A Psicologia Social Do Trabalho Sujo Como Base para Estudos de Criminologia - Jusbrasil

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27 de Maio de 2024

A Psicologia Social do trabalho


sujo como base para estudos de
Criminologia
Publicado por Canal Ciências Criminais há 7 anos

Por Paulo Incott

A Escola de Chicago estabeleceu diversos marcos importantes


no estudo de sociologia e psicologia social. Foram vários os mo‐
tivos que fizeram dela, no início do século XX, um reduto de
grandes professores e pesquisadores neste campo do saber.

A região estratégica em que Chicago se encontrava, proporcio‐


nando um ponto de comércio com o Canadá, o caldo cultural
provido pela chegada de um grande número de imigrantes, as‐
sim o pelo fato de ter sido destino de muitos ex-escravos em
busca de emprego fez com que no início do séc. XX a cidade se
tornasse palco propício para diversos estudos sociológicos
interessantes.

Estes estudos fornecem dados para uma séria de frentes de pes‐


quisa e foram valiosos para o desenvolvimento da Criminologia.
Em verdade, quando se fala das Escolas Sociológicas dentro de
Criminologia se está basicamente falando da Escola de Chicago.

Em que pese o fato de vivermos hoje um momento dentro das


análises criminológicas em que as teorias levantadas pela Escola
de Chicago tenham sido superadas, ou melhor, que o objeto de
estudo tenha sofrido um “salto qualitativo”, operado pela ver‐
tente Crítica da Criminologia, as pesquisas e descobertas obtidas
nesta escola e em outras frentes de estudo sociológico não de‐
vem ser desprezadas.

Antes, é importante revisitar estas pesquisas, de modo crítico


obviamente, procurando perceber aquilo em que podem nos
ajudar a compreender melhor os fenômenos sociais que, de cer‐
ta forma e em certo grau, propiciam o agravamento na incidên‐
cia de determinados delitos.

Esses dados, se trabalhados com responsabilidade, podem levar


a novas pesquisas que permitam políticas voltadas à redução de
desigualdades, proporcionando consequentemente a redução de
determinados delitos.

Dentre as pesquisas conduzidas pela Escola de Chicago gostaria


de chamar atenção a uma linha não trabalhada com muita
frequência nas discussões criminológicas.

Trata-se da Psicologia Social do Trabalho Sujo. O foco destes es‐


tudos se volta para questão do significado social do trabalho,
bem como os efeitos que determinados tipos de trabalho ope‐
ram na formação de identidade, autoestima, percepção coletiva,
entre outras importantes construções do aparelho psíquico.

Esta linha de pesquisa se preocupou em primeiro lugar com a


conceituação de trabalho sujo. O adjetivo em inglês dirty não se
limita a descrever trabalhos efetuados em ambientes precários
em questões de higiene, embora de certa forma englobe estes.

O termo também se refere àqueles trabalhos em que aquele que


nestes opera sofre a estigmatização de estar laborando junto a
um coletivo de pessoas estigmatizadas, como detentos, pessoas
com doenças contagiosas, etc.

Abarca também toda uma série de atividades “informais” para


as quais não há organização coletiva reconhecida ou que atua à
margem da legalidade estrita sob o manto da cegueira delibera‐
da das agências de fiscalização.

Um conceito subordinado ao de trabalho sujo mas que merece


destaque é o de trabalho esvaziado, que conforme define Lhuili‐
er (2002) é a ocupação profissional desqualificada, desvaloriza‐
da, no limite da extinção, em geral ocasionada pelo avanço
tecnológico.

O fato reconhecido e analisado pela escola é de que estes traba‐


lhos são “distribuídos” na sociedade de forma a reforçar a segre‐
gação social operada pela lógica do consumo, solidificando a se‐
paração entre possuidores e desprovidos.

De forma geral se percebe que estes últimos trabalham para per‐


mitir a existência de privilégio e confortos dos primeiros. Con‐
forme Hughes (1962) bem descreve a sociedade “cria a demanda
e a necessidade por trabalhos sujos e depois priva aqueles que o
realizam de um status social digno”.
Opera-se um sistema de dupla segregação e redução da
dignidade.

Vale notar que a segregação, conforme aludido por Hughes, não


ocorre apenas na diferença gritante com que estes serviços são
remunerados financeiramente quando comparados a trabalhos
que recebem maior prestígio na sociedade de consumo.

Na esteira do que ensina Bordieu (2015) há uma incidência de


“valores dominantes” ocasionando o desprezo por “valores do‐
minados” nesta classificação de trabalhos a serem realizados de
acordo com a “casta” social a que a pessoa se vê inserida.

Dados estes fatores muitos economistas preferem entender o


trabalho sujo como subemprego ou como uma faceta do
desemprego.

Há, no desempenho de muitas atividades tidas como trabalho


sujo, um imbricamento com atividades ilícitas. Este imbrica‐
mento possui graus de superposição, diretamente ligados à re‐
provabilidade social/penal a que se submetem.

Nota-se essa progressão nos seguintes exemplos: venda de pro‐


dutos “pirata”, a prática do “sacoleiro” (pessoa que traz de outro
país produtos para venda sem a devida legalização
tributária/fiscal), a assistência fornecida a pessoas idosas ou do‐
entes sem licença profissional adequada, determinados tipos de
apostas esportivas, chegando à prostituição e ao tráfico de
drogas.

Muito do que a escola produziu vai no sentido de demonstrar


que tipo de relação interna, psíquica, as pessoas que desempe‐
nham estas atividades formam com elas. É fato amplamente
comprovado que o sujeito forma um vínculo ontológico com sua
profissão, o que deixa claro que há uma relação psicológica
construída no exercício desta.

Um dado interessante colhido pelas pesquisas é de que nem


sempre o fato de executar um trabalho sujo opera no sentido de
degradar a personalidade.

O fator preponderante para que isso ocorra, segundo as conclu‐


sões da psicologia social, é o isolamento, entendido na circuns‐
tância de ter de executar um trabalho para o qual não há um co‐
letivo organizado que o represente e onde o trabalhador possa
se sentir inserido, no qual possa se sentir parte de algo maior e
mais significativo.

O ponto que nos interessa aqui é a conclusão destes estudos no


sentido de negar a ilusão de que no sistema de mercado liberal
as possibilidades estão abertas e de que a pessoa possui uma
efetiva escolha, uma vez que dotada de livre arbítrio.

Os estudos foram claros em demonstrar que não se trata de ana‐


lisar, do ponto de vista da consciência individual, se existe algo
como a liberdade, mas em demonstrar se haviam escolhas efeti‐
vas a serem feitas. Castel (1999) denomina esse quase determi‐
nismo da falta de opções de individualismo negativo, da seguin‐
te forma:

Privadas do acesso ao núcleo de proteção social, muitas pesso‐


as não têm outra opção a não ser ocupar esses trabalhos soci‐
almente pouco valorizados, apesar de importantes para a pró‐
pria sobrevivência/manutenção da sociedade. Quer dizer, não
se trata propriamente de um movimento de livre escolha, mas
de falta de opção para evitar a desfiliação social.
Ocorre ainda, quando trazemos esta análise com as devidas
adaptações para o cenário atual de países marginais, como em
geral são os países da América Latina, que é preciso acrescentar
a esta conclusão o fato de que até mesmo os trabalhos sujos não
estão disponíveis a todos.

Mesmo os que pendem, em diferentes degraus de descida, para


ilegalidade, dependem de certas habilidades e condições que
não são distribuídas de forma a capacitar todos sequer para es‐
tas e, mesmo quando capacitado, o número de vagas mostra-se
significativamente menor do que a procura.

Que conclusão se quer extrair desta breve análise de alguns dos


estudos da Escola de Chicago? Refletir na esfera de possibilida‐
des sociais se mostra mais sincero e coerente do que pensar os
fenômenos sociais a partir da liberdade de escolha em sentido
absoluto.

Isso não significa dizer que determinados indivíduos não devam


ter suas ações contrárias ao direito imputadas a si afim de res‐
ponderem por seus atos.

Significa sim dizer que a análise de culpabilidade precisa tomar


a sério os fatores apontados aqui, como uma forma do Estado
assumir sua reponsabilidade social, ainda que de maneira tar‐
dia, já que quando se está fazendo a análise de culpabilidade o
conflito já ocorreu.

Ainda assim, é um momento derradeiro onde o Estado (juiz)


deve assumir o compromisso coletivo de igualdade, equilibran‐
do (reforço: tardiamente) a balança que a lógica de mercado in‐
siste em desnivelar.
Significa também que nas análises de política criminal estes fa‐
tores acima expostos, a partir dos estudos de psicologia social e
da relação do ser humano com o trabalho, precisam ser levados
em conta de modo a afastar o discurso monossílabo de aumento
da punição e permitir a construção de possibilidades sociais da
forma mais pulverizada possível.

REFERÊNCIAS

BENDASSOLLI, P. F., & da ROCHA FALCÃO, J. T. (2013). Psi‐


cologia social do trabalho sujo: revendo conceitos e pensando
em possibilidades teóricas para a agenda da psicologia nos con‐
textos de trabalho. Universitas Psychologica, 12 (4), 1153-1166.
Doi: 10.11144/Javeriana. UPSY12-4. Psts

BORDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 8ª ed. São


Paulo: Perspectiva, 2015

CASTEL, R. (1999). As metamorfoses da questão social. In: Ben‐


dassolli, P. F., & da Rocha Falcão, J. T. (2013). Psicologia social
do trabalho sujo: revendo conceitos e pensando em possibilida‐
des teóricas para a agenda da psicologia nos contextos de traba‐
lho. Universitas Psychologica, 12 (4), 1153-1166. Doi:
10.11144/Javeriana. UPSY12-4. Psts

HUGHES, E. (1962). Good people and dirty work. Social Pro‐


blems. In: Bendassolli, P. F., & da Rocha Falcão, J. T. (2013).
Psicologia social do trabalho sujo: revendo conceitos e pensando
em possibilidades teóricas para a agenda da psicologia nos con‐
textos de trabalho. Universitas Psychologica, 12 (4), 1153-1166.
Doi: 10.11144/Javeriana. UPSY12-4. Psts
LHUILIER, D. (2002). Placardisés. Des exclus dans l’entreprise.
In: Bendassolli, P. F., & da Rocha Falcão, J. T. (2013). Psicologia
social do trabalho sujo: revendo conceitos e pensando em possi‐
bilidades teóricas para a agenda da psicologia nos contextos de
trabalho. Universitas Psychologica, 12 (4), 1153-1166. Doi:
10.11144/Javeriana. UPSY12-4. Psts

Fonte: Canal Ciências Criminais

Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-psicologia-social-do-trabalho-sujo-


como-base-para-estudos-de-criminologia/437649741

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