A Soberania de Deus e A Evangelização

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A Soberana Eleição de Deus e a

Evangelização

R. B. Kuiper
Desde toda a eternidade Deus preordenou tudo o que acontece, incluindo o destino dos
homens. A Bíblia chama de predestinação o decreto divino concernente a esse destino. O
aspecto da predestinação mais saliente na Escritura é conhecido pelo nome de eleição. É
ensinada em muitas passagens, como a de Efésios 1:4-6,11, que diz: "Assim como nos
escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante
ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus
Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, pela
qual nos fez agradáveis a si no Amado...Nele, digo, no qual fomos também feitos herança,
predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho
da sua vontade".

Nenhum concílio de igrejas deliberou sobre este assunto tão extensamente e com tão
laboriosa consideração pela Palavra de Deus como o fez o Sínodo de Dort, em 1618 e
1619. Nele, praticamente todas as igrejas reformadas - calvinistas - da Europa, estiveram
representadas. Aquela corporação de teólogos chegou à seguinte conclusão: "A eleição é
o imutável propósito de Deus pelo qual, antes da fundação do mundo, simplesmente por
Sua graça, de acordo com o soberano beneplácito da Sua vontade, de toda a raça
humana que, por sua própria culpa, caíra do seu primitivo estado de retidão no pecado e
na destruição, escolheu um certo número de pessoas para a redenção em Cristo, a quem
Ele, desde a eternidade, designou para ser o Mediador e a Cabeça dos eleitos e o
fundamento da salvação" (Cânones de Dort I, 7). O Capítulo III da Confissão de Fé de
Westminster, sem dúvida o mais amadurecido de todos os credos calvinistas, considerado
por muitos como o maior credo da cristandade, não é menos explícito sobre esse tema.

Ao procurarmos relacionar com a evangelização esta fase daquilo que normalmente é


denominado "a secreta vontade de Deus", convém lembrar que estamos lidando com um
profundo mistério, que estamos em terra santa, onde os anjos temem pisar, que o homem
finito não pode nem começar a compreender o Deus infinito, e que, portanto, temos que
ser sóbrios, evitando escrupulosamente qualquer especulação humana e apoiando-nos
estritamente na segura Palavra de Deus.

A Amorosa Soberania da Eleição

A base da eleição não está nos escolhidos, mas em Deus. Não é verdade, como às vezes
se diz, que Deus escolheu certas pessoas porque já sabia que iam crer em Cristo. Por
certo Ele tinha conhecimento prévio disso, como também de tudo quanto haveria de
suceder no tempo. Mas esse conhecimento prévio, ou presciência, não foi a razão da Sua
escolha. A fé salvadora é um dom de Deus aos Seus eleitos. Por essa fé a eleição deles é
concretizada (Efésios 2:8). Em vez de ser a base da eleição, é uma de suas
conseqüências. A Bíblia afirma com clareza que Deus os escolheu "segundo o
beneplácito de sua vontade" (Efésios 1:5). Isto só pode significar que Ele os escolheu
soberanamente.

O caráter soberano da eleição transparece também no fato de que foi incondicional. Deus
não escolheu certas pessoas para a vida eterna porque sabia que iriam crer em Cristo.
Tampouco decretou que certos pecadores seriam salvos se eles cressem em Cristo. Deus
decretou que certas pessoas seriam salvas mediante a fé em Cristo. Daí Paulo informou
os cristãos de Tessalônica: "Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela
santificação do Espírito e fé na verdade" (2 Tessalonicenses 2:13). Então, a fé é um fruto
da eleição, não condição. "Ainda que Deus sabe tudo quanto pode ou há de acontecer em
todas as circunstâncias imagináveis, ele não decreta coisa alguma por havê-las previsto
como futura, ou como coisa que havia de acontecer em tais e tais condições" (Confissão
de Fé de Westminster III, 2).

A soberania da eleição é manifesta ainda em sua imutabilidade. Deus declarou


solenemente: "O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade" (Isaías
46:10). Paulo afirma: "Aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que chamou,
a estes também justificou; e aos que justificou, a estes também glorificou" (Romanos
8:30). Cada um dos eleitos de Deus tem a segurança de que chegará à glória celeste. Os
teólogos de Westminster andaram bem quando afirmaram que os eleitos "são e
imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que não pode ser nem
aumentado nem diminuído (Confissão de Fé de Westminster III, 4). Do mesmo modo, agiu
bem o Sínodo de Dort ao atribuir a eleição ao "imutável beneplácito" de Deus (Cânones
de Dort I, 11). Deus, "em quem não pode existir variação, nem sombra de mudança"
(Tiago 1:17), não altera o Seu decreto. O frágil ser humano não o pode modificar. Nem
Satanás.

Ninguém vá pensar que Deus escolheu arbitrariamente certas pessoas para a salvação.
Deus não faz nada arbitrariamente. Tudo o que faz, Ele o faz porque é quem Ele é. Que
é, pois, que havia em Deus que o moveu, por assim dizer, a escolher certas pessoas para
a vida eterna? Deus respondeu inequivocadamente essa pergunta em Sua Palavra.
Escolheu-as porque as amou. Romanos 8:29 diz: "Aos que de antemão conheceu,
também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho", e 1 Pedro 1:2 fala
dos escolhidos de Deus como "eleitos, segundo a presciência de Deus". Nestas duas
passagens é evidente que conhecimento tem aquele sentido denso, tão freqüente na
Escritura; a saber, amor. Presciência, então, é amor desde a eternidade. Deus amou os
Seus eleitos desde a eternidade. Por essa razão os elegeu para a vida eterna. E se se
perguntar por que Deus, desde a eternidade, amou para a salvação alguns homens em
distinção de outros, convém que humildemente confessemos nossa ignorância. Somente
numa extensão muitíssimo limitada podemos acompanhar os pensamentos de Deus.
Seus pensamentos não são os nossos pensamentos. Como os céus são mais altos do
que a terra, assim os pensamentos de Deus são mais altos do que os nossos
pensamentos (Isaías 55:8,9). Contudo, sabemos isto: Ninguém merecia o amor de Deus.
Como todos pecaram em Adão, todos mereciam a morte - sim, a morte eterna. Todos
eram "por natureza filhos da ira" (Efésios 2:3). Se Deus tivesse deixado todos os homens
perecerem eternamente, todos teriam recebido o que com justiça mereciam e ninguém
teria de que se queixar. Por esta razão, é uma presunção indescritível queixar-se alguém
de que Deus, no Seu conselho de predestinação, escolheu uns e deixou de lado outros.
Aplicam-se aqui as causticantes palavras do apóstolo: "Quem és tu, ó homem, para
discutires com Deus? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me
fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre a massa, para do mesmo barro fazer um
vaso para honra e outro para desonra?" (Romanos 9:20,21). Ao invés de achar algumas
culpa em Deus pelo fato de Ele tratar de maneira inteiramente justa certos pecadores
merecedores do inferno, adoremo-lo por este eterno e gracioso amor que salva outros
igualmente merecedores de condenação.

Fala-se aos cristãos que Deus os escolheu em Cristo (Efésios 1:4). Há muita discussão
entre os teólogos sobre o significado exato dessa frase. Por ora, basta tirar algumas
conclusões claras. Obviamente fica excluída a idéia de que Deus tenha escolhido
determinados pecadores para a salvação sem referência a Cristo, e que, depois de ter
feito isso, planejou a realização da salvação deles por meio de Cristo. Isso faria de Cristo
um simples meio, no processo de execução do decreto de eleição. Não se nos diz que os
eleitos foram escolhidos para a salvação por meio de Cristo, mas, sim, que foram
escolhidos em Cristo para a salvação. É igualmente claro que a frase em Cristo não pode
significar que, como Mediador entre Deus e os pecadores, Cristo, por assim dizer, induziu
o Pai a escolher certos pecadores para a vida eterna. Esta interpretação contradiz João
3:16, que estabelece que Deus foi movido pelo amor aos pecadores ao enviar Seu Filho
ao mundo para a realização da Sua obra mediadora. O fato de que Deus escolheu os
Seus em Cristo significa necessariamente - sejam quais forem as outras verdades aí
envolvidas - que no conselho da eleição Deus os viu como pertencentes a Cristo, Seu
Filho amado. Em resumo, escolheu-os com base no amor com que Ele ama o Filho. Em
outras palavras, a afirmação de Efésios 1:5 - "em amor nos predestinou" - é paralela à
afirmação presente no versículo imediatamente anterior, e a explica; a afirmação de que
Deus nos escolheu em Cristo.

A Eleição Requer Evangelização

Vez por outra se ouve a idéia de que a eleição torna supérflua a ação evangelizadora.
Pergunta-se "Se o decreto da eleição é imutável e, portanto, torna absolutamente certa a
salvação dos eleitos, que necessidade têm elas do Evangelho? Os eleitos não vão ser
salvos mesmo, ouçam ou não o Evangelho?"

A premissa desse argumento é inteiramente verdadeira. A eleição divina torna a salvação


dos eleitos inteiramente certa. Mas a conclusão derivada dessa premissa revela grave
incompreensão da soberania divina como expressa no decreto da eleição.

Enquanto que a eleição foi feita na eternidade, não se pode perder de vista a verdade de
que sua concretização é um processo que se dá no tempo, ou seja, dentro da história.
Muitos fatores tomam parte nesse processo. Um deles é o Evangelho. E por sinal é um
fator da maior significação.

Não se confunda a soberania de Deus com a Sua onipotência. Certamente Deus é todo-
poderoso. Significativamente, o conciso Credo Apostólico se refere a este atributo de
Deus, não uma, porém duas vezes. Se Deus quisesse, poderia pelo emprego da simples
força levar para o Céu os eleitos, e igualmente pelo emprego da simples força lançar ao
inferno os não eleitos. Mas Ele não faz nada disso. Pré-ordenação não é compulsão e a
certeza não exclui a liberdade. Ninguém jamais foi convertido ao cristianismo à força.
Todo verdadeiro converso volta-se para Cristo porque quer - embora seja certo que este
querer é dom de Deus, transmitindo a ele por ocasião do seu novo nascimento. Deus trata
os seres humanos como criaturas racionais, capazes de agir livremente. Por isso, Ele
arrazoa e dialoga com os não salvos por meio do Evangelho. Quer "persuadir" os homens
(2 Coríntios 5:11). E no caso dos eleitos, Ele aplica o Evangelho aos corações deles de
maneira salvadora, mediante o Espírito Santo.

Não se vá supor que o soberano decreto de Deus só se refere aos fins, com a exclusão
dos meios. Por mais ênfase que se dê, não será suficiente para expressar que Deus pré-
ordenou tudo que sucede. Tudo abrange meios, bem como os fins. Para ilustrar, Deus
não somente pré-determinou que dado fazendeiro colhesse este ano dez mil arrobas de
trigo; pré-determinou também que colhesse aquela quantidade como resultado de muito
trabalho duro. Do mesmo modo, Deus não decretou apenas que certo pecador herde a
vida eterna, mas decretou que esse pecador receba a vida eterna por meio da fé em
Cristo, e que obtenha a fé em Cristo por meio do Evangelho.

Não se pode imaginar a soberania de Deus como se ela eliminasse a responsabilidade


dos homens. Como os mais cultos e competentes teólogos e filósofos se mostraram
incapazes de conciliar a soberania divina com a responsabilidade humana perante o
tribunal da razão, sempre se corre o risco de dar ênfase a uma delas em detrimento - ou
mesmo com a exclusão - da outra. Mas a Bíblia ensina as duas verdades com grande
ênfase. Aquele que aceita com humilde fé a Bíblia como a infalível Palavra de Deus, dará
vigoroso destaque tanto a uma como à outra. Portanto, o pregador do Evangelho tem de
dizer ao pecador, não apenas que a salvação é só pela graça soberana, mas também
que, para ser salvo, ele precisa crer em Jesus Cristo como Salvador e Senhor. Por um
lado, deve pregar que os eleitos de Deus serão salvos com toda a segurança; por outro
lado, deve proclamar a advertência de que aquele que não crê no Filho não verá a vida,
mas a ira de Deus permanece sobre ele (João 3:36). Mesmo os eleitos precisam desta
admoestação, pois faz parte integrante do método que Deus adotou para levá-los à
salvação.

Agora fica assegurada uma conclusão das mais significantes. Em vez de tornar supérflua
a evangelização, a eleição requer a evangelização. Todos os eleitos de Deus têm que ser
salvos. Nenhum deles pode perecer. E o Evangelho é o meio pelo qual Deus lhes
comunica a fé salvadora. De fato, é o único meio que Deus emprega para esse fim. "A fé
vem pelo ouvir e o ouvir pela palavra de Deus" (Romanos 10:17).

Observe-se que, por paradoxal que pareça, a eleição é universal. Certamente, a eleição é
a escolha de certas pessoas, dentre um maior número, para a vida eterna. Assim a
eleição reflete particularismo. Contudo, num sentido real, a eleição é universal. Deus tem
os Seus eleitos em todas as nações e em todas as épocas. A igreja é composta de
"eleitos de toda nação", e em nenhum período da história os eleitos pereceram na terra, e
jamais acontecerá isto no futuro. Deus quer que o Evangelho seja proclamado no mundo
todo e em todo o tempo para que seja congregada a soma total dos eleitos. É bom repetir,
pois: a eleição exige a evangelização.

A mesma verdade pode-se ver de outro ângulo. A Escritura ensina que a eleição foi feita
com vistas às boas obras. Disse Paulo: "Somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para
as boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas" (Efésios
2:10). E a Escritura ensina especificamente que a eleição foi feita com vistas ao
testemunho. Disse Pedro: "Vós sois raça eleita...a fim de proclamardes as grandezas
daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz" (1 Pedro 2:9). Deus
escolheu determinadas pessoas, não só para irem para o Céu quando morrerem, mas
também para serem Suas testemunhas enquanto estiverem na terra. Digamos outra vez:
a eleição exige a evangelização.

Eis outra conclusão igualmente significativa: a eleição assegura que a evangelização


resulte em conversões genuínas. O pregador do Evangelho não tem como dizer quem em
seu auditório pertence aos eleitos e quem não pertence. Mas Deus sabe. E Deus está
pronto para aplicar e abençoar Sua Palavra nos corações dos Seus eleitos para a
salvação. O momento preciso em que apraz a Deus fazer isso no caso de um eleito
individual, não sabemos, mas é certo e seguro que o fará antes da morte da pessoa.
Exatamente tão certo como todos os eleitos de Deus serão salvos, é certo que a palavra
do Evangelho não tornará a Deus vazia (Isaías 55:11).
A Preterição e o Oferecimento do Evangelho

A eleição tem seu reverso. Se Deus escolheu da raça humana decaída certo número para
a vida eterna, é óbvio que passou outros por alto, deixando-os em seu estado de perdição
e decretando sua condenação por seus pecados. Teologicamente, este aspecto da
predestinação é conhecido como preterição, rejeição ou reprovação. Tem-se alegado que
esta doutrina elimina o sincero e universal oferecimento do Evangelho. Se Deus decretou
desde a eternidade que certos homens pereçam eternamente, dizem os oponentes, é
inconcebível que Ele, dentro da história, convide sinceramente a todos, sem distinção,
para a vida eterna.

Numa tentativa de refutar esse argumento, às vezes se faz a observação de que o


pregador humano não tem meios de saber quem é eleito e quem não é, e que, portanto,
ele não tem outro recurso senão proclamar o Evangelho a todos, indiscriminadamente.
Embora válida, essa observação não atinge o ponto. A questão é se Deus, que sabe
infalivelmente quais são os Seus eleitos e quais não são, faz sincero oferecimento da
salvação a todos os que são alcançados pelo Evangelho.

Fato da maior importância é que a Palavra de Deus ensina inequivocadamente, tanto a


reprovação divina, como a universalidade e a sinceridade do oferecimento do Evangelho.
É inegável que Romanos 9:21,22 ensina a doutrina da reprovação: "Ou não tem o oleiro
direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro para
desonra? Que diremos, pois, se Deus querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu
poder, suportou com muita paciência os vasos de ira, preparados para a perdição...?"
Também a ensina 1 Pedro 2:8, onde se faz menção dos "que tropeçam na palavra, sendo
desobedientes, para o que também foram destinados". Como se demonstrou no capítulo
anterior, o universal e sincero oferecimento do Evangelho é firme e certamente ensinado
em Ezequiel 33:11, 2 Pedro 3:9 e em outras partes mais.

Também podemos admitir - ou melhor, tem que ser admitido - que estes ensinos não
podem ser conciliados entre si pela razão humana. Tanto quanto possa interessar à lógica
humana, um exclui o outro. Todavia, a aceitação de um deles com a exclusão do outro é
condenada como racionalismo. A norma da verdade não é ditada pela razão humana, e
sim pela infalível Palavra de Deus. A Palavra contém muitos paradoxos. O exemplo
clássico é o da soberania divina e a responsabilidade humana. As duas doutrinas que
estamos focalizando agora, também constituem um chocante paradoxo. Destruir um
paradoxo bíblico pela rejeição de um dos seus elementos, é colocar a lógica humana
acima da Palavra divina. Submeter a lógica humana ao logos divino faz parte da fé
singela como a das crianças.

É digno de nota que, na história da igreja cristã, os teólogos que têm insistido mais na
verdade da rejeição divina, são os que têm defendido também, e da maneira mais
enfática, o universal e sincero oferecimento do Evangelho. Seguem alguns exemplos.

É do conhecimento geral que João Calvino ensinava a doutrina da reprovação divina. Às


vezes ele assumia até a posição supralapsária, assim chamada. Quer dizer, defendia a
idéia de que o decreto da predestinação precedeu logicamente os decretos da criação e
da queda. No entanto, ao comentar Ezequiel 18:23, passagem paralela a Ezequiel 33:11,
disse ele: "Não há nada que Deus deseja mais ardentemente do que, que aqueles que
estejam perecendo e correndo para a destruição retomem o caminho da segurança". E
continuou? "Se alguém objetar - bem, neste caso não há nenhuma eleição de Deus pela
qual Ele tenha predestinado um número fixo para a salvação - a resposta está à mão: o
profeta não fala aqui do secreto conselho de Deus, mas somente evoca aos homens em
desgraça o seu desespero, para que apreendam a esperança de perdão, arrependam-se
e abracem a salvação oferecida. Se alguém mais contestar - isso é fazer Deus agir com
duplicidade - a resposta está preparada, que Deus sempre quer a mesma coisa, embora
por diferentes meios e de modo inescrutável para nós. Portanto, embora a vontade de
Deus seja simples, grande variedade a envolve, no que diz respeito aos nossos sentidos.
Além disso, não é surpreendente que nossos olhos sejam cegados por luz intensa, de
modo que, certamente, não podemos julgar como é que Deus quer que todos se salvem
e, contudo, destinou todos os reprovados à destruição eterna, e quer que eles pereçam.
Enquanto olhamos através de um vidro, obscuramente, devemos satisfazer-nos com a
medida do nosso entendimento.

Os Cânones de Dort ensinam inconfundivelmente a doutrina da reprovação. Dizem eles:


"O que peculiarmente tende a ilustrar e a recomendar-nos a eterna e imerecida graça da
eleição é o expresso testemunho da Sagrada Escritura de que não todos, mas somente
alguns são eleitos, enquanto que outros são deixados de lado no decreto eterno. A estes
Deus, por seu soberano, justíssimo, irrepreensível e imutável beneplácito, decidiu deixar
caídos em sua miséria comum à qual se tinham lançado voluntariamente, e não lhes dar a
fé salvadora e a graça da conversão. Mas, permitindo em seu justo julgamento que sigam
os seus próprios caminhos, decidiu afinal, para a manifestação da sua justiça, condená-
los e puní-los para sempre, não somente por causa da incredulidade deles, mas também
por todos os seus outros pecados" (I, 15). Todavia, os Cânones insistem: "Todos quantos
são chamados pelo Evangelho, são chamados com sinceridade. Pois Deus declarou
ardorosa e verdadeiramente em Sua Palavra o que é aceitável a Ele, a saber, que
aqueles que são chamados, venham a Ele" (III, IV, 8).

Em apoio do ensinamento de Dort que transcrevemos acima, Herman Bavinck negou


tanto que a fé seja a causa da eleição como que o pecado seja a causa da rejeição, e
insistiu em que a eleição e a rejeição têm suas raízes no soberano beneplácito de Deus.
Para ser exato, ele ensinou que Deus decretou soberanamente, desde a eternidade, que
alguns homens escapariam da punição dos seus pecados, e outros não (Gereformeerde
Dogmatick, II, 399). Mas na mesma obra clássica, aquele calvinista equilibrado afirmou
também: "Embora através do chamado a salvação se torne a porção de apenas uns
poucos...ele [o chamamento], não obstante, é de grande valor e significação também para
aqueles que o rejeitam. Para todos, sem exceção, é prova do infinito amor de Deus, e
sela a declaração de que Ele não tem prazer na morte do pecador, mas que ele se volte e
viva" (IV, 7).

A Apresentação da Eleição aos Não Salvos

Não se pode simplesmente suprimir a pergunta sobre que lugar, se há algum, a doutrina
da eleição deve ocupar na pregação aos não salvos.

A Escritura e as confissões calvinistas dizem-nos que a verdade da eleição visa


primariamente aos crentes. O propósito ao qual ela serve em benefício deles foi
admiravelmente resumido nos Cânones de Dort. Dizem eles: "O senso e a certeza desta
eleição comunicam aos filhos de Deus matéria adicional para a sua humilhação diária
diante dEle, para adorarem a profundidade das Suas misericórdias, para se purificarem e
para oferecerem gratas retribuições de ardente amor a Ele, que manifestou primeiro tão
grande amor para com eles" (I, 13).

Uma velha ilustração torna bem claro o uso que não deve ser feito da doutrina da eleição
ao lidarmos com pessoas não salvas. Pode-se falar da casa da salvação. Seu alicerce é o
decreto divino da eleição, e sua entrada é Cristo. Ele disse: "Eu sou a porta" (João 10:9).
Quando os que pela graça de Deus se acham dentro convidam os de fora a entrar,
indicam para eles o alicerce ou a porta? A resposta é mais que evidente. Assim, quando o
carcereiro de Filipos perguntou a Paulo e Silas o que devia fazer para salvar-se, eles não
o aconselharam a que procurasse descobrir se estava na lista dos eleitos; mandaram-no
crer no Senhor Jesus Cristo (Atos 16:31).

Vamos concluir que os homens devem ser mantidos na ignorância da eleição enquanto
não receberem a Cristo pela fé? Naturalmente a resposta e esta pergunta deve ser
negativa. Sem dúvida, a Assembléia de Westminster estava bem fundamentada ao
advertir que "a doutrina deste alto mistério de predestinação deve ser tratada com
especial prudência e cuidado" (Confissão de Fé de Westminster, III, 8), mas isto não pode
significar que deva ser mantida oculta dos não salvos. Muito ao contrário, eles devem ser
advertidos que não torçam esta verdade e exortados a fazerem uso apropriado dela.

Especificamente, deve-se dizer a eles que a eleição dá lugar à salvação pela graça divina,
que os méritos humanos estão fora de cogitação, e que, portanto, há esperança para o
maioral dos pecadores; que o Deus da eleição convida com sinceridade, cordialidade e
mesmo com urgência, todo pecador para a salvação; que a predestinação longe de
excluir a responsabilidade humana, definidamente a inclui, de modo que todos os que
ouvem a proclamação do Evangelho estão, por dever sagrado, moralmente obrigados a
crer, e, não sendo Deus a causa da incredulidade como é a causa da fé, os que persistem
na incredulidade perecem por inteira culpa deles mesmos; que o decreto da eleição não é
secreto no sentido de que ninguém pode estar certo de pertencer aos eleitos, mas que, ao
contrário, visto que a fé em Cristo é o fruto e também a prova da eleição, a pessoa pode
ter tanta certeza de que está incluída no número dos eleitos como de que é crente em
Cristo Jesus; que a casa para a qual eles são convidados tem alicerce imutável e eterno,
de sorte que aquele que entra, ainda que o inferno todo ataque, não terá a mínima
possibilidade de perecer, mas, com absoluta certeza herdará a vida eterna.

Extraído de "Evangelização Teocêntrica", de R.B. Kuiper, Editora PES.


Páginas 23-33.

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