Da Terceira Margem Eu So (U) Rrio Sobre História e Invenção

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Da terceira

margem eu
so(u)rrio: sobre
história e
invenção
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
Eu te invento, ó realidade!
Clarice Lispector
Tudo que não invento é falso.
Manoel de Barros
Há pelo menos três décadas uma palavra
começou a aparecer com frequência nos
títulos e subtítulos de obras publicadas não só
pelos historiadores, como pelos profissionais
de áreas como as Ciências Sociais, a Filosofia,
a Pedagogia, a Educação Física, a Crítica
Literária, a Psicologia, a Comunicação e até
mesmo como a Literatura, a Religião e a
Gastronomia, a palavra invenção.

Ao usar a palavra invenção, os autores estão


enfatizando a dimensão genética das práticas
humanas, independentemente do que
considerem ser as ações determinantes ou
fundantes da realidade ou de suas
representações. Os homens inventariam a
História através de suas ações e de suas
representações.
O termo invenção, portanto, também remete a
uma dada ruptura, a uma dada censura ou a
um momento inaugural de alguma prática, de
algum costume, de alguma concepção, de
algum evento humano.

Na primeira frase do prefácio que escreveu


para o seu próprio livro intitulado A invenção
da História, Arno Wehling começa por negar
que entenda invenção da mesma forma que
Detienne, Hobsbawm ou Certeau, que,
segundo ele, pensam invenção “como o
processo através do qual a vida social foi
cristalizada num discurso e as razões que
existiram para isso”.
Segundo ele, invenção vai aparecer em seu
texto como “o ato de descobrir ou encontrar um
objeto/coisa que já existe, embora o
desconheçamos’, como ‘o ato de apropriação
de algo que jazia ignorado e desprezado pelos
outros homens”.

Estaríamos diante, portanto, de duas posturas


epistemológicas distintas, uma que chamaria
atenção para o papel do discurso, da narrativa,
no processo de invenção dos objetos históricos,
e uma outra que toma o objeto como algo
preexistente ao discurso, como algo que,
estando oculto, seria revelado ou espelhado
pelo discurso do historiador.
Divisão moderna dos pólos do
conhecimento
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Mundo da natureza, Mundo da cultura, do


que seria simbólico, da
das coisas
construção social do
materiais, da “coisa conhecimento, da
em si” subjetividade
História social
Seria aquela que não poria em
questão a materialidade, a
objetividade, a realidade do fato
histórico, mesmo já não considerando
possível apreendê-lo em sua
totalidade ou como de fato ele foi.

O momento de invenção de qualquer


objeto histórico seria o próprio
passado e caberia ao saber histórico
tentar dar conta dos agentes desta
invenção, definindo que práticas,
relações sociais, atividades sociais
produziram um dado evento.
História cultural
A evidência é produto de uma certa
vidência, é construção de uma forma
de ver, de uma visibilidade e de uma
dizibilidade social e historicamente
localizada.

É o próprio conceito, é o discurso


lançado sobre a empiria que a
transforma em evidência. Nada é
evidente antes de ser evidenciado,
ressaltado por alguma forma de
nomeação, conceituação ou relato.
A história a partir da terceira margem

Talvez possamos sair desta necessidade de nos filiarmos de um lado ou de outro destes
pretensos paradigmas rivais se, inspirados nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa,
buscarmos pensar a possibilidade de uma terceira margem, uma margem onde as
duas anteriores, fruto das atividades de purificação, de racionalização, de construção
humana e social de objetos e de sujeitos como entidades separadas vêm se encontrar,
vêm se misturar no fluxo, no turbilhonar das ações e práticas humanas.
A história a partir da terceira margem

O que significa pensar a História e escrevê-la desta terceira margem? Significa


primeiro pensar que a História não se passa apenas no lugar da natureza, da coisa em
si, do evento, da matéria ou da realidade, nem se passa apenas do lado da
representação, da cultura, da subjetividade, do sujeito, da idéia ou da narrativa, mas se
passa entre elas, no ponto de encontro e na mediação entre elas, no lugar onde estas
divisões são indiscerníveis, onde estes elementos e variáveis se misturam.
A história a partir da terceira margem
A história, como o rio heraclitiano arrasta estas formas estabilizadas para o fluxo, para
o redemoinho do tempo, tornando-as sempre diferentes do que pareciam ser.
Qualquer evento histórico é uma mistura tal de variáveis, é fruto do entrelaçamento de
tantos outros eventos de natureza diferenciada, que sempre visualizamos apenas
parcialmente e pomos em evidência apenas alguns destes elementos que o constituem.
Como o rio, a História arrasta as suas margens para seu leito, num trabalho incessante
de corrosão, em que figuras de objeto e figuras de sujeito, coisas e representações,
natureza e cultura se entrelaçam e se misturam, redemoinham-se, enovelam-se,
hibridizam-se. Ao contrário do que pensamos, se as margens limitam e contêm o rio,
dão a ele forma e curso, não são as margens que produzem o rio, mas justamente o
contrário, é o fluxo das águas, o passar incessante de seus torvelinhos que vai
escavando as margens, dando a elas contornos, é o rio que produz suas margens.
A história a partir da terceira margem

Desde os textos dos fundadores da Escola


dos Annales que invertemos a relação entre
passado e presente, aprendemos que é o
presente que interroga o passado e o
conecta com a nossa vida, com as suas
problemáticas; o passado, como a História, é
uma invenção do presente, embora
ancorada nos signos deixados pelo passado.
A história a partir da terceira margem

Como historiador, historiador das invenções, habitante desta


terceira margem, sei que sou rio, pois sei que sou também
natureza e grande parte do meu corpo é constituído por água.
Mas também sorrio, pois a consciência irônica do meu tempo me
fez praticar meu ofício como um lugar de desconstrução do rosto
sério e sisudo das verdades definitivas e estabelecidas. [...] Sou
disciplina e antidisciplina, determinação e liberdade, estratégia e
tática, astúcia e angústia. Às vezes sigo o (dis)curso, às vezes saio
das margens, transbordo, alargo, arrasto em meu caminho
outras formas organizadas e as transformo em novas formas e
ambas compõem o meu existir de rio. Às vezes objetivado, às
vezes sujeitado, às vezes objetivo, às vezes subjetivo, sempre os
dois ao mesmo tempo, eu sou rio e eu sorrio, eu, natural e
humano, cursivo e discursivo, invento na História e a História.

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