389-Composição Final-1387-1-10-20220824
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Abstract
The modern literature in the Portuguese language has in Fernando Pessoa the emblematic
figure of an author who experimented with the literary process and developed a theatrical
and complex project through his dramatic poetry. Pessoa’s fragmentation in heteronyms
and semi-heteronyms reflects itself in the fusion of genres and in the transitivity between
poetry/prose and prose/poetry. Considering that the style of each heteronym is part of their
personality and manner of experiencing the world, we intend to demonstrate the
confluences between the literary forms of Bernardo Soares and Alberto Caeiro in their
respective works, The Book of Disquiet and The Keeper of Sheep, as well as to study the
relationship between both as one of disciple and master, reflected in the use of poetic prose
by Lisbon’s bookkeeper.
Texto integral
Introdução
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(PESSOA, 1985, p. 164-165)
Alberto Caeiro é um autodidata com pouca formação escolar que leva uma
vida simples no campo até os 26 anos de idade, quando morre tuberculoso. Os
poemas de O Guardador de Rebanhos foram escritos em verso livre, como se Caeiro
falasse simplesmente a "verdade natural" das coisas. A melhor fonte para conhecer
a personalidade de Alberto Caeiro (além da sua própria obra), são as “Notas para a
recordação do meu Mestre Caeiro”, escritas pelo heterônimo Álvaro de Campos após
a morte do Mestre. A começar pela descrição física, tão precisa na medida que é
abstrata, que atinge não apenas um retrato do jovem pastor de ideias, mas uma
síntese de sua natureza e espírito:
Primeiro, os olhos azuis de criança que não têm medo; [...] O gesto
era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom
de quem não procura senão dizer o que está dizendo — nem alta,
nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O
olhar azul não sabia deixar de fitar. [...] A expressão da boca, a
última coisa em que se reparava — como se falar fosse, para este
homem, menos que existir — era a de um sorriso como o que se
atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos
agradam — flores, campos largos, águas com sol — um sorriso de
existir, e não de nos falar. (PESSOA, 1993, p. 107).
O que salta logo aos olhos é a comparação do Mestre a uma criança: dele se
depreende um ar de inocência e ingenuidade, de alguém que vê as coisas pela
primeira vez como se estivesse a descobrir o mundo e a Natureza — ou melhor, a
descobrir que a Natureza que os poetas cantam não existe, só o que existem são as
flores, as pedras, a água e o sol… Tudo mais são abstrações. A voz é de quem procura
dizer apenas o que diz, e nada mais. Não estipula crenças, preceitos, filosofias,
apenas viver através das sensações verdadeiras. O “olhar azul” está constantemente
olhando o mundo, pois
Nunca tive uma ideia nobre da minha presença física, mas nunca a
senti tão nula como em comparação com as outras caras, tão
minhas conhecidas, naquele alinhamento de quotidianos. Parecia
um jesuíta fruste. A minha cara magra e inexpressiva nem tem
inteligência, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o que for,
que a alce da maré morta das outras caras. (PESSOA, 1999, p. 90).
A poesia é inerente a todos os grupos, e Paz já dizia que existem povos sem
prosa; não existem povos sem poesia. Sabemos que ela independe da forma, pois
não está presa ao poema e é algo um pouco intangível. A definição de Octavio Paz
explica, mas não define, já que “classificar não é entender”:
A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos, elemento
maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. [...]
1
“A composição de um livro de confissões ou de um diário íntimo ganha relevo durante os séculos
XVIII e XIX, nomeadamente no período romântico francês a que Jean Jacques Rousseau dá início. Ao
analisar um corpus reduzido de prosas confessionais desse período – Les Confessions, de Rousseau,
Mémoires d'Outre-Tombe, de Chateaubriand, Oberman, de Senancour, e Journal Intime, de Amiel –,
todos referidos e criticados por Soares, foi possível redescobrir a linha que os une e, notavelmente,
compreender a influência ou pressão contextual que tiveram no Livro do Desassossego. (...) nos textos
de Senancour, Amiel e, em especial, de Bernardo Soares, a continuidade deixa de ser uma
preocupação, transformando-se em fragmento e despersonalização (característica do romantismo
tardio, deliberadamente exacerbada pelos modernistas do século XX).” (FERRARIA, 2016, p. 169 e
171).
2
“Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia
sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada
tenho que dizer.” (PESSOA, 1999, p. 54).
Os ensinamentos
Soares tem muito o que aprender com Caeiro. Soares é influenciado pelo
romantismo, sim, mas a sua visão de si e os seus momentos de lucidez fazem-no
perceber o absurdo dos sonhos românticos e rir da mania de imperialismo que os
homens carregam. Mas permanece o desejo de ser algo a mais, de carregar em si
qualquer coisa de universal que ele possa traduzir para sua literatura:
Trechos como esse livram-lhe da metafísica. E o vento que, por vezes, varre
suas ideias e deixa-lhe sozinho frente ao abismo que é sentir a realidade em si
mesma, sem a intervenção dos pensamentos, não lhe parece mais tão angustiante
assim. Após a leitura dessas palavras simples, a sua pequenez humana frente à
Natureza e ao céu vasto que vê como que pela primeira vez enche-o de uma sensação
de liberdade, pois enfim compreende que é do mesmo tamanho do que vê: “E já
agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com
uma segurança que me dá vontade de morrer cantando” (PESSOA, 1999, p. 80 [grifo
meu]).
Considerações finais
Referências
AGUIAR, Fabrício Cesar de; AGUIAR, Larissa Walter Tavares de. Aspectos do sistema
heteronímico de Fernando Pessoa. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 55, p. 164-182, 2017.
PAZ, Octavio. Poesia e poema. In: PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982. p. 15-31.
PAZ, Octavio. O verso e a prosa. In: PAZ, Octavio. Signos em rotação. 3. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1996. p. 11-36.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins
Fontes, 1990.
PESSOA, Fernando. Autopsicografia. In: Fernando Pessoa: obra poética. Rio de Janeiro:
Editora Nova Aguilar, 1985. p. 164-165.
PESSOA, Fernando. Isto. In: Fernando Pessoa: obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1985. p. 165.
PESSOA, Fernando. A gênese dos heterônimos. In: Fernando Pessoa: obra em prosa. Rio de
Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1993. p. 92-101.
PESSOA, Fernando. Notas para a recordação do meu mestre Caeiro. In: Fernando Pessoa:
obra em prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1993. p. 107-110.
PESSOA, Fernando. O paganismo de Caeiro. In: Fernando Pessoa: obra em prosa. Rio de
Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1993. p. 113-118.
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
ROSENFELD, Anatol. A teoria dos gêneros. In: ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo:
Perspectiva, 2010. p. 15-36.
SILVA, Isabella Velasco da. A prosa poética de Bernardo Soares e os ensinamentos do Mestre
Caeiro. Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 11, n. 2, p. 643-652, maio-ago. 2022.
A autora