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A PROSA POÉTICA DE BERNARDO SOARES E OS

ENSINAMENTOS DO MESTRE CAEIRO

THE POETIC PROSE OF BERNARDO SOARES AND THE


TEACHINGS OF MASTER CAEIRO

Isabella Velasco da SILVA


Universidade Federal do Ceará, Brasil
RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | A AUTORA
RECEBIDO EM 08/11/2021 ● APROVADO EM 20/05/2022
DOI: 10.47295/mgren.v11i2.389
Resumo

As literaturas modernas em Língua Portuguesa têm em Fernando Pessoa a figura


emblemática de um autor que experimentou com o fazer literário e desenvolveu um projeto
teatral e complexo através de sua poesia dramática. A fragmentação de Pessoa em
heterônimos e semi-heterônimos reflete-se na mistura de gêneros e na transitividade entre
poesia/prosa e prosa/poesia. Considerando que o estilo de cada heterônimo é integrante de
sua personalidade e sua maneira de “viver” o mundo, pretendemos demonstrar as
confluências entre as formas literárias de Bernardo Soares e Alberto Caeiro em suas
respectivas obras, Livro do Desassossego e O Guardador de Rebanhos, bem como pensar a
relação entre ambos como uma de discípulo e mestre, refletida no uso da prosa poética pelo
guarda-livros de Lisboa.

Abstract

The modern literature in the Portuguese language has in Fernando Pessoa the emblematic
figure of an author who experimented with the literary process and developed a theatrical
and complex project through his dramatic poetry. Pessoa’s fragmentation in heteronyms
and semi-heteronyms reflects itself in the fusion of genres and in the transitivity between
poetry/prose and prose/poetry. Considering that the style of each heteronym is part of their
personality and manner of experiencing the world, we intend to demonstrate the
confluences between the literary forms of Bernardo Soares and Alberto Caeiro in their
respective works, The Book of Disquiet and The Keeper of Sheep, as well as to study the
relationship between both as one of disciple and master, reflected in the use of poetic prose
by Lisbon’s bookkeeper.

Entradas para indexação

Palavras-chave: Literatura Portuguesa. Prosa Poética. Heterônimos. Fernando Pessoa.


Livro do Desassossego.
Keywords: Portuguese Literature. Poetic Prose. Heteronyms. Fernando Pessoa. The Book
of Disquiet.

Texto integral

Introdução

Fernando Pessoa é um labirinto. Disposição confusa de caminhos sem saída,


passos em falso e antecâmaras secretas, sua obra atinge o máximo de fragmentação
no Livro do Desassossego, composto por três semi-heterônimos diferentes, nunca
terminado, postumamente publicado e conferindo um eterno quebra-cabeça para
cada novo editor e leitor. Ricardo Reis escreveu que cada obra fala por si mesma e
que quem não a compreende não pode compreendê-la, portanto não há porquê
explicá-la (PESSOA, 1993, p. 115). Isso é especialmente verdade quando se trata de
Pessoa, autor de uma escrita que exige mais percepção e sensibilidade do que
erudição propriamente dita. Perrone-Moisés expressa que

[...] mesmo se meu saber (filosófico, psicanalítico, linguístico,


sociológico, poético) fosse bem maior, Pessoa, como todo grande
poeta, o ultrapassaria sempre. [...] Não são a filosofia, a psicanálise,
a linguística, a sociologia ou a poética que ajudam a ler Pessoa. É
Pessoa quem oferece um formidável saber para a ampliação do
campo dessas disciplinas. [...] Por isso não se trata, não pode tratar-
se para o crítico literário, de explicar Pessoa (de dominá-lo) com
apoio em saberes prévios, mas de aprender com ele. (PERRONE-
MOISÉS, 1990, p. 4-5).

Pessoa é um labirinto, mas é também seu próprio Dédalo, arquiteto que


projetou sua obra com a consciência e precisão de um profeta formal, havendo
mesmo previsto sua contribuição à literatura portuguesa como supra-Camões.
Portanto, para não se perder na mente “histero-neurastênica” de Fernando
Ninguém, cada nova exploração através desse poeta dedálico deve eleger para si
uma linha condutora — ou, se nos permitem, um fio de Ariadne, correndo o risco de
abusar da metáfora. O caminho que pretendemos seguir é a comparação entre o
Livro do Desassossego do semi-heterônimo de Bernardo Soares (respeitadas as
diferenças entre os três autores dos Livros, defendidas por Teresa Rita Lopes (2017)
no texto “Introdução ao(s) Livro(s) do Desassossego”), e os poemas de O Guardador
de Rebanhos, do heterônimo Alberto Caeiro. Para isso, faremos uma introdução
sobre a natureza de Caeiro e Soares, considerando que suas respectivas
personalidades, traços psicológicos e biografias são essenciais para a construção

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poética de cada um e reverberam no estilo, no uso da linguagem e na escolha da
forma literária (AGUIAR; AGUIAR, 2017, p. 172). Em seguida, prosseguiremos para
a análise comparativa entre os textos para compreender o uso dos versos livres —
no caso de Caeiro —, e da prosa poética — no caso de Soares, as diferenças entre os
heterônimos e como a relação entre ambos pode ser interpretada como uma de
discípulo e mestre, assim como Caeiro é um mestre para Pessoa, Campos e Reis.

Poesia dramática e heteronomia

Falando em formas literárias, sabe-se que a tríade pós-aristotélica (gêneros


lírico, épico e dramático) serve mais como caminho de compreensão do que
mecanismo de categorização, considerando que não existem obras “puras” que se
encaixam num só gênero. No caso de Fernando Pessoa, ela é fundamental para
entender o projeto literário do teatro heteronímico, pois o autor divide a produção
poética em quatro estágios, de acordo com o nível de despersonalização dramática
que ela atinge (PESSOA, 1993, p. 86). No primeiro estágio, há a forma mais pura do
lirismo, no qual o poeta expressa através de um eu-lírico as suas emoções
irrefletidas; é o nível mais baixo de despersonalização, já que os sentimentos do eu-
lírico estão muito próximos daquilo que o autor sente, e neste tipo de poesia estão
presentes as características do “gênero lírico puro” descritas por Rosenfeld (2010),
tais quais a expressão monológica, a intensidade, o universo como metáfora,
temporalidade subjetiva e a exploração dos sentimentos. No segundo estágio, o
poeta distancia-se do lirismo ao expressar mais intelectualmente do que
emocionalmente o que se passa na alma. Nesses primeiros dois níveis, o estilo ainda
unifica a obra. Entretanto, no terceiro estágio, o poeta despersonaliza-se de tal
forma que é capaz de sentir estados de alma diversos do seu próprio e de expressá-
los como personagens diversos. Agora já pode escrever sobre sentimentos que de
fato não tem, simplesmente por compreendê-los racionalmente. Por fim, no quarto
estágio, chega-se à poesia dramática: os diferentes estados de alma tornam-se
personagens independentes, com estilos, percepções e sentimentos distintos
daqueles do poeta “real”, que todavia vive e sente como se fossem seus. Adicione
nome, biografia e aparência física e tem-se os heterônimos.
A despersonalização dramática e a poesia que mescla o drama e o lirismo é o
que Pessoa ortônimo expressa no poema “Autopsicografia”, que interpretamos
como uma espécie de “profissão de fé” ou poética do autor. O poeta é capaz de
ficcionalizar os próprios sentimentos para escrever sobre eles:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(PESSOA, 1985, p. 164-165)

Já no poema “Isto”, defende que não finge os poemas e sentimentos sobre os


quais escreve, mas vive-os através do intelecto: “Eu simplesmente sinto com a
imaginação. [...] / Sentir? Sinta quem lê!” (PESSOA, 1985, p. 165). Na sua poesia
dramática, surgem os três heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de
Campos. Estes são os únicos que possuem uma “vida própria” independente de
Pessoa ele-mesmo, com concepções, estilos e personalidade diversos do seu.
Utilizando ainda os traços estilísticos dos gêneros propostos por Rosenfeld (2010),

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no drama “puro” o eu-lírico e o narrador somem, e os acontecimentos desenvolvem-
se sem intervenção de mediador algum, assim como os heterônimos existem por si
sós, dialogam entre si, lêem, criticam e elogiam as obras uns dos outros. O poeta é
um ator no teatro de si mesmo e vive num mundo dos “eu a sós comigo” (PESSOA,
1993, p. 95).
Alberto Caeiro foi o primeiro que lhe surgiu em toda sua força poética, no “dia
glorioso” em que escreveu trinta poemas de O Guardador de Rebanhos. Caeiro surge
em Pessoa já como um Mestre, e será também para Reis, Campos e Soares (como
pretendemos demonstrar), espécie de novo Cristo panteísta e descobridor da
Natureza. Existem também os semi-heterônimos, sendo Bernardo Soares o
principal, que Pessoa descreve como “não sendo a personalidade a minha, é, não
diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a
afectividade” (PESSOA, 1993, p. 98). Aprofundemo-nos, então, nesses dois autores.

O Guardador de Rebanhos e o guarda-livros de Lisboa

Alberto Caeiro é um autodidata com pouca formação escolar que leva uma
vida simples no campo até os 26 anos de idade, quando morre tuberculoso. Os
poemas de O Guardador de Rebanhos foram escritos em verso livre, como se Caeiro
falasse simplesmente a "verdade natural" das coisas. A melhor fonte para conhecer
a personalidade de Alberto Caeiro (além da sua própria obra), são as “Notas para a
recordação do meu Mestre Caeiro”, escritas pelo heterônimo Álvaro de Campos após
a morte do Mestre. A começar pela descrição física, tão precisa na medida que é
abstrata, que atinge não apenas um retrato do jovem pastor de ideias, mas uma
síntese de sua natureza e espírito:

Primeiro, os olhos azuis de criança que não têm medo; [...] O gesto
era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom
de quem não procura senão dizer o que está dizendo — nem alta,
nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O
olhar azul não sabia deixar de fitar. [...] A expressão da boca, a
última coisa em que se reparava — como se falar fosse, para este
homem, menos que existir — era a de um sorriso como o que se
atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos
agradam — flores, campos largos, águas com sol — um sorriso de
existir, e não de nos falar. (PESSOA, 1993, p. 107).

O que salta logo aos olhos é a comparação do Mestre a uma criança: dele se
depreende um ar de inocência e ingenuidade, de alguém que vê as coisas pela
primeira vez como se estivesse a descobrir o mundo e a Natureza — ou melhor, a
descobrir que a Natureza que os poetas cantam não existe, só o que existem são as
flores, as pedras, a água e o sol… Tudo mais são abstrações. A voz é de quem procura
dizer apenas o que diz, e nada mais. Não estipula crenças, preceitos, filosofias,
apenas viver através das sensações verdadeiras. O “olhar azul” está constantemente
olhando o mundo, pois

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê

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Nem ver quando se pensa.
(PESSOA, 2006, p. 49)

Bernardo Soares, por sua vez, é um plebeu de influências 1 românticas 2 ,


guarda-livros na cidade de Lisboa que habita num quarto reles do quarto andar da
Rua dos Douradores, de onde escreve sua autobiografia sobre uma vida sem
acontecimentos, tendo como companhia apenas um velho mata-borrão, móveis
empoeirados, chinelos rotos e seus sonhos de grandeza postos a cabo pelo próprio
senso de insuficiência. Ao ver-se numa fotografia dos empregados do escritório onde
trabalha, descreve-se:

Nunca tive uma ideia nobre da minha presença física, mas nunca a
senti tão nula como em comparação com as outras caras, tão
minhas conhecidas, naquele alinhamento de quotidianos. Parecia
um jesuíta fruste. A minha cara magra e inexpressiva nem tem
inteligência, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o que for,
que a alce da maré morta das outras caras. (PESSOA, 1999, p. 90).

O empregado de escritório captura Lisboa fotograficamente: suas ruas, luzes,


lojas e a natureza contida pelos muros da cidade. Possui uma agudeza de percepção
visual e auditiva que orgulharia Alberto Caeiro, entretanto o que Soares sente e
percebe leva-o a um estado de desassossego, faz dele um decadentista cujo único
motivo de ser da alma é o devaneio. Ele tudo sente, de tal forma que se aparta dos
outros homens e, “com a gola de um casaco de empregado do comércio erguida sem
estranhezas sobre o pescoço de um poeta” (PESSOA, 1999, p. 72), isola-se nas
paredes solitárias de si mesmo, na Realidade representada pelo seu escritório e pela
Rua dos Douradores, encontrando seu único meio de expressão através da
literatura, que curiosamente não é nem prosa, nem poesia: cai no limbo da prosa
poética e da poesia em prosa.

Prosa, poesia, prosa poética

A poesia é inerente a todos os grupos, e Paz já dizia que existem povos sem
prosa; não existem povos sem poesia. Sabemos que ela independe da forma, pois
não está presa ao poema e é algo um pouco intangível. A definição de Octavio Paz
explica, mas não define, já que “classificar não é entender”:

A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos, elemento
maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. [...]

1
“A composição de um livro de confissões ou de um diário íntimo ganha relevo durante os séculos
XVIII e XIX, nomeadamente no período romântico francês a que Jean Jacques Rousseau dá início. Ao
analisar um corpus reduzido de prosas confessionais desse período – Les Confessions, de Rousseau,
Mémoires d'Outre-Tombe, de Chateaubriand, Oberman, de Senancour, e Journal Intime, de Amiel –,
todos referidos e criticados por Soares, foi possível redescobrir a linha que os une e, notavelmente,
compreender a influência ou pressão contextual que tiveram no Livro do Desassossego. (...) nos textos
de Senancour, Amiel e, em especial, de Bernardo Soares, a continuidade deixa de ser uma
preocupação, transformando-se em fragmento e despersonalização (característica do romantismo
tardio, deliberadamente exacerbada pelos modernistas do século XX).” (FERRARIA, 2016, p. 169 e
171).
2
“Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia
sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada
tenho que dizer.” (PESSOA, 1999, p. 54).

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Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não-
dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma
superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de
outras. (PAZ, 1982, p. 15-16).

A poesia é paradigmática, circular, opaca, sugestiva, antidescritiva; a prosa é


sintagmática, linear, explícita, narrativa, descritiva. Por sempre surgir depois da
poesia, a prosa é tardia, resultado do empenho de domínio da fala, do sobrepujo do
pensamento sobre o vocábulo: “O poeta põe em liberdade sua matéria. O prosador
aprisiona-a” (PAZ, 1982, p. 25). A distinção entre prosa, verso e poesia percorre um
caminho longo, desde a Poética de Aristóteles. Mas a divisão dos gêneros e das
formas tem sido aos poucos minada com o seguir da literatura na história,
especialmente a partir do romantismo francês e alemão, como pelo uso da prosa
com rimas e cadências nas confissões de Rousseau (referenciado por Bernardo
Soares no seu Livro), o poema em prosa de Baudelaire, o drama burguês de Victor
Hugo, a deslocação da simetria do alexandrino clássico, o uso de versos ímpares por
Verlaine, o verso livre e as vanguardas do século XX (PIRES, 2006, p. 41-42).
As novas formas da literatura moderna surgem da necessidade de expressar
duas faces da cultura: a vida social em sua coletividade e a psiquê subjetiva em sua
individualidade. A fragmentação do eu e da sociedade aparece no movimento
interseccionista criado por Fernando Pessoa, como no poema “Chuva Oblíqua”, e nas
odes futuristas de Álvaro de Campos, que retratam a modernização em turbilhão da
vida. Da mesma forma, o verso livre de Caeiro e a prosa poética de Soares são
sintomáticos da revolta contra as medidas prescritivas de versificação:

[...] a prosa se nega a si mesma; as frases não se sucedem


obedecendo a uma ordem conceitual ou narrativa, mas são
presididas pelas leis da imagem e do ritmo. Há um fluxo e refluxo
de imagens, acentos, pausas, sinal inequívoco da poesia. O mesmo
deve dizer-se do verso livre contemporâneo: os elementos
quantitativos do metro cederam lugar à unidade rítmica. (PAZ,
1996, p. 15).

Bernardo Soares, em quem o pensar está sempre sujeito ao sentir, na sua


tentativa de expressar seus devaneios através do discurso acaba no limiar entre uma
forma e outra: aspirando à poesia, aprisionado pela prosa, como a natureza contida
pelos muros de uma cidade, no Livro do Desassossego utiliza uma sintaxe não linear,
muitas vezes confusa, além de depender do ritmo e da sonoridade:

O vento levantou-se... Primeiro era como a voz de um vácuo... um


soprar do espaço para dentro de um buraco, uma falta no silêncio
do ar. Depois ergueu-se um soluço, um soluço do fundo do mundo, o
sentir-se que tremiam vidraças e que era realmente vento. Depois
soou mais alto, urro surdo, um chorar sem ser ante o aumentar
nocturno, um ranger de coisas, um cair de bocados, um átomo de
fim do mundo. (PESSOA, 1999, p. 85, grifo meu).

Percebemos a aliteração dos fones fricativos alveolares 25 vezes, as rimas


internas entre “vácuo” e “buraco”, a assonância entre “soluço”, “fundo”, “surdo”,
“urro”, “noturno” e “mundo”. E apesar de prosaico, neste trecho não há uma
descrição da ação do vento, apenas um conjunto de imagens, sons e ideias próprio

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da poesia moderna. No seguinte trecho, a repetição de palavras, de sons nasais e o
paralelismo sintático unem-se à cadência das sílabas poéticas para criar a imagem
de solidão, ausência do tempo e do espaço no qual o poeta se encontra ao cair do
sono e da noite: “Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio! Passo
tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim” (PESSOA, 1999, p. 68).
Já os poemas de Caeiro estão o mais próximo possível da fala cotidiana,
unificados apenas pelo ritmo, em versos livres e brancos na maior parte, com estilo
simples de quem não procura dizer mais do que está a dizer: “Não me importo com
as rimas. Raras vezes/Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.” (PESSOA, 2005,
p. 39). As suas obras atingiram um nível tal de libertação que só podemos percebê-
las como poemas através da unidade rítmica e da divisão espacial dos versos na
página impressa. Ou seja, pela visão e pela audição, os sentidos básicos do
sensacionismo. Caeiro considera o fazer poético como algo espontâneo e natural
como o correr de um rio e o nascer de uma flor, menor do que estes em qualidade
apenas pelo fato de exigir o raciocínio e a utilização de palavras, que são um
construto do homem:

E há poetas que são artistas


E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir! (...)


(PESSOA, 2005, p. 62)

A forma poética de cada um reflete a diferença entre os dois autores. Caeiro


procura despir a alma do que os homens lhe ensinaram, numa constante
desaprendizagem, e faz uma prosa em versos que não deixa o excesso de
pensamentos e palavras tomar o lugar do sentir a realidade. Mas para Soares as
coisas são mais reais quanto mais elas são ditas e expressas através da palavra. Esta
garante uma permanência e uma maior realidade ao real, que é perene: “Os campos
são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. [...] Mover-se é viver, dizer-se é
sobreviver” (PESSOA, 1999, p. 63), nas palavras do semi-heterônimo. Em ambos há
uma visão fenomenológica do mundo, mas a renovação constante do rio e do ser que
Heráclito ensinou (naturalmente e espontaneamente vivida por Caeiro), é posta
sobre o controle da prosa de Soares, que tenta aprisionar a realidade e o sentido
através da literatura e garantir a sobrevivência através das palavras. Sobrevivência
não apenas do mundo, mas também de si mesmo.

Os ensinamentos

Soares tem muito o que aprender com Caeiro. Soares é influenciado pelo
romantismo, sim, mas a sua visão de si e os seus momentos de lucidez fazem-no
perceber o absurdo dos sonhos românticos e rir da mania de imperialismo que os
homens carregam. Mas permanece o desejo de ser algo a mais, de carregar em si
qualquer coisa de universal que ele possa traduzir para sua literatura:

E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não


encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se
de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas
como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança

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sem vestígios. [...] Mas a reacção contra mim desce-me da
inteligência… [...] Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida!,
a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os
célebres! Aqui, eu, assim!... (PESSOA, 1999, p. 50).

Soares resigna-se à própria pequenez e faz da sua insignificância um baluarte


seguro, uma marca de triunfo mesquinho, uma medalha dos vitoriosos que apenas
os que aceitam sua derrota recebem. Seria errado dizer que falta ambição em
Bernardo Soares; nisso, ele se aproxima bastante de seu criador, Fernando Pessoa,
que possuía sonhos e projetos literários nunca levados adiante pela falta de tempo
e pela vida anônima como tradutor de cartas comerciais. Assim como Soares, Pessoa
ortônimo levou uma vida dupla: aquela de empregado de escritório, e outra como
literato-argonauta da alma humana. Mas o que leva Soares à resignação é saber que
ser explorado é inevitável, e mais vale ser explorado pelo que é real do que por
ideias: “Todos temos o patrão Vasques, para uns visível, para outros invisível. Para
mim chama-se realmente Vasques”, enquanto “Para outros será a vaidade, a ânsia
de maior riqueza, a glória, a imortalidade… Prefiro o Vasques homem meu patrão,
que é mais tratável, nas horas difíceis, que todos os patrões abstractos do mundo”
(PESSOA, 1999, p. 51). Ele aceita tanto seu estado que acaba afeiçoando-se às
miudezas da vida cotidiana, ou porque são as únicas coisas que tem para amar, ou
porque, talvez “nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o
dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença
das estrelas” (PESSOA, 1999, p. 51).
Entretanto, seu espírito de sonhador permanece o mesmo, e um simples
registro de tecido pode despertá-lo para a grandeza dos santos, dos poetas e dos
navegadores anônimos de todos os tempos que vivem no mesmo mundo no qual ele
contabiliza números em tabela. Grande parte de si é constituída de devaneios, e sua
consciência reflui entre o sonho e a realidade como duas marés: “Não me choca a
interrupção dos meus sonhos: de tão suaves que são, continuo sonhando-os por
detrás de falar, escrever, responder, conversar até” (PESSOA, 1999, p. 69). Por vezes
oprime-lhe essa mania de pensar e fazer metafísicas com a “inteligência abstrata”,
que não lhe permite “respirar com a alma”. De repente, “como se o vento nelas desse,
e fossem nuvens, todas as ideias em que temos sentido a vida, todas as ambições e
desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam”
(PESSOA, 1999, p. 78), e vem-lhe a lucidez do Mestre de que as ideias não são a
realidade. Mas o que lhe surge por trás do véu dos pensamentos não traz a felicidade
simples que Caeiro sente, mas o horror de finalmente contemplar o tamanho do céu
real, limpo das nuvens que são as ideias. O que traz é a sensação de estar num
claustro infinito, numa cela que é tudo. Sentimento contraditório, pois uma cela
pressupõe um lado de dentro e um lado de fora, ou estar privado de algo por
barreiras, sejam elas físicas ou abstratas. Se sua cela é infinita, ela não possui limites,
e o que causa o horror em Soares é a sensação de finalmente liberdade, que atinge
ao desfazer de suas ideias em mero nevoeiro. Como descobrir que o mundo não é
feito de sombras.
Caeiro também é um tipo de mestre para Bernardo Soares. As semelhanças
entre os nomes dos três heterônimos principais já foi explorada em outros textos. O
mesmo pode ser feito com “Alberto” e “Bernardo”, nomes de três sílabas com finais
semelhantes; o início de Bernardo está contido no meio de Alberto (“ber”). Caeiro e
Soares possuem o mesmo número de sílabas e letras, e quatro das seis letras são
iguais (a, e, o, r). Então onde está o sinal de discipulado de Soares? Este não possui o

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mesmo apreço pela natureza que o guardador de rebanhos, de fato. Enquanto Caeiro
escreve “Pobres das flores dos canteiros dos jardins regulares. / Parecem ter medo
da polícia…” (PESSOA, 2005, p. 59), a alma de Soares é afeiçoada à cidade, e basta
um dia no campo para que a paz e o sossego dê-lhe angústia e sobrevenha o desejo
de ver novamente a cidade baixa, de estar às margens do Tejo que ele tanto ama,
pois Lisboa está à beira dele. O guarda-livros não canta odes sobre o progresso como
Álvaro de Campos, com telégrafos, carros, homens-motor, usinas, dínamos… Seu
apego à cidade vem da ideia de que apenas as raças vestidas conseguiriam sentir a
beleza de um corpo despido (PESSOA, 1999, p. 83), de que o artificial ajuda-o a
apreciar o natural.
Ainda assim, é na poesia simples de Caeiro que Soares por vezes encontra seu
conforto, nas horas de lucidez em que acorda do sonambulismo:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo…


Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…
(PESSOA, 2005, p. 27 [grifo meu])

Trechos como esse livram-lhe da metafísica. E o vento que, por vezes, varre
suas ideias e deixa-lhe sozinho frente ao abismo que é sentir a realidade em si
mesma, sem a intervenção dos pensamentos, não lhe parece mais tão angustiante
assim. Após a leitura dessas palavras simples, a sua pequenez humana frente à
Natureza e ao céu vasto que vê como que pela primeira vez enche-o de uma sensação
de liberdade, pois enfim compreende que é do mesmo tamanho do que vê: “E já
agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com
uma segurança que me dá vontade de morrer cantando” (PESSOA, 1999, p. 80 [grifo
meu]).

Considerações finais

Assim, Bernardo Soares surge como mais um dos discípulos de Alberto


Caeiro. Apesar de apenas por um instante, talvez, seu desassossego cede frente ao
ensinamento do pastor que nunca guardou rebanhos e abre espaço à tranquilidade
de viver o mundo concreto e de aprender a ver sem desejar algo a mais. O Livro do
semi-heterônimo é representativo da transitividade entre a poesia e a prosa, que ele
abarca em si: a poesia, algo primitivo e natural, liberdade e expressão de todos os
povos; a prosa, mania da inteligência abstrata e do alinhamento racional próprio ao
discurso. O que ambas formam, no seu confronto, é a cisão entre o sentimento e a
razão, o significado e a verdade, o natural e o artificial, vividas no mundo moderno
e encarnadas na literatura de Bernardo Soares, porta-voz anônimo dos nossos
desassossegos.

Referências

AGUIAR, Fabrício Cesar de; AGUIAR, Larissa Walter Tavares de. Aspectos do sistema
heteronímico de Fernando Pessoa. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 55, p. 164-182, 2017.

FERRARIA, Ana. Bernardo Soares: desassossego e eternidade. Revista Desassossego. São


Paulo, vol. 8, n. 15, p. 165-177, 2016.

Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | v. 11, n. 2, p. 643-652, maio-ago. 2022.


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do desassossego. São Paulo: Global Editora, 2015 p. 16-32.

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Para citar este artigo

SILVA, Isabella Velasco da. A prosa poética de Bernardo Soares e os ensinamentos do Mestre
Caeiro. Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 11, n. 2, p. 643-652, maio-ago. 2022.

A autora

Isabella Velasco da Silva é graduanda em Letras (Português e Francês) pela


Universidade Federal do Ceará.

Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | v. 11, n. 2, p. 643-652, maio-ago. 2022.

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