TRADUÇÃO+-+Revista+Vivência Ed+62
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Michael Pollak
Nathalie Heinich
RESUMO
Uma análise comparativa de diferentes tipos de testemunhos dados por mulheres
sobreviventes do campo de Auschwitz-Birkenau, desde depoimentos judiciais até
histórias de vida coletadas como parte de um projeto de história oral, passando
pela obra de caráter autobiográfico, mostram que o uso de cada uma dessas
diferentes formas de testemunho implica um conteúdo diferente em termos
do que é relatado e um significado diferente em termos de sua função (desde
a restituição dos fatos até a recuperação de um sentido de identidade). Uma
análise desse tipo mostra como procedimentos de amostragem, o método e o
objeto analisado são mutuamente interdependentes: se apenas um desses três
elementos constitutivos de uma construção científica variar, os outros dois também
mudarão. Essa abordagem permite então reconsiderar as várias interpretações
teóricas sobre a sobrevivência em situações extremas (em que as teorias de Bruno
Bettelheim e Terrence Des Près representam os dois principais polos opostos) e
Tradução | Translation
como elas se posicionam em relação ao material empírico que as endorsam ou
contradizem. Dessa forma, podemos lançar luz sobre certos problemas que não
foram adequadamente abordados por essa literatura.
Palavras-chave: testemunho, sobrevivência; campos de concentração, identidade,
métodos de pesquisa.
ABSTRACT
The testimony.
A comparative analysis of various types of testimonies by survivors from
Auschwitz-Birkenau, ranging from legal depositions to autobiographical writings
and life stories collected in the context of an oral history project, shows that
recourse to each of these different forms of testimony implies a different content
as regards what is related, and a different meaning as regards its function (ranging
form the reconstitution of events to the regaining of a sense of identity). Such
an analysis makes it possible to show how sampling procedures, the method,
and the object analysed are mutually interdependent : if any one of these
three constitutive elements of a scientific construct varies, then the other two
also change. By this means one is able to reassess how the various theoretical
62
Esta obra está licenciada sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.
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“O testemunho é frágil,
pois nós mesmos sempre seremos”.
Louise Alcan, 1980.
TESTEMUNHOS
MODOS DE SOLICITAÇÃO
O DEPOIMENTO JUDICIAL
O TESTEMUNHO HISTÓRICO
RELATOS BIOGRÁFICOS
por toda sua vida que foi questionado: “Eu lhe contarei tudo o que
quiser sobre minha deportação e o campo. Mas tudo o que aconteceu
depois, ou antes, não tem absolutamente nenhum interesse, é minha
vida privada”. A oposição entre o “subjetivo” e o “objetivo” aqui assume
a forma da oposição entre o “privado”, sem interesse, e o “público”, ou
seja, o único período da vida que deu à entrevistada um papel público
como testemunha da história.
O desenrolar da pesquisa revela aqui, portanto, na forma de
negociação, os mesmos limites que – como veremos – são espontaneamente
estabelecidos nos escritos autobiográficos: a limitação ao período da
OS ESCRITOS AUTOBIOGRÁFICOS
que a fala sobre si mesmo se dispõe a uma esfera de interesse mais ampla.
Essas condições, longe de se limitarem a um “pacto autobiográfico” de
ordem propriamente literária, tal como sugerido por Philippe Lejeune
(1975), compreendem principalmente a notoriedade do autor – ou seja,
seu estatuto como figura pública – ou circunstâncias históricas que
valorizam o indivíduo como testemunha.
Parece-nos que essa reflexão sobre o “espaço autobiográfico” é
necessária se quisermos entender as condições que tornam socialmente
possível a existência de testemunhos autobiográficos sobre os campos: aqui,
o acesso à fala pública e à publicação de uma vida individual não depende
cooperação com os SS, um capítulo, quase tão longo quanto aquele que é
dedicado às relações sociais entre detentos, aborda este tema, inteiramente
atravessado pelo problema dos limites entre a indispensável comunicação
e o compromisso, com uma discussão muito matizada sobre a mentalidade
de vários SS, cuja descrição repete, em parte com as mesmas palavras, o
seu depoimento encontrado nos arquivos. Por último, nota-se que a análise
proposta por outra sobrevivente, a socióloga polaca Anna Pawelczynska,
confirma esta sociologia implícita das relações entre deportadas, embora
num nível de abstração teórica tal que este livro não pode ser relacionado
aos escritos biográficos do nosso corpus (Pawelczynska, 1979).
importantes dos quais não foi testemunha direta, mas dos quais tomou
conhecimento graças à sua posição dentro de uma rede política. Este escrito
comemorativo pretende também erguer um monumento à memória das
suas camaradas militantes: “Estas mulheres que simbolizam a intrepidez
das mulheres resistentes de Birkenau deixaram uma lembrança inesquecível
em nosso coração e são para nós a encarnação da sublimidade que pode
ser alcançada pelo ser humano” (Ravine, 1975, p. 5). No entanto, as ações
de resistência que ela relata dificilmente se distinguem daquilo que outras
narrativas tratam como ajuda mútua espontânea: a manipulação das
“geral” que ali seria mostrado correria o risco de parecer muito particular,
dada a extensão do trauma.
a poesia não seria mais possível, a arte tornou-se um recurso que nos
permite assumir o desafio, tentando dar uma forma de expressão ao horror.
Os personagens desta literatura muitas vezes combinam a necessidade
simultânea de falar e permanecer em silêncio e, principalmente, se
veem incapazes de restabelecer sua unidade com a ajuda de valores
transcendentes ou míticos (Langer, 1975, p. 12, 120, 284). Esses traços
característicos fazem lembrar as tensões constitutivas dos diferentes tipos
de depoimentos aqui analisados, mas que vemos serem suscetíveis de se
fazerem objeto de um trabalho de eufemização por meio da forma literária.
deve também deixar de se afinar com suas memórias e que haja suficientes
pontos de contato entre uma e as outras para que a recordação que nos
lembram possa ser reconstruída sobre uma base comum” (Halbwachs,
1968, p. 12). Maurice Halbwachs refere-se a este trabalho como uma
“comunidade afetiva” que pode atenuar tudo o que, nas lembranças
individuais, recordaria o isolamento e também os dolorosos conflitos entre
os deportados que relatam as narrativas contadas logo após a guerra, tal
como os traumas que podem provocar depois processos de recalcamento,
ansiedade em relação aos outros e a recusa de contatos.
e da Áustria nunca fizeram esta pergunta; e isto sem dúvida porque este
assunto é, aos seus olhos, legítimo e sensato. Revelaram mais, então, das
dificuldades causadas pela gestão individual das suas lembranças. Mas
estas diferenças referem-se igualmente à importância das formas de
reconhecimento político e jurídico das diferentes categorias de vítimas.
O TRABALHO DA MEMÓRIA
UM FATO IMENSURÁVEL
AS TEORIAS DE SOBREVIVÊNCIA
REFERÊNCIAS
ABADA, Roger. L’Organisation. In: AMICALE DES DÉPORTÉS
D’AUSCHWITZ. Témoignages sur Auschwitz. Paris: Cercle D'étude
de la Déportation et de la Shoah, 1946, p. 211.
ADELSBERGER, Lucie. Auschwitz: ein Tatsachenbericht. Berlin:
62
Lettner, 1956.
ADLER, Hans Günther. Seibstverwaltung und Widerstand in den
Konzentrationslagern der SS. Vierteljahreshefte fur Zeit- geschichte,
[s. l.], v. 2, p. 221- 236, 1960.
ALCAN, Louise. Le temps écartelé. Paris: ST Jean de Maurienne,
1980.
ALCAN, Louise. Sans armes et sans bagages. Limoges: Les Imprimés
d'art, 1945.
BECKER, Howard S. Outsiders. Études de sociologie de la déviance.
NOTAS
1
Pesquisa realizada para a Mission Recherche-Expérimentation (MIRE) do
Ministério de Assuntos Sociais e da Solidariedade Nacional. A versão em
francês foi publicada originalmente sob o título: Le témoignage. In: Actes de la
recherche en sciences sociales, vol. 62-63, juin 1986. L’illusion biographique.
p. 3-29. Doi: https://doi.org/10.3406/arss.1986.2314. Disponível em: https://
www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1986_num_62_1_2314. Agradecemos
a Nathalie Heinich e à revista por terem autorizado a tradução do artigo.
A tradução foi realizada por Carlos Guilherme do Valle e Julie Cavignac.
A revisão de língua portuguesa foi feita por Márcio Simões. A conversão e
revisão ABNT foi feita por Daniela Cândido da Silva.
2
N.d.T.: Preferimos manter o termo “experiência concentracionária” porque os
autores a empregam, referindo-se à vivência ou experiência em um campo
de concentração nazista. “Concentracionário” pode também ser adjetivado,
por exemplo, como “período” ou “universo concentracionário”, o que nos
parece ter sido a categoria inspiradora para os autores, pois o termo intitula
livro de David Rousset, publicado em 1946 e citado no artigo. Do mesmo
modo, valeria lembrar o livro publicado anos depois por Michael Pollak,
"L´Expèrience concentrationnaire. Essai sur le maintien de l'identité sociale”
(Éditions Métailié, 1990).
3
Esse aspecto da adequação entre objeto e método parece ser subestimado
por Maurizio Catani e Suzanne Mazé; o que Howard S. Becker diz sobre as
dificuldades de estudar "desviantes" se aplica de forma mais geral à qualquer
população com contornos "fluidos" e de difícil acesso. Há tradução do livro de
Howard S. Becker em português: Outsiders. Estudos de Sociologia do Desvio.
1ª ed. Rio de Janeiro. Zahar, 2008.
Martin Kohli analisou os destaques dos métodos biográficos nas ciências sociais;
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a história oral recuperou o método biográfico nos últimos anos, bem como
retomou certos problemas levantados na sociologia nas décadas de 1920 e 1930.
5
Para essa comparação sistemática de diferentes corpus de testemunho e as
interpretações que eles permitem, analisamos: os depoimentos judiciais,
bem como aqueles coletados por uma comissão histórica sobre o campo de
Auschwitz-Birkenau, mantidos nos arquivos do Centro de documentação
judaica contemporânea (CDJC) e do Instituto de História do Tempo Presente
(IHTP); os escritos autobiográficos de sobreviventes do campo feminino de
Auschwitz-Birkenau, em inglês, francês e alemão; as entrevistas de história
de vida também realizadas com sobreviventes do mesmo campo. Cada um
24
A. Posner, DII - 312, p. 9.
25
A. Roure, DI -7, p. 4.
26
A. Hautval, Aperçu sur les expériences faites dans le camp de femmes d 'Auschwitz
et de Ravensbrück, DU - 37; O. Wolken, Frauen- und Kinderschicksale im
Konzentrationslager Auschwitz, CDJC, CCCLXI - 6 ; J. Kosciuszkova, Das
Schicksal der Kinder im Konzentrationslager Auschwitz, CDJC, CCCLXI - 34
; sobre Raisko, ver C. J . Bloch, DU - 1 1 0.
27
Mme Herzog, DII - 541.
28
C. Kalb, DI - 114.
29
S. Laks, DII - 376.
30
Mme Kroll, DII - 586.
36
N.d.T.: Amicale des déportés d`Auschwitz foi uma associação criada em 1945
para reunir e ajudar os sobreviventes do campo de Auschwitz-Birkenau e dos
campos da Alta Silésia. Desde então, diversas outras associações/amicales de
sobreviventes foram sendo organizadas.
37
Das dezesseis entrevistas, dez foram conduzidas por Michael Pollak, na França
e na Alemanha, quatro por Rebecca Hopfner na Áustria e na Polônia, uma
outra por Gerhard Botz, com a ajuda de Anton Pleimer e Harold Wildfeliner;
a última foi conduzida como parte de um seminário no Instituto de História
da Universidade de Salzburgo.
38
N.d.T.: No final de 1978, o professor de literatura francesa Robert Faurisson
publicou cartas, no respeitado jornal Le Monde, cujo teor negava o Holocausto
estavam atuando diretamente na guerra. Cerca de 600 mil a 650 mil franceses
foram obrigados a trabalhar compulsoriamente na Alemanha.
53
N.d.T.: Termo jurídico. Um prisioneiro de direito comum é uma pessoa presa
depois de ser considerada culpada, após um julgamento num tribunal.
54
N.d.T.: RFA – a antiga República Federal Alemã, ou seja a chamada Alemanha
Ocidental, em oposição à antiga RDA, a República Democrática da Alemã, a
Alemanha Oriental, sob influência da União Soviética. Com a queda do muro de
Berlim, que dividia a capital das 2 repúblicas, a Alemanha se reunifica em 1989.
55
Para esse conceito, ver: Rousso (1985, p. 55 e seg.).
56
Veja, sobretudo, Lifton (1967).
57
Na literatura psiquiátrica, Richartz (1976), insistiu nesse problema de
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