Minilivro Tecnicas de Golpes de Estado

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TR A DUÇ ÃO DE

ROBERTA SA RTOR I

Técnicas de golpes de Estado - OGF - 03.indd 3 04/08/2022 10:01


APRESENTAÇÃO

Publicado pela primeira vez em 1931, o clássico que o leitor tem em mãos foi proi-
bido por Mussolini na Itália fascista e incendiado em praça pública por ordem pes-
soal de Hitler na Alemanha nazista. Trótski, considerando-o fascista, atacou-o com
fúria na imprensa internacional, ao mesmo tempo em que nos círculos intelec-
tuais da União Soviética Técnicas de golpes de Estado era massacrado sob a acu-
sação de ser trotskista. Este livro foi proibido na Áustria, na Espanha, em Portugal,
na Polônia, na Hungria, na Romênia, na Iugoslávia, na Bulgária e na Grécia. Po-
deria haver melhor elogio a um livro intitulado Técnicas de golpes de Estado que
o fato de que foi proibido em todos os lugares onde houve golpes de Estado? En-
tretanto, apesar dessas proibições – ou por causa delas – poucos livros foram tão
lidos e tão discutidos; menos livros ainda tiveram tanta influência na história e
no rumo geral dos acontecimentos.
Esses fatos não devem sugerir, porém, que Técnicas de golpes de Estado seja
um livro de interesse meramente histórico, que lida com fatos enterrados no pas-
sado remoto. Trata-se, ao contrário, de um livro essencial para a compreensão do
mundo contemporâneo e a ação efetiva nele, que permanece tão relevante hoje
quanto era em 1931. Pois em todo o mundo está na moda a ideia de que a demo-
cracia está sob constante ameaça. Quase não passa um dia sem que, de acordo com
a imprensa, algum fato ameace a democracia ou mesmo marque o seu fim. Mas o
que realmente constitui ameaça à democracia e o que é mera cortina de fumaça?
É a essa pergunta, entre outras igualmente vitais, que este livro responde.
Se seu título sugere que Técnicas de golpes de Estado é uma espécie de ma-
nual para a tomada do poder, é porque de fato é. Entretanto, tendo recebido do
próprio autor uma cópia do livro, o político francês Jean Chiappe (1878-1940), que

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CUR ZIO MAL APARTE

Curzio Malaparte descreve como “criador da complexa máquina estatal francesa


para a defesa da República e das liberdades republicanas”, respondeu-lhe: “Você
ensina estadistas a prever os fenômenos revolucionários de nosso tempo, a enten-
dê-los, a impedir que os sediciosos tomem o poder pela força”. É que a descrição
meticulosa da doença é aqui o meio para a cura: o veneno é estudado a fim de fa-
bricar o antídoto. Malaparte pretende “mostrar como se conquista e se defende
um Estado moderno” para que este seja defendido, não tomado.
Assim, o objetivo professo deste livro é ensinar aos defensores da democra-
cia como impedir que seus inimigos a destruam. O que Malaparte deseja é mos-
trar aos partidários da liberdade e da democracia como defender-se “dos partidos
que colocam o problema do Estado no terreno revolucionário ... os partidos de ex-
trema-direita e extrema-esquerda ... ou seja, os fascistas e os comunistas.” O li-
vro é efetivamente, pois, um manual prático para uso de governos democráticos,
já que, como explica Malaparte, os meios usados para preservar a democracia são
idênticos aos meios usados para destruí-la.
Não poderia haver homem melhor para realizar essa tarefa do que Curzio
Malaparte. Em 1922, já acumulando experiências como soldado e diplomata, Ma-
laparte adere entusiasticamente ao movimento fascista e participa da marcha so-
bre Roma. A partir de 1924, dá início a uma frutífera carreira de jornalista e
escritor na qual não somente escreve artigos e livros de cunho fascista, mas diri-
ge o principal jornal do regime, o Stampa. Ali, graças a seu espírito independen-
te e livre, Malaparte começa a divergir cada vez mais da linha ortodoxa do
fascismo, até ser finalmente afastado da direção do jornal em 1931 por ordem do
próprio Mussolini, com quem até então mantinha relações pessoais. É justamen-
te em 1931 que Técnicas de golpes de Estado é publicado pela primeira vez, não
na Itália, mas na França, país onde o agora ex-fascista se exilara.

Assim, Malaparte não é um cientista ou filósofo tentando compreender os


fatos desde fora, mas um personagem que participou diretamente dos aconteci-
mentos desde o centro, vendo-os com os próprios olhos. Disso decorre o fato inu-
sitado, mas delicioso, de que um livro desta natureza e com este tema seja escrito
em primeira pessoa por um protagonista que se coloca como testemunha dos fa-
tos narrados. Como explica o próprio Malaparte em Memoriale (1946):

Meu livro Técnicas de golpes de Estado não é um ensaio histórico, nem um


estudo político e social ... Trata-se de um livro de história romanceada, no

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TÉCNIC A S DE GOLPES DE ESTADO

qual os fatos fundamentais são verdadeiros e exatos, mas as razões da


experiência pessoal estão continuamente entrelaçadas com razões tira-
das da imaginação e da experiência de outros. ... Nos capítulos dedicados
aos golpes de Estado modernos, como o de Trótski em 1928, em Moscou;
o de Mussolini, em outubro de 1922; e o que Hitler se preparava para rea-
lizar na Alemanha [o livro surgiu em 1931, enquanto Hitler ascendeu ao
poder em 1933], o personagem chamado “eu” aparece continuamente em
cena, pegando o leitor pela mão e guiando-o em meio ao turbilhão dos
acontecimentos, introduzindo-o nos segredos da máquina revolucioná-
ria, fazendo-o observar de perto, praticamente com os próprios olhos, o
mecanismo interno do golpe de Estado. Enquanto o procedimento utili-
zado nos ensaios históricos e políticos é o de um olhar externo, ou seja,
do exame objetivo dos fatos, para o interno, ou seja, para um julgamento
subjetivo dos próprios fatos, o procedimento do gênero literário que eu
segui na Technique du coup d’État foi ir de dentro para fora, ou seja, uma
visão subjetiva dos fatos para um julgamento objetivo.

As conclusões desta investigação demolem inúmeras preconcepções contem-


porâneas sobre as condições propícias a um golpe de Estado e os fatos que cons-
tituem “ameaças à democracia”. De acordo com Malaparte, por exemplo, o
elemento essencial de um golpe de Estado não é a ideologia, mas a técnica. Pois,
explica ele, “o problema da conquista e da defesa do Estado não é uma questão
política, e sim técnica. ... As circunstâncias favoráveis a um golpe de Estado não
são necessariamente de natureza política e social e não dependem das condições
gerais do país.” Mais importante para realizar um golpe de Estado do que a pos-
se de meios políticos ou a existência de certas condições gerais favoráveis no país
é, segundo Malaparte, o controle dos centros do poder tecnológico do Estado, so-
bretudo os meios de informação. Assim, é quem controla esses meios que tem o
poder real de realizar um golpe de Estado.
Depois de ler este clássico indispensável para a compreensão do mundo em
que vivemos e a defesa efetiva da liberdade, o leitor será capaz de julgar por con-
ta própria o que constitui e o que não constitui uma “ameaça à democracia”, bem
como que pessoas ou grupos possuem os meios reais de acabar com a democra-
cia dando um golpe de Estado.
Eduardo Lev y
Escritor e tradutor

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PREFÁCIO

PORQUE DEFENDER
A LIBERDADE SEMPRE COMPENSA

Eu odeio este meu livro. Eu o odeio de todo coração. Ele me deu fama, aquela po-
bre coisa que é a fama, mas também quantas misérias. Em razão deste livro co-
nheci a prisão e o exílio, a traição dos amigos, a má-fé dos adversários, o egoísmo
e a maldade dos homens. Deste livro, nasceu a lenda estúpida que faz de mim um
ser cínico e cruel, uma espécie de Maquiavel no papel de um cardeal de Retz:
quando sou apenas um escritor, um artista, um homem livre que sofre mais os
males de outros do que os seus próprios.
Este meu Técnicas de golpes de Estado, que apareceu em Paris em 1931
(da Bernard Grasset, na colecção Les écrits, editada por Jean Guéhénno), está
agora para ser impresso pela primeira vez na Itália, e reimpresso na França,
por ocasião do centenário do Manifesto comunista de 1848. É um livro, a esta
altura, famoso, “um clássico”, como dizem os críticos franceses, e está tão vivo
e válido hoje como estava vivo e era válido ontem. E quem me censuraria por
não ter incluído nesta primeira edição italiana, e na nova edição que, neste mo-
mento, apareceu na França, algum novo capítulo sobre a revolução republica-
na espanhola, a revolução de Franco (1892-1975), sobre a recente “defenestração”
de Praga (e sobre os golpes de Estado que estão sendo preparados aqui e ali na
Europa), mostraria não compreender que esses acontecimentos, posteriores ao
primeiro surgimento deste livro, nada trazem de novo à moderna técnica do
golpe de Estado. A técnica revolucionária é de fato ainda hoje, na Europa, aque-
la que estudei e descrevi nestas páginas. Algum progresso, no entanto, apare-
ce na técnica moderna de defesa do Estado. Parece que todos os homens de
governo (se é que leem livros) leram estas minhas páginas e souberam tirar
proveito dos ensinamentos que elas contêm. Teremos, assim, que atribuir a

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este meu livro o mérito por tal progresso? Ou melhor, pela lição dos aconteci-
mentos dos últimos anos?
O célebre senhor Jean Chiappe (1878-1940), criador da complexa máquina
estatal francesa para a defesa da República e das liberdades republicanas, a quem
enviei em homenagem, em 1931, uma cópia do Técnicas de golpes de Estado com
a dedicatória “A Monsieur Jean Chiappe, technicien du coup d’arrêt” [“Ao se-
nhor Jean Chiappe, especialista em impedir golpes”], aproveitou a ocasião para
me escrever que meu livro era tão perigoso nas mãos dos inimigos da liberdade,
tanto à direita como à esquerda, quanto era precioso nas mãos de estadistas, aos
quais cabia a responsabilidade de defender as liberdades democráticas. Ele acres-
centou em sua carta: “Vous apprenez aux hommes d’État à prévoir les phénomè-
nes révolutionnaires de notre temps, à les comprendre, à empècher les séditieux
de s’emparer du pouvoir par la violence” [“Você ensina estadistas a prever os fe-
nômenos revolucionários de nosso tempo, a entendê-los, a impedir que os sedi-
ciosos tomem o poder pela força”].
É provável que os defensores do Estado tenham tirado muito mais proveito
da lição dos acontecimentos do que da leitura de meu livro. Mas não seria um mé-
rito pouco significativo para estas páginas, mesmo que elas apenas tenham ensi-
nado aos defensores da liberdade como interpretar os acontecimentos e qual a
lição que se deve colher deles.
Proibida na Itália por Mussolini, a obra Técnicas de golpes de Estado é hoje
uma novidade para o leitor italiano, à qual a situação internacional e a interna de
nosso país infelizmente acrescentam um interesse muito atual. Penso que não
será inútil, a esta altura, alertar o leitor italiano de que este meu livro não só es-
tava, naquele momento, proibido apenas na Itália, mas também na Alemanha,
Áustria, Espanha, em Portugal, na Polônia, Hungria, Romênia, Iugoslávia, Bulgá-
ria, Grécia, em todos esses Estados, isto é, onde, fosse pela vontade de um dita-
dor, fosse pela corrupção das instituições democráticas, as liberdades públicas e
privadas encontravam-se sufocadas ou suprimidas.
Incomum e arriscado, o destino deste meu livro! Proibido pelos governos to-
talitários, que viam no Técnicas de golpes de Estado uma espécie de “manual
do revolucionário perfeito”; indexado por governos liberais e democráticos, para
os quais ele nada mais era do que um “manual da arte de tomar o poder com vio-
lência”, e, ao mesmo tempo, um “manual da arte de defender o Estado”; acusado
de fascismo pelos trotskistas, e pelo próprio Trótski, e de trotskismo por certos
comunistas, que não suportam ver o nome de Trótski misturado com o de Lênin

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e, mais importante, com o nome de Stalin: não é, porém, menos verdadeiro que
raramente um livro suscitou tantas discussões, tantas paixões contrárias. Raras
vezes um livro serviu tão bem, e de forma tão gratuita, ao bem e ao mal. A esse
respeito, permita-me recordar um caso muito singular, sobre o qual os jornais da
época fizeram um grande barulho. Quando o príncipe Starhemberg (1899-1956)
foi preso em seu castelo em Tiralo por ordem do chanceler austríaco Dolfuss
(1892-1934), sob a acusação de conspiração contra o Estado, foi encontrado em
sua casa, horresco referens*, um exemplar de meu livro. O chanceler Dolfuss
aproveitou esse pretexto para proibir o Técnicas de golpes de Estado na Áustria.
Mas no dia em que Dolfuss foi assassinado pelos nazistas, os jornais de Viena
anunciaram que uma cópia de meu livro havia sido achada sobre sua escrivani-
nha. Certamente uma cópia intacta. Pois se Dolfuss tivesse lido meu livro e sou-
besse como tirar proveito dele, é provável que ele não tivesse encontrado esse fim.
Escrevi o Técnicas de golpes de Estado nos últimos meses de 1930, em Tu-
rim, quando ainda era diretor do Stampa. O original foi levado a Paris, ao editor
Bernard Grasset, por Daniel Halévy, que veio buscá-lo em Turim – eu não tinha
coragem para cruzar a fronteira carregando aquelas páginas comigo. Em março
de 1931, quando o livro estava prestes a sair, fui à França, a conselho de Bernard
Grasset e Halévy, para me proteger das possíveis reações de Mussolini.
Como Mussolini reagiu ao meu Técnicas de golpes de Estado? Ele gostou
do livro, mas não o engoliu. Em uma dessas contradições inerentes a seu caráter,
ele proibiu a edição italiana, mas permitiu que os jornais falassem amplamente
sobre ela. Um belo dia, sem mais nem menos, a imprensa italiana recebeu ordens
para não falar mais do meu livro, nem para o bem nem para o mal. O que acon-
teceu nesse meio-tempo?
Publicado na Alemanha em 1932, ou seja, muito antes da chegada de Hitler
ao poder, o Técnicas de golpes de Estado (edição alemã, Des Staatsstreichs, Tal
Verlag, Leipzig e Viena, 1932), que é o primeiro livro a aparecer na Europa con-
tra Hitler, trouxe uma importante contribuição à propaganda antinazista. Duran-
te as eleições políticas alemãs do outono de 1932, os muros de todas as cidades e
de todos os vilarejos da Alemanha apareceram cobertos com grandes cartazes da
Frente Democrática Antinazista, nos quais, sob o título “Como o escritor italia-
no Curzio Malaparte julga Hitler e o nazismo”, as frases mais insolentes do capí-
tulo sobre Hitler foram impressas em letras garrafais. Cópias desses cartazes me

* “Tremo ao contá-lo.” (N. da T.)

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foram enviadas, como prova de meu crime, pelo chefe do Gabinete de Imprensa
do Chefe do Governo, Landò Ferretti (1895-1977), acompanhadas destas simples
palavras: “Olha o que fizeste!”. Algum tempo depois, na cela número 471 do 4º
Braço do Regina Coeli, tomei conhecimento do que havia feito.
Nunca conheci Hitler, jamais me aproximei dele. Mas eu o discerni, ou me-
lhor, eu o “adivinhei”. O retrato de Hitler, desenhado por mim como uma mente
maligna e com uma mão muito severa, revelou Hitler aos próprios alemães, en-
quanto eram escritos o Frankfurter Zeitung* e o Berliner Tagesblatt**. Discus-
sões apaixonadas evocaram minha profecia, que se concretizou em janeiro de
1933, de que Hitler não tomaria o poder por um golpe de Estado, mas por um
compromisso parlamentar; e minha outra profecia, que se concretizou pouco de-
pois, em junho de 1934, de que Hitler, com violência implacável, exterminaria a
ala extrema de seu próprio partido.
Não surpreende, portanto, que Hitler, logo que chegou ao poder, apressou-
-se em mandar condenar meu livro, por decreto do Gauleiter da Saxônia***, a ser
queimado na praça pública de Leipzig, pela mão do carrasco, segundo o rito na-
zista. O meu Técnicas de golpes de Estado foi lançado ao fogo na mesma pira em
que tantos livros foram reduzidos a cinzas, condenados por motivos políticos ou
raciais. Não contente em queimar meu livro, Hitler pediu minha cabeça a Mus-
solini e a conseguiu.
A perplexidade, na Itália e fora da Itália, foi enorme. Era a primeira vez que
um escritor italiano ia preso não por “conspiração”, mas por sua obra literária. Para
o Times e para o Manchester Guardian, que tomaram minha defesa, julgando meu
caso pessoal como um indicador muito sério da real situação da literatura na Itália,
Mussolini fez o Popolo d’Italia e o Tevere de 6 de outubro de 1933 responderem
que minha prisão “não passava de uma medida da administração ordinária”.
Fui, então, preso, trancado em uma cela em Regina Coeli e condenado “a cin-
co anos de reclusão em Lipari por ‘manifestações antifascistas no exterior’” (decla-
ração oficial da Agência Stefani de 11 de outubro de 1933). As provas contra mim

* Jornal de língua alemã de circulação em âmbito nacional entre 1856 e 1943. Durante o Ter-
ceiro Reich, foi considerada a única publicação não controlada por Joseph Goebbels e pelo
Ministério da Propaganda. (N. da T.)
** Jornal de língua alemã que circulou em Berlim de 1872 a 1939. (N. da T.)
*** O Gau Saxony foi uma divisão administrativa da Alemanha nazista no estado alemão da
Saxônia. O Gauleiter (era a denominação alemã para um líder provincial), no caso do Tercei-
ro Reich, era uma espécie de prefeito virtual, cujo papel era denunciar problemas e sucessos
das práticas ali aplicadas. (N. da T.)

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TÉCNIC A S DE GOLPES DE ESTADO

eram: uma cópia do Técnicas de golpes de Estado, na qual o próprio Mussolini


havia marcado as sentenças incriminatórias com um lápis vermelho; os cartazes
da Frente Democrática Antinazista alemã; uma carta que muitos meses antes eu
escrevera a um amigo já falecido, na qual, em nome de todos os escritores italia-
nos, eu defendia a liberdade da arte e da literatura e expressava um severo julga-
mento sobre a atitude de Balbo (1896-1940) – carta que fui levado a escrever na
sequência de um apelo, enviado a mim, em Paris, por Elio Vittorini, para retornar
à Itália a fim de assumir publicamente a defesa da liberdade literária e da dignida-
de dos escritores italianos, marcadas por insultos e ameaças da imprensa fascista;
e, por fim, um artigo, abertamente hostil a Mussolini e a Hitler apareceu nas Nou-
velles Littéraires de março de 1933, com o título: “Immortalità du Guichardin”.
Perante as calúnias e a má-fé de alguns, que se tornaram hoje, em total des-
caramento, os mais puros heróis da liberdade, é bom que se digam certas coisas,
e eu as digo. E como alguns cavalheiros espalharam o boato de que, após o exí-
lio, eu voltaria às boas graças de Mussolini, convém que, finalmente, sejam tor-
nados públicos, de uma vez por todas, alguns fatos que só meus amigos conhecem,
fatos esses que até o momento tenho desprezado, os quais não tenho usado não
por orgulho, mas por honesta indiferença pela calúnia.
Após três anos de exílio, minha sentença foi comutada para dois anos de vi-
gilância especial. Libertado em 1938, desde então sofri todas as perseguições po-
liciais excessivamente mesquinhas e superficiais, bem conhecidas daqueles que
foram “libertados” da prisão ou do exílio. Devido a seu complexo de inferiorida-
de em relação a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, havia ofendido,
Mussolini nunca me perdoou por me mandar para a cadeia. (De minha parte, ago-
ra que ele está morto, eu o perdoei. Tenho muitas e boas razões para ser cristão.)
A primeira atitude dele, portanto, foi me proibir não só de residir em Prato, onde
tinha minha família, como em Forte dei Marmi, isto é, em minha casa, e até mes-
mo de passar lá algumas horas.
Cabia a mim, para qualquer coisa, pedir autorização especial à polícia. Quan-
do minha pobre e querida Eugenia Baldi, que havia sido uma mãe para mim, mor-
reu, não cheguei a tempo de vê-la partir. Quando cheguei a Prato, após finalmente
conseguir permissão do quartel-general da polícia, ela já estava morta fazia dois
dias. Ele, dessa forma, não só se recusou a me dar meu passaporte, para me im-
pedir de voltar a Paris, onde meus amigos franceses me aconselhavam a me refu-
giar, como também me proibiu de ir para as regiões fronteiriças: eu não poderia
ultrapassar Gênova, Turim, Milão nem Verona.

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Em 1936, ou seja, dois anos antes das leis raciais, Mussolini ordenou uma
investigação para determinar se eu era judeu, com a esperança de talvez obter
mais um argumento que justificasse, diante de sua consciência, seu comporta-
mento mesquinho e injusto para comigo: tal era o grau de degradação de seu com-
plexo de inferioridade. Essa investigação, que ele solicitou com suas repetidas
intervenções pessoais com o chefe de polícia (possuo os documentos, incluindo a
transcrição de seu próprio punho de um fonograma dele para o chefe de polícia
que dizia: “Mas, afinal, ele é ou não é judeu?”), estabeleceu de modo irrefutável
que nem meu pai nem minha mãe, nem meus avós, nem meus bisavós foram, de
qualquer forma, responsáveis por meu Técnicas de golpes de Estado. Apesar dis-
so, ele ordenou uma nova investigação em 1938, por ocasião das leis raciais, para
o grande espanto de Dino Alfieri (1886-1966), então Ministro da Cultura Popu-
lar, a quem ele encarregara daquela inquisição sem fundamento e ridícula. Infe-
lizmente, eu nem sequer era judeu!
Não bastava para ele que eu fosse estritamente supervisionado por ordem
sua, toda vez que algum líder nazista ia a Roma, Mussolini mandava me prender
“por medidas de segurança pública”. Eu era perigoso e não sabia! Assim, tanto
para a visita de Hitler, em maio de 1938, quanto para as de Goebbels, Himmler
(1900-1945) e Goering (1893-1946), comecei a passar longos dias na prisão, onde,
a cada vez, eu encontrava meus antigos companheiros de Regina Coeli, quase to-
dos velhos republicanos ou muito jovens comunistas de Testaccio e Trastevere.
Foi por essa razão que, a conselho de Galeazzo Ciano (1903-1944), eu me estabe-
leci em Capri, longe de Roma, e longe das regiões que o trem de Brennero atra-
vessa para descer ao Tibre. Mas nem em Capri eu ficava em paz: o comissário do
P. S., Morini, e depois seu sucessor, Fortunato, receberam ordens para me moni-
torar e realizar buscas frequentes em minha casa.
A afetuosa amizade de Galeazzo Ciano (que tantos escritores, tantos artis-
tas, tantos judeus, tantos opositores políticos defenderam contra o próprio Mus-
solini) nunca conseguiu impedir que eu fosse tão mesquinhamente perseguido.
Sua amizade, no entanto, me foi de grande ajuda: visto que muitos, que a princí-
pio fingiam não me ver, ou não me reconhecer (todos os heróis da liberdade, hoje),
sabendo que Galeazzo Ciano era meu amigo, cumprimentavam-me e sorriam para
mim. E ele foi de grande ajuda para meus próprios amigos: os quais muitos, ju-
deus e não judeus, que agora me censuram por essa amizade, como se houvesse
algo desonroso nesse sentimento, totalmente pessoal, recorreram a mim para co-
mover Galeazzo Ciano para defendê-los, protegê-los, salvá-los.

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TÉCNIC A S DE GOLPES DE ESTADO

Em 1939, Aldo Borelli (1890-1965) propôs que eu fosse para a Etiópia como
correspondente especial do Corriere della Sera. Após longas negociações entre o
Ministério da Cultura Popular, o Ministério do Interior e Aldo Borelli, diretor do
Corriere della Sera, que, apoiado por Galeazzo Ciano, não só não me abandonou
como fez tudo o que pôde para tentar mitigar as perseguições a que fui exposto,
finalmente obtive permissão para ir para a Etiópia. Mussolini, porém, deu ordens
para que eu fosse acompanhado por um policial, o doutor Conte, pessoa, feliz-
mente para mim, séria, honesta e, acrescento, de bom coração, que se colocou a
meu lado e não se afastou um palmo de mim durante toda aquela longa e cansa-
tiva viagem de mais de 3 mil quilômetros pela Etiópia.
Mussolini, sem dúvida, temia que eu desembarcasse escondido em Port Said
ou em Suez, ou que eu chegasse à França via Djibuti. Rumo à Port Said, na ida,
e no rumo à Suez, na volta, fui mantido trancado em uma cabine e vigiado até
que, ao sair do Canal de Suez, já não estávamos mais em alto-mar. Tenho os re-
latórios que o doutor Conte enviava regularmente a Mussolini para repetir-lhe mi-
nhas palavras mais inocentes e informá-lo das precauções que julgou conveniente
tomar para impedir minha fuga.
Durante essa viagem, aconteceu-me um caso muito singular. Em Gondar,
eu havia decidido chegar a Adis Abeba através do Goggiam (uma viagem de cer-
ca de mil quilômetros no lombo de uma mula), mas, embora a guerra na Etiópia
já tivesse terminado havia quatro anos, a revolta em Goggiam grassava ferozmen-
te, e a minha viagem, julgada insana, foi-me proibida pelo governador militar de
Gondar. Ao saber, no entanto, que o 9º Batalhão Eritreu, comandado pelo capi-
tão Renzulli, um bravo soldado da Puglia, teria tentado, desde as margens do lago
Tana, penetrar no Goggiam para abastecer aquelas nossas guarnições, isoladas e
sitiadas durante muitos meses, e, para chegar a Adis Abeba por Debra Marcos,
consegui me juntar a esse batalhão. Fui, então, para o lago Tana e parti com o 9º
Batalhão da Eritreia, sempre com o doutor Conte muito próximo a mim.
No primeiro dia, tudo correu bem, mas, por volta do pôr do sol, nossa colu-
na foi atacada por uma horda de vários milhares de rebeldes etíopes. Eu estava
desarmado e não podia me defender. Assim, pedi ao agente de polícia, de quem
eu era praticamente prisioneiro, permissão para pegar o fuzil de um ascaro*, mor-
to a poucos passos de mim. O doutor Conte, depois de muitas objeções,

* A palavra “ascaro” (askari) refere-se a soldados naturais da África Oriental e do Oriente Mé-
dio que se alistaram nas antigas tropas coloniais italianas. (N. da T.)

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CUR ZIO MAL APARTE

concedeu-me essa permissão, e desse modo, tendo apanhado a espingarda do ca-


dáver, pude defender-me dos agressores, ao lado de meu anjo da guarda, que dis-
parava contra os rebeldes sem sequer apontar, tão preocupado estava em não me
perder de vista por um só instante. Por nossa conduta naquele confronto sangren-
to, o doutor Conte e eu fomos condecorados com a cruz de guerra em campo.
Durante aquela minha “Volta à Etiópia em 80 dias”, viajei, portanto, como
Phileas Fogg, acompanhado por um policial, a quem provavelmente devo minha
vida. Pois se o doutor Conte, em vez de me deixar pegar o fuzil de um morto, ti-
vesse me algemado naquele momento perigoso, sem dúvida eu teria pago muito
caro pela imprudência de ter escrito Técnicas de golpes de Estado.
A fama daquele enviado especial do Corriere della Sera, que viajou pela Etió-
pia praticamente preso, levado pelo braço de um policial, precedido por telegra-
mas codificados que recomendavam às autoridades que garantissem que ele não
tentasse escapar, muito bem vigiado, dia e noite, pela Polícia Colonial, espalhou-
-se pelo Império, criando para mim uma situação intolerável e despertando a in-
dignação de todas as pessoas decentes, dentre as quais lembro-me, com afetuosa
gratidão, do governador Daodiace (1882-1952). Quanto a isto não há dúvida: de-
pois de meu exílio, ao contrário de muitos heróis da liberdade, voltei verdadeira-
mente às boas graças de Mussolini.
Tenho, é claro, como provar a verdade de tudo o que venho dizendo até ago-
ra. Possuo a documentação oficial de todas as perseguições mesquinhas a que fui
exposto de 1933 a 1943 por ordem pessoal de Mussolini. Ela me foi entregue no
formato de cópia fotográfica pelo Comando Supremo Aliado na Itália, com o in-
tuito de me permitir, se necessário, provar, de maneira irrefutável, a exatidão de
minhas declarações.
Em 1940, poucos dias antes da declaração de guerra, fui chamado às armas
e enviado ao front como capitão do 5o Alpini*. Imediatamente protestei no Mi-
nistério da Guerra. Em minha condição de condenado político, por força do Esta-
tuto do PNF**, que tinha força de lei, eu havia sido “banido da vida civil”. Em meu
protesto, pedi que, tendo sido banido da vida civil, também fosse logicamente ba-
nido da vida militar.

* Os Alpini eram tropas de montanha do exército italiano, um corpo de infantaria especiali-


zado na guerra em terreno montanhoso. (N. da T.)
** Partido Nacional Fascista. (N. da T.)

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TÉCNIC A S DE GOLPES DE ESTADO

Em vez de me colocar em licença, como eu esperava, ou de me mandar de


volta a Lipari, como muitos esperavam, Mussolini, talvez com a intenção de obri-
gar-me a me comprometer, transferiu-me para o “núcleo” dos correspondentes de
guerra, que era empregado do Gabinete P. do Estado-Maior, composto por escri-
tores e jornalistas, que usavam o uniforme do exército, cada um com sua paten-
te, e eram submetidos à mesma disciplina militar a que estavam sujeitos os oficiais
das unidades de combate.
Fui, portanto, enviado para o front como capitão correspondente de guerra
do Corriere della Sera, juntamente com os numerosos correspondentes dos ou-
tros jornais, muitos dos quais agora militam nos vários partidos políticos sem
que ninguém sequer o imagine, e é correto recriminá-los por terem sido corres-
pondentes de guerra. Para não se comprometerem, alguns, e sei que hoje são co-
munistas lá na essência, não fizeram nada além de parafrasear em seus artigos
os comunicados de imprensa dos gabinetes de propaganda alemão e italiano,
quando não aplaudiam as vitórias de Hitler. Quanto a mim, comprometi-me tan-
to que no outono de 1941 fui expulso da frente russa pelas autoridades alemãs
(que não queriam saber de mim, e posso provar), apesar dos protestos do mare-
chal Messe (1883-1968), comandante do CSIR*, por minha correspondência cla-
ramente desfavorável à Alemanha, que suscitou espanto e clamor imensos na
Itália, como todos sabem.
Acompanhado até a fronteira italiana, fui condenado a quatro meses de pri-
são domiciliar por ordem de Mussolini, que, apesar disso, permitiu que meus ar-
tigos fossem publicados. Desnecessário dizer que tenho provas do que estou
afirmando. Quatro meses depois, fui enviado de volta ao front na Finlândia com
o exército finlandês. Quando Mussolini caiu, em julho de 1943, voltei à Itália,
como muitos outros correspondentes de guerra do front norte. Minha longa tem-
porada de tédio e tribulações terminara. Como se sabe, desde o desembarque alia-
do em Salerno, em 1943, até 1945, fiz parte como voluntário do Corpo de
Libertação Italiano; em seguida, fui nomeado oficial de ligação no Comando Su-
premo Aliado, participei dos combates de Cassino, da libertação de Roma, da luta

* Corpo di Spedizione Italiano in Russia. O c sir foi criado pelo ditador italiano Benito Musso-
lini para mostrar solidariedade com a Alemanha nazista depois que o ditador alemão Adolf
Hitler lançou a Operação Barbarossa e atacou a União Soviética. Tratava-se de uma grande
unidade do Regio Esercito (Exército Italiano), cujo objetivo era ter uma unidade móvel para lu-
tar em frentes onde a mobilidade era essencial. O c sir passou a integrar o recém-formado
Exército Italiano na Rússia. (N. da T.)

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na Linha Gótica. Em agosto de 1944, como oficial de ligação entre as tropas ame-
ricanas e canadenses e a divisão de guerrilha “Possente”, durante a sangrenta luta
pela libertação de Florença (o comandante comunista da Divisão “Possente” mor-
reu em Oltrarno a poucos passos de mim), fui processado, por minha conduta,
pelo Comando Aliado Supremo.
Na Inglaterra, na América, na Polônia, na Espanha, na Espanha republi-
cana de 1931, meu Técnicas de golpes de Estado foi recebido com apoio geral.
Mesmo a imprensa liberal e democrática anglo-saxônica, do New York Times
ao New York Herald, do Times e do Manchester Guardian ao New Statesman
and Nation, não teve senão elogios para “os propósitos morais” do meu livro
(traduzido para o inglês por Sylvia Sprigge), embora acolhesse com reserva mi-
nha tese de que “assim como todos os meios são bons para suprimir a liberda-
de, todos os meios são bons para defendê-la”. Quando, em 1933, fui a Londres,
minha recepção foi feita com aquela simpatia que os ingleses concedem aos ho-
mens livres.
Na França, de Charles Maurras (1868-1952) e Léon Daudet (1867-1942) a Ja-
cques Bainville (1879-1936), de Pierre Descaves (1924-2014) a Émile Buré (1876-
1952), do Action Française ao Humanité, do République ao Populaire de Léon
Blum (1872-1950), do católico Croix ao Figaro, do Echo de Paris ao La gauche
etc., etc., o coro de elogios não foi perturbado por nenhuma voz desafinada.
Enquanto a extrema-direita usava meu livro como pretexto para denunciar
os perigos da situação na Alemanha e na Espanha (Jacques Bainville, Action Fran-
çaise, de 31 de julho de 1931) a fim de chamar a atenção dos defensores da liber-
dade para a fraqueza do Estado liberal e democrático (Henri de Kérillis (1889-1958),
Echo de Paris, de 5 de agosto de 1931), ou mesmo para criticá-lo, muito estranha-
mente, com Paul Valéry (1871-1945), “nigaud de bureau aux airs profonds, hydro-
céphale pour cimetière marin” [um burocrata incompetente com ar de sagacidade,
um hidrocéfalo para um cemitério marinho] (Léon Daudet, Action Française, 12
de agosto de 1931), a extrema-esquerda usava-o para atacar Trótski.
O embaixador da URSS em Paris me enviou, por meio de meu editor, Ber-
nard Grasset, o convite do governo de Moscou para que eu fosse à Rússia, como
seu convidado, para uma estada de seis meses, a fim de estudar de perto a vida
soviética. Um convite que eu educadamente recusei por motivos óbvios. Os exi-
lados alemães (foram os primeiros), como Simon (1880-1941), diretor do Frankfur-
ter Zeitung, e Teodoro Wolff (1868-1943), trouxeram-me saudações dos alemães
antinazistas a Paris. Ensaios e escritos sobre o Técnicas de golpes de Estado

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TÉCNIC A S DE GOLPES DE ESTADO

apareceram na Europa e na América. Gosto particularmente de recordar-me do


livro que o escritor alemão Hermann Rauschning (1887-1982), autor do famoso
Hitler mi ha detto, dedicou, com o título La rivoluzione del nihilismo, à discus-
são da tese fundamental de meu livro.
Nesse coro de elogios, uma única voz discordante: a de Leon Trótski, que
me atacou violentamente no discurso que fez em outubro de 1931, na rádio de
Copenhague. Após seu exílio no Cáucaso, Trótski foi expulso da Rússia e se
refugiou na ilha de Prinkip, no mar de Marinara, em frente de Constantino-
pla. No outono de 1931, ele decidiu se estabelecer em Paris. Mas, ao ter recu-
sada sua permissão de residência na França, ele escolheu o México como local
de seu exílio e, antes de deixar a Europa, aceitou o convite da rádio de Cope-
nhague, que lhe ofereceu a oportunidade de responder publicamente às acu-
sações de Stalin.
Foi a primeira vez, depois da Revolução de Outubro de 1917, que Trótski fa-
lou na Europa para a Europa: a expectativa por seu discurso anunciado era enor-
me. Lamentavelmente, ele falou apenas de Stalin e de mim. Eu fiquei, não menos
que Stalin, profundamente desapontado. Grande parte de seu discurso (cujo tex-
to foi publicado no La cloche, jornal trotskista de Paris) foi dedicada a meu Téc-
nicas de golpes de Estado: Trótsky cuspiu em Stalin e vomitou em mim. Naquela
mesma noite, eu lhe telegrafei o seguinte: “Pourquoi mêlez vous mon nom et mon
livre à vos histoires personalles avec Staline? Stop. Je n’ai rien à partager ni avec
vous ni avec Staline. Stop. Curzio Malaparte.” [“Por que está colocando meu
nome e meu livro no meio de suas questões pessoais com Stalin? Ponto. Não te-
nho nada a ver com você ou com Stalin. Ponto. Curzio Malaparte.”] Trótski me
respondeu imediatamente com este telegrama: “Je l’espère pour vous. Stop. Leon
Trótski.” [“Assim espero, para seu próprio bem. Ponto. Leon Trótski.”]
Mas, entre todas as vozes que saudaram o aparecimento deste meu livro, há
uma que me é cara: a de Jean-Richard Bloch (1884-1947). O leitor italiano talvez
não saiba quem é Jean-Richard Bloch. Ele é um dos heróis do comunismo fran-
cês. Tendo fugido durante a guerra em Moscou, dirigiu a propaganda em língua
francesa naquela rádio. Retornando a Paris após a libertação, fundou ali o jornal
Ce soir. Ao morrer, foram concedidas a ele honras do triunfo.
Embora comunista, Jean-Richard Bloch não era nem um sectário nem um
fanático: ele entendera o sentido de meu livro e a importância não apenas do
problema político, mas moral, que ele coloca aos defensores da liberdade. Des-
de que nos conhecemos em Paris, em 1931, ele sempre me deu mostras de sua

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fiel simpatia. Alguns comunistas talvez o repreendam por sua simpatia por
mim. Como, aliás, poderiam admitir que um comunista, cujos restos mortais
tiveram a honra de serem celebrados, que um herói da liberdade, do qual o Par-
tido Comunista francês garantiu a exclusividade “para todos os países, incluin-
do a Suécia e a Noruega”, poderia ter dado prova de retidão moral para com
um homem livre? (E digo homem livre porque era assim que o próprio Bloch
me considerava.)
Jean-Richard Bloch me escreveu em 20 de novembro de 1931 de sua residên-
cia em La Mérigote, perto de Poitiers:

Li com grande interesse o livro que você teve a gentileza de me enviar.


Se é verdade, como creio eu, que a tarefa preliminar que incumbe aos
intelectuais no início da contemporaneidade – a agonia dos tempos
modernos – é “nomear as coisas”, limpar a mente, expelir palavras
mortas, conceitos desgastados, formas ultrapassadas de pensar,
abrindo caminho para concepções de representações exatas de um
mundo inteiramente renovado, você cumpriu sua parte da tarefa co-
mum com maestria excepcional.
Ao dissociar ideias tão diferentes quanto programa revolucioná-
rio e tática insurrecional – ideologia e técnica – acertou em cheio.
Você torna possível para nós entender e compreender certos fatos
veementemente. Você contribui para nossa visão clara dos novos
tempos. Só um marxista poderia fazer isso. Somente, você diz, um
marxista pode ter sucesso em um golpe hoje. Ampliando sua ideia, eu
acrescentaria que só um marxista pode escrever um romance ou um
drama que “estampe” o mundo real, em vez de flutuar em torno dele
como uma roupa frouxa.
As reflexões em que você nos envolve são infinitas em número.
E todas do tipo mais substancial. Gosto também do tom livre e alegre
com que fala destas coisas, em que o desdém pelo homem é a arma
do amor ao homem. Se é preciso dizer, reconheço no som de sua voz
o que mais amo e aprecio na extrema inteligência italiana. São pou-
cos os povos por quem sinto uma afeição mais profunda do que a vo-
cês. Seu defeito é o verbalismo vazio, assim como a indulgência dos
franceses é um sentimentalismo insípido, e a dos alemães é uma sis-
temática falaciosa. Mas quando um italiano se atreve a ser incisivo,

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TÉCNIC A S DE GOLPES DE ESTADO

ele é o mais incisivo do mundo. Em nenhum outro lugar encontrei in-


teligências mais verdadeiras e autênticas do que em seu país, ainda
tão pouco conhecido e tão mal julgado. Isso significa que respiro em
seu livro uma atmosfera que me é familiar e benéfica: a atmosfera de
um homem livre. É singular escrever isso sobre uma obra, em que se
trata apenas dos meios de asfixiar a liberdade. Nunca se ensinou
mais independência sobre o assassinato da independência.
Devo me abster de entrar nos detalhes das reflexões que minha
leitura suscitou. Do contrário não seria uma carta, e sim um livro. Bas-
ta dizer que, entre milhares de outros pontos, compartilho de seus
sentimentos ásperos em relação a Hitler. Pode ser que o evento nos
desminta, você e eu, e nos ensine um dia que esse enfático austríaco,
ardiloso e covarde, escondia uma tática nova e eficaz.
Na história, os eventos não se repetem. Goethe estava certo ao
dizer que os eventos históricos são às vezes homólogos, mas nunca
análogos. Eu estava muito enganado, não sobre o valor próprio, mas
sobre o valor relativo de Mussolini, que conheci um pouco em 1914. No
entanto, estou propenso a compartilhar seu sentimento.
Surpreende-me, no entanto, ver você censurar Hitler, como sinais
da sua fraqueza, pela perseguição da liberdade de consciência, do
sentimento de dignidade pessoal, da cultura; e seus métodos poli-
ciais, sua prática de delação. Mussolini não fez o mesmo?

Mussolini fez o mesmo, caro Jean-Richard Bloch, comigo e com tantos outros
como eu, melhores do que eu. Talvez tivessem razão, talvez tenham razão todos
aqueles que, ainda hoje, nesta Europa livre de Hitler e Mussolini, desprezam e per-
seguem os homens livres, tentando sufocar o sentimento de dignidade pessoal, de
liberdade de consciência, de independência da arte e da literatura. Como sabemos
se intelectuais, escritores, artistas, homens livres não são uma raça perigosa, inútil
até, uma raça amaldiçoada? “Que sais-je?” [Que sei eu?], dizia Montaigne.
Mas por que se voltar com rancor para o passado, quando o presente certa-
mente não é melhor e o futuro nos ameaça? De todos os problemas e persegui-
ções que este livro me rendeu, talvez eu lembrasse deles com gratidão se estivesse
convencido de que estas minhas páginas contribuíram, ainda que pouco, para a
defesa da liberdade na Europa, não menos em perigo hoje do que esteve ontem,
do que estará amanhã.

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Não é verdade, como se queixava Jonathan Swift (1667-1745), que nada se
ganha defendendo a liberdade. Há sempre algo a ganhar: nem que seja essa cons-
ciência da própria escravidão, pela qual o homem livre se distingue dos outros. Já
que “o que é próprio do homem”, como escrevi em 1936, “não é viver livre em li-
berdade, mas livre na prisão”.
curzio m alaparte
Paris, maio de 1948

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