22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB
Santo Amaro, BA
A vida é desafio: ética e estética no rap dos Racionais Mc’s1
La vida es desafío: ética y estética en lo rap de Racionais Mc’s
Gabriel Gutierrez
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Cintia San Martin Fernandes
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Resumo
Surgido em territórios historicamente marcados pelo desinvestimento, o Hip Hop é uma
manifestação cultural típica das cidades pós-industriais contemporâneas em que formas de
viver e formas de fazer arte estão entrelaçadas. Maior grupo de rap brasileiro, os Racionais
MC‟s criaram uma estética musical própria, em diálogo com o local e o internacional, a partir
de influências musicais negras geradas no âmbito do Atlântico Negro. Sua música afirmou a
autoestima dos negros da periferia da maior metrópole do país e sugeriu uma certa
consciência da coletividade. O objetivo deste trabalho é observar como esta música diaspórica
fez isso, propondo “linhas de fuga” ao jovem periférico brasileiro, tanto em relação ao
engajamento no crime quanto à sujeição ao trabalho precarizado.
Palavras-chave: Racionais Mc's; rap; política
Palabras claves: Racionais Mc's; rap; política
Introdução
Surgido em territórios historicamente marcados pelo desinvestimento, o Hip Hop é
uma manifestação cultural típica das cidades pós-industriais contemporâneas em que formas
de viver e formas de fazer arte estão entrelaçadas. O propósito do presente artigo é
compreender o rap dos Racionais Mc´s como uma comunicação musical de feições éticas que,
inserida no movimento Hip Hop, aproxima uma linguagem artística à uma proposta
existencial. Maior grupo de rap brasileiro, os Racionais MC‟s criaram uma estética musical
própria, em diálogo com o local e o internacional, a partir de influências musicais negras
geradas no âmbito do Atlântico Negro (GILROY, 2001). Sua música afirmou a autoestima
1
Trabalho apresentado no GT 7 - Diálogos interdisciplinares: música e comunicação.
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dos negros da periferia da maior metrópole do país e sugeriu uma certa consciência da
coletividade.
O objetivo deste trabalho é observar como esta música diaspórica fez isso, propondo
“linhas de fuga” ao jovem periférico brasileiro, tanto em relação ao engajamento no crime
quanto à sujeição ao trabalho precarizado.
Sucesso de público e crítica, os Racionais Mc´s são predominantemente conhecidos
pelo teor político de suas letras. Muito já foi falado e escrito sobre o aspecto combativo de seu
discurso. Em geral, os olhares investigativos recaíram sobre os traços macropolíticos da
poética e da performance do grupo. Esta leitura teve inclinação sociológica e versou sobre a
abordagem racial dos seus raps e sua representatividade em relação à população periférica das
metrópoles brasileiras, especialmente, é claro, a cidade de São Paulo.
O próprio grupo frequentemente se chama de a “voz da favela” e de “os quatro pretos
mais perigosos do Brasil”. Há também trabalhos que reforçam a ideia de que a música dos
Racionais é resultado das condições históricas do Brasil dos anos 1980 e 1990 e que
introduziu uma fissura numa determinada representação da ideia da brasilidade, a partir da
contestação do mito da democracia racial brasileira com um discurso furioso, avesso a
conciliações e altamente crítico da violência policial. (OLIVEIRA; SEGRETO e CABRAL,
2013); (PINHO e ROCHA, 2011); (DANDREA, 2013).
O presente artigo acredita que estas abordagens macropolíticas são relevantes e
ajudam a compreender o fenômeno, mas podem ser complementadas por um vetor de
pesquisa mais atento à questão cultural e musical. Há diversos fatores que sugerem que é
preciso ir além de uma abordagem mais sociológica para compreender todo o impacto estético
e político do grupo no cenário cultural brasileiro. De fato, os Racionais foram pioneiros num
rap mais politizado, mas não foram os únicos a fazê-lo naquele momento, o que nos sugere ir
buscar em novos espaços mais elementos para a compreensão dos sentidos contidos em sua
música. Assim, alargam-se as possibilidades de compreensão do objeto em questão.
Além disso, o trabalho dos Racionais está atravessado por uma multiplicidade de
vozes, não apenas as vozes de crônica da vida na periferia e de confrontação social, como
sugeriram várias pesquisas até aqui. Há também uma voz festiva e, especialmente, uma voz
que sugere significados que apontam na direção de processos de estilização da existência.
Estas outras narrativas podem ser chaves analíticas importantes. E uma maneira de levá-las
em conta é investir na compreensão de uma das principais diferenças do trabalho artístico dos
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Racionais em relação aos outros artistas do rap nacional: a estreita relação com a música. Ela
talvez seja a senha para um maior entendimento inclusive da dimensão política do fenômeno
Racionais no mundo cultural brasileiro.
Como diz Guattarri (1990), muitas das melhores cartografias da psique foram feitas
pela arte, à maneira de Goethe, Proust, Joyce, Artaud e Becket (às vezes mais do que de
Freud, Jung, Lacan) ou tendo como modelo ou módulo de subjetivação o teatro grego, o amor
cortês ou o romance de cavalaria. Nossa hipótese é a de que os Racionais atuam exatamente
aí, produzindo, contemporaneamente, através da música, módulos e narrativas que oferecem
elementos para a produção de subjetividades autônomas, retratando em suas letras processos
de subjetivação que serviram como poderosas referências de síntese para seu público.
Forjados nos bailes black da São Paulo dos anos 1970 e 80, suas principais influências
são o Soul e Funk americanos, de James Brown, Marvin Gaye e Curtis Mayfield, o soul
brasileiro de Cassiano e Tim Maia e o samba-rock de Jorge Ben. Além, é claro, do rap
politizado do Public Enemy e o rap mais gangsta do NWA, respectivamente da Costa Leste e
Oeste dos EUA. O que se deve notar é que todos estes gêneros carregam em si alguma
aproximação entre sua forma artística e uma espécie de caráter político, que pode se
manifestar tanto nas letras, quanto no estilo ou na performance dos artistas. Por isso, para
entender o impacto político e cultural dos Racionais, propomos um aprofundamento nos
termos que estruturam sua música. Assim, pode ser possível estabelecer um diálogo do rap
com estes outros gêneros musicais e, desta forma, identificar fronteiras potentes entre a
substância estética e a substância política no material musical do grupo.
Esta é a chave analítica da argumentação deste trabalho: considerar o Hip Hop como
um tribalismo contemporâneo (MAFFESOLI, 1995) - com suas emergências étnicas e filiação
às localidades – largamente associado a processos éticos de estilização da vida como obra de
arte, em que o rapper utiliza-se de sua música para propor saídas subjetivas para aqueles que
participam daquele tipo especial de comunicação. Acreditamos, portanto, que o rap dos
Racionais, nos seus momentos mais potentes, carrega em si um discurso sobre possibilidades
ativas de conduzir a existência, criando o que Rose (1994) chama de “narrativas de
possibilidade”, frente à existência dura e repleta de adversidades concretas e simbólicas
experimentada pelos habitantes das periferias das cidades pós-industriais do mundo
contemporâneo.
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Estética e Sociedade na Pós-Modernidade
Segundo Maffesoli (1995), assistimos na contemporaneidade a uma “transfiguração do
político” manifesta na saturação da relação dos sujeitos com o campo político tradicional,
concebido como ideal democrático. Tal característica do mundo contemporâneo
exemplificaria a derrocada de uma concepção na qual o social é visto como resultado racional,
funcional ou contratual da associação de indivíduos autônomos (FERNANDES, 2009).
Vivemos hoje um momento de crise de representação deste tipo de meta-relato. Em
função disto, testemunhamos o que Fernandes (2009) chama de um “processo de
redistribuição e reacomodação dos poderes – antes centrados e bem definidos nas instituições
modernas”. Não estaríamos necessariamente diante da falência de tais instituições, mas de
uma realocação da maneira de se fazer política. Constata-se uma radical modificação neste
campo na medida em que o fruto do social, antes visto como resultado de racionalidade, agora
é entendido como espaço do sensível. A partir dessa redefinição, como proposto por Maffesoli
(1995), houve uma recriação total, evidenciando a saturação dos valores da Modernidade e
originando valores alternativos.
O processo descrito por Maffesoli traduz a gestação de um novo momento, uma
“cultura de sentimento”, mais relacionada a uma sensibilidade e menos a uma racionalidade.
Segundo Maffesoli (1995), o antigo ideal democrático da Modernidade ultrapassada fora
substituído por uma espécie de ideal comunitário, que dá sentido a elementos arcaicos que,
acreditava-se, haviam sido solapados em favor da racionalização do mundo. Tal “ideal
comunitário” se manifesta com mais clareza na emergência de tribalismos de toda sorte
associados a processos de estetização da existência. Esta característica, que julgamos ser
fundamental para pensar o estar-junto e consequentemente o político, está expressa no próprio
movimento Hip Hop.
O rap dos Racionais, como parte integrante dessa cultura, também deve ser entendido
dessa forma. Podemos pensar também este fenômeno nos termos da partilha do sensível,
formulada por Rancière (2000). O autor define a política da modernidade como aquilo que “se
ocupa do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto”. O modelo da partilha do
sensível, entretanto, “determina propriamente a maneira como um comum se presta à
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participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha” (RANCIÈRE, 2000). As
práticas artísticas simbolizam a legítima participação nesse regime, pois “são “maneiras de
fazer” que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com
maneiras de ser e formas de visibilidade” (RANCIÈRE, 2000).
Este olhar contemporâneo para o gradiente político e sua relação com a arte expande a
visão do observador das lutas políticas e denuncia uma certa ineficiência do olhar moderno
para estas questões. Neste ponto, Guattarri (1990) mostra como as ciências humanas e sociais
deixaram escapar as dimensões intrinsecamente evolutivas, criativas e autoposicionantes dos
processos de subjetivação. Talvez por isso, tenhamos que buscar em outros campos os
elementos para a compreensão de novos processos de subjetivação. O autor chega a sugerir
que nos desprendamos de todas as referências e metáforas cientistas para forjar novos
paradigmas que serão, de preferência, de inspiração ético-estéticas.
A esta altura, podemos delinear aproximações do argumento do autor com as
possibilidades “subjetivadoras” da música. O próprio Guattarri fala do rock como um
elemento com essa potencialidade, especialmente no que se refere à sua agência sobre a
juventude, que mesmo “esmagada nas relações econômicas dominantes que lhe conferem um
lugar cada vez mais precário, e mentalmente manipulada pela produção de subjetividade
coletiva da mídia” desenvolve algumas distâncias de singularização com relação à
subjetividade normalizada. E faz isso através do caráter transnacional da cultura rock, que
desempenha o “papel de uma espécie de culto iniciático que confere uma pseudo-identidade
cultural a massas consideráveis de jovens, permitindo lhes constituir um mínimo de
Territórios existenciais” (GUATTARRI, 1990).
De forma semelhante, novamente Maffesoli (1988) sugere uma relação entre emoção
estética e o social. Para o autor, a estética, marginalizada na perspectiva finalista da história,
pode tornar-se central na pós-história. Dessa maneira, dialogando com os autores, acreditamos
que a relação com a arte pode ser uma forma de “produzir a si mesmo como sujeito ético”,
como diz Maffesoli citando Foucault. Uma técnica de autoconstrução, ou o que Plutarco
chama de “ethopoética”. Depois do Homo politicus e do Homo economicus, será que não
estamos diante do surgimento do Homo aestheticus?, pergunta pertinentemente o autor.
Nossa questão, portanto, é: será que não é precisamente isso que o rap fez com largas
parcelas da juventude pobre das favelas brasileiras? Nossa hipótese acredita que sim,
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concordando com Takeuti (2010), e afirmando o papel central que a música dos Racionais
desempenhou neste processo. Como diz Guattarri (1990), muitas das melhores cartografias da
psique foram feitas à maneira de Goethe, Proust, Joyce, Artaud e Becket (às vezes mais do
que de Freud, Jung, Lacan) ou tendo como modelo ou módulo de subjetivação o teatro grego,
o amor cortês ou o romance de cavalaria. Nossa hipótese é a de que os Racionais atuam
exatamente aí, produzindo módulos e narrativas que oferecem elementos para a produção de
subjetividades autônomas, retratando em suas letras processos de subjetivação que serviram
como poderosas referências para seu público.
A centralidade da música no Atlântico Negro
Trata-se, portanto, de afirmar que a música desempenha papel central na discussão
política contemporânea, especialmente dentro do que Paul Gilroy (2001) chamou de Atlântico
Negro. O autor propõe, inclusive, que a música deva ter o mesmo status da filosofia e da
literatura, já que é uma das mais poderosas respostas negras à modernidade, a partir da ação
de intelectuais negros.
Gilroy (2001) refuta a tese hegeliana segundo a qual o pensamento, a ciência e a
reflexão superam a arte na sua capacidade de conhecer. Nesse sentido, o autor discorda da
tese de acordo com a qual a arte é contraposta à filosofia como forma inferior. Para ele, ao
contrário, a música deve ocupar um status superior na discussão sobre cultura negra por conta
de sua capacidade ancestral de expressar uma imagem direta da vontade dos escravos. Perto
do lugar que a literatura ocupa para o Ocidente eurocêntrico. O Atlântico Negro não é
logocêntrico e sua oralidade é um elemento central, como uma espécie de jornalismo,
literatura e filosofia do mundo cultural diaspórico.
Citando Attali, Herschmann (2013) também sublinha o potencial da música como
caminho epistemológico para a investigação de fenômenos culturais. Segundo ele, a música
permite-nos perceber tendências sociais. Mais do que um objeto de estudo, ela é uma forma
de conhecimento. Um método, que permite analisar e compreender as sociedades em suas
dinâmicas e práticas. A música é o vetor de pensamento e ação no mundo e não apenas
“simulacro” ou espetáculo (HERSCHMANN, 2013).
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A música diaspórica dos Racionais Mcs
O Rap é produto de um encontro entre negros americanos e caribenhos, especialmente
jamaicanos, cubanos e porto-riquenhos. Este encontro é resultado de duas ondas migratórias
para os EUA: uma forjada pela escravidão e outra ocorrida após o fim da Segunda Guerra
Mundial. Ele nasce como festa, mas junto com ele nasce também a ideia da “consciência”.
Nessa mediação está a brecha para pensarmos seus agenciamentos políticos.
Musicalmente, o rap é constituído pelo trabalho do DJ e do Mc. O elemento rítmico,
originariamente, fica por conta de recortes de baterias de funk de James Brown, da Soul
Music, da Disco Music e do Dub. Ao lado do DJ, o MC trabalha sua oralidade (o verbo “to
rap” significa “criticar”), a partir de uma tradição de jogos de fala que remete às Dozens
(desafios verbais em que as crianças se provocam), às Soundings (sessões de provocações e
jactância) e às Toasts (brinde às avessas e discursos de detração). Esta tradição já havia sido
elaborada no contexto da cultura americana com o trabalho de artistas de Spoken Poetry,
como Gil Scott Heron, Amiri Baraka, The Last Poets.
Originalmente, o rap se caracteriza, portanto, pela atuação do MC rimando
acompanhado de um beat, batida eletrônica produzida pelo DJ. Em função da ausência de
instrumentos musicais, a parte melódica e harmônica é produzida através de um corte e
colagem de músicas, efeitos e sons diversos (MACEDO, 2011). O ato de samplear é
precisamente a utilização de elementos de outras músicas para formar algo novo. A despeito
do que possa parecer, o processo não deve, sob hipótese alguma, ser denominado como cópia,
ou mera referência. O sampleamento, tal qual a montagem no cinema, reúne fragmentos de
diversas fontes para criar uma narrativa independente destas (CONTER; SILVEIRA, 2014).
Os autores afirmam, inclusive, a possibilidade de se identificar no trabalho do DJ, ao costurar
todos esses elementos sonoros, composições tão importantes quanto as letras dos MC‟s.
Ao abordar a temática dos samples, necessariamente discute-se a rememoração de um
passado em termos diferentes daqueles que originalmente o constituíram. A reedição de um
elemento em contexto diferente cria, por assim dizer, um território de ressignificação,
reorganizando o passado no presente, “juntando e incluindo cacos que, antes, não
aparentavam ter maior importância” (CONTER; SILVEIRA, 2014). Desta forma, os autores
propõem que entendamos esses elementos como imagens sonoras. Tal conceituação parece
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estar intimamente ligada ao processo de ressignificação. Assim, os novos sentidos atribuídos
às figuras sampleadas podem criar narrativas completamente independentes dos originais. A
gargalhada maléfica de Vincent Price, em Thriller, de Michael Jackson, por exemplo, é
utilizada em “Racistas Otários” e exemplifica perfeitamente o raciocínio. O DJ KL Jay faz
uso do sample com claro intuito de elaborar novo significado para a peça. O elemento, dentro
da narrativa utilizada, indica nitidamente um contexto de luta racial, sugerindo a risada de um
branco diante de tais afirmativas.
Nota-se caráter extremamente transgressor na atividade, “afinal, a proposta do
sampling é o roubo, é a vandalização de uma imagem sonora anterior, seja de um passado
remoto ou relativamente próximo” (CONTER; SILVEIRA 2014). A este respeito, Conter e
Silveira acrescentam uma hipótese, ao comparar a atividade do DJ com a de um pichador. A
proposta do sample pode ser entendida, desta forma como uma violação do passado, tal qual
ocorre no momento em que a tinta entra em contato com um muro. Claramente, é possível ver
neste debate as possibilidades de manifestação política através da arte.
Para esta pesquisa, convém observar semelhanças entre as opções de sampleamento do
DJ dos Racionais MC‟s, KL Jay, e o do Public Enemy (PE), beatmaker do álbum “Fear of a
Black Planet”, Terminator X. Conter e Silveira notaram que as escolhas do DJ americano para
o disco, no que tange o sampleamento, revelam “um tipo de ação afirmativa” (CONTER;
SILVEIRA, 2014). Ao longo de toda a obra do PE, predominam, quase exclusivamente, as
referências à artistas negros. Essa característica vai precisamente ao encontro do que se
constatou na arqueologia de samples do Racionais MC‟s.
Efetivamente, os membros dos Racionais são estreitamente ligados à música - talvez
mais do a maioria dos outros nomes do Hip Hop brasileiro e talvez seja essa uma das razões
para o seu enorme sucesso. Há muita música no rap dos Racionais. Seu repertório rítmico é
rico, tendo em vista a presença frequente do samba, do funk americano e da soul music no seu
trabalho. Brown tocava repique de mão na adolescência, conheceu a música nos terreiros de
candomblé e sempre frequentou bailes black. Aficionado por música negra (ele sempre diz
que o artista é um colecionador), Brown chega a se ressentir pelo fato das pessoas sempre o
interpelarem para falar de política, e raramente de música. Como MC, Brown faz um uso bem
peculiar do português. Fã de Chico Buarque, o rapper tem uma verve poética trabalhada, faz
metáforas inventivas e cria imagens poderosas a partir da fala do cotidiano.
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Ao lado da sua musicalidade de Mc, há a musicalidade do DJ. KL Jay é grande
apreciador de jazz e rock, colecionador de discos, tem trajetória sólida discotecando na noite
de São Paulo para além do trabalho com os Racionais e costuma dizer que falta suingue aos
DJs. Além dele, Brown e Rock fazem as batidas para os raps do grupo.
No que se refere à reconstituição das raízes musicais dos Racionais, percebe-se que
fonte de onde os Racionais beberam para desenvolver sua música é fundamentalmente a
música pop negra estadunidense e a música negra popular do Brasil. Junto com essas músicas,
veio toda uma tradição cultural da arte negra que carrega invariavelmente agenciamentos
políticos dentro de si. Assim, com essa genealogia, abrem-se as possibilidades de perceber
como articulam-se música e política na obra dos Racionais e que relações estas dimensões
estabelecem com seus respectivos contextos históricos.
Essencialmente, o trabalho musical dos Racionais é resultado de um diálogo cultural
Brasil-EUA, que envolve o rap norte-americano, os gêneros musicais do movimento black no
Brasil, o trabalho musical de Jorge Ben, o samba brasileiro, e as lutas políticas e de identidade
que cercam tais contextos musicais. Impactados pela cultura black norte americana associada
à luta pelos direitos civis, os Panteras Negras e o movimento “Black is beatiful”, os Racionais
escutam a música atrelada a estes processos, a música pop negra americana (funk e soul,
disco) dos anos 70 e a articulam à música afro-brasileira. Eles aproximam-se definitivamente
destas formas culturais nos bailes black que as divulgaram no Brasil, dentro de um
movimento sociocultural que agrupava jovens que tinham em comum a experiência da
segregação socioespacial enquanto moradores dos bairros periféricos (WELLER, 2011). É
nestes bailes que começa a ser forjada uma identidade negra no grupo, conjugando elementos
estéticos e musicais a um forte caráter político. O rap americano, já vivo nos anos 1980
(Public Enemy, NWA e Run DMC), e o nascente rap brasileiro também serão influências para
os Racionais.
Quantitativamente, em primeiro plano, dentro das músicas sampleadas, estão as
influências relacionadas ao grupo Soul/Funk/Disco dos EUA: Marvin Gaye, George Clinton,
Parliament, James Brown, Michael Jackson, Isaac Hayes, The Meteres, Leon Hare, Ray
Charles, Curtis Mayfield e Al Green. Em segundo lugar estão as referências ao rap nacional,
como Sistema Negro, Consciência Humana, Tribunal Popular e GOG. Depois, vêm o samba e
a MPB, como referências a Negritude Jr., Agepê, Benito de Paula, Roberto Ribeiro, Luis
Airão, Fundo de Quintal, Ivo Meirelles, Lecy Brandão, Bebeto, Almir Guineto, Belo tem uma
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música no disco Tá na chuva dos Racionais, Guilherme Arantes, Chico Buarque, Gilberto Gil
e especialmente, Jorge Ben. Depois, estão as remissões ao rap americano de Tupac, Dr. DRE,
Notorious, Public Enemy. E por último, estão as referências à música negra pop brasileira da
banda Black Rio, Cassiano, Tim Maia, Hyldon e Carlos Dafé.
Entre o Public Enemy e o NWA
Qualitativamente, o rap americano é um elemento central na obra dos Racionais. Há
diversas semelhanças entre o RAP americano e a vertente representada pelos Racionais MC‟s.
Nos Estados Unidos, “embora já houvesse rappers na década de 1970, foi só nos anos 1980
que essa forma cultural se tornou conhecida e maciçamente popular” (KELLNER, 1995). O
período de transição dos anos 80 para os EUA equivale politicamente ao final da década de 80
e começo da de 90 no Brasil. Tal asserção é baseada nos governos que implementaram
agendas neoliberais em ambos os países. Nos Estados Unidos, a ascensão conservadora é
personificada através de Ronald Reagan, enquanto o Brasil pós-redemocratização esta agenda
está associada à figura de Fernando Henrique Cardoso. A implantação de medidas
econômicas desta natureza, a saber, abertura econômica, desregulamentação trabalhista,
privatizações, arrocho fiscal e diminuição do estado, ocasionou significativo declínio na vida
dos negros e pobres de ambos os países. O RAP emerge em resposta a tamanha deterioração
das condições de vida de moradores periféricos. O Racionais MC‟s, fundado em 1988, é sem
dúvida alguma, o grupo mais relevante no cenário brasileiro. Nos Estados Unidos, onde
movimento Hip Hop já era demasiado abrangente, algumas figuras despontam com destaque,
mas dois grupos ganham mais visibilidade; o Public Enemy (PE), de New York City, e o
Niggaz With Attitudes (N.W.A), vindo de Compton, Califórnia.
Na gênese do RAP dos Racionais e do movimento Hip Hop liderado por PE e N.W.A,
nos Estados Unidos, surge como componente discursivo fundamental a utilização da música
como instrumento de identidade e autoafirmação (KELLNER, 1995). Tais características são
facilmente identificadas em todas as obras destes grupos. No entanto, apesar das semelhanças,
Public Enemy e N.W.A lançaram seus primeiros discos em 1987 e 1988, respectivamente. Os
Racionais MC‟s, por sua vez, inauguraram a trajetória com “Holocausto Urbano” em 1990.
Os americanos estão, portanto, na posição de influências do grupo brasileiro, como confirma
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Ice Blue, em entrevista ao jornalista e pesquisador Djalma Santos, ao afirmar que os
Racionais são 50% Public Enemy, 50% N.W.A. A revelação do rapper faz com que olhemos
atentamente para as duas obras mais significativas dos grupos americanos antes da união dos
MC‟s do Capão Redondo.
‘Straigh Outta Compton’ e ‘It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back’, ambos
lançados em 1988, estão entre os álbuns mais agressivos do RAP americano, no que tange a
questão racial. O primeiro disco, do N.W.A, tem entre as músicas de maior sucesso “F*ck
The Police”, questionando e enfrentando abertamente um aparelho repressivo de estado. Ao
longo da obra a questão identitária ganha destaque através do estabelecimento de uma
postura, um modelo de ação para os negros de Compton. Essa característica é latente em obras
dos Racionais como “Hey Boy”. Em ambos os casos, estamos diante de conflitos raciais
“resolvidos” que adquirem caráter iminentemente violento. „It Takes a Nation of Millions to
Hold Us Back’, no entanto, ganha contornos mais politizados. Essa seria a principal diferença
entre os grupos. A estética do Public Enemy chama o povo negro à consciência, ao
enfrentamento inteligente, que não se resume ao embate físico. Os primeiros 2 discos dos
Racionais MC‟s trazem essa característica. Pode-se encontrar, evidentemente, diversos pontos
comuns entre esses grupos, os mais marcantes, no entanto, são a formação de identidade e a
autoafirmação do povo negro.
A linguagem adquire caráter fundamentalmente subversivo nos discos de RAP.
Kellner (1995) observa a transformação do termo “nigger”, que originalmente representaria
um insulto racista em símbolo de orgulho racial. Esta seria uma forma de o negro afirmar sua
identidade subvertendo os sentidos originais da linguagem. O modelo de autoafirmação
também se revela nas diversas vezes em que rappers fazem referência a nomes de
personalidades negras, como Malcom X e Martin Luther King. Segundo Kellner (1995), tais
citações expressam a recusa da população negra a submeter-se à exploração. Na música
“Jesus Chorou”, do disco “Nada como um dia após o outro dia”, do Racionais MC‟s,
encontramos modelo de referências parecido, por exemplo. Brown cita Malcom X, Marvin
Gaye, Tupac, Bob Marley e Martin Luther King, entre outros.
Quase todos os nomes citados são negros. Os versos, além de ressaltar a admiração do
grupo por tais figuras, traz uma dura constatação logo em seu início. Pessoas que lutaram
pelas mesmas coisas que o grupo paulista, que acreditaram no mesmo que estes, acabaram
mortas com tiros. Podemos afirmar que as rimas trazem não apenas referências, as quais
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poderia se atribuir a crítica da ausência de substância, mas também um aspecto fundamental
de crônica social. “A vida no gueto é violenta, e os rappers insistem em dizer que a música
que fazem e a linguagem que usam simplesmente expressam a experiência dos guetos, sem
enfeites e “na sua cara”” (KELLNER, 1995). Os rappers expõem o cotidiano da periferia, as
condições degradantes de vida e o fazem com uma linguagem própria, como observamos. A
narrativa construída através destes elementos comprova o que diz Kellner (1995) quando
afirma que o realismo cru no rap sugere que as práticas discursivas buscam unir a população
negra, criando “um meio bem particular de comunicação e um repertório linguístico e gestual
capaz de veicular a identidade e a rebeldia do negro”. Estamos, portanto, diante de um
movimento que incita uma população subjugada e marginalizada a sentir orgulho de seu modo
de falar, se vestir, do seu corpo e suas raízes. A autoafirmação destes valores é uma
mensagem de unidade, autossuficiência e independência.
Referências
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