Texto 2 BINENBOJM, G. Direito Administrativo Entre Justificação E Operacionalização
Texto 2 BINENBOJM, G. Direito Administrativo Entre Justificação E Operacionalização
Texto 2 BINENBOJM, G. Direito Administrativo Entre Justificação E Operacionalização
2023
ACEITO: 15 AGO. 2023
DIREITO ADMINISTRATIVO:
ENTRE JUSTIFICAÇÃO E OPERACIONALIZAÇÃO
ADMINISTRATIVE LAW:
BETWEEN JUSTIFICATION AND IMPLEMENTATION
GUSTAVO BINENBOJM 1
Goethe, Fausto
NOTA PRÉVIA
A constituição de uma tradição pressupõe continuidade. Só o que alcança essa
condição de perpetuar-se, de geração em geração, pode merecer esse nome. A
possibilidade de contemplar o mundo apoiados nos ombros dos que nos
antecederam talvez seja a forma mais antiga de produção de cultura, senão a única.
Querendo ou não, somos todos herdeiros de alguma tradição, em todos os campos
da experiência humana.
Isto não é diferente com o direito, nem tampouco com seus diferentes ramos
especializados. O direito administrativo, portanto, tem a sua tradição e, no Brasil,
desenvolveu-se com proeminência uma de suas vertentes tradicionais – a europeia
continental. O tipo de colonização que recebemos dos portugueses e sua própria
tradição nacional – marcada pela influência intelectual francesa – nos legaram uma
compreensão específica de direito administrativo. A herança colonial se perpetuou
como uma tradição a marcar o caráter do Estado brasileiro e a moldar a forma de
pensamento de seus intelectuais públicos. Acho mesmo que Raimundo Faoro tinha
razão quando apontava uma continuidade luso-brasileira no modelo de relação
vertical entre estamentos e sociedade. 775
Mas tradição não é sinônimo de determinismo histórico. A ruptura da tradição
pelas novas gerações é algo tão antigo e renitente que chega a constituir-se, ela
própria, numa nova forma de tradição. Octavio Paz dizia isso: a ruptura da
tradição, por sucessivas gerações, acaba por constituir uma tradição da ruptura.
Isso não é diferente com o direito, nem tampouco com o direito administrativo.
Embora tenha pouco mais que dois séculos com autonomia didático-científica, a
evolução do direito administrativo registra inúmeros embates teóricos e
controvérsias doutrinárias, como qualquer outro ramo do Direito. Talvez a
natureza umbilicalmente ligada ao fenômeno político, a tradição (sempre ela!)
apartada das grandes codificações e o papel instrumental à gestão pública tenham
contribuído, em seu conjunto, para incrementar ainda mais o caráter cambiante da
doutrina administrativista.
A minha circunstância de ter estudado direito no início dos anos 1990, num país
que passava por um processo recente de redemocratização e
reconstitucionalização, forjou o meu caráter como alguém simpático à ruptura da
tradição do direito administrativo. O direito é o que o dever-ser é; a democracia é o
que o dever-ser deve ser. O Brasil havia reconquistado o direito de
autodeterminação coletiva e, os brasileiros, de autodeterminação individual. Era
preciso reformar as instituições para colocá-las a serviço da realização dos direitos
individuais e das aspirações coletivas. O direito constitucional estava em alta, na
do prazo para o ajuizamento de ações rescisórias pelo Poder Público, de dois para
cinco anos. Após anotar que a jurisprudência do STF vinha transigindo com alguns
favores legais da Fazenda (RE nº 181.130, rel. Min. Celso de Mello e RE nº 196.430,
rel. Min. Sepúlveda Pertence), Pertence afirma que essas discriminações só seriam
válidas se não fossem arbitrárias e servissem para compensar deficiências da defesa
em juízo das entidades estatais. Ou seja, o tratamento desigual só seria admissível
para assegurar a paridade de armas entre as partes, numa busca por isonomia
material. Somado a outras vantagens processuais, o prazo duas vezes e meia maior
para ações rescisórias criava uma desequiparação odiosa, que violava o dever de
proporcionalidade. Esse seria um típico caso para a invocação do festejado
princípio da supremacia do interesse público. Mas Pertence tinha coragem
intelectual para ousar e não perdeu viagem. Como a literatura viria a demonstrar,
a polissemia da noção de interesse público pode abarcar tanto a proteção de
posições individuais (como a porção irredutível de direitos fundamentais) como a
persecução de objetivos coletivos. Esse é um problema de sopesamento
proporcional dos interesses em jogo, e não de suposta supremacia de uns sobre os
outros.
Embora ainda repetido ritualisticamente em manuais, o suposto princípio da
supremacia do interesse público perdeu credibilidade no discurso do direito
administrativo, sendo hoje visto mais como um exercício de retórica do que como
uma norma de seu sistema.
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3. O DIREITO ADMINISTRATIVO E SEUS DESAFIOS DE OPERACIONALIZAÇÃO
A constitucionalização do direito administrativo cumpriu o seu papel de mola
propulsora da revisão teórica de diversos institutos vetustos da disciplina. Embora
sempre tenha considerado exagerada a crítica de Carlos Ari Sundfeld aos
princípios, reconheço que seu uso tosco e desordenado por operadores
despreparados agravou o problema da insegurança jurídica no país. De todo modo,
obras como a de Humberto Ávila e Fernando Leal ajudariam a colocar as coisas no
seu devido lugar.
Com o passar dos anos, pude entender que o direito administrativo carecia de
uma nova postura metodológica, que desse conta de demandas da realidade para as
quais o instrumental preexistente era insuficiente. Foram fundamentais para esse
meu despertar o trabalho pioneiro de Carlos Ari, no seu já clássico Direito
Administrativo para céticos, e a influência de colegas como Floriano de Azevedo
Marques Neto, Eduardo Jordão, José Vicente Mendonça e André Cyrino. A todos
nós parecia – como ainda parece – que se o direito administrativo virasse as costas
para a realidade, ela também lhe daria as costas, tornando-o irrelevante. Era
necessário reconcebê-lo em bases mais realistas, despido daquelas idealizações que
caracterizavam a dogmática tradicional desde o século XIX. A minha tentativa foi
a tese de titularidade que apresentei na UERJ, depois publicada com o título Poder
de polícia, ordenação, regulação (2016). Para alinhar essa nova tendência com aquela
4. CONCLUSÃO
O direito administrativo tem experimentado alterações significativas em seus
alicerces teóricos desde a sua criação como disciplina jurídica autônoma. A partir
do segundo pós-guerra, essas mutações se intensificaram em todo o Ocidente. Para
simplificação didática, cogito de duas vertentes de transformação, nem sempre
coordenadas ou conectadas: de um lado, um giro democrático-constitucional; de
outro, um giro pragmático, que atuam como molas propulsoras de mudanças em
seus institutos mais tradicionais.
O giro democrático-constitucional representa a elevação das bases axiológicas
do direito administrativo ao plano superior da normatividade da Constituição.
Direitos fundamentais e democracia são os elementos estruturantes e fundamentos
de legitimidade do Estado administrativo, que deve atuar para protegê-los e
promovê-los, numa busca constante pelo equacionamento dos conflitos inevitáveis
entre o viver do indivíduo e o conviver de todos em sociedade. Diversos institutos
do direito administrativo foram revistos por força desse giro. No Brasil, o processo
de mudanças se iniciou pela revisão do princípio da supremacia do interesse
público, que era invocado como fundamento de todo o regime jurídico-
administrativo. Embora ainda repetido ritualisticamente em manuais, esse suposto
princípio perdeu credibilidade, sendo hoje visto mais como um exercício de retórica
do que como uma norma jurídica.
O giro pragmático revela, a seu turno, uma tendência à adoção de estruturas,
conceitos, procedimentos e decisões administrativas que sejam aptos a produzir os
melhores resultados, nos limites e possibilidades da lei. A postura metodológica
pragmática se caracteriza pelo antifundacionalismo, pelo contextualismo e pelo
consequencialismo. O antifundacionalismo rejeita premissas teóricas estáticas,
perpétuas, desconectadas da realidade e atemporais. O contextualismo exige que
se leve em conta a experiência prática, o ambiente real em que o problema se insere,
bem como a intersubjetividade que lhe confere sentido e valor. Por fim, o
consequencialismo procura conduzir qualquer processo de tomada de decisão a
partir de uma avaliação de seus resultados práticos, para que se possa sopesar qual
a diferença que ela terá sobre a realidade.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Humberto. Repensando o “princípio da supremacia do interesse
público sobre o particular.” In: WOLKMER, Antônio Carlos et al. O direito
público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
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ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015.
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