Texto 2 BINENBOJM, G. Direito Administrativo Entre Justificação E Operacionalização

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doi: 10.21783/rei.v9i3.785 SUBMETIDO: 19 JAN.

2023
ACEITO: 15 AGO. 2023

DIREITO ADMINISTRATIVO:
ENTRE JUSTIFICAÇÃO E OPERACIONALIZAÇÃO

ADMINISTRATIVE LAW:
BETWEEN JUSTIFICATION AND IMPLEMENTATION

GUSTAVO BINENBOJM 1

RESUMO: O texto expõe a evolução contemporânea do direito administrativo


brasileiro na perspectiva do autor. Sintetizando as mutações mais relevantes da
disciplina, o autor discorre sobre o que denomina de giros democrático-
constitucional e pragmático, procurando atender às exigências políticas,
econômicas e sociais de seu tempo.

PALAVRAS-CHAVE: Direito administrativo; Democracia; Constitucionalismo;


Interesse público; Pragmatismo; Consequencialismo.

ABSTRACT: The text exposes the contemporary evolution of Brazilian


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administrative law from the author's perspective. Synthesizing the most relevant
mutations of the discipline, the author discusses what he calls democratic-
constitutional and pragmatic turns, seeking to meet the political, economic, and
social demands of his time.

KEYWORDS: administrative law; Democracy; Constitutionalism; Public interest;


Pragmatism; Consequentialism.

“Aquilo que herdaste de teus pais,


conquista-o para fazê-lo teu.”

Goethe, Fausto

1 Professor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado


do Rio de Janeiro – UERJ. Professor Emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
– EMERJ. Doutor e Mestre em Direito Público pela UERJ. Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law
School (EUA). Procurador do Estado do Rio de Janeiro e Advogado. Membro da Academia
Brasileira de Letras Jurídicas – ABLJ.

9 JOURNAL OF INSTITUTIONAL STUDIES 3 (2023)


Revista Estudos Institucionais, v. 9, n. 3, p. 774 - 782, set./dez. 2023
DIREITO ADMINISTRATIVO:
ENTRE JUSTIFICAÇÃO E OPERACIONALIZAÇÃO

SUMÁRIO: 1. Nota prévia; 2. O direito administrativo e seu discurso de


justificação; 3. O direito administrativo e seus desafios de operacionalização; 4.
Conclusão.

NOTA PRÉVIA
A constituição de uma tradição pressupõe continuidade. Só o que alcança essa
condição de perpetuar-se, de geração em geração, pode merecer esse nome. A
possibilidade de contemplar o mundo apoiados nos ombros dos que nos
antecederam talvez seja a forma mais antiga de produção de cultura, senão a única.
Querendo ou não, somos todos herdeiros de alguma tradição, em todos os campos
da experiência humana.
Isto não é diferente com o direito, nem tampouco com seus diferentes ramos
especializados. O direito administrativo, portanto, tem a sua tradição e, no Brasil,
desenvolveu-se com proeminência uma de suas vertentes tradicionais – a europeia
continental. O tipo de colonização que recebemos dos portugueses e sua própria
tradição nacional – marcada pela influência intelectual francesa – nos legaram uma
compreensão específica de direito administrativo. A herança colonial se perpetuou
como uma tradição a marcar o caráter do Estado brasileiro e a moldar a forma de
pensamento de seus intelectuais públicos. Acho mesmo que Raimundo Faoro tinha
razão quando apontava uma continuidade luso-brasileira no modelo de relação
vertical entre estamentos e sociedade. 775
Mas tradição não é sinônimo de determinismo histórico. A ruptura da tradição
pelas novas gerações é algo tão antigo e renitente que chega a constituir-se, ela
própria, numa nova forma de tradição. Octavio Paz dizia isso: a ruptura da
tradição, por sucessivas gerações, acaba por constituir uma tradição da ruptura.
Isso não é diferente com o direito, nem tampouco com o direito administrativo.
Embora tenha pouco mais que dois séculos com autonomia didático-científica, a
evolução do direito administrativo registra inúmeros embates teóricos e
controvérsias doutrinárias, como qualquer outro ramo do Direito. Talvez a
natureza umbilicalmente ligada ao fenômeno político, a tradição (sempre ela!)
apartada das grandes codificações e o papel instrumental à gestão pública tenham
contribuído, em seu conjunto, para incrementar ainda mais o caráter cambiante da
doutrina administrativista.
A minha circunstância de ter estudado direito no início dos anos 1990, num país
que passava por um processo recente de redemocratização e
reconstitucionalização, forjou o meu caráter como alguém simpático à ruptura da
tradição do direito administrativo. O direito é o que o dever-ser é; a democracia é o
que o dever-ser deve ser. O Brasil havia reconquistado o direito de
autodeterminação coletiva e, os brasileiros, de autodeterminação individual. Era
preciso reformar as instituições para colocá-las a serviço da realização dos direitos
individuais e das aspirações coletivas. O direito constitucional estava em alta, na

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crista da onda de uma nova Constituição. Mas o direito administrativo era um


velho edifício em ruínas, clamando por ser reerguido segundo os padrões da
democracia constitucional recém-inaugurada.
Faço esse introito apenas para registrar que, por mais iconoclasta que pudesse
ser, acabei por inscrever-me no seio de uma certa tradição, que é a tradição da
crítica e, eventualmente, da ruptura. Mas hoje vejo com clareza que minhas
objeções teóricas, embora me parecessem radicais, apontavam mais para correções
de rumo da tradição constituída, do que propriamente para a sua completa
superação.
Seja como for, minhas inquietações e perplexidades com o direito
administrativo eram inúmeras. Vou aqui organizá-las em dois grandes grupos: o
discurso de justificação da disciplina e os desafios da sua operacionalização. No
primeiro grupo, estão os fundamentos, isto é, os elementos de legitimação do
sistema. No segundo grupo, surgem as condições práticas de implementação do
projeto teórico. Para resumir a história: os fundamentos me pareciam longe do ideal
e as condições práticas de implementação me pareciam longe da realidade.

2. O DIREITO ADMINISTRATIVO E SEU DISCURSO DE JUSTIFICAÇÃO


A teoria do direito administrativo ensinada nos manuais brasileiros sempre me
pareceu inconsistente, do ponto de vista lógico-conceitual, autoritária, do ponto de
vista político, e ineficiente, de um ponto de vista pragmático. Foi a inspiração dos
meus ídolos na disciplina – Carlos Ari Sundfeld e Marçal Justen Filho, ambos 776
presentes na minha Banca de concurso para Professor Titular na UERJ – que me
encorajou a pensar mais livremente sobre essas questões. Até então, isto é, até a
leitura desses autores, o direito administrativo me parecia um campo interditado a
indagações zetéticas. Era como se a sua dogmática já houvesse sido integralmente
revelada pelos juristas pretéritos, numa estranha crença na atemporalidade do
passado.
Mas, por honestidade intelectual, precisava escrever sobre o que me parecia um
evidente déficit no discurso de justificação do direito administrativo. Nesse
contexto, o problema central era enfrentar os titãs das gerações anteriores (Hely
Lopes Meirelles e Celso Antônio Bandeira de Mello), que apesar de pertencentes a
linhas políticas distintas, cerravam fileiras em defesa da supremacia do interesse
público sobre os interesses particulares. Em artigos esparsos e, sobretudo, na minha
tese de doutorado, depois publicada sob o título de Uma teoria do direito
administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização (1a edição, 2006),
procurei demonstrar como os antigos paradigmas da disciplina se encontravam
superados, propondo algumas ideias para substituí-los.
Como ensina Tércio Sampaio Ferraz Junior, fundado no pensamento de
Viehweg, o direito (como qualquer domínio do conhecimento), comporta análise
sob pelos menos dois enfoques: o dogmático e o zetético. O enfoque dogmático se
caracteriza por premissas teóricas que são temporariamente subtraídas à dúvida e

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cuja legitimidade decorre da sua ampla aceitação pela comunidade jurídica. O


enfoque zetético, ao contrário, caracteriza-se pela questionabilidade das premissas,
o que abre caminho para a crítica e a desestabilização dos paradigmas até então
vigentes.
No que se refere especificamente ao problema da supremacia, foram os artigos de
Humberto Ávila e Daniel Sarmento que me despertaram para algumas
inconsistências teóricas e sua visceral incompatibilidade com a sistemática de uma
Constituição liberal e democrática, como a de 1988. A constitucionalização do
direito administrativo foi um caminho teórico para afirmar a proeminência dos
direitos fundamentais no elenco de objetivos da Administração Pública, embora a
eles não se limitem, por evidente, as tarefas administrativas.
Com efeito, a lei democrática, produzida dentro dos limites da Constituição,
opera de forma complementar ao sistema de direitos fundamentais, concretizando,
ampliando ou restringindo tais direitos, seja em prol de outros direitos
fundamentais, seja em benefício de objetivos coletivos. À Administração Pública
cumpre tanto a implementação dos direitos fundamentais (por meio de abstenções,
restrições e prestações positivas), como a consecução de metas transindividuais
(estabelecidas diretamente pela Constituição ou instituídas pelo legislador
democrático).
O recurso à ideia de supremacia dos interesses coletivos sobre os individuais
não resolve os problemas relevantes que se colocam entre o viver individual e o
conviver coletivo. Com efeito, há três razões básicas que evidenciam a 777
incompatibilidade dessa noção de supremacia do interesse público com o
constitucionalismo democrático:

(I) a proteção de posições individuais irredutíveis, identificadas, de


modo geral, com o conteúdo essencial de direitos fundamentais.
Mais do que apenas respeitá-las, por meio de abstenções, há diversas
situações em que o Estado-Administração deve atuar na proteção e
promoção de direitos individuais, por meio de prestações positivas.
(II) a primazia prima facie, em qualquer regime constitucional
democrático, é dos direitos fundamentais, ainda quando admitida a
sua relativização em prol de alguns objetivos coletivos. Ou seja, a
lógica do sistema é inversa à da supremacia do interesse público.
(III) por fim, a polissemia da noção de interesse público permite o seu
emprego para abarcar tanto a proteção de direitos individuais como
a prossecução de objetivos transindividuais. Veja-se que, em diversos
casos, ocorre um fenômeno de imbricação, nos quais os interesses se
encontram amalgamados numa mesma situação concreta.

O próprio STF já teve oportunidade de enfrentar essas questões. Na ADI nº


1.753 (rel. Min. Sepúlveda Pertence), discutia-se a constitucionalidade da ampliação

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do prazo para o ajuizamento de ações rescisórias pelo Poder Público, de dois para
cinco anos. Após anotar que a jurisprudência do STF vinha transigindo com alguns
favores legais da Fazenda (RE nº 181.130, rel. Min. Celso de Mello e RE nº 196.430,
rel. Min. Sepúlveda Pertence), Pertence afirma que essas discriminações só seriam
válidas se não fossem arbitrárias e servissem para compensar deficiências da defesa
em juízo das entidades estatais. Ou seja, o tratamento desigual só seria admissível
para assegurar a paridade de armas entre as partes, numa busca por isonomia
material. Somado a outras vantagens processuais, o prazo duas vezes e meia maior
para ações rescisórias criava uma desequiparação odiosa, que violava o dever de
proporcionalidade. Esse seria um típico caso para a invocação do festejado
princípio da supremacia do interesse público. Mas Pertence tinha coragem
intelectual para ousar e não perdeu viagem. Como a literatura viria a demonstrar,
a polissemia da noção de interesse público pode abarcar tanto a proteção de
posições individuais (como a porção irredutível de direitos fundamentais) como a
persecução de objetivos coletivos. Esse é um problema de sopesamento
proporcional dos interesses em jogo, e não de suposta supremacia de uns sobre os
outros.
Embora ainda repetido ritualisticamente em manuais, o suposto princípio da
supremacia do interesse público perdeu credibilidade no discurso do direito
administrativo, sendo hoje visto mais como um exercício de retórica do que como
uma norma de seu sistema.
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3. O DIREITO ADMINISTRATIVO E SEUS DESAFIOS DE OPERACIONALIZAÇÃO
A constitucionalização do direito administrativo cumpriu o seu papel de mola
propulsora da revisão teórica de diversos institutos vetustos da disciplina. Embora
sempre tenha considerado exagerada a crítica de Carlos Ari Sundfeld aos
princípios, reconheço que seu uso tosco e desordenado por operadores
despreparados agravou o problema da insegurança jurídica no país. De todo modo,
obras como a de Humberto Ávila e Fernando Leal ajudariam a colocar as coisas no
seu devido lugar.
Com o passar dos anos, pude entender que o direito administrativo carecia de
uma nova postura metodológica, que desse conta de demandas da realidade para as
quais o instrumental preexistente era insuficiente. Foram fundamentais para esse
meu despertar o trabalho pioneiro de Carlos Ari, no seu já clássico Direito
Administrativo para céticos, e a influência de colegas como Floriano de Azevedo
Marques Neto, Eduardo Jordão, José Vicente Mendonça e André Cyrino. A todos
nós parecia – como ainda parece – que se o direito administrativo virasse as costas
para a realidade, ela também lhe daria as costas, tornando-o irrelevante. Era
necessário reconcebê-lo em bases mais realistas, despido daquelas idealizações que
caracterizavam a dogmática tradicional desde o século XIX. A minha tentativa foi
a tese de titularidade que apresentei na UERJ, depois publicada com o título Poder
de polícia, ordenação, regulação (2016). Para alinhar essa nova tendência com aquela

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advinda da constitucionalização, falei em dois giros do direito administrativo: o giro


democrático-constitucional e o giro pragmático.
De fato, o direito administrativo contemporâneo está sob o influxo da razão
pragmática sob múltiplas formas e em diferentes setores de seu campo de atuação.
Não se trata, a meu ver, de um projeto de reforma global da disciplina, mas daquilo
que Posner denominou, mais modernamente, de uma atitude ou temperamento
pragmático (pragmatic mood), caracterizado pelo ceticismo em relação a conceitos
puramente abstratos e grandes narrativas lógico-dedutivas. Em suma: fundar
conceitos, proposições e decisões a partir da avaliação de suas consequências
práticas, em um determinado contexto concreto, sem prestar necessária reverência
a premissas teóricas inquestionáveis – eis o itinerário do pragmatismo jurídico-
administrativo.
Como observa Carlos Ari, trata-se de uma visão mais afeita às tendências
empiricistas e indutivas dos norte-americanos, que formam suas opiniões antes
pelas características dos fatos que por influência de teorias abstratas. Em certo
sentido, tal postura desafia a visão de europeus continentais e brasileiros, tendentes
ao pensamento teórico-dedutivo e sistematizador. Essas diferenças se fazem notar,
com clareza, no modo como o direito administrativo é compreendido e praticado
nesses países. Jamais se poderia conceber, no ambiente jurídico norte-americano, a
conhecida ironia de Nélson Rodrigues: “se os fatos me desmentirem, pior para os
fatos!”
Jerry Mashaw nos conta que os Estados Unidos, desde a sua fundação, 779
laboraram no que ele chamou de pragmatic state-building (construção pragmática do
Estado), por meio de experimentações institucionais adaptativas às exigências de
sua realidade política, econômica e social. Assim foi com o presidencialismo e o
federalismo; assim foi também com o seu direito administrativo. O vácuo de uma
Constituição lacônica em relação ao Poder Executivo foi preenchido pela prática
administrativa, por decisões judiciais e pela aprovação de algumas leis que
erigiram um Estado-administrativo inovador em relação ao modelo europeu
continental. As soluções incrementais foram implementadas como um esforço de
conciliação entre as exigências de necessidades prementes, emergentes do contexto
político, econômico e social do país, e a garantia dos direitos dos cidadãos.
Aos poucos, e nem sempre de maneira linear, o direito administrativo vem se
convertendo em um saber tecnológico, estruturado para produzir decisões
orientadas pelas melhores consequências práticas. A aproximação com domínios
do conhecimento lastreados em estudos empíricos, como a economia e a ciência
política, acaba levando o direito administrativo a adotar o olhar mais prospectivo
e contextual do pragmatismo. A promulgação da Lei n° 13.655/2018, que instituiu
significativos acréscimos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
(LINDB), representou, de certa forma, a consolidação dessa tendência. De maneira
enfática, o art. 20 da LINDB previu que nas esferas administrativa, controladora e
judicial, não se decidiria com base em valores jurídicos abstratos sem que fossem

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levadas em consideração as consequências práticas da decisão. Se bem


interpretado, o dispositivo não institui um consequencialismo inconsequente: o
legislador pretendeu introduzir o raciocínio baseado em consequências práticas no
itinerário lógico do tomador da decisão, sem a pretensão de excluir argumentos
deontológicos. A interdição dirige-se à invocação de princípios ou conceitos
indeterminados de maneira isolada, sem que se levem, na devida conta, os
resultados sistêmicos do exercício intelectual do intérprete e aplicador da lei.
O giro pragmático do direito administrativo tem como objetivo, ao fim e ao
cabo, matizar o idealismo excessivo e selar o compromisso do constitucionalismo
democrático com a realidade. Buscar os melhores resultados práticos compatíveis
com as finalidades legais, dentro dos limites e possibilidades abertos pelo texto
normativo. Esse foco nas finalidades legais e consequências concretas, segundo
Stephen Breyer, permite manter vivo o vínculo entre democracia, entendida como
um sistema de participação dos cidadãos nas escolhas públicas, e resultados
práticos que reflitam tais preferências. Esse objetivo só é alcançável se os aparatos
do direito e do Estado levarem a sério, tanto em sua formulação abstrata como em
sua aplicação prática, dados e circunstâncias da realidade.
Na minha visão, antes que uma opção ideológica, essa inclinação pragmática do
direito administrativo reflete uma relevante preocupação com os desafios de sua
operacionalização concreta. Evitar, como disse José Guilherme Merquior em
relação ao direito constitucional, que ele se torne um “feixe bacharelesco de
idealidades inviáveis, cruelmente desmentidas pela prática político-social.” 780

4. CONCLUSÃO
O direito administrativo tem experimentado alterações significativas em seus
alicerces teóricos desde a sua criação como disciplina jurídica autônoma. A partir
do segundo pós-guerra, essas mutações se intensificaram em todo o Ocidente. Para
simplificação didática, cogito de duas vertentes de transformação, nem sempre
coordenadas ou conectadas: de um lado, um giro democrático-constitucional; de
outro, um giro pragmático, que atuam como molas propulsoras de mudanças em
seus institutos mais tradicionais.
O giro democrático-constitucional representa a elevação das bases axiológicas
do direito administrativo ao plano superior da normatividade da Constituição.
Direitos fundamentais e democracia são os elementos estruturantes e fundamentos
de legitimidade do Estado administrativo, que deve atuar para protegê-los e
promovê-los, numa busca constante pelo equacionamento dos conflitos inevitáveis
entre o viver do indivíduo e o conviver de todos em sociedade. Diversos institutos
do direito administrativo foram revistos por força desse giro. No Brasil, o processo
de mudanças se iniciou pela revisão do princípio da supremacia do interesse
público, que era invocado como fundamento de todo o regime jurídico-
administrativo. Embora ainda repetido ritualisticamente em manuais, esse suposto

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princípio perdeu credibilidade, sendo hoje visto mais como um exercício de retórica
do que como uma norma jurídica.
O giro pragmático revela, a seu turno, uma tendência à adoção de estruturas,
conceitos, procedimentos e decisões administrativas que sejam aptos a produzir os
melhores resultados, nos limites e possibilidades da lei. A postura metodológica
pragmática se caracteriza pelo antifundacionalismo, pelo contextualismo e pelo
consequencialismo. O antifundacionalismo rejeita premissas teóricas estáticas,
perpétuas, desconectadas da realidade e atemporais. O contextualismo exige que
se leve em conta a experiência prática, o ambiente real em que o problema se insere,
bem como a intersubjetividade que lhe confere sentido e valor. Por fim, o
consequencialismo procura conduzir qualquer processo de tomada de decisão a
partir de uma avaliação de seus resultados práticos, para que se possa sopesar qual
a diferença que ela terá sobre a realidade.

REFERÊNCIAS
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público sobre o particular.” In: WOLKMER, Antônio Carlos et al. O direito
público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
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ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004.

BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação. Belo Horizonte:


Fórum, 2020 (3a edição).

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos


fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2014
(3a edição).

CYRINO, André. Direito administrativo de carne e osso. Rio de Janeiro:


Processo, 2021.

JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de administração pública complexa: a


experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo:
Malheiros, 2016.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015.

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MENDONÇA, José Vicente Santos. Direito constitucional econômico: a


intervenção do Estado na economia à luz da razão pública e do pragmatismo.
Belo Horizonte: Fórum, 2014.

SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. Interesses privados na perspectiva


da teoria e da filosofia constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses
públicos vs. Interesses privado: desconstruindo o princípio da supremacia do
interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. São Paulo:


Malheiros, 2014 (2ª edição)

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