0% acharam este documento útil (0 voto)
33 visualizações19 páginas

EMPREGO DOMÉSTICO - Revendo o Novo - Alda Britto Da Motta - 1992

Trata-se de artigo sociológico sobre trabalho doméstico

Enviado por

frente.labrys
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
33 visualizações19 páginas

EMPREGO DOMÉSTICO - Revendo o Novo - Alda Britto Da Motta - 1992

Trata-se de artigo sociológico sobre trabalho doméstico

Enviado por

frente.labrys
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 19

EMPREGO DOMÉSTICO: Revendo o Novo*

Alda Britto da Motta

Considerando o novo como culminância ou


momento privilegiado de uma processo, o artigo
aponta alguns momentos de mudança do trabalho
doméstico na História: de produção coletiva a in-
dividual, de não-remunerada a assalariada, exer-
cida diferencialmente segundo gêneros, classes e
gerações. Contemporaneamente, enfim legitimado
como análise acadêmica, realiza-se em um contexto
social de crise, onde tanto mulheres como classes
populares se demonstram capazes de ação
política.

I. EMPREGO DOMÉSTICO - 0 NOVO

O novo não é o súbito. É momento de um processo, ou a sua cul-


minância - no que guarda, então, várias possibilidades de permanência.
(A permanência como a constância mais duradoura na trajetória -
dialética - da sociedade)
O novo é também definido pela percepção subjetiva - do ator so-
cial ou do pesquisador - de uma experiência, ou de uma conjuntura. As-
sumindo o ângulo de visão do pesquisador, tentarei identificar algumas
importantes características do trabalho doméstico. Detenho-me, ex-
ploratoriamente, na conjuntura brasileira atual, partindo da observação,
em especial, da realidade baiana, com vistas a discernir: (i) os movimen-
tos do trabalho doméstico remunerado, tanto na força de trabalho
feminina, como internamente às suas categorias e processos de traba-
lho; (ii) os atores sociais que esses movimentos ensejam; e (iii) suas
novas formas de atuação e os possíveis resultados delas decorrentes.
Para isso, valer-me-ei, além da literatura especializada disponível,
dos dados empíricos por mim coletados e reflexões realizadas ao longo

Versão revista da comunicação apresentada ao GT "A mulher na força de trabalho",


XII Encontro Anual da ANPOCS, 23 a 27.10.1989, Caxambu/MG. Uma versão em
inglês foi apresentada, com o título "What's new on domestic work in Brazil", no
IV International Interdisciplinary Congress on Women, 3 a 7 de julho de 1990,
Hunter College, CUNY - Central University of New York. Professora Adjunta
do Departamento e Mestrado em Sociologia e Pesquisadora do NEIM - Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher/UFBa.

Caderno CRH, n. 16, p. 31-49, jan/jun, 1992.


de vários anos e cinco projetos de pesquisa sobre trabalho doméstico,
entre 1976 e 1989, à base de entrevistas, observação direta e par-
ticipante, análise do material impresso produzido por associações de
empregadas domésticas e acompanhamento sistemático de notícias de
jornais.
O que tem sido o trabalho doméstico? E o novo, nele?
Historicamente, um trabalho pré-capitalista. Produção coletiva,
familial (embora centrado na mulher/mãe/trabalhadora), de valores de
uso, realizada em âmbito doméstico. Familial, nas várias modalidades já
havidas; inclusive no sentido aristotélico - dos parentes e dos fâmulos.
No capitalismo, o trabalho doméstico passa a ter algumas carac-
terísticas estruturalmente novas: é designado a uns poucos indivíduos,
onerando-os temporal e existencialmente, e liberando os outros
(membros da família) para o trabalho assalariado fora de casa. Alter-
nativamente, é introduzido também o assalariamento nessa relação,
podendo esse trabalho ser realizado por homem ou por mulher. Em fase
mais recente passou a ser, entretanto, avassaladoramente exercido por
mulheres.
Em termos de relações de trabalho, reúne pessoas de uma só
classe social, em que apenas uma presta serviços às demais - no que
constituem, já aí, uma família no sentido moderno nuclear, em suas
relações de gênero e de gerações - ou, então, indivíduos de classes
sociais diferentes, como patrões e empregados; em ambas as alter-
nativas, estabelecem-se relações de obrigação que constituem formas
de subordinação e opressão de indivíduos, atenuadas pela prescrição
ideológica do dever ou do prazer de servir; porém guardando, latente ou
pontualmente explosivos, episódios de conflito.
As duas modalidades de trabalho passam, então, a existir como
alternativas na divisão sexual e social do trabalho - que define o traba-
lho doméstico como próprio às mulheres, como tarefa da empregada
doméstica ou papel (Gálvez, Todaro, 1983) da esposa e mãe, também
designada como "dona-de-casa". O locus da realização sendo sempre
a casa de uma família, e o seu objetivo a produção e transformação de
bens materiais e simbólicos para consumo imediato ou mediato dessa
família e reprodução da vida e da força de trabalho dos seus componen-
tes.
Esse quadro de relações, constituídas na vivência de um modo
particular de organizar o processo de trabalho, manteve-se por muito
tempo intocado, considerado "natural", dado que "sempre foi assim". Às
vezes até coloria-se por algum romantismo ("Vou-me casar, cuidar da
minha casa, do meu marido e dos meus filhos") ou por outras ilusões:
"Trabalho um tempo na casa do branco, enquanto sou nova na cidade;
depois arranjo uma coisa melhor".
Foi o feminismo, sobretudo nos anos 70, quem se encarregou de
começar, afinal, a estudá-lo e questioná-lo, como processo de trabalho
e como relação social. E não sem alguma resistência na academia, posto
que ainda era menosprezado pela ciência social oficial, androcêntrica.
Somente quando se avolumou a produção nesse campo temático, ele
passou a ser considerado merecedor de análise teórica e de pesquisa
empírica. Em parte como busca de legitimidade acadêmica, mas
também como uma etapa na procura do referencial teórico adequado,
viveu-se, então, uma intensa discussão de base economicista, utilizan-
do-se categorias e problematizando questões que se referiam direta-
mente às formas de realização da produção capitalista, principalmente
no referente à criação de valor. Analisava-se, sobretudo, a bem da ver-
dade e da causa feminista, que as mulheres trabalhavam e que esse
trabalho era necessário à acumulação capitalista. Esquecido ficava o
caráter original, não diretamente capitalista, da produção doméstica e
despercebida a forte carga ideológica que impregna as relações que a
constituem, e que mantinham inquestionada - e em grande parte ainda
mantém - a realização desse trabalho em âmbito privado, de modo
gratuito ou mal pago e exercido por pessoas majoritariamente do sexo
feminino.
Esse desvendamento foi sendo feito de maneira gradativa; para
ele contribuíram também os estudos sobre papéis sexuais na família e,
em seguida, as análises, principalmente latino-americanas, sobre traba-
lho doméstico remunerado, nas décadas de 70 e de 801.
Na linha de continuidade da produção feminista acadêmica, outro
quadro de referência foi produzido, a partir do convencimento de que,
sendo a realidade social complexa e multifacetada, o seu desvendamen-
to requeria várias "entradas" teóricas, tais como, no caso do trabalho
doméstico, as relativas a classe, gênero, identidade étnica, etc, ar-
ticuláveis em tecido conceituai comum.
A percepção das possibilidades de convergência analítica dessas
categorias construídas em diversas relações sociais, possibilitou,
também, uma aproximação maior de certas contradições no real con-
creto (A gama de alternativas para o ser homem ou ser mulher, de deter-
minada classe, de determinada raça, de determinada idade!). Ensejou,
igualmente, o necessário recurso a categorias pouco trabalhadas
sociologicamente, como as de ambigüidade e ambivalência.
Entre todas, porém, destacam-se, pela capacidade de deter-
minação mais ampla, aquelas relações constituídas no processo de
divisão social do trabalho, como relações de classe, e de divisão

1 No Brasil, são precursoras Motta (1977, 1985a - este último originalmente


apresentado no V Encontro Anual da ANPOCS, em 1981); Saffiotti (1978); Castro
(1982); Farias (1981,1983).
especificamente sexual do trabalho e de papéis na família, as relações
de gênero.
As práticas que se constituíram em torno do trabalho doméstico
são um espaço privilegiado de expressão dessas contradições e "
ambigüidades, como relações ora de antagonismo, ora de aliança ou de
coexistência. Tanto de classe como de gênero. Tanto entre empregados
e patrões, como entre donas-de-casa e sua família. Kergoat (1987), que
está entre as que, pioneiramente, propõem essa metodologia, expressa
a dinâmica da relação social exatamente como "contradição viva, per-
petuamente em vias de modificação, de recriação".
A divisão emocional das mulheres enquanto donas-de-casa, pa-
troas ou empregadas domésticas, sempre esteve no horizonte das mi-
nhas preocupações teóricas (1985b, 1986). As situações vividas se dão
assim:
Mulheres, esposas, enquanto gênero são social e familiarmente
subordinadas; enquanto classe, são aliadas dos maridos. Como
empregadas domésticas, e empregadoras, enquanto gênero são con-
sideradas de "natureza" social comum; enquanto classe, são antagonis-
tas.
Nas práticas cotidianas, predomina o cenário sempre mutável,
composto por quadros de oposição ou de aproximação que, mesmo his-
toricamente consolidados, se renovam sempre. Relações de poder
(Motta, 1986).
Ainda nesse trabalho expressava outras preocupações da mes-
ma ordem teórica. Por exemplo, sobre os sujeitos reais de algumas des-
sas relações de poder:

"Por que o patrão/dominante não é representado pela figura


masculina, que usualmente define a relação de classe da
família (...) mas pela figura feminina, freqüentemente desig-
nada (...) como 'economicamente inativa'?"

Ou sobre âmbitos menos perceptíveis dessas relações de poder


no espaço doméstico:

"Quanto à competição e agressividade na relação empre-


gada-patroa, ela se origina, tão diretamente quanto das
relações coletivas de classe, no jogo de dominação/subor-
dinação a nível Individual; e se expressa tanto como conflito
de classe quanto como competição a nível de gênero social:
entre duas mulheres, geralmente de classes sociais-diferen-
tes, por vantagens de ordem econômica, mas também pela
(pre)dominância no espaço da casa e pela competência na
produção doméstica; às vezes até por alguma gestão na vida
afetiva da família" (Motta, 1985b).

Como todo esse percurso analítico se refletiu nos nossos estudos


locais sobre o tema?
Sabe-se que o serviço doméstico é, tradicionalmente, a ocupação
que contribui com maior peso na composição da população feminina
considerada economicamente ativa (PEA). Foi assim em países do
capitalismo central - por exemplo, nos Estados Unidos, até pelos menos
1950 (Berch, 1984) - e persiste assim em países do capitalismo periférico;
na América Latina, em que pesem as pequenas variações de país a país,
ele se situava em torno de 20% em 1980 (Motta, 1985b).
Entretanto, a tão grande participação na força de trabalho jamais
correspondeu, ainda que de modo longínquo, importância social, am-
paro legal e participação política da categoria. Até quase agora.
Mudanças quantitativas e qualitativas vêm-se delineando nas três
últimas décadas, com mais rapidez nos anos recentes. Por exemplo, em-
bora essa participação do emprego doméstico no PEA feminina continue
alta, e mesmo majoritária se comparada às outras ocupações exercidas
pela mulher, uma outra tendência vem-se configurando, desde a década
de 60, também partilhada por outros países da América Latina: a
regressão relativa dessa participação (Castro, 1982; Gálvez, Todaro,
1983; Gogna, 1988; entre outros).
No caso do Brasil, a contribuição do serviço doméstico para a
PEA, de 27% em 1970, foi de apenas 19,9% em 1980. E lembre-se que a
participação das mulheres na força de trabalho, nessa década, foi gran-
demente ampliada: entre 1970 e 1980, o emprego feminino, no Brasil,
cresceu 92%, enquanto o serviço doméstico, somente 45,9% (Mello,
1984).
Na Bahia, também em uma conjuntura de grande aumento do ín-
dice de emprego feminino, a participação do serviço doméstico na PEA
foi da ordem de 34,5%, em 70, e de 27,2% em 1980, sendo relativamente
maior que para q Brasil, como um conjunto. Ainda assim foi forte o
declínio relativo: pelos cálculos de Castro (1985), o serviço doméstico
representou, para o emprego feminino na Bahia, em 1980, apenas 60%
do que fora em 1950.
Castro e Guimarães (1987) analisam, como parte da configuração
interna a esse grande crescimento do emprego feminino na Bahia, ou-
tras mudanças em relação aos padrões tradicionais de participação dos
dois sexos na PEA: tanto a intensificação do acesso das mulheres a
ocupações antes predominantemente masculinas, quanto a maior
presença de homens no exercício de tarefas tidas como femininas. Estas
novas tendências convivem com a intensificação do emprego feminino
também em atividades onde ele já era tradicionalmente forte.
Cresceu o contingente de mulheres, por exemplo, nos serviços
de consumo coletivo, antes território masculino, e cresceu bastante - em-
bora sobre cifras originalmente muito baixas - a participação masculina
no serviço doméstico. Na Bahia, 5% segundo o Censo de 1980 (Castro,
1985) e 6,22% segundo a PNAD de 1989 . Assinalam, aliás, Castro e Gui-
marães (1987) que essas conquistas femininas não são tão radicais; na
prática, as mulheres assumiram, ainda, tarefas naquelas ocupações cul-
turalmente definidas como correspondentes aos seus papéis sexuais tra-
dicionais, em especial no âmbito dos serviços de saúde e da socialização
dos mais jovens.
O que os dados dos Censos habitualmente não revelam, pelo
próprio fato da intensa agregação das suas categorias, é a estratificação
interna ao setor de serviço doméstico - um conhecimento de rara
utilidade para a percepção dos seus movimentos e transformações,
tanto em termos de sub-categorias ocupacionais, quanto de
modalidades de inserção no emprego.
Esse traço é corroborado por dados de campo obtidos por outros
pesquisadores latinoamericanos (como Mello, 1984, para o Brasil;
Castro, 1982, para a Colômbia; Gálvez, Todaro, 1983, para o Chile;
Gogna, 1988, para a Argentina). Mais além do decréscimo revelado pelos
censos, eles referem, em relação aos anos recentes, a diversificação in-
terna ao setor e uma importante modificação na composição propor-
cional das sub-categorias do emprego doméstico.
Assim, é sensível, por exemplo, o aumento do número de men-
salistas que já não dormem "no emprego", antes algo próximo do incon-
cebível, por tão raro e, sobretudo, indesejável; hoje, entretanto, esse
parece ser o padrão freqüentemente preferido por ambas as partes,
empregadas e patroas, neste tempo de apartamentos pequenos, con-
flitos de classe mais sensíveis e abertos, e crescimento da consciência
reivindicante das domésticas. Verifica-se, também, o aumento signifi-
cativo do número de diaristas disponíveis, assim como de famílias
empregadoras que preferem recorrer aos serviços destas, seja para
complementar o trabalho de mensalistas, como faxineiras ou lavadeiras,
seja como empregadas únicas - não raro requisitadas até por dois ou
três dias por semana - já aí em uma gama de serviços que inclui, também,
a cozinha, principalmente para o congelamento de alimentos.
Isto porque além das sub-categorias ocupacionais tradicional-
mente definidoras das tarefas e salários da mensalista, tais como cozi-
nheira, babá, copeira, todo serviço, etc, existem agora três outros
modos básicos de classificação de empregadas domésticas segundo o
uso do tempo de trabalho e o local de residência ou dormida: a men-
2 Agradeço a Mary Castro as tabulações especiais da PNAD. Para estudo de caso
sobre serviço doméstico masculino, ver Motta, 1984.
salista residente na casa dos patrões, a mensalista externa, que dorme
em sua própria "casa" - dando um número cada vez menor de horas no
trabalho - e a diarista, com jornada e tarefas bem mais definidas e
restritas. Nesse quadro, a tradicional figura da mensalista residente, até
bem pouco tempo universal e quase exclusivamente contratada como
aquela que cede (ou cedia) a quase totalidade do seu tempo aos patrões,
começa, lenta mas inexoravelmente, a rarear. Conquanto ainda majo-
ritária, ela tende a se transformar em uma das duas outras modalidades
básicas de empregada doméstica3.
Para onde estarão indo as ex-domésticas, ou para onde está se
dirigindo aquele contingente de trabalhadoras antes absorvido pelo
serviço doméstico? Certamente, para outros ramos do setor de serviços.
Em muitos casos, para alternativas já conhecidas, como por exemplo,
numa determinada rede de farmácias em Salvador, empregadora sis-
temática de ex-domésticas e de outras mulheres jovens e com perfil so-
cial semelhante ao destas; ou para empresas de serviços de limpeza em
escritórios e instituições públicas. Como parte da tendência ao cres-
cimento das ocupações organizadas em moldes tipicamente capitalis-
tas que se verificou na Bahia, e num contexto de progressiva
concentração da renda, podem também exercer outras atividades cuja
demanda advém seja do movimento turístico, seja do afluxo de profis-
sionais atraídos pelo Pólo Petroquímico; são os muitos hotéis e res-
taurantes, ou salões de beleza onde trabalham cabelereiras, manicures,
etc. (Castro e Guimarães, 1987).
Conquanto potenciais ou ex-empregadas domésticas, e embora
realizando tarefas que se assemelham às destas, estas mulheres vivem,
agora, outras relações sociais. Como assalariadas de empresas
capitalistas, e não de domicílios, seguem exercendo ainda ocupações
"femininas"; fazem-no, entretanto, integradas a outro processo e sob ou-
tras relações de trabalho, que lhes facultam, talvez, maior autonomia,
abrindo a possibilidade de formação de uma identificação como classe
trabalhadora.
Um desenvolvimento paralelo dessas novas relações começa a
se dar, também, no âmbito doméstico, envolvendo as empregadas não-
residentes, principalmente as diaristas e as suas patroas. É que se vive
um novo tempo e novos modos de vida. Certamente, nesse meio social,
persiste a demanda por serviços pessoais, oriunda da tradicional e da
nova burguesia, reforçadas agora com a moderna classe média de

3 Essa mudança, aliás, enseja alguma possibilidade de sub-registro por parte dos
censos, porque a doméstica externa ou diarista, em especial se tiver alguma
descontinuidade nessa atividade, pode receber a habitual classificação de
"dona-de-casa" (traduza-se "inativa"...), enquadrando-se no que é
ideologicamente considerado como ocupação principal da mulher.
profissionais, de alta (nova) qualificação (Guimarães, 1987); embora es-
tatisticamente pouco numerosos, suas suntuosas mansões e grandes
condomínios fechados são um mercado importante consumindo
serviços inesgotáveis e incorporando muitos empregados. Apesar disso,
o grande reduto empregador de domésticas ainda é a classe média
tradicional; esta, porém, "proletarizada", esvaziada de dinheiro e de so-
nhos de ascensão social, realiza seguidos cortes no orçamento
doméstico e se adestra em práticas de exclusão de conforto e de
prazeres... habituando-se até a simplificar a organização do serviço
doméstico; "no tempo de hoje" há menos o que consumir e, portanto,
menos o que trabalhar no âmbito da produção doméstica.
Famílias que sempre tiveram empregadas, premidas agora pelos
problemas financeiros, são levadas a restringir seu número, a dispensá-
las ou, ao menos, a tê-las por apenas um ou dois dias da semana. Ainda
mais quando, no atual cenário social em que pululam as lutas e movimen-
tos populares (sem esquecer os da classe média proletarizada), as
empregadas domésticas são crescentemente reivindicativas e já não se
conformam tão maciçamente com os antigos salários irrisórios,
adoçados pela ilusão de serem tratadas "como pessoa da família" e ga-
nharem "presentes". Por outro lado, pagar um salário mais alto à empre-
gada é algo que ainda não pode ser absorvido pelo orçamento familiar
de grande parte dessa classe média empobrecida, por restrição tanto
material quanto ideológica. Isso prenuncia novos conflitos mas faculta,
igualmente, novas formas de consciência - de ambos os lados.
Crescem, assim, as contradições. A definição contratual do ser-
viço da empregada externa, não-residente, principalmente a diarista,
abriu da maneira mais relevante um espaço para o respeito dos direitos
elementares do trabalho, como jornada de oito horas, intervalo definido
para almoço, tarefas e remuneração claramente delimitadas, atualização
da remuneração de modo a acompanhar o ritmo da inflação. Isto não
elude, contudo, as não raras tentativas de encurtar ou espichar o horário,
de acordo com as necessidades imediatas de cada contendor; nem tam-
pouco elimina que aflorem aspectos clientelísticos da relação tradicional;
por exemplo: refeições não obrigatórias continuam a ser oferecidas
pelos patrões e esperadas pelas empregadas4; ou ainda, pequenos
serviços fora do contrato e até mais pessoais seguem sendo deman-
dados à empregada.
Depõe uma diarista:

4 Um uso antigo que parece agora ressurgir com a roupa nova do "vale-refeição" das
empresas ou, melhor dito, a faculdade de um direito onde antes havia um favor..
"Não fica pesado comprar comida, porque a maioria das
diaristas almoça no serviço. Muitas (patroas) até oferecem
também café. Merenda é que é raro".

"Muitas vezes dá pré terminar o serviço antes (do horário),


mas a patroa sempre arranja coisa prá gente fazer. Tem umas
que guardam panela da semana toda, até calcinha, prá a
gente lavar. Se fizer a vontade, vai até 7, 8 horas".

Um pequeno segmento mais intelectualizado dessa classe mé-


dia, estimulado talvez pelo empobrecimento recente, esforça-se por as-
sumir uma posição diferenciada como empregador. Todavia, a
crescente consciência profissional da empregada leva-a à cobrança de
certos direitos. Esses comportamentos tendem a proliferar, nos moldes
de um efeito-demonstração, repercutindo como demandas junto a ou-
tras famílias, que não podem ou não sabem arcar com compromissos
de eqüidade dessa ordem.
Na ausência de socialização dos trabalhadores domésticos, tanto
em âmbito familiar como do Estado, ou de ampliação significativa das
oportunidades de emprego, o impasse tende a persistir. Mantém-se a
relação claudicante que, em outra oportunidade, demonstrei: "Relação
Impossível" (Motta, 1986). Enquanto isso, pouco a pouco, tendeasefor-
mar entre as domésticas a consciência de trabalhadoras, estimulada por
suas associações profissionais e sindicatos e por outros grupos ativos
na comunidade - religiosos, feministas, étnicos, profissionais, etc, agora,
fortalecidas pelos novos direitos constitucionais.
Entretanto, a tendência à queda no ritmo de incorporação do
emprego doméstico remunerado, fruto da recente dificuldade de con-
tratação por parte de muitos dos habituais empregadores, não implica
em sua extinção, sequer a médio prazo. De fato, face aos padrões atuais
de divisão social e sexual do trabalho, é improvável a imediata subs-
tituição em massa desse serviço. Isto imporia ao Estado o ônus de
generalizar o acesso social a equipamentos coletivos e ao empresariado
o risco de investimentos de alto custo para consumidores apenas even-
tuais. Por outro lado, persiste ainda a abundante oferta de empregadas;
todo um contingente de jovens, na Bahia sobretudo negras5, migrantes
ou (minoritariamente) oriundas dos bairros periféricos, de baixa es-
colarização e escassa perspectiva de outro emprego.

5 Dados da Pesquisado Emprego e Desemprego (PED) para a Região Metropolitana


de Salvador do período setembro/87 - setembro/89, indicam que, enquanto há
15% de brancos na PEA, esse percentual se reduz a 7% se considerados os
ocupados no emprego doméstico. Aliás é significativa a coincidência da presença,
no emprego doméstico, de 93% de mulheres e 93% de negros.
Por isso, apesar da crescente difusão dos variados produtos in-
dustriais ligados ao ramo do congelamento de alimentos (das em-
balagens plásticas aos "freezers" e fornos micro-ondas); apesar,
inclusive, da comercialização de alimentos prontos, artesanal ou in-
dustrialmente produzidos, esses usos - meio experimentais, meio modis-
mos - ainda parecem restritos à parcela da população menos atingida
pela crise econômica. E, mesmo nesses casos, tampouco importaram
no abandono do recurso ao trabalho da empregada doméstica. O que
está ocorrendo é, sobretudo, uma rearrumação interna à organização
doméstica, seja quanto ao processo de trabalho e às relações nele es-
tabelecidas, seja, sobretudo, quanto ao tipo de profissional envolvida -
a diarista.
É evidente que isto significa uma não-desprezível transformação,
que se expressa: (i) no avanço da produção e circulação de determinada
parafernália industrial, (ii) na difusão de técnicas mais racionalizadas e
relações que se pretendem mais contratuais, (iii) na realização do traba-
lho doméstico das diaristas.

II. NOVO CONTEXTO, NOVOS ATORES

Seria irrealidade afirmar que exista uma identidade de classe


nitidamente construída e generalizada entre as empregadas domésticas.
Assinalo, entretanto, elementos de transformação no quadro geral das
relações de que elas participam, e que apontam para uma nova direção.
Sua existência, pontual porém forte aí onde se encontra, apresenta graus
diferenciados segundo grupos e pessoas. Eles ilustram o novo, o que
não se apresentava até bem pouco tempo atrás.
Nesse quadro de persistência do serviço doméstico, convém
adentrar mais um pouco nas maneiras como está se realizando naquilo
que ele tem de novo.
A conjuntura econômica e ideológica que ensejou o declínio
relativo do emprego doméstico feminino na PEA, o encaminhamento de
parte dessa força de trabalho para outros setores da economia, o
remanejamento interno das sub-categorias do serviço doméstico, além
do crescimento do contingente masculino nele ocupado, vêm ensejan-
do uma lenta e gradual mudança de mentalidade e de atitudes por parte
das empregadas domésticas.
A sub-categoria que parece personificar melhor essa mudança é
a empregada externa (não-residente). Sua presença e relativo cres-
cimento representam uma trajetória existencial e política que importa
analisar.
Passar de residente a externa ou diarista constitui-se em passo
difícil, mas de grande significado humano, social e político. É vencer uma
luta de ordem econômica, mas também emocional, hesitações e temores
quanto à viabilidade de poder pagar o aluguel de um quarto ou, mais
raramente, de uma pequena casa, e o receio da solidão e da situação
nova. Depõe uma delas:

"Eu antes até tinha esse medo, me chamavam para alugar um


quarto, mas eu achava difícil, tinha medo de não dar certo.
Mas agora acho ótimo, dá pré sobreviver".

É também uma conquista pessoal, que parece muitas vezes pro-


duzir uma sensação gradual de liberdade e vitória que atinge o auge para
a informante, rnilitante da associação de domésticas, no processo de
formação da sua identidade de trabalhadora:

"Se um dia de faxina eu não quero ir, eu tenho uma coisa para
fazer, eu posso telefonar e trocar o dia. Diarista tem mais
liberdade".

Falando sobre o que gasta com comida:

"Acho bom a gente comprar nossas próprias coisas. Acho


ótimo! Pensar que agora estou me sentindo como os outros
trabalhadores!".

A sofrida trajetória de residente a externa parece ser também irre-


versível. Uma colega falaa sobre outra, ausente no momento:

"Já morou na casa da patroa. Agora deixou e não quer mais


dormir, de jeito nenhum, no emprego. Quer ter a casa dela,
o cantinho dela. Outro dia, o ladrão levou tudo dela... (sorri)
Mesmo assim...''

A proposta de tornar-se empregada externa está-se disseminando


de modo lento porém contínuo entre as empregadas filiadas às as-
sociações; e não apenas na Bahia. Vai-se tornando algo assim como
uma grande bandeira de luta. Isso não deve, entretanto, levar a crer que
a condição de externa esteja intrinsecamente associada à emergência
de uma conscientização política. Ela bem pode ser fruto de con-
tingências da trajetória individual: pode ser apenas a opção das casadas,
em especial aquelas com filhos menores.
É certo, todavia, que este modelo parece permear a
representação das militantes. Lenira, líder nacionalmente reconhecida
do Sindicato de Recife, fez uma reveladora provocação, quando do
Encontro Regional Nordestino de julho de 88:
"Nenhum trabalhador vive no local de trabalho. Só nós...?
Precisamos ver isso".

Isto transparece, também, no discurso de importantes líderes in-


ternacionais do movimento de empregadas domésticas, como EIvira
Durán Majón, líder espanhola (Instituto de Ia mujer, 1986):

"Nossa luta principal é para que as pessoas se dêem conta


de que têm direito a uma vida própria; que se deveria ter o
direito de trabalhar oito horas, como todo mundo, e depois
sair..."

"... Chegar em sua casa e poder se sentar sem ter que pedir
licença a ninguém..."
"... E se terá acabado com uma espécie de seqüestro que,
aos que temos sofrido, parece mentira ter agüentado tanto
tempo".

Essa idéia de preservação de um espaço próprio e separado da-


quele da família empregadora parece, assim, ser representada no dis-
curso militante como um passo decisivo na cisão da identificação
tradicional dos empregados com os patrões; como um reforço, portanto,
na construção da auto-identificação como parte da classe trabalhadora.
Ela parece, em princípio, difundir-se apenas entre grupos mais conscien-
tizados de domésticas, aquelas organizadas em associações profis-
sionais e sindicatos, embora a observação do discurso e das práticas
associativas pareça sugerir uma tendência a que se torne, no futuro, um
pleito cada vez mais forte e generalizado, ultrapassando, quem sabe, os
limites do discurso das militantes.
Mas, outras vezes o simbolismo do espaço autônomo quer ex-
pressar não apenas a alteridade do patrão, mas a possibilidade de iden-
tificação com experiências e práticas de outros trabalhadores.
Novamente a fala de Lenira, líder pernambucana, mostra-se ilustrativa:

"A gente vive na casa das patroas e não pensa na questão da


moradia. A gente vai morar nos bairros, nas invasões, a gente
vai lutar pelos transportes com os outros trabalhadores... O
nosso mundo é com os outros trabalhadores. Patroa, por boa
que for, não é nossa família..."

"Somos uma categoria da classe operária".


Aí parece posta uma dimensão política verdadeiramente inu-
sitada: a atual empregada externa tem a possibilidade de ganhar uma
experiência, ou uma formação política imediata, alternativa ou às vezes
complementar àquela oriunda da filiação a associações ou sindicatos de
domésticas, nem sempre existentes. Em meio à miríade de grupos hoje
em movimento, nos bairros ou interbairros, nas lutas teoricamente
adstritas à esfera da reprodução, ou em lutas por afirmação de ordem
étnica (na Bahia, a consciência da negritude), a externa, principalmente
a diarista parece ter mais chances de penetrar esses novos espaços de
sociabilidade, informando-se e, gradativamente, formando-se politica-
mente. São as conversas na vizinhança e - importante! - os encontros
diários com os companheiros do mesmo horário de transporte para o
trabalho6.
Nas longas horas de espera e de percurso, conversa-se sobre
tudo: a insuficiência e o preço alto dos transportes, as greves e os
quebra-quebras, "o lixo na minha porta, que não recolhem há seis dias!";
mas também sobre o valor insuficiente do piso salarial, "porque tudo vai
aumentando também", e quem tem ou não tem direito legal de recebê-
lo, assim como ao "décimo". Briga-se, às vezes. Trocam-se experiências,
sempre, e até conselhos: a jornada de trabalho da doméstica, encurtada
"para poder pegar o ônibus das três horas e ver meus caborezinho". Ou:
"tanto tempo que a senhora trabalha naquela casa! Peça uma casa à pa-
troa".
Uma conseqüência muitas vezes materializada a partir desses
contatos é a participação da empregada doméstica em movimentos de
bairro ou, para as externas ou diaristas já integradas nas suas as-
sociações, a possibilidade de articular iniciativas comuns envolvendo
movimentos urbanos e associações de empregadas domésticas7.
Na análise dessa realidade tão rica, pode-se ensaiar dois movi-
mentos teóricos. Por um lado, a recomposição de uma totalidade,
através da percepção da intersecção de elementos dos movimentos nas
esferas da produção e da reprodução, vistos através da vivência de
indivíduos e grupos. Por outro lado, a percepção de uma experiência
política ainda incipiente, resultando em formas - pessoais e grupais -
fragmentadas de consciência (Ortiz, 1980). Não raro, essas são formas

6 Lembre-se a experiência documentada por Moisés e Martinez-Alièr (1978).


7 Isso foi o que ocorreu em Salvador, em dia de 1988, quando, em uma só reunião,
a Associação das Domésticas foi procurada por pessoa do Movimento Popular
contra o Aumento de Transporte - onde mantém, desde então, uma
representante - e, ainda, por dois membros de um grupo cultural negro, a
convidá-las para debater o tema dos "Cem anos sem abolição". Esse intercâmbio
também persistiu, evoluindo para adquirir uma expressão eleitoral quando
posteriormente um deles, em mais uma visita, anunciou a sua candidatura a
vereador nas eleições que se seguiriam.
contraditórias, das quais nem sempre a colagem compõe uma figura
clara. Entretanto, elas apontam para uma segundo movimento na com-
posição de uma percepção global, na qual essas experiências individuais
e grupais formariam os elementos de constituição de urna identidade
coletiva, fundada num sentimento agudo de exclusão social, superando
a simples noção de exploração econômica.
Outro aspecto mais diretamente político, e de logo organizado,
refere-se ao próprio crescimento do número de associações e de sin-
dicatos - e de associados em cada um deles.
Essas associações de empregadas domésticas apresentam, um
aspecto peculiar, embora muito raramente ressaltado no discurso das
suas filiadas: o fato de serem coletivos ocupacionais compostos em sua
quase totalidade por mulheres. A grande e quase exclusiva ênfase na
mobilização como categoria ocupacional, dotada de uma consciência
de classe, faz esquecera instância do gênero. Isso se expressa, de modo
curioso, na auto-designação: as auto-referências sempre são no mas-
culino: todas são "associação profissional de empregados domésticos".
Entretanto, meus estudos empíricos desconhecem qualquer caso de
homens a elas associados (Motta, 1984).
Mesmo tratando-se de grupo ocupacional, surpreende a ausên-
cia de percepção de que são também grupos de mulheres e que, como
tal, partilham outros problemas específicos que não se resolvem no
âmbito da ocupação e da classe. Até porque, são domésticas porque
são mulheres (Motta, 1987). Mas esta parece ter sido, até aqui, uma
dimensão mais profunda por realizar, a de classe sexuada.
Isso não elimina que as associações tenham sido instadas a
aceitar o apoio de elementos de grupos feministas ou de estudos sobre
a mulher, tal como ocorre na Bahia.
Como fruto de todo esse complexo processo, delineia-se, de logo,
um conjunto de questões fundamentais para análise, e autoanálise: qual
a chance de alcançar a eficácia política se essas associações possuem
ainda um número relativamente tão reduzido de integrantes? podem elas
almejar atingir, em tempo próximo, a condição de sujeitos políticos,
capazes de influir no rumo dos acontecimentos que lhes dizem respeito?
que conseguiram, até agora, além do longo e lento trabalho de mobi-
lização e conscientização de um número limitado de pessoas?
Essas são questões para as quais ainda é prematuro dar uma
resposta, mesmo porque essas associações têm relativamente pouco
tempo de existência e congregam um número ainda pequeno de pes-
soas. Além disso, vivem diferentes estágios de mobilização, experiência
e acesso a recursos, segundo o país ou o estado onde tenham se cons-
tituído. Ao mesmo tempo, contam com militantes muito ativas e,
sobretudo, com a receptividade e o apoio de muitos outros grupos, al-
guns, como no Brasil, com mais amplos recursos e maior experiência na
luta política, como a ANAMPOS (Articulação Nacional dos Movimentos
Populares) e o CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher), antes
de ser praticamente extinto ao final do Governo Sarney.
E, contudo, inegável, a atuação formadora e arregimentadora das
associações, tanto quanto as possibilidades abertas por sua integração
- tanto a nível individual como grupai - no contexto das lutas coletivas
recentemente retomadas no país. Arrisco dizer que a sua viabilidade
política se associa estreitamente à capacidade de integrar-se aos demais
movimentos organizados que se constituíram no Brasil a partir dos anos
80, voltados para instilar democracia nos poros do poder.
Ilustrativa dessas possibilidades foi a mobilização realizada em
torno dos direitos das domésticas a serem consignados na Constituinte.
Da discussão e definição de propostas a partir de cada associação até
os Encontros Regionais e Nacionais sistematizadores; daí à entrega do
documento resultante ao Presidente da Constituinte, juntamente com a
proposta popular de emenda ao projeto da Constituição sobre o direito
dos empregados domésticos; a constante presença em Brasília nos
estágios de discussão e votação, com o apoio e acompanhamento do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e de outros grupos progres-
sistas; a proeminência nacional adquirida pela líder das negociações
políticas no Congresso, a deputada Benedita da Silva, ex-doméstica, ex-
favelada, negra e militante do movimento negro, são, todos esses, fatos
novos a refletir um percurso de luta e aprendizado que não pode ser su-
bestimado8.

III. REVENDO O NOVO

Tendo feito-a maioria destas reflexões pouco antes da promul-


gação da nova Constituição, caberia, agora, perguntar: e depois...? O
que há de novo?
Nesse espaço de tempo, o novo em relação ao emprego domés-
tico foi de ordem qualitativa e política. Assim, parece ter crescido a par-
ticipação de trabalhadoras domésticas nas associações e sindicatos. Na
Bahia, por exemplo, esse número, embora ainda reduzido, decuplicou

8 Que pesou, realmente, nessas demarches e nas conquistas logradas? O trabalho?


A militância? De quem? Se Bené não fosse deputada constituinte, esses novos
direitos dos empregados domésticos teriam sido integralmente aprovados?.
Talvez não. Teria sido a vitória decorrente de uma circunstancial e forte atuação
individual? Sim e não. A existência concreta de Benedita significa a realidade de
um indivíduo, disposto a encarnar uma luta, mas significa, sobretudo, a existência
de um contexto social, e de classe, que a produziu e manteve lutadora, capaz,
inclusive, de reunir a força política necessária a elegê-la.
entre 1986 e 1991: do pequeno núcleo inicial de cerca de quinze mili-
tantes, passou a 150 inscritas. E a associação passou a sindicato.
No cenário sócio-jurídico instituído com a nova Constituição Fe-
deral, entre a infinidade de versões e interpretações de capítulos e ar-
tigos sobre os direitos, agora mais amplos, dos trabalhadores,
destacaram-se duas controvérsias. Uma, em relação às licenças mater-
nidade e paternidade - isto é, o que toca o socialmente mais profundo,
as relações de gênero e os papéis na família. Mas houve, além disso, um
susto nacional em relação aos novos e mais amplos direitos trabalhistas
obtidos pelos empregados domésticos, que significaram, tanto quanto
melhorias de ordem material, o definitivo reconhecimento social como
categoria profissional.
Ao mesmo tempo, esses trabalhadores - melhor dito, essas traba-
lhadoras - tiveram, pela primeira vez, acesso rápido e amplo à in-
formação sobre seus direitos, diariamente veiculada pelos jornais e,
sobretudo, pela televisão. Nessa conjuntura, os meios de comunicação
contribuíram, pelo simples fato de informar, para um processo de degelo
na formação da consciência de direitos.
Promulgada a Constituição, um novo e tenso diálogo parece haver
se estabelecido na relação entre patrões (ou patroas) e empregados (ou
empregadas), aprofundando a construção da alteridade, requisito da
emergência de uma consciência de si. Parece ter ganho corpo de forma
mais ampla a preocupação com direitos, antes restritas às militantes em
associações profissionais9.
Entretanto, as condições para eclosão de novos conflitos per-
manecem, mesmo quando a tensão se torna apenas latente. Isto por-
que, por um lado, um novo pólo de mobilização começou a se definir,
sob a forma de sindicatos de empregadores domésticos. Eles repre-
sentam uma reação patronal auto-defensiva contra o que entendem
serem os "exageros" da lei. Ao mesmo tempo, a idéia de constituição de
sindicatos de empregados domésticos, já concretizada em alguns
países da América Latina, e intensificada depois do Encontro Inter-
nacional de Associações (e Sindicatos) da categoria na Colômbia, em
1988, começou a se viabilizar no Brasil. Dessa sorte, à época do VI En-
contro Nacional dos Trabalhadores Domésticos, em janeiro de 1989,

9 Durante os primeiros meses, predominou o ruído: questionamento dos novos


direitos pelos empregadores, repúdio aos descontos facultados pela lei, por parte
das empregadas, e composições contratuais várias. Em seguida, um certo silêncio
- uma aparente acomodação geral. Boa parte das empregadas menos informadas,
ou menos experientes, entrou em acordos com os patrões, abrindo mão de
algumas das suas vantagens, principalmente o salário mínimo. Por outro lado, um
número maior de empregadoras - mais conscientes, prósperas, ou temerosas... -
passou a cumprir as obrigações legais, atenuando o momento de choque e reação
iniciais.
nada menos que cinco associações já haviam se transformado em sin-
dicatos, enquanto várias outras expressavam igual intenção; inclusive a
da Bahia. No documento final do Encontro, uma significativa deliberação
refletia a natureza classista que as entidades pretendiam conferir ao
movimento. Nessa oportunidade, concluíram juntas, o que antes dis-
cutiam e afirmavam, separadas:

"Nessa sociedade dividida em classes, somos classe ope-


tátíâ".

Coincidentemente, nesse mesmo mês fundavam-se os primeiros


sindicatos de empregadores; de início em São Paulo e, logo em seguida,
no Rio.
Assim, enquanto se aguardava a definição das leis complemen-
tares à Constituição e enquanto se discutiam os projetos das cons-
tituições estaduais, os novos contendores se preparavam. Formava-se
um cenário no qual novas formas de conflito tenderam a se manifestar,
com uma natureza qualitativamente diferentes porque fundadas em
práticas e formas associativas de cunho coletivo. Essas, se não subs-
tituíram, ao menos deslocaram as disputas e tensões do âmbito ex-
clusivo das ações individualizadas, cotidianas e informais a que, meio
jocosamente, referi, em outra oportunidade (1985a) como "luta de classe
corpo-a-corpo"10.

BIBLIOGRAFIA

BERCH, Bettina.
1984 The sphinx in the household: a new look at the history of
household workers. Review of Radical Political Economics.
[S.l.]v.16, n. 1.p. 105-120.
CASTRO, Mary Garcia.
1982 Que se compra y se vende en el servicio doméstico? El
caso de Bogotá. In: LEÓN, Magdalena (ed.) Debate sobre Ia
mujer en América Latina y el Caribe. Bogotá: T.L ACEP.
CASTRO, Nadya Araujo.
1985 Força de trabalho e emprego não-agrícola no Estado da
Bahia -1950-1980. Relatório intermediário de trabalho, Convê-

10 Agora, no que tange às organizações das empregadas domésticas, seu discurso


militante aponta para a sindicalizaçào, a filiação à CUT e o contrato coletivo de
trabalho (propostas do Encontro Nacional referido), sinalizando claramente a
assunção de um sindicalismo de confronto. Do outro lado, os empregadores
declaram, pela imprensa, pretensões defensivas, algumas vezes até caricatas,
como sindicâncias e testes anti-AlDS para as domésticas.
nio CRH/FINEP/UFBa, Salvador, Centro de Recursos Humanos
(mimeo).
CASTRO, Nadya Araujo, GUIMARÃES, Iracema.
1987 O que é que a baiana faz? (Os novos padrões da divisão
sexual do trabalho nas atividades urbanas do Estado da Ba-
hia). Caderno CRH. Salvador, n.2.
FARIAS, Zaíra Ary.
1981 A situação das mulheres na sociedade de classes: o valor
social do trabalho doméstico. In: ENCONTRO ANUAL DA
ANPOCS, 5. Friburgo (mimeo).

1983 Domesticidade: cativeiro feminino? Rio de Janeiro: A-


chiamé/CMB. GALVEZ, Thelma, TODARO, Rosalba.
1983 La especificidad del trabajo doméstico y Ia organización
de Ias trabajadoras de casa particular (Santiago de Chile). In:
CONGRESSO INTERNACIONAL DA LASA, 11, México.
GOGNA, Monica.
1988 Domestic service in Buenos Aires. In: CHANEY, E., GARCIA
CASTRO, M. (eds.) Muchachas no more (household work-ers In Latin
America and the Caribbean). Philadelphia: Temple University.
GUIMARÃES, Antonio Sergio A.
1987 Estrutura e formação das classes sociais na Bahia. Novos
Estudos CEBRAP, São Paulo, n.18, p. 57-69, set. KERGOAT, Danièle.
1987 Em defesa de uma sociologia das relações sociais. In:
KARTCHAVSKY, Bulport, et al. O sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz
e Terra. MELLO, Hildete Pereira de.
1984 Empregadas domésticas - quantas são, suas lutas e rela
ções com o movimento feminista. ENCONTRO ANUAL DA
ANPOCS, 8, A'guas de São Pedro (mimeo).
MINISTÉRIO DE CULTURA, INSTITUTO DE LA MUJER.
1986 Mujeres. Madrid, Ano III, n. 10. mar.
MOISÉS, José Álvaro, MARTINES-ALIÈR, Verena.
1978 A revolta dos suburbanos ou "patrão, o trem atrasou". In:
MOISÉS, J.A. (org.) Contradições urbanas e movimentos sociais. São
Paulo: CEDEC/Paz e Terra. MOTTA, Alda Britto da.
1984 Emprego doméstico masculino. In: ENCONTRO ANUAL
DA ANPOCS, 7, Águas de São Pedro (mimeo).

1985a Emprego doméstico no capitalismo: o caso de Salvador.


Cadernos do NEIM. Salvador, n. 2.

1985b Emprego doméstico em Salvador. Salvador, UFBa. (Re-


latório de pesquisa - CNPq).

1986 A relação impossível. In: SEMINÁRIO RELAÇÕES DE


TRABALHO E RELAÇÕES DE PODER, 1986. Anais do... For-
taleza: UFCE/ Mestrado de Sociologia.

1987 Associations of domestics servants: the case of Bahia, Brazil.


In: THIRD INTERNATIONAL INTERDISCIPLINARY CON-GRESS ON
WOMEN. Ireland: University of Dublin, july. ORTIZ, Renato.
1980 A consciência fragmentada. São Paulo: Paz e Terra.
SAFIOTTI, Heleieth.
1978 Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes.

Você também pode gostar