A Doutrina Da Providência No Período Moderno
A Doutrina Da Providência No Período Moderno
A Doutrina Da Providência No Período Moderno
Apesar das defesas dos teólogos reformados, o período moderno foi marcado por
objeções vigorosas a doutrina da providência; destas, uma das mais importantes foi a
crítica de que ela põe Deus como autor do pecado. Jonathan Edwards ofereceu uma
resposta a essa objeção, observando dois sentidos possíveis da expressão “autor do
pecado”: “Se a expressão "autor do pecado’ significa o pecador, o agente ou ator do
pecado, ou o realizador da iniquidade, seria repreensível e blasfemo afirmar que Deus é
o autor do pecado”. Mas há um segundo sentido: “Mas, se “autor do pecado” significa
aquele que permite, ou aquele que não impede o pecado; e, ao mesmo tempo, um
ordenador do estado de coisas, de maneira tal que, pelos mais sábios, santos e excelentes
fins e propósitos, o pecado, se este for permitido ou não impedido, certa e infalivelmente
se seguirá: [...] não nego que Deus seja o autor do pecado (embora não goste dessa
expressão e a rejeite, visto que seu uso habitual tenderia a insinuar outro sentido)”.
Edwards também se debruçou sobre o problema da providência e da liberdade. Ele definiu
a liberdade sob a perspectiva de autodeterminação, como “a faculdade e a oportunidade
de fazermos e nos portarmos como desejarmos, ou de acordo com nossa escolha”. Temos
essa liberdade não importa de que maneira a tenhamos obtido: “quer tenha sido causada
por algum motivo externo, ou viés interior habitual; por alguma volição interna anterior,
ou vindo à tona sem causa alguma; quer estivesse necessariamente conectada a algo que
a precede, ou não haja tal conexão”. Edwards defendeu a compatibilidade entre essa
noção da liberdade humana com o propósito ou vontade soberano e determinante de Deus.
Essa ideia traz implicações claras e importantes quanto ao problema do mal. “A moral da
história, obviamente, é que, por Deus não estar completamente no controle dos
acontecimentos do mundo, a ocorrência do genuíno mal não é incompatível com a
beneficência de Deus para com todas as suas criaturas”. Fundamentando-se numa
perspectiva evolucionéria, a teologia do processo enfatizava que o desenvolvimento de
seres mais complexos vinha acompanhado de maior possibilidade da ampliação do mal.
De fato, o estímulo divino à uma maior complexidade é necessário para evitar o mal da
trivialidade desnecessária”, a qual tenta “impedir a maximização do desfrute, que é o
único bem intrínseco”. Com esse estímulo, contudo, vem o maior risco de sofrimento e
mal. O problema, assim, remonta em última instancia a Deus:
Se Deus não tivesse atraído a esfera da finitude para fora do caos, trazendo-a
para um cosmo que inclui a vida, nenhuma coisa digna do termo “sofrimento”
jamais ocorreria. Se Deus não tivesse incitado o mundo a criação de seres com
a capacidade de autodeterminação consciente e racional, as formas
caracteristicamente humanas do mal em nosso planeta não ocorreriam. Logo,
a questão de se Deus deve ser responsabilizado pelo mal no mundo reduz-se a
questão de se os valores positivos desfrutados pelas formas superiores da
realidade valem o risco dos valores negativos, dos sofrimentos.
Portanto, “Deus é responsável pelo mal, mas não é culpável por ele”. Fica claro que a
perspectiva da teologia do processo sobre a providência divina, e sobre o problema
concomitante do mal, difere em muito da discussão clássica da doutrina. Teólogos como
William G. T. Shedd e Paul Helm continuaram a afirmar e defender o ensinamento
tradicional da igreja sobre a providência divina. Shedd apresentou a doutrina clássica da
providência de forma sucinta, e elencou as evidências bíblicas do controle providencial
divino totalmente abrangente sobre a natureza física em geral, a criação animal, os
acontecimentos da história humana, a vida individual de cada um, os supostos
acontecimentos fortuitos, os particulares e os universais e os atos livres das pessoas,
incluindo seus pecados. Já Helm adotou uma perspectiva da relação entre a providência
divina e liberdade humana conhecida como compatibilismo. Helm explicou: “As pessoas
realizam atos livres quando fazem o que querem fazer [...] Isto é, não são constrangidas
ou compelidas nesses atos, mas o que fazem flui sem qualquer impedimento de suas
próprias vontades, desejos, preferências, objetivos e assim por diante. A grande vantagem
de tal perspectiva da liberdade humana é que, sendo compatível com o determinismo, ela
também é compatível com uma visão plena da onisciência e da onipotência divinas, e,
portanto, com uma teoria da providencia na qual não há “riscos”.
Helm também abordou o problema do mal, propondo que embora “Deus pudesse ter
criado homens e mulheres que livremente (em um sentido compatível com o
determinismo) fazem só o que é moralmente certo”, Deus não o fez por uma razão
importante: “porque do mal viria um bem maior, um bem que não poderia ter vindo, ou
não poderia ter sido tão grande, se não tivesse havido aquele mal”. Essa linha de defesa
recebeu o nome de “defesa do bem maior”. O bem maior vislumbrado aqui inclui
qualidades virtuosas como “empatia, compaixão ou paciência. Esses conceitos são
definidos da perspectiva de algum suposto mal, ausência ou carência que clama pela
resposta empática ou compassiva, e sem o qual essa resposta não seria inteligivel”. Helm
concluiu que “os males que ocorrem são, em última análise, justificados pelo fato de que,
sem eles, certas situações boas não poderiam ocorrer logicamente”. Assim, o mal existe
no mundo porque certos bens maiores têm uma relação parasítica para com ele. Essa
perspectiva foi a resposta de Helm ao problema do mal dentro de sua visão compatibilista
da providencia.
Em seu livro The God who risks [O Deus que se arrisca], John Sanders apresentou um
modelo da providência divina que envolve a ideia de “risco”. Sanders contrastou sua ideia
com o modelo “sem risco” (tradicionalmente adotado ao longo da maior parte da história
da igreja), segundo o qual “nada jamais acontece sem que Deus especificamente o
selecione para acontecer. Nada é insignificante demais para o controle meticuloso e
exaustivo de Deus. [...] Portanto, Deus nunca incorre em quaisquer riscos, e nada jamais
acontece de forma diferente da desejada por Deus. A vontade divina nunca é frustrada em
nenhum aspecto”. Sanders então apresenta seu modelo de providência divina “com risco”,
baseando-se em uma definição de providência como “a adequação da sabedoria e do
poder de Deus a tarefa da qual ele próprio se incumbiu”:
Deus dá aos seres humanos a liberdade genuína de participar desse projeto, porque não
os força a fazê-lo. [...] Deus livremente escolhe ser afetado por suas criaturas — não há
contingência na relação de Deus com a criação. Além disso, Deus é o determinador
soberano do tipo de soberania que ele próprio exercera. Deus é livre para soberanamente
decidir não determinar tudo o que acontece na história. Deus não precisa fazê-lo, porque
e supremamente sábio; seus recursos, infindos; sua criatividade, inconcebível; e porque
ele é onicompetente enquanto busca realizar seu propósito.
O objetivo divino para a criação é fixo, mas os meios para sua realização são flexíveis.
‘Isso implica que Deus não “preordena tudo o que vem a acontecer”, que “Deus dá aos
humanos uma liberdade libertária, e não exerce controle exaustivo”, e que “Deus adota
certas estratégias gerais — por exemplo, a concessão de liberdade significativa — que
criam o potencial para a ocorrência de casos individuais de pecado que, como tais, são
pura perda e nenhum meio de qualquer bem maior”. No entendimento de Sanders, “a
decisão divina de criar esse tipo específico de mundo apresenta (1) grande chance de
sucesso, e pouca possibilidade de fracasso, ao mesmo tempo em que também apresenta
(2) grande quantidade de risco, no sentido de que para Deus importa bastante o rumo que
as coisas tomam”. Para Sanders, essa perspectiva da providência conta com muitas
vantagens com respeito às doutrinas da salvação, do sofrimento e do mal, da oração e da
orientação divina. Eis sua definição de uma providência divina “com riscos”:
Em primeiro lugar, Deus nos ama e deseja que assumamos relações recíprocas
de amor com ele e com os nossos próximos criados por ele [...] Ao fazê-lo,
estaríamos vindo a colaborar livremente com Deus no sentido da realização
dos seus objetivos. Em segundo, Deus soberanamente decidiu fazer com que
alguns dos seus atos fossem contingentes em relação aos nossos pedidos e atos
[...] Logo, há condicionalidade em Deus, porque Deus verdadeiramente
responde ao que fazemos. Em terceiro, Deus escolhe exercer uma providência
geral, em vez de meticulosa, dando espaço para que operemos e para que ele
mesmo seja criativo e abundante ao cooperar conosco. Em quarto, Deus nos
deu a liberdade libertária necessária para que um relacionamento de amor
verdadeiramente pessoal fosse desenvolvido. Em suma, Deus livremente
assume genuínas relações “toma lá, dá cá” conosco. Da parte de Deus, isso
implica correr riscos, porque somos capazes de desapontá-lo.
O teísmo aberto, em geral, e o modelo da providência “com risco” de Sanders, com sua
negação da soberania meticulosa de Deus, em particular, foram especificamente
criticados por Bruce Ware, John Frame, James Spiegel e outros. A maioria dos
evangélicos condenou o teísmo aberto, defendendo em seu lugar, com exposições
meticulosas das Escrituras e argumentos filosóficos sofisticados, a doutrina tradicional da
providência divina.