A BNCC e A Educação Escolar Indígena Na Bahia

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A BNCC E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA:

O CASO DO DOCUMENTO CURRICULAR REFERENCIAL


MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHIA)

Eliete da Silva Pereira1


Universidade de São Paulo

RESUMO
Este artigo apresenta um estudo sobre os níveis de adesão aos pressupostos da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) e das diretrizes da modalidade Educação Escolar Indígena no currículo municipal. Por
meio de uma pesquisa qualitativa realizada com base na análise documental e no estudo de caso do
documento curricular do município de Itamaraju (Bahia), do Ensino Fundamental, identificaram-se alguns
níveis de consonância aos parâmetros da BNCC e aos marcos legais e pedagógicos da educação escolar
indígena, sobretudo, a respeito da inclusão do componente curricular Língua Materna (Patxohã) do povo
Pataxó do sul da Bahia.
Palavras-chave: BNCC; Educação Escolar Indígena; Políticas Educacionais; Língua Materna; Povo Pataxó.

THE BNCC AND INDIGENOUS SCHOOL EDUCATION:


THE CASE OF THE MUNICIPAL CURRICULAR REFERENCE
DOCUMENT OF ITAMARAJU (BAHIA)

ABSTRACT
This article presents a study on the levels of adherence to the Nacional Curricular Common Base (BNCC)
assumptions and the guidelines for the Indigenous School Education modality in the municipal curriculum.
Through qualitative research carried out based on documentary analysis and the case study of the
curriculum document of the municipality of Itamaraju (Bahia), for Elementary Education, some levels of
consonance with the BNCC parameters and the legal and pedagogical frameworks of the indigenous school
education, above all, regarding the inclusion of the curricular component Mother Tongue (Patxohã) of the
Pataxó people of southern Bahia.
Keywords: BNCC; Indigenous School Education; Educational Policies; Mother tongue; Pataxó people.

LA BNCC Y LA EDUCACIÓN ESCOLAR INDÍGENA:


EL CASO DEL DOCUMENTO DE REFERENCIA CURRICULAR
MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHÍA)

RESUMEN
Este artículo presenta un estudio sobre los niveles de adhesión a los supuestos de la Base Nacional Común
Curricular (BNCC) y los lineamientos de la modalidad de Educación Escolar Indígena en el currículo
municipal. A través de una investigación cualitativa realizada a partir del análisis documental y el estudio de

1Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutoranda do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), com bolsa de Pós-doutorado Sênior do CNPq.
Pesquisadora do Centro Internacional de Pesquisa ATOPOS (USP). Endereço para correspondência: Praça Amadeu
Amaral n. 116, Bairro: Bela Vista, São Paulo, SP, CEP: 01327-010. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4157-9608. E-mail:
[email protected].

Revista Linguagem, Educação e Sociedade - LES, v.28, n.56, 2024, eISSN: 2526-8449
DOI: https://doi.org/10.26694/rles.v28i56.4865

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A BNCC E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O CASO DO DOCUMENTO
CURRICULAR REFERENCIAL MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHIA)

caso del documento curricular del municipio de Itamaraju (Bahía), para la Educación Primaria, se
identificaron algunos niveles de consonancia con los parámetros del BNCC y los marcos legales y
pedagógicos de la educación escolar indígena. sobre todo, en lo que respecta a la inclusión del componente
curricular Lengua Materna (Patxohã) del pueblo Pataxó del sur de Bahía.
Palabras clave: BNCC; Educación Escolar Indígena; Políticas Educativas; Lengua materna; Pueblo Pataxó.

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta um estudo no qual se procurou interrogar-se “de que forma
os currículos municipais atendem à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e aos
princípios da Educação Escolar Indígena?” Esta pergunta é fundamental para
aprofundarmos, de fato, nas investigações sobre os efeitos produzidos pela BNCC nos
currículos. Para respondê-la de forma circunstanciada, este artigo apresenta a análise do
documento referencial curricular de Itamaraju (Bahia), do Ensino Fundamental, por meio
da investigação dos níveis de sua consonância aos parâmetros da BNCC e aos marcos
legais e pedagógicos da Educação Escolar Indígena. A escolha desta experiência ocorreu
após a realização do mapeamento de currículos municipais com escolas indígenas na
região do Nordeste2.
O artigo está dividido em quatro partes. A primeira parte contém os marcos legais
e pedagógicos da Educação Escolar Indígena do país. Na segunda, pontua-se a
modalidade na Base Nacional Comum Curricular. Na terceira, contextualizam-se os povos
indígenas do Nordeste e a educação escolar indígena na região. Na quarta e última, tem-
se a análise dos dados, do documento referencial curricular de Itamaraju (BA), segundo
os parâmetros da BNCC, e os marcos legais e pedagógicos da Educação Escolar Indígena.

MARCOS LEGAIS E PEDAGÓGICOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL

A legislação nacional em vigor referente à Educação Escolar Indígena no Brasil


assegura aos povos indígenas o direito a uma educação escolar específica, diferenciada,
intercultural, bilíngue/multilíngue, comunitária e de qualidade. O direito a uma educação
escolar diferenciada para os povos indígenas é assegurado pela Constituição Federal de

2A pesquisa de cunho qualitativo da qual resultou este artigo valeu-se da revisão dos marcos legais e pedagógicos da
educação escolar indígena, do levantamento dos dados da escola indígena de Itamaraju no Censo Escolar 2021 no site
do Inep (https://inepdata.inep.gov.br/) e do acesso ao currículo municipal por meio de contato via e-mail com a
Secretaria Municipal de Educação de Itamaraju.

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1988 e pelos documentos internacionais: Convenção 169 da Organização Internacional do


Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada no Brasil por meio do
Decreto nº 5.051/2004, Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da
Organização das Nações Unidas (ONU), e Declaração das Nações Unidas sobre os direitos
dos povos indígenas de 2007.
A Constituição Federal (CF) de 1988 foi um importante marco na relação entre
Estado e os povos indígenas, ao reconhecer o direito originário dos indígenas, na
ocupação territorial, de serem indígenas, de manterem suas manifestações culturais, e de
fazerem uso de suas línguas maternas e seus sistemas de aprendizagem. No Artigo 210,
foi assegurada às comunidades indígenas a “utilização de conteúdos mínimos para o
Ensino Fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos
valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988). Este artigo garante
ainda a “utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”
(BRASIL, 1988). A partir das suas prerrogativas, rompia-se, assim, com um modelo
integracionista3 de educação indígena e surgia uma série de dispositivos legais voltados
para uma escola indígena específica, diferenciada, intercultural e bilíngue/multilíngue.
Por meio do Decreto Presidencial nº 26/91, foi feita a transferência da gestão dos
processos de educação escolar em comunidades indígenas da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI) para o Ministério da Educação (MEC), que criou a Coordenação Nacional de
Educação Indígena, para acompanhar e avaliar as ações pedagógicas da Educação
Indígena do país.
Posteriormente, por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), ou LDB, Lei nº 9.394/96, no Art. 78, instituiu-se como dever do Estado a oferta
de uma educação escolar indígena bilíngue e intercultural, sendo previsto que o Sistema
de Ensino da União, “com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de
assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para
oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas” (BRASIL, 1996),

3O modelo integracionista tem origem nas missões jesuíticas do século XVI até na parceria entre a Fundação Nacional
do Índio com a Summer Institute of Linguistics no século XX, modelo este voltado à conversão dos povos indígenas ao
cristianismo e à anulação das suas culturas e práticas rituais (LEIVAS e tal, 2014). Intuito também estatal em “integrar”
os povos indígenas à comunidade nacional, vide o Estatuto do Índio (1973), cujo Art. 50 dispõe que o objetivo da
educação escolar indígena é a integração na “comunidade nacional”.

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objetivando proporcionar às suas comunidades e povos a recuperação de suas memórias


históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de suas línguas e
ciências, e garantir-lhes o acesso às informações e aos conhecimentos técnicos e
científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não indígenas.
Para isso, no Artigo 79, a LDB dá o direito à comunidade indígena de participar,
efetivamente, da elaboração e da discussão de programas educacionais e produção de
materiais escolares específicos. Nesse sentido, a educação escolar indígena deve ter
tratamento diferenciado, tendo a comunidade a liberdade de participar e produzir o seu
Projeto Político Pedagógico (PPP), de acordo com as suas necessidades.
Como prática destes direitos, no Artigo 23, a LDB garante que a comunidade
decidirá a organização escolar: série anuais, períodos semestrais, grupos não seriados ou
por critério de idade, ou como for melhor para a comunidade. O Artigo 26 tem a
importância de se considerar as características regionais e locais das comunidades e
sociedades indígenas:

Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio


devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de
ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida
pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e
dos educandos (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013).

No Artigo 26, será dado como obrigatório o estudo da história afro-brasileira e


indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, posteriormente a Lei nº
11.645, de 10 março de 2008, contemplará a obrigação do estudo da história e cultura
indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio no país,
com conteúdos programáticos específicos.
No Artigo 32 da LDB, sobre o Ensino Fundamental, é assegurado aos povos
indígenas o exercício da língua materna e dos processos próprios de aprendizagem
(continuidade das práticas culturais), ao lado do ensino da língua portuguesa.
Após uma série de debates entre professores indígenas e não indígenas, em 1998,
foi elaborado, pelo Ministério da Educação, o Referencial Curricular Nacional para Escolas
Indígenas – RCNEI, em atendimento às determinações da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, que estabelece enfaticamente a diferenciação da escola indígena das

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demais escolas do sistema pelo respeito à diversidade cultural e à língua materna, e pela
interculturalidade.
Em 1999, as Diretrizes para a Política Nacional da Educação Escolar Indígena,
aprovadas pelo Parecer nº 14/99 (14/09) da Câmara Básica do Conselho Nacional de
Educação, fundamentavam a educação indígena, determinando a estrutura e o
funcionamento da escola indígena. E foram elaboradas pelo Comitê Nacional de
Educação Indígena, criado pelo MEC e composto por representantes de órgãos
governamentais e não governamentais, representantes dos povos indígenas e de seus
professores. A seguir, a Resolução nº 3/99, preparada pela Câmara Básica do Conselho
Nacional de Educação e publicada em 17 de setembro de 1999, fixou as Diretrizes
Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas, criando a categoria “escola
indígena”, reconhecendo-lhe “a condição de escolas com normas e ordenamentos
jurídicos próprios” (BRASIL, 1999), garantindo-lhe autonomia pedagógica e curricular.

Ao interpretar a LDB, o Conselho Nacional de Educação, por meio dessa resolução,


definiu as esferas de competência e responsabilidade pela oferta da educação
escolar aos povos indígenas. Estabelecido o regime de colaboração entre União,
estados e municípios, o CNE definiu que cabe à União legislar, definir diretrizes e
políticas nacionais, apoiar técnica e financeiramente os sistemas de ensino para
o provimento de programas de educação intercultural e de formação de
professores indígenas, além de criar programas específicos de auxílio ao
desenvolvimento da educação. Aos estados, caberá a responsabilidade “pela
oferta e execução da Educação Escolar Indígena, diretamente ou por regime de
colaboração com seus municípios”, integrando as escolas indígenas como
“unidades próprias, autônomas e específicas no sistema estadual” e provendo-
as com recursos humanos, materiais e financeiros, além de instituir e
regulamentar o magistério indígena (GRUPIONI, 2001, p. 136. Itálicos nosso).

O direito à Educação Escolar Indígena também foi contemplado no Plano Nacional


de Educação (PNE), instituído pela Lei nº 10.172/2001, que vigorou até o ano de 2011. Nele,
é apresentado um diagnóstico da oferta de Educação Escolar Indígena, desde o século
XVI aos dias atuais, apontando para a definição de diretrizes, objetivos e metas que
dependem da iniciativa da União e dos estados para a implantação dos programas de
Educação Escolar Indígena, ressaltando que estes só deverão acontecer com a anuência
das comunidades indígenas.

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O direito diferenciado a uma educação escolar voltada para os interesses e


necessidades das comunidades indígenas também é assegurado pelo Decreto nº
6.861/2009, que define a organização da Educação Escolar Indígena em territórios
etnoeducacionais. Reconhecendo, assim, a organização escolar indígena associada as
suas territorialidades e identidades, independentemente da divisão política entre estados
e municípios que compõem o território brasileiro. Logo, é proposto um modelo
diferenciado de gestão, que visa fortalecer o regime de colaboração entre os entes
federados (União, estados e municípios) na oferta da Educação Escolar Indígena pelos
sistemas de ensino.
Gersem José dos Santos Luciano (2017, p. 302) destaca que os Territórios
Etnoeducacionais “dão visibilidade às relações interétnicas construídas como resultado
da história de lutas e reafirmação étnica dos povos indígenas para a garantia de seus
territórios e de políticas específicas nas áreas de saúde educação e
etnodesenvolvimento.” Esta associação das questões territoriais à educação indígena é
histórica e inédita na educação escolar indígena no país.
Portanto, os territórios etnoeducacionais, definidos pelo Ministério da Educação,
compreenderão, independentemente da divisão político-administrativa do país, as terras
indígenas, mesmo que descontínuas, ocupadas por povos indígenas que mantêm
relações intersocietárias, caracterizadas por raízes sociais e históricas, relações políticas e
econômicas, filiações linguísticas, valores e práticas culturais compartilhados. O decreto
reafirma ainda a garantia das normas próprias e diretrizes curriculares específicas para as
escolas indígenas, que, desse modo, gozam de prerrogativas especiais na organização de
suas atividades escolares com calendários próprios, independentes do ano civil, que
respeitem as atividades econômicas, sociais, culturais e religiosas de cada comunidade,
nos termos de seu Artigo 3. Posteriormente, a Portaria nº 1.062, de 30 de outubro de 2013,
do Ministério da Educação, irá instituir com mais detalhes o Programa Nacional dos
Territórios Etnoeducacionais – PNTEE.
Finalmente, a Resolução CNE/CEB nº 5, de 22 de junho de 2012, define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica,
considerando uma série de documentos normativos nacionais e internacionais e as

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deliberações da I Conferência Nacional de Educação Indígena (2009). Entre os objetivos,


destaca-se a orientação para os processos de construção de instrumentos normativos
dos sistemas de ensino, obedecendo aos princípios da igualdade social e às
especificidades indígenas, bilinguismo, multilinguismo, interculturalidade, organização
comunitária e territorialidade. Além de dar embasamento jurídico para a organização da
educação escolar indígena, seu projeto político-pedagógico, currículos, avaliação,
professores indígenas e competências legais do exercício do regime de colaboração dos
entes federados.
Estes arcabouços jurídicos avançaram, em muito, a Educação Escolar Indígena no
país, embora existam muitos desafios para implementá-la, conforme Knapp e Martins
(2017)4 e Gersem Luciano (Baniwa) (2017), a serem mencionados mais adiante.

A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo que visa


orientar a Educação Básica brasileira que começou a ser elaborado em 2015 pelo
Ministério da Educação do Brasil (MEC), instituída sua implantação por meio da Resolução
CNE/CP n° 02, 22/12/2017. Seus fundamentos pedagógicos abrangem o foco no
desenvolvimento de competências gerais para assegurar as aprendizagens essenciais que
devem ser desenvolvidas nas escolas. Dessa forma, a BNCC orienta as escolas a
ensinarem aos alunos a trabalharem a capacidade de solucionar problemas e desafios por
meio do desenvolvimento das competências gerais.
Na BNCC (2017, p. 8), a competência é definida como “a mobilização de
conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e
socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida
cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”. Ao definir estas
competências, a BNCC reconhece que a “educação deve afirmar valores e estimular ações
que contribuam para a transformação da sociedade, tornando-a mais humana,
socialmente justa e, também, voltada para a preservação da natureza” (BNCC, 2017, p. 8).

4As críticas de Knapp e Martins (2017) são muito precisas sobre a não efetivação dos Territórios Etnoeducacionais, a
ausência de diretrizes específicas para os níveis de ensino etc.

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As dez competências gerais5 são entendidas como a mobilização de


conhecimentos (conceitos e procedimentos/saberes); habilidades (práticas cognitivas e
socioemocionais / capacidade de aplicar saberes) e atitudes e valores (força interna dos
alunos, valores universais: direitos humanos, ética, justiça) para resolver demandas
complexas da vida, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.
A BNCC orienta a elaboração do currículo, o que deve ser considerado no processo
de criação do Projeto Político Pedagógico (PPP). Cabem às escolas criarem os seus
próprios currículos de acordo com os seus contextos, decidirem as formas de
organização interdisciplinar dos componentes curriculares, desenvolverem a formação
continuada dos professores e adequarem os materiais didáticos.
Na BNCC, se enfatiza a importância da educação integral, no sentido de uma
construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens
sintonizadas com as necessidades dos alunos. No Ensino Fundamental anos iniciais (1º a 5º
ano) e anos finais (6º a 9º ano), a BNCC abrange cinco grandes áreas do conhecimento:
Linguagens, Matemática, Ciências Humanas, Ciências da Natureza e Ensino Religioso. É
responsabilidade dos entes federados a implementação da BNCC e o reconhecimento da
experiência curricular existente em seu âmbito de atuação.
No entanto, críticos como Gonçalves et al. (2020) advertem que a prescrição de
competências, habilidades e conteúdos presentes na BNCC a serem desenvolvidos pelos
estudantes torna a finalidade principal da Educação Básica o alcance do ensino de
conteúdos comuns, falseando a autonomia das escolas e dos professores, em favor das
secretarias de educação. Além disso, Silva e Sena (2022) consideram a BNCC como o mais
expressivo instrumento do capital, sobretudo, de controle ideológico da juventude da
classe trabalhadora.
Sobre a Educação Escolar Indígena, a BNCC reconhece as competências específicas
para a educação indígena, de acordo com os marcos jurídicos da Educação Escolar

5 As dez competências gerais abrangem: "1. Conhecimento que ajuda o aluno compreender e fazer intervenções na
realidade; 2. Pensamento científico, crítico e criativo que serve para problematizar e criar soluções; 3. Repertório
cultural que promova a participação em criações artístico-culturais; 4. Comunicação que busque auxiliar o aluno a se
expressar e a compartilhar informações; 5. Cultura digital para que haja a utilização de tecnologias digitais de
informação; 6. Autogestão que desenvolva a capacidade de fazer escolhas; 7. Argumentação de maneira que a opinião
emitida tenha embasamento em fatos; 8. Autoconhecimento e autocuidado que promovam em bom cuidado da
própria saúde física e mental; 9. Empatia e cooperação para que o respeito com outro seja praticado e 10. Autonomia,
de forma que as decisões tomadas tenham princípios éticos e sustentáveis" (BNCC, 2017, p. 9-10).

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Indígena. Assegura competências específicas com base nos princípios da coletividade,


reciprocidade, integralidade, espiritualidade e alteridade indígena a serem desenvolvidas
mediante as suas culturas tradicionais reconhecidas nos currículos dos sistemas de ensino
e nas propostas pedagógicas das instituições escolares. Menciona também a perspectiva
intercultural, considerando seus projetos educativos, suas cosmologias, suas lógicas, seus
valores e seus princípios pedagógicos próprios – em consonância com a Constituição
Federal, com as Diretrizes Internacionais da OIT – Convenção 169 e com os documentos
da ONU e Unesco sobre os direitos indígenas e suas referências específicas. Indica a
construção de currículos interculturais, diferenciados e bilíngues, e seus sistemas próprios
de ensino e aprendizagem dos conteúdos universais, dos conhecimentos indígenas e do
ensino da língua indígena como primeira língua (BNCC, 2017).
Ainda assim, é notória a generalidade do tratamento da Educação Escolar Indígena
no documento. Andréia Nunes Militão (2022) enumera contrapontos da BNCC para a
Educação Indígena, alguns deles equivocados pela limitação da análise da autora, ao
deter-se somente no texto da BNCC, ignorando o contexto dos embates políticos
enfrentados pelos gestores indígenas que participaram da discussão num contexto
político delicado do país.
Contraditoriamente, a crítica de Militão (2022) desconsidera a visão indígena sobre
a BNCC, fundamentando-se em autores não indígenas (Aguiar e Dourado, 2018) que
“afirmam que a BNCC se encontra em franca oposição aos princípios da Educação Escolar
Indígena” (MILITÃO, 2022, p. 9), pelo suposto viés assistencialista da base por indicar
outros sujeitos para construir os currículos, e não os povos indígenas (Idem). Tais
considerações, em situações específicas, não se sustentam quando estados como o
Maranhão e o Amazonas possuem currículos específicos para escolas indígenas,
debatidos e construídos pelos professores indígenas e por suas organizações. O caso a
ser analisado de Itamaraju (BA) é outro exemplo com especificidades de um documento
referencial municipal não exclusivo para a escola indígena, mas que contempla os
aspectos linguísticos, territoriais e históricos do povo Pataxó, etnia presente no
município.

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Segundo Gersem Luciano6 (2022, 2017), a educação escolar indígena é um direito e


um desejo dos povos indígenas. É um desejo recente, porque muitos povos tinham
ressalvas e desconfianças em torno do equipamento estatal se tornar uma forma de
dominação. Desde a Constituinte de 1986, que viria a se conformar na Constituição de
1988, o movimento indígena, junto dos indigenistas e aliados não indígenas, se mobilizou
por uma educação indígena diferenciada.
Os marcos jurídicos e as mudanças políticas, pedagógicas e administrativas foram
decisivos para a inclusão da escola indígena no Regime de Colaboração no Sistema
Nacional de Ensino não mais isolada como foi na época da FUNAI, integrando uma política
pública nacional por meio do Plano Nacional de Educação (PNE) e do Programa de
Desenvolvimento da Educação (PDE) do país.

Uma das conquistas mais importantes no campo da diferenciação afirmativa da


escola indígena é o reconhecimento de suas categorias específicas, tais como:
professor indígena, magistério indígena e escola indígena com normas e
ordenamento jurídico próprio (Luciano, 2017, p. 303).

São marcos da participação indígena em uma política de educação para este


segmento, a criação da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, a realização da I
Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (I Coneei/2009) e a participação
indígena na Conferência Nacional de Educação (Conae/2010). A criação de conselhos
estaduais de educação escolar indígena, como instâncias consultivas ou mesmo
normativas, se tornou indicativo da descentralização das políticas. Além disso, as escolas
indígenas passaram a produzir e utilizar material didático bilíngue, desenvolvendo ensino
via pesquisa, calendários e currículos diferenciados ou flexíveis (Luciano, 2017).
Outros eventos marcam a mobilização indígena em torno da educação escolar
indígena (Menezes, 2020, p. 80):

6 Gersem José dos Santos Luciano é indígena da etnia Baniwa, graduado em Filosofia, mestre e doutor em Antropologia
Social. Atualmente é professor associado no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Além de
professor, é gestor e pesquisador em educação escolar indígena. Foi conselheiro no Conselho Nacional de Educação
(2006/2008 e 2016/2020) e secretário Municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira/AM (1997-1999). Gersem
Luciano participou ativamente das discussões durante a elaboração da BNCC como conselheiro do CNE, ao contrário da
tese de Militão (2022), que aponta a ausência de indígenas no processo de elaboração da base. O autor assina em
alguns textos ora com o sobrenome "Luciano", ora "Baniwa" (nome do seu povo).

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- 2010, é institucionalizada a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena


(CNEEI), por meio da portaria Mec Nº 734, de 07 de junho de 2010.
- 2015, acontece a I Conferência Nacional de Política Indigenista, na qual
representantes dos povos indígenas, indigenistas e representantes do governo
apresentam propostas para a Educação Escolar Indígena.
- 2015, professores indígenas criam o Fórum Nacional de Educação Escolar
Indígena (FNEEI).
- 2018 é realizada a II Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena
(CONEEI), tendo como tema “O Sistema Nacional de Educação e a Educação
Escolar Indígena: regime de colaboração, participação e autonomia dos povos
indígenas.

Ainda que a mobilização indígena em torno da educação escolar indígena aponte


para um reconhecimento da importante necessidade da modalidade para os próprios
povos indígenas, para Gersem Luciano (2017), há limites e muitos desafios a serem
superados. O antropólogo e educador Baniwa aponta os seguintes aspectos:
a) da prática pedagógica: o exercício “equilibrado” da interculturalidade,
onde a escola indígena possa, de fato, se tornar instrumento de empoderamento
para autonomia, e não uma armadilha para a domesticação dos conhecimentos
tradicionais (Luciano, 2017; Gallois, 2014).
b) da estrutura: escolas inadequadas, dificuldade de transporte escolar,
distribuição de material e alimentação escolar.
c) dos limites dos sistemas de ensino e fragilidade do regime de colaboração
que possam viabilizar estruturas mais adequadas e equipes qualificadas para
atender às demandas das escolas indígenas (formação de professores etc.).
d) dos desafios internos: a capacidade de gestão das comunidades e do
movimento indígena organizado, a fim de transformar e/ou criar experiências
pedagógicas de ensino-aprendizagem em suas escolas, na perspectiva
intercultural, bilíngue, específica e diferenciada, com tempo, espaço, conteúdo
curricular, metodologias, pedagogias, didáticas e epistemologias próprias, que
possam superar o monopólio da cultura “escritocêntrica”, abrindo espaços para
outros modos de transmissão de conhecimentos por meio da oralidade, da
corporalidade, da imagem, da observação e da repetição de bons exemplos dos
mais velhos e do aprender fazendo, vivendo, experimentando, pesquisando e
descobrindo (Candau, 2006; Luciano, 2017.)

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A BNCC E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O CASO DO DOCUMENTO
CURRICULAR REFERENCIAL MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHIA)

Quanto à BNCC e a educação escolar indígena na perspectiva dos próprios


gestores, educadores e professores indígenas, Gersem Luciano (2022)7 comenta, a partir
da sua perspectiva como gestor e participante do debate de construção da base:

Essa BNCC para a educação escolar indígena não é a melhor, mas é a possível.
Conseguiu-se manter as legislações anteriores e reafirmar a especificidade da
educação escolar indígena pautada nos princípios de uma escola específica e
diferenciada, da interculturalidade, bilinguismo/multilinguismo, organização
comunitária. Cabe agora os indígenas e a comunidade cobrarem junto aos
municípios e estados a inclusão, de fato, desses princípios em seus currículos e
projetos políticos pedagógicos.

O CONTEXTO REGIONAL E ESTADUAL: POVOS INDÍGENAS E EDUCAÇÃO ESCOLAR


INDÍGENA

Atualmente, segundo o último Censo de 2022 do IBGE, o número de indígenas no


Brasil é de 1.693.535 pessoas, o que representava 0,83% da população total do país. Sendo
que 31,22% estão no Nordeste (equivalente a 528.800 pessoas). No entanto, o Amazonas
tem a maior concentração desta população. Registram-se 56 etnias/ou povos existentes
em todos os estados8, distribuídas em 68 terras indígenas homologadas e/ou em
processo de identificação (Isa, 2023; FUNAI, s/d).
Do ponto de vista linguístico, dos povos indígenas de primeiro contato com a
colonização, apenas os Fulni-ô, de Pernambuco, conseguiram manter a língua original Ia-
tê, falada principalmente entre os mais velhos. No Maranhão, os Guajajara falam a língua
materna como primeira língua e o português como língua franca, assim como os Awa-
Guajá, que falam fluentemente a língua Guajá e os jovens homens falam o português (ISA,
2017). Os Pataxó do sul da Bahia vêm fazendo uma operação de “retomada” da sua língua
Patxohã por meio do trabalho de pesquisa de seus professores indígenas com base em
pesquisas de documentos históricos, registro de vocábulos falados por alguns dos mais
velhos e a troca intercultural com os maxacali, de quem a língua pataxó descende.

7 Fala registrada no webinário do evento “Seminários de Estudos”, cujo tema foi “O parecer do CNE sobre a Educação
Escolar Indígena na BNCC e aplicabilidade nas escolas indígenas”, iniciativa do Fórum Nacional de Educação Escolar
Indígena (FNEEI) e do Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (FOREEIA). Link de acesso ao evento:
https://www.youtube.com/watch?v=556hflH4-eg&t=5842s.
8 Esta lista é aproximada e resulta do cruzamento de dados do ISA (2023) e da Funai. O estado Piauí tem presença

indígena e, em agosto de 2020 (Lei estadual n° 7.389/2000), a comunidade Serra Grande, dos índios Kariri, em
Queimada Nova, se tornou a primeira terra indígena demarcada no estado.

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PEREIRA. E, S.

Segundo Grünewald (2009, p. 07):

Uma das formas mais notórias de dominação desses povos indígenas [do
Nordeste] se processou por meio de projetos de educação, que, disciplinadores,
salvacionistas e assimiladores, tiveram início nos aldeamentos administrados por
missões religiosas.

A ruptura, de fato, como já citado, passou pelos marcos jurídicos desde o


reconhecimento da pluralidade étnica brasileira presente na Constituição Federal de 1998
às Diretrizes da Educação Escolar Indígena, fundamento nos princípios básicos da
educação escolar indígena, incluindo a escola específica e diferenciada, o bilinguismo e/ou
multilinguismo, a interculturalidade, a organização comunitária e a inclusão dos próprios
modos de transmissão dos saberes, que passa, sobretudo, pela oralidade.
Dada a violência do processo colonial e um longo processo de silenciamento e
invisibilidade, o movimento de “retomada” territorial, feito por diversos povos indígenas
na região Nordeste, e de afirmação das suas especificidades étnicas e seus vínculos
ancestrais a partir dos anos de 1980 torna hoje a educação escolar indígena um
instrumento estratégico fundamental para o fortalecimento de suas identidades étnicas.
No Censo Escolar 2021, do total de 187.713 matrículas de Ensino Fundamental em
escolas indígenas, 39.816 estão localizadas9 na região Nordeste, sendo 2.136 em escolas
que não estão em área de localização diferenciada, e 37.449 são matrículas em escolas
indígenas situadas em terras indígenas.
A relevância das escolas indígenas se expressa também numericamente. A região
Nordeste encontra-se em 2º lugar, com 634, após a região Norte (2.090), em número de
escolas indígenas no país.
Assim como todos os povos indígenas habitantes do Nordeste, as etnias indígenas
situadas na Bahia passaram por:

[...] um período de invisibilidade histórica, política e cultural, marcadamente


durante o século XX, sob o estigma da denominação de “caboclos”, ou seja,
categoria de assignação mestiça, deslegitimadora de qualquer pretensão de
reivindicar uma especificidade étnica e cultural (Bahia, 2022, p.33).

9 O total compreende escolas indígenas em localização diferenciada (terras indígenas e área remanescente de
quilombos), localização não diferenciada e assentamentos (Maranhão).

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A BNCC E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O CASO DO DOCUMENTO
CURRICULAR REFERENCIAL MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHIA)

Atualmente os povos indígenas no estado são cerca de 60.120 indivíduos – 16.817


habitam em terras indígenas, e 43.303 fora de T.I. (IBGE, 2010) – pertencentes a 16 grupos
étnicos: Atikum, Kaimbé, Kantaruré, Kariri-Xocó, Kiriri, Payayá, Pankararé, Pankarú,
Pataxó Hãhãhãe, Pataxó, Truká, Tumbalalá, Tupinambá, Tuxá, Xacriabá e Xukuru-Kariri
(BAHIA, 2022).
Segundo o Censo Escolar 2021, na Bahia, estão matriculados, no Ensino
Fundamental, 1.946.857 estudantes em 12.973 escolas, com 99.911 docentes. Sobre a
educação indígena, o Censo Escolar 2021 registra 6.150 matrículas no Ensino
Fundamental, distribuídas em 54 escolas indígenas de Educação Infantil, Ensino
Fundamental, Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA) (Censo Escolar 2021; LEITE,
2021). É importante considerar que uma única escola pode ofertar todas as modalidades.
Segundo o Referencial Curricular da Bahia (2020, p. 18), o documento é resultado
de um trabalho de regime de colaboração entre a Secretaria da Educação do Estado da
Bahia (SEC) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME):

[...] foi realizada uma grande mobilização nos 27 Territórios de Identidade, com
as comunidades educativas, para subsidiar a elaboração da primeira versão do
DCRB, envolvendo e orientando as equipes técnicas no processo de estudo e
discussão do Documento Curricular Referencial da Bahia para a Educação Infantil
e Ensino Fundamental. Desse modo, somaram-se mais de 24 mil contribuições
durante a realização da Escuta Inspiracional, tornando legítimo o processo de
construção e a materialidade do referido documento no Estado da Bahia. Foi
realizada uma consulta pública, sob orientações da equipe de trabalho formada
por: duas coordenadoras estaduais, uma representante da SEC, uma
representante da UNDIME-BA, uma coordenadora da etapa da Educação Infantil
e duas coordenadoras da etapa do Ensino Fundamental, três redatores da
Educação Infantil, 19 redatores do Ensino Fundamental, além de profissionais
colaboradores com representação de todos os Territórios de Identidade.

O Documento Curricular Referencial da Bahia para o Ensino Fundamental dá


ênfase no território “como produção do cotidiano, de identidades e de perspectivas
emancipatórias, se entendermos o território como o lugar de realização das
manifestações da existência da humanidade” (Bahia, 2020, p. 22). Ou seja, uma produção
de territorialidade e de “múltiplas formas de interpretar a realidade, sejam por meio dos
matizes da cultura, sejam pela ótica da historicidade ancestral” (Bahia, 2020, p. 22),
integradas aos conhecimentos científicos.

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PEREIRA. E, S.

A partir disso, elegeu-se 27 Territórios de Identidade (TI) do estado da Bahia, cujo


objetivo parte:

[...] de um olhar de curiosidade e de investigação sobre os múltiplos aspectos,


contemplando dimensões culturais, geoambientais, político-institucionais,
econômicas e, também, a questão tecnológica e suas implicações multifacetadas
e complexas; o impacto que as mesmas promovem nas vidas e realidades locais,
definindo territórios a partir de articulações de pontos e formação de redes.
(Bahia, 2020, p. 22).

Além disso, este documento fundamenta-se em contundente crítica às heranças


patriarcais, escravistas, racistas e misóginas, compreende-o a partir da escola como um
instrumento de formação de cidadãos críticos e criativos.
A modalidade da educação escolar indígena é contemplada e amparada em seus
marcos jurídicos nacionais (Resolução nº 3/1999 CNE/CEB, Resolução nº 13/2012 CNE/CEB,
Lei Nacional nº 11.645/2008) e estadual, com base na Portaria SEC nº 3.918/2012, que
dispõe sobre a reorganização curricular das unidades escolares da educação escolar
indígena integrantes da rede pública estadual. Atenta-se para a temática da história e da
cultura indígena e a sua inclusão nos temas integradores, em especial, da educação para a
diversidade (Bahia, 2020, p. 64 a 78). No entanto, os povos indígenas são referenciados
de forma genérica no documento, sem especificação das etnias distribuídas no território.

ANÁLISE DO DOCUMENTO REFERENCIAL CURRICULAR DO MUNICÍPIO DE ITAMARAJU

Com população estimada de 59.603 pessoas (IBGE, 2022), distribuída em


2 360,584 km², o município de Itamaraju possui densidade demográfica de 25,25 hab/ km².
Com renda per capita de R$14.814,35 (IBGE, 2020), em 2019, o salário médio mensal era de
1,6 salários-mínimos. A proporção de pessoas ocupadas com trabalho formal (carteira
assinada) em relação à população total era de 12,6% (IBGE, 2020). O Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM, 2010) é de 0,627 (médio), e 55,3% do
município possuem esgotamento sanitário adequado (IBGE, 2010). Ademais, registram-se
15,23 óbitos por mil nascidos vivos e dez estabelecimentos de Saúde. Quanto aos dados
de Educação, a tabela a seguir resume os principais índices.

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A BNCC E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O CASO DO DOCUMENTO
CURRICULAR REFERENCIAL MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHIA)

Tabela 1 – Dados de Educação do município de Itamaraju (BA)

Fonte: IBGE Cidades; Censo Escolar 2021.

Das 55 escolas de Ensino Fundamental no município, somente uma é indígena: a


Escola Municipal Indígena Pataxó Trevo do Parque Nacional do Monte Pascoal de
Educação Infantil e Ensino Fundamental até o 5º ano, com 40 matrículas (Censo Escolar
2021), situada na Aldeia do Trevo do Parque Nacional do Monte Pascoal. No município,
registra-se somente a etnia Pataxó presente nas aldeias Pé do Monte, Trevo do Parque,
Guaxuma, Corumbauzinho e Aldeia Nova, sem registro do quantitativo atual desta
população10.
O alinhamento do currículo de EI e EF à BNCC ocorreu no dia 12 de janeiro de 2020
(Movimento pela Base, 2022). O Documento Curricular Referencial Municipal de Itamaraju
(DCRMI) para Educação Infantil e Ensino Fundamental é de 2020, com 678 páginas,
aprovado por meio da Resolução nº 02/2020 CMEI/Itamaraju, no dia 10/12/2020.

10 "Os dados do SIASI registram, para 2010, 11.436 habitantes (sendo 5.839 homens e 5.597 mulheres), distribuídos pelas
aldeias Barra Velha, Aldeia Velha, Boca da Mata, Meio da Mata, Imbiriba, localizadas em Porto Seguro; Pé do Monte,
Trevo do Parque, Guaxuma, Corumbauzinho e Aldeia Nova, estabelecidas em Itamaraju; Coroa Vermelha e Mata
Medonha, em Santa Cruz de Cabrália e, por fim, Águas Belas, Craveiro, Tauá, Tibá, Córrego do Ouro, Cahy e Alegria
Nova no Prado, totalizando 19 aldeias (ISA, 2022).

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Figura 1 - Capa do Documento Curricular Referencial Municipal de Itamaraju

Foto do Monte Pascoal, Parque Nacional, em Território Pataxó. ITAMARAJU.

Fonte: Itamaraju (BA) (2020).

O Currículo do Ensino Fundamental do município de Itamaraju (BA) foi adaptado do


estadual, elaborado de forma autônoma, em relação ao currículo do estado da Bahia
(DCRB), assim mencionado por Marise de Souza Rodrigues Lobeu11, coordenadora técnica
pedagógica – Educação do Campo, da Secretaria Municipal de Educação.
O documento curricular municipal se pautou por uma educação inclusiva,
sobretudo ao apresentar um componente específico Língua Materna, com objetivo de
fortalecer a língua Patxôhã (tronco linguístico Macro-jê) do povo Pataxó. Vale lembrar
que esta língua

está sendo reconstruída e restituída às aldeias pataxó, principalmente por


intermédio da escola. A educação escolar vem sendo o principal canal de
comunicação entre as comunidades pataxó e a língua indígena que por muito
tempo esteve adormecida (Itamaraju, 2020, p. 44).

O papel dos professores e pesquisadores indígenas Pataxó do sul da Bahia na


retomada da língua foi crucial para a realização autônoma de pesquisas documentais e de
campo, resgatando registros históricos e memórias dos anciões com o objetivo de

11 Contato feito por e-mail no dia 11/07/2022.

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CURRICULAR REFERENCIAL MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHIA)

retomar sua língua originária, dada por extinta em meados do século passado (BOMFIM,
2017).

Nos últimos 20 anos vem crescendo o movimento de reconstituição da língua,


iniciado pelas ações de educadores de escolas indígenas, especificamente os
professores das aldeias Barra Velha e Coroa Vermelha, que buscaram junto aos
Maxakalis o registro de vocábulos do Patxôhã e por meio da coleta de palavras e
expressões utilizadas pelos anciãos de várias comunidades Pataxó e em
documentos e estudos de pesquisadores. Atualmente os professores já
conseguiram um registro de quase 3.000 vocábulos, com a ajuda de
pesquisadores elaboraram uma gramática escrita da língua, além de materiais
didáticos visando instrumentalizar os professores das aldeias que não
participaram do processo de elaboração desses materiais. A inclusão do Patxôhã
no currículo escolar é uma maneira de concretizar o respeito à diversidade
linguística e cultural que os povos indígenas representam e de valorizar as
práticas culturais vivenciadas na aldeia e na escola. Essa iniciativa agregou valor
à língua indígena, pois ela passou a ter uma função na comunidade. Incluí-la no
currículo é atribuí-lhe um status de língua plena (Itamaraju, 2020, p. 45).

Nesse sentido, a temática indígena e as diretrizes da modalidade, em especial a


interculturalidade e o bilinguismo, estão presentes nos componentes curriculares: Língua
Materna Patxôhã (1º ao 5º ano) (componente curricular específico para a única escola
indígena do município), Língua Portuguesa, Arte, História, Ciências, Geografia,
Matemática, Educação Física e Ensino Religioso.

Fonte: DCRMI, 2020, p. 48.

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Fonte: Itamaraju (2020, p. 48).

Fonte: Itamaraju (2020, p. 49).

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CURRICULAR REFERENCIAL MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHIA)

Fonte: Itamaraju (2020, p. 49).

Valem citar alguns trechos da inserção da temática da história e da cultura indígena


pataxó, mencionadas nas unidades temáticas e habilidades dos componentes
curriculares:

Fonte: Itamaraju (2020, p. 381).

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PEREIRA. E, S.

Fonte: Itamaraju (2020, p. 381).

Componente curricular: Língua portuguesa (páginas 324 a 372)

- (EF69LP04IT) Posicionar-se em relação a conteúdos veiculados em práticas não


institucionalizadas de participação social, sobretudo àquelas vinculadas a
manifestações artísticas, produções culturais, intervenções urbanas, a história e
luta dos movimentos sindicais locais, como o Movimento Sem Terra
(MST);Sindicato dos Trabalhadores em Educação das Redes Públicas Estadual e
Municipais, (APLB) de Itamaraju; Movimento Unido dos Povos e Organizações
Indígenas da Bahia (Mupoiba) e Movimento Indígena da Bahia (Miba); Movimento
negro da Bahia e povos indígenas do Extremo Sul da Bahia, com práticas próprias
das culturas juvenis que pretendam denunciar, expor uma problemática ou
“convocar” para uma reflexão/ação, relacionando esse texto/produção com seu
contexto de produção e relacionando as partes e semioses presentes para a
construção de sentidos.

Componente curricular: Arte (páginas 381 a 430)

- Artes visuais. (EF15AR01IT) Pesquisar junto aos seus professores e familiares


os significados das cores e das pinturas corporais, comparando as com as de
outras culturas indígenas, através da identificação de elementos que se
assemelham ou se diferenciam dos elementos gráficos de sua cultura.

- Música. Dança e música pataxó. (EF15AR03IT) Identificar a riqueza de ritmos


presentes nas músicas autorais de seu povo, reconhecendo-as como
patrimônio de sua cultura; (EF15AR04IT) Perceber e explorar elementos
constitutivos da música pataxó (melodia, ritmo, altura, timbre e intensidade)
através da prática do ritual do awê.

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Componente curricular: Educação Física (páginas 439 a 529)

(EF35EF01) Experimentar e recriar as brincadeiras e jogos da cultura pataxó,


respeitando as diferenças individuais de desempenho dos colegas.

Componente curricular: Matemática (página 503)

Geometria. A presença da geometria na cultura indígena.

(EF06MA03IT) Reconhecer as formas geométricas utilizada pelos povos


indígenas na região da cidade de Itamaraju como elemento de comunicação
por meio das formas e desenhos.

(EF06MA04IT) Resolver e elaborar problemas que envolvam as grandezas


comprimento, massa, tempo, temperatura, área (em especial as áreas do nosso
município, ocupadas por indígenas, monoculturas, assentamentos, agricultura
familiar, outros) inseridos, sempre que possível, em contextos oriundos de
situações reais e/ou relacionadas às outras áreas do conhecimento.

Componente curricular: Ciências (páginas 530 a 560)

Vida e evolução. (EF03CI03IT) Investigar as causas de mudanças ocorridas nos


hábitos alimentares do povo Pataxó (mudanças de território, degradação
ambiental, contato com a sociedade não indígena, etc.) e sua relação com as
transformações culturais.

Componente curricular: Geografia (páginas 564 a 579)

(EF03GE03IT) Demarcação das terras indígenas pataxó. Conhecer a localização


da aldeia dentro do município.

Componente curricular: História (páginas 599 a 622)

História dos nossos anciões da aldeia Trevo do Parque. (EF03HI08)


(EF03HI02IT) (EF03HI03IT) (EF03HI04IT)

Documentos que mostram a história pataxó (a visão do índio e não índio)


(EF04HI06IT).

Processo de formação do território itamarajuense; Formação do povo baiano;


Povos formadores da sociedade itamarajuense: Indígenas, Afro- -brasileiros e o
Capixaba e o povo cigano. (EF06HI05) (EF06HI04IT).

Povos indígenas da Bahia com destaque o extremo sul baiano; Índios Pataxós
do Parque Nacional do Monte Pascoal e seus hábitos culturais e sociais.

(EF06HI07IT) Reconhecer as conquistas dos direitos das mulheres ao longo do

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tempo, destacando a importância da mulher na formação social e política em


Itamaraju. Analisar a participação da mulher indígena, suas lutas e conquistas
nessa construção social com destaque a Sônia Guajajara e Joênia Wepichana,
liderança ativista e Deputada Federal.

(EF07HI01IT) Perceber o olhar dos indígenas (Pataxós e Tupinambás do


Extremo Sul baiano) e afrobrasileiros no contexto de modernidade.

(EF07HI02IT) Identificar e Valorizar elementos presentes na sociedade


itamarajuense que interagem com a diáspora africana e povos indígenas.

Marcas das expressões culturais dos povos indígenas e africanos em nossa


sociedade itamarajuense.

(EF07HI03IT) Reconhecer os aspectos e processos de resistência do povo


indígena Pataxó e do povo negro do território do Extremo Sul da Bahia, com
destaque para a cultura, saberes ancestrais- -Tradicionais.

(EF08HI05IT) Reconhecer o legado dos povos indígenas no território do


Extremo Sul Baiano, identificando a sua trajetória de lutas e resistência pela
valorização e respeito a sua identidade e cultura na formação da sociedade
baiana e brasileira.

Aldeias do Trevo do Parque e em seu entorno a questão étnica, heranças


histórico-culturais: Como eles estão atuando em dias atuais? Referendando o
índio Pataxó, suas lutas e resistência; FOGO DE 51 – sobre o massacre que
marcou a História dos Pataxós no Sul da Bahia. (EF09HI06IT) Reconhecer os
modos de vida dos indígenas no presente e no passado, assim como suas lutas
e resistências no extremo sul e Costa do Descobrimento.

Componente curricular: Ensino religioso (página 632)

(EF05ER04) Reconhecer a importância da tradição oral para preservar


memórias e acontecimentos religiosos.

(EF05ER05) Identificar elementos da tradição oral nas culturas e religiosidades


indígenas, afro-brasileiras, ciganas, entre outras. (EF05ER06) Identificar o papel
dos sábios e anciãos na comunicação e preservação da tradição oral.

(EF05ER07) Reconhecer, em textos orais, ensinamentos relacionados a modos


de ser e viver.

Registra-se a inserção da modalidade Educação Escolar Indígena em seção


específica, no componente curricular (Língua Materna) e nos eixos transversais (temas
integradores): Educação para direitos humanos (p. 130) e Educação para as Relações
Étnico-Raciais (p. 133). Além do componente curricular específico (Língua Materna
Patxôhã), há também a inserção da modalidade no componente curricular Língua Inglesa.

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A BNCC E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O CASO DO DOCUMENTO
CURRICULAR REFERENCIAL MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHIA)

É reconhecido o direito de o Povo Pataxó decidir por tipo de organização curricular mais
adequado (por série anual, período, ciclo etc.).
Em geral, no documento curricular o Povo Pataxó é citado como parte importante
da identidade do território do município. Ainda que, na página 579, na habilidade do
componente curricular da Geografia, emprega-se o termo “tribo” para se referir a outros
povos indígenas, expressão pejorativa e anacrônica para se referir a essas alteridades
ameríndias.
Conclui-se que embora se tenha a inserção das diretrizes da modalidade nos
componentes curriculares: Língua Materna Patxôhã, Língua Portuguesa, Arte, História,
Ciências, Matemática, Educação Física e Ensino Religioso, não se apresentam as diretrizes
da educação escolar indígena nas competências gerais, tampouco há a indicação de
contratação de especialistas portadores de notório saber (conforme previsto na Portaria
MEC n. 01 1.061/2013), ainda que se mencione a importância de políticas de formação de
profissionais da educação. Destaca-se, nesse currículo, que há a inclusão da perspectiva e
da pedagogia Pataxó por meio da consideração do lúdico, da brincadeira e do modo de
viver no processo pedagógico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, analisou-se o Documento Referencial Municipal de Itamaraju do


estado da Bahia em relação aos parâmetros da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e
aos marcos legais e pedagógicos da Educação Escolar Indígena. Baseado num estudo
teórico, refletiu-se sobre a implementação deste documento normativo no currículo,
modo pelo qual compreende-se aqui ser o caminho epistemológico e crítico mais
adequado, embora também limitado, para se tecer análises mais aprofundadas e menos
generalistas sobre a BNCC e a Educação Escolar Indígena no país. Parecem-nos
superficiais e contraditórias as críticas à BNCC (Militão, 2022; Gonçalves et al., 2017) sem
verificar, de fato, seus efeitos nos documentos curriculares e sem a escuta ativa aos
atores indígenas, sejam professores, sejam gestores indígenas participantes do seu
processo de elaboração.

Revista Linguagem, Educação e Sociedade - LES, v.28, n.56, 2024, eISSN: 2526-8449
DOI: https://doi.org/10.26694/rles.v28i56.4865
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PEREIRA. E, S.

O currículo analisado cumpre com a adoção da temática da história e da cultura


indígena, de acordo com a Lei n° 11.645/2008, sobretudo nos componentes curriculares
das áreas Língua Portuguesa, Língua Materna, Arte, Ciências da Natureza, Educação
Física, Geografia, História e Ensino Religioso. Apresenta também níveis de adesão aos
pressupostos da BNCC e das diretrizes da modalidade educação escolar indígena, com a
Resolução CNE/CP nº 01, de 17/06/2004, relacionada ao Art. 3, à inserção da temática da
cultura e história indígena, ao estabelecimento de pesquisas sobre processos educativos
orientados por valores, visões de mundo e conhecimentos dos povos indígena por meio
de conteúdos, competências, atitudes e valores.
É notória sua adesão à Educação Escolar Indígena com adequações às realidades
locais previstas nas competências básicas e nas competências específicas das áreas do
conhecimento (Art. 4 da Resolução CNE/CP n° 02/2017). No entanto, o currículo não
menciona o desenvolvimento de políticas de formação de profissionais da educação para
o atendimento às especificidades da única escola voltada à educação escolar indígena,
considerando as condições concretas da produção e reprodução social da vida das aldeias
e comunidades indígenas. Somente menciona a importância e não detalha como seria
realizada esta formação para os professores indígenas e muito menos há mais
informações sobre as formas de contratação.
No documento, apontam-se mecanismos (principalmente atividades de pesquisa
nos componentes curriculares que aludem à temática) para o reconhecimento, a
valorização e o reforço das manifestações culturais indígenas, principalmente Pataxó,
como religiosidade, música, culinária, arte, indumentária e outros elementos constituintes
do patrimônio material e imaterial deste povo. No geral, apresentaram-se os mesmos
códigos alfanuméricos das habilidades12 da BNCC e suas respectivas unidades temáticas.
Como vimos, o documento curricular municipal se pauta em um esforço em
promover uma educação inclusiva, sobretudo ao apresentar um componente específico,
Língua Materna Patxôhã (1º ao 5º ano), oriundo do longo trabalho e mobilização de
professores e pesquisadores Pataxós do sul da Bahia. Isto é, no currículo, reverbera-se a
luta, portanto, a participação dos Pataxós em defesa da língua que tem na escola seu

12 Com exceção do componente curricular específico (Língua Materna) que não apresentou os códigos alfanuméricos.

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A BNCC E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: O CASO DO DOCUMENTO
CURRICULAR REFERENCIAL MUNICIPAL DE ITAMARAJU (BAHIA)

espaço fundamental de resistência cultural, sendo marca indelével dos povos indígenas
situados no Nordeste brasileiro.
É preciso destacar que, mediante esta análise, não se conseguiu alcançar a
realidade dos projetos políticos pedagógicos da escola indígena, cujo estudo certamente
complementaria os dados aqui analisados. Há a necessidade de verificar na ponta (ou
seja, na escola indígena) de que maneira este novo currículo da Educação Básica, no caso
analisado, Ensino Fundamental, expressa, de fato, os referenciais e as concepções
pedagógicas dos povos indígenas. Os currículos são “referenciais”, “abertos” e “em
construção”, somente numa escala micro, ou seja, no projeto político pedagógico (PPP) e
no ambiente escolar, será possível analisar o descolamento, a inadequação ou a
adequação curricular para as realidades às quais se prestam. No entanto, tal análise micro
dos PPPs das escolas municipais, sobretudo, da única escola indígena municipal,
extrapola os objetivos propostos neste artigo.
De qualquer maneira, este documento curricular é um referencial fundamental
tanto para a Escola Municipal Indígena Pataxó Trevo do Parque Nacional do Monte
Pascoal de Educação Infantil e Ensino Fundamental (até 5º ano), quanto para as outras 54
escolas de Ensino Fundamental presentes no município. É um capítulo de
reconhecimento da luta do povo Pataxó e de outras lideranças e povos que continuam a
reescrever e a protagonizar os embates e lutas na arena desafiadora da educação no país.

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IBGE - Cidades
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Observatório Movimento Pela Base


https://observatorio.movimentopelabase.org.br/

Fundação Nacional dos Povos Indígenas


https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/povos-indigenas

HISTÓRICO
Submetido: 30 de Set. de 2023.
Aprovado: 20 de Nov. de 2023.
Publicado: 15 de Jan. de 2024.

COMO CITAR O ARTIGO - ABNT:


PEREIRA. E, S. A BNCC e a educação escolar indígena: O caso do documento curricular referencial municipal
de itamaraju (Bahia). Revista Linguagem, Educação e Sociedade - LES, v.28, n.56, 2024, eISSN: 2526-8449

Revista Linguagem, Educação e Sociedade - LES, v.28, n.56, 2024, eISSN: 2526-8449
DOI: https://doi.org/10.26694/rles.v28i56.4865

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