológica.
Os deportados tiveram que enfrentar esse problema duplamente:
em primeiro lugar, a prisão e a deportação os afastaram de seu ambiente
familiar e social habituais e, em seguida, os colocaram em um ambiente
prisional extremo e totalitário, com uma população composta por
uma infinidade de grupos linguísticos de origens sociais e nacionais
extremamente diferentes. Por outro lado, se a resistência à experiência
concentracionária implica manter o sentido de si, mesmo em condições
em que se é extremamente difícil assegurá-lo devido à tensão, que pode
chegar à antinomia, entre a defesa da integridade física e a preservação da
integridade moral, esse esforço se impõe não apenas durante o período de
internação, mas também depois dele. De fato, é raro que os sobreviventes
tenham reencontrado intactos seu ambiente familiar e de amizade ao
retornarem dos campos, o que, mais uma vez, exigiu grandes esforços
de readaptação à vida comum, aumentando o peso das recordações
avassaladoras. Isso mostra como foi difícil para os deportados manterem
seu senso de identidade intacto e também como, nessas condições,
qualquer testemunho dessa experiência envolve não apenas a memória,
mas também a reflexão sobre si. É por isso que os testemunhos devem
ser considerados como instrumentos verdadeiros de reconstrução da
identidade, e não apenas como relatos factuais, limitados a uma função
informativa.
No entanto, a gravidade dos problemas de identidade que a deportação
pode ter causado é justamente o que impede, muitas vezes, que as vítimas
se deem conta do que ocorreu. O silêncio deliberado, obstáculo para toda
pesquisa visando reconstruir a lógica das adaptações sucessivas às rupturas
radicais no desenrolar de uma vida, é, sem dúvida, o indicador mais
saliente do caráter duplamente limite da experiência concentracionária:
no limite do possível e, consequentemente, no limite do dizível. Somente
aqueles que viveram essa experiência podem falar dela com modo digno de
crédito, enquanto o esforço para esquecê-la ou não evocá-la publicamente
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pode ser uma condição para superar esse passado.


Essa contradição é expressa na entrevista com uma sobrevivente do
campo de Auschwitz-Birkenau, que disse, após alguns minutos de intervalo:
“Dentro do campo, muitas vezes dizíamos a nós mesmos: devemos registrar
tudo e dizer tudo quando voltarmos” e, em seguida, referindo-se ao seu
retorno: “A única coisa em que eu conseguia pensar era esquecer tudo e
começar minha vida novamente”. Outro exemplo da tensão constitutiva
dos relatos de muitos deportados: “Eu realmente acho que é muito difícil
contar a deportação porque cada pessoa vivenciou algo diferente, algo tão
particular que não é possível transmiti-lo” (Pozner, 1980, p. 50).

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Por isso, a vontade de testemunhar, sentida durante a prisão, acabou
produzindo apenas um número relativamente restrito de testemunhos. Em
razão disso, mesmo antes de se perguntar sobre as condições que tornaram
possível a sobrevivência, temos o direito de perguntar o que torna possível o
testemunho. Para interpretar o corpus de testemunhos escritos e recolhidos
por meio de entrevistas, é preciso examinar as suas diferentes formas, desde
os depoimentos judiciais até histórias de vida solicitadas, passando por
obras e artigos de caráter autobiográfico, ou ainda as entrevistas realizadas
como parte de uma pesquisa quantitativa.5 Cada um desses documentos
é o resultado do encontro entre a disposição do sobrevivente de falar e as
possibilidades de ser ouvido. Entre aquele que está disposto a reconstruir
sua experiência biográfica e aqueles que lhe pedem para fazê-lo ou estão
dispostos a se interessar por sua história, é estabelecida uma relação
social que define os limites do que é efetivamente dizível. A raridade de
testemunhos produzidos espontaneamente fora das solicitações oficiais
(de ordem judicial, científica ou histórica) é um primeiro indicador das
restrições da enunciação. Pois, embora a experiência concentracionária
seja tanto o que faz os sobreviventes falarem quanto o que, em princípio,
dá à sua história particular um interesse mais geral e justifica uma atenção
especial, o fato é que tomar a palavra6, longe de lhes “engrandecerem”,
tal como é o caso de outras “grandes testemunhas” históricas, há o risco
de reativar experiências traumáticas de acontecimentos do passado que
permanecem incompatíveis com a imagem que eles têm de si mesmos ou
de seu sentimento de identidade. A realidade dos campos de concentração
era aviltante; como podemos descrever com pudor e dignidade atos que
aviltaram e humilharam a pessoa? Tomar a palavra corresponde, muitas
vezes, a um desejo de superar uma crise de identidade ao nomear ou ao
descrever os próprios atos que a causaram. Mas a essas raras tentativas
de liberação pelas palavras, que também dependem das possibilidades
objetivas de torná-las públicas, se opõe o silêncio da maioria.
A reflexão sobre os testemunhos dos sobreviventes de campos de
concentração nos leva de volta ao problema do silêncio. Pois, longe de
depender apenas da sua vontade ou da capacidade das testemunhas em
potencial de reconstituir sua experiência, todo testemunho depende
também, sobretudo, das condições sociais que o tornam comunicável,
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condições que evoluem com o tempo e variam de um país para outro.


Mas a própria possibilidade de tornar suas memórias públicas condiciona,
por sua vez, o trabalho realizado para superar as crises de identidade que
estão na origem da necessidade, e da dificuldade, de testemunhar.

ABORDAGEM HISTÓRICA E REFLEXÃO


SOCIOLÓGICA

A análise deve, portanto, levar em conta toda a gama de diferentes


formas de testemunho, na medida em que elas condicionam o alcance e a

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natureza das informações obtidas. É por isso que, para garantir um mínimo
de unidade a esses diferentes tipos de testemunho sobre as condições de
confinamento, mas também devido ao trabalho muito pesado envolvido
em uma análise detalhada do conteúdo e das formas desses documentos,
optamos por nos limitar ao campo de mulheres de Auschwitz-Birkenau.
Diante de tal material, o historiador estará inclinado a começar
questionando a veracidade dessas fontes. De todo este material, ele reterá
o que pode ser confirmado por verificação com outras fontes. Assim,
constatando que, “do lado das vítimas, a documentação é muito reduzida”,
Miriam Novitch, no seu estudo sobre a história da deportação e da
resistência dos judeus gregos, escreve: “Sabendo que qualquer testemunho
está sujeito à cautela, procuramos entrevistar várias pessoas sobre o mesmo
assunto e verificar os fatos relatados usando outras fontes” (Novitch, 1980
p. 5; Langer, 1982, p. 3)7. Ao proceder dessa forma, eliminamos o que
não pode ser confirmado por uma pluralidade de fontes, com o objetivo
de restituir o núcleo duro do que realmente passou. Entretanto, ao fazer
isso, arriscamos obscurecer a tensão, constitutiva dos testemunhos da
deportação, entre o dizível e o indizível, abstendo-se assim, como veremos,
de levantar questões importantes sobre a experiência concentracionária.
Ao contrário, a problemática sociológica pressupõe que todo documento
tem um sentido, inclusive os documentos que os historiadores abandonam
em nome da credibilidade, sob a condição de reconstruir o sistema de
referências deste sentido.
Em vez de nos concentrarmos diretamente na informação factual,
propomos submeter um corpus composto de formas muito diversas de
testemunho a uma análise sociológica preliminar. Tal análise tende a
integrar todo o material disponível à reflexão, depois de ter colocado
cada documento no contexto da sua produção e dos seus destinatários
presumidos ou reais, de modo a estabelecer um permanente vaivém entre
o material empírico e a construção teórica. Portanto, a análise foca de
modo indissociável nos fatos relatados, na posição do narrador e seus
vínculos com os destinatários, bem como nas formas escolhidas para dar
conta da experiência.

A AMOSTRAGEM ESPONTÂNEA DOS


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TESTEMUNHOS

Esse trabalho preliminar parece ainda mais necessário, pois a


experiência concentracionária resiste à qualquer tentativa de obter uma
representatividade estatística, o que deixa margem para dúvidas sobre
uma interpretação geral. Quer estejamos falando sobre a escolha de
testemunhas para comparecer em julgamentos ou perante comissões
históricas ou do corpus constituído por escritos autobiográficos ou histórias
de vida coletadas 40 anos depois, por meio de entrevistas, o principal
“viés” de qualquer amostra, ou seja, a sobrevivência física da testemunha,

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radicaliza ao extremo este problema inerente a qualquer pesquisa, que
é a diminuição das informações e, sobretudo, da representatividade da
amostragem por meio de uma “seleção” espontânea da população estudada,
devido às características do objeto (nesse caso, indivíduos colocados em
uma situação de extermínio) e não às ferramentas metodológicas da
pesquisa. Evidentemente, nos surpreende o “cinismo” dessas observações,
cujo caráter psicológico ou moralmente insustentável culmina no uso do
termo “seleção”, utilizado aqui no contexto de uma técnica de amostragem,
embora possa ser lido também a partir do contexto de um empreendimento
genocida e de assassinato em larga escala.
No entanto, o aparente cinismo da formulação simplesmente
sistematiza, tornando-o mais óbvio, o processo que consiste em estudar
“cientificamente”, ou seja, friamente e à distância, coisas que despertam
as reações emocionais mais extremas e que geralmente são abordadas no
registro “quente” da revolta, da denúncia ou da indignação. Por seu caráter
extremo, tal objeto coloca em evidência a característica de qualquer
abordagem científica, que é, para usar uma imagem, produzir frio onde
há calor (particularidade que é muito mais visível nas ciências sociais, que,
por definição, trabalham “a quente” do que nas ciências naturais) – ou,
para retomar o termo de Norbert Elias, de impor “distanciamento”, mesmo
quando o objeto estudado espontaneamente exige um “envolvimento”
extremo (Elias, 1956, p. 226-252).8
Entretanto, a sobrevivência física da testemunha não é o único
“viés” que afeta as várias amostras espontâneas. O mesmo se aplica à
sobrevivência psicológica e moral e à definição da identidade que dela
resulta. O trabalho de superação do trauma pode envolver a repressão de
lembranças singulares ou a sua integração em um discurso muito geral
sobre os vários sofrimentos infligidos, enquanto se esquece dos pontos
de referência – nomes próprios, situações ou acontecimentos específicos
– que os singularizariam.
Todavia é mais frequente, sem dúvida, e, por definição, menos
visível, o silêncio que, ao contrário do esquecimento, pode ser escolhido
como um modo de gestão da identidade, dependendo das possibilidades
de comunicação dessa experiência extrema. Um exemplo disso é o
silêncio frequente dos judeus alemães ou das DP (“displaced persons”9;
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Jacobmeyer, 1983, p. 421)10, que optaram por ficar na Alemanha quando


retornaram dos campos de concentração. Da mesma forma, o fato de termos
encontrado, no corpus de escritos biográficos das sobreviventes do campo
de Auschwitz-Birkenau-, apenas uma alemã, uma tcheca, duas austríacas,
quatro polonesas e cinco húngaras, mas, ao contrário, nove francesas,
indica (juntamente com outros fatores especificamente culturais, como a
propensão a escrever) uma possibilidade mais favorável de reintegração e
de reajustamento à vida social na França, no retorno dos campos, do que
em outros países, onde o retorno muitas vezes significava emigração (e, em
grande escala, para os Estados Unidos e Israel), com todos os problemas

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materiais e simbólicos (recuperar uma identidade, às vezes até no sentido
mais administrativo do termo) que isso acarreta. Mas, embora o silêncio
possa testemunhar indiretamente os vários modos de gestão da identidade
que resultam do trabalho de reajustamento ao mundo comum (e, nesse
caso, o silêncio provavelmente será absoluto, relacionado ao próprio fato
de comunicar), ele também pode refletir a dificuldade de fazer com que
o relato coincida com as normas da moralidade em curso (e, nesse caso,
o silêncio estará mais relacionado, a partir de uma tomada de palavra, ao
conteúdo do que será comunicado). Essas normas predeterminam os atos
de fala por um conjunto de regras e imperativos, geradores de sanções e
censuras específicas, que serão tanto mais importantes quanto mais os
fatos sancionados forem uma questão de direito, e não mais apenas de
moral. Nesse caso, não é mais uma questão de saber se um deportado tem
capacidade física para testemunhar, mas se ele tem capacidade ética para
fazê-lo. Em outras palavras, todo testemunho está situado em um espaço
do dizível, limitado pelo silêncio absoluto devido à destruição física (e são
os milhões de deportados que só testemunham por meio de sua morte) e
pelos silêncios parciais devidos à destruição das disposições “morais” (ou
seja, psíquicas, sociais, éticas etc.) que autorizam o testemunho. É à luz,
por assim dizer, dessas zonas de sombra que é conveniente considerar a
deformação, ou a obscuridade, que caracteriza esses testemunhos.
Para ilustrar esse fenômeno, basta lembrar a desproporção entre os
mais de 1,3 milhão de pessoas selecionadas diretamente, em sua chegada,
para as câmaras de gás sem serem registradas, os 405.000 deportados
registrados no campo de Auschwitz, os 66.020 deportados contados em
janeiro de 1945 na última chamada antes da evacuação do campo, os
5.000 encontrados pelas tropas soviéticas quando houve a liberação do
campo e aqueles que deixaram um testemunho, de uma forma ou outra,
estimado em menos de 2% de todos os sobreviventes (Langbein, 1972, p.
70; Kogon; Langbein; Rückerl, 1983, p. 176; Langer, 1982, p. 54)11.
É o tema do «compromisso» que ilustra de forma mais cruel os
constrangimentos morais que impedem muitas vezes as pessoas de ter
uma tomada de palavra pública. Embora os fatos «comprometedores»
sejam parte integrante da distorção da integridade moral e da identidade
infligida pelo campo de concentração, é um tema difícil de abordar pelos
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próprios sujeitos e por aqueles que os estudam. É ainda mais difícil de


lidar porque não se trata de fenômenos absolutos, com limites traçados
de uma vez por todas, o que poderia ser claramente contrastado com o
«não-compromisso»12, mas antes de fatos submetidos a limites variáveis
de aceitabilidade, dependendo da pessoa e do momento, e que dividem
muitas vezes os sobreviventes quando eles apresentam interpretações
divergentes.
Além disso, o grau de aceitabilidade pela moralidade predominante
introduz um “viés” suplementar em uma tomada de palavra pública. A
importância desse “viés” fica imediatamente evidente pelo fato de que

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pouquíssimos testemunhos, judiciais ou não, provêm de pessoas que
ocuparam um cargo de “kapo”13, embora, como sabemos, ocupar cargos
“privilegiados” aumentava as chances de sobrevivência. Escapar do silêncio
imposto pela distância entre uma experiência extrema e a moralidade
corrente e, assim, poder se juntar às fileiras de testemunhas em diferentes
ocasiões, é uma eventualidade menos improvável quando o “privilégio”
em questão inclui alguma contrapartida em serviços prestados a outros,
quando pode ser justificado por argumentos humanitários, ou seja, de
interesse coletivo e não apenas individual. Não é de surpreender, portanto,
que em todas as categorias de depoimentos encontremos muitas pessoas
que ocuparam cargos médicos (médicos, enfermeiras).
Esse último ponto se refere não apenas às características específicas
do universo concentracionário, mas também às características pessoais,
tal como o nível de escolaridade, no caso dos médicos. Isso nos introduz
a uma terceira dimensão das condições de sobrevivência e da capacidade
de testemunhar ou, se preferir, aos tipos de “viés” (bias) na amostragem:
depois das condições físicas, psicológicas e morais da manutenção da
identidade e da possibilidade de testemunhar, precisamos abordar a
questão das condições sociais que tornam possíveis que algumas das
testemunhas em potencial, de fato, se manifestem ou sejam solicitadas
a fazê-lo. Em outras palavras, a questão não é saber unicamente o que,
nessas condições “extremas”, torna um indivíduo capaz de testemunhar,
mas também por que ele é chamado a fazê-lo, ou o que lhe faz sentir-se
socialmente autorizado a fazê-lo em um dado momento. É evidente que,
segundo esse último critério, divergem ainda mais as amostras espontâneas
propiciadas por diferentes tipos de testemunhos.

MODOS DE SOLICITAÇÃO

Um dos principais modos de organização desse material é, ao que nos


parece, a diferença entre o que poderíamos chamar de condições sociais
de tomar a palavra, entre os testemunhos solicitados de fora (no caso
dos depoimentos em processos de responsabilização de líderes nazistas)
e os testemunhos produzidos espontaneamente por uma pessoa (como
nos relatos autobiográficos) – entre esses dois polos, há testemunhos de
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importância histórica ou científica variável, produzidos mais ou menos


imediatamente após a liberação14 e de maneira mais ou menos espontânea
ou solicitada.
Entre os materiais analisados como parte desta pesquisa, os
depoimentos judiciais e, em menor grau, os depoimentos prestados perante
comissões de inquérito histórico, são o resultado de uma relação social
amplamente determinada pelo destinatário do testemunho, que, além
disso, o solicitou. As dezesseis histórias de vida coletadas por entrevista,
usando técnicas de história oral, também foram solicitadas, mas precedidas
por uma negociação entre entrevistador e entrevistado que contribuiu

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fortemente para a definição dessa relação social específica, cujo objetivo
é a reconstrução de uma história pessoal. Por fim, as autobiografias
publicadas traduzem o desejo do autor de falar publicamente, mas
também sua capacidade de acessar um “mercado” (mesmo que apenas
um mercado editorial). Em consequência, o grau de espontaneidade com
que uma pessoa fala deve ser considerado como um indicador de sua
relação com sua identidade. E cada uma dessas modalidades implica um
conteúdo diferente em termos do que é relatado e um sentido diferente
em termos da função desempenhada ao se tomar a palavra (Bourdieu,
1982, p. 14-15).15
Em seguida, analisaremos o impacto do uso privilegiado desta ou
daquela forma de testemunho – ou seja, a relação privilegiada com este
ou aquele mercado, envolvendo esta ou aquela forma de censura ou
incitação – sobre as informações e interpretações que elasautorizam ou
proíbem. Dessa forma, evitando oposições fortemente constituídas – como
a que existe entre o “quantitativo” e o “qualitativo”, entre o trabalho de
arquivo e a história oral – e evitando também a tentação de transformar a
abordagem biográfica nas ciências sociais em uma forma exclusivamente
literária (Chamberlain; Robin, 1985)16, gostaríamos de mostrar como a
amostragem, o método e o objeto analisado se condicionam mutuamente:
se, desses três elementos constituintes de uma construção científica,
apenas um varia, os outros dois também mudam. Este trabalho também
deve esclarecer determinados problemas que, em nossa opinião, foram
mal abordados na literatura sobre sobrevivência em condições extremas.

O DEPOIMENTO JUDICIAL

Entre as várias formas de testemunho, o depoimento judicial representa


um polo extremo: tanto em termos da forma como o testemunho é solicitado
quanto em termos da generalização da experiência individual; essa
característica é ainda mais saliente no caso dos campos de concentração,
pois levou à invenção da categoria penal mais geral de todas, a de “crime
contra a humanidade”. Tomar a palavra em situações oficiais, seja perante
comissões de inquérito como parte da investigação de um caso, seja durante
julgamentos, são as primeiras ocasiões de romper com o silêncio. Nesse
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contexto, ao mesmo tempo impessoal e constrangedor, o testemunho


é restrito a um número limitado de eventos, em resposta a perguntas
precisas. A pessoa que testemunha tende, então, a desaparecer por trás dos
poucos fatos cuja “verdade” deve ser restituída, enquanto seu interlocutor
não é nem um colega, nem um parente, nem um confidente, mas um
profissional da representação jurídica do corpo social. Esses depoimentos
judiciais têm, portanto, as marcas dos princípios da administração da
prova jurídica: limitação ao objeto do processo, eliminação de todos os
elementos considerados irrelevantes. Com a obrigação de dar à defesa a
possibilidade de apresentar todas as suas provas e justificar sua decisão

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com base em todos os depoimentos prestados durante as deliberações,
o juiz cria, por assim dizer, um material que deve permitir que ele (e,
posteriormente, os historiadores) se aproxime de uma visão “justa”
(“verdadeira”) da realidade, por meio de sucessivas verificações cruzadas.
As marcas desses depoimentos são os protocolos formalizados:
número do ato judicial; título do processo, data e hora do comparecimento
da testemunha; nome do secretário do protocolo; nome, data e local de
nascimento, profissão, endereço da testemunha; depoimento seguido
de uma fórmula jurídica de estilo: “ditado em voz alta, autorizado e
assinado”, “estou preparado para repetir essas declarações perante um
tribunal alemão”; “eu, abaixo assinado... asseguro que as declarações acima
correspondem à verdade”, seguido da assinatura da testemunha (Centre
de documentation juive et contemporaine - CDJC, dossiê CCCLXI).17 A
linguagem usada nesses depoimentos, que variavam de duas a dez páginas,
é sóbria e reduzida ao mínimo de informações. É feita uma clara distinção
entre fatos e pessoas que a testemunha viu e conheceu pessoalmente e
aqueles sobre os quais ouviu falar. Assim, em seu depoimento de 2 de
junho de 1959, o Dr. Ella Lingens fez distinção entre os médicos da SS18
que eram seus superiores hierárquicos (Rohde, Klein, Kônig, Mengele)
e aqueles que só vinham em certas ocasiões, “na maioria das vezes para
realizar seleções” (Kitt, Thilo, Wirths, Clauberg – no bloco 10) (CDJC,
dossiê CCCLXI - 13). Da mesma forma, a testemunha Raya Kagan, que
trabalhou no escritório de status civil do Politische Abteilung em Auschwitz,
distingue, ao descrever os SS para os quais ela teve que fazer trabalho
de secretaria ou tradução, entre características que ela pode confirmar
(como títulos militares exatos e a origem geográfica de alguns) e outros
para as quais ela só pode dar aproximações, como a idade (CDJC, dossiê
CCCLXI - 10).
Quando esses testemunhos judiciais fazem uma apreciação de uma
determinada pessoa, quase sempre é especificado se ela é comumente
aceita entre os deportados ou se é a avaliação pessoal da testemunha.
Esses depoimentos indicam as relações diferenciais que podiam ter se
estabelecido entre os deportados e o pessoal da SS: “O SS-Oberscharfihrer
Emil Seibt... da Sudetenland, comportou-se conosco de maneira muito
decente e correta”, “SS-Uscha Schmidt... foi muito brutal e nos importunava
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o máximo que podia”, “O SS-Uscha Albrecht de Lodz... falava russo e


polonês razoavelmente bem. Como eu também falava esses dois idiomas,
ele às vezes conversava comigo de forma muito amistosa. “De vez em
quando, eu trabalhava como intérprete para a SS-Rottenfúhrer Broad...
Broad era refinado e astuto e conduzia os interrogatórios com muita
habilidade. Em minha presença, ele não maltratava nenhum prisioneiro
durante os interrogatórios. Ocasionalmente, ele dava tapas e chutes. Para os
prisioneiros, os interrogatórios de Broad eram muito perigosos porque ele
obtinha os mesmos resultados, por assim dizer, por um método suave, ou
seja, na maioria das vezes ele fazia com que os prisioneiros confessassem”...

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“Federsel era inexperiente e causava uma impressão incômoda durante os
interrogatórios... Federsel batia nos prisioneiros, mas não era perigoso”
(CDJC, CCCLXI - 10, p. 1-7). Da mesma forma, Ella Lingens faz uma
forte distinção entre os médicos da SS: “Eu tinha a impressão de que o
Dr. Rohde e o Dr. Kônig só se dedicavam a essa atividade (as seleções)
a contragosto e sob a influência de grandes doses de álcool. Com esses
dois, era possível ter seus julgamentos revisados e salvar esta ou aquela
mulher da câmara de gás... O Dr. Klein era um antissemita selvagem que
admitiu, em conversas particulares comigo, que os prisioneiros eram
exterminados em grande escala... O Dr. Mengele representava o puro
tipo de cínico, que apontava o dedo para a direita e para a esquerda e,
assim, decidia a vida e a morte com um dar de ombros e um assobio”
(CDJC, CCCLXI - 13, p. 2).
Os princípios da administração da prova jurídica eliminam as
emoções do testemunho, bem como qualquer coisa que não estejam
diretamente relacionadas ao caso, ao ponto de, às vezes, essa restrição ter
transformado o interrogatório dos sobreviventes em um questionamento
de sua memória e, em última análise, um questionamento de suas
informações. Da mesma forma, e para evitar que as emoções influenciem
o julgamento, sua expressão é rigidamente controlada pelas regras do
processo, que vão desde a “chamada à ordem” até a suspensão da sessão.
Forçar o testemunho nesse molde significa forçar o sobrevivente a rever
seu sofrimento e ficar cara a cara com aqueles que o infligiram, sem lhe
oferecer em troca a menor chance de compaixão emocional. Apesar da
esperança de chegar à verdade dessa forma e ver os responsáveis punidos,
essa situação constrangedora pode ter dissuadido muitos sobreviventes de
comparecer (Langbein, 1972, p. 570). Consequentemente, os depoimentos
judiciais lançaram luz principalmente sobre os acusados, ou seja, a SS
(equipe de guarda e médicos), e sobre o relacionamento entre a SS e os
deportados. Além disso, há alguns casos de kapos sendo julgados por
crimes semelhantes aos cometidos pelos SS e por colaborar ativamente
com eles. Mas, em geral, os testemunhos judiciais fornecem poucas
informações sobre as relações sociais entre os deportados, ao contrário,
como veremos, dos testemunhos para uso histórico.
62

O TESTEMUNHO HISTÓRICO

A memória que se exprime nas declarações feitas perante comissões


históricas e diversos centros de pesquisa – sejam diretamente após a
guerra, sejam, de forma mais ocasional, posteriormente –, segue outros
princípios de seletividade. Resulta tanto das perguntas feitas pelos
entrevistadores como das associações livres feitas pelo sobrevivente
durante a entrevista. O objeto destes testemunhos para uso histórico
não se limita a um caso específico (um conjunto definido de pessoas e
acontecimentos), e autoriza uma maior diversidade de formas de expressão

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do que o testemunho judicial. Sem pretender aqui fornecer uma análise
detalhada destes testemunhos, que são muito numerosos e cuja extensão
varia entre algumas páginas e várias dezenas de páginas, uma leitura mais
atenta dos dossiês relativos ao campo de Auschwitz-Birkenau19 revela os
princípios que organizam esses relatos, seus temas e seu estilo. Embora
poucos deles possam ser considerados como casos puros de um tipo
ou de outro, foi feita uma distinção entre testemunhos quase judiciais,
testemunhos políticos e os testemunhos de caráter científico. Por falta de
termo melhor, classificamos como testemunhos “pessoais” aqueles que
não se enquadram em nenhuma destas três categorias.
Assim, certos testemunhos históricos são constituídos de forma
idêntica aos depoimentos judiciais, e são por vezes comunicados aos
procuradores e juízes responsáveis pela investigação de julgamentos contra
criminosos de guerra: alguns nomes de SS são seguidos da descrição da
sua personalidade e de acontecimentos particularmente pesados. Estes
testemunhos provêm principalmente daqueles que, através do seu trabalho
no campo, foram colocados em contato direto com os responsáveis SS:
no Schreibstube e no Politische Abteilung (secretários e intérpretes), no
Revier (médicos), no serviço de investigação de Raisko20.
Os testemunhos de natureza explicitamente política são bastante
raros entre os depoimentos encontrados nos arquivos, e mais raros entre
as mulheres do que entre os homens. O termo “político” aqui utilizado
não coincide necessariamente com o estatuto do deportado segundo os
motivos oficiais da sua prisão e da sua classificação no campo, assinalada
por um triângulo vermelho (deportado político) – sendo esta última
classificação, aliás, praticamente nunca invocada nos depoimentos. O
termo “testemunho político” aqui refere-se antes ao conteúdo, na medida
em que estes testemunhos são provas de uma organização de resistência
clandestina, datando mais precisamente entre maio e julho de 1943
a tomada de posições-chave no campo por deportados políticos com
triângulo vermelho.
Outros testemunhos também atestam, por parte dos deportados
políticos, uma “avidez de conhecimento e uma vontade de lutar contra o
embrutecimento21, mas devemos aguardar publicações posteriores para
termos detalhes sobre as redes políticas no campo. Há também informações
62

sobre a organização interna do campo pela administração dos presos


instituída pelos SS, bem como dos diferentes grupos de internadas de
acordo com a sua nacionalidade e o seu estatuto. Tudo indica também que
a solidariedade estritamente política, ampliando compromissos anteriores,
só conseguiu estabelecer-se entre os comunistas22, enquanto “resistência”
é um termo pelo qual os antigos deportados designam frequentemente
qualquer forma de solidariedade e apoio, visando a salvar o maior número
de presos – foi muito além do quadro de uma organização política mais
formal: era feita através de contatos informais e por consenso implícito,
muito mais do que com base em discussões ou decisões. As informações

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que não provêm da valorização do grupo dos “políticos” ou das atividades
de resistência, têm por objeto a denúncia dos compromissos de certos
detidos com os SS: “Os verdes alemães (criminosos) e os polacos foram
tão cruéis como os SS”23; “Em Drancy tinha uma terrível luta de classes
por parte dos judeus ricos e colaboradores... as jovens ucranianas eram
muito antissemitas.24
O relativo silêncio sobre a organização política concreta, dentro do
campo, bem como sobre o trabalho anterior à tomada de controle, entre
maio e julho de 1943, pelos presos políticos às custas dos criminosos que
portavam os triângulos verdes, pode ter uma multiplicidade de razões e, em
primeiro lugar, a dificuldade em retratar verbalmente ações clandestinas
realizadas informalmente graças a uma confiança muitas vezes espontânea.
Mas a esta razão acrescentamos outra, ligada à sobrevivência em situações
extremas. Independentemente da sua vontade, as condições do campo
de concentração colocam os deportados num universo onde operam
lógicas competitivas às quais ninguém se submeteria voluntariamente.
Os esforços para ocupar posições-chave, individual ou colectivamente,
expuseram os presos ao julgamento de outros, na medida em que o poder
de ajudar os outros estava inseparavelmente ligado a certos privilégios
inerentes a essas posições. De modo que este julgamento pode assumir
a forma do consentimento e do reconhecimento, mas também pode
ir até à acusação aberta, como quando os comunistas são designados
como “verdadeira Maçonaria... mestres da Arbeitstatistik (estatísticas
dos comandos laborais), portanto responsáveis da vida e da morte dos
outros... a resistência consistia apenas em ‘esconder’ as prisioneiras que
os comunistas estavam interessados”25. Nota-se, no entanto, que estas
acusações só são feitas nos casos em que o princípio de pertença a um
grupo é explicitamente ideológico (comunistas); quando é de ordem
religiosa ou, sobretudo, civil (nacionalidade), a prioridade dada aos
pares na solidariedade não parece escandalosa nem chocante. Assim,
não parece que alguém tenha acusado (pelo menos até o nível judicial)
um detido francês de ter ajudado principalmente outros franceses. Além
disso, como são extremamente raros os testemunhos que se referem
direta ou indiretamente à competição entre diferentes grupos de reclusos
por cargos de gestão, podemos pensar que tais conflitos permaneceram
62

invisíveis para o grande número de deportados, que, de fato, se viram


excluídos dessa competição.
Os testemunhos que poderiam ser classificados na categoria “científica”
organizam-se menos em torno de pessoas e acontecimentos do que em
torno de “temas”. Muitas vezes não são o resultado de uma entrevista,
mas foram depositados pelo autor nos arquivos de centros de investigação
especializados. Dispomos, por exemplo, de relatos muito precisos sobre
as experiências humanas e sobre o destino dos recém-nascidos no Revier
(os blocos hospitalares), ou mesmo sobre as pesquisas botânicas nos

n. 62 | 2023 | p. 353-417 365


jardins e laboratórios de Raisko e as visitas científicas e comerciais que
ali foram realizadas26.
Os testemunhos de tipo “pessoal”, muitas vezes muito curtos e por
vezes com um estilo desarticulado, revelam uma grande solidão, um
isolamento social rompido por alguns laços muito fortes de amizade e
solidariedade. Pela impossibilidade de dar sentido ao sofrimento vivido ,
certas passagens destes testemunhos, na sua descrição direta e desprovida
de qualquer emoção, impressionam pelo seu caráter lacônico. O que
noutro contexto poderia parecer uma relação cínica com a realidade,
aqui evoca o horror de uma forma particularmente crua: como esta
deportada que nota que a orquestra teve uma vida invejável e que seu
trabalho preferido, também o mais fácil, era o de despir os mortos27.
Podemos também perguntar até que ponto esta impressão não resulta
aqui do fato do testemunho não ser mais mediado por um trabalho de
“interesse geral” (seja na estigmatização do grupo de adversários SS,
seja pela heroicização do grupo de iguais), e ao mesmo tempo escapa às
normas da moralidade vigente.
Mas mesmo os testemunhos classificados como pessoais, não
correspondendo às categorias judicial, científica e política, dificilmente
deixam transparecer quaisquer fatos estritamente “pessoais”, sentimentos,
reações, emoções. Esse caráter rudimentar e miniatural dos relatos
é sintoma de uma tensão entre o desejo ou a obrigação de falar e a
incapacidade de fazê-lo.
Assim, para além de algumas informações sobre os comandos de
trabalho dos quais pertenceram, sobre as mortes, as brutalidades e os
crematórios que observaram, muitos sobreviventes só conseguem dar
conta desta experiência através de fórmulas neutras: “Sabíamos que
estávamos lá para morrer e nós nos resignamos a isso. Nos primeiros dias,
as chaminés dos crematórios, com a sua grande chama vermelha contínua,
nos impressionaram muito, mas depois já não prestamos atenção a essas
coisas”28. “No campo de concentração, era impossível praticar uma moral
de sacrifício”29. Muitas vezes, também, a experiência pessoal é relatada na
terceira pessoa: “Enfim, elas recebem a visita de ex-detentas que parecem
ter um prazer maligno de ensinar-lhes o que se passa e o que os rodeia”30.
O que vivenciaram permanece tão incrível e difícil de relatar que um
62

deportado disse que “parece que um SS ficou impressionado pelo fato do


extermínio organizado neste campo pudesse ter existido”31.
Por consequência, embora sejam mais ricos que os depoimentos
judiciais em informações sobre as relações entre os deportados, estes
testemunhos não permitem a sua reconstrução, devido ao seu caráter
lacunar.

UMA VISÃO SOCIOGRÁFICA

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A pesquisa sociográfica sobre o comportamento no universo
concentracionário foi realizada entre 1949 e 1951 por um grupo de
sociólogos e psicólogos sociais da New School for Social Research e
da Universidade de Columbia. Escolhidos em função da riqueza de
informações, os 507 documentos de entrevistas individuais ou em pequenos
grupos que foram analisados relatam as experiências de um grupo de 728
judeus húngaros deportados que retornaram ou passaram por Budapeste
em 1945 e solicitaram assistência para o Joint Distribution Comittee.
Portanto, não cumprem os critérios de uma amostragem representativa32,
o que, além disso, na ausência de listas confiáveis da população dispersa
após a libération por todas as direções, não teria sido possível.
Esta pesquisa ainda é a que mais se aproxima, dentre todas as pesquisas
sobre a experiência concentracionária, de uma certa representatividade.
Outras características deste grupo: são judeus deportados depois
de abril de 1944, que passaram no máximo um ano num campo de
concentração e que, em sua grande maioria, passaram por Auschwitz.
Nenhum dos entrevistados havia vivido em outro campo de extermínio.
Há mais mulheres do que homens (384 contra 341), as faixas etárias mais
representadas são as nascidas entre 1905-1910 (75), 1911 e 1915 (85),
1916 e 1920 (105), 1921-1925 (172), 1926 -1929 (144), portanto aqueles
que tinham entre 15 e 40 anos em 1945. Apenas dezesseis pessoas tinham
menos de 16 anos em 1945, o que corresponde à idade abaixo da qual
estariam quase automaticamente selecionados para a câmara de gás na
chegada em Auschwitz.
O que torna este trabalho particularmente interessante é a representação
de todas as categorias sócio-profissionais neste grupo, enquanto as
declarações judiciais, como vimos, privilegiam as pessoas que tinham
conhecimento pessoal do funcionamento do campo e dos responsáveis
dos SS, portanto deportados recrutados para cargos de gestão e médicos.
Estes “profissionais” (profissões liberais, profissões baseadas em estudos
universitários) representam apenas 8% dos entrevistados nesta pesquisa,
enquanto os trabalhadores representam 27%, os agricultores 11%, os
pequenos empregados 6,5%, os comerciantes e empresários 5,5%, os
estudantes 12%, e as mulheres em situação de dependência (donas de casa
ou ajudantes de negócios familiares ou domésticos sem estatuto oficial)
62

10% (20% delas mulheres sozinhas).


Estabelecidas por razões científicas, nomeadamente o estudo dos
efeitos da experiência concentracionária, bem como por razões jurídicas,
estas entrevistas centraram-se nas privações físicas e psicológicas, nos
conflitos e na cooperação entre deportados (individualmente e em
grupo), nas mudanças ideológicas, políticas e religiosas, na interpretação
da sobrevivência, na sexualidade, nas amizades no campo, nas formas
de agressividade e no fenômeno do suicídio. Para manter a diversidade
das experiências pessoais relatadas e não criar uma falsa homogeneidade
do material, os autores preferiram indicar tendências e ilustrá-las com

n. 62 | 2023 | p. 353-417 367


excertos de entrevistas ao invés de construir tabelas e cálculos considerados
enganosos.
O resultado desta pesquisa é uma reconstrução da percepção e
adaptação às condições do campo. As passagens mais longas são dedicadas
ao trabalho: os sobreviventes classificam as diferentes tarefas por meio
de uma escala, principalmente em razão de sua dificuldade física. No
topo da escala, estão o trabalho de gestão do campo (desde culinária,
administração até medicina), o trabalho feito para os funcionários da SS
(limpeza doméstica, reparos, construção) e a supervisão do trabalho dos
outros, o trabalho especializado em fábricas, para chegar, mais abaixo, nos
trabalhos não qualificados de terraplenagem e construção, e no trabalho
agrícola (Goldstein et al., 1949-1951, p. 32). A adaptação ao campo
aparece nessas entrevistas como resultado de uma vontade consciente
de sobreviver e de se acostumar com a onipresença da morte. Contudo,
este processo de adaptação se choca com limites cada vez que a morte
atinge uma pessoa próxima (Goldstein et al., 1949-1951, p. 140). Em
nenhum caso, essa adaptação pode ser interpretada como uma expressão
de apatia ou indiferença, a menos que reconheçamos nas formas de
anestesia emocional uma infinidade de significados, desde o sentimento
de total desamparo, até uma mudança duradoura diante da morte, agora
vivenciada como um fenômeno cotidiano, através de técnicas de retenção
de emoções em nome da proteção de si mesmo. Ao contrário, não foram
constatados fenômenos de amnésia, ainda que a forma destas entrevistas
não implicasse um relato cronológico exaustivo.
Estes relatos da experiência concentracionária falam quase
exclusivamente das relações entre deportados, o que confirma a análise
segundo a qual o sistema concentracionário minimizava os contatos
diretos com os SS ao delegar tarefas de gestão aos internados (Kogon,
1947; Rousset, 1946, p. 158-162). As reações emocionais no próprio
momento da libération ainda trazem todas as marcas: enquanto várias
histórias relatam ataques contra os kapos, até mesmo assassinatos, como
uma espécie de justiça espontânea, não encontramos nestas histórias
nenhum vestígio de retaliação contra os antigos SS, nem sentimentos de
vingança, – o que é confirmado pela ausência de tais atos, fora dos canais
oficiais de justiça, durante um período mais longo.
62

De um modo geral, a experiência concentracionária não parece ter


alterado profundamente convicções políticas e religiosas profundamente
enraizadas. Tal como já aconteceu com os testemunhos históricos,
poucas pessoas neste estudo relatam opiniões políticas muito marcadas.
Conversões ao catolicismo, por vezes de natureza ostensiva, nos meses
anteriores ao início das deportações, são tentativas práticas de escapar
à repressão e não uma mudança de fé. Poucas entrevistas indicam um
fortalecimento ou uma perda de fé entre os crentes: em vez disso, estamos
testemunhando uma identificação mais forte com um judaísmo entendido
como uma comunidade de destino. Em alguns casos, a repressão conseguiu

368 n. 62 | 2023 | p. 355-417


até transformar em orgulho um sentimento de pertencimento vivido
de forma vergonhosa por ter sido sinônimo de desespero (Goldstein
et al., 1949-51, p. 104). Consequentemente, os projetos de emigração,
em particular para Israel, são quase sempre motivados pelo desejo de
deixar os locais de memória das atrocidades, e de se reunir com entes
queridos – razões religiosas ou políticas, como uma convicção sionista,
aparecem apenas em dois casos (Goldstein et al., 1949-51, p. 104), desejo
que, portanto, influencia os problemas de organização da vida material
após a liberação, e que é tanto mais forte quanto a memória da repressão
nazista está associada à experiência do antissemitismo anterior (este fato,
observado na Hungria, aplica-se de forma mais geral à Europa Central e
Oriental e desempenha um papel muito menor na Europa Ocidental e,
particularmente, na França).
A readaptação à vida normal após a liberação corresponde muitas
vezes ao início de uma nova vida, à escolha da emigração. Os sobreviventes
tiveram que realizar este empreendimento superando o trauma do campo
de concentração, ou, expressando-se de forma positiva, graças a ele. Na
verdade, muitos deles relatam as experiências concentracionárias como
se tivessem agido permanentemente sob o efeito de um desdobramento,
uma separação entre um eu observador e um eu observado. Este fenômeno
de desdobramento, mais ou menos fortemente desenvolvido, pode ser
fonte de paralisia ou, pelo contrário, de uma lucidez social que permite
um reajustamento particularmente rápido e eficaz a uma multiplicidade
de contextos imprevistos e estranhos.
Melhor do que os depoimentos judiciais e os testemunhos históricos,
esta apresentação sociográfica pode, portanto, informar-nos sobre a
realidade concentracionária, sobre as relações sociais que se estabeleceram
no campo, bem como sobre as percepções e as modalidades de adaptação
a esta realidade. Por outro lado, lança pouca luz sobre a administração
SS, o que as outras duas fontes apresentadas antes expõem mais como
seu objeto principal. Além disso, sobre a readaptação dos sobreviventes
à vida civil e sobre as consequências em longo prazo da experiência
concentracionária, ela levanta questões sem ser capaz de fornecer respostas.
Daí a necessidade de recorrer a outro corpus de testemunhos, diferentes
tanto na sua natureza como nos métodos de análise que exige. Este
62

problema de método refere-se, mais geralmente, à questão do vínculo


entre a formação de memórias individuais e coletivas após a liberação, o
que apenas materiais adicionais podem elucidar.

RELATOS BIOGRÁFICOS

As entrevistas de história oral e os escritos autobiográficos são,


de todos os materiais, os mais ricos em informações Eles podem nos
esclarecer sobre os modos de adaptação a este contexto que rompe com
o mundo habitual. Perante o silêncio dos documentos de arquivo, apenas

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histórias de vida detalhadas permitem estudar as articulações entre a
experiência concentracionária, a vida anterior e o trabalho de adaptação à
vida cotidiana no regresso dos campos (o que quer dizer que só podemos
propor aqui uma problemática e uma interpretação, e não aspirar a uma
análise exaustiva). Estes documentos biográficos resultam da vontade do
autor de recordar e de transmitir as recordações. Isto também significa
que a riqueza de informações que contêm deve ser representada de acordo
com as lógicas que possam controlar as diferentes maneiras de dar conta
da sua vida. Para isso, analisamos um corpus de 16 entrevistas realizadas
na França, Áustria, Alemanha e Polônia, e 25 escritos autobiográficos de
sobreviventes do campo de mulheres de Auschwitz-Birkenau, publicados
entre 1945 e 1981 em francês, inglês ou alemão. Dois escritos inéditos
nos foram confiados pelos seus autores33.
Tal como são os outros tipos de “amostras espontâneas”, os
testemunhos judiciais e históricos, o corpus de relatos de sobreviventes
do campo de Auschwitz-Birkenau está sujeito a “vieses” que afetam a sua
“representatividade”, uma vez que tentamos utilizá-los como instrumentos
de investigação sobre as condições de sobrevivência e, mais genericamente,
sobre crises de identidade em situações extremas. Um dos vieses mais
visíveis está ligado à idade, atribuível às formas de mortalidade no campo
que, através do assassinato direto (seleção na entrada) ou indireto (exaustão
e abuso), afetam principalmente os indivíduos mais fisicamente fracos
e, em em particular, os mais velhos e os mais novos. No nosso corpus,
apenas dois dos 27 escritos provêm de mulheres com mais de 40 anos e
três de mulheres com 15 ou 16 anos quando entraram no campo. Todas as
entrevistas foram realizadas com mulheres que tinham entre 20 e 40 anos.
Da mesma forma, as datas de internamento (1943 para 10 das mulheres
entrevistadas, 1944 para 6 delas; e para os relatos autobiográficos, 1944
para 12, 1943 para 7, 1942 para 2 delas) lembram-nos que as chances de
sobrevivência eram superiores em função da duração do internamento.
De acordo com estes dois critérios: idade e tempo de permanência
no campo, os relatos coletados sistematicamente na liberação e a amostra
espontânea de entrevistas e publicações biográficas não diferem muito.
Contudo, estes dois fatores, que são os indicadores mais salientes das forças
de resistência física, não são os únicos “ vieses ” que afetam a amostra de
62

entrevistas e publicações autobiográficas. Há também o das características


sociais, segundo o qual as entrevistas e os escritos autobiográficos são
os que mais diferem. Estes últimos, aliás, estão diretamente ligados
ao manejo da escrita, às regras de composição e à formatação de um
texto, o que implica um alto nível de estudo; nove mulheres concluíram
o ensino secundário e nove concluíram o ensino superior. A origem
social, especificada em apenas pouco mais da metade dos escritos, vai
da pequena burguesia comercial às profissões liberais e ao comércio em
grande escala. A origem social das mulheres entrevistadas é mais baixa:
um quarto vem da classe trabalhadora, um quarto da pequena burguesia

370 n. 62 | 2023 | p. 355-417


comercial, duas da grande burguesia comercial e das profissões liberais,
outras duas da burguesia intelectual. O seu nível de escolaridade também
é mais baixo: um quarto concluiu o ensino superior, um quarto tem o
ensino secundário, duas eram estudantes no momento da detenção, o
restante não passou do ensino primário.
Na constituição de um corpus de biografias, a história oral permite,
portanto, ampliar o material de pesquisa em direção à base da escala
social. Mas permanece o fato de que, em ambos os casos, a origem social
e o nível de escolaridade são muito mais elevados do que na pesquisa
sociográfica mencionada anteriormente. Esta sobrerrepresentação do topo
da escala social no material biográfico reflete uma realidade específica de
qualquer amostra espontânea, e relativamente independente do fenômeno
concentracionário ao qual apenas acrescenta os constrangimentos
adicionais de enunciação: notadamente o silêncio dos dominados, que
nada autoriza ou incentiva a contar de uma vida em que a qualidade da
própria pessoa não parece suficiente para conferir um interesse de ordem
mais geral.
Estes parâmetros ligados à pessoa (nível de estudos e origem social)
manifestam-se também no fato de um grande número de autores de
autobiografias estarem entre os raros casos de indivíduos que conseguiram
demonstrar competências incorporadas no campo. Um quinto dos escritos
autobiográficos vem de médicos ou enfermeiras; um escrito vem de
uma musicista designada para integrar a orquestra34, um outro de uma
intérprete do Politische Abteilung (o centro das autoridades de gestão dos
campos da SS); a maioria dos outros diz respeito às mulheres designadas
rapidamente após a sua chegada aos comandos apresentados na literatura
como locais de trabalho necessário: a estação de Raisko, o “comando de
batata”, o papel de empregada doméstica para os SS, o “Canada” (o depósito
dos objetos retirados dos deportados em sua chegada e que abasteciam
o mercado negro do campo), ou mesmo a fábrica, ao invés do trabalho
de terraplenagem. Observamos o mesmo fenômeno nas entrevistas, mas
em menor proporção, uma vez que as posições “privilegiadas” (de tipo
exclusivamente médico) representam apenas um terço dos casos. Note-se
a exceção que constitui a entrevista com uma kapo, posição ambígua e
muitas vezes apresentada como necessariamente comprometedora, o que
62

torna improvável uma publicação autobiográfica.


Comparado às formas menos individuais de testemunho obtidas pelos
depoimentos judiciais, os relatos históricos ou aos dados sociográfico, o
corpus das narrativas biográficas oferece, portanto, recursos metodológicos
específicos. Propomos agora analisá-lo, começando pela forma mais
“solicitada” (as entrevistas) e concluindo com a mais “espontânea” (as
autobiografias).

A CONTRIBUIÇÃO DA HISTÓRIA ORAL

n. 62 | 2023 | p. 353-417 371


Apesar da relativa ampliação da população atingida, em comparação
com as publicações autobiográficas, uma pesquisa de história oral não
possibilita, de forma alguma, dar voz àqueles que se dedicaram ao
silêncio, nem preencher esse silêncio com interpretações arriscadas. No
entanto, a pesquisa revela as condicionantes estruturais que dão origem
ao silêncio, bem como as funções que ele assume35. Para fazer isso, no
entanto, é necessário nos distanciarmos de certas pressuposições ingênuas
da “história oral” e integrar ao trabalho de interpretação todo o material
coletado, as entrevistas “bem-sucedidas”, “fracassadas” e as recusas; em
outras palavras, integrar à interpretação as dificuldades encontradas na
pesquisa. De fato, a situação da entrevista é em si mesma, tal como a
escrita autobiográfica, um momento de testemunho e reconstrução da
identidade para a pessoa entrevistada, o que modela a negociação antes
de qualquer encontro e a delimitação dos escritos procurados (Catani;
Mazé, 1982, p. 27; Ferrarotti, 1983).
Dos dezesseis encontros obtidos, nove foram organizados por meio
de contatos pessoais e os outros sete por meio da Amicale d’Auschwitz36.
Os nove encontros por meio de contatos pessoais foram bastante fáceis
de conseguir: a confiança da sobrevivente entrevistada na pessoa que
havia estabelecido o contato foi transferida para o entrevistador e, uma
vez que a entrevista foi aceita, a solicitação de uma história sobre toda
a vida e não apenas sobre a deportação também era bem recebida37. A
aceitação incondicional era acompanhada, no caso oposto, por uma
recusa igualmente direta. Por exemplo, uma sobrevivente que havia
concordado calorosamente em me encontrar por telefone se viu incapaz
de falar durante a entrevista, pois suscitava a lembrança de “montanhas
de cadáveres”. Como ela nunca conseguiu falar sobre sua deportação com
o marido, que reencontrou ao retornar, como poderia quebrar o silêncio
que construiu durante toda a sua vida com um estranho? Uma outra
sobrevivente concordou, antes de decidir se concedia uma história de
vida mais demorada, em contar de sua deportação diante de um pequeno
círculo de estudantes que estavam preparando uma dissertação sobre os
campos. Durante esse encontro, a onipresença da morte foi praticamente
o único assunto discutido. Ela imitava com passos largos como fazia para
evitar os cadáveres todas as manhãs antes que o comando viesse buscá-los.
62

Sem se arrepender de ter aceito participar dessa sessão tão angustiante,


ela depois não quis mais “despertar suas memórias” em uma entrevista
mais longa. Desses nove contatos pessoais, surgiram apenas sete histórias
de vida, coletadas durante encontros sucessivos que, em três casos, se
desenrolaram durante vários meses. A negociação entre o entrevistador
e o entrevistado se estendeu por toda a duração da entrevista e, às vezes,
incluiu outras pessoas. Assim, era a entrevistada quem decidia sobre a
interrupção e o fim das diferentes sessões. A presença de uma terceira
pessoa, uma amiga intérprete no caso de uma sobrevivente polonesa ou, no
caso de uma sobrevivente francesa, sua filha adotiva, também correspondia

372 n. 62 | 2023 | p. 355-417


ao desejo da entrevistada de rever suas recordações traumáticas com o
apoio de alguém próximo a ela. No caso de uma moradora de Berlim, o
sucesso da entrevista dependeu de várias conversas que ela teve com amigas
sobre a conveniência de tal exercício (veja, nesta mesma edição da revista
francesa, o artigo intitulado “A gestão do indizível”). A intervenção direta
ou indireta de terceiros na entrevista, embora às vezes crie dificuldades,
pode igualmente fornecer informações preciosas sobre a integração da
sobrevivente na vida cotidiana ao retornar dos campos de concentração.
A negociação assume uma forma completamente diferente quando as
mulheres deportadas são abordadas por meio de uma Amicale. Nesse caso,
as pessoas responsáveis tiveram de ser convencidas antecipadamente dos
méritos e do interesse da pesquisa. Apesar de uma acolhida sempre muito
aberta, esse tipo de confiança espontânea baseada em uma recomendação
da associação não era o suficiente para conseguir a aceitação. Como disse
muito bem uma responsável: “Vocês precisam entender que nós nos
consideramos um pouco como as guardiãs da verdade”. Esse trabalho
de controle da verdade implica uma forte oposição entre o “subjetivo”
e o “objetivo”, entre a reconstrução dos fatos e as reações e sentimentos
pessoais. O controle é percebido como algo ainda mais importante porque
a inevitável diversidade de testemunhos sempre pode ser tomada como
prova da inautenticidade de todos os fatos relatados. Por esse motivo,
é também uma preocupação, aos olhos dos líderes das Amicales, de
escolher testemunhas discretas e confiáveis e evitar que “mitômanos,
que também temos” tomem a palavra publicamente. Essa preocupação
é ainda mais acentuada pelo fato de que o “caso Faurisson”38 e a negação
pelos chamados “revisionistas” das câmaras de gás e do extermínio em
massa, que ocorreram em uma época em que a xenofobia e o racismo
estavam em seu auge, deram origem a sentimentos ambivalentes entre
alguns sobreviventes. Será que a morte deles não aceleraria o esquecimento
e a negação? O testemunho torna-se então necessário para evitar essa
evolução. Mas, além dessa preocupação histórica, há outra atual: qual
poderia ser a função dessa mensagem? “Quando voltamos, pensamos
que tínhamos que falar e que, se o mundo soubesse, isso não seria mais
possível. Mas será que o mundo mudou?”
Em uma conversa com outra responsável da Amicale, é o interesse
62

por toda sua vida que foi questionado: “Eu lhe contarei tudo o que
quiser sobre minha deportação e o campo. Mas tudo o que aconteceu
depois, ou antes, não tem absolutamente nenhum interesse, é minha
vida privada”. A oposição entre o “subjetivo” e o “objetivo” aqui assume
a forma da oposição entre o “privado”, sem interesse, e o “público”, ou
seja, o único período da vida que deu à entrevistada um papel público
como testemunha da história.
O desenrolar da pesquisa revela aqui, portanto, na forma de
negociação, os mesmos limites que – como veremos – são espontaneamente
estabelecidos nos escritos autobiográficos: a limitação ao período da

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deportação indica uma tensão relacionada à conformidade entre o
relato pessoal e a significação histórica da experiência. Da mesma
forma, as preocupações expressas durante os contatos revelaram os
limites que se impõem a si mesmos aqueles que gerenciam a memória
coletiva dos deportados: sua definição de testemunha exclui da mesma
maneira a heroicização, a lamentação ou a expressão excessivamente
emocional. Mais uma vez, os limites constatados nos relatos biográficos
publicados – a ausência de heroicização, por um lado, e a escassez de
relatos que se concentram exclusivamente na reconstrução do eu, por
outro lado – referem-se a um mesmo espaço discursivo do dizível e do
indizível e seguem os mesmos princípios de estruturação. Mas esse espaço
não é predeterminado nem estável. Ele é o resultado de um trabalho
permanente de definição de fronteiras, do qual participam os diferentes
gêneros de testemunho aqui analisados. Moldado pelas características
das testemunhas, suas disposições e seu interesse em testemunhar, esse
trabalho sobre as fronteiras do dizível é função, em primeiro lugar, de
um sistema de sanções e de censuras, na maioria interiorizadas, mas que
também assumiu uma forma institucionalizada em diferentes associações
de antigos deportados que se deram a tarefa, entre outras coisas, de serem
“guardiões da verdade”.
No entanto, é também importante notar que essas associações
ofereciam um quadro de comunicação e de sociabilidade que permitiu que
um grande número de sobreviventes superasse o trauma. A concordância
gradual que se estabelece entre os relatos individuais e a memória coletiva
indica que o trabalho de enquadramento, susceptível de levar ao silêncio
sobre certas disputas que poderiam opor entre si os deportados ou grupos
de deportados, foi compensado pelo apoio aos membros em sofrimento.
As sete entrevistas realizadas por intermédio da Amicale d’Auschwitz são
um bom exemplo disso.

OS ESCRITOS AUTOBIOGRÁFICOS

Os parâmetros associados à pessoa não são os únicos determinantes de


uma publicação autobiográfica. Essa, de fato, está subordinada às condições
que autorizam essa forma de expressão pública da pessoa privada, em
62

que a fala sobre si mesmo se dispõe a uma esfera de interesse mais ampla.
Essas condições, longe de se limitarem a um “pacto autobiográfico” de
ordem propriamente literária, tal como sugerido por Philippe Lejeune
(1975), compreendem principalmente a notoriedade do autor – ou seja,
seu estatuto como figura pública – ou circunstâncias históricas que
valorizam o indivíduo como testemunha.
Parece-nos que essa reflexão sobre o “espaço autobiográfico” é
necessária se quisermos entender as condições que tornam socialmente
possível a existência de testemunhos autobiográficos sobre os campos: aqui,
o acesso à fala pública e à publicação de uma vida individual não depende

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da notoriedade do indivíduo, mas de seu estatuto como representante de
um grupo (o dos deportados) e como porta-voz de uma causa (transmitir
a experiência de uma barbárie impensável e lutar contra ela).
Assim, a experiência concentracionária só é considerada digna de ser
relatada quando é objeto de uma vivência coletiva. Com isso em mente,
os escritos incluídos em nosso corpus podem ser analisados em função
das informações sobre o autor, em especial a importância atribuída à vida
antes e depois do campo, ao lugar atribuído a grupos ou à pessoa do autor,
sua data de publicação e as intenções gerais ou individuais invocadas para
justificar a tomada de palavra.

OS MOMENTOS PARA FALAR DA VIDA

A data de publicação pode ser tomada como indicador da tensão


constitutiva dos escritos sobre a experiência concentracionária, por
seu caráter duplo de restituição de uma memória, tanto individual
quanto coletiva. Mais de um terço dos escritos são anteriores a 1949,
testemunhando a vontade de superar e fixar para sempre o passado
inconcebível. Embora a motivação puramente individual e autobiográfica
seja muito rara, o caso diametralmente oposto é também raro: as datas
comemorativas oficiais não provocaram mais publicações. Foram nos
primeiros quatro anos após a guerra que surgiram os relatos mais factuais,
um relato “jurídico” e uma reflexão “científica”. O testemunho é então
frequentemente apresentado como a realização de uma forma de resistência
que consistia em querer sobreviver para poder testemunhar. Resultado de
uma vontade de observação e registro, esses relatos datam frequentemente
certos eventos e provêm de mulheres que, em virtude de sua posição,
tinham acesso a marcadores temporais (acesso clandestino ao jornal no
caso de Louise Alcan, que trabalhava na Raisko, de Suzanne Birnbaum,
designada para o Canada, ou participação no grupo “privilegiado” de
médicos no caso de Gisela Perl e Ella Lingens-Reiner). Nesses casos,
predomina a vontade de fixar a lembrança e transmiti-la a outras pessoas
(Ourisson, 1946; Alcan, 1945; Birnbaum, 1945; Lewinska, 1945; Lengyel,
1946; Lingens-Reiner, 1948; Perl, 1948). Ao contrário, entre 1956 e 1965,
todos os relatos, menos precisos do ponto de vista factual e cronológico,
62

invocavam razões puramente pessoais (Adelsberger, 1956; Zywulska, 1956;


Weiss, 1961; Hart, 1961; Bruck, 1961; Salus, 1958): escrever o passado não
respondia mais a uma vontade de fixar a lembrança, mas à necessidade
de superar os traumas.
Essa mudança nas condições de emergência do testemunho não
é independente da evolução da vontade de ouvir. Esta, que era muito
forte no período imediatamente após a guerra, desvanece gradualmente
no final da década de 1940, pois as preocupações atuais afastam as
lembranças mais sinistras e menos heroicas da guerra. A deportação evoca
necessariamente sentimentos ambivalentes, até mesmo culpa, mesmo

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em países vencedores, onde a indiferença e a colaboração marcaram
a vida cotidiana pelo menos tanto quanto a resistência. Já em 1945, os
antigos deportados em trajes listrados desaparecem das comemorações
oficiais; eles também despertam a má consciência e, com exceção dos
poucos deportados políticos, se integravam mal em um desfile de antigos
combatentes. “1945 organiza o esquecimento da deportação; os deportados
chegam quando as ideologias já estão vigorando, quando a batalha pela
memória já começou, quando a cena política já está sobrecarregada: eles
já são demais” (Namer, 1983, p. 157).
Aproveitar-se da escrita autobiográfica para superar o trauma é uma
explicação que aparece claramente em quase todas as histórias, e de forma
cada vez mais explícita após 1956, inicialmente acompanhando motivos
mais gerais até se tornar a razão principal, até mesmo exclusiva, da
publicação. Para Edith Bruck, em 1959, trata-se de preservar a consciência
de si (Bruck, 1961, p. 6). Em 1961, Reska Weiss disse que queria superar
suas memórias tanto quanto contribuir para a construção de um mundo
que não poderia se basear nem no ódio, nem no esquecimento (Weiss,
1961). Igualmente em 1961, Kitty Hart relembrou seus sentimentos sobre
a liberação: para vingar-se, ela quis matar com suas próprias mãos uma
família alemã; incapaz de matar, destruiu móveis e incendiou uma casa.
Esses sentimentos – vingança impossível, ódio difícil de controlar – estão
presentes em todo o seu livro, especialmente nas passagens finais, que
descrevem sua vida em um campo de DP [deportados] na Alemanha
destruída: “Tudo o que restava era essa tarefa no limite do possível:
apagar o passado e administrar o futuro. Eu sabia que nunca seria capaz
de perdoar, mas prometi a mim mesma que não viveria com ódio em
meu coração, para que não tivesse que me desprezar por ter sobrevivido
e ter visto morrer milhares de pessoas” (Hart, 1961, p. 190). Por fim,
em 1981, Margareta Glas-Larsson justifica fazer uso da palavra apenas
dizendo que tinha uma vontade de falar e sentir sua liberdade (Glas-
Larsson, 1981, p. 75).
Por meio desta cronologia, podemos ver que as “razões para falar da
vida” refletem, ao nível coletivo, o que pode ter passado cada indivíduo:
o trabalho de fixação da lembrança do momento de deixar os campos
seria seguido, com a passagem do tempo, pela rememoração dos traumas
62

e pelo esforço para superá-los, finalmente dando lugar, à medida que


se aproxima o fim da vida, à busca de uma forma que possa garantir
a transmissão dessa memória em longo prazo. Mas essa correlação é
enganosa39. Em primeiro lugar porque a disposição a fixar a lembrança
e a transmiti-la imediatamente, no momento em que havia também
uma vontade de escuta, ou até mesmo uma demanda de informação,
não é minimamente confirmada; pelo contrário, conforme a maioria dos
escritos e entrevistas, a atitude que prevaleceu no retorno dos campos
foi uma vontade de esquecer e a incapacidade de falar, reforçada pela
necessidade de mobilizar todas as energias para enfrentar as dificuldades,

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inclusive materiais, da vida: portanto, é compreensível que os primeiros
testemunhos sejam aqueles que apresentam valores gerais de justiça e
verdade. Em segundo lugar, falar não é apenas uma função dos traumas
infligidos no campo e de sua lembrança, mas também de preocupações
atuais muito diferentes. Assim, a data dos relatos mais “individuais”
quase sempre corresponde a um momento difícil da vida após 1945,
que parece provocar ou reforçar a rememoração: a incapacidade de se
integrar à sociedade israelense e o retorno à Europa, no caso de Edith
Bruck; a morte do irmão, o último membro vivo da família, no caso de
Margareta Glas-Larsson; a expulsão da União de Escritores Romenos e
a emigração para a França em 1965, para Anna Novac (Novac, 1968).
Nesses casos, a escrita autobiográfica serve para superar tanto o trauma
concentracionário quanto uma crise conjuntural, os dois estando muitas
vezes diretamente ligados, tal como ilustram os projetos de emigração
concebidos em resposta ao desaparecimento das comunidades judaicas
na Europa central. Em outros casos, tal como os de Lucie Adelsberger
(1956), Grete Salus (1958) e Reska Weiss (1961), a publicação de relatos
autobiográficos entre 1956 e 1961 provavelmente não teria sido possível
sem o encorajamento das organizações religiosas e humanitárias que se
abriam para a reconciliação. O projeto individual de rememoração faz
parte, então, do projeto de constituição de uma memória coletiva.
Paradoxalmente, o relato não publicado, o mais “político” em seu
estilo e intenções declaradas (o de Macha Ravin), é menos o resultado
desse projeto de memória coletiva do que da própria crise da autora
na época de seu doloroso rompimento com o Partido Comunista após
longos anos de dúvida. Ao retornar do campo de concentração, a sensação
de segurança e a convicção de que estava trabalhando por um mundo
melhor dentro dessa “grande família” facilitaram sua readaptação à vida
comum. A comemoração de um passado militante puro e ideal antes da
guerra e no campo de concentração ajudou-a, no início da década de
1970, a superar a decepção ideológica, mas também o isolamento social
que inevitavelmente resultava do rompimento com uma organização
que tendia a moldar até mesmo os detalhes mais privados de sua vida,
incluindo a escolha do cônjuge e dos amigos40.
Por último, o projeto literário de Charlotte Delbo pode ser lido
62

tanto como um trabalho de luto que une os sobreviventes às vítimas


mortas, quanto como um trabalho de comemoração que visa estabelecer
comunicação com todos que não viveram essa experiência. De certa
maneira, essa obra contribui ao trabalho de constituição de uma memória
coletiva da experiência concentracionária e da deportação. Ao fazer da
credibilidade do indizível um dos temas de seus escritos, Charlotte Delbo
antecipa em seu projeto literário um trabalho mais diretamente político,
que se manifesta na republicação, em 1980, do testemunho de Louise
Alcan, acrescido de comentários atuais. Ela que, em 1945, tinha sido
uma das primeiras a cumprir o que sentia ser seu dever cívico, sente-se

n. 62 | 2023 | p. 353-417 377


obrigada mais uma vez a tomar a palavra na ocasião dos casos Darquier
de Pellepoix41 e Faurisson – a negação do Holocausto, por um lado (Alcan,
1980, p. 40), e o recrudescimento da xenofobia e do antissemitismo, por
outro lado: “Rostos ressurgiram e foi impossível para mim não evocar
alguns deles... O caminho da rue Copernic até Auschwitz pareceu de
repente muito curto” (Alcan, 1980, p. 40 e 87). É também neste contexto
que decorrem as entrevistas recolhidas no âmbito deste projeto desde
1980. Para muitas das mulheres entrevistadas, esta foi uma oportunidade
de transmitir a sua experiência, com a aproximação do fim da sua vida,
a uma geração talvez mais atenta a elas do que aquela da reconstrução.
Os momentos escolhidos e as razões apresentadas para falar de sua
própria vida moldam, então, as principais modalidades de formação
das narrativas e, muito provavelmente, de estruturação da memória.
Apenas os relatos do primeiro período testemunham uma preocupação
com datações precisas, que ali abundam. Mais tarde, ao contrário, e
mesmo no caso dos relatos cujo princípio de organização é a cronologia,
as datas tornam-se mais raras até serem reduzidas às da deportação e
da liberação. Além disso, quanto maior for a preocupação em deixar
um testemunho de âmbito geral, mais a formatação seguirá uma lógica
quer jurídica, concentrando as informações sobre a gestão do campo
e da SS (um caso), quer temática, abandonando a cronologia (o que é
frequentemente o caso das histórias dos médicos). A integração, no caso
do relato autobiográfico, de elementos das informações sobre o campo,
aos quais o autor não pôde ter conhecimento pessoal, reflete igualmente
uma tal vocação, mais universal, do testemunho. Pelo contrário, os relatos
autobiográficos que não manifestam tais objetivos seguem, na maior
parte das vezes, uma ordem cronológica e dos acontecimentos, mesmo
que marcadores temporais precisos sejam raros – uma ordem que é
muito mais da experiência pessoal do que a da reconstrução histórica.
Vemos assim que, tal como o lugar do testemunho no tempo (data de
publicação), a organização cronológica da narração é muito fortemente
função do tipo de necessidade à qual responde o fato de testemunhar, e do
tipo de recursos mobilizados para alcançar este objetivo – ambos ligados
ao grau de generalização da experiência que o sujeito pode se permitir.
62

O SILÊNCIO SOBRE A PESSOA

Faltam informações fundamentais sobre a identidade “comum” da


pessoa em grande número dos escritos autobiográficos: quase metade dos
autores omite sua idade e seu lugar de origem. No entanto, as informações
sobre a identidade da pessoa dentro do campo, a data de entrada, a razão
da deportação (política e/ou racial, ou seja, “judia”), estado civil e os
eventuais filhos, figuram em quase todos os relatos. Este último critério tem
importância particular na medida em que a separação dos entes queridos
é muitas vezes sentida como o primeiro e mais doloroso dos traumas.

378 n. 62 | 2023 | p. 355-417


Outra grande manifestação desta tensão específica do empreendimento
autobiográfico é a limitação da narrativa ao período do internamento,
indicando no caso dos sobreviventes que o “eu” só pode ser enunciado em
relação ao “nós” de todos aqueles e todas aquelas que experimentaram o
mesmo destino. É difícil encontrar em todos estes escritos informações
sobre a vida antes e depois do campo, três quartos deles focando exclusiva
ou quase exclusivamente na vida no campo (80% a 100% das páginas).
É no caso de escritos mais pessoais explicitamente ligados a uma
reconquista de identidade que a narrativa fora do campo pode atingir
até metade do texto (Zacharia-Asseo, 1974), ou mesmo ser invertida a
ponto de se referir à experiência do campo em apenas 20% das páginas
(Bruck, 1959 apud Bruck, 1961). Mesmo nas entrevistas é difícil ir além da
limitação ao período concentracionário. Segundo algumas das mulheres
entrevistadas, a deportação corresponde ao único momento das suas
vidas que merece interesse geral: representa mais de 60% do tempo em
sete entrevistas e quase metade do tempo em outras quatro. Quando
o período pré ou pós-concentracionário ocupa um lugar importante,
muitas vezes é para explicar as atividades de resistência que precederam
a prisão ou fuga, ou o retorno de uma sobrevivente em 1945. Em três
das entrevistas – também aquelas que focam menos exclusivamente no
período de campo – as dificuldades de readaptação ao mundo ordinário
constituem o tema principal.
Quanto à parte atribuída ao grupo, não surpreende que uma das
primeiras publicações a aparecer, em 1946, tenha sido uma biografia
coletiva publicada pela Amicale des Déportés d’Auschwitz (Abada, 1946).
Este gênero, retomado em 1980 em um outro livro escrito por iniciativa
do mesmo Amicale (Pozner, 1980), liga, como o seu nome indica, o
individual ao coletivo, e resolve dar forma a esta tensão constitutiva de
todo testemunho sobre a experiência concentracionária. Em contraste,
um dos manuscritos que nos foram cedidos para esta pesquisa, escrito
em 1945 por uma jovem então com 17 anos, está fortemente relacionado
com o uso da escritura como reconstrução do sentido de si – assim,
sua autora nunca tentou publicá-lo. Para que surgisse um livro que se
mostrasse explicitamente como uma tentativa de esclarecer a identidade
de seu autor, tivemos que esperar até 1959. Da mesma forma, Charlotte
62

Delbo – a única autora da nossa amostra cuja fama teria permitido o


recurso à autobiografia em sua definição literária – só iniciou tardiamente
o seu trabalho sobre o tema da deportação, e com uma biografia coletiva:
foi um trabalho de investigação que resultou na reconstrução de esboços
biográficos de todos os seus camaradas que deixaram a França no mesmo
comboio que ela (Delbo, 1965).

FALAR DA VIDA EM NOME DE UM VALOR GERAL

n. 62 | 2023 | p. 353-417 379


Tal como no caso dos depoimentos judiciais e históricos, a justiça
e a verdade são os valores mais gerais a que se referem certos escritos
autobiográficos, próximos entre si pela sua forma – temática e não
cronológica – bem como pelo seu conteúdo, centrado em certos personagens
e acontecimentos que já ocupavam um lugar importante nos testemunhos
judiciais e históricos acima analisados. A única narrativa jurídica presente
em nosso corpus aponta então para a denúncia dos adversários, os SS.
Dounia Ourisson (Ourisson, 1946) só dá como informações pessoais a
data de sua deportação, uma dedicatória aos membros de sua família
assassinados em Majdanek, sua trajetória e sua posição como tradutora
na Politische Abreilung do campo, que se deveu ao seu conhecimento
de vários idiomas. Esta publicação apenas completa seu depoimento,
encontrado nos arquivos. Publicado pela Amicale des Déportés d’Auschwitz,
foi escrito com a mesma intenção de esclarecer os crimes cometidos e
de servir à justiça.
No registro de testemunho de carácter científico, encontramos
o livro de Ella Lingens-Reiner (Lingens-Reiner, 1948), austríaca e
médica, presa por ter ajudado judeus a fugir. Seu relato está ordenado
cronologicamente apenas em cerca de 10% do texto relativo à sua vida
antes do campo e depois da sua libertação. Por outro lado, a sua descrição
do campo, incluindo suas reações e experiências pessoais, é organizada
de acordo com diferentes temas que analisa com base nas suas próprias
experiências, mas abstraindo tanto quanto possível as suas reações
emocionais: os princípios de organização do campo e do trabalho no
Revier; constrangimentos que pesam sobre o pessoal médico, colocado
numa posição muito ambivalente entre as prisioneiras e os médicos SS;
as seleções e negociações pelas quais as prisioneiras ocupando posições
“privilegiadas” tentaram salvar algumas das mulheres destinadas à câmara
de gás. Um quarto de seu livro é dedicado ao estudo das relações sociais
entre diferentes categorias de deportados, com especial atenção para a
categoria mais desprovida de recursos – as judias – e para as categorias
mais numerosas e mais diretamente concorrentes para cargos elevados – as
alemãs e as polonesas. Partindo da constatação de que qualquer melhoria
nas condições do campo e, portanto, nas chances de sobrevivência de
maior número exigia necessariamente um mínimo de comunicação e
62

cooperação com os SS, um capítulo, quase tão longo quanto aquele que é
dedicado às relações sociais entre detentos, aborda este tema, inteiramente
atravessado pelo problema dos limites entre a indispensável comunicação
e o compromisso, com uma discussão muito matizada sobre a mentalidade
de vários SS, cuja descrição repete, em parte com as mesmas palavras, o
seu depoimento encontrado nos arquivos. Por último, nota-se que a análise
proposta por outra sobrevivente, a socióloga polaca Anna Pawelczynska,
confirma esta sociologia implícita das relações entre deportadas, embora
num nível de abstração teórica tal que este livro não pode ser relacionado
aos escritos biográficos do nosso corpus (Pawelczynska, 1979).

380 n. 62 | 2023 | p. 355-417


OS LIMITES DO DISCURSO MILITANTE

Podemos perguntar-nos porque nenhum relato de nosso corpus se


assemelha ao gênero da literatura militante no sentido comum do termo,
nomeadamente um discurso de mobilização em nome de uma causa e de
uma organização responsável por incorporá-la – e isto apesar da presença
entre os autores de mulheres que aderiram à resistência e que também
estavam, depois da guerra, politicamente engajadas. Se é quase impossível
explicar a experiência concentracionária numa base exclusivamente
individual, é igualmente improvável que ela possa ser incluída em
um relato partidário e ver-se monopolizada por uma determinada
organização e causa política, pelo fato – aparentemente paradoxal – de
que neste caso de “crime contra a humanidade”, qualquer uso militante
correria o risco de restringir o seu âmbito universal e, como resultado,
parecer ilegítimo. Neste sentido, talvez não seja coincidência que o único
documento que comemora o militantismo dentro do campo tenha sido
escrito no momento em que a sua autora se retirou de qualquer filiação
a uma organização política.
O manuscrito autobiográfico inédito escrito por Masha Ravine
entre 1972 e 1975 é o único relato que, por exemplo, evoca os nomes das
organizações nas quais ela atuava antes de sua deportação e as atividades
coordenadas de uma resistência mais organizada no campo42. Dois
terços da sua narrativa seguem uma ordem cronológica: é então a sua
história pessoal e militante como judia polaca que imigrou para França
até o momento em que, desesperada e doente, encontra no campo um
militante que conhecera no seu comboio. Através da intervenção de
outros camaradas bem posicionados, ele pode designá-la para o Revier. É
a partir deste momento, que marca o início da sua participação nas redes
de resistência do campo, que também mudam a ordem e o estilo da sua
narrativa. A cronologia é substituída por uma ordem temática: Revier
de Birkenau (local privilegiado de ação clandestina); uma “seleção”; o
“Canada”, contato com a organização dos homens etc. – tudo intercalado
com retratos de seus camaradas mais próximos. Tal como na lógica de
uma narrativa de natureza jurídica e científica, este testemunho político
emerge quase automaticamente da cronologia. Da mesma forma, o caráter
comemorativo da escrita levou a autora a integrar no texto episódios
62

importantes dos quais não foi testemunha direta, mas dos quais tomou
conhecimento graças à sua posição dentro de uma rede política. Este escrito
comemorativo pretende também erguer um monumento à memória das
suas camaradas militantes: “Estas mulheres que simbolizam a intrepidez
das mulheres resistentes de Birkenau deixaram uma lembrança inesquecível
em nosso coração e são para nós a encarnação da sublimidade que pode
ser alcançada pelo ser humano” (Ravine, 1975, p. 5). No entanto, as ações
de resistência que ela relata dificilmente se distinguem daquilo que outras
narrativas tratam como ajuda mútua espontânea: a manipulação das

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estatísticas de trabalho, alocação aos comandos menos árduos, apoio moral
aos doentes. Isto significa que as possibilidades de ações espetaculares
eram limitadas, malgrado os atos heroicos (também relatados) como a
revolta do Sonderkommando, o roubo de explosivos por prisioneiros judeus
polacos na Union-Werke, e a fuga de Mala Zimetbaum e Edek Galinski.
Além disso, muito poucas publicações biográficas relatam os atos
heroicos que fariam parte da resistência organizada – resistência que
vários autores consideram, por outro lado, desprovida de sentido, até
mesmo perigosa, em tal contexto (além da suspeita, sempre possível e
efetivamente expressa em algumas narrativas, de que as organizações de
resistência política eram sobretudo redes de ajuda mútua apenas para seus
membros aderentes e simpatizantes). A destruição dos crematórios graças
aos explosivos contrabandeados por prisioneiras judias das Union-Werke
não foi unânime entre os grupos de resistência organizados no campo
dos homens e foi apenas parcialmente realizada devido ao vazamento
de informação para os SS43. Este episódio só aparece em outras quatro
narrativas. Por outro lado, a narrativa da fuga, em junho de 1944, de Mala
Zimetbaum, uma judia belga de origem polonesa, e de Edek Galinski, é
contada em três quartos dos escritos. Recapturada pouco depois e trazida
de volta ao campo, Mala conseguiu, diante dos prisioneiros convocados
para testemunhar sua sentença de morte, cortar suas veias com uma lâmina
de barbear e esbofetear um SS, o último ato dramático de resistência
antes de sua morte44.
Os relatos que contam da resistência organizada no campo, e mais
particularmente aquelas em que o autor diz ter participado nessas
atividades, pouco esclarecem sobre o funcionamento desta resistência,
sobre a constituição e composição das redes. O único elemento que
sobressai das poucas passagens que abordam este tema é a ligação
estabelecida entre o campo das mulheres e o campo dos homens –
ligação que foi decisiva na preparação da explosão dos crematórios, bem
como, após as seleções, na intervenção organizada de prisioneiros bem
posicionados para salvar algumas vidas (Lewinska, 1945). A razão para
isto é, sem dúvida alguma, que as regras de segredo e de anonimato que
caracterizam qualquer organização clandestina foram levadas ao limite
nas condições do campo. Por outro lado, em contraste com as dúvidas
62

que a resistência organizada poderia provocar, o ato individual de Mala,


prisioneira exemplar e desinteressada na ajuda que realiza a partir de uma
posição-chave (a estatística e a organização dos comandos de trabalho),
tem tudo para se tornar um mito, através do martírio de uma mulher
que simboliza todas as astúcias da sobrevivência diária e, além disso, uma
grande história de amor – com Edek, personagem não menos mítico do
campo dos homens. Portanto, não é tanto o ato heroico em si, mas a astúcia
e o amor que o tornam possível, que parecem ser os valores passíveis de
serem valorizados no campo.

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Esse mesmo episódio, com a personagem de Mala, figura igualmente em
metade das entrevistas. Embora onze das dezesseis entrevistas provenham
de deportadas presas por atos de resistência (incluindo quatro judias), estas
não esclarecem muito dos métodos de organização e a composição das
redes de resistência dentro do campo. Por outro lado, todos estes relatos
consideram a participação na ajuda mútua organizada e a razão de ser e
de viver que proporciona um recurso inesgotável e decisivo de energia.
Além disso, é sobretudo em relação a problemas atuais que algumas
mulheres voltaram a abordar temas político-partidários nas entrevistas.
Assim, a maioria das francesas comunistas e não comunistas
entrevistadas mostraram-se menos chocadas com a reconciliação com a
Alemanha do que com a reescritura correlata da história que, dependendo
das novas alianças e do anticomunismo atual, corre riscos, segundo elas,
de minimizar, ou mesmo ocultar, o papel da União Soviética na libertação
do nazismo – embora tenha sido, durante sua deportação, o destino
da guerra na Frente Oriental e o avanço do Exército Vermelho a fonte
mais importante de esperança. Nas entrevistas realizadas na Áustria,
uma dúvida transpareceu muitas vezes: a esquerda, hoje no poder, não
subestima certos perigos neonazis?
Nos escritos das sobreviventes aqui estudados, bem como nas
entrevistas recolhidas, não encontramos, portanto, nenhuma heroicização
das vítimas – uma técnica tão comum na retórica militante. Tudo acontece
como se a ambivalência das situações de interação no campo se opusesse
a uma reconstrução e a uma projeção que precisaria ser alimentada por
uma imagem simples e clara da natureza das interações sociais. Além disso,
entre as razões políticas evocadas em cinco publicações, são as razões
humanitárias gerais que prevalecem: lutar contra o racismo, o fascismo
e o antissemitismo, transmitir o inacreditável para tornar impossível
sua repetição, tal é, por exemplo, a mensagem política na introdução
ao relato de Louise Alcan publicado em 1945 (Alcan, 1945). Mas nada
lhes distinguem, além do mais, de outras narrativas autobiográficas que
invocam razões mais pessoais, tais como as recordações dos parentes
ou dos mais próximos, daí a necessidade de escrever para superar o
trauma e recuperar a liberdade. Tudo indica, portanto, que um registro
especificamente político tem pouco lugar nessas narrativas, pois o valor
62

“geral” que ali seria mostrado correria o risco de parecer muito particular,
dada a extensão do trauma.

RELATO ROMANCEADO E PROJETO LITERÁRIO

Há, no entanto, um caso de narrativa fortemente heroicizada em


que a heroicização assume uma forma diretamente política, na medida
em que os dois personagens principais são resistentes e em que a obra
conclui com um apelo à luta contra o antissemitismo (sendo a heroína não
apenas resistente, mas judia), trata-se de “A Paixão de Myriam Bloch”, de

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Marianne Schreiber (Schreiber, 1947). Contudo, esta narrativa, cuja nota
introdutória indica que “todos os episódios desta terceira parte (aquela
dedicada a Auschwitz) são rigorosamente autênticos” (Schreiber, 1947,
p.195), apresenta-se como um romance. Veremos que não é certamente
casual, se a única forma de heroicização política manifesta e contínua (já
que ocupa 30 páginas da obra) só pode ser aceita de forma romanceada.
A parte, seguramente “autêntica”, dedicada ao internamento em
Auschwitz, ocupa um espaço relativamente pequeno (cerca de sessenta
páginas, ou um sexto do romance): a experiência concentracionária é,
de certa maneira, apenas o ponto culminante da narrativa e termina com
uma fuga que confirma as virtudes da resistência, no sentido forte do
termo, da heroína e do seu namorado, bem como a força do seu amor que
consegue superar a destruição física e psicológica infligida ao rapaz. Para
conseguir assim magnificar este triunfo do amor e da virtude – estas duas
qualidades tão tipicamente humanas – face à realidade desumanizante
do campo, esta narrativa deve inevitavelmente recorrer a um “pathos”,
ausente de todas as outras narrativas, e que se manifesta pela insistência
nos sentimentos e nas descrições das sevícias infligidas ao jovem (em
comparação, todas as outras narrativas são infinitamente mais despojadas).
Será este romance, em que a experiência concentracionária apenas
realça as virtudes dos heróis, longe de as alterar, autobiográfico? Ou
ainda que autorizado por uma pessoa “real”, mesmo se escrito por uma
outra? Não conseguimos responder a esta questão, mas, em todo o caso,
o trabalho de heroicização que opera e as condições nas quais isso se faz,
colocam-no à parte dos documentos com valor testemunhal: malgrado
o reforço insistente na autenticidade dos fatos relatados, e mesmo se
levarmos em conta o que diz respeito à técnica romanesca (em particular
a condensação da cronologia), não podemos deixar de nos perguntar até
que ponto tal história é verdadeira.
Contudo, não é o recurso a uma forma propriamente literária e,
em particular, romanceada, que induz forçosamente à suspeita sobre a
autenticidade da experiência relatada e, em particular, sobre a identidade
entre o autor, o narrador e o personagem. Com efeito, nos outros relatos
do nosso corpus que, pela sua forma literária, se situam às margens do
gênero autobiográfico (além da hagiografia, de que acabamos de falar,
62

encontramos também, como veremos, o diário, o testemunho romanceado,


o teatro, a poesia...), não nos sentimos de forma alguma tentados a
duvidar do fato do autor ter realmente vivido aquilo que diz. No caso do
romance de Schreiber, é de fato a heroicização, e não o romanesco que
coloca um problema, sem dúvida porque esta magnificação da pessoa,
em que se condensam as experiências mais espetaculares e as mais
sublimes, rompe singularmente com o modo em que o heroísmo poderia
suceder efetivamente nos campos (mais modestos e talvez, ao mesmo
tempo, mais difíceis) e, sobretudo, com o grau de autoglorificação que
as sobreviventes aceitam45.

384 n. 62 | 2023 | p. 355-417


Se o romance permite dizer o indizível, ao introduzir um distanciamento
frente às lembranças difíceis de confrontar com as normas da moral vigente
(agora as únicas relevantes, e ainda mais à medida em que nos afastamos do
momento do regresso à vida civil), não devemos nos surpreender que, em
nosso corpus, a única narrativa autobiográfica romanceada seja a de uma
prisioneira que se beneficiou de um privilégio (um cargo administrativo
nos escritórios) que não foi associado a uma justificativa humanitária,
como foi o caso do pessoal da equipe médica.
Mas se o testemunho de Zywulska é “romanceado” (e, significativamente,
o prefácio insiste no seu valor apesar do seu carácter ficcional e apesar do
benefício deste privilégio): “A obra é apresentada numa forma romanceada,
uma proposta que pode ofender o historiador, mas torna mais acessível
aos não iniciados a verdadeira atmosfera do campo, integrando na
vida cotidiana as cenas de horror que podem parecer a uma mente
desinformada um exagero mórbido” (Wormser, 1956, p. 8). É de maneira
tão tênue que quase nada o distingue de um testemunho “comum” – a
tal ponto que se pode perguntar o que, precisamente, faz a diferença. Isto
reside sobretudo, ao que parece, no tratamento cronológico, bastante
específico: segue uma continuidade temporal (ao contrário das formas
“temáticas” de organização da narrativa que foram estudadas acima), mas
apresentando-a de um modo muito mais coerente e contínuo do que os
relatos autobiográficos “cronológicos” (que observam ou parecem observar
de forma bastante escrupulosa o desdobramento “real” da experiência
individual). O que, em Zywulska, trai o formato romanesco (da mesma
forma, aliás, como em Schreiber ou Saveria), independentemente de
qualquer questionamento sobre a veracidade dos fatos relatados, é a
abundância de notações temporais (“É então que”, “no dia seguinte”, “na
mesma noite”, etc.), capazes de reconstruir uma certa continuidade pela
vinculação narrativa de elementos que não se ligam nem a uma analogia
temática, nem à realidade de uma vivência individual, forçosamente
descontínua.
Romance hagiográfico, romance realista, narrativa romanceada:
vimos a quais condições e a quais necessidades, não especificamente
literárias, respondem o recurso a esta ou aquela forma novelística. Esta,
porém, não é a única forma pela qual um testemunho pode fazer parte
62

de um projeto propriamente literário, ultrapassando este tipo de “grau


zero da escritura” que constitui o testemunho autobiográfico. Assim,
encontramos um caso em que a escritura aparece como um instrumento
quase exclusivo de manutenção (no momento) e de reconquista (depois,
na época da publicação) de uma identidade: este é o livro de Anna Novac
(Novac, 1968), continuação direta de um diário iniciado aos 14 anos, logo
antes do campo e que continuou durante a reclusão.
Na medida em que este diário é a tradução da vocação de escritora
(a autora define-se como uma “grafômana”), e reflete a ambição de uma
obra literária, o relato da experiência concentracionária torna-se então

n. 62 | 2023 | p. 353-417 385


o veículo que permite expressar ao mesmo tempo a condição da artista:
“Agora, eu escrevo. Escrevo que escrevo. Seja louvado, Senhor” (Novac,
1968, p. 23). Nenhuma data situa as diferentes passagens da narrativa, todas
escritas no presente. Num quadro geralmente cronológico, sucedem-se
uma série de “cenas” muito estilizadas. A narrativa, que começa em
Auschwitz, nada diz sobre o momento ou os motivos da entrada do autor
neste universo. Seu monólogo interior permanente, as dúvidas e angústias
do eu da escritora misturam-se, por assim dizer, com a experiência
concentracionária: “O lápis... restitui-me a cada momento, em segredo,
o que todo um universo enfurecido procura arrancar-me: a consciência
de mim mesma, a forte coragem de julgar, mesmo acorrentada. Árbitro
e testemunha” (Novac, 1968, p. 23). Como se a escritura da memória
lhe fornecesse um instrumento de controle de si mesma, este texto
destina-se principalmente à própria autora e não mais, como no caso de
um testemunho, à instrução de terceiros. Esta inclinação autorreflexiva
determina também os limites da sua mensagem e, correlativamente, o
desconforto que sua leitura engendra: de fato, a impossibilidade para o
leitor reconstruir a realidade dos acontecimentos por trás da abundância
de sentimentos pessoais expressos, contrasta de modo penoso com o
registro habitual dos testemunhos, cuja legitimidade é sobretudo menos
um problema do que a factualidade predominante; aqui, ao contrário, a
atenção exclusiva da adolescente à sua própria pessoa e, mais ainda do
que à sua pessoa, à sua expressão na forma deste diário, chega a conferir
um caráter insignificante e repetitivo a esse ato, por mais excepcional que
fosse manter um diário dentro de tais condições. O que, em todo caso,
aparece claramente é a função de manutenção da identidade preenchida
por este jornal no momento da sua escritura. Mas este momento não é,
como vimos, o único relevante para a análise desses escritos, inclusive
quando assumem forma literária. O momento da publicação também
tem um papel a desempenhar na gestão da identidade do sobrevivente.
No entanto, as poucas indicações biográficas que o prefácio deste livro
nos fornece (uma carreira de escritora e de peças de teatro em Bucareste,
antes da exclusão do Sindicato dos Escritores e da emigração para o
Ocidente) revelam a angústia de uma mulher para quem a experiência
concentracionária e as dificuldades de viver a sua condição de artista
62

reforçam-se mutuamente. Presa numa busca permanente de si mesma


como sobrevivente e escritora, a impede de formar outra coisa senão a
expressão dessa busca impossível: “Diante da minha aventura, onde estou?
Qual é o meu lugar neste mundo desfeito? Será que algum dia serei capaz
de me desligar com força suficiente de minhas próprias provações para
poder vê-las através dos olhos de meus bisnetos?” (Novac, 1968, p. 17).
A dissociação provocada pela experiência concentracionária é fonte aqui
de ruptura e de reflexão permanente sobre si mesma, mas incapaz de
levar a uma reconquista de si que, por si só, permitiria (ainda que sempre
precária) um trabalho de transformação da reflexão sobre si em uma obra

386 n. 62 | 2023 | p. 355-417


literária de vocação mais geral, graças ao recurso da dissociação infligida
como um instrumento de distanciamento estético.
É aqui que o projeto literário de Charlotte Delbo ganha todo o seu
sentido. Se, de fato, só muito tarde junta a sua voz às outras, é porque
não pretende apenas acrescentar mais um testemunho para reforçar a
veracidade do que pode ter sido dito sobre Auschwitz. O desafio do seu
trabalho é menos histórico (reconstruir e transmitir o passado) do que
literário: “Não tenho a certeza de que o que escrevi seja verdade. Tenho
certeza que é verídico”. Como encontrar o estilo apropriado para dar
forma à visão de um campo de extermínio e aos seus efeitos sobre os
deportados? Também o projeto literário que se desenha nos seus livros
desloca o objeto e a abordagem da reflexão, já não se trata tanto de dar
conta da sobrevivência e dos modos de resistência que permitiram manter
intacta sua integridade física e moral, mas de lançar luz às deformações
impostas à pessoa e suas consequências em longo prazo, através das
tensões da experiência concentracionária: tensões entre a sobrevivência
individual e a solidariedade com o grupo, entre a fala e o silêncio, entre
a comemoração e o testemunho. O controle da sobrevivência começa,
portanto, com o necessário trabalho de luto, capaz de restabelecer o
vínculo entre todas as vítimas, mortas e vivas.
Seu primeiro livro, “Nenhum de nós retornará” (Aucun de nous ne
reviendra), escrito em 1946, mas publicado apenas em 1965 (Delbo, 1965),
distingue-se de todos os demais relatos publicados no período imediato
pós-guerra e anuncia sua abordagem literária. Já o título, que é também
a conclusão “Nenhum de nós retornará, nenhum de nós deveria ter
retornado” (Delbo, 1965, p. 122), estabelece a ligação entre os mortos e
os vivos: os sobreviventes, salvos pelo fim da guerra e dos campos, só são
distanciados dos mortos por alguns poucos dias ou semanas que separam
o momento da libertação do momento muito próximo da aniquilação
inscrito na lógica do campo, que não deixava nenhuma possibilidade
de esperança, nenhuma possibilidade de heroísmo. Contudo, a partir
de tal experiência, nenhum projeto literário pode criar esperança onde
não há, nem pode construir um discurso edificante para o proveito das
gerações futuras. Longe do otimismo demonstrado por todos os teóricos
da sobrevivência, que nele encontram o conforto de ver confirmados certos
62

valores transcendentes, Charlotte Delbo constrói a sua obra com a mesma


ausência de ilusões de quando se dirige a esta pequena menina judia: “O
que devo dizer a ela para animá-la? Ela é pequena, frágil. E não tenho o
poder de persuadir a mim mesma. Todos os argumentos são absurdos.
Luto contra a minha razão. Lutamos contra toda razão” (Delbo, 1965,
p. 18-19). Também este primeiro livro de Charlotte Delbo, biográfico,
restitui o desespero em seu estado puro: o corpo mutilado corresponde
ao coração partido. O sobrevivente carrega para sempre as marcas da
morte, a realidade de um campo de extermínio apaga qualquer distinção

n. 62 | 2023 | p. 353-417 387


de qualidades ou conduta entre sobreviventes e mortos, tornando a linha
de demarcação entre uns e outros a mais arbitrária possível.
A reconstrução das biografias dos seus camaradas do comboio
de 24 de janeiro de 1943 (49 sobreviventes de 230, e este número é
particularmente elevado na medida em que eram mulheres francesas
“políticas” e não “judias”, que não estavam sujeitas à seleção na chegada
e gozaram de melhores condições de vida a partir de 3 de agosto de 1943;
Delbo, 1965, p. 16-17), compõe uma galeria de retratos que revela toda
a diversidade de situações, no campo e depois. No entanto, é o próprio
desespero que deve ser transmitido em sua diversidade, pois restaurar
uma pluralidade de vozes é o que também nos permite expressar a voz
despedaçada de cada sobrevivente tomada individualmente, que nunca
deixa de se comparar com os outros, a seus companheiros de destino, e
para aqueles ao seu redor, dos quais ela está para sempre separada por
causa de sua experiência e de sua memória46.
Para realizar este projeto literário, Charlotte Delbo escolhe gêneros
literários e linguagens específicas. Em “Um Conhecimento Inútil”, apresenta
cenas e retratos, ordenados por temas e não por cronologia, intercalados por
poemas. Apenas uma outra autora, a atriz polaca Zarebinska-Broniewska,
utiliza esta técnica de apresentação (Zarebinska-Broniewska, 1949).
O distanciamento literário consiste, portanto, em criar um espaço
discursivo que permita que uma pluralidade de vozes se expresse. O caráter
autobiográfico dos relatos testemunhais é assim superado sem que haja
necessidade de passar do registo individual e singular para um registro
geral, como acontece com os relatos judiciais, científicos ou políticos. A
linguagem e o estilo precisos, sóbrios, sem qualquer pathos, recriam esta
comunidade de destino que uma comemoração heroicizante só poderia
expropriar de sua experiência. Ao recusar-se a esquecer, Charlotte Delbo
supera o seu desespero e as suas feridas através da escritura e, ao falar em
primeiro lugar aos seus companheiros, ela lhes fornece os instrumentos
para fazerem o mesmo: “Esquecer, seria atroz. Não que eu esteja agarrada
ao passado, não que tenha tomado a decisão de não esquecer. Esquecer ou
lembrar não depende da nossa vontade, mesmo que tivéssemos o direito
de fazê-lo. Ser leal às camaradas que deixamos para trás é tudo o que nos
resta. Esquecer é impossível de qualquer maneira... Não estou viva, morri
62

em Auschwitz e ninguém o vê” (Delbo, 1965, p. 64-66).


Mas se a reconquista da identidade exige o luto e a recusa do
esquecimento, é o que também permite controlar “esta faculdade
providencial que me ajudou a escapar de Auschwitz: me desdobrar, não
estar lá” (Delbo, 1965, p. 75). Com efeito – e a literatura dos sobreviventes
dos campos de extermínio o confirma – a manutenção da autoestima,
de uma certa liberdade de pensamento em vez de uma pequena margem
de autonomia na ação, resulta, na maioria das vezes, da duplicidade da
pessoa, de sua capacidade de pensar em si mesma à parte da realidade
da qual não pode escapar. Mas uma vez transformada a necessidade em

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virtude, o hábito desta duplicidade é a hipoteca que pesa sobre a adaptação
à vida civil após o regresso: “Eu era dupla e não conseguia reunir os
meus duplos” (Delbo, 1965, p. 120). Ou, falando de outro sobrevivente
encontrado durante o retorno: “Ele se lembra de tudo... só que tem a
impressão de que não foi com ele que aconteceu. Ele tem um passado que
não é o seu, por assim dizer” (Delbo, 1965, p. 133). Não esquecer, guardar
a memória, torna-se então condição para evitar os efeitos destrutivos
dessa duplicidade: assumir o passado em nome do controle do presente.
O ato literário torna pública a experiência concentracionária na sua
diversidade, na sua ambivalência, em todos os aspectos da atrocidade.
E esta “publicidade” (no sentido de tornar público, e portanto dizível,
pelo menos parte do indizível) permite, na impossibilidade de restaurar
a justiça, abrir pelo menos a possibilidade de uma compreensão mais
geral, susceptível de estabelecer um vínculo social que poderia aliviar
o peso que a memória representa para cada sobrevivente considerado
individualmente.
Mas também é apropriado considerar o fato da identidade de Charlotte
Delbo já ter sido construída, antes do campo, em torno da sua relação
com a literatura (ela trabalhou no teatro, e também conseguiu que uma
peça fosse apresentada em Auschwitz por suas companheiras de prisão),
de modo que a escritura sobre os campos pode ser igualmente um modo
de resolver sua duplicidade, instaurando um vínculo entre sua condição
de sobrevivente e aquela de escritora. Isso explicaria a constância, em sua
trajetória, da escritura sobre os campos, e em todas as suas formas (prosa,
teatro, poesia), mas sempre com um projeto verdadeiramente literário.
Finalmente, depois de 1945, foi a literatura em geral que se viu
confrontada com um novo problema: dar forma a uma realidade que ia
além de tudo o que poderíamos imaginar. É então que se constitui um
gênero específico: a “literatura de atrocidades”, à qual pertence a obra de
Delbo (Langer, 1975, p. 35; Halperin, 1970), em que estas problemáticas,
inicialmente promovidas por escritores que sobreviveram aos campos
de concentração, foram retomadas por outros para constituir um objeto
de reflexão relativamente autônomo da relação pessoal do autor com o
universo concentracionário. Assim, ao contrário da observação pessimista
de Adorno em “A Dialética Negativa”, segundo a qual, depois de Auschwitz,
62

a poesia não seria mais possível, a arte tornou-se um recurso que nos
permite assumir o desafio, tentando dar uma forma de expressão ao horror.
Os personagens desta literatura muitas vezes combinam a necessidade
simultânea de falar e permanecer em silêncio e, principalmente, se
veem incapazes de restabelecer sua unidade com a ajuda de valores
transcendentes ou míticos (Langer, 1975, p. 12, 120, 284). Esses traços
característicos fazem lembrar as tensões constitutivas dos diferentes tipos
de depoimentos aqui analisados, mas que vemos serem suscetíveis de se
fazerem objeto de um trabalho de eufemização por meio da forma literária.

n. 62 | 2023 | p. 353-417 389


Esta opõe-se, portanto, tanto à idealização psicológica ou ideológica,
que tende a operar a partir do exterior, como também à descrição
“achatada”, praticada mais frequentemente pelos sobreviventes quando
se comprometem a testemunhar. Com a necessidade de falar de si
mesmo, e uma vez que é a própria condição deste “si” que é problemática
devido à discrepância (temporal, estatutária etc.) entre a identidade
concentracionária e a identidade civil – com a dificuldade de falar
aliada à necessidade de o fazer –, o recurso à forma literária pode ser
uma das modalidades de expressão, entendida quer como um esforço
de distanciamento, quer como um empreendimento de restauração de
vínculos.

FALAR POR SI MESMA

Quase metade dos relatos do nosso corpus, tanto os publicados


como os obtidos através de entrevistas, invocam poucas ou nenhuma
motivação geral que justifique tomar a palavra em público. Assim entre
as treze narrativas enunciadas “em nome de si mesma”, cinco foram
escritas logo após a liberação entre 1945 e 1946, as outras oito depois
de 1956. Estes dois grupos de escritos têm em comum uma narração
cronológica e de acontecimentos, com poucas incursões temáticas, mas
distinguem-se pelo fato de que os textos publicados logo após a liberação,
muito detalhados e precisos na descrição dos acontecimentos relatados,
darem pouco espaço a reflexões mais gerais e filosóficas sobre os mesmos
acontecimentos, mas , ao contrário, tomarem certa amplitude nos textos
publicados depois de 1956 – o que também é relatado em algumas
entrevistas. Além disso, enquanto os escritos autobiográficos do primeiro
período refletem o trabalho de luto e de adaptação à vida cotidiana, os
relatos posteriores refletem tanto as lembranças como as preocupações
contemporâneas no momento da escritura, quando um período difícil
provoca uma rememoração: emigração, perda de uma pessoa próxima
etc. Encontramos este mesmo problema em três entrevistas realizadas
poucos anos após a morte de uma pessoa muito próxima, o marido ou o
irmão. O relato tende então a ir além do episódio do campo propriamente
dito, prestando mais atenção a toda a trajetória da pessoa, à juventude e
62

ao período que antecede a deportação, mas também à readaptação à vida


civil após o retorno dos campos.
Se compararmos estes relatos “em nome de si mesmo” com aqueles
que são contados em nome de um valor geral, constatamos que os
primeiros mencionam apenas um pequeno número de amigos ou parentes,
e dificilmente fazem referência a grupos de pertencimento formados.
Se tomarmos como indicador do grau de integração num grupo e,
indiretamente, de proteção coletiva em uma situação de extrema repressão,
o número de amigas ou familiares que desempenham um papel importante,
seja para manter a esperança, seja para “organizar” a sobrevivência ou para

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se proteger reciprocamente, aquelas que falam em nome de si mesmas,
efetivamente, parecem ter passado a sua experiência concentracionária
num isolamento ainda maior do que os outros. Assim, no relato de Edith
Bruck, apenas sua irmã aparece como uma pessoa próxima e confiável
com quem ela pode contar (Bruck, 1961); Reska Weiss organiza uma
parte de seu relato em torno do infalível apoio mútuo de uma amiga e
também da proximidade com suas duas cunhadas (Weiss, 1961); Estrea
Zacharia-Asseo e Lucie Adelsberger se referem mais particularmente a
duas amigas muito próximas (Zacharia-Asseo, 1974; Adelsberger, 1956).
No entanto, olhando mais de perto, vemos que estes diferentes modos
de fazer uso da palavra, e este aparente isolamento durante a detenção,
podem ser atribuídos à razão oficial da prisão e da deportação. Sem
resultar necessariamente num tratamento distinto em todas as etapas
da experiência concentracionária, as diferentes razões para a prisão,
“políticas” por um lado, “raciais” por outro, são a origem de traumas
adicionais para as judias, bem como uma menor integração em um grupo
constituído. Com efeito, as deportadas “políticas”, quando chegavam a
Auschwitz, encontravam-se geralmente integradas num grupo de militantes
que se conheciam de longa data, ou que tiveram a oportunidade de se
conhecer na prisão, por vezes durante períodos de vários meses antes da
sua transferência para o campo de concentração. As judias, ao contrário,
eram frequentemente apanhadas em detenções (rafles)47 e tinham passado,
no máximo, algumas semanas noutro campo, antes de serem deportadas
para Auschwitz. Na maioria das vezes, conheciam apenas os membros da
sua família que foram deportados ao mesmo tempo que elas e, neste caso,
o choque da chegada tornou-se ainda mais insuportável porque muitas
vezes foi acompanhado pela perda de pessoas próximas, marido, filhos ou
pais. Esta diferença inicial marca toda a experiência concentracionária.
O isolamento relativamente maior dos judeus na chegada ao campo não
parecia poder ser superado depois disso.
Podemos opor, deste ponto de vista, o relato de Louise Alcan sobre o
“comboio de 24 de janeiro”, escrito em 1945 e onde abundam as referências
às suas amigas e aos “franceses”, com o de Suzanne Birnbaum, de outro
comboio, presa como judia. Ela atribui o seu recrutamento para Raisko à
intervenção de Louise Alcan e da Doutora Stéphane. Mas apesar dos laços
62

muito estreitos com duas mulheres do “comboio de 24 de janeiro”, seu


relato retrata um destino mais solitário e o apoio de um número muito
limitado de amigas (Alcan, 1945). O “comboio de 24 de janeiro” é, sem
dúvida, o exemplo mais revelador de uma experiência concentracionária
coletiva. Fortemente ligadas por um longo período na prisão e no forte de
Romainville, essas francesas que chegam ao campo cantando a Marselhesa,
se unem e conseguem nunca se separar completamente, a tal ponto que
quando Marie-Claude Vaillant-Couturier vê à disposição um cargo de
tradutora, ela recusa, apesar da incontestável vantagem pessoal que isso
lhe teria proporcionado, para não abandonar as demais. Esta coesão do

n. 62 | 2023 | p. 353-417 391


grupo, de base política e patriótica, permitiu ao núcleo deste comboio
estabelecer laços com outras mulheres francesas no Revier e na Raisko,
e salvar um grande número de camaradas do mesmo comboio, outras
mulheres francesas e elas mesmas.
As entrevistas confirmam as tendências assim identificadas na
literatura. Três mulheres francesas, das nove entrevistadas, não fizeram
parte do comboio de 24 de janeiro. Com excepção da entrevista com
uma emigrante judia polaca, presa na França, e que, no campo, mal se
misturava com mulheres polacas, as entrevistas com estas judias revelam
uma situação muito solitária no campo – próxima, neste aspecto, da
situação de uma judia alemã e uma judia austríaca que, ao contrário de
outras judias austríacas também entrevistadas, não tinham filiação política
antes da sua deportação. As duas exceções a este maior isolamento das
judias são Fania Fénélon e Margareta Glas-Larsson. No caso da primeira,
a continuidade de uma infinidade de relações estáveis ​​e duradouras se
deve à sua posição como musicista na orquestra do campo (Fénélon,
1976). A segunda distingue-se por uma capacidade rara de estabelecer
contatos – disposição em parte devida a uma educação mundana toda
orientada para o “bom casamento” e reforçada por um longo périplo na
prisão (Glas-Larsson, 1981, p. 75)48.
Encontramos também a oposição entre esses dois tipos de uso da
palavra (em nome dos valores gerais, para as “políticas”, e em nome de si
mesma, para as “judias”) entre os textos de forma literária: a eufemização
e a objetificação no projeto literário da deportada política Charlotte Delbo,
ao dar a palavra a uma multiplicidade de vozes, opõe-se, por exemplo, à
de Anna Novac em seu diário.
Mas não é sem interesse constatar que, em vários casos, é difícil
recuperar no relato o motivo oficial da deportação. Por exemplo, em três
das quatro entrevistas realizadas com as combatentes da resistência49,
que também eram judias, estas já não conseguiam indicar com certeza a
classificação a que tinham sido submetidos no campo, se entre as “políticas”,
se as “judias”, ou ambos. Nestes três casos - trata-se de uma emigrante
judia polaca, e de outra, austríaca, que se juntaram à “Résistance” na
França, bem como de uma refugiada judia austríaca e detida na Bélgica
– o judaísmo50, embora conhecido das autoridades ou descoberto muito
62

rapidamente após a prisão, não foi a causa direta.


No seu livro publicado em 1945, Louise Alcan, sem nunca elucidar
este ponto, simplesmente relata ter sido suspeita, pela Gestapo, de ser
judia. É apenas na reedição de 1980, e sob o choque do bombardeamento
da sinagoga da rua Copernic, que esta mulher, “totalmente ateia”, indica
explicitamente as suas origens judaicas. No seu caso, assistimos a uma
recusa política das classificações inerentes à política racial nazi, enquanto
noutros casos se trata menos de uma recusa expressamente política do
que da perturbação sentida individualmente face à imposição de uma
classificação “racial” em que a condição de “judeu” não era forçosamente

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vivenciada como tal ou, pelo menos, não era mais que um fato cultural
ou religioso, ou seja, mais relevante como uma “prática” (sobre a qual a
pessoa tem posição) do que como uma “essência” (sobre a qual não se
pode fazer nada).
Assim, no relato de sua prisão, uma jovem de Lyon descreve esta
situação como um conflito que tem, como objetivo, a força convincente
de diferentes instrumentos de prova, desde a certidão de batismo até uma
fisionomia típica ou o nome, para estabelecer a filiação cristã ou judaica:
“Então, querendo nos prender definitivamente, decidiram que éramos
judeus (era verdade, além disso), mas eles não tinham provas, porque meu
pai, judeu de origem, era batizado desde o nascimento... Pediram então
sua certidão de batismo, que papai procurou em vão... entrando no quarto
da minha avó, pediram-lhe sua identidade... Os alemães acham este nome
suspeito e adivinham prontamente... que éramos israelitas… Uma antiga
fotografia de família estava sobre uma mesa. Os Boches51 se jogam sobre
ela como se fosse uma presa, descobrindo que esses personagens eram
inegavelmente de tipo semítico. Deve ser dito que eles sabiam muito sobre
a ciência de detectar judeus de acordo com o seu tipo físico.” Podemos
perceber bem, ao ler esta passagem, e apenas pela justaposição de “eles
decidiram que éramos judeus” e “era verdade, além disso”, a ambiguidade
de uma condição – tanto original como comprovada tardiamente,
imposta autoritariamente e reivindicada, arbitrária e autêntica, artificial
e natural, falsa e verdadeira – o que ao mesmo tempo representa uma
causa de destruição física e um instrumento de diferenciação suplementar
face aos algozes. Tal ambiguidade torna improvável, no mínimo, uma
reivindicação clara, por parte do deportado, de uma condição portadora
de tantas contradições.
Em noutros casos, tal como o de Margareta Glas-Larsson, nada
na história pessoal induz uma ligação a qualquer judaísmo, exceto
evidentemente a designação como tal pelos nazistas. Estas variações
na identificação e na recusa de identificação com o motivo oficial da
deportação sugerem que falar em nome de si mesmo, ao contrário do
que se faz em nome de um valor geral, invoca diversas interpretações. Em
primeiro lugar, se o fato de ter sido detida pelo que fez permite à vítima
dar um significado geral ao sofrimento passado em nome de uma “causa”,
62

por outro lado, fazer uso da palavra em nome de si poderia assinalar a


impossibilidade da valoração de seu próprio destino. A palavra individual
(ou individualista) aparece então negativamente como o último recurso
para expressar suas queixas, por não poder ligá-las a uma referência
mais geral.
Além disso, falar em nome de si mesmo pode destacar uma linha de
conduta constante que resulta de uma recusa de classificação. Esta recusa
pode aliás ser dupla. Vimos que os “judeus”, definidos como tais por uma
lei baseada na suposta validade das “leis” de hereditariedade de Mendel,
no caso das “raças humanas” (Pollak, 1985, p. 25 e seg.), recusavam na

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maioria das vezes esta definição. A rejeição de se identificar, antes da
deportação, com o que deveríamos ser, pode ser acrescida, no campo,
à recusa de se identificar com a categoria dos presos judeus, na medida
em que, neste caso específico e ao contrário de todas as outras categorias
de deportados, o pertencimento e a solidariedade com o grupo não
eram sinônimo de proteção, mas de ameaça de morte coletiva. Assim, as
vítimas, tendo sempre rejeitado o critério que as tinha designado como
tais, encontravam-se, após a sua libertação, na situação paradoxal em
que o seu testemunho tendia a se incluir em uma causa que elas jamais
tinham reconhecido como sua. Vemos aparecer ali uma dificuldade
adicional do testemunho.
Por último, sabemos que a natureza dos crimes cometidos pelo
regime nazista em nome de uma teoria racial tornou necessário, após a
guerra, a incorporação à terminologia jurídica da noção de “crime contra
a humanidade”. É esta dimensão, a mais geral que existe, da criminalidade
que parece ecoar a rejeição, por certas vítimas dos campos de concentração,
de toda classificação social e a afirmação de que a simples qualidade de
ser humano é razão suficiente para viver e exigir respeito. A afirmação
mais forte do valor individual acompanha o reconhecimento do grupo
do mais amplo que se possa imaginar: a humanidade. O que aparece,
à primeira vista, como uma palavra “em nome de si mesmo” da vítima
mais isolada, da vítima no seu estado puro, é ao mesmo tempo o que abre
caminho à identificação com uma humanidade “nua” e liberta de conflitos
nacionais e religiosos, precisamente em nome da qual foi inventada a
noção de “crime contra a humanidade”. Isto suscita, mais amplamente, a
questão do vínculo entre a formação de memórias individuais e coletivas
após a liberação.

A FORMAÇÃO DE UMA MEMÓRIA COLETIVA

O trabalho de constituição de uma memória coletiva no quadro


socializado de uma associação de deportados foi capaz de ajudar
individualmente os sobreviventes a se libertarem, ao menos em parte,
das suas recordações traumáticas. “Para que nossa memória se apoie nas
dos outros, não é suficiente que nos tragam os seus testemunhos: ela não
62

deve também deixar de se afinar com suas memórias e que haja suficientes
pontos de contato entre uma e as outras para que a recordação que nos
lembram possa ser reconstruída sobre uma base comum” (Halbwachs,
1968, p. 12). Maurice Halbwachs refere-se a este trabalho como uma
“comunidade afetiva” que pode atenuar tudo o que, nas lembranças
individuais, recordaria o isolamento e também os dolorosos conflitos entre
os deportados que relatam as narrativas contadas logo após a guerra, tal
como os traumas que podem provocar depois processos de recalcamento,
ansiedade em relação aos outros e a recusa de contatos.

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Podemos dar como exemplo esta entrevista com uma sobrevivente,
presa em 1942, na linha de fronteira, aos 17 anos, com material de
propaganda da Résistance. Em seu relato, algumas situações traumáticas
são incorporadas numa narração de acontecimentos sem uma cronologia
precisa, onde abunda a recordação da solidariedade de algumas
francesas a quem se agarrou durante os dois anos de deportação. “O que
permanece acima de tudo é esse medo, essa ansiedade.” Suas recordações
de Ravensbrück, para onde foi transferida em agosto de 1944, são
muito precisas. Ela havia escapado por pouco da seleção, e a recordação
dessas circunstâncias foi reavivada nela por outros camaradas. Após seu
retorno, com menos de 20 anos, ela teve que ficar mais de um ano e meio
internada em um sanatório, e buscou esquecer, reprimir: “Quando voltei
para casa, um pequeno município, todo mundo queria me ver, eu tive
uma recepção incrível na estação. As pessoas vinham na minha casa,
mas muitas vezes eu me escondia, porque não queria falar sobre isso.
Ficamos tão traumatizados que não queríamos mais lembrar”. Depois do
casamento com um camarada da Resistência, ele próprio deportado, de
uma vida de trabalho e da educação de dois filhos, ela tem participado
muito ativamente, depois de 1977, em diversas atividades educacionais
nas escolas secundárias e no dia a dia da Amicale. A sua memória, pouco
detalhada, é inseparável da memória coletiva que ela ajudou a criar: o seu
“eu” de deportada funde-se com o “nós” das mulheres francesas deportadas
e mais particularmente das que estavam no seu comboio.
Na França, não é surpreendente encontrar, entre as mulheres que se
encarregaram do trabalho de testemunho e animação da Amicale, uma
proporção significativa de sobreviventes do comboio de 24 de janeiro de
1943: Louise Alcan, Charlotte Delbo, Marie-Elisa Nordmann, Marie-Claude,
Vaillant-Couturier, para citar apenas algumas. Este comboio, composto
em sua maioria por combatentes da Resistência (dos 229 deportados,
Charlotte Delbo conta 119 comunistas e simpatizantes, 12 gaullistas, 51
deportados por vários atos de resistência, 12 contrabandistas da linha
de fronteira), foi o único comboio transportado sob a etiqueta “política”
para o campo de mulheres de Auschwitz-Birkenau, da França. Além
disso, estas deportadas políticas da Resistência foram confrontadas com
o extermínio das judias. De acordo com uma infinidade de testemunhos,
62

elas desempenharam um papel importante nas redes de apoio de resistência


política. Tudo indica que, tal como algumas mulheres francesas deportadas
antes delas, tal como Claudette Bloch, elas formaram a espinha dorsal de
uma rede baseada na pertença nacional. Assim, Louise Alcan, Marie-Elisa
Nordmann e Danièle Casanova também aparecem em outros relatos, seja
como símbolos de esperança, seja como aquelas que conseguirão, com a
ajuda das médicas francesas ou da lendária Mala, a “colocar” francesas
na Raisko ou em outros lugares relativamente protegidos. Organizando,
no seu regresso, reuniões anuais em Paris para se apoiarem mutuamente,
estas mulheres do comboio de 24 de janeiro reúnem todos os elementos

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susceptíveis de forjar de forma credível o núcleo daquelas que, uma vez
superadas as fraquezas físicas e os traumas mais graves, contribuirá muito
também para a formação de uma memória coletiva.
Na ausência de tal comunidade afetiva de deportadas – lugar de
constituição de uma memória coletiva e de gestão de memórias individuais
capazes de atenuar possíveis conflitos ou ressentimentos – o silêncio das
vítimas pode proceder da necessidade de manutenção de laços sociais
com as pessoas próximas e de se conformar às representações dominantes.
Assim, o fato de ter sido condenada por “vergonha racial” – crime que,
segundo a legislação de 1935, proibia as relações entre “arianos” e “judeus”
– constitui um dos maiores obstáculos de que se ressentia Margareta
Glas ao falar de si mesma (Glas-Larsson, 1981, p. 89). Por outro lado, de
acordo com a sua consciência política e patriótica, aquelas do “comboio
de 24 de janeiro” puderam, na França, contribuir poderosamente para este
trabalho de construção e harmonização de um grupo único de vítimas que
minimizam, ao contrário do exemplo alemão, a marca das classificações
nazistas entre vítimas “raciais” de um lado e vítimas “políticas” do outro.
Este trabalho só foi possível graças à referência fortemente constituída
de um pertencimento nacional, o que falta entre os judeus em países
marcados por um antissemitismo oficial – tal como é o caso de quase
todos os países da Europa Central e do Leste antes, durante e (apesar de
algumas mudanças) também depois da guerra. Não surpreende então
que o relato que mais diverge deste “nós” fortemente constituído venha
de uma imigrante judia polaca e deportada da França, que passou pela
provação do campo confiando tanto em amizades juvenis com mulheres
polonesas como em seus vínculos com as camaradas francesas.
Os fenômenos de concordâncias e de tensões entre memórias
individuais e memória coletiva, no que diz respeito à deportação, tornam-se
ainda mais evidentes quando comparamos as dez entrevistas obtidas na
França e aquela realizada na Polônia com as cinco entrevistas recolhidas
na Alemanha e na Áustria. As sete mulheres francesas que nos foram
apresentadas pela Amicale eram todas, com uma excepção, mais hesitantes
em falar sobre o “depois” e a sua readaptação à vida civil. Não se tratava
então de uma recusa, mas de uma incompreensão quanto ao interesse
que este relato poderia ter. Ao contrário, as entrevistadas da Alemanha
62

e da Áustria nunca fizeram esta pergunta; e isto sem dúvida porque este
assunto é, aos seus olhos, legítimo e sensato. Revelaram mais, então, das
dificuldades causadas pela gestão individual das suas lembranças. Mas
estas diferenças referem-se igualmente à importância das formas de
reconhecimento político e jurídico das diferentes categorias de vítimas.

O TRABALHO DA MEMÓRIA

Vemos em ação, nos diferentes países, as lógicas perfeitamente


contraditórias para redefinir, após a guerra, os grupos de vítimas. Na

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França, as associações de deportados, que estabelecem ao mesmo tempo
uma diferença entre os combatentes da “Résistance” e as outras vítimas
políticas (judias e não judias), sempre serviram como porta-vozes de
todos os deportados para defenderem os seus interesses sociais e seu
estatuto político e moral de vítimas de um sistema desumano e estrangeiro.
Esta unificação, esta homogeneização das vítimas se inscreve em uma
tradição e uma realidade política que privilegia o pertencimento à
nação como critério de identificação social das pessoas, em detrimento
de outros pertencimentos, sobretudo religiosos. O mesmo se aplica aos
deportados políticos poloneses. Na Alemanha, por outro lado, e, em
menor grau, na Áustria, o trabalho de redefinição das diferentes vítimas
foi mediado menos pelas associações de deportados (embora existentes)
do que por meio de atos legislativos e administrativos, bem como por
uma negociação internacional entre o Estado e os representantes dos
interesses da comunidade judaica.
A oposição entre a França e a República Federal da Alemanha, que
encontra as suas razões de existência em toda a história política e social
dos dois países, revela em uma escala muito pequena a diversidade das
situações a partir de um trabalho de enquadramento social das vítimas
após a guerra. Não é necessário dizer que a emigração para Israel ou para
os Estados Unidos implicou para cada vítima outras considerações e outras
assistências. Sem poder firmar uma análise exaustiva, a comparação destas
duas situações permite mostrar o efeito desta diversidade de condições,
por um lado, na constituição de uma memória coletiva e, por outro, na
identidade social de cada vítima tomada individualmente.
Na França, os ex-deportados passaram por centros de triagem onde
lhes foram emitidos, com base em suas declarações, cartões provisórios
de deportados. Alguns anos mais tarde, e para excluir os STO52 ou os
pretensos deportados que se tinham registado nesta categoria, estes
cartões foram trocados por um cartão azul de deportado político. Mais
tarde ainda, as associações de deportados argumentaram que seria
apropriado estabelecer uma distinção entre os deportados que tinham
efetivamente pertencido a uma rede de resistência e aqueles que tinham
sido deportados pelo simples fato de serem judeus, tendo esta distinção
assumido a forma de um cartão cor-de-rosa para o deportado político. Esta
62

medida teve consequências no cálculo das pensões, pois os deportados


civis (não resistentes) receberam pensões de invalidez significativamente
mais baixas, que só foram igualizadas em 1970.
Na Alemanha, os decretos aliados regulamentaram inicialmente
a compensação material para as vítimas do nazismo, antes de serem
substituídos, a partir de 1952, por diferentes leis federais e por um tratado
celebrado entre a República Federal e organizações judaicas mundiais.
Estas diversas leis reconhecem como vítima qualquer pessoa perseguida
“por razões de oposição política ao nacional-socialismo ou por razões
de raça, religião ou ideologia”. Mas a sua aplicação foi complicada pela

n. 62 | 2023 | p. 353-417 397


definição (territorial e de nacionalidade) de “detentores de direitos”,
que incluía por este termo os fugitivos judeus do leste, as DPs (diplaced
persons/pessoas deslocadas), instalados em campos em abril de 1947 (entre
duzentas e trezentas mil pessoas). Por outro lado, esta mesma legislação
excluía qualquer “compensação a pessoas que não pareçam dignas dela,
mesmo que o requerente reúna todas as condições” (Blessin, 1960, p. 33).
Esta regra excluía da esfera de aplicação, naturalmente, todas as vítimas
criminais, os associais e os homossexuais para os quais o nazismo apenas
reforçara a legislação preexistente, mas também poderia se aplicar aos
combatentes da Resistência em que a criminalização da política tinha sido
classificada como parte da “lei comum”53. Mas – muito mais importante –
o acesso ao estatuto de beneficiário e às compensações também dependia
dos critérios políticos da Guerra Fria. Assim, aqueles que resistiram ao
nazismo, suspeitos de serem inimigos da “ordem liberal e democrática
fundamental” definida pela Constituição de 1949, foram considerados
indignos. Algumas vítimas do nazismo, consideradas depois da guerra
tão criminosas como antes, não tiveram oportunidade de expressar as
suas queixas individuais ou coletivas. As razões políticas do momento,
nomeadamente a Guerra Fria, acabaram por justificar a posteriori a
criminalização da política feita sob o Terceiro Reich, ao declarar algumas
das suas vítimas indignas de qualquer compensação material e, mais
ainda, de qualquer reconhecimento moral. Esta consideração e assistência
às vítimas no quadro político de uma legislação que refletia, sobretudo,
a preocupação com a continuidade jurídica da legalidade do Estado,
resultou num duplo contra-efeito que culmina num reconhecimento
indireto das categorias utilizadas pelos nazistas. Por um lado, de fato, as
vítimas “raciais”, incluindo aquelas que sempre desafiaram esta classificação
absurda, tiveram de reconhecer sua força social implacável. Por outro
lado, a própria existência de certas vítimas políticas, tais como os ativistas
comunistas, declarados, após a proibição do partido em 1956, como
“inimigos da constituição liberal e democrática”, só poderia reforçar os
preconceitos do alemão médio, acompanhante de trajetória dos nazis,
reconvertido aos valores democráticos e anticomunistas: afinal, a repressão
política do Terceiro Reich não poderia ter sido inteiramente desprovida de
fundamento. Despolitizando, então, a memória da era nazista, os atores
62

políticos renunciavam em grande parte ao trabalho de “reconciliação


interna”, deixado, desde então, somente como um diálogo inter-religioso
entre as igrejas católica, protestantes e as comunidades judaicas. Isto apenas
confirma a importância, na Alemanha, do pertencimento religioso como
critério de identidade social dos indivíduos, e condena a uma gestão
individual da sua memória todos aqueles que não se reconhecem em tal
classificação. Foi apenas sob os efeitos combinados, a partir de 1965, do fim
da Guerra Fria e da mudança política interna na RFA54, que um trabalho
de reformulação destes problemas pôde se iniciar em uma escala maior.

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O caso da Áustria situa-se entre os da França e da Alemanha. Dado
que muitos dos fundadores da Segunda República austríaca, tanto de
direita como de esquerda, foram deportados sob o nazismo, o tema da
deportação e dos campos poderia facilmente ser assimilado à retórica
política sem provocar a consciência culpada daqueles que aplaudiram,
em 1938, à anexação do país pela Alemanha nazista. A “criação dos
campos” de políticos conservadores e socialistas tinha, segundo esta
retórica, ensinado aos deportados nos campos a necessidade de pensar
a política em termos de compromisso, alianças e de negociação, e não
em termos de confronto e guerra civil. Estes homens e mulheres que
regressavam dos campos simbolizavam, por sua vez, a continuidade com
a Primeira República, que tinha efetivamente terminado numa guerra
civil em 1934, e a novidade do consenso tornado possível pela sua catarse
concentracionária. Ao atribuir indiretamente a esta mesma geração
política a responsabilidade pela guerra civil e pela autodestruição do país,
mesmo antes do surgimento do perigo nazista na Áustria, esta operação
retórica transformou a Áustria (e os austríacos) em vítima(s) de seus
antigos líderes, que tiraram a sua nova legitimidade precisamente da sua
capacidade de cooperação e harmonização de ideologias anteriormente
descritas como irredutíveis. De maneira simbólica, esta retórica permitiu
uma reconciliação do país e dos seus dirigentes, reunidos em torno do
mesmo objetivo e de um mesmo interesse: a reconstrução. Além disso,
certos interesses de política exterior ajudaram (ou seja, a libertação dos
ocupantes), esta retórica conseguiu convencer até antigos nazis da justiça
da tese oficial, segundo a qual a Áustria teria sido a primeira vítima
do nazismo. Embora em última análise encontremos muito poucos
representantes dessa famosa “geração dos campos” em posições de
comando, esta operação valorizou os deportados, sobretudo os políticos,
ao mesmo tempo que proporcionou aos nazis menos expressivos a
possibilidade de uma reconversão ideológica fácil e rápida. No contexto
desta história geral, e embora as suas vidas cotidianas lhes expusessem
igualmente a cenas que lhes lembravam que o passado jamais terminava,
as deportadas austríacas entrevistadas mostraram menos ambivalência
em relação ao seu país do que as alemãs.
O trabalho político de classificação das vítimas do nazismo, com
62

ou sem associações de deportados, contribui para a formação de uma


memória oficial que pode, no limite, privar certas vítimas de qualquer
possibilidade de articular suas acusações, ou mesmo de tornar públicas
as suas recordações. Um exemplo extremo é uma investigação de história
oral realizada na Alemanha entre os sobreviventes homossexuais dos
campos, e que testemunha tragicamente o silêncio coletivo daqueles que,
depois da guerra, temiam comumente que a revelação da sua detenção
pudesse provocar a denúncia, a demissão ou a rescisão de um contrato
de aluguel (Lautmann, 1984, p. 156). Compreendemos, então, porque
certas vítimas da máquina de repressão do Estado-SS – os criminosos, as

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prostitutas, os “associais”, os vagabundos, os ciganos, os homossexuais –
foram conscientemente evitados na maioria das “memórias enquadradas”55,
bem como na historiografia: a repressão a que foram submetidos já sendo
por muito tempo reconhecida, de modo que a história oficial foi reticente
em submeter a uma análise específica a intensificação mortífera dessa
repressão sob o nazismo.

UM FATO IMENSURÁVEL

Luc Boltanski conseguiu mostrar que a denúncia de uma injustiça


normalmente procede por meio de uma retórica que visa convencer
e mobilizar outras pessoas para associá-las ao protesto, de tal forma
que a violência que se segue à exposição seja proporcional à injustiça
denunciada (Boltanski, 1984, p. 3). Para além dos registros socialmente
instituídos e altamente formalizados (judiciais e científicos), a leitura dos
diferentes testemunhos de deportados mostra que as vias de denúncia
assim descritas parecem paradoxalmente fechadas. O terceiro registro
oficial disponível, o da retórica política, já está, como vimos, fracamente
representado no nosso corpus. Também os testemunhos mais pesoais
quase não apresentam sinais de reivindicação, como se o motivo comum
de uma denúncia, o restabelecimento da justiça, estivesse obviamente
fora de alcance. Isso porque a memorização faz com que os deportados
enfrentem um período de suas vidas que os colocou literalmente à parte de
si mesmos, obrigando-os a se adaptarem ao universo concentracionário.
A diferença que se estabelece quase inevitavelmente entre as condutas
exigidas e a imagem que se tem de si mesmo pode causar dúvidas e crises
identitárias, de identidade, de modo que toda denúncia individual do
passado se torna particularmente difícil porque ela corre sempre o risco
de ser acompanhada de sentimentos ambivalentes.
Finalmente, os únicos registros disponíveis para falar de um modo
coerente sobre a experiência concentracionária – ou seja, o discurso
judicial, político ou científico – permanecem obviamente incapazes de
dar conta desta experiência na sua perspectiva pessoal, isto é, na medida
em que ela atinge diretamente a identidade da pessoa. Restituindo
necessariamente o passado de modo lacunar, estes registros não nos
62

permitem realmente compreender as vítimas e todos os seus problemas.


Considerando os danos e os traumas com os quais os sobreviventes são
forçados a viver, qualquer tentativa de restabelecer a justiça permanece
impotente. Assim, a experiência concentracionária é assim tão “indizível”
porque não existe efetivamente qualquer possibilidade de restabelecer a
justiça. E a necessidade de falar e a necessidade de se manter em silêncio
podem coexistir porque faltam palavras adequadas e a linguagem cotidiana,
com as suas fórmulas, tais como “estou morrendo de fome” ou “estou
morrendo de cansaço”, podem aprofundar, sem qualquer intenção, um
fosso intransponível entre os sobreviventes e os “outros”. Talvez seja aí

400 n. 62 | 2023 | p. 355-417


que intervém o recurso ao registro literário, que opera não mais pelo
modo da denúncia (restabelecimento da justiça), mas o de comunhão
emocional (restabelecimento do vínculo com os “outros”) – daí, sem
dúvida, o caráter bastante tardio da maioria das formas literárias nos
relatos autobiográficos.
Se esta experiência é difícil de comunicar, é também por sua
estranheza: é a ruptura com o passado e com o futuro que confere à
experiência concentracionária o caráter de uma experiência fora do tempo
e do espaço, especialmente mais difícil de dizer porque não há nada a
que se associar para a tornar mais convincente; é também a estranheza
dos comportamentos que pode reforçar as chances de sobrevivência, o
que pode ser difícil de explicar fora de contexto; e é a dificuldade, enfim,
de situar esta experiência com relação à moralidade atual. Os registos
judiciais, científicos e políticos evitam certamente mencionar a parte
dos traumas imputados às relações entre os deportados, que, ao mesmo
tempo, se encontram com a necessidade de os gerir individualmente
ou entre eles mesmos. Poderíamos nos perguntar se as manifestações
concretas e a amplitude de certos traços característicos da “síndrome do
sobrevivente”, constatados por psiquiatras e psicanalistas, não resultam
da impossibilidade de se referir publicamente a certos traumas e de se
compartilhar as lembranças56 No mínimo, a dificuldade de comunicá-
los pode reforçá-los ao ponto de lhes consolidarem para constituir uma
síndrome específica57: angústia de morte, fragilidade psicológica (e muitas
vezes física), dureza nas relações humanas, tendência à desconfiança.
Tanto no passado como nas recordações dos sobreviventes, a gênese desta
síndrome se encontra na ausência de possibilidade de comunicação, devido
à ausência de qualquer vontade de escuta por parte de outras pessoas.
Esta literatura revela também um sentimento de culpabilidade entre
os sobreviventes, condensado em torno da mesma questão obsessiva: “por
que eu e não os outros?”. No entanto, ainda mais do que outros aspectos
da “síndrome do sobrevivente”, este sentimento de culpabilidade coloca
um problema, pelo menos na sua formulação geral, o que sugere que
pode aplicar-se a todos os sobreviventes, independentemente das suas
experiências concretas, muito diversas, e das possibilidades sociais para
gerir suas recordações que, como vimos, variam também significativamente.
62

Na verdade, esta hipótese de sentimento de culpabilidade que, segundo a


psicanálise, provocaria a sobrevivência numa situação extrema, demonstra
sobretudo que a atenção exclusivamente psicológica prestada ao indivíduo
tem como primeira consequência deixar o campo aberto ao julgamento
moral. Parece, de facto, que a interpretação psicanalítica, que proclama
um vínculo de causalidade entre a experiência concentracionária e o
sentimento de culpabilidade, apenas exprime, em nível moral e individual,
uma tensão que também pode ser explicitada no registro político, jurídico,
científico ou literário. Falar de um “sentimento de culpabilidade”, longe de
dar qualquer explicação, apenas desloca a experiência para um registro

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particular, do qual é bastante oportuno perguntar-nos por que é que é
adotado, por quem e em que momento. Por outras palavras, propomos
tratar o chamado “sentimento de culpabilidade” – quer seja enunciado
pelo deportado ou por alguém que interpreta o seu discurso – como
um sintoma e não como uma causa, muito menos como uma categoria
explicativa. Além disso, ao negligenciar o efeito específico do tempo
decorrido, uma análise que liga diretamente esta ou aquela descoberta de
um distúrbio psicológico às experiências concentracionárias subestima
forçosamente a contribuição dos métodos de gestão das lembranças na
constituição e fixação de tais distúrbios.
Medir, mesmo que apenas implicitamente, a experiência
concentracionária com base na moralidade atual equivale a impor aos
sobreviventes uma condição insuportável, ou seja, um comportamento
continuadamente heroico que permitisse a sobrevivência com dignidade.
A mera expectativa de tal exigência torna extremamente difícil qualquer
comunicação sobre a experiência concentracionária, uma vez que é
muito improvável que aqueles que a escutem sejam capazes de se livrar
de preceitos morais e de concepções de dignidade cujo caráter absoluto
consiste em boa parte da eficácia convencional. As nossas entrevistas
mostraram que foi ainda logo após a guerra que encontramos as melhores
condições para a comunicação e a escuta, em um momento em que
as lembranças vívidas das atrocidades e dos constrangimentos que
podiam influenciar a moralidade das condutas ainda eram largamente
compartilhadas. Posteriormente, os relatos dos deportados poderiam
produzir um questionamento, dificilmente aceitável, das condições de
validade dos valores tomados como inalienáveis. A diferença só poderia
então se aprofundar entre os “sobreviventes”, com as suas lembranças, e
os “outros”. Ora, não é precisamente esta diferença que tem contribuído
para provocar um sentimento de culpabilidade em certos sobreviventes, na
medida em que a discrepância entre a moralidade corrente e a experiência
do sujeito influencia os critérios de julgamento das próprias ações e as
dos outros?
Os grupos restritos de amigos formados por ex-deportados, ou
as associações mais formais, tornam-se então os únicos lugares onde
essas lembranças podem ser vivenciadas livremente. A possibilidade
62

de se apoiar em tais vínculos de grupo é, portanto, de uma importância


crucial para os deportados nos seus esforços para superar os traumas
e para preservar o seu sentido de identidade. No entanto, parece que a
maioria das teorias de sobrevivência – das quais a de Bruno Bettelheim
e a de Terrence Des Pres representam os dois principais polos opostos
de interpretação – têm se interessado essencialmente das condições de
existência durante o período concentracionário.

AS TEORIAS DE SOBREVIVÊNCIA

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Os estudos sobre a experiência concentracionária e a sobrevivência em
situações extremas são certamente o único exemplo em que a experiência
pessoal do autor pôde desempenhar uma garantia principal, senão
exclusiva, de sua credibilidade teórica. As primeiras interpretações
provinham simultaneamente dos psicanalistas deportados Bruno
Bettelheim e Erich Federn. Estas teorias ligam a sobrevivência em situação
extrema à força que o internado consegue contrapor aos mecanismos de
desintegração física e moral da sua personalidade. A base desta luta contra
a desintegração é a mobilização dos valores positivos da vida contra a
angústia de morte comum a todos os homens58. Porém, segundo esta
interpretação psicanalítica, a possibilidade de superação desta angústia
da morte – anterior à qualquer resistência física, psicológica e moral –
depende da capacidade do indivíduo de preservar os valores essenciais de
seu sistema de autocontrole anterior. A manutenção da autonomia pessoal
permite então “colocar uma certa distância entre si e a sua experiência,
para melhor controlá-la” (Bettelheim, 1979, p. 91).
O que sustenta, portanto, a teoria psicanalítica de Bruno Bettelheim,
e de outros depois dele, é o pressuposto de um indivíduo autônomo,
concebido por sua vez como uma categoria descritiva para a psicologia
do desenvolvimento e como um ideal de vida. Segundo esta teoria,
inseparavelmente descritiva e prescritiva, o sujeito acessaria um estatuto
de pessoa plena após um período de formação e amadurecimento de
potencialidades, essencialmente espirituais, susceptíveis de proporcionar
“autoestima” através da definição, autônoma e independente, do lugar
que ele ocupa no mundo social. Esta autoestima seria a base de uma
identidade segura, ou seja, a capacidade de um indivíduo permanecer o
“mesmo” apesar das mudanças no seu ambiente social. É também dele que
dependeria a resistência às condições concentracionárias (Bettelheim, 1979,
p. 56 e seg.): para Bettelheim, só aqueles que conseguissem preservar este
amor-próprio seriam capazes de suportar por muito tempo o tratamento
infligido no campo. E é entre os presos políticos, os mais bem-preparados
para a realidade que os esperava, que Bettelheim detecta mais recursos
de resistência e, portanto, possibilidades de sobrevivência.
Mas se os diferentes relatos confirmam parcialmente esta análise,
eles colocam em questão, no entanto, a validade geral da sua tese central,
62

ou seja, a de que o recurso mais importante da sobrevivência seria a


manutenção da autoestima e do amor-próprio, tornados possíveis por
uma atitude rigorosa, sem trégua face aos carcereiros. Na verdade, atribuir
principalmente a sobrevivência, sobretudo psicológica, ao rigor moral
também induz a interpretar os transtornos pós-concentracionários em
termos morais (daí a tese do sentimento de culpabilidade dos sobreviventes,
apresentada pela primeira vez por Bruno Bettelheim e desenvolvida por
Robert J. Lifton na descrição da síndrome do sobrevivente). No entanto, a
comparação entre contextos nacionais diferentes sugere, como vimos, que
as condições de comunicabilidade da experiência moldam a possibilidade,

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por um lado, de superação de traumas e, por outro lado, de integração
do passado à concepção que se tem de si mesmo, no sentimento de sua
própria identidade.
Mais de trinta anos depois, com base em alguns depoimentos
publicados por sobreviventes, Terrence Des Pres opôs a essas teorias
que privilegiam o rigor moral como principal meio para a manutenção
da integridade da personalidade, uma interpretação “sociobiológica”,
segundo a qual as pulsões egoístas fundamentais e os laços de parentesco
restritos constituíram os recursos para a sobrevivência individual ou de
grupos restritos, parentais ou de amizade. Forçados a transgredir a maior
parte dos tabus impostos pela civilização, os sobreviventes nos fariam
lembrar, segundo Des Pres, dos valores e gestos primários e reprimidos
pela nossa civilização mas que, por si só, garantem a permanência da
espécie (Des Pres, 1976, p. 182-190). Em um universo sem instituições
mediadoras, a sobrevivência resultaria da capacidade de adaptação rápida
às circunstâncias em transformação permanente, portanto, da capacidade
de recriar permanentemente novos laços sociais (Des Pres, 1976, p.
214-226), enquanto as concepções “morais” desempenhariam um papel
insignificante. Os sobreviventes souberam assim aceitar o desafio dos
constrangimentos extremos e se adaptaram às exigências deste universo,
ou seja, se liberando dos princípios morais considerados universais. Ao
contrário do sentimento de culpabilidade, constatado por psicanalistas e
psiquiatras, Des Pres atribui aos sobreviventes uma qualidade específica,
isto é, o fato de manter uma distância e um ceticismo em relação aos
cânones da moralidade vigente. Por consequência, os sobreviventes são,
segundo Des Pres, os precursores de uma nova moral, prática e modesta,
orientada para a sobrevivência da espécie, rompendo também com os
valores da nossa civilização. Traduzindo-se pela busca da grandeza
individual e coletiva, esses valores da nossa civilização – que, segundo
Bettelheim, permitiram justamente a sobrevivência com dignidade –
expressam, segundo Des Pres, um espírito de dominação da natureza e
de outros que conduzirá inevitavelmente à destruição da espécie.
O resultado é uma oposição irredutível, Des Pres criticando Bettelheim
por querer justificar uma concepção particular de um eu intelectualmente
autônomo e completamente independente (Des Pres, 1976, p. 188), e
62

Bettelheim criticando Des Pres por apresentar “os sobreviventes como


seres excepcionais, superiores, por causa de suas experiências nos campos
de extermínio... Ele transforma esses sobreviventes em heróis por sorte”
(Bettelheim, 1979, p. 123-124).
Des Pres se pergunta se teorias como a de Bettelheim não refletem
sobretudo uma experiência singular, o que levaria a justificar a categoria
de deportados políticos a qual o próprio Bettelheim pertencia. Mas ele se
omite de submeter o seu próprio corpus de testemunhos – uma amostra
por definição espontânea – a um questionamento similar. Temos então
o direito de nos perguntar se esta oposição teórica entre interpretação

404 n. 62 | 2023 | p. 355-417


“psicológica” e interpretação “sociobiológica” não é apenas irredutível como
carece de qualquer reflexão sobre os métodos e materiais empíricos que
permitiram a construção de tais interpretações. Esta impressão é ainda
reforçada, em ambos os casos, pelo recurso, quase sob a forma de uma
profissão de fé, à visão de mundo do autor, à sua concepção filosófica e
antropológica como última instância do discurso teórico. Assim, Bruno
Bettelheim deriva a sua teoria de uma tese pessoal, postulando uma
angústia universal da morte que seria contida pelos valores da nossa
civilização, permitindo-nos “suavizá-la com uma fé sólida em uma vida
futura”. Quanto a Terrence Des Pres, seu livro conduz a um verdadeiro
acerto de contas com as tradições intelectuais ocidentais que dão origem
a suas concepções (Des Pres, 1976, p. 190). Segundo ele, uma teoria que
mede a sobrevivência pela manutenção de valores superiores e que condena
ao sentimento de culpa todos aqueles cuja conduta não foi adequada, faz
parte de uma tradição filosófica que leva à negação da vida como valor
em si. Assim, a polêmica contribui para a explicitação dos pontos de vista
e dos efeitos performativos de cada uma das teorias: em Bettelheim, a
argumentação, presente em todos os seus livros, por uma pedagogia que
reforce a autonomia e a força de resistência do indivíduo contra as formas
de dominação em uma sociedade de massas; em Des Pres, a estilização
da vítima como herói dos tempos modernos e a valorização da vida pela
vida. Ao humanismo tradicional, herdeiro da tradição filosófica ocidental,
se opõe então um novo humanismo que, em nome da preservação da
espécie e apoiando-se na imagem do anti-herói, ataca o individualismo
heroico elitista, esta encarnação dos valores ocidentais que também
produziu Auschwitz.
Uma análise das diferentes formas de testemunhos dos sobreviventes
não nos permite resolver este debate a favor de uma ou outra destas
abordagens teóricas. A única tentativa, bastante limitada, de obter
conclusões quantificadas, conduzida por sociólogos e psicólogos sociais
em torno de Paul F. Lazarsfeld, sugere correlações menos evidentes do que
Bettelheim entre categorias de deportados e comportamentos, e confirma
igualmente a importância de certos fatores destacados por Des Pres, sem
permitir uma interpretação suficientemente definitiva para chegar a uma
espécie de “tipo ideal” de sobrevivente.
62

De acordo com o estudo sociográfico apresentado anteriormente, a


formação da vontade de sobreviver é um processo que se inicia antes da
deportação, dependendo do grau de informação e antecipação relativos
ao campo de extermínio. Em primeiro lugar, esta vontade de sobreviver
exprime-se na recusa do suicídio, bastante frequente no momento da
designação dos comboios e durante os comboios. Ao contrário, os casos
de suicídio nos campos são raramente reportados (Goldstein; Lukoff;
Strauss, [1949-1951], p. 145-146)59. No campo, esta vontade se traduz
em tentativas de serem designados para tarefas menos árduas. O próprio
termo “sobreviver” é frequentemente utilizado no campo para se referir

n. 62 | 2023 | p. 353-417 405


à ocupação de tais posições, mas sobretudo pelo fato de se encontrar em
situações relativamente previsíveis (Goldstein; Lukoff; Strauss, [1949-
1951], p. 33). No entanto, tratando-se de um campo de extermínio, toda
análise das relações sociais que nele se puderam estabelecer deve ter em
conta que, em um contexto de extermínio de número elevado (por gás
ou por trabalho), o número de prisioneiros que ocupam os cargos mais
protegidos era muito pequeno: 1 a 2% dos presos pertenciam à “camada
superior” (os mais seniores de campo, os mais seniores do bloco, os
médicos) e 10% à “camada intermediária” (as posições administrativas)
(Adler, 1960, p. 225; Rousset, 1946, p. 158-162) – o acesso a esses cargos
é, na maioria das vezes, atribuído a relações privilegiadas com outros
internos que influenciam a distribuição do trabalho; para algumas raras
profissões muito especializadas (médicos, enfermeiros, mecânicos), é a
competência formal que é invocada, embora por vezes, mas raramente,
são mencionadas nas entrevistas certas técnicas de sedução, desde
pequenos presentes (tricotar roupas de lã para os guardas), ou observação
de comportamentos exemplares no trabalho, até chantagens ou ofertas
homossexuais (Rousset, 1946, p. 41). O acesso às tarefas mais desejáveis é​​ ,
portanto, uma função das relações com os detidos melhor posicionados,
geralmente pertencentes à mesma comunidade (nacional e linguística). A
cooperação e o apoio mútuo ocorrem em pequenos grupos bem definidos
que dificilmente atravessam as fronteiras entre diferentes nacionalidades
e que muitas vezes dependem de relações familiares e de origens locais
comuns. Os atos de apoio ou ajuda além dessas fronteiras provêm na
maioria das vezes de indivíduos e grupos mais privilegiados (de não
judeus a judeus, de trabalhadores civis a deportados que trabalham
em fábricas) (Rousset, 1946, p. 58-59). Além da posição e do trabalho
adquiridos no campo, a sobrevivência é atribuída ao roubo de comida,
ao tempo passado no hospital do campo e às técnicas de apresentação
de si durante as seleções – como reavivar a expressão facial apertando
as bochechas – bem como, excepcionalmente, às relações homossexuais
(Rousset, 1946, p. 128 e seg). As crenças religiosas e políticas quase nunca
aparecem nessas entrevistas como fator de sobrevivência.
Assim, a análise sociográfica, por evidenciar as regularidades de certos
comportamentos no universo concentracionário, destaca sobretudo o seu
62

condicionamento estrutural – de modo que a visão sociológica se presta


menos do que a abordagem psicológica a uma leitura sob um ângulo
moral; e, ao contrário da abordagem sociobiológica, igualmente releva a
importância, em certos casos, da socialização pré-concentracionária, bem
como do pertencimento a grupos constituídos, políticos ou nacionais.
Nosso material mostra, em última análise, que podemos manter
como complementares as hipóteses que o jogo de oposições teóricas
entre psicanálise e sociobiologia tende a polarizar. Estas duas teorias,
tão unilaterais, constituem de fato os dois polos extremos do campo da
experiência concentracionária, entre os quais podem ocorrer todos os tipos

406 n. 62 | 2023 | p. 355-417


de posições intermédias – e, muitas vezes, contraditórias –, em função
das configurações concretas que dependem amplamente dos diferentes
tipos de recursos do indivíduo, e de seu acesso a certos vínculos sociais
que modelam a sua identidade. No entanto, estes recursos são igualmente
a obra, como acabamos de ver, da própria forma dos testemunhos,
cuja análise surge assim como um pré-requisito indispensável a toda
interpretação que se recuse a ocultar, por uma vontade de teorização
unilateral, a realidade das condições de adaptação a uma experiência
propriamente social e, portanto, múltipla.
Esta pesquisa sobre uma experiência-limite também nos lembra
como é difícil a manutenção da continuidade e da coerência, tanto para
um indivíduo como para um grupo. Porque tal como a ordem social –
este precário equilíbrio de forças – resulta de um trabalho de negociação
e de compromisso, também a ordem mental, igualmente frágil, é fruto
de um trabalho permanente de gestão da identidade que consiste em
interpretar, ordenar ou reprimir (temporariamente ou definitivamente)
toda experiência vivida de modo a torná-la coerente com as experiências
passadas e também com as concepções de si mesmo e do mundo que as
moldaram: trata-se, numa palavra, de integrar o presente no passado. É
este trabalho permanente que está na base do habitus, graças ao qual a
pessoa aparece dotada de continuidade e coerência.
Assim, ao dar conta dos problemas identitários fundamentais e de
seu possível controle, a análise da experiência concentracionária atesta
até que ponto, segundo a formulação de Max Weber, “a identidade nunca
é, de um ponto de vista sociológico, mais do que um estado de coisas
simplesmente relativo e flutuante” (Weber, 1965) – e até que ponto os
indivíduos, na medida em que são o produto de uma construção social,
são igualmente uma construção de si mesmos.

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ZYWULSKA, Krystyna. Jai survécu à Auschwitz. Varsovie: Polonia,
1956.

NOTAS
1
Pesquisa realizada para a Mission Recherche-Expérimentation (MIRE) do
Ministério de Assuntos Sociais e da Solidariedade Nacional. A versão em
francês foi publicada originalmente sob o título: Le témoignage. In: Actes de la
recherche en sciences sociales, vol. 62-63, juin 1986. L’illusion biographique.
p. 3-29. Doi: https://doi.org/10.3406/arss.1986.2314. Disponível em: https://
www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1986_num_62_1_2314. Agradecemos
a Nathalie Heinich e à revista por terem autorizado a tradução do artigo.
A tradução foi realizada por Carlos Guilherme do Valle e Julie Cavignac.
A revisão de língua portuguesa foi feita por Márcio Simões. A conversão e
revisão ABNT foi feita por Daniela Cândido da Silva.
2
N.d.T.: Preferimos manter o termo “experiência concentracionária” porque os
autores a empregam, referindo-se à vivência ou experiência em um campo
de concentração nazista. “Concentracionário” pode também ser adjetivado,
por exemplo, como “período” ou “universo concentracionário”, o que nos
parece ter sido a categoria inspiradora para os autores, pois o termo intitula
livro de David Rousset, publicado em 1946 e citado no artigo. Do mesmo
modo, valeria lembrar o livro publicado anos depois por Michael Pollak,
"L´Expèrience concentrationnaire. Essai sur le maintien de l'identité sociale”
(Éditions Métailié, 1990).
3
Esse aspecto da adequação entre objeto e método parece ser subestimado
por Maurizio Catani e Suzanne Mazé; o que Howard S. Becker diz sobre as
dificuldades de estudar "desviantes" se aplica de forma mais geral à qualquer
população com contornos "fluidos" e de difícil acesso. Há tradução do livro de
Howard S. Becker em português: Outsiders. Estudos de Sociologia do Desvio.
1ª ed. Rio de Janeiro. Zahar, 2008.
Martin Kohli analisou os destaques dos métodos biográficos nas ciências sociais;
62

a história oral recuperou o método biográfico nos últimos anos, bem como
retomou certos problemas levantados na sociologia nas décadas de 1920 e 1930.
5
Para essa comparação sistemática de diferentes corpus de testemunho e as
interpretações que eles permitem, analisamos: os depoimentos judiciais,
bem como aqueles coletados por uma comissão histórica sobre o campo de
Auschwitz-Birkenau, mantidos nos arquivos do Centro de documentação
judaica contemporânea (CDJC) e do Instituto de História do Tempo Presente
(IHTP); os escritos autobiográficos de sobreviventes do campo feminino de
Auschwitz-Birkenau, em inglês, francês e alemão; as entrevistas de história
de vida também realizadas com sobreviventes do mesmo campo. Cada um

n. 62 | 2023 | p. 353-417 411


desses tipos de testemunho é direcionado a públicos diferentes e provém de
contextos específicos.
6
N.d.T.: “Prise de parole” pode significar, em português uma tomada de posição
pública por meio da linguagem, oral ou textual. No caso do artigo, o uso
frequente do termo “prise de parole” tem a dupla dimensão de se remeter a
testemunhos escritos (documentos e/ou relatos autobiográficos) e também
aos testemunhos orais, tal como as entrevistas realizadas pelo pesquisador.
Ambos os meios, o escrito e o oral, supõem tornar pública a posição de
alguém, seu ponto de vista, por meio da linguagem, muitas vezes instituída
em depoimentos e processos judiciais, mas também em situações coletivas
de compartilhamento de experiência ou pela veiculação escrita, editorial ou
não, de uma biografia e/ou autobiografia.
7
Igualmente restritivo é Benzion Dinur, um dos editores da série do Instituto
Yad Washem, que diz que a objetividade de cada testemunho que constrói
o passado a partir do presente deve ser examinada com cuidado (Langer,
1982, p. 3).
8
No nosso caso, até mesmo uma historiografia comprometida que "acredita
que nada, nem o tempo, nem as reparações, nem as cerimônias expiatórias,
podem apagar os crimes indescritíveis perpetrados pelos alemães", não escapa
totalmente desse efeito de distanciamento que opera a construção científica, na
medida em que é forçada a submeter os fatos narrados e a fala dos sobreviventes
à mesma dúvida metódica que qualquer outra fonte (consultar o prefácio de
Georges Wellers à obra de Miriam Novitch de 1980).
9
N.d.T: Na linguagem inglesa, DP abrevia o termo "displaced persons", termo
que o autor recorre, por seu uso depois da 2ª Guerra, para se referir aos judeus
deslocados de modo forçado para os países onde se encontravam campos de
concentração (sobretudo Polônia e Alemanha). Nesse sentido, eram "campos
de refugiados”.
10
No final da guerra, havia 50.000 judeus sobreviventes no território do antigo
Reich alemão, dos quais 20.000 morreram nas primeiras semanas após sua
libertação. Aos cerca de 10.000 judeus alemães que sobreviveram juntaram-se,
entre 1946 e 1947, mais de 110.000 judeus da Europa Oriental, a maioria dos
quais vivia em campos de refugiados específicos. Quase todas essas "pessoas
deslocadas" (displaced persons) optaram por imigrar para Israel ou para os
Estados Unidos.
11
Cf. Langbein (1972, p. 70); Kogon e Langbein (1983); Rückerl (1983, p. 176 e
seg); e Langer (1982, p. 54).
12
O "julgamento de Marcel Paul", que ocorreu em 1985, é certamente um exemplo-
62

limite, na medida em que colocou Laurent Wetzel, um jovem conselheiro


municipal do partido Centre des démocrates sociaux (CDS) nascido depois
de 1945, contra os líderes da Association française de Buchenwald-Dora. O
objetivo do processo de difamação era examinar a validade da acusação de
Laurent Wetzel de que Marcel Paul, falecido em 1982, havia usado sua posição
no campo para favorecer seus companheiros de partido. Esse julgamento é um
caso-limite da escala que uma disputa pode tomar e dos mal-entendidos que
ela pode provocar, uma vez que os fatos não são mais colocados no contexto
de uma situação excepcional, com suas próprias regras morais. Nesse sentido,
um julgamento desse tipo revela, acima de tudo, os motivos pelos quais as
vítimas geralmente permanecem em silêncio.

412 n. 62 | 2023 | p. 355-417


13
N.d.T.: O termo “kapo” designa o prisioneiro de um campo de concentração
que atuava como “capataz” do sistema concentracionário nazista. Desse modo,
vários judeus foram kapos, o que lhes colocava em uma situação ambígua
e moralmente comprometedora, pois seguiam as ordens dos SS nazistas e,
assim, atuavam na experiência de sofrimento e perseguição a outros judeus
aprisionados.
14
N.d.T.: O termo liberação pode ter tanto o sentido de “liberação dos campos”
como, entre os franceses, que usam o termo Libération (Libertação da França)
designa o final da Segunda Guerra Mundial, com a tomada progressiva
pelos Aliados das regiões da França ocupadas desde 1940 pelo exército das
Potências do Eixo. É o período entre o dia 6 de jun. de 1944, momento em
que as forças aliadas invadiram a Normandia, também chamado de Dia D.,
e o 8 de maio de 1945, data da capitulação alemã que marca o fim Segunda
Guerra Mundial na Europa.
15
Essa análise das formas de testemunho baseia-se nas regras da economia das
trocas linguísticas destacadas por Pierre Bourdieu (1982, p. 14-15).
16
Várias contribuições para o V Colloque d’histoire orale sugeriram essas direções,
em especial as de Mary Chamberlain e Régine Robin (Actes du 5e Colloque
international d'histoire orale, Barcelona, 29-31 de março de 1985).
17
Veja os protocolos dos vários julgamentos e, no que diz respeito a esta pesquisa,
os do julgamento de Frankfurt contra os responsáveis pelo campo de Auschwitz,
bem como os depoimentos tomados antes desse julgamento pela Zentralstelle
der Landesjustizverwaltungen em Ludwigsburg, especializada na investigação
de crimes de guerra na Alemanha. As cópias estão disponíveis em Paris no
Centre de documentation juive et contemporaine (CDJC), dossiê CCCLXI.
18
N.d.T.: SS significa Schutzstaffel, organização policial e militar criada na
Alemanha de Weimar em 1925 que ganhou força a partir de 1933 e deu
origem ao partido nazi; foi dissolvida em 1945, após o fim da Segunda Guerra
Mundial na Europa.
19
Ao arquivo CCCLXI dos arquivos do CDJC somam-se aqui aqueles que foram
recolhidos pela Comissão de História da Segunda Guerra Mundial e que estão
armazenados no Instituto de História do Tempo Presente, DII.
20
Poderíamos agrupar entre estes testemunhos os de O. Elina (DII - 570), de G.
Goldsmith (DII, sem número), de D. Ourisson (DII - 18), de D. Goldstein
(DII - 23) ou de S. Fischmann (CDJC, CCCLXI - 2).
21
D. Ourisson, DI - 18, p. 24.
22
P. Citronne, DII - 320.
23
L. Kindberg, DII - 28, p. 8.
62

24
A. Posner, DII - 312, p. 9.
25
A. Roure, DI -7, p. 4.
26
A. Hautval, Aperçu sur les expériences faites dans le camp de femmes d 'Auschwitz
et de Ravensbrück, DU - 37; O. Wolken, Frauen- und Kinderschicksale im
Konzentrationslager Auschwitz, CDJC, CCCLXI - 6 ; J. Kosciuszkova, Das
Schicksal der Kinder im Konzentrationslager Auschwitz, CDJC, CCCLXI - 34
; sobre Raisko, ver C. J . Bloch, DU - 1 1 0.
27
Mme Herzog, DII - 541.
28
C. Kalb, DI - 114.
29
S. Laks, DII - 376.
30
Mme Kroll, DII - 586.

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31
A. Persitz, DIT - 34.
32
Gostaria de agradecer ao professor Herbert Strauss, da Universidade Técnica
de Berlim, por me disponibilizar o relatório final que nunca foi publicado: J.
Goldstein; 1. F. Lukotff; H. Strauss. An Analysis of Autobiographical Accounts
of Concentration Camp Experiences of Hungarian Jewish Survivors, Project
MH - 213, 1949-1951, Graduate Faculty, New School for Social Research,
Relatório apresentado ao Serviço de Saúde Pública dos EUA. Essa pesquisa
também foi apoiada pela Conference on Jewish Relations. Este relatório resulta
das discussões de um comitê formado por Salo W. Baron, Robert K. Merton,
Joseph Blau, Ernst Kris, Paul F. Lazarsfeld, Ruth Benedict, Gardner Murphy,
Koppel S. Pinson, bem como da análise estatística de 507 entrevistas da Jewish
Agency em Budapeste, codificadas e analisadas como parte de um seminário
de metodologia sob a direção de Patricia Kendall. As entrevistas analisadas
faziam parte de um conjunto de 14.000 entrevistas conduzidas pelo American
Jewish Joint Distribution Committee com todos os que buscaram sua ajuda a
partir da liberação dos campos. Como essa tarefa se tornou muito complicada,
decidiu-se posteriormente entrevistar apenas "pessoas de interesse particular",
como os líderes da comunidade judaica (pág. 2 do relatório).
33
Dos dois textos inéditos que nos foram confiados, um tinha sido planejado
para publicação sem encontrar uma editora e o outro foi o resultado de uma
decisão solitária sem intenção de publicação. Na época, o objetivo era registrar
experiências traumáticas imediatamente após o retorno dos campos de
concentração, a fim de superá-las. A dupla restrição a mulheres e a narrativas
escritas em apenas três idiomas (francês, alemão e inglês) decorre da necessidade
de limitar o material de acordo com nosso conhecimento linguístico, mas
também de acordo com nossa capacidade de trabalho. O tempo necessário
para uma análise detalhada do conteúdo, abrangendo as características
dos autores, as informações, o estilo e os modos de enunciação, não nos
permitiu estender nossa análise além da comunidade de um determinado
campo. No entanto, a diversidade de formas autobiográficas observadas, que
vão de testemunhos políticos a relatos ficcionais e peças de teatro, parece-
nos justificar cientificamente uma escolha feita inicialmente com base em
restrições puramente materiais. Construímos nosso corpus graças às coleções
das bibliotecas do Centre de documentation juive et contemporaine e do Institut
d'histoire du temps présent, às quais gostaríamos de agradecer.
34
N. d.T.: Alguns campos de concentração nazistas tinham orquestras formadas
basicamente por músicos judeus.
35
Para o conceito de silêncio estruturado, consulte Paserini (1979).
62

36
N.d.T.: Amicale des déportés d`Auschwitz foi uma associação criada em 1945
para reunir e ajudar os sobreviventes do campo de Auschwitz-Birkenau e dos
campos da Alta Silésia. Desde então, diversas outras associações/amicales de
sobreviventes foram sendo organizadas.
37
Das dezesseis entrevistas, dez foram conduzidas por Michael Pollak, na França
e na Alemanha, quatro por Rebecca Hopfner na Áustria e na Polônia, uma
outra por Gerhard Botz, com a ajuda de Anton Pleimer e Harold Wildfeliner;
a última foi conduzida como parte de um seminário no Instituto de História
da Universidade de Salzburgo.
38
N.d.T.: No final de 1978, o professor de literatura francesa Robert Faurisson
publicou cartas, no respeitado jornal Le Monde, cujo teor negava o Holocausto

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e o uso de câmaras de gás por parte dos nazistas na 2ª Guerra Mundial. Isso
gerou uma forte reação pública e uma rejeição imediata no meio intelectual
francês. Por diversas ocasiões, Faurisson foi incriminado e preso por seu
negacionismo do Holocausto e seu incentivo ao ódio étnico-religioso contra
judeus. Assim, Pollak e Heinich estão se referindo a esse contexto final da
década de 1970 e início dos 1980, em que controvérsias sobre a negação do
Holocausto tornaram-se mais presentes, e cuja repercussão ainda se verifica
no século XXI. Foi o período também que realizaram a pesquisa que resultou
no artigo aqui traduzido.
39
O fato de uma mesma pessoa escrever suas próprias memórias em diferentes
momentos de sua vida invalida tal hipótese. Embora seu livro não faça parte
do nosso corpus, podemos tomar como exemplo o testemunho de Germaine
Tillion (1973). Contrastando em seu livro suas anotações feitas em diferentes
momentos do pós-guerra, Germaine Tillion faz um inventário detalhado das
mudanças em sua memória, que vão desde a restituição precisa de certos
acontecimentos até memórias mais vagas, tornando-se cada vez mais borradas
com o passar do tempo. Esta perda de precisão é acompanhada por uma
interpretação cada vez mais matizada, despojada de qualquer amplificação.
40
Entrevista com o Sr. Ravine, 5 de fevereiro de 1985, Paris.
41
N.d.T.: Louis Darquier de Pellepoix foi responsável pela Comissão de Assuntos
Judaicos do Governo da França ocupada em Vichy, colaborando com os
alemães sob regime nazista. Desde a década de 1930, ligado a organizações
de extrema-direita e declarando anti-semitismo, Darquier foi responsável pela
deportação de milhares de judeus na França ocupada durante sua atuação
na Comissão. Depois da 2ª Guerra, refugiou-se na Espanha franquista. Em
1978, foi entrevistado pelo jornal L’Express e negou ter existido câmeras
de gás e o extermínio de judeus nos campos de concentração nazista. Essa
entrevista causou comoção pública na França, tal como foi a de Faurisson ao
Le Monde (ver nota 37), evidenciando a disseminação de ideias negacionistas
do Holocausto no país na década de 1970, perdurando até o século atual.
42
Este manuscrito de 129 páginas foi preparado com base em notas acumuladas
após 1945. Destinado a ser publicado no trigésimo aniversário da liberação
dos campos, não encontrou editor. Que Masha Ravine seja aqui agradecida
pela confiança e também pelo tempo que se dispôs a passar conosco.
43
Para resistência no campo, ver especialmente Langbein (1980, p. 153) e Czech
(1959-1964).
44
N.d.T.: Mala Zimetbaum e Edek Galinski (jovem judeu polonês) atuavam em
posições estratégicas no campo de Auschwitz, o que lhes dava condições mais
62

flexíveis de acesso a recursos e informações. Os dois passaram a namorar


secretamente e a fuga de ambos do campo teve posteriormente uma repercussão
social e simbólica na resistência judaica ao Holocausto.
45
Como prova em contrário, o romance de Jacqueline Saveria, Ni sains ni saufs
(Paris: R. Laffont, 1954), que não faz parte de nosso corpus porque não se
passa em Auschwitz, é um exemplo disso. Apesar de sua posição abertamente e
explicitamenrte romanceada, ele presume (novamente, na ausência de qualquer
indicador objetivo) a identidade entre o autor e o personagem principal. Na
verdade, o trabalho de eufemização próprio à essa forma literária não produz
idealização, mas, ao contrário, realismo, permitindo a enunciação de fatos que
normalmente são indizíveis na medida em que se relacionam à posição de kapo

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(Anweiserin, uma espécie de capataz) ocupada pelo personagem principal. A
disparidade assim criada entre a identidade do deportado (durante o campo)
e a do sobrevivente (após o campo) parece ser um problema pessoal demais
- e tanto mais quanto mais se prolonga - para ser dizível no contexto de um
testemunho que, como vimos, por definição só tem valor em referência a uma
experiência geral. Isso é o que torna, por sua vez, a escritura necessária e difícil
ao mesmo tempo, uma contradição que pode ser resolvida voltando-se para a
ficção, onde a pessoa é automaticamente transformada em um "personagem".
Dessa forma, a descrição dos outros - e de si mesmo -, que é sempre uma tarefa
difícil em si, pode ser alcançada evitando-se a referência à uma factualidade
que está sempre aberta a contestações.
46
Para uma discussão sobre o problema de dar forma literária à experiência
concentracionária, consulte a discussão da obra de Elie Wisel por Langer
(1982, p. 132 seg.).
47
N.d.T.: Designa ações planejadas para prisões em massa feitas pelos alemães ou,
no caso francês, por sua polícia. Por exemplo, em Paris, a maior e mais conhecida
das rafles ocorreu nos dias 16 e 17 de julho de 1942: quase 13.000 homens,
mulheres e crianças judeus foram presos pela polícia durante a operação do
Vél' d'Hiv' e levados para o Vélodrome d'hiver onde foram 'selecionados'.
Quase todos foram deportados para Auschwitz e exterminados pelos nazistas.
48
Para uma apreentação em francês, consulte Botz e Pollak (1982, p. 3).
49
N.d.T.: Em francês résistant. Na França, a Résistance designa as redes de homens
e mulheres que se formaram para resistir contra a invasão alemã, depois da
derrota do exército francês, em junho de 1940, nove meses após o início da
Segunda Guerra Mundial. O General De Gaulle, no dia 18 de junho de 1940,
pronunciou um discurso em Londres que foi transmitido pelo rádio, chamando
os franceses a continuar os combates. A luta dos résistants – que foram vistos
posteriormente como heróis da guerra – não era travada somente contra
os alemães, mas contra o Estado francês e os que auxiliaram os alemães, os
collaborateurs (colaboradores), considerados inimigos da França.
50
N.d.T.: No original, “judéité”, palavra que sugere “identidade judaica”. Achamos
melhor traduzir por “judaísmo”, a fim de ser melhor entendido, do que seria
usar o neologismo “judeidade”.
51
N.d.T.: É a categoria pejorativa que os franceses davam aos alemães.
52
N.d.T.: STO significa “serviço de trabalho obrigatório”, instituído entre 1943
e 45 por parte dos alemães e com a anuência do governo francês de Vichy,
que exigia que trabalhadores franceses fossem mão de obra compulsória nas
fábricas, nas atividades agrícolas e outros trabalhos, enquanto os alemães
62

estavam atuando diretamente na guerra. Cerca de 600 mil a 650 mil franceses
foram obrigados a trabalhar compulsoriamente na Alemanha.
53
N.d.T.: Termo jurídico. Um prisioneiro de direito comum é uma pessoa presa
depois de ser considerada culpada, após um julgamento num tribunal.
54
N.d.T.: RFA – a antiga República Federal Alemã, ou seja a chamada Alemanha
Ocidental, em oposição à antiga RDA, a República Democrática da Alemã, a
Alemanha Oriental, sob influência da União Soviética. Com a queda do muro de
Berlim, que dividia a capital das 2 repúblicas, a Alemanha se reunifica em 1989.
55
Para esse conceito, ver: Rousso (1985, p. 55 e seg.).
56
Veja, sobretudo, Lifton (1967).
57
Na literatura psiquiátrica, Richartz (1976), insistiu nesse problema de

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comunicabilidade.
58
As primeiras publicações de Bruno Bettelheim, na tradução francesa, datam
de 1943: Bettelheim (1979); Federn (1948). Mais tarde, outro psicólogo
sobrevivente acrescentou suas análises à mesma perspectiva: Frankl (1962).
59
Esse relatório descreve suicídios nos guetos húngaros e durante a deportação.
Da mesma forma, Herbert Strauss, que viveu em Berlim até 1943 antes de
entrar na clandestinidade e de se exilar, estima que cerca de 20% das pessoas
nas listas de deportação elaboradas pela comunidade judaica de Berlim
cometeram suicídio. Também em Berlim, estima-se que 25% de todos os
enterrados no cemitério judeu de Weissensee entre 1942 e 1943 cometeram
suicídio (Blau, 1950).

62

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