Minilivro Tecnicas de Golpes de Estado
Minilivro Tecnicas de Golpes de Estado
Minilivro Tecnicas de Golpes de Estado
ROBERTA SA RTOR I
Publicado pela primeira vez em 1931, o clássico que o leitor tem em mãos foi proi-
bido por Mussolini na Itália fascista e incendiado em praça pública por ordem pes-
soal de Hitler na Alemanha nazista. Trótski, considerando-o fascista, atacou-o com
fúria na imprensa internacional, ao mesmo tempo em que nos círculos intelec-
tuais da União Soviética Técnicas de golpes de Estado era massacrado sob a acu-
sação de ser trotskista. Este livro foi proibido na Áustria, na Espanha, em Portugal,
na Polônia, na Hungria, na Romênia, na Iugoslávia, na Bulgária e na Grécia. Po-
deria haver melhor elogio a um livro intitulado Técnicas de golpes de Estado que
o fato de que foi proibido em todos os lugares onde houve golpes de Estado? En-
tretanto, apesar dessas proibições – ou por causa delas – poucos livros foram tão
lidos e tão discutidos; menos livros ainda tiveram tanta influência na história e
no rumo geral dos acontecimentos.
Esses fatos não devem sugerir, porém, que Técnicas de golpes de Estado seja
um livro de interesse meramente histórico, que lida com fatos enterrados no pas-
sado remoto. Trata-se, ao contrário, de um livro essencial para a compreensão do
mundo contemporâneo e a ação efetiva nele, que permanece tão relevante hoje
quanto era em 1931. Pois em todo o mundo está na moda a ideia de que a demo-
cracia está sob constante ameaça. Quase não passa um dia sem que, de acordo com
a imprensa, algum fato ameace a democracia ou mesmo marque o seu fim. Mas o
que realmente constitui ameaça à democracia e o que é mera cortina de fumaça?
É a essa pergunta, entre outras igualmente vitais, que este livro responde.
Se seu título sugere que Técnicas de golpes de Estado é uma espécie de ma-
nual para a tomada do poder, é porque de fato é. Entretanto, tendo recebido do
próprio autor uma cópia do livro, o político francês Jean Chiappe (1878-1940), que
PORQUE DEFENDER
A LIBERDADE SEMPRE COMPENSA
Eu odeio este meu livro. Eu o odeio de todo coração. Ele me deu fama, aquela po-
bre coisa que é a fama, mas também quantas misérias. Em razão deste livro co-
nheci a prisão e o exílio, a traição dos amigos, a má-fé dos adversários, o egoísmo
e a maldade dos homens. Deste livro, nasceu a lenda estúpida que faz de mim um
ser cínico e cruel, uma espécie de Maquiavel no papel de um cardeal de Retz:
quando sou apenas um escritor, um artista, um homem livre que sofre mais os
males de outros do que os seus próprios.
Este meu Técnicas de golpes de Estado, que apareceu em Paris em 1931
(da Bernard Grasset, na colecção Les écrits, editada por Jean Guéhénno), está
agora para ser impresso pela primeira vez na Itália, e reimpresso na França,
por ocasião do centenário do Manifesto comunista de 1848. É um livro, a esta
altura, famoso, “um clássico”, como dizem os críticos franceses, e está tão vivo
e válido hoje como estava vivo e era válido ontem. E quem me censuraria por
não ter incluído nesta primeira edição italiana, e na nova edição que, neste mo-
mento, apareceu na França, algum novo capítulo sobre a revolução republica-
na espanhola, a revolução de Franco (1892-1975), sobre a recente “defenestração”
de Praga (e sobre os golpes de Estado que estão sendo preparados aqui e ali na
Europa), mostraria não compreender que esses acontecimentos, posteriores ao
primeiro surgimento deste livro, nada trazem de novo à moderna técnica do
golpe de Estado. A técnica revolucionária é de fato ainda hoje, na Europa, aque-
la que estudei e descrevi nestas páginas. Algum progresso, no entanto, apare-
ce na técnica moderna de defesa do Estado. Parece que todos os homens de
governo (se é que leem livros) leram estas minhas páginas e souberam tirar
proveito dos ensinamentos que elas contêm. Teremos, assim, que atribuir a
11
12
e, mais importante, com o nome de Stalin: não é, porém, menos verdadeiro que
raramente um livro suscitou tantas discussões, tantas paixões contrárias. Raras
vezes um livro serviu tão bem, e de forma tão gratuita, ao bem e ao mal. A esse
respeito, permita-me recordar um caso muito singular, sobre o qual os jornais da
época fizeram um grande barulho. Quando o príncipe Starhemberg (1899-1956)
foi preso em seu castelo em Tiralo por ordem do chanceler austríaco Dolfuss
(1892-1934), sob a acusação de conspiração contra o Estado, foi encontrado em
sua casa, horresco referens*, um exemplar de meu livro. O chanceler Dolfuss
aproveitou esse pretexto para proibir o Técnicas de golpes de Estado na Áustria.
Mas no dia em que Dolfuss foi assassinado pelos nazistas, os jornais de Viena
anunciaram que uma cópia de meu livro havia sido achada sobre sua escrivani-
nha. Certamente uma cópia intacta. Pois se Dolfuss tivesse lido meu livro e sou-
besse como tirar proveito dele, é provável que ele não tivesse encontrado esse fim.
Escrevi o Técnicas de golpes de Estado nos últimos meses de 1930, em Tu-
rim, quando ainda era diretor do Stampa. O original foi levado a Paris, ao editor
Bernard Grasset, por Daniel Halévy, que veio buscá-lo em Turim – eu não tinha
coragem para cruzar a fronteira carregando aquelas páginas comigo. Em março
de 1931, quando o livro estava prestes a sair, fui à França, a conselho de Bernard
Grasset e Halévy, para me proteger das possíveis reações de Mussolini.
Como Mussolini reagiu ao meu Técnicas de golpes de Estado? Ele gostou
do livro, mas não o engoliu. Em uma dessas contradições inerentes a seu caráter,
ele proibiu a edição italiana, mas permitiu que os jornais falassem amplamente
sobre ela. Um belo dia, sem mais nem menos, a imprensa italiana recebeu ordens
para não falar mais do meu livro, nem para o bem nem para o mal. O que acon-
teceu nesse meio-tempo?
Publicado na Alemanha em 1932, ou seja, muito antes da chegada de Hitler
ao poder, o Técnicas de golpes de Estado (edição alemã, Des Staatsstreichs, Tal
Verlag, Leipzig e Viena, 1932), que é o primeiro livro a aparecer na Europa con-
tra Hitler, trouxe uma importante contribuição à propaganda antinazista. Duran-
te as eleições políticas alemãs do outono de 1932, os muros de todas as cidades e
de todos os vilarejos da Alemanha apareceram cobertos com grandes cartazes da
Frente Democrática Antinazista, nos quais, sob o título “Como o escritor italia-
no Curzio Malaparte julga Hitler e o nazismo”, as frases mais insolentes do capí-
tulo sobre Hitler foram impressas em letras garrafais. Cópias desses cartazes me
13
* Jornal de língua alemã de circulação em âmbito nacional entre 1856 e 1943. Durante o Ter-
ceiro Reich, foi considerada a única publicação não controlada por Joseph Goebbels e pelo
Ministério da Propaganda. (N. da T.)
** Jornal de língua alemã que circulou em Berlim de 1872 a 1939. (N. da T.)
*** O Gau Saxony foi uma divisão administrativa da Alemanha nazista no estado alemão da
Saxônia. O Gauleiter (era a denominação alemã para um líder provincial), no caso do Tercei-
ro Reich, era uma espécie de prefeito virtual, cujo papel era denunciar problemas e sucessos
das práticas ali aplicadas. (N. da T.)
14
15
16
Em 1939, Aldo Borelli (1890-1965) propôs que eu fosse para a Etiópia como
correspondente especial do Corriere della Sera. Após longas negociações entre o
Ministério da Cultura Popular, o Ministério do Interior e Aldo Borelli, diretor do
Corriere della Sera, que, apoiado por Galeazzo Ciano, não só não me abandonou
como fez tudo o que pôde para tentar mitigar as perseguições a que fui exposto,
finalmente obtive permissão para ir para a Etiópia. Mussolini, porém, deu ordens
para que eu fosse acompanhado por um policial, o doutor Conte, pessoa, feliz-
mente para mim, séria, honesta e, acrescento, de bom coração, que se colocou a
meu lado e não se afastou um palmo de mim durante toda aquela longa e cansa-
tiva viagem de mais de 3 mil quilômetros pela Etiópia.
Mussolini, sem dúvida, temia que eu desembarcasse escondido em Port Said
ou em Suez, ou que eu chegasse à França via Djibuti. Rumo à Port Said, na ida,
e no rumo à Suez, na volta, fui mantido trancado em uma cabine e vigiado até
que, ao sair do Canal de Suez, já não estávamos mais em alto-mar. Tenho os re-
latórios que o doutor Conte enviava regularmente a Mussolini para repetir-lhe mi-
nhas palavras mais inocentes e informá-lo das precauções que julgou conveniente
tomar para impedir minha fuga.
Durante essa viagem, aconteceu-me um caso muito singular. Em Gondar,
eu havia decidido chegar a Adis Abeba através do Goggiam (uma viagem de cer-
ca de mil quilômetros no lombo de uma mula), mas, embora a guerra na Etiópia
já tivesse terminado havia quatro anos, a revolta em Goggiam grassava ferozmen-
te, e a minha viagem, julgada insana, foi-me proibida pelo governador militar de
Gondar. Ao saber, no entanto, que o 9º Batalhão Eritreu, comandado pelo capi-
tão Renzulli, um bravo soldado da Puglia, teria tentado, desde as margens do lago
Tana, penetrar no Goggiam para abastecer aquelas nossas guarnições, isoladas e
sitiadas durante muitos meses, e, para chegar a Adis Abeba por Debra Marcos,
consegui me juntar a esse batalhão. Fui, então, para o lago Tana e parti com o 9º
Batalhão da Eritreia, sempre com o doutor Conte muito próximo a mim.
No primeiro dia, tudo correu bem, mas, por volta do pôr do sol, nossa colu-
na foi atacada por uma horda de vários milhares de rebeldes etíopes. Eu estava
desarmado e não podia me defender. Assim, pedi ao agente de polícia, de quem
eu era praticamente prisioneiro, permissão para pegar o fuzil de um ascaro*, mor-
to a poucos passos de mim. O doutor Conte, depois de muitas objeções,
* A palavra “ascaro” (askari) refere-se a soldados naturais da África Oriental e do Oriente Mé-
dio que se alistaram nas antigas tropas coloniais italianas. (N. da T.)
17
18
* Corpo di Spedizione Italiano in Russia. O c sir foi criado pelo ditador italiano Benito Musso-
lini para mostrar solidariedade com a Alemanha nazista depois que o ditador alemão Adolf
Hitler lançou a Operação Barbarossa e atacou a União Soviética. Tratava-se de uma grande
unidade do Regio Esercito (Exército Italiano), cujo objetivo era ter uma unidade móvel para lu-
tar em frentes onde a mobilidade era essencial. O c sir passou a integrar o recém-formado
Exército Italiano na Rússia. (N. da T.)
19
20
21
22
Mussolini fez o mesmo, caro Jean-Richard Bloch, comigo e com tantos outros
como eu, melhores do que eu. Talvez tivessem razão, talvez tenham razão todos
aqueles que, ainda hoje, nesta Europa livre de Hitler e Mussolini, desprezam e per-
seguem os homens livres, tentando sufocar o sentimento de dignidade pessoal, de
liberdade de consciência, de independência da arte e da literatura. Como sabemos
se intelectuais, escritores, artistas, homens livres não são uma raça perigosa, inútil
até, uma raça amaldiçoada? “Que sais-je?” [Que sei eu?], dizia Montaigne.
Mas por que se voltar com rancor para o passado, quando o presente certa-
mente não é melhor e o futuro nos ameaça? De todos os problemas e persegui-
ções que este livro me rendeu, talvez eu lembrasse deles com gratidão se estivesse
convencido de que estas minhas páginas contribuíram, ainda que pouco, para a
defesa da liberdade na Europa, não menos em perigo hoje do que esteve ontem,
do que estará amanhã.
23
24