À Memória de Afonso Botelho
À Memória de Afonso Botelho
À Memória de Afonso Botelho
J. Pinharanda Gomes
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referenciais no elenco dos que mantiveram a aliança com a matriz leonardina, por
junto identificados com o movimento da Filosofia Portuguesa, em que cabem
diversos itinerários, incluindo o Saudosismo, herança maior recebida de Teixeira
de Pascoaes. O “Integralismo Lusitano” foi valorado por Afonso Botelho e
Francisco da Cunha Leão, por exemplo.
Com Orlando Vitorino, António Quadros e António Braz Teixeira (por
exemplo), partilhou iniciativas culturais diversas. De cór lembramos que, em
colaboração com Orlando Vitorino, foi co-autor dos Teoremas de Filosofia (nº 1,
1969) e do suplemento cultural do Jornal da Madeira, A Ilha (Funchal, 1971-
1973). Depois, ambos, com outros colaboradores, levaram a efeito a revista
Escola Formal (seis números, 1977-1978) que tomou o nome de um dos mais
fascinantes livros de Álvaro Ribeiro.
Na sequela da campanha de Orlando Vitorino para a Presidência da
República, alguns jovens, que o acompanharam, reuniam-se também com Afonso
Botelho e com o subscritor destas linhas. Esses jovens decidiram apostar na
publicação de uma Revista de Filosofia Portuguesa, que recebeu o nome
Leonardo (publicou-se em 1988-1989), nome esse escolhido pelos aludidos
fundadores da Revista, na tertúlia que mantinham na Pastelaria Nova Iorque, a
Entrecampos. Houve o cuidado de constituir um Conselho Patrocinador, que
considerou os nomes históricos, vinculados ao magistério de Leonardo (desde
logo Sant’Anna Dionísio) e aos discípulos de Álvaro Ribeiro e de José Marinho,
entretanto falecidos. Já então Afonso Botelho assumira, com Lima de Freitas e
João Palma Ferreira, a direcção da revista Cultura Portuguesa (1981). Ocupou as
funções de Director do Teatro Nacional D. Maria II (1985-1989).
Neste último ano, através da Editorial Verbo, produziu o substancial estudo
intitulado Ensaios de Estética Portuguesa (Ecce Homo/Painéis/Tomar), para cuja
apresentação pública, se bem que restrita, no Círculo Eça de Queiróz, teve a
gentileza de nos convidar. Conforme seu desejo limitámo-nos a breves notas
impressionistas sem prévio texto escrito. Ocorre-nos, no entanto, o diálogo
acerca do “Ecce Homo”, figura para escárnio e mofa, mas conforme a dignidade
registada no Evangelho (Jo., 19, 2-4) – “coroado de espinhos e coberto com o
manto de púrpura” (“spineum coronat et purpureum vestimenta”).
Na tela desta pintura, que existe no Museu Nacional de Arte Antiga, os
olhos de Jesus são ocultados pela orla de um véu branco. Na sombra do véu onde
se fixariam os olhos do Salvador? Que motivo levou o artista a ocultar os olhos a
Jesus – o homem! – a criar esse enigma? Não nos foi possível esclarecer, ou
talvez o pintor expressasse o desejo do penitente não querer identificar nenhum
dos juízes ou algozes.
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Co-fundador de outras iniciativas e obras, integrou a fundação do Instituto
de Filosofia Luso-Brasileira (1992) de que foi o 2º Presidente (1994-1996).
Cremos ter sido consenso dos fundadores que o signatário fosse convidado a
fazer parte dos sócios fundadores, na qualidade de membro mais novo do ramo
da “Filosofia Portuguesa” (Cf. Enc. Verbo Séc. XXI, vol. 15, col. 1245-1246).
Anos antes, para a iniciativa “Inquérito sobre a Filosofia Portuguesa”, deu-
nos o seu testemunho, que adiante se transcreve e que acompanhou os
depoimentos de Álvaro Ribeiro, António Quadros, Francisco Sottomayor, Romeu
de Melo, Garcia Domingues, H. A. Pereira, Agostinho da Silva, Joaquim Braga,
Luís Furtado, Amorim de Carvalho, M. Leal Freire e Francisco da Cunha Leão
(Braga, Pax, 1972).
Acedeu ainda a que um trecho do seu estudo, extraído do livro Estética e
Enigmática dos Painéis, intitulado “Pentecostes”, fosse incluído na nossa
antologia critica Teodiceia Portuguesa Contemporânea (Sampedro, Lx.ª, 1974).
Depois, aceitou que o seu magistral ensaio “Saudosismo com Movimento”
(1960), fosse incluído na antologia intitulada Introdução à Saudade (Porto, Lello,
1976), que levámos a efeito com a magistral companhia de Dalila Pereira da
Costa, antologia essa também editada no México (Fondo de Cultura Económica,
1989, em castelhano).
Outros episódios seriam mencionáveis, mas não esquecemos o verbete que
acerca de A. Botelho nos foi encomendado por João José Cochofel para o
Grande Dicionário de Literatura Portuguesa e da Teoria Literária (Vol. II,
1977, pp. 22-23).
É de 1996 a escatológica oração, ou especial liturgia das horas (da vida, do
amor e da morte) – Teoria do Amor e da Morte (Fund. Lusíada, 1996). Depois
dos exercícios escatológicos, ou sobre os novíssimos do homem, herdados de
Leonardo Coimbra, este texto hierático de Afonso Botelho fulgura na ribalta da
nossa “insciência”, sobre o “hábito de morrer”. No ensaio de A. Botelho somos
desafiados a pensar os transcendentais – Impossível, o Infinito e o Irracional.
Experienciou o hábito em 20.09.1996 (É de 1997 a edição póstuma
Saudade, Regresso à Origem).
Adiante recuperamos alguns textos relativos a A. Botelho, que nos ficaram
pelo caminho, em jeito de memória.
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Aos homens da nossa geração, a quem foi ensinado que o Escritor (o
Scriptor) gozava dos benefícios da graça iluminativa para que, servindo-se da
palavra, desse inteiro testemunho do Verbo, desse modo sendo nele – Escritor –
que a consciência do tempo transitorial se exprimia por inteiro – tem vindo a
revelar-se, em grau cada vez mais perturbante, que essa graça se encontra em
ritmo descendente, sendo cada vez menos os homens que ainda acreditam nas
virtudes iluminativas do artista da Palavra: aquele que estabelece a conotação
material entre a ideia e o símbolo que a revela.
O abastardamento do conceito de Escritor – possivelmente ajudado a
desenvolver-se pela inconsciência sucessivamente maior do próprio Escritor –
terá em grande parte contribuído para que, ao nível dos sectores regentes ou que
regem as massas, o Escritor se tenha transformado numa velharia, com certeza
numa antiguidade sem outra valia que não seja a de um ornamento falso; coisas
que se penduram nas paredes, ou se alinham em estantes de madeiras preciosas,
sem outro objectivo que não seja o usufruto de um adorno.
A cultura portuguesa que, não é demais repeti-lo, se encontra em franca
decadência há quatro séculos, tantos quantos os que se têm caracterizado pelo
que Afonso Botelho designa por estado de irreflexão (o achado da figura é tão
expressivo que diz muito mais do que muitas outras palavras juntas e ordenadas
em discurso…) padece, julgamos, mais do que nenhuma outra, das culturas
mediterrâneas, incluindo a francesa, da inconsciência do valor cultural do
Escritor. Efectivamente, além de o não reconhecer como entidade jurídica
suficiente, além de não lhe prestar a atenção que merece, ainda se permite negar-
lhe o usufruto da já mencionada graça iluminada e iluminante que, só ele, por
motivos que não se torna necessário aduzir, possui. De certa maneira, esta
posição afectiva, mais do que intelectiva em face da situação do escritor, não
prejudica espiritualmente o Escritor: constitui um sinal de falta de respeito que a
Nação – ou os utentes da Cultura – têm para consigo mesma. Ao desrespeitar o
Escritor não é este quem sofre, no rosto e no coração, a desvergonha do
impropério: é a própria Nação que se nega porque, negando-se ao Escritor, se
nega, implicitamente, a fugir ao estado de irracionalidade colectiva em que se
encontra mergulhada, procurando melhores clareiras, onde o sol bata mais
directamente para, aí, à maneira socrática, celebrar a missa da sua Psicologia.
Num dos parágrafos do preâmbulo que antecede o seu livro, Afonso
Botelho indicou, sem a mínima parcela de erro, uma das causas que, ao longo do
tempo, mais terá contribuído para o “estado habitual dos portugueses”, essa de
“uma ascendência do pensamento” a que recorrer e com uma diversidade de
pontos de vista sobre o juízo na filosofia dos nossos dias, a critica que tem
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dominado a cultura literária não procurou fundamentar o processo mental que
utiliza, preferindo vogar na facilidade que lhe concede a linha mais literária do
que filosófica (dos Taine, Saint-Beuve, Gide, etc.)”.
A asserção (mais do que juízo) de Afonso Botelho, um escritor (um filósofo
que, por isso mesmo, na esteira de seus mais próximos mestres se nega ao juízo,
seja ele critico, atributivo ou univocizante, justamente porque, na cultura
portuguesa que está não ocorre identificar o juízo num “sistema filosófico”), não
carece, obviamente, de factos que provem a força do argumento. Mas, de
passagem, e como exemplo da sageza com que Afonso Botelho apreendeu a crise
cultural do escritor português, bastaria ter presente a série de considerações que
foram efectuadas em recente “mesa redonda literária”, levada a cabo por um
órgão da nossa imprensa diária e onde, como certamente se aperceberam os
Escritores, faltara justamente o sentido da “qualidade cultural” do conceito do
Escritor, a noção do iluminismo vertendo na personalidade deste e, para além
disso, a consciência da subjectividade contraída, isto é, a “opinião incontida”,
porquanto, ainda como refere Afonso Botelho, “quem limita a opinião é ainda a
opinião” – coisa que só é desconhecida por quem já tenha olvidado os valores
implícitos na doxografia ou, ainda por quem, infelizmente, jamais soube o que
isso era.
Não se torna viável oferecer uma visão consentânea da obra de Afonso
Botelho, num simples artigo de jornal. A quase centena de páginas do voluminho
intitulado Situação Cultural do Escritor (Lisboa, 1967) contém o que poderíamos
designar por cosmologia da situação portuguesa e não apenas cultural. Pertence,
assim, à categoria dos livros que não se medem aos palmos e que, num palmo,
abrangeram toda a extensão e toda a compreensão do processo português. Mais
difícil ainda se torna comentar o livro em artigo de jornal, se atentarmos ao facto
de – são várias as opiniões concordantes – tal livro não ser legível à maneira
impressionista e exigir, da parte do leitor, uma leitura mansa, ordenada, espaçada
(se possível a grandes espaços) tal como estava prescrito na pragmática de Dom
Duarte.
Por isso, o livro de Afonso Botelho não foi distribuído à critica habitual e
grande precipitação é a nossa ao arrojarmo-nos a tornar pública uma nota que, em
face do conteúdo da obra de Afonso Botelho, não passará jamais de uma simples
nota de recensão, uma notícia sem consequências espirituais.
Se, na verdade, livros existem susceptíveis de crítica imediata, este de
Afonso Botelho não pertence a essa categoria. Nem possivelmente à outra, à de
uma crítica mediana, estabelecida a longo prazo. Exige, disso estamos certos,
uma leitura permanente (leitura visual e mental) e continuada para além das
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circunstâncias, porque será necessário descobrir, nas palavras que o Escritor
revelou, as outras muitas que não revelou.
Cumpre ainda assinalar que um dos factos pelos quais o Escritor português
é visado por uma crise cultural reside justamente na carência de Escritores que
pensem e escrevam apenas para Escritores. É certo que a obra de Álvaro Ribeiro,
de José Marinho e de Afonso Botelho parece constituir, com certa justeza, o tipo
de obra destinada à formação de Escritores. No entanto, a incultura generalizada
do escritor português fecha-se à leitura dos escritos doutrinológicos e isso
também porque, tal como escreve Afonso Botelho, “ao lado da cátedra dos que
ensinam erguemos o pelouro dos que criticam. Entre as duas sedes de decisão
ilusória esperamos que se reforme a liberdade do pensamento português”.
(P. G., Pensamento Português, vol. I, Braga, Pax, 1969, pp. 116-118).
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correspondem a actos de uma mesma obra dramática), o mesmo não diremos da
sua forma que, essa, nos pareceu mítica: um fenómeno da vida quotidiana, ou do
processo diarístico, em que o mal se patenteia, é comunicado através do
inverosímil, ou do inacreditável, melhor, segundo as exigências do milagre, ou
daquilo que inesperadamente aparece (ou nos aparece). O mito leva a
necessidade da novela até às últimas instâncias de verdade porque, escondendo a
verdade essencial, revela os factos acidentais ou existenciais. A verdade da
dignidade do amor permanece oculta sob a existência e a prática da sua violação,
que o mito quer inviolável, mesmo que a novela permita a sua viabilidade.
Como teoria da violência do amor lemos esta novela sobre os problemas da
verdade e da inverdade do amor, mais o ensaio que o autor escreveu para
acompanhar a novela, sobre os temas da ironia, do humor e do sarcasmo.
A violência é maiêutica? Se a maiêutica é a arte de extrair, ou de partir, em
que grau a maiêutica é agente decisivo ou de cisão?
Pela ironia, pretende-se objectivar o motivo, ou da graça, ou da alegria, ou
da dor, para que, através dessa objectivação, o paciente seja capaz de transitar a
outro estado de não sofrimento. É um processo homeopático pelo qual os
semelhantes curam os semelhantes: a ironia faz sofrer, mas, pelo sofrimento da
ironia, podemos libertar-nos do próprio sofrimento que subjectivamente nos
aflige, de onde, a tradição irónica das carpideiras, como apontou Hegel na
Estética, ter justamente por fim essa maiêutica, ou essa separação da causa do
sofrimento e do próprio sofrimento para que, objectivado este – posto de fora,
como objecto, para que, objectivado, desapareça a causa subjectiva de dor
interior. Então, ironia e maiêutica estariam muito próximas uma da outra, porque
ambas visariam o mesmo fim.
Verdade que a eironeia, na sua matinal acepção, é uma ignorância
simulada, ou de uma modéstia de saber que se simula no excesso de ignorância,
para levar o outro a decidir-se, ou a cindir-se, e, por conseguinte, a assumir-se e
ao demais; mas, nessa simulação, própria da novela e do mito, a verdade é
obrigatoriamente escondida e, por isso, exige constantemente a paroideia,
íntima amiga da eironia, porque aquela é o conjunto de caminhos laterais ou
secundários, por onde a ironia actua, preferindo a paródia, ou a tentação dos
pormenores, para, enfim, chegar onde, pelo caminho direito, chega a maiêutica.
Assim, podemos compreender como a ironia tanto permite a paródia, como o
humor, como o sarcasmo, tal como abundantemente ensina o texto de Afonso
Botelho. Em todo o caso, à maiêutica, e só a ela, cabe a tarefa de partir, ou de
cindir, uma vez que, na manhã deste conceito, a palavra significava literalmente
partir o sujeito do motivo. De facto, o parto é o momento em que a mãe se parte
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do filho, ou em que o filho é separado da mãe. Neste caso, se tanto a ironia como
a maiêutica pretendem o mesmo fim de partir para objectivar, onde a diferença?
Nos fins, claro: a maiêutica pretende a cisão vital, separar a origem do efeito,
mas sem molestar o efeito; a ironia pretende a cisão mortal – separar a origem do
efeito e matar o efeito, o que aliás se prova nas lutas políticas e ideológicas, em
que o fundibulário, sem desejar assassinar o que se lhe opõe, mostra o desejo e
faz tentativas para, pela ironia – humor violento, sarcasmo pecaminoso, etc. –
assassinar a ideologia do que se lhe opõe.
A situação cultural portuguesa aparece, desta forma, filosoficamente tratada
no livro de Afonso Botelho, livro que achamos uma outra face de dois livros
anteriores: a novela A Intriga e o ensaio sobre a Situação Cultural do Escritor. A
motivação psicológica do primeiro e a motivação existencial do segundo
encontram, quer nesta novela, quer no ensaio final, uma redimensionação em
termos de crítica hermenêutica ou anagógica: a leitura da simbólica dos sinais, ou
a leitura simbólica dos próprios símbolos. Sendo assim, o autor não tolheu, nem a
imaginação pela reflexão, nem a reflexão pela imaginação, ou seja: preferiu a
especulação que, por virtude do espelho, tanto assume a primeira como a
segunda.
De onde, por fim, se dirá que a leitura de tal obra só poderá ser feita por
quem se revele capaz de crer, ou de acreditar, a fenomenalidade do absurdo, o
milagre devindo fenómeno.
(P. G., Pensamento Português, vol. 3.º, Braga, Pax, 1975, pp. 162-164)
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perfil mental do monarca raro sofre contradições, e tanto nos escritos que
chamamos teóricos, como nos que classificamos de pragmáticos, há uma única e
mesma vertebração. Para a compreender basta, com efeito, conhecer as duas
obras tópicas: o Leal Conselheiro e a Arte de Bem Cavalgar, espelhos que são da
“via de (um) pensamento que prolonga a fé no saber” (Int., p. 15). Afonso
Botelho será o pensador que mais frequente leitura tem feito da obra de Eduarte
rei. As reflexões dessas frequentes leituras acham-se em opúsculos vários, de que
comemoramos, a título informativo – D. Duarte e a Fenomenologia da Saudade
(1950), ‘Andar Dereito’ (1951), Renunciar (1952), Saudosismo como Movimento
(1960) e, mais perto, Da Saudade ao Saudosismo (1990), cujo capítulo segundo é
todo preenchido com ensaios relativos ao tema “D. Duarte, filósofo da saudade”.
Noutros escritos, de natureza cívica e ética, também Afonso Botelho
recorre, não raro, ao ensinamento duartino. Se D. Duarte escreveu os livros, e
sobretudo o Leal Conselheiro, para “se ler todo de começo, passo, e pouco da
cada-ua vez, bem apontado”, poderemos então conceber, pelos exemplos citados,
como Afonso Botelho tem correspondido ao tipo de leitor preconizado pelo
monarca. O volume em apreço consta de duas partes: um Introdução e uma
Antologia.
Quanto à Antologia, são conhecidas as dificuldades em antologiar uma obra
que, embora estruturada – o autor considerou o L. C. um “trautado”, e não um
“ensaio”, como algumas vezes, com intuito depreciativo, se tem dito – se
organiza em capítulos de singularidade temática. De algum modo se dirá que o L.
C. é, já de per si, uma “antologia”. Afonso Botelho revela ter vencido as
dificuldades, seleccionando as partes e os capítulos que nos proponham a
essência do perfil mental do autor: a teoria do conhecimento, o exame da alma, a
teoria da ciência e das virtudes, e da economia moral e ética. De modo análogo,
no que ao Livro da Ensinança de Bem Cavalgar inere, o antologiador revelou os
conhecimentos relativos aos princípios e não os concernentes aos pormenores da
prática: a vontade, o poder e a liberdade de quem cavalga como bom cavalgador.
O filósofo equestre que D. Duarte é, tanto em sentido real ou nominal,
como em sentido figurado ou simbólico, apresenta-se-nos agora como um retrato
de luz em contraste, por forma que se nos dá a conhecer em plenitude, ainda que
por via selectiva ou antológica. Teve Afonso Botelho o bom senso de ‘andar
dereito’ na escolha da edição para base da antologia, recorrendo à que Joseph M.
Piel preparou, há bem um meio século, para a Livraria Bertrand, em que seguiu
os manuscritos da Biblioteca de Paris, sem prejuízo do recurso à edição do P. J.
Roquette, a primeira que se fez dos manuscritos parisienses. O carácter que
Afonso Botelho designa por “santidade de pensamento” acha-se, por isso,
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francamente aduzido e deduzido nos textos duartinos: o “trautado”, a “sesudez”,
as “boas sequenças” e, enfim, o itinerário da alma, pelo hábito, para a virtude e,
daí, para o que mais importa.
A Introdução explana-se em cerca de três dezenas de páginas. Leitor que
somos há anos vários, dos escritos de Afonso Botelho, não parece afoiteza o
declarar que este seu texto é, dos últimos, o mais organizado, o mais
comunicativo, o mais denso de criatividade que do autor temos lido. De salientar
o método de exegese formal em que nos propõe (p. 20) o ternário da unidade
textual: a unidade de princípios, a unidade temática e a unidade textual da obra
de D. Duarte, mormente do Leal Conselheiro, que por isso, nos aparece, já não o
feixe de esparsos compilados a esmo, segundo vontade arbitrária, mas como o
concerto de meditações propostas pela multiplicidade do existencial, concerto
esse que patenteia uma clara vontade sistematizante, conforme ao gosto medieval
de Quatrocentos, ainda que o autor fosse homem, não tanto de livros, como de
reflexão sobre a vivência e a experiência. Outra unidade teorética da Introdução é
relativa aos “princípios” do pensamento do monarca: o princípio da lealdade, que
garante o critério da verdade (o filósofo não deve enganar!), o optimismo cristão,
a liberdade, o crescimento do ser, o hábito e as “boas sequenças”, ou seja, a
virtude adquirida.
Afonso Botelho conseguiu uma interior leitura dos principais escritos de D.
Duarte, extraindo deles uma espiritualidade nova, qual essa que parte de uma
“visão do homem perante Deus e perante a Natureza, firmemente apoiada numa
educação finalista” (p. 39).
(P. G., Revista Port. de Filosofia. Tomo XLVII, Braga, 1991, pp. 487-488)
AFONSO BOTELHO
“NÃO HÁ PENSAMENTO SEM PÁTRIA”
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Também podemos pensar tal relação como problema, mas então
procuramos-lhe os fundamentos históricos, culturais ou pedagógicos, e jamais
filosóficos.
Ao levantar-se o problema da filosofia portuguesa, no embate das
afirmações a favor ou contra a sua existência, declarou-se obviamente o
momento de crise ou da consciência, que necessita de procurar fundamentos,
sabendo de antemão que é ocioso fazê-lo.
Assim se formula com propriedade o paradoxo: só existe o problema da
filosofia portuguesa porque se considera que essa filosofia não existe.
Creio que foi nestes termos problemáticos, que Álvaro Ribeiro propôs a
questão em 1943.
O movimento afirmativo, desencadeado posteriormente, derrubou barreiras
culturais desnecessárias, provocou oposições necessárias, concitou o entusiasmo
de muitos neófitos, mas não alterou a situação problemática inicial.
Aliás, o ter-se por oportuno este inquérito é sintoma dessa situação
inalterada.
2. A relação sófica e filosófica entre o modo de pensar de um povo e o seu
modo de ser tem lugar na pátria. Na sua imagem se oculta, pela
inconsciência épica, e se desoculta, pela consciência trágica, a
impossibilidade de se afirmar, com fundamento, que certas verdades
pertencem a certo povo. Nela se contêm, portanto, os momentos extremos
do pensamento em face da sua própria exigência.
Por isso se pode dizer com verdade que não há pensamento sem pátria.
Desde que se problematize a pátria de um pensamento, problematiza-se
também a existência da pátria considerada em si mesma. A crise que um
descobre na outra se encobre.
3. De um modo geral, os que se agrupam nos opositores da filosofia
portuguesa desejam ardentemente outra pátria para o pensamento
português. E, nesse sentimento, não são menos patriotas do que aqueles
que negam a filosofia portuguesa e veneram a literatura da mesma língua.
Estes opositores são-no inconscientemente, isto é, não procuram até ao
fim os motivos psicológicos da oposição que ocasionam.
De qualquer modo, conseguem agravar o defeito que imputam aos
defensores da filosofia portuguesa porque negam e afirmam pela mesma razão,
embora dela não tenham consciência.
Há, porém, os opositores conscientes, que não desejam que se
particularize a universalidade do pensamento que a filosofia é.
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O movimento de espírito que os impele, convém a todo o filósofo, mas a
conclusão a que chegam é equívoca, visto que, desde Aristóteles, se sabe que no
individual pode residir o universal e que até nada mais universaliza o pensamento
do que o modo individual de falar e pensar de alguém ou de um povo.
Encontramo-nos, portanto, nesta fase da cultura nacional, com uma grande
maioria de pensadores que equivocamente ataca a autonomia do próprio
pensamento e com uma minoria que nem sempre a defende com total
fundamento.
Entretanto, o país ocupa-se na intransigente luta pelo corpo da pátria mas
não se preocupa com tão falsas oposições de alma, cada vez mais degradadas em
insignificantes pugnas literárias.
Também no país vizinho existem, latentes, duas Espanhas, na expressão
de Fidelino. Mas aí a cisão é de ideias e concorre par a exaltação da pátria,
comum aos opostos ideais.
A oposição, a nós, inferioriza-nos no presente e afasta quantos no futuro
poderiam dar os primeiros passos na reflexão do pensamento português.
Que há a fazer?
Se dirigirmos a pergunta ao filósofo com entusiasmo ideológico ou
intenção pragmática, podemos obter uma resposta decepcionante, porque para ele
a crise, a cisão e a morte são condições do próprio pensar – “os filósofos morrem
em vida”.
Que sejam então os construtores do futuro a interrogarem o pensamento
filosófico dos seus compatriotas em termos, não de fazer, mas do saber em que
todo o fazer se fundamenta.
Se tiverem essa coragem, e essa humildade também, poderão porventura
superar o que neste momento se afigura insuperável, confirmando assim a
existência da filosofia portuguesa sem termos que afirmar que ela existe.
(Apud Inquérito sobre a Filosofia Portuguesa, Braga, Pax, 1972, pp. 63-66. O
Inquérito foi inicialmente publicado na página literária Parábola, Diário do
Minho, 15.5.1971 a 9.9.1972)
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