A Vida Não É Útil - Ailton Krenak

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Neste momento, estamos sendo desafiados por uma

espécie de erosão da vida. Os seres que são atravessados


pela modernidade, a ciência, a atualização constante de
novas tecnologias, também são consumidos por elas. Essa
ideia me ocorre a cada passo que damos em direção ao
progresso tecnológico: que estamos devorando alguma
coisa por onde passamos. Aquela orientação de pisar
suavemente na terra de forma que, pouco depois de nossa
passagem, não seja mais possível rastrear nossas pegadas
está se tornando impossível: nossas marcas estão ficando
cada vez mais profundas. E cada movimento que um de nós
faz, todos fazemos. Foi-se a ideia de que cada um deixa sua
pegada individual no mundo; quando eu piso no chão, não é
o meu rastro que fica, é o nosso. E é o rastro de uma
humanidade desorientada, pisando fundo. Um nenenzinho
no colo da mãe balança a perninha e afunda o chão. Porque
esse neném, para circular no mundo que vivemos hoje, vai
usar produtos de higiene, fraldas, tecidos, materiais que,
em algum lugar, estão comendo a Terra. Involuntariamente
ele já está predando o planeta.
Eu ganhei uma plantinha maravilhosa que produz umas
folhinhas que você pode colher, lavar, botar um azeite ou
limão em cima e comer. Ela é cheia de proteínas, se chama
moringa (Moringa oleifera). Então, minha planta de moringa
estava crescendo lá no quintal, e um dia, do meio para o
final da tarde, as formigas a acharam. Quando eu olhei, não
tinha mais nenhuma folha: tinham comido todas, ficou só o
talo. Aquilo me deu uma chateação com aquelas formigas…
Pois nós estamos fazendo a mesma coisa com o planeta, do
meio-dia para o fim da tarde a gente termina de comê-lo. A
ecologia nasceu da preocupação com o fato de que o que
buscamos na natureza é finito, mas o nosso desejo é
infinito, e, se o nosso desejo não tem limite, então vamos
comer este planeta todo.
A proposta de desacelerar nosso uso de recursos naturais
pode sugerir a ideia de adiar o fim deste mundo, mas, em
alguns lugares, esse fim já aconteceu — ontem, hoje cedo,
vai acontecer depois de amanhã. Alguém pode dizer: “Ah,
mas isso é muito apocalíptico, ele está apavorando a
gente!”. Na verdade, estou dando notícias velhas. Inclusive
nas religiões dos brancos há uma história de que, nos seus
primórdios, essa humanidade se espalhou pelo planeta
como uma praga. O Deus deles ficou muito bravo, pois
estavam deixando o mundo muito sujo, e o destruiu com
um dilúvio. Em seguida criou outro, novinho em folha, mas
sua humanidade voltou a se comportar da mesma maneira
caótica e predatória. Ou seja, na cosmovisão dos brancos
também já houve um fim de mundo, eles olham para nós
com estranhamento quando falamos disso porque não têm
memória.
Nós estamos, devagarzinho, desaparecendo com os
mundos que nossos ancestrais cultivaram sem todo esse
aparato que hoje consideramos indispensável. Os povos que
vivem dentro da floresta sentem isso na pele: veem sumir a
mata, a abelha, o colibri, as formigas, a flora; veem o ciclo
das árvores mudar. Quando alguém sai para caçar tem que
andar dias para encontrar uma espécie que antes vivia ali,
ao redor da aldeia, compartilhando com os humanos aquele
lugar. O mundo ao redor deles está sumindo. Quem vive na
cidade não experimenta isso com a mesma intensidade
porque tudo parece ter uma existência automática: você
estende a mão e tem uma padaria, uma farmácia, um
supermercado, um hospital.
Na floresta não há essa substituição da vida, ela flui, e
você, no fluxo, sente a sua pressão. Isso que chamam de
natureza deveria ser a interação do nosso corpo com o
entorno, em que a gente soubesse de onde vem o que
comemos, para onde vai o ar que expiramos. Para além da
ideia de “eu sou a natureza”, a consciência de estar vivo
deveria nos atravessar de modo que fôssemos capazes de
sentir que o rio, a floresta, o vento, as nuvens são nosso
espelho na vida. Eu tenho uma alegria muito grande de
experimentar essa sensação e fico procurando comunicá-la,
mas também respeito o fato de que cada um tem a sua
passagem por este mundo.
Durante milhares de anos, em diferentes culturas, fomos
induzidos a imaginar que os humanos podiam agir
impunemente sobre o planeta e fomos reduzindo esse
organismo maravilhoso a uma esfera composta de
elementos que constituem o que chamamos de natureza —
essa abstração. Construímos justificativas para incidir sobre
o mundo como se fosse uma matéria plástica: podemos
fazê-lo ficar quadrado, plano, podemos esticá-lo, puxá-lo.
Essa ideia também orienta a pesquisa científica, a
engenharia, a arquitetura, a tecnologia. O modo de vida
ocidental formatou o mundo como uma mercadoria e replica
isso de maneira tão naturalizada que uma criança que
cresce dentro dessa lógica vive isso como se fosse uma
experiência total. As informações que ela recebe de como
se constituir como pessoa e atuar na sociedade já seguem
um roteiro predefinido: vai ser engenheira, arquiteta,
médica, um sujeito habilitado para operar no mundo, para
fazer guerra; tudo já está configurado. Nesse mundo pronto
e triste eu não tenho nenhum interesse, por mim ele já
podia ter acabado há muito tempo, não faço questão de
adiar seu fim.
Acho gravíssimo as escolas continuarem ensinando a
reproduzir esse sistema desigual e injusto. O que chamam
de educação é, na verdade, uma ofensa à liberdade de
pensamento, é tomar um ser humano que acabou de
chegar aqui, chapá-lo de ideias e soltá-lo para destruir o
mundo. Para mim isso não é educação, mas uma fábrica de
loucura que as pessoas insistem em manter. Talvez essa
parada por causa da pandemia faça muita gente repensar
por que mandam seus filhos para um reduto chamado
escola e o que acontece com eles lá. Os pais renunciaram a
um direito, que deveria ser inalienável, de transmitir o que
aprenderam, a memória deles, para que a próxima geração
possa existir no mundo com alguma herança, com algum
sentimento de ancestralidade. Hoje, quem fala em
ancestralidade é um místico, um pajé, uma mãe de santo,
porque as “pessoas de bem” saíram de um MBA em algum
lugar e não vão ficar falando esse tipo de coisa. São como
uns ciborgues que estão circulando por aí, inclusive
administrando grandes grupos educacionais, universidades
e toda essa superestrutura que o Ocidente ergueu para
manter todo mundo encurralado.
Outro dia fiz um comentário público de que a ideia de
sustentabilidade era uma vaidade pessoal, e isso irritou
muitas pessoas. Disseram que eu estava fazendo uma
afirmação que desorganizava uma série de iniciativas que
tinham como propósito educar as pessoas sobre o gasto
excessivo de tudo. Eu concordo que precisamos nos educar
sobre isso, mas não é inventando o mito da sustentabilidade
que nós vamos avançar. Vamos apenas nos enganar, mais
uma vez, como quando inventamos as religiões. Tem gente
que se sente muito confortável se contorcendo na ioga,
ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia,
achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é
só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto
morto.
Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não
vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados.
E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me
abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos
outros que pode sair uma outra compreensão sobre a vida
na Terra. Se você ainda vive a cultura de um povo que não
perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é
herdeiro disso, não precisa resgatá-la, mas se você passou
por essa experiência urbana intensa, de virar um
consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de
volta deve ser muito maior. Por isso acho que seria
irresponsável ficar dizendo para as pessoas que, se nós
economizarmos água, ou só comermos orgânico e andarmos
de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que estamos
comendo o mundo — isso é uma mentira bem embalada.
A própria ideia da certificação, dos testes que são feitos
com os materiais que consumimos, desde a embalagem até
o conteúdo, deveria ser posta em questão antes de a gente
abrir a boca para dizer que existe qualquer coisa de
sustentável neste mundo de mercadoria e consumo.
Estamos transformando os oceanos em depósitos de lixo
impossíveis de tratar, mas vocês, certamente, vão escutar
um bioquímico ou um engenheiro espertalhão dizendo que
tem uma start-up que vai jogar um negócio na água,
derreter o plástico e resolver tudo. Essa pilantragem
orienta, inclusive, as escolhas de jovens que vão fazer
especializações em universidades na Alemanha, na
Inglaterra, ou em qualquer lugar, e voltam ainda mais
convencidos do erro. Voltam, assim, transbordantes de
competência para persuadir os outros de que comer o
mundo é uma ótima ideia.
Enquanto as bases materiais da nossa vida cotidiana
estão funcionando, operantes, a gente não se pergunta de
onde vem o que consumimos. Na maioria do tempo, as
pessoas mal respiram ou têm consciência do que põem na
boca para comer. Apenas quando há um desastre, os
indivíduos, desplugados das fontes de suprimentos,
começam a sofrer e a se questionar. Quem sobrevive a uma
grande catástrofe costuma pensar em mudar de vida
porque teve uma breve experiência do que é, de fato, estar
vivo. Existem muitos povos vivendo situação de perdas, de
catástrofe, de guerra. Ouvir sobre como essas pessoas
agem para sair de um trauma profundo, olhar ao redor de si
e recomeçar sua jornada nisso que chamamos “seguir
vivendo”, pode ser instrutivo, mas não substitui a
experiência.
Estou há dois anos vivendo na margem esquerda de um
rio junto com as outras famílias do meu povo que, do ponto
de vista prático, tinham que ter sido removidas daqui, como
o que aconteceu com o pessoal de Brumadinho, de Bento
Rodrigues e outros lugares. Os Krenak não aceitaram ser
retirados, quisemos ficar no lugar do flagelo. “Ah, mas vocês
não têm água!” E daí? “Ah, mas não tem comida!” E daí?
“Ah, mas vocês podem morrer aí!” E daí? Sabemos que esse
lugar foi profundamente afetado, virou um abismo, mas
estamos dentro dele e não vamos sair. É uma questão que
incomoda, mas é preciso estar nessa condição para poder
produzir uma resposta em plena consciência. Consciência
do corpo, da mente, consciência de ser o que se é e
escolher ir além da experiência da sobrevivência.
Uma operação de resgate tem como intuito salvar o corpo
que está sendo flagelado e levá-lo para um outro lugar,
onde será restaurado. Quem sabe, depois de uma
reabilitação, ele pode até seguir operante na vida. Isso
partindo da ideia de que a vida é útil, mas a vida não tem
utilidade nenhuma. A vida é tão maravilhosa que a nossa
mente tenta dar uma utilidade a ela, mas isso é uma
besteira. A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança
cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula
e utilitária. Uma biografia: alguém nasceu, fez isso, fez
aquilo, cresceu, fundou uma cidade, inventou o fordismo,
fez a revolução, fez um foguete, foi para o espaço; tudo isso
é uma historinha ridícula. Por que insistimos em transformar
a vida em uma coisa útil? Nós temos que ter coragem de
ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a
sobrevivência. Se continuarmos comendo o planeta, vamos
todos sobreviver por só mais um dia.
Eu tenho insistido com as pessoas, seja na minha aldeia,
seja em qualquer lugar, que sobreviver já é uma negociação
em torno da vida, que é um dom maravilhoso e não pode
ser reduzido. Nós estamos, em nossa relação com a vida,
como um peixinho num imenso oceano, em maravilhosa
fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem
que ser útil, o oceano é a vida. Mas nós somos o tempo
inteiro cobrados a fazer coisas úteis. É por isso que muita
gente morre cedo, desiste dessa bobagem toda e vai
embora. Uma vez me perguntaram: “Por que que tantos
jovens indígenas estão se suicidando?”. Porque eles estão
achando a vida tão cretina e essa experiência aqui tão
insalubre que estão preferindo ir para outro lugar. Eu sei
que falar disso é doloroso, muitas famílias perderam
crianças, meninos, adolescentes, mas a gente não precisa
ter medo de nada, nem disso.
Viver a experiência de fruir a vida de verdade deveria ser
a maravilha da existência. Alguém vai dizer: “Mas tem tanta
gente que vive em dificuldade material, que tem que morar
em lugares de miséria e violência…”. Porém os lugares de
miséria e violência fomos nós que criamos, não têm
existência por si. Todas as guerras em curso por aí são
produzidas por nós. Também não podemos ficar
alimentando essa ideia de destino: “Ah, aquele monte de
gente sofreu, passou por aquela desgraceira toda, morreu,
mas era o destino deles”. Isso é uma sacanagem. Não é
destino deles nem meu nem de ninguém: nós estamos aqui
para fruir a vida, e quanto mais consciência despertarmos
sobre a existência, mais intensamente a experimentamos.
Sem autoenganação. Se você precisa sair correndo para
uma igreja, para um ashram, para uma mesquita ou para
um terreiro para se sentir em paz, preste atenção, porque
isso pode ser um exercício, mas talvez não seja tudo o que
você está esperando. As religiões, a política, as ideologias
se prestam muito bem a emoldurar uma vida útil. Mas quem
está interessado em existência utilitária deve achar que
esse mundo está ótimo: um tremendo shopping. Os grandes
templos contemporâneos são shoppings (inclusive alguns
que são templos mesmo).
Os povos originários ainda estão presentes neste mundo
não porque foram excluídos, mas porque escaparam, é
interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta,
resistiram com toda força e coragem para não serem
completamente engolfados por esse mundo utilitário. Os
povos nativos resistem a essa investida do branco porque
sabem que ele está enganado, e, na maioria das vezes, são
tratados como loucos. Escapar dessa captura, experimentar
uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da
vida, cria um lugar de silêncio interior. Nas regiões que
sofreram uma forte interferência utilitária da vida, essa
experiência de silêncio foi prejudicada.
Na invasão do Tibete, por exemplo, um povo originário,
que durante gerações experimentava um estado de atenção
que cultivava o silêncio interior e permitia a fruição da vida,
sofreu um atropelamento. Foram jogados no meio dessa
bagunça do mundo, onde o silêncio fica, o tempo inteiro,
sendo assaltado por urgências que parecem acontecer ao
nosso redor. Parecem. Esses eventos têm a mesma
consistência das tais pegadas que estamos imprimindo na
terra. O pensamento vazio dos brancos não consegue
conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o
trabalho é a razão da existência. Eles escravizaram tanto os
outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não
podem parar e experimentar a vida como um dom e o
mundo como um lugar maravilhoso. O mundo possível que a
gente pode compartilhar não tem que ser um inferno, pode
ser bom. Eles ficam horrorizados com isso, e dizem que
somos preguiçosos, que não quisemos nos civilizar. Como se
“civilizar-se” fosse um destino. Isso é uma religião lá deles:
a religião da civilização. Mudam de repertório, mas repetem
a dança, e a coreografia é a mesma: um pisar duro sobre a
terra. A nossa é pisar leve, bem leve.
Eu sempre olhei essas grandes cidades do mundo como
um implante sobre o corpo da Terra. Como se, não
satisfeitos com a beleza dela, pudéssemos fazê-la diferente
do que ela é. A gente deveria é diminuir a investida sobre
seu corpo e respeitar sua integridade. Quando os índios
falam: “A Terra é nossa mãe”, os outros dizem: “Eles são tão
poéticos, que imagem mais bonita!”. Isso não é poesia, é a
nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra, quando
alguém a fura, machuca ou arranha, desorganiza o nosso
mundo.
Cada indivíduo dessa civilização que veio para saquear o
mundo indígena é um agente ativo dessa predação. E estão
crentes de que estão fazendo a coisa certa. Talvez o que
incomode muito os brancos seja o fato de o povo indígena
não admitir a propriedade privada como fundamento. É um
princípio epistemológico. Os brancos saíram, num tempo
muito antigo, do meio de nós. Conviveram com a gente,
depois se esqueceram quem eram e foram viver de outro
jeito. Eles se agarraram às suas invenções, ferramentas,
ciência e tecnologia, se extraviaram e saíram predando o
planeta. Então, quando a gente se reencontra, há uma
espécie de ira por termos permanecido fiéis a um caminho
aqui na Terra que eles não conseguiram manter.
Acontece que a mudança do clima no planeta não deixa
ninguém de fora, então, mesmo que tardiamente, está
sendo despertada uma consciência de que os povos
originários, em diferentes lugares do mundo, ainda guardam
vivências preciosas que podem ser compartilhadas — eles
também estão ameaçados. O que nos resta é viver as
experiências, tanto a do desastre quanto a do silêncio. Às
vezes nós até queremos viver a experiência do silêncio, mas
não a do desastre, pois é muito dolorosa. Nós, Krenak,
decidimos que estamos dentro do desastre, ninguém
precisa vir tirar a gente daqui, vamos atravessar o deserto,
temos que atravessar. Ou toda vez que você vê um deserto
você sai correndo? Quando aparecer um deserto, o
atravesse.

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