Entre Desejos e Mentiras - Um Be - M. Neves, Paula

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Table of Contents

Sinopse
Nota da Autora
Playlist Oficial
Prólogo – Henrique
01 - Henrique
02 - Alice
03 - Henrique
04 - Alice
05 - Henrique
06 - Alice
07 - Henrique
08 - Alice
09 - Henrique
10 - Alice
11 - Henrique
12 - Alice
13 - Henrique
14 - Alice
15 – Henrique
16 – Alice
17 – Henrique
18 – Alice
19 - Henrique
20 - Alice
21 – Henrique
22 - Alice
23 - Henrique
24 - Alice
25 - Henrique
26 - Alice
27 - Henrique
28 - Alice
29 - Henrique
30 - Alice
31 - Henrique
32 - Alice
33 - Henrique
34 - Alice
35 - Henrique
36 - Alice
37 - Henrique
38 - Alice
39 - Henrique
40 - Alice
41 - Henrique
42 – Alice
43 - Henrique
44 - Alice
45 - Henrique
46 - Alice
47 - Henrique
48 - Alice
49 – Henrique
50 - Alice
51 - Henrique
52 - Alice
53 - Henrique
54 - Alice
55 - Henrique
56 - Alice
57 - Henrique
58 - Alice
59 - Henrique
60 - Alice
61 - Henrique
62 - Alice
63 - Henrique
Epílogo 1 - Alice
Epílogo 2 - Henrique
Notas finais
Bônus EPC
Copyright © 2024 | Paula M Neves
Todos os direitos reservados.
1ª edição, 2024.
Leitura Beta:
Beks, Lara, Fábia, Lud, Déborah, Samara (Sasa), Samara (Sam), Rafaela,
Ivy, Jessy, Jell, Lena, Elly,Dani, Eme e Laysa.
Projeto Gráfico e Diagramação:
Paula M Neves
Capa:
Paula M Neves
Ilustrações:
Sofia Gomes - @ilustrai.art

É proibida a reprodução de parte ou totalidade da obra, de qualquer forma ou


por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meios de processos
xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a autorização prévia da
autora (Lei 9.610 de 10 de fevereiro de 1998).
Está é uma obra de ficção. Seu intuito é o entretenimento. Nomes,
personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação
da autora e quaisquer semelhanças com acontecimentos, datas, e nomes reais
é mera coincidência.

Entre Desejos e Mentiras – um bebê para o CEO


Trilogia Irmãos Lacerda – Livro 02
Sumário
Sinopse
Nota da Autora
Playlist Oficial
Prólogo – Henrique
01 - Henrique
02 - Alice
03 - Henrique
04 - Alice
05 - Henrique
06 - Alice
07 - Henrique
08 - Alice
09 - Henrique
10 - Alice
11 - Henrique
12 - Alice
13 - Henrique
14 - Alice
15 – Henrique
16 – Alice
17 – Henrique
18 – Alice
19 - Henrique
20 - Alice
21 – Henrique
22 - Alice
23 - Henrique
24 - Alice
25 - Henrique
26 - Alice
27 - Henrique
28 - Alice
29 - Henrique
30 - Alice
31 - Henrique
q
32 - Alice
33 - Henrique
34 - Alice
35 - Henrique
36 - Alice
37 - Henrique
38 - Alice
39 - Henrique
40 - Alice
41 - Henrique
42 – Alice
43 - Henrique
44 - Alice
45 - Henrique
46 - Alice
47 - Henrique
48 - Alice
49 – Henrique
50 - Alice
51 - Henrique
52 - Alice
53 - Henrique
54 - Alice
55 - Henrique
56 - Alice
57 - Henrique
58 - Alice
59 - Henrique
60 - Alice
61 - Henrique
62 - Alice
63 - Henrique
Epílogo 1 - Alice
Epílogo 2 - Henrique
Notas finais
Bônus EPC
Sinopse

Henrique Lacerda é apaixonado pela sua secretária há mais de dois


anos.
Completamente rendido, o CEO da Editora Lacerda não consegue
pensar em outra mulher, quando tudo o que ele quer é a sua boneca linda. Ao
descobrir que Alice está grávida e que precisa de um noivo falso para se
livrar das garras de sua mãe tóxica, se prontifica na mesma hora para o
cargo, bolando um plano infalível para conquistar o coração dela e, de
quebra, conseguir a família com que sempre sonhou.
Alice Monteiro é a secretária do CEO da Editora Lacerda.
O seu maior sonho é se tornar uma escritora de sucesso. Saiu cedo de
casa, fugindo de um lar tóxico e cheio de cobranças, mas ainda vive à mercê
da sua mãe e da sua avó, que se aproveitam da sua bondade. Quando uma
gravidez não planejada surge, ela inventa um noivado falso para fugir dos
julgamentos, e acaba se enfiando em um relacionamento de mentira com o
seu chefe.
Quando eles precisam morar juntos para manter a farsa, o contato
diário e a completa rendição de Henrique por ela vão fazer com que alguns
sentimentos comecem a surgir e, no final de tudo, quem sabe, a gravidez não
acaba se tornando a melhor coisa que já aconteceu na sua vida.
Para todos os mocinhos fanfiqueiros, que também sonham com os seus
finais felizes.
Quem disse que só as mulheres podem ser emocionadas e iludidas, e
quererem um romance digno de livros?
Eu, hein. Que injustiça.
Nota da Autora

Oi, bonecas!
Sejam bem-vindas de volta à Santa Consolação!
Finalmente, chegou a hora de contar a história do nosso rendido
preferido.
Henrique e Alice foram uma experiência que, sem dúvida alguma,
me fez crescer muito como autora. Escrevê-los foi algo tão, mas tão fácil, e,
ao mesmo tempo, complexo, de um jeito que eu acho que não consigo
explicar direito para vocês. Só posso dizer que eu amei CADA SEGUNDO,
e que se pudesse voltar no tempo, só para sentir tudo de novo, eu voltaria
sem nem hesitar.
Durante os vinte dias em que eles me acompanharam (na primeira
escrita), eu ri, chorei, surtei, me irritei e, no final, senti como se tivesse
conseguido criar algo lindo.
De antemão, já digo: tenham paciência com a Alice. Ela é cheia de
feridas incuradas, que moldam muito do seu comportamento, sem que ela
consiga lutar contra. Ela não conhece o amor, não sabe o que é uma família
ou um relacionamento saudável e, com exceção da sua melhor amiga, foi
maltratada e tirada proveito a vida inteira.
E isso faz com que ela demore um pouco para conseguir se abrir
completamente para um amor tão intenso como o do Henrique.
Porque, se tem uma palavra que poderia definir o nosso mocinho é
justamente essa: intenso.
Henrique se entrega para a Alice de um jeito que até me assustou
em um primeiro momento. Eu tentei controlá-lo, tentei fazer com que ele
fosse um pouquinho menos entregue, mas não consegui. Ele brigou comigo,
bravamente, e me fez aceitá-lo exatamente como ele é: perfeito.
Sabe quando as autoras dizem que os personagens sussurram no
ouvido delas?
Eu pensava que isso era bobagem, até começar a escrever. Nos
meus livros anteriores, experimentei algo nesse sentido e entendi que era
verdade, sim.
Só que o Henrique me elevou a um patamar diferente.
A personalidade dele é tão forte, que se destacou até quando ele era
um mero coadjuvante, lá na história da Bianca. E aqui, então? Meu Deus, eu
espero que vocês estejam prontas.
Entre Desejos e Mentiras é, hoje, o meu maior orgulho. E eu espero
que vocês se apaixonem pelo nosso casal fofo e romântico assim como eu e
as minhas betas nos apaixonamos. Meninas, eles estão no mundo,
finalmente!
Acho importante enfatizar que o livro contém alguns gatilhos:
relacionamento familiar tóxico, abandono parental, ataque de pânico e
ansiedade.
Do mais, eu torço para que a leitura traga um sorriso no rosto de
cada uma de vocês, e que, ao final, ele se torne um dos seus favoritos, para
ser relido quantas vezes for necessário sentir aquele quentinho no coração.
Obrigada por estar aqui!
Se estiver lendo isso por qualquer meio fora do Kindle Unilimited
ou da Amazon, por favor, pare. Isso é pirataria, me prejudica e é crime.
Tenha respeito com o fruto do meu trabalho e de todo o meu esforço.
Aproveite a leitura!
Com muito amor,
Paula M. Neves
Playlist Oficial

Escute a playlist que embala o romance de Henrique e Alice no


Spotify:
Clique aqui.
Prólogo – Henrique

Eu persegui você por um ano, teria esperado mais tempo


Eu sabia que, no final das contas, isso tornaria o sentimento mais forte.
September – James Arthur

Ela me enfeitiçou desde o primeiro segundo em que eu a vi.


Aqueles olhos escuros, como um oceano profundo, e aquela boca
pecaminosa, cheia, curvadinha, perfeitamente mordível, foram um teste
sofrido para o meu pobre coraçãozinho emocionado.
Eu não lembro de um terço do que ela falou na entrevista de emprego,
porque, desde o instante em que sua voz atingiu meus ouvidos e o seu cheiro
de melancia preencheu o meu escritório, ela estava contratada.
Pode me chamar de hipócrita, eu deixo.
De sem noção, de desavergonhado, de indecente, tudo bem.
Eu sou tudo isso.
Mas a culpa é dela.
Dela e daqueles cabelos tão cheios e compridos, chegando até a curva
daquela bunda redondinha e perfeita, que parece ter um alvo desenhado,
chamando as minhas mãos.
Claro que elas sempre se comportaram e nunca chegaram perto
daquele monte delicioso. Elas são mãos de família, tá?!
Mas isso não me impede de sonhar.
Não me impede de desejar segurar a curva daquela cintura com força e
pressioná-la contra mim, sentindo cada centímetro do corpo que foi feito
para me enlouquecer.
A culpa é dela, na verdade.
Quem manda ser tão linda? Tão perfeita? Tão... meu Deus, não há nem
adjetivos disponíveis na Língua Portuguesa para descrevê-la (olha aí, o Benji
ia ficar orgulhoso de mim, todo poético).
Alice Monteiro virou o meu tormento particular no exato minuto que
entrou na minha vida. E eu não tenho a menor vergonha de dizer o quão
rendido por aquela mulher eu sou.
Sou mesmo, me processa.
Há dezenove meses, vinte e um dias, quatorze horas e quarenta e sete
segundos, eu a observo e a admiro, desejando-a, babando por ela como um
velho sem dentadura.
Até que a oportunidade perfeita surgiu.
E eu não sou nem otário de desperdiçá-la.
É um plano meio absurdo? Talvez.
Por isso Alice me encara agora, como se eu fosse um doido varrido, com
uma expressão incrédula e confusa que só a deixa ainda mais linda.
Perfeita, Deus. Parecia até uma boneca.
A minha boneca.
Mas essa é a minha chance. Eu não posso deixar escapar.
Eu faria absolutamente qualquer coisa para fazê-la enxergar que nós
dois somos feitos um para o outro.
Porque é a verdade!
Nós somos predestinados, ela que teima em não ver isso.
Mas agora eu vou usar todas as minhas artimanhas mais diabólicas para
conseguir convencê-la.
Alice vai se apaixonar por mim, assim como eu já sou apaixonado por
ela.
Eu farei qualquer coisa para que isso aconteça.
Qualquer coisa.
Até mesmo entrar em um noivado falso com ela e assumir um filho que
eu não fiz.
01 - Henrique

Eu deveria ter me livrado dessas borboletas,


Mas eu estou a fim de você.
E, amor, mesmo nas suas piores noites,
Eu estou a fim de você.
Still into you - Paramore

— Bora, Pedro, mais força nesse jab[1]! — nosso professor grita


enquanto eu posiciono os aparadores[2] para receber os golpes do meu melhor
amigo.
Sinto as gotas de suor percorrerem as minhas costas, minha
respiração ofegante depois de quase uma hora de treino.
— Intercala os cruzados[3] com jabs, isso! Inclina mais o tronco,
Henrique, apoio traseiro pra aguentar o tranco. Anda! — Posiciono meu pé
esquerdo mais recuado, para me dar estabilidade e continuo recebendo os
golpes do meu parceiro.
Eu e Pedro praticamos Muay Thai há pouco mais de um ano, em um
centro de treinamento na área comercial de Santa Consolação. Eu costumava
treinar apenas na academia, além das minhas corridas matinais, mas meu
amigo participou de uma aula experimental da arte marcial tailandesa, em
uma de suas viagens a São Paulo, e insistiu para que nós encontrássemos um
CT aqui na cidade.
Confesso que resisti no começo, carregava um certo preconceito com
esportes assim. Mas, em pouco tempo, a luta ganhou o meu coração.
— Bom treino rapazes, sawadee[4]. — O professor encerra nosso
embate, juntando as mãos na frente do rosto e abaixando a cabeça, na
tradicional saudação tailandesa.
— Sawadee, mestre. — Espelho o cumprimento, assim como Pedro,
e logo removemos nossos equipamentos de proteção.
— Porra, o professor tava pra matar hoje, tá doido! — meu amigo
resmunga baixinho, temendo uma represália, enquanto seguimos para o
vestiário do CT.
É um centro bem amplo e completo, com uma área de banheiros e
armários que podem ser usados pelos alunos depois dos treinos, o que é
muito útil quando precisamos vir treinar antes do trabalho.
Eu geralmente prefiro o horário da noite, já que corro de manhã, mas
tem dias em que não é possível e nós chegamos bem cedinho para não perder
o treino.
— Você que tava mole demais, tá de ressaca, nego? — provoco,
sabendo muito bem que Pedro saiu para farra ontem à noite e deve ter
chegado quase de manhã em casa.
É sábado, nosso treino começa às nove horas, e ele sempre aparece
com uma expressão de cansado e com os olhos ainda vidrados de tanto
beber.
— Não enche, Henrique. Só porque você é a porra de um monge, não
significa que o resto de nós não pode se divertir — retruca, puto.
Eu solto uma gargalhada, recebendo um dedo do meio em resposta.
— Não sou monge, tchutchuco. Eu só vivo uma vida muito mais
regrada que a sua. Não é à toa que sou muito mais gostoso que você. Toma
cuidado, viu? Daqui a pouco tá com aqueles buchinhos de cerveja, aí as
meninas não vão mais querer você — provoco, pegando a minha toalha e
entrando em um dos boxes para uma ducha rápida.
— Vai se foder, otário. Buchinho de cerveja o meu pau, me respeita.
E de que adianta ser “gostoso” se não fode?! Grande merda — responde,
raivoso. — E já disse pra não me chamar assim, inferno! — reclama, me
arrancando mais uma gargalhada.
— Mas você é o meu tchutchuquinho. — Minha voz adquire um tom
meloso, que eu sei que o deixa ainda mais irritado. — Você não aprecia o
meu amor, meu nego. Vivemos em um relacionamento abusivo, eu que teimo
em não enxergar isso.
Escuto algumas risadas no vestiário e seguro a minha, sabendo que
meu melhor amigo está a um passo de me esganar.
— Cala a boca, filho da puta! — rosna, no box ao lado do meu. —
Não sei por que eu ainda ando contigo, babaca.
— Porque eu sou o único que te aguenta, Pedrão! — respondo,
desligando o chuveiro. — Você que não aceita isso e vive me desdenhando.
Olha que uma hora eu canso, viu?
Ele resmunga alguma coisa que eu não consigo entender e eu solto
mais uma risada, enrolando a toalha na cintura e saindo do box ao mesmo
tempo que ele, recebendo a sua expressão irritada.
— Vai pra casa do seu pai, otário? — me pergunta.
— Vou, é aniversário do coroa e a Lúcia vai fazer aquele rango
gostoso. — Esfrego a barriga. — Você não vai mesmo? Papai te convidou,
você sabe que é da família.
Pedro Ribeiro é o meu melhor amigo desde que nós dois éramos
moleques catarrentos que tocavam o terror no jardim de infância.
Nossas professoras nos chamavam de dupla demoníaca pelas nossas
costas, o que só nos fazia ainda mais empenhados em fazer jus à nossa fama.
Perdi a conta de quantas vezes fomos suspensos por fazer traquinagens, para
o desgosto da minha finada mãezinha, que Deus a tenha.
O pai do meu amigo é um grade cuzão, que colocou, desde pequeno,
uma pressão absurda nele, para dar continuidade ao seu legado, como
melhor advogado criminalista de São Paulo.
Graças a Deus, meu amigo o mandou para a puta que pariu assim que
terminou o ensino médio, dizendo que ia fazer faculdade de publicidade,
para o enorme desgosto do Ribeiro sênior. Ele o deserdou, mesmo sobre os
protestos da mãe de Pedro, que tentou defender o filho, mas não teve voz.
Foi aí que o seu Afonso Lacerda o adotou como quarto filho e lhe ajudou a
seguir com o seu sonho.
Assim que nós nos formamos, começamos a trabalhar na Editora, ele
no time de publicidade e marketing e eu como editor. Passamos alguns anos
assim, aprendendo tudo sobre aquela empresa e ajudando-a a se tornar a
maior da região, e quando o meu velho decidiu se aposentar, eu assumi a
cadeira da presidência e tornei Pedro diretor de marketing.
Fui criticado por alguns sócios, por teimarem que eu estava apenas
favorecendo um amigo pessoal, mas meu irmão de alma calou a boca de
todos eles, levando a Lacerda para um patamar de público que jamais, em
toda a sua história, tínhamos alcançado.
Hoje recebemos autores de todo o Brasil, desbancando diversas
editoras da grande São Paulo, e triplicando o patrimônio da minha família
nos últimos cinco anos.
— Vou dar uma passada lá mais tarde, pra abraçar o tio, mas preciso
dormir um pouco antes. Capaz da Lúcia arrancar minhas orelhas se eu
chegar lá de ressaca assim — responde e eu balanço a cabeça, rindo.
É bem capaz mesmo.
Dona Lúcia, a governanta e cozinheira da casa do meu pai, era a
única que colocava freio em nós dois, quando éramos adolescentes, depois
da morte da mamãe.
— Te vejo mais tarde então, irmão. Vê se não demora, senão não vai
sobrar bolo pra ti. — Aponto o dedo para ele, quando terminamos de nos
vestir.
— Você não é nem besta, babaca — resmunga. — Mas não vou
demorar, só preciso dormir umas horinhas. Graças a Deus, aos sábados, a
bruxa passa o dia fora de casa e eu consigo ter um pouco de sossego.
Solto uma gargalhada, lembrando da vizinha de cima do meu amigo.
Desde que se mudou, há seis meses, Pedro reclama dia sim e outro
também da sua vizinha que, segundo ele, é uma hippie maldita que só falta
tacar fogo no apartamento com os milhares de incensos que acende o tempo
todo.
Parece que a mulher é meio good vibes, e vive ouvindo músicas
instrumentais e aromatizando o seu apartamento. O problema é que ela
costuma acender seus incensos e velas perto da porta da varanda, o que faz
com que a fumaça e o cheiro desça para a casa do meu amigo, e ele odeia.
— Você ainda vai se pegar com essa hiponga, meu nego, vai ver só.
— Sai pra lá, cara — reclama. — Deus me livre que eu vou encostar
meu pau lindo e cheiroso naquela hippie fedorenta. Nem se ela tivesse uma
boceta de ouro.
Rio ainda mais da sua cara de nojo e balanço a cabeça,
cumprimentando-o mais uma vez antes de seguir até o meu carro.
Apesar de sermos melhores amigos, Pedro e eu não poderíamos ser
mais diferentes. Enquanto ele é baladeiro, mulherengo e com um absoluto
terror de relacionamentos, eu sou o cara mais emocionado que você pode
imaginar nesse mundo.
Não costumo beber nada além de uma dose ou outra de vinho, muito
esporadicamente, e também detesto festas e ambientes de muito barulho e
confusão.
Ainda bem, nossa amizade é bastante respeitosa, então, enquanto ele
sai todo final de semana para as mil baladas que encontra por aí, eu costumo
ficar em casa, assistir a um filme, no máximo sair pra jantar na casa do meu
pai ou com algum dos meus irmãos – principalmente o Benji.
Meu amigo faz sucesso por aí, cada mês com uma ficante diferente, e
eu sigo a vida sofrendo por uma única mulher.
Aquela que não me enxerga como nada além do chefe dela.
Ele tem razão quando diz que eu não uso o meu corpinho para foder.
Não consigo. Não quando eu só penso nela.
Solto um suspiro, colocando o carro em movimento, na direção do
condomínio do meu pai.
Pedro sempre me zoa por ficar babando pela minha secretária, mas
eu não consigo evitar. Desde que eu vi a minha boneca pela primeira vez, ela
me tirou o fôlego. E quando fui a conhecendo, e entendendo o quão
absolutamente perfeita ela era, o cupido disparou uma flecha certeira, bem
no meio do meu pobre coraçãozinho, e então eu estava rendido.
Mas rendido num nível que eu acho que você não entendeu ainda.
Eu sonho com aquela mulher toda santa noite.
Eu salivo quando o meu escritório fica preenchido pelo seu cheirinho
gostoso de melancia.
Quando ela sorri, aquele sorrisinho gentil, de canto de boca, tímido,
meu Deus. Eu posso jurar que o meu pulmão até para de funcionar, porque
não é possível respirar quando ela me presenteia com um daqueles sorrisos.
Alice Monteiro é o meu carma particular e, ao mesmo tempo, o amor
da minha vida.
Ela é perfeita em, absolutamente, tudo.
Inteligente, esforçada, carinhosa, gentil.
O que começou com uma atração descomunal e totalmente fora do
comum para mim, foi evoluindo para uma paixão sem precedentes e, quando
me vi, era nela que eu pensava vinte e quatro horas por dia.
Nos seus olhos, tão escuros, que as íris desaparecem. Na sua boca em
formato de coração, pintada naquele batom rosinha que ela tanto gosta. Nos
seus cabelos volumosos, pretos, que caem até a sua cintura em uma cascata
de cachos e ondas perfeitas, tão perfeitas quanto ela.
Meu Deus, eu posso até morrer com o quanto aquela mulher é linda.
Mas ela não dá bola pra mim.
Para ela, eu sou apenas o seu Henrique. O chefe dela. Que paga o seu
salário e não pode ser nada além disso.
Dói como o inferno, meu Deus, como dói.
Porque eu sou apaixonado por ela.
Pedro sempre diz que eu tenho que desencanar, que está na cara que
ela não me vê assim e é injusto comigo mesmo ficar me prendendo a uma
coisa que nunca vai existir. Que eu preciso conhecer alguém, sair, foder.
E eu juro, eu tentei.
Logo que percebi os meus sentimentos pela minha secretária, eu
tentei ignorar. Aceitei até sair com o meu amigo umas duas vezes, para ver
se eu conhecia alguém que pudesse me interessar.
Não deu muito certo.
Conheci várias mulheres, tentei conversar, tentei me interessar,
durante meses, mas eu sempre as comparava com aquela que era proibida
para mim.
Nunca ganhavam da minha boneca.
O mais próximo que consegui foi quando conheci uma professora,
amiga do Benji, e nós saímos para jantar algumas vezes. Ela era muito
bonita, não posso negar. Tinha cabelos loiros cacheados, um corpo bem
delineado, um sorriso muito, mas muito bonito.
Mas não rolou. A conexão, sabe? A química. Simplesmente não fluiu.
O papo não encaixava, as ideias não se conectavam, aquela faísca não estava
lá.
Até nos beijamos algumas vezes, e foi bom, ela tinha um beijo
gostoso, inclusive. Eu quase a levei para casa, na última vez que saímos,
para tentar ter algo mais íntimo. Mas não pareceu ser certo. Não me deu
vontade de continuar, de avançar, ir além. Não funcionou, simples assim.
Foi quando percebi que as coisas eram um pouco mais profundas do
que eu imaginava.
Não era um simples crush.
Sem querer, sem sequer perceber, Alice se infiltrou em mim e me
enfeitiçou até o ponto de nada nem ninguém além dela ser suficiente.
Então toda vez que Pedro me chama para sair, para conhecer alguém,
eu digo que não. Porque já sei o que vai acontecer. Eu posso até tentar, posso
conversar, posso me interessar, mas, no final, ninguém chega aos pés dela.
Ninguém me deixa tão louco com um simples sorriso como ela.
Só ela, ninguém mais.
Pedro não aceita, mas a verdade é que eu não quero foder qualquer
uma.
Acho que, se duvidar, meu pau nem subiria numa situação dessas.
Ele é outro rendido.
Só quer saber dela, só se contenta com ela.
Não o julgo, ela é perfeita.
Sua boca deve ser uma perdição, assim como aquelas mãozinhas
pequenas, com dedos finos e unhas bem feitas, sempre num tom de nude ou
rosa bebê.
Vou nem pensar no quão perfeita deve ser outra parte dela, porque
senão vou chegar na casa do meu pai com a porra de uma ereção nas calças.
Mas enfim, ainda que meu amigo insista que eu devo desencanar, eu
sei que é impossível.
Alice é tudo o que eu quero, e eu me recuso a me contentar com
outra coisa.
Se ela apenas me enxergasse, se visse o quão perfeitos podemos ser
juntos, ah...
Confesso que esse sonho é o que me mantém vivo, ultimamente.
02 - Alice

Outro dia sozinho é mais do que eu posso aguentar


Você não vai me salvar?
Salvação é o que eu preciso
Save Me - Hanson
— Agora os quadris pra cima e pra trás — minha amiga orienta,
fazendo toda a turma se posicionar na postura do cachorro olhando para
baixo[5]. — Flexionem um joelho por vez, vamos levar o cachorro pra
passear.
Mordo o lábio, segurando o sorriso com a sua forma de ensinar yoga.
Sempre fui uma pessoa muito ansiosa, desde que era criança. Carina
diz ser reflexo do ambiente tóxico que tive em casa, apesar de eu ainda
insistir em defender a minha família.
Mas o fato é que eu sempre fui ansiosa.
Frequentemente me sentia inquieta, nervosa, tinha crises de choro
sem motivo aparente e vivia insegura, com medo de qualquer coisa que
pudesse ser remotamente ameaçadora.
Ainda me surpreende eu ter conseguido sair da casa da minha mãe,
em Atibaia, assim que terminei o ensino médio, e vir para Santa Consolação
fazer faculdade de Letras. A Faculdade Interiorana de Santa Consolação
(FISC) era referência na região no curso que sempre foi o meu sonho, então,
quando consegui a média suficiente no Enem para me matricular aqui,
coloquei tudo que possuía em uma mochila e uma mala de mão e vim, com a
cara e a coragem.
Foi difícil.
Minha mãe e minha avó me criticaram muito, me chamaram de
louca, disseram que eu tinha que conseguir um marido e construir uma
família enquanto ainda era nova e bonita, e não devia perder meu tempo com
esse negócio de escrever.
Sim, meu maior sonho é me tornar uma escritora.
Terminei a faculdade e corri logo atrás de um emprego que pudesse
me abrir essa porta e, graças a Deus, consegui, me tornando secretária do
diretor-Presidente da Editora Lacerda.
Seu Henrique é um bom chefe, brincalhão, justo, e eu gosto muito do
clima da Editora. É um ambiente sadio, com um salário que me permite
viver dignamente, ainda que as coisas sejam um pouco apertadas, já que eu
mando boa parte do que recebo para ajudar nas contas da minha família.
Carina diz que eu sou uma boba, que elas só me exploram e me
botam para baixo, mas eu não consigo não ajudar.
Afinal, são a minha mãe e a minha avó. A única família que eu tenho
nesse mundo. Elas sempre me deram tudo, me alimentaram, cuidaram de
mim. Nada mais justo do que eu retribuir agora, não é?
Mas enfim, voltando à história, eu conheci minha melhor amiga em
uma dessas minhas crises de choro sem sentido.
Tinha acabado de receber uma nota péssima na faculdade, em uma
disciplina com um professor super carrasco, que me humilhou na frente de
toda a turma e me fez sentir a pessoa mais burra da face da terra.
Estava sentada em uma praça, na saída da faculdade, quando essa
menina parou para falar comigo. Meus olhos estavam inchados e minhas
mãos tremiam um pouco, e ela me ajudou a controlar a respiração, me
guiando em uma série de exercícios que, aos poucos, me acalmaram de um
jeito que eu ainda não tinha experimentado.
Foi aí que conheci o yoga.
Carina é professora da prática há uns bons anos, e já foi até à Índia se
especializar na área. Ela me ajudou a entender a melhor forma de controlar a
ansiedade, me ensinou a compreender os limites do meu corpo e da minha
mente, e isso criou um vínculo incrível entre nós.
— Agora joelhos no chão e bumbum nos calcanhares, vamos para a
posição da criança. Não esqueçam de respirar, pra dentro e pra fora, inalem
pelo nariz e soltem pela boca. — Sua voz é suave, guiada pelo ritmo da
música instrumental que toca ao fundo, e eu fecho os olhos, me permitindo
esquecer completamente do mundo lá fora.
Com a rotina da empresa, eu não consigo participar de suas aulas
durante a semana, praticando em casa, alguns minutos antes e depois do
trabalho. Mas, aos sábados, eu sempre estou aqui, na sua turma das nove,
religiosamente.
— Todos de costas no chão, pernas abertas numa distância maior que
os quadris, braços ao lado do corpo. Vamos para o nosso relaxamento final,
savasana[6]. — A turma toda se posiciona, de olhos fechados, respirações
controladas, para os últimos minutos da aula.
Essa é a minha posição favorita, de todas.
Ficar aqui, deitada, como se o resto do mundo não existisse, apenas
me conectando comigo mesma, é uma sensação indescritível. O yoga
transformou a minha vida e, hoje, era mais fácil eu passar um dia sem tomar
banho do que sem praticar.
— Aos poucos, vamos retornando a nossa respiração para o ritmo
normal, mexendo os dedos dos pés e das mãos — orienta, depois de alguns
minutos de silêncio. — Rolem pro lado e, com a ajuda da mão, vamos nos
sentar. Pernas cruzadas, mãos na frente do corpo, vamos absorver os
benefícios da nossa aula.
Sinto todo o meu corpo relaxado, as articulações alongadas e a mente
vazia, serena, como sempre acontece ao final de uma aula.
— Muito obrigada pela dedicação de todos. Até a próxima aula,
namastê[7].
— Namastê. — Todos nós repetimos, encerrando a aula e logo
estamos recolhendo nossos tapetes, mantendo o silêncio costumeiro, e nos
despedindo.
Fico até o final, como sempre, e ajudo Carina a organizar a sala para
a próxima turma, que começa às onze.
— Não quer ficar pra próxima? Vai ser uma aula de pranayama[8], sei
que você gosta.
Eu realmente gosto. É uma das minhas práticas preferidas, focar
somente na minha respiração e no controle da mente. Meditar é um dos meus
maiores prazeres, e essa aula é exatamente isso.
— Não posso, tenho que resolver aquele problema de encanamento.
Sábado é o dia mais fácil de encontrar o meu síndico, não posso ficar sem
água mais uma semana.
Já faz duas semanas que o meu apartamento sofreu uma inundação
na área de serviço que, além de acabar com a minha pobre máquina de lavar,
me deixou sem água desde então. Tenho tomado banho no apartamento da
dona Isabel, minha vizinha de sessenta e dois anos, que é a única pessoa de
que eu gosto e que confio naquele prédio.
— Você é uma teimosa também, Ali. Eu já falei pra vir morar
comigo, sair daquele muquifo que você chama de apartamento, mas você
não me escuta — resmunga, arrumando as almofadas.
— Eu não quero te atrapalhar, Carina. Seu apê só tem um quarto, não
tem nem espaço pra mim. Eu vou só ficar no seu caminho, você tem sua
rotina, não vai dar certo — argumento. É a verdade. Minha amiga mora em
um prédio bem melhor, mas seu apartamento é pequeno, aconchegante, bem
a sua cara, e não tem espaço para nós duas. — Eu tô procurando um lugar
novo pra morar, mas tá difícil. Seu Henrique me deu aquele aumento mês
passado, mas ainda assim, as coisas são apertadas, meu orçamento não é tão
alto. Lá é ruim, mas é baratinho.
— Claro, você não tem a mínima segurança, sua janela nem fecha, de
tão enferrujada, e não vamos nem falar da rede elétrica né. Você nunca mais
usou seu difusor porque tem medo de dar um curto naquela merda —
retruca.
— Eu gosto de secar meu cabelo naturalmente. — Mentira. Sempre
fica cheio de frizz e eu gasto muito mais creme e finalizador.
— E além disso — continua, me ignorando. — As coisas só são
apertadas porque você insiste em mandar dinheiro praquelas duas
sanguessugas que você chama de família.
— Cá... — começo, mas ela me interrompe.
— Não, Alice. Nem vem. São duas víboras que só sabem te colocar
pra baixo e você insiste em engolir tudo de boca fechada por um respeito que
só existe na sua cabeça — me repreende. — Elas nunca te apoiaram, pelo
contrário, te ofendem e te julgam em cada oportunidade, e você teima em
mantê-las na sua vida porque são “família”. Com uma família dessas, quem
precisa de inimigos na vida?
— Você não entende, Carina...
— Não, eu não entendo! — exclama. — Você manda mais da metade
do seu salário praquelas duas, Alice, e quando é que elas retribuem? Nunca
te visitaram, não ligam pra perguntar como você tá, só ligam se você demora
pra depositar o dinheiro do mês. São duas aproveitadoras e você é burra de
continuar permitindo isso enquanto vive nessas condições!
— Mas elas sempre me deram tudo, amiga! — respondo e ela bufa.
— Tudo o que? Comida? Um teto? O mínimo, Alice! Não fizeram
nada além da obrigação delas, do contrário seriam presas! Você não deve
nada a elas, absolutamente nada! Tem que viver a sua vida, correr atrás dos
seus sonhos, sonhos esses que elas sempre desdenharam. Chega de manter
na sua vida quem só te põe pra baixo, amiga, pelo amor de Deus.
Eu desvio o olhar, o peso da culpa se instalando em meus ombros.
Todo o relaxamento da aula foi por água abaixo.
— Eu já vou indo, pra tentar resolver essa questão da água. A gente
se vê amanhã? — pergunto, desviando o assunto.
Ela me olha, balançando a cabeça, e suspira.
— Até amanhã, amiga. Se cuida. — Me abraça apertado. — Você
sabe que eu te amo, não sabe? — pergunta, trazendo lágrimas aos meus
olhos. — Família não é só sangue, Alice. Família é cuidado, é amor, é apoio.
E essas duas não são sua família, nunca foram. Eu espero que um dia você
enxergue isso.
Pisco algumas vezes, disfarçando a emoção, e aceno, afagando seus
ombros antes de pegar meu tapete e minha bolsa e ir embora.
Carina sempre tenta me convencer a me desapegar das duas, mas eu
não consigo. Cresci ouvindo que família é tudo, que eu preciso sempre
priorizar aquelas que carregam o meu sangue, que tudo que eu conquistei na
vida foi por causa do apoio que recebi delas, que eu devo ser grata para
sempre.
Hoje eu enxergo que talvez as coisas não sejam assim, tão preto no
branco.
Talvez exista, sim, algo um pouco errado na nossa relação. Não
classificaria como tóxica, como a minha amiga, mas talvez não seja assim
tão saudável.
Mas eu não consigo agir diferente.
Não posso virar as costas para quem sempre esteve ali.
É errado, não é?
Enfim, enquanto isso, eu preciso resolver a minha vida. Tenho
ciência de que aquele apartamento não é adequado.
O bairro não é dos melhores, a vizinhança é duvidosa e, tirando dona
Isabel, não dá para confiar em ninguém ali.
Mas o preço do aluguel é realmente difícil de superar.
Seu Henrique é muito justo, me paga direitinho e muito além do que
uma secretária comum recebe. Eu sei disso. Mas ainda assim, eu sempre
vivo no limite, mês a mês, torcendo para que as contas fechem e que eu
consiga me manter com dignidade.
Às vezes consigo.
Às vezes minha amiga me ajuda, mesmo que eu tente negar.
Perdi a conta de quantas vezes Carina chegou para me visitar com
uma sacola de supermercado cheia de compras, com frutas, verduras,
legumes, dizendo que eu tinha que me alimentar melhor.
Eu sou muito grata por sua amizade.
Não sei se teria permanecido aqui sem ela. Não sei nem se teria
terminado a faculdade sem o seu apoio. Ela me ajudou tanto naquela época,
pagando minhas refeições, me ajudando nas xeroxes, enquanto eu tentava
sobreviver com um emprego de garçonete de meio expediente.
Eu sei que ela vem de uma família muito, mas muito rica, da capital.
Mas ela nunca me contou detalhes e eu também nunca perguntei, porque sei
que esse tópico mexe com ela de um jeito ruim.
O fato é que minha amiga vive bem, sem luxos nem nada, mas bem,
muito melhor que eu, e me ajuda sempre que eu deixo.
Ela, inclusive, disse que mudaria de apartamento, alugando um
maior, para nós duas, mas eu não permiti, ameaçando cortar nossa amizade
se ela fizesse isso.
Ela ama aquele apartamento, passou meses para deixá-lo exatamente
com a sua cara, e fica a dois quarteirões da sua escola de yoga, então não faz
sentido algum que ela se mude, só por mim.
Eu vou conseguir me resolver.
Eu sempre consegui.
Uma hora as coisas vão melhorar na minha vida, e eu vou ser uma
grande escritora de sucesso.
Eu tenho fé nisso.
Preciso ter fé.
03 - Henrique

Homens sábios dizem que somente os tolos se apressam


Mas eu não consigo evitar me apaixonar por você.
Can’t Help Falling in Love – Elvis Presley

— E como vai ficar a campanha do novo livro da Fernanda Gouveia,


cara? Ela entregou o manuscrito finalizado ontem, já vai entrar pra
diagramação e a gente precisa montar toda a divulgação até o final do mês
— pontuo para o meu amigo. — A ideia é lançar no máximo daqui dois ou
três meses, dependendo da escolha da capa. Ela vai sentar com a equipe de
design na segunda-feira.
É sexta-feira e Pedro e eu estamos finalizando a última reunião do
dia, antes de encerrar o expediente.
Geralmente, quando temos um lançamento previsto, nós organizamos
uma reunião com todas as diretorias, para ajustar os detalhes de cada decisão
necessária para tudo ser um sucesso.
Mas antes disso, eu gosto conversar apenas com o meu amigo, para
que a gente trace algumas estratégias juntos, antes de levá-las para os
demais. É um costume nosso, visto que funcionamos muito bem como uma
equipe e falamos uma linguagem só nossa, que nós dois entendemos muito
facilmente.
— Como vai ser o início de uma nova série, a gente tem que
desconstruir toda a imagem que foi associada a ela com a trilogia anterior.
Ela disse quantos livros serão escritos nesse universo? — me pergunta,
abrindo o seu tablet.
— É uma série contando a história de cinco amigos, então, no
mínimo isso. Só que ela disse que há planos de um ou dois spin-offs, então
assinamos contrato pra sete livros. — Checo minhas anotações para
confirmar.
— Perfeito, então podemos esperar aí uns dois ou três anos de
publicações a cada quatro ou cinco meses, se ela seguir o mesmo ritmo da
trilogia passada. — Ele anota. — Vou dar uma lida no manuscrito esse final
de semana, pra sentir a vibe da história e entender como seria a melhor
estratégia de venda. Você disse que é um fake dating[9], né?
— Sim, é um new adult[10], se passa numa universidade. A história é
bem bacana, envolvente, os protagonistas têm bastante química. Acho que
vai ser um sucesso, de verdade — respondo. — A Fernanda vem de uma
sucessão de estouros nos últimos cinco anos, inclusive tá cogitando traduzir
os livros pro inglês e tentar vender fora do país. Tô ajudando ela com essa
intermediação.
— Você podia era tentar expandir a Lacerda pra atender a essa
demanda — sugere. — Hoje em dia é tão mais simples esse tipo de coisa, há
muitas opções que são bem interessantes pra gente tentar se inserir no
mercado internacional.
— Eu pensei nisso, até pedi pra ela segurar os planos um pouco
enquanto eu analisava a situação — concordo. Seria realmente uma
oportunidade incrível da Editora expandir ainda mais o seu nome. — Preciso
conversar com o coroa, sabe como ele é meio antiquado às vezes. Demorou
pra convencer ele a aceitar que nós publicássemos romances adultos. Não sei
como ele vai reagir com essa expansão.
Pedro suspira, fechando o tablet.
— Henrique, eu amo o seu Afonso — começa. — Ele é muito mais
do que o pai do meu melhor amigo, e você sabe disso. Ele foi o meu pai
também, durante toda a minha adolescência, e até hoje eu o considero
demais. Só que ele não é mais o CEO dessa Editora, irmão. Ele se aposentou
há cinco anos, e quem senta nessa cadeira hoje é você. Ele nem sócio
majoritário mais é, porque transferiu pra vocês três metade das ações dele
quando saiu da Editora. Você não precisa da autorização dele pra tomar uma
decisão assim.
Eu sei disso.
Tenho consciência de que sou eu que mando na Lacerda hoje em dia.
Mas ainda assim, meu senso de lealdade não me permite deixar meu
velho no escuro assim.
— Não é autorização, meu nego — explico. — Eu admiro muito o
que o meu pai fez com essa Editora. Vovô construiu ela do zero, mas foi o
seu Afonso que expandiu os negócios a nível estadual e depois nacional. Eu
peguei ela do tamanho que ela era, por causa do trabalho dele. Claro que
hoje somos muito maiores, graças a Deus, mas os conselhos dele ainda são
importantes pra mim.
— Mas têm que ser apenas isso, Henrique. Conselhos — continua.
— Você não pode deixar de aproveitar algo que pode tornar a Lacerda uma
das maiores da América Latina só porque o seu Afonso não enxerga o
potencial. Você enxerga, eu enxergo, tenho certeza de que a diretoria toda
também enxergaria. Não desperdiça uma chance dessa, cara.
— Eu vou me reunir com o jurídico na semana que vem pra tentar
ver as possibilidades. Aí eu levo uma proposta mais concreta pro papai e a
gente decide se vai ser viável ou não — concedo, mas percebo que não era o
que o meu amigo queria.
— Como você achar melhor, cara. Se precisar de ajuda pra convencer
o coroa, me chama. A gente faz uma intervenção — debocha, e eu jogo a
minha caneta nele.
— Respeita meu pai, seu pau no cu. — Ele gargalha, até que somos
interrompidos por uma batida suave na porta. Meu coração já começa a
disparar, imediatamente. — Entra — peço.
— Com licença, seu Henrique. — Aquela voz de anjo preenche o
ambiente. — Eu trouxe um café e uns pãezinhos pra vocês. Tão há tanto
tempo enfurnados aqui, o senhor nem almoçou.
Ai meu Deus.
Como não se apaixona?
Me diz, como? Hein?
— Obrigado, Alice, você é muito gentil. — Sorrio para ela,
absorvendo as suas bochechas coradas e aquele sorrisinho tímido de canto de
boca que eu tanto amo.
— De nada, seu Henrique. Com licença — pede, depois de colocar a
bandeja na mesa. — Seu Pedro — cumprimenta o meu amigo, que acena
para ela, e então se vai, levando consigo toda aquela aura de pura perfeição
que me encanta.
— Meu Deus do céu, se você babar mais um pouco é capaz de se
afogar. — Me assusto com a voz de Pedro, e pisco algumas vezes para
recuperar o foco. — Cara, isso tá ridículo já, você tem que desencanar dessa
mulher, misericórdia.
Bufo, esfregando as mãos no rosto antes de olhá-lo novamente.
— Eu não consigo, Pedro — respondo. — Aliás, não consigo e não
quero. A Alice é perfeita, irmão. Perfeita, tão linda, tão doce, gentil. Ela é
tão...
— Tão proibida... tão sua secretária... tão desinteressada... —
completa, me calando. — Porra cara, faz quase dois anos que você não
transa com ninguém por causa dessa paixonite idiota. Você precisa é enfiar
esse pau enferrujado em alguma boceta por aí pra ver se o seu cérebro volta
a funcionar como um cara normal.
— Eu não quero comer qualquer boceta por aí, seu cuzão — retruco.
Ele simplesmente não entende. — Não sou como você, que basta um olhar
pro seu pau subir e você ficar a fim... eu preciso de mais, preciso de uma
conexão, de sentimento. Você sabe disso, eu sempre fui assim.
Tanto no colégio quanto na faculdade, o Pedro sempre foi do tipo
pegador, que se envolvia cada semana com uma menina diferente, popular,
sempre desejado por todas, invejado pelos caras.
Eu não posso dizer que eu era o amigo nerd sem sal porque, apesar
de ser muito estudioso, eu também era bagunceiro, gostava de ficar no meio
da galera e tinha minha fama, tanto pelo meu sobrenome quanto pela minha
aparência.
Modéstia à parte, eu sempre fui um grande gostoso.
Mas eu não compartilhava da fama de pegador do meu amigo. Com
relação às meninas, eu pouco me envolvia, e só ficava com uma depois de
um certo tempo conversando, conhecendo, se rolasse uma química
interessante.
Não gostava da ideia de só sair beijando por aí. Enfiando meu pau
em qualquer buraco.
Meu companheiro é um moço de família, merece respeito, tá?
Uma vez, Benjamin veio com uma história de demissexualidade.
Achei que era besteira, mas depois que ele explicou, percebi que até
que se encaixa muito bem no que eu sinto.
Os demissexuais não sentem atração sexual por qualquer indivíduo,
apenas por uma questão de aparência física. Claro que nós admiramos a
beleza como qualquer pessoa normal, não significa que somos cegos.
Mas enxergar beleza é diferente de se sentir atraído por ela.
No nosso caso, a atração, o desejo só surge quando há uma conexão
verdadeira com a pessoa. Uma conexão emocional ou intelectual.
Sentimentos.
Não quer dizer que eu só transo com quem eu me apaixono. Não é
isso.
Mas para rolar o desejo, para eu querer algo mais físico, é necessário
que eu conheça a pessoa. Que tenha rolado uma conversa legal, uma
admiração, uma química que vai além dos corpos.
Tipo o que eu sinto pela Alice.
— Ainda acho uma besteira — Pedro contrapõe. — Mas enfim, são
as suas bolas que estão azuis, não as minhas. Muito pelo contrário, eu tenho
um encontro com uma gatinha bem gostosa hoje à noite, então acho bom a
gente terminar essa reunião aqui, porque eu ainda tenho que ir cortar o
cabelo e dar um trato na barba.
Reviro os olhos para ele e me sirvo de um pouco de café, sorrindo
quando percebo que ela o fez exatamente do jeito que eu gosto, e colocou
um pouquinho de leite em um copinho para que eu pudesse misturar, como
prefiro.
Foram coisinhas assim, detalhes, que me fizeram me apaixonar.
Eu me encantei à primeira vista pela Alice, coisa que nunca tinha
acontecido comigo. Fiquei hipnotizado pela sua beleza, admirei seu corpo,
porque era impossível ignorá-lo.
Mas foi conhecendo-a que eu me apaixonei perdidamente.
Vendo o quanto era esforçada, gentil, carinhosa. O quanto respeitava
a todos dessa empresa, desde mim, o CEO, até a dona Virgínia, que cuida da
limpeza, e o seu Geraldo, o segurança.
Alice tem um coração puro, bom, e foi ele que laçou o meu e o
roubou para si, sem que eu pudesse sequer lutar contra.
Não que eu fosse lutar.
De forma alguma.
Mesmo com as bolas azuis, como meu amigo bem colocou, amar
Alice é a melhor parte da minha vida.
A parte mais colorida.
Eu amo amá-la, entende?
Só não posso evitar desejar que ela também me ame de volta.
04 - Alice

Eu andei errado, eu pisei na bola


Troquei quem mais amava por uma ilusão
Mas a gente aprende, a vida é uma escola
Essa Tal Liberdade – Só Pra Contrariar

— Feliz aniversário, amiga! — exclamo, abraçando Carina assim que


a aula termina e as alunas saem da sala.
Minha melhor amiga está completando vinte e sete anos hoje, ainda
que não pareça ter um dia a mais que vinte.
Carina é uma ruiva natural absurdamente linda, seus cabelos em um
tom quase alaranjado são o seu xodó maior, e com razão. As madeixas lisas e
compridas são perfeitas, fruto de muitos cuidados que ela faz questão de
manter.
Os olhos verdes e as sardas no rosto rosado só completam o visual de
mulher europeia, talvez escocesa, mas que nada combinam com o nosso
biotipo brasileiro.
Talvez por isso minha amiga chame a atenção aonde quer que vá,
ainda mais com o seu estilo meio esotérico, colorido e cheio de vida.
— Obrigada, amiga! — Aperto seu corpo mais uma vez antes de
soltá-la, dando-lhe um sorriso animado. — Nem acredito que já tenho vinte e
sete anos! Daqui três anos tô com trinta! Meu Deus, pra onde os meus vinte
se foram?
— Ficaram na tua cara, que não envelheceu um dia sequer! —
exclamo, fazendo-a rir. — E você reclama? Esse ano eu fiz vinte e nove,
Cacá, me poupa né. Os trinta tão batendo na minha porta e não na sua.
— Mas você ainda tem carinha de quinze, Ali! — contrapõe.
Eu balanço a cabeça, sorrindo para ela.
— E o que vamos fazer hoje? Quer sair pra comemorar? — pergunto.
Minha amiga gosta bastante de dançar e não perde uma oportunidade
de sair para alguma festa sempre que pode. Não costuma ir toda semana,
nem nada, mas pelo menos uma vez no mês ela vai requebrar o seu corpo
lindo em alguma pista por aí.
Ela me conhece bem e sabe que esse não é bem o meu estilo, por isso
não me cobra que a acompanhe nas suas aventuras. Mas o seu aniversário é
uma data especial e, se ela quiser comemorar em alguma balada por aí, eu
posso fazer o esforço de me empolgar dessa vez.
— Uma amiga do pilates me falou que vai ter um pagodinho bem
legal lá na Steak House hoje à noite, o que acha? Não é uma festa, festa, mas
eu vou dançar um bocado e você pode ficar sentadinha, beliscando um tira-
gosto bem gostoso. Topa?
Me deixa feliz ela pensar em uma programação que também me
agrade, então eu apenas aceno em concordância.
— Claro que topo, amiga. Tô com vontade de comer um filé com
fritas, faz um bom tempo! — respondo.
Eu não me permito muitos luxos, até porque as minhas condições não
favorecem. Mas como sabia que Carina iria querer sair no seu aniversário,
venho separando um pouquinho de dinheiro há alguns meses, para ter
condições de comemorar sem me preocupar com a conta.
Sei bem que ela vai insistir para pagar tudo, mas eu não vou deixar.
Já comprei uma escultura de Buda linda, toda em madeira esculpida,
que eu sei que ela vai adorar, para presenteá-la, e ainda tenho condições de
contribuir com a comanda da noite sem passar fome o resto do mês.
— Então fechou, amiga! Eu passo pra te buscar de oito e meia, tá? —
combina e eu aceno, me despedindo dela com um abraço antes que a sua
turma das onze chegue para a aula.
Saio do prédio onde fica o seu estúdio, e sigo a passos lentos para o
meu apartamento. O clima até que está agradável hoje, o sol se escondendo
por detrás de algumas nuvens branquinhas e uma brisa suave batendo no
rosto enquanto caminho.
Felizmente consegui convencer o meu senhorio a consertar o
problema de encanamento e agora tenho água na minha casa. Precisei lavar
as minhas roupas na mão, essa semana, porque realmente a minha máquina
foi com Deus, mas pelo menos eu não preciso mais incomodar dona Isabel
para tomar um banho.
Entro em casa, torcendo o nariz para o leve cheiro de mofo que ainda
preenche o ar, mesmo depois de eu me esforçar para deixar tudo limpo e
sequinho depois da inundação.
Eu não quero mais morar aqui, mas não vejo outra saída tão cedo,
então me resta aceitar. Nada muito diferente do que eu já estou habituada na
vida.
Eu sou boa em aceitar as coisas.
*
— Eu andei errado, eu pisei na bola! Troquei quem mais amava por
uma ilusão. Mas a gente aprende, a vida é uma escola! Não é assim que
acaba uma grande paixão... Quero te abraçar! Quero te beijar![11] — Carina
se esgoela cantando SPC enquanto o boyzinho que ela fisgou abraça a sua
cintura por trás.
Não disse que minha amiga é uma ruiva de parar o trânsito?
Não demorou vinte minutos desde que chegamos aqui para que uns
dois carinhas começassem a rondá-la. Ela enxotou os dois, dizendo que hoje
seria uma noite de meninas e que ela não estava procurando companhia.
Sorri das expressões derrotadas de ambos, mas quando esse loirinho
começou a dar sinais de interesse, do outro lado do restaurante, eu vi no
rosto da minha amiga que aquele ali tinha chamado a sua atenção.
Então quando vi que ele iria se aproximar, eu disse para ela não
desperdiçar a chance, que eu poderia ficar aqui, curtindo o show, e não me
importava de servir de vela.
É aniversário dela e se tem alguém que merece transar hoje, esse
alguém é a ruiva.
Belisco mais um pedaço de filé, gemendo ao sentir a maciez da carne
se desfazendo em minha língua, e balanço o meu corpo no ritmo da música,
aproveitando a noite. Isso até sentir um comichão na minha nuca.
Olho por cima do ombro e vejo um moreno bonito me observando, e
quando nossos olhos se cruzam, ele esboça um sorriso meio safado e levanta
o seu copo de cerveja em minha direção.
Ora, ora, ora. Será que não é apenas a Carina que vai se dar bem
hoje?
Eu devolvo o cumprimento e ele toma isso como um convite para se
aproximar, andando na direção da nossa mesa a passos lentos.
Okay. O cara é um gostoso.
Alto, ombros largos, um sorriso branquinho e perfeito, cheio de
dentes perfeitamente alinhados e adornado por lábios carnudos, muito, muito
beijáveis.
— Boa noite, gatinha. — O apelido é horrível, mas eu ignoro e
retribuo o sorriso, fazendo menção para que se sente.
— Boa noite. Tudo bem? — pergunto.
Ele se senta, aproximando a cadeira para mais perto de mim, e coloca
o braço musculoso por trás de mim, no meu encosto.
Moço de atitude, gostei.
— Bem melhor agora, morena. — Cheio de galanteios. Meio brega?
Talvez. Mas faz tanto tempo que eu não paquero que apenas deixo passar. —
Gostando do show?
— Sim, a banda é muito boa — respondo. — E você?
— Os caras são bons, sim — concorda. — Tô de passagem na
cidade, uns colegas do Congresso que tô participando indicaram a comida
daqui. Devo dizer que a noite está sendo uma grata surpresa.
Deixando claro que não passará de uma noite de uma forma bem
sutil, ganhou mais um pontinho.
— Espero que tenha gostado da cidade. — Meu tom é sugestivo e eu
sei que ele entende, porque seu sorriso se torna ainda mais pecaminoso,
trazendo um arrepio para a minha espinha.
Deus, que ele seja bom, porque faz tanto tempo que eu não tenho um
orgasmo que preste.
— Uma das cidades mais bonitas que já visitei, morena — responde,
seu dedo roçando a pele do meu ombro, afastando meus cabelos. —
Guilherme, muito prazer. — Me estende a mão. — E você?
— Alice. — Aperto sua mão, gostando da forma que ela quase engole
a minha, e do jeito que a sua pele negra contrasta com a minha. — O prazer
é meu.
Eu realmente espero que seja.
*
O barulho ensurdecedor me acorda, me fazendo gemer e colocar a
mão na cabeça.
Deus do céu, o quanto eu bebi ontem?
Tento me localizar e entender que merda que está fazendo tanto
estardalhaço, até que consigo perceber que estou deitada em uma cama mais
macia que a minha, completamente nua, e um telefone toca sem parar ao
meu lado.
— Alô? — Minha voz sai meio arranhada, um gosto amargo horrível
na minha boca e uma vontade absurda de vomitar.
— Bom dia, senhorita. Aqui é da recepção. — Okay, devo estar em
algum tipo de hotel ou motel. — Queria apenas lhe informar que o seu
acompanhante deixou uma pernoite paga, mas que o horário se encerra em
vinte minutos. Caso permaneça no quarto, será acrescentado o valor de uma
nova hora na conta.
Motel, então.
— Eu já vou sair, muito obrigada por avisar. — Não sei se é a
política do lugar ou se foi solidariedade feminina por saber que eu,
provavelmente, estava sozinha aqui dentro, dormindo, mas eu realmente sou
grata.
Não tenho condições de pagar mais uma hora de um motel que
aparentemente parece ser bem caro.
— Por nada, senhorita, pode trazer a chave na recepção na saída.
Bom dia.
Ela desliga a chamada e eu jogo a cabeça no travesseiro, segurando
mais um gemido com a forma que a bile sobe na minha garganta de novo.
Não lembro de quase nada depois da sexta dose de caipirinha que
Guilherme pagou para mim, enquanto a banda continuava a tocar os maiores
sucessos do Só Pra Contrariar.
Sei que Carina saiu um pouco antes de mim, agarrada no boyzinho
dela, depois de confirmar comigo que eu ficaria mais um pouco com o
moreno bonito que se aproximou de mim.
Lembro vagamente de me agarrar com ele, encostada na lataria do
seu carro alugado, e dizer sim quando ele sugeriu um motel para fechar a
nossa noite.
Minha virilha dolorida me diz que a noite foi realmente boa, pelo
menos isso, mas a ressaca física e moral está prevalecendo sobre qualquer
resquício dos orgasmos que eu possa ter tido.
Me preparo psicologicamente para me levantar e sair daqui, antes
que eu precise gastar o que não tenho para pagar a conta, e agradeço
mentalmente por Guilherme ter tido a decência de pelo menos deixar tudo
quitado antes de sair de fininho, como um criminoso.
Não sou muito adepta de sexo casual, mas custava ter ficado e se
despedido como uma pessoa normal?
Parece até que estava fugindo de algo, eu hein.
Mas enfim, o que está feito, está feito. Pelo menos foi bom, eu acho.
Recolho meu vestido preto e minha calcinha rasgada, resmungando
por ter que sair daqui sem nada por debaixo da roupa, já que o gostosão
decidiu brincar de gorila com a minha lingerie.
Pego meu celular e minha bolsa depois de vestida e vejo se não estou
esquecendo de nada, antes de sair do quarto e levar a chave até a recepção.
A moça do telefone me olha curiosa, e eu sinto minhas bochechas
esquentarem de vergonha. Não sou puritana, mas nunca tinha estado numa
situação dessas, de ter que sair de um motel à pé, com a roupa do dia
anterior, e a cara amassada de ressaca.
Verifico os arredores para entender onde eu estou e gemo quando
percebo que não há a menor condição de ir para casa andando. É muito
longe.
Pego meu telefone, abrindo o aplicativo de mensagens para ver se a
minha amiga já acordou, agradecendo quando vejo seu visto por último há
menos de cinco minutos. Aperto o botão da ligação, esperando que ela me
salve mais uma vez.
E que ela tenha tido uma manhã melhor do que a minha.
05 - Henrique

Deixa eu dizer que te amo,


Deixa eu pensar em você.
Isso me acalma, me acolhe a alma,
Isso me ajuda a viver.
Amor I Love You – Marisa Monte

Minha boneca está estranha.


Faz uns dois ou três dias que ela está meio cabisbaixa, seu sorriso
lindo não tem o mesmo brilho de sempre, e eu posso jurar que ela está até
meio pálida, por debaixo da maquiagem.
O que por si só já é estranho, já que Alice nunca usa maquiagem.
No máximo um batom clarinho ou um gloss, e um pouco daquele
negócio que deixa os cílios maiores.
Mas agora ela tem usado mais coisas, porque eu senti falta daquele
par de pintinhas que ela tem no canto esquerdo da boca, e suas bochechas
estão menos rosadas, principalmente quando eu a elogio.
Eu amo o jeito que ela cora toda vez que eu faço um elogio, e já faz
dois dias que ela não reage assim.
— Seu Henrique, o diretor do jurídico ligou pedindo uma reunião pra
próxima sexta, pra tratar da ideia de expansão internacional. Eu posso
confirmar? Sua agenda tá livre de manhã — sua voz doce me pergunta e eu
fecho os olhos rapidamente, absorvendo aquela sensação gostosa de sempre
que eu a escuto.
— Pode confirmar sim, querida. Preciso desse planejamento pra falar
com o meu pai — respondo, esperando o rosado aparecer com o apelido,
mas nada.
Que cacete.
— Tudo bem, vou confirmar então. — Acena, anotando na sua
agenda e dando um passo na direção da porta.
Toda a sua postura grita para mim que algo está muito, mas muito
errado, e eu simplesmente não consigo me conter.
— Alice? — chamo, antes que ela saia, e ela me encara com aqueles
olhos negros profundos, que agora carregam uma agonia que pinica a minha
pele.
O que tá acontecendo com você, meu amor?
— Sim, seu Henrique? — Sua boca se curva em um biquinho tão
convidativo, que fecho as mãos em um punho para me controlar e não
implorar para beijá-la.
— Você tá bem? — Ela arregala os olhos, surpresa com a minha
pergunta, e eu continuo. — Tenho percebido você um pouco abatida,
cabisbaixa. Se você estiver com algum problema, se estiver precisando de
algo, saiba que pode contar comigo.
Eu sinto meu peito se contorcer de agonia quando os seus olhinhos
marejam e ela pisca algumas vezes, para evitar as lágrimas. A pontinha do
seu nariz arrebitado fica vermelha com o esforço e eu quase não consigo
controlar o impulso de me levantar e tomá-la em meus braços.
— Eu tô bem, seu Henrique — responde, meio ressabiada. —
Desculpa se eu deixei a desejar em alguma coisa, eu juro...
— Não, Alice, de jeito nenhum, não — interrompo-a, porque não
posso permitir que fique preocupada com a hipótese de eu não gostar do seu
trabalho. Primeiro porque seria um absurdo, ela é a melhor secretária que eu
já tive (ainda que eu não fosse apaixonado por ela). E segundo porque eu
não quero ser a causa de mais uma preocupação. — O seu trabalho continua
impecável, como sempre. Eu só tô preocupado com você. Não gosto da ideia
de você estar triste...
Meu Deus, é hoje que eu confesso o meu amor por ela, porque ela vai
chorar e eu não vou conseguir me controlar.
Ela funga baixinho, desviando o olhar do meu e abraçando a sua
agenda, quase como um escudo, ficando tão pequena e frágil, que eu quase
enlouqueço.
— Tá tudo bem, seu Henrique. Não se preocupa. — O sorriso
corajoso que ela se força a me dar termina de me partir o coração. Oh bebê,
o que fizeram contigo? — O senhor precisa de mim pra mais alguma coisa?
— me pergunta.
Eu olho o relógio e vejo que já são quase seis, então apenas balanço a
cabeça.
— Não, Alice. Só confirme a reunião com o Farias e está dispensada.
Eu também já vou fechar tudo aqui pra ir embora. Até amanhã.
Ela me dá um sorriso agradecido, tão quebrado quanto o anterior.
— Obrigada, seu Henrique. Boa noite pro senhor, até amanhã.
Observo seu andar pesado ao sair da minha sala e suspiro,
recostando-me na minha cadeira. Meu coração está apertado com a ideia da
minha boneca estar sofrendo por alguma coisa.
Eu não gosto nada de não poder fazer algo para ajudar.
Me dói não ser a pessoa para quem ela recorreria em uma situação
assim. Dói demais. Mas a verdade é que eu sou apenas o seu chefe.
Mesmo que, para mim, ela seja o meu mundo todinho, para ela, eu
sou apenas o seu chefe.
E nada mais.
*
— Cê tá bem, irmão? — Pisco, focando minha atenção no meu irmão
mais velho e vendo a forma como me olha, um pouco preocupado. — Tô
falando com você, mas parece que nem tá aqui.
Esfrego o rosto com as mãos, soltando um suspiro pesado, antes de
voltar a encará-lo. Estamos em um dos nossos restaurantes favoritos,
jantando, como sempre costumamos fazer, mas a minha mente ainda está na
minha Alice.
— Tô bem, cara. É só... — Balanço a cabeça, sem saber como
explicar. — Tô um pouco encucado com umas coisas aí, mas não é nada
sério.
Pelo menos eu espero que não seja.
Por favor, Deus, que não seja nada de sério.
— Você quer conversar?
Eu amo meus irmãos.
De verdade. Amo como se fossem pedaços da minha alma, porque é
exatamente isso que eles são.
Bianca é a minha princesinha em miniatura, meu pedacinho de
perfeição, a coisa mais preciosa da minha vida, a quem eu protegeria com
unhas e dentes, dando a minha vida se fosse preciso.
E esse cara aqui...
Ah, Benjamin é o nosso norte. Nosso porto-seguro. Nossa base mais
sólida, aquele que sempre nos ouve, que oferece conselhos e um ombro
amigo toda santa vez, sem pedir por absolutamente nada em troca. Ele é o
meu melhor amigo, mais do que Pedro, porque tem uma parte de mim que
ninguém mais possui.
Ele conhece a minha essência, toda a minha vulnerabilidade, que eu
sempre escondo atrás da fachada de moleque brincalhão, piadista e sempre
animado.
Benji me conhece, melhor do que eu mesmo.
Só existe uma coisa que ele não sabe.
Uma coisa que eu nunca contei, que nunca tive coragem de
compartilhar.
E essa coisa é a Alice.
— Henri — chama a minha atenção, se inclinando um pouco na
minha direção e cruzando os dedos em cima da mesa. — Você sabe que pode
me contar qualquer coisa, não sabe? — Eu balanço a cabeça, porque eu sei.
— O que tá acontecendo, irmão?
— Eu tô apaixonado pela minha secretária — solto de uma vez.
Ele arregala os olhos, denotando toda a surpresa que eu já esperava,
antes de assumir novamente aquela postura pacificadora que sempre me
acalma, e acenar.
— Okay. Você tá apaixonado pela sua secretária — repete. — Desde
quando?
Suspiro, me rendendo.
— Ela mexe comigo desde o primeiro segundo que eu a vi, Benji —
confesso. — Você, melhor que ninguém, sabe como eu me sinto com as
mulheres. Não é qualquer uma que me atrai, que desperta a minha atenção.
Mas a Alice... — Lembro do seu jeitinho destrambelhado na sua entrevista
de emprego, do quão nervosa estava, esfregando as mãos suadas no tecido da
sua calça jeans escura. — Ela mexeu comigo de uma forma que eu nunca
experimentei antes. O jeitinho dela, sabe? Toda fofa, delicada, gentil. Ela é
tão humilde, tão batalhadora. E, meu Deus, tão linda. A mulher mais linda
que eu já conheci, não tem nenhuma comparação, é impossível.
— E vocês já... — pergunta e eu balanço a cabeça, negando.
— Não, nunca. Quem me dera. — Suspiro. — Ela não me vê assim.
Eu sou só o seu Henrique, nada mais.
— E o que tá te perturbando tanto? — meu irmão questiona.
— Alice é como um arco-íris, sabe? Viva, colorida, linda. Capaz de
trazer luz e beleza até pro dia mais feio e nublado — explico. — Mas de uns
dias pra cá ela tem estado triste, estranha. Como se tivesse perdido o seu
brilho, a sua alegria. — Fecho os olhos e a imagem dos seus olhinhos tristes
me invade mais uma vez. — Não sei o que houve, mas eu sei que tem
alguma coisa, e não conseguir fazer nada me mata, irmão. Parece uma
tortura ver ela tristonha e não poder tomá-la pra mim, cuidar dela, fazer tudo
ficar bem de novo.
— Eu já me senti assim uma vez. — Sua voz adquire um tom
pesaroso, que me deixa curioso. — Há muitos anos atrás...
— Com a Roberta? — pergunto, e a simples menção de sua ex
remove toda a delicadeza da expressão do meu irmão.
— Não, foi muito antes de conhecer a Roberta.
Fico ainda mais encucado, pensando em quem poderia ter
conquistado Benjamin desse jeito.
— Eu conheci ela?
— Não... — Ele balança a cabeça. — Ninguém conheceu... foi tudo
muito rápido. Eu a vi, me encantei por aqueles olhos castanhos e aquela pele
bronzeada, e então ela desapareceu, como se nunca tivesse existido. —
Franzo o cenho. — Tem horas que eu até me pergunto se ela não foi uma
ilusão da minha mente.
— Você nunca me contou essa história — comento.
Benjamin solta uma risada sem humor e coça a barba.
— Eu nunca contei pra ninguém... — confessa. — O que eu quero
dizer é que eu acho que entendo o que você sentiu, quando conheceu a Alice.
Eu sei como é. A questão é apenas uma: você vai deixar ela escapar como eu
fiz? Ou vai tomar uma atitude?
Mordo o lábio, ponderando suas palavras, antes de responder.
— Acha que eu deveria tomar uma atitude? — A simples ideia me
aterroriza, não por medo de ela aceitar, até porque seria um sonho, mas por
puro pavor de perdê-la.
Sei que prefiro vê-la todos os dias e ficar admirando-a em silêncio do
que não a ter na minha vida de forma alguma.
— Eu acho que você deveria ter cautela — meu irmão responde. —
Você é quem está na posição de poder nesse cenário, e isso significa, ao
mesmo tempo, duas coisas: uma, ela nunca vai tomar uma atitude, ainda que
sinta o mesmo que você. Ela corre risco demais, muito mais do que você,
então acho que não arriscaria perder o seu emprego.
— E ela precisa muito. Não sei de tudo, mas sei que não tem uma
vida muito confortável — comento, em um tom triste. — Dei até um
aumento pra ela alguns meses atrás, depois de pegar aprovação no
financeiro.
O chefe do setor me olhou um pouco desconfiado, afinal o salário
dela não era nem um pouco defasado para justificar o aumento. Mas eu já
tinha observado algumas coisas que me faziam pensar que Alice passava
maus bocados.
Um dia a vi conferir várias moedinhas na sua bolsa, antes do almoço.
Não me contive e a segui, só pra ter o meu coração despedaçado ao vê-la
comer dois pãezinhos com manteiga e um copo de suco como almoço, na
padaria da esquina.
Naquele dia eu sequer consegui comer.
Só a ideia de engolir um salmão ou um filé enquanto minha boneca
comia apenas pão me embrulhou o estômago.
— Então. Ela jamais vai arriscar, Henri — ele continua. — E além
disso, a sua posição como chefe também significa que você precisa ter
cautela em demonstrar qualquer coisa que possa constrangê-la. Assédio em
ambiente de trabalho é algo muito sério e você não pode usar do seu poder
para coagi-la a algo.
— Eu nunca faria isso, Benji, pelo amor de Deus! — retruco,
ofendido.
— Eu sei disso, porque te conheço como se fosse a mim mesmo —
ele concede. — Mas ela não. Pra ela, você é apenas o chefe. Aquele que tem
o poder de colocá-la na rua caso ela faça algo que não é do seu agrado.
Lembro do seu rostinho triste hoje, pensando que eu estava
insatisfeito com o seu trabalho.
— Então o que eu faço? — pergunto, exasperado. — Ela não vai
demonstrar nada, porque tem medo. E se eu der algum sinal, posso ser mal
interpretado. Como eu resolvo essa situação?
Meu irmão suspira, me olhando com pesar.
— Eu não sei o que te dizer, irmão. É uma situação muito
complicada. O máximo que você pode fazer é sondá-la. Tentar sentir se ela
demonstra alguma reciprocidade, algo que te dê esperanças de que vai ser
bem recebido se tentar algo. Mas você tem que agir com muita cautela e
paciência. Isso se você achar que vale a pena.
Solto um riso quebrado, porque ele realmente não faz ideia.
— Ela vale a pena, Benji — respondo. — Ela vale tudo. Ela é tudo.
— Então tenta. Sonda. Seja esperto — incentiva. — Com cuidado,
Henrique, pelo amor de Deus.
— Eu vou ter... — prometo.
Eu tenho que ter cuidado. Ela é preciosa demais para eu arriscar sem
pensar.
06 - Alice

Bom, eu acabei de ouvir a notícia hoje


Parece que a minha vida vai mudar.
Fechei meus olhos, comecei a orar
With Arms Wide Open - Creed

Eu estou surtando.
Minha menstruação sempre foi absurdamente regular, tipo um
reloginho.
Todo dia 6 o meu humor começa a se alterar, me deixando irritadiça e
sempre com muita, mas muita fome. Lá pelo dia 9, uma manada dos mais
enormes e pesados elefantes faz morada no meu ventre, sapateando como se
estivessem em um maldito número de circo. E, religiosamente, no dia 11, a
minha menstruação desce.
Eu costumo até sair de casa já usando absorvente, para me prevenir,
porque sempre, sempre desce nesse dia.
Hoje é dia 22 e nada.
Há pouco mais de três semanas, eu tive aquele encontro com o
moreno gostoso no aniversário da Carina. Quando acordei naquela cama de
motel, nua e sozinha, só pensei no quão ressacada e destruída eu estava, e
tratei de sair logo dali, indo curar meu porre com muito brigadeiro e pipoca
em uma tarde de meninas na casa da minha amiga, depois que ela me
resgatou da minha caminhada da vergonha.
Em momento algum eu cogitei que o sexo esquecido daquela noite
tinha sido tão irresponsável a ponto de eu estar aqui, sentada no meu sofá
velho, segurando um teste de gravidez nas minhas mãos, pensando em como
eu me enfiei numa merda tão grande como essa.
Meu Deus do céu, eu não posso estar grávida.
Não tem a menor condição de uma coisa dessa acontecer, não dá.
Eu não tenho como cuidar de uma criança, de jeito nenhum. Não
consigo nem cuidar de mim mesma, morando nesse muquifo cheio de mofo
e infiltração.
Isso poderia fazer mal pro bebê, né?
Cala a boca, Alice!
Não tem bebê nenhum!
É estresse. Só isso.
Minha menstruação não desceu porque eu estou absurdamente
estressada esses dias.
Por favor, que seja só isso...
Meu celular apita e eu observo o visor, sentindo meu coração doer ao
ler o conteúdo da mensagem que pisca na tela.
Mamãe: Oi, Alice. O dinheiro desse mês ainda não caiu. Tô
precisando pagar as contas. O que aconteceu? Sabe que contamos com isso,
não pode falhar.
Nenhum cumprimento, nenhuma pergunta sobre como estou, muito
menos um sentimento de saudade, nada.
Apenas a cobrança do dinheiro que eu mando todo mês.
Meus olhos ameaçam transbordar com mais essa, mas eu pisco, não
me permitindo pensar nisso agora, porque eu tenho coisas muito mais
importantes para lidar.
Tipo o fato de eu talvez estar carregando um bebê na minha barriga.
Meu Deus, minha mãe e minha avó irão surtar se isso for verdade.
— Cadê? Já fez? — Me assusto com a voz histérica da minha melhor
amiga quando ela entra no meu apartamento como um foguete, os olhos
arregalados de um jeito quase maníaco, e olha de mim para a caixinha em
minhas mãos.
— Ainda não — sussurro. — Eu tô com medo, Carina...
— Oh, Ali. — Ela se senta ao meu lado, apertando o meu ombro e
depois afagando minhas costas. — Vai dar tudo certo, amiga, você não tá
sozinha. Seja qual for o resultado, a gente vai resolver isso juntas, tá? E você
não fez esse bebê sozinha, a gente vai achar aquele moreno gostoso nem que
eu tenha que fuçar cada cidade desse país.
Solto uma risada misturada com lágrimas e balanço a cabeça, porque
sei que ela fala sério. Ela não vai me deixar, não vai soltar a minha mão, de
jeito nenhum.
— Eu acho que tenho que fazer xixi, né? — pergunto, e ela acena.
— Sim. Vai lá fazer xixi, quer ajuda? — Rio, negando, e me levanto,
indo até o banheiro.
Entro no cômodo minúsculo e só consigo pensar em como vou
colocar uma banheira de bebê aqui dentro.
— Meu Deus do céu, por favor, que dê negativo, que dê negativo —
rezo, enquanto abro a caixinha e pego a tirinha de plástico.
Nunca tive tanta dificuldade para urinar, parece até que a minha
bexiga também está com medo do resultado e não quer colaborar.
Quando finalmente consigo, deixo o palitinho na borda da pia e me
limpo, lavando as mãos e olhando as instruções da caixa para ver quanto
tempo preciso esperar.
— E aí? Quer um copo de água? — Escuto minha amiga bater na
porta, agoniada do lado de fora.
Deixo ela entrar e nós duas ficamos olhando o palitinho, até que duas
tiras rosas bem fininhas aparecem na ponta, selando o meu destino.
— Puta que pariu, Ali — Carina sussurra, e eu não consigo nem
responder.
Só fico encarando a minha nova realidade ali, naquela pia.
Meu Deus.
Meu Deus.
Ai, meu Deus.
— Alice, respira.
Escuto a voz da minha amiga, ao longe, mas a minha visão está meio
turva e meus ouvidos estão zumbindo, um peso enorme se instalando no meu
peito, ameaçando me sufocar, e então eu sinto os primeiros soluços tomando
conta do meu corpo.
— Oh, amiga.
Sou envolvida em um abraço e me permito desabar ali, chorar, me
desesperar, porque eu simplesmente não faço a menor ideia do que fazer
agora.
Eu estou grávida.
Estou grávida.
Meu Deus, eu estou grávida.
Vou ter um bebê.
Um bebezinho.
Minha garganta arde, tamanha a força dos meus soluços, e minha
amiga afaga meus cabelos, apenas estando ali, em silêncio, e me permitindo
surtar.
— Eu vou ter um bebê, Carina... — soluço, e ela me aperta ainda
mais, me dando o apoio que eu preciso agora. — O que vai ser da minha
vida? Eu não posso criar um bebê, meu Deus, eu não consigo nem cuidar de
mim.
— Alice. — Ela se afasta, segurando meu rosto com as mãos. —
Você precisa respirar. Vamos, pra dentro e pra fora. Inala pelo nariz e solta
pela boca, igual na aula, vamos.
Tento seguir a sua orientação, soluçando um pouco entre as
respirações, até que eu sinto meu peito começar a se acalmar, minha mente
ficando um pouco mais clara.
— O que vai ser de mim, Cá?
Carina acaricia meu rosto, me dando um sorriso tão suave que traz
uma nova onda de lágrimas aos meus olhos.
— Nós duas vamos sentar ali fora e conversar sobre os próximos
passos. Nós duas vamos decidir o que você vai fazer, quando, como e onde.
Nós duas vamos fazer isso dar certo, me ouviu? Você não vai fazer nada
sozinha, Alice. Nada. Eu tô aqui, com você.
Aceno para ela, agradecendo silenciosamente ter conhecido essa
mulher.
Minha amiga já me salvou diversas vezes. Minha mente, meu
coração, minha saúde. Ela já fez por mim mais do que qualquer pessoa já fez
nessa vida.
Deus me fez filha única, mas compensou trazendo essa ruiva para a
minha vida.
— Eu vou ter um bebê, Carina — sussurro, mais uma vez, ainda
tentando assimilar a ideia. É surreal e assustador, e causa um taquicardia
cada vez que eu penso a respeito.
— Você vai ter um bebê, amiga — repete, em um tom calmo. —
Você vai ter um bebê e vai dar tudo certo. Ok?
Puxo a respiração de novo e me forço a acreditar nela.
Vai dar tudo certo.
Tem que dar.
— Ok.
07 - Henrique

Como vou deixar você sozinho?


Você não sabe há quanto tempo eu queria
Tocar seus lábios e te abraçar forte.
Alone - Heart

— Então eu acho que a gente pode fechar o contrato com a Renata


Santos pra esse livro, primeiro, e depois a gente decide se renova pra série
toda. O que acha? — uma das minhas editoras pergunta, durante a reunião, e
eu aceno distraidamente, esticando o pescoço pra olhar a minha secretária
pela janela de vidro do escritório.
Sou muito grato ao meu pai por ter reformado essa sala e aberto uma
janela enorme na parede da frente, em que é possível ver toda a recepção.
Passo muitas horas fingindo trabalhar enquanto admiro minha Alice.
— Eu realmente acho que vai dar bom esse livro. A premissa é bem o
que o público têm buscado ultimamente, e ela já tem uma boa quantidade de
fãs que a seguiam naquela plataforma gratuita — Pedro complementa, e eu
apenas balanço a cabeça de novo, vendo a forma com que ela se mexe,
inquieta, bagunçando aquelas ondas lindas dela.
— Aliás, eu acho que a gente devia aumentar a fatia de romances
adultos no nosso portfólio, já deu pra todo mundo perceber que esse é o
mercado atual e isso não vai mudar. Mesmo com a venda on-line e a
assinatura dos aplicativos de leitura, a venda de físicos ainda é muito forte
com quem realmente é fã, e hoje, com as redes sociais, essas autoras
conseguem construir uma base muito sólida de seguidores. É um mercado
certo, não tem como dar errado — Paloma, uma das analistas financeiras,
opina.
— Concordo. — Pedro assente. — Nossos últimos dez best-sellers
foram todos desse nicho, não tem como negar o óbvio.
— Podíamos verificar com o setor de vendas as últimas estatísticas,
pra entender qual seria o nosso nicho menos rentável. Daí verificamos uma
possível redução e realocamos recursos para a sessão adulta — outro analista
completa.
— O que acha, Henrique? — Me assusto com a pergunta do meu
amigo e pisco, voltando a atenção para a reunião.
— Concordo — respondo. Ele me fita desconfiado, e eu coço a
garganta, tentando disfarçar o flagra. — Vou solicitar esse relatório do
Fabrício e na nossa próxima reunião a gente discute a respeito. Mas
concordo sim, os romances hot são os que mais vendem e não podemos ser
burros em não aproveitar o mercado quente — completo. — Desculpem o
trocadilho. — Pisco, arrancando algumas risadas.
Pedro ainda me observa com atenção, porque ele me conhece melhor
que qualquer um ali, mas seguimos a reunião como se nada tivesse
acontecido, tomando algumas decisões importantes para o futuro da Lacerda.
— É isso pessoal, obrigado. Vamos ajustar aquelas métricas pra que
os resultados sejam melhores no próximo balanço. E Paloma, pode conversar
com o Jorge, pra que ele dê uma melhorada nesse roteiro, porque não dá pra
publicar assim não — oriento.
A editora assente, e todos se despedem, me deixando sozinho com o
meu diretor de marketing.
— Você tem sorte que é tão bom com multitarefa, seu filho da puta
— Pedro resmunga, se sentando na cadeira à minha frente. — Não tirava o
olho da Alice, parecia até um stalker, que porra, Henrique?
Suspiro, esfregando o rosto com as mãos e me recostando na cadeira.
— Tem alguma coisa errada com a minha boneca, Pedro —
respondo, preocupado. — Já faz uns dias que tô percebendo ela tristonha, e
hoje eu juro que vi ela enxugando uma lágrima mais cedo! — Estico a
cabeça para ver o que ela está fazendo e murcho ao enxergá-la tamborilando
uma caneta na mesa, com uma postura totalmente derrotada, a cabeça
apoiada na mão e os cabelos escondendo seu rosto lindo.
— Cara, essa obsessão tá indo longe demais. Você parece um
maníaco — ele responde, balançando a cabeça.
— Não é obsessão, imbecil — resmungo. — Mas eu não espero que
você entenda. Você nunca se apaixonou, não sabe o que é sentir seu peito
apertar por ver quem você ama machucado, se sentir impotente por não
conseguir ajudar, enlouquecer de vê-la sofrendo e não ser capaz de consertar.
Eu me sinto no limite, ao ponto de ir lá fora e pegar ela em meus
braços, implorar para que me conte o que está errado, que me deixe ajudar.
— Deus me livre de ficar besta assim igual você. — O pau no cu faz
até o sinal da cruz. — Prefiro manter a minha sanidade mental e o meu pau
muito bem alimentado, obrigado. Melhor do que você, que tá pra
desenvolver uma tendinite de tanto bater punheta e ainda fica aí, todo
agoniado porque a menina tá tristinha.
— Eu vou rir tanto da sua cara quando você ficar de quatro por
alguma mulher por aí, seu cuzão. Mas tanto.
— Vai jogar praga pra lá, inferno — exclama. — Sou muito novo pra
me amarrar a uma mulher só, quero saber disso não. No futuro? Talvez. Mas
agora, não. Deixa pra você, que é emocionado.
— Você não sabe o que tá perdendo — respondo. — Amar alguém é
a coisa mais bonita desse mundo, meu nego.
— Isso porque ela nem te ama de volta, né?
— Precisa esculachar também? — resmungo. — Vaza daqui, vaza.
Não quero mais olhar pra essa tua cara linda agora, magoei.
Ele ri do meu drama e se levanta, balançando a cabeça e arrumando o
paletó.
— E você, trate de trabalhar e parar de secar a sua secretária. —
Aponta o dedo para mim. — Você não é nada além do chefe dela, não tem
direito de se meter na vida dela. Se ela quiser a tua ajuda, vai pedir. Se
controla.
Resmungo uma concordância e cruzo os braços na frente do corpo,
igual um moleque mimado, fazendo meu amigo bufar antes de se virar e sair
do escritório.
Vejo quando ele cumprimenta Alice, recebendo um aceno pequeno
em resposta, e fico ali, como um maníaco, conforme Pedro, observando a
minha boneca perfeita.
Apesar de não entender nada do que eu estou sentindo, meu amigo
não está totalmente errado.
Eu não tenho direito de exigir nada de Alice, de ficar perseguindo
ela, ou de ficar encarando-a como um stalker. Ainda que me corroa por
dentro não fazer nada para ajudá-la, eu sou apenas o chefe dela.
Nada além disso.
*
— Seu Henrique, o senhor tem um minuto? — Estou terminando de
enviar um e-mail quando ela bate na minha porta, me olhando um pouco
receosa.
— Claro que sim, o que houve, Alice? — Largo absolutamente tudo,
focando minha atenção nela.
Ela entra no meu escritório, segurando a barra da camisa em uma
postura tímida, mordendo aqueles lábios que eu tanto desejo.
— Eu queria saber se tem problema eu chegar mais tarde amanhã? —
pergunta. Franzo o cenho e ela puxa uma respiração antes de continuar. —
Eu tenho uma consulta de manhã, e não sei quanto tempo vou demorar lá.
Clínica popular, sabe? — Dá de ombros.
Médico?
Meu Deus.
— Alice, tá tudo bem? Você tá doente? Precisa de algo? — Por favor,
boneca, me responde, me deixa fazer alguma coisa.
Ela crispa os lábios, piscando algumas vezes e eu morro um
pouquinho quando seus olhos brilham mais, pelas lágrimas não derramadas.
— Não tô doente não, seu Henrique, não se preocupa — nega. — É
consulta de rotina, sabe? — Dá de ombros.
Não é consulta de rotina.
Eu sei disso, eu sinto isso.
Tem alguma coisa acontecendo, e alguma coisa muito grave.
— Vá tranquila pra sua consulta. Você está de folga amanhã —
decreto.
Se posso ajudá-la de alguma forma, mesmo que seja mínima, é o que
farei.
— Não precisa, seu Henrique, eu posso vir depois da consulta —
responde, balançando a cabeça e se aproximando.
— Alice — começo. — Você nunca me pede nada, não tirou uma
única folga, além das suas férias, em quase dois anos trabalhando aqui. Vá
pra sua consulta e não precisa se preocupar com trabalho. Na quinta você
volta, sem problema nenhum.
Ela desvia o olhar do meu e eu seguro o apoio da cadeira com toda a
força que há em mim para não me levantar e ir até ela.
— Muito obrigada, seu Henrique. De verdade — murmura, me
dando um sorriso agradecido.
Oh, bebê, você não sabe o que eu faria por você.
Ela se vira, pronta para sair, mas eu a chamo.
— Alice. — Ela me encara, em expectativa, e eu preciso de um
segundo para não falar demais. — Sabe que pode contar comigo pra
qualquer coisa, não sabe?
Tento transmitir a minha verdade com o meu olhar, fazê-la enxergar
que ela tem um suporte em mim a qualquer hora, não importa o que, nem
onde, mas sei que ela não vê.
Ela nunca vê.
— Obrigada, seu Henrique — murmura. — O senhor é um chefe
muito bom comigo.
Por fora, eu sorrio para ela.
Por dentro, eu sofro em silêncio por mais uma vez ter a certeza de
que o meu amor não é correspondido.
08 - Alice

Seja forte, seja forte agora,


Muitos, muitos problemas
Não sei onde ela pertence
Nobody’s Home – Avril Lavigne

— A senhorita é a oitava na fila. A médica deve chegar daqui uma


hora, mais ou menos — a recepcionista me informa, me devolvendo a minha
identidade.
— Uma hora? — pergunto.
— Isso, às vezes ela demora um pouco mais, varia muito. — Dá de
ombros.
Mas que caralho, viu?
Nunca vou entender a necessidade desses médicos de marcarem uma
consulta em tal horário, só pra chegarem duas horas depois e deixarem a
gente feito um bando de bestas, brigando para chegar ainda mais cedo, só
para ser um dos primeiros.
Demorei uma semana para conseguir marcar com a obstetra dessa
clínica popular, agoniada para verificar se estava tudo certo com a gestação,
e agora vou perder a manhã inteira aqui esperando a boa vontade dessa
médica aparecer e começar a trabalhar.
Porra, a consulta é barata, mas não é de graça!
Imagine se fosse.
Me junto à Carina, que me espera sentada na recepção, e bufo ao me
sentar.
— A médica deve chegar daqui uma hora mais ou menos —
resmungo. — Sou a oitava. Daqui pro fim da tarde saio daqui. Ainda bem
que o seu Henrique me deu o dia de folga.
Meu chefe é um anjo na minha vida, graças a Deus.
Só espero que ele continue compreensivo quando descobrir que a sua
secretária terá consultas mensais daqui para frente.
Meu Deus, eu preciso encontrar alguém para me substituir durante a
licença.
E se eu perder meu emprego?
Tipo, ele não pode me demitir estando grávida, mas e se ele quiser
me colocar na rua depois da minha licença, como muitos chefes fazem por
ai?
Meu Deus, como eu vou alimentar um bebê desempregada?
— Você tomou café direito? Não pode ficar muito tempo sem comer,
eu trouxe umas frutas, olha. — Tira uma sacolinha da bolsa, com algumas
bananas, um potinho de uvas e duas maças.
— Eu já disse que te amo hoje? — murmuro, emocionada.
— Não, mas tudo bem, eu já sabia disso — responde, com um
sorriso.
— Você não precisa ficar, amiga, vai perder um monte de aulas... é só
a primeira consulta, não devo ficar nem três minutos lá dentro com a médica,
sabe como funciona.
Esse tipo de clínica é quase sempre a mesma coisa.
A gente paga um valor “acessível”, espera horas e horas para ser
atendida, e o médico finge que consulta, passando algum remédio sem nem
olhar direito na nossa cara.
Onde que um médico que marca mais de vinte pacientes para uma
única manhã consegue atender com qualidade?
— Deixa de ser besta, Ali — Carina resmunga. — Eu já desmarquei
com as meninas, sou toda sua e do meu sobrinho hoje.
Sei que Carina não me deixará sozinha durante essa gravidez.
Desde o dia que descobrimos, ela não saiu do meu lado, me ajudando
a me acalmar, a traçar planos para como as coisas seriam agora, e até mesmo
enchendo a minha geladeira de frutas e verduras, dizendo que eu preciso
seguir uma alimentação balanceada por causa do bebê.
Até foi comigo naquele motel, para tentar conseguir alguma
informação sobre o pai do bebê, mas apenas descobrimos que ele pagou a
nossa noite no dinheiro e que não deixou nenhum documento registrado,
apenas o nome, sem nem mesmo um sobrenome que ajudasse na nossa
busca.
Depois de dois dias fuçando o perfil de uns quinhentos Guilhermes
nas redes sociais, me conformei que eu não vou encontrar mais o moreno
gostoso, e serei apenas eu e esse bebezinho daqui para a frente.
Bom, eu, ele e a minha melhor amiga, penso, quando ela descasca
uma banana e me dá.
— A gente podia tentar ver uma outra médica, né? — sugere. —
Numa clínica melhor, que seja mais especializada.
— Por enquanto é essa aqui que dá pra pagar, amiga — respondo. —
E nem começa — interrompo-a, quando ela abre a boca. — Eu vou pagar
pelo meu pré-natal sozinha, você já gasta demais comigo. Tenho certeza de
que já vai mimar esse bebê pra caramba nos próximos meses, então sossega.
— Meses? — bufa. — Por favor, né, Ali. Eu vou ser a tia preferida
desse moleque o resto da vida. Aliás, tia não, madrinha, né? — questiona.
— Óbvio, sua besta. E lá tem alguém além de você em quem eu
possa confiar?
Ela sorri, me abraçando de lado, antes de fechar a cara.
— Por falar nisso, eu espero muito que você não tenha mandado um
centavo sequer praquelas duas sanguessugas esse mês, Alice. — Sua voz sai
dura, e eu me encolho. — Acabou essa palhaçada, me ouviu? Elas que se
virem, você tem um bebê pra cuidar agora, não pode ficar sustentando mais
aquelas duas.
Essa é outra coisa que vem tirando o meu sono.
Eu realmente não mandei o dinheiro desse mês para elas, e mamãe
não para de me ligar e mandar mensagem, perguntando por que eu estou
atrasando tanto.
Só que Carina está certa.
As coisas são diferentes agora.
Eu nem vi esse bebê ainda, mas eu sei que ele está aqui, dentro de
mim, e precisa que eu pense nele antes de qualquer coisa.
Enviar mais da metade do meu salário para a minha mãe e minha avó
não é mais uma opção. Esse dinheiro vai fazer muita diferença daqui para
frente. Eu tenho que guardar uma poupança para ter mais segurança, tenho
que me alimentar melhor, terão consultas, o enxoval, tantas coisas com que
gastar, que eu não posso dispor desse valor assim.
A ideia de encará-las e contar que eu estou grávida é completamente
assustadora para mim.
Meu Deus, se descobrirem que eu sequer tenho contato com o pai,
que não sei nem o seu sobrenome... elas nunca vão me perdoar. Vão me
julgar demais, me chamar de nomes absurdos, eu sei disso.
— Para de pensar naquelas cobras, Ali — Carina murmura,
apertando a minha mão. — Elas nunca foram família pra você, e não vão ser
pra esse bebê também, você sabe. Ele só tem você, além de mim, é claro, e
nós precisamos defender ele, de quem quer que seja.
— Você nem sabe se vai ser um menino — sussurro.
— Ah, na minha cabeça é um menino lindo. — Dá de ombros. — O
que você decidiu sobre o apartamento?
Carina vem usando o bebê como desculpa para me convencer de
dividir um apartamento com ela. Já é algo que ela vem querendo há um bom
tempo, e agora, com a gravidez, a ideia de ficar morando naquele prédio
caindo aos pedaços é ainda mais absurda para ela.
Não vou mentir, para mim também.
Eu quero me mudar.
Mas sei que minha amiga ama o apartamento dela, e não quer sair de
lá de verdade.
— Cá, você gosta tanto da sua casa. Pra quê se mudar? — respondo.
— Eu vou procurar um lugar melhor pra mim, juro. Também não quero que
o bebê nasça lá. Mas não precisa mudar toda a sua vida por mim. Já basta o
que você faz.
— Ai Alice, o que eu gosto no meu apartamento eu posso levar pra
qualquer outro! — exclama. — É decoração, só isso. O prédio é normal, não
tem nada demais. E quem sabe a gente não se mude pra um lugar ainda
melhor, sem um vizinho hétero top e crosfiteiro que nem o meu. — Revira
os olhos.
Eu solto uma risada e balanço a cabeça.
Carina sempre reclama do seu vizinho de baixo, dizendo que ele vive
levando mulheres para o apartamento, que ela consegue ouvir as gargalhadas
estrondosas e até os gemidos abafados quase todo final de semana, além de
ele adorar colocar música eletrônica para tocar em um volume alto.
— Eu vou pensar, tá bem? — prometo.
Quem sabe não seja bom, a companhia, a ajuda quando o bebê
nascer.
Sei que seria um período de muita dificuldade para mim, e ter a
minha amiga do meu lado pode ser bom.
*
— Alice Monteiro. — Meu nome é chamado algumas horas depois e
eu me levanto, seguindo a recepcionista, com Carina em meu encalço. — É
aqui, boa consulta.
Aponta para a última porta do corredor e eu aceno, abrindo-a e
encontrando uma médica de meia idade, com uma carranca no rosto, que faz
sinal para que eu entre.
— Alice, o que te traz aqui hoje? — Me dá vontade de revirar os
olhos, mas eu me seguro.
Você é uma obstetra. Precisa mesmo perguntar?
— Eu descobri que estou grávida recentemente, e quero começar o
acompanhamento — informo.
— Hum — resmunga, digitando algo no computador. — E você? É a
namorada? É um daqueles casais modernos? — Seu tom deixa muito claro o
seu julgamento, e eu vejo a forma que Carina se segura para não responder
com uma malcriação.
— Não, ela é minha melhor amiga, só veio me acompanhar.
— E essa criança não tem pai? — pergunta, com mais crítica na sua
voz, e Carina não se aguenta.
— Por acaso a senhora é assistente social ou médica? O que lhe
interessa se o bebê tem pai ou não? Faça o seu trabalho e pare de julgar os
outros.
A expressão da médica se fecha mais ainda e ela encara minha amiga
com ódio.
— É preciso do histórico dos dois pais para verificar possíveis
doenças, coisas que podem afetar a criança — ela explica, de forma incisiva.
— O bebê é feito do DNA de duas pessoas, não só de uma.
— Meu bebê não tem pai, doutora — respondo, me mexendo
desconfortável na cadeira. — Posso lhe passar o meu histórico, mas só isso.
Não tem pai.
Meu peito se aperta em pensar em quantas vezes eu vou ter que
explicar isso no futuro. Na maternidade, em consultas, exames, na escola.
E para ele?
Como eu explicaria a ausência do pai para ele?
Oh, meu bebê, me perdoa.
— Bom, se é assim, vou passar alguns exames pra coletar mais
informações. — Começa a digitar novamente, e meu sangue gela em pensar
na lista enorme de exames que ela vai me entregar. Como é que eu vou pagar
por isso, meu Deus? — Aqui, exames de sangue, para verificar as taxas,
vitaminas, histórico de DSTs, além de algumas outras doenças. Também
precisa fazer a primeira ultrassonografia, pra verificar se está tudo bem, por
enquanto. Pelo que preencheu na ficha, você está com pouco mais de quatro
semanas de gestação, então não vai dar pra ouvir o coração ainda, só lá pela
sexta semana.
Pego a folha de exames da sua mão e engulo seco, sabendo muito
bem que não vou conseguir pagar por tudo.
Carina toma o pedido da minha mão, afagando o meu ombro.
— Vamos fazer tudinho, doutora. — Olho para ela, vendo a forma
como ela me encara, como se gritasse para mim deixar de orgulho e aceitar a
sua ajuda.
— É só isso, retorne com os exames em até trinta dias, senão terá que
pagar uma nova consulta. Boa tarde.
Como eu disse, cinco minutos de consulta e tchau.
E só olhou na minha cara para me julgar.
— Obrigada, doutora. — Me despeço, levantando e saindo do
consultório, seguida pela minha amiga. — Olha essa lista de exames, Cá —
resmungo, chorosa.
— Vamos fazer todos. E vamos atrás de outra médica, porque você
não volta nessa pau no cu. Mulherzinha ordinária, julgadora, filha da puta —
minha amiga murmura um xingamento atrás do outro, enquanto saímos da
clínica e vamos até o seu carro.
— Mas, Carina...
— Mas nada — me interrompe. — Chega dessa merda, Alice. Você
não está sozinha, nós vamos passar por essa juntas. Eu tenho dinheiro e vou
te ajudar em tudo que eu puder, você que lute. Cansei de você ficar de
orgulho besta pro meu lado, já deu.
Pisco para disfarçar as lágrimas e abraço a minha amiga bem
apertado.
— Obrigada, Cá... — sussurro. — Nem sei o que seria de mim sem
você.
— É bom que saiba disso. E se acostume — resmunga. — Agora
vamos, temos que alimentar vocês. Já passou da hora de almoçar.
Sorrio, enxugando o canto dos olhos e entro no carro, colocando o
cinto.
A minha nova realidade me assusta demais, isso é um fato.
Mas me alegra saber que eu não estou sozinha.
09 - Henrique

Eu estou aqui sem você amor,


Mas você ainda está na minha mente solitária
Eu penso em você, amor
E sonho com você todas as noites.
Here Without You – 3 Doors Down

— Você vai sair comigo hoje. — Tomo um susto da porra quando a


voz de Pedro preenche o meu escritório.
— É o que?
— Eu, você, um barzinho e uns chopps, hoje — responde. — Cansei
de te ver igual a um bocó, todo pra baixo por um negócio que não tem nada a
ver contigo. A gente vai sair hoje, pra distrair a tua cabeça e te fazer esquecer
um pouco dessa merda.
— Pedro... — começo, mas ele me interrompe.
— Não, Henrique. Nós vamos num barzinho tranquilo, sem música
alta demais, pra não incomodar o teu espírito de velho, mas você não vai
passar mais uma sexta-feira enfurnado no seu apartamento, pensando numa
mulher que tá cagando pra você.
— Você sabe que eu não gosto dessas coisas...
— Sei — concorda. — Sei bem, e por isso sempre te respeitei e
nunca insisti pra que saísse comigo pras festas que eu vou, baladas, nem
nada. Mas eu sou seu amigo, e não aguento mais te ver assim. Parece que
nos últimos dias essa história toda piorou de um jeito que você não sorri
mais, Henrique! Não faz piada, nem parece o meu amigo.
Ele não está totalmente errado.
Desde terça-feira, quando Alice me pediu para ir numa consulta, meu
cérebro decidiu por si só que alguma coisa muito séria estava acontecendo
com ela, e isso fez com que eu ficasse totalmente neurótico, imaginando os
piores cenários possíveis, o que me deixou louco.
Porra, essa noite eu até sonhei que ela chegava no trabalho e me dizia
que precisava se afastar porque ia começar um tratamento de câncer!
A merda de um câncer!
Nem preciso dizer que acordei soluçando de tanto chorar e com o
peito doendo só de pensar nessa possibilidade.
— Não sei, não, tchutchuco...
A ideia de sair e me divertir, enquanto a minha boneca passa por
algum problema, me parece muito, mas muito errada.
— Não quero saber o que você acha, eu tô dizendo que vamos sair
hoje e você vai se distrair dessa história toda de Alice nem que seja por
algumas horas — decreta, me fazendo suspirar.
— Tá, tudo bem... — concedo.
— Não estava esperando uma autorização, mas é bom saber que não
vou precisar te arrastar pelos cabelos — debocha. — Passo pra te buscar às
oito.
— Eu posso ir no meu carro...
— Pra correr o risco de você dar pra trás? — pergunta. — Negativo,
te pego às oito — informa, já se virando para sair do meu escritório.
— Eu espero, no mínimo, flores, viu?! — exclamo. — Sou um rapaz
de família.
Gargalho quando ele me mostra o dedo por cima do ombro, sem se
dignar a me responder, e vai embora.
Observo minha secretária falando ao telefone na sua mesa, e vejo
quando ela cumprimenta meu amigo com um tchauzinho quando ele passa
por ela.
Fiquei atento à ela, ainda mais que o normal, desde ontem, quando
chegou para o trabalho, tentando identificar algum sinal que pudesse me
ajudar a entender se estava tudo bem ou não.
Confesso que estou um pouco confuso.
Em certos momentos, ela parece bem, normal, do mesmo jeitinho
doce e tímido que eu aprendi a amar. Já em outros, quando ela pensa que
ninguém está olhando, eu vejo a forma como ela suspira, de um jeito meio
derrotado, pensativa, preocupada, mordendo aqueles lábios perfeitos até eles
gritarem por socorro.
Mas não consigo identificar nada que pudesse me dizer ao certo o
que exatamente é o problema.
Fiquei pensando, se fosse um problema sério de saúde, ela iria falar
comigo, né?
Tipo, ela iria precisar tirar licença, essas coisas precisam passar por
mim, certo?
Meu Deus, eu vou enlouquecer.
*
— Você podia melhorar essa sua cara de cu, não é? — Pedro
resmunga. — Porra, parece até que tá num velório, caralho.
Suspiro, porque sabia que isso ia acontecer.
No meu estado normal eu já não sou fã de ambientes como esse.
Perturbado do jeito que eu estou, então? Era óbvio que ia dar merda.
Esse imbecil que não quis ver isso.
— Você queria que eu viesse e eu vim, não é? — retruco. — Me
deixa quieto então, merda. Você sabe que esse tipo de lugar não é a minha
praia.
— Porra, Henrique, eu pensei que chegando aqui você ia se soltar, ia
se animar. Cara, olha a quantidade de mulher gostosa que tem por metro
quadrado aqui! Eu já vi pelo menos umas cinco dando mole pra ti, e tu
parece cego! — exclama, puto. — Eu sei que tu é apaixonado pela menina
lá, e tal, mas porra. Se não rola nada com ela, vai se divertindo enquanto
isso! Não é como se tu estivesse traindo alguém... tu é solteiro, livre e
desimpedido.
— Você não entende mesmo, né... — murmuro.
Antes que ele consiga me responder algo, duas loiras se aproximam
de nós, uma apoiando a mão no ombro do meu amigo e a outra se
encostando em mim, enrolando uma mecha de cabelo com o dedo.
— Boa noite, rapazes — a loira ao lado de Pedro diz. — Eu e a
minha amiga estávamos observando vocês ali do outro lado e pensamos em
perguntar se não gostariam de nos fazer companhia essa noite. O que
acham?
Ela brinca com o colarinho da camisa de Pedro enquanto a sua amiga
afaga o meu braço, se inclinando na minha direção.
O olhar do meu amigo grita para que eu não desperdice essa
oportunidade, mas logo ele percebe que não vou conseguir, porque fecha os
olhos e balança a cabeça, irritado.
— Sinto muito, meninas. Mas eu sou comprometido — respondo,
escutando o bufar do meu amigo.
Ele nunca entenderia.
— Poxa... — a mulher faz bico, traçando os dedos no contorno do
meu bíceps. — Tem certeza, lindo? A gente sabe ser discreta — sugere,
dando uma piscadinha para a amiga, que sorri.
Pedro me implora com o olhar, mas eu não consigo.
Não dá.
— Me desculpem, de verdade. — Me afasto um pouco, retirando a
mão da mulher do meu braço. — Mas o meu amigo aqui é livre e
desimpedido, podem ter certeza de que ele vai amar fazer companhia pra
vocês. Inclusive, por favor, não deixem ele sozinho agora, porque eu vou
precisar ir embora, e odiaria que ele ficasse triste.
Pisco para as duas, que sorriem travessas e observam o meu amigo
com interesse.
— O que acha, moreno? — uma delas pergunta.
— Quer a nossa companhia? — a outra se pendura no seu pescoço,
esfregando os peitos na lateral do seu corpo.
É, otário, eu te consegui um ménage.
Cadê o agradecimento?
— Boa noite, meninas, Pedrão — cumprimento, já me afastando.
Eu que não vou perder a oportunidade de cair o fora daqui.
Vim de carona, mas não sou burro para não saber pegar um táxi.
— Meninas, me deem só um minutinho, por favor. — Escuto meu
amigo dizer e solto um suspiro, sem parar de andar na direção da saída. —
Não saiam daqui, hein? Ei, seu cuzão, volta aqui.
Ele segura meu ombro, me virando para ele, e me encara com uma
expressão puta.
— Eu já vou, Pedro — digo, antes que ele fale algo. — Não dá certo
esse tipo de coisa pra mim, desculpa. Eu tentei, mas não dá.
Ele esfrega o rosto com as mãos, bufando.
— Tá, eu já devia desconfiar — resmunga. — Te conheço como
ninguém, devia saber que não daria certo. Mas posso te dizer uma coisa? —
pergunta.
— O que?
— Eu odeio te ver assim — começa. — Odeio te ver sofrendo, triste,
apagado. Isso não é amor, Henrique, amor deve ser bonito. Não que eu
entenda alguma coisa dessa merda, mas não é verdade? Porra, faz dois
malditos anos que você só sofre por essa mulher em silêncio. Chega, cara.
— Mas...
— Se você acha que não consegue esquecer ela, então toma a porra
de uma atitude! — exclama, sem me deixar falar. — O que não dá é pra
continuar nessa lenga-lenga dos infernos, chorando pelos cantos porque ela
não te enxerga. Claro, porra! Tu é o chefe dela! Acha mesmo que ela vai se
esfregar em ti e te oferecer um boquete no meio do expediente? Essa porra
só acontece em livros, irmão. A menina é ajuizada, é tímida. Se você não
tomar uma atitude, nunca vai rolar nada, me escuta.
— Mas e se ela achar que eu tô assediando ela?
— Atitude, Henrique, não atacar a menina. Vai na calma, com
sutileza, mas deixa claro que você tá interessado, porra. Senão, vai morrer
sem colocar esse pau pro jogo de novo, porque ela nunca vai ser a primeira a
agir.
Lembro dos conselhos de Benjamin e aceno.
— Eu vou pensar em como fazer isso — prometo.
— Acho bom — resmunga. — Agora me dá licença, que já que você
decidiu ir embora, eu tenho duas loiras gostosas pra me fazer companhia. —
Sorri sugestivamente.
— De nada, pau no cu — murmuro, quando ele se vira, e recebo um
dedo do meio em resposta.
Balanço a cabeça, vendo como se aproxima e agarra a cintura das
duas mulheres, depositando um beijo nos pescoços de cada uma, sorrindo.
Às vezes eu penso se não seria mais fácil ser assim.
Despreocupado, livre.
Apenas vivendo a minha juventude, aproveitando os prazeres que a
vida pode proporcionar, sem pensar em mais nada.
Assim como o meu melhor amigo.
Mas eu não sou esse homem. Nunca fui.
Das poucas vezes que namorei, sempre me entreguei de corpo e alma
à minha amada, e sempre tomei no cu por isso.
Fui traído, fui largado, fui chamado de bobo, de emocionado, de
carente, de apegado demais. Me decepcionei todas as vezes que pensei ter
encontrado a mulher da minha vida, restando apenas um coração partido e
muitas lágrimas.
Será que Alice seria diferente?
Será que ela seria aquela que eu tanto desejei, a vida toda?
Tem algo dentro de mim que grita que sim. Uma vozinha, um instinto
que me diz que ela é diferente. Que com ela eu poderia ser feliz do mesmo
jeito que meu pai foi com a minha mãe, até a sua morte.
Eu lembro como se fosse ontem, de estar sentado nas escadas de
casa, escondido, vendo meus pais dançando coladinhos no meio da sala de
estar, sem que nenhuma música estivesse tocando.
Eu era um moleque, mas lembro perfeitamente de pensar que eu
queria aquilo para mim. Queria aquele amor, aquela alegria, aquela leveza.
Eu quero alguém para dançar agarradinho, sem preocupação com
mais nada nessa vida, perdidos no nosso próprio mundinho de felicidade.
E como eu quero que esse alguém seja a minha boneca.
10 - Alice

Eu gosto de coisas brilhantes


Mas eu casaria com você com anéis de papel,
Uh-huh, é isso mesmo
Querida, é você quem eu quero
Paper Rings – Taylor Swift

Estar grávida é difícil.


Eu pensei, de verdade, que não sofreria com os sintomas mais ruins
da gravidez, já que só desconfiei da sua existência por causa do meu ciclo
menstrual, e não por outro indício.
Mas parece que o bebê gosta de atenção.
Porque foi só descobrir que ele está aqui para todos os piores
sintomas aparecerem de uma vez só.
Faz três dias que eu acordo com a cara no vaso sanitário, vomitando
igual a uma adolescente depois do primeiro porre de vodca, colocando para
fora todo o meu jantar.
Quando, enfim, consigo me levantar e tomar um banho, fico tonta
com uma facilidade absurda, ao ponto de eu quase cair no box hoje de
manhã.
Também estou muito, mas muito sensível.
Chorei ontem assistindo a um daqueles comerciais de perfume,
porque a modelo ia embora e deixava o bonitão triste, procurando por ela.
Me diz se não é patético?
Além disso, descobri que o sacolejar do ônibus também me enjoa.
Os vinte minutos de viagem até a empresa, e depois, de volta para
casa, estão se tornando uma absoluta tortura.
E agora eu estou há meia hora tentando me forçar a comer um
potinho de salada de frutas, mas parece que o bebê também tem paladar
seletivo.
— Vamos, bebê, ajuda a mamãe — sussurro, acariciando a barriga.
— A tia Cá comprou essas frutinhas todas pra você, ela vai ficar triste se
você não se alimentar...
Nos primeiros dias, logo depois que descobri que estava grávida,
confesso que não tive a melhor das reações.
Chorei durante dias, completamente destruída com a ideia de ter um
filho nessas condições, sozinha, sem dinheiro, morando em um lugar
inóspito.
Por dois segundos, a ideia de fazer alguma coisa para interromper a
gestação passou pela minha cabeça.
E eu me odeio por isso, agora.
Porque o meu bebezinho não tem culpa de nada. Ele não tem culpa
de eu ter bebido tanto ao ponto de ter esquecido a porra de uma camisinha.
Ou de não perguntar o sobrenome do cara que colocou ele dentro de
mim.
Ele não tem culpa.
Sabia que ele está com o tamanho de uma semente de linhaça? Três
milímetros, acredita? Tão pequeno, tão frágil.
Quando pesquisei um pouco sobre isso, e fui lendo as informações,
vendo as imagens das ultrassonografias, meu coração foi se enchendo do
mais profundo amor por esse pequeno serzinho dentro de mim.
Apenas cinco semanas de vida e ele já se tornou o meu mundo
todinho.
— Aliás, desculpa se você for uma menina linda, tá, bebê? Sua
madrinha enfiou na minha cabeça a imagem de um bebezinho e agora eu só
penso nisso — murmuro. — Mas vou te amar do mesmo jeito, tá bem? Não
se preocupa...
Tento comer mais um pouquinho das frutas, mastigando devagar para
ver se consigo engolir sem dificuldade, e solto um suspiro.
Às vezes minha mente ferve de preocupações, pensando na
quantidade de coisas que eu preciso resolver. Carina está procurando um
apartamento para nós duas, mesmo que a ideia ainda me perturbe um pouco,
porque eu sei que ela vai arcar com muito mais financeiramente depois que
formos morar juntas.
E dividir o apartamento com uma amiga é uma coisa, mas com uma
amiga e um bebê?
É totalmente diferente.
Eu vou mudar a vida da minha amiga, e não consigo não me sentir
mal por isso.
Além disso, ainda tem a questão da minha mãe.
Como eu não mandei o dinheiro para elas esse mês, e nem respondi
suas mensagens, ela não para de me ligar, com certeza pronta para me xingar
dos nomes mais horríveis por causa do atraso.
Tenho ciência que preciso dar um basta nisso.
Não posso mais me dispor a ficar mandando dinheiro para elas.
Eu tenho a minha sementinha para cuidar.
Meu telefone vibra em cima da mesa e eu suspiro, vendo o nome dela
piscar na tela, mais uma vez.
Ignoro a chamada, como todas as outras vezes, mas logo que o
celular apaga, a tela acende novamente com uma mensagem em letras
maiúsculas que simplesmente tira o meu chão.
Mamãe: ALICE QUE MERDA É ESSA QUE VOCÊ ESTÁ
GRÁVIDA?
Mamãe: ATENDE A PORRA DESSE TELEFONE AGORA,
GAROTA!
Meu Deus.
Como ela descobriu?
O celular começa a vibrar novamente, e minhas mãos tremem
quando eu o pego e aperto o botão para atender, levando o aparelho até meu
ouvido.
— Mamãe? — murmuro.
— Me diz que é mentira, Alice. — Sua voz é ácida, e eu quase
consigo vê-la tremendo de ódio. — Me diz que você não fez uma burrada
dessas, que não desgraçou a sua vida desse jeito!
Sinto meus olhos se encherem de lágrimas e minha garganta se
fechar com as suas palavras duras.
Ela sempre foi assim.
Sempre deixou claro para mim como eu desgracei com a sua vida,
como eu estraguei seu corpo, acabei com a sua juventude e fui um peso
durante anos, dando gastos e trabalho demais.
Ela sempre me fez enxergar muito bem o quanto ela preferia que eu
nunca tivesse nascido, que ela tivesse tido coragem de me tirar, de evitar a
minha existência.
— Quem te contou isso? — pergunto baixinho, tentando me
controlar, afinal, estou na minha mesa, no meio do expediente.
— A filha da Celeste tá aí na cidade e teve que ir no médico. Disse
que te viu numa clínica, que foi se consultar com uma obstetra! Que porra é
essa, Alice? Você não foi praí pra estudar? Pra virar a merda de uma
escritora de sucesso? Como é que você me arruma barriga desse jeito,
garota?!
— Mãe, para de gritar, por favor... — peço, sentindo uma lágrima
escapar dos meus olhos. — Eu tô grávida, isso não é uma desgraça, é uma
benção.
Ela gargalha, sem qualquer humor, um riso debochado, que termina
de destruir o meu coração e traz uma nova onda de lágrimas.
Por que ela é assim?
— Benção? Deixa de ser burra, Alice! — exclama. — Filho só é
benção quando é de um cara rico, porque aí vira investimento! Por acaso
você deu essa boceta direito? Arrumou um cara que preste pelo menos? Ou
foi burra igual eu, que deu pra um zé ninguém que depois me abandonou
com uma bebê chorona?
Seguro os soluços, evitando demonstrar o quanto as suas palavras me
machucam, mesmo sabendo que ela não se importa.
Aliás, ela até gosta.
Olga Monteiro sempre gostou de ser o mais cruel possível, sempre
fez questão de escolher as palavras certas, que pudessem causar o máximo
de estrago possível.
E ela sempre conseguiu.
Eu sei que falar a verdade seria o pior cenário possível.
Se eu disser que sequer sei o sobrenome do pai do meu bebê, ela vai
surtar e me maldizer o resto da vida. Vai xingar o meu nenemzinho inocente,
vai me chamar de burra, dos nomes mais horríveis do mundo, só para me
fazer sentir o pior ser humano da terra.
— Mãe, pelo amor de Deus — suplico, enxugando as lágrimas da
bochecha e abaixando a cabeça, escondendo o meu rosto com o meu cabelo
para tentar me recompor.
— Deus nada, Alice! — vocifera. — Quem é o pai dessa merda
dessa criança? Você pelo menos sabe? Ou virou puta depois que saiu de
casa? Era só o que me faltava! Responde, garota! É por isso que não
mandou meu dinheiro? Deu errado e agora tá aí, fodida com um filho na
barriga? Não pense que essa merda vai te tirar a responsabilidade que tem
comigo, menina. Eu sou sua mãe, acho bom continuar contribuindo com as
contas daqui, senão o negócio vai feder pro seu lado! — ameaça.
Eu sinto os meus ombros sacudindo em um choro silencioso, a
dureza de cada xingamento, de cada ofensa se infiltrando no meu peito como
uma adaga, cortante, letal.
— Não fala assim do meu bebê, ele não tem culpa de nada! — peço.
— Quem tem culpa é você, que é burra! — responde, ácida. — Mas
ainda não me respondeu, quem é o pai, Alice?
Meu cérebro entra em pane, completamente em pânico.
Eu não posso dizer a verdade.
Não posso.
Ela nunca me perdoaria.
— É meu noivo — respondo, mentindo descaradamente.
— Noivo? Que porra de noivo é esse que eu nunca ouvi falar?
— Você não conhece. — Fecho os olhos, afundando o rosto nas
mãos. — É recente.
É. Tão recente que nem existe.
— E como se chama esse noivo que você nunca me contou, Alice?
— O nome dele? É... é... — gaguejo, em pânico, balançando a
cabeça, as lágrimas escorrendo pelo meu rosto, minhas mãos tremendo. Meu
Deus do céu, que merda que eu fiz? — O nome dele é... é...
Antes que eu possa inventar algum nome, porém, sinto uma mão
enorme tomando o celular da minha mão, e então me viro, dando de cara
com o meu chefe, que já leva o aparelho até o ouvido antes que eu possa
impedir.
— Aqui é Henrique Lacerda, muito prazer. — Sua voz é grave e sua
expressão é de poucos amigos. — Posso saber quem você pensa que é pra
fazer a minha noiva chorar?
Arregalo os olhos, totalmente descrente do que acabei de ouvir.
Como é que é?
11 - Henrique

Por favor, não esteja apaixonada por outra pessoa


Por favor, que não tenha ninguém esperando por você
Enchanted – Taylor Swift

Eu tive dois infartos em um intervalo de sessenta segundos.


Não, eu não estou brincando.
Estava saindo do meu escritório, para ir até o setor de marketing falar
com o Pedro sobre uma campanha, quando escutei a conversa que a minha
boneca estava tendo ao telefone.
Já estranhei a sua voz chorosa, pedindo para a mãe não gritar com
ela.
Nunca soube de nada a respeito da família de Alice, mas já não gostei
nadinha dessa mulher, só por fazer minha menina chorar.
Aí veio a primeira bomba.
Quando escutei aquela voz doce dizer que estava grávida, senti meu
coração parar dentro do peito. Precisei até me apoiar no batente da porta para
conseguir me manter de pé, tamanha a dor que eu estava sentindo.
Como assim, grávida?
Minha Alice tinha alguém?
Quem é o filho da puta que se atreveu a colocar um filho nela?
E aí veio o segundo tiro.
Pensei que fosse morrer quando ouvi ela dizer que estava noiva.
Noiva!
Noiva!
Meu Deus, noiva!
Como é que eu não vi uma coisa dessas acontecendo?
Como é que eu não percebi que ela estava saindo com alguém? Era
por isso que estava chorosa nos últimos dias? O desgraçado a magoou?
Porque se o fez, ah, mas eu ia perder meu réu primeiro.
Oh, se ia!
Mas aí ela começou a gaguejar, sem conseguir dizer o nome do dito
cujo. Começou a se tremer toda, nervosa, balbuciando coisas sem sentido, e
foi então que eu percebi.
Não tinha porra de noivo nenhum.
Por algum motivo, que eu não entendo, Alice mentiu para a sua mãe,
inventando um noivo falso para ser o pai do seu bebê. Será que ela não sabe
quem é o pai? Ou será que ele a abandonou?
Isso explicaria o seu sofrimento nos últimos dias.
O importante é que ele não existia. Ele não existia, e Alice parecia
petrificada em dizer isso para a sua mãe bruxa, e foi aí que eu tive a ideia
mais brilhante de todas as ideias do mundo inteiro.
Eu ia ser o noivo de mentira dela!
Qual é? Eu sou dono de uma Editora, publico romances diariamente,
eu não sou besta! Fake dating[12] é a melhor trope de todos os tempos e
sempre, sempre dá certo! A mocinha se apaixona pelo mocinho, o mocinho
fica de quatro pela mocinha, e todos vivem felizes para sempre!
Me diz, como é que isso pode dar errado?
Eu já tenho os meus quatro pneus arriados pela Alice, só falta fazer
ela ficar caidinha por mim e aí, bam! Nosso final feliz, ali, prontinho, só
correr para o abraço.
Não tem a menor possibilidade de isso não dar certo.
Então eu tratei de tomar o telefone da mão dela e me apresentar, com
nome e sobrenome, para não haver qualquer dúvida.
— Posso saber quem você pensa que é pra fazer a minha noiva
chorar? — O sabor de chamá-la de noiva foi a coisa mais incrível do mundo.
— Eu sou a mãe dela. — A filha da puta encheu a boca para
responder. Grande merda. Com uma mãe dessa, quem precisa de inimigos?
— E você? Quem é? Que zé ninguém engravidou essa tonta?
Ah, mas eu vou ser enquadrado é na Maria da Penha, o espírito da
mamãe que me perdoe.
— Em primeiro lugar, tonta é a senhora, que não enxerga a filha
maravilhosa que tem. Aliás, tonta é pouco, eu posso pensar em muitos outros
adjetivos mais interessantes, mas eu sou um cavalheiro. — Alice arregala os
olhos ainda mais, espantada com as minhas palavras.
— Ora seu...
— Em segundo lugar, — interrompo-a — zé ninguém é a senhora, ou
melhor, maria ninguém, sei lá. Pesquisa meu nome na internet e vai
descobrir em dois segundos exatamente quem eu sou, se está tão preocupada
com o futuro da sua filha e do seu neto.
— Seu Henrique — Alice tenta falar, mas eu seguro sua mão e dou
um aperto, pedindo que se cale.
— E por último, — continuo — se eu descobrir, se eu ao menos
sonhar que a senhora fez a minha Alice chorar de novo, eu garanto que não
vai gostar nadinha do que eu sou capaz.
— Está me ameaçando? — pergunta, incrédula.
— Não sou homem de ameaças, senhora Monteiro. Eu estou
avisando o que vai acontecer caso se atreva a machucar a minha noiva. A
senhora não faz a mínima ideia do que eu sou capaz pra proteger os meus. E
Alice é minha. Então eu tomaria muito cuidado se fosse a senhora.
— Mas é muito atrevido mesmo... — resmunga, indignada, e eu
canso.
— Agora se nos der licença, Alice e eu temos muito a fazer. Passar
bem.
Desligo o telefone e me preparo para o surto que está estampado no
rosto da minha secretária.
Secretária, não.
Mais respeito, Henrique.
Noiva!
Porra, Alice é a minha noiva, e eu quero sair dando pulinhos de
felicidade.
— Que... o que? — balbucia, e eu aproveito que ainda estou
segurando suas mãos e a puxo para dentro do meu escritório, trancando a
porta atrás de mim e fechando as persianas da janela.
— Fica calma, vem, se senta aqui — oriento, levando-a até a cadeira
que fica à frente da minha mesa. — Você quer uma água? — pergunto, já
indo até o frigobar e pegando uma garrafinha, destampando-a.
Ela me encara, ainda em choque, e eu me ajoelho na sua frente,
oferecendo a água.
— Por que o senhor fez isso? — pergunta. — Ela vai pesquisar o seu
nome e vai ver as fotos e, meu Deus! Ela vai querer vir aqui te conhecer,
principalmente quando descobrir exatamente quem o senhor é! — Põe as
mãos na cabeça em desespero.
— Ei, se acalma, por favor. Isso não pode ser bom pro bebê... —
Meu Deus, eu ainda não estou acostumado com a ideia de que tem um ser
humaninho na barriga dela. E é nesse momento que a minha mente estala.
Eita, porra!
Se esse plano der certo, se a Alice se apaixonar por mim e nós
ficarmos juntos, então...
Eu vou ser pai!
Meu Deus do céu, eu vou ser pai!
O choque da informação se infiltra pelo meu cérebro e eu preciso me
sentar nos calcanhares para não desabar.
Acho que eu que preciso dessa água agora.
— O senhor não entende! — exclama. — A minha mãe não vai
sossegar... quando ela descobrir quem o senhor é, o quão rico é, vai cair em
cima, vai querer se aproveitar da situação, vai fazer um inferno, meu Deus...
o que eu vou fazer? — choraminga, e eu apoio minhas mãos em seus
joelhos, acariciando-os por cima da calça.
— Vai dar tudo certo, Alice. Primeiro, por favor, sem senhor. Me
chame de você, afinal, eu sou seu noivo agora, não é? — brinco, mas ela só
se desespera mais, algumas lágrimas escapando de seus olhos. — Ei, ei, sem
isso. Eu já disse, vai dar tudo certo, a gente vai resolver isso juntos, ok?
— Como? — pergunta.
— Vamos conversar no final do expediente? Eu levo você pra jantar,
a gente conversa, acerta todas as coisas, decide juntos como vamos lidar com
isso, tá bom? Não precisa se desesperar, Alice. Vai dar tudo certo, prometo
— sugiro, segurando suas mãos e apertando.
— Tá bom — sussurra. Seu rosto ainda está preocupado, seus
olhinhos ainda carregam lágrimas não derramadas, e eu me seguro para não
a tomar em meus braços.
— Você consegue ficar até o final do expediente? Se precisar, eu te
dispenso e você vai pra casa, eu te busco depois — ofereço, mas ela balança
a cabeça, negando. — Tem certeza? Eu vou sair agora, não vou precisar de
você.
— Não, eu prefiro ficar — murmura.
— Tá bem, então — concedo. — Vá até o banheiro, se limpe um
pouco, se recomponha, e depois continue o seu serviço. Pode ir trabalhando
naquela ata da última reunião, se isso for te ajudar a te distrair... eu vou sair
um pouco mas retorno antes do final do dia e a gente sai pra jantar, ok?
Ela assente, ainda meio em choque, e eu aperto suas mãos mais uma
vez, antes de me levantar e ajudá-la a ficar de pé.
Ficamos parados, no meio do meu escritório, de mãos dadas, e eu
posso jurar que o tempo até para naquele momento.
Meu Deus, eu estou noivo de Alice. E vou ser pai do filho dela.
Ah, minha nossa...
Benjamin vai me matar.
*
Entro no escritório do meu irmão com pressa, encontrando-o com
Bianca no seu colo.
— Que porra, Henrique? — Benji exclama.
— Que bom que estão os dois aqui, assim já ficam sabendo da
novidade — começo, vendo suas expressões confusas. — Vocês vão ser
titios! — anuncio, com um sorriso meio louco no rosto.
Eles ficam de pé, me encarando como se eu tivesse três cabeças.
— Como é que é? — minha tampinha pergunta.
— Eu estou noivo e vou ser pai — explico. — Vocês vão ser titios!
— repito.
Meus irmãos se entreolham e me depois viram para mim,
completamente estarrecidos.
— Que merda que você fez agora, Henrique? — É Benji quem sai do
transe primeiro.
— Ei, você me respeita que agora eu sou um pai de família. —
Encho o peito para falar e me aproximo deles. — Você disse que eu tinha
que... ei! Você tava chorando? Quem foi o filho da puta que te fez chorar? —
pergunto, irritado, finalmente percebendo os olhinhos inchados da minha
irmãzinha.
Ninguém faz a minha miniatura chorar e sai impune.
— Não é nada demais, deixa pra lá, garoto. — Ela balança a cabeça,
revirando os olhos. — Explica essa história direito. Que noiva? Que filho?
Meu Deus, Henrique, você só se mete em confusão!
— Vocês são dois dramáticos, não é nada demais... — resmungo e
me sento, começando a explicar tudo o que aconteceu há pouco mais de
meia hora. Nem fui no marketing falar com Pedro, porque sabia que ia tomar
esculacho. Então se é para levar cagada, que seja pelo menos da minha
própria família. Por isso vim primeiro ver o Benji. — E aí, me digam se não
é o plano perfeito?
— Cara — meu irmão começa, se apoiando na mesa e colocando a
mão na cabeça. — Você comeu cocô quando era criança? Não é possível que
faça tanta merda assim, Henrique, meu Deus.
— Ei! — reclamo.
— Ei nada! — Bianca responde. — Henrique do céu, essa menina tá
grávida, você não pode decidir assim, pelos dois, que agora vocês serão uma
família feliz de comercial de margarina! Você nem sabe se ela sente algo por
você!
— É pra isso que o relacionamento falso serve, Mini-Me — explico.
— Quando a gente tiver mais contato, eu vou conquistar a minha boneca e
fazê-la se apaixonar por mim. É simples!
— O que você não considerou, oh grande gênio, — Benji debocha —
é que a menina tá grávida! E isso significa que ela tá cheia de hormônios,
sensível, confusa, vulnerável, o que é uma péssima combinação pra você
decidir mexer com os sentimentos dela, porra!
— Eu não vou me aproveitar dela! — Me defendo.
— Nós não estamos dizendo isso, Henrique — Bianca concede. — A
gente te conhece, nós três somos um só, você sabe disso. Mas a Alice está
num dos momentos mais vulneráveis da vida dela. Qualquer sentimento que
ela desenvolva agora pode estar nublado pelos hormônios, por um misto de
alívio e gratidão, e não é assim que um amor deve ser construído, meu
irmão.
— Mas é a oportunidade perfeita! — resmungo. — Ela vai ver o
quanto eu sou bom, como eu posso cuidar dela e do bebê, como nós três
podemos ser felizes juntos! Se não for agora, esse pai desaparecido pode
surgir do inferno e tomar a minha boneca de mim. Eu não posso deixar isso
acontecer!
Os dois me olham com expressões preocupadas, mas compreensivas.
— Bom. — Benji exala. — O que está feito, está feito, né? Pelo que
você contou, essa mãe da Alice é uma aproveitadora que não vai deixar a
filha em paz agora que está noiva de um dos herdeiros dos Lacerda. E você
tem que tomar muito cuidado com ela, viu? Essa mulherzinha me cheira
problema e a gente bem sabe como uma interesseira é capaz de tudo pra
conseguir o que quer.
Seu tom é grave, com certeza lembrando de tudo que passou nas
mãos da bruaca da sua ex-mulher.
— Eu vou tomar cuidado. E vou cuidar da Alice também — prometo.
— Aquela mulher não vai mais se aproveitar da minha boneca.
— Toma cuidado, Henrique — Bianca pede. — Você já tem tanto
sentimento por essa mulher... e agora com um bebê no meio? Por favor, toma
cuidado, não quero te ver machucado.
Eu sorrio para a minha princesinha, pegando a sua mão na minha e
apertando-a.
— Vai dar certo, bebê. Eu vou conquistar a Alice e nós vamos ser
muito felizes. Vocês vão ver só.
Tem que dar certo. Eu vou fazer o impossível para que dê certo.
12 - Alice

Cuida bem de mim


E então misture tudo dentro de nós
Porque ninguém vai dormir nossos sonhos
Muito Estranho (Cuida Bem de Mim) – Nando Reis

— Fala alguma coisa, Carina! — sussurro no telefone, prestando


atenção no corredor para ver se o meu chefe já retornou.
Eu ainda não consigo acreditar no que aconteceu.
Quando o seu Henrique tomou o telefone das minhas mãos e se
apresentou como meu noivo, eu pensei que o meu cérebro fosse derreter,
tamanho o meu choque.
O que deu nele para fazer aquilo?
A minha mãe nunca vai sossegar agora. Quando pesquisar o nome
dele e descobrir exatamente o quão rico o meu suposto noivo é, meu Deus.
Ela vai avançar igual a um zumbi em filme de fim de mundo, faminta e
completamente louca, querendo se aproveitar ao máximo da situação.
— Espera, amiga, que o meu cérebro ainda tá processando tanta
informação — Carina finalmente responde, em um tom chocado. — Quer
dizer que agora você tá noiva do seu chefe? É isso?
— É uma loucura, Cá! Não tem cabimento um negócio desses, o seu
Henrique é louco! Um completo louco! — exclamo, colocando a mão na
cabeça.
— E o que você vai fazer, Ali? — pergunta. — Você já sabe muito
bem a minha opinião sobre a sua mãe. Ela é uma sanguessuga, aproveitadora
e interesseira, e você já deveria ter cortado ela da sua vida há muito tempo!
Ela e aquela sua avó, duas cobras!
— Mas elas são a minha única família, amiga... — murmuro.
— Sua família sou eu, Alice! — retruca, irritada. — Eu, que sempre
estive do seu lado, que te apoiei, que te ajudei! Elas duas são, no máximo,
parentes! E parentes tóxicas, que só se aproveitam do seu coração bom e
tolo! Você precisa pensar no seu bebê agora, Alice, pelo amor de Deus. A
presença dessas duas não te faz bem, e não vai fazer bem pra ele também!
— Eu não sei se consigo lidar com isso agora... — sussurro.
Pode ser covardia? Sim. Provavelmente é mesmo.
Mas eu não quero ter que lidar com a minha mãe nesse momento.
Minha cabeça parece um redemoinho de sentimentos, uma confusão de tudo,
medo, aflição, amor, preocupação, e isso está me enlouquecendo.
— Eu entendo, amiga. Não é fácil se livrar de uma relação tóxica.
Demanda muita força, muita frieza e talvez esse momento não seja o ideal
mesmo. — Carina concede. — Mas o fato é que, agora ela vai querer uma
fatia da sua nova realidade como noiva de um milionário. E você sabe disso,
né? Você precisa se preparar e preparar o seu Henrique pra conhecer
exatamente quem é a sogrinha dele.
— Ai, Carina, isso é uma loucura...
— Você quer contar a verdade pra ela? Lidar com o julgamento dela?
Que, você sabe, vai ser mil vezes pior depois dessa mentira. Ela vai ser ainda
mais cruel do que já é. Se é que isso é possível.
— É possível sim, acredite...
Mesmo que eu me negue a enxergar, às vezes, eu sei muito bem que
a minha mãe tem capacidade de ser uma pessoa horrível quando ela quer.
O ruim é que ela sempre quer.
Ela sempre se esforça para dar o seu pior, pelo menos para mim.
— E então? O que você vai fazer? — minha amiga pergunta, e eu
fico sem saber o que responder. — Vai contar a verdade ou vai continuar
com a farsa?
O que eu vou fazer?
O que eu posso fazer?
— Eu acho que... — começo, fechando os olhos e colocando a mão
na cabeça. — Acho que acabei de ficar noiva do meu chefe, né?
O silêncio na linha reflete exatamente o que eu estou sentindo.
Meu Deus, no que exatamente eu me meti?
*
— Você tá com vontade de comer alguma coisa específica? — seu
Henrique pergunta, depois de dar a partida no carro.
Ele retornou quase no final do expediente, e disse que só precisava
enviar uns e-mails e então poderíamos sair para conversar. É pouco mais de
seis e meia, e eu estou sentada no banco de couro mais confortável que já vi
na vida, em um carro que, provavelmente, custa o equivalente ao meu salário
de dez anos.
Parece tão surreal, que eu não consigo nem raciocinar direito.
— Ei. — Sua mão encontra a minha no meu colo e dá um aperto, me
fazendo encarar o cenho franzido do homem ao meu lado. — Você tá bem,
Alice?
Solto uma risada meio maníaca, porque não, eu não estou nada bem.
— Isso é uma loucura, seu Henrique... — murmuro, desvencilhando
nossos dedos. — Não tem o menor cabimento continuar com isso, eu vou
ligar pra minha mãe e contar a verdade, é o melhor. — Abro a minha bolsa
para pegar o telefone, mas ele o toma das minhas mãos, desligando o carro e
se sentando meio de lado, para me encarar.
— Você não vai fazer isso, Alice — ele nega. — Primeiro porque, me
desculpe o que eu vou dizer, mas a sua mãe não presta. Em poucos minutos
de conversa eu consegui perceber o quão interesseira e cruel ela é, e não
posso permitir que ela te maltrate ou te ofenda por causa dessa história, e é
exatamente e o que ela vai fazer.
— Mas ela vai querer se aproveitar de você! Vai exigir dinheiro, só
porque está comigo, vai fazer um inferno! — Eu sei que é questão de tempo
até ela ligar, depois que descobrir quem ele é.
E a primeira coisa que fará é tentar tirar proveito da situação.
— Ela não vai porque eu não vou permitir — declara. — A minha
relação é com você, e não com ela. Ela já entrou na minha lista só por ter te
feito chorar, não vai tirar um tostão meu, você pode ter certeza.
— Não tem sentido continuar com isso, seu Henrique — murmuro.
— Segundo, não tem mais seu Henrique. É apenas Henrique. Pode
até arrumar um apelido pra mim, eu deixo. — Pisca, me arrancando uma
risada incrédula.
Esse homem é louco, meu Deus.
— Isso é loucura... — Balanço a cabeça. — Não tem porque manter
essa farsa, uma hora ela vai descobrir a verdade e quanto mais tempo
demorar, pior vai ser. Não podemos fingir pra sempre, uma hora esse bebê
vai nascer e não vai dar pra manter a mentira. Você não pode assumir um
filho que não é seu!
Uma coisa passa pelos seus olhos, mas é tão rápido que eu não
consigo decifrar.
— Diz isso pra milhares de pais adotivos que existem por aí, Alice —
pontua. — Eu não estou dizendo que vamos mentir pra sempre, — arregalo
os olhos — não estou dizendo isso! Vamos por partes, vivendo um dia de
cada vez. Vamos descobrir uma forma de lidar com a sua mãe, sem te
prejudicar e nem fazer mal pro bebê. Você não pode se estressar, tem que
manter a cabeça e o coração tranquilos. — Ele segura as minhas duas mãos,
trazendo-as para si, e beijando o dorso. — Deixa eu cuidar de você, Alice.
Eu prometo que vai dar tudo certo.
Franzo o cenho, fitando seus olhos esverdeados e a expressão
suplicante.
Por que ele está fazendo aquilo?
O que ele ganha com isso tudo?
— Por que? — murmuro.
— Como assim? — pergunta.
— Por que o senhor tá fazendo isso? — Seus olhos vacilam um
pouco, desviando dos meus, e ele parece quase desconcertado. — Não tem
porque me ajudar desse jeito. Eu sou apenas a sua secretária. Por que tá
fazendo tudo isso? O que ganha com essa história toda?
— Nada, Alice... — Encara meus olhos de um jeito intenso. — Eu
não ganho nada além de ajudar você. Não pense por um minuto que eu quero
me aproveitar de você ou fazer algo de errado. Você não precisa me tocar,
não precisa fazer nada que não quiser se seguirmos com isso. Eu jamais
quero te deixar desconfortável, muito menos te magoar. Me mataria antes de
fazer algo assim, Alice.
Ele parece tão sincero.
Suas palavras parecem ter saído direto do seu coração e isso me
deixa ainda mais confusa.
Por que?
— Mas por que tá fazendo isso? — insisto, porque tem que ter uma
explicação.
Ele continua me observando em silêncio, seus olhos varrendo o meu
rosto e cheios de alguma coisa que eu não consigo identificar, mas poderia
jurar ser algo como admiração.
Meu Deus, o que está acontecendo?
Quando foi que as coisas chegaram nesse ponto?
— Talvez um dia eu te dê a resposta completa para essa pergunta,
Alice — murmura. — Por enquanto, só saiba que eu quero te ajudar. Quero
facilitar a sua vida nesse momento e te ajudar a se livrar de quem te faz mal.
Me deixa fazer isso, por favor.
Pondero a situação por um momento, indecisa.
Não faz sentido.
Para que continuar com a farsa se uma hora ou outra ela vai
descobrir?
Como seriam as coisas dali para frente?
As pessoas ficariam sabendo? Meu Deus, o que pensariam?
O bebê, como ficaria nessa história? Ele o assumiria? E depois? Que
justificativa daríamos para o término? Para o fato de o bebê não carregar o
seu sobrenome?
São tantas perguntas que rondam a minha cabeça, que eu posso jurar
que vou enlouquecer.
Mas ao mesmo tempo, ao encarar o seu rosto sereno, em expectativa,
eu não consigo dizer não. Não consigo dar um basta, acabar com tudo.
Algo, dentro de mim, grita para que eu aceite. Que siga os seus
planos, que deixe ele tomar conta de tudo, tomar conta de mim.
Como seria ter alguém para cuidar de mim?
Carina é diferente. É um cuidado diferente do que ele estava me
oferecendo aqui. Ela é como uma irmã, uma gêmea perdida no mundo, que o
destino colocou em meu caminho.
O que esse homem está me oferecendo é mais profundo.
Mais tentador.
E, por Deus, eu não sei se consigo resistir.
— Ela vai querer se aproveitar. Vai chantagear, vai exigir — começo.
— Promete pra mim que não dará nada a ela. Eu nunca me perdoaria.
— Eu te prometo. — Nem hesita em responder. — Eu vou te ajudar a
se livrar dela, e ela nunca mais vai tirar proveito de você. Confia em mim.
O mais assustador é que eu confio.
Conheço esse homem há quase dois anos, mas nunca tivemos uma
conversa além do trabalho. Eu sei o essencial da sua vida, nada além disso.
E ele não sabe nada de mim.
Mas ainda assim, eu confio.
Apenas aceno a cabeça e ele sorri, satisfeito. Aquela coisa se passa
mais uma vez pelo seu olhar, tão rapidamente quanto antes, e eu fico mais
confusa, perdida.
— Então me diz? O que quer comer? — Liga o carro novamente, me
olhando em expectativa.
— Eu como qualquer coisa. Só sou alérgica a frutos do mar —
informo.
— Certo, sem frutos do mar. Que tal uma massa? Conheço um
italiano que serve uma lasanha covarde. Tem que tomar cuidado pra não se
viciar.
A ideia pareceu agradar o meu estômago, que ronca alto o suficiente
para que ele escute e me dê um sorriso divertido.
— Pode ser — murmuro, envergonhada.
— Lasanha será, então — decreta, colocando o carro em movimento.
Ainda me assusta a loucura em que eu me meti, mas algo dentro de
mim diz que as coisas darão certo. Que eu ficarei bem.
Algo me diz que ele vai garantir isso.
13 - Henrique

Porque você me faz sentir


Como se eu estivesse trancado para fora do paraíso
Por tempo demais
Locked Out Of Heaven – Bruno Mars

Eu não dormi quase nada a noite passada.


Depois que deixei Alice em casa (por sinal, meu Deus, eu preciso
ajudar ela a sair daquele lugar medonho), cheguei no meu apartamento e
fiquei as próximas horas alternando entre pesquisar sobre gravidez e pensar
nos meus próximos passos.
Eu vou ter que ser bastante cuidadoso daqui para a frente.
Talvez, ontem, eu tenha ido com muita sede ao pote, empolgado com
a ideia de finalmente ter um plano para conquistar a minha boneca, e posso
ter me exaltado um pouco.
Só um pouquinho, sabe?
Uma coisinha de nada.
Não quero que ela se assuste, de forma alguma.
E ontem eu pude ver em seu olhar que ela está meio receosa com
toda a situação.
Foi então que eu percebi que preciso dar alguns passos para trás.
Recuar o suficiente para não a sufocar, para não colocar tudo a perder.
Se eu demonstrar demais, se me expuser mais do que o apropriado,
Alice pode me achar ainda mais louco do que já acha, e isso seria um tiro
saindo pela culatra.
Então eu preciso ter cautela. Dar um passo de cada vez, demonstrar
as coisas aos poucos e aí, com muita sorte, fazê-la me enxergar como que eu
realmente sou: o amor da vida dela.
Preciso encontrar o equilíbrio.
Só tem um problema.
Um bem pequenininho, quase inexistente, entende?
Eu não sou nem um pouco equilibrado.
Não que eu seja um doido varrido, não é isso! Mas eu tendo a me
empolgar muito facilmente com as coisas, principalmente quando elas
envolvem algo que é tão importante para mim.
E a Alice é tudo para mim.
Então encontrar esse equilíbrio será um pequeno desafio, mas eu vou
ter que dar o meu jeito de fazer dar certo.
Não posso perder a chance da minha vida, de jeito nenhum.
— Bom dia, seu Henrique — a recepcionista da Editora me
cumprimenta quando eu entro na empresa naquela manhã.
— Bom dia, Vitória — respondo, dando-lhe um sorriso, e me dirijo
aos elevadores.
A Editora Lacerda começou funcionando em uma sala comercial no
centro de Santa Consolação, há quarenta e sete anos.
Meu finado avô, seu Otávio Lacerda, apaixonado por literatura,
decidiu se especializar na edição e publicação de livros lá na década setenta,
quando tudo ainda era pó. Não existia uma área de impressão, pois a
empresa terceirizava essa parte toda para gráficas da região.
Era apenas uma sala, de doze metros quadrados, na qual o meu avó e
mais dois sócios recebiam os autores e negociavam as publicações.
A primeira tiragem que a Lacerda produziu vendeu um total de oito
exemplares, todos para a família do próprio autor.
Vovô era um editor fantástico, mas não tinha um olho muito bom
para questões comerciais, de vendas e publicidade. Achava perda de tempo
investir capital em uma boa campanha de marketing, porque, segundo ele,
“um bom livro se vende por si só”.
Não preciso nem dizer que a empresa entrou em colapso nos
primeiros dois anos, né? Quase fecharam as portas, e só se salvaram porque
um dos sócios conseguiu convencer meu avô a abrir os olhos para as outras
etapas de um processo de publicação.
Quando isso aconteceu, em pouco tempo a Editora alavancou e se
tornou referência na região interiorana de São Paulo, publicando cerca de
cinco títulos por mês, em tiragens maiores, e tendo um número considerável
de vendas.
Logo foi preciso se mudar, e então alugaram um prédio de tamanho
razoável, com quatro salas e uma recepção, expandindo o seu quadro de
funcionários para mais de quinze colaboradores, entre editores, publicitários,
designers, vendedores e promotores.
Papai assumiu a diretoria no início da década de noventa, quando eu
tinha acabado de nascer. Desde moleque, passei mais tempo na Editora do
que em casa, porque sempre fui muito apegado ao meu pai. Depois da morte
da mamãe, então, quando eu tinha só sete anos, aí que praticamente morava
naquele lugar, enfiado no meio dos editores, quase como um mascotinho da
equipe.
Benji ficava mais em casa, sempre foi mais retraído, e a nossa
diferença de idade de quatro anos sempre me pareceu muito maior, devido à
sua maturidade.
Quando eu tinha dezesseis anos, papai expandiu a Editora, abrindo a
parte gráfica e passando a imprimir as próprias tiragens, sem terceirizar. Foi
um grande boom na época, conseguimos nosso primeiro contrato fora de São
Paulo e eu lembro, como se fosse hoje, de ver a equipe toda comemorando,
meu velho com um sorriso do tamanho do mundo no rosto, e pensar comigo
mesmo que eu levaria esse legado a um patamar nunca alcançado, que traria
muito orgulho a ele e ao meu falecido avô.
Com vinte e seis anos, assumi a presidência da empresa.
Seu Afonso já estava cansado, doido para curtir a aposentadoria ao
lado da minha madrasta, e eu tinha passado os últimos oito anos me
dedicando e me preparando para ser o melhor para essa empresa.
Me formei em Letras, porque ser editor era um sonho muito maior do
que ser empresário, e depois fiz duas especializações na área dos negócios e
um mestrado em Produção Editorial.
Tinha acabado de retornar à cidade, depois de defender minha
dissertação, quando meu pai me chamou e pediu para conversar. Eu já atuava
como editor há uns bons anos na empresa, entre as minhas especializações, e
conhecia o negócio como a palma da minha mão. Ainda assim, não foi
simples.
O medo de não ser suficiente foi enorme, confesso. Mas era o meu
sonho e eu prometi não o decepcionar, assumindo o que sempre foi para ser
meu.
Benji nunca quis assumir a Editora, e deixou isso bem claro logo que
terminou a faculdade. Sua paixão era lecionar, e ele iria seguir com esse
sonho, sem qualquer pretensão de tomar a presidência da empresa da
família.
E Bianca também, sempre amou livros, como todos nós, mas não a
parte editorial do ramo. A livraria foi a melhor escolha para a minha
irmãzinha, e eu sou muito orgulhoso do quanto ela cresceu no último ano.
Então eu tomei para mim o nosso legado, e gosto de pensar que o
honrei.
Desde que assumi a cadeira, nossa empresa triplicou de tamanho,
precisando se mudar para esse prédio, de seis andares, bem no coração de
Santa Consolação.
Contamos com uma equipe de mais de duzentos e cinquenta
colaboradores, distribuídos em seis diretorias: editorial, marketing e
publicidade, jurídico, RH, financeiro e administração geral.
Nossa gráfica é uma das maiores de toda São Paulo, e publicamos
uma média de sete títulos por mês, entre novos e reimpressões, cada um com
uma tiragem mínima de cinco mil unidades. Nosso centro de distribuição é
em um outro prédio, porque esse não seria o suficiente, e enviamos para todo
o Brasil, com transportadora própria.
Mais recentemente, estamos estudando a possibilidade de nos
tornarmos uma empresa de capital aberto, entrando na bolsa de valores e
aumentando ainda mais o nosso potencial de investimento.
Eu me sinto orgulhoso do meu trabalho, e sei que também orgulho o
meu pai com tudo que a Lacerda se tornou e ainda tem potencial para
crescer.
Entro no elevador e não consigo evitar o pensamento de que, talvez,
com muita sorte, eu terei em poucos meses uma família ao meu lado, para
comemorar comigo cada conquista, e um herdeiro para quem deixar tudo
isso aqui.
Oh, Deus, que meu plano desse certo.
— Bom dia, Alice — cumprimento a dona do meu coração ao sair no
andar da Presidência, me aproximando da sua mesa e depositando uma
sacola de papel em sua frente. — Trouxe café da manhã pra vocês.
Ela pisca algumas vezes, olhando de mim para a sacola, como se
estivesse desvendando um mistério, e eu luto para manter a expressão
neutra.
— Bom dia, seu Henrique. — Levanto uma sobrancelha e ela cora
lindamente, desviando o olhar. — Henrique. — Deus, não tenho saúde para
aguentar ela me chamando assim, não. — Não precisava se incomodar.
Ela abre a sacola, curiosa, e sorri ao tirar o potinho de salada de
frutas que eu preparei em casa.
— Eu vi que você comeu isso algumas vezes nessas semanas, achei
que pudesse ser algo que o bebê goste. — Dou de ombros.
— Não gosta muito não, na verdade — responde, aquele sorrisinho
de canto de boca que eu amo nos lábios. — Mas é uma das poucas coisas
que tenho conseguido comer de manhã.
— Muitos enjoos? — pergunto. Li que o primeiro trimestre de
gravidez pode ser bem desafiador para a gestante, com tonturas e enjoos
matinais. — Você está com quantas semanas?
— Todo dia, praticamente — confessa, com um biquinho. —
Completo seis semanas hoje, na verdade. — Sorri e eu retribuo.
— Ora, ora, feliz semanassário então, bebê — falo, olhando para a
sua barriga ainda lisa.
— Acho que isso não existe — comenta, com uma risada.
— Nada existe até que alguém invente. Eu estou inventando o
semanassário, ué — respondo, fazendo seu sorriso crescer. — Não liga pra
mamãe não, bebê, ela é uma boba.
— Me admira o senh- — para de falar com o meu olhar — você ter
perguntado em semanas. Geralmente as pessoas perguntam em meses. Eu
mesma, só tô aprendendo agora esses cálculos de tempo.
— Eu sou muito esperto, Alice, você vai ver. — Mal sabe ela que eu
li uns dois e-books sobre gravidez essa madrugada. — Aliás, você sabia que
a gravidez completa tem dez meses, e não nove como todo mundo pensa?
Ela me olha confusa, decerto estranhando o fato de eu ter me tornado
uma enciclopédia sobre bebês do dia para a noite.
Um passo para trás, Henrique, não dá bandeira.
— É, eu li a respeito na internet esses dias, não sabia disso não —
responde.
— Pois é, acho muito doido isso — disfarço. — Enfim, quando você
terminar de comer, pode vir me trazer a agenda do dia? Tem algumas coisas
que eu preciso ver com você sobre aquela reunião de segunda-feira. Mas
sem pressa, come sua salada, primeiro. Eu vou responder a uns e-mails
antes.
— Tá bem, obrigada de novo.
Dou-lhe um aceno e sigo para a minha sala, me segurando para não
ficar mais um pouco perto dela.
Paciência, Henrique.
Passos de bebê.
O prêmio no final de tudo é precioso demais para que eu estrague as
coisas com a minha pressa.
Eu vou conquistar minha Alice.
Um pedacinho por vez.
14 - Alice

Porque tudo o que eu sei é que nós dissemos oi


E os seus olhos parecem um lar
E tudo o que eu sei é simples
Tudo mudou
Everything Has Changed – Taylor Swift ft. Ed Sheeran

Eu sou noiva do meu chefe há exatamente uma semana.


A ideia ainda me deixa tonta, mas é a minha nova realidade.
Nada mudou na minha vida, para ser bem sincera. Tirando o fato de
que agora eu o chamo de Henrique e de você, e não mais de senhor, e que ele
me traz café da manhã todo santo dia.
Começou com as saladas de fruta, apenas, mas depois de alguns dias
ele evoluiu para uns pãezinhos recheados, até que ontem me trouxe uma
omelete bem caprichada, que o bebê simplesmente adorou e inclusive quis
repetir de noite, mas não sabia onde conseguir.
Ainda não consegui identificar onde ele compra as coisas, e também
fiquei sem jeito de perguntar. Por um segundo, passou pela minha cabeça
que ele mesmo faz as coisas, porque as embalagens, apesar de descartáveis,
são muito genéricas, sem nenhuma logo, nem nada que permita identificar a
origem.
Mas isso é um absurdo, certo?
Nunca que o meu chefe ia se dar ao trabalho de ir para a cozinha
preparar o meu café da manhã todo santo dia.
Certo?
Bom, de qualquer modo, o importante é que as coisas estão mais
tranquilas do que eu poderia imaginar que estariam.
O que me assusta um pouco, confesso.
Uma semana inteira e nenhum sinal da minha mãe.
O seu silêncio não me deixa tranquila, pelo contrário. Eu a conheço
bem o suficiente para saber que quando ela se cala, é porque está tramando
alguma coisa. E não pode ser nada de bom.
Quanto tempo demorará para ela dar o bote?
Porque ela dará, isso era certo. Henrique é rico demais para ela não
tentar se aproveitar. Ainda mais com a falta do dinheiro que eu costumo
enviar para elas.
Durante muito tempo, eu desejei ter nascido em outra família.
Em alguma que tivesse pais amorosos, que se importassem comigo e
me quisessem bem. Que se orgulhassem das minhas conquistas, que me
ajudassem a superar as dificuldades, que me oferecessem colo nos
momentos difíceis.
Sabe? Pais normais.
Como eu desejo ser para o meu bebezinho.
Pouso a mão na minha barriga ainda inexistente e penso em como a
minha mãe consegue ser assim. Como ela pode ser tão indiferente a mim,
demonstrar tanto desprezo, fazer tão pouco caso, me tratar tão mal.
Eu mal sei da existência desse neném e já quero lhe dar o mundo
todinho, protegê-lo de todo e qualquer mal e o amo tanto, mas tanto que
parece que meu peito vai até explodir.
E olha que ele foi totalmente não-planejado e me deu o maior susto
da vida.
Mas ainda assim, eu o amo.
Eu o quero.
E isso só me faz enxergar o quanto a minha mãe nunca mereceu esse
título de mim.
Desde criança, eu aprendi bem cedo que as coisas na minha casa
eram um pouco diferentes do que na casa dos meus colegas. Lembro até
hoje, muito claramente, de uma vez que fui fazer um trabalho de escola na
casa de uma amiguinha, quando tinha uns doze anos.
Nós estávamos na mesa da cozinha, e a mãe dela nos trouxe um
lanche para comermos, enquanto terminávamos o dever. Minha amiga
derrubou o copo de suco no chão, e eu lembro bem de ficar completamente
tensa, e esperar o esporro que ela iria levar.
Quando ela chamou a mãe e disse na maior tranquilidade o que tinha
acontecido, lembro de arregalar os olhos e esperar pelos gritos que nunca
vieram, já que a mulher simplesmente disse que estava tudo bem, pegou um
pano e um desinfetante, limpou o chão, e ainda trouxe um outro copo com
mais suco, colocando ao seu lado e pedindo que tomasse mais cuidado,
dando-lhe um beijo e um afago nos cabelos.
Me recordo muito bem de ficar paralisada, sem conseguir disfarçar o
meu espanto com toda a cena que se desenrolou na minha frente, e de pensar
na quantidade de nomes feios e palavrões eu escutaria se tivesse sido eu a
derrubar aquele copo, e se fosse a minha mãe no lugar daquela mulher.
Foi a primeira vez que eu senti inveja de alguém na vida.
Infelizmente, não foi a última.
Todas as vezes que visitava a casa de algum colega, seja por trabalho
de escola, seja por lazer ou qualquer outra coisa, eu não conseguia evitar de
fazer comparações sobre a minha realidade e as deles.
E eu sempre perdia.
Minha mãe nunca foi amorosa. Nunca me deu um abraço ou um
beijo. Nunca disse que me amava. Nunca quis passar um tempo comigo.
Desde que eu me entendo por gente, nossa relação se consiste em
ofensas e reclamações de sua parte, e silêncio e lágrimas da minha.
Ela sempre jogou na minha cara o quanto eu estraguei a vida dela,
como se eu tivesse pedido que ela engravidasse aos dezoito anos de um
namoradinho sem futuro.
Na verdade, muito do que ela me acusa eu percebo ser um reflexo do
que ela viveu a vida toda com a minha avó.
Dona Maria Monteiro também passou a vida enfatizando o quanto a
filha foi o maior erro que já cometeu, como desperdiçou a juventude
cuidando de uma menina sem futuro, que poderia ter vivido tanto se não
fosse essa desgraça na sua vida.
Minha mãe apenas seguiu o fluxo, repetiu o passado, replicou em
mim todas as ofensas que recebeu durante a vida.
Eu sou culpada de alguma coisa?
Não.
Isso faz alguma diferença?
Também não.
A única certeza que eu tenho é de que eu vou quebrar esse ciclo.
O meu bebê vai ter a certeza de que sempre foi uma benção na minha
vida. Certeza do meu amor, da felicidade que eu sinto cada vez que penso
nele ou nela. Terá completa certeza de que, em mim, ele ou ela sempre
encontrará um apoio, um suporte, que eu serei a sua base, pelo tempo que
Deus me permitir, o colo quando precisar, o abraço quando desejar, a sua
plateia em todos os momentos de alegria.
E principalmente, ele ou ela nunca, jamais sentirá vergonha de mim,
por ser uma pessoa aproveitadora e interesseira.
A dúvida de quais seriam os próximos passos da minha mãe está
tirando um pouco do meu sossego, confesso, e eu estou ao ponto de pegar o
telefone e ligar, perguntando o porquê do seu sumiço.
Mas não sei se isso seria pior, então tento me acalmar e mentalizar
que tudo vai dar certo e ficar bem.
Meu celular vibra com uma nova chamada e eu travo, pensando que
pode ser ela, mas logo reconheço o número da clínica na qual marquei meus
exames.
— Alô?
— Boa tarde, senhorita Alice Monteiro? — uma mulher me pergunta.
— Sim, sou eu.
— Aqui é da Ultraclin, eu gostaria de confirmar o seu agendamento
para a ultrassonografia obstétrica, marcado para amanhã, às quinze horas?
Tinha até me esquecido desse exame, com tudo o que aconteceu nos
últimos dias.
Já fiz a maioria dos exames de sangue, faltando apenas alguns que
ficaram muito caros para que eu conseguisse arcar, já que dei prioridade para
essa ultrassom.
Estou muito curiosa para ver o meu bebê, saber se está tudo bem com
ele ou ela, se está saudável, se eu tenho que me preocupar com alguma coisa.
— Pode confirmar sim, por favor — respondo. — O atendimento é
por ordem de chegada ou hora marcada?
Ainda não pedi autorização para sair amanhã, durante o expediente, e
preciso saber se peço algumas horas ou a tarde toda.
— É por ordem de chegada, senhorita. A médica começa a atender às
dezesseis e trinta, mas pedimos para que todos cheguem com uma hora de
antecedência, pra evitar atrasos.
Quem tem que evitar atrasos é a porra da médica.
Inferno.
— Tudo bem, obrigada. Até amanhã.
— Por favor, trazer o pedido médico, seus documentos pessoais e o
valor do exame, que só aceitamos em pix ou espécie. Se for débito tem
acréscimo de 5% e se for crédito, não parcelamos e o acréscimo é de 10%.
— A moça já me explicou no agendamento — resmungo. —
Obrigada.
— Até amanhã, a Ultraclin agradece a preferência — responde em
uma voz sorridente antes de desligar.
Uhum, preferência.
Preferência do meu bolso, isso sim.
Eu descobri nesses últimos dias que qualquer exame médico para
grávida é o preço de dois rins. Isso porque essa ultrassonografia é mais
simples. Ainda tem a tal da morfológica, que eu terei que fazer daqui há
algumas semanas, que custa dois rins, um fígado e um baço.
Meu Deus do céu, como tudo é caro!
Não quero nem começar a pensar no enxoval porque não estou com
vontade de começar a chorar no meio do expediente.
Me levanto e vou até o escritório do meu chefe, batendo na porta
para anunciar a minha presença.
— Com licença — murmuro. — Posso falar com o senh- você um
minuto? — Ainda me atrapalho às vezes com o tratamento diferente que ele
me pediu, mas estou me acostumando.
— Claro, Alice, entre, por favor — responde, solícito. — No que eu
posso te ajudar?
— Eu tenho um exame amanhã à tarde. A primeira ultrassom do
bebê. Queria saber se...
— Claro, claro. Nem precisa me perguntar — me interrompe, já
balançando a cabeça. — Como está a minha agenda de amanhã? Precisamos
reagendar alguma coisa?
Fito seu rosto, confusa.
— Como assim?
— Ora, eu vou com você, ué — responde, como se fosse óbvio.
O que?
Seu Henrique, numa clínica popular, para ficar comigo durante horas
esperando um exame para o meu bebê?
Mas não mesmo.
— Não tem necessidade, seu Henrique — nego, me aproximando
mais. — Vai demorar muito, é só um exame de rotina, não tem porque...
— Alice — me interrompe de novo. — Você não falou que a sua mãe
descobriu a sua gravidez em uma consulta sua?
Eu contei um pouco da história, quase nada, apenas o suficiente para
ele entender onde estava se metendo e, quem sabe, querer fugir.
Pois é, ele não fugiu.
— Mas aquilo foi uma coincidência, seu Henrique! — rebato. —
Não tem porque o senhor perder uma tarde inteira na sala de espera de uma
clínica comigo, ninguém vai saber se eu for sozinha.
— Eu vou saber, e isso é suficiente — contrapõe, tranquilo. — Que
horas é o exame?
— Mas...
— Que horas, Alice? — insiste, e eu solto um suspiro.
— Três.
— Saímos às duas e meia, ok? — sugere, e eu me vejo apenas
balançando a cabeça, porque vou fazer o que?
O homem é doido.
— Obrigada — murmuro.
— Não há motivos pra me agradecer. Eu só vou acompanhar a minha
noiva no médico, nada demais — responde, dando os ombros. Eu balanço a
cabeça, e me afasto, mas então ele me chama. — E, Alice, — me viro e o
encaro novamente — não tem nenhum senhor aqui, lembra?
Mordo o lábio para esconder o sorriso idiota que quer despontar e
assinto.
— Obrigada, Henrique.
— Não há de que, Alice.
Me retiro de seu escritório e me sento na minha cadeira novamente,
soltando a respiração.
Eu irei no médico, fazer um exame de imagem para ver o meu bebê,
acompanhada do meu chefe.
As coisas amanhã serão, no mínimo, interessantes.
15 – Henrique

Por você, eu dançaria tango no teto


Eu limparia os trilhos do metrô
Eu iria a pé do Rio a Salvador
Por Você – Barão Vermelho

— Você tá fugindo de mim.


Me assusto, distraído redigindo um documento, quando a voz do meu
melhor amigo preenche o meu escritório.
Levanto o olhar e o vejo parado próximo à porta, me encarando com
uma expressão irritada e os braços cruzados na frente do corpo.
— Não tô, não — respondo, desviando o olhar.
Ele bufa e entra de vez, fechando a porta atrás de si e apontando o
dedo na minha cara.
— Ah, mas tá sim! — insiste. — Desde que eu cheguei de São Paulo
você ignora minhas mensagens, não foi uma única vez na minha sala falar
sobre o que ficou decidido lá, e ainda por cima faltou no Muay Thai
segunda!
No mesmo dia que aconteceu toda a situação com a ligação da mãe
de Alice, Pedro viajou para São Paulo, para uma conferência de marketing
editorial e, com sorte, para fechar alguns contratos para nós.
Ele retornou há três dias e eu ainda não tive coragem de procurá-lo.
Confesso que estou morrendo de medo do esporro que eu vou levar
por causa da confusão em que me enfiei.
— Cadê? — pergunto, olhando para as minhas mãos.
— Cadê o que, porra?
— A aliança que você me deu pra selar nosso compromisso —
respondo, recebendo um revirar de olhos em resposta. — Parece que somos
casados, pelo jeito que você tá dando piti. Eu hein, nem me comeu gostoso e
já tá todo tóxico aí, Deus me livre.
Pedro suspira e esfrega o rosto com as mãos, se sentando na cadeira
de visita.
— Que merda que você fez, Henrique? — pergunta e eu me faço de
desentendido. — Não me olha com essa cara de santo, quem não te conheça
que te compre. Você fez alguma coisa e tá com medo de me contar. Anda,
desembucha.
Exalo e me preparo para contar, quando ouvimos um toque na porta.
— Com licença — Alice murmura. — Henrique, o diretor do jurídico
ligou e confirmou a agenda de amanhã. Só pediu pra adiantarmos pras nove
e meia, porque ele tem um compromisso às onze. Tudo bem?
— Pode confirmar, Alice, não tem problema. Obrigada.
— Certo, licença. — Assente. — Seu Pedro. — Dá um aceno para o
meu amigo, que retribui.
— O que aconteceu? — ele pergunta assim que ela fecha a porta.
— Como assim?
— Ela tá te chamando de Henrique. Sem o senhor, nem nada —
explica. — Você comeu ela?
— Ei, mais respeito! — Jogo um lápis na sua cara, mas o desgraçado
tem um bom reflexo e o pega no ar. — Eu não comi ninguém. As coisas só
evoluíram um pouquinho na sua ausência. Só um tiquinho de nada.
Faço a minha melhor cara de inocente, mas ele não compra,
estreitando os olhos na minha direção.
— O que você aprontou, cuzão?
Tamborilo os dedos na mesa, ganhando tempo e pensando em como
explicar.
— Não é nada demais, não precisa de alarde — começo, recebendo
um olhar mortal. — Eu e a Alice estamos meio que noivos, agora.
Pedro pisca e eu posso jurar que a veia na sua testa pulsa o suficiente
para eu conseguir enxergá-la de onde estou.
— Explica — diz entredentes.
— Você falou que eu precisava tomar uma atitude, lembra!? —
Aponto o dedo e ele levanta uma sobrancelha. Eu suspiro e me preparo para
contar a verdade. — Eu ouvi uma conversa da Alice com a mãe dela... —
Conto a respeito dos meus infartos, do meu surto e, por fim, da minha ideia
genial. — Diga lá se eu não sou o cara mais inteligente que você já conheceu
na vida?
Pedro me encara como se eu tivesse três cabeças e então abaixa o
rosto, murmurando alguma coisa que eu não consigo entender.
— Cara — ele começa, balançando a cabeça. — Não é possível que
você seja tão maluco assim... o que te deu na cabeça, Henrique? Inventar a
porra de um noivado falso? Assumir um filho que não é teu? O que você
espera? Prender a Alice num casamento com você e ir até o cartório
escondido registrar essa criança?
— Eu espero que ela se apaixone por mim, Pedro — respondo. Há
algo em meu tom que o faz recuar, e ele apenas me escuta, sem uma
expressão de deboche ou irritação no rosto. — Eu espero mostrar pra ela que
eu posso ser o cara que vai fazer ela feliz, que vai cuidar dela, que vai cuidar
do bebê que ela carrega. Eu espero construir uma família com ela, irmão.
— E você vai simplesmente assumir o filho de outro? — pergunta,
incrédulo. — E se esse cara aparecer? E se resolver registrar a criança? E se
quiser fazer parte da vida dele? Você não sabe nem quem é, como é que se
meteu numa enroscada dessa, cara?
— Você não entende, Pedro... — Suspiro. — Nunca vai entender.
Aliás, só vai entender quando se apaixonar por alguém. Quando desejar estar
com alguém mais do que qualquer coisa na vida. Nada disso importa, cara.
Se eu amo a Alice, o que me impede de amar um bebezinho que é metade
dela?
— E a outra metade?
— Vai ser minha — decreto. — Pai não é quem goza, irmão. Pai é
quem cria, quem dá amor, quem cuida, quem apoia. E eu vou ser esse cara
pro filho da Alice, se ela quiser.
— Aí que tá a questão — responde. — E se ela não quiser? Como
você vai lidar com isso? Vai respeitar, desencanar?
— Vou. — Nem hesito. Pensei muito a respeito disso nesses últimos
dias. — Eu quero a Alice, eu a amo. Mas não vou obrigar ela a me
corresponder. Não significa que eu não vou fazer de tudo pra que ela me
ame, porque eu vou. Isso você pode ter certeza. Vou usar todas as minhas
armas, vou lutar com unhas e dentes. Mas se, no final, ela simplesmente não
corresponder, aí eu vou respeitar. Porque eu quero a Alice feliz, acima de
qualquer coisa. Quero que seja eu a fazê-la feliz? Óbvio. Mas se não for, eu
não vou ficar no caminho.
Pedro me encara, um leve toque de surpresa na sua expressão, e
acena.
— Eu só tenho medo, cara. — Suspira.
— De que?
— De você sair machucado nessa história — responde, me fazendo
engolir seco. — Um coração partido é difícil de superar? Não sei, nunca vivi
isso. Mas imagino que seja. Agora um filho, Henrique? Eu conheço você,
você vai se apegar a essa criança. Vai tratá-la como se fosse sua. Vai amá-la.
Eu sei disso. E se no final de tudo não der certo e você precisar se afastar...
isso vai te destruir, irmão.
Desvio o olhar e pisco algumas vezes, porque sei que ele está certo.
Perder a Alice seria um golpe doloroso.
Mas perder a Alice e a ideia de um filho nosso?
Eu sei que me enlouqueceria.
Mas, ao mesmo tempo, eu tenho que, ao menos, tentar.
— Eu prefiro correr esse risco do que viver com a dúvida do que
poderia ter sido.
Sei que Pedro entende que não há nada que ele possa dizer que vá me
fazer mudar de ideia, porque ele apenas assente, suspirando alto.
Eu também tenho medo, meu amigo.
Mas tenho mais medo ainda de perder a chance de conquistar o meu
sonho.
*
— Eu sou a décima-segunda — Alice murmura, quando retorna do
balcão de atendimento e se senta ao meu lado.
Eu estou completamente abismado com a quantidade de gente
enfiada nessa clínica. Isso não pode ser normal, meu Deus. Não é possível.
Rapidamente eu conferi mais de trinta pessoas enfiadas em uma
salinha que caberia no máximo metade disso. Não sabia que era possível
enfiar tanta cadeira em tão pouco metro quadrado, mas eles conseguiram.
Claro, as cadeiras são minúsculas e o espaço entre elas pequeno o
suficiente para que as minhas pernas precisem ficar encolhidas e meus
joelhos prensados contra o encosto da cadeira da frente.
Deus, é possível desenvolver claustrofobia do nada?
— Henrique? — Me sobressalto ao ouvir Alice me chamando, e
então sua mãozinha delicada pousa no meu antebraço, deixando um rastro de
calor. Fito seus olhos negros e constrangidos, e ela morde o lábio antes de
olhar ao redor. — Você não precisa fazer isso — murmura. — Tá lotado
aqui, eu tenho certeza de que você tem muita coisa pra fazer, eu vou passar a
tarde toda aqui. Tá tudo bem, você pode ir. Não tem problema.
Franzo o cenho para ela, me segurando para não ser enfático demais
em contrapor o absurdo que acabou de sair de seus lábios.
Ao invés disso, uma ideia surge na minha cabeça e eu lhe dou um
sorriso, tomando sua mão na minha.
— Você me dá um minuto? — pergunto. Ela me encara confusa, mas
assente. — Eu já volto, tá? Um instante só.
Aperto sua mão e me levanto, me espremendo entre as cadeiras para
sair, e então me dirijo até a saída, pegando meu celular no bolso do paletó.
— Alô? — A voz da minha madrasta preenche os meus ouvidos,
quando ela atende à ligação logo no segundo toque.
— Oi Bebel, tudo bem?
— Tudo sim, meu filho, e você? Aconteceu alguma coisa? —
pergunta, preocupada.
— Eu preciso de uma ajuda sua, na verdade. Nada de sério, prometo.
Ela fica muda por alguns segundos, antes de me responder.
— O que houve, Henrique?
— Você conhece alguma ginecologista-obstetra? Alguém de
confiança, que você possa indicar e que, de preferência, possa atender nos
próximos vinte minutos?
— Obstetra? Isso tem a ver com aquela história de noivado que o
Benji contou pra gente? — Claro que o boca de sacola já espalhou a notícia.
— Sim, Isabel. É pra Alice — respondo. — Ela precisa fazer uma
ultrassom, mas estamos numa clínica popular e, honestamente, ela merece
muito mais que isso. Eu quero levá-la em um lugar que seja mais
confortável, de confiança.
Sem querer julgar nem nada, mas o atendimento daqui é tão
genérico, tão despreocupado. Não me agrada a ideia da minha boneca fazer o
pré-natal dela com tanto descaso. Ela merece ser tratada como uma princesa,
porque é isso que ela é.
— Olha, eu conheço uma médica, só não sei se poderia atender
agora. Me dá um minuto? — pergunta.
— Claro, eu espero.
— Já te retorno, filho — promete.
Eu agradeço e desligo a ligação, me virando para observá-la pela
porta de vidro. Ela está sentada, os braços ao redor do corpo, observando as
pessoas ao redor com cautela, parecendo tão desconfortável quanto eu estou
em vê-la assim.
Uma senhora se espreme para passar na fileira em que ela está, e
acaba pisando nos seus pés, porque ela faz uma careta e a mulher se vira,
pedindo desculpas.
Minha boneca garante que está tudo bem, mas eu vejo a forma como
ela se inclina para massagear os pés, e fecho os punhos ao lado do corpo
para me controlar.
Eu preciso tirar ela daqui.
— Alô? — atendo, agoniado, no primeiro toque, quando Isabel
retorna.
— Ela está na clínica, vai atender a sua última paciente agora,
consegue atender a Alice se você chegar lá em no máximo trinta minutos. É
uma consulta de retorno, então ela não deve demorar tanto.
— Onde fica? — pergunto e ela me passa o endereço. Graças a Deus
não é tão longe, e essa hora tem pouco trânsito, então deve dar certo. — Vou
chegar na hora sim, Isabel, muito obrigado!
— É a Dr. Rebeca Foster, basta dar o seu nome na recepção que
estarão aguardando vocês — me informa. — E Henrique?
— Eu.
— Cuidado, meu filho. Por favor. Tome cuidado.
Não preciso perguntar a que ela se refere porque já sei. É o mesmo
cuidado que todos estão me recomendando, porque me conhecem e sabem
como eu sou.
— Terei, Isabel. Obrigado de novo.
— De nada, meu filho. Quero conhecê-la, viu? Eu e seu pai.
— Vou levá-la pra um almoço assim que der, prometo.
Nos despedimos e eu tiro alguns segundos para me recompor antes
de retornar para dentro.
— Vamos? — pergunto, ao me aproximar, pegando sua bolsa em
minhas mãos e oferecendo a minha mão.
— Pra onde? Eu não posso perder a minha vez — responde, surpresa.
— Confia em mim, Alice? — peço, com a mão estendida em sua
direção e um olhar suplicante. — Vai dar tudo certo. Eu prometo.
Ela me olha, indecisa, desviando o olhar entre meu rosto e minhas
mãos, até que coloca a sua na minha, e eu entrelaço nossos dedos, ajudando-
a a se levantar.
Eu cuidarei dela, daqui para frente. O tanto que ela me permitir, eu
cuidarei dela.
16 – Alice

Ela demonstrou tanto prazer


De estar em minha companhia,
Que eu experimentei uma sensação
Que até então não conhecia
Tão Bem – Lulu Santos

— Onde nós estamos? — pergunto, assim que ele estaciona na frente


de um prédio. — Henrique, o que você fez?
Não pode ser o que eu estou pensando.
Ele não faria isso, não tem motivo algum.
— Vamos fazer a ultrassom e ver como tá esse bebê — me responde,
desligando o carro e desafivelando o seu cinto.
Eu fico em choque enquanto ele sai do carro e dá a volta, abrindo a
minha porta e estendendo a mão para mim.
— O que? — pergunto, incrédula.
— Vamos? A médica já está nos esperando, chegamos certinho no
tempo. — Ele diz, olhando o relógio, e simplesmente se inclina sobre mim e
remove o meu cinto, tomando minha mão na sua e me fazendo sair do carro,
com delicadeza.
Ele prontamente pega a minha bolsa e põe no seu ombro, e pousa a
mão na minha lombar, travando o seu carro e me incentivando a andar em
direção à entrada da clínica.
Aquilo ali é mármore nos degraus da entrada?
— Henrique. — Paro bruscamente, fazendo-o me encarar de cenho
franzido. — Eu não tenho condições de pagar nem por uma informação
numa clínica dessas, que dirá uma consulta com ultrassom. Você
enlouqueceu?
Ele segura meus ombros, inclinando o corpo para olhar melhor em
meus olhos.
Nunca tinha parado para pensar na nossa diferença de altura, mas
agora, nessa situação, eu me sinto tão pequena, como uma formiga, enquanto
ele paira sobre mim, imponente. De um jeito estranho, porém, ele não me
assusta.
— Alice, confia em mim, lembra? — pede.
— Mas...
— Não se preocupa com preço, com o custo de nada. Eu te trouxe,
não foi? — pergunta, e eu assinto. — Então pronto, confia em mim. Vamos?
— Mas eu já tinha até pago o exame na outra clínica! — exclamo.
Cento e vinte reais, à vista, porque eu não tenho cartão de crédito
para passar.
Para esse homem, poderia até não ser muito. Mas para mim, isso é o
supermercado de uma semana, e faria muita diferença no meu orçamento já
apertado.
— Você merece mais do que aquela clínica, Alice. Me deixa fazer
isso por você? Por favor? — suplica. — Se você quiser, eu devolvo o valor
que você pagou lá. Quanto foi? — pergunta, fazendo menção de pegar a
carteira no bolso do seu paletó, mas eu seguro sua mão, impedindo-o.
— Não! — Se ele vai pagar um exame aqui, não vou fazer ele gastar
ainda mais, me devolvendo o valor que eu gastei na clínica. Afinal, aqui ou
lá, eu vou fazer a ultrassom, não é? — Você tem certeza disso? Ainda
podemos voltar, dá tempo.
Eu saí de lá e a médica ainda não tinha chegado para começar os
exames.
Com certeza daria tempo de voltar e ainda pegar a minha vez.
— Deixa eu fazer isso, por favor. Entra comigo, confia em mim.
Nós ficamos em uma troca de olhares que parece dizer muito mais do
que eu estou pronta para escutar, até que eu assinto, timidamente, ganhando
um sorriso lindo de resposta. Ele me puxa novamente, abrindo a porta
gigantesca desse lugar, e eu arfo ao enxergar o interior.
O piso é todo de porcelanato imitando mármore (ou pode até mesmo
ser de mármore de verdade, vai saber). O forro de gesso é cheio de sancas
desenhadas em formas orgânicas, adornadas com spots e fitas de led em um
tom amarelado, o que deixa o ambiente muito aconchegante.
Há apenas cinco cadeiras dispostas em uma pequena recepção.
Cadeiras não, poltronas, todas estofadas em um tecido que só de
olhar já sei que deve ser confortável demais, muito, mas muito superior às
cadeiras de plástico comuns da outra clínica.
Uma recepcionista loira muito simpática sorri para nós, por detrás de
um balcão de atendimento todo em MDF, com detalhes de algum material
dourado, muito bonito.
— Boa tarde, senhor Lacerda? — ela pergunta a Henrique, que sorri.
— Sim, eu mesmo. Boa tarde. Temos uma consulta com a Dra.
Foster. Acredito que a minha madrasta tenha ligado ainda pouco. Minha
noiva precisa fazer uma ultrassom. — Cada vez que ele me chama de noiva
parece tão surreal quanto a primeira, e não sei se um dia vou me acostumar
com isso.
— Claro, senhor. A paciente deve estar saindo a qualquer momento e
já chamamos vocês. Podem se sentar, fiquem à vontade. — Ela aponta para
as poltronas e Henrique faz sinal para que eu sente primeiro, se ajeitando ao
meu lado. — Gostariam de alguma coisa enquanto esperam? Uma água, um
chá? Temos suco de laranja também, caso deseje.
Gente rica é outra coisa, né? Daqui a pouco ela me oferece uma
massagem nos pés.
— Quer alguma coisa, querida? — Meu cérebro entra em curto-
circuito com o termo que sai de seus lábios e eu apenas nego com a cabeça,
recebendo um sorriso da moça. — Tem certeza, não tá com sede? —
pergunta baixinho, quando ela se afasta.
— Eu tô bem — murmuro, olhando ao redor. — Henrique, uma
consulta aqui deve custar uma fortuna.
Minha cabeça não para de martelar o quanto ele está gastando me
trazendo aqui, e questionando o porquê. Não faz sentido, não tem o menor
cabimento.
— Alice, para de pensar nisso — pede, apertando minhas mãos. —
Só relaxa, tá bom? Vamos ver como o bebê está, saber se tá tudo certo, não
tem porque se preocupar.
Não consigo responder, então apenas assinto, correndo meus olhos
pelas paredes cobertas de papel de parede e para os quadros enormes, com
pinturas abstratas, que enfeitam o lugar.
— Você pode agendar o seu retorno com a Vanessa e nós nos vemos
daqui quinze dias, ok? Qualquer problema, pode me ligar no meu número
pessoal. Essa garotinha tá apressada, mas vamos segurá-la aí por mais
algumas semanas, pra ela ficar mais forte. Mantenha o repouso, por favor,
nada de estrepolias.
Uma mulher muito grávida sai do consultório, acompanhada de um
homem alto e negro e uma mulher de meia-idade, loira, muito elegante, com
um jaleco branco.
— Pode deixar, doutora, vou amarrar ela na cama se precisar — o
homem brinca, arrancando uma risada dela.
— Olha lá que foi exatamente esse tipo de coisa que nos colocou
nessa situação — ela devolve, fazendo um homem daquele tamanho ficar
completamente vermelho e envergonhado.
A médica sorri, abraçando os dois, que se dirigem para a
recepcionista, e então vem na nossa direção.
— Eu juro que pensei que o primeiro herdeiro dos Lacerda a vir no
meu consultório seria o seu irmão, o Benjamin.
Henrique ri, se levantando e cumprimentando a mulher.
— Muito obrigado por nos atender de última hora, Dra. Foster. Isabel
teceu muitos elogios a seu respeito — meu chefe comenta.
— Por favor, apenas Rebeca — pede. — Pelo que entendi, teremos
bastante contato nos próximos meses, certo? — pergunta, e ele assente. — E
essa moça linda? — se dirige a mim.
— Essa é Alice, minha noiva — responde, olhando para mim e
sorrindo. — Alice, essa é a Dra. Rebeca Foster, sua nova obstetra. Minha
madrasta a recomendou, você pode ficar tranquila.
Forço um sorriso para a médica e me levanto, apertando a sua mão.
— Prazer, doutora.
— Apenas Rebeca, por favor. Vamos entrar e conversar um pouco
sobre esse bebê? — pergunta, e eu aceno.
Antes de entrar no consultório, porém, seguro Henrique pela barra do
paletó e pergunto baixinho.
— Minha nova obstetra? Não é só um exame, Henrique?
Ele faz uma expressão culpada e eu suspiro.
— Vamos entrar, ver como vai ser a consulta e depois conversamos,
ok? — sugere e eu o observo por um momento, antes de concordar. — Então
vamos.
Faz menção para que eu entre primeiro, e logo nos sentamos de
frente para a médica.
— Então, Alice — ela começa, sorrindo. — Me conte um pouco
sobre você. Há quanto tempo descobriu a gestação?
— Hum... quase duas semanas — respondo. — Estou completando
sete semanas hoje, na verdade.
— Olha, que coisa boa! Talvez já consigamos escutar o coraçãozinho
desse neném daqui a pouco! — exclama, me fazendo sorrir. — E como tem
sido o seu acompanhamento, você já fez algum exame, ultrassom?
— A médica que eu fui me passou alguns exames de sangue, eu já
fiz, mas não saiu o resultado ainda. E quanto à ultrassom, hoje seria a
primeira — explico.
— Perfeito então, querida. Vou só fazer algumas perguntas de praxe
para você antes de começarmos, ok? — Eu aceno positivamente e ela
começa a me perguntar sobre o meu histórico de doenças na família, se
tenho alguma comorbidade, como estou me sentindo em relação aos
sintomas e uma série de outras perguntas que tomam os próximos vinte
minutos de consulta. Ela anota tudo em seu computador, atenta a cada
resposta minha.
Bem parecido com a última consulta (contém ironia).
— Ela tem conseguido comer melhor no café da manhã, não é? —
Henrique se intromete, olhando para mim.
— Sim, as saladas de frutas e as omeletes têm descido bem.
Principalmente a omelete — confesso e ele sorri.
— Bom saber — responde, satisfeito.
— E quanto ao seu histórico, Henrique? Há algo que nós devamos
considerar aqui? — a médica pergunta e um silêncio constrangedor preenche
o consultório.
— É... — começo, tímida, e ele segura a minha mão, dando um
aperto.
— O bebê não carrega o meu DNA, doutora, mas é meu. Só isso que
importa. — Seu tom não abre brechas para questionamentos e eu preciso
engolir um pouco para conter a emoção que me domina.
Sei que faz parte da farsa, mas ele precisa soar tão sincero?
Aliás, ele precisa mentir aqui?
Nunca que a minha mãe vai ter algum conhecido nessa clínica para
descobrir a verdade. Não tem porque fingir.
— Certo — a médica responde, sem se abalar. — Vamos aguardar o
resultado dos exames que você já fez, e se for necessário pedimos mais
alguns complementares. Pode ser assim? — Eu assinto, e ela sorri. — Vamos
ver esse neném, então? Sei que devem estar ansiosos.
— Ah, bastante, doutora! — Henrique exclama, empolgado.
Deus, me ajude.
— Alice, você pode ir até o banheiro e se trocar. Há uma bata
descartável na prateleira da direita, você pode tirar toda a roupa e colocá-la.
Nessa idade gestacional, só é possível ver o bebê através da transvaginal,
tudo bem?
Ela vai enfiar um negócio dentro de mim na frente do meu chefe.
Alguém me mate.
Sigo sua orientação e me troco, retornando para o consultório e
vendo o Henrique parado, de costas para a maca, encarando a parede, de
braços cruzados.
Entendo rapidamente que é a sua tentativa de me deixar confortável e
evitar ver algo inapropriado, e confesso que isso mexe comigo. Acho fofo.
— Vamos lá? Pode se deitar aqui e colocar os pés nos apoios, mamãe
— orienta. — Papai, pode se sentar próximo a cabeça dela, aí nesse
banquinho. — Aponta para um banquinho de rodinhas ao lado da maca.
Ouvi-la chamando ele de papai me dá até um taquicardia.
Henrique assente, mas permanece de costas, esperando por mim.
Eu me posiciono e, depois de coberta, viro em sua direção.
— Ei — murmuro, recebendo um olhar penetrante. — Vem cá.
Ele se aproxima, se sentando ao meu lado e pousando uma mão no
topo da maca, ao redor da minha cabeça, e a outra na minha, dando um
aperto.
— Prontos? — a médica pergunta e nós dois assentimos. — Pode ser
um pouco incômodo no começo, mas qualquer dor você me avisa, ok?
Eu assinto e faço uma careta quando ela insere o aparelho, coberto
com uma camisinha. Henrique aperta meus dedos e acaricia meus cabelos
com a outra mão, me distraindo.
— Vamos dar uma olhada aqui, hum... — a médica comenta,
mexendo o aparelho e ajustando alguns botões na tela. — Ah! Aqui está.
Deem uma olhada nesse bebezinho.
A tela é apenas um borrão preto e branco, e eu não consigo
identificar nada, mas meu coração se enche de uma emoção tão grande que
transborda pelos meus olhos, apertando a minha garganta.
— É o borrão mais lindo que eu já vi. — Ouço um murmuro e me
viro, me deparando com a imagem do meu chefe completamente hipnotizado
pela imagem na tela.
Me assusta a intensidade do seu olhar, e eu perco a fala por alguns
segundos, até que ele pisca, a expressão de encanto se esvaindo do seu rosto,
e me encara, com um sorriso que não chega em seus lábios.
— Parabéns, Alice — sussurra.
Sua expressão pode até estar neutra, mas eu consigo enxergar em
seus olhos toda a emoção que vi há um minuto, o desejo, o carinho, a
veneração.
E isso me apavora.
O que se passa na cabeça do meu chefe nesse momento?
Porque ele está fazendo tudo isso?
Lembro bem de ele me dizer que não estou preparada para ouvir a
verdade, e talvez ele esteja certo. Talvez eu realmente não esteja. Porque a
simples ideia de ele desejar esse bebê tanto quanto eu me deixa petrificada e
eu não sei se consigo lidar com isso.
Não agora.
17 – Henrique

Você é a razão da minha felicidade


Não vá dizer que eu não sou a sua cara-metade
Meu amor, por favor, vem viver comigo
Meu Abrigo - Melim

Eu já sabia que seria difícil me controlar durante a ultrassom, mas


nada me preparou para a emoção que eu senti ao ver o pequeno borrão
naquela tela.
Era simplesmente a coisa mais linda que eu já vi na vida e eu precisei
fazer muito, mas muito esforço para não derramar algumas lágrimas quando
a médica virou a tela para nós. Não queria assustar Alice, não queria que ela
percebesse o quanto a situação toda estava mexendo comigo, mas foi difícil
demais.
Aquele borrãozinho tomou todo o meu coração desde o primeiro
segundo que eu o vi e agora eu tenho ainda mais certeza de que esse plano
precisa dar certo.
Tem que dar certo.
Ou eu vou enlouquecer ao me separar deles.
— Vamos ver se conseguimos ouvir o coraçãozinho, papais? — a
médica pergunta e eu engulo seco, porque se só a imagem já me afetou tanto,
ouvi-lo me deixará de joelhos. — Hum, vamos ver, vamos ver... — Ela move
o aparelho dentro de Alice, que faz uma careta de desconforto e eu acaricio
os seus cabelos, finalmente comprovando que são sim, tão macios quanto eu
imaginava.
— Você tá bem? — pergunto, olhando para ela.
Ela me encara, seus olhos negros expressivos e carregados de
emoção, e acena, um sorriso trêmulo despontando em seus lábios rosados.
— Olha só, preparados? — a médica pergunta, mexendo em uns
botões na tela. — Aqui está, um coraçãozinho forte e potente.
O som preenche o consultório e eu ofego, completamente sem ar.
É a coisa mais incrível que eu já vi na vida. Indescritível. Surreal.
— É normal ser tão rápido assim? — pergunto, porque não consigo
nem distinguir um batimento do outro, ouvindo apenas um som constante e
lindo, que parece música para os meus ouvidos.
Eu ouviria esse som como uma música em replay, sem parar, a noite
inteira, se fosse possível.
— É super normal, papai, não se preocupe. — Meu coração dispara
cada vez que ela me chama assim e a ideia só se infiltra na minha mente,
sorrateira e voraz, tomando conta de tudo.
Eu quero ser o pai desse bebê.
Meu Deus, como eu quero ser o pai desse bebê.
Parece até que todo o amor que eu carregava em meu peito por Alice
foi duplicado e transferido para esse serzinho que ainda nem nasceu,
automaticamente, sem que eu sequer percebesse.
— É tão lindo... — ela sussurra, tomada pela emoção, e algumas
lágrimas escapam de seus olhos, escorrendo pelas bochechas.
Eu as limpo com meus dedos, aproveitando a chance de acariciar o
seu rosto levemente, e ela sorri, o sorriso mais lindo que eu já vi, e meu
coração até erra uma batida.
Amor, se você soubesse...
— Vou imprimir algumas cópias da ultrassom pra vocês, ok? — a
médica oferece e nós dois acenamos, porque não há nada que eu queira mais
na vida agora do que mais uma prova de que esse bebê é real. — Alice, você
pode se trocar. Está tudo perfeito com o bebê, todas as medições dentro da
normalidade, não há nada com o que precise se preocupar.
— Quando eu vou fazer a próxima ultrassom? — ela pergunta e eu
espero a resposta atento, porque também quero vê-lo de novo o mais rápido
possível.
— Obrigatoriamente, a gestante deve fazer três ultrassons durante a
gestação, uma em cada trimestre. Elas variam entre a simples, que acabamos
de fazer, e a morfológica, que é mais complexa — explica. — Mas, como eu
tenho o aparelho aqui no consultório, costumo fazer o exame todo mês,
durante a consulta de acompanhamento. Tanto pra ver se tá tudo certinho,
quanto pra agradar um pouquinho o coração de vocês.
— Essa morfológica é a que vai verificar anormalidades? — eu
pergunto. Li um pouco a respeito nas minhas pesquisas, mas ainda fiquei
com dúvidas.
— Isso, a morfológica é recomendada no final de cada trimestre, e
obrigatória para os dois primeiros, no mínimo. Nela, nós conseguimos
analisar a estrutura óssea do bebê, checar a presença de qualquer indício de
deficiência ou questão que possa gerar preocupação — pontua. — Nós
vamos fazer a primeira na sua décima segunda semana de gestação, que é a
idade gestacional ideal. A segunda será no final do segundo trimestre, entre a
vigésima e a vigésima quarta semana. Caso vocês queiram, faremos mais
uma lá pela trigésima, mas é opcional, porque qualquer situação já teria sido
identificada anteriormente.
— Vamos fazer sim, doutora — decreto. — Tudo o que for possível
pra garantir que o bebê vai nascer saudável.
— Mas olha, — ela começa, olhando para nós dois — não quero
vocês preocupados com isso, viu? O bebê de vocês aparenta estar muito
bem, sem qualquer indício de preocupação. A morfológica é um exame de
prevenção, e as chances de encontrar alguma anormalidade ainda são bem
menores se comparadas a uma gravidez saudável. Não fiquem nervosos,
especulando, pesquisando mil condições que estão na internet só para
preocupar vocês. Confiem em mim, vai dar tudo certo. E se, por algum
motivo, detectarmos algo, iremos conversar juntos e pensar na melhor forma
de lidar com isso, ok? — recomenda. — A gestação é um momento lindo e
sensível, e não deve ser manchada com preocupações desnecessárias.
Curtam a notícia do bebê de vocês, apenas.
Alice assente, fazendo menção de se levantar, e eu a ajudo, tomando
cuidado para não ver nada inapropriado.
— Vou me trocar, ok? — pergunta e eu assinto, vendo-a ir até o
banheiro.
— Aqui, papai. — A médica me entrega cinco cópias da ultrassom,
em formato de polaroid, e eu rapidamente pego a minha carteira para
guardar uma, antes que a Alice retorne.
Não sei se ela me permitiria ficar com uma, e não quero arriscar.
— Obrigada, doutora, pela atenção e por aceitar nos ver tão em cima
da hora.
Ela sorri, lavando as mãos em uma pia perto dos aparelhos, e
retornando para a sua mesa.
— Não há de que, Henrique — responde. — Isabel é uma amiga
muito querida e é um prazer acompanhar a gestação do netinho dela.
Suas palavras me fazem perceber o quanto a minha família será
afetada com essa história toda de noivado e bebê.
O filho ou a filha de Alice, se tudo der certo, será o primogênito da
nova geração dos Lacerda. O primeiro neto, o primeiro sobrinho.
Deus, ele ou ela será tão, mas tão mimado. Socorro.
Alice sai do banheiro, vestida novamente em sua roupa de trabalho, e
retorna para o meu lado.
— Tudo certo? — pergunto e ela assente.
— Eu vou esperar o resultado dos exames antes de te receitar
qualquer vitamina, certo? Você sabe quando eles ficam prontos? — a médica
pergunta, vindo até nós.
— O último prazo é na sexta-feira — responde.
— Então vocês podem agendar um retorno com a Vanessa para
segunda que vem, e nós analisamos os resultados e eu vejo a necessidade de
alguma suplementação, ok? — sugere e nós dois concordamos. — Enquanto
isso, muito líquido, evite bebidas com gás, comidas processadas e cheias de
condimentos. Abuse das frutas e dos sucos, vão te ajudar na manutenção das
taxas de vitaminas, e também te deixar saciada e nutrida. Muitas verduras e
legumes também, não deixe de comer carboidratos, porque precisa de
energia. E lembre-se, gravidez não é doença, só é preciso um pouco de
equilíbrio e respeito ao seu corpo. Você se conhece melhor que ninguém,
respeite isso.
— Quando podemos descobrir o sexo, doutora? — eu pergunto,
ansioso.
Alice me olha de esguelha e eu percebo seus lábios lutando contra
um sorriso.
— É possível ver pela ultrassom a partir da décima sexta semana,
Henrique. Mas não é garantia, depende muito da posição do bebê. Há o
exame de sexagem, que pode ser feito a partir da décima segunda semana.
Muitos pais vêm usando essa opção, até pra fazer os tais chá-revelação.
— Mas é perigoso? — pergunto.
— De forma alguma — nega. — É um exame de sangue, no qual
analisamos a presença ou ausência de cromossomo Y em fragmentos de
DNA presentes no sangue. Não oferece qualquer risco para a mãe ou para o
bebê.
Eu assinto e olho para Alice.
— Vamos decidir como preferimos, né? — Mordo a língua para
conter o querida que quer escapar, porque já dei bandeira demais por hoje.
Lembro bem dos olhos esbugalhados de Alice quando eu a chamei
assim mais cedo, na recepção. Preciso tomar mais cuidado para não a
assustar.
Nos despedimos da médica e marcamos o retorno para segunda, no
fim da tarde, de modo a não prejudicar tanto o nosso expediente. O bom de
ser por hora marcada é que não há necessidade de perder uma tarde toda na
fila, aguardando a nossa vez.
Saímos do consultório e eu conduzo Alice para o carro, abrindo a
porta do passageiro.
— Posso te levar em um lugar antes de te deixar em casa? —
pergunto.
Ela me olha desconfiada, mas depois assente, e eu sorrio, ajudando-a
a se acomodar no carro e dando a volta para tomar o meu lugar.
Meu coração está a ponto de explodir de felicidade e empolgação,
tanto que eu sinto dificuldade em me conter, mas sei que preciso.
*
— Vamos comer? — Alice me pergunta, quando eu paro o carro na
frente do meu bistrô favorito.
— Vamos sim, mas não aqui — explico. — Vou só buscar umas
coisas, me espera?
Ela assente e eu saio do carro, entrando e me dirigindo ao balcão de
atendimento.
— Boa tarde, seu Henrique — meu atendente preferido me
cumprimenta.
— Oi Rodrigo, boa tarde. Você pode separar pra mim dois
sanduíches de frango com ricota e ervas, uma garrafa de suco de laranja e
um cupcake de red velvet? Pra levar.
O rapaz assente, preparando o meu pedido com agilidade, e eu olho
no relógio, vendo que são quase cinco da tarde, perfeito para os meus planos.
— Mais alguma coisa, seu Henrique?
— Vocês por acaso vendem vela? — pergunto. — Sabe, aquelas
pequeninas, de aniversário?
— Olha, pior que não. Mas espera — ele coloca a sacola no balcão e
se dirige até a área dos fundos, retornando logo em seguida. — Sabia que
tinha uma aqui, ainda. Fizemos um aniversário coletivo no início do mês, e
aí sobrou. Pode ser?
Era uma velinha pequena, branca, perfeita para o que eu planejei.
— Perfeito, Rodrigo. Só preciso arrumar um isqueiro — murmuro,
pensando em como vou conseguir.
— Vou colocar uma caixinha de fósforos junto, tá? Tem uma que tá
no finzinho, não vai fazer falta.
— Muito obrigado, cara, de verdade. — Sorrio para o rapaz. —
Quanto deu?
— Tudo ficou trinta e dois e cinquenta, o senhor pode ir direto pro
caixa enquanto eu arrumo aqui. — Assinto, indo até o caixa e pagando o
pedido, antes de retornar até Rodrigo. — Nessa aqui tá os sanduiches, — me
entrega uma sacola de papel — e nessa tá o cupcake. Tá numa caixinha, pra
não estragar. — Outra sacola. — E aqui tá o suco, a vela e os fósforos. —
Uma sacola plástica dessa vez.
— Muito obrigado, Rodrigo, você me salvou. — Puxo uma nota de
vinte e entrego ao rapaz, que tenta negar, mas eu insisto.
Conheço o dono daqui, sei que ele não se oporia a um agrado desses.
— Obrigado, seu Henrique. Bom lanche, volte sempre!
— Pode deixar, até a próxima.
Retorno para o carro, abrindo a porta de trás e colocando as coisas no
chão, atrás do banco do motorista, sob o olhar curioso de Alice.
Entro e afivelo meu cinto, dando-lhe um sorriso misterioso e ela
estreita os olhos.
— O que é isso, pra onde vamos? — pergunta.
— Surpresa. — Pisco, recebendo um bufar, antes de colocar o carro
em movimento.
Quero surpreendê-la com uma pequena comemoração pela ultrassom
e por ouvir o coração do bebê. Quero começar a inserir momentos só nossos
nessa nova rotina e, com sorte, fazê-la enxergar que nós dois funcionamos
bem juntos.
Passinhos de bebê, mas sempre para a frente.
Eu tenho poucos meses para conquistá-la e, depois de ver aquele
borrão lindo na ultrassom, eu estou mais motivado do que nunca.
18 – Alice

Coração não é tão simples quanto pensa


Nele cabe o que não cabe na despensa
Cabe o meu amor, cabem três vidas inteiras
Oração – A Banda Mais Bonita da Cidade

— Que lugar é esse? — pergunto, quando passamos por um portal


grande e entramos em uma rua de bloquetes, cercada de árvores pelos dois
lados.
Depois que saímos do bistrô, ele dirigiu por uns vinte minutos, a
paisagem da cidade ficando para trás à medida que entramos em uma área
mais isolada, na parte mais rica de Santa Consolação, onde ficam os
condomínios de luxo e residem as famílias donas de quase todos os
empreendimentos do município.
— Estamos quase chegando — responde, enigmático.
Nos aproximamos de um portão de ferro, fechado, e ele abaixa o
vidro para falar com um rapaz na guarita.
— Boa tarde, seu Henrique — ele cumprimenta. — Veio ver o seu
Afonso?
Ele vai me levar pra conhecer a família dele? Ele é louco?
— Não, Jorge, viemos só fazer um piquenique no mirante. Tá
liberado? — pergunta, e o guarda assente.
— Tá sim, pode ficar à vontade.
Henrique agradece e o guarda abre o portão, liberando a nossa
passagem.
— Você cresceu aqui? — pergunto.
Ele dirige por alguns minutos, sem me responder, até que para o
carro em frente a uma espécie de parque particular, com uma fonte enorme,
jorrando água, e algumas árvores, banquinhos e mesinhas de ferro
espalhados e, ao fundo, uma mureta delimitando o espaço, com uma vista de
cima de toda a cidade.
É absurdamente lindo.
Henrique abre a porta e sai, dando a volta no carro para abrir a minha
e me ajudar a descer. Ele pega as sacolas atrás do seu banco, antes de travar
o carro e segurar a minha mão, me puxando para uma das mesinhas.
— Papai comprou uma casa nesse condomínio logo que inaugurou.
Comprou na planta na verdade — explica, enquanto me ajuda a me sentar.
— Eu tinha uns dois anos, eu acho, não lembro. Só sei que as primeiras
memórias da minha infância são da mamãe me trazendo pra andar de
velocípede aqui. Benji vinha na bicicleta dele, com o papai do lado, e a
mamãe me empurrava no meu carrinho vermelho. A gente fazia um
piquenique, via o sol se pôr aqui no mirante e voltávamos pra casa quando já
estava escuro.
Ele carrega uma expressão nostálgica tão bonita, que me comove.
Parece até que ele não está aqui, perdido nas suas lembranças.
— Depois que a mamãe morreu, — recomeça, seu olhar perdendo
um pouco do brilho — papai não queria mais vir aqui. Doía demais, eu acho.
Mas eu sentia falta dela, e pensava que aqui seria o lugar certo pra me sentir
perto dela. Então, eu fugi de casa.
— Henrique... — murmuro, recebendo um sorriso sem humor.
— Peguei minha mochila, coloquei um pacote de biscoitos, uma
garrafa de água e duas camisas. Subi na minha bicicleta e saí, enquanto
todos estavam dormindo, de manhã bem cedinho — conta. — Vim aqui,
porque queria ver o sol nascer. Não entendia muito bem de geografia, então
não sabia que o sol não nasce e se põe no mesmo lugar. — Eu não aguento o
sorriso e ele me acompanha. — Fiquei horas vendo o dia clarear e esperando
a porra do sol aparecer. Nunca olhei pra trás. Moleque burro.
— Ai, meu Deus. — Solto uma risada. — E quem te achou?
— Benjamin — responde. — Lúcia colocou a casa abaixo quando
não me achou na cama de manhã, quando foi me acordar pra ir pra escola.
Papai não sabia se acudia a Bianca, que ainda era um bebezinho chorando e
com fome, ou se procurava por mim. Foi Benji que pensou que eu poderia
estar aqui. Ele também sentia falta da mamãe, mas era mais responsável que
eu, sempre foi.
— Brigaram com você? — pergunto.
— Lúcia me deu um peteleco na testa e depois me abraçou — conta,
rindo. — Papai brigou daquele jeito calmo dele, dizendo que não podia me
perder também. E Benji prometeu me trazer no mirante toda vez que eu
quisesse, pra ver o pôr do sol.
— Você tinha quantos anos quando ela morreu?
— Sete. Benji tinha onze e Bibi só tinha 8 meses.
— Meu Deus... — murmuro. — Ela nem lembra dela, né?
— Não... — responde. — Sempre diz que as suas lembranças são
emprestadas de nós. Têm muitas fotos espalhadas pela casa, mesmo depois
que papai se casou com Isabel, mas não é a mesma coisa.
— Eu imagino...
Só consigo imaginar mesmo.
A ideia de um amor materno tão grande, que vence até mesmo a
morte, é tão abstrata para mim como uma história de contos de fadas. Só
existe na minha imaginação, nos meus desejos mais profundos, nos meus
sonhos escondidos, secretos, inalcançáveis.
— Sempre que acontece alguma coisa boa, ou quando eu preciso
pensar em algo, ou até mesmo quando tô triste e preciso de colo, de um
carinho, eu venho aqui. Sempre nesse horário, pra ver o pôr do sol —
explica. — Parece que eu sinto a presença dela, sabe. Como se ela me
envolvesse, me acalmasse, me trouxesse exatamente aquilo que eu preciso,
sem nem mesmo perceber. Não sei como explicar...
Ficamos em silêncio por alguns minutos, só observando a paisagem.
É pouco mais de cinco e meia, e nessa época do ano, o sol tende a se
pôr mais cedo, por volta de seis e meia.
— Obrigada por me trazer aqui, por compartilhar esse lugar comigo
— comento, recebendo um olhar que penetra a minha alma e arrepia cada
centímetro da minha pele.
É como se Henrique se despisse para mim, me deixando enxergá-lo
por completo, e o que eu vejo me deixa sem ar. Me apavora, me assusta, me
confunde e, principalmente, me preenche de uma ânsia que eu mesma não
consigo explicar.
— Vamos comer? Faz muito tempo desde a sua última refeição. —
Desvia o assunto, abrindo uma das sacolas e tirando duas embalagens de
sanduíches. Pega a garrafa de suco e franze o cenho, olhando para dentro da
sacola. — Acabei esquecendo de pedir copos, desculpe. — Oferece a garrafa
a mim. — Toma, bebe.
Eu pego o suco, destampando-o, enquanto ele abre as embalagens e
me oferece um sanduíche. Eu tomo um gole, molhando a garganta seca, e
mordo o lábio, antes de oferecer a garrafa para ele.
— Toma um pouco. — Ele me encara, confuso, e eu insisto. — Eu
não me importo de dividir, toma.
Ele hesita mais um segundo antes de pegar o suco e o leva até os
lábios, bebendo um gole. É um gesto simples, mas a ideia de que a minha
boca estava naquela mesma superfície há poucos segundos, me deixa um
pouco tonta.
Comemos nossos sanduíches em silêncio, olhando a paisagem que
nos cerca, e eu me pego pensando se em algum momento eu já me senti tão
em paz como agora. É como se cada coisa estivesse exatamente no lugar em
que deveria estar, como se o mundo fizesse total sentido e eu tivesse a
certeza de que as coisas darão certo e tudo vai ficar bem. Confesso que é
uma sensação diferente e muito gostosa.
— O que tem na outra sacola? — pergunto, limpando a boca depois
de terminar de comer.
— Ah — ele exclama, me olhando com uma expressão empolgada.
— Esse aqui é pro bebê. — Ele abre a sacola e retira de lá uma caixinha
branca, quadrada. — Fecha os olhos — pede, e eu franzo o cenho. — Anda,
fecha.
Sua expressão divertida me contagia e eu obedeço, um sorriso nos
lábios, e aguardo para ver o que ele aprontou.
— O que é isso? — pergunto, escutando uns barulhos e sentindo
cheiro de queimado.
— Pode abrir.
Meu coração acelera disparado quando abro os olhos e me deparo
com Henrique sorrindo, segurando um pequeno cupcake com uma vela
branca acesa no topo, usando a mão para tapar o vento.
— O que... — balbucio, e ele aumenta o sorriso.
— Temos que comemorar o semanassário do bebê, ué. — Dá de
ombros, como se não fosse nada, como se estivesse comentando sobre o
tempo.
Esse homem existe?
— Você existe? — verbalizo a pergunta, porque eu não consigo
evitar.
É demais, tudo isso tem sido demais e me deixado confusa ao ponto
de eu repensar cada coisa que já considerei certa na vida.
— Existo sim, ó eu aqui — responde, fazendo graça e me arrancando
uma risada que vem misturada com um soluço emocionado. — Ei, sem
lágrimas. Quero só sorrisos lindos. Agora assopra. O bebê não pode ainda,
tem que ser você. Faz um pedido, hein?
Eu olho para esse homem que, há uma semana, era apenas o meu
chefe, e agora se mostra uma pessoa completamente diferente, que parece ter
escolhido como propósito de vida confundir a minha cabeça.
Fito o cupcake lindo, com a vela que já ameaça se apagar, e fecho os
olhos, mentalizando um pedido antes de assoprar.
Por favor, que ninguém saia machucado dessa história.
Abro os olhos e dou de cara com o sorriso gigantesco desse homem,
que mais parece uma criança empolgada.
Nunca torci tanto para que um pedido se realize.
19 - Henrique

Eu já tentei disfarçar,
Mas quando estou olhando para você
Eu não consigo ser forte
Porque você faz o meu coração disparar
One Thing – One Direction

— Mas cadê o povo dessa casa? — pergunto, entrando na casa do


meu pai naquele domingo, para o nosso tradicional almoço.
— Aqui atrás, filho! — Escuto a voz do meu pai chamar e me dirijo
até a área gourmet dos fundos, encontrando ele junto de Isabel, meu irmão e
Lúcia, todos sentados ao redor da mesa. — Demorou, filho. Pensei que nem
vinha também.
— Também? — pergunto.
— Bibi disse que vai ficar em casa — Benji responde. — Tô
preocupado. Você viu como ela tava naquele dia lá no cursinho, e domingo
passado mal almoçou e foi embora.
Minha irmãzinha terminou com o ficante na semana passada,
correndo para o colo do Benji, com o coração partido. Foi bem no dia em
que aconteceu toda a questão com Alice, então eu não conversei direito com
ela, mas no domingo ela realmente estava cabisbaixa, e nem quis comer o
bolo de chocolate que a Lúcia fez para a sobremesa.
— Será que aconteceu alguma outra coisa? — pergunto.
— Não sei, mas acho que vou dar uma passada lá depois do almoço
— Benji responde. — Só pra ter certeza de que ela tá bem.
— Vou com você — decreto. — Quero é saber quem é esse palhaço
que tá fazendo minha pituca chorar. Você sabe?
— Ela me contou, — meu irmão diz e eu me aproximo, pronto para a
briga — mas eu não vou te dizer.
— Qual é, Benji? Bora dar um pau nesse cuzão — reclamo. — Ai!
— Lúcia me encara, irritada, com a sua arma preferida na mão: o pano de
prato. — Doeu, Lulu!
— É pra doer mesmo! — resmunga. — Vou lavar essa tua boca com
sabão, seu moleque atrevido!
Eu tenho trinta e dois anos, mas essa senhora ainda me trata como
um moleque catarrento.
— Mas ele é, Lúcia! — argumento. — Você precisava ver a tampinha
toda chorosa no escritório do Benji! Acha que ele não merece uns socos?
— E quem vai dar? Você, por acaso? — pergunta, debochada.
— Ei! — retruco. — Você fique sabendo que eu tenho um gancho de
direita potente, viu?! Pergunta pro meu treinador de Muay Thai. Deixa essa
paspalho aparecer na minha frente pra ver se eu não derrubo ele em um
segundo. — Faço até o movimento pra simular o golpe, e Lúcia revira os
olhos, indo até a cozinha. — Ninguém acredita no meu potencial, um
absurdo isso — resmungo.
— Deixa de ser idiota, Henrique — diz meu irmão. — Mas
concordo, vamos lá ver a Bibi depois do almoço. Não custa nada ver se tá
tudo bem.
— Vou com vocês — papai oferece. — Vai que a minha princesinha
tá precisando de um colo, né? Deve querer o papai.
— Vocês têm que parar de tratar a Bianca como se ela fosse uma
adolescente — Isabel comenta, revirando os olhos. — Ela já é uma mulher,
tem vinte e seis anos, é uma empresária muito bem sucedida. Pode escolher
os seus pretendentes sem a interferência de vocês três, intrometidos.
— Ora, Isabel, até tu, Brutus? — Coloco a mão no peito, para
reforçar o golpe. — A gente só tá querendo proteger a miniatura.
— Proteger é uma coisa, — contrapõe. — tratá-la como bebê é outra.
— Mas ela é o nosso bebê! — papai exclama.
— Vocês são bobos demais, meu Deus do céu — Isabel responde. —
Deixem a Bianca viver, amar, errar, aprender as coisas sozinha. Quando ela
pedir colo, como aconteceu com o Benjamin, tudo bem. Mas não sufoquem
a menina, senão ela vai acabar perdendo a paciência com vocês!
— E eu vou achar é graça! — Lúcia completa, voltando com uma
bandeja nas mãos. — Agora chega dessa história, deixa a menina Bianca
quieta no canto dela. O que eu quero saber, garoto, é essa história de noiva
grávida, que você ainda não explicou.
Ela coloca a comida na mesa e se vira para mim, com as mãos na
cintura e me fazendo engolir seco.
Posso confessar uma coisa?
Eu morro de medo da Lúcia.
Juro.
Essa senhorinha cansou de puxar a minha orelha (literalmente)
enquanto eu crescia, e eu sempre tive muito mais receio de contar qualquer
coisa para ela do que para o papai.
— Lucinha, meu amor — começo, me aproximando devagar como se
ela fosse um tigre prestes a atacar. — Foi o Benji que fez fofoca pra você,
né? Aposto que contou um monte de mentiras. — Olho feio para o meu
irmão, que só balança a cabeça.
— Não contei mentira nenhuma — retruca. — Você não ficou noivo
da sua secretária grávida, por acaso? Ou eu entendi errado?
Cerro ainda mais os olhos para ele, que me encara completamente
inabalado, o cínico. Só jogou a bomba para fazer o inferno para mim e
pronto.
— Meu filho, que loucura é essa? Como é que você me inventa uma
coisa dessas, Henrique? — papai pergunta.
Eu suspiro, me sentando e observando os olhares atentos da minha
família.
Não dá mais para escapar dessa explicação.
— Pai, eu sou completamente apaixonado pela Alice — confesso,
percebendo a forma como ele suaviza o olhar. — Quando eu escutei ela
contando pra mãe sobre a gravidez, parecia que eu ia morrer. Eu sei que é
arriscado, sei que eu posso me ferrar demais com essa história, mas... —
Suspiro. — Não posso deixar escapar a chance de conquistar ela, de fazer ela
me enxergar como mais do que o chefe dela.
— Henri — Isabel começa, se inclinando para segurar a minha mão.
— Você precisa tomar muito cuidado, meu filho. Acredita em mim, DNA
não é nada. Sangue, biologia, nada disso significa alguma coisa quando se
tem amor. E você tem tanto amor no seu coração, meu menino. Por favor,
não vai se machucar nessa história, não se envolva demais...
Eu solto um riso sem humor, desviando o olhar para as mãos.
— Impossível, Bebel... — respondo, chamando-a pelo apelido que
lhe dei quando era um adolescente. — Eu já amo tanto aquela mulher... e no
segundo que eu vi aquela ultrassom... — Puxo a carteira do bolso, retirando
a polaroid que a médica me deu e traçando aquele borrãozinho lindo com a
ponta dos dedos. — Meu coração parece até que dobrou de tamanho, só pra
caber tanto amor...
— Qual é o seu plano? — papai pergunta, pegando a foto para
admirar também.
— Cuidar dela? — Dou de ombros. — Tentar fazer ela me ver com
outros olhos? Enxergar que funcionamos bem juntos? Que poderia dar certo?
— Solto um suspiro pesado. — A verdade é que eu não tenho um plano, pai.
Eu sei o que eu quero, o que desejo, mas não faço ideia de como chegar lá.
Só tô vivendo um dia de cada vez... fazendo o que posso, quando tenho
chance. — Pego a ultrassom de volta, guardando-a.
— Tipo o exame, quarta-feira? — Isabel pergunta, apontando para a
carteira.
— Sim, tipo isso — respondo, com um aceno. — Ela não merecia
passar horas na fila daquela clínica horrível. E pelo pouco que me contou, a
consulta com a médica tinha sido ruim também...
— E você vai pagar por tudo? — Benji pergunta. — Ela aceitou isso?
Sei que meu irmão tem os dois pés atrás quando a questão é dinheiro
e mulheres, então me apresso em defender minha boneca.
— Ela quase esfrega a minha cara no asfalto quando viu onde
estávamos — explico. — Mas eu insisti e, no final, acho que saber o que
seria o melhor pro bebê pesou muito na decisão dela. A doutora Rebeca foi
muito atenciosa, deu pra perceber que ela se sentiu bem durante a consulta.
Acho que vai aceitar continuar com ela...
Ou melhor, eu espero que sim.
Temos retorno amanhã, no fim da tarde, e até então Alice não disse
nada contra.
— Bom, não tem nada que a gente possa te dizer que vá mudar a sua
opinião, né? — papai pergunta e eu aceno. — Então só posso dizer que torço
pra que dê certo, meu filho. Que vocês dois se acertem e que ela te dê uma
chance. — Sorrio para ele, em agradecimento. — E que eu quero conhecê-la
antes do meu neto nascer.
— Até lá, eu espero que ela já carregue o nosso sobrenome, pai —
confesso.
Eu espero mesmo.
Torço que não demore a perceber o nosso potencial. Que me
enxergue como homem e compartilhe do meu desejo.
*
— Quero arrancar meus olhos — Benji resmunga, quando saímos do
elevador, no térreo do prédio de Bianca.
— Ainda acho que a gente deveria ter ficado lá — reclamo. —
Aquele lenhador vai deflorar nossa bebê, sem piedade. Vocês viram o
tamanho dele?
— Henrique, cala a boca — meu irmão pede, choramingando. — Eu
tô tentando não pensar nisso!
— Minha menina, tão crescida, meu Deus — papai lamenta. — Pra
onde foi o tempo?
Papai, Benji e eu viemos ver como Bianca estava, depois do almoço,
apesar das recomendações de Isabel e Lúcia.
Pois então.
Deveríamos ter escutado as duas.
— Aquela sem vergonha, mal saiu das fraldas e fica se esfregando
com um brutamontes daquele — resmungo. — Qual a necessidade daquela
barba toda, hein? Parece até um viking. De cabelo grande e tudo!
Aparentemente o novo namorado da Bianca é muito diferente do
paspalho do ex dela. Renan, o cara com quem minha irmã ficou por uns
quatro anos, era todo playboyzinho, metido a fresco, sempre arrumadinho e
cheio de pompa.
Já esse projeto de lenhador que ela arrumou agora parece um
armário, todo musculoso, enorme, cheio de pelos e cabelos e completamente
inapropriado para a princesinha que nós criamos!
E pior!
Ainda estava lambendo chocolate do pescoço dela, como se ela fosse
uma atriz pornô!
Me diz, para que?
Hein?
Ãh?
— Nunca mais eu entro em um lugar sem bater — Benji completa, se
escorando na lataria do seu carro. — Tô traumatizado, meu Deus.
— Parece que foi ontem que ela andava de bicicleta de rodinhas —
papai continua a choramingar. — Oh, Deus, por que?
Suspiro, esfregando as mãos no rosto, e sinto o meu celular vibrar no
bolso da calça. Puxo o aparelho e meu coração acelera ao ver o nome na tela.
Boneca: Oi.
Não perco tempo em digitar uma resposta, ignorando os lamentos
dos dois.
Eu: Oi, Alice. Tudo bem?
Boneca: Tudo...
Estranho a resposta vaga e me preocupo.
Eu: Aconteceu alguma coisa?
Ela demora um minuto para responder e meu dedo coça para ligar e
ver se está tudo bem. E se ela estiver sentindo algo? E se for uma
emergência?
Boneca: Não sei nem porque mandei mensagem na verdade.
Desculpa te incomodar. Não é nada demais. Bom domingo.
Ah, mas nem fodendo.
Me afasto dos dois e disco o número de Alice, esperando alguns
toques até que ela atenda.
— Alô?
— Oi, Alice. — Mantenho um tom de voz calmo, para não a
espantar. — Aconteceu alguma coisa? Você tá sentindo algo?
— Não, Henrique — nega, suspirando. — Desculpa te assustar, eu
só... não sei porque mandei mensagem, como disse, foi um erro. Não queria
atrapalhar o seu domingo, me desculpa.
— Alice — interrompo-a. — Você nunca me atrapalha, acredite. —
Ela não responde, mas eu consigo ouvir a sua respiração no outro lado da
linha. — Está em casa?
— Sim — murmura. — Geralmente, a Carina vem pra cá nos
domingos, ou eu vou pra lá, mas ela precisou ir pra São Paulo, é aniversário
de casamento dos pais dela. Enfim, eu só...
Ela não completa, mas nem precisa.
Já entendi.
Ela se sentiu sozinha.
A felicidade que me preenche em perceber que ela decidiu me
procurar numa situação dessas é indescritível.
Eu não posso perder essa chance.
— Você já almoçou? — pergunto. É pouco depois das três, mas não
sei como é sua rotina aos finais de semana.
— Já sim — responde. — Comi um bife com arroz. Ia procurar algo
pra lanchar, na verdade.
— O que acha de uma panqueca de frango? — pergunto, lembrando
que o bistrô vende umas bem gostosas, e que abrem aos domingos à tarde.
— Eu gosto, mas...
— Chego em meia hora, pode ser? — sugiro.
Ela fica em silêncio, e eu quase penso que a ligação caiu, mas então
me responde baixinho.
— Você vem pra cá?
— Posso? — pergunto. Ela demora a dar uma resposta, e eu fico
torcendo para que ela aceite. Não há nada que eu queira mais do que passar
qualquer tempo com ela.
— Tudo bem. — Meu sorriso é enorme e eu seguro a empolgação ao
respondê-la.
— Então até daqui a pouco, Alice.
— Ok — murmura, antes de desligar.
Me viro e flagro meu pai e meu irmão me encarando, com expressões
curiosas.
— Vou ver a Alice — confesso, enxergando a compreensão em seus
rostos.
— Boa sorte — Benji deseja, me dando um sorriso. — Cuidado e
boa sorte — completa.
Papai assente, concordando e eu me despeço de ambos, antes de
destravar o meu carro e entrar.
Tenho um lanche para providenciar.
20 - Alice

E quando eu me sentia como um casaco velho


Debaixo da cama de alguém
Você me vestiu e disse que eu era o seu favorito
Cardigan – Taylor Swift

Que merda que eu fiz?


A carência é uma desgraçada sem qualquer limites do ridículo, não é
possível!
Minha melhor amiga viajou ontem à noite para São Paulo, para
participar da comemoração de aniversário de casamento dos seus pais, e eu,
cara-de-pau, completamente sem vergonha alguma, achei uma boa ideia
mandar mensagem para o meu chefe, vulgo noivo falso, para bater papo!
É muita falta de noção mesmo, Deus.
O que mais me impressiona é que, ao invés de me ignorar ou de me
mandar caçar o que fazer, Henrique se ofereceu para comprar um lanche
para mim e vir até aqui, me fazer companhia.
Mais doido que eu, só ele mesmo, pelo visto.
Observo o meu apartamento, mordendo o lábio ao perceber o quanto
está desarrumado.
— Ai Deus, ele vai pensar que eu sou uma porca! — gemo, me
levantando e tratando de recolher as roupas espalhadas e levá-las para a
lavanderia, arrumando os livros que eu deixei na mesinha de centro e
limpando a mesa de jantar, com os restos do meu almoço.
A pia está cheia de louças, então eu me apresso para lavar tudo,
lamentando não ter uma lava-louças em que eu possa enfiar toda a bagunça,
escondida.
Se bem que, se ele vai trazer lanche, precisamos de copos limpos, já
que eu não disponho de muitas opções, morando sozinha.
Passo um pano na mesa e no balcão da cozinha, espirrando um pouco
de aromatizador pelo ambiente e abrindo mais a única janela que têm no
apartamento, minúscula, torcendo para que fique um pouco mais arejado.
Henrique deve estar acostumado com climatização vinte e quatro
horas por dia, então espero que não estranhe o ventilador pequeno que eu
tenho na sala, só para abafar um pouco do calor.
Olho para mim mesma, torcendo o lábio ao enxergar o short de lycra
e a camiseta de banda que estou vestindo. Sigo para o meu quarto, decidindo
tomar um banho bem rápido, só para tirar o suor, e melhorar um pouco a
aparência.
Porque eu estou tão preocupada assim com o que ele vai pensar?
Não sei e me recuso a pensar nisso agora.
Volto para o quarto e abro a porta do meu guarda-roupa de solteiro,
tentando decidir o que seria mais apropriado para vestir para receber a visita
do meu chefe/noivo falso.
Seria uma situação cômica se eu não estivesse tão nervosa.
No final, opto por uma bermuda jeans simples, de cós alto, e um
cropped preto, de alcinhas, que valoriza um pouco o meu busto
desavantajado.
Alice, Alice, porque diabos você quer valorizar seu peito uma hora
dessas?
Balanço a cabeça para espantar os pensamentos e amarro o cabelo
em um coque frouxo, no topo da cabeça, penteando a minha franja e
arrumando alguns fios soltos ao lado do rosto. Quando termino de passar um
gloss transparente nos lábios, escuto as batidas na porta e prendo a
respiração.
— É só um lanche. Toma juízo. Ele é seu chefe. Tá te fazendo um
favor. Você nunca viu ele de outro jeito. Não é porque ele tá todo fofo com o
seu bebê, que vai mudar alguma coisa. Ele é seu chefe. Seu chefe —
murmuro para mim mesma, como um mantra, enquanto me aproximo da
porta.
Confirmo que realmente é ele pelo olho mágico e puxo a respiração
antes de abrir, me deparando com o seu sorriso enorme e expressão
empolgada.
— Boa tarde, noivinha, tudo bem?
É só uma farsa, é só uma farsa, é só uma farsa.
— Oi, boa tarde — cumprimento, fazendo sinal para que entre. —
Não precisava ter se incomodado em vir até aqui, Henrique. Eu não deveria
ter mandado mensagem.
Ele se vira para mim, parado no meio da minha sala, segurando uma
sacola de papel com a logo daquele bistrô em que comprou os sanduíches na
quarta-feira.
— Você prefere que eu vá embora? — me pergunta. — Eu não quero
te incomodar, Alice. Só pensei que talvez fosse gostar da companhia. — Dá
de ombros.
Mordo o lábio, desviando o olhar do dele.
— Eu só não quero atrapalhar o seu domingo. Não sei se tinha
planos, se tava ocupado — respondo.
— Não tinha planos, não estava ocupado — explica, colocando a
sacola na mesinha de centro. — Almocei com meu pai, fui visitar minha
irmã, fui traumatizado e depois você mandou mensagem. Na verdade, me
salvou, porque eu estava ao ponto de procurar a ponte mais alta da cidade e
me jogar.
— Santa Consolação não tem pontes — comento, rindo.
— Eu construiria uma, só pra poder me jogar lá de cima — responde.
— Então, não tenho planos e quero ficar. E você? — questiona. — Quer que
eu vá embora?
Eu olho para ele e para a sacola com o lanche que providenciou.
— Não... — murmuro.
— Não aceite só pelo lanche, eu não o levaria comigo se fosse —
brinca, mas seus olhos carregam certa seriedade. — Se você quiser, eu vou,
Alice, basta me dizer. Não quero te deixar desconfortável.
A questão é justamente que ele não me deixa desconfortável.
Nem um pouco.
E isso me deixa inquieta.
— Fica — peço, em um sussurro, incapaz de pedir que vá embora.
Eu não quero ficar sozinha, mas principalmente, não quero que ele se vá.
— Então eu fico — assente, sorrindo.
Olho para os lados, indecisa, até apontar para o sofá.
— Sente-se, eu vou pegar uns copos e uns talheres pra gente comer
— digo, vendo a forma como ele parece grande demais para o meu sofá
minúsculo.
Aliás, ele parece enorme demais para o meu apartamento inteiro.
O lugar todo tem três cômodos. A área “social”, que dividi entre sala
de estar e cozinha, com uma pequena mesa de dois lugares na qual eu fazia
algumas refeições. Costumo comer mais na sala, assistindo algo na minha
TV de 21”, presente da Carina.
Não que eu não consiga assistir perfeitamente à TV sentada na mesa.
É pequeno assim.
Além disso, tem um quarto (o meu) e um banheiro para completar o
espaço.
Ah, não vamos esquecer da minha enorme área de serviço, mofada e
inundada, em que eu odeio entrar com todas as minhas forças.
Pego dois copos e dois jogos de talheres e retorno para a sala,
encontrando Henrique abrindo a sacola e retirando duas embalagens de
plástico com as panquecas, uma garrafa de suco e um potinho com um mini
pudim de leite.
— Você trouxe pudim? — pergunto, animada.
— Sim, você gosta?
— Amo! — exclamo.
— Acertei então. — Me dá um sorriso satisfeito e eu me odeio por
corar sob o seu escrutínio. Olho mais atentamente para as embalagens e
percebo que são parecidas com as que ele traz o meu café da manhã, exceto
pelo fato de que essas têm um adesivo com a logo do bistrô e as informações
de contato.
— É lá que você compra o meu café da manhã? — pergunto.
Ele trava, a mão na tampa da garrafa de suco, até que coça a
garganta, continuando a abri-la.
— Como? — pergunta. Posso jurar que sua pele está alguns tons
mais avermelhada, e ele evita me encarar, se concentrando em dividir o suco
nos copos que eu trouxe.
— As embalagens são parecidas, mas essas aqui têm o adesivo. Eles
começaram a usar agora, ou você compra o café em outro lugar? —
pergunto.
— É... n-não... — Ele gaguejou? — Não é de lá. Eu providencio em
outro lugar.
Seu olhar não encontra o meu em momento algum e eu estranho o
seu jeito.
— Se você puder me dizer onde fica, dia desses eu tava querendo
aquela omelete, mas não sabia onde comprar — peço e ele esboça um
pequeno sorriso, mas logo disfarça.
— Ah, é bem longe, sabe. — Dá de ombros. — Outro dia eu te conto
onde é, quem sabe te levo lá, combinado?
Eu penso em retrucar, mas antes que o faça, meu celular começa a
tocar.
Pego o aparelho, congelando ao ver que se trata da minha mãe
fazendo uma chamada de vídeo.
— O que foi? — Henrique pergunta, estranhando o meu jeito.
— É a minha mãe — respondo. — Ligando por vídeo.
— É a primeira vez desde aquele dia?
— Sim. — Por um momento, eu até me esqueci dela e de toda essa
situação horrível, mas agora, o medo de que ela aprontasse alguma retorna
com força.
— Que bom que eu estou aqui então — comenta, se posicionando ao
meu lado e colocando um braço por trás de mim, no encosto do sofá. —
Atenda.
Hesito mais um momento, antes de aceitar a chamada e logo a
imagem da minha mãe aparece na tela.
Faz mais de um ano que eu não via o seu rosto, já que ela nunca faz
questão de me ligar assim, e eu me assusto com o quanto ela parece ter
envelhecido.
Seus olhos estão cobertos com a costumeira sombra marrom e o lápis
preto, deixando-a com uma aparência de adolescente ressacada. A sua pele
parece ainda mais enrugada e eu poderia jurar que ela está completando
sessenta anos esse ano, e não quarenta e nove.
— Alice. — Sua voz, enrouquecida pelo cigarro, preenche os meus
ouvidos, naquele mesmo tom seco de sempre. — Que bom que vocês dois
estão juntos, assim já ficam sabendo — diz, olhando para mim e Henrique.
— Mãe — cumprimento. — Sabendo de que? — Minha espinha gela
e Henrique apoia a outra mão no meu joelho, acariciando a pele, em uma
tentativa de me acalmar.
— Quero conhecer melhor o pai do meu neto, então vou passar uns
dias com vocês na semana que vem. Chego na terça-feira — anuncia, como
se fosse a coisa mais normal do mundo.
— Como é que é? — pergunto, chocada.
— Isso que você ouviu, Alice — repete. Henrique permanece calado,
mas sua mão aperta mais o meu joelho quando ela eleva o tom para mim. —
Preciso conhecer melhor esse seu noivo, — seu tom é quase debochado,
como se duvidasse — saber como foi que você arrumou um partido desses.
Ela deixa claro o quanto acha absurdo Henrique ter se interessado
por mim e minha garganta se embola de tristeza.
— Mas você não pode...
— Chego na terça — me interrompe. — Espero que vocês me
busquem na rodoviária, meu ônibus chega às cinco. Arrumem um quarto
decente pra mim no apartamento de vocês.
— O que... — murmuro, sem reação.
— Vocês não são noivos? Claro que moram juntos, não é? —
questiona. — Podiam até fazer um tour pelo apartamento agora, espero que
seja melhor que aquele muquifo em que você morava antes.
Agradeço aos céus pela qualidade ruim da câmera do meu celular,
porque ela não percebe que nós estamos exatamente no meu muquifo.
— Mãe...
— Algum problema em receber a sua mãe, Alice? — pergunta,
irritada.
Antes que eu possa responder, porém, Henrique me interrompe.
— Vai ser um prazer recebê-la, senhora Monteiro — responde à
minha mãe, em um tom seco, certamente irritado pela sua postura. — Se nos
der licença, temos um compromisso agora. Até terça.
Ele toma o celular das minhas mãos e desliga a chamada, se virando
para mim.
— Você é louco? O que vamos fazer agora? — pergunto, saindo do
transe.
— Não é lógico? — me pergunta, sereno. — Você vem morar
comigo.
É isso.
Ele enlouqueceu de vez.
21 – Henrique

E têm certas coisas que eu adoro,


E têm certas coisas que eu ignoro,
Mas eu tenho certeza de que sou seu.
Certain Things – James Arthur

É possível amar e odiar uma pessoa ao mesmo tempo?


Porque é o que eu estou sentindo nesse momento, em relação à mãe
da Alice.
Mulherzinha filha da puta, viu? Eu já imaginava que ela era uma
peça rara, pelo tom da conversa que tivemos quando essa história começou,
mas, pelo visto, a criatura é bem mais sem limites do que eu imaginava.
Se convidar, ou melhor, obrigar a gente a recebê-la para uma “visita”
é de um abuso tão, mas tão grande, que eu ainda estou um pouco chocado.
Mas, dito isso, a mulher colocou uma oportunidade de ouro bem no
meu colo, então, talvez, eu também queira comprar um colar de diamantes
para ela, em agradecimento.
Não que eu vá, óbvio.
Primeiro que a minha boneca me mata.
Segundo que ela não merece nem uma bijuteria barata, que dirá uma
joia dessas.
— Henrique, você tá doido? — Alice pergunta, saindo do seu transe
depois da minha sugestão.
Doido por você, amor.
— Que outra opção nós temos, Alice? — devolvo. — Pelo que eu
entendi, a sua mãe não pediu a nossa autorização pra vir visitar. Ela vem, é
fato. E o que acha que vai acontecer quando ela descobrir que nós dois não
moramos juntos, que você ainda mora aqui? Ela vai desconfiar, é isso que
você quer? Eu só quero ajudar...
Acho que eu estou perdendo dinheiro, sabe?
Devia investir na minha carreira de ator.
A Globo tá me perdendo.
— Essa história tá indo longe demais, meu Deus do céu — murmura,
colocando as mãos na cabeça. — Além de atrapalhar toda a sua vida, te fazer
gastar uma fortuna com aquela médica, agora eu ainda vou invadir a sua
casa? Isso é um absurdo, não dá.
Oh amor. Invada a minha casa, invada a minha vida toda.
— Alice, você não tá invadindo nada — contraponho, segurando as
suas mãos e fazendo-a me encarar. — Acredita em mim, eu não tô fazendo
nada forçado, nada que eu não queira. Só... me deixa te ajudar...
— Por que? — Lá vem essa pergunta de novo.
Ela não está pronta para ouvir a verdade.
Ela não aguentaria saber os meus motivos. Ainda não.
— Porque eu quero — disfarço. — Porque não me custa nada ajudar,
não vai me prejudicar nem me atrapalhar em nada. Confia em mim, Alice?
Ela morde o lábio, causando um arrepio no meu corpo, e eu preciso
me segurar para não a agarrar aqui mesmo.
— Como vamos fazer isso? — pergunta, receosa, e eu me controlo
para não sair pulando por esse apartamento, tamanha a minha felicidade.
Fake dating e, agora, convivência forçada? As coisas não podiam
estar melhores.
Eu devia contratar um de nossos autores para escrever a nossa
história quando tudo isso acabar. Garanto que seria um best-seller.
— Primeiro vamos comer. O bebê deve estar com fome e não
queremos chatear ele, né? — brinco, recebendo um sorrisinho em resposta.
Termino de abrir as embalagens, entregando uma das panquecas para
ela e contraindo o maxilar quando ela leva o primeiro pedaço à boca e solta
um gemido.
— Nossa, é muito bom mesmo — elogia, comendo mais um pouco.
— Eu gosto bastante de lá — comento. — Foi Lúcia quem me
apresentou, uma vez que acompanhei ela ao médico e, quando saímos, ela
tava com fome.
— Lúcia? — pergunta.
— É a governanta da casa do meu pai, eu comentei a respeito dela
antes. Tá com a gente desde que Benji nasceu — explico. — Tá mais pra
dona da casa, porque ela quem manda em tudo, a gente só obedece e paga o
salário dela. — Alice sorri, continuando a comer, e logo percebo um
pouquinho de molho no canto da sua boca. — Tá sujo aqui, ó — aviso,
fazendo sinal para o local.
— Aqui? — pergunta, passando os dedos no outro lado da boca.
Eu pego um lencinho dentro da sacola e balanço a cabeça, me
inclinando para limpar eu mesmo.
— Não, aqui.
Passo o lenço com delicadeza na sua pele, vendo a forma como seus
lábios se entreabrem, quase como um convite, que eu quero muito, mas
muito aceitar.
Mas apenas termino minha tarefa, embolando o papel e colocando na
mesinha, me afastando dela, sem dar bandeira do quanto o momento me
afetou.
Alice pisca, saindo do transe, e cora lindamente, desviando o olhar
do meu.
— Obrigada — murmura.
— Então. — Limpo as mãos, colocando as embalagens vazias de
volta na sacola, para jogar fora, e tomando o último gole do meu suco. — Eu
vou organizar umas coisas e no início da noite venho te buscar. Pode ser? —
pergunto.
Alice arregala os olhos, quase se entalando com a última mordida da
sua panqueca.
— Hoje? — exclama.
— Sim, ué. — Dou de ombros. — Sua mãe chega depois de amanhã.
Amanhã temos aquela reunião de manhã, então não dá pra matar trabalho. E
de tarde temos o retorno na doutora Rebeca. É melhor cuidarmos disso hoje
logo e, se virmos que esquecemos de algo, resolver rapidinho amanhã.
— Mas... mas... — gagueja, olhando para os lados.
— Faz o seguinte, foca só nas suas roupas hoje — sugiro. — Sua
amiga chega hoje à noite, né? — Ela assente. — Amanhã, você marca com
ela pra te encontrar aqui depois do almoço, se ela puder, eu te libero e vocês
vêm arrumar o resto das coisas. Te pego na hora da consulta e de lá já vamos
pra casa. O que me diz?
— É... pode ser, eu acho — responde, ainda bastante indecisa, mas
eu não deixo a dúvida tomar conta, me levantando e esfregando as mãos.
— Combinado então. Volto perto das sete, ok? A gente leva suas
coisas pra casa e providencia um jantar gostoso — ofereço, sorrindo por
dentro ao ver a sua expressão completamente perdida. — Até daqui a pouco.
— Dou um afago em seus cabelos e sigo para a porta, dando-lhe um
tchauzinho antes de sair, enquanto ela permanece lá, parada.
Ah, amor, você não sabe o que te espera. Agora eu vou usar
artilharia pesada.
*
— Eu espero que seja uma emergência mesmo, cuzão — Pedro
resmunga, ao entrar no meu carro. — Eu marquei um happy hour hoje com
uns parças.
— Já, já você vai pra sua orgia, não se preocupa — explico.
Depois que saí do apartamento de Alice, mandei mensagem para o
meu melhor amigo, dizendo que passaria para buscá-lo em alguns minutos,
porque precisava da ajuda dele para uma coisa.
— E pra onde nós vamos em pleno domingo à tarde? — me
pergunta.
— Ao shopping — respondo, vendo a forma como me encara,
incrédulo.
— Você, — aponta para mim — o cara menos materialista que eu
conheço, quer ir fazer compras em um domingo à tarde?
— Não é pra mim — retruco.
— Ah. — Assente. — Tá explicado então. Henrique presenteador
ataca novamente.
Pedro sempre zoa com a minha cara, porque eu detesto comprar as
coisas para mim, mas gastaria todo o meu dinheiro comprando presentes
para aqueles que eu amo. Não consigo evitar, de todas as linguagens do
amor, presentes e atos de serviço são minhas preferidas.
Apesar de que, o dia que eu escutar um “eu te amo” dos lábios da
Alice, palavras de afirmação vai subir para o top um muito rapidamente.
— Você não reclama quando eu te dou mais um relógio caro pra sua
coleção, né, abusado? — provoco, recebendo um dedo do meio.
— Não faz mais que a sua obrigação — resmunga. — Pra te
aguentar? Nem um relógio cravejado de diamantes faria jus ao sacrifício.
— O seu problema, Pedro Ribeiro, é que você me ama demais —
provoco, esticando a mão para apertar a sua bochecha e levando um safanão.
Entro no estacionamento subterrâneo do único shopping da cidade e
logo encontro uma vaga bem próximo dos elevadores.
— Mas enfim, qual a missão da vez? — pergunta. — O aniversário
do Benji e do seu pai já passou, da Bianca tá longe ainda. Da Isabel também.
Lúcia? Não lembro. — Tenta adivinhar, enquanto esperamos a caixa
metálica e, assim que ela chega, entramos e eu aperto o botão do terceiro
piso.
— Nada disso — começo, já me preparando para o surto. — Vou
comprar uma aliança de noivado.
Pedro me olha, mais uma vez, como se eu tivesse quatro cabeças, e
pisca.
— O que? Aliança? — exclama. — Henrique, isso não tá indo longe
demais, não?
Explico a situação da visita da mãe da Alice e ele me encara
incrédulo, enquanto saímos do elevador e seguimos para a joalheria em que
costumo comprar.
— Entende? Como é que vamos explicar a falta de um anel no dedo
da Alice? Vê se eu tenho cara de quem pede uma mulher em noivado sem
um diamante, Pedro, me respeita.
Entramos na loja e eu sigo direto para o balcão de alianças.
— Não, realmente — meu amigo comenta. — Você tem cara é de
doido, isso sim. Meu Deus do céu, isso tá virando uma bola de neve de
mentiras! Agora vocês vão morar juntos? Você vai colocar uma
desconhecida interesseira dentro da sua casa? — Me viro, pronto pra socar a
cara dele, quando ele levanta as mãos em rendição. — Tô falando da mãe
dela, cara. Você mesmo disse que a velha é do tipo aproveitadora.
Assinto, fazendo sinal para uma vendedora, que chega até nós,
sorridente.
— Boa tarde, senhores. Em que posso ajudar? — a moça pergunta.
— Eu gostaria de ver anéis de noivado, por favor — respondo e seus
olhos brilham, com certeza pensando na comissão.
— Você é muito emocionado, cara — Pedro murmura. — Me admira
você não ir até a casa do seu Afonso pedir a aliança da sua mãe pra dar pra
Alice.
— Eu jamais usaria a aliança da mamãe em um noivado falso —
retruco. — Quando eu for pedir a mão dela de verdade, aí sim. Por enquanto,
me contento com um anel lindo igual ela. Apesar de ser impossível algo se
comparar a ela.
— Argh, eu vou vomitar. — O infeliz faz cara feia, me fazendo
revirar os olhos.
— O teu problema é a falta de amor na tua vida, amigo — murmuro.
— Deixa só alguém te fisgar.
— Vira essa boca pra lá, agourento.
— Aqui, senhor. — A vendedora retorna. — Essa é a nossa nova
coleção, todas com diamantes de 0,5 a 2,5 quilates, dependendo do corte.
Analiso as opções, tentando enxergá-los na mão direita da minha
boneca, mas nenhum me parece bom o suficiente.
— Hum... não sei... — murmuro, indeciso. — Eles parecem muito
grosseiros, sabe? — explico. — A mão dela é muito delicada, os dedinhos
fininhos de princesa, não sei se algum desses seria o ideal pra ela. — A
vendedora assente, mordendo o lábio, até que arregala os olhos.
— Tem uma opção disponível — diz, indo até o final da bancada e
mexendo em uma gaveta. — Um senhor encomendou para a noiva, mas
parece que o noivado não aconteceu e ele não quis ficar com a peça.
Ela abre a caixinha, revelando um anel pequeno, delicado,
completamente perfeito para Alice.
— É esse. — Não há a menor dúvida.
— Ele é tamanho 14 — explica.
— Perfeito, é o tamanho dela.
— Não vou nem perguntar como você sabe o tamanho do dedo dela,
Henrique — Pedro murmura ao meu lado e eu lhe dou uma olhada feia.
— Ele é de ouro branco, 18K, com um diamante redondo de 0,95 ct,
bem delicado.
— É esse, não tenho dúvidas — afirmo. — Vai ficar perfeito na mão
da minha boneca. — Pego a peça em meus dedos, observando mais de perto
e tentando visualizar. Ela ficaria tão linda com esse anel. — Você teria uma
aliança masculina que combine?
— Pelo amor de Deus — Pedro resmunga e eu lhe dou uma
cotovelada, enquanto a moça vai procurar o que eu pedi.
— Você veio pra ajudar e não pra reclamar — retruco.
— Ajudar em que? — pergunta. — A colocar juízo na sua cabeça?
Impossível, desisto. Você é louco. E mais louca é a Alice, que disse sim pra
essa loucura. Dois loucos, combinam direitinho, podem se vestir de branco.
Só que não pro casamento e sim pro hospício.
— Cala a boca, filho da puta. — Dou um empurrão nele.
— Aqui, senhor. — A vendedora retorna com algumas opções de
alianças masculinas e eu escolho a mais larga, de ouro branco também, para
combinar.
— Pode ser essa aqui, moça. Vou levar os dois, pode embalar. O dela
em uma caixinha separada, tá? — peço e ela assente, feliz.
— Prontinho, senhor. Um solitário de ouro branco e diamante de 0,95
ct, tamanho 14, e uma aliança masculina de ouro branco, de 7mm, tamanho
24. O total deu nove mil, seiscentos e trinta e oito reais. Forma de
pagamento?
— Débito — informo, puxando o meu cartão.
— Você sabe que se a Alice sonhar que você gastou dez mil reais em
alianças pra vocês ela vai surtar, né? — Pedro pergunta, quando eu pego as
sacolas.
— Se ela perguntar, eu vou dizer que são de prata. É mais barato.
— Pelo amor de Deus, irmão, você é louco.
— Por ela, Pedro — respondo, suspirando. — Sou louco por ela.
22 - Alice

E quando um certo alguém


Cruzou o teu caminho
E te mudou a direção
Certo Alguém – Lulu Santos

— Peraí, deixa eu ver se eu entendi — Carina pede, fechando os


olhos.
Assim que Henrique saiu daqui eu corri para o quarto e fiz uma
chamada de vídeo para a minha amiga, aproveitando que ela ainda não tinha
pegado a estrada de volta, para contar sobre a nova confusão da minha vida.
— Carina... — murmuro, cobrindo o rosto com as mãos, enquanto
minha cama está coberta de roupas que eu tento organizar para levar comigo.
— Você vai morar com o seu chefe? — pergunta, me encarando. —
Você é doida? Vocês são doidos? Meu Deus do céu, Alice!
— O que eu ia fazer? — murmuro. — A mamãe jogou essa bomba
do nada e o Henrique aceitou! Como que eu ia negar?
— E aí, agora, além de noiva de mentira, você vai ser coleguinha de
apartamento dele? Como vai ser? Vão dormir de conchinha também? —
debocha, me deixando vermelha como um pimentão.
— Eu não vou dormir com ele! — exclamo. — Ele deve ter mais de
um quarto no apartamento dele, Carina, por favor.
— Ah é? — pergunta. — Então me diz, como é que você vai explicar
pra sua querida mamãe o fato de você não dormir no mesmo quarto que o
seu noivinho?
Travo, enquanto dobro minhas calcinhas, e arregalo os olhos para a
minha amiga.
— Meu Deus!
— Ah, conseguiu entender, gênio?
— Meu Deus, Carina! — exclamo. — Eu não posso dormir com o
meu chefe!
Mas eu sou uma burra mesmo! Como é que não me dei conta de que,
aceitando essa situação, eu estaria dizendo sim para dividir a cama com o
meu chefe?!
— Agora já era, né, dona Alice? — Carina responde. — Você já disse
sim, já aceitou a visita da tua mãe e, pelo que me falou, o homem tá
chegando daqui a pouco pra te levar com ele. E pelo pouco que já me contou
desse teu noivo, ele não é do tipo que aceita não como resposta, hein?
— O que que eu faço agora, amiga? — murmuro, ainda em transe.
— Separa os seus melhores pijamas — debocha.
— Carina! — exclamo.
— Mas é verdade, ué. Por acaso vai dormir com um homem daqueles
com pijama rasgado, Alice? Olha que eu dou na sua cara. Cadê aquele preto
de rendinha que eu te dei de aniversário ano passado?
— Ele é muito revelador, amiga, não! — nego, balançando a cabeça.
— Que nada, Alice, ele é demais comportado — retruca. — Se eu te
mostrar minhas camisolas de renda tu infarta então, se acha aquele demais. É
um conjuntinho de blusa e shorts, nada demais. Nem é curto!
Mordo o lábio, puxando o dito cujo da minha gaveta de pijamas.
Eu tinha usado poucas vezes, achava mais confortável dormir com as
minhas camisas de algodão tamanho GG, que eu comprava especialmente
para dormir.
— E se ele achar que eu tô me insinuando? — murmuro.
Essa situação toda com o Henrique está fugindo do meu controle de
um jeito que eu não gosto nadinha. Mais cedo, quando ele limpou o molho
da minha boca, senti um negócio estranho no peito, algo que eu não estou
acostumada e não me agrada nem um pouco.
Não posso nem sonhar em começar a confundir as coisas entre nós
dois.
Preciso manter muito claro na minha cabeça que tudo isso não é nada
além de uma farsa, e que, assim que eu conseguir pensar em um jeito de me
livrar da minha mãe, tudo vai acabar e nós vamos voltar à nossa relação
apenas profissional, como sempre foi.
Ignoro completamente o jeito que o meu coração se aperta com essa
ideia.
— Ele te conhece, Alice, e o principal, foi ele quem começou com
toda essa história, não você. Não tem motivo nenhum pra ele desconfiar do
teu caráter e pensar algo de ruim a teu respeito — Carina responde, tentando
me tranquilizar. — Você vai levar todas as suas roupas?
— Eu ainda não sei. — Mordo o lábio. — Pensei em levar só uma
mala pequena, até porque a mamãe não pode ficar mais do que uns poucos
dias, né? — divago. — Mas aí me veio na cabeça, ela vai ficar no
apartamento sozinha enquanto nós estivermos na Editora. Não duvido da
capacidade dela em querer futricar nossas coisas e estranhar se eu não tiver
muito por lá.
— Da sua mãe eu não duvido nada, Alice — minha amiga resmunga.
— Acho melhor vocês deixarem é o quarto de vocês trancado, isso sim. Vai
que ela pega alguma coisa de valor.
— Ela não seria capaz... — nego, ainda que, no fundo, no fundo, eu
saiba que estou apenas me enganando.
— Você sabe que sim, mas não vou discutir contigo — retruca. — E
aí, vai levar tudo, então?
— Eu já não tenho muito, amiga, acho que sim.
Puxo a mala pequena de debaixo da cama, a única que tenho, e
separo minha maior mochila para guardar as coisas.
— Vai ser até bom — Carina comenta. — Quem sabe nesse meio
tempo a gente não acha um apartamento legal e você nem precisa voltar praí.
Esse mofo todo não pode fazer bem pro bebê, é melhor evitar mesmo.
Não posso deixar de concordar, afinal, a ideia de sair de vez desse
apartamento é muito convidativa para mim.
— Em, no máximo, uma semana eu tô de volta, amiga.
— Vamos ver, Alice... vamos ver — responde, meio enigmática.
Uma semana, no máximo. Mamãe não vai ficar além disso e eu não
terei mais motivos para ficar lá depois que ela for embora.
Uma semana.
*
— Oi, tá pronta? — Henrique pergunta, assim que abro a porta do
apartamento.
— Acho que sim — murmuro, entrando e sendo seguida por ele. —
Separei minhas roupas, alguns produtos pessoais, livros.
Aponto para as duas mochilas, a mala pequena e duas bolsas médias
que estão no sofá. No final, acabei me empolgando e praticamente
esvaziando o meu guarda-roupa, deixando lá apenas meia dúzia de peças que
eu pouco uso.
Peguei também meus livros, meus produtos de cabelo e cremes de
corpo, alguns itens de decoração que eu gosto, presentes da minha amiga, na
sua maioria, e até mesmo o meu cobertor preferido, um knit[13] que eu me dei
de presente quando Carina me levou em uma feira de artesanato há alguns
anos, e que Henrique estava observando com um olhar curioso.
— Tem edredons lá em casa, sabia? — pergunta.
— Esse é especial. — Dou de ombros.
Ele franze o cenho, olhando de novo para o cobertor como se fosse
seu inimigo.
— Presente de alguém? — pergunta entredentes e eu mordo o lábio.
— Sim. — Ele crispa a boca e acena, soltando um suspiro. — De
mim, para mim mesma — explico, vendo a forma que seu rosto suaviza.
Ele ficou com... ciúmes? Não, isso é um absurdo.
— Ah sim... — Ele se abaixa e corre os dedos pelo tricô. — Parece
ser bem confortável... — murmura.
— É sim, eu adoro — concordo. — Peguei a maioria das roupas e
alguns itens pessoais. Não é muita coisa, não vai ocupar tanto espaço.
— Separei metade do closet pra você — explica, me fazendo arfar.
— Metade da bancada do banheiro também. E mais uma prateleira. Imaginei
que tivesse muito produto pros seus cabelos. — Aponta para o meu cabelo e
seus dedos se abrem de um jeito que até parece que ele quer tocá-los.
— Tenho alguns sim — respondo.
— Tava pensando, seria bom tirarmos algumas fotos juntos, pra
espalhar pelo apartamento. — Arregalo os olhos e ele dá de ombros. —
Sabe, sua mãe pode estranhar.
Não posso negar a sua lógica, porque sei que ela vai analisar cada
movimento nosso, assim como cada centímetro do apartamento, só para
encontrar o que dizer para me atingir. É seu modus operandi, e eu já estou
acostumada, mas morro de medo que respingue em Henrique de alguma
forma e ele se chateie.
— A gente precisa conversar sobre umas coisas, acertar uns detalhes
— digo.
— Vamos fazer isso durante o jantar, pode ser? — sugere e eu aceno.
— Perfeito, então vamos indo? Pronta pra ir pra sua nova casa?
— Temporária — completo, e aquele negócio estranho atravessa o
seu olhar mais uma vez, rápido demais para que eu consiga decifrar.
— Temporária — repete, ainda que seu tom não carregue a mesma
leveza de antes.
*
— Fique à vontade, viu? — ele diz, assim que abre a porta do
apartamento.
Apartamento não, cobertura.
Henrique mora na porra de uma cobertura, de um dos prédios mais
caros de Santa Consolação, a duas quadras da Editora.
É um prédio de apenas seis andares? Sim.
Mas é a cobertura, ainda assim.
— Obrigada — murmuro, entrando a passos lentos.
O hall de entrada já é quase do tamanho da minha sala, e logo se abre
para uma sala de estar ampla, conectada a uma cozinha planejada através de
uma ilha grande, com balcão de mármore branco.
Perto da sacada há uma mesa de jantar de quatro lugares, redonda,
com um grande vaso de flores em cima. Duas portas de vidro dão acesso à
área externa, que contém duas poltronas tão grandes que poderiam ser sofás,
e uma mesinha de café pequena, de dois lugares.
— Ali fica o corredor que dá pros quartos — aponta para a direita,
após a sala de estar. — São três: o nosso, o de hóspedes e um menor que eu
uso de escritório.
Engulo seco quando ele diz nosso, e desvio o olhar, observando os
detalhes da decoração.
— É um apartamento muito bonito, parabéns — comento.
— Obrigado. — Assente, sorrindo. — Eu aluguei mais por ficar perto
da Editora, mas a Bibi me ajudou a decorar e deixar parecendo um lar. Até
que gosto, hoje em dia, apesar de ainda preferir a ideia de uma casa, com
quintal e espaço de sobra.
— Deve ser incrível mesmo — concordo, imaginando como seria ter
uma casa assim para criar o meu bebê.
— Bom, vamos levando suas coisas pro quarto? — sugere. — A
gente pode começar a arrumar um pouco enquanto nosso jantar não chega.
Eu pedi uma lasanha à bolonhesa, tudo bem? Nem perguntei, desculpe.
— Tá perfeito, Henrique, não se preocupe. Eu adoro lasanha —
respondo e ele sorri. Seguimos até a última porta do corredor, que revela a
sua suíte.
É um quarto enorme, com certeza o triplo do meu, com uma porta
dupla que dá acesso a uma varanda privativa.
— Essa varanda é uma das coisas que mais gosto aqui — comenta.
— De manhã cedinho, dá pra ver o sol nascendo lá no horizonte, é bem
bonito.
Ele coloca minha mala e as duas mochilas em cima da cama e eu
congelo, pensando em como será dividi-la com ele.
É tamanho king size, com certeza, até porque Henrique deve ter bem
mais de 1,80m e ficaria desconfortável numa cama comum. Mas ainda
assim, seus dois metros de largura parecem pequenos demais quando penso
em dormir ao lado desse homem.
— Eu pensei em um outro detalhe, que talvez você não tenha
lembrado, mas com certeza sua mãe vai perceber — ele começa, se
aproximando de mim e puxando uma caixinha do bolso. Eu ofego alto assim
que percebo do que se trata. — Ela jamais acreditará no nosso noivado se
você não tiver um anel apropriado.
Nada me prepara para o choque que me toma ao enxergar o anel que
está ali.
— Me diz que isso não é um diamante de verdade — sussurro,
arregalando os olhos quando ele solta uma risada baixa e retira o anel da
caixinha, pegando minha mão direita.
— Tudo bem — murmura, deslizando a peça, que se encaixa
perfeitamente no meu dedo anelar. — Se você preferir, eu não digo.
— Henrique. — Minha voz sai como um sopro, totalmente chocada
com o que estou vendo.
— E claro, eu não poderia ficar sem a minha própria aliança né —
completa, puxando uma segunda caixinha do outro bolso e revelando um
anel grosso, prateado, que parece tão caro quando o que adorna o meu dedo.
— Me diz que isso é de aço — murmuro e, dessa vez, ele gargalha.
— Sim, uhum. É aço sim. — Ele coloca o anel na minha mão e
estende a sua, em um pedido. — Pode colocar em mim?
Deus do céu, no que se tornou a minha vida?
Coloco o anel no seu dedo e encontro o seu olhar, pesado, cheio de
palavras não ditas, e as minhas ficam emboladas na minha garganta, junto
com a emoção que me toma.
— Agora é oficial — sussurra. — Olá, minha noiva.
Nem se eu quisesse eu conseguiria responder alguma coisa
inteligente.
Meu cérebro parece ter entrado em parafuso e eu só pisco, enquanto
ele continua a me encarar.
Que foi que acabou de acontecer, meu Deus?
23 - Henrique

O que a voz da vida vem dizer


Que os braços sentem, e os olhos veem
Que os lábios sejam dois rios inteiros sem direção
Dois Rios - Skank

Cada músculo do meu corpo está tenso e em estado de alerta.


Alice ressona há horas do meu lado, mas eu não consigo
simplesmente ignorar que o amor da minha vida está aqui, na minha cama,
vestindo um baby doll preto pecaminoso, há poucos centímetros de
distância.
Se eu esticar o braço, consigo tocá-la perfeitamente e isso me deixa
louco.
Não que eu vá, óbvio.
Eu jamais me aproveitaria tanto da situação assim.
Mas está sendo um verdadeiro teste cardíaco estar aqui, nessa cama
enorme que parece ter encolhido para a metade do seu tamanho desde que
nos deitamos.
Depois de trocarmos alianças, ajudei Alice a arrumar uma parte das
suas coisas no closet e no banheiro, antes da nossa comida chegar. Ainda
posso sentir a emoção que foi enxergar os seus vestidos pendurados ao lado
das minhas camisas sociais.
Me segurei muito para não tirar uma foto de recordação.
Fiquei feliz ao ver a quantidade de roupas que ela trouxe. Desconfio
muito que ela tenha trazido mais de noventa porcento do seu guarda-roupa e
isso me anima, porque me dá esperanças de que as coisas vão se encaixar
sozinhas daqui para a frente.
Eu realmente espero que a mãe bruxa da minha boneca não fique
tanto tempo conosco, até porque tenho uma forte impressão de que a mulher
faz muito mal à Alice. Não que eu vá ficar calado, obviamente. Se ela
começar de gracinhas ou se eu perceber qualquer indício de que esteja
maltratando a Alice, ah meu Deus, não sei nem do que sou capaz.
Mas enfim, o que eu espero é que, mesmo após a partida da sua mãe,
Alice permaneça comigo, por escolha. É muito utópico, irreal, fantasioso?
Talvez. Mas um homem pode sonhar, certo?
Conversamos um pouco durante o jantar e ela me contou por alto a
respeito da sua família disfuncional. Pelo que me disse, seu pai nunca a
p q , p
assumiu, tanto que só tem o nome da mãe no registro. Foi um namoradinho
da adolescência da sua mãe que fugiu no segundo que ouviu a palavra
grávida sair da boca da garota de dezoito anos.
Infelizmente, mesmo sendo a única inocente na história toda, Alice
foi responsabilizada durante toda a sua vida pela mãe, sendo maltratada e
humilhada em qualquer oportunidade, reduzida a um erro na vida da mulher
que, segundo ela, poderia ter se tornado alguém grande se não tivesse
engravidado cedo.
Ainda que ela tenha disfarçado muito bem e contado toda a história
em um tom de desapego, como se não lhe afetasse em nada, eu sei que Alice
sofre com toda essa rejeição.
Não tem como não sofrer, na verdade.
Minha boneca é uma pessoa muito sensível, amorosa, bondosa.
Ser descartada assim, como um descuido, um erro, um
arrependimento, pela própria família, com certeza é um golpe que machuca
muito a Alice. Seu rosto pode ter ficado impassivo, seus lábios podem até ter
esboçado um sorriso, mas os seus olhos... seus olhinhos expressivos me
contaram tudo o que eu precisava saber.
Alice sofre, sangra com a rejeição, e me mata não poder fazer nada
para ajudar.
Mas uma coisa é certa.
Essa mulher não maltratará Alice aqui dentro.
Não debaixo do meu teto. Não sob a minha supervisão.
Eu vou ficar muito, mas muito atento a qualquer indício, pronto para
defender a minha boneca com unhas e dentes.
Me viro de lado, observando o contorno do seu corpo de costas para
mim.
Depois de jantarmos, o clima ficou um pouco estranho e
desconfortável entre nós. Fiquei com receio de que Alice pedisse para dormir
no outro quarto essa noite, mas ela só pediu para tomar um banho primeiro e
foi para o banheiro da suíte.
Quase fiz um buraco no chão do quarto, enquanto esperava ela
retornar, e meu coração faltou sair pela boca quando ela abriu a porta e se
revelou vestindo esse conjuntinho. Se você me perguntar se ele é indecente,
a resposta sincera será um grande e sonoro não.
Ele não é curto, não é transparente, não é decotado, não é justo.
Ele é o oposto de tudo isso.
De manguinhas curtas, com um decote redondo que não revela nada,
soltinho e confortável e com os shorts chegando no meio das coxas, esse é
um dos conjuntinhos menos sensuais que eu já vi.
Mas ao mesmo tempo é enlouquecedor.
Ele é todo preto, de seda, e a linha do decote tem algumas aplicações
de renda, assim como a bainha dos shorts. Quando ela ficou de costas para
mim, pude ver a perfeição que a bunda redonda dela ficou, coberta pelo
tecido um pouco brilhoso, toda encaixadinha e confortável, gritando pela
minha mão.
E acima de tudo isso, ele é uma perfeita tentação porque é o corpo
dela que está debaixo dele. São as curvas dela que ele esconde, é na pele
dela que ele causa o contraste mais perfeito que eu já vi.
E só isso já é suficiente para me deixar doido.
Seus cabelos estão espalhados pelo travesseiro e é a coisa mais linda
desse mundo. Eles têm um cheirinho de chocolate, não sei se pelo seu
xampu ou algum de seus cremes ou finalizadores, mas é totalmente
inebriante e eu preciso me inclinar um pouco para a frente, só para sentir
mais de perto.
Suas ondas estão mais volumosas hoje, chamativas, perfeitas, iguais
a ela, e eu fecho a mão com força para conter a vontade de enrolar uma
mecha entre meus dedos, como sempre quis fazer.
Acabo de descobrir que dormir com a Alice será uma das coisas mais
torturantes que eu já precisei fazer na vida.
Mas eu sempre desconfiei que tenho uma veia masoquista escondida
em mim.
*
Desperto lentamente, sentindo o meu braço direito adormecido,
formigando.
Pisco algumas vezes, os olhos se acostumando com a penumbra do
quarto, antes de me dar conta de onde exatamente estou.
Não sei em que momento da noite nós nos aproximamos, mas o fato
é que Alice está agora encaixada em meus braços, ambos de lado, um de
frente para o outro, o rosto dela enfiado no meu pescoço e um mar de
cabelos embolados no meu rosto.
Deus do céu, eu não tenho saúde para isso.
Aproveito que ela está no sono pesado para desfrutar alguns minutos
mais desse paraíso, mas sei que preciso me desvencilhar dela antes que
acorde, porque, a conhecendo, o pouco que pude perceber nos últimos dias,
ela surtaria demais se acordasse agarrada a mim desse jeito.
Afundo o nariz em seus cabelos, sorvendo o máximo possível
daquele cheiro absurdamente gostoso que exala dela, e tento memorizar a
sensação do seu corpo tão encaixado no meu, do meu braço na curva da sua
cintura, da sua mão segurando a barra da minha camisa, da sua respiração
batendo na pele do meu pescoço.
Pareço até um viciado, mas a verdade é que por ela eu sou
exatamente isso.
Um louco, sedento por qualquer pedacinho, qualquer migalha que ela
me entregue, porque um grama dela é melhor do que tudo que já
experimentei nessa vida.
Com muito esforço, consigo me soltar do seu corpo, deixando-a
sozinha na cama, uma visão que eu sei que me sustentará durante o tempo
que levar para que ela seja minha. Vou até o banheiro, conferindo o relógio e
vendo que o dia está prestes a amanhecer.
Escovo os dentes e mudo de roupa, me preparando para a minha
corrida matinal. Com toda essa tensão de dormir ao lado dela, agora mesmo
que eu não posso perder a oportunidade de desestressar e gastar energia,
senão é capaz que eu fique ainda mais louco do que já sou.
Volto para o quarto e observo a perfeição deitada na cama mais uma
vez.
Depois que me levantei, ela agarrou o meu travesseiro e está toda
encolhida, tão pequena e delicada, abraçando-o.
Parte de mim sonha que ela esteja assim por querer sentir o meu
cheiro, mesmo que inconscientemente. Essa mesma parte emocionada me
faz me aproximar dela e, correndo o risco de acordá-la, acariciar os seus
cabelos, tirando-os do seu rosto lindo.
— Já volto, amor — sussurro, quase inaudível, e me afasto, seguindo
para fora do quarto.
Preciso manter o cárdio em dia, mais do que nunca, porque se essa
noite foi uma prova de como seria conviver com Alice nos próximos dias, eu
precisarei de muita força e muito preparo para que o meu coração não entre
em colapso.
24 - Alice

Você me fez sentir de novo


O que eu já não me importava mais
Você me faz tão bem
Você me faz tão bem - Detonautas

É a segunda vez que eu acordo sozinha na cama do meu chefe.


Tá, isso soou horrível, né?
Mas é a verdade.
Domingo à noite, depois que me “mudei” para cá, pensei até que
fosse infartar quando chegou a hora de dormir e eu precisei encarar a ideia
de dividir a cama com o Henrique.
Tomei o banho mais demorado do mundo, enrolando ao máximo para
ver se ele dormia antes de eu retornar para o quarto, mas não tive sorte. Nos
encaramos em um silêncio constrangedor por alguns momentos até que ele
me perguntou que lado da cama eu preferia e eu respondi que o direito.
Nos deitamos e confesso que parecíamos dois troncos de árvore,
tensos e duros, sem nos mover um milímetro sequer, receosos.
Pensei que fosse passar a noite em claro, mas acho que os duzentos
mil fios dos lençóis que cobriam a cama do Henrique foram suficientes para
que eu tivesse um dos sonos mais restauradores da minha vida.
Acordei de manhã, com o meu despertador tocando, às seis e meia,
sozinha nessa cama enorme e sem sinal dele no resto do apartamento. Pensei
até mesmo que tivesse saído mais cedo para o trabalho, mas assim que eu saí
do banho, depois de fazer alguns minutos de yoga, ele entrou no quarto,
completamente suado e ofegante, e foi quando eu descobri que Henrique
costuma correr todas as manhãs.
Ele me disse que tomaria uma ducha rápida e que logo tomaríamos
café, e então veio o segundo baque.
Descobri que a omelete deliciosa, na qual eu e o bebê nos viciamos,
não era comprada em lugar nenhum. Meu chefe era o verdadeiro responsável
pelos cafés da manhã que me alimentaram na última semana e meia, e eu
não estava sabendo como lidar com isso.
Por que?
A pergunta martela na minha cabeça e eu sempre me orgulhei de ser
uma mulher inteligente, então já está ficando difícil engolir as desculpas que
eu dou a mim mesma para justificar o que está acontecendo.
A resposta é muito clara.
Henrique sequer faz questão de disfarçar muito bem, apesar de que
eu posso notar a forma como ele evita ser intenso demais para não me
assustar.
Olho para o anel que brilha em minha mão direita e solto uma risada
sem humor.
Como se esse homem conseguisse não ser intenso em algum
momento.
O fato é que eu não posso mais negar o que está estampado bem na
sua cara. Não tem outro motivo plausível para que ele se disponha a fazer
tudo isso.
Eu só não sei bem o que fazer com essa informação.
Se você me perguntar se eu sinto alguma coisa pelo meu chefe, a
resposta mais sincera que eu posso te dar é: eu não sei.
Honestamente.
De todo coração.
Henrique é um homem diferente de tudo o que eu já conheci, e isso é
um fato. Desde a minha entrevista, eu percebi que o meu chefe era um cara
meio fora da caixinha. Nunca me senti pressionada demais, nem esgotada,
tampouco infeliz no meu trabalho, porque ele mantém um ambiente muito
leve, divertido, diferente do que eu estou acostumada.
Ele é engraçado sem precisar se esforçar para isso, é apaixonado por
aquela Editora e demonstra isso todos os dias, nas reuniões, nos
lançamentos, nas conversas com autores, no quanto ele se dedica para fazer
aquilo ali ser um sucesso.
E é um sucesso, por causa dele.
Porque ele é brilhante.
Além de tudo isso, Henrique ainda é um cara extremamente justo e
gentil, que não mede esforços para ajudar àqueles que precisam e morreria
para proteger àqueles que ama. Eu presenciei, nesses dois anos trabalhando
ao seu lado, diversas vezes em que ele largou tudo para ir até seus familiares
em uma emergência, sem contar das incontáveis situações em que ajudou um
funcionário ou parceiro, seja financeiramente, seja com um apoio moral,
sempre que precisaram.
É dele, sua essência, essa bondade.
E isso só termina de bagunçar a minha mente.
Ao mesmo tempo que eu nunca parei para olhá-lo de forma diferente,
eu não posso negar os fatos: desde que essa farsa começou e nós dois nos
aproximamos mais, Henrique vem causando uma avalanche de sentimentos e
de dúvidas na minha mente e no meu coração, e eu me sinto cada dia mais
perdida.
— Oi, bom dia. — Pisco, saindo de meus devaneios, e encontro ele
parado na entrada do quarto, retirando os seus fones de ouvido, a camisa
grudada no seu peito com o suor da corrida. — Dormiu bem? — pergunta,
indo em direção ao banheiro.
Além de tudo, o cara ainda é um espetáculo de Deus.
Com quase sete semanas de gestação a gente já sente os hormônios
que o povo tanto fala? Porque não é possível, viu...
— Dormi — respondo, assentindo. — E você?
— Muito bem. — Sorri. — Vou tomar uma ducha e já faço nosso
café, tá bem?
O infeliz ainda faz a sacanagem de levantar um tiquinho da camisa
antes de fechar a porta do banheiro, me dando um breve deslumbre do seu
abdome.
Eu nem consegui contar quantos gominhos tinha!
Inferno.
Solto um gemido baixo e me levanto, prendendo os cabelos em um
coque alto e indo até à varanda. Daqui de cima é possível ver quase a cidade
inteira, o que não é muito difícil, já que Santa Consolação, apesar de ter
evoluído bastante nos últimos anos no quesito modernidade, ainda era uma
cidade pequena em extensão.
Penso no quanto a minha vida mudou na última semana e fecho os
olhos, pedindo a Deus um pouco de discernimento para não fazer uma
besteira.
Se as minhas desconfianças realmente se provarem verdade, essa
farsa toda com Henrique tem potencial de se tornar um verdadeiro caos, e a
última coisa que eu quero era magoá-lo. Mas ele também precisa me ajudar,
e se mostrando um projeto de príncipe gostoso para mim vinte e quatro horas
por dia não é nada inteligente.
E para melhorar ainda mais a situação, minha mãe chega hoje, para
terminar de me enlouquecer.
Por favor, Deus, me dê discernimento.
*
— Ela já mandou mensagem? — Henrique pergunta, quando
estacionamos na rodoviária.
São cinco e vinte e cinco e nós estamos atrasados para buscar a
minha mãe, porque a última reunião do dia acabou demorando mais que o
previsto.
— Três vezes. — Suspiro.
Logo que desembarcou, ela tentou me ligar, mas eu recusei a
chamada, porque estava terminando de redigir a ata da reunião. Só mandei
um torpedo, dizendo que iriamos nos atrasar um pouco, e recebi uma série
de palavrões em resposta.
Dez minutos depois, outra mensagem desaforada, quando disse que
estávamos saindo da Editora para buscá-la. E pouco antes de estacionarmos,
mais uma.
— Ei — Henrique me chama, segurando a minha mão. — Vai dar
tudo certo, ela não vai machucar vocês, nem com palavras. Eu não vou
deixar — promete.
Eu quero dizer para ele que ele, infelizmente, não tem controle algum
sobre isso, que minha mãe sabe muito bem ser letal da pior forma possível e
que se especializou em me ferir no decorrer dos anos, não precisando nem
abrir a boca para isso.
Eu quero dizer que ninguém, além da Carina, nunca me defendeu, e
que ele dizer esse tipo de coisa para mim só me deixa confusa e toda
bagunçada por dentro.
Eu quero dizer que ele não tem obrigação nenhuma comigo, que essa
farsa já foi longe demais e que a gente deveria simplesmente dar um basta
nisso.
Mas não digo.
A única coisa que faço é agradecer e acenar, soltando mais um
suspiro quando o meu telefone vibra, anunciando mais uma mensagem.
Mamãe: Cadê vocês, Alice? Vou esperar a noite toda nessa merda
de rodoviária? Que palhaçada é essa?
— Vamos? — digo, removendo o cinto, porque não adianta mais
enrolar.
Henrique assente e abre a sua porta, me encontrando do lado de fora
e logo tomando a minha mão para si, dando um aperto.
Não precisamos procurar muito para encontrar a minha mãe, e o
tamanho da sua bagagem me faz arregalar os olhos porque, quanto tempo
exatamente ela pretende ficar na cidade?
— Oi mãe — cumprimento ao me aproximar, já sentindo o meu
corpo encolher automaticamente com a encarada que ela me dá.
É impressionante, é só chegar perto dela que eu me torno uma
menina, a porra de uma criança indefesa e sem qualquer força para me
defender.
— Demoraram — resmunga. Seu olhar se prende em Henrique e ela
o analisa meticulosamente, sua postura toda mudando ao encará-lo. — Muito
prazer, Henrique. Não imaginei que a minha filha conseguiria arrumar um
namorado tão elegante e bonito assim. — A primeira alfinetada não demora
nem dez segundos.
— Não entendo o porquê, senhora Monteiro — ele responde, e há
algo tão diferente no seu tom de voz, algo sombrio, que eu não reconheço.
— Alice é uma mulher absurdamente linda, gentil, inteligente, amorosa. Eu
que sou sortudo por ela ter me escolhido como noivo. — Faz questão de
enfatizar o título. — Peço desculpas pelo atraso, como sua visita foi bem
espontânea, não conseguimos remarcar uma reunião que já estava agendada
para hoje.
Ela contrai o maxilar, com certeza irritada pela resposta de Henrique
e somente acena, olhando de soslaio para a bagagem a seus pés e cruzando
os braços.
— Bom, podemos ir? — pergunta. — Eu gostaria de um bom banho.
Ela olha para Henrique e para a bagagem novamente e eu arfo. Ela
pensa que ele é empregado dela por acaso? Quebrou a mão? Pra que uma
mala desse tamanho, meu Deus?
Parece até que ela trouxe o guarda-roupa inteiro para uma visita de
uma semana.
Claro que o meu chefe é cavalheiro o suficiente para se aproximar e
pegar a mala com uma das mãos, pousando a outra nas minhas costas e me
guiando para fora da rodoviária.
Ele coloca a bagagem na mala do carro e abre a porta de trás para
que ela entre, assim como a do carona para mim, como costuma fazer, e logo
estamos no trânsito, à caminho do apartamento.
O clima no carro é pesado, meu corpo todo tenso com a presença
dela, e Henrique percebe, pousando a mão na minha coxa e me acariciando
por cima da calça de alfaiataria, me dando um breve sorriso de lado.
— E como tá esse bebê? — minha mãe pergunta, depois de alguns
minutos. — Já foi ver o que é? É saudável ou vem com problema?
Sutileza nunca foi o forte dessa mulher, mas as suas palavras me
fazem colocar a mão na barriga, em um gesto de proteção, como se eu
precisasse cuidar para que essa maldade não afetasse o meu bebê.
— Nosso filho é perfeito, senhora Monteiro — Henrique é quem
responde. — Não sabemos o sexo ainda, porque tá muito cedo. Mas não se
preocupe, seu neto virá saudável e será uma benção nas nossas vidas.
Coloco minha mão em cima da dele, na minha coxa, e aperto,
agradecendo silenciosamente.
— Hum — ela resmunga. Ficamos em silêncio por mais alguns
minutos até que ela torna a falar. — Onde vão me levar pra jantar hoje?
— Como assim? — pergunto, olhando para trás.
— Ora, pensei que fossem me levar em um restaurante bom, pra
comemorar a minha visita. Nada mais justo, não acham?
— Vamos jantar em casa mesmo — Henrique decreta. — Alice
recebeu algumas orientações da obstetra ontem na nossa consulta, e estou
cuidando da sua alimentação com mais atenção. Vou cozinhar algo para nós,
não se preocupe.
Ontem, ao ver o resultado dos meus exames, a médica percebeu
algumas deficiências de vitaminas, além de uma leve alteração nas minhas
taxas de colesterol, e recomendou que eu adotasse uma dieta mais
equilibrada, com bastantes frutas e vegetais, e que me consultasse com uma
nutricionista, além de ter passado algumas suplementações.
— Você vai cozinhar? — pergunta, afrontada. — Cuidado, hein,
Alice. Não vai perder o partidão por incompetência. Onde já se viu, botar o
homem pra cozinhar... — resmunga.
Vejo a forma como Henrique fecha a expressão e cerra o maxilar,
irritado.
— Pois saiba que eu tenho o maior prazer em cuidar da Alice,
senhora Monteiro — responde, um tom de voz mais severo. — Servi-la é
meu propósito de vida e nada me deixa mais feliz do que garantir que ela
esteja bem e satisfeita. Esse seu pensamento é um tanto retrógrado e bastante
machista, não acha?
Nem preciso olhar para trás para saber o quão puta ela deve estar por
ser contrariada e mordo o lábio, para evitar o sorriso que quer despontar.
É, mamãe, parece que você encontrou um oponente à altura dessa
vez.
25 - Henrique

Por favor, por favor, nunca, jamais, se sinta


Menos do que perfeita
Por favor, por favor, se um dia você se sentir
Menos do que perfeita,
Você é perfeita para mim
Fucking Perfect - Pink

Termino de misturar a salada e levo a tigela para a mesa de jantar,


onde Alice termina de arrumar os pratos e os talheres para o nosso jantar.
A mãe dela está no quarto, desde que chegou, com uma cara de cu do
tamanho do mundo porque não levamos ela para jantar em um restaurante
chique. Não demorou dois segundos para eu perceber o seu jogo e tive que
segurar o sorriso, porque se ela acha que vai esbanjar luxo durante a sua
estadia aqui, só por causa do meu dinheiro, ela está redondamente enganada.
A médica de Alice ficou um pouco preocupada com algumas taxas
alteradas e a deficiência de vitaminas importantes então, assim que saímos
do consultório ontem, fomos direto para um supermercado e compramos
algumas frutas, legumes e verduras, além de outras coisas para melhorar a
alimentação dela nas próximas semanas.
No almoço, eu contratei um pacote de refeições de um restaurante
especializado em comida saudável, para que entregasse na Editora todos os
dias, e estou pensando em fazer o mesmo no bistrô, para o nosso lanche da
tarde, já que ela tem que comer periodicamente, de três em três horas, sem
falta.
Eu até poderia escolher um restaurante que tivesse opções mais
saudáveis para a minha boneca, mas só pelo desaforo daquela bruxa, eu me
recusei. Quer luxar? Vai trabalhar então, velha interesseira. Daqui você não
vai sugar um mísero centavo, pode tirar o cavalinho da chuva.
— Você quer suco, também? — Alice pergunta, arrumando os copos
na mesa.
— Quero, boneca, quero sim.
Nós dois travamos com as minhas palavras, e eu posso sentir o olhar
dela nas minhas costas, me fazendo engolir seco.
— Do que você me chamou?
Não percebo irritação no seu tom, apenas confusão, e isso me alivia
um pouco, mas eu preciso pensar rápido para sair da furada em que me meti.
— Bom... — Coço a garganta. — Acho que é normal noivos terem
apelidos entre si, não é? — pergunto, dando de ombros como se não fosse
nada demais. — Sei lá, sua mãe pode estranhar a gente se chamando só pelo
nome.
Ela pisca, franzindo o cenho, e acena lentamente, mordendo o lábio e
desviando o olhar do meu.
— Não tinha pensado nisso — murmura.
— Se você se sentir desconfortável, eu paro — afirmo. — Foi só
uma ideia.
Não foi, mas ela não precisa saber disso.
— Por que boneca? — pergunta, confusa, e eu penso um pouco antes
de responder.
— Não sei, você parece uma. — Dou de ombros.
— Eu pareço uma boneca? — Seu tom é meio duvidoso.
— Sim, um pouco. — Assinto. — Você é toda pequenina e tem uns
olhos grandes e escuros. Os cabelos cheios com essas ondas volumosas.
Parece uma boneca. — Tento explicar sem dar bandeira demais e ela me
olha desconfiada.
— Hum — murmura. — E como eu devo te chamar?
Amor.
Vida.
Paixão.
Meu dengo.
Qualquer coisa que você quiser.
— Não sei, você decide — respondo, me fazendo de indiferente. —
Acho que é bom chamar a sua mãe antes que a comida esfrie. — Mudo de
assunto.
Ela solta um suspiro e assente, olhando para a mesa e sorrindo
brevemente.
— Obrigada pelo jantar — diz. — Eu não fazia ideia que você
cozinhava tão bem.
— Sempre gostei de perturbar a Lúcia — explico. — Vivia no pé
dela, pra cima e pra baixo, e uma hora ela cansou de mim só enchendo o
saco e disse que eu ia começar a ajudar. Confesso que acabei gostando
depois...
— Você sempre fala dessa dona Lúcia, ela deve ser muito importante
pra vocês.
— Ela foi a nossa figura materna depois que a mamãe se foi —
respondo. — Quando papai conheceu a Isabel, eu já estava indo pra
faculdade, então quem teve mais contato com ela no início foi a Bibi. Na
minha adolescência, quem cuidou de mim e fez o papel de mãe foi aquela
senhorinha brava.
— Ela deve ser uma mulher incrível.
— Ela é. — Assinto. — E quer conhecer você, — jogo, vendo seus
olhos arregalarem — todos querem, na verdade.
— Você contou sobre mim pra sua família? — pergunta, assustada.
— Foi a Isabel quem recomendou a doutora Rebeca — explico. — E
meus irmãos já sabiam. A gente não costuma esconder nada um do outro.
— Meu Deus, eles devem pensar que eu sou uma interesseira —
lamenta, colocando a mão na cabeça. Eu seguro-as com as minhas e a faço
olhar para mim, me inclinando para que me escute bem.
— Não pense isso, jamais — peço. — Acredite, a minha família sabe
muito bem como uma interesseira age e você não é, nem nunca será, Alice.
Prometo a você.
Seus olhos umedecem um pouco e ela pisca algumas vezes antes de
acenar.
— Vou chamar a mamãe — sussurra, e eu não me controlo, levando
uma mão até seus cabelos e dando um afago, sentindo a maciez na minha
pele. — Desde já, me desculpa por qualquer coisa que ela fale. Ela é uma
pessoa...
— Horrível — completo, arrancando-lhe um riso quebrado. — Eu já
saquei o jogo da sua mãe, Alice, e não se preocupe, ela não vai conseguir
nada de mim — prometo. — Mas eu também não quero que ela consiga
nada de você, ok? Não deixa ela entrar na sua cabeça, nada do que sai da
boca dela vale a pena, não acredite no seu veneno.
Ela não me responde, apenas acena, mas eu sei que as coisas serão
muito mais complicadas do que isso.
Enquanto vejo ela ir até o quarto de hóspedes, chamar aquele ser
humano horrível, peço a Deus que me ajude a protegê-la, a poupá-la de
qualquer sofrimento que essa mulher pode causar.
Alice não merece nada disso.
E eu vou dar o meu melhor para cuidar dela.
*
Parece até que alguém morreu, de tão pesado que está o clima nesse
jantar.
Alice mexe com a comida, se forçando a terminar, eu sei que pelo
bebê, mas completamente desconfortável com a presença da mãe.
Inferno, eu estou desconfortável com a presença desse urubu
asqueroso na mesa.
— Você cozinha bem, Henrique — a bruxa comenta, raspando o
prato. — Pensei que fosse fazer algo mais elegante, um filé ou um salmão,
mas até que tá gostoso.
Duvido que essa infeliz saiba diferenciar um bife de filé de uma
bisteca, mas me seguro, em respeito à Alice.
— Alice adora frango com batatas, senhora Monteiro — respondo.
— Pensei que soubesse disso. — Não consigo aguentar e alfineto.
Ela crispa os lábios, dando uma encarada feia para a minha boneca,
que se encolhe na cadeira, como se tivesse feito algo de errado.
— É, Alice sempre gostou de coisas simples, sem muita sofisticação
— Seu tom pode ser suave, mas consigo detectar a crítica velada.
— E isso é uma das coisas que eu mais amo nela. — Estico minha
mão para acariciar o seu rosto, sorrindo da forma como ela ruboriza. —
Alice não se deslumbra facilmente, não busca vantagem em nada, não tem
segundas intenções. São características muito admiráveis, não é qualquer um
que as dispõe hoje em dia — completo, direcionando o meu olhar para a
megera, em uma mensagem clara e direta.
Ela entende, porque empertiga a coluna e pressiona os lábios,
claramente contrariada, mas receosa de responder à altura.
Alice solta os talheres e limpa a boca, se levantando e pegando o seu
prato.
— Terminou, vida? — Meu coração até erra uma batida quando
escuto ela me chamar assim e eu consigo só assentir, olhando-a como se ela
fosse a perfeição encarnada, porque é o que ela é, e ela recolhe o meu prato,
levando consigo até a cozinha.
— Não sei se já comentei, mas seu apartamento é muito bonito,
Henrique. — Sou tirado do meu transe pela voz da mãe de Alice. — Muito
elegante, de bom gosto. Mas, não esperava menos do que a cobertura, não é
mesmo? Alguém do seu patamar não poderia morar em qualquer lugar.
— Escolhi mais pela comodidade, senhora Monteiro — respondo. —
Aqui fica bem próximo da Editora, facilita nosso dia a dia.
— Ah, pode me chamar de Olga — pede, me dando um sorriso
horroroso. Aquilo ali é uma alface no dente dela, ou eles são separados
desse jeito mesmo? — É verdade, tinha me esquecido desse detalhe, Alice é
sua secretária, não é?
O jeito como ela fala é quase desdenhoso e eu fecho o punho para
conter a minha irritação.
— Sim, dona Olga — respondo, olhando para trás e vendo Alice
arrumar as louças na pia. — A melhor secretária que eu já tive.
— Quando ela veio com essa história de bolsa de estudos, pra cá pra
Santa Consolação, eu já desconfiava que não ia muito longe mesmo —
responde, tomando o último gole de seu suco. — Vivia dizendo que ia ser
escritora, que ia vender muitos livros, virar best-seller e sei lá o que mais. —
Solta uma risada sarcástica. — Bom, pelo menos ela pode dizer que trabalha
em uma Editora, certo?
Essa mulher realmente espera que eu ria com ela, debochando dos
sonhos da minha boneca?
— Acho que Alice pode ser tudo que ela quiser nessa vida, dona Olga
— afirmo. — Ela é inteligentíssima, esforçada, tem um potencial enorme.
Tenho certeza de que será uma escritora muito renomada no futuro. E eu vou
fazer o possível para apoiá-la nisso.
A mulher bufa baixinho, segurando um revirar de olhos que eu sei
que quer dar, e eu me levanto, pegando o seu prato e os nossos copos e indo
até a cozinha.
Alice passa a esponja nos pratos e eu poderia até achar que não ouviu
a conversa, mas quando se vira para pegar a louça da minha mão, seus
olhinhos vermelhos não me escondem a verdade.
— Não acredita em nenhuma palavra que sai da boca dela, boneca —
sussurro, pousando uma mão na sua cintura e me inclinando para beijar os
seus cabelos. — Por que nunca me disse que quer ser escritora? — pergunto.
— Não é nada importante, Henrique. — Dá de ombros, fungando, e
eu aperto a carne da sua cintura, me aproximando mais.
— Tudo sobre você é importante, Alice. — Eu sinto a forma como
ela treme e, se não fosse aquele demônio sentado a poucos metros de nós, eu
acho que perderia o meu juízo. — Você tem algum manuscrito pronto? —
pergunto.
— Tenho — murmura, virando o pescoço para me encarar.
— Promete que me mostra? — peço e ela assente. — Obrigada,
boneca.
Não resisto. Me curvo e pouso os lábios em sua testa, provando a sua
pele pela primeira vez, e quase é o suficiente para me deixar de joelhos.
Encaro seus olhos quando me afasto, certo de que meu rosto grita
tudo o que estou sentindo, e me aquece a forma como ela parece afetada.
Renda-se, amor. Eu sei que você também sente, renda-se comigo.
Me afasto, voltando para a mesa e começando a recolher os restos de
comida, ignorando a mulher intragável que permanece sentada como se
fosse uma rainha, mexendo no celular.
Um passinho de cada vez, e as coisas estão evoluindo.
Só mais um pouco de paciência.
26 - Alice

Eu não sei o que você espera de mim


Sou colocada sob a pressão de seguir seus passos
Todo passo meu é mais um erro para você
Numb – Linkin Park

Faz pouco mais de vinte e quatro horas que a minha mãe chegou e eu
já estou a ponto de enlouquecer.
Henrique foi para a aula de Muay Thai, assim que chegamos da
Editora, depois de muita insistência minha, porque não queria me deixar
sozinha com ela.
Ele já percebeu o quão tóxica e maldosa ela pode ser, então não me
espanta a sua vontade de me proteger dela. Aliás, desde ontem à noite, com
toda a história do apelido e depois aquele beijo na testa, Henrique vem
ferrando ainda mais com o meu juízo.
Essa madrugada mesmo, acordei em um momento, com vontade de ir
ao banheiro, e me deparei com nós dois abraçados como um casal de
verdade, um embolado de braços e pernas que quase não me deixou sair da
cama para ir me aliviar.
Graças a Deus, ele não acordou e não percebeu o nosso estado, e
quando eu retornei, me deitei o mais afastada dele possível, aproveitando
cada centímetro da cama king size.
Nunca vou confessar o quanto demorei para dormir de novo, longe
dele.
— O que vai ter pro jantar, hoje? — Fecho os olhos, puxando uma
respiração forte antes de me virar e responder a minha mãe.
— Bife acebolado. — Ela bufa, balançando a cabeça e se encostando
na bancada, os braços cruzados na frente do corpo. — O que foi, mãe?
— Nada... — responde, debochada. — Só me espanta o quanto tu
consegue ser burra.
— Como é? — pergunto, largando a cebola e a faca e me virando
para ela.
— Olha onde tu tá, Alice! Olha esse apartamento, o carro daquele
homem, a quantidade de dinheiro que ele tem! E tu fica aí, esquentando a
barriga no fogão, enquanto ele vai pra academia? — Seu tom de crítica
nunca esteve tão explícito. — Deixa de ser otária, garota. Tu tem esse
homem na palma da tua mão, ele falta lamber o chão que tu pisa, e tu não
sabe aproveitar nada! Idiota, merece viver na merda mesmo.
— O Henrique é meu noivo, mãe. Não meu banco e muito menos o
meu caixa eletrônico — respondo. — Nunca que eu vou me aproveitar dele.
Não tem problema nenhum de eu cozinhar algo pra gente comer, o que
custa?
— O que custa? — exclama. — Se tu estalar os dedos esse homem
contrata uma equipe de chefs de cozinha pra trabalhar pra ti. Ainda mais
grávida! Mas não, a santinha não sabe aproveitar a oportunidade que tem.
Deus não dá asas a cobras mesmo, não é possível. Se fosse eu no seu lugar...
— Você nunca ia conseguir um homem como o Henrique. — Não sei
de onde a coragem surge, já que eu nunca a enfrentei assim, mas a mera
sugestão de me aproveitar do homem que tem feito tanto por mim me irrita
de um jeito único. — Ele é um homem bom, justo, companheiro, que me
mima e faz por mim tudo que está ao seu alcance. Eu jamais vou me
aproveitar da sua bondade pra lucrar, pra viver uma vida de luxo desregrado,
até porque não é isso que eu quero pra minha vida. Eu quero alguém que me
ame e que me respeite, que cuide de mim, coisa que eu nunca tive!
— Ora, sua... — Seu xingamento é interrompido pelo barulho da
porta, e logo Henrique aparece, com a sua bolsa esportiva no ombro e uma
sacolinha de papel nas mãos.
— Boa noite — cumprimenta, olhando desconfiado entre nós duas.
— Tudo certo por aqui? — pergunta, deixando as chaves e a sacola na
mesinha da entrada e se aproximando, enlaçando a minha cintura e deixando
um beijo na minha testa.
— Tudo certo, vida — murmuro, aproveitando um pouco do contato
para me recompor. Acho que tomou banho lá no CT, porque seu cheiro
permanece a mesma mistura de cítrico e amadeirado que eu passei a
reconhecer como dele.
— Huuum, bife, é? — me pergunta, olhando para o fogão.
— Sim, vou jogar as cebolas pra finalizar já, já. Com fome? —
Ignoramos completamente a minha mãe, permanecendo abraçados no meio
da cozinha, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Eu posso até mesmo sentir o meu corpo inteiro relaxando, certo de
que o perigo não está mais presente, porque agora ele está aqui para me
defender.
— Faminto, o treinador tava pro crime hoje — responde, sorrindo. —
Vou guardar a bolsa e colocar a roupa suja pra lavar, tá? Já venho.
Ele dá mais um beijo na minha testa antes de se afastar, dando um
aceno para a minha mãe e indo na direção da suíte.
Me viro para o fogão, jogando as rodelas de cebola na frigideira e
ignorando a presença dela, que ainda me olha com uma expressão julgadora.
Eu sei que Henrique faria de tudo por mim, e nós nem estamos juntos
de verdade.
Mas morreria antes de me aproveitar dele, como ela deseja.
Essa maçã aqui caiu muito longe da árvore, graças a Deus.
*
— Pensei que ela não ia se deitar nunca — Henrique resmunga,
quando entramos no nosso quarto, mais tarde naquela noite.
Depois do nosso jantar “mixuruca”, o qual a minha mãe comeu e
repetiu, ela decidiu se prostrar na sala, convidando meu chefe para dividir
uma garrafa de vinho.
Sim, isso mesmo.
A cara de pau pediu para tomar um dos vinhos caríssimos do
Henrique, vinhos esses que ele mesmo quase não toma, porque estava
vontade de saber o gosto de um vinho fino de verdade.
Pude ver a forma como ele ficou contrariado, mas, sendo o homem
incrível que é, abriu a sua adega e pegou um vinho tinto espanhol,
oferecendo uma taça para a minha mãe. E apenas uma.
Mesmo diante da sua explícita irritação, Henrique insistiu que esse
tipo de vinho era para ser apreciado e não para se embriagar. Então uma taça
era o suficiente para provar e não precisava de mais do que isso.
— Ela consegue ser bastante inconveniente quando quer —
respondo. — Você vai tomar outro banho? — pergunto e ele nega. — Então
vou tomar uma ducha rápida, só pra tirar o suor da cozinha.
— Tá bem, te espero. — Assente.
Entro no banheiro da suíte, depois de pegar um pijama no closet, e
retiro a minha roupa, prendendo os cabelos no alto da cabeça e aproveito
alguns minutos de tranquilidade debaixo daquele chuveiro maravilhoso.
Eu vou sentir muita falta disso quando voltar para o meu
apartamento.
A pressão da água lá é horrível e, dependendo da hora do dia, eu
preciso tomar banho com a água da pia, me molhando com uma tigelinha,
porque não tem força suficiente para subir água para o chuveiro.
Lavar os cabelos é uma verdadeira tortura.
Me enxugo, colocando meu pijama de algodão, escovo os dentes, e
faço o meu skin-care noturno, massageando o rosto com os meus tônicos e
cremes anti-idade.
Desde que fiz vinte e cinco, tenho esse cuidado, apesar de usar
apenas produtos baratinhos de farmácia. Mas percebi a forma como a minha
pele ficou mais viçosa e macia depois que comecei, então não parei mais.
— Tenho que comprar um creme para estrias logo, logo — divago,
pousando uma mão na minha barriga ainda inexistente.
Completo sete semanas hoje, e vez ou outra me pego na frente do
espelho, tentando ver se já existe algum sinal de que o bebê está aqui.
— Claro que não, né, amor? — murmuro. — Você é muito
pequenininho ainda, meu grãozinho de arroz.
Baixei um aplicativo de acompanhamento da gestação e, na
notificação de hoje, disseram que o bebê está com cerca de seis milímetros
de comprimento, ou seja, do tamanho de um grão de arroz.
Tem noção?
Tipo, ele tem cabeça, tronco, braços e pernas, mas é tão pequeno
quanto um grãozinho de arroz.
É incrível.
Apago a luz do banheiro e volto para o quarto, encontrando Henrique
de costas para mim, mexendo em alguma coisa na mesinha de cabeceira.
— O banheiro tá livre — anuncio.
— Vou escovar os dentes, já, já, — responde — mas antes...
Ele se vira e eu arquejo, emocionada.
Pensei que ele tinha esquecido, mas aparentemente não.
— Henrique... — sussurro.
Ele sorri, se aproximando com o pequeno cupcake, de chocolate
dessa vez, e uma vela branca em cima. Então era isso a sacolinha de papel
que trouxe consigo.
— Não podemos deixar passar em branco o semanassário do bebê —
fala, como se não fosse nada, e coloca o bolinho na minha frente. — Vamos,
você sabe como funciona. Faz um pedido e assopra, pelo bebê.
Eu sorrio, sentindo meus olhos ameaçarem transbordar e então os
fecho, mentalizando o mesmo pedido de antes, com ainda mais ênfase.
Por favor, que nenhum de nós saia machucado dessa história.
27 - Henrique

Mas se eu me apaixonar por você, eu nunca vou me recuperar


Se eu me apaixonar por você, eu jamais serei o mesmo
Love Somebody – Marron 5

— Licença. — Levanto os olhos e vejo Alice para na porta do meu


escritório, com uma bandeja nas mãos. — Trouxe um café pra você. Saímos
com pressa e nem deu tempo de você comer nada.
Ela entra e vem até a minha mesa, colocando a bandeja na minha
frente. Além da xícara de café com leite, ela também providenciou uns
pãezinhos e uma porção de frutas picadas, e eu fico todo bobo com o
cuidado.
— Obrigado, boneca. É muita gentileza sua — agradeço, sorrindo da
forma como ruboriza com o apelido.
Desde a minha gafe, no dia que a sua mãe chegou, eu parei de me
policiar com isso, aproveitando a oportunidade de chamá-la do que ela
realmente é para mim: a minha boneca linda.
— De nada — responde. — Deu tudo certo lá na reunião? —
pergunta.
Saímos apressados hoje, porque eu acabei me estendendo mais do
que o normal na minha corrida matinal, e voltei para casa em cima da hora,
só com tempo de tomar um banho e mudar de roupa, antes de deixar Alice
aqui e seguir para uma reunião com um grupo de empresários que tinham
interesse em investir na Editora.
Consegui convencer o meu pai de que a ideia de abrir a Lacerda para
o mercado é o melhor passo para nós, atualmente, e agora estou trabalhando
nas possibilidades antes de concretizar esse plano.
Faz alguns anos que já estamos sendo sondados por alguns
empresários locais e nacionais, com interesse em expandir a Editora e abrir
sedes em outros Estados do país, e agora precisamos amadurecer muito bem
a ideia antes de torná-la realidade.
— Tudo certo, sim — respondo. — Acho que vai dar certo, boneca.
Logo, logo a Lacerda vai ganhar novas sedes e, talvez, alguns contratos para
publicações internacionais, aqui na América Latina e nos Estados Unidos.
Alice sorri lindamente para mim, fazendo meu coração errar uma
batida como sempre.
— Ah, que bom, Henrique! — exclama. — Fico muito feliz por
vocês, de verdade. O que você fez com essa empresa nos últimos anos é
impressionante, tenho certeza de que vocês irão chegar na Europa em tempo
recorde.
— Obrigado, boneca — murmuro, emocionado. — Fico muito feliz
em ouvir isso de você, de verdade. — Ela sorri, acenando. — E o seu livro
logo entrará no nosso portifólio, viu? Não pense que eu me esqueci, não,
mocinha. Ainda estou esperando o manuscrito.
Ela ruboriza, mordendo o lábio e enfiando uma mão no bolso da
calça.
— Você tava falando sério, mesmo? — pergunta, indecisa.
— Seríssimo, Alice. — Assinto. — Se tem uma coisa que eu não
brinco é com a minha empresa, você sabe disso. Entenda que eu jamais vou
publicar nada seu só por ser quem você é. Seu livro só entrará no nosso
catálogo se ele for bom, se tiver potencial.
Tento ser delicado, mas preciso ser claro sobre isso. Ainda que eu
ame Alice mais que tudo, não brinco em serviço com a Editora. Posso ajudá-
la e orientá-la a atingir o potencial que eu sei que tem, mas até chegar lá,
nada será publicado por nós.
— É exatamente isso que eu quero, Henrique — afirma, se
aproximando de mim. — Não quero que me favoreça, ou que publique por
pena. Quero saber que foi por merecer.
— Eu te dou a minha palavra sobre isso, boneca, pode acreditar —
prometo.
— Já que é assim — começa, puxando um pen-drive do bolso da
calça. — Eu escrevi algumas coisas nos últimos anos, mas esse aqui é o que
eu acho que tem potencial de ser publicado. Por favor, me dê a sua opinião
sincera.
— Pode deixar, Alice — digo, pegando-o de suas mãos. — Se tiver
algo que eu ache que precisa melhorar, eu vou dizer e vou te ajudar. Eu fui
sincero, quero te ajudar a realizar o seu sonho, mas só quando estiver pronta.
Odiaria te ver decepcionada, então temos que ter certeza de que está perfeito.
— Obrigada, de verdade — murmura. Eu aceno e sorrio, e ela
retribui, indo em direção à porta. Antes que saia, porém, se vira para mim.
— Ah, eu ia esquecendo. Tem como cancelar a refeição de hoje no
restaurante?
— Por que? — pergunto, confuso.
— É que a Carina me convidou pra almoçar hoje, e eu aceitei. Não
sei se vou conseguir ir na aula de yoga amanhã, com a mamãe ainda no
apartamento — explica.
É sexta-feira e nada da mãe de Alice dar algum indício de que vai
embora. Eu realmente espero que ela não passe mais do que uma semana
conosco, mas não me espantaria se ela resolver dar trabalho para voltar do
buraco de onde saiu.
Ontem mesmo, pediu, na maior cara de pau, que eu comprasse uns
iogurtes para ela, porque estava acostumada a tomar todos os dias e não
tinha dinheiro para comprar, por ter gastado tudo com a viagem.
Deu vontade de responder que gastou porque quis, já que ninguém a
convidou.
Mas eu apenas assenti e comprei a porra dos iogurtes no caminho
para casa, depois do trabalho. Alice ficou mortificada, me pedindo para
ignorar o pedido, mas eu já aprendi que temos que ser inteligentes com
aquela mulher. Ela é abusada, é cara de pau e inconveniente, mas é esperta, e
está tentando comer pelas beiradas antes de dar o bote, como a bela cobra
que é.
Eu entendi que, para que ela mostre as garrinhas, eu tenho que dar
um pouco de corda, só o suficiente para ela mesma se enforcar.
Então gastar trinta reais com alguns iogurtes não é nada, se no final
eu conseguir expurgar aquele demônio da vida da minha boneca.
— Vou ligar pra eles, cancelando por hoje — responde, assentindo.
— Mas, boneca, se você quiser ir pro seu yoga amanhã de manhã, eu levo
você. Não deixa a sua mãe atrapalhar sua rotina, não. Ela não tem ficado
sozinha o dia todo, durante a semana? O que são duas horinhas pra você ir
fazer algo que ama?
Nesses poucos dias morando juntos, eu pude perceber o quanto Alice
gosta de praticar aqueles alongamentos. Algumas vezes, quando retornava da
minha corrida matinal, ainda pegava ela terminando a sua prática, toda
concentrada e linda.
Aliás, ela quase me enfarta ontem de manhã, porque quando entrei
no quarto e a vi estirada no chão, como um defunto, de olhos fechados,
pensei o pior e corri para acudi-la, levando o maior sermão por ter
atrapalhado o seu relaxamento final com a tal da savasana.
Não sei quem é essa dona, mas quem quase vai de arrasta e vira um
cadáver fui eu, morrendo de medo que ela tivesse desmaiado sozinha no
quarto.
— Vou pensar e te aviso, tá? — responde.
Eu aceno em concordância e ela se vai, fechando a porta trás de si.
Tomo um gole do meu café, soltando um gemido porque ela sabe fazer
exatamente do jeito que eu gosto, e coloco o pen-drive no computador,
abrindo a pasta com o manuscrito dela.
Até você chegar.
Título interessante, penso comigo. Ela não me disse do que se trata,
nem qual o gênero ou a sinopse, e eu me pego curioso para ver o que a ela
decidiu escrever.
Abro meu e-mail, enviando o arquivo para o meu Kindle, e tento me
controlar para não começar a ler imediatamente, já que tenho mil coisas para
fazer ainda hoje.
De noite eu começo, sem falta, e espero muito que minha boneca me
confirme aquilo que eu já sei, no meu coração: o quão incrível e talentosa ela
é.
*
— Ei, otário, bora almoçar lá no Golden Grill? Tô a fim de um filé
suculento — Pedro convida, entrando no meu escritório mais tarde, naquela
manhã. — Ouvi tua noivinha combinando de almoçar fora, vim te resgatar
da solidão — debocha.
— Mais respeito, imbecil — resmungo. — Deixa só eu terminar de
mandar esse e-mail aqui e já vamos.
Confesso que nem pensei em providenciar o meu almoço de hoje,
preocupado demais com as tarefas que preciso cumprir antes do final de
semana. Eu sempre odiei fazer qualquer coisa em relação à empresa aos
sábados e domingos, então as sextas eram muito ocupadas, para deixar tudo
em ordem.
Sei que muitas empresas têm expediente até nos sábados, inclusive a
Lacerda, por um bom tempo, mas eu não gosto disso e mudei nossos
horários.
Cinco dias na semana são o suficiente para que a empresa funcione,
não tem porque esgotar nossos funcionários com uma jornada de seis dias.
Apenas em épocas de lançamentos grandes alguns precisam fazer horas
extras, mas são muito bem recompensados por isso.
— Pronto, vamos? — pergunto, desligando o meu notebook e me
levantando, pegando o paletó no encosto da cadeira.
— Bora, tô faminto. — Coroa o comentário com uma esfregada na
barriga e eu balanço a cabeça. — E como é que estão as coisas com a sogra
dos infernos? — pergunta baixinho, antes de sairmos.
— Rum, aquela mulher é demoníaca, irmão. De verdade. Te conto
mais no almoço — respondo, fazendo sinal para Alice, que estava de pé,
colocando o casaco e se preparando para ir almoçar. Saímos do escritório e
eu a ajudo, desenrolando a manga do casaco e ajustando seus cabelos, para
fora, depois que o veste. — Sua amiga já chegou?
— Sim, tá lá embaixo — responde.
— Então vamos descer. — Faço sinal para que ela vá na frente e ela
chama o elevador, que não tarda a chegar. Entramos os três, apertando o
botão do térreo. — Já sabe onde vão almoçar? — pergunto.
— Em um restaurante vegano que a Carina gosta.
— Ah, ela é vegana?
— Não, não — responde, sorrindo. — Carina comeria um boi inteiro
se pudesse. Mas ela gosta dessa pegada mais natural, sabe, e lá eles têm
umas massas que são muito gostosas, então vez ou outra vamos lá.
— Deus me livre entrar num lugar desses — Pedro comenta, fazendo
até o sinal da cruz. — Tem que ter muita carne vermelha pra sustentar esse
corpinho aqui, se é que me entende. — O cuzão pisca para Alice.
Sim, ele pisca para a minha boneca.
Dou um tapão na sua cabeça, fazendo-o exclamar de dor.
— Respeita a minha noiva, seu pau no cu — resmungo, e Alice
morde o lábio para esconder um sorriso.
— Tô brincando, inferno — reclama. — Doeu, sabia? E ainda
bagunçou o meu cabelo.
— Enorme esse teu cabelo — retruco. — E era pra doer mesmo!
— Tá bom, vocês dois, não precisa brigar. Ele tava só brincando,
Henrique — Alice se põe entre nós dois quando Pedro ameaça devolver o
tapa, se controlando para não rir da gente. — Deus, parecem duas crianças.
— Bom que você já treina pro bebê, né, boneca? — brinco,
arrancando-lhe uma risada. O elevador apita no térreo e nós saímos,
cumprimentando a recepcionista e indo para a rua. O telefone de Pedro toca
e ele pede um segundo, se afastando para atender. — Cadê sua amiga?
Alice procura ao redor, até que seu rosto se ilumina e ela acena para
alguém do outro lado da rua.
— Tá ali, deixa eu apresentar vocês. — Não nego, fico todo besta
com isso e até me ajeito um pouco, querendo causar uma boa impressão.
— Oi, amiga! — A ruiva se aproxima, abraçando minha boneca.
— Oi, Cá. Deixa eu te apresentar, — aponta para mim — esse aqui é
o Henrique. Henrique, essa é a minha melhor amiga, Carina.
— Então você que é o noivinho? — pergunta, me fitando de cima
abaixo.
— Eu mesmo, muito prazer, Carina. — Ofereço a mão e ela aperta,
ainda me olhando desconfiada.
— Eu espero que você esteja tomando conta da minha amiga, hein?
Principalmente com aquela mulherzinha lá.
— Carina!
Eu sorrio, feliz por ver que mais alguém enxerga o poço de podridão
que a mãe de Alice é, e que pode ser uma aliada na minha missão de
protegê-la.
— Pode ficar tranquila que ela não vai maltratar a Alice, não
enquanto eu estiver perto — respondo e ela assente, satisfeita.
— Ei, cara, vamos? — Ouço a voz do meu melhor amigo se
aproximando. — Sabe como é difícil arrumar mesa lá esse horár- bruxa
mística? — exclama, olhando feio para a ruiva.
— Crosfiteiro? — Carina responde, tão ofendida quanto ele.
Eu cruzo o olhar com a minha boneca, completamente confuso.
O que que tá acontecendo aqui?
28 - Alice

Onde há desejo, vai haver uma faísca


E onde há faísca, alguém vai se queimar
Mas só porque queima, não quer dizer que vai morrer
Você precisa se levantar e tentar
Try - Pink

— Não acredito que você é amigo desse hétero top escroto, Henrique
— Carina resmunga, me fazendo arregalar os olhos.
— E eu não acredito que a sua melhor amiga é essa riponga
fedorenta, cunhada — Pedro retruca, inabalado. — Espero que você também
não goste daqueles incensos fedidos senão meu amigo tá lascado.
— Mas que porra? — É Henrique quem sai do transe primeiro,
perguntando o que diabos está acontecendo.
— Essa é a minha vizinha bruxa, irmão! A que adora acender velas
super cheirosas na varanda, fazendo a fumaça descer toda pro meu
apartamento! — explica, olhando para Carina como se ela fosse seu pior
inimigo. — Além das músicas instrumentais super agradáveis — completa,
com deboche.
— Claro, porque você tem um excelente gosto musical né, ô
pancadão? — minha amiga responde à altura, o ranço visível em seu rosto.
— Quando não é uma sinfonia belíssima de funk proibidão, são aquelas
batidas insuportáveis de eletrônico. Você não escuta nada que tenha letra de
verdade porque tem dificuldades de interpretação? Não ia conseguir
entender direito a música, né, coitado? — provoca, cruzando os braços na
frente do corpo.
Eu e Henrique ficamos olhando de um para o outro, como dois
expectadores atônitos de um show de horrores, até que eu pisco e tento me
recompor.
— Espera, o seu Pedro é o teu vizinho? — pergunto para a minha
amiga. — Aquele de quem você sempre reclama?
— Esse mesmo, minha amiga. E o seu noivinho acabou de perder
todos os pontos comigo só por andar com esse ser insuportável.
— Ei! — Henrique reclama. — Eu não escuto proibidão e nem sou
hétero top. Diz pra ela, boneca.
Reviro os olhos e olho para Carina, que ainda encara Pedro como se
pudesse matá-lo só com um olhar.
— Vamos almoçar? — peço, tentando evitar mais confusão.
— Vamos, sim — ela responde. — Ficar perto desse indivíduo tá
desalinhando todos os meus chacras.
— Há! Pois vá mesmo — Pedro retruca. — Deus me livre você
começar a acender velas aqui pra realinhar esses seus chacras podres.
Carina não responde, apenas segura a minha mão e me puxa, mal me
deixando me despedir de Henrique.
— Amiga, espera — peço, quando acabo tropeçando na calçada, na
sua pressa de ir embora.
— Eu não acredito que esse infeliz vai me perseguir até aqui, agora
— resmunga, destravando o carro. Nós entramos e ela continua reclamando,
inconformada. — Não tinha outra pessoa pra ser amiga do seu noivo, não?
Que merda, Alice, esse cara vai estar na minha vida agora por culpa sua!
— Ei! — exclamo. — Dá pra parar de surtar? — Ela bufa, colocando
o carro em movimento. — Seu Pedro é muito legal comigo, sempre me
tratou bem, não tem porque essa implicância toda.
— Legal? Legal? — Seu olhar até me assusta agora, de tão maníaco.
— Se eu te contar a quantidade de vezes que eu já perdi o meu sono por
causa daquele infeliz! Sempre levando mulheres escandalosas pro
apartamento, infernizando a minha vida, simplesmente existindo! O cara é
um nojento, porco, a perfeita definição de macho escroto, e agora, graças ao
seu digníssimo noivo, ele vai ser tio postiço do meu afilhado!
— Deixa de ser doida, Carina — respondo. — Primeiro que o
Henrique não é meu noivo de verdade, é apenas uma farsa! — Se olhares
matassem, eu estava morta e enterrada agora. — Segundo, — continuo,
ignorando-a — que tio, você pirou? Henrique não é o pai do meu bebê!
Semana que vem minha mãe vai embora e essa história toda vai acabar, você
vai ver.
— Ah, conta outra, Alice. — Bufa. — Ou melhor, boneca. — Agora
debocha. — Você e o seu chefe dormindo de conchinha todo santo dia, de
apelidinhos e tudo, e você vem me dizer que é tudo uma farsa? Me poupe,
né. Vai enganar quem não te conhece.
— Carina... — Suspiro.
— Não, Alice. — Estaciona na frente do restaurante e desliga o
carro, virando para mim. — Você pode não gostar, mas eu sou a voz da sua
consciência e tô te dizendo: você e o seu chefe estão juntos! Só falta um de
vocês tomar vergonha na cara e dar o último passo. Deixa de ser trouxa!
Não respondo, me limitando a remover o cinto e abrir a porta do
carro, escutando o seu bufar de indignação quando me segue.
Nós entramos e achamos uma mesa mais afastada, e uma garçonete
nos entrega o cardápio com um sorriso.
— Não precisa, meu bem, — Carina o devolve para ela — eu vou
querer o escondidinho de batata-doce com shimeji e a minha amiga...
— Eu vou querer o bowl de legumes com creme azedo — completo.
— E uma torta de banana de sobremesa, por favor.
A garçonete anota tudo e nos deixa sozinhas, e então Carina me
encara, pronta para continuar com a conversa.
— Podemos não falar sobre isso? — peço.
— Qual o seu medo, Ali? — ela pergunta. — Ele tá te forçando a
alguma coisa que você não quer? Tá sendo inconveniente de algum jeito?
— Não, de jeito nenhum. — Não preciso nem pensar para responder.
— O Henrique é gentil de um jeito que eu só vi em livros, Carina. Eu não
consigo nem te explicar.
— Então qual é o problema? Porque, amiga, — se inclina mais para a
minha direção — aquele homem é doido por ti, você não pode negar isso. É
burrice.
Solto um suspiro, incapaz de responder.
Minha amiga apenas espera, me olhando com compreensão, e logo
eu coloco as mãos no rosto.
— Eu não consigo entender, Carina — começo. — Como é que eu
nunca vi isso? Como deixei uma coisa dessas passar? O jeito que ele me
trata, parece que eu sou a coisa mais preciosa da vida dele. É de uma
intensidade assustadora, eu não posso mentir...
— E você?
— O que tem eu?
— O que você sente por ele?
A pergunta de um milhão de dólares.
— Aí é que tá, amiga. Eu não sei. — Solto um suspiro. — Eu
sinceramente não sei o que eu sinto por ele. Ele me confunde, sabe? Nunca
parei pra enxergar ele como algo além do meu chefe e agora...
— Agora ele é teu noivo.
— Falso, Carina — completo. — Noivo falso, eu não posso me
esquecer disso.
— Por que, Alice? — questiona de novo. — Se ele quer e você quer,
por que não tornar isso algo real? Não digo o noivado, porque é loucura tão
cedo assim. Mas sei lá, o que custa conhecer melhor o cara, ver se não dá
certo.
— Ele é meu chefe — explico. — Eu tô grávida e ele é meu chefe.
— Você acha que ele vai te demitir se não der certo?
Não acho.
Não acho, de verdade.
Porque Henrique não é assim.
Ele é justo, é correto, honesto. E principalmente, ele é bom. Sei que
não me deixaria desempregada com um filho nos braços só porque não
demos certo.
Mas a questão é: e eu, iria querer continuar perto dele, cinco vezes na
semana, oito horas por dia, se as coisas dessem errado?
Além de tudo, ainda tem o meu bebê.
Como iniciar um relacionamento nessas condições? Com o filho de
outro na barriga? Outro que nem sabe da existência desse neném, que eu
sequer sei onde está, em que buraco vive.
Como é que eu começo um namoro, ou seja lá o que for, com um
homem, se eu tenho um laço eterno com outro?
— É complicado demais, Carina. Intenso demais, difícil demais. Tem
variáveis demais, riscos demais. É tudo demais — respondo, meus olhos
umedecendo.
— Você tem medo — minha irmã de alma constata, sem eu precisar
falar.
— Pavor — sussurro. — Não tem como dar certo, amiga. É muito
fantasioso. Esse tipo de coisa só acontece nos livros, nos filmes. Não dá pra
sonhar com algo assim na vida real. — Minha amiga me olha, compadecida,
e estica a mão para apertar a minha. — Na minha realidade, eu vou ser mãe
solo, porque não sei onde o pai desse bebê está, e não posso sonhar que, do
nada, meu chefe milionário vai nos assumir como seus, e tudo vai ter um
final feliz perfeito.
— Você não disse que ele é um cara incrível?
— Ser incrível não significa aceitar tudo, Carina — murmuro. —
Uma hora ou outra, a verdade vai pesar. Quando perguntarem porque o bebê
não parece com ele, porque não vai, você sabe.
O cara com quem eu me envolvi é negro, então tem 50% de chances
de o bebê puxar a ele, e ninguém acreditaria que Henrique, com seu cabelo
loiro e olhos verdes, é o pai de verdade. Sabemos muito bem como o
preconceito funciona nesse país, haveria comentários maldosos, eu tenho
certeza.
— E aí você vai deixar escapar a chance de ficar com um cara legal
por medo? — me pergunta.
— Eu não posso pensar só em mim. Não existe só eu nessa equação
— explico. — E se o Henrique se apegar demais ao bebê? Carina, ele
comemora o semanassário dele!
Ela sorri, balançando a cabeça, e eu correspondo.
— Ainda acho que você devia dar uma chance — complementa. —
Não pode deixar o medo ditar a sua vida, Alice.
— Não sei... — murmuro.
— Mas, enfim, como está a visita da jararaca? — Muda de assunto,
me fazendo rir e gemer ao mesmo tempo.
— Ela é terrível, amiga. Vive pedindo as coisas, é espaçosa, tomou
conta do quarto de hóspedes como se fosse dela, ontem até sugeriu pintar de
uma cor mais “alegre”. — Faço até as aspas para completar.
— E quanto tempo essa visita vai durar?
— Não sei, Cá. — A moça traz os nossos pedidos e nós começamos a
comer. — Eu espero muito que semana que vem ela vá embora, de verdade.
Mas você sabe que da mamãe não dá pra duvidar de nada.
— Ela nunca vai parar, Ali, a não ser que você dê um basta.
Eu sabia disso.
— Eu sei. Mas não sei se tenho forças.
Passar a vida inteira ouvindo que eu tenho que sempre honrar a
família, que ela e a minha avó são as únicas que sempre estarão ali, que eu
preciso devolver tudo o que ela já fez por mim, que preciso agradecer por ela
ter abandonado todos os sonhos para me criar, tudo isso pesa de um jeito
quase sufocante na minha cabeça, e eu não consigo seguir com a ideia de
colocar um ponto final.
A culpa me corrói por dentro, só de imaginar os desaforos que eu
escutaria, só de pensar em escutar de algum parente que elas estão passando
necessidades.
— Lembra o seu discursinho de agora a pouco sobre o seu chefe? —
Carina pergunta. — De como você não está mais sozinha, que o bebê tem
que estar na equação e não sei o que mais? — Assinto. — Usa essa mesma
filosofia pra sua mãe. Você não está mais sozinha, Alice. Esse bebê precisa
ser a sua prioridade, e viver esse inferno que é a relação de vocês, com essas
cobranças unilaterais, essas ofensas, tudo isso não faz bem nem pra você e
nem pro bebê.
— Eu sei...
— Pois não parece — retruca. — Até quando você vai deixar essa
mulher pisar em você? Alice, ela não age como sua mãe. Nunca agiu.
Quando é que você vai enxergar isso? Agora você também é mãe, cara. Por
acaso você faria o que ela faz com você com esse bebê?
— Nunca — respondo, imediatamente.
— Porque você, sim, é mãe. Você, sim, ama esse bebê. — Aponta o
garfo para mim. — Chega de abaixar a cabeça e deixar ela fazer o que
quiser. Ter te colocado no mundo e te alimentado não dá o direito de ela
acabar com a sua autoestima e sugar tudo o que pode da sua vida. Chega,
Ali.
Eu sei que a minha amiga tem razão.
A grande questão era, eu sou capaz?
Penso no meu bebezinho inocente e no quanto eu o amo, mesmo ele
tendo o tamanho de um grãozinho de arroz.
Como eu posso ter me enganado tanto a vida toda? Como eu posso
ter me deixado levar pelo discurso que enfiaram na minha cabeça e me
permitir ser usada e abusada pelo meu próprio sangue?
E como eu conseguirei me livrar de tudo isso?
29 - Henrique

Eu sei que você teme ser errado


Como se você fosse cometer um erro
Só há uma vida a se viver
E não há tempo a perder
Então me deixe cuidar do seu coração
Give Your Heart a Break – Demi Lovato

Alice está morando comigo há duas semanas.


E isso poderia ser a coisa mais perfeita do mundo, se não fosse por
um pequeno detalhe: a sua mãe ainda está conosco.
A mulher simplesmente se prostrou no meu quarto de hóspedes e se
recusa a ir embora, não importa quantas vezes nós perguntemos sutilmente a
ela quando vai para casa. Eu já estou no ponto de enfiar a sutileza no cu e
dizer para ela arrumar as suas trouxas e pegar o beco.
Principalmente, porque eu posso ver o quanto a presença dela está
desgastando a minha boneca. Ela tenta esconder, finge que está tudo bem,
mas eu consigo enxergar por detrás do seu sorriso frágil e dos seus olhinhos
expressivos.
Aquela bruxa caquética está apagando o brilho da minha Alice e eu
quero matá-la por isso.
Tipo, não matar, matar. Mas, sei lá.
A gente mora na cobertura, sabe? Acidentes acontecem o tempo todo.
Ela vive enfiada na sacada do apartamento, tirando fotos para postar
no Instagram, como uma madame rica. Já pensou se ela está se inclinando no
parapeito para fazer uma pose e sem querer despenca daqui de cima?
Olha que tragédia.
Capaz da gente aparecer até no Jornal Nacional.
Tô brincando, gente, claro que eu não vou fazer isso.
Mas, às vezes, a vontade é grande, tipo agora.
Eu estou me arrumando para ir para o Muay Thai e consigo perceber
a forma como Alice parece murchar com a ideia de ficar sozinha com a sua
mãe. Eu já tentei faltar no treino, inventar uma desculpa, mas ela percebe e
insiste para que eu vá, dizendo que não quer atrapalhar ainda mais a minha
vida.
Ah, amor. Se você soubesse o que eu faria por você.
— Eu já vou indo, tá? — digo a ela, que está sentada na nossa cama,
mexendo no seu notebook. — Não vou demorar muito. Não se preocupa
p p
com jantar hoje, você tava meio molinha mais cedo. Eu trago alguma coisa,
tá bom?
Quando cheguei da minha corrida matinal, flagrei Alice debruçada
sobre o vaso sanitário, vomitando todo o seu jantar de ontem. Ainda não
tinha a visto passar mal pela gravidez, e até pensei que ela pudesse ser
daquelas grávidas sortudas, que escapam dos enjoos matinais, mas ela me
confessou que sempre acordava assim, mas que passava antes de eu voltar.
Pedi que não me escondesse mais, porque eu queria ajudar se fosse
possível, e ela apenas disse que os remédios que a médica passou estavam
ajudando e que os enjoos estavam bem mais fracos desde que começou a
tomar. Disse que antes passava tão mal que ficava fraca e tonta, e só a ideia
de ela cair ou desmaiar por causa disso me deixava apavorado.
— Eu posso fazer algo bem rapidinho, não precisa gastar com
comida fora — sugere, mas eu nego, me aproximando e depositando um
beijo em seus cabelos.
Se tem uma coisa positiva na estadia da sua mãe é o fato de que eu
normalizei pequenos contatos físicos entre nós. Coisas bobas, um carinho
nos cabelos, um beijo no rosto, pequenas migalhas das quais eu estou me
alimentando nessas duas semanas, como um louco faminto.
De início, Alice estranhou um pouquinho, mas agora ela até mesmo
corresponde, se encaixando nos meus braços quando eu a abraço, inclinando
o rosto, como se pedisse um beijo, quando eu me aproximo, e isso me deixa
eufórico.
— Não se preocupa, boneca — afago suas madeixas. — Eu trago
uma comidinha gostosa pra gente, tá? Só descansa aqui, quietinha. Nem
deixa aquela bruxa vir te perturbar, tá bem?
Alice sorri, divertida, e acena.
— Tá bem, então. Bom treino.
— Obrigada, boneca. Até daqui a pouco. — Dou mais um beijinho,
dessa vez na sua testa, porque não sou besta de desperdiçar a oportunidade, e
pisco, me afastando e saindo do quarto.
Cruzo com a encarnação do capeta no corredor e lhe dou uma
encarada mortal, como se a desafiasse a aprontar alguma na minha ausência,
antes de pegar minhas chaves e sair.
Fica longe do meu amor, coisa ruim.
*
— Você tava mó distraído hoje, cara — Pedro resmunga, enquanto
tiramos as luvas e os demais equipamentos de proteção. — Tá com a cabeça
na lua, é?
— Tô com um pressentimento ruim — respondo, esfregando o meu
peito. — Não sei o que é, quero ir pra casa logo. Sinto que a minha boneca
precisa de mim.
Desde que saí de casa comecei a sentir um aperto no peito, uma
sensação estranha, algo que eu não sei explicar. Passei o treino inteiro
pensando em Alice e lembrando do olhar diabólico daquela jararaca quando
passei por ela. Meu instinto me diz que aquela mulher está querendo
aprontar, e eu não consigo ignorar esse pensamento.
— Vai me dizer que agora vocês estão conectados pelas almas e toda
essa baboseira? — debocha, me fazendo revirar os olhos.
— Não sei porque eu ainda te conto as coisas, você nunca vai
entender. Ou melhor, vai quando se apaixonar. — Sigo para os vestiários, já
puxando a camiseta suada por cima da cabeça. Pego o celular e abro a
conversa com o meu restaurante italiano preferido, pedindo uma porção de
fettuccine à bolonhesa e duas lasanhas de abobrinha com ricota, para buscar
no caminho de casa.
— De novo com essa praga, inferno? Vira essa boca pra lá. Eu pensei
que você fosse meu amigo — reclama, me seguindo para os chuveiros.
— Você não sabe como é bom amar alguém, meu nego — respondo.
— Um dia alguém ainda vai te deixar de joelhos.
— Só se for pra chupar uma boceta, meu amigo — retruca, me
fazendo rir. — Coisa que, você, todo apaixonadinho, não faz há dois anos.
Não deve nem lembrar onde fica o clitóris.
— Você é nojento.
— Só digo a verdade, você que não aguenta — responde, me
apontando o dedo por cima da divisória dos boxes. — Mas qual é a onda? A
Alice tá passando mal? Ela tava de boa hoje no escritório. Até saiu pra
almoçar de novo com aquela fedorenta.
Carina foi buscar Alice para almoçar mais três vezes nas últimas
semanas, para o desespero do meu amigo. E, dessa vez, a ruiva foi até o
nosso andar encontrar com a amiga, encontrando Pedro duas vezes, enquanto
ele estava comigo.
— Não entendo essa sua implicância com a menina — comento. —
De fedorenta ela não tem nada, pelo contrário. Além de ser muito gente boa
e engraçada. Tô até achando que isso tudo é charme pra esconder um tesão
encubado.
— Tá doido? — Abre a porta do box ao mesmo tempo que eu,
enrolando a toalha na cintura. — Nem se eu me odiasse muito, Henrique.
Aquela ali é chave de cadeia, a mulher é maluca. Acredita que uma vez ela
foi dizer pro nosso síndico que eu tava usando o apartamento pra fazer
orgia? O cara veio me relembrar que o prédio é lugar de família e que eu
deveria levar minhas atividades carnais pra outro lugar!
Solto uma gargalhada enquanto me visto, recebendo um olhar feio.
— Eu acho é que você finalmente achou alguém à sua altura, meu
amigo. E se prepare, — aponto o dedo para ele — porque se ela é a melhor
amiga da minha boneca e você é o meu, então vocês dois terão muitos
eventos de família pra comparecer, especialmente depois que o bebê nascer.
— Claro, claro, porque vocês estão noivos de verdade, né? —
devolve, fazendo deboche. — Me diz aí, quando vai ser o casamento
mesmo? Acho que o meu convite se perdeu nos correios.
— Vai desdenhando, vai... — Calço os meus tênis e pego a minha
bolsa, colocando-a no ombro. — Fica nessa tua palhaçada que tu não vai ser
convidado de verdade, cuzão. — Ele ri, balançando a cabeça. — Deixa eu ir,
já demorei demais fora de casa.
— Cuidado pra não se engasgar — diz, e eu o encaro confuso. —
Com a tua coleira, parece que tá apertada demais. Cuidado pra não ficar sem
oxigênio.
Mostro o dedo do meio para ele, ignorando a sua risada, e saio dos
vestiários, me despedindo do treinador, que já está guiando sua outra turma.
Entro no carro, olhando o celular para checar se há alguma
notificação da Alice, mas não há. Apenas uma do restaurante, dizendo que os
pedidos estão prontos.
Ligo o carro e o coloco em movimento, seguindo com pressa para lá,
não querendo demorar demais.
Não consigo explicar, mas algo me diz que a minha boneca precisa
de mim.
*
Não preciso dar dois passos para fora do elevador para ouvir a
comoção dentro do apartamento. Morando na cobertura, o andar é exclusivo
para mim, então não há vizinhos para se incomodarem com o barulho, que
parece cada vez mais intenso, à medida que eu me aproximo da porta.
— Eu não vou me aproveitar do Henrique só porque a senhora acha
que tem direito de algo! Eu não sou assim! — A voz de Alice me atinge,
carregada de tanto desespero que, por um segundo, eu perco o chão.
— Você é burra, isso que é! — A bruaca exclama. — Eu não tô
pedindo, Alice! Eu tô dizendo! Dá o seu jeito de conseguir, no mínimo, uns
cinquenta mil desse ricaço, senão eu não arredo o pé pra fora daqui. Acha
mesmo que eu vou perder essa mordomia toda a troco de nada? Negativo, só
volto pra Atibaia com uma grana boa no bolso, e se me prometer triplicar a
pensão que me manda todo mês.
— Triplicar? — Minha boneca responde. — Mãe, eu te mando dois
mil e quinhentos reais, todo santo mês! Tem noção de que isso é mais da
metade do meu salário? — Ofego, completamente surpreso. Por isso ela
mora naquele muquifo!
— Isso é troco pro teu noivo, sua idiota! — Aperto as chaves na mão,
furioso com a forma como ela grita com Alice. — Você trate de abrir muito
bem essas suas pernas e fisgar de vez aquele homem, Alice. Filho não segura
macho nenhum, eu sei bem disso. O que segura é boceta! E com a gravidez,
você já vai ficar toda inchada e cheia de estria, então pelo menos libera esse
negócio todo dia praquele homem, pra ele viciar e não inventar de te largar
justo agora.
— Mãe! — exclama, horrorizada.
— O que? Fez esse filho com o dedo por acaso? — debocha. —
Confesso que fiquei muito orgulhosa de ver que, pelo menos, você soube dar
direito. O dono da porra toda, até que você aprendeu alguma coisa comigo.
— Eu não puxei nada de você! — se defende. — Acha que eu tô com
o Henrique pelo dinheiro dele? Eu não me importaria se ele estivesse falido!
Ele me ama, cuida de mim, me respeita, é por isso que eu tô com ele.
Pisco, emocionado, apesar de já ter certeza de que ela é exatamente
assim.
Boa. Pura. O completo oposto desse Satanás que é a sua mãe.
— Ah, que bonitinho — desdenha. — Acha que amor enche barriga
por acaso, sua tonta!?
— Mãe, pelo amor de Deus...
— Cinquenta mil, Alice. E uma pensão de pelo menos dez mil por
mês — decreta. — Não me interessa como vai conseguir, mas eu só saio
daqui assim.
Me canso de ouvir e abro a porta, me deparando com as duas paradas
no meio da sala, Alice com os olhos vermelhos e a filha da puta com uma
expressão fingida.
— Pois aí é que se engana, dona Olga. A senhora tem cinco minutos
pra recolher todas as suas tralhas e dar o fora do meu apartamento — afirmo.
Ela abre a boca para argumentar, mas eu corto. — Se não o fizer, eu chamo a
polícia e te tiro daqui à força. — Ela arfa, revoltada. — E mais uma coisa, —
me aproximo, apontando o dedo na sua cara — se atreva a falar com a minha
mulher desse jeito de novo, mas só tente. Eu garanto que não vai nem
conseguir anotar a placa do caminhão que vai passar por cima de você.
30 - Alice

Todos os meus sonhos nunca significaram nada?


A felicidade está em um anel de diamante?
Oh, eu tenho procurado por problemas
Bad Liar – Imagine Dragons

Tento me concentrar no novo livro que estou escrevendo, mas a


minha cabeça parece estar meio fora do lugar nos últimos dias. Henrique
saiu há um tempinho e eu não quis sair do quarto, não querendo esbarrar
com o meu tormento pelo apartamento.
Faz duas semanas que a minha mãe está aqui e eu posso jurar que
envelheci dez anos nesse período. Os piores dias são às segundas, quartas e
sextas, quando Henrique vai para o treino.
Com ele em casa, ela solta alguns comentários maldosos, me deixa
envergonhada e desconfortável, mas é suportável. Ele age como uma espécie
de escudo, me protegendo das suas garras, e eu não consigo nem explicar o
quanto sou grata por isso.
Mas em dias como hoje, em que ele não está, ela faz de tudo para se
infiltrar na minha cabeça, com insultos, com xingamentos, exigências
absurdas e comentários maldosos, tudo para me desestabilizar e me
enlouquecer.
Por que eu continuo a me submeter a isso?
Por que eu não consigo dar um basta e expurgá-la da minha vida?
Escuto passos se aproximando, no corredor, e fecho os olhos,
sabendo que não vai demorar para que ela abra a porta do quarto e venha
sugar um pouco mais da minha alma, como de costume.
Não leva nem dez segundos para que ela apareça.
— Teu noivo já foi pro treino? — pergunta.
— Sim — respondo, sem encará-la.
— Eu tô precisando comprar umas coisas e mandar um dinheiro para
a sua avó — começa. — Me arruma uns dois mil aí.
Eu fecho o notebook e me viro para ela, sem acreditar no que estou
ouvindo.
— Você acha que eu tenho esse dinheiro assim, do nada?
— Garanto que em alguma dessas gavetas por aqui deve ter muito
mais do que isso — aponta para a mesinha de cabeceira e para a porta do
closet. — Pensa que eu não sei que é por isso que vocês mantêm esse quarto
trancado enquanto estão no trabalho?
Segui a recomendação de Carina e sugeri para Henrique que
mantivéssemos o quarto dele trancado enquanto minha mãe estivesse aqui.
Ainda me lembro da vergonha que senti em pedir isso, porque foi uma
mensagem clara de que ela seria capaz de mexer no que não deve e até
mesmo roubar, como acaba de me provar.
— E como exatamente a senhora sabe disso? Por acaso tentou entrar
aqui?
— Ora, me poupe, Alice. — Faz um gesto com as mãos, como se não
fosse nada. — Claro que fiquei curiosa em ver a suíte. O meu quarto já é o
puro luxo, isso aqui, então.
— Seu quarto? — pergunto, me levantando e prendendo o meu
cabelo. — Quarto de hóspedes, que por sinal, a senhora já usou por tempo
demais. Não acha que tá na hora de voltar pra casa, não? A vovó pode ficar
sozinha tanto tempo assim?
— Tua prima Luciana tá lá, cuidando dela — retruca. — E você acha
que eu vou largar essa mordomia aqui assim, do nada, Alice? Me poupa, né.
Ela vira as costas e sai do quarto, me deixando para trás, com uma
expressão de espanto.
— Como é que é? — pergunto, seguindo-a para a sala. — Mãe, até
quando a senhora pretende ficar?
— Até eu conseguir alguma coisa que valha a pena, garota —
responde. — Pensa que eu sou besta? Esse teu noivo é rico pra caralho,
Alice, rico de um jeito que nem eu nem você conseguimos nem sonhar. Acha
mesmo que eu vou embora sem uma fatia dessa vida boa que tu vais levar
agora?
— Mãe, o Henrique é rico, eu não sou!
— Não é o que esse anel caríssimo que tá no teu dedo diz — aponta
para a minha mão direita. — Aliás, quanto será que custa esse negócio?
Deve ter sido caro, chuto pelo menos uns cinco mil. Já daria pra trocar a
televisão da sala e comprar a dentadura nova da tua avó.
— Eu não vou vender a minha aliança! — exclamo, horrorizada.
— Você é toda estabanada, não seria difícil acreditar que perdeu em
algum lugar. Garanto que ele compraria outra num piscar de olhos. — Dá de
ombros.
— A senhora tá se ouvindo? Isso é um absurdo!
— Absurdo é eu viver na miséria naquela casa caindo aos pedaços
enquanto você vive aqui, numa cobertura, com um ricaço gostosão, tendo do
bom e do melhor! Eu mereço também, Alice! Estraguei toda a minha vida
por você!
— Eu não pedi pra nascer! — Perco totalmente o controle, gritando.
Minhas mãos tremem, meus olhos ameaçam transbordar e quase como se
meu corpo inteiro entrasse em uma espécie de transe, exausto com tudo o
que eu estou sentindo. — Eu não pedi pra você transar desprotegida com um
moleque irresponsável! Não pedi pra abandonar tudo por mim! Não pedi por
nada! Eu não tenho culpa!
— Eu recebi convites pra modelar, pra ir pra São Paulo, trabalhar em
empresa de grife! Mas não pude, por sua causa! Acha que eu não quis te
tirar? — diz, como se não fosse nada, como se não estivesse me matando por
dentro. — Sua avó não deixou! Veio com aquela besteira de não ser coisa de
cristão. E eu só tomei no cu! Perdi tudo pra virar mãe de uma moleca
catarrenta, que agora não quer me dar o mínimo que eu mereço!
— Merece? — pergunto. — Você me desprezou a vida toda, tira tudo
de mim, me humilha em qualquer oportunidade! Você não merece nada! —
Aponto o dedo na sua cara.
— Pois você vai ter que me engolir — responde. — Quer que eu saia
daqui? Pois bem, me dê cinquenta mil.
— O que?
— Isso que você ouviu.
— E de onde eu vou tirar cinquenta mil reais?
— Arranja com o teu noivo! Garanto que ele deve limpar a bunda
com isso — debocha.
— Eu não vou me aproveitar do Henrique só porque a senhora acha
que tem direito de algo! Eu não sou assim! — Ela está louca, completamente
louca.
— Você é burra, isso que é! —exclama. — Eu não tô pedindo, Alice!
Eu tô dizendo! Dá o seu jeito de conseguir, no mínimo, uns cinquenta mil
desse ricaço, senão eu não arredo o pé pra fora daqui. Acha mesmo que eu
vou perder essa mordomia toda a troco de nada? Negativo, só volto pra
Atibaia com uma grana boa no bolso, e se me prometer triplicar a pensão
que me manda todo mês.
— Triplicar? — Meu Deus do céu, eu não consigo acreditar no que
estou ouvindo. — Mãe, eu te mando dois mil e quinhentos reais, todo santo
mês! Tem noção de que isso é mais da metade do meu salário?
— Isso é troco pro teu noivo, sua idiota! — Ela se aproxima,
apontando o dedo na minha cara. — Você trate de abrir muito bem essas suas
pernas e fisgar de vez aquele homem, Alice. Filho não segura macho
nenhum, eu sei bem disso. O que segura é boceta! E com a gravidez, você já
vai ficar toda inchada e cheia de estria, então pelo menos libera esse negócio
todo dia praquele homem, pra ele viciar e não inventar de te largar justo
agora.
Mal consigo crer no que acabei de ouvir.
— Mãe!
— O que? Fez esse filho com o dedo por acaso? — debocha. —
Confesso que fiquei muito orgulhosa de ver que, pelo menos, você soube dar
direito. O dono da porra toda, até que você aprendeu alguma coisa comigo.
— Eu não puxei nada de você! Acha que eu tô com o Henrique pelo
dinheiro dele? Eu não me importaria se ele estivesse falido! Ele me ama,
cuida de mim, me respeita, é por isso que eu tô com ele.
Eu jamais seria capaz de me aproveitar do Henrique dessa forma.
Nunca.
— Ah, que bonitinho — desdenha. — Acha que amor enche barriga
por acaso, sua tonta!?
— Mãe, pelo amor de Deus...
— Cinquenta mil, Alice. E uma pensão de pelo menos dez mil por
mês — decreta. — Não me interessa como vai conseguir, mas eu só saio
daqui assim.
Antes que eu consiga pensar no que responder, escuto a porta da
frente se abrir e Henrique entra, a expressão fechada na direção da minha
mãe, me fazendo ofegar.
— Pois aí é que se engana, dona Olga. A senhora tem cinco minutos
pra recolher todas as suas tralhas e dar o fora do meu apartamento — Ela
tenta argumentar, mas ele não deixa. — Se não o fizer, eu chamo a polícia e
te tiro daqui à força. E mais uma coisa, — ele se aproxima, fazendo ela
recuar, assustada — se atreva a falar com a minha mulher desse jeito de
novo, mas só tente. Eu garanto que não vai nem conseguir anotar a placa do
caminhão que vai passar por cima de você.
— Você vai deixar ele falar comigo desse jeito? — Ela tem a audácia
de perguntar, ofendida.
Eu não consigo responder, apenas olho para Henrique, que percebe o
meu estado, completamente destruída, e se vira para ela novamente.
— Seus cinco minutos estão contando — afirma. — Se não quiser
sair daqui com a roupa do corpo, eu sugiro que se apresse. Eu garanto que
vou adorar jogar cada trapo que a senhora chama de roupa pela sacada.
— Há! — debocha. — Fala isso agora, mas pensa que eu não vi você
olhando pras minhas pernas mais de uma vez? — pergunta, me fazendo
arregalar os olhos. — Você tome cuidado, Alice. Quanto mais gorda esse
bebê te deixar, mais rápido esse aí vai procurar boceta na rua.
— Eu não trocaria a Alice nem pela modelo mais famosa do mundo,
acha mesmo que eu a trocaria por uma velha nojenta como você!? —
Henrique responde.
Ela arfa, colocando a mão no peito.
— Ora, seu...
— Faltam dois minutos pra eu te colocar daqui pelos cabelos, a
minha mãe que me perdoe. — O seu tom perde qualquer noção de controle e
eu acho que ela percebe, porque o fulmina com o olhar antes de seguir em
direção ao quarto de hóspedes. — Você tá bem? — me pergunta, assim que
estamos sozinhos, se aproximando.
Eu não consigo responder, não sem desabar, então ele apenas me
abraça, enquanto esperamos ela retornar.
— Eu não posso sair daqui uma hora dessas — diz, ao voltar
arrastando a sua mala e com a bolsa no ombro. — Não tem ônibus, como é
que eu vou voltar pra casa?
Henrique puxa a carteira do bolso e saca umas dez notas de cem
reais, entregando-lhe.
— Não são cinquenta mil, mas garanto que é o suficiente pra pagar
um táxi até a sua casa. Agora some daqui.
— Vou esperar seu contato, Alice — se dirige a mim, mas Henrique
se coloca à minha frente, como uma muralha.
— Alice não vai mandar mais um centavo pra vocês — decreta. —
Quer dinheiro, vai trabalhar, se vira. Não vai mais viver às custas da
bondade da minha mulher. Nunca mais. — Ele não deixa ela responder,
puxando a mala da sua mão e seguindo para a porta, arrastando ela consigo.
— Até nunca mais, bruxa maldita.
Fecha a porta na sua cara, e eu não consigo nem sorrir com o apelido
que deu a ela, porque meu corpo começa a sacudir em soluços silenciosos e
sofridos, e em um segundo ele me toma em seus braços, me acalentando.
— Henrique... — murmuro, a dor presente na minha voz.
— Acabou, boneca — responde, me apertando em seu peito. —
Nunca mais ninguém vai te machucar, eu te prometo.
E naquele segundo eu me permito acreditar nele. Por que aqui, em
seus braços, eu sinto como se nada pudesse me atingir.
31 - Henrique

Procure pela garota de sorriso quebrado


E pergunte se ela quer ficar por um tempo
E ela será amada
She Will Be Loved – Marron 5

Ela não para de chorar.


Faz mais de dez minutos que aquela infeliz saiu daqui e a Alice
permanece chorando copiosamente nos meus braços. Cada soluço dela
parece uma facada, atravessando meu peito, bem no meio do meu coração,
me fazendo sangrar por ela e por sua dor.
Minha boneca não merece isso.
Eu deveria ter empurrado a filha da puta da sacada quando tive a
chance.
— Ssh, ssh, minha linda, não chora — murmuro, segurando-a contra
mim bem apertado, e ela só chora mais alto, parecendo uma menininha
indefesa, tão frágil, tão quebrada. — Tá tudo bem, vai ficar tudo bem, eu
prometo.
Ela soluça ainda mais, quase grita, tamanho o seu desespero, e eu
começo a me preocupar que vá passar mal.
Me afasto só o suficiente para encaixar um braço por detrás dos seus
joelhos e a levanto no meu colo, como a princesa que ela é, caminhando até
o sofá e me sentando, com ela encaixada sobre as minhas coxas.
Ela não resiste, se encostando no meu peito e enfiando o rosto de
volta no meu pescoço, seus cabelos cheios atingindo o meu rosto com a
força do seu choro.
Fico ali, acalentando-a, cuidando dela, sussurrando no seu ouvido
que eu vou protegê-la, que ela nunca mais vai passar por isso, que tudo vai
se resolver.
Não sei quanto tempo se passa até que o seu choro se transforme em
pequenos fungados, misturados com alguns soluços fracos, seu corpo todo
relaxando contra o meu. Eu continuo acariciando suas costas e beijando suas
madeixas onduladas, só ficando aqui, do seu lado, sendo o suporte que ela
precisa.
— Me desculpa — ela murmura baixinho, quase inaudível, e eu me
afasto para olhar em seu rosto, com uma expressão confusa.
— Pelo que exatamente você está se desculpando, boneca? —
pergunto.
— Eu trouxe toda essa situação pra sua casa, te fiz passar por isso,
me desculpa.
Oh amor, não faz isso comigo.
— Alice, não tome pra si a responsabilidade nas ações da sua mãe,
por favor — peço. — Ela é adulta o suficiente pra saber muito bem o que é
certo e o que é errado. Não tem o menor cabimento você se culpar por algo
que não tem controle algum. O que aconteceu aqui hoje diz muito a respeito
da sua mãe, mas nada sobre você.
— Mas...
— Ou melhor, — interrompo-a — diz muito a seu respeito também.
— Levo minhas mãos para o seu rosto, limpando os rastros do seu choro e
acariciando-a. — Me diz o quão pura você é. O quão bondosa, honesta,
confiável e perfeita você é, linda. Não deixa o veneno dela te contaminar.
Vocês podem até dividir o DNA, mas você não poderia ser mais diferente
dela.
Ela faz um biquinho tão lindo e tão triste ao mesmo tempo, que me
parte o coração e me acende um desejo de tomá-lo para mim.
— Eu ainda não consigo acreditar... — murmura.
— Eu nem posso imaginar o quão decepcionante deve ser pra você,
boneca. Escutar as coisas que aquele demônio falou, saber o quão podre ela
pode ser. Eu sinto muito, de verdade... — lamento.
— Ela sempre foi cruel, sempre foi ambiciosa, mas hoje... — Solta
um suspiro. — Hoje parece que eu consegui enxergar ela pela primeira vez
na vida, sabe? A minha vida toda eu fui desprezada por ela, humilhada,
maltratada. Mas eu nunca tinha conseguido enxergar o quanto ela pode ser
má, ruim. Eu nunca tinha conseguido entender o quanto ela me faz mal. Eu
não quero ela perto do meu bebê.
— Ela não vai chegar, Alice. — Nossas mãos se encontram no seu
ventre, como se quiséssemos proteger aquele serzinho que ainda nem nasceu
das maldades do mundo. — Eu prometo pra você, ela nunca mais vai chegar
perto de vocês. Eu não vou permitir...
Ela sorri, entrelaçando os nossos dedos e fazendo meu peito retumbar
como um tambor, com a forma que ela me olha.
— Obrigada por me defender...
— Eu sempre vou te defender, minha boneca — respondo, usando a
outra mão para afagar seus cabelos. — Ninguém mais vai te machucar, eu
não vou deixar — prometo.
Seus olhos negros parecem ainda mais profundos enquanto ela me
encara, parecendo querer memorizar cada centímetro do meu rosto. Eu sinto,
em todo o meu corpo, quando ela se aproxima um pouco mais, fitando a
minha boca e entreabrindo a sua, me convidado, me instigando a cometer
uma loucura.
E eu quase cedo.
Por muito pouco.
Mas quando ela fecha os olhos, eu me lembro da forma com que ela
estava soluçando no meu colo há menos de dez minutos, e não consigo
aceitar que o nosso primeiro beijo será assim.
Não desse jeito, por agradecimento.
Não com ela confusa desse jeito, machucada, abalada
emocionalmente.
Eu não consigo.
Então eu levanto a cabeça e, quando ela se aproxima, pouso meus
lábios na sua testa, em um beijo suave, tentando encaixar ali tudo o que eu
sinto, toda a minha devoção por ela, o meu amor, o meu cuidado e carinho
por essa mulher.
Sinto seu corpo travar sobre o meu, recuar, e apenas a pressiono
contra mim, não querendo, de forma alguma, que ela se sinta rejeitada. Só
não consigo manchar o nosso primeiro beijo desse jeito. Então, quando ela
se afasta, o rosto ruborizado de vergonha, desviando os olhos dos meus e
buscando uma forma de fugir, eu a seguro pela nuca, encostando a minha
testa na dela.
— Assim não — murmuro, nossas respirações se misturando quando
ela ofega. — Quando eu te beijar, não vai ser em um momento em que você
esteja vulnerável desse jeito. Não vai haver espaço pra arrependimentos, pra
dúvidas. — Me afasto, encontrando suas íris negras, sua expressão desejosa,
que quase me faz desistir. — Quando eu te beijar, — continuo, tocando em
seu rosto — vai ser porque nós dois não conseguimos mais resistir, porque o
desejo foi tão grande, que nos dominou. Me recuso a manchar esse momento
com um beijo de gratidão, Alice.
— Henrique...
— Quando eu te beijar, — prossigo, fitando sua boca hipnotizante —
vamos ser apenas nós dois, sem fantasmas, sem dúvidas, sem nada que possa
estragar essa lembrança — explico. — Porque eu sei que vou querer me
lembrar desse momento pro resto da minha vida, boneca. — Ela arqueja, sua
respiração descompassada e o olhar vidrado, alternando entre meus olhos e
minha boca. — Entende?
— Sim... — murmura, acenando.
— Bom — me inclino e dou outro beijo na sua testa, sorvendo o seu
cheiro e o seu gosto, tentando me manter são. — Agora vamos comer um
pouco? Vocês precisam se alimentar antes de dormir.
Ela assente e sai do meu colo, se levantando.
Eu me vou até o hall de entrada e pego a sacola do restaurante, que
deixei no aparador quando entrei, seguindo para a cozinha.
— O que você trouxe? — pergunta, tentando olhar por cima do meu
ombro.
— Fettuccine à bolonhesa e aquela lasanha de abobrinha e ricota que
você gosta.
Ela geme, de um jeito tão gostoso que, por muito pouco, meus
joelhos não cedem.
Deus do céu, me dê discernimento para não cair em tentação.
Arrumamos a mesa e nos sentamos para comer. Ela parece um pouco
mais calma e, apesar de querer enterrar o assunto, ainda tem uma coisa
martelando na minha cabeça.
— Por que você mandava mais da metade do seu salário pra ela,
Alice? — pergunto, vendo-a congelar. — Era por isso que você morava
naquele apartamento?
Me esforço para não chamar aquele lugar de buraco, porque é o que
ele é. Um buraco, podre, mofado, perigoso e completamente inapropriado
para a minha boneca.
— Ela sempre enfatizou a dívida que eu tinha com ela, sabe? —
explica, enquanto tenta comer. — Desde que eu fiz uns dezesseis anos, ela
começou a ser mais enfática quando jogava na minha cara o quanto eu tinha
acabado com os sonhos dela. Dizia que eu tinha que fazer a minha parte, que
agora que eu tinha crescido, precisava começar a retribuir todo o esforço
dela, os sacrifícios.
— Ela não fez nada além da obrigação dela, boneca... — comento.
— Intelectualmente eu sei disso, Henrique — responde. — Mas eu
escutei tanto que precisava cuidar da família, que tinha que retribuir, ajudar,
que não podia deixar a minha mãe morrer de trabalhar, que precisava fazer a
minha parte, e essas coisas foram se infiltrando na minha mente, sabe? —
pergunta e eu assinto. — Minha avó também, apesar de ser mais calada,
sempre disse que família é tudo, que eu precisava priorizar elas duas acima
de qualquer coisa, que eu não seria nada sem a minha família.
— Como se família fosse apenas sangue e DNA. — Apesar de ter
crescido em um lar amoroso, vi de perto o que pais narcisistas e tóxicos
conseguem fazer com a cabeça de um filho, com a forma que o meu melhor
amigo sofreu.
Odeio essa ideia de dívida, de que os filhos devem algo aos pais e
têm que pagar quando crescem.
Não quer fazer sacrifícios? Não quer perder coisas na vida? Não quer
abrir mão de nada?
Então não tenha filhos, porra!
Agora não coloque nas costas de quem não pediu pra nascer a
responsabilidade pelas suas frustrações de vida!
— Hoje eu enxergo isso melhor — continua. — Quando me mudei
pra cá, sob muitos protestos delas, consegui me desvincular de muito do que
me prendia àquela casa, sabe? Conheci a Carina enquanto estava tendo uma
crise de ansiedade, porque eu tinha tanto medo de errar, tanto medo de ser
criticada, que não soube lidar com uma frustração da faculdade.
— Meu Deus, Alice... — murmuro, pegando a sua mão. — Você já
fez terapia?
— Não — nega, beliscando um pedaço da lasanha. — O yoga me
ajudou muito a me controlar, faz anos que não tenho uma crise. Mas nunca
fiz.
— Se me permite, — começo, esperando-a assentir — eu acho que
seria bom pra você procurar uma ajuda psicológica. Principalmente
considerando o bebê. Você vai ser mãe agora, Alice. Ou melhor, você já é
mãe. Precisa se libertar dessas amarras com o passado pra conseguir lidar
com o desafio da maternidade da melhor forma.
— Eu já tinha pensado nisso — murmura. — Você acha importante
mesmo?
— Acho — respondo, sem hesitar. — Se você quiser, eu conheço
alguns psicólogos. Benji tem alguns contatos, da época que se divorciou, e
eu também já fiz muita terapia, na adolescência, pra lidar com a ausência da
mamãe.
Alice pondera por alguns instantes, mas quando vejo a forma como
ela olha para baixo, pousando a mão no seu ventre, eu sei que tomou a
decisão certa.
— Eu aceito. Aceito a sua ajuda...
Não aguento o sorriso e me levanto, me ajoelhando diante dela e
segurando o seu rosto com as mãos.
— Eu vou cuidar de vocês, Alice. Prometo que vou.
Eu farei o meu propósito de vida cuidar da Alice e desse bebê. Eles
dois são o meu mundo, e eu farei o impossível para me tornar o mundo deles
também.
32 - Alice

O seu amor é mais brilhante do que nunca


Mesmo nas sombras
Amor, me beije, antes que eles apaguem as luzes
XO - Beyoncé

— E como estão as coisas por ai? — pergunto para Carina, enquanto


coloco um pouquinho de manteiga na panela.
— Um inferno, como sempre — resmunga. — Os dois se odiando e
se xingando o tempo inteiro, mas fingindo ser um casal apaixonado no
segundo que alguém chega perto. Não aguento mais isso, juro.
— Por que você foi, Carina? — questiono, abrindo o armário e
pegando o milho para a pipoca. — Poxa, você já não pegou a herança da sua
avó? Sinceramente, não entendo porque ainda não cortou contato de vez com
eles.
— Olha quem fala, a suja falando da mal lavada — acusa.
— Ei! — Aponto o dedo para a câmera. — Eu bloqueei a minha mãe,
tá? E a vovó também!
Faz mais de uma semana desde o fatídico dia em que Henrique
enxotou a minha mãe daqui. Desde então, ela tentou contato comigo
algumas vezes, por ligação ou com mensagens ameaçadoras, até que eu
bloqueei o seu número. Daí ela tentou contato pelas redes sociais, onde
também foi bloqueada. Graças a Deus o meu perfil é privado, então ela não
consegue criar um fake para me perturbar.
A sua última tentativa foi feita com o número da minha avó, que
também foi bloqueado.
Acabei excluindo toda e qualquer pessoa da família, além de
qualquer conhecido dela, que poderia levar algo da minha vida para os seus
ouvidos. Foi uma limpa necessária, que me deixou com uns cinquenta
seguidores a menos e o coração muito mais leve.
— Você sabe que eu ainda tenho contato por causa da Michele —
explica, e é verdade, eu sei.
A irmãzinha mais nova da minha melhor amiga é o único motivo
pelo qual ela ainda mantém contato com os seus pais. A menina tem treze
anos e agora, mais que nunca, sente os impactos da relação tóxica dos pais,
além de começar a sofrer com as cobranças para se tornar uma médica
renomada.
Os pais de Carina são um casal de cardiologistas que tinha um
consultório muito famoso em São Paulo e, depois de não conseguirem
controlar a carreira da filha mais velha, colocam na caçula toda a pressão de
seguir a vocação da família.
A avó materna das meninas deixou uma herança considerável para as
duas, mas a cláusula de idade no testamento exige que elas tenham vinte e
cinco anos completos para ter acesso ao dinheiro.
Carina já conseguiu a sua há dois anos, mas Michele ainda tem doze
anos pela frente, antes de conseguir a independência.
— Você conversou com ela? Eles continuam com a pressão pra ela
começar o cursinho? — A menina não ainda nem terminou o ensino
fundamental ainda e os desgraçados já querem colocá-la num cursinho
preparatório para o vestibular.
— Sim, e eu tô puta! — exclama. — A Mi tem treze anos, Alice,
treze! O que ela vai fazer num pré-med, cara? É doentio!
— Oh amiga, e como ela tá? — pergunto, sacudindo a panela
enquanto os milhos estouram.
— Ela tenta se fazer de forte pra não me deixar preocupada, mas eu
sei que essa situação toda tem afetado demais ela. É só uma criança, amiga.
Só uma menina — lamenta.
— Eu sinto muito, amiga...
Carina suspira, fechando os olhos brevemente e sacudindo a cabeça.
— Enfim. Tá sozinha? Cadê teu noivinho?
— Foi almoçar na casa do pai dele — respondo.
— E você não quis ir conhecer o seu sogro? — debocha, me fazendo
revirar os olhos.
— Ele convidou, mas eu não quis ir.
É domingo e, como sempre, dia de almoço de família na casa do
patriarca dos Lacerda. Henrique, mais uma vez, me convidou para ir com
ele, mas eu não consegui aceitar. A ideia de chegar na casa do pai dele como
noiva falsa é demais para que eu consiga lidar.
— E como tá essa brincadeira de casinha de vocês? — Carina
pergunta e eu suspiro.
— Cada dia mais difícil, amiga.
— Nunca mais rolou nada? — Eu contei a ela sobre o nosso quase
beijo, no dia da discussão.
— Não, nada — respondo. — Eu tô tão confusa, amiga.
Sinceramente, não sei muito bem o que fazer, como agir perto dele. Tem
horas que eu tenho vontade de acabar com tudo e voltar pra casa, mas em
outras... ah, eu só quero agarrar ele.
— Ainda não agarrou de besta que é — resmunga.
— Carina!
— É sério, Alice — continua. — Esse homem lambe o chão que tu
pisa, cara! E tu ainda fica de não-me-toques? Porra, deixa de ser bocó, agarra
esse macho!
— Não é simples assim... — começo, mas ela não me deixa
continuar.
— É simples sim — contrapõe. — Você que tá colocando dificuldade
onde não tem. Ele já não disse que quer te beijar?
— Não exatamente.
— Alice, não se faz de otária, o cara disse “quando eu te beijar” e
não “se eu te beijar”. Precisa ser mais explícito que isso?
— E por que sou eu que tenho que tomar a atitude? Por que ele não
me agarra?
— Porque você já disse que o cara é um príncipe, amiga! Ele é o teu
chefe, ele é o ricaço, ele é o dono do apartamento, a balança de poder pesa
mais pro lado dele. Acha mesmo que ele vai arriscar te deixar
desconfortável? Ele não vai ultrapassar os teus limites, você sabe disso. Mas
ele tá deixando todos os sinais aí, de bandeja. Porra, não tem mais nem
motivos pra esse noivado falso de vocês! Você não precisa mais mentir pra
jararaca da sua mãe.
Mordo o lábio, ponderando a situação.
Nunca fui insegura, de jeito nenhum.
Desde que iniciei minha vida sexual, se eu queria ficar com um cara,
ia lá e ficava.
Mas acho que o problema é justamente esse. Henrique não é um cara
qualquer. E o que eu quero não era uma ficada. É algo muito maior, muito
mais profundo.
E eu morro de medo por isso.
— Não sei, Cá... — murmuro.
— Quem tá perdendo tempo é você. Eu já tinha sentado nesse
homem tanto, mas tanto, que a marca da minha bunda nunca mais ia sair da
coxa dele.
— Carina! — Solto uma risada incrédula.
— Uhum, puritana! Fez esse bebê com o dedo, né? — debocha.
Escuto algumas vozes ao fundo e ela puxa a respiração, fechando os olhos.
— Vou precisar desligar, tá amiga? Pensa no que eu te falei, deixa de ser
besta.
— Também te amo — respondo.
— Te amo, sua chata. Beijo em você e no meu afilhado!
A tela fica preta e eu sorrio, balançando a cabeça.
Apesar das brincadeiras, eu sei que Carina tem razão e eu preciso dar
um basta nessa situação toda. Depois da partida da minha mãe, não há mais
motivo algum para mantermos essa farsa, mas mesmo assim continuamos
aqui, brincando de casinha, como a minha amiga bem descreveu.
Porra, eu sequer me mudei para o quarto de hóspedes.
Essa hipótese nunca foi nem cogitada.
Dormir ao lado de Henrique se tornou tão natural que qualquer outra
opção é simplesmente ignorada.
Nós dois estamos nos fazendo de besta, e essa é a verdade.
Coloco a pipoca pronta em uma tigela e pego o vidro de ketchup na
geladeira, jogando uma quantidade generosa por cima.
Vou até a sala, me ajeitando no sofá e ligando a TV, abrindo o
aplicativo de streaming para escolher um filme.
Já passa das três da tarde e, depois de passar algumas horas
escrevendo meu novo romance, decidi vir descansar um pouco, assistindo
algo na tela gigantesca do Henrique. Isso aqui parece até um cinema, de tão
grande, e eu logo escolho um dos meus filmes preferidos da vida, me
aprumando nas almofadas, com o balde de pipoca no colo.
Quando estou distraída vendo a Julia Roberts negociar o valor da noite
dela com o Richard Gere[14], escuto o barulho das chaves na porta e então
Henrique entra no apartamento, me dando um sorriso.
— Hum, o filme da prostituta, legal — comenta.
Eu reviro os olhos, pausando a cena.
— Mais respeito com o melhor romance de todos os tempos da
história do cinema, mocinho. — Aponto o controle para ele, que sorri.
— Oi, boneca — me cumprimenta, se aproximando e deixando um
beijo nos meus cabelos. — Tudo bem com vocês? Desculpa demorar, a
Lúcia fez um bolo de cenoura e eu quis esperar pra trazer um pedaço pra
você.
Ele me entrega um potinho e eu gemo, ao abrir e ver o bolo com a
cobertura de chocolate.
— Não precisava se incomodar, mas obrigada.
— Todos perguntaram por você — diz, se sentando ao meu lado e
colocando os meus pés na sua coxa. — Bibi disse que se você não for
domingo que vem ela vem aqui te arrastar pelos cabelos.
Solto uma risada, feliz e ao mesmo tempo assustada com a ideia de
conhecer a sua família e me envolver ainda mais.
Só que um olhar desse homem me faz perceber que eu estou apenas
me enganando. É impossível me envolver ainda mais do que eu já estou,
porque Henrique vem dominando cada pensamento meu, cada sensação do
meu corpo, todo santo dia, o tempo todo.
— Posso assistir com você? — pergunta, apontando para a TV, e eu
assinto. Ele dá o play e enfia a mão no meu balde de pipoca, só para retirá-
la, me olhando com uma expressão espantada e enojada. — Que porra é
essa, Alice?
Ele olha para as mãos sujas de molho vermelho como se fosse
vomitar.
— Pipoca com ketchup, ué — respondo, dando de ombros.
— Ketchup? — Arregala os olhos. — Meu Deus, que coisa mais
nojenta — exclama. — Espera! Esse é um daqueles desejos de grávida? Eu
perdi o seu primeiro desejo de grávida, boneca?
Seu rosto se torna tão tristonho, como se a ideia de perder esse
momento fosse devastadora para ele.
— Não, Henrique, eu sempre comi pipoca com ketchup. É gostoso ­‐
— explico.
Ele me olha como se eu tivesse três cabeças.
— Você tem sorte de ser tão bonita, boneca, porque olha. — Balança
a cabeça. — Pipoca com ketchup, meu Deus, que nojo — reclama, se
levantando e indo até a cozinha para lavar as mãos.
Ainda consigo ouvir seus resmungos daqui, e não consigo controlar
um sorriso, ao pensar que isso aqui pode ser a minha vida agora.
Pouso a mão no meu ventre, pensando no meu bebê de onze
semanas.
Será que eu realmente poderia sonhar com algo tão perfeito assim?
33 - Henrique

Segredos que eu tenho guardado em meu coração


São mais difíceis de esconder do que eu pensei
Talvez eu só queira ser seu
Eu quero ser seu, eu quero ser seu
I Wanna Be Yours – Arctic Monkeys

— Eu queria te levar pra passear hoje, você topa? — Solto a pergunta


enquanto estamos tomando café da manhã.
É uma quarta-feira, décimo-segundo semanassário do bebê e eu
quero levar a minha boneca para um encontro, só nós dois (ou melhor, nós
três).
Claro que não vou dizer que é um encontro, para não a assustar,
então sugiro um passeio simples, coisinha de nada, com a minha melhor cara
de inocente.
— Passeio? — indaga. — Mas hoje você não tem treino?
— Eu falto, ué. — Dou de ombros. — Um diazinho só não vai fazer
diferença, vou continuar lindo e forte — respondo, fazendo charme e
ganhando uma gargalhada linda de presente.
— E pra onde nós vamos? — pergunta.
— Ah, — me levanto, apertando o seu nariz e piscando, antes de
pegar nossas xícaras para levar para a pia — isso é uma surpresa, mocinha.
Só preciso saber se você topa. — Ela me olha desconfiada, antes de acenar, e
eu sorrio, me inclinando para deixar um beijo em sua testa. — Marcado
então, boneca. Vamos direto do trabalho, ok? Se quiser, seria bom levar uma
roupa para trocar. Eu vou levar, não quero sair de terno.
— Não dá tempo de vir em casa? — Meu coração dá até uma
cambalhota dentro do peito ao ouvi-la chamar esse apartamento de casa.
— Vai ficar muito apertado — nego. — Você pode se trocar no
banheiro do meu escritório, não se preocupe.
— Tá bem então, vou separar uma roupa. Já volto.
— Vou colocar as louças na lavadora e então podemos sair —
respondo.
Fico babando nela, como sempre, observando-a andar em direção ao
nosso quarto, e solto um suspiro antes de abrir a lava-louça.
Está cada vez mais difícil suportar a nossa aproximação sem fazer
nada. Eu não vou nem ser hipócrita de dizer que está difícil disfarçar o meu
amor e meu desejo por ela, porque eu sei bem que não disfarço porra
nenhuma.
Tem que ser um tremendo idiota para não perceber o quão rendido
por essa mulher eu sou.
E minha boneca não é idiota.
Pelo contrário, ela é brilhante.
Tão brilhante que eu passei a tarde inteira, ontem, ignorando as
quarenta tarefas que eu tinha que fazer durante o expediente porque
simplesmente não conseguia largar o livro dela.
Com certeza, o livro da Alice é uma das melhores coisas que eu li
nos últimos anos, senão a melhor. Ainda não dei nenhum feedback para ela a
respeito, porque marquei uma reunião hoje com alguns dos nossos editores e
vou passar o manuscrito para eles analisarem, sem dizer quem é a autora.
Se eles concordarem comigo e confirmarem que vale a pena publicar,
coisa que tenho quase certeza de que acontecerá, aí eu converso com ela
sobre usar ou não o seu nome real ou um pseudônimo.
Mal posso esperar para ver o seu rostinho animado quando eu contar
para ela. Alice carrega consigo muitas inseguranças, infelizmente. Fruto da
criação horrível que teve nas garras daquela tribufu da mãe dela, mas eu
prometi a mim mesmo que darei tudo de mim para ajudá-la a enxergar
exatamente quem ela é.
A mulher mais linda do mundo, a mais inteligente, mais esperta, mais
bondosa, mais perfeita, mais tudo.
Alice é tudo.
E eu vou conseguir que ela acredite nisso.
*
— Tá pronta, boneca? — pergunto, em direção ao banheiro do meu
escritório. — Temos que chegar lá antes das seis e meia!
Meus planos incluem um lindo pôr do sol, então não podíamos nos
atrasar.
— Tô pronta, tô pronta! — ela responde, abrindo a porta e saindo de
lá, pronta mesmo, mas para me causar um AVC.
— Por Deus, Alice — murmuro, embasbacado.
Ela trocou o seu terninho de alfaiataria de sempre por um vestido
longo, branco, com uma estampa de flores cor-de-rosa, de alças finas e um
decote moderado, que realça o seu colo. A saia é esvoaçante, com uma fenda
do lado direito, até a sua coxa, me causando uma coceira nas mãos, com
vontade de tocar naquele pedaço de pele.
— Estou apropriada? — pergunta, dando uma voltinha e trazendo
consigo o infarto iminente.
Seus cabelos estão bem armados hoje, as ondas negras despencando
por suas costas nuas, já que acabo de descobrir que o vestido tem uma
amarração atrás, que deixa toda a sua pele à mostra, até a altura da saia, no
início do quadril.
— Eu pensei que você gostasse de mim — murmuro, ainda atônito.
— Como assim?
— Você me odeia — afirmo. — É por isso que quer me matar. Não
tem outra explicação pra surgir tão linda assim na minha frente. Quer me
infartar, não é?
Ela cora, suas bochechas ficando da mesma cor das flores do seu
vestido e eu me aproximo, correndo os olhos por todo o seu corpo mais uma
vez.
— Henrique... — sussurra, afetada.
Meus lábios formigam, implorando para que eu ceda e a tome para
mim, provando o seu gosto que, com certeza, deve ser tão pecaminoso
quanto sua beleza.
Mas eu sei que ainda não é a hora.
— Vamos? — pergunto, deixando que ela enxergue tudo, a forma
como me deixa zonzo, o jeito que eu perco o prumo só por estar em sua
frente.
Eu quero que ela veja, que ela saiba. Quero que ela pense nisso vinte
e quatro horas por dia, assim como eu penso nela. Quero que ela perca
qualquer noção de autopreservação e sinta o mesmo desespero que eu sinto,
a mesma necessidade.
— Vamos — ela murmura em resposta.
Eu faço menção para que ela saia, seguindo-a de perto, pegando a
minha pasta e a capa do meu terno. Já havia me trocado antes dela, optando
por uma calça jeans e uma camisa polo branca, o que me faz pensar que, sem
perceber, nós dois estamos combinando, como um casal de namorados.
O reflexo que criamos na porta do elevador, quando entramos, coloca
um sorriso enorme no meu rosto, e uma expressão de timidez no de Alice.
Tão linda, Deus.
Saímos no térreo, recebendo alguns olhares curiosos pelo caminho, e,
quando percebo Alice se encolher ainda mais, pego sua mão na minha, lhe
dando um olhar carregado de tudo o que eu sinto, para que ela não tema.
Não tenho vergonha de andar com ela.
Muito pelo contrário.
Meu peito estufa e minhas bochechas até doem de tanto que eu quero
sorrir.
Não anunciamos a ninguém o nosso “noivado”, mas eu sei que as
notícias se espalham rápido pela empresa, ainda mais uma fofoca como essa.
Nunca ouvi comentário algum, e espero sinceramente que Alice também não
o tenha, mas se falarem, eu não me importo nem um pouco.
Que o mundo inteiro saiba, quem sabe assim o meu sonho se torna
realidade.
Quem sabe assim, a farsa se torna real.
*
— Não acredito! — Sorrio da sua exclamação, assim que ela
percebe exatamente onde eu estou estacionando. — Não acredito, Henrique!
Ela parece uma menininha animada, toda serelepe, batendo
palminhas e pulando no banco do carro.
— Gostou da surpresa, boneca?
No último domingo, depois de assistirmos ao filme enquanto Alice
cometia o crime de comer pipoca com ketchup (eca!), nós ficamos mais um
bom tempo na sala, conversando sobre tudo e nada ao mesmo tempo.
Pedimos uma pizza para jantar, e conversamos mais um pouco, até tarde da
noite, quando fomos nos deitar.
No meio do nosso papo, falamos um pouco sobre as minhas
lembranças favoritas da infância, e eu contei sobre uma vez que meus pais
levaram a gente em um parque de diversões em uma cidade vizinha.
Foi aí que Alice partiu o meu coração dizendo que nunca tinha ido a
um.
Claro que não era de se estranhar que a bruxa nunca tenha feito isso
pela filha, mas ainda assim, seus olhinhos tristonhos me perseguiram a noite
toda, pensando em uma Alice menininha, doida para andar uma roda-
gigante, sem ter essa oportunidade.
Descobri por acaso, em uma conversa no Muay Thai, na segunda,
que esse parque estava na cidade, e não pensei duas vezes antes de planejar
um passeio para nós.
E que dia melhor do que o semanassário do bebê, não é?
— Essa é uma das coisas mais incríveis que alguém já fez por mim,
Henrique — murmura, um pouco emocionada. — Obrigada, de verdade.
Eu levo minha mão até a sua bochecha, acariciando a sua pele macia,
e lhe dou um sorriso gentil.
— De nada, minha boneca — sussurro. — Vamos? Temos que subir
na roda-gigante antes das seis e meia. — Olho no relógio, vendo que
chegamos bem a tempo.
— Vamos ver o pôr do sol? — advinha, soltando o cinto e abrindo a
porta.
Eu travo o carro, encontrando-a do outro lado e segurando sua mão.
— Vamos ver o sol se por lá do céu, Alice... — afirmo, adorando a
forma como seus olhos brilham.
Ai, amor, o que eu não faria por você...
Ela não consegue tirar o sorriso do rosto e eu queria ter coragem o
suficiente para puxar o meu celular e tirar uma foto, só para eternizar o quão
perfeita ela está hoje. O quanto eu consegui fazê-la feliz.
Compro os ingressos, optando pela opção de passe livre para todos os
brinquedos, e Alice quase dança, de tanta animação. A funcionária do parque
coloca nossas pulseiras e nós seguimos diretamente para o brinquedo mais
alto de todos, bem no meio do parque, rodando e rodando, todo colorido e
com luzes piscando.
— É tão grande, tão lindo... — Alice sussurra, maravilhada.
Eu sorrio, apoiando a mão na sua coluna, para que ande em direção à
pequena fila na entrada da roda-gigante.
Por ser quarta-feira, não há muito movimento, então logo chega a
nossa vez e o funcionário abre a grade de acesso, assim que o nosso banco
chega. Eu me aproximo dele, fazendo um pedido bem baixinho, para que
Alice não ouça, e coloco discretamente uma nota de cem na sua mão.
Ele assente e indica para que subamos na plataforma, e então ajudo
Alice a entrar no nosso banco. É um assento espaçoso, mas eu não sou besta
nem nada e me sento bem perto dela, colocando um braço por trás dela,
apoiado no encosto, e fecho a proteção sobre nossas coxas.
Alice parece extasiada com tudo, com a vista, os sons, o cheiro,
parece que todo o seu corpo está em alerta, absorvendo cada detalhe daquela
experiência tão sonhada, tão esperada.
O rapaz coloca a roda em movimento e começamos a subir, a vista
do parque se expandindo à nossa frente, e ela se inclina para a frente,
olhando para baixo e exclamando em surpresa, virando na minha direção e
me presenteando com o sorriso mais lindo que eu já vi em seu rosto.
— Você é tão linda — murmuro, incapaz de me controlar, e ela cora,
se endireitando e me olhando intensamente.
Eu encaixo a minha mão no seu queixo, passando o polegar pela pele
da sua bochecha rosada, correndo meus olhos por cada centímetro do seu
rosto, totalmente embasbacado com tamanha beleza.
— Henrique... — ela sussurra, de um jeito que quase me faz sonhar
acordado, como se ela estivesse implorando por mim, como se a necessidade
estivesse a sufocando do mesmo jeito que me deixa sem ar, sem capacidade
de raciocínio.
Nosso olhar se quebra com o movimento mais brusco do banco,
quando o funcionário para a roda no ponto mais alto, nos fazendo ter uma
vista privilegiada da cidade e, principalmente, do sol se pondo lá no
horizonte.
— Que coisa mais linda... — ela sussurra, emocionada.
Eu abraço seus ombros e quase morro quando ela pousa a cabeça no
meu peito, se curvando na minha direção e me abraçando pela cintura.
Fecho os olhos, absorvendo aquela sensação como se fosse uma
droga, capaz de me deixar completamente alucinado de desejo.
Ficamos ali, parados, vendo o sol se pôr, por vários minutos, do jeito
que pedi para o funcionário, e eu quero que o tempo congele, que o mundo
inteiro pare de girar, só para que eu possa ficar mais tempo aqui, com ela em
meus braços.
Alice pode desconfiar do meu interesse por ela, mas tenho certeza de
que não faz a menor ideia do que isso aqui representa para mim. Ela não faz
ideia do quão rendido eu sou. Ela não imagina o poder que tem sobre mim, o
que eu faria por ela.
Porque a resposta é tudo.
Eu faria tudo por Alice, tudo para vê-la feliz, exatamente como
agora.
Ah, amor... se você ao menos soubesse...
34 - Alice

Esse turu-turu-turu aqui dentro


Que faz turu-turu quando você passa
Meu olhar decora cada movimento
Até seu sorriso me deixa sem graça
Quando Você Passa (turu-turu) – Sandy e Junior

— Prontinho, uma batata frita com bastante ketchup, porque nela é


normal, viu, dona Alice? Na pipoca, não, nojento! — Rio quando Henrique
me entrega a cestinha de batatas, lembrando da sua reação no domingo.
— Você não sabe o que tá perdendo, é uma delícia — respondo,
ganhando uma revirada de olhos.
Ele se senta do meu lado, dando uma mordida no seu hot-dog, e
piscando para mim, uma expressão divertida em seu rosto.
Nós comemos em silêncio, por alguns minutos, e eu me permito
apenas relaxar, aproveitando a sensação de plenitude que venho sentindo a
noite inteira.
Henrique me surpreendeu demais hoje.
Quando sugeriu um passeio, nunca passou pela minha cabeça que ele
iria realizar o meu sonho de vir em um parque de diversões. Mas não deveria
me espantar tanto assim. Esse homem parece ter feito o seu propósito de
vida me deixar sem palavras e sem reação.
Cada coisinha que ele faz, cada gesto, cada momento de pura
felicidade que ele me proporciona, tudo me deixa ainda mais confusa e, ao
mesmo tempo, ansiosa por mais, querendo saber o que mais ele pode me dar,
até onde ele seria capaz por mim.
Fomos em quase todos os brinquedos desse parque, dos mais bobos e
infantis, até alguns mais radicais, apesar de ter ficado longe daqueles mais
perigosos, por causa da gravidez. Foi engraçado demais compartilhar essa
experiência com o Henrique, divertido e mágico, de um jeito que eu nunca
pensei que pudesse ser.
— Tá sujo de molho aqui. — Pego um lencinho em cima da mesa e
me inclino, limpando os resquícios de hot-dog da sua barba rala, ofegando
com o jeito que seus olhos faíscam para mim.
Desde que minha mãe se foi, mas, principalmente, desde domingo,
nossa relação parece ter se elevado mais um pouco, subido mais um patamar,
e esses momentos de silêncio carregado de algo mais têm sido cada vez mais
frequentes.
— Vou comprar mais uma água pra mim, você quer? — me pergunta,
limpando as mãos ao terminar de comer.
— Quero sim.
— Já volto, boneca. — Ele se curva e deixa um beijo em meus
cabelos antes de ir em direção à barraquinha de bebidas.
Fico o observando, enquanto termino de comer minhas batatas, e
vejo o momento em que uma loira se aproxima dele, sorrindo e enrolando
uma mecha de cabelo, falando alguma coisa. Henrique assente, educado,
mas não dá muita atenção, se voltando para o vendedor.
A mulher insiste e eu arfo no instante que ele levanta a mão direita,
mostrando a aliança e balançando a cabeça, em uma negação, fazendo a loira
murchar.
Não sei explicar muito bem o que o gesto causa em mim e luto contra
o sorrisinho que quer despontar em meus lábios ao vê-la se afastar, enquanto
ele termina de pagar o rapaz da barraca.
Óbvio que não pensei que ele iria dar trela para outra estando aqui
comigo, mas essa situação me desperta um pensamento que ainda não tinha
dado atenção.
Eu nunca vi Henrique envolvido com ninguém, nesses dois anos
trabalhando juntos. E isso seria algo comum, certo? Uma secretária
interceptar alguma ligação, ou comprar algum presente, marcar um jantar,
não sei, qualquer coisa que me indicasse uma vida amorosa.
Mas isso nunca aconteceu.
Será que ele não costuma ter casos ou simplesmente é muito discreto
a respeito?
Algo dentro de mim grita pela primeira opção, mas parece algo
totalmente sem sentido. Henrique é lindo, educado, gentil, rico.
Como que esse homem não tem uma fila de mulheres implorando
para ficar com ele?
Por que ele ainda está solteiro?
— Aqui, boneca. — Ele destampa uma garrafinha de água e coloca
na minha frente, se sentando novamente no banco, enquanto bebe a sua. —
Tudo bem? — pergunta, vendo que eu não faço menção de pegar a água.
— Eu posso te perguntar uma coisa? — Não consigo me controlar.
— Claro que sim, qualquer coisa — responde, assentindo.
— Você costuma se envolver com alguém? — pergunto.
— Como assim? — Franze o cenho, confuso.
— Eu trabalho pra você há quase dois anos e nunca vi nenhum
indício de namorada, ficante ou qualquer outro rolo — explico. — Não sei,
fiquei curiosa. Você disfarça muito bem ou não tem muitos contatinhos?
— Eu não tenho nenhum contatinho, Alice — responde, sem hesitar.
— Mas como? Você não sai com ninguém?
Henrique suspira, desviando o olhar do meu e ficando em silêncio
por um momento. Estou quase prestes a pedir desculpas e dizer para que
esqueça o assunto, quando ele me olha novamente e responde.
— Você já ouviu falar em demissexualidade?
Mordo o lábio, confusa, e penso um pouco antes de responder.
— Acho que já ouvi o termo, mas não sei direito o que significa.
— Eu também não sabia — explica. — Sempre me senti meio
diferente, sabe? Sou amigo do Pedro desde que éramos moleques e várias
vezes me peguei perguntando o porquê de eu ser tão diferente dele quando o
assunto era mulher. Dele e de todos os outros amigos que já tive e tenho.
Enquanto eles competiam pra ver quem pegava mais e ficavam contando
vantagem de vários rolos, eu simplesmente não conseguia ser assim. Não
conseguia chegar perto de uma mulher desconhecida e jogar um papinho
cafajeste só pra arrastá-la pra cama.
Arregalo os olhos, um pensamento muito maluco passando pela
minha cabeça.
— Você... — Henrique gargalha e balança a cabeça antes que eu
possa concluir.
— Não, boneca, eu não sou virgem — nega, e eu solto a respiração.
— Longe disso, já tive algumas namoradas e gosto bastante de sexo, não tem
como não gostar. A questão não é essa.
— Então... — questiono, porque me sinto confusa.
— Eu gosto de sexo, mas nunca gostei de transar por transar, sabe?
— continua e eu assinto, ainda sem entender direito. — Achava que era
algum problema comigo, até que o Benji me explicou o conceito de
demissexualidade.
— E o que seria? Você é demissexual? — pergunto e ele assente.
— Os demissexuais só desenvolvem a atração e o desejo sexual
depois que há uma conexão emocional ou intelectual com a pessoa —
explica. — Tipo, nós enxergamos a beleza, a admiramos, é óbvio. Mas a
vontade de ter algo mais íntimo, o desejo, o tesão, eles só surgem depois de
conhecer melhor a pessoa, depois que a gente consegue estabelecer uma
conexão que vai além da pura atração. Não significa que eu tenho que me
apaixonar pra querer transar com uma mulher, não é isso. Mas eu não
consigo chegar em alguém desconhecido numa balada, trocar duas palavras
e me atracar com ela no banheiro, entende? Tem que ter conversa, tem que
ter, no mínimo, uma admiração, um clique, sabe?
Assinto, ponderando as suas palavras.
Penso na noite em que concebi esse bebê, em como fui para o motel
com aquele cara sem trocar mais do que algumas palavras com ele, só
porque o achei bonito e estava com tesão, metade pela minha seca e metade
pelo álcool. Penso em como deve ser diferente para Henrique, e até mesmo
desafiador nos dias de hoje.
— Então você teve poucas parceiras? — pergunto.
— Não sei o que você considera poucas, mas, diferente do Pedro, eu
com certeza consigo te dizer o nome de cada uma delas, onde as conheci e
alguns detalhes a seu respeito, porque eu tirei um tempo pra conhecê-las —
responde. — Eu tive meia dúzia de namoradas, desde a adolescência,
algumas duraram quase nada, com outras foi mais profundo, mais longo.
Mas eu sempre me entreguei muito em qualquer relacionamento, e sempre
tomei no cu por isso — conclui, rindo, sem humor.
Franzo o cenho, e tombo a cabeça para o lado.
— Alguém já te traiu? — questiono, incrédula.
— Mais de uma vez — diz, assentindo. — Já fui traído, já me
chamaram de bobo, de grudento, de intenso demais. E eu sei que sou.
Quando me apaixono, eu quero dar tudo de mim para aquela pessoa. Quero
cuidar dela, quero lhe dar tudo, o meu propósito de vida se torna fazer essa
pessoa feliz.
— Isso é lindo, Henrique — respondo, encantada.
Penso em todas as vezes que ele me protegeu, que cuidou de mim,
que se esforçou para realizar os meus sonhos, para me fazer feliz, e o meu
coração dá cambalhotas.
— Nem todas pensam assim, infelizmente — continua, esboçando
um sorriso triste. — Mas tudo bem... porque eu não sei ser de outra forma e
nem quero ser. Só preciso encontrar aquela que estará preparada pra me
aceitar como eu sou.
Olho para esse homem que, todo santo dia, encontra uma maneira
nova de me surpreender. A curiosidade me preenche, me instigando a querer
saber como deve ser, o quão intenso ele deve ser quando se interessa, mesmo
que minha mente grite para eu deixar de ser idiota porque eu estou
experimentando isso há semanas.
— E nesses últimos anos... — Não termino a pergunta, mas ele
entende, porque seu olhar escurece em minha direção, alternando entre meus
olhos e minha boca, que fica seca, mesmo eu tendo bebido uma garrafinha
inteira de água há menos de dois minutos.
— Nesses últimos dois anos eu não estive com nenhuma mulher,
sexualmente falando — confessa, seu tom diminuindo. Meu Deus, esse
homem não transa há dois anos, socorro. Que pecado. — Tentei algumas
vezes, mas não foi pra frente. Outro detalhe meu, e não sei se é assim com
todos os demissexuais, é que não consigo criar essa conexão com mais de
uma mulher por vez. Se eu sou de uma, eu sou só dela. Não há espaço pra
mais nada nem ninguém, tampouco me interessa qualquer outra coisa.
— Então há alguém? — murmuro, querendo que ele verbalize,
pedindo silenciosamente que ele confesse, que dê esse passo.
O esboço de um sorriso se desenha em seus lábios e Henrique se
inclina na minha direção. A mesa que nos separa parece tão pequena e ao
mesmo tempo tão grande, e eu sinto meu corpo inteiro formigar com a
intensidade do seu olhar.
— Podemos dizer que não há espaço pra mais nada na minha vida há
um bom tempo, Alice — ele responde, em um sussurro. Não dizemos mais
nada por alguns segundos, até que ele sorri, desviando o olhar do meu e
checando a hora em seu relógio. — Vamos indo? Já, já fica tarde e amanhã
temos trabalho.
Eu assinto, segurando sua mão quando me oferece e me levantando.
Nós jogamos nosso lixo fora e ele mantém nossas mãos unidas enquanto
caminhamos em direção à saída. Minha mente fervilha com o que acabei de
descobrir, como se eu pudesse encaixar mais uma pecinha no quebra-cabeça
que é Henrique Lacerda.
E eu quero montá-lo por inteiro, quero desvendá-lo, quero descobrir
cada faceta.
Esse novo detalhe a seu respeito só terminou de me fazer querer
mais, mais dele.
Tomo um susto com um barulho alto e dou um pulinho, me
pressionando a ele, que me segura. Procuro a origem e logo sorrio, ao
enxergar uma barraquinha de tiro ao alvo.
— Ah, que legal, olha! Parece aquelas de desenho animado —
comento com Henrique, que ri e pisca para mim, me puxando em direção à
barraca. — O que você vai fazer?
— Ganhar um prêmio pra você, ué — responde, quando chegamos
mais perto. — A pulseirinha também inclui aqui ou precisa pagar?
— Inclui uma rodada de três chances, moço — o rapaz explica. — Se
quiser mais, aí tem que pagar.
— Pois me dê aqui que eu tenho que ganhar um prêmio pra essa
gatinha — responde, piscando para mim e me arrancando uma gargalhada.
Ele se posiciona, mirando a espingarda e se concentrando, enquanto
eu fico mais afastada, observando. O primeiro tiro passa raspando em um
dos alvos e ele xinga. Se concentra novamente, mirando e errando de novo,
me arrancando uma risada.
Ele me olha feio e eu coloco a mão na boca para conter o sorriso.
— Você tem que torcer por mim — reclama. — O prêmio é pra você,
ingrata.
Eu gargalho, sem conseguir me controlar, e ele balança a cabeça,
resmungando baixinho. Arruma a postura e aponta a espingarda, levando
alguns segundos para disparar, e dessa vez acerta bem no alvo, fazendo a
barraca disparar o som de vencedor.
— Aê! — comemoro, pulando em seus braços, que me seguram e me
tiram do chão, me rodopiando no lugar.
— Falei que ia ganhar pra você — provoca, devolvendo a arma ao
moço da barraca. — Pode escolher o seu prêmio. Quer uma boneca, pra
combinar com você?
Aponta para uma de pano, muito feia, que está pendurada no teto, e
eu faço uma careta, negando. Corro os olhos pelas opções, procurando o
melhor, até que meus olhos se fixam em uma pelúcia azul, tão fofinha que dá
vontade de apertar.
— Aquele. — Aponto.
O vendedor pega o prêmio e me entrega, me arrancando um sorriso.
— Tem certeza? — Henrique pergunta.
— Sim, ele é tão fofinho, olha? — Viro a pelúcia de baby dinossauro
para ele, que sorri e assente, agradecendo o rapaz e colocando o braço em
volta dos meus ombros.
Andamos em direção à saída, ele me abraçando e eu abraçando a
pelúcia, e juro que nunca me senti tão feliz na vida.
— Gostou do nosso passeio, boneca? — ele pergunta, quando
paramos ao lado do carro.
— Foi uma das melhores noites da minha vida, Henrique. Obrigada,
de verdade.
Ele sorri, satisfeito, e dá um beijo na minha testa, antes de abrir a
porta do carona.
— Tudo por você, Alice — murmura, fechando a porta.
Naquele momento, eu realmente me permito acreditar que ele faria
tudo por mim, só não sei se consigo lidar com a forma com que isso me
parece ser a coisa mais certa do mundo.
35 - Henrique

Você faz parecer até magia


Porque eu não vejo ninguém,
Ninguém além de você
Earned it – The Weekend

Eu pensava que Pedro era o meu melhor amigo no mundo, mas


recentemente descobri que não.
O meu melhor amigo, a minha pessoa preferida, o meu Deus, o cara
mais incrivelmente perfeito em toda a face da terra é o homem que inventou
o yoga.
Mais precisamente, a postura do cachorro olhando para baixo.
Se eu sei quem é esse cara?
Claro que não.
Aliás, o cara já deve ter morrido há uns oitenta mil anos, se duvidar.
Mas não importa. Ainda assim, eu poderia desenterrar o seu corpo beijar os
restos mortais dos seus pés só por criar essa maravilha que está diante dos
meus olhos.
Nojento?
Talvez, é relativo.
Não me importa nem um pouco desde que eu consiga continuar
vendo a Alice de bunda para cima desse jeito.
Nos últimos três dias eu não fiz a minha corrida matinal, porque
distendi um músculo da coxa durante o treino de Muai Thai, então não quis
forçar. Por isso, descobri que Alice transferiu sua prática de yoga para a sala
de estar, depois que a bruxa se foi, e passava de vinte a trinta minutos se
alongando nas poses mais impressionantes do mundo.
Eu poderia dar privacidade para ela e ficar no quarto?
Até poderia.
Mas eu ia perder a oportunidade?
Nem por um caralho.
Então, enquanto ela está ali, no meio da sala, toda empinadinha com
o bumbum pro ar, eu estou aqui, na cozinha, fazendo o nosso café da manhã,
bem inocente, quietinho no meu canto e tentando controlar o meu pau, que
aparentemente quer ficar pro alto igual a bunda da Alice.
Calma aí, amigo. Não vamos assustar a sua dona, fica quietinho que
ela ainda não te conhece.
Vejo quando ela se deita no chão, braços e pernas estirados, e
entendo que está quase terminando, então pego os ovos para preparar a sua
omelete preferida.
Cozinhar sempre foi algo muito gostoso para mim, desde que passei
a morar sozinho. Quando dividi o apartamento com Pedro, durante a
faculdade, ele cuidava da limpeza da área comum e eu ficava responsável
pela cozinha, já que ele era capaz de queimar até miojo, até eu ensinar
algumas coisas para ele. Hoje, morando sozinho, tenho a consciência
tranquila de que o meu amigo não passa fome.
Eu sempre gostei de inventar novas receitas, misturar ingredientes
diferentes, testar novas versões de pratos que eu experimentei em
restaurantes ou assisti em programas de culinária, que sempre foram meus
preferidos.
Sou formado em dez temporadas de Masterchef, meus amigos. E isso
só do Brasil, fora as gringas que eu também assisto. Além de outros
programas.
Resumindo: eu sempre gostei de cozinhar.
Deu para entender, né?
Pois bem.
Dito isso, cozinhar para a Alice só me deixou ainda mais apaixonado.
Por ela ou pela cozinha, Henrique?
Pelos dois.
Alice e cozinha são minhas paixões, então imagine a Alice na minha
cozinha? A primeira vez que eu levei café da manhã para ela no trabalho e vi
que gostou, fiquei todo abobalhado. Mas a primeira vez que eu cozinhei para
ela aqui, e vi como comeu e repetiu, seus gemidinhos de prazer preenchendo
meus ouvidos... ah, Deus, eu quis algemar ela na minha cozinha e nunca
mais deixar ela ir.
— Hum, que cheiro gostoso — Alice comenta, se aproximando e se
esticando para espiar por cima do meu ombro.
Me viro, correndo meus olhos pelo seu corpo e salivando no quão
perfeita ela fica com esse top e short de treino, toda apertadinha.
Gostosa é você, amor.
— Pode pegar o seu suco que já tá quase pronto — peço e ela sorri,
abrindo o armário e pegando um copo, antes de ir até a geladeira.
Já comentei que eu adoro esse climinha doméstico entre nós? Como
eu amo ver o quanto ela está acostumada com o meu apartamento, como se
sente em casa e age como se fosse a dona do lugar?
Pois eu amo.
— Que horas é a consulta mesmo, boneca? — pergunto, me juntando
a ela no balcão da cozinha.
— Às cinco — responde, tomando um gole do suco de laranja. —
Você tem aquela reunião com os editores, né? Se não der tempo...
— Vai dar — interrompo-a, porque não perco uma consulta nem se o
Papa vier me visitar. — A reunião é as duas, são poucas pautas, então vai dar
tempo. Você já decidiu se vai fazer o exame?
Na última consulta, a médica disse que, a partir da décima-segunda
semana, Alice poderia fazer o exame de sexagem fetal, para saber qual o
sexo do bebê. Eu tenho me controlado para não opinar, porque a verdade é
que eu quero muito, muito, muito descobrir o sexo agora.
Mas não quero obrigar ela a fazer algo que não deseja, então tenho
me segurado.
— O que você acha? — pergunta.
— A médica disse que não tem risco nenhum a vocês, que é só um
exame de sangue simples, então acho que vale a pena se você quiser saber o
sexo logo. Aliás, vi que é até mais seguro que pela ultrassom, porque os
médicos às vezes confundem a imagem.
— Eu li sobre isso também. — Assente. — Você acha que eu devo
fazer?
— Boneca, — seguro seu rosto, fazendo um carinho na sua bochecha
— só você pode decidir isso. Se você tá me perguntando se eu gostaria de
saber logo o sexo do bebê? É claro que sim, mas eu sou curioso e fuxiqueiro.
Você tem que fazer o que sentir vontade, o que se sentir confortável.
Ela morde o lábio, pensativa, e acena, indicando que irá pensar.
— Vou tomar um banho e me arrumar, tá? — pergunta, levando seu
prato até a pia.
— Tudo bem, temos tempo. — Ainda é pouco depois das sete e só
temos que estar na empresa às oito. Eu estou acostumado a acordar cedo
então, mesmo sem sair de casa, me levantei às seis e fiquei lendo na sala por
um tempinho, até ela sair do quarto.
Morar com Alice é, a cada dia que se passa, ainda mais perfeito e eu
me recuso a pensar na possibilidade de isso acabar.
Preciso começar a pensar em como convencê-la a me dar uma chance
de verdade, em como eliminar essa última barreira entre nós e realizar,
finalmente, o meu sonho.
Tê-la para mim.
*
— Bom, por último, eu queria saber se conseguiram terminar de ler o
manuscrito que eu passei pra vocês semana passada — pergunto, fechando a
última pauta da reunião.
— Henrique do céu, menino, onde você achou essa autora? Como
que a gente não conhecia ela, meu Deus — Aline, uma das editoras,
responde, animada.
— Concordo, o roteiro é incrível, tem algumas coisas que a gente
precisa ajustar, claro, seria bom passar por uma revisão e uma leitura crítica,
por causa de alguns gatilhos, mas, no geral, eu concordo. Tem muito
potencial de se tornar o nosso próximo best-seller. — Marcelo, outro editor,
complementa.
Sorrio, feliz de ver que não foi o meu amor pela Alice que me fez
enxergar tanto no seu trabalho, e de saber que a minha equipe concorda que
será um sucesso.
— É o primeiro trabalho dessa autora, então, sim, precisamos ajustar
uns detalhes, mas tem muito potencial, de verdade — afirmo, recebendo a
concordância dos meus colegas. — Vou conversar com ela, ver se tem
interesse em manter o anonimato e de que forma podemos trabalhar esse
lançamento, mas acredito que podemos encaixá-lo na nossa programação do
segundo semestre, sem problemas. Certo?
— Acho que novembro seria uma boa data — Marcelo checa na
agenda de lançamentos.
Faço alguns cálculos rápidos na minha cabeça.
Alice está com treze semanas de gestação, ou seja, tem pelo menos
umas vinte e cinco semanas pela frente, até o bebê nascer, se Deus quiser, o
que nos leva até final de dezembro ou início de janeiro.
Não lembro se a médica mencionou uma previsão de parto, preciso
perguntar isso na consulta de hoje.
De qualquer forma, em novembro, Alice estará com mais de oito
meses de gravidez, então, talvez, não seja possível fazer um evento de
lançamento, se ela não quiser publicar anonimamente.
Eu espero, sinceramente, que ela use seu nome real, porque nada me
deixaria mais feliz e orgulhoso do que a ver sentada em uma mesa, de frente
para uma fila de fãs, pronta para autografar os exemplares sendo vendidos.
— Deixe agendado com ressalvas por enquanto, talvez seja
necessário adiar um pouco — respondo, pensando nas possibilidades. —
Vou conversar com ela e trago um retorno assim que possível. Temos que
verificar no marketing também qual seria a melhor estratégia de lançamento,
visto que é uma autora desconhecida. Talvez seja melhor adiar mais e criar
uma expectativa.
Preciso conversar com Pedro à respeito.
— Ok, vou colocar aqui na agenda — Aline afirma.
— Então por hoje é isso, gente. — Encerro a reunião, olhando o
relógio. Quatro e meia. — Tenho um compromisso agora e vou precisar sair.
Aguardo a solução praquela questão do lançamento da Fernanda, Otávio. —
Aponto para um dos editores, que assente. — Vamos esperar o jurídico
resolver aquele problema com o rompimento do contrato da Letícia e depois
decidimos a melhor estratégia pra romper a imagem dela com a Lacerda.
Uma de nossas autoras tinha se envolvido em um escândalo
envolvendo racismo e eu, imediatamente, entrei em contato com o jurídico
para romper qualquer relação. De jeito nenhum que vou manter contato com
gente assim.
— Combinado, chefinho — Aline responde, fechando a sua agenda.
— Até a próxima, pessoal. — Me despeço, acenando a todos, antes
de chamar o elevador para voltar para o meu andar.
Optei por fazer essa reunião aqui na área dos editores, para não
correr o risco de Alice escutar alguma coisa sobre o seu livro antes que eu
pudesse conversar com ela.
Queria saber se as notícias seriam boas antes de criar expectativas e,
graças a Deus, foi ainda melhor do que eu esperava.
Minha boneca vai realizar o sonho de se tornar uma grande escritora
e eu estarei de pé, bem na sua frente, como o primeiro da fila para aplaudi-la
e pegar o seu autógrafo.
36 - Alice

Não me diga que não vale a pena tentar


Não posso evitar
Não há nada que eu queira mais
Você sabe que é verdade
Tudo o que eu faço, eu faço por você
Everything I Do (I Do It For You) – Bryan Adams

— Prontos para ver esse bebê de novo? — a médica pergunta, assim


que termina de fazer as perguntas iniciais.
— Mais que prontos — Henrique responde, esfregando as mãos, com
um sorriso animado. — Será que ele cresceu muito?
— Bom, com treze semanas, o bebê tem o tamanho de um pêssego
— ela explica.
— Viu, boneca? Ele é um pessegozinho lindo. — Ele coloca a mão
enorme próximo à minha barriga, pedindo permissão com o olhar, e eu
assinto. — Meu Deus, — ofega, acariciando o meu ventre — eu consigo
sentir, Alice.
— Eu percebi um carocinho essa semana, mesmo — concordo. Até
então minha barriga não tinha dado nenhum sinal de que havia um bebê ali,
mas ontem, enquanto tomava banho, percebi uma protuberância diferente na
região do meu umbigo, e confesso ter derramado algumas lágrimas.
— Hoje você não precisa se trocar, porque já é possível fazer a
ultrassom abdominal — doutora Rebeca explica. — Pode se deitar na maca e
levantar a camisa.
Henrique me ajuda a subir e me ajeitar, se sentando no banquinho ao
meu lado e segurando minha mão na sua, mantendo o outro braço em volta
da minha cabeça.
— Nervosa? — pergunta, quando me vê puxando a respiração.
— Sempre — respondo, sincera. — Sei que está tudo bem com ele,
mas fico nervosa mesmo assim.
— Então vamos acabar com esse nervosismo, mamãe — a médica
diz, retornando com o aparelho na mão. — O gel é um pouco gelado, ok?
Qualquer desconforto me avise. Licença — pede, antes de despejar o líquido
na minha barriga. — Como conversamos mais cedo, a ultrassom de hoje é
mais completa, ok, papais? Vamos fazer mais medições e também o exame
de transluscência nucal, pra checar o nível de líquido na nuca do bebê, se
está tudo dentro da normalidade.
A médica informou, no início da consulta, que iríamos fazer hoje a
primeira morfológica do bebê. Deveríamos ter feito na semana passada, na
verdade, mas com toda a situação da minha mãe, eu acabei adiando a minha
consulta.
Henrique e eu ficamos em silêncio enquanto a médica mexe o
aparelho pela minha barriga em vários ângulos, anotando algumas
informações no computador.
— Tudo certo, doutora? — ele pergunta, não se aguentando de
curiosidade quando passa tempo demais sem ela dizer nada.
— Tudo certo, papai — ela sorri, ligando um botão e fazendo o som
do coraçãozinho do bebê preencher a sala. — O neném de vocês está forte,
totalmente formado, com mãozinhas e pezinhos perfeitos, dez dedos das
mãos, dez dedos dos pés, tudo do jeitinho que deveria ser.
Ela aponta para o monitor, nos explicando cada detalhe daquele
serzinho perfeito que está dentro de mim e eu não consigo conter as lágrimas
de emoção. Escuto um fungar e me viro, me deparando com Henrique
enxugando o canto do olho, com uma expressão tímida.
— É que ele é tão lindo, boneca — murmura, dando de ombros.
Eu sorrio, levando minha mão até seu rosto e acariciando-o, sentindo
minha pele arrepiar quando ele a pega e deposita um beijo na palma.
— Obrigada por tudo, Henrique — sussurro, porque ainda não
consigo acreditar em tudo o que ele está fazendo por mim.
— Tudo por você, Alice — responde, proferindo novamente essas
palavras que sempre têm o poder de bagunçar a minha mente e me deixar
inquieta.
— Vou passar alguns exames de sangue, só pra confirmar que as suas
taxas estão normalizadas, certo? — a médica informa, limpando a minha
barriga com um lenço de papel. — Você pode vir no laboratório fazer
amanhã de manhã cedo, em jejum, e os resultados devem ficar prontos no
máximo na sexta, então pode marcar o nosso retorno para segunda ou terça
que vem, como preferir.
— Ok, vou fazer sim — afirmo.
— Outra coisa, na décima-terceira semana já temos uma altíssima
taxa de precisão no exame de sexagem fetal. Vocês vão fazer, ou preferem
esperar a ultrassom ou então o parto? — indaga.
Eu olho para Henrique, mordendo o lábio com a indecisão, apesar de
saber que o meu coração já sabe da resposta.
Ele me encara, tranquilo, esperando que eu faça a escolha, e eu me
encanto por ele um pouquinho mais por isso.
— Vamos fazer, doutora — respondo, vendo a forma que seu rosto
quase explode de tanta felicidade. — Vamos descobrir logo o que é esse
bebezinho.
— Ah, boneca — ele murmura, se inclinando para beijar minha testa.
— Você acabou de me fazer muito feliz, sabia?
Eu sorrio de volta, emocionada.
O que esse homem está fazendo comigo, Deus?
*
— Você quer a panqueca de frango ou prefere o sanduiche? —
Henrique me pergunta, quando nos sentamos em uma das mesas do bistrô.
Saímos da consulta agora a pouco e ele me perguntou se eu queria
comer alguma coisa. Antes que eu pudesse responder, minha barriga roncou
tão alto que fiquei envergonhada, mas ele apenas sorriu e disse que ia me
trazer para lanchar, já que o jantar ainda estava longe.
— Pode ser o sanduiche, que é mais leve — respondo.
— Suco de laranja? — pergunta e eu assinto, recebendo um sorriso
enquanto ele vai até o balcão.
Observo o lugar ao meu redor e entendo o porquê de Henrique gostar
tanto daqui. Além da comida ser maravilhosa, como já provei algumas vezes,
é um ambiente convidativo, bem familiar, com uma paleta de cores suave,
alguns toques de madeira e de vegetação, e uma iluminação indireta que
deixa o clima ainda mais gostoso.
Carina iria gostar daqui.
Por falar na minha amiga, puxo o celular para lhe mandar uma
mensagem, convidando-a para almoçar na sexta-feira, já que amanhã e
quinta nós teremos visita de fornecedor na Lacerda e o dia será bem puxado.
— Prontinho, boneca, vamos alimentar esse pêssego lindo. — Sorrio
quando ele coloca a bandeja com o meu pedido na minha frente e me dá um
beijo na testa antes de se sentar, enquanto o atendente que veio com ele
coloca o seu pedido na mesa.
— Obrigada — agradeço, mordendo um pedaço do sanduiche.
— Tenho uma novidade muito boa pra você — anuncia, me dando
um olhar meio travesso.
— Hum, e o que é? — pergunto.
— Eu mostrei o seu manuscrito pros editores da Lacerda — joga a
informação, me fazendo engasgar no gole de suco que acabo de tomar. — Ei,
ei, respira, por favor. — Dá batidinhas nas minhas costas, me ajudando a me
recuperar.
— Você fez o que? — questiono, incrédula.
— Eu falei pra você que ia te ajudar a realizar o seu sonho, boneca
— contrapõe. — Mostrei o manuscrito pros editores, porque eles precisam
aprovar antes de qualquer coisa.
— Hoje?
— Na verdade, — começa, tomando um gole do seu cappuccino —
eu mostrei na semana passada, naquela reunião que tivemos. Hoje eles
apenas me deram o feedback.
— Ninguém comentou nada — murmuro, pensando nas vezes que
desci até o andar da edição para levar ou buscar algum documento.
— Porque eu entreguei o manuscrito anonimamente. Disse que é
uma autora que está começando e que ela ainda não sabe muito bem se irá
usar o seu nome de verdade — explica. — A gente sabe o quanto isso é
comum, então não estranharam.
Aceno, porque realmente, de dez autores que tínhamos, pelo menos
seis usavam pseudônimos e muitos eram até intermediados por agentes,
então nós nem os conhecíamos pessoalmente.
— E o que disseram? — pergunto, temerosa. Ele disse que é uma
notícia boa, mas a questão é: o quão boa?
Ele faz um suspense, me olhando misterioso e eu bufo, indignada,
arrancando uma risada dele.
— Boneca, se fosse possível, o seu livro estaria nas livrarias amanhã,
de tão bom que é — responde, sorrindo para mim, e eu demoro um pouco
para assimilar as suas palavras.
— Eles gostaram, de verdade? — Minha voz não passa de um
sussurro, tamanha a minha emoção. — Você gostou, Henrique? — pergunto,
porque a opinião dele é mais importante pra mim do que a de qualquer
editor.
— Alice, eu não consegui parar de ler — confessa, me arrancando
uma risada incrédula. — Juro, é uma das melhores coisas que eu já li, eu não
estou exagerando. Por isso fiz questão de mostrar logo pros editores, porque
a gente precisa publicar isso o mais rápido possível. — Sinto meus olhos
transbordarem com a veemência que ele fala, e ele se inclina, enxugando
uma lágrima da minha bochecha. — Você tem muito talento, boneca. Você
vai ser uma escritora de muito, muito sucesso, logo, logo. Eu juro pra você.
— Vocês vão me publicar? — pergunto de novo, porque ainda parece
irreal.
— Se você aceitar, o mais rápido possível — responde, assentindo.
Eu solto um soluço, cobrindo o rosto com as mãos, sem conseguir acreditar
no que estou ouvindo.
— Oh, linda, não chora. — Henrique se levanta e vem até mim, se
ajoelhando ao meu lado e acariciando meus cabelos. — Eu não quis te fazer
chorar.
Meu soluço se mistura com uma risada, porque não é possível que
esse homem não entenda o que ele acabou de fazer.
— Henrique, você acabou de realizar o meu sonho — murmuro,
colocando a mão no seu rosto. — Tem noção disso? Do quanto eu desejei
escutar isso?
— Eu quero realizar todos os teus sonhos, Alice — ele responde,
segurando a minha mão e beijando-a.
— Por que? — faço a mesma pergunta, pela enésima vez.
Ele me olha intensamente, suas íris esverdeadas carregadas de tanto,
mas tanto sentimento, que me faz ofegar.
— Você tá pronta pra ouvir a resposta? — devolve, e eu engulo seco.
Eu não sei. Não sei se estou pronta.
— Eu... — balbucio, mas ele apenas sorri, beijando a minha palma e
depois segurando o meu rosto.
— Tá tudo bem, boneca — garante. — Só de te ver feliz assim, já me
basta.
— Henrique... — murmuro, porque não consigo lidar o os meus
sentimentos agora.
— Eu faria tudo por você, Alice — confessa baixinho. — Um dia eu
vou te dizer o porquê, mas agora, só saiba disso. — Ele se levanta, se
curvando para beijar meus cabelos. — Não tem nada nessa vida que eu não
faria por você.
As palavras exatas não foram ditas, mas precisa?
Depois disso, realmente precisa?
Henrique me deixou ver, nesse instante, o quanto eu significo para
ele. Não há mais qualquer dúvida.
A grande questão é: eu estou pronta para lidar com o peso disso?
37 - Henrique

O coração dispara, tropeça quase para


Me encaixo no teu cheiro
E ali me deixo inteiro
Amei Te Ver – Tiago Iorc

— A gente tem que voltar pra empresa, cara, não tinha outra hora pra
você resolver fazer isso, não? — pergunto, seguindo Pedro pelos corredores
do shopping.
— Ah, a gente tava aqui do lado, Henrique, não custa nada —
responde, revirando os olhos. — Eu tô enrolando há meses pra trazer esse
relógio pra limpar, calhou de a gente estar aqui perto e ele estar no carro.
— A empresa de papel vai estar na Lacerda daqui a uma hora —
resmungo.
— E nós vamos estar lá pra receber eles, cara, relaxa — devolve. —
É rapidinho, não vou esperar, vou vir buscar depois. Só tenho que assinar o
termo e pronto. Já tenho até cadastro aqui, então é só dar meu CPF.
Reviro os olhos, porque não adianta insistir.
Eu e Pedro viemos no centro almoçar com um de nossos autores mais
enjoados para tratar da campanha de marketing do seu próximo lançamento.
O cara é um mané metido a cult e sempre se recusa a fazer reuniões formais,
querendo encontrar a gente nos mais variados restaurantes da cidade.
Claro, são os otários aqui que pagam a conta, como cortesia.
Fizemos isso na primeira vez que conversamos com ele e se provou
um erro terrível, porque o espertinho agora se aproveita disso para exigir o
mesmo todas as vezes.
E o pior de tudo, o filho de uma puta é um dos nossos campeões de
vendas.
Ele escreve aquele tipo de livro de autoajuda que ninguém assume
que gosta, mas, quando lança, é o primeiro a esgotar das prateleiras.
Se não fosse isso, eu já tinha mandado ele tomar no cu e encerrado o
contrato há muito tempo.
Hoje, o restaurante da vez foi uma churrascaria nova, que inaugurou
bem no centro da cidade, na qual um prato individual de filé custa a bagatela
de cento e quarenta e cinco reais. E esse é o prato mais barato do cardápio.
Claro que o coach de araque não escolheu esse.
— Temos que ver com o jurídico pra inserir uma cláusula no contrato
de renovação desse cuzão pra exigir que ele participe das reuniões na
empresa — resmungo, quando entramos na relojoaria preferida do meu
amigo. — Mais de setecentos reais em um jantar pra três pessoas é um
absurdo, Pedro. Não dá mais pra aceitar um negócio desses.
Uma vendedora se aproxima de nós, sorrindo para Pedro.
— Boa tarde, senhores, no que posso ajudar? — pergunta.
O idiota ao meu lado abre o maior sorriso do munda para a moça, se
inclinando no balcão, pronto para jogar aquele charme barato dele.
E funciona.
— Boa tarde, querida — responde, piscando. — Eu preciso dar um
grau nesse meu relógio de platina aqui. — Puxa o relógio que eu lhe dei de
aniversário há uns dois anos do bolso. — É um dos meus preferidos, mas tá
bastante sujo e desgastado. Sei que vocês conseguem deixá-lo como novo.
Ele aumenta o sorriso e joga uma encarada completamente descarada
para a moça que, infelizmente, cai na lábia do filho da puta e cora como uma
garotinha envergonhada.
— Claro, senhor — afirma, pegando o relógio de sua mão. — Nosso
serviço de limpeza é bastante rigoroso, garanto que ficará novinho em folha
— completa, sorrindo para ele.
— Vou acreditar em você, hein, docinho — o pilantra joga, traçando
os dedos na mão da moça.
— Vou só precisar do seu CPF pra encontrar o seu cadastro — ela
pede, e Pedro dita os números, ainda olhando para ela como se ela fosse o
pedaço suculento de bife que ele acabou de devorar no almoço. —
Prontinho, senhor, pode vir buscá-lo daqui três dias úteis.
— Perfeito, meu bem — responde, sorrindo tanto que quase parece
que ele quer que ela examine toda a sua arcada dentária. E aposto que é isso
que quer. De preferência com a língua. — Só pra eu saber, — se inclina
novamente sobre o balcão, aproximando o rosto dela e baixando o tom de
voz — que horas a loja fecha?
Ela franze o cenho, confusa.
— Às oito da noite, senhor.
— Então, digamos que, — o desgraçado leva dos dedos até a mecha
de cabelo que cai sobre o ombro da vendedora, enrolando-os em um cacho
— se eu vier buscar o meu relógio na terça, por volta das sete e quarenta,
talvez eu consiga te oferecer uma carona para casa?
A moça fica mais vermelha que um tomate, e olha rapidamente para
trás, para conferir se não vem ninguém da parte interna da loja.
— Eu tenho meu próprio carro, senhor — responde.
— Ah é? — Pedro não se faz de rogado e ousa mais, acariciando a
bochecha da moça. — Eu sugiro você vir de Uber na terça, docinho.
Coroa o pedido com uma piscada e se levanta, dando mais um sorriso
para ela antes de se despedir, fazendo sinal para que saiamos da loja.
— Olha — começo, balançando a cabeça. — Você deveria dar
cursos, sabia? Como conquistar uma mulher em cinco segundos. Puta que
pariu.
Ele sorri, dando um tapa no meu ombro.
— Você viu que gostosa? — comenta. — Ah, meu amigo, terça à
noite a minha mão vai fazer um colar perfeito naquele pescocinho lindo. —
Ele até esfrega as mãos, de tanta empolgação.
Eu só balanço a cabeça, sorrindo, porque ele é assim e sempre foi.
Pedro é um conquistador nato e, quando coloca os olhos em um alvo,
não há nada nesse mundo que o pare antes de conseguir a sua conquista.
Nada além de um não explícito, né, graças a Deus, porque meu
amigo não é nenhum babaca machista e aproveitador.
Se a mulher dá corda, ele puxa até se enforcar. Ou melhor, até
enforcar ela.
Mas se ela diz não, é não.
O mínimo, claro.
Senão eu já tinha enfeitado a cara dele com um olho roxo.
— Bom, já conseguiu limpar o seu relógio e ainda descolar uma
foda, podemos ir? — pergunto, recebendo um aceno em meio a uma revirada
de olhos.
— Vamos, vamos, eu hein — resmunga. — Chato pra caralho.
Não respondo, me limitando a andar em direção à saída do shopping,
olhando o relógio e vendo que temos quarenta minutos para chegar.
Só que, passando pelos corredores abarrotados de lojas, algo chama a
minha atenção e eu travo, encantado.
— Que foi, porra? — Pedro pergunta, enquanto eu fico hipnotizado
pelo que está na minha frente. — Ah, não, Henrique, você não vai...
Ignoro seu protesto e sigo para dentro da loja e encontrando uma
vendedora disponível.
— Boa tarde, senhor, em que posso ajudar? — questiona, sorrindo.
— Eu gostaria de ver aquele sapatinho branco que tá na vitrine, por
favor — peço. — O de crochê.
Ela assente e pede um minuto, se afastando de nós. Olho em volta,
completamente apaixonado pelas centenas de opções de roupas, pelúcias e
outras coisinhas de bebê, das mais lindas, imaginando como cada uma
ficaria no bebê da Alice.
— Cara, sério? — Pedro segura meu ombro, me fazendo olhar para
ele. — Você não tá levando essa história longe demais, não?
— Pedro — começo, suspirando. Quando que ele vai entender? —
Enfia uma coisa na sua cabeça. Eu amo a Alice. E eu amo o bebê dela. E se
ela permitir, eu vou enfiar uma aliança de verdade no dedo dela, e vou
colocar meu sobrenome nela e naquela criança, foda-se o DNA e a merda
toda. E se isso acontecer, ah, meu amigo... aí você vai ver eu comprar essa
loja inteira se eu quiser.
Meu amigo assente, entendendo as minhas palavras, mas me
direciona um olhar sério, preocupado.
— E quando isso vai acontecer? — pergunta. — Quando ela vai
decidir aceitar você e tudo isso? Porque ela já tá morando contigo há quase
três meses e nada, cara. Até quando você vai esperar ela se decidir?
— O tempo que for preciso — decreto, escutando um bufar. — Eu
não vou pedir que você entenda, Pedro, porque sei que não vai. Não sem
experimentar isso. E não, — interrompo-o, antes que ele fale — eu não estou
rogando praga. O amor é lindo, mas se você não quer viver isso, beleza,
direito seu. Mas eu peço, por favor, que respeite o fato de que eu quero viver
isso. Eu quero ficar com a Alice, e vou esperar o tempo que for pra isso.
Você não faz ideia do quanto só ir pra casa com ela, pra ficar no sofá
assistindo besteira e conversando sobre nada, e depois ir pra cama, me deitar
ao lado dela e ver aqueles cabelos espalhados pelo meu travesseiro... ah,
irmão, você não faz ideia do quanto isso já me preenche da mais profunda
felicidade.
— Eu só não quero te ver magoado... essa história toda tem potencial
de te destruir se der merda... — ele responde.
— Eu sei. — Assinto. — Mas também tem potencial de me fazer o
homem mais feliz do mundo e é nisso que eu me agarro, Pedro. Torce por
mim, torce pra dar certo.
— Você sabe que eu torço, irmão. — Ele aperta o meu ombro e eu sei
que sim. Sei que Pedro teme porque me ama e quer o meu bem. Sei que quer
o melhor para mim.
— Aqui, senhor. Eu trouxe também as luvinhas e o gorrinho, que
fazem o conjunto da coleção. — A vendedora retorna, colocando o sapatinho
nas minhas mãos.
— Olha o tamanho disso, Pedro — comento, encantado. — Tão
pequenininho, meu Deus. — É uma coisinha de nada. Cabe o meu polegar.
O pé do bebê é do tamanho do meu polegar. — Você sabia que a médica
disse na terça que ele tá com o tamanho de um pêssego. Tem noção? A porra
de um pêssego, irmão.
A vendedora sorri das minhas palavras e eu devolvo, feliz.
— E vocês já sabem o sexo? — meu amigo pergunta.
— Se souber, temos outras opções de cores disponíveis. Verde, azul,
rosa, lilás, amarelo — a moça complementa.
— Não, ainda não — respondo. — Ela fez o exame ontem, parece
que o resultado sai amanhã. — O rapaz do laboratório disse que o resultado
demorava três dias, então amanhã à tarde já pode estar pronto. — Vou levar
o branco mesmo. Os sapatos e o gorrinho, por favor. — Ela assente, se
afastando para preparar o meu pedido.
— Por que não as luvas? — Pedro pergunta.
— Ah, eu tava lendo que pode prejudicar o desenvolvimento do bebê
— respondo. — É importante ele tocar e sentir as texturas, e ter uma melhor
noção das coisas.
Meu amigo me encara em silêncio por um momento, antes de sorrir.
— Você tá todo pai babão mesmo, né? — provoca.
— Ah, cara. — Solto um suspiro. — O tanto que eu amo aqueles
dois, eu não sei nem explicar...
Ele assente, apertando os meus ombros.
— Eu espero que dê certo, irmão. De verdade. Espero que vocês
formem uma família linda, como você sempre sonhou.
— Eu também, Pedro — concordo. — Eu também.
38 - Alice

Será que você sente tudo o que eu sinto por você


Será que é amor?
Tá tão difícil de esconder
Olha o que o amor me faz – Sandy e Junior

— Oi — cumprimento baixinho, abrindo uma fresta da porta do


escritório de Henrique. Ele está terminando uma ligação, mas faz sinal para
que eu entre, sorrindo para mim.
— Certo, então, ficamos acertados de renovar esse contrato — fala
para a pessoa na linha, piscando para mim. — Quero mais uns cinco livros
pra ontem, hein? — brinca, caindo na gargalhada com algo que a outra
pessoa responde. — Fechou, cara. Nos vemos quando você chegar na
cidade. Boas férias!
Ele desliga o telefone, com um sorriso feliz, e se levanta,
contornando a mesa para me encontrar.
— Boas notícias? — pergunto.
— Ótimas notícias, boneca — responde. — Lembra daquele autor
que não sabia se ia renovar, porque tá com planos de se mudar de Santa
Consolação ano que vem? — pergunta e eu assinto, me lembrando do caso.
— Ele aceitou continuar com a gente, mesmo em outra cidade! — exclama,
esfregando as mãos.
— Isso é incrível, Henrique!
— É mesmo, boneca. — Assente. — Ele foi best-seller nos últimos
oito lançamentos que fez, tem mais de um milhão de seguidores nas redes,
não podemos perder essa conta de jeito nenhum.
— Fico feliz que tenham conseguido — digo, sendo sincera.
Henrique é um excelente administrador e um negociador melhor
ainda, a prova está na quantidade de contas lucrativas que a Lacerda
conseguiu fechar nos últimos anos.
— Obrigada, linda — agradece, segurando a minha mão e me
puxando para perto. — Você veio conversar sobre algo, ou só queria ver a
minha beleza?
Eu gargalho, não aguentando a sua provocação, e balanço a cabeça.
— Na verdade, só queria te lembrar que eu vou almoçar com a
Carina hoje. Ela deve estar chegando pra me buscar. — Combinei com a
minha amiga no início da semana, porque, desde que me mudei com
Henrique, diminuímos muito a frequência dos nossos encontros.
Antes ela estava no meu apartamento quase toda noite, e nas que não
vinha, era porque eu ia até ela. Mas desde que fui morar com meu chefe, ela
não tinha ido conhecer o apartamento ainda, e eu também não tinha ido mais
no dela. Então nossos encontros se resumiam à minha aula de yoga aos
sábados e a alguns almoços durante a semana.
Ela também está cada dia mais ocupada, precisando ir várias vezes
até São Paulo para intervir pela irmã com os pais sem noção delas. Então
cada momento livre que podemos nos ver, nós gostamos de aproveitar.
— Tudo bem, boneca, eu como sozinho, abandonado e largado aqui
nessa sala, solitário, sem rumo — responde, fazendo todo o seu drama
costumeiro, coroando-o até com um bico dessa vez.
— Deixe de manha que eu faço todas as refeições com você. —
Empurro seu corpo, ofegando quando ele enlaça a minha cintura e me puxa
contra si, prendendo as minhas mãos no seu peito musculoso.
Deus do céu, esse homem não pode ser real.
— Não gosto de te dividir — murmura, aproximando o rosto do meu
de um jeito que eu fico até tonta.
— Isso é egoísmo — sussurro de volta, minha respiração falhando
um pouco ao sentir o seu polegar roçando no cós da minha calça, na minha
lombar.
— Em relação a você? — pergunta, apertando a carne da minha
cintura. — Sou egoísta mesmo, me processa.
Eu não consigo nem pensar em uma resposta inteligente, envolvida
demais no calor do seu corpo para que o meu cérebro consiga fazer as
sinapses da forma certa.
Ficar tão perto assim de Henrique me deixa burra de um jeito
vergonhoso.
Sua mão espalma na minha lombar, enquanto a outra sobre pelas
minhas costas até chegar na minha nuca, se enveredando pelos meus cabelos
que estão soltos, arrancando o restinho de sanidade que ainda me resta.
— Henrique... — Ofego o seu nome quase como uma súplica, mas
ele não cede.
Ele nunca cede.
Porque ele quer que eu ceda.
Que eu decida, que eu tome a iniciativa.
E eu sempre travo, paralisada de medo.
— Oi, boneca... — responde, nossos rostos a um palmo de distância,
mas, ainda assim, posso sentir a sua respiração quente se misturando com a
minha.
Quando penso em responder algo, escutamos meu celular tocar, lá da
minha mesa, o que rompe a nossa bolha. Ele me solta, não antes de apertar a
minha nuca uma última vez, quase como uma promessa, e se afasta.
— Bom almoço pra vocês — deseja, mordendo o lábio para conter o
sorriso, com certeza por causa do estado deplorável em que me encontro.
Como é que respira mesmo, gente?
— Ér... obrigada — balbucio, piscando algumas vezes para que o
meu corpo volte a funcionar corretamente.
Não consigo.
Minhas pernas ainda são pura gelatina quando me afasto, saindo do
escritório e pegando a minha bolsa e meu celular, indo até o elevador.
Santa mãe de Deus, me dê forças para resistir a esse homem.
Ou melhor. Me dê forças para parar de resistir a esse homem.
Pelo bem da nossa sanidade.
*
— E como tá o meu afilhado? — Carina pergunta, assim que
sentamos na nossa mesa. Dessa vez, a vibe carnívora da minha amiga estava
ativa, então viemos almoçar em uma churrascaria. — Aliás, já sabem se é
menino ou menina? Você fez o teste, né?
— Fiz, e eu queria te pedir um favor.
— Pois mande, mamãezinha — responde, me fazendo sorrir.
— O pessoal da clínica mandou mensagem mais cedo, dizendo que a
sexagem vai estar pronta às três. Perguntaram se podem mandar pro meu e-
mail junto com os outros exames ou se eu quero autorizar o envio pra outra
pessoa. Disseram que os pais geralmente fazem isso, por causa dos chás
revelação, sabe.
— Sei sim, tá na moda isso. — Assente. — Você quer fazer um?
— Não, não — nego. — Isso não tem nada a ver comigo, é demais.
— Solto um suspiro. — Mas eu também não quero descobrir o resultando
lendo um e-mail, entende? Sei lá, parece meio anticlímax.
— Concordo, parece brochante mesmo. E o que você quer que eu
faça?
Pondero novamente, pensando se é mesmo a melhor opção, mas, no
fim, aceno.
— Eu posso autorizar o envio pra você? — pergunto. — Tem um
bistrô que o Henrique gosta muito e eu queria que você encomendasse um
mini bolinho pra gente, com o recheio azul ou rosa, dependendo do
resultado. Aí quando sairmos da Lacerda, pegamos lá e descobrimos juntos
em casa. Eu perguntei, eles disseram que se você encomendar até três e meia
eles entregam às seis.
Carina suaviza o olhar e sorri para mim, assentindo.
— Claro que posso fazer isso, amiga — responde. — Mas, posso te
perguntar uma coisa? — Eu até consigo imaginar o que ela vai perguntar,
mas mesmo assim aceno positivamente, me preparando. — Essa sua situação
toda com o Henrique, vai até que ponto? Porque, Alice, você tá permitindo
esse homem se apaixonar por essa criança. Por favor, não destrói o coração
dele no final — ela me pede.
Eu puxo o ar com força, sentindo os meus olhos umedecerem.
— Eu tô tão confusa, amiga — confesso.
— Com o que, exatamente?
— Não consigo nem te explicar, Cá... — começo. — O Henrique
mexe comigo numa proporção que eu nunca senti antes. Ele me deixa toda
boba e, ao mesmo tempo, me faz sentir como se eu fosse capaz de tudo,
sabe? Ele me exalta, me instiga, me preenche de um desejo tão grande de
mais, como se nada fosse o suficiente com ele. E é tão sutil, é tão... — Tento
descrever, mas não consigo. É demais. — Ele não me força a nada, não me
cobra, não exige. Ele só fica ali, disponível, me tentando, me provocando
sem dizer nada, só com a sua presença.
— Amiga... — Carina começa, mas eu sei o que ela vai dizer.
Só que não sou capaz de escutar agora.
— Não fala, por favor.
— Mas, Alice...
— Por favor — peço, fechando os olhos e cobrindo o rosto com as
mãos.
— Do que você tem tanto medo? — pergunta, confusa.
— É perfeito demais, Carina — respondo, meio exaltada, mas
mantendo o tom baixo. — Nada é tão perfeito assim, nada pode ser tão certo
assim. Uma hora ou outra, vai acontecer alguma coisa e vai dar merda,
porque a vida é assim. Quem você conhece que conseguiu manter um
relacionamento a vida toda? São exceções, amiga, são raridades! O que me
faz ousar pensar que eu posso viver algo tão raro assim?
— E aí você vai jogar fora a chance de ter um cara incrível por medo
de não dar certo? — Meu espelho joga na minha cara, direta e sincera, como
sempre foi. — Não vai dar certo sabe por que? Porque você não vai deixar!
Você vai boicotar e vai estragar antes mesmo de tentar, por pura covardia!
— Carina, eu vou ser mãe! Eu tenho que pensar no meu bebê! —
argumento, mas ela balança a cabeça, apontando o dedo para mim.
— Conta outra, Alice. Conta outra. Não vem colocar meu afilhado
inocente no meio disso não — devolve. — Se você pensasse nele tanto
assim, já tinha dado uma chance pra um cara incrível, que tá completamente
apaixonado por ti e por esse bebê, mesmo não sendo dele, e prova isso todo
santo dia, fazendo de um tudo por vocês. Não vem com essa de mãe leoa,
que você tá sendo é uma egoísta, porque tá privando esse bebê de ter um pai
que vai amar ele acima de qualquer coisa!
— Mas e se der errado?
— E se der certo, Alice? — contrapõe. — E se esse for o amor da sua
vida e você estiver jogando fora por burrice?
— Eu não tenho como saber isso... — murmuro e ela sorri, irônica.
— Bem-vinda ao mundo real, minha amiga — debocha. — A gente
não tem certeza de porra nenhuma nessa vida, ainda não entendeu? Eu posso
sair daqui e ser atropelada ali na frente, e acabou. Você pode se engasgar
com a comida que vamos comer daqui a pouco e bater as botas hoje, e puff,
já era.
— Credo, Carina — resmungo.
— Credo? É a realidade, Alice! — afirma. — Para de viver no seu
mundinho fechado, querendo se proteger de tudo, porque adivinha, você não
vai conseguir! E acha mesmo que se afastando do Henrique você vai estar
evitando sofrimento? — pergunta. — Olha só pra você, a mera ideia de ficar
longe dele já te deixa um trapo. Eu já falei, e repito: deixa de ser burra!
— Você pode ou não encomendar o bolo? — Ignoro as suas palavras
e desvio o olhar, voltando ao assunto inicial.
— Posso, Alice — responde. — Eu posso encomendar o bolo pra
você descobrir o sexo do seu bebê com o cara que você não gosta e que não
vai ser o pai dessa criança. Só toma cuidado, viu? Tem muita mulher no
mundo que sofre na mão de macho escroto e sonha em encontrar um
príncipe, e você fica aí, desdenhando o seu.
— Eu não desdenho o Henrique! — me defendo.
— Mas se faz de sonsa! — retruca. — Mas fica dando corda pra ele
se amarrar mais ainda, ameaçando largar a sua ponta o tempo inteiro. Mas
fica aí, com o coração do cara na sua mão, sem querer entregar o seu de
volta.
Eu amo a Carina. Amo de verdade.
Ela é a única capaz de me entender e de me fazer enxergar as coisas.
Mas agora, nesse momento específico, eu não gosto dela.
Porque eu não quero enxergar. Eu não quero ver a verdade que só
falta me estapear o rosto.
Porque a verdade é assustadora demais. O amor é assustador demais.
O que diabos eu conheço sobre o amor? Que referências eu tenho,
para achar que posso ser uma boa namorada ou esposa?
Merda, eu não tenho nem referências de ser uma boa mãe! E isso já
me apavora o suficiente para que eu não queira acrescentar uma outra pessoa
nessa equação.
Meu pai não me quis desde o primeiro segundo.
Minha mãe não quis e me desprezou a vida inteira.
Minha avó só me via como uma obrigação, como algo que deveria
ser feito, pelo bem da sua crença.
Ninguém que deveria me amar nunca me amou. Então o que me faz
pensar que alguém como o Henrique, tão bonito, tão perfeito, tão bom,
poderia me amar desse jeito?
É irreal, é simplesmente inacreditável.
Mas, como sempre, Carina tem razão.
A ideia de perder o Henrique, de perder o que temos é assustadora
demais, dolorosa demais, angustiante ao ponto de me sufocar.
Só que é justo de mim segurá-lo desse jeito? É justo só tomar e tomar
dele, sem oferecer nada em troca?
E o que eu tenho a oferecer em troca, afinal? Eu sou um amontoado
de pedaços quebrados, colados muito porcamente com uma cola de quinta,
que ameaça se soltar a qualquer momento.
Eu sou uma bomba-relógio, que pode explodir num piscar de olhos e
acabar com tudo à minha volta.
Seria justo colocar mais alguém no meu radar de destruição?
— Amiga. — Pisco, focando o meu olhar na minha melhor amiga
novamente, vendo a forma como ela parece enxergar a minha alma. — Você
merece ser feliz. Você merece ser amada. Você merece uma família, uma de
verdade, com companheirismo respeito e muito amor. Não deixa o passado
te boicotar. Não deixa a sua mãe e toda a maldade que ela fez contigo te
fazer perder algo tão bonito assim. Não deixa, Alice.
Meus olhos transbordam com o peso de tudo que eu estou sentindo e
eu não consigo responder. Porque não sei o que dizer. Não sei o que sentir, o
que é certo, o que é errado, o que é real e o que não é.
E isso me assusta.
A ideia de amar Henrique me assusta, não porque ele não merece. Ou
porque tenho medo de ele não corresponder. Mas porque é uma ideia tão
bonita, tão perfeita, que eu não consigo acreditar ser possível.
Ser real.
Amar e ser amada pelo Henrique parece bom demais para ser
verdade.
E a minha verdade é que a vida nunca foi boa comigo.
Por que começaria a ser agora?
39 - Henrique

Pra você guardei o amor


Que nunca soube dar
O amor que tive e vi sem me deixar
Sentir sem conseguir provar
Pra Você Guardei o Amor – Nando Reis

— A gente pode parar no bistrô antes de ir pra casa? — Alice


pergunta, quando entramos no carro, no final do expediente.
— Claro que sim, boneca. — Assinto. — Tá com fome?
— Eu vi uma coisa no Instagram deles e fiquei com vontade —
explica.
— Desejo? — pergunto, empolgado, e ela ri, negando.
— Não, Henrique, eu ainda não tive desejo nenhum...
Solto um muxoxo, enquanto coloco o carro em movimento,
ganhando mais uma risada dela.
Mas é sério! Até agora, Alice não teve nenhum desejo de grávida e
isso está começando a me chatear.
Poxa, como é que eu vou correr atrás de das suas vontades e mostrar
para ela que eu sou capaz de tudo para fazê-la feliz e satisfeita, se essas
vontades não aparecem?
— Não acha que tá na hora de começar a trabalhar, não, bebê? — Me
dirijo à sua barriguinha quase inexistente. — Fica só aí, no bem bom,
nadando nesse líquido quentinho. Bora começar a dar sinais? Não quer se
mexer, não quer provocar um desejo. Faz a tua parte aí dentro, que eu faço a
minha aqui fora, meu chapa, somos parceiros ou não?
A barriga de Alice sacode com uma risada silenciosa e eu levanto o
olhar, encontrando as suas íris divertidas me encarando.
— Vai conversar com ele agora? — me pergunta.
— Claro que sim, ele tem que reconhecer a minha voz, né,
pessegozinho?
— Que apelido horrível, Henrique — reclama, sorrindo.
Ela sorrindo é a coisa mais linda desse mundo, meu Deus.
— Dá um você então, bora ver se é boa — provoco, e ela empurra o
meu ombro, no momento em que estaciono na frente do bistrô. — O que
você quer? — pergunto, desafivelando o cinto.
— Deixa que eu vou — responde, tirando o dela, e eu franzo o
cenho.
— Não precisa, boneca, só me diz que eu pego pra você — peço.
Não tem porque ela sair se eu estou aqui para servi-la.
— Fica aqui, eu já volto — retruca, toda misteriosa, me dando um
sorrisinho antes de descer do carro.
Fico a encarando até ela entrar no bistrô e balanço a cabeça, confuso.
O que ela está aprontando?
Me assusto com o barulho alto do meu celular tocando, através do
multimidia do carro, e vejo o nome da minha miniatura no visor.
— Alpinista de calçada! — Atendo, já sorrindo quando escuto o seu
resmungar. — Saudades do seu irmão favorito?
— Não preciso sentir saudades, ele tá bem aqui na minha frente —
responde.
— Oi, Henrique — meu irmão mais velho me cumprimenta.
— Credo, Catatau, assim você magoa meus sentimentos.
— Por que a gente ligou pra ele mesmo? — Escuto ela perguntar
baixinho para o nosso irmão.
— Porque eu sou a terceira parte mais bonita de vocês e não sabem
viver sem mim — provoco, adorando a forma como a minha caçulinha bufa.
— Toma, fala com esse bocó porque eu não tenho paciência não —
Ela resmunga e eu sorrio.
— Porra, você não tem jeito mesmo — Benji reclama, ao pegar o
telefone.
— Faz parte do meu charme — respondo. — O que houve?
Aconteceu alguma coisa? — indago.
— Não, a gente só tá ligando, a mando da Lúcia, pra te intimar a vir
no almoço de domingo e trazer a sua noivinha querida.
— É... — começo, já imaginando o quanto Alice vai relutar em
aceitar.
— Sem desculpas, Henrique — Bianca intervém. — Se você não
aparecer com ela, vamos buscá-la pelos cabelos no seu apartamento, e você
sabe que somos capazes.
— Eu não quero assustar ela — murmuro.
— Eu vou levar o Joaquim e a bonequinha também, então não vai
ser só a família, talvez ela se sinta mais à vontade — minha irmã sugere. —
Pode ser até bom, mano, pra ela ver que faz parte da família agora.
— Só se vocês prometerem se comportar e não constranger ela —
peço.
— Rá! — Benji responde. — O sem noção da família é você, irmão,
não se preocupe.
— Ei! — reclamo, ganhando uma risada. — Vou falar com ela, tá
bem? Não prometo nada.
— Se vira, tô avisando — Bianca ameaça. — Essa moça tá
brincando de casinha com você há uns dois meses, não é assim que as
coisas funcionam com os Lacerda. Se ela quer você, a família toda vem de
brinde, ela que lide com isso. — Sinto até a minha espinha gelar, com a ideia
de Alice se sentir sobrecarregada e querer fugir.
— Por favor... — peço, em um tom baixo. — Ela é importante pra
mim, não assustem ela...
Acho que meus irmãos percebem a seriedade no meu tom de voz,
porque ficam em silêncio por alguns segundos.
— Henrique — Benji começa. — Traz ela pra conhecer a família,
tá? Tenho certeza de que vamos adorar conhecê-la e ela vai se sentir muito
benquista por todos nós. Confia na gente.
— A gente nunca iria tratar ela mal, irmão. — Bianca completa. —
Só queremos conhecer esse pedaço da tua vida, que te deixa tão bobo e feliz.
— Tá bem. — Solto um suspiro. — Vou convencer ela a ir...
A ideia de ter Alice junto da minha família parece até um sonho.
Um sonho que eu vou fazer o possível para que se torne realidade. Eu
quero ela junto daqueles que eu amo porque ela faz parte desse grupo. Quero
ela junto da minha família porque quero que ela se torne a minha família, ela
e o nosso pessegozinho.
Me despeço dos meus irmãos, olhando para a porta do bistrô bem a
tempo de vê-la sair, segurando uma sacola de papel grande e com um sorriso
lindo no rosto.
Oh, meu amor. Me deixa te tomar de vez pra mim, por favor.
*
— Pronto, senhorita mistério, chegamos em casa — digo, abrindo a
porta do apartamento e colocando as chaves no aparador. — Posso saber
agora o que tem de tão secreto aí nessa sacola?
Passei o caminho inteiro, do bistrô para cá, pentelhando a Alice para
descobrir o que ela comprou lá dentro, mas a danadinha se recusou a matar a
minha curiosidade, dizendo que eu só ia saber quando chegássemos em casa.
— Mas você é muito curioso, eu hein — comenta, com um sorriso.
— Sou mesmo, você sabe disso — retruco, tirando o paletó e a
gravata. — Anda, chega de mistério, abre essa sacola.
— Hum, não sei, acho que vou tomar um banho primeiro — provoca,
colocando a sacola atrás de si, com uma carinha de sapeca.
— Boneca, boneca, não me provoca que eu te jogo nesse sofá e faço
você se render rapidinho.
Eu juro, juro juradinho que na minha intenção não foi ser sacana.
Mas o jeito que as íris de Alice se escurecem para mim faz cada terminação
nervosa do meu corpo se acender.
Ela coça a garganta, desviando o olhar e ficando vermelhinha, como
um tomate.
— Você pode pegar duas taças na cozinha? — me pergunta.
— Taças? — Para que diabos ela precisa de taças? Ela não pode
beber e eu não bebo há séculos.
— Sim, Henrique. Você não quer saber o que tem na sacola? Então
vai buscar duas taças, anda — ordena, fazendo sinal para a cozinha.
Eu coço a cabeça, encucado, mas vou, né, afinal, ela mandou.
Ela manda e eu obedeço, como a porra de um cachorrinho.
Pego as duas taças no armário de louças e volto para sala, bem a
tempo de vê-la colocar uma caixa branca em cima da mesinha de centro.
— O que é isso? — pergunto.
Ela sorri e puxa o laço da fita que prende a embalagem, tirando a
tampa e revelando um bolo branco, com dois corações desenhados, um lilás
e um verde.
— Tá a fim de descobrir o sexo do pessegozinho? — Sinto até a
respiração falhar.
Não chora, não chora. Porra, Henrique, não chora!
Não dá.
Meus olhos automaticamente se enchem de lágrimas e eu me
aproximo, com passos vacilantes, as duas taças na mão, e me sento ao seu
lado, olhando para o pequeno bolinho como se fosse um tesouro.
— Jura, boneca?
Seus olhinhos também umedecem, me fazendo ter certeza de que,
sim, eu vou chorar como um bebê em poucos segundos.
— Pedi pra mandarem o resultado pra Carina e ela encomendou. Pedi
pra fazer o recheio rosa ou azul, mas ela disse que era muito comum e
batido, então o nosso vai ser ou lilás, se for menina, ou verde, se for menino.
Sorrio, de um jeito tão grande que meu rosto quase se parte em dois,
e entrego uma taça para ela.
— Como fazemos?
— Vamos ficar olhando um para o outro, e enfiamos as taças no bolo,
sem espiar — explica. — Aí puxamos as taças e olhamos juntos.
— Tá bem. — Assinto, empertigando a coluna, empolgado e
nervoso.
— Pronto? — ela pergunta e eu murmuro um sim.
Nós dois enfiamos as nossas taças no bolo, forçando até o final e
depois as levantamos, sem desviar o olhar um do outro.
— Tô nervoso — sussurro, sentindo a mão que segura a taça tremer
de emoção.
— Eu também — confessa baixinho, sorrindo. Ela puxa uma
respiração, tomando coragem. — No três?
— No três — concordo.
— Um — conta.
— Dois — continuo.
— Três. — Dessa vez nós dois contamos juntos, trazendo as taças
para a nossa frente e olhando para elas.
A massa do bolo e o recheio, ambos pintados de verde, preenchem o
meu olhar e eu sinto meu coração bater acelerado, além de uma lágrima
deslizando pela minha bochecha.
— É um menino, boneca — sussurro, a voz falhando, sem conseguir
desviar meus olhos do bolo.
— Um menininho — responde, tão emocionada quanto eu. — Um
menino, Henrique, um menino — repete, colocando a mão na boca e
soltando um soluço.
Não consigo me aguentar e tomo o seu corpo em um abraço
apertado, enfiando meu rosto nos seus cabelos cheirosos e chorando junto
com ela.
— Um rapazinho, Alice — murmuro. — Vamos ter um rapazinho.
Sinto o seu corpo tensionar por dois segundos antes de ela relaxar de
novo e balançar a cabeça no meu pescoço, sem me responder verbalmente.
Mantenho-a colada a mim, sorvendo aquela sensação de pura
felicidade que me domina.
Um menino lindo.
Um menino meu e da Alice.
Porque eu não abrirei mão de nenhum dos dois.
Eu lutarei por eles até o fim.
A verdade é que, nesse momento, aqui, sentado no meu sofá, o meu
mundo todinho cabe perfeitamente dentro dos meus braços.
E eu quero ficar assim para sempre.
40 - Alice

Você não disse que não sabe se não


Mas também não tem certeza que sim
Quer saber? Quando é assim, deixa vir do coração
Se... - Djavan

— Eu acho melhor eu voltar pra casa — digo, fechando os punhos


forte o suficiente para os nós dos meus dedos esbranquiçarem com o meu
nervosismo.
— Como assim, Alice, a gente tá a dois minutos do condomínio —
Henrique pergunta, com o cenho franzido.
— Você pode me deixar aqui, eu chamo um Uber — proponho, me
encolhendo com a forma que ele me encara, incrédulo.
Ele dá sinal e para o carro no acostamento, antes de se virar para
mim e segurar as minhas mãos.
— Boneca, respira — pede, o tom de voz calmo. — Vai ficar tudo
bem, é só um almoço de família.
— Exatamente, Henrique — exclamo, sem controle algum. Parece
até que meu cérebro deu curto. — O que diabos eu vou fazer num almoço
com a sua família, eu não sou pertenço lá, não sou nada pra vocês, sou uma
intrusa, não vai dar certo... É melhor eu voltar, só vou atrapalhar —
continuo, sem parar nem para respirar, e me assusto quando ele segura meu
rosto com as duas mãos, forçando contato visual.
— Olha pra mim, Alice. — Apesar do tom de comando, ele ainda é
delicado e gentil, tentando não me assustar muito. — Em primeiro lugar, —
começa, colocando uma mecha de cabelo atrás da minha orelha — nunca
mais, em hipótese alguma, diga que você não é nada. — Ele é severo,
parecendo verdadeiramente incomodado. — Você é tudo, entendeu? Tudo.
Nunca mais se diminua assim. Promete pra mim?
— Prometo — murmuro, automaticamente, em resposta.
— Em segundo lugar, — continua, sua mão procurando a minha
direita e traçando o meu anel — você é da família, Alice. Ou se esqueceu de
que é minha noiva? — Reviro os olhos, pronta para argumentar, mas ele
enfia os dedos no meu cabelo, me segurando pela nuca com força, como se
quisesse me desafiar a contrariá-lo. — Você é a minha noiva, boneca.
— Ok, eu sou a sua noiva — aquiesço, rendida.
Com essa mão me segurando assim eu concordo com qualquer coisa,
Deus.
— E por último, — completa, me fazendo gemer baixinho quando
tira a mão da minha nuca e volta a tocar a minha bochecha — todos querem
conhecer a mãe do primeiro neto dos Lacerda, além de estarem ansiosos pra
saber o sexo. Eu disse que fizemos o exame e descobrimos na sexta. Lúcia é
capaz de me esfolar vivo se eu chegar lá sem você. E Bianca disse que vai te
buscar pelos cabelos. Ela é pequena, mas você também é. Não sei quem
ganharia essa disputa.
Mordo o lábio para esconder um sorriso, me sentindo um pouco mais
calma, mas ainda com bastante medo da ideia de conhecer a família dele.
— E se não gostarem de mim? — verbalizo meu maior receio.
Eu não tenho experiência com família.
Porra, literalmente nenhuma experiência.
Pelo menos não com uma família normal, amorosa, saudável.
Não me lembro nem se um dia já tivemos uma tradição de família
que não fosse falar mal dos outros e opinar quando não era chamado.
— Impossível — responde. — Não tem como não gostar de você,
Alice. Você é a pessoa mais apaixonável do mundo.
— Acho que isso não existe — replico, rindo.
— Existe sim, e é o que você é — discorda. Faz carinho dos meus
cabelos e me dá um sorriso tão lindo que tira até o meu ar. — Tudo bem?
Podemos ir? Tô com fome.
Solto uma risada e aceno, tomando coragem de enfrentar o que me
espera.
— Seja o que Deus quiser — murmuro, quando Henrique coloca
novamente o carro em movimento, se aproximando da entrada do
condomínio.
Ele sorri para o guarda, que se aproxima e nos cumprimenta, antes de
abrir o portão e dar acesso para nós.
Minhas palmas suam e eu sinto uma gota escorrer pela minha
espinha, por debaixo do vestido florido que decidi usar hoje, quando
estacionamos na frente de uma casa verde, enorme, com esquadrias de
madeira e um jardim lindo na frente.
— Bem-vinda a casa da minha infância — Henrique anuncia,
desligando o carro.
— É linda — murmuro, absorvendo cada detalhe.
Não é aquelas casas de revista, sabe, cheia de revestimentos chiques
e com formas diferentes.
Ela é gigante, óbvio, afinal eles são milionários.
Mas tem cara de casa, sabe? De lar.
Não sei exatamente o que me faz sentir tão bem, mas quando desço
do carro e me vejo na frente daquele lugar, parece até que eu cheguei em
casa.
— Pronta? — Henrique pergunta, ao meu lado, entrelaçando nossos
dedos. — Desde já me desculpe qualquer coisa. Eu sou o piadista da família,
mas nunca trouxe ninguém em casa antes, então não sei do que são capazes
pra me envergonhar.
Travo, puxando-o para trás, com os olhos arregalados.
— Você nunca trouxe uma garota em casa? — Não é possível.
— Nunca. Já tentei, mas as minhas ex-namoradas sempre recusavam,
achavam bobo demais, ficavam adiando, me enrolando... a que durou mais
tempo foi na época do mestrado, então eu não morava aqui, o que só
contribuiu pra ela nunca vir. Conheceu só o Benji uma vez que ele foi me
visitar, mas aqui... — responde, tocando meu rosto. — Você é a primeira,
boneca. — Não consigo nem responder, tamanho o meu choque. — Agora
vamos, que eu já vi algum enxerido fuxicar a gente pela cortina. — Sinto
minhas pernas mais moles do que gelatina quando ele abre a porta,
chamando pela família. — Ô de casa! O filho mais bonito chegou!
— Pensei que teria que ir buscar vocês, bocó — uma mulher loira
lindíssima resmunga, vindo da cozinha. — Oi Alice, é um prazer te
conhecer! — me cumprimenta, se aproximando e me tomando em um
abraço, que demoro um pouco a retribuir, surpresa.
— O prazer é meu, você é a Bianca, certo? — confirmo, apesar de já
saber.
Desde que entrei na Lacerda, a irmã mais nova do meu chefe só o
visitou duas vezes, e nas duas eu estava em um outro andar, resolvendo algo,
então não nos esbarramos.
— Isso mesmo, a única pessoa normal dessa família — responde,
dando um soco no irmão quando ele faz um barulho de deboche. — Me diz
uma coisa, — murmura, enlaçando o meu braço e me puxando em direção à
área externa de trás da casa — o que foi que você viu nesse energúmeno,
hein? Você é tão linda, poderia achar alguém muito melhor. Se quiser eu te
apresento uns amigos...
— Ei, ei, ei, ei, sua corretora de banco imobiliário, — Henrique se
intromete, me puxando para si e olhando feio para a irmã — pode parar de
querer enfiar caraminholas na cabeça da minha noiva. Ela não quer saber de
amigo feio nenhum, diz pra ela, boneca. — reclama. — Anda, diz que eu sou
mais do que suficiente e que você me acha o homem mais lindo do mundo,
vai? — insiste, fazendo nós duas cairmos na risada.
— Depois a gente conversa melhor, tá, Bianca? — provoco,
recebendo um apertão na cintura.
— Vai conversar nada, rum. Vou ficar de olho nas duas — resmunga,
seguindo para a área gourmet, onde encontramos o resto da família. — Oi,
oi, família feliz, chegou a alegria da casa!
— Já chega fazendo piadinhas, né, menino — uma senhorinha com
um avental revira os olhos, enxugando as mãos em um pano de prato. —
Apresenta logo a tua mulher, deixa de ser mal-educado que não foi assim
que eu te criei. — Dá um tapa no seu braço.
— Ai, ai, Lucinha, não me envergonha na frente da gatinha —
reclama, esfregando onde foi acertado. — Pessoal, essa aqui é a Alice, minha
linda e perfeita noiva. Boneca, essa senhora muito paciente e bondosa é a
Lúcia, dona e proprietária dessa casa e de todos nós. — Eu sorrio para a
mulher, que segura minhas mãos e as aperta.
— É tão linda, Henrique, bem que você falou — comenta e o homem
pisca. — Seja muito bem-vinda, minha menina, sinta-se em casa.
— Obrigada, dona Lúcia — respondo, ainda tímida.
— A Bianca você já conheceu, aquele viking ali do lado dela é o
Joaquim, namorado dela. E a princesinha é a Angélica, filha dele. — Aceno
para os dois, recebendo um cumprimento modesto do homem gigantesco e
um sorriso animado da menina fofinha. Dou uma olhada para a Bianca, meio
que dizendo se deu bem, garota, e acho que ela entende, porque pisca para
mim, abraçando o armário ao seu lado. — Esse aqui é o Benji, meu irmão
mais velho e o chato da família.
— Você, sempre adorável, não é, irmão — o homem replica, se
aproximando. Ele é alto, tão alto quanto Henrique, e seus cabelos são um
tom mais escuro, mais cumpridos e meio bagunçados. Seus olhos são iguais
ao do irmão, esverdeados de um jeito que parece até meio cinza na luz do
sol, e seu rosto é coberto por uma barba bem desenhada, marcando ainda
mais o seu maxilar quadrado.
Ele é sério, mas, ao mesmo tempo, carrega um olhar quase travesso,
misterioso e até um pouco perigoso, que me deixa curiosa.
Parece até uma versão mais velha do Dean Winchester.
Não existe ninguém feio nessa família, não?
— É um prazer, Benjamin — cumprimento o homem, apertando sua
mão estendida.
— Se sinta à vontade, Alice. É um prazer te receber na nossa casa.
Não sei o que você viu nesse piadista sem graça, mas bem-vinda à família.
Há uma aura de sabedoria que emana de Benjamin e eu,
imediatamente, me sinto mais à vontade perto dele. Não sei explicar, é quase
como se eu tivesse encontrado o meu próprio irmão mais velho inexistente.
— Obrigada, fico muito feliz em ouvir isso — murmuro, com um
sorriso contido.
— E por fim, mas não menos importante, — Henrique me puxa, se
aproximando de um senhor grisalho, com uma expressão suave, e uma
mulher lindíssima, que parece até ter saído de uma capa de revista —
conheça o meu pai, senhor Afonso Lacerda, e a Isabel, minha madrasta.
— Seja muito bem-vinda na nossa casa, Alice, é muito bom te
conhecer. Henrique falou muito a seu respeito. — Isabel é a primeira a me
cumprimentar, me puxando para um abraço gentil.
— Eu que agradeço por me receberem, dona Isabel.
— Só Isabel, querida, não precisa de formalidades. Somos todos
família, não é?
Engulo seco, sentindo minhas mãos voltarem a suar, e devolvo o
sorriso, vendo de soslaio a forma como o homem parece me observar com
cautela.
— Muito prazer, Alice — me cumprimenta, com uma voz rouca e
grave. Ele é um coroa muito, mas muito bonito, e não consigo deixar de
pensar nele como uma versão mais madura do Henrique.
Deus do céu, esse homem vai envelhecer como vinho, pelo visto.
— O prazer é meu, seu Afonso.
— Então você é a noiva do meu menino — começa, me fazendo
gelar. — Devo dizer que esse noivado pegou a todos de surpresa. Ainda mais
com a gravidez. — Ele olha para a minha barriga, rapidamente.
Não sei o que responder, e Henrique se aproxima, pousando a mão na
minha lombar.
— Pai. — Seu tom carrega uma pitada de repreensão, e eu temo estar
diante de um dilema de família. Aliás, eu temo ser a causa de um dilema
familiar.
O patriarca dos Lacerda me observa com cautela, por mais alguns
momentos, antes de abrir um sorriso mais amistoso e segurar a minha mão,
apertando-a.
— Seja bem-vinda à família, Alice — oferece, me deixando um
pouco emocionada. — Saiba que somos muito unidos e fazemos de tudo pra
proteger uns aos outros. Isso agora se aplica a você e a essa criança que você
carrega, que será meu neto ou neta.
Suas palavras descem com um gosto agridoce, me causando um
turbilhão de sensações, que perpassam desde a gratidão e o alívio até o puro
terror.
— Mas afinal, por falar nisso, será que vocês podem acabar com o
mistério e dizer o que vai ser? É menino ou menina? — Bianca interrompe o
momento, criando um clima de expectativa no ar.
Olho para Henrique, que me pergunta silenciosamente se eu quero
compartilhar isso com eles nesse momento, e eu apenas aquiesço, incapaz de
responder.
Ele me abraça de lado, pousando a mão na minha barriga, bem em
cima do pequeno carocinho que simboliza o pessegozinho, e abre um sorriso
gigante.
— É um menino — anuncia, e a casa inteira vibra, comemorando.
— Ah, meu Deus, um menino! — Lúcia exclama, emocionada. —
Um menino lindo pra alegrar essa casa! Obrigada, Senhor!
Recebo alguns abraços, muitas felicitações, algumas animadas,
outras mais contidas, mas todas realmente muito sinceras e felizes por mim e
pelo meu bebê.
Henrique parece até um pavão, todo besta e orgulhoso, contando
cada detalhe da última ultrassom e passando a foto que a médica nos deu de
mão em mão, mostrando exatamente que parte daquele borrão representa o
bebê.
Ao mesmo tempo que meu peito se enche de amor, minha cabeça se
inunda do mais puro pânico, ao ver o quão animado e envolvido esse homem
está, com a minha gravidez.
Ele age como se realmente fosse o seu bebê aqui dentro de mim, e
isso me sufoca e me apavora na mesma medida que me deixa feliz e grata.
Tento engolir o medo e sorrir, quando ele encontra o meu olhar, e
peço forças para não cometer uma loucura e me sabotar. Para não partir o
coração desse homem maravilhoso.
Deus, por favor, me dê sabedoria, peço, me aproximando dele e
sentindo o seu coração acelerado quando me abraça e coloca a minha cabeça
no seu peito.
Que eu não estrague isso, por favor.
41 - Henrique

Congela o teu olhar no meu


Esconde que já percebeu
Que todo o meu amor é teu amor
Então vem cá
Fica - Anavitória

— Parece que ela se entrosou bem — Benji comenta, se


aproximando de mim, que estou parado na entrada da sala de estar,
observando a cena à minha frente.
Depois da nossa chegada e das comemorações a respeito do sexo do
bebê, Lucia serviu o almoço e todos nós nos sentamos para comer. Alice
ainda parecia um pouco receosa e tímida, mas a minha família fez questão de
acolhê-la e fazê-la se sentir em casa, e aos poucos ela foi se soltando.
De barriga cheia, após a sobremesa, Isabel sugeriu um momento da
vergonha sobre mim, oferecendo mostrar à Alice os meus álbuns de foto de
criança.
E ali estão elas, junto de Lúcia, Bianca e Angélica, sentadas no sofá
da sala, rodeada de fotos que mostram exatamente o quão lindo eu sou desde
que nasci.
E um pouquinho das minhas peripécias de quando era moleque
também.
— Sim, ela tá mais tranquila, ainda bem — respondo. — Ela tava
bem nervosa no caminho pra cá.
— Posso te perguntar uma coisa? — meu irmão mais velho questiona
e eu assinto. — Como estão as coisas entre vocês? Vocês já estão juntos de
verdade ou ainda existe essa história de noivado falso?
Mordo o lábio, pensando em como responder uma coisa que nem eu
mesmo sei.
— Acho que estamos em um meio termo. — Opto pela franqueza. —
Não estamos juntos, juntos, mas também não é só uma farsa. Pelo menos não
pra mim.
— Henrique, nunca foi uma farsa pra você, a verdade é essa —
replica.
Ele tem razão.
Nunca foi.
— Mas agora é diferente — murmuro.
— Como? — insiste, e eu me mexo, desconfortável.
— Não sei, Benji, só é diferente — respondo, evasivamente, mas ele
me dá um olhar que diz que claramente que não compra as minhas
desculpas. Faço sinal para que ele me siga e nós saímos da casa, indo até as
poltronas do quintal. — Ela poderia ter voltado pro apartamento dela, depois
que a mãe foi embora, mas não voltou. Ela poderia ter se mudado pro quarto
de hóspedes, mas essa hipótese nem foi cogitada. Enfim, nós ainda não
confirmamos nada e ainda parece ter um grande elefante branco entre nós,
mas não me parece ser tudo mentira, sabe?
Benjamin assente, pensativo.
— Bom... — começa — ela teria que ser muito filha da puta pra vir
aqui, deixar todo mundo comemorar o sexo do bebê dela, tratar ela como
alguém da família, pra depois dizer que tudo foi mentira e te dar um pé na
bunda. Porra, o papai chamou o moleque de neto, de herdeiro.
— Moleque não, respeita meu filho — resmungo, empurrando seu
ombro.
— Você me entendeu — retruca, impaciente.
— Conhecendo a mãe dela, ela realmente é uma filha da puta, no
sentido literal do xingamento — concedo, e Benji balança a cabeça para
mim. — Mas se você tá me perguntando se ela é uma pessoa ruim, aí a
resposta é não. Pelo contrário, Alice é uma das pessoas mais boas e puras
que eu já conheci na vida. Ela não seria capaz de machucar uma mosca, não
de propósito.
— E sem querer? — meu irmão pergunta. — E se ela te machucar
sem querer? Sem maldade? Henri, você entende que não tem nenhuma
garantia aqui? Você não tem a biologia a seu favor, e tampouco a lei, porque,
se não me engano, paternidade socioafetiva só existe depois do nascimento e
decorrido um certo tempo, anos até. Se ela decidir em algum momento que
isso não é o que ela quer, você perde os dois.
— Mas se ela decidir que é o que quer, eu ganho os dois —
respondo, um pouco mais sério. — Eu sei que tem cinquenta porcento de
chance de eu sair destruído daqui, Benji. Mas tem cinquenta porcento de
chance de eu conseguir a minha felicidade, o amor da minha vida. E
enquanto ela não me destroçar em migalhas, eu não vou desistir.
— Eu só não quero que você sofra — explica.
— Eu sei, irmão. — Benjamin sempre nos protegeu, sempre agiu
como um escudo, lutando para evitar que qualquer coisa nos atingisse. — Eu
sei disso, e eu também não quero sofrer. Mas sem a Alice, eu vou sofrer, isso
é certo. Então só vou me afastar se for o que ela escolher, e quando escolher.
Nem um segundo antes.
— Eu torço muito pra ela se decidir logo — completa, me fazendo
sorrir.
— Eu também, Benji. — Nos levantamos, voltando para dentro bem
a tempo de ver a Alice gargalhando segurando uma foto minha, enquanto
Lúcia conta uma história, provavelmente bem embaraçosa, a meu respeito.
Ela levanta os olhos e me encara, divertida, com uma leveza que eu não
tinha visto ainda em seu rosto, e eu não consigo conter o meu próprio
sorriso. — Eu também — murmuro, desejoso.
Tudo o que eu mais quero é que ela se decida por mim logo.
*
— Sua família é muito divertida, agora já sei pra quem você puxou
— Alice comenta, enquanto passa o seu creme de mãos, sentada na cama,
quando eu saio do banheiro, naquela noite.
Ficamos na casa do meu pai até o finzinho da tarde, depois de um
lanche maravilhoso providenciado pela Lúcia. Ao contrário da sua chegada,
Alice se despediu de todos com um sorriso enorme no rosto, prometendo
voltar mais vezes e até mesmo disse sim quando Bianca sugeriu que elas
saíssem juntas em algum momento.
Se eu tenho medo da minha boneca e da minha tampinha juntas?
Pavor.
Mas fico mais feliz ainda por vê-la se entrosando na família assim.
Preciso mandar uma mensagem para a miniatura agradecendo por
isso.
— Ah, por favor, boneca, eles não chegam aos meus pés — debocho,
me jogando na cama ao seu lado e ganhando um sorriso. — Eu sou um ser
único nesse mundo, nada nem ninguém jamais poderá se comparar.
— Uhum, eu vi bem nas suas fotos o quão único você é — provoca.
— Vestido de Cinderela pro halloween, Henrique? Como você explica isso?
Caio na gargalhada, lembrando desse evento em específico, quando
eu tinha uns oito anos.
— Em minha defesa, — começo e ela levanta uma sobrancelha, me
dizendo para continuar — o Pedro apostou comigo que eu não teria coragem
e você me conhece, eu jamais fugiria de um desafio assim. O difícil foi
convencer a Lúcia a deixar.
— Vocês dois deixaram a pobre da Lúcia doida esses anos todos —
comenta, balançando a cabeça.
— Mas ela nos ama, isso que importa — replico. Ela sorri, deixando
o creme na mesinha de cabeceira e se ajustando debaixo dos cobertores,
virando de lado para mim. — Fiquei muito feliz em te ver no meio da minha
família, sabia? — confesso baixinho.
— E eu gostei muito da sua família — responde, sorrindo
timidamente.
— E eles gostaram muito de você — completo. — Eu disse que você
era apaixonável.
Ela revira os olhos, deitando a cabeça nas mãos e me olhando de um
jeito que envia arrepios pelo meu corpo todo.
— Obrigada por hoje — murmura. — Você não precisava me levar,
nem me inserir assim na sua vida. Mas, obrigada... eu nunca conheci uma
família assim, unida, saudável, que me deixasse tão confortável. Eu nem sei
explicar, — umedece os lábios, me deixando salivando — parece até que eu
estava em casa, sabe?
— Eu quero ver você junto deles porque quero você seja uma deles,
Alice — respondo, tentando explicar sem assustá-la. Ela me olha
intensamente, parecendo buscar por algo em meu rosto e eu me deixo
vulnerável para ela. Deixo que enxergue o desejo, o carinho, o amor. — Eu
quero ver você trocando figurinhas com a Bibi e sendo paparicada pela
Lúcia e pela Isabel. Quero ver o Benji e o papai se revezando pra cuidar de
você, como se fosse responsabilidade deles. Quero ver esse bebê — pouso a
minha mão no seu ventre, acariciando o pequeno volume ali — correndo por
aquele quintal e brincando no balanço que o papai fez pra minha irmã. Você
entende?
A sua respiração está pesada, ofegante, e seus olhos já transbordaram
há muito tempo, desde as minhas primeiras palavras. Ela esboça um sorriso
vacilante e assente, fechando os olhos quando eu tiro minha mão da sua
barriga e a uso para fazer carinho no seu rosto.
Não dizemos mais nada, porque eu sei que o medo ainda inunda o
seu coração.
Alice nunca teve uma família.
Tirando a amiga, Alice nunca teve alguém que a amasse e que a
protegesse.
Ela nunca experimentou algo que para mim é natural, é certo,
garantido.
Ela nunca soube o que é ser cuidada, ser acolhida com amor e com
respeito por aqueles que deveriam ser a sua base, o seu refúgio.
Alice foi sozinha a vida inteira, e agora essa nova realidade, de
pertencer a alguém, a assusta, e eu entendo isso, de verdade.
Só torço para que eu esteja conseguindo quebrar essas barreiras que
ela se impôs, uma a uma, e que, no final, ela me deixe morar no coração
dela, assim como ela já mora no meu há tanto tempo.
Ela se vira de costas para mim e eu me aproximo, pousando um
braço na sua cintura e a abraçando por trás, como venho fazendo alguns dias,
tentando deixá-la confortável com o meu toque.
Não me pressiono no seu corpo, mantendo um espaço entre nós dois,
e apenas fico ali, sentindo o calor que emana dela, cheirando seus cabelos e
torcendo, ansiando, para que ela não demore a decidir por nós dois.
Por nós três, penso, acariciando a sua barriga, antes de fechar os
olhos e dormir.
42 – Alice

Não existe uma única palavra


No mundo inteiro
Que consiga descrever a dor
Hate to See Your Heart Break – Paramore

— Eu e você vamos no shopping comprar algumas fofuras pro meu


afilhado amanhã, e eu não aceito não como resposta — Carina intima, no
final da nossa aula de yoga.
Na quarta, eu completei dezesseis semanas de gestação e comentei
com a minha amiga que, tirando o sapatinho e gorrinho de crochê que
Henrique comprou, eu ainda não providenciei nada para o enxoval do bebê.
Depois de fazer drama, porque o primeiro presente tinha que ter sido
dela, e o Henrique foi um enxerido, ela comentou que tínhamos que
providenciar mais coisas.
Parece que cansou de esperar por mim para decidir.
— Tudo bem, amanhã não vai ter almoço na casa do pai do Henrique
mesmo, parece que ele e a Isabel vão viajar uns dias. Aniversário de
casamento — respondo.
Depois do primeiro almoço, domingo passado fui de novo para a casa
do patriarca da família, e me empanturrei com um frango com batatas que a
Lúcia fez no forno.
Henrique desviou do assunto quando eu perguntei se ele tinha dito
que era a minha comida preferida, então desconfio que tem dedo dele nessa.
Mas, estava tão gostoso que não vou nem ser besta de reclamar.
— Hum, tá toda entrosadinha na família do noivo — debocha, e eu
bato nela com o meu tapete de yoga. — Tô mentindo por acaso?
Dou de ombros, desviando o olhar.
— Eles são bem legais, me acolheram bem — respondo. — Gostei
da companhia deles, são uma família diferente, sabe? Unida, feliz.
— Não são diferentes, não, amiga — Carina replica, arrumando a
sala para a próxima turma. — Nós duas é que somos azaradas de ter famílias
tóxicas, cheias de filhos da puta que só servem pra fazer raiva. — Sorrio da
sua descrição, acenando, porque é verdade. — E por falar em filha da puta,
— continua — algum sinal da jararaca?
— Não — nego, ajudando ela a posicionar as almofadas. — Eu
bloqueei uns cinco números até agora, mas já faz mais de semana que ela
não tenta entrar em contato. Espero que tenha desistido, sinceramente.
— E você não vai mais mandar um real praquelas duas, né?
— Claro que não — respondo. — Sabe, depois das coisas que ela me
falou, do jeito que me olhou, do desprezo, sei lá... — Dou de ombros. —
Agora que eu sou mãe, não consigo ignorar a falta de carinho dela por mim.
Porra, Cá, meu bebê nem nasceu e eu daria a minha vida por ele. Não tem
explicação pra o jeito que ela me trata. Eu não pedi pra nascer, não tenho
culpa de ela ter tido dedo podre pra homem.
— Que bom que hoje você enxerga isso, amiga — replica. — Aquela
mulher nunca foi mãe de verdade pra você. Só te humilhava e te sugava e te
fazia morar naquele muquifo horrível por falta de dinheiro. E por falar nisso,
você já devolveu o apartamento?
— Devolvi. — Mordo o lábio, respondendo. — Henrique não sabe
— confesso.
O dono do apartamento me ligou, na semana passada, querendo
renovar o contrato. Em um impulso que até agora não entendo de onde veio,
disse para ele que não ia renovar. Perguntei se ele tinha interesse em ficar
com os meus móveis e talvez alugar o lugar mobiliado para o próximo
infeliz que escolhesse morar ali, e ele aceitou, me dando uns mil e
quinhentos reais por tudo.
Ainda saí no lucro.
A única coisa que realmente valia algo ali era a minha TV, mas sei
que a minha amiga não se importaria de eu vender o presente que me deu,
nessas condições.
Então encerrei o nosso contrato por telefone mesmo, e o cara sequer
fez questão de que eu devolvesse as chaves, me dizendo só para jogá-las
fora.
Segurança show, vou te contar.
— Por que você tá escondendo?
— Não quero que ele pense que eu fiz isso na intenção de ficar pra
sempre, sabe. Não quero dar mais esperanças do que eu já dou — explico.
— Claro, claro, porque o coitado já não está todo iludido, jurando
que vocês vão no cartório a qualquer momento oficializar essa união, né? —
debocha, revirando os olhos. — Odeio quando você se faz de sonsa, Alice.
— Eu não tô me fazendo de sonsa! — me defendo, e ela bufa.
— Tá sim! — retruca. — Você não quer ouvir a verdade, mas foda-
se, vou falar: o Henrique tá apaixonado por você, sua idiota! Se duvidar, o
cara até te ama! E você fica aí, esnobando enquanto enrola o coitado, dando
corda e ainda assim negando o que tá rolando. Sonsa, sim, e se continuar
assim, vai tomar um pé na bunda pra deixar de ser otária.
— Credo, Carina!
— Credo? Só tô sendo sincera. Te amo o suficiente pra esfregar a
verdade na sua cara quando é preciso e, adivinha? Agora você tá precisando.
— Eu vou resolver essa história com o Henrique logo, tá? —
resmungo. — Só preciso ter certeza, pensar bem, não posso me jogar assim
do nada.
— Você tem cinco meses pra se resolver, Alice, e eu sinceramente
espero que não leve tudo isso, porque esse cara merece mais de você — ela
afirma, sendo dura com as suas palavras. — Ele te dá o mundo e você
oferece migalhas em retorno. Se decida logo, porque agora até a família dele
adotou você e esse neném e seria muita filha da putagem sua jogar isso fora
do nada.
Eu sei disso.
Cada dia mais eu estou envolvida na teia do Henrique, encantada por
ele e desejando que a farsa deixe de ser farsa e se torne a minha realidade.
— Eu acho que preciso de terapia — murmuro e minha amiga bate
palmas.
— Aleluia! — comemora. — Eu digo que você precisa de terapia há
quase dez anos, Alice, desde que te vi sentada naquele banco de praça sem
conseguir respirar. Que bom que só precisou você engravidar e ficar noiva
de mentira do seu chefe pra perceber isso.
Reviro os olhos, ignorando o seu deboche, e me concentrando na
realidade.
Eu preciso aprender a deixar o passado para trás e parar de me
prender por causa dos erros dos outros.
Senão vou terminar igual a minha mãe.
Sozinha, criando esse bebê, amargurada. Mas não por ter sido
abandonada, e sim por ter perdido a oportunidade com um cara incrível por
minha única e exclusiva culpa.
*
— Olha essa fofura, Alice, meu Deus — Carina me puxa para
mostrar um ursinho de pelúcia em uma vitrine. — É isso, eu vou torrar
minha herança toda nessa criança e vou viver de vender minha arte na praia.
Solto uma risada com as suas palavras e observo o bichinho.
— Aqui nem tem praia, sua tonta — respondo. — Mas é lindo
mesmo — murmuro. — Ai, amiga, às vezes parece que nem é real, sabe?
Que realmente tem um bebezinho aqui. — Coloco a mão na minha barriga,
agora bem mais pronunciada, principalmente nesse vestido mais justo que
optei para hoje.
— Pois é real sim, mamãezinha — ela responde, me abraçando pelos
ombros. — Esse neném logo, logo chega e vai ser, muito, mas muito
paparicado pela madrinha dele.
Sorrio para ela, mas logo me distraio com uma cena que me tira o
chão de debaixo dos pés. Alguns metros à frente, parado no meio do
corredor, apontando algo para uma criança de uns seis anos talvez, e com
uma outra de um ou dois anos no braço, acompanhado de uma mulher linda,
de cabelos loiros e uma barriga enorme, anunciando mais uma criança a
caminho, está o homem que colocou esse bebê na minha barriga.
— O que foi, Alice? Você tá pálida. — Pisco, quando minha amiga
balança a mão no meu rosto, e encontro a sua expressão preocupada.
— Ali, na frente daquela loja de brinquedos — respondo, apontando
para a família de comercial de margarina.
— O que... meu Deus — Carina murmura, tão surpresa quanto eu. —
Você acha que...
— Que eu dormi com um cara casado? Sim, eu tenho certeza.
Meu Deus.
Meu bebê é fruto de uma traição.
Eu sou a outra.
Meu Deus do céu.
— Amiga, respira, você não pode se exaltar. Pensa no seu bebezinho
— ela pede, e eu coloco a mão na minha barriga, no meu pequeno carocinho,
tão perfeitinho e lindo.
Bem nesse momento, o homem se vira e encontra meus olhos,
arregalando os seus por um breve momento, antes de disfarçar,
completamente constrangido.
É toda a confirmação que eu preciso.
— Me tira daqui, Carina — peço, ou melhor, suplico, já sentindo as
lágrimas se formando em meus olhos.
Minha amiga não hesita em me puxar pela mão, ignorando
totalmente o ursinho que tanto nos encantou, assim como qualquer outra
coisa que poderíamos comprar, e me arrasta em direção à saída do shopping,
enquanto minha mente fervilha com a informação que acabei de descobrir.
Eu dormi com um cara casado.
Um cara nojento, sem escrúpulos, que transou com uma estranha
depois de um showzinho em um bar, enquanto a sua mulher, mãe dos seus
filhos, estava em casa, grávida de outro bebê.
Por que justo esse tipo de homem tem que ser tão fértil?
Estamos quase saindo quando escuto a voz que preencheu meus
ouvidos naquela noite chamando por nós.
— Ei, espera! — Travo no lugar, paralisada e sentindo o meu corpo
inteiro tremer, tanto de vergonha quanto de ódio, e me viro, encarando
aquele rosto, que na noite em que conheci me atraiu tanto, mas agora só me
desperta o mais puro asco. — Aline, não é? Escuta, se a gente puder
conversar...
— É Alice — Carina interrompe. — E ela não tem nada pra
conversar com um filho da puta traidor como você. Vem amiga.
Ela me puxa pela mão e bem nessa hora ele percebe a minha barriga
e arregala os olhos.
— Meu Deus, você tá grávida? — pergunta, assustado.
— Não, idiota, ela comeu um melão — minha amiga debocha, mas
eu não consigo nem sorrir, tampouco responder, apenas encarando aquele
homem.
— Por que? — murmuro.
— Escuta, aquela noite foi um pequeno deslize, tá legal? — justifica,
se aproximando. Eu dou um passo para trás e ele para, levantando as mãos
em rendição. — Eu tinha brigado com a minha mulher, tava puto e acabei
naquele bar. E você tava toda gostosa naquele vestido, não resisti. Sabe
como é, né? A carne é fraca, gata.
— Mas é muito cara de pau mesmo, meu Deus do céu — Carina
murmura, porque eu não consigo nem respirar.
— Me responde, você tá grávida? É meu? — pergunta, ignorando a
minha amiga. — Olha, eu não tenho interesse em criar bastardo não, ok?
— Bastardo? — murmuro, impactada com a palavra.
— É, cara. Já tenho dois, mais um pra chegar e esse negócio de filho
é mó trabalho, não tô a fim de mais confusão. Fora que a minha mulher
surtaria se descobrisse. Então... como a gente pode resolver?
— Resolver? — questiono, incrédula. O que ele quer dizer com isso?
— É, sabe? Tipo, você quer dinheiro, ainda dá tempo de tirar? —
Dou mais um passo para trás, chocada. — Não vem com negócio de justiça
não, a gente pode negociar uma grana aí pro moleque e ficar tudo entre nós.
Ninguém precisa saber — propõe, como se fosse uma ideia genial e eu
devesse estar dando pulinhos de alegria.
— Cara, ela não quer nem precisa do teu dinheiro, só some daqui,
senão eu volto lá e conto pra tua mulher exatamente o salafrário que deita na
cama dela toda noite — Carina ameaça, e ele dá um passo para trás,
balançando a cabeça.
— Não precisa disso, não, ruiva — pede, arrancando um bufar
indignado da minha amiga. — Olha, toma aqui, — ele puxa a carteira e tira
um cartão de visita de lá, me entregando — quando você estiver mais calma
e sozinha, — olha para Carina, que levanta o queixo, desafiando-o — me
liga, tá? A gente pode conversar, tentar resolver essa parada. Agora eu tenho
que ir.
Parada.
Ele chamou meu bebê de parada.
Vejo-o se afastar, voltando a passos largos para a sua família, e sinto
a primeira lágrima escorrer pela minha bochecha.
— Amiga, vamos sair daqui — Carina pede, segurando minha mão.
— Meu bebê é filho de um cara casado, Carina — murmuro, a
realidade me atingindo com a força de um soco.
Bastardo.
Foi do que ele chamou meu neném.
E é a verdade, não é?
Meu bebê, meu pacotinho de amor, é um bastardo.
Meu corpo sacode em soluços quando Carina me abraça, tentando
me consolar.
O que foi que eu fiz? Como posso ter me envolvido em algo tão
sujo? Como pude escolher justo esse homem para ser o pai do meu filho?
Me perdoa, bebê. Me perdoa por ter errado tanto com você.
43 - Henrique

Mesmo triste eu tava feliz


E acabei acreditando em ilusões
Eu nem pensava em ter que esquecer você
Ainda Lembro – Marisa Monte

— Eu odeio você, seu pau no cu — Pedro resmunga no telefone,


enquanto eu termino de temperar os bifes para colocar para grelhar para o
jantar.
Minha boneca saiu com a sua melhor amiga para um dia de meninas
no shopping, e eu almocei com o meu irmão, antes de vir para casa e ficar
trabalhando em algumas coisas sobre a expansão da Lacerda.
Com a ideia de abrir o capital da empresa na Bolsa, nós precisamos
melhorar nossa captação de clientes novos e garantir alguns investidores
para custear melhorias que planejamos fazer. Eu estou até pensando em abrir
uma filial administrativa na capital, mas, antes disso, preciso amadurecer a
ideia.
Na próxima semana, inclusive, acontecerá um Congresso
importantíssimo do ramo editorial, em São Paulo, o que será uma ótima
oportunidade para a Lacerda aumentar o seu networking e criar mais
relações que ajudariam nesse processo.
É exatamente isso que eu estou tentando enfiar na cabeça do meu
amigo há dois dias.
O evento será de segunda a sexta, o dia inteiro, em um dos maiores
centros de convenções da capital, com a presença de empresários,
fornecedores e demais profissionais da área, e nós não podemos ficar de
fora.
Só que ficar uma semana inteira longe da minha boneca, há duas
horas de distância?
Nem fodendo.
E ela não poderia me acompanhar, porque estamos em processo de
finalização de diagramação para um lançamento, e é ela quem costuma
acompanhar a integração dos processos entre os setores, para depois fechar
os relatórios e passar os dados para mim.
Então, se eu não vou, quem melhor para convencer fornecedores e
parceiros em potencial e vender o nosso peixe do que o nosso diretor de
marketing?
Aparentemente, Pedro não concorda comigo.
— Você sabe que eu não quero deixar a Alice sozinha por uma
semana, cara — respondo, explicando mais uma vez o que ele insiste em não
entender. — Ela tá com dezesseis semanas, a qualquer momento o bebê pode
começar a mexer e eu não quero perder isso.
Numa das minhas leituras, vi que o bebê pode começar a mexer a
partir do quarto mês de gestação, apesar de ser mais comum apenas depois
do quinto. De qualquer forma, ficar longe de Alice não é uma ideia nem um
pouco atraente para mim, então o Pedro que lide com a porra desse
Congresso.
— E por que sou eu que tenho que me foder indo pra um congresso
chato por uma semana inteira no teu lugar? — resmunga, e eu escuto os
barulhos ao fundo, dele arrumando a sua mala.
— Pensa assim, meu nego, — começo, pronto para jogar minha
cartada final — uma semana inteira na capital, com hospedagem e
alimentação pagas pela empresa, um evento que é só das nove às quatro da
tarde. Você vai ter o resto do dia e a noite toda pra explorar São Paulo. Acha
mesmo que não vai arrumar uma companhia muito interessante pra te ajudar
a passar o tempo?
Ele fica mudo por alguns segundos, ponderando, até que coça a
garganta, antes de responder.
— Não tinha pensado por esse lado — murmura, e mesmo que o seu
tom pareça meio estranho, sei que o convenci. — Eu espero, no mínimo, um
hotel cinco estrelas, muito bem localizado.
— O seu quarto vai ter até uma jacuzzi — respondo, sabendo
exatamente como agradá-lo.
— Acho bom — replica, já sem oitenta por cento da irritação na sua
voz. — E você vai ficar me devendo uma!
— Uhum, vou sim, tchutchuco. — O infeliz provavelmente vai fazer
uma orgia naquele quarto de hotel, a semana inteira, e sou eu quem vou ficar
devendo uma?
Mas tudo bem.
Valeria a pena ficar aqui com a minha boneca.
— Vou terminar de arrumar minhas malas agora. Amanhã pego a
estrada bem cedo pra não perder o início do evento — explica, e eu
concordo, me despedindo e desejando boa viagem antes de desligar.
Puxo o grill elétrico do armário de baixo e coloco no balcão da
cozinha, ligando-o para esquentar. Como são apenas dois bifes, um para
mim, e um para Alice, não há necessidade de usar a churrasqueira da
varanda. Olho o relógio e vejo que são quase sete da noite, então a ela deve
estar quase chegando do seu passeio.
Espero que ela tenha comprado muitas coisinhas fofinhas para o
nosso neném, penso, sorrindo.
Escuto o barulho das chaves na porta e enxugo as mãos no
guardanapo, me virando em direção a entrada com um sorriso enorme, que
morre nos meus lábios quando eu enxergo o seu estado.
— O que aconteceu? — pergunto, me aproximando dela e segurando
os seus ombros, correndo meus olhos por todo o seu corpo em busca de
algum ferimento, de algo que explique seus olhos inchados e seu nariz
avermelhado. — Alice, o que aconteceu? O que fizeram com você?
Ela soluça, seu rosto se contorcendo em uma careta de dor, e eu a
puxo para mim, apertando-a contra o meu peito, completamente em pânico
com seu desespero.
— Eu não sabia, Henrique, eu não sabia... — clama em meio ao seu
pranto, segurando os meus braços com força o suficiente para que suas
unhas me machuquem, mas eu apenas a seguro, afagando os seus cabelos e
tentando ajudá-la a se acalmar o suficiente para me explicar que merda
aconteceu nesse passeio.
— Respira, minha linda, por favor. Você vai passar mal, respira pra
mim — peço, puxando o ar com força, pedindo para que ela me imite e
consiga diminuir o seu choro. Passamos alguns minutos assim, ali mesmo no
hall de entrada, até que ela esteja apenas soluçando fraquinho, alguns
tremores ainda tomando o seu corpo. — Conta pra mim o que houve,
boneca?
— Eu encontrei com ele — responde, e eu me afasto para fitar seu
rosto, fazendo uma expressão confusa.
— Ele quem?
— O pai do meu bebê.
É o mesmo que levar um soco.
Ou melhor, é o mesmo que levar mil socos.
Teve essa vez, em que eu estava treinando com o Pedro, no curto
período em que fizemos judô, quando éramos adolescentes. Papai achou uma
boa ideia, tanto para gastar nossa energia quanto para ajudar a gente a
canalizar um pouco da nossa raiva.
A minha, devido a morte precoce da minha mãe.
E a dele, por causa do pai filho da puta.
Fizemos apenas duas aulas antes de acontecer uma merda das
grandes.
Logo no início da terceira aula, estávamos assistindo uma luta de
dois judocas super experientes, um deles até mesmo campeão olímpico, que
vieram conhecer o centro e dar uma animada na turma.
Pedro me desafiou a imitar um dos golpes que vimos os dois
fazendo.
Era tipo um mata-leão, só que mais bruto e, como não tínhamos a
menor técnica nem noção alguma do perigo, a nossa proeza terminou
comigo na emergência, com o pulso esquerdo quebrado.
Doeu como um inferno.
E quando comecei a fisioterapia, doeu ainda mais.
Eu pensava que, depois da morte da minha mãe, aquela tinha sido a
dor mais horrível que eu já senti na vida.
E era verdade.
Pelo menos até agora.
— O que? — murmuro, perplexo.
— O pai do bebê — mais um soco — tava no shopping, passeando
de braços dados com uma loira super-grávida e mais duas crianças a
tiracolo! Ele é casado, Henrique! O pai do meu bebê é casado! — Outro
golpe, ainda mais forte, que me deixa até tonto.
— Como... — balbucio, incapaz de raciocinar.
— E ele ainda veio me dizer um monte de absurdos, que eu não
podia ir na justiça, que a gente podia resolver essa parada em segredo, e
ainda chamou meu filho de bastardo! Henrique, ele chamou o meu bebê de
bastardo!
— Alice... — Tento falar, mas ela está agitada demais, e se afasta,
indo para o meio da sala, com as mãos na cabeça, quase puxando os seus
cabelos, uma expressão destroçada no rosto.
— E o pior de tudo é que ele tá certo! — continua, sem nem respirar.
— Ele tá certo, porque eu fui burra o suficiente pra abrir as pernas pra um
cara casado! Meu bebê tem uma mãe idiota e um pai cafajeste, sem
vergonha, filho da puta e traidor!
— Para de chamar esse desgraçado de pai do bebê! — exclamo,
precisando até me afastar um pouco dela — Ele não é! É só a porra do
doador de esperma! Não é o pai dele e nunca vai ser!
— Semânticas, Henrique! — replica, revirando os olhos, e eu sinto
meu peito afundar com as suas palavras. — São só semânticas! Mesmo que a
gente tente negar, ele é o pai desse bebê, não dá pra negar a biologia.
— Foda-se ele e a biologia! — Perco toda a minha sanidade,
machucado demais para sequer pensar direito.
Porra, e tudo o que eu tenho feito? E todo o carinho e o amor que eu
tenho dedicado todo santo dia a eles dois? E todo o meu empenho em cuidar
dela, em dar apoio, em fazer parte de cada momento dessa gravidez? Tudo
isso é nada para ela, agora que esse ordinário reapareceu dos quintos dos
infernos?!
— Henrique... — ela murmura, de um jeito tão quebrado que quase
me desmonta, se eu não estivesse ainda mais quebrado.
— Não, Alice — nego. — Eu não aceito um negócio desses, não
aceito! Esse cara não é nada nem ninguém, nem pra você nem pro bebê.
Vocês não precisam dele! Você não tem que submeter a um crápula desses,
porra!
— É egoísmo demais querer deixar o campo de pai em branco na
certidão de nascimento dele só porque eu não soube dar direito, Henrique!
Meu filho não merece isso, ele tem direitos!
Ela quer colocar o nome daquele desgraçado na certidão de
nascimento do bebê? Foi isso mesmo que eu ouvi?
Nossas respirações ruidosas preenchem o apartamento e eu sinto
meus olhos ardendo, a dor tão grande e tão profunda que quase me sufoca.
Como se uma mão forte estivesse me segurando pelo pescoço, fechando a
minha traqueia e me impedindo de respirar direito.
Alice me encara, esbaforida e triste, quase tão triste quanto eu, se eu
achasse possível.
Mas não é.
Ninguém está mais triste do que eu.
Porque as palavras de Benjamin preenchem a minha mente
novamente, me dando o último soco da noite, o meu nocaute.
Eu não tenho direito a nada. Não sou ninguém.
Sou só o idiota que deu tudo de mim para eles, a troco de nada.
— Você tem razão, Alice — murmuro, sentindo uma lágrima solitária
escapar do meu olho direito. — Eu jamais imaginei que você pudesse ser tão
egoísta assim.
Ela me encara, surpresa com as minhas palavras e com o meu estado,
e aos poucos vai arregalando os olhos, quase como se estivesse só agora se
dando conta de tudo.
— Henrique — sussurra, dando um passo na minha direção.
Eu balanço a cabeça e me afasto, colocando minha mão entre nós, em
um sinal para que não se aproxime.
— O grill tá ligado, temperei uns bifes pro jantar, caso esteja com
fome — digo, indo em direção à porta. — Eu preciso de um tempo sozinho.
Não precisa me esperar acordada.
— Espera... — Ouço seu pedido antes de fechar a porta atrás de mim
e chamar o elevador que, graças a Deus, já está no nosso andar.
Eu só quero sumir daqui. Desaparecer.
Puxo o telefone do bolso, discando o número do meu melhor amigo,
que atende no segundo toque.
— Mudança de planos... — começo.
Todo aquele medo de ficar uma semana afastado dela, de repente, se
transformou em uma necessidade.
Eu preciso me afastar, pensar, entender melhor o que estou sentindo.
Preciso entender se realmente vale a pena continuar me doando e me
entregando assim em uma relação que, pelo visto, é totalmente unilateral.
As lágrimas ainda enfeitam meu rosto quando eu desligo o chamada
e depois o telefone, e saio do elevador, indo para o meu carro, sem ideia de
onde quero ir.
Realmente, a dor de um osso quebrado em nada se compara ao que
eu estou sentindo agora.
Porque não foi só um amor que eu possivelmente perdi.
Foram dois.
44 - Alice

Não tem que ser assim


Tanto desencontro, mágoa e dor,
Pra quê que a gente tem que se arriscar?
Estranho Jeito de Amar – Sandy e Junior

O que foi que eu fiz?


Meu Deus, o que foi que eu acabei de fazer?
Me encontro parada no meio da sala, olhando para a porta da frente,
na esperança de Henrique abri-la e voltar para mim.
Mas ele não volta.
Minutos inteiros se passam e ele não volta.
Eu sinto meu corpo inteiro anestesiado ao mesmo tempo que a minha
mente fervilha com o que acabou de acontecer.
Porra, Alice, que merda que você fez?!
O nojo e a raiva acumulados dentro de mim desde que eu vi aquele
desgraçado no shopping somem, dando lugar ao pânico de ter perdido a
coisa mais linda da minha vida por pura burrice.
Henrique não vai me perdoar.
Não tem como, o que eu acabei de falar não tem perdão.
Como eu pude?
Como eu pude ser tão burra e simplesmente ignorar tudo o que ele
fez por mim até agora? Todo o amor que dedicou ao meu bebê? Como eu
pude ser tão idiota e atribuir o papel que ele vem cumprindo com louvor,
todos esses meses, a um ser nojento e sem escrúpulos como aquele homem?
É claro que o nome dele não estará na certidão desse bebê!
Só existe um nome que pode preencher aquele espaço, e esse nome é
o do Henrique.
Só existe uma pessoa que pode assumir o título de pai dessa criança,
e essa pessoa é o Henrique.
Meu Deus, o que foi que eu fiz?
Puxo o meu celular, discando o seu número, apenas para ouvir a voz
mecânica me encaminhando para a caixa postal.
— Henrique? — chamo, após o bipe, mesmo sabendo que ele não vai
me responder. — Me perdoa, por favor. Eu não sei o deu em mim, eu fui
muito burra, por favor. Volta, vem pra casa. Vem pra gente conversar, por
favor, Henrique — peço, as lágrimas voltando com toda força, agora ainda
mais dolorosas, porque eu consegui magoar a pessoa mais incrível do
mundo. — Por favor, volta. Me perdoa.
A chamada é encerrada, o tempo da mensagem se esgotando, e eu me
sento no sofá, sem forças de permanecer de pé.
Faço outra ligação, que é atendida no terceiro toque, e então o choro
escapa, sofrido, culpado, com vergonha.
— Alice? Alice, fala comigo — minha amiga pede, preocupada com
o meu estado.
— Ele não vai me perdoar, Carina — murmuro, em meio aos
soluços, e coloco as mãos no rosto.
— Como assim? Ele quem? Alice, o que aconteceu? — ela pergunta,
sem entender nada, e eu conto.
Explico o que aconteceu desde que me deixou aqui, a forma como
cheguei, vi Henrique sorrindo para mim e desabei novamente, o jeito que o
desespero me tomou e eu comecei a vomitar todas as minhas inseguranças
em cima dele, completamente sem filtro, sem pensar no quanto as minhas
palavras seriam capazes de machucá-lo, no quanto eu estava sendo injusta,
cruel.
— Ah, amiga... — Carina lamenta, ciente de que eu cometi um erro
terrível.
— Os olhos dele, Cá... — murmuro. — Ele nunca tinha me olhado
daquele jeito. Tão decepcionado, tão magoado, tão... ele não vai me perdoar,
amiga.
— Ele vai sim, Alice — responde, em um tom gentil. — Ele vai
porque ele te ama e você sabe disso, mesmo que ele nunca tenha
verbalizado. Você sabe o quanto ele te venera, o cara só falta beijar o chão
que você pisa, é claro que ele vai te perdoar. Olha o quanto ele já fez por ti e
por esse bebê! Ele não ama só você, e sim vocês dois, o pacote completo.
— Você a-acha? — pergunto, em meio a um soluço.
— Eu sei que sim — decreta. — Mas, Alice, — continua, mais séria
— você precisa se decidir. Precisa tomar um rumo pra sua vida e parar de
enrolar esse homem, dando migalhas pra ele. Precisa decidir, quem é o pai
desse bebê?
— É o Henrique, amiga — replico, sem a menor hesitação.
É a afirmação mais certa e fácil que eu já fiz na vida.
Não há dúvidas, não há questionamentos.
Henrique é o pai desse bebê, mesmo que nós dois nem fiquemos
juntos.
— Então trata ele como tal — afirma. — Assume ele como pai do
bebê e lida com as consequências. Esquece aquele verme leproso. Ou
melhor, lembra dele, mas como o maior livramento da sua vida. Ele só foi
útil pra te dar esse presente que é o meu afilhado e ter dado o empurrão entre
você e o Henrique. Só. Nada mais. Ele é um porco, um projeto de estrume
que não merece nem ser chamado de homem. Coitada da mulher dele que
não sabe o ser repugnante que vive com ela, mas isso já não é problema
nosso. Você tem um homem incrível do seu lado, não perde ele por burrice.
— E se ele não me perdoar? — murmuro, receosa.
— Então luta por ele, porra! — retruca, com veemência. — Olha o
quanto que esse homem já rastejou por você, agora é a sua vez! Luta por ele,
corre atrás, faz o que puder pra mostrar que vale a pena. Ou vai ser covarde e
desistir fácil assim?
— Não — respondo, decidida. Eu não posso perder o Henrique. Me
recuso. — Eu vou brigar por ele. Nós dois vamos. — Coloco a minha mão
na barriga e acaricio o meu pedacinho de amor.
Ele não merece um pai filho da puta.
Ele merece o pai que o escolheu, que o amou desde o primeiro
segundo que o viu.
Ele pode não ter o seu DNA, mas é filho de Henrique em todo o
sentido da palavra. E não vai ser eu quem vai impedir a relação dos dois.
Não vai ser eu quem vai separá-los.
— Gosto assim — minha amiga responde, com um sorriso na voz. —
E amanhã de manhã eu vou marcar uma terapia pra ti, não quero saber de
desculpas. Chega de não lidar com os teus traumas e ficar respingando nos
outros. Chega de ficar presa no passado. Se você quer uma vida feliz com
esse bebê e o pai dele, é hora de se curar, Alice.
— Eu sei — murmuro. — Obrigada, amiga.
— Sempre aqui, você sabe — replica, em uma promessa. — Agora
vai lutar pelo teu homem.
Sorrio, ainda em meio a algumas lágrimas insistentes, e me despeço,
desligando o telefone.
Eu vou fazer exatamente isso, penso, me ajeitando no sofá.
Não vou deixar a minha burrice me arrancar a felicidade que eu sei
que só Henrique é capaz de me proporcionar.
*
Acordo um pouco atordoada, sem entender direito o porquê.
Pelo menos até que os flashs da noite anterior invadem a minha
mente e me fazem sentar, num pulo.
Como eu vim parar na cama?
— Henrique... — murmuro, porque não há outra explicação. Ele
deve ter chegado e me encontrado dormindo no sofá, e resolveu me trazer
para a cama.
Cama essa, em que ele pareceu não ter dormido, já que o outro lado
permanece intacto.
Me levanto, apressada, saindo do quarto à sua procura e suspirando
em alívio quando escuto barulhos de louça na cozinha.
Ele está aqui.
— Henrique — chamo baixinho, vendo a forma como seu corpo
inteiro parece tensionar ao som da minha voz.
Ele está pronto para trabalhar, de terno, todo arrumado, lavando
algumas louças.
— Bom dia — murmura, ainda sem me encarar. — Deixei as
omeletes prontas no micro-ondas pra você. Preciso sair logo.
Só nesse momento minha visão periférica enxerga uma mala preta
encostada ao lado do aparador, perto da porta, e meu coração dispara.
— Pra que essa mala? — pergunto, receosa.
— Pedro não vai poder ir ao congresso em São Paulo, então eu vou
precisar ir, representando a Lacerda — explica, ainda de costas para mim,
como se a ideia de me olhar fosse terrível.
— Você vai viajar? — Até onde me lembro, esse congresso vai durar
uma semana.
Ele vai passar uma semana fora?
— Você pode usar o sedan, as chaves estão na gaveta do aparador —
continua, sem me responder. — Eu vou na caminhonete.
Henrique tem dois carros, um modelo mais simples, sedan, que ele
quase não usa, e uma caminhonete quatro por quatro, que é o seu xodó e a
que usamos no dia a dia.
— Henrique — sussurro, me aproximando. — Olha pra mim —
imploro, vendo a forma como abre e fecha o punho ao lado do corpo e pende
a cabeça para a frente, como se sentisse dor. — Por favor.
Ele leva alguns segundos e se vira, e a visão do seu rosto destruído,
os olhos fundos e avermelhados, a expressão magoada, tudo isso vai ficar
para sempre gravado na minha memória.
Porque eu fiz isso.
Fui eu quem o deixou assim.
— Eu preciso ir se quiser chegar a tempo da primeira conferência —
murmura, olhando o relógio no seu pulso e enxugando as mãos em um
guardanapo. — Tem comida suficiente pra semana inteira na geladeira e o
restaurante vai continuar entregando o seu almoço na empresa. O bistrô
também, com o lanche da tarde. Na quarta, eu vou pedir pra mandarem um
cupcake, pra você comemorar o semanassário do... — sua voz se quebra e eu
não aguento, as lágrimas descendo por minhas bochechas ao ver a forma
como aponta para a minha barriga. — Do bebê.
— Henrique, por favor... — peço, chegando mais perto. — A gente
pode conversar? Por favor...
Ele desvia o olhar, mas eu consigo perceber a forma como luta com
as emoções, puxando forte a respiração antes de responder.
— Eu realmente preciso ir. — Quero gritar, mas apenas assinto,
desolada. — Acho que vai ser bom, essa semana... você precisa pensar
melhor nas coisas e quando eu voltar, talvez seja o momento de a gente
resolver a nossa situação. Colocar um fim nesse noivado falso, afinal, não
precisa mais mentir pra sua mãe.
As palavras sufocam a minha garganta, todas embaralhadas, sem
nexo, porque eu sequer consigo raciocinar com o seu comentário.
Acabar com tudo?
— Henrique... — murmuro o seu nome pela enésima vez, porque
parece que só consigo dizer isso, e dessa vez é ele quem se aproxima, um
sorriso tão, mas tão quebrado nos lábios, que eu solto um soluço, sem
conseguir me conter.
— Não chora, boneca. — O apelido só termina de me partir em mil
pedaços, e as lágrimas embaçam a minha vista, e mesmo assim a sua
expressão tristonha me assombra. — Eu volto na sexta, ok? Fica à vontade,
você sabe.
— Você vai voltar? — pergunto, e ele sorri.
— Claro que vou — sussurra, trazendo uma mão para afagar meu
rosto. Fecho os olhos, sorvendo o carinho que dura pouco demais. — A
minha vida inteira está aqui, você não entendeu ainda?
Eu entendo o significado oculto das suas palavras, assentindo e
ganhando mais um sorriso melancólico, quando ele se inclina para deixar um
beijo nos meus cabelos.
— Me perdoa... — peço, bem baixinho, tanto que até penso que não
ouviu, mas a forma como os seus olhos estão umedecidos quando me olha de
novo me faz perceber que sim, ele escutou.
— Até mais, Alice — responde, se afastando e pegando a alça da
mala, me direcionando um último olhar. — Se cuidem, vocês dois.
O som da porta se fechando ecoa pelo apartamento e eu fico ali,
parada, sem ação.
Eu sempre fui sozinha, sempre fui acostumada a ter apenas a minha
própria companhia.
Antes de conhecer Carina, tive pouquíssimos amigos, focada demais
em estudar para conseguir minha passagem para longe da minha mãe e da
minha avó, então me acostumei com a solidão.
O silêncio sempre foi meu maior companheiro e, vivendo em uma
casa onde eu era recriminada por qualquer motivo, o tempo inteiro, quando
me mudei e fui morar sozinha, ele se tornou sinônimo de paz para mim, de
acolhimento.
Eu pensei que isso ainda era uma verdade.
Mas agora, aqui, parada no meio desse apartamento, olhando para a
porta fechada, eu percebo que não.
O silêncio não é mais meu companheiro, e tampouco acolhedor.
Ele se tornou um castigo, uma punição por ter sido tão leviana.
Ao invés de me trazê-la, como sempre fez, dessa vez o que o silêncio
fez foi levar embora a minha paz.
45 - Henrique

E hoje a noite não tem luar


Eu estou sem ela
Já nem sei onde procurar
Não sei onde ela está
Hoje a noite não tem luar – Legião Urbana

Não faz nem quarenta e oito horas que eu estou longe de Alice e já
me sinto prestes a enlouquecer.
É possível morrer de abstinência de uma pessoa?
Eu tenho quase certeza de que sim, porque é exatamente desse jeito
que me sinto.
Cheguei no hotel há mais de uma hora, depois de jantar com um
investidor interessado na Lacerda, e meu corpo se recusa a desligar e
descansar.
Minha cabeça fica martelando sem parar: será que a Alice comeu
direitinho? O bebê fez alguma coisa diferente hoje? E se ela tiver voltado a
sentir enjoos? Será que ela está sentindo a minha falta do mesmo jeito que eu
sinto a dela?
Parte de mim grita para eu deixar de ser um otário, porque ela
demonstrou muito claramente o que eu significo para ela domingo à noite,
quando disse com todas as letras que aquele infeliz que era o pai do bebê.
Essa parte específica de mim está muito, mas muito puta com ela,
magoada, ferida.
Mas a outra parte, que infelizmente (ou não) é bem maior e mais
teimosa, só consegue pensar nos seus olhinhos tristonhos quando eu saí do
apartamento ontem de manhã.
Essa parte, emocionada e burra, ainda tem esperanças de que tudo
não passou de um mal entendido, e que ela estava apenas confusa e
magoada, que estava triste por causa de toda a situação com aquele pau no
cu, que não teve a intenção de dizer aquilo, e que me ama na mesma medida
que eu a amo.
E é essa parte que me faz pegar o celular e buscar pelo contato dela,
tentando decidir se vale a pena ligar ou não.
Nós ainda não nos falamos desde que saí do apartamento.
Ela me mandou uma mensagem, no meio da manhã, ontem, pedindo
que eu avisasse se tinha chegado bem. Eu apenas respondi, dizendo que já
estava no congresso, e ela agradeceu, me desejando boa sorte.
Foi estranho falar com ela de forma tão seca, tão fria.
Eu sequer a chamei de boneca.
Ela tentou me ligar ontem à noite, antes de dormir, mas eu acabei não
vendo, pois estava no banho e não atendi. Respondi um tempo depois, em
uma mensagem, só explicando e desejando boa noite, e ela me respondeu de
madrugada, me fazendo pensar em mil possibilidades que me deixaram
agoniado.
Será que ela teve um pesadelo? Porque estava acordada naquela
hora?
Lutei contra mim mesmo para não ligar de manhã cedo, e apenas
mandei uma mensagem de bom dia, sem comentar sobre a sua resposta tão
tarde.
Ela respondeu logo em seguida, cedo demais para o que ela está
acostumada a acordar, só aumentando a minha preocupação, mas eu não
mandei mais nada, não querendo escutar algo que me fizesse voltar correndo
para ela.
Só que aqui estou eu, lutando comigo mesmo para mandar apenas
uma mensagem de novo, ignorando a necessidade quase física de ouvir a sua
voz doce.
Não foi eu que disse que achava importante esse espaço entre nós?
Ligar para dar boa noite não significa espaço, Henrique!
Antes que eu consiga tomar uma decisão, contudo, meu coração
dispara ao me deparar com a notificação sua para uma chamada de vídeo.
Me ajeito na cama e aperto o botão, seu rosto perfeito preenchendo a
tela do meu celular e quase me fazendo levantar daqui e dirigir duas horas,
só para vê-la de perto.
— Oi... — murmura, me dando um tchauzinho tímido, um sorriso de
canto preenchendo seus lábios. — Pensei em ligar pra dar boa noite.
Atrapalho?
Eu balanço a cabeça, antes de conseguir responder, hipnotizado
demais pela sua imagem, linda, de rosto limpo, deitada de lado, na minha
cama.
Será que se eu fretar um helicóptero, eu chego lá em menos de vinte
minutos?
— Você nunca atrapalha, Alice — respondo, em um tom baixo. —
Como vocês estão? — pergunto, me virando de lado e colocando o telefone
apoiado no outro travesseiro.
Quase dá para fingir que ela está aqui, deitada comigo.
Patético.
— Estamos bem — murmura. — Como tá sendo o congresso?
— Muito interessante, na verdade — replico. — Fiz contato com
alguns fornecedores que eu não conhecia e que podem ajudar muito nessa
nova fase da Lacerda. Jantei com um investidor interessado hoje. Ele ficou
de olho nos nossos planos de expandir pra fora do Brasil.
— Que bom, Henrique! Isso vai ser incrível pra empresa, tenho
certeza — responde. — Lá na Editora tá tudo tranquilo também... a equipe
de design conseguiu fechar a capa do lançamento do Rodrigo e acho que
agora vão conseguir terminar a diagramação.
— Graças a Deus, já tava me estressando com esse cara. —
Fechamos contrato com um autor novo, há alguns meses, e ele depois de
atrasar duas vezes a entrega do manuscrito final, o cara passou semanas
recusando todas as ideias de capas que a equipe de design propunha.
E o pior, o infeliz sequer sabia direito o que queria, para dar uma luz
aos nossos designers, e só sabia dizer que ainda não tinha tido o feeling
necessário para saber que era a capa certa.
Feeling do meu cu, só se for.
— O seu Pedro também tava por um fio com ele — continua. —
Porque a equipe só consegue iniciar a campanha com a capa escolhida, né?
— Sim, ele me disse... vou falar com o jurídico pra dar uma ajustada
no contrato desse cara — afirmo. — Não dá pra ele continuar fazendo a
gente de besta assim.
Alice assente e suspira, e eu fico impressionado com a forma que as
suas íris negras são capazes de tocar o fundo da minha alma mesmo através
de uma tela.
Há um silêncio que eu não sei dizer se é desconfortável ou não entre
nós, até que ela coça a garganta.
— Essa cama é grande demais sem você, sabia? — comenta, num
tom baixinho, quase receoso, e meu peito retumba, descontrolado, com as
palavras.
— É? — pergunto, sem saber mais o que dizer, porque as coisas não
ficaram normais entre nós e eu não sei o quanto mais quero me expor nesse
momento.
— Uhum — responde, e se não a conhecesse, poderia até jurar que
está fazendo manha. — Não consigo arrumar uma posição confortável pra
dormir.
Não faz isso comigo, amor.
— Essa cama aqui não tá nem um pouco convidativa também,
boneca — murmuro em resposta, vendo a forma como ela sorri, tímida.
— Você chega que horas na sexta-feira? — pergunta.
— A última conferência termina às quatro. Se eu não tiver mais nada
marcado com nenhum fornecedor ou investidor, já vou deixar a mala no
carro pra ir direto pra estrada. Devo chegar perto das seis e meia em casa,
talvez.
— Tá bem, vou preparar um jantar pra gente — começa, desviando o
olhar um pouco sem jeito. — Temos que conversar, né?
Seus dedos brincam com o seu anel de noivado, me fazendo girar o
meu próprio, em um gesto inconsciente.
— É, Alice, nós realmente temos... — Não é mais possível adiar essa
conversa.
Eu dei tudo de mim, me entreguei e fiz o que pude e o que não pude
para fazê-la me enxergar e retribuir os meus sentimentos. Não há mais nada
que eu possa fazer. O nosso futuro está nas mãos dela e isso me apavora de
um jeito que é muito difícil de lidar.
Ela me encara, em silêncio, e eu também não digo nada, ficando nós
dois ali, parados, trocando um olhar que poderia significar mil coisas e me
deixa ainda mais confuso do que já estou, querendo entrar na sua cabeça e
ler seus pensamentos, entender seus sentimentos a nosso respeito.
— Eu nunca quis te magoar — murmura.
As palavras carregam uma incógnita que me deixa aflito.
Isso significa o que?
Que ela não quis me magoar, por não ter tido intenção de me iludir
sobre algo que nunca vai acontecer?
Ou que ela não quis me magoar porque se importa comigo e apenas
estava confusa?
Meu coração bobo teima que é a segunda opção.
— Eu sei que não quis — respondo, em um sussurro.
Ela morde o lábio, indecisa, e suspira, fechando os olhos.
— Eu sinto a sua falta, Henrique — fala baixinho, sem me encarar,
como se temesse a minha reação.
Reação essa que é de puro júbilo, porque saudade é sinônimo de
carinho, não é? De amor, talvez? Meu Deus, boneca, você vai me
enlouquecer.
— Eu também, Alice — respondo, e ela abre os olhos, me fitando. —
De vocês dois. Muita saudade.
Seus lábios se curvam levemente, um tiquinho, quase de nada, e seus
olhos se fecham de novo, como se saboreasse as minhas palavras.
Ela vai me matar.
Vai fazer picadinho do meu coração.
E eu vou deixar.
— Volta logo pra casa, tá? — pede, em mais um sussurro rouco que
arrebenta com o meu juízo e me faz querer sair correndo daqui até ela.
Eu sou rico, será que consigo contratar um nerd para criar um
teletransportador para mim em menos de dez minutos?
— O mais rápido que eu conseguir, boneca — prometo, ganhando
mais um sorriso lindo e enlouquecedor.
— Boa noite, Henrique — murmura.
— Boa noite Alice — respondo. — Boa noite, pessegozinho.
— Ele já tem quase dezessete semanas, não tem mais o tamanho de
um pêssego. Agora ele é uma laranjinha — replica, com uma expressão
divertida, e eu devolvo o seu sorriso, porque a amo demais para fazer
qualquer outra coisa.
— Então, — suspiro — boa noite, laranjinha.
— Boa noite. — Seus olhos me dizem que ela quer dizer mais, mas
se segura, não sei se por ainda ter dúvidas ou pela distância e a quantidade
de coisas mal resolvidas entre nós.
De novo, o meu coração tolo insiste em acreditar na segunda opção.
A tela do telefone fica preta, e eu preciso de mais dela, então abro a
galeria e abro uma das mil fotos dela que eu tirei, a maioria escondido,
nesses últimos meses.
Na imagem, Alice está distraída, assistindo alguma coisa no sofá de
casa, os cabelos arrumados em um coque frouxo, e suas bochechas rosadas
pela sorriso que desponta em seus lábios.
É uma das minhas preferidas, porque ela parece tão leve, tão feliz,
tão... em casa.
Como se ela pertencesse ali, naquele sofá, com as pernas em cima do
meu colo, vestindo um pijama de algodão e comendo a sua nojenta pipoca
com ketchup.
Se eu fechar os olhos, quase consigo fingir que estou lá, junto dela, e
essa é uma noite como das tantas que passamos juntos ultimamente.
Torço para que sexta seja uma dessas noites.
Que a nossa conversa seja boa o suficiente para que, ao invés das
pernas, ela toda esteja no meu colo, confortável, feliz e minha.
Só minha.
Para sempre minha.
Assim como eu já sou dela.
46 - Alice

E até hoje, eu jurei a mim mesma que estava contente com a solidão
Porque nada nunca valeu a pena o risco
Mas você é a única exceção
The Only Exception - Paramore

Hoje é o terceiro dia que eu acordo sozinha nessa cama.


O primeiro foi segunda, já que Henrique apenas me carregou do sofá
para cá, mas não ficou comigo.
E desde então, ele está a duas horas de distância, em São Paulo,
naquele maldito congresso.
Tinha que ser justamente nessa semana?
Tento internalizar o que Carina vem me dizendo nos últimos dois
dias. Essa distância, esse tempo, tudo isso talvez seja bom, porque me dá a
oportunidade de organizar os meus pensamentos e não fazer mais nenhuma
merda capaz de magoar um homem maravilhoso como o Henrique.
Por isso, ela ativou o que chamou de “operação anticagada” da Alice.
Sim, a minha melhor amiga é uma ridícula idiota.
Mas ela me ama.
Então conseguiu marcar uma semana intensiva de terapia para mim,
para me ajudar a, segundo suas palavras, “tirar a cabeça do cu e enxergar o
que está bem diante dos meus olhos”.
É.
Talvez ela me odeie um pouquinho também.
O fato é que, segunda-feira, durante o meu almoço, me tranquei na
sala do Henrique e tive a minha primeira consulta psicológica da vida, de
forma virtual.
Foi tão traumatizante quanto eu imaginei que seria, mas, ao mesmo
tempo, libertadora e necessária.
O meu terapeuta, o Dr. Leonardo, me ajudou a dissecar um
pouquinho de tudo o que estava entalado na minha garganta e infiltrado no
meu coração, a respeito da minha criação. Foi doloroso descrever a forma
como fui tratada a vida inteira, pela minha própria família e dentro da minha
casa.
Foi mais excruciante ainda ouvi-lo definir a minha relação com a
minha mãe como um relacionamento tóxico e abusivo, que arrancou partes
de mim que eu nunca conseguiria recuperar totalmente, mas que eu poderia
reconstruir, ainda mais forte.
Ele deixou bem claro que não seria fácil e que eu jamais deveria
colocar como motivo para qualquer mudança na minha vida um
relacionamento com alguém.
Ainda lembro bem das suas palavras, ao final da nossa primeira
sessão.
“Parceiros são apenas isso. Parceiros. Todo relacionamento deve ser
uma via de mão dupla, onde um se doa e o outro retribui, na mesma medida
ou da forma que for possível naquele momento. Nem sempre dá para se
entregar cem porcento, e está tudo bem. Mas apenas sugar e colocar no
outro o peso de ser tudo, de ser o motivo da sua felicidade, pode ser
aniquilador. O seu parceiro pode completar a sua vida, transbordá-la de
felicidade, mas jamais deve ser a razão única e exclusiva de tudo. Ninguém
merece viver com um peso como esse, e em algum momento isso pode ser
demais, e destruir até o amor mais bonito.”
Passei o resto dia pensando a respeito.
Nunca tinha parado para entender exatamente o que significa um
relacionamento saudável. Não tive referência alguma na minha vida, e não
digo só em relação a casamento e namoros, mas a qualquer tipo de relação.
Minha casa era tudo menos um ambiente saudável.
Minhas amizades, durante a escola e a faculdade, foram rasas o
suficiente para sequer conhecerem os meus sonhos, que dirá os meus medos,
meus anseios e aflições.
Namoros, então?
Os dois únicos que ganharam esse título não merecem nem um
segundo pensamento, porque foram relações totalmente baseadas em desejo
e sexo, sem qualquer profundidade ou sentimento que pudesse remeter a
algo mais duradouro.
A única relação profunda e saudável que eu já tive e ainda tenho é
com a Carina.
E agora, com o Henrique.
Desde o começo da nossa farsa, nosso relacionamento pareceu ser
algo muito além do que se poderia enxergar a olho nu. O apoio, o respeito, o
carinho que ele sempre me demonstrou me provocaram sensações tão
desconhecidas que eu não consegui lidar.
Reduzi tudo a uma mentira, a esse noivado falso, que de falso nunca
teve nada, porque, sem sequer me beijar, Henrique superou qualquer outro
relacionamento amoroso que eu já tive na vida, pelo simples fato de me fazer
querer mais.
Cada coisinha que ele fez, cada apelido, cada brincadeira, cada
presente, cada gesto, tudo foi se embolando em uma teia que me prendeu e
me deixou sem nenhuma outra opção além de querer mais.
A verdade, que eu venho ignorando há semanas, que grita na minha
cara, implorando por atenção, e que eu negligenciei tanto, ao ponto de quase
perdê-lo, é apenas uma: eu estou irrevogavelmente apaixonada por Henrique
Lacerda.
Vê-lo tão magoado, naquela noite, enxergar a forma com que eu feri
os seus sentimentos, descartando-o como se não fosse ninguém, foi o choque
de realidade que eu precisava para encarar os fatos.
Eu o amo.
Porque é impossível não amar aquele homem.
É impossível porque, ao contrário do que ele me disse, não sou eu
quem sou completamente apaixonável.
É ele.
É ele que é encantador, que é perfeito, mesmo com todas as suas
imperfeições, e que me deixou sem qualquer outra alternativa além de me
apaixonar, perdidamente.
E eu quero merecê-lo. Eu quero ser para ele tudo que ele já para mim
e para o meu bebê. Ou melhor, o nosso bebê.
Não há dúvida alguma de que esse bebê que eu carrego é do
Henrique. Mesmo que não nasça loiro dos olhos verdes, mesmo que não
compartilhe o seu DNA, esse bebê pertence ao Henrique, do mesmo jeito
que eu quero pertencer.
E ainda que nós não funcionemos juntos, mesmo que eu tenha
magoado ele o suficiente para ele não querer mais nem tentar, esse bebê
continuará sendo dele, porque eles dois se escolheram sem ao menos se
conhecerem, e eu sei disso.
Eu sinto isso.
Me levanto e me preparo para o trabalho, sabendo que hoje eu tenho
a minha terceira sessão de terapia e que, depois desse intensivo que Carina
conseguiu agendar, eu vou precisar continuar me consultando, uma vez por
semana, por não sei quanto tempo.
Como minha melhor amiga diz, o mundo seria um lugar muito
melhor se todos cuidassem das suas feridas na terapia.
Eu não sei se posso mudar o mundo.
Mas sei que posso mudar pelo menos a minha própria vida, e para
isso eu tenho que fazer a minha parte.
Não posso mais permitir que pessoas que nunca me amaram me
impeçam de viver bem ao lado daqueles que me querem bem. Daqueles que
me ensinaram o verdadeiro significado de amor e de família.
*
— Eu falei com o Henrique ontem — digo para o meu terapeuta. —
Fiz uma chamada de vídeo, pra desejar boa noite.
— E como foi? — ele pergunta, arrumando os óculos no rosto. —
Como você se sentiu?
Eu paro alguns segundos para pensar antes de sorrir.
— Em casa — respondo. Dr. Leonardo me instiga a elaborar e eu
solto um suspiro. — Mesmo há quilômetros de distância, eu senti que
finalmente estava em casa. É assim que me sinto perto do Henrique. Como
se eu estivesse segura e, não sei... — tento pensar nas palavras certas para
descrever o que sinto — é como se eu pertencesse ali, sabe? Como se...
— Como se fosse o seu lar? — ele pergunta.
Eu mordo o lábio e paro para pensar.
Lar.
— Eu acho que sim? — a resposta sai como uma pergunta, e o
terapeuta me olha, ajeitando a postura.
— O que é um lar pra você, Alice?
— É onde uma família mora? — Nunca pensei muito no conceito de
lar.
Sempre me pareceu algo meio utópico, distante da minha realidade.
Minha casa nunca foi nem uma casa, imagine um lar. Era apenas um lugar
onde eu podia dormir e comer, e até para isso, ainda tinha que trabalhar para
merecer.
Não sei se um dia já pertenci a um lar, já que família é algo que não
considero como parte da minha história.
— Lar é segurança, Alice — ele responde. — Lar é aquele lugar em
que você sente que pode descansar, que nada vai te atingir. É aquele lugar no
mundo que te transmite a tranquilidade necessária pra você só relaxar. Ele é
composto de amor, de dedicação, de cuidado, de respeito. E o mais
importante, lar não precisa ser um lugar físico. Ele pode ser uma pessoa.
Suas palavras martelam na minha cabeça, encaixando todas as
pecinhas soltas que ainda me confundiam.
O que eu sinto quando estou perto do Henrique, desde o primeiro
momento, se parece muito com o que ele acabou de descrever.
— Henrique é meu lar — constato, vendo-o esboçar um sorriso.
— Ele pode ser — concorda. — Sua amiga, a que me indicou pra
você, também pode ser. Esse bebê que você carrega também. Você não
precisa ter apenas um lar. Pelo contrário, quanto mais lares você conseguir
encontrar, mais completa e plena será a sua vida. Ninguém nasceu pra viver
sozinho, Alice. A vida já pode ser sofrida demais pra gente se esconder no
medo e não dividir as alegrias e os fardos com alguém. A grande questão é:
você quer que Henrique seja o seu lar?
— Quero — respondo, sem qualquer dúvida. — E eu quero ser o
dele.
Eu realmente quero.
Quero retribuir a ele tudo o que me faz sentir. Toda a plenitude, a
beleza, a paz.
Henrique se tornou a minha paz.
E eu a quero de volta.
— E o que você vai fazer pra garantir isso? — me pergunta.
Eu penso, e penso mais um pouco, uma infinidade de possibilidades
invadindo a minha mente. Mas no final, apenas uma se sobressai, porque eu
sei que é a verdade.
— Eu vou cuidar de mim — respondo. — Vou cuidar das minhas
feridas e das minhas inseguranças, vou continuar a terapia pra me entender
melhor, pra não machucar ele sem querer. Eu vou me abrir, deixar ele
enxergar o melhor e o pior de mim, e decidir por si mesmo se vale a pena
ficar. E se ele tiver dúvidas, eu vou lutar por ele. Porque ele merece, ele
merece o esforço.
— E quanto a esse bebê? Ele não tem direito algum a ele. Não
perante a lei — instiga, sabendo que eu preciso verbalizar.
— Esse neném é tão dele quanto meu — replico. — E eu vou deixar
claro isso, pra que ele nunca tenha dúvidas. Mesmo que a gente não dê certo,
sempre estaremos ligados porque esse bebê não foi concebido com dois
DNAs e sim com dois corações, o meu e o dele. A biologia não importa.
É tão claro como o dia para mim, agora. Não há qualquer dúvida.
Henrique terá a certeza de que nós dois somos seus, e que queremos
ele na mesma medida. Eu irei garantir isso.
Desligo a chamada com o terapeuta, confirmando a sessão de
amanhã, e me levanto, seguindo para fora da sala e chamando o elevador,
apertando o botão do terceiro andar, decidida.
Saio no andar de design e marketing e sigo diretamente para a sala do
diretor de publicidade, dando três toques na porta e aguardando a sua
resposta.
— Entre — ele chama, e eu entro, fechando a porta atrás de mim e
me colocando à sua frente. — Em que posso te ajudar, Alice?
Encaro o melhor amigo do Henrique, nervosa, mas certa de que estou
tomando a decisão certa.
— Eu tenho uma ideia. E preciso da sua ajuda.
47 - Henrique

Eu não estou quebrado, sou apenas um homem de coração partido


Eu sei que não faz sentido, mas o que posso fazer?
E como eu posso seguir em frente, quando eu ainda te amo?
The Man Who Can’t Be Moved – The Script

Cada quilômetro que eu chego mais perto de casa, minhas mãos


suam e a ansiedade aumenta.
Gostaria de dizer que é apenas saudade e desejo de ver a minha
boneca de novo.
Porque eu estou realmente morrendo de vontade de abraçá-la, de
sentir aquele cheiro gostoso e doce de melancia que só ela tem.
Mas não é apenas isso.
Além do desejo absurdo de vê-la sem ser por uma tela minúscula, eu
também estou me cagando de medo pela conversa que eu sei que nós dois
precisamos ter.
Depois da ligação de terça à noite, criamos a rotina de nos falarmos
por alguns minutos, por chamada de vídeo, nos últimos dois dias. Aplacou
um pouquinho da saudade, mas nem de longe foi o suficiente para me
satisfazer.
Esses dias de distância só serviram para comprovar aquilo que eu já
sabia, há muito tempo.
Alice é o amor da minha vida, é única para mim, é tudo o que eu
sempre desejei e tudo o que eu sequer imaginei que precisava.
Alice é o meu mundo inteiro, e isso é assustador para um caralho,
porque o medo de ela não corresponder me deixa quase paralisado.
Nesses últimos dias, contudo, o jeito que ela me tratou, como
conversou comigo, toda manhosa e perfeita, até os seus sorrisos e o seu olhar
para mim, tudo me acendeu a chama da esperança.
Esperança de que ela também sente algo por mim. Pode até não ser
na mesma intensidade que eu, aliás, duvido muito que seja. Mas que seja
apenas uma migalha, eu aceito. Que seja apenas um carinho, um desejo, eu
quero.
Porque sei que consigo transformar isso em amor. Eu consigo fazê-la
se apaixonar por mim. Eu sei que sim.
Basta só eu ter uma oportunidade.
Esses meses juntos já foram muito bons e ajudaram bastante, mas, se
não tiver sido o suficiente, eu sei que consigo mesmo assim. Porque eu sou
teimoso e persistente com aquilo que desejo.
E não há nada nesse mundo que eu deseje mais do que a Alice.
Enxergo o meu prédio e sinto uma gosta de suor escorrer pela minha
espinha, debaixo da camisa social que estou usando.
Saí direto do congresso para a estrada, apesar de só ter conseguido
sair depois de um coffee break oferecido pelos organizadores, porque seria
uma ótima oportunidade de finalizar alguns contatos e expandir o nosso
network.
Mandei mensagem para Alice pouco depois das seis, avisando que
estava pegando a estrada, e recebi uma mensagem de voz como resposta,
dizendo que ela estaria me esperando, e para vir com cuidado para casa.
E eu simplesmente lagrimei quando ela chamou o apartamento de
casa, de novo.
Percebi que ela começou a enfatizar bastante isso nas nossas
conversas.
Sempre dizia que tinha feito tal coisa em casa, que precisava comprar
tal coisa porque estava faltando na nossa geladeira, e até me deu um mini
ataque cardíaco ontem à noite, quando disse que a temperatura do nosso
quarto estava muito baixa, então ela estava toda encolhida na nossa cama.
Ah, Alice, você me quebra em mil pedacinhos desse jeito.
Estaciono ao lado do meu sedan, perto das oito e meia, e desligo o
carro, precisando de alguns minutos antes de subir.
Conversei um pouco com o Benji, hoje de manhã, pedindo conselhos
sobre como agir daqui para a frente.
Depois de me esculachar, dizendo que essa porra de farsa foi longe
demais e que ele me avisou que ia dar merda, ele assumiu aquela postura de
irmão mais velho de sempre e me fez pensar em algumas coisas.
A mais importante delas é: o fato de eu amar a Alice não significa
que eu devo aceitar tudo o que ela faz e tampouco me contentar com
migalhas.
Fácil falar, não é mesmo?
Essa parte é tão difícil para mim, porque eu sou um emocionado e
qualquer sorrisinho diferente já me deixa todo besta. Lembra o que eu acabei
de falar sobre ela chamar o meu quarto de nosso? Então.
Mas eu entendi o seu ponto.
Como é que eu vou fazer a Alice me amar se eu me diminuo tanto?
Ela tem que me amar pelo que eu sou, por cada pedacinho meu, as minhas
qualidades e as minhas manias enlouquecedoras.
Mas, principalmente, ela tem que valorizar a mim e ao meu amor.
Tanto por ela, quanto pela nossa laranjinha.
Porque aquele bebê é nosso, e isso foi outro ponto que Benji
enfatizou.
Eu preciso deixar claro como água as minhas intenções, tanto com
ela como com o bebê. E ela precisa se comprometer a respeitar o meu espaço
e o meu papel na criação dele, caso aceite dar esse passo comigo.
Não posso viver na insegurança de um dia estarmos juntos e no outro
ela acabar com tudo e sumir da minha vida, levando o meu filho consigo.
Se eu for assumir o papel de pai dessa criança, será para sempre.
Com ou sem Alice, mesmo que me doa.
Saio do carro, ligando o alarme, e sigo até os elevadores, apertando o
botão com dedos trêmulos.
O caminho de seis andares, até a cobertura, nunca foi tão rápido
quanto agora, e antes que eu esteja pronto, as portas metálicas se abrem e a
porta do meu apartamento aparece na minha frente.
Puxo as minhas chaves do bolso, andando até ela, receoso, e a abro
lentamente, me deparando com a quietude do lugar.
— Alice? — chamo, jogando as chaves na tigela do aparador e
pousando a mala no chão, colocando o meu paletó dobrado em cima. —
Cheguei, cadê você? — pergunto.
Esperava vê-la na sala, talvez no sofá assistindo algo. Ou quem sabe
na cozinha, já que ela disse que ia preparar um jantar para nós dois.
Mas nada.
Ando em direção à nossa suíte, confuso, e abro a porta apenas para
me deparar com o quarto vazio, sem nem sinal dela.
— Alice? — chamo novamente, andando até o closet e o banheiro, e
não a encontro.
Será que ela saiu?
Mas ela sabia que eu estava chegando, não faz sentido.
Até me assustaria, pensando que ela foi embora de vez, mas suas
roupas estão todas no closet e seus cremes estão nas prateleiras e na pia do
banheiro, então ela ainda está aqui.
Só não está aqui, entende?
— Boneca, cadê você? — pergunto mais uma vez, pensando que
talvez ela esteja na varanda e eu não percebi.
Mas quando saio do quarto, pronto para ir atrás dela, percebo que a
porta do quarto de hóspedes está entreaberta, uma fresta de luz escapando
pelo espaço.
O que ela está fazendo ali?
Desde que a sua mãe se foi, não entramos mais ali para nada, afinal,
era um quarto quase sem uso, já que eu não recebia visitas.
Me aproximo lentamente, quase como se estivesse em um filme de
suspense, naquelas cenas em que a gente briga com o mocinho para que ele
não vá até a merda do porão só porque ouviu um barulho estranho, e
espalmo a mão na porta, parando por um segundo antes de abri-la.
Nada nessa vida me preparou para o que vejo, no momento em que
entro.
— Alice... — sussurro, completamente sem reação, quando a
encontro parada no meio do que um dia foi o meu quarto de hóspedes.
As paredes, que antes eram pintadas de um amarelo-claro, sem vida,
agora estão pintadas de um verde-água lindo, com uma parede cheia de
molduras brancas, com vários desenhos de dinossauros bebês.
Debaixo desse mosaico está o berço mais lindo que eu já vi na vida,
branco, com grades em um formato circular, tipo tubos, com lençóis brancos
com bolhinhas verdes, e o bebê dinossauro que eu ganhei para Alice no
parque de diversões deitado bem no meio das almofadas.
Ao lado do berço, perto da janela, que agora é adornada por um
conjunto de cortinas decoradas, está uma poltrona de amamentação branca,
com um banquinho de apoio e uma manta de crochê em cima.
Do outro lado do quarto, uma cômoda e um trocador ocupam a
parede da frente, com mais alguns detalhes de decorações enfeitando, e um
abajur de pé no canto, completando o espaço.
É o quarto de bebê mais lindo do mundo, e está aqui.
No meu apartamento.
No nosso apartamento.
— Oi.
Pisco, atordoado, só agora me concentrando em Alice, que está
parada ao lado do berço, toda linda, com uma camiseta branca grande, os
cabelos negros amarrados em um coque no alto da cabeça e alguns cachos
soltos, emoldurando o seu rosto de princesa.
É a coisa mais perfeita que meus olhos já viram.
— O que... — Não consigo sequer esboçar uma resposta inteligente,
emocionado demais com o que estou vendo, e confuso também.
Isso significa o que eu estou pensando?
— Desculpa mudar tudo sem te consultar, mas eu queria fazer uma
surpresa — ela murmura, brincando com a barra da camisa, e então eu
percebo.
E os dois últimos neurônios que eu ainda tinha acabaram de morrer.
— Você tá usando a minha camisa?
Ela cora.
Ela simplesmente cora, mordendo o lábio, e assente, toda manhosa e
perfeita e tão, mas tão minha, que eu simplesmente desisto.
Desisto de resistir, desisto de lutar, desisto de tudo.
Não sei nem quem faz o primeiro movimento, tudo que sei é que em
duas passadas eu a tenho nos meus braços e no segundo seguinte meus
lábios conhecem o céu.
Beijar Alice deveria ser a primeira maravilha do mundo, porque não
há nada que possa ser mais perfeito do que isso. Não dá, é impossível.
Ela se rende imediatamente, soltando um gemidinho baixo que fode
com o meu juízo e eu desço minha mão direita para a sua bunda, puxando
ela para cima, tentando fundir os nossos corpos mesmo com toda a roupa
que nos cobre, porque é demais.
Tudo é demais.
O seu gosto.
O seu cheiro.
O seu toque.
Tudo é perfeito numa proporção que nem nos meus melhores sonhos
eu fui capaz de chegar.
A minha língua é afoita, mapeando a sua boca com fome, com sede,
com desespero. Um desejo de anos se rompendo aqui, nesse momento, em
que meus dedos da mão esquerda estão enfiados naquelas ondas que sempre
me enlouqueceram e a minha mão direita está amassando a carne do seu
bumbum redondo, que me tentou o juízo por tanto tempo.
Se eu tinha alguma dúvida de que essa mulher nasceu para ser minha,
isso acabou agora, nesse minuto. Porque nosso encaixe é tão certo, que é
impossível qualquer pessoa olhar e dizer que não somos almas gêmeas.
E agora que eu provei do seu gosto, agora que eu sei como pode ser,
eu jamais desistirei dela. Não sem lutar como um louco.
Porque Alice é o meu mundo todinho.
E, meu Deus, como é perfeito ter o mundo inteiro em meus braços,
assim.
48 - Alice

Eu estou apaixonada, agora


Me beije como você quer ser amado
Você quer ser amado
Kiss Me – Ed Sheeran

A ideia surgiu meio do nada, mas quando o quarto foi se


materializando eu percebi que tinha tomado a decisão certa.
Engoli meu medo e meu orgulho e pedi ajuda ao seu Pedro, porque
sabia que, para fazer tudo tão rápido assim, eu precisava de alguém com
influência para me auxiliar nos contatos.
Usei quase todo o dinheiro que guardei nos últimos meses, já que não
tive despesa alguma morando com o Henrique, e ainda consegui aquela
grana vendendo os móveis do meu antigo apartamento, mas valeu a pena.
Carina me ajudou a escolher os móveis e o seu Pedro se encarregou
de desocupar o quarto e providenciar o pessoal que ia pintar tudo, e em dois
dias nós conseguimos transformar um quarto de hóspedes genérico nessa
coisa linda que é o quarto do nosso bebê.
Torci para que Henrique gostasse da surpresa, mas não imaginei que
fosse ficar tão emocionado como ficou. Ou melhor, não deveria ter me
surpreendido tanto, já que esse homem já cansou de demonstrar o que sente
por mim de um milhão de formas nos últimos meses.
E agora chegou a minha vez de corresponder.
Observo seus olhos correndo pelo quarto, analisando cada detalhe e
ficando cada vez mais embaçados, ameaçando transbordar, e me sinto tão
emocionada quanto ele, ciente do que esse gesto significa para nós dois.
Eu fui culpada de ter enchido a sua cabeça de dúvidas e de tê-lo
magoado com a minha postura no último domingo.
E ele foi culpado de nunca ter deixado claro os seus sentimentos,
apesar de saber que o seu motivo foi de não querer me pressionar e nem me
deixar desconfortável, caso não fosse correspondido.
Nós dois fomos culpados por uma tremenda falta de comunicação, o
que eu queria resolver hoje, porque nós precisávamos falar a mesma língua
se quiséssemos construir alguma coisa realmente sólida juntos.
E, principalmente, com o bebê, esse tipo de desentendimento não
podia mais acontecer.
— Desculpa mudar tudo sem te consultar, mas eu queria fazer uma
surpresa — murmuro, um pouco receosa, brincando com a bainha da camisa,
e então seu olhar escurece.
— Você tá usando a minha camisa?
Olho para baixo, ruborizando ao perceber que sim, eu estou usando
uma das suas camisetas de algodão, costume que adquiri nos últimos dias,
numa tentativa fajuta de matar um pouco da saudade que estava sentindo
dele.
Não consigo responder, apenas mordendo o lábio, nervosa, e o seu
olhar se torna ainda mais intenso, e antes que eu consiga raciocinar, nossas
bocas se encontram no beijo que eu tanto sonhei, desde que comecei a
pensar nele de outra forma.
E qualquer coisa que eu possa ter imaginado, nada se compara ao que
é a realidade.
Henrique não me beija.
Não.
Ele me toma para si, com boca, com lábios e língua, com mãos e o
corpo inteiro, até um ponto em que eu sequer consigo distinguir onde eu
termino e onde ele começa, porque somos apenas um emaranhado de
desespero e de desejo, sem qualquer controle.
Parece que alguém colocou fogo no apartamento, porque a
temperatura fria da noite foi substituída por um calor intenso, que acende
cada centímetro da minha pele e me arrepia inteira, consumida por uma
vontade que eu não consigo nem entender do que.
Sua mão preenche uma banda inteira da minha bunda, me
pressionando ainda mais contra o seu corpo duro e forte, e eu gemo, incapaz
de resistir ao seu toque, nem se eu quisesse.
E eu não quero.
Não quero resistir a ele, não quero resistir a nós, porque isso aqui é
exatamente o que eu sempre quis encontrar nessa vida, e só quero me
ancorar a ele e ficar em seus braços para o resto dos meus dias.
Nossas bocas se encaixam de um jeito que nunca aconteceu antes,
com ninguém.
É perfeito, os lábios se moldam como se tivessem sido feitos um para
o outro e, se eu me permitir sonhar, posso pensar que nós dois somos
realmente almas gêmeas.
Porque é demais.
E ao mesmo tempo não parece o suficiente.
Quando ele ameaça me levantar em seu colo eu me afasto,
completamente ofegante, sentindo a sua respiração pesada contra os meus
lábios, ainda presa em suas mãos fortes, como se ele não quisesse me
permitir uma chance de escapar.
O que ele não sabe é que eu não tenho a menor intenção de escapar.
— Nós não vamos profanar o quarto do nosso filho, Henrique —
murmuro, e é como se todo aquele fogo, aquele tesão, tudo se dissipasse com
as minhas palavras, porque ele suaviza o olhar, ficando emocionado
novamente, e traz uma de suas mãos para o meu rosto, acariciando a minha
bochecha.
— Repete, por favor... — pede, ao mesmo tempo que uma lágrima
lhe escapa, escorrendo pela sua face, e eu limpo com os meus dedos.
Eu sorrio, levando minha outra mão para os seus cabelos, adorando a
forma como ele parece se render a mim, fechando os olhos, seus lábios
inchados do nosso beijo.
É indescritível a sensação de um homem do tamanho do Henrique
completamente rendido, entregue, sem qualquer barreira ou máscara, apenas
ali, esperando que eu sentencie o nosso futuro.
E é o que eu faço.
— Sabe a pergunta que eu já fiz várias vezes, e você sempre me diz
que eu não estou pronta pra ouvir a resposta? — murmuro, e suas íris
esverdeadas me fitam novamente.
— Sim... — responde.
— Eu quero ouvir a resposta agora, Henrique — afirmo. Ele engole
seco, um misto de medo e esperança estampado no seu rosto. — Por que? —
pergunto. — Por que você fez tudo isso por mim?
— Porque eu te amo — ele murmura, suas mãos esquadrinhando o
meu rosto, me olhando de um jeito que até parece que ele nunca me viu
antes, intenso e cheio de algo que sempre esteve ali, e só agora eu consigo
decifrar: amor. — Por que você é o amor da minha vida e eu quero ficar com
você pra sempre — continua. — Eu quero te beijar, te abraçar, te amar, todos
os dias que eu respirar, porque você é a minha felicidade, o meu mundo
inteirinho, e eu não quero viver sem você.
— E esse bebê? — pergunto baixinho, meus olhos já cheios d’água,
emocionada com a forma como ele me olha como se eu fosse preciosa.
— Só me fez te amar ainda mais — replica, levando uma de suas
mãos para o meu ventre, acariciando o volume que aumentou ainda mais
essa semana. — Eu quero você e a nossa laranjinha, Alice, pro resto da
minha vida, porque vocês são tudo o que eu sonhei de mais lindo, de mais
perfeito, e eu só quero cuidar de vocês, construir uma família, nós três e
mais quantos bebês você quiser me dar. — Solto um soluço, e ele sorri,
traçando os dedos pela minha bochecha, me fazendo um carinho tão doce,
que termina de me desmontar. — E você, minha boneca, — continua — o
que você quer de mim?
— Quero tudo o que você acabou de descrever — respondo. —
Quero ser amada e cuidada por você, quero que ame o meu neném como se
fosse seu, porque é isso que ele é. É seu, Henrique. Vocês dois se escolheram
e eu não poderia sonhar em um pai mais maravilhoso para o meu menino.
Você é o pai dele, me perdoa por ter dito o contrário.
— Tudo bem... — murmura, quando mais lágrimas despencam pelo
seu rosto, com as minhas palavras. — Tudo bem, mas, Alice... — começa,
mordendo o lábio, com receio. — Você tem certeza? — pergunta. — Porque
eu não vou conseguir, não vou conseguir me afastar se você mudar de ideia.
Ficar com vocês e depois os perder vai me matar, boneca, então... você tem
certeza?
— Tenho — afirmo, segurando o seu rosto. — Tenho, porque eu
também te amo, Henrique... — Ele abre um sorriso, incrédulo, fechando os
olhos brevemente antes de me encarar mais uma vez.
— Repete, por favor — pede, de novo, e eu sorrio, atendendo-o.
— Eu te amo, Henrique Lacerda — repito, afagando seus cabelos. —
Eu te amo e quero ser sua, pro resto da minha vida, com esse bebezinho
aqui, nosso filho, e com quantos mais Deus nos presentear. Eu quero que
você seja o meu lar, minha vida.
Ele chora, sem medo algum de me demonstrar o quão emocionado
ele está, e me beija novamente, desesperado para transmitir todo o seu amor
naquele contato.
Eu retribuo, tão necessitada quanto ele, e quando ele me ergue,
rodeio a sua cintura com as minhas pernas, me permitindo ser carregada por
ele para o nosso futuro, para a felicidade que um dia eu julguei não merecer,
mas que agora me transborda, como um rio revolto, cheio de ondas que
despontam prazer por cada pedacinho do meu corpo.
Quando ele entra no nosso quarto e me pousa, delicadamente, na
nossa cama, eu fecho os olhos e abro um sorriso, porque finalmente sinto
que as minhas peças começaram a se encaixar, não só por ele, mas por mim.
Porque eu me encontrei, aqui, em seus braços.
Porque a felicidade que antes parecia até um sonho está aqui, ao
alcance de minhas mãos, e eu a enlaço, abraçando o seu corpo e o tomando
para mim, decidida.
Chega de fugir, de me sabotar, de ignorar o meu destino.
Assim como ele fez, há alguns minutos, agora eu também o faço.
Eu me rendo.
49 – Henrique

Eu vou sentir, sentir tão forte


Isso está me deixando vivo
Nós nem temos que dizer adeus
Eu vou sentir, sentir tão forte
Feel It – Michele Morrone

Perfeita.
Não há outra palavra para descrever a Alice, aqui, esparramada na
minha cama, toda ofegante e com os lábios inchados pelos meus beijos, as
íris que já são negras ainda mais escuras, nubladas de um desejo profundo,
que também inflama o meu corpo.
O som da sua voz proferindo aquelas três palavrinhas ainda ecoa em
meus ouvidos e eu acabo de descobrir que quero que ela repita, de novo e de
novo, enquanto eu a amo da forma que venho sonhando nos últimos dois
anos.
— Henrique — arfa meu nome, quando desço os lábios para o seu
pescoço, mordiscando a sua pele alva e delicada, cheirosa e viciante, e
minhas mãos apertam a carne da sua cintura.
— Tão linda... — murmuro, hipnotizado, me sentindo até meio tonto,
sem saber nem por onde começar na lista infinita de coisas que eu quero
fazer com essa mulher. — Tão linda e perfeita, minha boneca... — Minhas
mãos adentram a minha camisa, acariciando o seu lado e subindo até chegar
ao contorno dos seus seios macios e pesados, sorrindo contra a sua pele
quando ela solto um lamento sofrido.
— Por favor — clama, suas unhas arranhando as minhas costas por
cima do tecido da minha camisa social quando fecho a palma em cima do
seu seio direito, se contorcendo toda embaixo de mim.
— Tudo bem, minha linda... — sussurro em seu ouvido, traçando o
contorno do seu mamilo com a ponta dos dedos e adorando a forma como
ela revira os olhos, arqueando a coluna e gemendo profundamente.
Seguro a barra da camisa que esconde o seu corpo de mim e encontro
seus olhos, em uma pergunta silenciosa, sorrindo quando ela acena, quase
que desesperada, me ajudando a remover o tecido e jogá-lo por cima do meu
ombro.
Eu sempre imaginei como seria vê-la assim, nua.
Nos meus sonhos mais secretos, eu criei uma imagem detalhada do
seu corpo, pensei em cada minúcia com cuidado, para compor a minha
melhor fantasia, que me acompanhou durante esse tempo todo.
Só que a realidade é ainda melhor.
Aliás, melhor é até uma ofensa para o quão surreal é essa mulher.
Sua pele é delicada, com algumas pintinhas escuras no topo dos seus seios,
que parecem até mesmo um caminho até os mamilos de um tom
amarronzado, com biquinhos pontudos que me chamam, implorando pelas
minhas mãos e boca.
Claro que eu obedeço.
Seguro o esquerdo com a mão, sentindo o quão pesado está, e
massageio a carne, concentrando os esforços na pontinha do mamilo ereto,
usando o indicador e o polegar para estimulá-lo do jeito que sei que a
deixará pronta para mim.
Ela choraminga, fechando os olhos e entreabrindo a boca,
empurrando o corpo para cima, pedindo por mais, e então eu aproximo os
lábios do seio direito, primeiro atiçando com a minha respiração, vendo a
pele se arrepiar com o contato, e depois colocando a língua para fora e
contornando o bico.
— Henrique! — exclama, suas duas mãos se infiltrando nos meus
cabelos, com o intuito de segurar a minha cabeça ali, toda mandona, e eu
apenas me rendo, molhando a extensão ao redor do mamilo antes de fechar
os lábios, mamando-a com fome, usando a outra mão para espalmar as suas
costas e trazê-la para mais perto de mim, erguendo o seu corpo da cama.
Apoio um joelho entre as suas pernas, pressionando a minha coxa no
seu centro e sentindo o calor que emana dali, quase sendo capaz de molhar a
minha calça, de tão encharcada. Ela chora, geme, ofega, arqueja, misturando
uma série de palavras sem conexão alguma, seu corpo tremendo inteiro
quando alterno entre os seios, lambendo o outro e chupando com o mesmo
vigor.
Li que os seios se tornam ainda mais sensíveis com a gravidez e
calculo o quão difícil seria fazê-la gozar apenas assim, estimulando seus
mamilos.
Aparentemente, não muito, pelo jeito que os seus gemidos se tornam
cada vez mais altos e suas mãos começam a puxar os meus cabelos com
mais força, como se precisasse se firmar em algo para aguentar o prazer que
lhe preenche.
Decido aceitar o desafio e afasto a minha coxa do seu centro,
sorrindo com a forma que ela reclama, e intensifico o meu trabalho nos seus
peitos gostosos, com a mão e os lábios, com a língua e os dentes, resvalando
a carne que já está avermelhada com o contato com a minha barba.
Sei que quando a penetrar, não vou durar nada, então quero vê-la se
desmanchar para mim pelo menos umas duas vezes antes de colocar meu
pau para o jogo.
O coitado implora, apertado nos confins da minha calça, mas eu não
lhe dou atenção, preocupado demais com a mulher em meus braços e em lhe
dar o maior prazer da sua vida, assim como sei que irei sentir daqui a pouco.
Continuo o meu assalto e percebo o exato momento que ela começa a
gozar, porque ela trava por uns dois segundos, apertando meus cabelos até o
ponto de o meu couro cabeludo arder com o ataque, e então suas costas se
curvam, a cabeça pendendo para trás, com os cabelos formando uma cascata
em cima do travesseiro branco, o meu nome ecoando de seus lábios como
um mantra, enquanto seu corpo treme inteiro, a pele arrepiada.
Ela fica assim por alguns segundos, e eu continuo os meus estímulos,
querendo prolongar o seu clímax pelo máximo possível, até que cai
novamente sobre o colchão, ofegante e sensível, se contorcendo para escapar
dos meus lábios, que ainda deixam beijos suaves nos seus seios.
Eu aproximo o meu rosto do seu, adorando a forma como ela está
toda bagunçada, meio aérea, como se não lembrasse nem do seu próprio
nome, um biquinho lindo nos lábios, o corpo ainda soltando pequenos
espasmos.
— Você consegue ficar ainda mais linda gozando... — murmuro, e
ela fica ainda mais vermelha, envergonhada, me arrancando um sorriso.
Seus dedos brincam com o colarinho da minha camisa por um
segundo, até que ela começa a desabotoá-la, o tempo todo mantendo os
olhos nos meios, de um jeito que é sexy demais para o meu pobre juízo, que
no momento está se segurando por um fio.
Quando termina o último botão, afasta o tecido para os lados,
esfregando as palmas das mãos no meu peito, concentrando-se no meu
abdome, e mordendo o lábio, com uma expressão pecaminosa.
— Como é que eu moro com você há mais de dois meses e nunca te
vi sem camisa antes? — pergunta, em tom baixo, admirando os contornos do
meu tanquinho.
Modéstia à parte, eu sou um puta gostoso.
— Não queria correr o risco de você me atacar e depois usar os
hormônios como desculpa, sabe — respondo, vendo a forma que ela sorri em
resposta. — Você tinha que se apaixonar por mim, por inteiro, e não só pelo
meu corpinho delicioso.
Ela gargalha, enquanto empurra a minha camisa pelos meus ombros
e eu a ajudo, me afastando para desabotoar os punhos e terminar de me
despir, jogando a peça no chão do quarto. Mas quando ela se espicha para
mexer no meu cinto, ameaçando retirar a minha calça, eu seguro suas mãos e
balanço a cabeça, negando.
— Mas...
— Se você encostar em mim eu não vou durar dois segundos, e ainda
te quero desmanchando pra mim pelo menos duas vezes antes de me enterrar
em você — explico.
Ela arregala os olhos, engolindo seco, e eu desço o corpo para beijá-
la mais uma vez, enfiando a minha língua na sua boca, segurando seu
pescoço e deixando escapar um gemido gutural.
Alice corresponde o meu desespero, suas mãos livres para arranhar a
pele das minhas costas sem o tecido para atrapalhar. Desço os lábios de volta
para o seu pescoço, fazendo caminho para baixo e parando para lamber os
mamilos entumecidos novamente, antes de continuar o percurso até o meu
destino.
— Meu Deus — ela ofega quando lambo logo abaixo do seu umbigo,
no cós do seu short de algodão, o qual seguro, levantando o olhar só para
receber um aceno desesperado, pedindo que eu continue.
Abaixo o tecido, juntamente com a calcinha ensopada, sentindo
minha respiração falhar com a visão da sua boceta lisinha e brilhante,
pulsando, ansiosa por alívio.
Antes, porém, não consigo ignorar o pequeno montinho onde
descansa o nosso bebê, que parece muito maior agora, de perto, e sinto meus
olhos marejando de emoção.
Acaricio a pele, pousando os lábios em um beijo casto, mas cheio de
sentimento, antes de levantar a cabeça e encontrar seus olhos tão
emocionados quanto os meus, e um sorriso trêmulo em seus lábios.
— Eu amo você, Henrique — ela repete aquelas palavras que quase
me derrubaram mais cedo, e não escondo o quanto me afetam, permitindo
que uma lágrima desça pela minha bochecha, devolvendo o seu sorriso.
— E eu amo você, minha boneca — respondo, depositando mais um
beijo em seu ventre.
O seu cheiro logo invade as minhas narinas, me lembrando que ela
está ali, toda pronta para mim, e não me faço de rogado, descendo o rosto e
enfiando-o em suas dobras molhadas, fazendo-a arquejar de surpresa.
É afrodisíaco.
O cheiro de Alice é ainda melhor do que eu sonhei, uma mistura de
algo doce, como ela, e um cítrico que me deixa louco, e não perco tempo
antes de traçar o seu comprimento, da entrada até o seu clitóris, em uma
lambida que me deixa até meio tonto.
— Perfeita... — murmuro, em um lamento, antes de abocanhar a sua
carne endurecida, contornando a pontinha com língua e dando leves
batidinhas, que a deixam desnorteada, fincando os dedos nos meus cabelos
novamente, arrancando um grunhido de mim.
Desço novamente até a sua entrada, penetrando-a com a minha
língua e sorvendo o seu gosto maravilhoso, enquanto o meu polegar trabalha
no clitóris inchado.
Alice se contorce, reclama, pede, geme, perdendo o controle e
encharcando ainda mais o meu rosto à medida que fica mais excitada e
pronta para mim. Ela puxa e arranha o meu couro cabeludo, mas não cedo,
segurando-a pela bunda e levantando o seu quadril em direção à minha face,
me perdendo ali, como se fosse um banquete feito especialmente para mim e
eu estivesse há anos, faminto, sedento.
Porque é exatamente isso.
Há anos eu espero por isso aqui, por essa conexão, essa entrega, esse
desejo, e agora que ela está aqui, em minhas mãos, eu só quero me fundir a
ela, de corpo e de alma, porque ela me tem por completo, sem ressalvas, sem
mentiras, sem receios.
Subo a língua de volta para o seu clitóris, alternando entre lamber e
chupar, enquanto meus dedos massageiam seus lábios menores até encontrar
a sua entrada e preenchê-la, com dois de uma vez, me fazendo gemer com o
quão apertada ela é.
— Henrique! — ela grita meu nome, seu corpo se desprendendo da
cama, a cabeça pendendo para trás, quando começa a espasmar contra mim,
caindo em um orgasmo que perdura por longos segundos, e que eu
aproveito, sorvendo cada gota, me deliciando com cada gemido, cada tremor
que ela me dá.
Quando ela cai sobre os lençóis, a respiração pesada, não dou trégua,
retirando meus dedos apenas para substituí-los com a minha língua,
preenchendo-a novamente, fincando meus dedos na curva do seu quadril,
prendendo-a para que não fuja.
— Meu Deus, Henrique, é demais... — reclama, tentando se desfazer
do meu toque, mas eu não permito, sabendo muito bem que posso arrancar
mais um dela, o que se prova verdade quando, poucos minutos depois, sinto
suas paredes espasmando contra a minha língua, e seu gosto ficando ainda
mais intenso, seu líquido preenchendo a minha boca faminta.
Continuo até que reste apenas pequenos tremores, e ela ofega, como
se tivesse corrido uma maratona, quando eu me afasto, deixando um beijo no
topo da sua boceta, em cima do seu clitóris, e me afasto, enxugando o rosto
com as costas da mão.
Desafivelo o meu cinto, abrindo o botão e o zíper da calça, me
levantando do colchão para descê-la por minhas pernas, libertando o meu
pau, que nunca esteve tão duro e dolorido, furioso comigo por ter o ignorado
por tanto tempo, louco para se perder naquele calor que eu acabei de provar
de perto.
Subo na cama novamente, fechando os dedos ao redor da minha
extensão rígida e batendo uma punheta leve, apertando a carne para impedir
o gozo iminente, enquanto deixo ela se recuperar um momento.
Seus olhos, que estavam fechados desde seu último orgasmo, se
abrem preguiçosamente, encontrando os meus antes de descer lentamente
pelo meu corpo, até encontrar a minha mão em movimento.
Ela arfa, afetada com a visão do meu comprimento, e eu me
aproximo, me encaixando entre as suas pernas e descendo o meu corpo para
encontrar seus lábios novamente, em um beijo cheio de desejo e de amor.
— Posso te comer agora? — pergunto, alinhando meu pau na sua
entrada e me lambuzando com o seu líquido viscoso ali presente, gemendo
com o contato.
Ela não responde verbalmente, apenas assente, arreganhando mais as
pernas e empurrando a pelve contra mim, me fazendo escorregar a cabeça
para dentro do seu canal apertado.
— Puta merda... — resmunga, fechando os olhos, e eu correspondo o
seu xingamento, porque, meu Deus, como ela me esmaga, de um jeito que é
quase enlouquecedor.
Preencho-a devagar, e cada centímetro é uma tortura, para nós dois,
porque nossos gemidos de dor e de prazer se misturam no ar e, quando meu
quadril se encontra com o dela, nossos corpos totalmente conectados, preciso
pousar a testa no seu ombro para recuperar algum resquício de sanidade
antes de começar a me mover.
— Deus do céu — lamento, quando me afasto e arremeto novamente,
sentindo o meu abdome se contrair de prazer, e o gozo ameaçar mais cedo do
que eu gostaria.
— Misericórdia, Henrique, o quão grande você é? — reclama,
quando me movimento bem lentamente, testando os nossos limites. Ela me
aperta, quase me fazendo perder o juízo, e eu gemo baixinho.
— Depois eu te dou uma trena pra você medir, agora não lembro
nem o meu nome — respondo, arrancando-lhe uma risada que só termina de
me foder, porque ela fica ainda mais apertada, e minhas bolas pesam com o
orgasmo que insiste em vir precipitadamente. — Boneca, eu não vou durar
nada, me desculpa — murmuro, envergonhado, afundando o rosto no seu
pescoço.
— Henrique — diz, acariciando meus cabelos antes de puxá-los, me
forçando a encontrar os seus olhos. — Você já me fez gozar três vezes. A
gente vai ter a vida inteira pra fazer amor... por hoje, — começa, rodeando
meu quadril com as pernas — só me fode.
Reviro os olhos quando suas paredes me comprimem e então eu a
obedeço, metendo nela com mais velocidade, ainda tendo cuidado com o seu
desconforto, mas chegando cada vez mais perto do meu ápice, com os seus
gemidos chorosos me ajudando a enlouquecer.
— Ah, Alice! — resmungo, sentindo o exato momento em que tudo
se torna demais, e eu me esvazio em seu interior, mordendo o seu ombro
para abafar o grito.
Gozo tanto, mas tanto, que escorre para fora antes mesmo que eu saia
de dentro dela, meu corpo inteiro tremendo feito louco, a minha pele
arrepiada, e o coração faltando sair pela boca, de tão fortes os batimentos.
Despenco sobre o seu corpo, tomando cuidado para não a amassar
demais, principalmente o seu ventre, e tento me recuperar do que acabou de
acontecer.
Alice, finalmente, é minha.
Inteira.
Corpo, alma e coração.
E quando me afasto, me retirando dela e deitando ao seu lado,
puxando o seu corpo para cima de mim, a forma como nós nos encaixamos
só me deixa ainda mais contente e certo de que isso aqui é a coisa mais
perfeita que eu já experimentei na minha vida.
Nossos olhos se conectam, o silêncio da noite dizendo mil palavras, e
eu sinto como se enfim, depois de muito tempo, eu finalmente conseguisse
respirar.
50 - Alice

Não sabia que cairia tão forte


E então meus pés deixaram o chão
A gravidade não faz sentido quando você está perto
Biblical – Callum Scott

Acordo lentamente, a mente um pouco confusa, nublada de sono e


cansaço, e tento me mover, apenas para encontrar um corpo muito pesado e
forte me segurando com braços e pernas, me deixando completamente
imobilizada.
Abro um sorriso maroto ao lembrar da noite de ontem e da forma
como Henrique me deixou destruída. Depois da primeira vez, ele disse que
precisava me compensar do seu desempenho medíocre, então me tomou
mais uma vez, e depois mais uma, porque ainda não estava convencido de
ter se redimido o suficiente.
Por último, disse que era supersticioso e não gostava de nada em
números ímpares, então infelizmente ia precisar me comer mais uma vez,
para conseguir dormir tranquilo.
Eu soltei uma risada alta, que se perdeu em gemido quando ele me
colocou de quatro e me fodeu por trás, segurando os meus cabelos que,
segundo ele, sempre foram mais uma coisa na grande lista de tentações com
que eu o provoquei nos últimos dois anos.
Não lembro que horas fomos conseguir dormir, mas sei que foi bem
dentro da madrugada, já que ele chegou tarde da viagem.
Deus do céu, se esse homem já me esfolou viva depois de um dia
cansativo como o de ontem, imagine quando estiver descansado, penso,
sentindo o seu pau endurecido contra a minha bunda.
— Se você se remexer mais um pouco eu vou ter que te comer de
novo, boneca — sua voz rouca de sono me provoca, e eu ruborizo, parando o
meu quadril, que eu sequer percebi que estava se mexendo.
— Bom dia — murmuro, me virando de frente para ele, que está
sorrindo de olhos ainda fechados.
— Bom dia, minha linda — responde, pressionando mais o meu
corpo contra o seu, enfiando o rosto no meu pescoço e começando a
depositar beijos e pequenas mordidas por ali. — Dormiu bem?
— Depois que você deixou? Uhum... e você? — pergunto, escutando
a sua risada contra a minha pele. Sua mão enorme espalma o meu quadril e
desce até amassar a minha bunda, me puxando até que eu fique em cima
dele, que se deita de costas no colchão.
— Acho que nunca dormi tão bem na minha vida — replica,
massageando meus glúteos com as duas mãos.
Meu centro encharcado se esfrega no seu comprimento, já pronto
para mim, e eu gemo, revirando os olhos e remexendo em cima dele.
— Não foi você quem disse que eu tinha que parar de me remexer?
— pergunto baixinho, quando ele me ajuda a me mover, molhando o seu pau
com a minha lubrificação.
— Não foi uma reclamação, boneca, — começa, subindo a cabeça
para lamber um dos meus mamilos, me arrancando um lamento — foi
apenas um aviso. Sabe, — chupa um seio com força, mordendo o bico ao
soltar — eu não te fodi assim, ontem. Com você por cima.
Sinto a cabeça do seu pau resvalar na minha entrada e ofego, me
esfregando com mais força, sentindo os olhos revirando com o desejo que
me toma.
— Acho que temos que remediar isso, não? — pergunto, levantando
o quadril e segurando-o pela base, alinhando-o para que eu possa me sentar,
sendo preenchida por ele.
Henrique geme, fechando os olhos e apertando o meu quadril, e eu
arfo, porque assim tudo parece ainda mais intenso e ele parece maior, indo
mais fundo, até o limite.
— Alice... — ele choraminga o meu nome, me ajudando a me mover
devagar, até que nós encontramos um ritmo que é tão intenso, e ao mesmo
tempo tão lento, que chega a ser agonizante. — Meu Deus, que delícia...
você é tão apertada, tão quente... — murmura, revirando os olhos.
Levanto os quadris e desço com um pouco de força, testando, e os
nosso gemidos se tornam mais altos, à medida que o ritmo fica mais rápido,
o barulho das nossas pelves se chocando preenchendo o quarto silencioso, e
logo sinto os primeiros sinais do orgasmo atingindo o meu corpo.
— Eu vou gozar... — anuncio, empinando a bunda e deixando que
ele guie os movimentos, me fodendo com mais força por baixo, fazendo
meus seios balançarem com o chacoalhar do meu corpo.
O clímax me atinge com força, roubando o meu ar e me fazendo
gritar, minha voz já rouca da noite de ontem, e ele não demora a me
acompanhar, me preenchendo com seu líquido espesso e quente, até o ponto
em que sinto escorrer por entre nossos corpos.
Desabo sobre seu peito, ofegante, e ele me segura, acariciando as
minhas costas e dando tempo para que a gente se recupere.
— Eu amo você... — ele sussurra no meu ouvido, e eu sorrio,
incapaz de evitar o meu coração de disparar desenfreado.
Levanto a cabeça e encontro seus olhos sorridentes, e devolvo as
palavras, porque eu sei o quanto ele precisa ouvir, assim como eu, e o quão
gostoso deve ser nos seus ouvidos, assim como é para os meus.
Deito a cabeça no seu peito, fechando os olhos e me permitindo
relaxar, ali, segura em seus braços, com ele ainda dentro de mim, me
sentindo o mais perto do céu do que qualquer dia imaginei que estaria.
*
— Tava com tanta saudade da sua omelete, vida — comento,
engolindo o último pedaço do meu café da manhã.
Henrique sorri, se inclinando para beijar os meus lábios, e acaricia a
minha bochecha.
— Você comeu bem durante esses dias, boneca? — pergunta,
preocupado.
— No café da manhã, nem tanto. Optei mais por saladas de frutas e
um pão na chapa lá da padaria do lado da Lacerda — confesso. — Mas o
almoço e o lanche você garantiu que sim, né? — Ele acena, levando minha
mão até os lábios. — No jantar, eu pedi de fora na segunda e na terça. Na
quarta e na quinta, a Carina e o seu Pedro providenciaram enquanto a gente
arrumava o quarto. E ontem, bem...
Ele morde o lábio para esconder o sorriso.
Ontem, eu preparei uma carne com batatas para comermos quando
ele chegasse, mas nos esquecemos totalmente e nos perdemos um no outro o
suficiente para ele só vir até a cozinha guardá-la na geladeira para não
estragar.
— O bom é que já temos o almoço de hoje. — Dá de ombros, me
fazendo sorrir. — Agora me explica uma coisa — começa, limpando os
lábios com um papel depois de terminar de comer. — Como é que aconteceu
essa obra em tão pouco tempo e, principalmente, como diabos aqueles dois
não se jogaram aqui da sacada?
Solto uma risada e aceno em concordância porque, sim, foi um
tremendo desafio.
— Vida, você não faz ideia — respondo, sorrindo. — Bom,
começando do começo, depois que eu fiz aquela merda no domingo e você
saiu daqui, conversei um pouco com a Carina e ela me intimou a procurar
ajuda. Na segunda mesmo, no meu horário de almoço, comecei a terapia
com um psicólogo on-line. Fizemos uma semana inteira de encontros nesse
horário, pra que eu pudesse começar a expurgar alguns demônios.
— Primeiro de tudo, minha linda, — ele rebate, tocando meu rosto
— você não precisa se martirizar mais pelo que aconteceu domingo. Foi um
erro de nós dois. Meu por pensar apenas no meu coração partido e não
conseguir entender o seu medo, e seu por não conseguir ver o quanto eu
poderia me machucar com a sua insinuação. Mas eu entendo, porque nunca
te disse abertamente o que sentia, então não posso cobrar que você adivinhe
as coisas. E também porque sua cabeça devia estar tão confusa. Não consigo
nem imaginar o choque de descobrir que aquele crápula é casado.
Solto um suspiro, porque sim, foi realmente um choque tremendo.
— Ainda não consigo acreditar, na verdade — murmuro. — Na hora,
só conseguia pensar no quanto esse bebê ia sofrer com a rejeição daquele
verme, e parece que a voz da minha mãe martelava sem parar na minha
cabeça, dizendo que eu fui uma burra, que cometi o mesmo erro que ela, que
tenho dedo podre e que estraguei minha vida. Enfim... parecia que eu ia
enlouquecer — tento explicar.
Ele sorri, segurando minha mão e apertando-a.
— Eu entendo, Alice... na hora a minha mágoa me cegou, mas agora,
que tudo se resolveu, eu consigo entender. Me perdoe por não ter sido tão
compreensivo na hora. Eu só conseguia pensar que não perderia só você e
sim os dois e... meu Deus, boneca, eu te amo, de verdade, mas o que eu sinto
por esse bebezinho... eu não sei nem como te explicar...
Sorrio, emocionada, e trago sua mão para depositar um beijo.
— Você não faz ideia do quanto isso me deixa feliz, vida... —
respondo. — Enfim, conversei bastante com o psicólogo, consegui entender
algumas coisas e começar a perceber o tamanho das feridas que existem na
minha alma por causa da mamãe. São coisas que eu vou precisar continuar
lidando e que vou me curar com o tempo, por isso decidi que vou continuar
com a terapia por um bom tempo ainda.
— Fico feliz, minha linda — ele afirma. — Não quero que você faça
isso apenas por causa da gente, mas sim por você. Você precisa se priorizar,
Alice. Precisa entender melhor os seus próprios sentimentos e suas dores,
principalmente por causa do novo papel que você vai assumir em alguns
meses — completa, pousando uma mão em meu ventre.
— Eu sei disso — rebato. — Agora eu sei... e quanto ao quarto, —
continuo, — acho que foi uma ideia pra tentar te provar que eu quero você
com a gente, pra sempre. Pra te mostrar que tô disposta a continuar isso entre
nós, sem mentiras nem subterfúgios. Só a gente, nós três. — Ele sorri,
parecendo muito feliz. — Eu entreguei meu apartamento — confesso.
— Jura? — pergunta, emocionado. — Quando?
— Faz umas semanas já — explico, fazendo-o arregalar os olhos. —
Não quis te dizer, com medo de te dar falsas esperanças, porque ainda
negava o que eu já sentia. O quanto você já mexia comigo. Pensei em só te
falar sobre o que eu sinto, e o quanto eu quero ficar, mas aí pensei que você
merecia uma prova de amor também, já que me deu tantas nos últimos
meses. Daí a ideia do quarto.
— E Pedro e Carina ajudaram?
— Odiando cada segundo, mas sim — assinto, sorrindo. — Eles
realmente detestam um ao outro, viu? Meu Deus... quando não se
provocavam, ignoravam a existência um do outro, e, no final, eu que estava
prestes a jogar os dois da varanda.
Henrique gargalha.
— Imagina quando descobrirem que vão ter uma ligação eterna entre
eles — ele começa, sorrindo. — Afinal, quem mais podemos escolher para
ser padrinhos desse bebê, não é?
Arregalo os olhos, me dando conta.
— Meu Deus — arfo. — Coitado do nosso filho, Henrique, os
padrinhos dele se odeiam...
— Quem sabe não seja uma oportunidade desse ranço todo acabar —
sugere, dando de ombros.
— E ainda tem o casamento — exclamo. — Vão ser padrinhos duas
vezes!
— Casamento? — pergunta, surpreso.
Eu sorrio, me levantando e me colocando entre suas pernas.
— Tá pensando que vai me rebaixar à namorada, Henrique Lacerda?
— pergunto, infiltrando os meus dedos por seus cabelos. — Não aceito nada
além de uma promoção à esposa, querido. Esse anel nunca mais sai do meu
dedo — completo, mostrando a mão direita. Ele sorri, tão grande que quase
posso contar todos os seus dentes, e me aperta para si.
— Senhora Alice Lacerda — comenta. — Soa bem, não acha?
Pisco, de repente emocionada, e aceno.
— Soa muito bem sim — confirmo. — Bem demais até.
51 - Henrique

Eu morri todos os dias esperando por você


Querida, não tenha medo
Eu te amo há mil anos
E te amaria por mais mil
A Thousand Years – Christina Perri

— Boneca, o café tá pronto! — chamo por Alice, terminando de


arrumar as coisas na bancada da cozinha para comermos antes de sair para a
Lacerda.
Hoje será um dia especial, porque teremos a primeira reunião com o
assessor literário que vai cuidar da carreira da minha boneca. A ideia é
publicarmos antes do nascimento do bebê, daqui mais ou menos quatro
meses, então precisamos acelerar o passo para que dê tempo de fazer pelo
menos uma noite de autógrafos antes de a Alice entrar na reta final da
gravidez.
Segundo o que a médica falou na última consulta, o bebê está
previsto para nascer dia vinte e sete de dezembro, então eu conversei com a
Alice e decidimos que, se não lançarmos até final de outubro, vamos deixar
para o próximo ano apenas.
Eu já conversei com o Pedro e com a minha equipe de editores e eles
concordaram que, apesar de ser um prazo apertado, é possível.
Então dei carta branca para priorizarem tudo a respeito desse
lançamento, afinal, é o livro da minha mulher e eu sou o dono daquela
merda, então que se foda.
Vou privilegiar mesmo, quero ver quem vai vir reclamar comigo.
Desde que eu não prejudique nenhum autor programado, não vejo
problema em dar um tratamento especial para a minha boneca.
— Tô pronta, tô pronta — ela responde, vindo apressada do quarto,
terminando de abotoar a camisa social.
Pisco, franzindo o cenho, quando percebo se tratar de uma das
minhas camisas sociais.
— Gostei do look — comento, e ela sorri, as bochechas ficando
rosadas.
— Minhas camisas não abotoam mais no meu peito, vida — replica,
fazendo um biquinho lindo.
Eu me aproximo, encaixando uma mão na sua nuca, enquanto a outra
brinca com o colarinho da camisa de giz.
— Seus peitos estão maravilhosos, minha linda — provoco, enfiando
um dedo entre os botões, bem na altura dos seus montes perfeitos, e acaricio
a beira do sutiã de renda. — Cada dia mais suculentos e pecaminosos...
— E grandes! — exclama, bicuda. — Tenho que ir no shopping
comprar umas roupas. Essa calça é a única que ainda serve em mim e não
por muito tempo. O botão quase não fecha hoje. Tô ficando enorme...
— Boneca, — suspiro, acariciando seu rosto — você não está
enorme. Você está grávida. Seu corpo está mudando e vai continuar se
adaptando pra acomodar o nosso bebezinho. Ele tem que ficar confortável e
quentinho aí dentro, até chegar a hora de vir conhecer a gente.
— Eu sei... — murmura, desviando o olhar. — Mas... sei lá, ontem
eu vi uma estria horrível no meu bumbum quando passei o hidratante.
— Pois eu analisei muito bem esse bumbum ontem à noite e não vi
nada de horrível — rebato, levantando uma sobrancelha. Ela sorri, mordendo
o lábio, e eu não resisto, me inclinando para tomá-lo com os meus. — Posso
te curvar naquele sofá ali rapidinho pra te provar que tô certo, boneca. Só
dizer que sim.
Ela dá um tapa no meu peito e solta uma risada, balançando a cabeça.
— Enfim, acho que vou dar uma passada no shopping hoje no meu
intervalo do almoço. Pra ver algumas peças... — completa, dando de
ombros.
— Minha última reunião tá marcada pras duas e meia, acho que até
umas quatro já tô livre — comento, pensando na minha agenda do dia. — O
que acha de sairmos mais cedo e irmos no shopping ver umas roupas pra
você? Podemos até comprar algumas coisinhas pro bebê — sugiro.
Alice pondera, até que seus lábios me dão um sorriso e ela acena
animada.
— Tá bem, combinado — responde. Eu dou um beijo em seus lábios
e me afasto, ajudando-a a sentar na banqueta da cozinha antes de pegar a
garrafa de suco para servir um copo para ela. — Que horas é a reunião com
o agente? — pergunta.
— Nove e meia — replico, colocando o copo à sua frente e me
servindo de café. — Você já decidiu se vai usar o seu nome mesmo ou se vai
escolher um pseudônimo? — Ela assente, mastigando um pedaço de omelete
e me direcionando um olhar um pouco misterioso, que me deixa curioso. —
E aí?
— Eu me decidi, mas na verdade preciso do seu aval e opinião — ela
responde, me deixando ainda mais confuso. Faço sinal para que continue e
ela puxa o ar antes de continuar. — Eu não quero usar um pseudônimo —
começa. — Não vejo necessidade em esconder quem eu sou, não há
vergonha nenhuma em ser escritora, não tem motivos pra isso.
— Concordo com você, linda. — Assinto. — Mas porque precisa do
meu aval?
— Porque eu não quero usar Alice Monteiro — responde. Tombo a
cabeça para o lado, confuso. — Não quero entrelaçar a minha carreira com a
minha mãe e a minha avó. Elas não merecem fazer parte desse momento.
Elas nunca me incentivaram, pelo contrário, sempre menosprezaram esse
sonho. Não merecem ser relacionadas a essa parte da minha vida.
— Certo, também concordo — replico.
Não conheci a avó de Alice, mas se ela for da mesma laia que a mãe,
também é outra que não merece nem um segundo de consideração para nada.
— Então eu pensei e, se você não se incomodar e se não houver
nenhum problema por causa da Editora, eu gostaria de assinar como Alice
Lacerda. Afinal, esse vai ser o meu nome daqui um tempinho, não é?
Eu não consigo responder.
Não consigo nem pensar.
Alice acabou de desconfigurar o meu sistema todo e eu acho até que
o meu rosto está ficando meio torto, porque devo estar tendo um AVC.
Meu braço está meio dormente?
Talvez.
— Você tá falando sério? — pergunto, em um sussurro.
— Sim... você se incomoda?
Ela tá brincando?
— Se eu me incomodo? Alice, eu poderia te levar pro cartório agora
— respondo, arrancando-lhe um sorriso incrédulo. Eu me levanto, me
aproximando dela e segurando seu rosto com as mãos, encostando nossas
testas uma na outra. — Meu amor, nada nesse mundo me faria mais feliz do
que comprar um livro seu assinado com o meu sobrenome. Acho que nem
nos meus melhores sonhos eu conseguiria pensar em algo tão perfeito assim.
Ela sorri, um pouco emocionada, e pressiona os lábios nos meus, em
um beijo salgado, e só então percebo que estou chorando.
— Então vou assinar o contrato como Alice Lacerda, porque logo,
logo você vai me fazer uma mulher honesta e o Monteiro vai cair no
esquecimento — responde, sorrindo.
— E eu vou ser o primeiro da fila pra pegar o seu autógrafo, Alice
Lacerda — murmuro. — Meu Deus, você não faz ideia do quanto me fez
feliz agora, boneca.
— Eu adoro quando você me chama de boneca, — ela sussurra,
brincando com os cabelos da minha nuca — mas gostei muito de te ouvir me
chamar de meu amor.
Eu abro um sorriso, puxando-a pela cintura para mim.
— Você é o meu amor, Alice Lacerda. — Não consigo mais chamar
ela de outra coisa, e ela solta uma risada, balançando a cabeça. — É o meu
amor, a minha boneca, a minha linda, minha vida, minha mulher, meu tudo.
Você é o meu tudo, sabia? Vocês dois.
Trago uma mão para o seu ventre, acariciando o montinho que
guarda nosso neném.
— E você é o meu — ela responde. — Vocês dois, os homens da
minha vida. — Eu sorrio, tomando sua boca em mais um beijo profundo.
Três semanas que nós estamos juntos e parece que cada vez o nosso
beijo fica mais gostoso, nosso toque ainda mais prazeroso e nosso encaixe
mais perfeito.
Três semanas e a certeza que eu sempre tive, de que Alice seria o
meu paraíso, só se confirma ainda mais.
*
— Então acho que podemos marcar uma reunião com a sua equipe de
editores e de marketing pra fecharmos os detalhes do livro, Henrique —
César, o agente contratado para auxiliar Alice, sugere.
— Sim, vamos agendar pra próxima segunda, porque não temos
tempo a perder. Eu já adiantei o assunto com alguns editores, quando passei
o manuscrito, e eles disseram que a revisão será bem mínima, e como não há
questões de direitos de imagem, nem ilustrações, podemos avançar logo pra
fase de diagramação enquanto o Pedro e a sua equipe começam a trabalhar
na campanha de marketing — respondo.
— Vamos conseguir lançar em outubro? — Alice pergunta.
— Sim, eu confirmei agora a pouco com o pessoal, temos agenda pra
segunda quinzena de outubro. Vou falar com a Bibi pra marcarmos uma
sessão de autógrafos lá na livraria no lançamento. — Estamos em junho, já é
bom deixar tudo agendado pra não correr risco de haver conflito de agendas.
Depois da reinauguração, a livraria da minha miniatura estava cada vez mais
disputada, havendo eventos quase toda semana por lá.
— Você acha mesmo necessário? — Alice questiona, receosa. —
Assim, ninguém me conhece ainda, uma sessão de autógrafos não é demais?
Vai que não dá ninguém, eu ia morrer de vergonha.
— Pra isso que a campanha de marketing existe, Alice. — É César
quem responde. — Não se menospreze nem diminua o seu potencial. A
Lacerda é a maior Editora da região, tudo que vocês lançam é muito
procurado pelo público, e na Entre Páginas, então? Vai ser um sucesso,
mulher. O livro é bom, a premissa é muito instigante e o roteiro tá bem
escrito. Confia que a fila vai ser grande.
Percebo minha boneca emocionada e me inclino para apertar o seu
joelho, lhe dando um sorriso encorajador.
— A gente te liga confirmando o horário da reunião de segunda, ok?
— Me levanto, ao mesmo tempo que ele, e Alice logo nos imita, estendendo
a mão para cumprimentar o seu agente.
— Combinado. Foi um prazer te conhecer, Alice — ele responde. —
Espero que possamos trabalhar muito bem juntos. Henrique, meu amigo,
obrigada pela indicação.
— Você é um dos melhores, César, e a minha noiva não merece nada
além disso. — Sorrio, cumprimentando-o com um aperto de mão.
— Até segunda, vocês dois. E, de novo, parabéns pelo noivado e pelo
bebê.
Eu e Alice agradecemos, nos despedindo e logo ele se vai, fechando a
porta atrás de si, restando apenas nós dois no meu escritório.
— Feliz? — pergunto, observando o olhar sonhador em seu rosto,
enquanto a abraço pela cintura, pousando minha mão bem na curva do seu
bumbum.
Alice em roupas de trabalho sempre foi um ponto fraco meu.
Mas Alice vestindo a porra da minha camisa social? Estou lutando
contra uma ereção desde manhã, e meu pau não está nem um pouco feliz
comigo.
— Você não imagina o quanto, vida — responde. — Obrigada por
acreditar no meu sonho, por me apoiar. Você não sabe o que isso significa
pra mim, Henrique.
— Eu sempre vou ser o seu fã número um, minha linda — murmuro,
ganhando um sorriso. Ela se estica para me dar um beijo, mordendo o meu
lábio inferior o suficiente para me deixar maluco.
— Sabe, — começa, me soltando e se afastando até a porta — eu
tenho a impressão de que você sempre quis fazer coisas pecaminosas comigo
nessa sala. Tô errada? — Ela passa a chave na porta e se aproxima da janela,
fechando as persianas.
Eu engulo seco.
Meu Deus, é isso mesmo que eu tô pensando?
— Você nunca esteve tão certa, boneca — respondo.
— Então, — ela desabotoa os primeiros botões da minha camisa,
revelando seu colo perfeito — acho justo eu realizar um sonho seu, agora.
Não acha?
Consigo apenas assentir, enquanto ela sorri e se aproxima, fazendo
meu pau se contrair na cueca.
Meu Deus, eu acho que eu morri e fui pro céu, não é possível.
É perfeição demais para o meu pobre coração.
52 - Alice

Me deixou tão louca agora


O seu amor me deixou tão louca agora
Me deixou tão louca agora
O seu toque me deixou tão louca agora
Crazy in Love - Beyoncé

Sabe aqueles memes de macaquinhos batendo os pratos, quando você


está tão bobo que não consegue nem pensar?
Acho que isso descreveria o Henrique muito bem nesse momento.
— Você quer fazer amor aqui? — ele pergunta, quando termino de
desabotoar a camisa de giz branca e revelo o meu sutiã de renda, da mesma
cor.
Seus olhos estão quase vesgos, olhando para os meus seios que, eu
sei, estão muito maiores do que o normal.
— Não, querido — murmuro, deslizando o tecido pelos meus ombros
e me aproximando, para brincar com a sua gravata. — Nós fazemos amor
em casa, lá na nossa cama. Aqui, eu quero que você me curve sobre essa
mesa e me foda como se estivéssemos em um filme pornô de chefe e
secretária — continuo, e ele engole seco, seus olhos arregalados de um jeito
que eu diria que está até assustado, se não fosse o seu pau duro feito aço
contra a minha barriga. — O que me diz?
Ele encaixa o meu quadril com as mãos e me pressiona ainda mais no
seu corpo, aproximando o rosto do meu.
— Eu acho que você vai ser a ruína da minha vida, minha boneca.
— Tsc, tsc — nego, balançando a cabeça. — Ruína? Jamais. —
Desato o nó da sua gravata, usando o tecido para puxá-lo pelo pescoço mais
para perto. — Eu sou seu troféu, meu amor. Sua maior conquista...
Solto um gritinho quando ele inverte nossos corpos, me colocando
sentada em cima da sua mesa e puxando os cabelos da minha nuca,
murmurando contra meus lábios.
— Você tem razão, mais uma vez, minha linda... — Ele lambe meu
lábio inferior, me causando um arrepio, enquanto a mão direita desfaz o
fecho do meu sutiã com habilidade. — Eu espero que você esteja preparada
— sussurra, removendo a peça. — Foram quase dois anos sonhando com
esse momento e eu vou tomar o meu tempo pra ver quantas vezes eu consigo
te fazer gozar em cima dessa mesa, boneca.
— Faça o seu melhor, vida — murmuro em resposta, meu corpo
inteiro pegando fogo.
Henrique me dá um sorriso safado e toma a minha boca em um beijo
molhado, enquanto massageia o meu seio com uma mão e segura firme na
minha nuca com a outra. Eu firmo as pernas ao redor da sua cintura,
tentando conseguir um pouquinho de fricção para aplacar um grama do meu
tesão.
Sempre gostei de sexo, apesar de não ter tido uma quantidade muito
grande de parceiros.
Só que, com a gravidez, e, principalmente, depois de ter começado a
ficar com o Henrique, meu apetite aumentou consideravelmente, ainda mais
agora, que já estou bem dentro do segundo trimestre e não sofro mais com
tantos enjoos.
Para a minha sorte, meu noivo faz questão de me satisfazer sempre,
das formas mais deliciosas possíveis, como agora, descendo os lábios pelo
meu pescoço e encaixando um mamilo na boca, mamando com vontade e
forte o suficiente para me fazer ir ao céu.
Desde a primeira vez, em que ele me fez gozar apenas me
estimulando assim, Henrique sempre me dá o primeiro orgasmo desse jeito,
lambendo e chupando os meus seios com vontade, ao ponto de eu ficar
marcada com chupões.
Não que eu me importe.
Que me marque inteira, contanto que eu continue gozando desse
jeito.
— Ah, Henrique! — exclamo, empinando os seios na sua boca,
quando o prazer atravessa o meu corpo como um raio, me deixando sem
fôlego.
Como sempre, ele não perde tempo e já segue para baixo, se
ajoelhando na frente da mesa e desabotoando a minha calça, pedindo
silenciosamente para que eu levante o quadril, e a retira, junto com a
calcinha, me deixando nua, em cima da mesa.
— Meu Deus, você parece até uma visão assim, toda arreganhada e
molhada na minha mesa — murmura, rouco, o rosto na altura da minha
boceta, que pulsa, necessitada.
— Por favor — sussurro, ofegante. — Por favor, Henrique, me
chupa...
— Você nunca precisa implorar por isso, minha linda... — responde,
aproximando o rosto e levantando só o suficiente para deixar um beijo no
meu ventre, como sempre faz, me arrancando um sorriso. — Chupar você é
o meu passatempo preferido — continua, agora usando os dedos para abrir
os meus grandes lábios e expor a minha entrada — e eu poderia morar aqui,
entre as suas pernas...
As últimas palavras são sussurradas contra mim e eu sinto primeiro o
seu hálito quente, até que a sua língua me toca, de baixo para cima, a boca se
fechando em volta do meu clitóris, e eu apenas me jogo para trás, sentindo o
seu notebook fechado e algumas canetas nas minhas costas, mas sem me
importar, porque, como sempre, ele me faz ver estrelas e esquecer até do
meu nome.
Ele toma o seu tempo, me penetrando com dois dedos enquanto a
língua fica dando batidinhas ritmadas no meu clitóris inchado, o barulho das
suas chupadas e das estocadas ecoando pelas paredes, com o quão molhada
eu estou, e em poucos minutos eu sinto o orgasmo se aproximando,
arrepiando a minha espinha, e logo gemo o seu nome no escritório
silencioso.
Ele suga todo o meu prazer, antes de se levantar, enxugando a barba
molhada com o dorso da mão e me encarando intensamente, os olhos
vagando pelo meu corpo nu.
— Se senta na sua cadeira — peço, minha voz rouca dos meus
gemidos, e ele levanta uma sobrancelha antes de dar a volta na sua mesa e se
sentar, lindo, o terno preto evidenciando ainda mais o seu corpo perfeito, e a
gravata desfeita em volta o pescoço e os lábios vermelhos sendo os únicos
indícios da nossa aventura.
Eu me levanto, fazendo caminho até ele, nua, apenas usando minhas
sandálias de salto e ele lambe os lábios, hipnotizado com a visão.
É revigorante, principalmente agora, com as mudanças do meu
corpo, ver o quanto eu afeto esse homem tão lindo, tão sexy, ao ponto de ele
ostentar uma ereção absurda na sua calça.
Ele não diz nada quando eu me ajoelho à sua frente, colocando os
cabelos para o lado, e abro o seu zíper, apenas me ajudando a descer a calça,
junto com a boxer preta, para libertar o seu pau, que baba de excitação, a
cabeça arroxeada implorando por mim.
Espalmo uma mão no seu abdome, pedindo que ele relaxe e
aproveite, e fecho os dedos da outra em volta da sua extensão, rígida e
quente, capturando uma gota de pré-sêmen que saí da pontinha com o meu
polegar.
Bato uma punheta lenta, adorando a forma que seu peito sobe e
desce, ofegante, e seus olhos esverdeados agora estão mais escuros, intensos,
suplicantes.
— Boneca... — sussurra, em um tom desejoso, e eu ponho o
indicador nos lábios, balançando a cabeça.
— Ssh, silêncio, senhor Lacerda, — seu pau se contrai na minha
mão, com as minhas palavras — senão algum funcionário pode nos ouvir.
Ninguém vai nos ouvir.
Além do seu Pedro, que está em reuniões externas hoje, o dia inteiro,
ninguém mais sobe aqui sem falar comigo primeiro, mas o tesão do proibido
é o suficiente para que o seu pau babe mais um pouco, assim como a minha
boceta pulsa, a excitação tão grande que escorre pelas minhas coxas.
Abocanho a cabeça, contornando o prepúcio com a minha língua, e
Henrique choraminga, tombando a cabeça para trás e colocando o punho na
boca, o peito subindo e descendo descontrolado, quando o enfio cada vez
mais fundo.
— Jesus... — lamenta, quando uso a minha mão para completar a
tarefa, massageando a parte que não consigo colocar na boca, e logo adquiro
um ritmo gostoso, sugando o seu pau lentamente, e depois acelerando,
descendo até senti-lo no fundo da minha garganta e engolindo. — Porra!
Se eu pudesse sorrir, sorriria.
Mas minha boca está ocupada demais, cheia do pau do meu homem,
que segura meus cabelos em um rabo de cavalo improvisado e começa a
mover os quadris, quase que involuntariamente, até me fazer engasgar.
— Porra, desculpa... merda... — ele exclama, tentando se controlar,
mas eu não quero.
Não quero que se controle, quero que fique tão desnorteado quanto
eu fiquei, e como sei que vou ficar quando ele me curvar nessa mesa e me
foder até eu perder o juízo.
Então aumento meus esforços, sugando a sua carne forte o suficiente
para que o barulho seja alto, molhado, sujo, completamente enlouquecedor.
Ele segura o apoio de braço da cadeira com uma mão, enquanto a
outra segue nos meus cabelos, e eu quase posso ver o seu abdome se
contraindo, por debaixo da camisa branca, com a força que ele faz para se
controlar.
— Não se segura — tiro o pau da boca o suficiente apenas para falar
isso, e ele ofega, balançando a cabeça.
— Não quero te machucar — responde, encontrando meus olhos e eu
quase gozo, só com o seu olhar de desespero.
— Você não vai — replico, usando o tempo para lamber as suas
bolas de um jeito que o faz revirar os olhos. — Fode a minha boca, vida, me
usa... goza pra mim...
Ele solta um resmungo alto e segura a minha cabeça com as duas
mãos, tombando a cabeça para trás e ditando um ritmo mais intenso, que faz
meus olhos lacrimejarem, mas eu gosto, tanto que levo uma mão até a minha
boceta e começo a me tocar, gemendo contra o seu pau, aumentando ainda
mais o seu prazer.
— Puta que pariu, Alice — xinga, me olhando nos olhos e eu sinto o
seu prazer chegando antes que ele possa me avisar, com a forma que seus
quadris perdem o ritmo e o seu pau parece crescer na minha boca. — Eu vou
gozar, porra, eu vou gozar...
Sinto seu prazer preencher a minha boca e engulo, gemendo quando
o acompanho e também gozo, esfregando o meu clitóris com o indicador. Ele
espasma, jateando mais e mais, até que um pouco escorre pelos meus lábios
quando eu o solto, e eu uso o mesmo dedo que estava me tocando para
colocar tudo de volta para dentro, chupando e sentindo a mistura dos nossos
orgasmos invadindo minha boca.
Nem tenho tempo de piscar quando ele me levanta pelas axilas e me
vira, me fazendo deitar de bruços na mesa, a bunda empinada e os meus
saltos ajudando a ficar na altura certa para que ele somente meta em mim, já
duro novamente, e comece a estocar.
Meus gemidos se misturam com os deles criando uma melodia tão
pecaminosa quanto a nossa transa, e suas mãos seguem firmes no meu
quadril, vez ou outra estapeando a minha bunda.
O que eu mais amo é que ele, mesmo no seu estado de transe pelo
prazer, ainda tem o cuidado de não me pressionar demais na mesa e deixar
espaço suficiente para que eu me apoie nos antebraços e não esmague a
minha barriga na superfície, protegendo o nosso bebezinho no meio das
nossas estrepolias.
Ele me fode e geme, até que sinto minhas pernas tremendo e meu
centro pulsando mais uma vez, moendo o seu pau e extraindo dele mais um
orgasmo forte, que também o deixa sem fôlego e de pernas bambas.
No final, somos um emaranhado de suspiros e suor, ele ainda
parcialmente vestido, mas completamente amarrotado e desalinhado, e eu
nua em seus braços, os dois na sua cadeira, esperando nossas respirações se
normalizarem.
— E aí, valeu a pena esperar dois anos? — pergunto, numa
provocação.
Ele me aperta contra si, beijando o meu ombro.
— Por você eu esperaria mil anos, minha linda — murmura,
transformando o momento em mais uma das vezes que ele consegue disparar
o meu coração. — Esperaria a vida inteira se fosse preciso.
Eu pisco, virando a cabeça para encontrar seus olhos e me inclinando
para um beijo suave.
— Eu amo você... — sussurro.
— E eu te amo ainda mais, minha Alice — responde, enquanto me
aconchego em seus braços.
53 - Henrique

E tudo o que importa no final somos você e eu


Eu estarei do seu lado se precisar de alguém
Se alguma coisa não estiver certa
Always – James Arthur

Acordo um pouco confuso, a cabeça meio nublada pelo sono, mas


sentindo que tem alguma coisa errada.
Estico o braço, procurando a minha boneca, mas não a encontro,
então me sento na cama e vejo que ela realmente não está aqui, e tampouco
no quarto.
— Alice? — chamo seu nome, pensando que talvez ela esteja no
banheiro, mas não ouço resposta alguma. Me levanto, percebendo que a luz
do banheiro está apagada, então ali ela não está. — Boneca? Cadê você? —
Checo o meu celular e me espanto quando vejo as horas.
Onde diabos ela se enfiou às duas horas da manhã?
Saio do quarto e não preciso dar mais que alguns passos para escutar
um som que gela a minha espinha.
Corro e a encontro na cozinha, sentada na banqueta alta da ilha,
segurando o rosto com as mãos, os ombros chacoalhando com força. Ela
chora copiosamente, e me pergunto quem pode ter morrido para deixá-la
nesse estado.
— Meu amor, o que foi que aconteceu? — pergunto, me
aproximando dela, que descobre o rosto e me encara, caindo em um pranto
ainda mais alto e intenso, me deixando nervoso. — Alice, você vai passar
mal assim, minha linda. Por favor, me conta o que aconteceu? Seja o que for,
eu vou resolver, eu juro. Não chora assim, não.
Ela soluça, num choro sofrido, enquanto eu a abraço, molhando
rapidamente toda a minha camiseta, e tenta se acalmar.
— A-acabou a most-tarda — responde, entre pequenos soluços, e eu
franzo o cenho.
Como é que é?
— O que foi que você disse? — questiono, me afastando, porque não
é possível que esse choro todo é por causa de uma porra de uma mostarda.
— Eu ac-cordei com vontade de comer ab-bacaxi — explica,
limpando o rosto. — Ai, quando peguei ele, me deu vont-tade de colocar
most-tarda em cima. Mas acabou — conclui sua narrativa ridícula, voltando
a chorar.
Misericórdia.
Ela tá grávida, Henrique, ela tá grávida. Não briga com a grávida.
Puxo o ar, contando até cinco, antes de respondê-la.
— Boneca, — começo, suspirando — primeiro de tudo, eca. Abacaxi
com mostarda, é sério isso?
— Vai ficar tão gost-toso, Henrique, eu quase posso sent-tir o gost-to
— soluça, fungando.
— Eu posso comprar a mostarda de manhã, e aí você come essa coisa
horrorosa, tá bem? Agora vamos dormir? São mais de duas da manhã,
boneca.
— Não! — exclama, chorando mais alto. — O beb-bê vai nascer com
cara de most-tarda, Henrique!
E é aí que eu entendo.
Alice está tendo o seu primeiro desejo de grávida.
Se eu queria que fosse alguma coisa menos nojenta? Claro.
Se que preferia não ter que sair de madrugada para comprar o caralho
de uma mostarda? Óbvio que sim.
Mas essa é a minha mulher. E esse é o meu bebê que tá fazendo ela
chorar igual uma criança pirracenta. Então nada mais justo do que eu ir atrás
dessa merda, mesmo que passe das duas da manhã.
— Tem aquele supermercado vinte e quatro horas ali na outra
esquina, eu vou lá comprar rapidinho, tá bem? — prometo, e seus olhinhos
me encaram em expectativa, um sorriso lindo se formando nos seus lábios
vermelhos.
— Jura, vida?
— Claro que sim, minha boneca — murmuro, dando-lhe um beijo.
— Já volto, tá bem? Limpa esse rosto e não precisa mais chorar. Nosso bebê
não vai nascer com cara de mostarda.
Ela sorri, acenando e limpando o catarro do nariz com o dorso da
mão, e ainda assim, toda bagunçada, ela é a coisa mais linda que eu já vi na
vida.
Dou um beijo em seus cabelos antes de pegar as minhas chaves e sair
do apartamento.
Duas e trinta e cinco da manhã, e eu indo atrás de mostarda.
Eu realmente sou a porra de um cachorrinho para essa mulher.
*
— Tá melhor, minha linda? — pergunto para Alice, segurando a sua
mão sobre o console do carro, enquanto estou dirigindo em direção à casa do
meu pai. — Tem certeza de que quer ir hoje? A Bianca não vai se chatear se
eu explicar, tenho certeza, boneca.
Como eu imaginei, a brincadeira da mostarda custou caro.
É óbvio que uma mistura tão horrenda como aquela não poderia ter
outro desfecho senão a Alice com a cara no vaso sanitário, vomitando a sua
alma.
— Eu tô bem, vida — responde, esticando o braço para afagar meus
cabelos. — Foi só um mal-estar de nada, não se preocupa.
Olho para ela de soslaio, pensando se compro ou não a briga de dizer
o quanto a sua maluquice da madrugada foi tudo, menos um mal-estar, mas
prefiro manter a paz, então fico caladinho.
Nosso bebezinho completou vinte e cinco semanas na última quarta-
feira e tem o tamanho de uma bola de futebol. Alice disse que ele é uma bola
muito fajuta, porque até agora ele está quietinho, sem se mexer, mesmo que
a gente queira muito senti-lo.
— Se você sentir alguma coisa, qualquer coisa mesmo, por favor, me
diz, tá? A gente vai pra casa, ou melhor, vai pro hospital — peço, e ela revira
os olhos.
Ela realmente passou muito mal, e eu estava preocupado, mas,
aparentemente, isso é desnecessário.
Mulher teimosa essa que eu arrumei.
— Henrique, é aniversário da sua irmã, por favor, não surta. Não
quero você me rondando o tempo inteiro e deixando todo mundo
preocupado. Nada de estragar a festa, por favor — ela pede, me dando um
olhar severo.
— Eu não surto — me defendo, ouvindo o seu bufar. — Posso nem
me preocupar com a minha mulher grávida, injustiça essa vida — resmungo
baixinho, mas sei que ela ouve, porque me encara de novo, com uma
expressão brava.
— É aniversário da sua irmã caçula, e o primeiro evento de família
que eu vou participar, não quero causar uma má-impressão estragando a
festa de todo mundo só porque eu tive um pequeno desconforto — reclama.
Levanto as sobrancelhas, me perguntando em que mundo vomitar até
o ponto de quase desmaiar é um pequeno desconforto, mas fico quieto.
— Em primeiro lugar, — começo, entrando na via que dá acesso ao
condomínio — você não vai estragar nada. É a grávida da família e tá todo
mundo ansioso pra ver o quanto esse meninão cresceu. — Seguro sua mão
novamente e dou beijo antes de colocá-la na minha coxa. — Segundo, não
existe evento nenhum. Vai ser um almoço de domingo normal, com a
diferença de que a Lúcia vai caprichar ainda mais na comida e fazer um bolo
gostoso pra gente comer de tarde. E aquele cabeludo horroroso deve levar
algum docinho também pra sobremesa.
— O Joaquim não tem nada de horroroso, sua irmã é uma sortuda,
isso sim — ela murmura, e eu viro a minha cabeça, encarando-a com um
olhar bravo. — Que foi? Não tô mentindo. — Dá de ombros, a dissimulada.
Na minha cara!
— Em terceiro lugar, — continuo, fuzilando-a com o meu olhar mais
indignado — eu tenho certeza de que a Bibi entenderia se precisássemos nos
ausentar por causa do bebê. Ela tá toda boba em ser tia, e me disse que até a
sua enteadinha fofa tá animada com a ideia de ter um priminho.
Minha miniatura completa vinte e sete anos na próxima sexta-feira,
mas como ela, o viking e sua filha vão viajar na quarta, para o show do
cantor preferido delas, e só retornam na outra terça, decidimos comemorar
no almoço de família de hoje, para adiantar.
Alice, apesar de já estar acostumada com os nossos domingos na casa
do papai, depois que assumimos de vez o nosso relacionamento, há mais de
dois meses, ainda assim ficou receosa com a ideia de um aniversário,
pensando que seria um super evento chique, já que somos ricos.
Nada no mundo a convenceu de que seria mais um dia comum, só
entre nós.
Me fez até acompanhá-la ao shopping ontem à tarde, porque não
conseguiu achar nada que fosse bom o suficiente para vestir no seu closet, já
que o nosso bebê estava fazendo ela perder todas as roupas mais rápido do
que ela imaginou.
Tentei acalmá-la, mas recebi um esporro na frente da vendedora da
loja de vestidos e preferi ficar quietinho, sentado, segurando a sua bolsa e
repetindo o quão linda e perfeita ela estava enquanto experimentava uns
trinta e cinco vestidos.
No fim, ela comprou um.
UM. MÍSERO. VESTIDO.
Depois de mais de duas horas dentro da loja.
Não sei quem quis esganar mais ela, eu ou a pobre da vendedora que
pensou que ia faturar horrores e conseguiu uma comissão mixuruca.
Mas, claro, eu apenas sorri, disse que ela ficaria ainda mais perfeita
com o vestido lilás florido que escolheu, paguei a compra, e depois a levei
para tomar um sorvete, porque sou um bom pau mandado.
Não posso reclamar, isso é um fato.
Melhor ser um pau mandado e ter o meu próprio pau sendo engolido
ou pela sua boca gostosa, ou pela sua boceta quente e apertada, do que
querer ser o fodão e no final ficar chupando dedo e batendo punheta.
Me aproximo da entrada do condomínio e faço sinal para o rapaz na
guarita, abaixando o vidro e o cumprimentando quando passo pelo portão
aberto.
— Enfim, — revira os olhos — só relaxa que nós estamos bem.
Inclusive, tô salivando já pensando no bolo de chocolate que a Lúcia deve
ter feito. A Bianca gosta de granulado colorido, né? — pergunta, animada.
— Gostar é eufemismo, boneca — respondo, sorrindo. — Uma vez,
quando ela era pequena, pegou um pacote cheio da dispensa, escondida da
Lúcia, e comeu tudinho. Claro que foi parar no pronto socorro, vomitando
até a alma.
Alice solta uma risada, balançando a cabeça, enquanto chegamos
perto da casa do meu pai. A umas duas quadras de distância, porém, franzo o
cenho ao ver uma placa de vende-se em uma das casas mais bonitas do
condomínio.
Me distraio tanto, que nem percebo que desacelerei, até parar na
frente do sobrado.
É uma construção linda, com algumas palmeiras imperiais na frente,
uma fachada moderna, com uns detalhes e uma porta enorme em madeira,
uma sacada de vidro grande, garagem para dois carros e um caminho de
pedras e grama até a entrada.
É perfeita.
— Nossa, que linda — Alice murmura, encantada. — Você conhece
os donos?
— Sim, são os Moreira — respondo. — Papai tinha mais contato
com eles há uns anos, mas depois que expandiram a empresa deles de TI,
viviam viajando. Acho que decidiram vender a casa, já que não paravam por
aqui mesmo.
— A casa é muito linda — ela repete, com um suspiro.
Algo dentro de mim se remexe com a visão, e não consigo parar de
pensar no quão perfeito seria nós dois construindo nossa família aqui,
criando nosso bebê, tendo mais espaço para ele correr, pular, ser criança.
Isso sem falar em mais espaço para alguns irmãozinhos, se Deus
quiser.
— Vamos? Daqui a pouco seu pai liga perguntando por nós — diz,
me olhando, curiosa.
Eu aceno, dando o pisca e colocando o carro em movimento,
memorizando o nome da corretora responsável pela venda.
Tenho uma ligação para fazer amanhã.
*
— Uno! — exclamo, depois de jogar mais uma carta.
— Caramba, tio Henrique, você é muito bom! — Angélica diz,
sorrindo como se não estivesse levando uma lavada no jogo.
Ah, a inocência da infância.
Não posso dizer o mesmo de Bianca, que me fuzila com o olhar
como se quisesse me matar.
— Você tá roubando, infeliz! — acusa, me apontando o dedo.
— Ora, você não sabe perder, não, irmãzinha? — debocho. — Olha o
exemplo horrível que você tá dando pra sua enteada. Tá ouvindo, cabeludo?
Tua mulher tá ensinando a menina a ser uma grande bebê chorona.
— Poxa, amor, era pra você ficar vigiando esse idiota pra ele não
roubar! Você tá aí fofocando com a Lúcia! — ela resmunga, se levantando e
andando até o namorado.
— Eu não tô fofocando, princesa, tô conversando — ele replica. —
Se você sabia que ele ia roubar, porque foi jogar então?
— Eu não tô roubando! — me defendo. — Teu problema é a inveja
que tu sente da minha genialidade, toco de amarrar onça. Não sabe brincar,
não desce pro play.
— Argh, você é impossível, Henrique, impossível! — resmunga,
saindo de perto da gente.
— Isso, vai embora, vai, tenista de pingue-pongue. Deixa eu jogar
com a anjinha aqui que ela é muito mais divertida que você. Né, bebê? —
pergunto, me sentando novamente na mesa do jardim. — Me dá, deixa eu
embaralhar de novo, já que a sua madrasta malvada saiu do jogo.
Angélica solta uma risada, se divertindo do nosso embate, e eu pisco
para ela.
Garotinha fofa essa, meu Deus.
— Henrique! — Estou distribuindo as nossas cartas quando escuto a
voz de Alice me chamando.
Há um certo alarme na sua voz, então me levanto imediatamente,
pedindo licença à menininha e correndo até ela, que está sentada em uma das
poltronas da área externa, ao lado de Isabel.
— Que foi, boneca? Tá passando mal? Onde que tá doendo? Anda,
me fala! — pergunto, agoniado, correndo os olhos por todo o seu corpo e me
ajoelhando na sua frente. — Ai! — exclamo, quando, ao invés de me
responder, ela dá um safanão na minha cabeça, revirando os olhos. — Isso é
violência doméstica!
— Cala a boca, inferno! — resmunga. — Me dá a sua mão.
Ela puxa a minha mão direita e coloca em cima da sua barriga
redonda.
Eu a encaro, confuso, sem entender.
— O que...
— Ssh — me interrompe, fazendo cara feia, e eu bufo, esperando, até
que a coisa mais surreal do mundo acontece.
— Isso...
— Ele tá mexendo, vida... — Alice murmura, emocionada, e sei que
meus olhos também estão cheios d’água, porque é a coisa mais perfeita que
eu já senti na vida.
— Opa! — ofego, quando sinto um chute mais forte. — Vai com
calma, amigão. Não pode machucar a mamãe — sussurro, aproximando o
rosto da sua barriga e espalmando as duas mãos, aproveitando os
movimentos.
— É incrível, né? — ela fala baixinho, como se não quisesse romper
a pequena bolha que se formou ao nosso redor, mesmo que eu saiba que toda
a minha família se aproximou, curiosos com o momento.
— É perfeito — respondo, no mesmo tom, me debruçando para
deixar um beijo no seu ventre. — Vocês dois são perfeitos. Eu amo tanto
vocês...
Ela sorri, colocando uma mão no meu rosto e enxugando as lágrimas
que estão descendo pelas minhas bochechas.
— E nós amamos você, vida...
Ficamos alguns segundos nesse momento só nosso, até que o meu
anão de jardim favorito nos interrompe.
— Ahh, eu posso sentir também? — pergunta, parecendo uma
criancinha arteira, e Alice sorri, acenando. — Sai da frente, bocó. — Me
empurra, se abaixando na altura da barriga da minha mulher e arquejando ao
sentir o movimento do meu filho.
Solto uma risada, me afastando e observando a forma como a minha
família a rodeia, todos encantados com a nossa bolinha, até mesmo o
cabeludo metido a roqueiro, que esboça um sorriso singelo naquela carranca
dele.
Não consigo evitar pensar no quão sortudo eu sou, por ter conseguido
isso aqui.
Alice me encara, feliz, um sorriso enorme estampado no rosto,
enquanto Lúcia e Isabel brigam para tocar na sua barriga.
É.
Sou muito sortudo mesmo.
54 - Alice

Entre tantos anos, entre tantos outros


Que sorte a nossa hein
Entre tantas paixões, nosso encontro
Nós dois, esse amor
Ainda Bem – Vanessa da Mata

— Graças a Deus não tá tão lotado, porque eu poderia comer um boi,


com a fome que eu tô — Carina resmunga, quando nos sentamos na nossa
mesa.
É sábado e, por ter acordado tarde, não consegui participar da minha
aula de yoga das nove horas, então acabei entrando na sua turma das onze, e
minha amiga me convidou para almoçar depois.
Ela disse que estava doida para comer uma lasanha bem massuda,
enquanto eu queria comer um churrasco gostoso. Por isso, decidimos vir ao
shopping, já que a praça de alimentação nos oferecia essas e várias outras
opções.
— Não tomou café, não? — pergunto.
— Tomei muito cedo. Não consegui dormir direito a noite toda e
acordei cedo demais. Tive pesadelos horríveis com a Michele... — responde,
abatida.
Minha amiga vem enfrentando uma verdadeira batalha com toda a
questão da sua irmã mais nova. Seus pais inventaram de querer mandá-la
para a Europa, com a desculpa de estudar em uma escola muito boa por lá e
se preparar para o curso de Medicina (que a menina nem quer fazer).
Tudo isso só para afastá-la da irmã.
Carina surtou, obviamente, e decidiu não ficar mais quieta, só
assistindo aos dois destruírem a vida da menina. Disse que vai lutar pela
guarda dela e já até contratou uma advogada muito foda para cuidar do caso.
— Você tem conseguido falar com ela direitinho? Eles não estão
impedindo? — pergunto.
— Eles não são nem bestas, amiga — resmunga. — E eu tô sendo
esperta também. Eles nem desconfiam do que vamos fazer. Eu tô só
colhendo as provas, a Michele tem ajudado, e quando estivermos com tudo
em mãos, a advogada vai entrar com a ação, já pedindo uma liminar pra não
deixar eles tirarem ela do país antes do fim do processo.
— Esperto — murmuro. — Essa advogada é boa mesmo.
— A melhor — responde, com um sorrisinho no rosto. — E como
estão as coisas com esse príncipe? Vocês estão bem, mesmo? — muda de
assunto.
— Ah, amiga, — suspiro, abrindo um sorriso — o Henrique é tudo
que eu nem imaginava que queria na vida. Juro. Ele é doce, é gentil, é
divertido, me faz rir mais do que tudo, e, meu Deus, tem uma pegada —
termino, abafando o rosto com as mãos. — Juro, parece que cada vez é
melhor, mais intenso. Nunca vivi nada igual.
— E vocês vão casar, de verdade? — ela pergunta e eu assinto.
— É ele, amiga — murmuro. — Eu não tenho mais dúvida alguma, é
com ele que eu quero passar o resto da vida. Tudo com ele é incrível. Não
consigo nem descrever.
Carina sorri, se esticando para segurar as minhas mãos e as aperta.
— Eu fico muito feliz por você, amiga. Você, mais do que ninguém,
merece essa tranquilidade de um amor certo, seguro e intenso. Merece um
cara que te dê o mundo, que seja capaz de tudo por ti. — Eu me emociono
com as suas palavras e pisco para disfarçar as lágrimas, fazendo-a sorrir
docemente. — Você e esse bebê merecem todo o amor do mundo e parece
que o Henrique tá disposto a isso.
— Ele tá, amiga — confirmo. — Nem lembro mais nada sobre a
concepção desse bebê, porque, pra mim, ele é filho do Henrique. Não tem
nada que me faça pensar o contrário.
— Que bom que você percebeu isso a tempo — ela responde.
Também sou grata por não ter estragado a melhor coisa da minha
vida por besteira, por ter percebido a tempo o quanto o Henrique era certo
para mim, para nós, e por ele ter me perdoado.
Minha comanda vibra em cima da mesa, anunciando o meu pedido
pronto, mas antes que eu me levante para pegá-lo, Carina diz que vai buscar
para mim, para eu ficar sentada. Agradeço e pego o meu celular, para
conferir as mensagens, encontrando uma de Henrique.
Henrique: Posso te buscar no shopping? Tem um lugar que eu quero te
levar.
Eu: Posso saber onde?
Henrique: Não, surpresa.
Eu: Sabia que é maldade deixar uma grávida curiosa?
Henrique: Pensei que gostasse quando eu faço maldades com você.
Solto um sorriso.
Eu: Sabia que é maldade deixar uma grávida com tesão?
Henrique: Prometo que cuido muito bem de você mais tarde. Posso te
buscar?
Eu: Claro que sim, vida. Já vamos comer, então já, já estou livre. Estamos
na praça de alimentação.
Henrique: Já, já encontro vocês aí.
Henrique: Te amo, minha boneca.
Eu: Também te amo, vida.
— E esse sorriso enorme? — Guardo o celular, quando Carina coloca
a bandeja com a comida na minha frente. — Tem nome e sobrenome, né?
— Henrique vem me buscar depois daqui a pouco, então não precisa
me dar carona.
Com a barriga crescendo tanto, tem sido desconfortável dirigir, então
ele me levou para o yoga hoje, e Carina iria me deixar em casa, depois
daqui.
— Tá bem, vou aproveitar pra me trancar no meu estúdio e colocar
as almofadas no chão pra tirar um cochilo antes da minha turma das duas —
explica.
— Porque você não vai em casa? São duas quadras de distância só —
pergunto.
— Não vale muito a pena, consigo descansar tranquilamente lá no
estúdio. E essa noite eu espero dormir bem melhor.
Antes que eu possa responder, a sua comanda vibra e ela comemora,
se levantando para ir buscar o seu pedido.
Eu balanço a cabeça, sorrindo, e corto um pedaço da minha picanha,
gemendo quando a maciez da carne atinge a minha língua, se dissolvendo,
no ponto perfeito.
Antes que eu prove um pouco do acompanhamento, uma sombra se
forma na minha frente e eu estranho a rapidez com que ela voltou.
— Já? Você foi correndo? — pergunto, levantando a cabeça e
tomando um susto ao me deparar, não com a minha amiga, e sim com o
infeliz que doou o esperma para o meu bebê. — O que você tá fazendo aqui?
— Eu te vi de longe e tava esperando a sua guarda-costas sair de
perto — responde, se sentando na cadeira que Carina ocupava. — Esperei
sua ligação, mas não tive notícias. Você realmente seguiu com isso? —
Aponta para a minha barriga.
— Eu não tenho nada pra conversar com você, pode, por favor, me
deixar sozinha? — peço, olhando para os lados e tentando encontrar Carina,
mas não a vejo em canto algum.
O italiano fica do outro lado da praça, que agora está cheia demais
para que eu a enxergue.
— O que você pretende? Esperar esse moleque nascer pra vir pedir
pensão? Olha, eu já falei, você vai desgraçar a minha vida se fizer isso, a
gente pode resolver entre nós — insiste, me fazendo perder toda a fome.
— Você não tem nada a ver com o meu filho ou comigo. Eu não
quero te ver nunca mais e agradeceria se sumisse da minha vida, assim como
apareceu — respondo.
— Você diz agora, mas conheço o seu tipo, quando eu menos esperar
vai chegar a intimação de pensão e aí eu me fodo — afirma, irritado.
— Eu te pediria alguma coisa se você tivesse alguma relação com o
meu bebê, o que não é o caso. Você não é nada pra ele, nem pra mim, nem
nunca vai ser. Só me esquece, esquece que me viu naquele dia, esquece de
tudo. Meu bebê já tem um pai maravilhoso e não precisa de você pra nada.
Você foi só o doador de esperma, infelizmente, e isso eu não posso mudar.
Mas pode ter certeza de que eu não vou bater na sua porta pedindo nada,
nem vou contar pra sua mulher o crápula filho da puta com quem ela se
casou.
— Como assim, já tem pai? — pergunta, confuso, e então sorri,
balançando a cabeça. — Quem é o otário que você tá enganando por aí,
menina? Ele ao menos sabe que não é o pai desse bebê ou você tá torcendo
pra não vir parecido comigo?
Antes que eu responda, sinto duas mãos fortes segurando os meus
ombros, e uma voz grave e muito irritada responde por mim.
— O fato de você compartilhar algum resquício de DNA com esse
bebê não significa que você é o pai, coisa nenhuma — Henrique afirma,
fazendo o cara arregalar os olhos, em surpresa. — O pai dele sou eu, que o
amo e o escolhi para mim, assim como escolhi a Alice. Eles dois não
precisam de você pra nada, então pode voltar pro buraco do qual você saiu e
esquecer que eles existem. Garanto que nunca vai haver necessidade alguma
de qualquer merreca de pensão que você possa querer pagar.
— Você vai mesmo assumir um filho que não é teu? — ele pergunta,
surpreso, e percebo a forma que Henrique tensiona.
— Você é surdo, por acaso? Ele é meu filho, e ninguém nunca vai me
dizer o contrário.
— E se o moleque nascer preto? — questiona. — Acha que ninguém
vai desconfiar que não é teu, com esses olhos verdes?
— Se o meu filho puxar a você, infelizmente é a biologia e eu não
posso fazer nada além de amá-lo e defendê-lo de qualquer imbecil que fizer
um comentário babaca como você. Posso começar agora, se quiser. Preciso
só de um motivo pra enfiar um soco nessa tua cara deslavada. Me testa.
Me levanto, querendo evitar uma confusão em pleno shopping, e
espalmo a mão no peito de Henrique, enquanto com a outra seguro o seu
rosto, trazendo-o para me olhar.
— Vida, ele não vale a pena. Deixa ele pra lá — murmuro.
— Bom, se é assim, cada qual que viva com as suas burrices. Boa
sorte criando o filho dos outros, cara, atitude admirável — Guilherme
debocha, se levantando, e sinto todo o corpo do meu noivo tenso.
— Você tem dois segundos pra sumir da minha frente, antes de
precisar explicar pra coitada da sua mulher porque você chegou sem os
dentes em casa — ameaça, dando um passo para a frente.
O desgraçado coloca as mãos em rendição e sorri.
— Tranquilo, amigo, não se preocupe. Já que esse problema
aparentemente é seu, agora, vou seguir meu caminho. Estamos até saindo da
cidade, graças a Deus, então não vai mais correr o risco de cruzar comigo.
Lembro bem de ele me dizer que nem morava aqui em Santa
Consolação, mas dentre tantas mentiras, mais uma não faz diferença.
— Eu espero mesmo — Henrique responde. — Porque se eu te vir a
dois metros da minha mulher de novo, vou reconfigurar a tua cara, pode ter
certeza.
Guilherme não se abala, apenas sorri, e me olha de cima a baixo,
balançando a cabeça.
— Até nunca mais, Alice. Parabéns pela conquista — completa,
apontando para Henrique com a cabeça.
Ele ameaça avançar, mas eu apenas o seguro, pedindo que fique, e
abraçando a sua cintura.
Ele retribui o abraço, afundando o rosto nos meus cabelos e
suspirando, e ficamos ali por alguns segundos, até que uma voz nos
interrompe.
— Que porra que aconteceu aqui?
Me viro, para encontrar Carina parada na nossa frente, com a bandeja
de comida nas mãos, nos olhando confusa.
55 - Henrique

O para sempre nunca será tempo o suficiente para mim


Para sentir que já passei tempo suficiente com você
...
Case comigo. Hoje e todos os dias.
Marry Me - Train

Aquele arrombado, pau no cu do caralho.


Quando enxerguei Alice sentada na praça de alimentação,
acompanhada de um homem que nunca vi na vida, estranhei.
Me aproximei devagar, tentando entender direito o que estava
acontecendo, até que escutei os absurdos que estavam saindo daquela boca
nojenta.
Fodido, projeto de estrume, filho da puta, desgraçado.
Primeiro, por ter enganado a minha boneca, escondendo o fato de ser
casado, quando a conheceu.
Segundo, por ter enfiado aquele pau brocha dele na minha mulher.
E terceiro, por ter a audácia, a petulância, o atrevimento de se
aproximar da Alice e falar aqueles absurdos sobre o meu filho.
DNA, a minha rola.
O bebê da Alice é meu, assim como ela é minha, e não é esse otário
que vai vir dizer o contrário.
— Vida... — Escuto a sua voz doce, que ameniza um pouquinho do
meu ódio, mas não o suficiente para me fazer não querer caçar aquele bosta
e arrancar cada um daqueles dentes tortos da sua boca podre. — Amor — me
chama, colocando a mão no meu braço, e eu puxo o ar antes de encará-la. —
Você tá indo muito rápido. Por favor, desacelera — pede, baixinho.
Só então percebo que estou dirigindo a quase cem quilômetros por
hora, sem perceber, perdido na minha mente.
Tiro o pé do acelerador, pisando no freio devagar para diminuir para
uma velocidade razoável, e solto um suspiro, buscando a sua mão e
trazendo-a até os meus lábios.
— Desculpa, minha linda — murmuro. — Não quis te assustar.
— Tudo bem — responde. — Desculpa o que aconteceu.
Paro em um sinal e olho para ela, franzindo o cenho.
— Boneca, você não tem culpa de nada — afirmo. — Não se sinta
mal pelo comportamento daquele infeliz. Não estou aborrecido com você,
jamais pense isso, tá bem? Tô puto com a cara de pau daquele lixo humano
em se atrever a chegar perto de você.
— Acho que ele tava com medo de a mulher dele descobrir alguma
coisa, de eu pedir pensão ou algo do tipo — sugere, dando de ombros. —
Agora que descobriu que eu não estou sozinha, talvez ele desencane e me
esqueça. Tomara que saia da cidade mesmo.
— Ele que não se atreva a chegar perto de vocês de novo, que eu
perco o meu réu primário, boneca, juro — resmungo, fazendo-a sorrir e
acariciar os meus cabelos novamente.
— Que bom que você chegou logo — murmura, suspirando. —
Obrigada por me defender, meu príncipe.
Até estufo o peito, abrindo um sorriso enorme, antes de encará-la.
— Sempre vou proteger minha princesa linda — respondo.
Ela se espicha para beijar a minha bochecha, e depois se encosta no
banco do carona, deixando a mão apoiada na minha coxa.
— Pra onde estamos indo? — Suas palavras me fazem lembrar da
surpresa que eu preparei, e me dou conta de que nem fiz as coisas direito,
por causa do que aconteceu.
Pau no cu do inferno, quase estraga meus planos.
Dou o pisca e encosto o carro no acostamento, me virando para ela e
buscando a venda preta que deixei no porta-luvas.
— O que você vai fazer com isso? — pergunta, receosa.
— Não, amor, não vamos ter uma sessão de BDSM agora —
respondo, fazendo uma cara triste e arrancando uma risada dela. — Mas não
me oponho em te dar umas palmadas mais tarde, se você topar.
— Bobo. — Me dá um tapa leve no ombro. — Sério, o que é isso?
— É a minha surpresa, boneca. Você não pode ver antes da hora,
então vou te vendar. — Ela arregala os olhos brevemente, engolindo seco. —
Posso? — peço sua permissão antes de me aproximar, e então coloco o
tecido em cima de seus olhos, depois que ela assente, amarrando um nó não
muito apertado na sua cabeça. — Tá vendo alguma coisa?
— Não, nadinha — responde.
— Hum, jura mesmo? — pergunto, desconfiado. — Quantos dedos
eu tenho aqui? — Coloco três dedos na sua frente e ela bufa, dando um
safanão na minha mão.
— Não tô vendo nada, chato — resmunga, em meio a um sorriso. —
Anda, tô curiosa e pode fazer mal pro bebê.
Essa cartada sempre me ganha, e ela sabe disso.
— Dá um chute nela, filho, ela fica te usando assim, na cara dura.
Ela ri, empurrando o meu ombro, e eu dou o pisca, colocando o carro
em movimento novamente.
— Estamos muito longe? — pergunta.
— Você não vai fazer igual ao burro, né? Com aquele “a gente já
chegou”?[15] — Ela gargalha, balançando a cabeça. — Estamos chegando,
minha linda. Só mais alguns minutos.
Enxergo a entrada do condomínio do meu pai, que, muito em breve,
será também o nosso lar, se tudo der certo hoje.
Desde aquele almoço, do aniversário da Bibi, quando vi a casa dos
Moreira à venda, não consegui tirar a ideia de comprá-la para nós três. Na
segunda seguinte, liguei para a corretora e pedi informações sobre o imóvel
e sobre a venda, e também pedi ajuda do meu pai, para intermediar a
negociação com os donos.
Foram duas semanas tentando chegar em um acordo, porque, apesar
de querer muito comprar aquela casa, eu também sou um homem de
negócios e sei quando estou sendo enrolado, o que era exatamente o que o
casal estava fazendo.
A casa estava superfaturada, sendo oferecida por um valor quase
trinta porcento acima do valor real de mercado, e por isso já estava há dois
meses sem nenhum comprador interessado.
Primeiro tentaram vender sem corretora, por isso não tinha visto
placa antes, mas como não conseguiram, contrataram uma intermediária,
para negociar.
Ofereci dez porcento abaixo do valor de mercado, inicialmente, já
esperando uma contraproposta, que não demorou nada a surgir. Daí começou
um verdadeiro cabo de guerra, para ver quem cederia primeiro, mas eu fui
firme e, no fim, consegui comprar a casa por um valor razoável.
Fechei o negócio na última terça, e peguei as chaves ontem, com o
corretor.
Só preciso fazer a Alice se apaixonar do mesmo jeito que eu pela
ideia de vir morar aqui.
Paro na guarita, fazendo um sinal de silêncio para o guarda, antes que
ele me cumprimente, e aponto para Alice, murmurando um “surpresa” para
que entenda.
Como já vim visitar o imóvel esses dias, ele já está ciente da minha
nova aquisição, então apenas assente e pisca, desejando um boa sorte, e abre
o portão do condomínio.
Sigo o caminho rápido até a nossa nova casa e estaciono na frente da
casa, desligando o carro.
— Vou abrir a sua porta e te ajudar a sair. Nada de espiar, mocinha
— aviso, sorrindo ao ouvi-la bufar. Dou a volta no carro, abrindo a sua porta
e pegando na sua mão, auxiliando ela a sair do carro em segurança, e
trazendo-a comigo para a calçada, parando bem em frente à casa. — Pronta?
— Sim, posso tirar? — pergunta, animada, e eu sorrio, desfazendo o
nó da venda e liberando a sua visão. Ela pisca, para se acostumar com a luz,
e então franze o cenho, confusa, olhando para a casa. — O que...?
— Quer entrar? — questiono, estendendo a minha mão.
— O que viemos fazer aqui? — Seu tom denuncia que ela já
desconfia do que eu fiz, porque há uma certa insegurança, misturada com
esperança, que me faz sorrir.
— Achei que você fosse gostar de conhecer a sua nova casa — Dou
de ombros, como se não fosse nada, e seus olhos imediatamente umedecem,
sua mão descendo para a barriga, como se precisasse se firmar.
— O que você quer dizer com isso? — murmura a pergunta.
— Vamos entrar, boneca? — convido, recebendo um aceno tímido, e
logo sua mão está na minha, e eu dito o caminho até a porta de entrada.
Puxo as chaves do bolso e abro, fazendo sinal para que entre
primeiro, e ela o faz, receosamente. Seus olhos absorvem cada detalhe do
espaço, do piso de porcelanato fosco até as sancas de gesso do forro,
passando pela enorme luminária que delimita a sala de jantar, pela cozinha
de móveis planejados em MDF branco e azul, a bancada de quartzo branco
e, por fim, as portas francesas enormes, de quatro folhas, que dão visão para
a área externa, com piscina, jardim e uma área gourmet enorme.
— Henrique... — sussurra.
— Se você quiser, — começo, me colocando atrás dela e segurando
seus ombros — podemos mudar qualquer coisa. A cor das paredes, os
móveis da cozinha, até o piso, se quiser, apesar de que demoraria mais.
Pensei em trazermos o meu sofá, lá do apartamento, porque é bem grande, e
combinaria com o espaço, mas podemos comprar tudo novo se preferir.
— Eu... — balbucia, meio atônita, e então se vira para mim. — O
que foi que você fez? — pergunta, me fitando com aquelas esferas escuras
lindas.
— Eu comprei um lar para nós três, minha linda — respondo, e ela
ofega.
— Você comprou essa casa?
— Eu comprei essa casa — confirmo. — Podemos nos mudar
amanhã, se quiser.
— Henrique... — murmura, olhando ao redor. — Isso é loucura.
— Você ainda não entendeu que eu faria qualquer coisa nesse mundo
por você, meu amor? — indago, segurando o seu rosto. — Imagina nós três
aqui, linda. Eu, você e o nosso bebezinho, construindo um lar de verdade,
com espaço pra ele brincar, pra receber a família, os amigos — murmuro,
construindo a imagem do meu maior sonho, para que ela consiga enxergar.
— Espaço para dar irmãozinhos a ele — sugiro, levantando uma sobrancelha
e fazendo-a rir.
— Podemos ter um cachorro — completa, inundando o meu coração
da mais profunda felicidade.
— Podemos abrir um canil no quintal, se você quiser, boneca —
prometo, emocionado.
— Você comprou essa casa pra gente? — pergunta de novo, olhando
à sua volta, agora com um sorriso nos lábios.
— Eu comprei essa casa pra gente, minha linda — confirmo. — Você
quer vir morar nela comigo?
Ela me olha, segurando o meu rosto, e sorrindo.
— Eu iria até o fim do mundo com você, vida... — sussurra, e não
me aguento.
Me inclino e tomo sua boca em um beijo gostoso, o primeiro beijo
daquela casa, o primeiro de muitos, de uma vida inteira.
— Eu amo tanto você, Alice... — murmuro, em seus lábios, que se
esticam num sorriso.
— E eu te amo demais, Henrique — responde, suas mãos segurando
meus cabelos e me arrancando um gemido. — Mais do que eu pensei que
fosse possível.
— O suficiente pra se casar comigo? — pergunto.
Ela arregala os olhos, surpresa, e então me encara confusa.
— Óbvio que vou me casar com você, vida — responde, sorrindo.
Eu engulo seco e assinto, me afastando dela apenas o suficiente para
me ajoelhar na sua frente, admirando a forma como ela arqueja, colocando a
mão na boca, os olhos transbordando de emoção.
Seguro sua mão direita e brinco com o anel de noivado ali, aquele
que comprei para ela, no começo da nossa mentira, retirando-o de seu dedo.
— Eu comprei esse anel, na esperança de um dia substituí-lo com um
de verdade — murmuro, puxando a caixinha de veludo que peguei com
Benjamin mais cedo.
Pedi ao meu pai e aos meus irmãos permissão para usar o anel da
minha mãe com Alice, porque sei o quanto seria especial e o quanto ela
ficaria feliz com isso.
Benjamin se ofereceu para mandar limpá-lo, enquanto eu preparava
tudo, e agora estou aqui, com as mãos trêmulas e suadas, com o anel daquela
que sempre foi a mulher mais importante da minha vida, junto da minha
irmã, pronto para pedir a mulher que se tornou o meu mundo em casamento.
— Henrique...
— Desde o primeiro segundo que eu te vi, algo dentro de mim
mudou — começo. — Eu nunca acreditei em amor à primeira vista, porque,
pra mim, era muito difícil me envolver de verdade com alguém. Era preciso
conexão, e isso vinha de muita conversa, muito contato, tempo. Com você as
coisas foram diferentes. — Puxo o ar, com força e tento aguentar a emoção.
— Você agitou o meu coração desde a primeira tropeçada que deu, ao entrar
no meu escritório, toda nervosa.
Ela sorri, enxugando uma lágrima.
— Eu tava tão nervosa, precisava tanto daquela oportunidade.
— Nem me lembro direito do que perguntei na entrevista, só me
lembro de pensar que você era a mulher mais linda que eu já tinha visto, e
que eu precisava te conhecer melhor — continuo. — Quando percebi a
forma que você me afetava, tentei me afastar, conhecer outras pessoas,
porque era inapropriado, poderia dar uma grande merda. Mas você já tinha
se infiltrado tão fundo no meu coração, que eu não conseguia mais fugir. O
seu jeito doce, sua inteligência, sua humildade, tudo foi me deixando cada
vez mais e mais apaixonado e eu não conseguia escapar. E nem queria,
sendo sincero.
— Vida... — sussurra.
— Ouvir você dizer que estava grávida de outro me matou —
confesso, uma lágrima escorrendo pelo meu rosto. — Mas ainda assim, nem
isso foi suficiente pra me fazer pensar em desistir de você. Pelo contrário,
parece que o que eu sentia se multiplicou, porque agora existia outra pessoa
que também precisava do meu amor. Então eu inventei esse plano louco,
porque queria ter apenas uma oportunidade de te fazer enxergar o quanto nós
poderíamos dar certo, o quanto eu te amava.
Ela soluça, segurando a sua barriga com uma mão, enquanto a outra
permanece na minha.
— Eu escolhi você, naquele dia que tomei o telefone da sua mão e te
defendi, inventando aquela mentira — afirmo. — Eu escolhi vocês dois
quando te coloquei na minha casa e te dei tudo de mim, me deixando
vulnerável e à sua mercê, porque eu sabia que valeria a pena. E amor, —
sorrio — você vale tanto a pena. Eu quero passar o resto da minha vida te
amando e cuidando de você, construindo um lar sólido, uma família feliz,
cheia de amor, de companheirismo, de respeito. Eu quero criar esse bebê
com você, porque eu o amo tanto quanto te amo. Vocês dois são o meu
coração batendo fora do meu peito.
— Henrique... — sussurra, quando abro a caixinha e mostro o anel
cravejado de diamantes, de ouro rosê, que um dia adornou a mão da minha
mãe.
— Minha mãe com certeza aprovaria você, — afirmo, tentando
controlar a emoção — porque, assim como eu, ela conseguia enxergar o
coração das pessoas, a bondade, a pureza, o amor. Tudo o que eu enxergo em
você. Por isso, eu te peço, agora do jeito que você merece, por favor, minha
linda, case-se comigo. Me faz o homem mais feliz desse mundo e diz sim
pra mim. Me deixa te amar como um louco, e cuidar de você até o fim dos
meus dias. Casa comigo?
Nós dois somos um amontoado de lágrimas e sorrisos, quando ela
assente rapidamente, várias e várias vezes, incapaz de proferir uma palavra.
— Sim? Você aceita? — confirmo, colocando o anel, que cabe
perfeitamente em seu dedo.
— Claro que sim, meu amor, tudo o que eu mais quero é viver o resto
da vida com você — responde, soluçando.
Eu me levanto e beijo seus lábios com volúpia, gemendo quando ela
puxa meus cabelos e se pressiona toda contra mim, o máximo que a barriga
nos permite.
— Bem-vinda ao seu novo lar, minha boneca — murmuro contra
seus lábios, quando nos afastamos.
— Você é o meu lar, vida — responde, sorrindo.
E, incapaz de qualquer outra coisa, a felicidade inundando o meu
peito, eu apenas a beijo mais uma vez.
56 - Alice

Quanto mais cedo você deixar dois corações baterem juntos


Mais cedo você vai descobrir que é para sempre
Amor precisa de tempo, agora ou nunca
It’s Gonna Be Love – Mandy Moore

— Nervosa? — Henrique pergunta baixinho, enquanto me arrumo no


escritório de Bianca.
Depois de semanas de preparação, finalmente chegou o dia do
lançamento do meu livro. Até você chegar é o meu primeiro romance,
contando a história de Letícia, uma mulher de trinta e cinco anos, que
acabou de se divorciar, saindo de um casamento abusivo, em que era
maltratada e humilhada pelo seu marido, e que decide recomeçar em uma
nova cidade, longe de todo o passado.
Ao se mudar para seu novo apartamento, conhece Marcos, seu novo
vizinho, um rapaz onze anos mais novo, que a ajuda a lembrar novamente do
seu valor e como é ser desejada e valorizada.
É uma história bem intensa, de superação, de autoconhecimento e,
principalmente, de amor, na qual a lição principal é de não se prender às
regras e aos estereótipos impostos pela sociedade e sim dar valor ao que
mais importa: a sua própria felicidade.
Pensei que não fôssemos conseguir lançar antes da gravidez avançar
ao ponto de eu não conseguir estar aqui, mas Henrique, como sempre, fez de
tudo para que as coisas dessem certo e agora aqui estou, pronta para descer e
autografar os exemplares para uma fila de pessoas que já se formou lá fora.
Isso mesmo!
Eu tenho uma fila de pessoas interessadas em comprar o meu livro e
ainda pegar um autógrafo meu!
Não vou nem dizer quantas horas passei praticando a minha
assinatura nos últimos dias, mas pode ter certeza de que foram muitas.
— Ainda não dá pra acreditar — murmuro, me virando e
encontrando meu noivo.
— Pois acredite, boneca — ele responde, sorrindo e me segurando
pelos ombros. — Pedro fez uma campanha absurda com esse lançamento e a
fila tá bem grande lá fora. Bibi até acha que os brownies que o cabeludo fez
não vão ser suficientes, então ele tá lá, fazendo mais.
Solto um sorriso nervoso, piscando algumas vezes para esconder a
emoção.
— Eu já te agradeci? — pergunto, mesmo sabendo que sim, já
agradeci mil vezes a esse homem por tudo.
Mas nunca será o suficiente.
Henrique não só confiou em mim e no meu sonho, mas ele o tomou
para si, ele abraçou esse desejo como se fosse dele e fez de tudo para que
desse certo.
Todas as vezes que me senti insegura, que pensei em desistir, ele
estava lá, do meu lado, me dando suporte, me lembrando o quão talentosa eu
sou e me fazendo acreditar que as coisas dariam certo.
E aqui estamos.
— Já agradeceu mais do que o suficiente — afirma, afagando meu
rosto. — Agora vamos descer? A fila tá grande e daqui a pouco começam a
gritar lá embaixo, perguntando por você.
Sorrio, animada e nervosa ao mesmo tempo, e assinto, puxando a
respiração.
Ele me leva para baixo, e eu mantenho o sorriso no rosto, mesmo que
por dentro eu esteja em pânico, por ver tanta gente reunida por minha causa.
Bianca se aproxima, me dando um abraço e me levando para perto da
mesa que ela e Amanda organizaram para a tarde de autógrafos. Sinto
minhas pernas fraquejarem e duas mãos fortes me seguram por trás,
apertando a minha cintura. Ele deixa um beijo em meus cabelos antes de se
afastar e ficar na lateral, ao lado de Pedro, Benjamin e Carina, que também
vieram me prestigiar.
Seu Afonso e Isabel quiseram vir, mas ele está se recuperando de
uma virose, então preferiram não arriscar, pedindo desculpas.
Claro que não me importei. Meus sogros sempre me trataram com o
maior carinho e tomaram para si o espaço paternal que eu nunca tive, me
deixando muito feliz.
— Gostaria de um minuto da atenção de todos, por favor — Bianca
pede, cessando o falatório na livraria. — O lançamento de hoje é muito
especial pra mim. Não só por ser o primeiro livro da minha cunhada, mas
por ser o primeiro livro de uma autora talentosíssima, que tem potencial de
se tornar uma das mais vendidas desse país, e só precisava de uma
oportunidade para provar isso. Fico muito orgulhosa em fazer parte da
Lacerda, sabendo que você recebeu essa chance com eles, e tenho certeza de
que qualquer expectativa colocada nesse lançamento vai ser superada,
porque você é muito, muito boa.
Pisco, tentando controlar a emoção que me domina, e apenas
murmuro um agradecimento à ela.
— Agradecemos a presença de todos vocês, público fiel da Entre
Páginas, em mais esse lançamento aqui no nosso espaço — se dirige aos
presentes. — E, óbvio, que eu não posso perder a oportunidade de ser a
primeira a receber esse autógrafo.
— Segunda, hein, pouca-sombra. — Claro que o meu noivo não
poderia perder a oportunidade. — A primeira edição autografada está linda
no meu escritório, porque eu sou muito especial.
Algumas pessoas sorriem, e eu não me aguento, soltando uma risada,
porque esse homem é demais.
— Enfim, — Bianca continua, fazendo cara feia para o irmão, que só
dá de ombros — sejam muito bem-vindos à tarde de autógrafos do primeiro
livro de Alice Lacerda!
Uma salva de palmas preenche o ambiente, e eu sorrio, acenando
para os convidados.
— Antes de começarmos, — começo — eu só queria dizer algumas
palavras. — Ganho a atenção de todos e arranho a garganta, me preparando.
— Desde muito nova, eu sabia que queria viver no mundo das palavras.
Aprendi a ler muito cedo, apesar de não ser incentivada em casa, e encontrei
nos livros uma forma de escapar para mundos diferentes, melhores, mais
felizes. — Tento segurar a emoção, mas algumas lágrimas escapam. — O dia
de hoje é a realização de um sonho que, durante muito tempo, ficou
esquecido, por tanto ter ouvido que não seria capaz. Esse livro é resultado de
muita persistência, muito desejo e, principalmente, do apoio de uma pessoa
muito especial.
Cruzo o meu olhar com o dono do meu coração, e vejo a forma com
que ele parece também tentar se conter, os olhos avermelhados denunciando
o quanto minhas palavras o atingem.
— Meu amor, você não só acreditou no meu sonho, mas também me
fez acreditar em mim mesma — continuo, me dirigindo a ele, unicamente.
— Obrigada por tudo, por todo o suporte, por todo o investimento, por ter
me enxergado quando eu mesma não consegui. É por isso que eu dedico esse
livro a você e ao nosso filho, porque vocês dois são a minha força, a minha
perseverança e o meu norte. Obrigada por tanto, eu amo você.
— Também te amo, minha boneca — ele murmura, fungando, e mais
palmas eclodem pelo espaço, rompendo a nossa bolha.
Me sento, pegando o primeiro exemplar, das mãos da minha
cunhada, e assinando o segundo autógrafo da minha carreira.
Porque ele tem razão.
O primeiro é dele, e sempre será dele.
*
32 semanas de gestação.
— Agora abre o meu, vai — Carina coloca o embrulho na minha
mão, com um sorriso animado no rosto, que retribuo.
É domingo, e hoje decidimos convidar toda a família para um almoço
na nossa casa, o primeiro, desde que terminamos a mudança.
Bianca e Isabel deram a ideia de fazer um pequeno chá de bebê, para
não passar em branco, e logo se juntaram com a minha melhor amiga,
fazendo planos.
Arrumamos uma mesinha simples na área externa, com alguns doces,
cortesia de Joaquim, além do bolo, que Lúcia fez questão de fazer, e aqui
estamos, depois de almoçarmos uma carne assada deliciosa que meu noivo
providenciou, abrindo os presentes que todos trouxeram.
Somando nós dois, são apenas doze pessoas.
Bianca, Joaquim e Angélica.
Seu Afonso, Isabel, Lúcia e Benjamin.
Carina e a sua irmãzinha, Michele, que, graças a Deus, agora mora
com ela, depois da vitória na audiência.
E Pedro, é claro.
Sendo apenas doze pessoas, era de se esperar que tivéssemos poucos
presentes para abrir, certo?
Errado.
Parece conferir no trigésimo, e ainda tinha uma pilha encostada ao
meu lado, prontos para serem abertos.
Você pode pensar que talvez a minha amiga tenha comprado a
maioria deles, não é? Talvez meu sogro, animado com o primeiro neto. Ou
quem sabe a Bianca, que costuma ser bastante consumista.
Mas não.
O maior número de presentes não poderia ter vindo de outra pessoa
senão do meu amado noivo, que parece uma criança, tentando fazer o
carrinho de controle remoto funcionar, junto de Pedro.
Sim, você leu direito.
Ele comprou um carrinho de controle remoto para o nosso bebê.
Que ainda nem nasceu.
E uma bola de futebol.
E uma raquete de pingue-pongue.
Me pergunta quantas fraldas, cueiros, panos de boca e outras coisas,
realmente para bebês, ele comprou?
Sim, zero.
Balanço a cabeça, segurando um sorriso, enquanto abro mais um
presente, soltando um gritinho ao enxergar um body escrito namastê.
— Que coisa mais fofa, amiga! — digo, sorrindo.
— Claro que ele vai ser parceiro de yoga da madrinha, não há
dúvidas — responde, animada.
— Aliás, uma dúvida — Bianca nos interrompe, na hora que
Henrique e Pedro se aproximam novamente, suados de tanto brincar. — A
madrinha é você, já engoli essa — começa, apontando para a Carina — Mas
quem vai ser o padrinho do bebê?
Troco um olhar nervoso com o meu noivo, que coça a barba e solta
um pigarro.
— Então, — começo, olhando para a minha amiga — eu escolhi
você porque é minha melhor amiga e praticamente uma irmã, né? Então,
nada mais justo que... — Não consigo nem terminar, apenas apontando com
a cabeça para o homem alto parado ao lado do Henrique.
Mas, ao contrário do que eu esperei, não há surtos.
Não há reclamações, nem nada do tipo.
Pedro e Carina trocam um olhar entre si e sorriem.
Isso mesmo.
Eles sorriem.
Que porra que tá acontecendo?
57 - Henrique

Somos verso e poesia, outono e ventania, praia e carioca


Somos pão e padaria, piano e melodia, filme e pipoca
De dois corações, um só se fez
Um que vale mais que dois ou três
Dois Corações - Melim

— Boneca, eu ainda acho que a gente não deveria mais ir pra


empresa — murmuro, enquanto me ajoelho para calçar a sua sandália. — O
Pedro já se ofereceu pra cuidar de tudo, não vai ter problema ficar uns dias
em casa, já, já a gente entra em recesso mesmo.
Estamos findando a segunda semana de dezembro e Alice completou
trinta e oito semanas na última quarta.
Sua barriga está enorme, pontuda, pesada e absurdamente linda, e a
médica disse que, a partir de agora, a qualquer momento a bolsa pode
estourar e então nosso bebezinho estará aqui, em nossos braços.
Tudo já está pronto para a sua chegada.
Transferimos o seu quarto lindo do antigo apartamento para cá,
alocando-o no quarto que fica ao lado da nossa suíte, no segundo andar.
Mantivemos os mesmos móveis e decoração, porque, afinal, Alice gastou
todas as suas economias naquilo e seria um completo desperdício jogar tudo
fora, além de uma tremenda falta de respeito com ela.
E eu amo o nosso quartinho de dinossauros, porque é tão nosso e foi
pensado com muito amor pela minha noiva.
Minha noiva.
Alice é oficialmente minha noiva, de verdade, há mais de dois meses
e isso ainda me parece meio surreal. Aliás, os últimos oito meses têm sido
bem inacreditáveis, e eu, às vezes, tenho certa dificuldade para acreditar que
essa é a minha vida agora.
Uma casa enorme e cheia de vida.
Uma noiva linda, o amor da minha vida, com quem eu venho
sonhando há mais de dois anos.
E, para fechar, um neném lindo e saudável, que vai completar a nossa
família perfeita.
— Vida, eu tô bem — ela responde, com um suspiro. — A previsão
do parto é pra daqui duas semanas, vai dar tudo certo. Nós temos que
terminar aquele contrato com a fornecedora de papel e ainda tem duas
reuniões de renovação com os autores do primeiro semestre. Eu preciso
fechar com a equipe de marketing as estratégias do novo lançamento da
Fernanda e ainda tem o César, que quer conversar comigo sobre uma
possível tradução do meu livro pro inglês — dita as tarefas pendentes, como
uma empresária fodona, e eu sinto meu pau endurecer nas calças.
Eu sempre atribui mais do que tarefas de uma simples secretária para
Alice.
Mas desde que ficamos juntos, eu comecei a inserir cada vez mais
responsabilidades no seu dia a dia dentro da empresa, afinal, a minha
intenção é apenas uma: torná-la dona daquela porra toda, assim como ela já é
dona de mim, para que me ajude a alavancar ainda mais a Lacerda e
multiplicar o nosso patrimônio.
Deixei isso bem claro para o meu pai e para meus irmãos, quando
pedi o anel da mamãe.
Alice será dona daquela Editora, ao meu lado, tendo o mesmo poder
e a mesma voz, no que depender de mim.
Papai apenas me perguntou se eu tinha certeza, e então aprovou.
Meus irmãos, que nunca se interessaram pela Lacerda e só não
abriram mão de suas partes porque eu não deixei, só me desejaram boa sorte
e se dispuseram a ajudar no que fosse necessário.
Não sei se Alice já percebeu alguma coisa, mas ela tem tirado de letra
todas as missões que eu coloquei em suas mãos, como eu já sabia que
aconteceria.
Além de, é claro, gerenciar a sua carreira de escritora.
O lançamento do seu primeiro livro foi um verdadeiro estouro, e a
primeira tiragem de cinco mil cópias esgotou duas semanas. Já estamos na
terceira tiragem, e minha boneca anda nas nuvens com toda a repercussão.
Até entrevista ela já deu, toda linda, com um barrigão perfeito e um
sorriso do tamanho do mundo, tímida e orgulhosa de si.
E, claro, eu estava lá, nos bastidores, torcendo por ela, comemorando
tudo, como seu fã número um.
Segundo o contrato que fechamos com ela, o seu segundo livro será
lançado daqui oito meses, e eu sei que ela já começou a rabiscar algumas
coisas, apesar de não ter me mostrado nada, nem mesmo com a minha
carinha de cachorro que caiu do caminhão da mudança.
— Você promete pra mim que, a qualquer sinal de dor, de
desconforto, você vai me avisar? — peço, abotoando o outro lado da
sandália, antes de ajudá-la a se levantar.
— Henrique, eu vivo com dor e desconfortável. Tem um bebê de
quase três quilos na minha barriga — responde, revirando os olhos. — Mas,
— começa, me interrompendo quando eu vou retrucar — eu prometo que se
sentir algum sinal de contração, você será o primeiro a saber. — Cerro os
olhos, desconfiado, e ela sorri. — É sério. Só mais uma semana, amor. Aí
entramos em recesso de Natal, e o bebê vem, dentro do prazo, do jeito que a
gente planejou, tá bem? Vou ter quatro meses de licença aí pra descansar,
não me importo de trabalhar mais um pouco.
— Você nem precisa voltar a trabalhar com quatro meses e sabe disso
— replico, ouvindo o seu bufar.
— Eu sei, e nós já conversamos sobre isso — diz, vestindo o blazer.
— Eu não vou ser mãe dona de casa, quero continuar trabalhando e me
sentindo útil. Não é porque você é rico que eu vou me aproveitar disso.
— Em primeiro lugar, nós somos ricos, não eu, senhora Alice
Lacerda — digo. — Só não fomos no cartório ainda porque você não quis,
por mim você já era minha esposa de papel passado. E segundo, — continuo,
antes que me interrompa — eu sei que você vai continuar trabalhando.
Nunca pensei o contrário e te admiro ainda mais por isso. Só digo que, caso
você deseje aproveitar um pouco mais o nosso bebê em casa, você tem esse
direito e essa opção. Mas é uma escolha sua, e apenas sua. Eu vou te apoiar
no que quer que decida.
— Eu sei que sim, vida — murmura, se espichando para me dar um
beijo.
— Sabe, — começo, colocando o meu paletó — nós temos que
escolher um nome pra ele. A gente só chama ele de bebê.
Ela morde o lábio, pensativa, pegando sua bolsa.
— Eu tava pensando nisso esses dias — murmura. — Tive umas
ideias, queria a sua opinião. E suas ideias também...
— É mesmo? Pois diga, no que você pensou? — pergunto, ajudando-
a a descer as escadas.
— Pensei em Bernardo — sugere, me olhando de esguelha. —
Felipe, também.
— Hum, eu tive um ex-amigo chamado Bernardo, que me deu um
chute na canela porque eu não quis emprestar meu robô do Max Steel, não
quero não — respondo, lembrando do catarrento invejoso que foi nosso
vizinho durante a minha infância. — E Felipe é nome de pau no cu.
— Henrique! — exclama, ao chegarmos na porta.
— É sério! — argumento. — Teve um Felipe que furou o olho do
Pedro na faculdade, ficando com a menina que ele tava a fim. E outro que
tentou plagiar minha dissertação de mestrado na cara dura, e ainda quis me
denunciar para a faculdade, alegando perseguição. Não, não, meu filho não
vai ter nome de talarico golpista de jeito nenhum.
Alice solta uma gargalhada, enquanto entra no banco do carona, e eu
coloco o seu cinto.
— Tá bem, tá bem, sem nome de talarico escroto pro nosso bebê —
concede, quando entro no carro e o ligo. — Que tal Davi?
Crispo os lábios, pensando um pouco e dou um pequeno aceno.
— É, pode até ser, mas não tô convencido ainda.
— Tá, senhor exigente, — começa, se ajeitando de lado para me
olhar. — Qual a sua sugestão então? Só sabe detonar minhas opções, quero
ver o que você pensou.
Sorrio um pouco, parando para pensar.
Tenho algumas ideias em mente, e já filtrei algumas, mas não
consigo realmente decidir a que seria melhor.
— Gabriel?
— Nome de criança travessa — corta, de imediato.
— Como é? — pergunto, com uma risada.
— É verdade! — defende. — Pode perguntar pra qualquer
professora, Gabriel é nome de criança atentada. Mateus também.
Pior que essa era uma das minhas opções.
— Ok, sem Gabriel e sem Mateus — concedo. Penso mais um
pouco, pegando a via expressa para o centro, rumo à Editora. — Que tal
Lucas? — sugiro.
Ela não me responde de imediato e eu viro a cabeça para observá-la,
ao parar em um sinal, e sorrio com o jeito que ela morde o lábio, pensativa.
— Eu gosto de Lucas — murmura. — O que significa?
— Não faço ideia, minha linda — respondo, sincero.
Ela puxa o telefone e começa a digitar, na certa abrindo a aba de
busca para pesquisar.
— Ah, vida, significa “aquele que ilumina” — sussurra, encantada.
— Lucas Lacerda — testa o nome, fazendo uma pequena careta.
— O que foi? Não gostou? — pergunto, confuso.
— Não sei, não encaixa muito legal na minha cabeça. Lucas Lacerda
— repete, baixinho. Ela digita mais um pouco no telefone, mordendo aquele
lábio tentador, e quando estaciono na minha vaga, na Editora, solta um
pequeno arquejo. — E se fosse Lucca Lacerda? Com dois ces. Tipo italiano,
sabe?
— Você já pegou algum italiano? — pergunto, fazendo-a gargalhar.
— Não! Só acho bonito — explica. — Imagina. Lucca Lacerda.
Murmuro, testando o nome em meus lábios, e não consigo conter um
sorriso.
Lucca Lacerda.
Parece nome de gente importante, né?
Nada mais digno para a pessoinha mais importante da minha vida,
junto com a mãe dele.
— Decidimos, então? — confirmo, e ela assente, feliz. Coloco
minhas mãos na sua barriga, sentindo ele se mexer imediatamente. — Já vi
que você gostou, né, filhão? Chega logo, meu Lucca. Mal posso esperar pra
te ter em meus braços.
Me inclino e deposito um beijo, bem no local em que ele se mexe, e
me levanto, para beijar os lábios daquela que me proporcionou tamanha
alegria.
Alice e Lucca.
Meus dois grandes tesouros, minhas maiores conquistas.
58 - Alice

Mas não há tempo suficiente, e não há música que eu possa cantar


E não há combinação de palavras que eu possa dizer
Mas eu ainda posso te dizer uma coisa
Nós somos melhores juntos
Better Together – Jack Johnson

— E, pronto — digo, enviando o último e-mail da minha lista de


afazeres.
— Já? Podemos ir pra casa então? Vai sossegar essa sua bunda
gostosa até o Lucca nascer? — Henrique pergunta, contrariado, parado ao
lado da minha mesa.
Sorrio, desligando o meu computador e me levantando com certa
dificuldade, a barriga enorme de nove meses e meio me tirando quase toda a
mobilidade.
Sim.
Isso mesmo.
Nove meses e MEIO.
Mas, Alice, a gravidez não dura nove meses?
Era o que eu também pensava, mas não.
Não, não mesmo.
São DEZ. FUCKING. MESES.
Isso mesmo.
Você está pensando em engravidar? Pois, boa sorte. Prepare-se para
virar uma foca, sem conseguir enxergar os seus pés e com dor nas costas o
tempo inteiro.
Mas, estamos na reta final.
Domingo é véspera de Natal, então estamos entrando em recesso
hoje, até depois do ano novo. Não que eu vá voltar para cá em janeiro.
A previsão do parto do meu Lucca é na próxima quarta, quando ele
completa quarenta semanas. Eu realmente pensei que ele não fosse demorar
tanto, já que desde a semana passada venho sentindo contrações de
treinamento, para o completo terror do meu querido noivo.
Preciso mentalizar o quanto o amo pelo menos umas vinte vezes ao
dia, senão, já tinha afogado ele na banheira.
— Sim, meu amor — respondo, segurando seu rosto e dando um
beijo no seu bico emburrado. — Pode me levar pra casa e me amarrar na
cama, se quiser.
Ele levanta uma sobrancelha, me dando um sorriso sacana, e segura a
minha cintura.
— Hum, isso me dá várias ideias, boneca — murmura.
— Pelo amor de Deus, Henrique, eu tô do tamanho de uma porta —
replico, indignada e ao mesmo tempo divertida com a sua safadeza.
— A porta mais linda e gostosa desse mundo — responde, me dando
outro beijo.
Sorrio contra seus lábios e balanço a cabeça, pegando meu blazer,
enquanto ele pega a minha bolsa.
— Tô com vontade de tomar sorvete, o que acha? — sugiro,
enlaçando seu braço no meu, e ele aperta o botão do elevador.
— O que minha noiva quer, minha noiva tem — decreta, solene.
— Se é assim, eu quero uma viagem pra Paris e duas bolsas da
Chanel, por favor — debocho, entrando na caixa metálica.
— Que cores? — pergunta.
— Ãh? — Meu cérebro de grávida não me permite entender direito.
— Das bolsas, boneca — explica. — Que cores? A viagem vai ter
que esperar um pouco, por causa do Lucca.
— Pelo amor de Deus, Henrique, eu tô brincando! — exclamo,
batendo em seu peito. — Você não se atreva a gastar vinte mil numa bolsa
que eu te coloco pra dormir no sofá.
— Credo, linda, nem brinca com uma coisa dessas — murmura,
fazendo bico.
Rio do seu drama e me encosto no seu peito, enquanto não chegamos
no estacionamento. Ele me abraça por trás, segurando a minha barriga com
as duas mãos e me tirando um pouquinho do peso incômodo.
Cada dia tem sido mais difícil me locomover e Henrique tem
ajudado, sempre que pode, a aliviar as coisas para mim.
Desde fazer massagens nos meus pés todas as noites, até não me
deixar me levantar para pegar um copo de água que seja, esse homem tem se
provado a minha melhor decisão, nos últimos meses.
Além tudo isso, ainda continua na sua missão de me fazer sentir a
mulher mais gostosa do mundo inteiro, me elogiando, me desejando e
estando pronto para satisfazer cada grama do meu tesão de grávida, quase
todos os dias.
Não que isso venha sendo muito comum nas últimas duas semanas.
Com o avanço da gravidez e o tamanho da minha barriga, as coisas
se tornaram um tanto desconfortáveis para mim, no quesito sexo, e, claro,
Henrique percebeu.
Eu tentei continuar com o mesmo apetite, procurando-o todas as
noites, antes de dormir, grande em parte por causa das coisas absurdas que a
minha mãe colocou na minha cabeça naquela noite horrível.
Poxa, tínhamos acabado de noivar, se eu já ficasse negando as coisas
agora, logo, logo ele iria enjoar de mim. Certo?
Errado.
Mais uma vez, Henrique me fez enxergar o quanto ele é perfeito,
porque percebeu, muito rápido, as vezes em que eu o procurava sem
realmente ter vontade de transar, só para cumprir um senso absurdo de
obrigação que existia na minha cabeça.
Depois de me dizer que era até uma ofensa contra ele, eu achar que
ele me trocaria por me sentir desconfortável em me relacionar sexualmente
com ele, grávida de nove meses, ele me fez ver que nós dois somos um
casal, e que devemos ser parceiros e evitar qualquer mentira que possa nos
prejudicar, mesmo que a desculpa seja proteger os sentimentos do outro.
Ele enfatizou que, se eu quiser e se sentir desejo, ele sempre estará
pronto para me amar de corpo e alma, porque é louco por mim, e a gravidez
só o deixou ainda mais apaixonado e desejoso. Mas que só aconteceria
assim, e não por eu achar que devo fazer algo para agradá-lo.
Me diz se não é um príncipe?
Desde então, transamos umas duas vezes, apenas, porque eu
realmente fiquei louca de tesão nele e estava me sentindo bem, e óbvio que
foi incrível, como sempre.
Saímos do elevador e seguimos para o nosso carro, minha mente já
conjurando a imagem de um sundae bem cremoso e com bastante calda de
chocolate, até que eu sinto um líquido escorrendo pela minha perna,
molhando os meus sapatos.
Travo no lugar, segurando a mão de Henrique, e arregalo os olhos.
— Amor — murmuro, completamente em choque.
— O que foi, boneca? — pergunta, meio distraído, procurando a
chave do carro nos bolsos. — Tá sentindo alguma c-
Ele paralisa, olhando para a poça de água aos meus pés, e fica mudo.
— Vida? — chamo por ele, mas ele não esboça qualquer reação,
ainda com o olhar vidrado nos meus pés. — Henrique! — Aumento o tom de
voz, e isso parece estalar alguma coisa nele, porque ele se aproxima e passa
o braço por debaixo das minhas pernas, me levantando no colo, e segue para
o carro, com pressa. — Ei, espera, eu vou molhar o banco.
Ele me olha, como se não acreditasse no que eu acabei de dizer, e
sinto minhas bochechas esquentarem.
— Foda-se o banco, boneca, o nosso filho vai nascer! — exclama.
Suas palavras se registram lentamente na minha cabeça, durante o
tempo que ele coloca o meu cinto e fecha a porta, dando a volta no carro e
entrando no carro do motorista.
— Você tá sentindo dor? — pergunta, ligando o motor e seguindo
para fora do estacionamento, no sentido oposto ao da sorveteria e direto para
o hospital.
— Não — murmuro baixinho, ainda em transe.
— Você tá bem? — questiona de novo. — Amor, por favor, fala
comigo. Você tá bem?
— Henrique, nosso bebê vai nascer — respondo, me virando para
ele, com lágrimas nos olhos.
Ele pisca, engolindo seco, e balança a cabeça, tão emocionado
quanto eu.
— Vai, boneca — ele sussurra, segurando minha mão e levando-a até
seus lábios. — Nosso bebê vai nascer.
*
— O senhor não pode estacionar aqui! — um funcionário do hospital
diz, quando Henrique para de qualquer jeito na calçada, depois de correr
feito um louco para cá.
Há uns dez minutos, comecei a sentir as contrações e, meu Deus do
céu, nem se comparam às de treinamento, viu?
Ô troço que dói como um inferno!
Dei um berro no carro quando a primeira me atingiu, e Henrique
quase nos joga para fora da pista, no susto.
De lá pra cá foram duas contrações, com um intervalo de pouco mais
de quatro minutos entre elas, o que me diz que estamos mais avançados do
que eu imaginava.
— Guincha essa merda, foda-se — meu noivo resmunga, abrindo a
minha porta e me ajudando a descer. — A minha mulher vai parir, tu acha
que eu vou atrás de vaga?! — O rapaz o encara, sem saber o que falar, e
Henrique me ajuda a caminhar até a entrada do hospital, bem a tempo de
uma terceira contração me atingir com força o suficiente para eu perder as
forças nas pernas.
— Ai, meu Deus! — exclamo, chorosa, e Henrique me segura no
colo de novo, entrando como um raio na recepção do hospital.
— A minha mulher vai parir! Eu preciso de um médico!
Acho que até os médicos que estão de folga, no sofá das suas
respectivas casas, ouviram o grito que esse homem acabou de dar, mas eu
estou sentindo tanta dor que nem me importo e só grito junto dele, quando
mais uma me atinge.
Meu Deus, já se passaram quatro minutos? Esse negócio está
aumentando rápido demais.
— Aqui, senhor, coloque ela aqui — uma enfermeira se aproxima,
empurrando uma cadeira de rodas.
— Não é melhor uma maca, não? — ele pergunta, nervoso. — Onde
vai ser o quarto dela? Me diz que eu carrego ela até lá.
— Henrique, me coloca na merda da cadeira e liga pra doutora
Rebeca! — exclamo. — Esse bebê tá com pressa e ela tem que chegar aqui a
tempo!
— Tá bom, doutora, sim, ligar, doutora — murmura, me colocando
na cadeira. — Celular, ligar, doutora.
Pronto, eu quebrei o homem.
— Vida — chamo por ele, segurando sua mão. Ele me encara, de
olhos arregalados, e eu tento sorrir em meio a dor. — Respira, por favor.
Ele puxa o ar com muita força, seus olhos parecendo mais focados à
medida que o oxigênio chega em seu cérebro.
— Ele vai nascer, Alice — sussurra, as lágrimas escapando de seus
olhos.
— Vai, querido — respondo baixinho. — Nosso Lucca vai nascer. —
Uma contração começa, me fazendo curvar e apertar a sua mão com força.
— Agora liga pra porra da médica. E pra nossa família.
A enfermeira começa a me empurrar para dentro do hospital, e eu
escuto Henrique murmurando de novo palavras sem sentido sobre ligar,
doutora e família.
Solto um sorriso e fecho os olhos, tentando me acalmar.
Finalmente, chegou a hora.
Coloco a mão na barriga, acariciando meu pequeno pedacinho do
céu.
— Mamãe tá pronta, amor — sussurro. — Pode vir.
59 - Henrique

Quando você der sua primeira respiração


Eu serei o primeiro a testemunhar
Quando você abrir os seus olhos
Eu agradecerei a Deus por estar vivo
Heartbeat – James Arthur

— Ah! Puta que pariu! — Alice choraminga, se entortando toda na


maca, com a força da contração.
— Alguém faz alguma coisa! — exclamo, apavorado, encarando a
equipe de enfermeiras. — Dá uma anestesia nela, pelo amor de Deus! Olha
como ela tá sofrendo!
Eu estou quase enlouquecendo com a imagem da minha boneca
chorando desse jeito. Faz uns quinze minutos que fomos alocados nesse
quarto e, desde então, Alice já teve umas quinhentas contrações, cada uma
mais dolorosa que a outra.
Tá, talvez, eu esteja exagerando.
Não foram quinhentas.
Foram quatrocentas e noventa e nove.
— Senhor Lacerda, a obstetra da sua esposa está chegando no
hospital e nos pediu para aplicar a anestesia peridural quando o intervalo
entre as contrações chegar a três minutos. Vamos aguardar a próxima
contração, mas acredito que estamos na hora certa e já, já a mamãe não vai
mais sentir tanta dor, tudo bem? — a enfermeira me explica, naquele tom
calmo que elas, com certeza, praticam durante a faculdade.
Deve ter uma disciplina chamada Como Tranquilizar Um Pai
Aterrorizado Durante O Parto Do Seu Primeiro Filho no curso de
Enfermagem.
Certeza.
Se eu não me engano, deve ser lá pelo quarto semestre.
— Eu tô bem, vida, fica calmo — Alice murmura, respirando fundo,
depois que a contração termina.
— As contrações estão progredindo dentro do esperado e a mamãe já
está com sete centímetros de dilatação, então o meninão de vocês vai chegar
muito em breve, não se preocupem. O monitor nos diz que os batimentos
dele estão normais, e não há qualquer sinal de sofrimento fetal — uma outra
enfermeira se aproxima, passando um pano molhando na testa de Alice. —
Tenha calma, papai, não vá desmaiar e perder o nascimento do seu filho —
brinca, arrancando uma risada de Alice.
— Sabia que eu apostei com os seus irmãos? — ela murmura,
ofegante.
— Como é? — pergunto, indignado, ao pegar o pano da mão da
enfermeira e começar a passar pela testa e pela nuca da minha boneca. —
Explica essa história direitinho, dona Alice.
— Bianca apostou que você vai desmaiar quando o bebê começar a
sair — conta, sorrindo. — E o Benji apostou que você vai chorar tanto que
vão precisar te sedar.
As enfermeiras começam a rir e eu encaro essa traíra, incrédulo.
— E qual foi a sua aposta, hein, mocinha? — indago.
— Que você ia chorar mais alto que o nosso filho e depois se
estatelar no chão como uma manga podre — responde, divertida.
— Mas é muita trairagem, minha própria mulher e meus irmãos —
resmungo. — E eu aqui, cuidando de você. Tá vendo só, como vocês são
injustos comigo? Mas deixa, eu vou pegar aquela gnomo de jardim e aquele
príncipe da Disney aposentado, vou me vingar, você vai ver. E você, senhora
Lacerda, — murmuro, me aproximando para beijar seus lábios — com você
eu me acerto depois.
Seu rosto se contorce em mais uma careta e eu aperto sua mão,
quando ela chora de dor, se contorcendo toda.
Cadê a porra da injeção?
— Fiquei sabendo que tem um rapazinho muito apressado pra vir ao
mundo por aqui — a doutora Rebeca comenta, entrando na sala, vestida com
seu jaleco.
— Ah, graças a Deus, doutora, aplica essa anestesia nela, por favor,
ela tá sofrendo demais, tadinha — imploro, recebendo um sorriso em
resposta.
— Se acalme, papai, deixa eu examinar essa mamãe primeiro, ok? —
pede, se sentando em um banquinho na frente do leito de Alice e vestindo
um par de luvas. — Vou fazer o exame de toque, tudo bem, Alice? — A
minha boneca resmunga uma concordância, fraca demais para falar. — Com
licença. — Ela enfia a mão debaixo da roupa hospitalar da Alice e cutuca,
arregalando os olhos de um jeito que me deixa ansioso. — Opa, parece que
não teremos tempo de aplicar a anestesia, não. Qual o intervalo? — pergunta
para as enfermeiras.
— Estavam em quatro minutos, mas a última foi com menos de três.
Já estávamos preparando a peridural — ela explica, e Alice solta um grito,
apertando a minha mão com força o suficiente para machucar. — Essa agora
foi com menos de dois minutos.
— E ela já está com dez centímetros de dilatação e o bebê está
coroando — a médica conclui. — Não vai dar tempo de anestesiar, mesmo.
— Ah! Eu tô sentindo vontade de empurrar — Alice exclama, se
curvando em mais uma contração, quase que imediata a anterior.
— Meu Deus, isso tá muito rápido! É normal? Eu li que tem
trabalhos de parto que duram mais de um dia! Faz uma hora que a bolsa dela
estourou! — pergunto, aflito.
— Alice, você não vinha sentindo nenhum sinal? Nenhuma
contração? — a médica pergunta.
— Eu pensei que eram de treinamento — explica, e eu arregalo os
olhos.
— Você escondeu de mim! — acuso.
— Eu pensei que eram de treinamento! — repete, me fuzilando com
o olhar. — Hoje de manhã eu senti elas mais fortes, mas ainda assim, não
pensei que fosse pra valer. Ainda falta quase uma semana.
— A partir da trigésima oitava semana, o parto é iminente, Alice — a
doutora Rebeca responde. — Você está em trabalho de parto há horas e a reta
final está sim, sendo mais acelerada que o normal, mas ainda está tudo bem,
sem qualquer indício que indique alguma preocupação.
— Ah! Eu quero empurrar! — Alice se curva, exclamando quando
outra contração a atinge.
— Segura só um pouquinho, Alice. Na próxima, ok? — a obstetra
pede. — Preparem tudo que esse bebê tá com pressa — ela se dirige às
enfermeiras, que começam a arrumar uma série de equipamentos na sala,
andando de um lado para o outro.
— Se o senhor quiser, eu posso filmar o parto, pra não se preocupar
com isso e aproveitar o momento — uma enfermeira mais jovem oferece,
com um sorriso gentil.
— Ah, sim, por favor. — Não estava nem lembrando disso, então
agradeço e lhe entrego o meu celular, com a câmera ligada.
— Henrique, pode apoiar as costas da Alice pra que ela se concentre
em empurrar — a médica orienta e eu me aproximo da minha boneca, me
sentando na beira do seu leito e abraçando-a por trás, apoiando as mãos nos
seus ombros.
Ela deita a cabeça em mim, exausta, e eu abaixo a cabeça para beijar
seu pescoço, aproximando meus lábios do seu ouvido.
— Você é a mulher mais forte desse mundo — sussurro. — A mais
linda, a mais perfeita, a minha maior conquista. Eu morro de orgulho de
você, meu amor, orgulho de te chamar de minha, orgulho de construir uma
família com você. Agora traz o nosso filho ao mundo, eu sei que você
consegue. Você consegue tudo, Alice.
Ela soluça, apertando minhas mãos e assentindo, no exato momento
em que a médica arruma um lençol sobre suas pernas e as dobra, liberando a
passagem do nosso bebê.
— Na próxima contração, Alice, empurra.
Minha boneca solta uma exclamação, tensionando todo o seu corpo e
fazendo força, e eu a seguro, dando o apoio que ela precisa, murmurando
palavras de afirmação em seu ouvido e enxugando sua testa.
— Mais uma vez, Alice, estamos quase lá, empurra! — a médica
pede, e Alice obedece, demonstrando uma força sobre-humana, em um
momento que eu sei que ficará para sempre marcado na minha memória.
Ela é pura força, pura determinação, puro instinto, e eu entendo, bem
aqui, que ela será a melhor mãe desse mundo, que fará de tudo pelo nosso
menino, e que eu sou um sortudo do caralho.
Se eu já não fosse tão apaixonado e rendido, ficaria agora, nesse
instante.
Chega um momento em que a sala fica silenciosa, quando a última
contração termina, apenas o som da respiração pesada de Alice preenchendo
o ambiente, e então eu o escuto.
Sabe aqueles momentos em que você sente que a vida muda?
Aqueles momentos únicos, que você sabe que alterarão toda a sua
essência, quem você é? Momentos esses que são raros, que às vezes passam
sem a gente notar, mas que modificam tudo, te transformam?
O instante em que o choro do meu filho atinge os meus ouvidos, eu
sinto como se nada do que eu já vivi tivesse qualquer sentido ou importância
antes de agora.
Parece que o mundo era preto e branco, e, quando o meu Lucca deu o
seu primeiro sinal de vida, as cores mais lindas e vibrantes explodiram,
colorindo tudo, transformando tudo, trazendo vida e felicidade.
— Henrique... — Alice murmura, soluçando por entre sorrisos
incrédulos, e eu sei que não estou diferente.
— Você conseguiu, meu amor — sussurro, chorando. — Você trouxe
o nosso menino para nós.
As enfermeiras se aproximam, ajudando a médica a trazer nosso bebê
para os braços de Alice, antes mesmo de cortar o cordão que une ambos,
como ela pediu durante nossas últimas consultas.
— Aqui está, papai e mamãe — ela sussurra, colocando Lucca no
peito de Alice, que afastou a sua veste hospitalar, para ter contato pele com
pele. — Conheçam o seu menino lindo.
— Boneca... — eu murmuro, me abaixando para enxergá-lo melhor.
Mesmo nojento, envolto numa gosma, e com uma carinha de joelho,
todo irritado e chorão, mesmo assim, ele é a coisa mais linda que meus olhos
já viram.
É o bebezinho mais perfeito do mundo.
Meu.
Meu e dela.
Dessa mulher incrível, que agora cantarola baixinho, uma melodia
que acalma o nosso chorãozinho imediatamente, até que ele começa a abrir e
fechar a boquinha buscando por algo.
— Olha o safado, mal nasceu e já tá querendo os meus peitos —
murmuro, fazendo Alice tremer em uma risada silenciosa.
— Você perdeu, meu amor — ela responde baixinho, arrumando o
bebê em seu colo e ajudando-o a encontrar o seu mamilo. — Agora esses
peitos são propriedade exclusiva dele.
O danadinho abocanha o mamilo, como se não comesse há dez anos
e não há dez segundos, e suga o seu alimento, apoiando a mãozinha na curva
do seio de Alice.
— Vamos ter uma conversinha sobre compartilhar mais tarde,
mocinho — sussurro, acariciando a sua cabeça com os meus dedos. — Se
vier com egoísmos, vai ser quebrar o recorde de criança que ficou de castigo
mais rápido na vida. Pode entrar até no Guiness Book.
Alice solta uma risada, balançando a cabeça para mim.
— Não sei porque eu ainda me impressiono com você — diz.
Eu sorrio, afastando os seus cabelos suados e afagando seu rosto.
— Você nunca esteve tão linda, sabia? — murmuro, me inclinando
para beijá-la. — Você acabou de me fazer o homem mais feliz do mundo,
minha boneca. Obrigada.
— Obrigada por nos escolher — ela responde, emocionada.
— Eu acho que nunca foi uma escolha — comento, observando as
duas pessoas mais lindas do mundo. — Vocês sempre foram o meu destino,
eu sinto isso.
— Eu te amo, Henrique Lacerda.
— E eu te amo, Alice Lacerda — respondo, beijando-a. — E você
também, meu menino. Te amo com tudo que há em mim.
Traço os seus dedinhos com o meu indicador, ofegando quando ele,
sem soltar o seio da sua mãe, agarra o meu dedo com força, me segurando
ali, e eu acho que nem o soco mais forte do mundo seria capaz de me
derrubar como esse pequeno agarre acabou de fazer.
Te amo, meu filho.
60 - Alice

Um anjo do céu te trouxe pra mim


É a mais bonita, a joia perfeita
Que é pra eu cuidar, que é pra eu amar
Gota cristalina, tem toda inocência
Um Anjo do Céu - Maskavo

— A Isabel é sua vovó, ela é muito boazinha, tem uma voz suave e
canta bem, você vai adorar. — Acordo lentamente, escutando a voz de
Henrique bem baixinha. — E também tem a Lúcia, ela tem uma cara de
braba, mas é muito fofa e sempre faz os melhores doces pra gente comer,
sabia? Vou te ensinar a minha cara de cachorro pidão, não tem erro, ela
nunca consegue brigar quando eu faço ela.
Abro um sorriso, antes mesmo de abrir os olhos, porque esse homem
é uma coisa de outro mundo, não dá pra acreditar.
— Você já tá querendo corromper o nosso filho, Henrique? —
pergunto, a garganta um pouco seca, e escuto sua risada.
— Só tô ensinando uns macetes pra ele, minha linda — responde.
Logo ele surge do meu lado, se sentando na poltrona de acompanhante, com
nosso menino no colo. — Oi, como você tá se sentindo?
— Como se eu tivesse parido um bebê de três quilos.
— Três quilos, cento e cinquenta gramas, me respeita, mamãe —
replica, com uma vozinha infantil, segurando a mão do bebê. — Eu sou um
menino grandão, igual ao meu papai.
— É mesmo — murmuro, sorrindo. — Eu dormi muito tempo? Que
horas são?
Lucca nasceu às sete e dezessete da noite, e eu passei as primeiras
horas alternando entre admirar seu rostinho lindo e amamentá-lo.
Depois da nossa primeira hora juntos, as enfermeiras os levaram para
fazer algumas checagens e limpá-lo, colocando a roupinha que separamos
para o primeiro dia.
Quando eu disse que não tínhamos nenhuma roupa pra colocar no
bebê, Henrique anunciou, com a maior cara de orgulho do mundo, que
deixou a minha bolsa da maternidade escondida na mala do nosso carro, por
precaução, já que, segundo ele, eu sou uma teimosa que insistiu em trabalhar
até o último dia e que poderia parir no meio da Lacerda, se dependesse de
mim.
Ele me ajudou a me limpar, depois, no banheiro, e logo eu estava no
leito trocado, com meu neném nos braços, e o homem da minha vida nos
observado, com uma cara de bobo.
— Já passa das seis da manhã, ele dormiu por algumas horas direto
— responde.
Eu dei a última mamada perto das três da manhã, então ele tinha
conseguido dormir mais de três horas seguidas.
— E você? Não descansou nada? — pergunto, pegando o meu bebê
nos braços.
— Dei alguns cochilos sim, não se preocupa — explica, se
inclinando para beijar minha testa. — Agora que você acordou, eu vou tomar
um banho rápido ali e ligar pro Benjamin. Ele e a Isabel estão tentando
segurar todo mundo pra não invadir esse hospital desde ontem.
Solto uma risada, porque consigo imaginar perfeitamente a cena.
Bianca emburrada, seu Afonso ansioso, Lúcia puta da vida, e Benji e
Isabel tentando apaziguar os ânimos.
— Que horas começa a visita? — pergunto.
— A partir das nove, mas não me espantaria eles chegarem aqui duas
horas antes e tentarem subornar as enfermeiras pra entrar — ele responde,
balançando a cabeça.
Logo se tranca no banheiro do meu quarto, me deixando sozinha com
o meu pequeno pedacinho de amor.
— Essa sua família é cheia de malucos, meu amorzinho — murmuro,
afagando seus cabelos. — E ainda tem os seus padrinhos, que com certeza
vão brigar pra ver quem consegue te agradar mais. — Ele solta um pequeno
fungar, suspirando contra a minha pele. É a sensação mais gostosa dessa
vida. — Mas o que importa é que você é rodeado de tanto amor, minha
riqueza. Todos a sua volta estavam ansiosos te esperando e te amam demais.
Você vai ser muito mimado, paparicado, cuidado, e o que não vão faltar são
braços pra te acalentar e te ninar.
Quando descobri essa gravidez, um dos primeiros pensamentos que
me invadiu foi justamente a falta de um sistema de suporte além da minha
melhor amiga. Eu pensava no quão solitário seria, no quão difícil seria
cuidar desse bebê sem uma família, sem um marido, sem avós amorosos,
sem tios, primos, sem ninguém além de mim e da Carina.
Jamais poderia imaginar a quantidade de amor que nos envolveria
nesse momento.
Tanto por aquele homem incrível que está a poucos metros de nós,
quanto pela sua família maravilhosa, que nos acolheu sem nem pensar duas
vezes, e que seriam a melhor rede de apoio do mundo.
— Você veio pra mudar a minha vida, meu pequeno amuleto da sorte
— sussurro, beijando sua cabecinha cheirosa.
Quando descobri sua existência, jamais poderia pensar que o medo
que me invadiu se transformaria em tanto amor.
Ele é o meu pequeno pedaço de milagre.
*
— Tá bom, Bibi, deixa eu segurar ele um pouco agora — Benjamin
pede, pela terceira vez, já que a caçula dos Lacerda se recusa a soltar o meu
menino.
— Você quer ir com esse barbudo feioso, meu amor? — ela pergunta,
com uma voz aguda. — Não, não quer, né? Quer ficar no colo da sua tia
preferida, eu sei que sim, eu sei que sim, bebê.
Benjamin bufa, cruzando os braços, irritado, e eu solto uma risada.
— Ele é tão lindo, meus filhos — seu Afonso comenta, olhando para
o seu neto.
— Claro que é, né, pai — meu noivo replica. — Olha pro pai dele,
que gato. Não tinha como vir outra coisa senão um galã de cinema.
Reviro os olhos, dando um tapinha em seu braço, que envolve a
minha cintura.
Não adiantou as enfermeiras recomendarem apenas duas pessoas por
vez no quarto. A família Lacerda chegou em peso, há uma hora, e se
recusaram a revezar para ver o novo membro da família.
A sorte é que meu sogro é amigo pessoal do diretor do hospital, e não
fizeram confusão por superlotarem o meu quarto.
As vantagens de ser milionário.
— Ele é a cara da Alice, isso sim, porque se puxasse a você seria feio
demais, tadinho — minha cunhada provoca, mostrando a língua para o
irmão.
— Teu problema é a tua inveja, pintora de rodapé — Henrique
responde. — Aproveita pra segurar ele agora, porque não dou dois meses pra
ele estar mais alto que você, e aí não vai dar mais conta de pegá-lo.
Ela mostra o dedo, emburrada, e Benjamin aproveita a briga dos dois
para intervir.
— Chega, me dá meu sobrinho aqui — ordena, ignorando os
protestos da irmã e pegando Lucca nos braços, sorrindo para ele. — Oi,
Lucca... é o tio Benji, é sim.
— Ah, pelo amor de Deus, Benjamin, voz de bebê não combina
contigo não, chega a ser bizarro — Henrique reclama, fazendo todos nós
rirmos, porque é verdade.
Não combina em nada com o primogênito dos Lacerda.
Mas ele não se abala, apenas continua conversando com o bebê.
— Ignora eles, neném, essa família é meio maluca, mas eu ajudo
você a aguentar todos eles, tá bom? — murmura, embalando-o.
É meio engraçado ver o meu cunhado, geralmente sério e retraído,
tão relaxado assim com um bebê nos braços.
Me pergunto se ele nunca quis ser pai.
Tenho certeza de que seria um pai fenomenal para qualquer criança.
— Cadê meu afilhado lindo?! — a voz da minha melhor amiga
invade o meu quarto e logo o furacão Carina entra, acompanhada do seu
namorado.
Sim.
Isso mesmo.
O ranço todo virou amor e agora os padrinhos do meu filho estão
juntos e super apaixonadinhos.
— Demoraram, hein? — Henrique comenta. — Estavam
encomendando um priminho pro Lucca?
— Henrique! — Dou um tapa no seu braço, balançando a cabeça.
— Tivemos que esperar a moça que toma conta da Michele chegar,
pra poder sair — Pedro explica.
— Eu disse pra ela vir, mas ela não quis. Disse que conhece o Lucca
depois. Agora eu quero ver meu bebezinho perfeito, oi, coisa linda da
madrinha, é muito perfeito, né, muito perfeito! Me dá ele? — Carina pede,
arquejando quando Benji nega.
— Nem pensar, esperei quase uma hora pra segurar ele, senta e
espera a tua vez — responde, apontando para uma cadeira. — É muito
abuso, né, amiguinho, chegar assim e achar que tem preferência. Olha só, o
absurdo — murmura, balançando o bebê.
Rio da expressão indignada da minha melhor amiga, que faz drama
para o namorado.
Ele a abraça, beijando os seus cabelos e sorrindo, e eu suspiro com a
cena.
Quem viu esses dois há alguns meses, brigando feito cão e gato,
jamais imaginaria vê-los assim, tão fofinhos.
Isabel se aproxima da cama, segurando minha mão e me dando um
olhar meio maternal, enquanto observamos Carina tentar convencer
Benjamin a entregar o bebê a ela.
— Como você tá se sentindo, minha filha? — pergunta.
Solto um suspiro, sorrindo.
— Como se meu coração estivesse batendo fora do peito, agora —
respondo, e ela sorri.
— Eu imagino, querida — murmura. — Nunca vivi essa experiência,
infelizmente, mas pude sentir um pouquinho do que é ser mãe depois de me
casar com Afonso, principalmente em relação à Bianca, que ainda era
pequena.
— Você foi uma segunda mãe pra todos nós, Bebel,
independentemente da idade — Henrique responde, sorrindo para a sua
madrasta.
— E você será um pai maravilhoso pra esse bebê, meu filho —
replica. — Porque a ligação de vocês é muito mais forte que sangue e
biologia. É uma conexão de almas, e ninguém, jamais, vai poder dizer o
contrário.
Henrique se emociona, deixando um beijo nos cabelos de Isabel,
antes de ela se afastar e voltar para o lado do marido.
— Ela tem razão — murmuro. Henrique me encara, uma expressão
suave em seu rosto, e sorri. — Você é o melhor pai que o Lucca poderia ter,
e nós dois somos muito sortudos em te ter conosco.
Meu filho, graças a Deus, nasceu a minha cópia, e eu espero que
cresça assim, sem qualquer resquício do filho da puta que doou o esperma.
E mesmo que puxe alguns traços do infeliz, eu sei que nada disso
importará, porque é esse homem ao meu lado que será a sua figura paterna,
que o acompanhará por toda a sua vida, e é nele que vai se espelhar.
Já prevejo os dois fazendo mil traquinagens e me deixando de
cabelos em pé, mas eu mal vejo a hora. Porque isso aqui vai muito além de
qualquer coisa que eu poderia sonhar. E eu não preciso de mais nada.
Aqui, rodeada da família que me acolheu, nos braços do meu amor e
olhando para o meu menino, eu me sinto completa.
E repleta da mais profunda gratidão.
61 - Henrique

Eu juro por Deus, eu consigo ver


Quatro filhos, e nenhum sono
Nós teremos cada um em um joelho
Eu e você, uhm.
Falling Like the Stars – James Arthur

— Pronto pra conhecer a sua casa, meu filho? — pergunto, baixinho,


ao pegar o bebê conforto nos braços, depois de ajudar Alice a sair do carro.
Por ter sido um parto normal e saudável, sem quaisquer
complicações, nem para a minha boneca, nem para Lucca, os dois receberam
alta essa manhã, e então pudemos vir para casa.
Hoje é domingo, véspera de Natal, e eu sinto como se o papai Noel
tivesse chegado mais cedo, enquanto entro em casa, com os meus dois
maiores presentes nos braços.
Esse ano eu fui um menino muito bom, pelo visto, pra ter sido tão
abençoado.
— Que cheiro é esse? — Alice pergunta, quando entramos.
— Lúcia — respondo. — Ela e Isabel vieram aqui bem cedinho e
prepararam um café da manhã para nós.
— Não acredito — murmura, com um sorriso, e se aproxima da
cozinha, arfando ao enxergar a quantidade de comida na bancada. — Meu
Deus do céu, isso aqui é comida pra um batalhão.
— Amor, você conhece a Lúcia, se prepare pra ela enfiar comida na
sua boca vinte e quatro horas por dia, com a desculpa de que você tem que
se alimentar pela amamentação — comento, e ela revira os olhos, sorrindo.
— Tô ferrada — replica, pegando um pedaço de bolo de fubá. — Se
bem que, — começa, dando uma mordida e soltando um gemido — acho
que vou gostar de ser mimada assim.
Rio, beijando sua testa e colocando o bebê conforto em cima da
bancada.
— Quer suco? — pergunto, pegando dois copos, e ela assente. —
Lúcia disse que vem trazer nosso almoço mais tarde e que não precisamos
nos preocupar com nada. Tentei argumentar que poderíamos nos virar, mas,
graças a Deus, foi por telefone, porque ela não pode me bater. Só me xingou
de vinte palavrões e disse pra eu calar a boca.
Alice solta uma gargalhada, sabendo muito bem como a mulher pode
ser insistente e brigona.
— E como ficou a ceia de hoje? — questiona, bebericando seu suco.
— Eu expliquei que poderia ser demais, afinal, vocês acabaram de
sair do hospital, então eles vão vir dar um beijo na gente mais cedo e depois
vão pra casa do papai — explico.
— Então não vai ter mais ceia aqui? — Seus lábios rosados se
curvam em um bico tristonho e tão lindo, que me deixa confuso.
— Eu pensei que...
— Eu nunca tive um Natal assim, tava ansiosa — explica, dando de
ombros. — E é o nosso primeiro Natal em família, queria que fosse especial.
Até sexta-feira, os planos eram de fazer a ceia aqui em casa.
Nós decoramos tudo para o Natal, colocamos uma árvore imensa no
canto da sala de estar e Alice já tinha até alugado umas decorações de mesa
posta para deixar tudo como aqueles natais de filmes americanos.
Só que, depois do nascimento do Lucca, eu imaginei que ela não
fosse mais se sentir confortável em receber tanta gente assim, logo depois de
sair do hospital.
Um ser humano de três quilos saiu de dentro dela, ué. Pensei que
preferisse espaço e tranquilidade, por agora.
— Você quer manter o Natal aqui? Eu posso falar com todo mundo.
Ou podemos ir para a casa do papai — sugiro, e ela morde o lábio,
pensativa.
— Eu quero aqui — decide. — Quero a lembrança do nosso primeiro
Natal nessa casa, e a presença do Lucca não atrapalha, pelo contrário. Só vai
deixar tudo mais especial ainda. Eu sei que o pessoal vai ajudar com a
comida e a decoração, já ia ser assim mesmo antes do parto. Quero a família
toda reunida aqui, pra gente tirar fotos e celebrar juntos. Vai ser ainda mais
especial, vida.
Sorrio, já imaginando a cena perfeita que será todo mundo aqui,
animados ao redor do meu filho, o falatório infinito, as provocações, o
cuidado, o amor de todos com a minha família.
— Vai ser perfeito, minha boneca — murmuro, lhe dando um beijo,
ao mesmo tempo que escutamos um chorinho manhoso. — Hum, tá com
ciúme, é, garotão? — provoco, pegando-o no colo e trazendo-o para o meu
peito. — Tem que dividir a mamãe, cara. Eu cheguei primeiro.
— Tecnicamente, — Alice me interrompe — ele chegou primeiro e
você só veio por causa dele.
Mordo o lábio, pensando melhor, e vejo que ela realmente tem razão.
— E não é que é verdade, carinha — digo, ninando-o. — Você vai ter
moral comigo pro resto da vida porque foi o motivo de eu finalmente
conseguir uma chance com a sua mamãe. — Ele para de chorar, abrindo os
olhinhos negros e me observando, como se me entendesse. — Quer um
carro? Eu compro pra você.
— Henrique! — Alice sorri, batendo em meu ombro. — Me dá ele
aqui, que deve ser fome — pede, quando Lucca continua choramingando.
— Eu até te perdoo por ter roubado os meus peitos pra si, moleque
— murmuro, ajudando Alice a se sentar na poltrona da sala, e colocando-o
em seus braços. — Afinal, se não fosse você, eu ia passar o resto da vida só
imaginando eles enquanto batia punheta.
— Henrique! — exclama. — Não pode falar isso na frente do bebê!
— Ah, deixa eu aproveitar enquanto ele não entende nada —
resmungo, abrindo um sorriso quando o esfomeadinho ataca o peito da
minha boneca. — Depois me controlo pra não soltar uns palavrões na frente
dele.
— Se ele falar alguma palavra feia por sua causa, quem vai ficar de
castigo é você — reclama, emburrada, mas logo desfaz o bico, ao olhar o
nosso pacotinho de amor. — Ele é tão perfeito, né? — murmura.
Me sento no braço da poltrona, fitando a perfeição que é a imagem
dos dois assim, ao alcance dos meus braços.
— Vocês dois são, minha linda — respondo, baixinho.
Ela levanta a cabeça para me encarar, sorrindo com o rosto todo, não
só com os lábios, e eu sinto meu coração acelerar desenfreado.
Obrigado pelo presente adiantado, papai Noel.
*
— Ai, meu Deus, Lúcia, por que nos odeia? — resmungo, jogado no
sofá da sala, com o botão da calça aberto.
— Ninguém mandou comer igual um desesperado, nisso que dá — a
mulher sem coração retruca, sentada na poltrona à minha frente, com meu
neném no colo.
— Boneca, tira o Lucca dela, tira — peço, fazendo um movimento
com os braços, sem qualquer força para me mexer além disso. — Ela não
merece segurar essa fofura.
— Vem aqui tirar de mim, se for macho — ameaça, me olhando com
uma cara feia.
— Na minha própria casa — murmuro. — Sendo ameaçado na
minha própria casa, onde vamos parar?
— Para de drama, homem, pelo amor de Deus — Alice se senta do
meu lado, segurando minhas mãos. — Quem manda comer tanto? Só você
que tá passando mal assim. Comeu o peru quase todo sozinho.
— É culpa dessa bruxa — respondo, apontando para Lúcia. — Ela
coloca feitiços na comida dela, não tem outra explicação.
— Tem sim — Benjamin se intromete. — Você é um sem noção, essa
é a outra explicação.
— Duas semanas sem pegar no meu filho — decreto, apontando o
dedo para o meu irmão. — Vai ser minha arma agora, quem fizer bullying
comigo, fica sem o bebê.
— Alice, como é que você aguenta? — Bianca pergunta, arrancando
um sorriso da minha boneca.
— Se eu te contar os meus dotes, você fica traumatizada, irmãzinha
— murmuro, antes que Alice consiga responder, e logo solto uma
exclamação, quando uma almofada atinge o meu rosto. — Ei!
— Dá pra sossegar o facho? — minha noiva resmunga, as bochechas
vermelhinhas de um jeito lindo, toda constrangida. — Meu Deus, nem
parece que tá aí, morrendo.
— E você aceitou se casar com ele, cunhada — meu irmão comenta.
— Quem é mais doido? Você ou ele?
— Tenho me feito essa pergunta — a traíra responde, e eu seguro o
peito, fingindo dor.
— Só quem me ama nessa casa é o meu filho, né, amor? — rebato,
levantando o braço na direção de Lucca. — Se o papai tivesse forças ia aí te
resgatar e nós fugiríamos, os dois, mundo afora, atrás de amor.
— Ele sempre foi assim? — Alice pergunta para meu pai, em um tom
baixinho.
— Desde bebê — ele responde. — Quando era pequeno, se a gente
se atrevesse a colocar ele no berço, fazia drama o suficiente para os vizinhos
acharem que estávamos maltratando ele. Chegamos até a receber visita da
polícia, uma vez.
— Calúnia, difamação — reclamo. — Se eu não lembro, não é
verdade.
— Lembra aquela vez que ele fez greve de fome porque a mamãe
não deixou ele ir com ela pro salão? — Benjamin se mete, o intrometido. —
Ele vivia na cola da mamãe, coitada, e no dia que ela ia tirar algumas horas
de folga, indo cuidar do cabelo, ele queria ir junto, pra ter certeza de que não
iam raspar a cabeça dela.
— Meu Deus... — Alice murmura, me olhando de canto de olho.
— Lembro. — Papai assente, sorrindo. — Sua mãe deixou ele
chorando em casa e ele disse que ia fazer greve de fome, em retaliação.
— E fez? — minha boneca pergunta.
— Fez nada! — É Lúcia quem responde. — Fingiu que não tava
comendo nada, recusou almoço e jantar na mesa, mas depois peguei uns dez
pacotes de biscoito enfiados debaixo do colchão dele. Fez a maior sujeita,
deu até barata no quarto desse moleque.
— Meu Deus, vida — Alice murmura, sorrindo.
— Ninguém me aprecia nessa casa — reclamo, mas por dentro,
sorrio junto deles. — Vou já fazer greve de fome de novo.
— Com a quantidade de comida que você enfiou na boca hoje, —
Bianca começa — seria preciso uns dois anos sem comer pra você começar a
sofrer algum perigo real.
Mostro o dedo para a tampinha e todos sorrimos, felizes com o clima
gostoso da noite. Alice se encosta ao meu lado, e eu abraço pelos ombros,
trazendo-a para o meu peito.
— Feliz? — pergunto, baixinho.
Ela assente, me envolvendo com seus braços, e suspirando contra
mim.
— Eu acho que nunca estive tão feliz como hoje — murmura.
Levanta a cabeça e me olha, e eu consigo enxergar a leveza e a felicidade
estampadas ali. — Obrigada por me dar uma família, meu amor.
Sei que não se refere somente ao nosso filho, e sim a todas essas
pessoas que estão ao nosso redor. Dou um beijo em sua testa e ela se apoia
de novo no meu ombro, relaxando.
Alice me agradece, mas, no fim, quem mudou a minha vida foi ela,
me enchendo de amor e de esperança.
Esse Natal, o primeiro de uma vida inteira ao seu lado, estará
gravado na minha memória como um dos melhores de toda a minha vida.
62 - Alice

Porque eles dizem que lar é onde o seu coração está firmado
É para onde você vai quando está sozinho
É onde você vai descansar os ossos
Home – Gabrielle Aplin

— Você ficou um arraso, amiga! — Carina elogia, quando o


cabelereiro finaliza as minhas ondas. — Se prepara que hoje tem, hein! —
debocha, me fazendo sorrir.
Lucca completou dois meses de vida essa semana e, depois de todo
esse tempo me dedicando única e exclusivamente ao meu bebê, meu noivo
preparou um dia de princesa para mim e minha melhor amiga.
Desde cedo, acostumei nosso filho a mamar tanto no meu peito,
quanto na mamadeira (com o meu leite), para que Henrique também pudesse
ter a experiência de alimentá-lo e para facilitar um pouco os nossos dias.
Graças a isso, não foi algo difícil demais eu me ausentar por algumas horas
para vir até aqui.
Henrique agendou um pacote completo no spa mais caro da cidade,
com direito à massagem no corpo inteiro, banho aromático em um ofurô,
limpeza de pele, manicure e pedicure, hidratação e corte de cabelo e
maquiagem.
Carina já enfatizou umas quinhentas vezes o quanto adora o seu
cunhado favorito – mesmo ele sendo o único –, e como eu sou sortuda por
ter encontrado um homem assim.
Tudo bem que ela também está muito bem servida com o seu novo
namorado, mas essa é uma história para outro dia.
— Não me lembro a última vez que vi meus cabelos tão cheios de
vida — comento, adorando a forma que as ondas bem definidas caem sobre
o meu ombro e emolduram o meu rosto.
O cabelereiro cortou as pontas e arrumou a franja, que já estava
grande demais, e eu me sinto cinco anos mais jovem e uns vinte quilos mais
leve, depois do relaxamento que tive hoje.
— E eu adorei o corte novo, João! — ela comenta, brincando com os
seus cabelos ruivos, agora em um corte repicado, mais curtos, um pouco
abaixo dos ombros.
— Vocês duas são as moças mais lindas que eu já tive o prazer de
atender, e quero vê-las mais vezes aqui no meu spa, viu? — o homem, na
faixa dos quarenta, responde, sorrindo para nós através do espelho. —
Fiquem à vontade, eu preciso ir atender uma moça na outra sala — se
despede, dando um tchauzinho.
Puxo o celular da bolsa e confiro as mensagens, vendo que Henrique
acabou de me mandar uma foto.
Abro o aplicativo e logo solto uma risada com a imagem do meu
noivo e do meu filho, esparramados na nossa cama, o pequenino dormindo,
com a boquinha aberta.
Henrique: Nosso dia de rapazes foi muito cansativo pro nosso
pacotinho. Muitas mamadeiras, um cocozinho matador e agora uma
sonequinha merecida.
Eu: Mas que dia produtivo! Logo, logo a mamãe tá em casa pra acabar com
essa folga toda. Amo vocês.
Henrique: Cuidado pra não voltar linda demais e infartar o papai,
mãezinha. O coraçãozinho dele é frágil. Te amamos.
— E esse sorriso? — Carina pergunta, tomando um gole do seu
espumante.
Eu fiquei apenas no suco de laranja, mas minha amiga aproveitou
todo o mimo oferecido pelo spa, com espumantes e margaritas.
— Olha se não é a coisa mais fofa dessa vida? — Mostro a foto e ela
solta um suspiro, puxando o aparelho e admirando a imagem do seu
afilhado.
— Ele é tão perfeito, amiga, e tem crescido tão rápido — murmura,
me devolvendo o celular.
— Às vezes eu nem consigo acreditar, sabe? Que essa é a minha vida
agora — digo, suspirando. — Parece até um sonho, e que a qualquer
momento eu vou acordar. Tanta coisa aconteceu no último ano, o bebê, o
Henrique, a minha carreira. Se eu paro pra pensar, fico até tonta.
— Você, mais do que ninguém, merece cada uma das coisas
maravilhosas que aconteceram na sua vida, amiga. Não conheço ninguém
mais incrível do que você e tenho muito, mas muito orgulho de te chamar de
irmã. — Sorrio, segurando sua mão e apertando-a. — Mas, agora, vamos?
Porque ainda tá cedo e o meu cunhado disse que deveríamos nos dar um
banho de loja depois do spa! Tô ansiosa pra torrar o cartão black dele.
— Você fala como se não fosse rica, também — murmuro, sorrindo e
balançando a cabeça. — Se quisesse, fazia um dia desse por semana e
mesmo assim não faria cócegas.
— Nem tanto, Ali — responde. — Sou rica, mas não sou milionária.
E, gastar o nosso próprio dinheiro não tem graça nenhuma, o bom é gastar o
dos outros.
— Gasta o do teu namorado, então. Ele é tão rico quanto o meu
noivo — debocho.
— Daquele ali eu gasto outra coisa, minha amiga. Outra coisa muito
mais interessante — me responde, com uma cara de safada.
Solto uma gargalhada e enlaço o meu braço no dela, me despedindo
da atendente do spa e seguindo em direção à saída.
Em uma coisa ela está certa.
Essa nova fase da minha vida é muito mais divertida do que a
anterior, em que eu vivia contando centavos para pagar minhas contas.
Principalmente depois do meu lançamento, quando comecei a
receber os royalties da venda do meu livro. O meu segundo romance já
estava em fase de revisão e, se tudo desse certo, iria estar nas livrarias ainda
esse semestre.
Se a Alice de um ano atrás pudesse me ver agora, tenho certeza de
que não acreditaria em tudo o que vivemos.
E a melhor parte é que eu sinto que as coisas ainda serão muito
melhores daqui para a frente.
*
— Acho melhor irmos indo, amiga. Já tá tarde e meus seios estão
implorando pelo Lucca — comento, ao sairmos de mais uma loja.
— Vamos sim, acho que já alimentei minha fera consumista o
suficiente por um ano — responde, sorrindo, com a mão cheia de sacolas.
As minhas não estão muito diferentes e eu estou até orgulhosa de
mim, porque comprei apenas duas roupinhas para o meu menino, me
priorizando dessa vez.
Seguimos em direção aos elevadores, evitando as escadas rolantes,
por causa do peso das mãos, e apertamos o botão, chamando-o.
Não demora muito para as portas se abrirem, mas, antes que eu possa
entrar na caixa, reconheço um rosto familiar entre as pessoas que estão
saindo nesse andar.
— Alice? — a mulher da minha idade pergunta, surpresa.
— Luciana? O que faz aqui?
Até onde sei, minha prima materna mora em Atibaia, bem próximo
da casa da minha mãe, mas pelo seu uniforme de uma das lojas de roupa
daqui, talvez eu esteja mal-informada.
— Eu me mudei pra cá faz uns três meses — responde. — Nossa,
você tá tão diferente! Toda elegante, linda demais — comenta, me olhando
dos pés à cabeça.
Nunca tive nada contra Luciana.
Pelo contrário, ela é uma das poucas pessoas da família que sempre
me tratou bem, e por quem eu tenho um certo apreço.
Ela não concordava com a forma que minha mãe me tratava e, por
vezes, me defendia dela e da minha avó. Mas quando me mudei para Santa
Consolação, acabamos perdendo qualquer contato.
— Obrigada, Lu. Você também tá ótima — respondo.
— Eu vim estudar, sabe — continua, se afastando da entrada do
elevador, para liberar a passagem. — Depois de tudo o que aconteceu com a
tia Olga e a vovó, não quis mais ficar lá. A vizinhança já era fofoqueira e
depois de tudo, ficou insuportável conviver com os comentários. Aí consegui
uma boa nota no Enem ano passado e resolvi vir tentar. Sou mais velha que
todos da minha turma, mas tô gostando do curso de História. Consegui um
emprego aqui, nessa loja, e tem ajudado nas contas. Moro na república, sabe,
então os gastos são menores.
Franzo o cenho, tombando a cabeça para o lado, absorvendo as
informações.
— Primeiro de tudo, parabéns, Lu. Fico feliz que tenha entrado na
faculdade e que esteja ajeitando sua vida — começo. — Mas, tirando isso, o
que você quer dizer com tudo o que aconteceu com a mamãe e a vovó? O
que houve?
— Alice do céu, você não soube? — pergunta, arregalando os olhos.
Eu balanço a cabeça e ela se aproxima, diminuindo o tom de voz. — Prima,
foi um escândalo. Ela chegou daqui te maldizendo pra todo mundo, dizendo
que você escorraçou ela do apartamento de madrugada, que ela teve que
pedir carona na estrada pra chegar em casa. Até dizer que você bateu nela,
ela disse!
Arquejo, colocando a mão no peito, chocada.
— Aquela piranha, filha da puta — Carina resmunga ao meu lado, e
eu estou pasma demais para falar qualquer coisa.
— Todo o bairro começou a falar de ti, que era uma ingrata, que
devia estar se prostituindo por aqui — continua, me deixando mais estática.
— Eu te defendi, falei que você não era assim, mas já sabe como aquele
povo pode ser — explica, e eu assinto. — O lance é que, pouco tempo
depois, uma mulher apareceu no bairro procurando pela tua mãe. Acontece
que ela tava tendo um caso com o marido dessa dona, e ela puxou a tia Olga
pelos cabelos de dentro de casa, jogou ela na calçada e enfiou a porrada nela.
— Meu Deus!
— Prima, mas foi tanta porrada, tanta porrada, que a tua mãe ficou
irreconhecível. Ela gritava pra Deus e o mundo que a tua mãe era uma
piranha, uma vagabunda, destruidora de lares, que não tinha vergonha na
cara, que era uma aproveitadora e só tinha se envolvido com o tal cara
porque ele era cheio da grana e um otário.
— Ô mulher abençoada, viu, lavou a minha alma — minha melhor
amiga diz, fazendo a minha prima rir.
— E isso não é o pior.
— Ainda tem mais? — pergunto, chocada.
— Claro que tem — responde. — Acha mesmo que a vovó ia deixar
barato uma coisa dessas?
Nego, porque conheço bem a minha avó.
Fanática religiosa do jeito que sempre foi, jamais permitiria virar
chacota do bairro por causa da minha mãe.
— O que ela fez?
— Jogou as coisas da tia Olga tudo na rua, chamou ela dos piores
nomes, disse que tinha vergonha de ser mãe dela e que não queria mais ver
ela nem pintada de ouro — diz. — E mais, ainda falou que você que tava
certa de ter ido embora, porque agora tava bem, casada com um cara lindo,
com uma carreira e aparecendo até no jornal, enquanto a tia Olga sempre
viveria na merda. Foi bem na época do teu lançamento, a gente viu na
internet.
— A vovó me defendeu? — pergunto, espantada.
— Do jeito dela, mas sim — responde. — Aí o povo todo começou a
chamar a mamãe de mentirosa, que ela que era a aproveitadora e não você, e
que ela devia morrer de inveja. Tudo isso com a tia lá na calçada, toda
arrebentada, com as roupas rasgadas e o olho inchado.
— Meu Deus do céu, eu não acredito — murmuro.
— É, prima. — Assente. — Aí as coisas ficaram pesadas demais,
sabe? Todo mundo falando da família, a vovó ainda mais insuportável, e eu
não aguentei mais ficar ali. Peguei minhas coisas, pedi demissão e vim
embora assim que eu vi o gabarito e soube que tinha tirado uma nota
razoável.
— E porque não me procurou?
— Ah, — dá de ombros — fiquei com vergonha, sei lá. Ainda
mandei mensagem, mas acho que você bloqueou o meu número na época
que a tia Olga ficou tentando te ligar, e eu não quis que você achasse que eu
tava tentando me aproximar por interesse.
— Oh, Lu, eu jamais pensaria isso de você — respondo. — Pois me
dê seu número, que eu vou marcar de você conhecer o seu primo, ele é a
coisa mais linda desse mundo.
Ela sorri, me passando o número, e eu o agendo.
— Foi muito bom te ver, Alice, de verdade — diz, segurando minhas
mãos. — A melhor coisa que você fez na vida foi sair daquele lugar e se
afastar daquelas duas. Eu espero que a minha vida se arrume também, daqui
pra frente, agora que eu me libertei.
Luciana perdeu a mãe muito cedo. Tia Alzira faleceu em um acidente
de moto, então, apesar de ser minha prima, nós convivemos como irmãs, até
ela sair da casa da mamãe e ir morar com uma amiga.
— Fico muito feliz em te ver por aqui também, prima — respondo.
— As coisas vão ser muito melhores pra ti agora, tenho fé.
Ela sorri, me dando um abraço.
— Agora tenho que ir, pra não perder o ponto — diz, se despedindo
de mim e da Carina. — Vou esperar tua mensagem, prima. Até a próxima.
— Até, Lu. — Aceno, quando se afasta, e me viro para a minha
melhor amiga.
— Puta que pariu — ela ecoa meus pensamentos, depois de alguns
segundos de silêncio.
— Eu ainda não consigo acreditar, amiga — murmuro.
— É, Ali. Aqui se faz, aqui se paga — responde, apertando
novamente o botão do elevador. — E eu concordo com a tua prima, viu? A
melhor coisa que você fez na vida foi sair daquele lugar.
Assinto, porque é verdade.
Saí de Atibaia há mais de dez anos, sem a menor ideia do que seria a
minha vida, mas agora eu sei que valeu a pena.
Me afastar de toda aquela gente tóxica foi o melhor para mim, e eu
tenho certeza de que jamais conseguiria tudo que conquistei se não tivesse
seguido minha vida longe delas.
— Que ela tenha aprendido — comento, entrando no elevador.
— Duvido muito, esse tipo de gente não aprende — minha amiga
retruca. — Logo, logo ela vai estar fazendo o mesmo com outra pessoa,
porque quem é ruim nunca muda.
— Infelizmente.
— O que importa é que você tem outra família agora, uma de
verdade, que te ama e daria o mundo por ti.
Assinto, porque ela tem razão. Antes de conhecer os Lacerda, eu
sequer poderia dizer que conhecia o sentido real de família.
Mas agora eu sei. Agora eu sei o que é ser amada e cuidada por uma
mãe, um pai e irmãos, e, principalmente, pelo amor da minha vida.
Agora eu sei o que é ser parte de uma família.
63 - Henrique

Caso você não saiba, amor, eu sou louco por você


Eu estaria mentindo se dissesse
Que consigo viver essa vida sem você
In Case You Didn’t Know – Brett Young

— Querida, cheguei! — anuncio, ao entrar em casa, depois de um dia


cheio na Editora.
Após muita conversa entre nós dois, Alice decidiu estender a sua
licença até o Lucca completar um ano, já que nós temos essa oportunidade e
não há qualquer necessidade de deixar o bebê com alguém estranho tão
cedo, se podemos arcar com ela ficando mais tempo em casa.
Minha boneca continua trabalhando na sua carreira de autora, e seu
segundo livro está prestes a ser lançado, o que tem lhe tomado bastante
tempo em reuniões on-line e, até mesmo, algumas presenciais, o que faz a
alegria da galera da Editora, que pode babar no nosso mini CEO.
Eu não quis contratar nenhuma secretária para substituir Alice, mas
contratei dois estagiários sêniores, que me auxiliam bastante no dia a dia, e a
ideia é efetivá-los na equipe de editorial quando ela retornar ao seu posto.
Também atribui mais algumas funções à Pedro que, além de diretor
de marketing, acumula agora a função de CFO, sendo, ainda mais, o meu
braço direito em toda a operação administrativa e financeira da empresa.
A ideia de expandir a Lacerda e colocá-la na Bolsa finalmente
vingou, e, há dois meses, nós entramos no mercado, nos tornando
rapidamente uma das mais valorizadas do país no nosso segmento.
Também conseguimos um contrato com uma empresa americana,
para auxiliar nas nossas publicações internacionais, e já traduzimos nove
títulos para o inglês, o espanhol e o francês, incluindo o primeiro livro da
minha mulher, que foi um sucesso de vendas lá fora, assim como foi no
Brasil.
— Cadê vocês, hein? — pergunto, desatando o nó da minha gravata e
removendo o paletó, enquanto subo as escadas.
Estranho o silêncio da casa, porque, geralmente, escuto as
gargalhadas de Alice brincando com nosso filho logo que passo pela porta,
todos os dias.
Lucca está naquela fase gostosinha, de começar a entender melhor as
coisas ao seu redor, já consegue ficar mais sentadinho, já brinca com seus
chocalhinhos, e as risadas... meu Deus, as risadas dele são o meu som
favorito no mundo inteiro.
Entro no nosso quarto, esperando encontrá-los, mas nada.
— Alice? — chamo, vendo a porta do banheiro entreaberta.
— Oi, amor, já chegou? Como foi o seu dia? — Ouço sua voz e
sorrio, me sentando na beira da cama e desabotoando os punhos da camisa.
— Cansativo — respondo, suspirando. — Tivemos reunião com os
acionistas de manhã e, de tarde, fechamos os contratos de renovação
pendentes. Até aquele cuzão que tava cheio de frescuras finalmente decidiu
renovar com a gente.
Trabalhar com autores é um negócio incrível, mas, ao mesmo tempo,
frustrante.
A maioria é muito tranquila, sem qualquer estrelismo, mas têm
algumas peças raras que se acham a última bolacha do pacote só porque
vendem bem ou ficaram famosinhos na internet.
E eu tenho um ódio desse tipo.
Mas, infelizmente, são lucrativos, então eu coloco a minha melhor
cara de paisagem e tento negociar da melhor forma, sem jogá-los pela janela
do meu escritório.
— E o nosso bebê? Tá dormindo? — pergunto, achando estranho, já
que, nesse horário, ele geralmente está muito acordado.
— Não, amor, a Bianca sequestrou ele — responde.
Bufo, balançando a cabeça.
Desde que descobriu que está grávida do cabeludo feioso, há mais ou
menos um mês, a minha miniatura tem roubado o meu bebê, com o pretexto
de que precisa treinar para quando o dela chegar.
— Mas é muito abuso, viu — resmungo. — Vou começar a cobrar.
Fica usando o meu menino aí, como se fosse um experimento. A audácia...
Escuto a risada de Alice, enquanto desabotoo a camisa.
— Eu pensei que você fosse gostar — diz. Franzo o cenho, confuso.
— Por que eu gostaria? Conto os segundos pra chegar em casa e ver
o meu pequeno, e essa frentista de posto da Hot Weels vem roubar meu
neném.
— Ah, amor, — responde, um leve toque de manha na sua voz. —
pensei que fosse se animar com a ideia de termos a casa só pra nós dois por
algumas horinhas. Sabe, — abre a porta do banheiro, e meu coração para —
sem interrupções.
Meu pau nunca subiu tão rápido na vida.
Alice surge diante de mim, vestida em um conjunto de lingerie
vermelho, todo de renda, com um sutiã de taça, que deixa seus seios
empinadinhos, com fios que formam uma amarração em xis pela sua barriga,
afinando ainda mais a sua cintura, e uma calcinha minúscula que, mesmo se
olhar as costas, sei que se trata de um fio dental que deve estar enfiado no
seu rabo gostoso.
— Santa mãe de Deus, boneca — ofego, colocando a mão no peito.
— Você é a verdadeira visão do pecado.
Mesmo vestida assim, mesmo depois de meses juntos, o seu rosto
ainda cora, com uma timidez que é tão dela, que me faz sorrir.
— Gostou da minha nova lingerie? — pergunta. — Comprei com o
seu cartão.
— Dinheiro mais bem gasto da minha vida — respondo, me
levantando e tirando a camisa aberta, jogando-a no chão. — Melhor ainda
que eu posso rasgá-la todinha sem culpa.
— Não! Eu quero usar de novo — protesta.
— Eu compro outra pra você — rebato. — Compro a loja inteira, se
for preciso. Só pra te ver assim, tão gostosa, tão perfeita.
Agarro a sua cintura e puxo seu corpo para mim, engolindo o seu
gemido com a minha boca, já infiltrando minha língua entre seus lábios e
procurando pela sua, brincando, testando, provocando, sabendo exatamente
o que fazer para deixá-la fraca e sem forças.
Espalmo uma mão na sua bunda durinha e aperto o globo com força,
arrancando mais um gemido bem profundo, e sinto ela começar a se esfregar
contra a minha ereção.
Seguro-a o suficiente para suspendê-la do chão e caminho até a
cama, deitando-a sobre os lençóis brancos e me afastando para admirar a sua
pele avermelhada e seus seios subindo e descendo, com a respiração pesada.
— Perfeição — murmuro, desafivelando meu cinto e abrindo a calça,
tirando-a com pressa, para me juntar a ela. — Você é a perfeição encarnada,
Alice Lacerda.
Seus olhos escurecem de imediato, como todas as vezes que eu a
chamo assim.
Ainda não oficializamos a nossa união, porque decidimos esperar o
Lucca completar um ano e poder participar um pouco mais da cerimônia.
Por mim, teríamos nos casado pelo menos no civil, mas eu entendo a
vontade de Alice, de fazer tudo bonitinho, usar um vestido de princesa e me
encontrar no altar.
Ela sempre teve seus sonhos interrompidos ou desprezados e eu
jamais seria mais um a fazer isso com ela.
O que importa é que ela é minha, que está aqui, comigo, na minha
cama, todas as noites e dias, e que somos uma família.
— Ah, Henrique — ela geme, arqueando as costas, quando pressiono
a minha coxa desnuda contra a sua boceta, sentindo o tecido da calcinha
minúscula encharcado.
Desço os lábios pelo seu pescoço, dando leves mordidas no seu colo,
na curva dos seus seios pesados, que ficaram ainda mais perfeitos depois do
nascimento do Lucca.
Apenas traço a minha língua pelo mamilo entumecido, por cima do
sutiã, sabendo que, com a amamentação, ela se sente mais segura assim, e
também evito apertá-los demais, para não causar qualquer desconforto.
Logo depois do seu resguardo, quando voltamos a ter relações, Alice
estava um pouco insegura em relação às mudanças do seu corpo, e foi um
longo processo de adaptação, até que ela se sentisse mais confortável e que
desencanasse de algumas neuras durante o nosso sexo.
Óbvio que dei o meu melhor para provar a ela, de novo e de novo, o
quanto o seu corpo continua me deixando louco, mesmo com as marcas da
gravidez e os quilinhos a mais, porque, para mim, ela continua sendo a
mulher mais linda e gostosa do mundo inteiro.
Continuo o caminho para baixo, traçando a língua ao redor do seu
umbigo e descendo pelo baixo-ventre, mordiscando a pele logo acima da
linha da calcinha, sorrindo ao perceber os pontinhos arrepiados pelo
caminho.
— Ah, por favor — clama, quando pressiono meu nariz na sua boceta
coberta, inalando o seu cheiro, que é o meu afrodisíaco preferido. — Por
favor, por favor, vida — choraminga, se contorcendo toda, e eu obedeço, só
empurrando o tecido para o lado e admirando seus lábios reluzentes de
excitação, antes de abocanhá-la. — Ah! Isso!
Seus dedos se infiltram nos meus cabelos e puxam, dolorosamente,
enquanto ela empurra os quadris para cima, implorando por mais.
Eu, apenas um servo seu, obedeço, chupando e lambendo cada
centímetro da sua boceta deliciosa e depois me concentrando no clitóris
inchado, sugando a carne endurecida e dando batidinhas com a minha
língua, um dedo encontrando rapidamente o caminho para a sua entrada.
— Mais! — ordena, enlouquecida, quando começo a foder sua
boceta com o meu indicador, ainda lambendo o seu pontinho de prazer.
Enfio mais um dedo, seu interior tão lubrificado, que eles entram sem
qualquer resistência, e curvo a pontinha para encontrar aquele lugar que a
deixa doida.
Sei que encontrei quando ela solta um grito, tirando quase todo o seu
corpo da cama, esfregando o quadril no meu rosto, que está completamente
encharcado, e eu só quero me afogar ali, beber tudo, sugar, chupar, ficar com
o seu aroma na minha barba até amanhã, porque é ela quem me deixa louco.
— Henrique, eu vou gozar! — anuncia, e eu enfio um terceiro dedo,
preparando-a para mim, enquanto permaneço o meu trabalho no seu clitóris,
minha língua ávida e meus lábios adormecidos de tanto prová-la.
Em poucos segundos, ela ofega alto, o corpo todo tremendo, e eu
preciso segurar os seus quadris para mantê-la ali, enquanto termino de
chupá-la. Continuo até o seu limite, quando seus lamentos se tornam
dolorosos, devido à sensibilidade, e deixo um último beijo em seu monte
antes de me afastar.
Enxugo a boca com o dorso da mão, me esticando para pegar um
preservativo na mesinha de cabeceira, ao mesmo tempo em que removo a
minha cueca, o pau já babando e pronto para ela.
Começar a usar camisinhas depois do nascimento de Lucca foi um
martírio, porque, desde o início, transamos sem nada entre nós, e saber como
era a sensação da sua boceta no pelo deixou o meu pau muito tristonho por
ter que usar essa porra de látex.
Mas Alice ainda não se decidiu por um método contraceptivo, já que
sofreu muito com os efeitos do anticoncepcional uma vez, há alguns anos.
Eu não a pressiono, afinal, é o seu corpo e ela tem direito de se recusar a
tomar uma bomba de hormônios só para que eu não precise me encapar.
É diferente? Claro.
Eu preferiria não ter nada entre nós? Óbvio.
Mas até ela dizer sim, meu amigão terá que se contentar com o calor
da sua boceta gostosa através da camisinha.
Honestamente, mesmo se eu precisasse usar dez camisinhas, transar
com Alice ainda seria a melhor sensação do mundo inteiro.
Como agora, quando me afundo no seu interior, molhado e quente,
apertado como um inferno depois do seu orgasmo potente, e preciso até
fechar os olhos para não gozar rápido demais.
— Que boceta gostosa da porra — resmungo, me afastando e
enfiando novamente, bem devagar, adorando como ela revira os olhos de
prazer.
— Feliz agora, pela Bianca ter pegado o bebê? — pergunta, sorrindo.
— Será que ela gostaria de uma viagem pra Paris? Porque ela tá
merecendo — murmuro, arrancando uma gargalhada de Alice, o que só a
deixa ainda mais apertada. — Ah, puta que pariu, boneca, eu não aguento
você, meu Deus.
— Me fode, amor — pede, manhosa. — Me fode, por favor.
Reviro os olhos, começando a me mover com mais intensidade, o
barulho dos nossos quadris se chocando ecoando pelo quarto, junto com os
nossos gemidos.
Me abaixo para tomar sua boca de novo, segurando o seu rosto,
enquanto a outra mão levanta a sua perna direita e encaixa ainda melhor o
meu quadril, e continuo a meter, cada vez mais forte, sentindo minha pele se
arrepiar com tanto prazer.
— Amor da minha vida, deliciosa, perfeita, eu te amo tanto —
resmungo contra seus lábios, ao sentir o meu orgasmo se aproximando e as
suas paredes me apertando ainda mais.
— Vida, por favor — pede, arranhando minhas costas. — Eu vou
gozar, amor, eu vou... — Suas palavras são interrompidas pelo orgasmo que
invade o seu corpo, me esmagando como um punho, com força o suficiente
para arrancar o meu próprio gozo, que preenche a camisinha até o limite.
Apoio o meu corpo nos antebraços, para não a esmagar, tentando
controlar a minha respiração.
— Eu nem tirei a sua calcinha — murmuro, sentindo o tecido
afastado na lateral do meu pau, e ela sorri, tremendo sobre mim.
— Acho que temos tempo ainda pra você tentar de novo — responde,
um tom de voz safado, e eu sorrio, pressionando os nossos lábios e
invertendo nossas posições, colocando-a em cima de mim.
— Então, agora é a sua vez — decreto, removendo a camisinha e
substituindo-a por uma nova, o meu pau sequer esmorecendo, porque essa
mulher é gostosa demais. — Me fode gostoso, vai — peço, encaixando-a em
mim. Ela revira os olhos, sentando até o talo e remexendo os quadris bem
devagar, testando. — Me toma pra si, me usa...
— Acho bom que você tenha renovado nosso estoque de camisinhas,
amor — replica, começando a subir e descer. — Porque temos umas quatro
horas até a sua irmã devolver nosso filho e eu quero ocupar cada segundo
delas com orgasmos.
Seguro sua cintura, ajudando os movimentos e admirando seu corpo
perfeito.
— Seu desejo é uma ordem, minha rainha — respondo. — Eu e meu
pau somos seus servos, a seu dispor.
Ela solta uma risada misturada com um gemido e continua
cavalgando, empinando a bunda para me levar mais fundo, terminando de
me enlouquecer.
Aqui, deitado à sua mercê, não consigo deixar de pensar no quanto
eu desejei essa mulher, nos anos que passei admirando-a, sonhando com um
beijo, um toque, imaginando como seria senti-la assim, toda entregue à mim.
Posso dizer, com toda certeza, que nenhum dos meus sonhos foi
capaz de corresponder à realidade do que é a Alice.
Nenhuma das minhas fantasias conseguiu chegar perto da perfeição
que é ser dela, por inteiro, de corpo de alma.
Vendo essa mulher aqui, rebolando e gemendo para mim, ávida,
entregue, tão minha, eu só consigo pensar em como eu tive sorte, do plano
mais maluco do mundo ter dado certo, e de ter conseguido exatamente o que
eu queria, no final.
Minha Alice.
Meu Lucca.
Minha família perfeita.
Epílogo 1 - Alice

Nada me preparou
Para o privilégio que seria
Ser sua
Turning Page – Sleeping at Last

— Henrique, pelo amor de Deus, que porra é essa? — pergunto,


abismada, ao encarar o dinossauro robô de três metros de altura, com luzes e
tudo, que se remexe ao som de uma música que sai de alto falantes dele
mesmo, no nosso quintal, perto da piscina de bolinhas.
Eu saí por duas horas pra buscar os salgadinhos e o bolo, como ele
teve tempo de arranjar um negócio desses?
— Gostou, amor? — Sua voz animada indica que ele confundiu o
meu tom indignado com admiração. — É o robossauro DJ, legal, né? Ele
dança, toca música e tem um montão de luzes.
Ele parece até uma criança, se mexendo junto com a porra do robô, e
eu o encaro, incrédula.
— Onde infernos você achou um troço desse, homem?
— Mandei trazerem do Uruguai — responde, como se não fosse
nada.
— Como é que é?
— A empresa não tinha ele aqui no Brasil, só tinham aqueles robôs
comuns, que todo mundo tá usando em festas de casamento. Mas disseram
que poderiam mandar trazer, lá da matriz do Uruguai — explica.
— E quanto custou essa brincadeira, Henrique? — pergunto.
— Ah, linda, foi baratinho, cinquentinha, só — dá de ombros.
— Henrique — começo, puxando a respiração, tentando não matar
esse homem no dia do aniversário do nosso filho. — Você não gastou
cinquenta mil reais pra trazer a merda de um robô dinossauro da puta que
pariu do Uruguai pra três horinhas de aniversário, com quinze convidados,
gastou?
Acho que ele finalmente entende o meu tom, porque me olha de
esguelha, um pouco receoso, e assente devagar, igual aquelas crianças que
fizeram traquinagem e estão esperando a surra da mãe.
— Mas o Lucca gostou tanto, boneca, olha pra ele — justifica,
apontando para o nosso filho, de pé na frente do dinossauro, a coisa mais
linda, fantasiado, balançando o seu corpinho e mexendo as mãozinhas no
ritmo da música, com Carina e Bianca ao seu lado, também dançando.
— Meu amor, o nosso bebê tem um ano — digo, segurando em seu
braço. — Ele ficaria encantado com um robozinho de quinze centímetros, se
piscasse e dançasse também. Pelo amor de Deus, Henrique, cinquenta mil.
— Ah, amor, é o primeiro aniversário dele. — O infeliz faz uma
carinha de cachorro sem dono, porque sabe que vai me ganhar, e eu apenas
suspiro, assentindo, porque, o que mais eu posso fazer, né?
A porra do robô já está aqui, mesmo.
— Cadê a sua fantasia? — ele pergunta, me olhando de cima a baixo.
Decidimos fazer toda a decoração da festa com dinossauros, por ter
um significado para nós desde antes do nascimento do Lucca, e, óbvio, que o
meu querido noivo providenciou fantasias para nós três, e chapeuzinhos
decorados para os demais convidados.
— Acabei de chegar da rua, vou tomar um banho e já me visto —
explico. Abraço a sua cintura, segurando o rabo da sua fantasia e
balançando. — Você tá muito fofinho assim, de dinossauro, sabia?
— Gostou do meu rabinho, boneca? — pergunta. — Tenho um bem
mais legal na frente também, se você quiser brincar. É bem maior e mais
duro. — Até balança as sobrancelhas, pra aumentar o efeito.
Dou um tapa em seu peito, soltando uma gargalhada, e lhe dou um
beijo, murmurando que já volto, antes de entrar em casa.
Ainda não consigo acreditar que um ano inteiro se passou desde o
nascimento do meu bebezinho.
Lucca cresceu tanto nos últimos meses.
Aprendeu a andar, apesar de ainda não ter muito equilíbrio e cair
bastante, e já balbucia algumas coisas, como “gugu” e “dada”, mas ainda
não falou nada de verdade. Henrique vive repetindo “papai” na frente dele,
tentando fazê-lo repetir, mas nosso bebê não nos deu essa felicidade ainda.
Subo as escadas com pressa, já que toda a nossa família já está no
jardim, e tomo uma ducha rápida, vestindo uma legging e um top de treino e
colocando a bendita fantasia de dinossauro por cima, sorrindo ao enxergar o
meu reflexo no espelho do closet.
Ela é fofinha, verde-escuro, com os detalhes da barriga e das costas
em um verde-limão, um capuz com dentes e olhinhos, e um rabo comprido.
O tecido é gostosinho, de algodão, e eu tenho quase certeza de que ela é
mais um pijama do que uma fantasia, mas meu noivo ficou tão empolgado
quando achou na internet, que não consegui dizer nada além de concordar.
Sigo para fora, rindo ao ver Henrique e Pedro pulando na cama
elástica, como duas crianças, enquanto Bianca segura o meu filho e aponta
para os dois. Minha cunhada já está com um barrigão, de quase sete meses, e
parece reluzir com o brilho da gravidez.
Sua enteada também brinca junto deles, fazendo gracinhas para o
bebê, que solta aquela gargalhada gostosa que aquece o meu coração.
Meus sogros estão em uma das mesas dispostas no jardim,
conversando com a Lúcia e com dona Ilda, a mãe do Joaquim. Ele e meu
cunhado estão de pé, perto da cama elástica, olhando para o meu noivo e seu
amigo com as maiores caras de julgamento que eu já vi em alguém.
— E aí, mamãe dino? — Carina provoca, se aproximando, e eu
balanço a cabeça, sorrindo.
— O que eu não faço por esse homem, amiga — respondo,
suspirando. — Você acredita num negócio desses? — Aponto para o
dinossauro robô. — Cinquenta mil, Carina, cinquenta mil reais nessa merda.
— Eu tentei dissuadir ele, amiga, mas quem disse que consegui? —
ela replica, e eu arregalo os olhos.
— Você sabia? — acuso.
— Quem você acha que ajudou o seu noivo a encontrar essa porcaria,
Alice? — pergunta retoricamente, apontando para o seu namorado. — Ele
me fez prometer que não contaria nada e, confesso, eu fiquei curiosa pra ver
a sua reação quando visse esse troço.
— Mui amiga, você, hein — resmungo, empurrando seu ombro.
— Ah, deixa de ser chata. Vocês são milionários, se ele quis gastar
isso num robô gigante, deixa, ué — diz. — Olha como o meu afilhado tá
animado.
Ele realmente está.
Lucca pula, animado, no colo da tia, gritando para o pai e o padrinho,
com a expressão mais feliz que eu já vi no seu rosto.
— E quando você descobriu a existência dele, chorou feito uma
condenada, com medo de dar tudo errado — comenta, me abraçando pela
cintura. — Quem diria que hoje estaria aqui, morando nessa casa enorme,
com dois livros publicados dentro e fora do Brasil, best-seller, noiva de um
gostoso e com uma família como essa.
Pisco, emocionada demais para conseguir responder verbalmente, e
apenas assinto, porque ela tem razão.
Parece até um sonho.
— Ei gente, eu acho bom a gente cantar parabéns logo, enquanto esse
bebê tá feliz e animado, porque ele já bocejou umas duas vezes aqui no meu
colo — Bianca diz, se aproximando.
— É melhor mesmo — concordo. — Vamos cantar parabéns, vamos?
Meu dino lindo da mamãe. — Pego meu bebê no colo, beijando sua
cabecinha cheirosa. — Ei, crianças, — chamo os dois marmanjos brincando
de quem pula mais alto — bora cantar parabéns? Podem parar com a
traquinagem um instante?
— Bora, tchutchuco — meu noivo diz, ofegante. — Depois a gente
volta.
Eles saem da cama elástica, correndo até nós, perto da mesa do bolo.
— Quando você me disse que ia alugar cama elástica e piscina de
bolinhas para entreter as crianças, eu devia ter pensado que se referia a você
e o Pedro, e não ao nosso filho e à Angélica — murmuro, quando ele chega
perto de mim.
Suas bochechas estão rosadas e ele carrega um brilho de menino no
olhar, e eu não consigo não sorrir com a imagem.
— Ainda vou te levar pra pular comigo, boneca — retruca, divertido.
— Nos seus sonhos — respondo. — Agora vamos, que já, já nosso
menino quer dormir.
— Ei, cara, tem que aguentar a tua festa — diz para o filho, fazendo
cosquinhas e arrancando risadas altas dele. — Papai e mamãe fizeram mó
festão pra você dormir? Nananinanão, bora ficar esperto, Luquinha —
murmura, se debruçando para deixar um monte de beijos na bochecha do
bebê, que gargalha.
— Tem vela? — Bianca pergunta, e eu aponto para o pacotinho que
deixei ao lado do bolo, com algumas velas pequenas. — Colocar só uma,
porque esse bebê é muito pequenino ainda.
Lucca sorri, como se entendesse, e a tia fica toda boba.
— Vem pra cá, mamãe e papai, e vamos cantar pra esse meninão —
Carina pede, e nós nos arrumamos atrás da mesa do bolo, rodeados pela
nossa família, que começa a entoar um “parabéns para você”.
Meu filho se encanta com a cantoria e a atenção, e bate palmas,
animado, soltando pequenos gritinhos felizes.
Ao final da música, eu cruzo o olhar com o meu noivo e sorrio, antes
de nos inclinarmos para soprar a vela juntos.
Todos aplaudem, animados, e Lucca imita, batendo as mãozinhas
gorduchas.
— Discurso! Discurso! — Carina começa o coro e eu olho para
Henrique, que parece tão feliz quanto eu, pedindo que comece.
— Eu só quero agradecer a presença de todos vocês aqui, hoje —
começa. — Cada um aqui sabe o quanto esse momento é especial, tanto pra
mim, quanto pra Alice, e, no lugar de fazer uma festa imensa, para um monte
de convidados que não entendem um terço do que foi a nossa história, nós
preferimos comemorar apenas em família, com vocês, que nos amam e
amam o nosso menino com todo o coração. Todos vocês são
importantíssimos na nossa vida e na vida do Lucca, e agradecemos muito, de
verdade, por todo o amor e cuidado que vocês têm com ele.
Ele me encara, passando a palavra para mim, e eu preciso engolir um
pouco a emoção antes de conseguir falar alguma coisa.
— Há quase dois anos, quando eu descobri que estava grávida do
Lucca, a minha vida era completamente diferente do que é hoje — digo,
puxando o ar. — Eu vivia isolada, machucada, deixando que a negatividade
de pessoas ruins manchassem a minha vida e apagassem a minha cor. Lucca
foi um susto, e, no começo, eu realmente não sabia como agir, o que fazer.
Me vi perdida, e a única mão que me amparava era a da minha irmã de alma.
Carina me olha, emocionada, e murmura um “eu te amo”, baixinho,
que eu retribuo.
— Só que, quando eu menos esperava, uma pessoa chacoalhou tudo
aquilo que eu julgava certo, e me mostrou uma realidade que eu nunca
pensei ser possível pra mim. — Olho para o homem ao meu lado, que já tem
os olhos vermelhos de emoção. — Você me mostrou que a felicidade era
algo alcançável e enxergou em mim um potencial que nem eu mesma
conhecia. Você me deu uma família. Não só nós três, mas toda essa família
linda e enorme, que cuida de mim e me ama como se eu fosse do seu próprio
sangue.
Olho para meus sogros, cunhados, amigos.
— Vocês todos me ensinaram que, na verdade, o sangue não significa
nada, quando acolheram a mim e ao meu filho de um jeito que eu nem
consigo explicar. Eu sou muito grata, extremamente grata, por ter entrado
para a família de vocês, e rezo pra que eu permaneça aqui pro resto da minha
vida, porque vocês são as avós, os pais e os irmãos que eu nunca tive.
Obrigada.
— Nós te amamos, minha menina — seu Afonso responde por todos,
fazendo a lágrima, que eu tanto segurei, escapar. — Você é nossa filha, pra
todo o sempre.
Sorrio para ele e agradeço, antes de voltar meu olhar para o homem
da minha vida.
— E eu agradeço a você, por ter me provado, todo santo dia, que eu
sou digna de amor e de carinho, e ter me ensinado a confiar, a amar e a ser
feliz. Obrigada por ser o melhor pai que eu poderia escolher para o nosso
filho, e para todos os filhos que Deus nos presentear. Eu te amo, meu amor
— termino, apoiando uma mão na sua bochecha. — E eu te amo, papai —
completo, segurando a mãozinha de Lucca e acenando para ele.
— Papa.
É possível ouvir o barulho dos grilos no jardim, tamanho o silêncio
que se faz, depois dessa pequena palavra.
— Ele realmente...
— Papa. — Antes que Henrique conclua, nosso bebê repete, seguido
de um gritinho, e agita os braços, pedindo o colo do pai.
— É o papai, amor. Vai com o papai, vai — murmuro, emocionada,
pelo momento e por ver um homem de quase um metro e noventa tão
emocionado, ao ponto de seus lábios tremerem.
— Papa, papa — Lucca repete, como um disco furado, e isso parece
tirar Henrique do transe, porque ele pega o menino no colo e o joga para
cima, gargalhando.
— É o bebê lindo do papai, é sim — diz, sorridente.
— Papa, papa, papa — meu menino continua, rindo junto dele, que o
abraça apertando, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
É a imagem mais linda que eu já vi.
Henrique levanta os olhos para mim e me chama, esticando a mão
para que eu me aproxime, e me abraça, nos envolvendo em uma bolha, só
nós três, enquanto nossa família nos observa.
— Obrigado por me fazer o homem mais feliz desse mundo, minha
boneca.
Eu sorrio, segurando seu rosto e beijando seus lábios.
— Obrigada por retribuir.
Aqui, com os dois homens da minha vida, eu consigo entender o real
sentido de paz e felicidade.
Aqui, no meu lar.
Epílogo 2 - Henrique

Largo tudo se a gente se casar domingo


Na praia, no sol, no mar,
Ou num navio a navegar, num avião a decolar
Indo sem data pra voltar, toda de branco no altar
Pra Sonhar – Marcelo Jeneci

— Você vai fazer um buraco no chão desse jeito, mané — Pedro


resmunga, dando um tapa na minha cabeça, quando passo de novo por ele.
— Vai se foder, filho da puta — murmuro, baixinho.
— Olha aí, Deus tá te ouvindo xingar na casa dele, vai pro inferno.
— Vou, e vou te esperar lá, pau no c-rabo — rebato, irritado.
— Posso saber por que você tá com essa cara feia? — Benjamin
pergunta, se aproximando. — Você nem parece que vai se casar em poucos
minutos, eu hein.
— Ela tá atrasada — digo, olhando mais uma vez o relógio. — Será
que ela desistiu?
— Sim, Henrique, ela com certeza desistiu. Ela ficou com você por
dois anos, teve um filho com você, escolheu cada detalhe dessa cerimônia,
só pra te deixar plantado aqui feito um otário — Pedro debocha. — Ela deve
tá fugindo agora mesmo pro Paraguai, se duvidar, é a minha ruiva que tá
dirigindo o caro.
— Não deixa ele mais pilhado, porra — Benji resmunga, empurrando
o meu amigo. — Irmão, ela não tá atrasada, deixa de neura.
— Tá sim — retruco. — O casamento tava marcado pra quatro horas.
— São quatro e vinte, Henrique, pelo amor de Deus, isso não é nada.
Nunca ouviu falar que noivas atrasam? — meu irmão responde, esfregando o
rosto com as mãos. — Ela deve estar chegando. A Liv avisou que elas
estavam saindo de lá faz uns quinze minutos. Relaxa.
Minha boneca, Bianca, Carina e Olívia, a namorada de Benji, se
arrumaram juntas, em um spa da cidade, e viriam de limosine para a igreja.
— Liga pra ela, pergunta onde estão — peço, e meu irmão bufa,
puxando o celular do bolso. Antes que ele possa fazer a chamada, porém,
uma das moças do cerimonial se aproxima.
— Com licença, os padrinhos podem, por favor, se dirigir à entrada
da igreja? Vamos iniciar o cortejo. Noivo, pode se posicionar no altar, por
favor. — Meu coração dispara feito um louco, por saber que chegou a hora.
— Pronto, chegaram, pode sossegar agora? — Pedro pergunta.
— O que vocês ainda estão fazendo aqui? — rebato. — Vão logo, ela
só vai entrar depois de vocês, seus porra. — Ouço uma garganta arranhando
e me viro, enxergando o celebrante me dando uma encarada feia. —
Desculpa, padre, desculpa, Deus — peço, fazendo o sinal da cruz. — Esses
dois me estressam.
Benjamin e Pedro reviram os olhos, mas seguem para fora da igreja,
atrás da cerimonialista. A porta se abre e eu me estico para tentar enxergar
alguma coisa, mas apenas vejo a namorada do meu irmão entrar e sorrir para
mim, seguindo até o banco onde estão Isabel, Lúcia e Michele, e se sentar
junto delas.
Joaquim e dona Ilda estão no banco de trás, meu cunhado segurando
o meu sobrinho gorducho, de quase três meses, Eduardo.
São poucos convidados, apenas a nossa família imediata, alguns
poucos amigos, um pessoal da Editora, o agente da Alice e, da sua família,
apenas a prima Luciana, que trouxe o seu namorado.
Apenas trinta pessoas presentes para testemunhar o nosso casamento,
a formalização do nosso amor, da nossa união.
Minhas mãos começam a suar quando os primeiros acordes da
música dos padrinhos começa a tocar, e as portas da igreja se abrem.
Primeiro, Benjamin e Bianca entram no corredor, minha irmã linda em um
vestido cor de lavanda, a cor escolhida por Alice para as madrinhas, e meu
irmão em um terno preto, com gravata combinando.
Logo atrás, surgem Pedro e Carina, usando trajes semelhantes, mas o
vestido da melhor amiga da minha mulher tem um corte diferente do da
minha irmã, apesar da mesma cor e tecido.
Os quatro se posicionam no primeiro banco da direita, sorrindo para
mim, e eu retribuo, mesmo estando um poço de nervosismo, sentindo o meu
peito retumbar como nunca antes, ao saber que o meu amor entrará daqui a
pouco.
A música muda, e logo a minha sobrinha Angélica entra, em um
vestido branco de daminha lindo, com uma faixa lilás na cintura, ajudando o
meu menino a andar até mim, com passos vacilantes.
Meu Lucca está usando um terninho feito sob medida, idêntico ao
meu, e sua boca banguela está aberta em um sorriso animado ao me ver no
altar, soltando uns gritinhos e chamando por mim.
— Papai, papai! — Não me aguento e quebro o protocolo, descendo
as escadas e indo até eles, depositando um beijo na cabeça de Angélica e
pegando o meu menino no colo, voltando para o meu lugar.
Quando o som da marcha nupcial invade a igreja, mudando
suavemente para a versão instrumental de Ave Maria, Isabel se aproxima
para pegar Lucca e eu me arrumo, me preparando mentalmente para não
desabar de emoção à primeira imagem da minha boneca.
Não dá certo.
Porque, quando as portas se abrem novamente, e ela surge, de braços
dados com o meu pai, cada respiração que eu já dei até hoje, cada batida do
meu coração, cada suspirar, tudo perde o sentido.
É como se a minha vida começasse nesse momento, em que ela anda
até mim, com um sorriso trêmulo e os olhos marejados, parecendo uma fada,
flutuando pelo corredor da igreja.
Se eu achasse possível, diria que me apaixonei ainda mais por ela
nesse momento.
Mas eu sei que não é.
Não é, porque Alice é tudo o que eu sou, é cada pedaço de mim, é o
ar que eu respiro. Alice é o meu passado, meu presente e o meu futuro, é a
minha escolha diária.
Amar a Alice é a minha missão nessa vida, disso eu tenho certeza.
Seu vestido é a coisa mais linda que eu já vi, todo fluido, com uma
saia rodada cheia de aplicações de flores e pérolas, e um corpete de princesa,
todo demarcado, que deixa os seus seios empinados e a sua cintura marcada,
de um jeito que eu só quero colocar a minha mão ali, e apertar.
O decote coração é enfeitado com mais aplicações e as mangas, que
vão até os pulsos, no mesmo tecido fluido da saia, são estilo ciganinha,
deixando seus ombros à mostra, uma tentação para meus lábios, que só
querem beijar cada centímetro de pele ali.
Seus cabelos, presos em um coque bagunçado, com uma pequena
coroa no topo de sua cabeça, como a princesa que ela é, e um véu comprido,
que a segue pela igreja, completam o visual.
Mas o mais lindo de tudo é o seu sorriso.
Alice sorri com a alma, reluzindo brilho e felicidade, e eu não
consigo segurar o meu próprio sorriso, porque ela é linda, ela é tudo, ela é
perfeita.
Quando ela chega perto de mim, não me aguento e desço mais uma
vez, encontrando-a no início do altar, e pegando a sua mão, que meu pai
oferece.
— Sejam ainda mais felizes, meus filhos — meu velho deseja,
beijando a testa de Alice e me dando um abraço, mas eu confesso que mal
percebo, porque meus olhos estão vidrados nessa visão diante de mim.
Me inclino, tentando beijá-la, mas ela se esquiva, sorrindo.
— Ainda não, apressadinho — provoca. — Vamos nos casar,
primeiro.
Faço bico, mas ela não cede, então subo com ela no altar, querendo
que essa cerimônia acabe o mais rápido possível, para que eu possa engolir
esse sorriso com a minha boca.
O padre começa a falar, mas minha mente desliga, apenas focado na
mulher da minha vida.
— Henrique. — Pisco, atordoado, quando escuto ele chamando meu
nome.
— Que?
Os convidados caem na risada, assim como a minha linda noiva e o
padre, que repete a pergunta.
— Henrique, você aceita Alice como sua legítima esposa?
— Ô se aceito, meu Deus do céu — murmuro, arrancando mais risos
de todos.
— Promete amá-la e respeitá-la, na saúde e na doença, na riqueza e
na pobreza, até que a morte os separe?
— Prometo até além da morte — respondo. — Eu vou te amar pra
sempre, nessa e em qualquer outra vida.
Alice pisca, emocionada, e uma lágrima escorre pelo seu rosto.
— Alice, você aceita Henrique como seu legítimo esposo? — ele
pergunta a ela.
— Aceito — sussurra, assentindo.
— Promete amá-lo e respeitá-lo, na saúde na doença, na riqueza e na
pobreza, até que a morte os separe?
— Prometo — repete, me fazendo chorar.
— Posso beijar ela agora? — pergunto ao padre, sem tirar os olhos
dela.
— Ainda não, mocinho. As alianças, primeiro.
Pedro se levanta, entregando as alianças ao padre, que faz o ritual da
benção sobre elas, e me dá a de Alice.
— Repita depois de mim. Eu, Henrique...
— Eu, Henrique, te recebo, Alice, como minha esposa, e te prometo
fidelidade e amor, dedicação e respeito, por todos os dias da nossa vida.
— Eu, Alice... — minha boneca repete as mesmas palavras,
colocando o anel em meu dedo, e eu sinto a mais pura felicidade preencher o
meu coração, com a imagem.
— Agora pode? — pergunto, fazendo Alice sorrir e balançar a cabeça
para mim.
— Já, já, apressadinho — o padre responde, rindo. — O que Deus
uniu, o homem não pode separar. Em Seu nome, e com a Sua benção, eu os
declaro marido e mulher. — Eu olho para ele, ansioso, e ele me encara,
divertido. — Agora pode beijar a noiva.
Antes mesmo que ele conclua, eu já seguro a sua cintura e colo
nossas bocas no nosso primeiro beijo casados, ouvindo nossos convidados
aplaudirem e comemorarem a nossa felicidade.
— Oi, esposa — murmuro, contra seus lábios.
— Oi, marido — responde, fazendo meu coração acelerar.
O mundo inteiro se esvai ao nosso redor e eu só enxergo ela.
Perfeita.
Minha.
Para sempre, minha.
*
— Feliz? — pergunto, algumas horas depois, enquanto dançamos na
pista.
Nossa recepção está sendo no jardim da casa do meu pai, já que são
poucos convidados, em um jantar informal, com muita música e diversão.
Como só viajaremos amanhã à noite, para passar três dias em
Fernando de Noronha, não tivemos pressa para nos despedir de nossa família
e amigos, e ainda estamos aqui, curtindo a noite.
— Eu sei que já disse isso outras vezes, mas sempre é verdade —
começa, suspirando. — Acho que nunca fui tão feliz na minha vida.
— Essa é uma coisa que eu pretendo passar o resto da vida
superando, minha boneca — respondo. — Quero que cada dia ao meu lado
seja o melhor da sua vida, quero que, quando você pensar que já sentiu a
maior felicidade possível, eu possa te provar o contrário. Porque você é o
significado de amor e felicidade pra mim, Alice. Você é a minha maior
riqueza, o meu melhor tesouro. Eu quero te fazer sentir um décimo da
plenitude que você trouxe pra minha vida, um milésimo da alegria que você
me dá, todos os dias.
— Amor... — ela sussurra, emocionada.
— Eu te amo mais do que um dia eu serei capaz de te descrever,
minha Alice. Eu te amo desde o primeiro segundo que meus olhos te viram,
mesmo antes de eu entender o que sentia, mesmo quando você não me
enxergava, mesmo quando eu apenas sonhava em te ter. Eu te amo com cada
pedaço da minha alma, com cada grama do meu corpo, com o meu coração
inteiro. E eu vou te amar até o dia que ele parar de bater, e além disso,
quando eu nem mais existir, porque o que eu sinto por você vai além dessa
vida, além de todas as vidas.
— Eu também te amo, meu amor, mais que tudo, mais que um dia eu
poderia sonhar viver — ela responde.
— Minha esposa — sussurro, ainda me acostumando com as
palavras, apreciando-as, degustando-as. — Minha linda esposa, eu sou o
homem mais feliz do mundo, hoje. Você e Lucca são tudo o que eu sempre
sonhei, sabia?
— Só nós dois? — pergunta.
Franzo o cenho, confuso.
— Como assim?
— Só eu e o Lucca? — repete. — Ou teria espaço pra mais alguém?
Encaro o seu rosto, confuso, até que percebo ela levar uma mão para
a barriga, na altura do seu ventre, e o lugar todo começa a girar.
— Você... — balbucio, piscando para tentar me manter são e não
desmaiar igual uma jaca podre nesse chão. — Boneca, você...
— Eu tô grávida, meu amor — sussurra, sorrindo. — Você vai ser
papai de novo.
Me ajoelho aos seus pés, tanto porque não tenho forças, quanto para
beijar a sua barriga. Encosto a testa nela, sentindo os olhares de todos ao
nosso redor em nós, e então escuto as comemorações e gritos da nossa
família e dos nossos amigos, vibrando por nós.
Tento me recompor, antes de me levantar, e então seguro o seu rosto
lindo em minhas mãos, cobrindo seus lábios com os meus em um beijo cheio
de reverência e amor.
— Quando eu pensei que não seria capaz de te amar ainda mais, você
me diz uma coisa dessas... — sussurro. — Eu te amo, Alice. Minha Alice.
— Eu te amo, Henrique. Meu Henrique.
E no meio da pista de dança, rodeado de tanto amor, com essa mulher
em meus braços, eu tenho a mais absoluta certeza de que sou o homem mais
rico do mundo.
Milionário, de tudo aquilo que o dinheiro não compra.
E o mais sortudo do mundo, por ter conseguido o amor da minha
vida e essa família perfeita.
Meu plano infalível realmente funcionou. Graças a Deus.
Notas finais

Finalmente, chegamos ao final de Henlice!


Termino esse livro com lágrimas nos olhos e uma dificuldade enorme
de dizer adeus...
Não queria me despedir de Alice e Henrique. Não queria dizer tchau
para esses personagens tão perfeitos, que significam tanto para mim.
Mas me conforta o coração saber que, sim, eles vão voltar!
Santa Consolação ainda será o cenário de muitas histórias nossas,
porque eu sou completamente apaixonada por esse universo!
Agradeço, mais uma vez, ao meu marido, que inspirou os dois
homens dessa história de amor (Lucca e Henrique). Meu Lucas Henrique, eu
te amo, infinitamente, e sou eternamente grata por você na minha vida.
Obrigada por confiar nos meus sonhos, por me incentivar e me ajudar a
chegar até aqui.
Agradeço à Sofia, por ter ilustrado tão perfeitamente esses
personagens. O seu trabalho é absolutamente incrível, zero defeitos.
Agradeço às minhas parceiras, que acreditaram nesse livro, surtaram
comigo e se apaixonaram pelo Henrique. Obrigada por ajudarem na
divulgação e por todo o apoio! Vocês são incríveis!
E, por fim, agradeço ao grupo de dezoito garotas que mais acreditam
em mim (até mais do que eu mesma). Beks, Dani, Déborah, Eme, Fabinha,
Fernanda, Gaby, Ivy, Jell (e Kelly, e empatinha), Jesy, Lara, Laysa, Lud,
Milena, Rafaela, Sam, Sasa e Thalia, muito, muito, muito obrigada por
TUDO! Henrique não existiria se não fosse por cada uma de vocês. E sim,
ele é vossa propriedade, assinado e reconhecido em cartório. Eu amo cada
uma de vocês, e sou muito grata pela amizade, pelo carinho e pelo cuidado!
Por fim, a você, leitora, que me acompanha nessa loucura que eu
decidi me aventurar esse ano. Obrigada por todo o apoio, e não se esqueça
de avaliar.
Isso é MUITO importante para mim!
Até muito breve!
Com muito carinho e amor.
Paula M. Neves
Para aquelas que não conseguiram a atualização dos capítulos extras de
Bianca e Joaquim (Entre Páginas e Cupcakes), segue a seguir o
nascimento do bebê Eduardo!
Bônus EPC

Capítulo 01 - Bianca
Nunca pensei que estar grávida pudesse ser tão desconfortável.
Às trinta e nove semanas e cinco dias de gestação, eu sinto como se
fosse explodir.
Deixa eu te contar uma coisa sobre ser uma mulher de um metro e
meio, grávida de um cara que poderia competir com o Pé Grande, de tão alto
e forte: não é nadinha divertido.
A genética do Joaquim é potente o suficiente para que o nosso filho
seja um bebê mutante gigante, de quase três quilos e setecentos gramas e
mais de cinquenta centímetros. Aparentemente, quando a sua porra é forte o
bastante para driblar um DIU de cobre, também é forte para criar um super
bebê.
Talvez eu odeie o meu noivo só um pouquinho por causa disso.
Mas só um pouquinho mesmo, afinal, aqui, deitada na nossa cama
quentinha, com a nossa menininha de dez anos aninhada em meus braços,
assistindo a Maribel dançar e cantar, torcendo para finalmente ser agraciada
com o seu dom, eu me sinto mais feliz do que algum dia já senti na minha
vida.
— Mamãe? — meu pedacinho de amor me chama, levantando a
cabeça para me olhar. — O Dudu tá quietinho, né? Nem me chutou hoje…
— comenta, acariciando a minha barriga.
Abro um sorriso, pousando a minha mão em cima da dela.
— Ele tá dormindo, bonequinha — murmuro. — Tá aproveitando os
últimos dias nessa barriga quentinha antes de vir conhecer a gente.
Cada dia mais perto do nascimento, Angélica fica ainda mais
animada e ansiosa com a ideia de ser irmã mais velha. Respondo um zilhão
de perguntas, todos os dias, e não posso dizer que não vou sentir falta desses
momentos.
Meu parto está marcado para daqui três dias, e estamos todos
empolgados com a ideia de finalmente ter o mais novo membro da família
entre nós.
Dona Ilda já lavou e passou todas as roupinhas dele umas três vezes,
de ansiedade, e o meu pai e a Isabel ligam de meia em meia hora, querendo
saber se alguma coisa incrível e diferente aconteceu.
Spoiler, não.
Mesmo sendo extremamente desconfortável, a reta final da gravidez
é, na verdade, bem monótona.
O bebê já fez tudo o que tinha que fazer, nós já descobrimos tudo o
que era possível descobrir, então só nos resta esperar o tempo certo de
terminar de cozinhar essa fofura, antes que ele venha bem saudável para nós.
Apesar de que, nos últimos dois dias, venho experimentando mais
contrações de treinamento do que o normal, e cada vez mais longas e
dolorosas.
No início da trigésima sexta semana, tomamos um susto, achando
que tinha chegado a hora, quando eu comecei a sentir um pouco de cólica e o
meu ventre mais duro do que o normal. Corremos para o hospital, mas a
obstetra plantonista nos tranquilizou, dizendo que se tratavam de contrações
de treinamento, e que eu saberia quando elas se tornassem verdadeiras.
— Até parece que quando ele nascer não vai dormir o tempo todo —
Angélica replica, sabichona, aproximando o rosto da minha barriga. —
Deixa de ser preguiçoso, maninho. Fica só no bem bom aí. Quando você
nascer, eu vou te fazer cosquinha quando quiser dormir demais.
Solto uma risada, afagando os seus cabelos, enquanto ela sorri, me
mostrando aquela banguelinha linda de sorriso.
Como eu amo essa criança, meu Deus.
Confesso que tive um leve surto quando descobri a minha gravidez,
há alguns meses. Tinha muito medo de ser uma mãe ruim, e chorei feito um
bebê no colo do Joaquim, dizendo que eu provavelmente iria matar o nosso
filho afogado na primeira vez que fosse dar banho nele, de tão
destrambelhada que sou.
Mas aí o meu noivo me lembrou de um detalhe bem importante.
Mesmo que naquela época ela ainda não me chamasse de mãe, eu já
vinha desempenhando esse papel na vida da nossa anjinha desde que
assumimos o nosso relacionamento, e estava me saindo muito bem, modéstia
à parte.
Quando percebi isso, meu coração se tranquilizou, apesar de ainda
me sentir um pouco em pânico com a ideia de ser responsável pela vida de
alguém tão frágil e dependente.
Angélica já é grande, quando sente algo ruim ela é capaz de falar.
O bebê não. Ele dependeria única e exclusivamente da minha
capacidade de detectar algo errado e de prover o necessário para deixá-lo
confortável.
É um pouco assustador.
Mas não vejo a hora dele chegar.
— Quando ele se esgoelar de chorar no seu ouvido, por ter
interrompido a sonequinha dele, quero ver a senhorita se arrepender da
graça, mocinha — provoco, fazendo cosquinhas na sua barriga e arrancando-
lhe uma gargalhada gostosa.
Só que, em poucos segundos, o clima leve e divertido entre nós se
torna um silêncio tenso e assustador quando nós duas sentimos o colchão
molhado.
— Mamãe? — Angélica pergunta, visivelmente nervosa, e eu preciso
me controlar para não me desesperar.
— Parece que o seu irmão quer vir mais cedo do que o previsto,
bonequinha — murmuro, tentando sorrir e transmitir uma tranquilidade que
eu não sinto. — Pega o telefone e liga pro seu pai, tá? Diz pra ele que a
minha bolsa estourou e ele precisa vir o mais depressa possível — oriento,
tentando me levantar.
— Tá bem, mamãe — ela responde, pegando o aparelho na mesinha
de cabeceira e procurando o número do confeiteiro.
Eu me sento na beira da cama, começando a fazer os exercícios de
respiração que a minha obstetra me ensinou, para manter a cabeça no lugar.
Estou sozinha nessa casa com a minha filha e, definitivamente, não posso me
desesperar.
Já passa das três da tarde e eu sei que o meu noivo deve estar saindo
da livraria agora, então não deve demorar nadinha para que ele apareça aqui.
Dona Ilda foi para a sua aula de hidroginástica, e deve retornar só perto das
cinco, e a moça que cuida da limpeza já terminou o seu expediente e se
despediu de nós há mais de meia hora.
Só mais alguns minutos.
Já, já o Joaquim chega e tudo vai ficar bem.
*
Eu vou matar aquele confeiteiro de uma figa!
— Mamãe, o papai ainda não atendeu! — Angélica diz, a sua voz
ficando mais nervosa a cada segundo que o seu pai não atende as vinte e
cinco malditas ligações que já fizemos nos últimos quinze minutos!
— Tenta ligar pro tio Benji de novo, bonequinha — peço, puxando a
respiração quando uma contração me atinge. — O papai deve estar ocupado.
Sim.
Ocupado enfiando o telefone no cu!
Cadê esse infeliz e por que decidiu sumir no mundo justo na hora que
eu mais preciso dele?
— Ele também não atende, mamãe — ela me informa, me olhando
com uma expressão assustada e olhinhos marejados. — O Edu vai nascer
aqui em casa?
Ah, mas nem por um caralho!
— Não, amorzinho, claro que não — tranquilizo-a. — Seu irmão vai
nascer lá no hospital, bem seguro e quentinho, cheio de médicos e
enfermeiras que vão cuidar muito bem de nós dois, tá bem?
E com muita, mas muita anestesia, porque esse caralho dói demais!!!
— Tá bom — murmura. — Vou ligar pro papai de novo.
— Isso, liga pro seu pai, princesa. A mamãe vai no banheiro
rapidinho, tá? — digo, esboçando um sorriso para disfarçar a careta de dor
que quero fazer nesse momento.
Angélica assente, discando mais uma vez o número do seu finado
pai, enquanto eu sigo para o banheiro.
Isso mesmo, você não leu errado.
Finado pai.
Porque a hora que eu colocar as mãos nesse desgraçado eu vou matá-
lo!
E depois vou ressuscitá-lo só pra matá-lo de novo!
Filho da puta!, xingo, me curvando na frente da pia e segurando-a
com força.
Pau no cu, arrombado, infeliz, cretino, desgraçado!!
Meu Deus, como isso dói!
— Oh, meu amorzinho, não tinha outra hora pra você vir nesse
mundo, não? — murmuro, segurando a minha barriga. — De preferência
quando eu estivesse no hospital, com anestesia na veia e um monte de gente
pra me paparicar?
Engulo o choro e tento respirar mais uma vez.
Vai dar certo. Vai dar tudo certo.
Capítulo 02 - Joaquim
A Bianca vai me matar.
Quando eu estava saindo da livraria, a moça que está substituindo ela
e a Amanda na administração me chamou para tentar resolver uma questão
sobre o atraso na entrega de alguns lotes de livros.
Deixa eu te dizer o que eu sei sobre lotes de livros: PORRA.
NENHUMA.
Matheus voltou a trabalhar há quase dois meses, graças a Deus,
depois de tirar trinta dias para ficar junto da Amanda e da sua menininha
recém-nascida, mas ela ainda tem mais um mês inteiro de licença-
maternidade antes de retornar, em meio período, para a livraria.
Por isso, ela e a Bianca decidiram contratar uma moça, também
formada em administração, para assumir a gerência do lugar durante esse
período em que nenhuma das duas estaria aqui.
Com muito esforço, consegui convencer a Bianca a se afastar da
livraria em tempo integral pouco antes de ela completar oito meses de
gravidez, porque a rotina de subir as escadas para o seu escritório e de cuidar
de toda a burocracia que envolve gerir esse lugar estavam deixando ela
cansada demais.
Porra, ela é a dona desse caralho.
Se ela não puder dizer o momento certo de se afastar, pelo seu bem e
do nosso menino, então de que serve mandar em toda essa bosta?
Claro que a teimosa ainda veio algumas vezes, ver como estava a
adaptação da Edith, cuidando da gerência, mas eu tentei evitar ao máximo
que se estressasse e prejudicasse a gravidez.
Me saí muito bem nesse papel, durante os últimos nove meses.
Até agora.
— Caralho, ela vai me matar — resmungo, ao manobrar o carro na
garagem de casa.
Tentando ajudar a Edith e o Matheus a resolver a bronca toda com a
remessa atrasada, não percebi que o meu telefone ainda estava conectado aos
fones de ouvido, e que esses estavam no meu bolso, desde a hora que saí da
cozinha.
Ou seja, não escutei nenhuma das trinta e duas ligações que ela e a
anjinha fizeram para mim.
Sim, trinta e duas.
Quase tive um infarto quando peguei o telefone e vi as notificações,
bem a tempo de mais uma chamada surgir e eu atender, ouvindo a voz
assustada da minha filha me informando que a bolsa tinha estourado há
quase meia hora e ninguém atendeu o telefone para ir ajudar.
Nem eu, nem o Benjamin, nem o Henrique, nem o seu Afonso.
Estamos todos fodidos nessa merda.
Ela vai fazer picadinho de cada um de nós.
— Anjinha?! — chamo, assim que entro em casa, já subindo os
degraus de dois em dois, correndo até a nossa suíte. — Anjinha? Princesa?
— Abro a porta de supetão, vendo a minha filha parada na porta do banheiro,
olhando a minha noiva sentada na banheira, respirando ritmadamente.
— Papai! — ela exclama, correndo até mim e puxando a minha mão,
para que eu me aproxime. — A mamãe disse que ficar de molho é bom pra
dor, mas ela tá sentindo muita, muita dor!
Olho para a minha loirinha, toda vermelha de tanto esforço, e sinto o
meu coração apertar.
— Nós vamos pro hospital e já, já a mamãe vai tomar um remedinho
pra ajudar a passar a dor, tá bem? — explico, afagando os seus cabelos e
tentando acalmá-la.
— Eu tô bem, meu amor — Bianca sorri, tentando transmitir
tranquilidade para a nossa filha. — Você foi muito corajosa e eu tô muito
orgulhosa de você, amor. Mas agora o papai tá aqui e vai ficar tudo bem, ok?
— Angélica assente, sorrindo para a mãe. — Você pode pegar um copo de
água pra mim, por favor? — ela pede, e a nossa menina assente rapidamente,
saindo do quarto.
Eu me aproximo, me ajoelhando ao seu lado e tirando os cabelos do
seu rosto.
— Oi, minha princesa… desculpa ter demorado, eu… — Sou
interrompido quando ela segura a gola da minha camisa, me puxando para
perto e me dando um olhar digno daqueles personagens possuídos de filme
de terror.
— Onde você se enfiou, seu desgraçado?! — exclama, perdendo toda
a tranquilidade e paciência de minutos atrás. — Enfiou o celular no cu, por
acaso? Eu aqui, me cagando de dor, e você, que é o culpado de tudo, junto
desse teu pau demoníaco, achou uma boa ideia sumir no mundo? Filho da
puta, infeliz, pau no cu do caralho, eu vou te matar!
Pisco algumas vezes, um pouco atordoado, antes de conseguir reagir.
— Você tá falando palavrão? — pergunto, incrédulo.
Em quase dois anos de relacionamento, essa mulher nunca falou um
palavrão sequer.
Nunca.
E sempre foi chacota dos irmãos, pela forma que costuma xingar de
uma forma bem fofa, todas as vezes que se irrita.
— Experimenta ter que empurrar uma melancia pela boceta pra ver
se você não vai chamar palavrão também, seu arrombado do caralho! —
rebate, soltando um grito no final, quando mais uma contração forte lhe
atinge.
Ok.
Quem é esse caminhoneiro e o que ele fez com a minha mulher?
— Tudo bem, princesa, você tá certa, me desculpa — murmuro,
porque, se no seu estado normal eu já não gosto de irritar essa criatura, que
dirá parindo a porra de uma melancia, como ela bem disse. — Eu chamei a
babá da Angélica, ela tá chegando já, vai ficar até a dona Ilda chegar. Vamos
sair dessa banheira e vestir uma roupa pra ir pro hospital, tá?
Ela assente, segurando a minha mão e apertando os dedos com força,
enquanto respira pesadamente.
— Você nunca, nunca, nunca mais vai enfiar esse pau maldito em
mim, ouviu? — resmunga, me olhando com uma expressão de puro ódio. —
Eu quero arrancar ele e te fazer engolir, inferno! — exclama, se curvando
para suportar mais uma onda de dor.
— Você pode fazer o que quiser, minha princesa — respondo, como
um bom pau mandado. — Vamos mudar de roupa, vamos? Já, já você vai
receber uma anestesia e vai dar tudo certo.
*
Então.
Meio que não deu certo.
Primeiro, pegamos um leve congestionamento na rua principal de
acesso ao centro da cidade, onde fica a maternidade.
Foram vinte minutos de gritos, gemidos e muitos, mas MUITOS
palavrões da minha mulher. Quem diria que uma criatura tão pequena
pudesse se tornar tão violenta durante o trabalho de parto?
Quando finalmente conseguimos chegar no hospital, demorou mais
uns bons minutos até conseguirem acomodá-la em um quarto, porque não
havia nenhum individual disponível no sistema naquele momento, e ela disse
que se recusava a arreganhar as pernas em um quarto com outras pessoas e
mostrar a boceta para um mundaréu de gente.
Sim. Com essas palavras.
Então Bianca ficou em uma cadeira de rodas, na recepção do
hospital, berrando para os quatro ventos que ia parir sentada ali se ninguém
fizesse nada, e que ia processar o hospital e quem quer que aparecesse na sua
frente.
Não demorou nadinha para aparecer um quarto livre, e logo começou
outra confusão, porque a sua obstetra não tinha chegado ainda. Eu tentei
acalmar a fera, dizendo que a pobre mulher tinha trabalhado um plantão de
trinta e seis horas e estava dormindo quando eu liguei para avisar sobre o
parto, mas que já estava a caminho, e recebi de resposta que eu era um cuzão
por ficar do lado da médica.
E que, como eu jamais a comeria de novo, podia fugir com a obstetra
e fazer um milhão de bebês gigantes nela, lá na puta que pariu.
E agora estou aqui, apenas pedindo desculpas e dizendo que ela tem
razão, enquanto enxugo a sua testa com uma toalha molhada e rezo para que
o meu menino não demore muito para nascer.
Tenho esperanças de que a sua chegada funcione como um
exorcismo para expurgar o demônio que tomou conta do corpo da minha
noiva desde o segundo que a sua bolsa estourou.
— Eu odeio você — ela murmura, ofegante, depois que uma
contração bem forte a atinge. — Odeio você, odeio o seu pau mutilador de
DIU, odeio tudo! Ah, meu Deus, porque essa anestesia é tão fraca? — grita,
apertando os meus dedos com força o suficiente para quase quebrá-los.
— Parece que temos um bebê muito ansioso pra nascer aqui, não é,
papais? — a médica finalmente aparece, com um sorriso no rosto, e Bianca
desaba sobre o leito, o peito subindo e descendo com o esforço de respirar, e
o suor escorrendo pela sua testa. — Vamos examinar pra ver como estamos
avançados? — pergunta, vestindo um par de luvas. — Bianca, vou tocar em
você, tudo bem?
— Você pode enfiar até o braço todo, desde que essa porra pare de
doer! Caralho! — grita, se curvando para suportar mais uma contração.
— O intervalo está em quantos minutos? — ela pergunta para
enfermeira.
— Menos de dois, doutora — informa.
— E pelo que vejo, — murmura, examinando a minha mulher —
estamos com a dilatação certa para iniciarmos os trabalhos. Aplicaram a
epidural? — pergunta, e a enfermeira assente.
— Eu acho que tinha água no lugar daquela merda, porque não fez
efeito nenhum, essa porra dói demais! — choraminga, algumas lágrimas
escapando dos seus olhos.
— Tá acabando, minha princesa. Já vai acabar… — murmuro,
enxugando o seu rosto.
— Cala a boca! Nunca mais, Joaquim. Eu espero que você goste de
bater punheta, porque você nunca mais vai me comer. Ouviu? Nunca mais,
seu confeiteiro desgraçado! — exclama, me fuzilando com o olhar.
— Tudo bem, meu amor, o que você quiser, tudo bem… — Apenas
concordo, porque eu tenho amor à minha vida, e vejo a médica abrindo um
sorriso de canto de boca.
— Bianca, o bebê já está coroando, ok? Isso significa que na próxima
contração, eu preciso que você empurre. Tá bem? — pergunta, e a Bianca
arregala os olhos.
— Eu não vou conseguir. Não vai dar certo, tá muito cedo, ele tem
que ficar aí dentro mais tempo… — Ela começa a se desesperar, os seus
olhinhos azuis banhados em lágrimas. — Meu filho, a mamãe não tá pronta,
fica aí mais um pouquinho, por favor…
— Princesa. — Seguro o seu rosto, chamando a sua atenção. — Vai
dar tudo certo, meu amor. O Eduardo tá pronto pra nascer e nós dois estamos
prontos pra recebê-lo. A anjinha tá ansiosa pra conhecer o irmão. Seus
irmãos, seu pai, suas cunhadas, tá todo mundo doido pra ver o nosso menino.
Traz ele pra nós, minha linda. Você consegue…
Ela pisca, fazendo uma careta de dor e nervoso e balança a cabeça.
— Você nunca mais vai encostar em mim, nunca mais… — murmura
baixinho, antes de puxar a respiração. — Tá bem, tô pronta…
— Ótimo, Bianca… vai dar tudo certo… na próxima, empurre!
Não demora nem cinco segundos e a loirinha aperta os meus dedos
com força, começando a empurrar e gritar ao mesmo tempo, fazendo um
esforço descomunal para trazer o nosso filho a esse mundo.
Se eu já não a amasse tanto, me renderia agora.
— Quase lá, Bianca, mais uma vez, empurra! — a médica orienta, se
ajeitando para segurar o meu filho.
São segundos, mas que parecem horas intermináveis, e então o grito
da Bianca é substituído por outro, mais agudo, mais estridente, mas tão, tão
lindo, que quase me derruba de joelhos. É o som mais perfeito desse mundo,
e eu sinto o meu coração se inundar do mais profundo amor.
— Ele nasceu, amor… — Bianca ofega, chorando, enquanto as
enfermeiras e a médica arrumam o bebê no seu peito.
— Conheçam o seu menino lindo, Bianca e Joaquim… — a médica
anuncia, antes de se afastar, com um sorriso.
— Oi, Eduardo… — eu sussurro, traçando o seu rostinho com os
meus dedos, sentindo as lágrimas escorrendo pelo meu rosto. — Oi, meu
filho… é o papai… lembra de mim? A gente conversou bastante nos últimos
meses…
Meu menino para de chorar e mexe a cabeça, apertando os olhinhos e
abrindo e fechando a boquinha, como se buscasse a origem da minha voz, e
é a coisa mais perfeita desse mundo.
— Ele reconheceu você, amor… — Bianca murmura, emocionada.
— Claro que reconheceu… é o meu garotão, né? — digo, sentindo
um bolo na minha garganta. — Obrigado, princesa. Você acabou de realizar
mais um sonho que eu nem sabia que tinha… — murmuro, me inclinando
para beijar a sua testa. — Eu amo você.
— Eu também te amo, meu amor… obrigada por me dar uma família
tão linda… — responde, sorrindo para mim.
Fico abobalhado, observando os dois, enquanto ela cantarola para o
nosso filho, uma melodia bem suave.
Eu sinto como se, nesse momento, eu pudesse conquistar o mundo
todo.
É, com certeza, um dos dias mais especiais da minha vida inteira.
Capítulo 03 – Bianca
— Ele é tão perfeito, né, amor? — pergunto, admirando o meu
menino.
Faz algumas horas desde o seu nascimento e, exceto pelo momento
em que as enfermeiras o levaram para tirar as medidas e fazer alguns
exames, eu não desgrudei do Eduardo desde que ele chegou a esse mundo.
Deixei o Joaquim pegá-lo no colo por um tempo, claro, mas logo o meu bebê
chorou, querendo mamar, e eu o tomei de volta.
Agora ele está dormindo, todo encaixadinho nos meus braços,
soltando pequenos suspiros fofos, que estão me deixando toda boba.
Tão lindo!
— Ele puxou à mãe… — meu noivo responde, sentado na beira da
cama, olhando para nós dois.
Ele não está errado.
Eduardo puxou os meus cabelos loiros e olhos azuis, mas a sua boca
mais cheinha é toda do pai.
Meu menino é a perfeita junção de nós dois e eu não poderia estar
mais feliz.
Eu sorrio para o meu noivo, adorando a forma como os seus olhos
castanhos parecem brilhar ao nos observar, e acho que nunca vi o meu
confeiteiro tão feliz.
— Ligou pra anjinha? — pergunto, ajeitando o montinho no meu
colo.
— Liguei — aquiesce. — Perguntei se ela realmente não queria uma
foto do irmão, mas ela disse que não. Que quer ver ele pessoalmente, e não
quer spoiler.
Solto uma risada, sendo acompanhada pelo confeiteiro, e depois
suspiro, feliz. Parece que eu levei uma surra, estou dolorida em pedaços do
meu corpo que eu nem sabia que existiam, mas nunca me senti tão realizada
antes na minha vida.
— Como você está se sentindo? — meu noivo questiona, acariciando
a minha coxa.
— Um pouco dolorida, mas bem… — respondo. — Feliz por ter sido
um parto saudável e tranquilo. Tinha muito medo de parto normal, mas até
que foi menos traumatizante do que eu imaginava…
Eduardo nasceu com três quilos e quatrocentos gramas e cinquenta e
dois centímetros. Um bebê bem grande, como estava previsto nas medições
do pré-Natal, e bastante forte e saudável. Todos os exames até agora foram
positivos, e o meu menino está exatamente como deveria estar.
Segundo a médica, depois de amanhã já devemos ir para casa, se
tudo continuar do jeito que está.
— Falei com o seu pai e com o Benji. Eles vão vir amanhã de manhã
conhecer o bebê. Seu irmão vai passar lá em casa pra pegar a dona Ilda e a
Angélica — Joaquim explica, enquanto faz carinho no nosso bebê. —
Henrique disse que vai chegar um pouquinho mais tarde, porque precisa ir
na Editora assinar um contrato antes de buscar a Alice e vir também. É o
tempo que a babá chega.
Meu irmão do meio é o que mais sabe como será a nossa vida daqui
para frente, tendo uma criança de um ano e dois meses em casa. Aquela
coisinha fofa me ajudou muito a me preparar para a rotina com um bebê,
porque eu sempre sequestrava para a minha casa, com a desculpa de que
precisava praticar. Meu irmão reclamava, mas sei que adorou cada uma das
horas livres que eu proporcionei sendo babá.
Agora eu espero uma retribuição à altura, no mínimo.
— E aí? O demônio realmente foi exorcizado? — Joaquim pergunta,
me fazendo franzir o cenho, confusa.
— Como assim? — pergunto.
— A Bianca caminhoneira foi embora? Ou ainda corro o risco de ser
xingado até a minha última geração? — questiona, e eu sinto o meu rosto
esquentar de vergonha.
— Bobo… — murmuro, desviando o olhar, e ele solta uma risada.
— Quem diria que só precisava da dor do parto pra fazer você xingar
de verdade, hein, dona Bianca? — debocha. — Aliás, eu não sabia que uma
criatura tão pequena pudesse ficar tão violenta assim. Você me assustou pra
caramba, viu?
Dou um tapa no seu braço, resmungando baixinho, e balanço o meu
bebê, quando o escuto choramingar.
— Mentiroso, nem foi tanto assim — retruco, tentando disfarçar, e
ele aumenta o sorriso.
— Não? — pergunta. — Princesa, você ameaçou a pobre da
recepcionista até ela quase chorar… a coitada se tremia toda.
Levanto o queixo, virando a cabeça para o lado.
— Arrumaram um quarto rapidinho, não foi?
— Não duvido que tenham expulsado alguém do hospital só pra
liberar esse quarto pra você — ele responde, provocando. — Acho que se
procurarmos pela rua, vai ter algum morimbundo com o acesso na veia
ainda, esperando a morte o levar depois de o hospital o abandonar.
— Deixa de ser ridículo, confeiteiro — reclamo, batendo mais uma
vez no seu braço, e ele se sacode todo em uma gargalhada.
— Eu deveria ter filmado — murmura, sorrindo. — Seus irmãos
nunca vão acreditar que você me mandou tomar no cu e me chamou de
arrombado do caralho.
Sinto minhas bochechas ruborizadas e desvio o olhar, constrangida.
— Eu não disse isso — nego, tentando me esquivar.
— Ah, disse. Mas disse muito, senhorita. Disse mais de uma vez,
inclusive — responde, com uma expressão provocadora e eu reviro os olhos,
fazendo bico.
— Eu tava sentindo muita dor, sabia?
— Eu sei princesa. Tudo culpa minha e do meu pau demoníaco, né?
— replica, soltando mais uma risada e me fazendo bufar. — Inclusive, se eu
vou viver de punheta agora, como você vai gozar? Vou poder, pelo menos te
chupar? Ou tá proibido também? — continua atiçando.
— Se eu me irritar demais com você, nem se tocar você vai, porque
eu vou amarrar suas mãos nas costas, de castigo. — Ele ri, balançando a
cabeça.
— Agora você não consegue falar nem punheta? Vai, fala aí? PU-
NHE-TA. Anda. — Empurra o meu ombro com cuidado, e eu me esquivo,
revirando os olhos de novo.
— Deixa de ser bocó, confeiteiro.
— Bocó não, cuzão. Vai, diz que eu sou cuzão… — pede, que nem
uma criança travessa.
— Seu papai tá doido pra dormir no sofá, meu filho. Olha só. Vamos
ficar com aquela cama enorme só pra nós dois… — murmuro para o meu
menino, ignorando o confeiteiro maldito.
— Ela não teria coragem de fazer isso comigo, campeão. Ela adora
dormir de conchinha com o papai. Foi numa dessas que a gente fez você,
inclusive.
— Joaquim! — resmungo, e ele sorri. — Gostava mais de você
quando era o confeiteiro rabugento que nunca ria de nada.
— Mentirosa… — murmura, se inclinando e tomando os meus lábios
em um beijo suave. — E a culpa é toda sua. Foi você que me desmontou
todo e me transformou nesse bobalhão.
— Eu não fiz nada… — respondo baixinho, lutando contra o sorriso.
— Fez sim, mocinha… — retruca, afagando os meus cabelos. — Me
fez o homem mais feliz desse mundo… Como é que eu fico rabugento com
tanta alegria na minha vida? Tanta cor, tanta luz? Você transformou a minha
vida, Bianca Lacerda. Transformou a minha família em algo ainda mais
lindo, e eu vou te amar pra sempre por isso.
— Eu também te amo, meu confeiteiro… — Sorrio, emocionada, me
sentindo mais completa do que jamais senti antes na vida. — Você também
mudou a minha vida pra melhor. Me deu um lar, uma filha linda, e agora
essa coisinha perfeita aqui… — Nós dois olhamos para o nosso bebê e
sorrimos. — Obrigada por realizar todos os meus sonhos… até os que eu
nem sabia que tinha…
Ele me beija mais uma vez e se senta ao meu lado, abraçando os
meus ombros e nos colocando em uma bolha cheia de amor e paz.
Eduardo suspira mais uma vez, esfregando o rostinho no meu colo, e
eu sorrio, apoiando a cabeça no ombro do meu noivo.
Realmente, eu nunca me senti tão feliz.
Capítulo 04 - Joaquim
— Pronta pra conhecer o seu irmão, filha? — pergunto, segurando
nos seus ombros, parado na porta do quarto da Bianca.
Seu Afonso, Isabel, dona Lúcia, dona Ilda e Benjamin ficaram na sala
de espera, aguardando esse primeiro encontro entre os dois irmãos, antes de
vir conhecer o mais novo membro da família.
— Sim! Será que ele vai gostar de mim? — ela questiona, em um
misto de animação e medo, me fazendo sorrir.
— Ele vai amar você mais do que tudo no mundo, minha vida —
respondo, sendo sincero. — Vocês dois vão ser melhores amigos, e vão se
divertir muito enquanto ele cresce, descobrindo esse mundo com a sua ajuda.
Aposto que vocês vão aprontar o suficiente pra deixar eu e a sua mãe de
cabelos em pé.
Ela solta uma risadinha sapeca e eu aperto os seus ombros mais uma
vez, antes de abrir a porta com cuidado, incentivando-a a entrar.
— Olha quem veio conhecer você, meu amor… — Bianca sussurra
para o bebê, sorrindo na direção da nossa filha. — Vem pra mais perto,
bonequinha, vem ver como o seu irmão é a coisa mais linda do mundo.
Angélica olha para mim, por cima do ombro, e eu pisco para ela,
empurrando-a com delicadeza para mais perto do leito, onde Bianca a
espera.
Minha menina arfa, encantada, ao se deparar com o irmão todo
embrulhado em uma manta azul-bebê, e eu a ajudo a se sentar do lado da
mãe, deixando-a ainda mais próxima da sua nova pessoa favorita no mundo.
Eu perdi esse posto depois de conhecer a Bianca, e agora a minha
noiva também foi desbancada por essa criaturinha minúscula.
A derrota nunca foi tão gostosa.
— Ele é tão pequeno, mamãe… — exclama, em um tom baixinho,
para não assustar o bebê.
Bianca me olha com uma expressão divertida, antes de balançar a
cabeça e afagar os cabelos da nossa filha.
— Ele é muito frágil ainda, bonequinha, e vai precisar de muitos
cuidados. Você vai ajudar a mamãe, né? — pergunta, e Angélica quase
desloca o pescoço, de tanto balançar a cabeça.
— Claro que sim, mamãe. Eu treinei bastante, vou ajudar muito
você. Até trocar fralda a tia Alice me ensinou — informa, toda orgulhosa.
Ter outra criança pequena na família ajudou muito durante toda a
gravidez da Bianca. Tanto pelo fato de ela e Alice trocarem figurinhas sobre
a gestação, quanto pelas vezes que nós nos oferecemos para ser babá e
treinar um pouco, para quando o nosso pequeno chegasse.
Apesar de ter sido muito participativo quando a anjinha nasceu, já
que a sua genitora era uma relapsa e nunca demonstrou interesse real pela
filha, isso já faz anos, e eu me sentia meio inseguro em relação a cuidar de
um bebê novamente.
Graças a Deus, dessa vez, além de ter uma mãe de verdade para o
meu filho, ainda terei a ajuda da dona Ilda e de toda a família da Bianca, e
tenho certeza que a experiência de cuidar de um recém-nascido será muito
mais gostosa dessa vez, como tudo tem sido desde que disse sim para esse
mulher linda.
Fico sentado na cadeira de visita, observando as três pessoas mais
importantes da minha vida se conhecendo, e me sinto como o homem mais
sortudo e poderoso deste mundo, porque aqui, nesse exato segundo, eu sinto
que posso conquistar qualquer coisa nessa vida.
Não sei quanto tempo se passa até que eu escuto uma batida suave na
porta, e logo a cabeça da minha mãe postiça aparece, receosa e ansiosa, e só
então eu me lembro que existe uma multidão na sala de espera, doidos para
entrar aqui e conhecer Eduardo.
— Licença, meus filhos, eu tentei esperar, mas tô quase morrendo
sentada ali fora — dona Ilda confessa, com um sorriso um tanto
constrangido. — Posso entrar pra conhecer esse bebê?
— Claro, mãe, desculpa… eu acabei esquecendo de vocês —
explico, me levantando.
— Olha como o meu irmão é lindo, vovó! — anjinha exclama, toda
sorridente, com aquela banguela linda.
Dona Ilda abre a porta e entra, mas logo descubro que ela não está
sozinha, quando mais quatro Lacerdas muito ansiosos entram no quarto,
junto de dona Lúcia, transformando tudo em uma algazarra.
— Cadê meu netinho? — seu Afonso pergunta, já visivelmente
emocionado, e se aproxima da filha, espichando a cabeça para observar o
neto.
— Conheçam o mais novo membro da família, pessoal — Bianca
anuncia, virando um pouquinho o bebê em seus braços, para deixá-lo visível
a todos.
— Minha filha, ele é tão lindo — Isabel murmura, encantada. — É a
sua cara, olha esse cabelinho tão loirinho.
Minha noiva sorri, orgulhosa, e transfere o bebê para o colo da minha
mãe, deixando-a toda boba.
— Eu tô na fila, depois da dona Ilda, hein — Henrique anuncia,
esfregando as mãos em empolgação.
— A ordem de prioridade é por idade, seu besta. Não vem furar a
fila, não. Você é o último — Benjamin retruca, dando um safanão na cabeça
do irmão.
— Mas isso é injusto, eu tenho prioridade, porque já sou pai e sei
segurar um bebê, você que fica por último — retruca, cruzando os braços, e
eu reviro os olhos.
Esses dois quando se juntam só sabem se provocar.
— Se ficarem de gracinha, nenhum dos dois vai pegar no meu filho,
seus chatões — Bianca resmunga, arrancando o arquejo ofendido do irmão
do meio.
— Nem vem, toco de amarrar onça. Eu te deixei brincar de babá da
minha cria todo esse tempo, você me respeite — argumenta, ofendido.
— Querem parar, vocês dois? — dona Lúcia reclama, se
aproximando para pegar Eduardo nos braços.
— Mas olha só a cínica. — Henrique estreita os olhos. — A gente
aqui brigando e ela se aproveitando pra furar a fila. É muito sonsa mesmo.
— Vem tirar ele de mim, vem? Eu te desafio — a senhorinha
provoca, sabendo muito bem que todos eles morrem de medo dela, e dito e
certo, o meu cunhado solta um muxoxo, fazendo até bico, como o belo
homem de quase trinta e cinco anos e pai de família que é.
Angélica se encosta nos braços da mãe, que a acolhe, sorrindo para a
família toda, que passa o bebê de mão em mão pelos próximos vinte
minutos, até que uma enfermeira entra no quarto, nos pegando no flagra.
— Mas que bonito, hein. Ninguém me convidou pra festa, vou ficar
magoada desse jeito — debocha, colocando a mão na cintura. — Vocês
sabem o que significa dois por vez?
— Dois? — Henrique pergunta, fazendo cara de inocente. — Ah, a
gente entendeu doze! Olha só, que confusão, não é mesmo?
Disfarço uma risada com uma tosse, porque ele realmente é uma
criança, e a enfermeira estreita os olhos para ele, que se encolhe, com medo.
— Mais quinze minutos. Nem um segundo a mais — informa,
apontando o dedo para nós. — Eu venho fiscalizar, hein. Não me façam tirar
todos daqui pelas orelhas…
— Pode deixar, você não vai nem lembrar da gente, prometo.
O infeliz até cruza e beija os dedos, selando a promessa, fazendo a
enfermeira revirar os olhos antes de sair do quarto.
— Esse seu tio é uma figura, Eduardo — Benjamin murmura, com o
bebê nos braços.
— Eu vou ser o tio preferido, isso sim — retruca, se aproximando. —
Inclusive, já deu a sua hora, bora, passa o bebê pra cá antes que eu tome uma
atitude drástica — ameaça, praticamente tomando o meu filho dos braços do
irmão.
Se eu já não tivesse visto com os meus próprios olhos o quanto esse
maluco é um pai incrível, eu teria me assustado.
— Você pode até ser o tio preferido, bocó, mas o Benji vai te ganhar
nessa — Bianca comenta, me olhando de esguelha, e eu crispo os lábios, já
esperando o surto.
— Como assim?
— Eu e o Joaquim decidimos que o Benji e a Amanda serão os
padrinhos do Eduardo. — Antes mesmo que ela termine de falar, Henrique
arregala os olhos teatralmente enquanto Benjamin solta uma gargalhada,
apontando o dedo em deboche para o irmão.
— Toma essa, otário! — o mais velho dos Lacerda exclama, se
aproximando. — Ouvi, Edu? Eu sou seu padrinho! O mais legal de todos, e
vou ser seu melhor amigo, prometo.
— Conspiração… — Henrique murmura. — Trairagem das brabas.
Um absurdo… eu empresto a minha prole pra ela treinar, e ela me apunhala
pelas costas… você ouviu isso, bebê? Sua mãe é uma traidora sanguessuga
dissimulada.
— Deixa de drama, Henrique — Bianca reclama. — Você vai ser
padrinho do próximo, tá?
— Fala com a minha mão, miniatura de Judas — o dramático
responde, virando de costas e colocando uma mão para trás, ignorando a
irmã.
Minha filha ri, se levantando e se aproximando para consolar o tio
preferido, e eu me aproximo, tomando o seu lugar, ao lado da minha
loirinha.
— Próximo, é? — pergunto, bem baixinho. — Pensei que eu estava
proibido de encostar meu pau demoníaco em você.
Bianca cora, me dando um soquinho nas costelas, e eu rio, abraçando
os seus ombros. Ela suspira, se aconchegando em mim, enquanto
observamos a nossa família.
— Eu tô tão feliz, amor… — murmura, enchendo o meu coração da
mais perfeita paz.
— Eu também, minha princesa — respondo, beijando os seus
cabelos. — Acho que nunca estive tão feliz na minha vida.
Quando conheci essa garota, vestida naquela jardineira rosa, mais
parecendo uma adolescente, jamais poderia sonhar que, dois anos depois,
estaria aqui, comemorando o nascimento do nosso filho, rodeado de tantas
pessoas maravilhosas.
Uma vez eu disse a ela o quanto eu era grato por ela ter entrado na
minha vida e transformado tudo, com o seu jeito fofo e a sua leveza e cor.
Aqui, rodeado de tanto amor, eu só consigo pensar novamente no
quanto eu sou abençoado.
Bendita a hora que eu ganhei de presente essa família linda.

[1] Soco dado com o braço que está na frente, que tem como alvo o queixo do adversário. [2]
Equipamento utilizado para absorver os impactos dos golpes durante o treino de Muay Thai. [3] Golpe
que visa atingir a lateral da face do adversário. [4] Cumprimento típico da arte tailandesa. [5] Postura
de yoga, de reverência. [6] Postura do cadáver. [7] Cumprimento/saudação típico do sul da Ásia, que
significa “eu saúdo você”. [8] Exercício de respiração no yoga. [9] Trope literária que envolve um
relacionamento falso entre os protagonistas. [10] Gênero de romance em que os protagonistas são
recém-adultos, na faixa dos 18 aos 25 anos. [11] Música: Essa tal liberdade – Grupo Só Pra Contrariar.
[12] Trope literária na qual os personagens principais vivem um relacionamento falso. [13] Cobertor de
tricô, feito artesanalmente. [14] Referência ao filme Uma Linda Mulher, de 1990. [15] Referência a uma
cena do filme Shrek 2.

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