Cinema Feito Por Mulheres - Tão Longe É Aqui

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 127

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ANA CAROLINA DOMINGUES

CINEMA FEITO POR MULHERES: UM ESTUDO SOBRE A PRODUÇÃO DA


IMAGEM CINEMATOGRÁFICA E A EDUCAÇÃO VISUAL EM TÃO LONGE
É AQUI

SÃO CARLOS
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ANA CAROLINA DOMINGUES

CINEMA FEITO POR MULHERES: UM ESTUDO SOBRE A PRODUÇÃO DA


IMAGEM CINEMATOGRÁFICA E A EDUCAÇÃO VISUAL EM TÃO LONGE
É AQUI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Educação da Universidade Federal de São Carlos como
parte do requisito à obtenção do título de Mestre em
Educação.
Linha de pesquisa: Educação, Cultura e Subjetividade.
Orientação: Prof. Dr. Alan Victor Pimenta de Almeida Pales
Costa

SÃO CARLOS
2019
Domingues, Ana Carolina
Cinema feito por mulheres: um estudo sobre a produção da imagem
cinematográfica e a educação visual em Tão Longe é Aqui / Ana Carolina
Domingues. -- 2019.
127 f. : 30 cm.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal de São Carlos, campus São


Carlos, São Carlos
Orientador: Alan Victor Pimenta de Almeida Pales Costa
Banca examinadora: Gabriela Domingues Coppola, Nilson Fernandes
Dinis
Bibliografia

1. Educação Visual. 2. Estudos da Imagem. 3. Cinema feito por mulheres


. I. Orientador. II. Universidade Federal de São Carlos. III. Título.

Ficha catalográfica elaborada pelo Programa de Geração Automática da Secretaria Geral de Informática (SIn).
DADOS FORNECIDOS PELO(A) AUTOR(A)
Bibliotecário(a) Responsável: Ronildo Santos Prado – CRB/8 7325
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, ao meu orientador, professor


Alan, que foi o primeiro entusiasta a se entregar e dedicar-se a esse trabalho. Agradeço
pelo seu comprometimento e o zelo que teve desde o início dessa jornada em preocupar-
se com empenho, em cada detalhe desse texto.
Em segundo lugar, e não menos importante, agradeço minha mãe Alice,
minha primeira grande inspiração, a quem dedico esse trabalho integralmente, pois sem
ela, esse caminho não seria trilhado. Agradeço pela sua coragem em acreditar em mim
todos os dias e por me apoiar em cada decisão durante esse percurso que trilhei. Você
fez muita diferença nessa fase. Obrigada.
Agradeço ao Ennio, meu grande companheiro, pelas noites de conversa e
pelo seu carinho em amparar-me a cada conflito que me surgia.
Valentim e Cadu, obrigada pela presença nos longos dias de escrita e
leitura.
Familiares, amigas e amigos, professores e professoras que se fizeram
presente não só durante essa trajetória de escrita, mas que me influenciaram e
continuam me contagiando com muito amor e gentileza, agradeço imensamente o apoio.
Agradeço, à todas as mulheres, autoras, cineastas e professoras que me
mostraram uma forma múltipla de perceber o mundo.
Por fim, dedico esse trabalho à toda comunidade acadêmica que me
inspiram a seguir estudando, pesquisando e resistindo.
RESUMO

Este trabalho tem por objetivo estudar e compreender qual é a percepção de mulheres
cineastas, e o que as imagens produzidas por elas nos dizem e nos educam. Para isso, o
trabalho apresenta o longa-metragem Tão longe é Aqui (2013) dirigido pela cineasta e
jornalista brasileira Eliza Capai, cuja história narra sua viagem ao continente africano
em 2010. Para tanto, o recorte teórico fundamenta-se em autores que estudam e
compreendem a imagem como responsável por uma forma de educação, expressão e
controle, por exercer um processo educativo sobre quem as vê. O processo cognitivo
que opera na imagem, aponta para temática da visualidade, como um exercício político.
Tão longe é aqui “encruza” os gêneros cinematográficos dos road-movies, do
documentário e do filme carta, o tornando híbrido pela maneira que se articula em todas
essas camadas (gêneros). A metodologia consiste em decompor e interpretar as imagens
agentes (ALMEIDA, 2009), como próprios documentos possíveis de dialogarem com o
texto. Como conclusão, apontamos que Tão longe é Aqui pertence ao gênero women’s
film (filme feito por mulheres) por se endereçar a partir de uma outra forma de
percepção do mundo que integra mulheres que partilham de experiências similares.
Nesse contexto de interpretação escolhemos o tema da maternidade para interpretar as
imagens agentes produzidas e sequenciadas no longa-metragem.

Palavras-chave: Educação visual; estudos da imagem; cinema feito por mulheres.


ABSTRACT

This work aims to study and understand the perception of womens filmmakers, and
what the images produced by them tell us and educate us. For this, the work presents the
feature film So Far is Here (2013) directed by Brazilian filmmaker and journalist Eliza
Capai, whose story chronicles her trip to the African continent in 2010. The theoretical
cut is based on authors who study and understand the image as responsible for a form of
education, expression and control, for exercising an educational process over who sees
them. The cognitive process that operates in the image, points to the theme of visuality,
as a political exercise. So Far is Here "encroces" the cinematographic genres of road-
movies, the documentary and the movie-letter, making it hybrid by the way it articulates
in all these layers (genres). The methodology consists of decomposing and interpreting
the “agent images” (ALMEIDA, 2009), as possible own documents to dialogue with the
text. As a conclusion, we pointed out that So Far is Here belongs to the genre women's
film, for addressing itself from another form of world perception that integrates women
who share similar experiences. In this context of interpretation we chose the theme of
motherhood to interpret the “agent images” produced and sequenced in the feature film.

Keywords: Visual education; image studies; women’s film.


LISTA DE IMAGENS

Figura 1 Riddles of the Sphinx (1977). ...................................................................................... 17


Figura 2 - L’une chante, l’autre pas. (1977). .............................................................................. 18
Figura 3 - Wanda Pimentel - Envolvimentos. ............................................................................. 19
Figura 4 - Sister my Sister. (1994) .............................................................................................. 22
Figura 5 - Produção nacional de longas-metragens..................................................................... 23
Figura 6 - Cena de O dia de Jeruza (2013) .................................................................................. 29
Figura 7 - Piero della Francesca. Città ideale.............................................................................. 44
Figura 8 - Leon Battista Alberti. Courtyard. ............................................................................... 45
Figura 9 - Piero della Francesca. Flagellazione di Cristo........................................................... 47
Figura 10 - Ivan, o terrível. Serguei Eisenstein. 1947. (União Soviética). .................................. 57
Figura 11 Sequência de cenas. Africana observando Eliza com a câmera. Etiópia, 2010. ......... 83
Figura 12 - Siham. Marrocos, 2010............................................................................................. 87
Figura 13 - Siham em primeiro plano. Marrocos, 2010. ............................................................. 87
Figura 14 - Siham filmada de costas visitando um templo. Marrocos, 2010. ............................. 87
Figura 15 - Hawa em primeiro plano. Mali, 2010. ...................................................................... 88
Figura 16 - Hawa amamentando. Marrocos, 2010. ..................................................................... 88
Figura 17 - Hawa filmada na vila em plongée e contra-plongéé. Mali, 2010. ............................ 89
Figura 18 - Awa Mente em primeiro plano, ao fundo um tear. Mali, 2010 ................................ 89
Figura 19 - Siham tomando uma xícara de chá, em primeiro plano. Marrocos, 2010. ............... 91
Figura 20 - Siham em plano detalhe. Marrocos, 2010. ............................................................... 92
Figura 21 - Sequência da entrevista com a mulher berber. Marrocos, 2010. .............................. 93
Figura 22 - Hawa em primeiro plano. Mali, 2010. ...................................................................... 94
Figura 23 - Eliza filma sua mão em plano detalhe na água, um dos motifs do longa. ................ 95
Figura 24 - A liberdade dos pássaros .......................................................................................... 96
Figura 25 – A dimensão da estrada.. ........................................................................................... 96
Figura 26 - Windja em primeiro plano. Cabo verde, 2010.......................................................... 96
Figura 27 - Sequência de imagens que mostram Eliza ................................................................ 97
Figura 28 - Cena de uma estrada no Marrocos ............................................................................ 98
Figura 29 - Cenas da rodoviária no Mali..................................................................................... 99
Figura 30 - Imagem de um vaso e de uma caverna. .................................................................. 101
Figura 31 - Eliza em plano detalhe............................................................................................ 102
Figura 32 - Jogadora do time de futebol de lésbicas. África do Sul, 2010. ............................... 103
Figura 33 - Cantora com sua filha. África do Sul, 2010. .......................................................... 103
Figura 34 - Criança filmada nas cenas finais do filme, ............................................................. 103
Figura 35 - Caverna filmada por Eliza. ..................................................................................... 106
SUMÁRIO
RESUMO ...................................................................................................................................... 6
ABSTRACT .................................................................................................................................. 7
LISTA DE IMAGENS .................................................................................................................. 8
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9
2. O CINEMA FEITO POR MULHERES: REFIGURANDO NOVOS GÊNEROS NO
CINEMA ..................................................................................................................................... 15
2.1. O CASO BRASILEIRO: AS CINEASTAS E O EMPODERAMENTO ........................ 22
3. A IMAGEM: O REAL NATURALIZADO ....................................................................... 32
3.1.1 A EDUCAÇÃO DA PERCEPÇÃO ........................................................................... 36
3.1.2 ARTE DA MEMÓRIA: A EDUCAÇÃO DA VISUALIDADE POR IMAGENS
AGENTES/POTENTES...................................................................................................... 39
3.2 A PERSPECTIVA RENASCENTISTA: A EDUCAÇÃO DOS MODOS DE VER
ENTRE O REAL E O PRODUZIDO ..................................................................................... 42
3.3 A EXPERIÊNCIA E A EDUCAÇÃO DA PERCEPÇÃO EM WALTER BENJAMIN .. 52
3.4 CINEMA E EDUCAÇÃO: O CINEMA COMO EXPERIÊNCIA ................................... 60
3.4.1. O CINEMA E A REALIDADE: ASPECTOS DO DOCUMENTÁRIO E A BUSCA
PELO REAL ....................................................................................................................... 64
3.4.2 ENTRE O ROAD-MOVIE E O FILME-CARTA: UM PERSONAGEM EM CRISE
PELA ESTRADA ............................................................................................................... 67
4. REPRESENTAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PORMENORIZADA ............................... 73
5. TÃO LONGE É AQUI: SOBRE O LONGA METRAGEM .............................................. 76
5.1.1 TÃO LONGE É AQUI: OS PAÍSES E AS MULHERES ......................................... 77
5.1.2 TÃO LONGE É AQUI: APRESENTAÇÃO SIMBÓLICA ...................................... 79
5.2. QUATRO EXISTÊNCIAS EM TRÂNSITO ................................................................... 86
5.3. VOZES RESSOANTES ................................................................................................... 90
5.4. IMAGENS AGENTES ................................................................................................. 104
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 112
REFERÊNCIAS: ....................................................................................................................... 116
FILMOGRAFIA: .................................................................................................................. 119
ANEXO ..................................................................................................................................... 121
9

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo estudar e compreender qual é a percepção


de mulheres que produzem cinema, e o que essas imagens produzidas nos dizem e como
nos educam. Para isso, apresentamos o longa-metragem Tão longe é Aqui dirigido pela
cineasta e jornalista brasileira Eliza Capai, cuja história mostra sua viagem ao
continente africano em 2010. O longa, estreado em 2013, conta o percurso de Eliza em
terras africanas. Sua história é atravessada pelas histórias de mulheres africanas. No ano
de estreia o filme recebeu o prêmio especial do júri no festival FEMINA (Festival
Internacional de Cinema Feminino) por conta da temática recorrente de situações de ser
mulher em diferentes países do continente africano.
O filme de Eliza Capai, embora não declarado, pode ser pensado na
chave de um novo cinema brasileiro (ARTHUSO, 2016), cujas aspirações apontam para
temáticas atuais, subjetivas que tencionam e cruzam gêneros cinematográficos. Um
cinema híbrido de posicionamentos, reflexões e formas de subjetivação e afetação nos
espectadores, sobretudo nas mulheres. Portanto, em relação ao aspecto estético
cinematográfico, Tão longe é Aqui delineia os traços do documentário, dos road-movies
(LADERMAN, 2002) e de um filme-carta (MIGLIORIN, 2015). A narrativa do filme
explora por meio das histórias, lugares, espaços e mulheres que a jornalista
experienciou, uma carta, que enviada para sua filha, expressa suas angústias, aventuras,
aprovações e desaprovações em relação às aprendizagens que foram se concretizando ao
longo de sua jornada. Por isso, o filme também partilha de um entendimento reflexivo
sobre os romances de formação, os bildungsroman, que apontam as narrativas de
viagem vividas pela jornalista que lhe (e nos) proporcionaram grandes momentos
reflexivos, de desenvolvimento social e político que culminaram em sua própria
essência de ser mulher. É possível afirmar, que Eliza Capai se produziu mulher com
aquelas mulheres.
As temáticas de gênero, sexualidade, maternidade, cultura e educação,
constroem uma narrativa muito aberta a ser compreendida sob vários aspectos. Por este
motivo, a abordagem teórica adotada neste trabalho apresenta e interpreta o filme com
base nos estudos de educação visual, por entendermos que as imagens em movimento
do filme são responsáveis por nos criarem uma forma de percepção, nos construindo
10

modos de ver, perceber e compreender a “realidade” que se mostra por meio deste
aparato.
O recorte teórico foi construído com base em autores que pensam e
compreendem a educação visual, a percepção e logo, a imagem, como forma de trazer à
luz um processo educativo decorrente dos aparelhos tecnológicos da modernidade,
como a fotografia, o cinema e a televisão, com o intuito de expor o quadro de
inteligibilidade que se forma e se constrói na relação das pessoas com os aparatos, a
partir deste novo tipo de educação. Já adiantamos, portanto, que o aparato tecnológico
formado desde a perspectiva renascentista, até a produção de filmes repletos de efeitos
especiais, partilha de um processo ideologicamente pensado e estruturado que educa e
vem educando as pessoas.
Ver não é somente um ato mecânico, a visão é formada culturalmente por
meio destes encontros imagéticos produzidos tanto pela cultura da mídia, quanto por
pensadores e pensadoras, críticos e críticas que depositaram neste encontro uma forma
de potência, de educação e sobretudo, de formar percepções e subjetividades. Ao
recebermos por meio dos sentidos (neste caso, as imagens e sons, impressões e
sensações que o cinema possibilita e permite em sua relação com espectadores), a
percepção visual se constitui de forma diferente em cada pessoa. Mesmo que o ato
óptico-físico seja o mesmo pela sua função fisiológica, as impressões luminosas
captadas pelo olho se dissemelham a medida que essas informações recebidas são
interpretadas de forma diferente por cada pessoa de acordo com a cultura e a vivência
de cada ser.
Por isso, justificamos esse trabalho ao considerarmos legítimo um
cinema que é feito por mulheres e que se constitui a partir de um outro processo de
produção por nos possibilitar outras experiências, nos desestabilizando a desconstruir
um processo de educação visual que foi naturalizado ao longo dos anos.
Walter Benjamin (2012), no século XX, nos guia, filosoficamente, nos
primeiros passos rumo a esta interpretação da sociedade moderna que se movimentava,
a partir daquele momento em meio às novas invenções modernas da fotografia e do
cinema. É este autor que apresenta, a priori, o modo como esses aparelhos
intensificaram uma mudança na percepção da sociedade em consequência dessas formas
de produção de arte. Na era da reprodutibilidade técnica, o cinema possibilitou, por
11

meio da imagem em movimento, uma forma de percepção de mundo que é coletiva, e


produzida de modo a afetar espectadores e espectadoras que se abrem a este encontro.
Esteticamente, cineastas que se permitiram à abertura deste encontro por
meio da imagem, produziram filmes que impulsionaram a forma de compreender o
cinema como uma configuração estética e política do século XX. Andrei Tarkovski1,
Pier Paolo Pasolini2 e Abbas Kiarostami3, especificamente, por apresentarem um
trabalho profundo sobre o poder do cinema, do corpo como uma figura resistente às
imposições aceleradas culturalmente, e das formas de transgressão, influenciaram
também este trabalho a construir um recorte teórico e estético.
Com base nos estudos sobre a educação visual, a imagem, a fotografia e
o cinema, academicamente Ismail Xavier (2012), Milton José de Almeida (2009) e
Arlindo Machado (2015), são autores que mostram um modo de ver, que é diferente por
entenderem a visão como exercício político e ideológico. Considerando esse exercício
político e ideológico do ato de ver, recorremos a Elizabeth Ellsworth (2001) para
compreendermos que o filme é produzido sob a perspectiva de um modo de
endereçamento, modo este que configura uma forma de direcionamento e
posicionamento para os espectadores e espectadoras que veem esses filmes.
Politicamente, o recorte teórico também agrega autoras que discutem o
feminismo e o filme feito por mulheres como forma de empoderamento, no sentido de
potencializar um cinema que se atravessa e é atravessado por outros sentidos e
significados em sua produção e em sua interpretação, e crítica a um cinema
predominantemente feito por homens brancos, que estruturaram a linguagem
cinematográfica hollywoodiana. São autoras que mostram e denunciam o pouco espaço
que as mulheres ocupam na área audiovisual, e o quanto estudar e ampliar esse espaço
pode ser agregador e transformador. E Ann Kaplan (2012) explica que podemos ir além
das diferenças, para potencializar um cinema híbrido e novo, que cria um novo gênero
cinematográfico, o women’s film. Lúcia Nagib (2012) conclui que, no caso brasileiro, a
conquista de um espaço pelas diretoras e produtoras femininas veio da formação de
parcerias com outros diretores e produtores.
Então, com base nas imagens do longa-metragem Tão longe é Aqui e do
recorte teórico, o trabalho explora o cinema feito por mulheres, na perspectiva da

1
Cineasta russo, nascido na antiga União Soviética. 1932 – 1986.
2
Cineasta italiano. 1922 – 1975.
3
Cineasta iraniano. 1940 – 2016.
12

educação visual, se questionando qual é a percepção de uma mulher que filma? O que
dizem (como educam) as imagens produzidas neste encontro? Como o gênero
(sexualidade) se endereça como gênero cinematográfico?
Este trabalho está dividido em seis seções: 1) Introdução 2) O cinema
feito por mulheres: refigurando novos gêneros no cinema; 3) A imagem: o real
naturalizado, 4) Tão longe é aqui: sobre o longa metragem, 5) Imagens produzidas de
um encontro e 6) Considerações finais.
Na segunda seção, O cinema feito por mulheres: refigurando novos
gêneros no cinema, são apresentadas e discutidas as principais autoras que se
posicionaram à linguagem cinematográfica tradicional hollywoodiana, denunciando
aspectos que eram produzidos neste cinema, passando pelo caso do cinema brasileiro,
até chegarmos nas condições de produção de Tão longe é aqui.
A terceira seção, A imagem: o real naturalizado, foi subdividida em: A
educação da percepção e Arte da memória: a educação da visualidade por imagens
agentes/potentes com o objetivo de apresentar as discussões acerca da imagem, sua
potência e não ingenuidade ao construir e produzir modos de ver e percepções de
mundo, por considerar o olhar como suscetível de ser educado pela cultura, e a cultura,
assim como a educação são ideológicas; e A perspectiva renascentista: modos de ver
entre o real e o produzido, em que explica as origens históricas (que datam o
movimento italiano renascentista) que foram responsáveis por propagarem este modo de
ver específico, em perspectiva, que nos ilusiona a ver como verdadeira reprodução do
real. Essas imagens povoam nossa memória artificial, produzindo imagens agentes e
potentes, que educam e formam nossa memória e, logo, nossa percepção do mundo.
A terceira subdivisão da segunda seção, A experiência visual e a
educação da percepção em Walter Benjamin, tem por intenção, apresentar uma
discussão, com base no filósofo, sobre o modo como a mudança da sociedade, alterou as
formas de relação do ser humano com o mundo, sobretudo, a relação orientada pela
câmera, e pelo encontro produtivo entre o homem e o aparelho audiovisual.
A quarta subdivisão da segunda seção, Cinema e educação: cinema como
experiência, apresenta a abordagem que será a base para o entendimento e compreensão
do filme neste trabalho: o cinema como uma configuração estética e política do século
XX. Esta seção tem duas subseções intituladas: O cinema e a realidade: aspectos do
documentário e a busca pelo real. Nesta subseção são discutidas as formas pelas quais a
13

propagação do modo de ver em perspectiva intensificou o desejo de produção e


aproximação com o real e traz questionamentos e alguns apontamentos sobre a noção de
realidade e representação no cinema; e Entre o road-movie e o filme-carta: um
personagem em crise pela estrada que tem por objetivo apresentar as experiências e as
aprendizagens (narrativas de formação) que caracterizam os filmes de estrada e como
esses aspectos se concretizam nessa produção.
A quarta seção apresenta a caracterização pormenorizada dos
procedimentos metodológicos que foram utilizados para a interpretação das imagens do
filme, com base na compreensão das imagens agentes (ALMEIDA, 2009). Fizemos
uma interpretação das imagens agentes do longa-metragem que nos possibilitaram
perceber e assimilar algumas ideias e conceitos que o filme explora. O processo da
“análise fílmica” consistiu em decompor as imagens de Tão longe é Aqui, e interpretá-
las de acordo com os aspectos técnicos (luz, cor e enquadramento) e com as temáticas
simbólicas.
A quinta seção apresenta, por fim, as informações do filme, as condições
de produção e nossas interpretações a partir das imagens agentes com base na
metodologia de decomposição e interpretação. O trabalho finaliza com as considerações
finais em forma de carta. Apontamos que Tão longe é Aqui se utiliza de alegorias e
motifs que simbolizam a maternidade, a acepção e a mulher, em sua natureza. As
alegorias da água e da areia nos endereçam o sentimento da maternidade e de busca
interna da personagem narradora, que nos desperta para a questão não só feminista, mas
feminina.
O filme foi escolhido após cartografar filmografias e autoras femininas.
De alguma maneira, o filme despertou em mim um encontro, que foi diferente e
movimentador de muitas questões e identificações que me impulsionaram a explorá-lo
um pouco mais. A narrativa de uma mulher viajante, ouvindo outras mulheres em
culturas tão distintas me chamou a atenção para pesquisar e entender um pouco mais
esse universo que é o filme feito por mulheres a partir destas imagens produzidas do
encontro de uma mulher e uma câmera.
Para concluir, a educação, é formada por nossos sentidos e
sensibilidades. Todo o corpo é suscetível de ser educado, por meio de todos sentidos.
Essa educação dos sentidos, sensibilidades e emoções, são as bases que formam as
percepções das pessoas. Essa educação dos sentidos é construída em um processo
14

histórico, social e subjetivo que muda e se transforma coletivamente. O cinema e a


fotografia, por meio da imagem são responsáveis por nos educarem os sentidos e
produzirem encontros movimentadores e transformadores.
15

2. O CINEMA FEITO POR MULHERES: REFIGURANDO NOVOS


GÊNEROS NO CINEMA

O filme feito por mulheres corresponde à filmes que são produzidos,


dirigidos e realizados por mulheres, trazendo suas formas de percepção do mundo, o
que não resulta, exclusivamente, em filmes feministas. O que procuramos evidenciar
são os modos de percepção revelados do encontro das mulheres com as câmeras, de
modo a enaltecer a forma como percebem o mundo e como essa relação é constituída,
pois, como os homens sempre ocuparam posições de destaque nas realizações dos
filmes, é essa forma de percepção do mundo que se naturaliza no cinema não
permitindo aos espectadores e espectadoras outras experiências advindas de outras
condições de filmagem.
Historicamente houve uma tendência por parte de alguns grupos sociais
em diminuir o trabalho de mulheres, silenciar suas vozes e deslegitimar suas lutas, por
isso se torna importante o trabalho político, científico e artístico das críticas,
pesquisadoras e pensadoras feministas para resgatar e dar voz à criação e a arte feita por
mulheres em seus próprios modos de percepção. Podemos dizer que existe uma
expressão e uma percepção feminina, mas, essa consideração refere-se à uma expressão
e uma percepção de mundo libertária, política, de resistência e transformadora.
O filme feito por mulheres caracteriza, portanto, filmes que trazem em
suas realizações, desde as condições de produção até os tipos de narrações, questões que
são compartilhadas por mulheres, dividindo, assim, experiências similares. Muitas
diretoras não se dizem feministas e ativistas, mas, por meio de seus filmes, percebem-se
elementos que caracterizam certo tipo de produção por mostrarem aspectos caros ao
feminismo (como a quebra de paradigmas e estereótipos desconstruídos). O cinema
feito por mulheres se constitui em um amplo espaço de possibilidades revelados do
encontro das mulheres com as câmeras, que embora reconheça as diferenças entre as
mulheres, reconhece as especificidades de ser mulher, pela unicidade de experiências
partilhadas no mundo por conta de grupos dominantes. (HOLANDA, 2017a).
Em 1975, Laura Mulvey publicou o artigo “O Prazer Visual e o Cinema
Narrativo”, (Visual pleasure and narrative cinema), na revista Screen, em que
apresentava os primeiros princípios de uma crítica ao tradicional cinema de Hollywood
em relação à produção de uma imagem da mulher, como objeto de prazer erótico do
espectador masculino.
16

Mulvey inicia o debate na década de 70, em que o movimento feminista


está emergindo nos EUA e em outros lugares do mundo, por isso seu discurso é mais
radical em relação àquilo que propõe. Sua motivação é mostrar como o cinema de
Hollywood se apropriou do discurso machista e patriarcal da sociedade para construir a
imagem da mulher como objeto de prazer. Para tanto, fundamenta-se na teoria da
psicanálise e a defende como uma “arma política” para compreender a maneira como,
“inconscientemente”, a sociedade aprendeu e aceitou o patriarcalismo. A autora afirma
que o cinema se transformou nos últimos anos, e os avanços tecnológicos permitiram
novas condições de produção possibilitando ao cinema oscilar entre o “artesanal” e o
capitalista, já que existe um espaço de desenvolvimento para um cinema alternativo. A
chave dessa mudança seria compreender e reagir contra as obsessões e premissas da
sociedade patriarcal que produz o cinema de Hollywood, manipulando o prazer visual
de um cinema incontestado e dominante que codificou o erótico e patriarcal.
A autora sugere como proposta e resposta a esse cinema dominante, um
cinema de vanguarda estética e política como um contraponto. Um cinema em que as
mulheres não fossem construídas dentro da narrativa como objetos de prazer visual da
sociedade machista.
Mulvey (1999) ao declarar que o cinema oferece diversas possibilidades
de prazeres e de olhares, em que impera a imagem com base em um olhar masculino e
pelo público fetichista, propõe, uma nova linguagem em cinema, um “contra-cinema”
que esforça-se para romper com os mecanismos de um cinema narrativo tradicional e
patriarcal. Em 1977, dirige juntamente ao seu companheiro, Peter Wollen, o filme
experimental, Riddles of the Sphinx (Enigmas da Esfinge).
O filme ensaio/manifesto inicia com a própria aparição de Mulvey
explicando como ela e o marido pensaram a segunda parte do filme4.
No segundo bloco, retrata em regime sempre fechado Louise, uma mãe
recém separada, na tentativa de quebrar a escopofilia. São longos plano-sequências em
que a câmera gira 360º mostrando sempre os ambientes da casa, da maternidade e do
trabalho. Nesses trechos, junto a um som instrumental, quase hipnótico, a imagem e a
narração se tornam repetitivas, quebrando qualquer tipo de prazer que possa se sentir

4
Riddles of the sphinx é um filme ensaio e está dividido em três partes. Um primeiro bloco em que
Mulvey faz uma narração explicativa, um segundo bloco dividido em treze capítulos narrando a vida de
Louise e uma terceira parte com acrobatas em negativo, representando corpos livres.
17

com o filme, já que há uma opção de performar os aspectos apresentados e discutidos


em seu texto.

Figura 1 Riddles of the Sphinx (1977). Sequência de Louise nos afazeres domésticos. Nesta
sequência, o enquadramento fecha em apenas uma parte do corpo da mulher, sem que possamos
ver seu rosto. No plano-sequência, são filmados em 360º suas repetições diárias na casa e com a
filha bebê.

O ensaio feminista e experimental foi totalmente baseado no trabalho de


Mulvey sobre a teoria psicanalítica, a escopofilia5 e o olhar masculino, num esforço de
trabalhar com uma narrativa que explora o feminismo e a psicanálise. Se o cinema
narrativo dominante produz o prazer visual por meio da escopofilia, é preciso que haja
um cinema alternativo que construa diferentes formas de experiência, adotando uma
perspectiva feminista, de modo a romper com o prazer visual construído sobre o corpo
feminino.
Mulvey analisa os clássicos filmes de Hollywood das décadas de 1940 e
1950, portanto, seus estudos e constatações fazem sentido se pensarmos no cinema
produzido naquela época, naquele contexto, já que atualmente vem se produzindo novas
formas de construir imagens e narrativas, sobretudo, feita por mulheres. Porém, mesmo
situando o contexto dos anos 1960 em que Mulvey iniciava suas inquietações e debates,

5
Desejo patológico de se exibir ou ser observado pelos outros. Prazer sexual que advém da observação de
órgãos ou atos sexuais. Fonte: https://www.dicio.com.br/escopofilia/.
18

Ana Carolina Almeida (2017) aponta que Agnès Varda6 já acumulava uma série de
filmografias.
No mesmo ano de lançamento de “Os enigmas da esfinge” (1977), Varda
lançava seu musical feminista “Uma canta, outra não” (L’une chante, l’autre pas). Para
Almeida (2017),
Enquanto Mulvey provocava um debate teórico fincado na ideia de uma
eliminação do prazer visual no cinema clássico, Varda já conseguia
ressignificar estruturas próprias desse cinema clássico, como o musical,
em um acontecimento subversivo. (ALMEIDA, 2017, s/p).

No filme, duas amigas Suzanne e Pauline vivem em Paris, em 1962.


Suzanne, mãe de dois filhos, casada com um fotógrafo, vive uma vida humilde e infeliz.
Pauline sonha em ser cantora. As duas se separam por um período de dez anos.
Reencontraram-se em uma manifestação pró-aborto, novamente, em 1976, após
experimentarem o verdadeiro sentido da icônica frase de Beauvoir “Não se nasce
mulher, torna-se”.
Almeida (2017) ainda destaca que Agnès Varda foi um dos grandes
nomes da Novelle Vague francesa, mesmo, seu nome sendo poucas vezes citado como
pertencente ao movimento. Varda se debruçou sobre as questões políticas e estéticas de
ser mulher para pensar o próprio fazer cinematográfico.

Figura 2 - L’une chante, l’autre pas. (1977). Na primeira imagem, o drama de Suzanne ao descobrir a
terceira gravidez, que encorajada pela amiga Pauline faz um aborto. Na segunda imagem, Pauline,
canta em uma manifestação sobre a legalização do aborto, onde se encontram depois de dez anos.

Wanda Pimentel, artista brasileira, também se utilizou do espaço


feminino na arte para revelar uma crítica à sociedade de consumo e o período de
repressão sexual e ideológico durante a ditadura civil-militar brasileira. A artista

6
Cineasta e fotógrafa belga.
19

apresenta espaços que se assemelham aos filmados por Mulvey com regimes fechados e
claustrofóbicos, porém reivindica o corpo feminino a ocupar um espaço na arte.

Figura 3 Wanda Pimentel - Envolvimentos.


Fonte:http://www.infoartsp.com.br/agenda/wanda-pimentel-envolvimentos/

Podemos refletir, portanto, como pontos críticos ao pensamento de Laura


Mulvey que a mulher tem um olhar ativo sobre as imagens, já que existem espectadoras
femininas, que estão praticando o ato de olhar ativamente imagens do cinema.
Em relação a esse aspecto, Miriam Hansen (1986) analisa que nos anos
1920 houve um processo de emancipação feminina, pois, começou-se a pensar em
filmes para o público feminino por ser considerado uma audiência consumidora. A
autora faz sua análise com base nos personagens de Rudolph Valentino7 e estabeleceu
um contraponto em relação à Mulvey argumentando que por meio de Valentino, a
mulher tem um olhar ativo perante o homem, ela olha o homem. Hansen (1986)
compreende Valentino como uma ambivalência, já que são vários olhares o observando,
tanto ativos quanto passivos.
Todavia, nos filmes em que Valentino é protagonista, há uma certa
agressividade de seus personagens em relação às personagens mulheres com as quais
atua. São histórias de dominação em que as personagens sempre cedem ao personagem
de Valentino. Hansen (1986) se esforça em explicar esse aspecto pela psicanálise com

7
Rudolph Valentino (1895 - 1926). Imigrante italiano, ator e dançarino. Fez 14 filmes e foi considerado o
símbolo sexual do cinema mudo.
20

base no artigo Uma criança é espancada8 (1919) de Sigmund Freud, em que há certa
perversão na relação entre apanhar e ser amado, por isso a paixão que o público sentia
por Valentino quando era possessivo, agressivo e denominador.
Ella Shohat (1993) também faz uma crítica ao texto de Mulvey sobre o
olhar feminino “não colonizado”, argumentando que a mulher branca pode ser objeto do
olhar para o homem branco, porém, essa relação se inverte se pensarmos nas mulheres
negras e de países pobres que estariam em uma relação de objeto do olhar de mulheres
brancas. Mesmo assim, Shohat (1993) concorda que as teorias feministas reconheceram
essas diferenças (SHOHAT, 1993, apud VEIGA, 2013, p. 135).
Christine Gledhill (2012) apresenta em seu livro Gender Meets Genre in
Postwar Cinemas diversos textos que desafiam os modos tradicionais sobre a relação
entre gênero cinematográfico (genre) e gênero - sexualidade (gender), mostrando que
esse encontro foi transformador. As dimensões estéticas e políticas de gênero e
sexualidade manifestam-se de modo a movimentar a produção de imagens e narrativas
do universo dramático dos gêneros cinematográficos. Para Gledhill (2012) a
globalização midiática e os estudos pós-coloniais colocam as questões do gênero
cinematográfico (genre) baseados nas questões de gênero (gender), sexualidade, raça,
classe e nacionalidade (etnia). Assim, essas intersecções tencionaram os limites dos
estudos dos gêneros cinematográficos (genre), tendo em vista a indústria
hollywoodiana.
O objetivo da autora não foi definir interpretações fechadas, mas
movimentar questões, sobre essa interação complexa com base em elementos estéticos,
culturais e seus efeitos potenciais no cinema. A partir da perspectiva do gênero
cinematográfico (genre), o desafio seria explorar o gênero - sexualidade (gender) como
uma ferramenta, em seu aspecto imaginário e estético. Gledhill (2012) com base em
autoras críticas de cinema, afirma, portanto, que o cinema feito por mulheres pode ser
considerado como um novo gênero fílmico.
É com base nesta abordagem que discutiremos o filme proposto para
interpretação (Tão longe é aqui), no sentido de explorar o cinema feito por mulheres a
partir da percepção de uma mulher que filma (e que filma outras mulheres). Portanto,

8
FREUD, S. (1919/1995). Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das
perversões sexuais. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.
21

qual é essa percepção e o que dizem (como educam) essas imagens produzidas com
base nesta condição de produção?
Em relação à proposta de um cinema feminista, Elizabeth Ann Kaplan
(2012) afirma que o filme feito por mulheres, não é apenas definido pelas preocupações
temáticas e seu endereçamento a uma audiência feminina, mas sim pela sua resistência a
papéis femininos normativos e uma recusa de reconciliação com os requisitos
patriarcais, desestabilizando os estereótipos e as categorias do gênero fílmico, criando
um cinema híbrido e novas figurações do feminino. Kaplan (2012) discute o trabalho
cultural que as críticas feministas realizaram em "inventar" o gênero do filme feminino
(women’s film) e como esse processo afeta as práticas do cinema feminista no momento
atual.
As diretoras do sexo feminino não apenas produzem filmes feministas
com temáticas específicas, mas também se baseiam nos tradicionais gêneros de
Hollywood para enriquecer e somar seus significados e ao fazê-los, desestabilizam os
estereótipos e as categorias de gênero cinematográfico, criando um cinema híbrido e
novas figurações do feminino. Kaplan (2012) mostra que Mary Ann Doane 9 estuda com
mais profundidade a questão do gênero, e chega a uma ampla definição, de que o filme
feito por mulheres não é um gênero puro.
Como expressão de sua exposição, Kaplan (2012) interpreta o filme
Sister my Sister (1994) dirigido por Nancy Meckler.
França, década de 1930, Christine é uma empregada doméstica que
trabalha na casa de uma arrogante viúva, Madame Danzard que mora com sua filha. A
irmã de Christine, Lea, criada por freiras em um convento, a pedido da mãe, escreve
uma carta para Madame Danzard para que a empregue também, junto com a irmã mais
velha, tendo seu pedido aceito. Quando começam a trabalhar juntas, o vínculo
emocional das irmãs acaba se tornando também sexual, levando à crescente
desaprovação da viúva Danzard. As irmãs reprimidas, lentamente perdem o controle
sobre a realidade, levando a terríveis consequências na casa onde estão empregadas. O
texto do filme foi adaptado por Wendy Kesselman. Sister my sister foi baseado na
história real de Christine e Lea Papin, cujos assassinatos de 1933 também inspiraram
vários outros trabalhos.

9
Professora de Cinema e Mídia na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Foi uma das pioneiras no
estudo de gênero no cinema.
22

Por conta do teor sombrio e assustador do assassinato que as irmãs


cometeram, Kaplan (2012) considera que o filme se enquadra no gênero horror. Na cena
final, por exemplo, depois de terem assassinado Madame Danzard e sua filha, as irmãs,
ficam no quarto abraçadas, e a câmera desliza para baixo, subindo lentamente as
escadas de madeira, mostrando as paredes gotejando sangue, objetos caídos e
espalhados, e dois corpos mutilados aparecem sob o chão, cobertos de sangue. Kaplan
(2012) conclui que o filme não endereça o horror, nem o filme feito por mulheres, mas
delineia traços de ambos. Quando o filme termina e a imagem final mostra as irmãs
abraçadas, compartilhamos a perspectiva de Lea e Christine e percebemos a opressão a
que eram submetidas. Embora na casa não existam personagens masculinos, Kaplan
(2012) argumenta que a mesma estrutura patriarcal da sociedade é reproduzida no
ambiente doméstico de Madame Danzard e em Lea e Christine impera a resistência à
subordinação à ordem dominante. Portanto, o resultado desse cruzamento entre o horror
e o filme feito por mulheres desestabiliza os conceitos normativos do feminino.

Figura 4 - Sister my Sister. (1994) Cenas finais do filme em que estão presentes os traços estéticos do gênero horror.

2.1. O CASO BRASILEIRO: AS CINEASTAS E O EMPODERAMENTO

Em janeiro de 2018 a ANCINE apresentou o material “Diversidade de


gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016” e constatou que o mercado
cinematográfico brasileiro é marcado, em grande medida, pela produção e presença de
homens brancos. Foram lançados 142 longas-metragens no Brasil em 2016
(comercialmente, em salas de exibição), e 75,4% da direção desses filmes, foi feita por
homens brancos. 19,7% das direções foram de mulheres brancas, e 2,1% foram direções
de homens negros. Esses dados, retirados do site da ANCINE, mostram a pouca
participação das mulheres no meio audiovisual brasileiro. Nesse material apresentado,
23

constou que os homens brancos também, em sua maioria, dominaram as principais


funções de liderança do cinema, “o que evidencia que as histórias exibidas nas telas do
país, produzidas por brasileiros, têm sido contadas majoritariamente do ponto de vista
dos homens” (ANCINE, 2018).
A ANCINE disponibiliza os dados relativos à produção nacional desde
2014, sendo possível extrair a seguinte tabela:

PRODUÇÃO NACIONAL DE LONGAS-METRAGENS

100%
90% 87%
78% 80%
78%
80%
70%
60%
Homens
50%
Mulheres
40%
Misto
30%
20%
20% 15% 14%
10% 8%
10% 4% 6%
1%
0%
2014 2015 2016 2017

Figura 5 - Produção nacional de longas-metragens


Fonte: elaborado pela autora com dados da ANCINE (2018)

Esses dados, mostram a pouca participação das mulheres no audiovisual


brasileiro, uma vez que os homens brancos também, em sua maioria, dominaram as
principais funções de liderança do cinema, como roteiros de filmes de ficção,
documentário e animações, direções de arte e fotografia.
Em 2017 foi lançado o livro Feminino e Plural: mulheres no cinema
brasileiro, organizado por Katia Holanda e Marina Cavalcanti Tedesco. O recente
trabalho abre um importante espaço de discussão e apresentação de textos e pesquisas
que se debruçam em trazer as mulheres no cinema nacional, com trabalhos que
consideram a autoria feminina e o documentário feito por mulheres, de modo a explorar
o assunto, atualizando novos debates sobre esse cinema, desde as primeiras produções
de Cleo de Verberana. Os trabalhos apresentados no livro são importantes para mostrar
24

que as mulheres não são coadjuvantes do processo e inauguraram um modo de fazer


cinema que atravessou os anos e se mantém até hoje.
No primeiro semestre de 2018, o ministério da cultura lançou a edição 63
da revista FilmeCultura, com o tema Mulheres, câmeras e telas que reuniu uma série de
artigos e entrevistas com grandes nomes do cinema feminino nacional. A intenção da
revista é chamar atenção para os números díspares em relação aos homens e mulheres
produzindo filmes, sobretudo, as mulheres negras. Assim,

torna-se necessário, inclusive, ressignificarmos a nossa memória para


que, quando pensamos em Méliès, o nome de Alice Guy apareça
também; que quando a importância de Griffith for ressaltada,
possamos debater sobre Louis Weber; ou que possamos ter mais
material para entender o cinema de Dorothy Arzner sob a perspectiva
feminista e queer. Nas nossas referências, é preciso entender se, de
fato, o primeiro longa dirigido por uma mulher no Brasil foi apenas na
década de 1930, com Cleo de Verberana. E, quando se falar de
Humberto Mauro é preciso recontar a história de Carmen Santos; e
entender que, como Gilda de Abreu, mulheres também podem fazer
blockbusters e não apenas filmes considerados de nichos.
(FILMECULTURA, 2017, p. 3)

Junto à isso, a historiografia ocidental com frequência, nos induziu a


considerar o homem branco como universal e sujeito da própria história. Joan Scott
(1992) comenta que a disciplina “história” não se preocupou em tratar de uma “história
das mulheres”, as conjugando em uma mesma essência, sem diferenças, que produziu
uma experiência compartilhada, enfatizando somente a sexualidade como comum às
mulheres. Esse discurso culminou em movimentos na década de 1970 e possibilitou às
mulheres emancipação pelas discussões que levantaram. A história das mulheres, como
área de estudos, relacionou-se, especialmente pelas lutas às campanhas feministas pelo
trabalho.
De acordo com Holanda (2017) “desestabilizando padrões consolidados,
ao intentar destaque das mulheres na história, a história das mulheres questiona a
prioridade dada à “história do homem” (HOLANDA, 2017, s/p). Nesse sentido, nos
indagamos: as mulheres produzem uma história diferente da própria história? Como
podemos refletir sobre o lugar do sujeito da história (homem branco)? Como sugere
Certeau (1986), a mulher, de fato produz uma historiografia que difere de uma
historiografia produzida por homens?
25

Certamente, não somente as mulheres podem escrever sobre essa história,


mas, essa é uma história que revela relações de domínio, o que implica em considerar
que foram nessas condições que as normas institucionais e disciplinares foram
construídas, e portanto, a história pode ser considerada incompleta, uma vez que os
historiadores não tem total compreensão e conhecimento do passado, visto e entendido
sob outra perspectiva. (HOLANDA, 2017).
Mesmo destacando o lugar da resistência e da posição das mulheres na
história, esse é um processo histórico de estudos recente. A educação que recebemos
naturaliza essas visões e percepções de mundo que não veem as mulheres como
protagonistas e pertencentes da história dos acontecimentos. Assim como nas áreas da
literatura, da música e das artes em geral, esse processo se estende para a produção da
imagem na fotografia e no cinema, que educa os espectadores e as espectadoras,
esteticamente e politicamente, por meio de artifícios que povoam nossa memória
artificial, a enxergarmos imagens que são produzidas sob um único ponto de vista.
Elice Munerato e Mari Helena Darcy de Oliveira (1982), pesquisaram o
espaço ocupado pelas mulheres no audiovisual, e constataram que pouquíssimas
mulheres dirigiram filmes no Brasil, e as mulheres que apareciam nas telas, eram
estereotipadas e aprisionadas nas ocupações da beleza, da maternidade e da casa. Mais
uma vez, afirmamos que mesmo nestas condições, as mulheres têm um espaço que foi
construído e que é crítico. Estando subjugadas a essas funções, elas podem ser vistas e
compreendidas neste aspecto, mas mesmo assim, partimos do princípio que elas, por
meios de seus corpos e da arte, ocuparam um lugar importante.
No Brasil, já na década de 1930, há registros do primeiro filme dirigido e
protagonizado por uma mulher, o filme mudo lançado pela Épica Filme em 1931
(ARAÚJO, 2017). Nas décadas de 1960, 1970 e 1980, decorrentes do período da
ditadura civil-militar instalada no país, mais cineastas produziram narrativas, tornando-
se referências na área do audiovisual nacional. Por um lado, algumas dessas cineastas
tiveram seus filmes censurados pelo ato institucional 5 (AI-5), por conta de suas
temáticas libertárias, como é o caso de Os homens que eu tive (1973) de Tereza
Trautman, em que são explorados o desejo de uma mulher, “que não enxerga ou não
aceita a imposição de limites” (VEIGA, 2017, p. 78).
Pity, a protagonista do filme, desafia uma sociedade conservadora e
tradicional mantendo um relacionamento aberto, fazendo as suas próprias escolhas e não
26

sendo julgada por isso. Por outro lado, outras cineastas exploraram após a ditadura, o
universo sombrio e cruel, pelo qual muitas mulheres vivenciaram em meio às torturas,
sofrimentos e perdas, como é o caso de Que bom te ver viva (1989) de Lucia Murat, em
que a cineasta explora as narrativas de mulheres brasileiras que passaram pelo período
da ditadura em luta e resistência e sobreviveram ao regime militar. Cada mulher filmada
narra sua história e sua trajetória, por meio das experiências fortes e sensíveis. Nos dois
casos exemplificados, as cineastas exploraram suas percepções de mundo e reflexões de
uma luta compartilhada: a liberdade. Liberdade sobre o corpo, sobre decisões e sobre a
arte (VEIGA, 2017)[GB1].
A partir de 1970, de acordo com Holanda (2017b) a participação das
mulheres aumentou, sobretudo, na direção de documentários. De acordo com o catálogo
Documentário Brasileiro10, em 1960 foram registrados apenas oito documentários
dirigidos por mulheres, ao passo que em 1970, o registro subiu para 154 e 319 entre
anos 2000 e 2009 (HOLANDA, 2017, s/p). Entre os anos de 2010 a 2017 o número caiu
para 170, sendo que nesse período 2013 foi ano que mais lançaram documentários de
autoria feminina. Portanto, existe um campo novo e ainda em construção de sua
legitimidade no audiovisual nacional feito por mulheres que merece ser mais explorado
e compreendido.
Lucia Nagib (2012) ao situar o lugar da mulher no cinema de Retomada
(período que compreende os filmes produzidos no Brasil a partir da segunda metade dos
anos 1990), propõe fazê-lo indo além das diferenças de gênero, sexualidade, cor e etnia,
com base em Kaplan para discutir a ideia de novos modos de ser em relação à teoria
feminista e o lugar da mulher no cinema. Assim, mostra que o crescente número de
mulheres em produções nacionais decorreu de parcerias. “A contribuição mais decisiva
dada pelas mulheres que despontaram como cineastas no cinema brasileiro recente foi a
disseminação do trabalho colaborativo e da autoria compartilhada” (NAGIB, 2012, p.
17).
As diretoras do sexo feminino não apenas produzem filmes feministas
com temáticas específicas, mas também se baseiam nos tradicionais gêneros de
Hollywood para enriquecer e somar seus significados e ao fazê-los, desestabilizam os
estereótipos e as categorias dos gêneros cinematográficos, criando um cinema híbrido e
novas figurações do feminino. Um caso expoente no Brasil, são os filmes de Juliana

10
Site: documentariobrasileiro.org/catalogo/
27

Rojas que correspondem, de modo muito pontual, aos filmes de gênero, atualizando
novos debates com recortes contemporâneos. A versão 61 da revista FilmeCultura
(2013) mostra que o Brasil vive uma retomada dos filmes de gênero que se caracterizam
atualmente pelas hibridizações e deslizamentos que os cineastas impõem aos limites de
gênero. Um exemplo é Sinfonia da Necrópole (2014), um filme musical que traz as
vertentes cômicas do cinema brasileiro junto a problemas sociais da cidade. Rojas
representa também o que mostra Nagib (2012) sobre os casos de parcerias na direção de
filmes. Rojas se juntou a Marco Dutra, e juntos dirigiram Trabalhar Cansa (2011). A
parceria dos dois também resultou no terror As boas maneiras (2017).
Os três filmes denotam marcadamente o gênero horror/terror que se faz
presente nas narrativas, com o aspecto da apropriação dos espaços urbanos da cidade de
São Paulo. São exemplos claros dos filmes de gênero, com traços estilísticos do horror e
do musical, mas são, de modo muito apropriado, ressignificados e incorporados em um
contexto brasileiro, e no caso do terror As boas maneiras, um contexto feminino de
maternidade.
Com base nesses lançamentos, avalia-se que os recursos tecnológicos, a
partir dos anos 2000 possibilitaram condições de filmagem possíveis ampliando e
movimentando as produções audiovisuais.
Em 2003, Eliane Caffé lançou o longa metragem Narradores de Javé,
sobre moradores do vilarejo Vale do Javé e o assombro da notícia que uma hidrelétrica
seria instalada no local, devastando e alagando todo espaço. Os moradores decidem,
juntos, escrever um livro com as histórias locais como forma de valorizar a história do
Vale. A construção da narrativa não apresenta, explicitamente, recortes com causas
feministas e de gênero, porém, há uma forma de conduzir a narrativa e a produção das
imagens, que situa-se em um outro lugar.
Marta Bianchi, atriz argentina em entrevista cedida à Ana Maria Veiga11
em 2009, comenta:

As mulheres que filmam, em geral, nenhuma pensa em fazer um


cinema com perspectiva de gênero, mas isso surge. Elas dizem que
não, que o feminismo não as interessa. Não há um “cinema de
mulher”, os filmes que surgem não constituem um gênero. Filmam

11
Esse trecho foi retirado da tese de doutorado da professora Ana Maria Veiga, professora do
Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba. Tese de doutorado: Cineastas Brasileiras
em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades. Universidade Federal de Santa Catarina,
2013.
28

sobre todos os assuntos humanos, abordam gêneros


[cinematográficos] diferentes, estéticas diferentes, imagens e visões
diferentes, mas, sim, todas temos em comum, todas as mulheres, uma
história e uma experiência que nos irmana. Queiram reconhecer ou
não, todas nós as herdamos, essa história e essa experiência específica
têm a ver com a nossa educação, nossa posição, nos colocam num
ponto de vista sobre o mundo diferente do dos homens. Olhamos o
mesmo, mas o vemos de lugares diferentes, pois chegamos de lugares
diferentes. Os filmes estão impregnados disso (BIANCHI, 2009, apud
VEIGA, 2013, p. 150) [grifos meus].

Dentro desta mesma chave, Era o hotel Cambridge (2016), ainda de


Eliane Caffé representa os mesmos aspectos defendidos por Marta Bianchi. É um filme
sobre ocupação, que mescla os traços do documentário com traços da ficção, com atores
profissionais e refugiados. Para Eliza Capai, Eliane Caffé não tem a proposta de abordar
questões feministas, mas existe uma forma de escutar os homens e os refugiados,
explorando problemas sociais como a ocupação do prédio, que é empática e
compreensiva.
Por outro lado, realizadoras como Laís Bodanzky, que mesmo em 2008
tenha lançado Chega de Saudade - um drama sobre cinco núcleos de personagens que
frequentam o mesmo baile, tem a sensibilidade de abordar junto à comédia, assuntos
sobre amor, solidão, desejo, traição em meio à dança e a música - se preocupam também
em trazer para o cinema questões que permeiam a vida da mulher. Em 1994 lançou o
curta Cartão Vermelho, sobre uma garota que gosta de jogar futebol com meninos e
sente as mudanças em seu corpo adolescente junto às adversidades por ser menina em
meio à um grupo de meninos. Porém, é no longa Como nossos pais (2017) que explora
papéis sociais e localiza a mulher contemporânea, no papel de Rosa que é infeliz por
não poder realizar sua verdadeira vontade de escrever peças, por ter que sustentar a casa
e a família para que seu marido pudesse realizar pesquisas na Amazônia. Quando Rosa
descobre, em um almoço de família, por meio de sua mãe, que seu pai biológico é outro
homem, sua vida se despedaça e aos poucos vai encontrando sentido em buscar uma
nova vida.
O que notamos é que os filmes feito por mulheres em cenário nacional,
dentro dos gêneros cinematográficos com traços estilísticos marcados, ou não,
funcionam na chave da sensibilidade. Trazendo ou não questões feministas e femininas,
são filmes que exploram contextos empáticos, receptivos e sentimentais.
29

Viviane Ferreira, cineasta baiana, lançou em 2013 o curta O dia de


Jeruza, com a proposta de trazer personagens negras e representatividade. O tema
abordado no curta não diz respeito ao racismo, mas a saudade e a melancolia de uma
senhora, dona de casa, que compartilha suas angústias com Silvia, uma pesquisadora de
opinião que trabalha para uma marca de sabão em pó.

Figura 6 - Cena de O dia de Jeruza (2013)

A temática íntima e reflexiva perpassa o filme feito por mulheres, e em


Elena (2012) de Petra Costa, encontramos um verdadeiro espaço para o
sentimentalismo e para sensibilidade. Petra Costa conta a história de suicídio da irmã
Elena, que vai para Nova Iorque para ser atriz e modelo. No filme documentário, a
cineasta resgata memórias de um diário da irmã (Elena) e abre um delicado espaço para
refletirmos sobre a morte, o suicídio, a dor e a perda. O filme rendeu muitas
experiências positivas e foi muito premiado. Elena, caminha paralelamente à escolha
feita por Eliza Capai ao narrar o filme por meio de uma carta, expandindo um lugar de
ternura e delicadeza, mas de forma potente e muito intensa.
Elena e Tão longe é Aqui apresentam características muito próximas de
filmagem, são dirigidos por mulheres e partilham de modo muito íntimo e reflexivo
questões que delineiam e tencionam os limites do documentário e da ficção. Outro
aspecto marcante nos dois filmes é a viagem como propulsora de acontecimentos
marcantes que caracteriza tanto os road movies como os romances de formação, por
mostrarem o desenvolvimento devidamente marcado de cada personagem de cada
narrativa, em que os acontecimentos mundanos vão interferindo e alterando os rumos de
suas trajetórias, as permitindo outras experiências, de maneira que possam refletir e
lidar com as perdas, e assim constituir suas subjetividades e identidades.
30

Em relação ao aspecto da viagem como propulsora de um crescimento


interno e social, Para ter onde ir (2017) de Jorane Castro, um road-movie brasileiro,
explora muito bem as questões internas de três personagens amigas (Eva, Melina e
Keithylennye) que viajam por Belém. Jorane Castro, cineasta paraense, professora da
UFPA, e proprietária da produtora Cabloca Filmes preocupa-se para além de trazer
personagens femininas fortes, explorar a questão do regionalismo na Amazônia.
Com base nesse contexto exposto, de produção e criação de filmes,
apontamos que, mesmo sendo em número menor em relação aos homens, existe um
espaço no audiovisual que é ocupado por mulheres, e neste sentido, por meio da história
e dos acontecimentos, nos interessa compreender as novas possibilidades e as escolhas
feitas na produção dessas imagens, abrindo um espaço de compreensão a respeito do
evento do empoderamento. Para Fernanda Capibaribe Leite (2012),

A remissão ao empoderar-se no presente alude à chegada em algum lugar


no qual antes não se era permitida, ou não se tinha acesso. Ainda, o
vínculo com a autonomia pressupõe que essa chegada não foi destinada
pelo outro, e sim, pelo sujeito da experiência em questão, ou seja, pelas
próprias mulheres. (LEITE, 2012, p. 222)

Refletir sobre o empoderamento feminino na atualidade, a ser estudado


sob a perspectiva dos filmes feitos por mulheres, remete-nos a um contexto de produção
e percepção que vem de um lugar diferente do normativo e pretende, em consequência
afetar e movimentar os espectadores e as espectadoras também de um modo diferente.
No caso deste trabalho, as imagens exploradas para o estudo serão retiradas do longa
metragem Tão longe é Aqui, que coabita um novo tipo de cinema brasileiro, marcado
pelo subjetivo, entre a tensão corpo e mundo (ARTHUSO, 2016).
No caso do filme produzido e dirigido pela jornalista Eliza Capai, uma
memória é acionada ao vermos o filme, enquanto experiência compartilhada por conta
das histórias narradas, por mostrar imagens que trazem corpos, cores, modas e
expressões de outras mulheres. Segundo Leite (2012), “ao narrar suas vidas através das
imagens, elas se endereçam a outras mulheres, convocando-as a compartilharem a
narrativa e adotarem o empoderamento como prerrogativa em suas próprias vidas”
(LEITE, 2012, p.223). A autora analisa as imagens dos filmes produzidos pelo
consórcio Pathways of Women’s Empowerment, e observa que as narrativas e as
31

imagens estudadas, evidenciam, no âmbito da recepção, a “posição-de-sujeito”


defendida por Elizabeth Ellsworth (2001).
Entendemos que nos filmes, histórias e narrativas são produzidas de
modo a movimentar o triângulo composto pela imagem, pelo espectador e pelo
personagem desta imagem, que formam uma relação de poder e negociação. O filme,
pensado em sua configuração estética e política tem um formato e um endereçamento.
Ellsworth (2001), a partir dos estudos de cinema, coloca que os filmes
constroem um modo de endereçamento, para lidar com a relação que estabelecem com o
público e os espectadores. Define o modo de endereçamento “como um conceito que se
refere a algo que está no texto do filme e que, então age, de alguma forma, sobre seus
espectadores imaginados ou reais, ou sobre ambos” (ELLSWORTH, 2001, p. 13)
Assim, para que o filme “funcione” para determinado público, seu
sentido deve agir significativamente sobre esses espectadores, fazendo com que quem
assista ao filme entre em uma relação particular com a história narrada. Portanto, para
além da constituição do filme em suas imagens e narrativa, ele também porta uma
estrutura de endereçamento. Isso mostra que a ideia de modo de endereçamento implica
em formas que convoquem o espectador a posicionar-se para ler e ver os filmes.
Entretanto, endereçar o filme a determinado público pode “errar” seu
alvo porque os espectadores não são exatamente quem o filme pensa que eles são. Um
filme tem a necessidade de comunicação à alguém, e este conceito (modo de
endereçamento), como não sendo neutro, traz uma abordagem que “está interessada em
analisar como o processo de fazer um filme e o processo de ver um filme se tornam
envolvidos na dinâmica social mais ampla e em relações de poder” (ELLSWORTH,
2001, p. 25).
Essas contribuições, em relação a uma das formas de compreender filmes
que são feito por mulheres, serão também assimiladas sob a perspectiva da educação
visual que corresponde às formas pelas quais somos educados a partir de imagens, como
uma linguagem, uma forma de expressão e também de controle, já que as imagens
exercem um processo educativo em quem as vê, portanto, essas elucidações serão
desenvolvidas no capítulo dois.
32

3. A IMAGEM: O REAL NATURALIZADO

Somos todos e todas impactados e impactadas, atualmente, pela grande


quantidade de imagens que a cultura midiática produz. Anúncios, propagandas,
fotografias, filmes e pinturas. Todas artes que trabalham com a imagem na intenção de
fazer perturbar, incomodar e chamar a atenção de espectadores que se sentem, de
alguma maneira impactados por isso. A imagem, seja ela fotográfica, artística ou
cinematográfica ressoa no espectador e na espectadora de modo a produzir sentidos e
emoções que moldam diretamente o modo como percebem o mundo.
A imagem é plástica, e assim, traz à visualidade aquilo que as pessoas
espectadoras veem e interpretam sobre o que ela exibe. A falsa noção de realidade está
na relação que o olho estabelece com a imagem, que cria modos de ver e sentir dentro
de um processo formal que tem uma discursividade própria e nesse sentido, considerar a
imagem como política, implica em reconhecer que ela estabelece uma relação intrínseca
com o conceito de ideologia, já que não é neutra.
Em 1983, o professor Arlindo Machado publicava a primeira versão do
livro A ilusão especular que teve sua segunda versão lançada em 2015. Machado
apresenta nesse livro uma abordagem em relação à forma que vemos imagens que são
produzidas por câmeras fotográficas, num esforço de descontruir a noção determinada
de que as imagens da fotografia representam a realidade. O autor defende que a imagem
figurativa (a imagem produzida pela câmera e divulgada nos meios de comunicação) é
produzida por câmeras que constroem representações e esta produção constrói uma
imagem que se passa por “objetiva” e “transparente”, o que prescinde o espectador do
empenho de decodificá-la e decifrá-la uma vez que se passa por “natural” e “universal”,
o que na verdade, é fruto de uma construção particular e convencional (MACHADO,
2015, p. 14).
No prefácio do livro, apresenta uma citação de Marx e Engels12 para
situar, de acordo com os filósofos, a ideologia como sistema de representações com
base na primeira discussão que apresentaram no livro A ideologia alemã, originalmente
publicado em 1932. A ideologia como sistema de representações, sustentando-se na
metáfora da inversão da câmera obscura, mostra que a ideologia, como “ideia”, não é

12
“Se em toda ideologia os homens e suas relações aparecem invertidos como em uma câmera obscura,
esse fenômeno responde a um processo histórico de vida, como a inversão dos objetos ao projetar-se
sobre a retina responde ao seu processo de vida diretamente físico”. (Marx e Engels, “Die Deutsche
Ideologie” – A ideologia alemã.)
33

simplesmente o espelho do real (que reflete o mundo de maneira imediata), já que


quando o ser humano constrói esses sistemas de representação, ele modifica, interpreta e
altera o objeto representado, sua ação é sempre produtiva.
O autor utiliza o termo ideologia empregado por Marx e Engels para,
referir-se a ideia de “ideologia dominante13”, no sentido de ser ideologia, o sistema de
representações que não deve entendido pelas pessoas como tal, já que para ser aceita
(para que ela se imponha como sistema de representações), ela não pode ser
compreendida como ideologia. No entanto, por conta destas características, a ideologia
é material, já que entendida como fato, ela tem um papel a ser desempenhado, e por isso
ela precisa de uma expressão material.
Assim, cita o jovem Valentin Volochinov, que no final da década de
1920, apresentava em seu livro Marxismo e filosofia da linguagem14 que a materialidade
da ideologia são os signos.
Entendidos como “entidades elementares que constituem todos os
sistemas de representação” (MACHADO, 2015, p. 23), os signos existem para
representar algo que não eles próprios, algo fora de si. Portanto, podem refletir ou
refratar a realidade. Refletir, no mesmo sentido que produz a imagem em um espelho, e
refratar no sentido de transfigurar e modificar aquilo visto, dependendo da intensidade
luminosa que o objeto recebe. O autor exemplifica o sentido da refração, quando
tentamos pegar algo na água, e percebemos que os objetos não estão exatamente onde
vemos. Isso acontece porque a intensidade da luz que recebemos, é modificada pela luz
dos meios, e por isso, a refração não permite que vejamos fielmente a reprodução dos
raios luminosos, por deformar e/ou transfigurar aquilo que vimos, de acordo com o
material. (MACHADO, 2015, p. 25)
Neste sentido, ao considerar esse caráter que os signos têm de
modificação, afirma que isso acontece porque eles não são autônomos - que

13
Machado (2015) explica que Marx, por força de seu contexto utilizou o termo ideologia, (ideologia
dominante) referindo-se a burguesia, e aponta que alguns intérpretes do marxismo, tomando o particular
pelo geral, designaram o significado de ideologia da classe dominante, como a própria ideologia. No
entanto, o autor coloca que se concordarmos que “os sistemas de representação de que se valem os
homens estão de alguma forma vinculados às condições materiais que os produzem”, concluiremos que
existem várias “ideologias”, e neste sentido, essas ideologias não são necessariamente pejorativas.
(RANCIERE, 1971, apud MACHADO, 2015, p. 18)
14
O livro, de modo equivocado, é creditado a Mikhail Bakhtin, que muito embora tenha colaborado na
redação da terceira parte do livro, as ideias são de Volochinov.
34

representam a realidade - e “são materialidades viabilizadas por instrumentos e


enunciadas por sujeitos.” (MACHADO, 2015, p. 25).

Esses instrumentos, esses sujeitos, juntamente aos sinais materiais que


eles constroem, se interpõem na produção de signos como elementos
de refração da realidade, elementos esses que interpretam,
reformulam, transmutam os sentidos segundo a especificidade de sua
realidade material, sua história e seu lugar na hierarquia social.
(MACHADO, 2015, p. 25)

Com base na citação, entendemos que o signo traz em sua compreensão


os traços particulares e interpretativos de cada grupo que o constrói e o decifra.
Entretanto, há que se destacar que Volochinov e a discussão apontada referem-se aos
signos, em sua expressão linguística, a língua como signo ideológico, já que a palavra é
um signo que pode ser exteriorizado pelo indivíduo, e os demais signos, dependem de
condições externas de apropriação para serem exteriorizados, como um quadro por
exemplo, em que há que se ter acesso à tela, aos pincéis e ao entendimento das técnicas
de pintura. Assim, aqueles que são desprovidos de determinados meios, segundo
Machado (2015), tendem a ser espectadores passivos, e nesta questão o autor, indaga:
não é [seria] por essas brechas que a ideologia dominante nos atinge com maior eficácia
por não estarmos aparelhados para rebatê-la e enfrentá-la no mesmo nível?
(MACHADO, 2015, p. 30).
Assim, os termos refletir e refratar utilizados de modo metafórico (já que
a língua não se comporta segundo as leis da óptica) por Valochinov para corresponder à
língua encontram sua expressão na fotografia, e consequentemente no cinema uma vez
que a câmera que produz essas imagens reflete e refrata o mundo visível. Em relação à
refração, Machado (2015) insere o conceito de código para expressá-lo como
personificador da refração, cujo realismo visa esconder. Para o autor, código é o
“conjunto de todos os processos de reflexão e refração que constituem o sistema
simbólico” (MACHADO, 2015, p. 33). O autor complementa que o efeito de realidade
almejado desde a perspectiva no século XV, e sofisticado ao longo dos anos, esconde a
inversão e mutação que é operada pelo código, ou seja, que esconde dos olhos dos
espectadores o artifício ideológico do qual é fruto, e máscara. (MACHADO, 2015, p.
34).
35

Nesta mesma perspectiva, Ismail Xavier em seu livro O discurso


cinematográfico: a opacidade e a transparência (2012), explica que embora seja
comum compreender a imagem fotográfica como um ícone e um índice em relação
àquilo que ela representa, a fotografia é, no entanto um processo em que os objetos, as
pessoas e coisas se criam como imagem diante da ação da luz. Nesse livro, Xavier
(2012) tem a intenção de mostrar como as imagens (e também o som) que compõem o
aparato do cinema, se comportam nas variadas concepções de realizadores e
realizadoras em cinema; o que o guia nestas elucidações, “é a concepção assumida por
diferentes autores e escolas quanto ao estatuto da imagem/som do cinema frente à
realidade” (XAVIER, 2012, p. 13). Nesta chave entendemos que a imagem é múltipla e
indivisível e por isso seu significado depende do mundo real e da nossa consciência.
Em Esculpir o tempo, Andrei Tarkovski (1998) se preocupou em mostrar
como a imagem cinematográfica depende do mundo real que ela tende a incorporar; se a
totalidade for incompreensível e impenetrável, de igual modo será a imagem. Por isso,
mesmo que não possamos perceber o mundo em sua totalidade, a “imagem poética” tem
a capacidade de manifestá-la, e assim, traz a poesia japonesa (os haicais) como
expressão daquilo que compreende pelo sentido da imagem, já que o haicai renuncia a
um significado final da imagem, ele se completa em si mesmo, ao mesmo tempo que
expressa tantos sentidos. “Quanto mais a imagem corresponde à sua função, mais
impossível se torna restringi-la à nitidez de uma fórmula intelectual” (TARKOVSKI,
1998, p. 124).
Compreendemos que o cinema, por meio suas imagens, é uma arte que
visceralmente está relacionada ao tempo. As imagens conseguem capturar momentos
tornando-os presentes cada vez que uma pessoa se conecta a elas. Tarkovski (1998)
mostra que “esculpir o tempo” é um árduo exercício do fazer cinematográfico por meio
da montagem e acredita que as pessoas buscam o cinema aspirando preencher lacunas
no encontro de um tempo. A sociedade moderna, ao posicionar-se diante do tempo,
encontrou na reprodução de imagens um modo de preencher o esquecimento, pela
memória.
As imagens e sons do cinema, se contaminam por ideologias que
transmutam entre passado e presente, que nos são passíveis por nossas estratégias
políticas e cognitivas, que figuram-se entre natureza e cultura. A educação, em seu
36

sentido cultural, entende-se que nossos sentimentos e julgamentos em relação às


imagens não são naturais porque são apreendidos. Vemos porque aprendemos a olhar.
Em As Idades, o Tempo (2004a) Milton José de Almeida apresenta obras
de Giorgione, sob sua compreensão sobre o cinema, para mostrar uma reflexão sobre a
cronologia e o modo como nosso corpo e nossa existência manejam-se pelo desejo do
tempo.
Como exemplo, As horas (2003), filme dirigido por Stephen Daldry,
baseado no livro The hours de Michael Cunningham, notamos como nossa percepção do
tempo é condicional e incalculável. A narrativa atravessa a vida de três mulheres, em
três diferentes épocas: a escritora Virginia Woolf em 1923, a dona de casa Laura Brown
em 1951 e Clarissa Vaughan em 2001. A história das três personagens transpassa o
desenvolvimento do livro Mrs. Dollaway, originalmente publicado em 1925 por
Virginia Woolf. No filme, vemos o processo de produção da escritora em meio à crises
depressivas e de suicídio, anos depois o livro como suporte para o sofrimento de uma
dona de casa infeliz, e anos mais tarde a própria personificação de Dollaway em uma
nova iorquina moderna que prepara uma festa para um amigo com AIDS. A narrativa
ilustra que passado e presente coexistem e o tempo atua no cinema movimentando cada
instante, por meio das imagens.
As potenciais imagens do cinema produzem uma configuração estética e
política que permitem às pessoas espectadoras construírem um modo de perceber e
significar o mundo com base em aparelhos que são ideológicos.

3.1.1 A EDUCAÇÃO DA PERCEPÇÃO

A leitura que fazemos do mundo, consequentemente das imagens,


fotografias e filmes, é uma leitura arquitetada como programa de educação visual que
constrói nossa memória e nosso olhar. Para Almeida (2011) entender a educação visual,
implica em compreender que nosso olhar é suscetível de ser educado pela cultura.
A visão é entendida como antecedente dos outros sentidos, que nos educa
a entender a imagem como significação do que é visto. Isso foi entendido dentro de um
processo histórico consolidado nas noções das ciências objetivas do século XIX.
Segundo John Berger (2008), a imagem vista mostra aquilo que
queremos significar e compreender. Segundo o autor, nós construímos modos de ver,
porque em relação àquilo que vemos, automaticamente, compreendemos e assimilamos
37

um entendimento, e essa compreensão, esse entendimento vem de nosso contexto social


e das relações que nos permeiam.
Em Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas, Pier P. Pasolini
(1990) mostra que as primeiras lembranças da vida são visuais (objetos, lugares e
imagens), pois condensam em si as memórias. Portanto, discorre sobre um “discurso das
coisas” por acreditar que esses objetos e imagens da memória são essencialmente
pedagógicos por nos ensinarem sobre nossas próprias vidas. Por estarmos imersos em
uma cultura de imagens, somos cercados por esse discurso das coisas, das pessoas e dos
espaços. Essas “coisas” (referentes) produzem sentidos e significados que nós damos a
elas. No entanto, lidamos com os objetos não como referentes, mas como o próprio
significado.
A “linguagem pedagógica das coisas” envolve não somente os conteúdos
que as coisas produzem, mas o que aprendemos a partir da necessidade e utilidade delas
(significação). Assim, aprendemos com as coisas dando uma utilidade para elas que
antes era impensável. A pedagogia de que fala Pasolini (1990), é estabelecida
justamente na relação entre a coisa o sujeito, em uma relação de aprendizagem e
afetação. Aprender com as coisas, pode relacionar-se a aprender com suas utilidades,
mas sua relevância está em aprender sobre si nas coisas, aprender a se perceber nas
coisas, e essa é a questão da percepção como forma de educação.
A imagem é pedagógica, pois pressupõe um modo de ver. A avassaladora
quantidade de imagens produzidas e veiculadas na sociedade moderna por meio das
mídias audiovisuais educa nosso olhar, fazendo com que as pessoas as vejam como o
real naturalizado. Deste modo, nossa experiência e vivência no mundo é feita a partir
das imagens, que nos mostram como enxergar nosso contexto a partir delas.
Almeida (1994) ainda destaca que, sobretudo, as imagens produzidas
pelo cinema e pela televisão (atualmente podemos considerar a internet) direcionam
nossa inteligibilidade do mundo. As produções e mídias audiovisuais ditam maneiras de
ver, sentir e relacionar-se que causam um grande impacto nas pessoas
espectadoras/observadoras. Em tempos modernos, uma “nova cultura oral” está sendo
formada. Essa nova oralidade corresponde à massa de espectadores que se educa e
forma seus regimes de inteligibilidade por meio das imagens da televisão e do cinema.
O autor explica que as imagens do cinema têm uma linguagem própria para comunicar e
38

chegar até as pessoas que performam uma inteligência verbal. Assim, essas imagens têm
um forte grau de realidade, já que estão mais próximas da oralidade.
Assim, a experiência da fotografia e do cinema, correspondem à
educação, pois, criam e recriam, por meio das imagens nossas percepções do mundo.
Nessa perspectiva, entendemos que os espectadores e as espectadoras são ativos no
processo de ver, uma vez que olhar para algo não se constitui em uma operação neutra
de significações, pois, as imagens educam no sentido de construir formas de cognição
nos espectadores e espectadoras. Portanto, ao justificarmos que o exercício de ver é
político, entendemos que essa operação é repleta de significações que as pessoas
exercem sobre as imagens, são interações produzidas nessa relação da imagem com o
olho que são responsáveis por construírem modos de ver e sentir.
Benjamin (2012) analisou que ao longo dos anos, não só as coletividades
humanas se alteraram, mas suas formas de percepção do mundo, já que o modo como a
percepção é organizada depende da história. Isso acontece devido à nossa experiência e
experimentação no mundo e nas relações que estabelecemos. Compreendemos
“experiência” como uma circularidade (um espiral) dentro de um processo de produção
contínua, que se repete, mas que não se torna uniforme, porque a primeira repetição não
é igual a segunda, e assim por diante, pois, estamos alterando o sentido e o significado
que produzimos nas e com as coisas o tempo todo. Por meio do uso, alteramos os
procedimentos e os significados e os modos como nos relacionamos com as coisas e são
nessas mudanças que se alteram as formas pelas quais nos relacionamos com os objetos
e com o mundo.
Esse processo rompe com a maneira que a obra de arte é concebida em
relação às expectativas receptivas do público em questão, favorecendo assim uma
experiência subjetiva e diferente daquilo esperado. No cinema, pela utilização da
montagem e a rápida sucessão de imagens, não se possibilita às pessoas o mesmo tempo
contemplativo da pintura, por exemplo, já que os estímulos visuais são mais imediatos,
o que o autor nomeou de distração. O “efeito de choque”, portanto, exercido pelo
cinema sobre a experiência sensível das pessoas que vêem os filmes, em estado de
distração, delineia uma forma de percepção que educa para uma nova sensibilidade
estética, o que equivaleria, por exemplo, aos moradores e moradoras das grandes
cidades, por experimentarem essas experiências a todo momento, expressando uma
forma nova de percepção da cidade, das pessoas, do mundo, o que justifica pensarmos
39

que o efeito de choque corresponde aos fundamentos da modernidade ocidental. Esse


efeito produz tanto a experiência (circularidade) como a experimentação (ponto de
desvio) para nos mostrar que refazer nunca é fazer a mesma coisa, não existindo,
portanto, reprodução e sim criação, pressupondo um modo de ver tanto na questão da
experiência como na experimentação.
Assim, compreendemos que o sentido da imagem está sempre aberto ao
choque de significado que a imagem seguinte traz. Estamos sempre significando o
mundo a partir de nossas percepções.

3.1.2 ARTE DA MEMÓRIA: A EDUCAÇÃO DA VISUALIDADE POR


IMAGENS AGENTES/POTENTES

Almeida (2009), ao apresentar o cinema e a imagem como arte da


memória, discute os processos de visualização e o processo de naturalização da imagem
como parte ideologicamente generalizada. O sentido e o significado das coisas, dos
objetos e das representações estão fora delas, havendo assim, uma unidade agregadora
de sentido que forma uma rede de imagens e memória daquilo que vemos, pois tudo
está conectado. Para o autor, a visão organiza nossos sentidos, logo educar a visão é
educar todas as zonas de sensibilidade do corpo. Por isso, o autor defende em sua
compreensão e percepção de mundo e educação, que as imagens governam a educação
visual contemporânea. O conhecimento visual cotidiano de inúmeras representações em
imagens participa da educação cultural, estética e política e consequentemente da
educação da memória (ALMEIDA, 1999).
O autor trabalha o conceito de memória, com base na “arte da memória”
estudada por Frances Yates (1999), a partir dos escritos gregos sobre a técnica
mnemônica. Almeida (2009) traduziu alguns trechos de Cícero, do Ad Herenninum15.
Para além de todas as suas invenções, os gregos também elaboraram uma
arte que consistia na memorização por meio da impressão de imagens e lugares
(mnemotécnica), que podiam ser feitas para que a memória fosse trabalhada a fim de
lembrar de coisas, lugares, espaços e conhecimentos. Era uma arte que pertencia a uma
das cinco partes da retórica, uma vez que, antes da invenção da imprensa, era

15
Retórica à Herênio. Tratado escrito em latim por Cìcero entre 82 - 86 a.C., que contempla vários
preceitos didáticos sobre a arte da retórica como prática discursiva.
40

imprescindível a um bom orador, ter uma boa memória, para decorar seus discursos.
(YATES, 1999).
Há uma memória natural (já inserida em nossa mente, simultânea ao
pensamento) e uma memória artificial (que baseia-se em locais e imagens). Sobre a
memória artificial, Cícero aponta que em relação à memorização de uma situação, fixar
uma imagem que corresponde ao assunto, é uma forma mais fácil e simples de trabalhar
a memória para lembrar o ocorrido. “Quando nós desejamos, exprimir através de
imagens, a semelhança de palavras, mais trabalhos empreendemos e mais exercitaremos
nosso talento” (CICERO 1989 apud ALMEIDA, 2009, p.65)16.
E continua:
Devemos, portanto, fixar imagens de qualidade tal que adiram o mais
longamente possível na memória. E fá-lo-emos, se fixarmos
aparências as mais extraordinárias; se fixarmos imagens que sejam,
não muitas ou vagas, mas eficazes; se atribuirmos a elas excepcional
beleza ou feiura singular; se adornarmos algumas delas, por exemplo,
com coroas ou mantos de púrpura para tornar mais evidente a
aparência, ou se as desfigurarmos de alguma maneira, por exemplo,
introduzindo uma mancha de sangue ou nódoa de lama ou sujando-as
de tinta vermelha para que assim seu aspecto seja mais
impressionante; ou então, atribuindo às imagens algo de ridículo, pois
também isto permite-nos recordá-las mais facilmente. As coisas que
recordamos facilmente são reais, igualmente as recordamos sem
dificuldade quando são fictícias, se forem caracterizadas com cuidado.
Mas será essencial percorrer, de quando em quando, com o
pensamento, rapidamente, todos os lugares mentais originais a fim de
refrescar a recordação das imagens (CICERO, 1989 APUD
ALMEIDA, 2009, p. 67).

A preocupação de Almeida (2009) é mostrar como o aparato tecnológico


do cinema e da televisão, povoam nossa memória artificial. Para o autor, a arte da
memória atua produzindo uma rede de imagens potentes e inesquecíveis e, portanto, a
inteligibilidade e a memória das pessoas são construídas com base nessas imagens. A
problematização feita pelo autor, é que esse processo é naturalizado e faz com que as
pessoas enxerguem as imagens naturalizadas pelo real.
O processo de arte da memória não só cria a imagem como ícone
evocativo do que se quer lembrar como o caracteriza, ele não só informa o que se quer
lembrar, mas como se deve lembrar.

16
Ad Herennium. Cicero. (1989). I Ad Herennium. Trad. Harry Caplan. London, Harvard University
Press.
41

O autor ainda afirma que “como arte e ideologia, a televisão participa,


juntamente com o cinema, da criação e recriação da memória” (ALMEIDA, 1999, p.
15), neste sentido, as imagens da televisão, devem ser pensadas mais especificamente,
devido ao modo como a televisão é exposta na vida das pessoas (influenciadora, por
meio das imagens, dos discursos políticos, etc). Já o cinema,
participa, em passado e atualidade, da educação misteriosa da nossa
memória, nas imagens que habitam os nossos locais interiores mais
profundos onde o corpo e a psique confrontam-se em reminiscência e
recordação (ALMEIDA, 1999, p. 23).

Assim, Almeida (2009) insere o termo imagens agentes para designar


todas imagens que são únicas, que condensam um discurso e/ou uma referência. São
imagens que por meio de um ícone, contam uma história. As imagens têm um forte
poder simbólico e subjetivo na formação dos filmes, na televisão, na fotografia, na
pintura, e logo, na memória das pessoas. Sejam as imagens do cinema, da televisão ou
do estúdio de pintura17, elas organizam nosso olhar, recriando nossa memória.
O estúdio de televisão contemporâneo é herdeiro de uma história de
produção e reprodução da memória, irradiando imagens para muitos lugares. “Persiste
nele um processo secular de fabricação estética e política de imagens agentes feitas para
se tornarem inesquecíveis, uma educação visual da memória” (ALMEIDA, 2004b, p
270/271). Para o autor, as imagens da televisão, penetram no universo humano, por se
mostrarem como a realidade. Esses signos e essas imagens em movimento da televisão,
simulam uma realidade que intenta aproximar-se dos locais em que as pessoas
encontram-se. O telejornal, produzido dentro de um estúdio da memória (estúdio
televisivo), a partir de imagens extraídas da realidade e editadas para darem sentidos
político e estético aos fatos tornaram-se produtos visuais a serem consumidos.
Em Um castelo para memória, Almeida (2007) discute a persistência da
arte da memória e da propaganda na educação política contemporânea apresentando um
estudo sobre a educação visual da memória a partir da Galeria de Francisco I. As
imagens requerem uma interpretação simultânea (método de mútua correlação por

17
Almeida (1999), em seu artigo “Educação visual da memória: imagens agentes do cinema e da
televisão”, mostra o capitalismo como “ditador” das inteligibilidades por meio das imagens da televisão,
em que o autor compara o cinema, a televisão e o estúdio para mostrar o modo como as imagens
organizam nosso olhar. No estúdio renascentista o olho deveria percorrer as imagens lentamente,
refletindo e analisando. Requeria uma visualidade muito diferente da nossa, diferente do cinema em que
imagens em movimento determinam o ritmo da inteligência e da visualidade e impedem as pausas para a
reflexão. (ALMEIDA, 1999, p. 24)
42

alusão). “Ontem, foram pintores, arquitetos, literatos, hoje são artistas, intelectuais,
agências de propaganda” (ALMEIDA, 2007, p. 230).
O que o autor pretende, com base em seus textos, é expor o programa
visual que a imagem produz. Dedicou-se a estudar afrescos e pinturas, para nos mostrar
que aquilo que vemos, não é natural, porém é naturalizado pela forma como nossa
educação visual foi pensada e organizada. Por meio das imagens agentes o autor
defende que “toda escolha estética é uma escolha política” (ALMEIDA, 2009, p. 33).
Esforçou-se para mostrar que essa configuração, a princípio, estava presente em
pinturas, que produziram uma forma de compreender e abordar os preceitos cristãos,
porém, já se dedicava em mostrar o forte poder que têm as ideologias em interferir na
forma como somos educados, sobretudo, pelas imagens.
Mais tarde, com o advento do capitalismo, as imagens continuaram a
construir e reconstruir mitos e paradoxos sociais contemporâneos, porém, buscaremos
sair de dualidades e conformismos em relação a imagem que é múltipla, e pode propor
outros sentidos transformadores. Educação visual não é só o modo como as imagens
produzem impressões sobre pessoas espectadoras, é também a movimentação do
espectador e da espectadora em seus processos de significação. As imagens do cinema
incorporam alegorias humanas, produzindo significados às alegorias da realidade e da
modernidade. As narrativas cinematográficas espelham e transmitem essa arte da
memória.
De todo modo, historicamente, a construção da imagem como
representação do real manifestou-se a partir da produção artística renascentista com
base na expressão da perspectiva. O modo como foi construída a visualidade
contemporânea em relação às imagens, teve sua origem na pintura italiana e foi
programada por um código específico, a perspectiva.
No próximo item, faremos uma breve apresentação da maneira que foi
compreendida e estudada a perspectiva a fim de contextualizarmos a educação da
visualidade contemporânea.

3.2 A PERSPECTIVA RENASCENTISTA: A EDUCAÇÃO DOS MODOS DE


VER ENTRE O REAL E O PRODUZIDO
43

Gradualmente, nos séculos XIV, XV e XVI, novas instituições e novas


formas de compreender o mundo surgiram na Itália18, de modo que sua importância
culminou no que poderíamos chamar de uma civilização diferente. Um notável acervo
de inovações no campo das artes, da política, da literatura, da ciência, da filosofia, da
educação e da religião, surgiu como forma de expressão de artistas que intentavam
romper com antigos modos de percepção da sociedade, “renascimentos” cujo início
datam o século XI, sugerindo o termo “renascimento” a um expressivo período da
história.
Algumas cidades italianas tiveram um papel pioneiro durante esse
período, e mesmo as obras literárias ocupando um lugar de destaque, as realizações
mais proeminentes destacaram-se no campo das artes, especialmente a pintura. De
acordo, com alguns historiadores, o período foi dividido em três fases: trecento
(destaque para as obras de Giotto (1276/1336), quattrocento e cinquecento (destaque
para Michelangelo (1475/1564), para designar respectivamente as acontecimentos dos
séculos XIV, XV e XVI.
O quattrocento, entretanto, abrangeu uma vasta quantidade de pintores e
artistas que revolucionaram a arte ocidental, introduzindo regras geométricas e
matemáticas nas obras. Foi nesta fase que a pintura italiana atingiu seu verdadeiro
apogeu. A arte havia se libertado bastante do serviço religioso e a pintura passou a dar
destaque aos retratos. No período, a arte recebeu grande incentivo da família Médici,
pois, vários artistas renomados eram contratados para pintarem quadros e realizarem
projetos arquitetônicos, como a construção de igrejas. A maioria dos pintores eram
florentinos, já que as maiores expressões artísticas eram relacionadas à Florença, com
destaque para Masaccio (1401/1428), que depois de Giotto, foi um grande pintor
reconhecido do renascimento, cuja influência aparecerá anos mais tarde nas pinturas de
Sandro Botticelli (1447/1510), assim como Leonardo Da Vinci (1452/1519) e Fillipo
Brunelleschi19 (1337-1446).

18
Segundo Burns (1977), o renascimento surgiu na Itália por uma série de motivos: pela tradição clássica
em acreditar que eram descendentes dos romanos (mesmo tendo influência de sangue lombardo,
bizantino, sarraceno e normando) – algumas escolas italianas ainda eram baseadas em um sistema romano
de educação; pelas considerações éticas (conservadorismo) que não pesavam na vida dos italianos em
relação aos europeus setentrionais; pelas universidades italianas, que originalmente, foram fundadas mais
para o estudo do direito do que para teologia (com exceção da Universidade de Roma); pela influência
direta das culturas bizantina e sarracena; pelo comércio marítimo com o Oriente. (BURNS, 1977, p.395 e
396)
19
Fillipo Brunelleschi, arquiteto italiano da renascença, estudou a perspectiva e aplicou-a em planos
arquitetônicos, como a Basílica de Santa Maria do Espirito Santo.
44

As obras de arte, sobretudo as pinturas, passaram a ser reconhecidas


como arte, em seu sentido pleno. Por meio de um trabalho intelectual, conduzido pela
matemática, pela ciência e pela geometria, os pintores exploraram e vivenciaram
mudanças e inovações, que alteraram, não só a arte, mas também os modos de
percepção do espaço visual, alterando assim nossa forma de relacionamento com o
espaço geográfico.
Artistas pertencentes ao renascentismo italiano desenvolveram, por meio
de suas obras, um novo código de visualidade em suas produções que foi capaz de
alterar toda compreensão daquilo visto. Utilizando-se da ciência, da matemática e da
geometria, passaram a reproduzir aquilo que observavam na natureza, simulando o real
da imagem por meio da perspectiva.
Perspectiva, tradução latina da palavra grega optikè, que significa visão
direta e distinta, refere-se nas pinturas e na arquitetura ao método matemático que
possibilita a representação de objetos tridimensionais, cuja representação transmite um
impacto muito parecido com a natureza, ou seja, a ilusão que a perspectiva proporciona
na pintura desencadeou uma série de quadros e produções artísticas que alterou os
modos de perceber e enxergar as imagens ao transmitir um efeito parecido com a
realidade da natureza, portanto, ao produzir certa ilusão da realidade, na renascença,
muitos pintores obedeciam essa forma de pintura. Ela dita nosso modo de ver, pois
centraliza aquilo que “precisamos” olhar dando mais atenção. Por isso, podemos
considerar que a imagem que vemos não é natural, e sim fruto de uma série de intenções
que os artistas pensaram para o espectador, seja na pintura, na fotografia e no cinema,
artes que trabalham com as imagens.

Figura 7 - Piero della Francesca. Città ideale. Fonte: https://www.wga.hu


45

Figura 8 - Leon Battista Alberti. Courtyard. Foto: Palazzo Venezia, Roma.


Fonte: https://www.wga.hu

A representação da realidade por meio da perspectiva produz ilusão de


volume e espaço, para além das duas dimensões (altura e largura), trabalha com a
profundidade como uma terceira dimensão que revolucionou a representação do espaço
natural. Ela baseia-se na geometria de Euclides e na ótica de Ptolomeu (propagar os
raios luminosos em linha reta), uma vez que o pintor determina um ponto central (ponto
de fuga) e deste ponto saem linhas imaginárias que se encontram no infinito.
Sobre a perspectiva, Almeida (2009) afirma que

Constituirá em pintura, mais tarde em fotografia e cinema, locais e


imagens, inesquecíveis para serem lembrados. Será uma estrutura que
representará a vida efêmera e transitória em formas estáveis e
permanentes. Ao produzir-se como teoria e prática de representação
do real, neutra, lógica e científica, produzirá ao mesmo tempo, em
ilusão geométrica e matemática, a estética do poder burguês, laico e
religioso. Como ciência produzirá os instrumentos para o
enquadramento do real e tornará locais republicanos, burgueses,
nobres, tirânicos em locais e imagens inesquecíveis de riqueza e
pobreza, felicidade e tragédia. (ALMEIDA, 2009, p. 117)

Em relação aos tratados sobre perspectiva e pintura, Almeida (2009) se


limita a dialogar com Leon Battista Alberti e Leonardo da Vinci. Por serem tratados que
estabelecem uma relação com a pintura e a perspectiva, entendemos que essa é uma
relação que Alberti estabelece pela valorização do artista como centralizador de valores
humanísticos e da Vinci pelos aspectos fisiológicos da visão.
Machado (2015) considera Alberti como primeiro teorizador e
sistematizador da perspectiva, tendo como seu inventor o arquiteto Brunelleschi. Leon
46

Kossovitch (2014) apresenta Alberti como primeiro teorizador e sistematizador de um


tratado sobre a pintura. No tratado de Alberti (2014) o pintor expressa que a pintura
representa as coisas vistas.
Kossovitch (2014) afirma que o texto de Alberti é o “primeiro, na
literatura artística, a constituir a pintura como objeto de teoria e doutrina
sistematizadas” (KOSSOVITCH, 2014, p. 43). Segundo o autor, no tratado de Alberti
há uma forte menção à matemática e à geometria de base euclidiana, sendo um tratado
elaborado especificamente para pintores.
Annie Furlan (2007) apresenta Piero della Francesca (1416/1492) como
primeiro pintor a escrever um tratado sobre a perspectiva. “A qualidade mais singular
do De prospectiva pingendi é o fato de ter sido o primeiro tratado onde ocorre uma
sistematização da perspectiva” (FURLAN, 2009, P. 195).
O pintor escreveu três tratados matemáticos, e um deles “De prospectiva
pingendi20” abordou especificamente a pintura, e todas suas proposições foram
baseadas na perspectiva. O pintor, com base em sua formação matemática, sistematizou
o método da perspectiva, e em algumas situações (são textos díspares, mas que tratam
da perspectiva na pintura) o texto nos permite uma relação com o tratado de Alberti
“Della pittura”.
Segundo a autora, os dois pintores, por possuírem uma sólida formação
matemática, recorrem à geometria, e dividem a pintura por partes, no entanto, Della
Francesca considera que a pintura e a matemática são indistintas, ao passo que Alberti
as enxerga como pertencentes a diferentes áreas. Os dois pintores se utilizam da
matemática e da geometria nas técnicas de pintura, no entanto, Alberti dirige seu tratado
como pintor, escrevendo diretamente para pintores, e não matemáticos.
Alberti utilizou em seu tratado o termo perspectiva que do latim traduz-
se como “ver através de”, e Della Francesca trabalhou com o conceito de perspectiva
como prospectiva que do latim, traduz-se como “ver adiante”. Alberti apresenta em seu
livro segundo que a pintura é dividida em três partes (circunscrição, composição e
recepção de luz) e explica que a técnica de compor locais e imagens no quadro, deve-se
desenhar um “quadrângulo” cuja compreensão é a de uma janela aberta, por isso “vê-se
através”, e assim visualizar o que será pintado.

20
O texto situa-se, cronologicamente, entre as obras “Della pittura” (1436) de Alberti e “Traté de la
peinture” (1490) Leonardo da Vinci. (FURLAN, 2007;2009)
47

Em De prospectiva pingendi, Della Francesca também dividiu a pintura


em 03 partes (disegno, commensuratio e colorare), em que escolheu trabalhar somente
com a segunda parte “comensuratio” a qual atribui-lhe o mesmo significado de
perspectiva (FURLAN, 2009). Para Della Francesca, o olho é a primeira parte da
perspectiva, seguido da forma, da distância, das linhas e do termine. É com base nesta
distinção que serão desenvolvidos os termos perspectiva naturalis e perspectiva
artificialis.
A expressão de seu tratado pode ser observada em seu quadro, cuja
criação data aproximadamente 1455-1460, Flagellazione di Cristo (A flagelação de
Cristo), por utilizar-se da perspectiva e colocar em primeiro plano e em segundo plano
os personagens pintados. Alguns historiadores afirmam que a perspectiva chegou a
“perfeição” com o trabalho de Leonardo da Vinci e Rafael, porém, Piero della
Francesca, foi reconhecido como precursor do trabalho pela sua experimentação de tons
de cor e na aplicação da perspectiva.

Figura 9 - Piero della Francesca. Flagellazione di Cristo.


Fonte: https://www.wga.hu

Piero destaca-se, neste sentido, por sistematizar a perspectiva em seu


tratado sobre pintura, considerando o olho como ponto fixo, e os objetos vistos em cena
que formam com o olho, um ângulo, relacionando-se assim, com o primeiro teorema da
ótica euclidiana.
Para Machado (2015), por quase cinco séculos a perspectiva artificialis
(linear) ditou as maneiras da representação figurativa na civilização ocidental. Segundo
o autor, no renascimento, a perspectiva artificialis significou o descobrimento de um
48

sistema de representação “objetivo”, “científico” e, portanto, absolutamente “fiel” ao


espaço real visto pelo homem. (MACHADO, 2015, p. 75).
A perspectiva, de acordo com os tratados do século XV e XVI, foi
entendida, portanto, como forma de visão e representação, recebendo conceitualmente
os termos perspectiva naturalis e perspectiva artificialis, para designar, respectivamente
a visão do olho humano, e a visão por meio da perspectiva nas pinturas. No entanto,
podemos analisar que até o século XVIII a perspectiva estava inteiramente relacionada
tanto à visão quanto a representação, e somente após o século XVIII, os estudos separar-
se-ão como distintas disciplinas.
Até o século XVII para opor os dois termos, utilizou-se a diferenciação
de naturalis e artificialis, mas, os estudos sobre óptica e luz passaram a ser estudados na
perspectiva artificialis, sobretudo, incluindo os estudos sobre sombra, assim como os
estudos sobre a anatomia do olho, migraram para outras áreas de conhecimento.
O que nos interessa, a parte de todos os fatos historicizados sobre o
renascimento, é destacar a importância que teve a descoberta da perspectiva para os
estudos sobre a imagem e a construção do olhar e a educação da sensibilidade. Séculos
mais tarde, as regras da perspectiva concretizaram-se nos aparelhos da fotografia e
consequentemente do cinema, já que a técnica influenciou a produção de imagens no
ocidente, naturalizando a perspectiva dos aparelhos como processo naturalista de
“captação” do real.
Almeida (1999) concluiu que a técnica da perspectiva produziu e vem
produzindo nos espectadores, imagens que habitam e habitarão os locais da memória e
do corpo, mas como imagens do real. Afirma, assim, que de forma ideológica imita-se a
natureza, “constrange-se o que se vê como ‘real’ a figurar-se conforme os
procedimentos e as regras necessárias para que as figuras ‘reais’ realizem-se em formas
‘naturais’ dentro do quadro” (ALMEIDA, 1999, p. 121 e 122). Retoma, neste sentido, a
ideia de Alberti sobre a metáfora da janela, para mostrar que a condução das linhas
imaginárias que formam a perspectiva junto às práticas e teorias matemáticas, ao captar
as imagens do real, modificam-nas em imagens híbridas de realismo e de imaginação
para expressar a perspectiva como um local de imagens. A perspectiva, ao longo dos
anos, por conta de sua interferência no realismo da imagem, proporcionou e vem
proporcionando uma experiência de visualidade nas pessoas ao formar um modo de
educação da percepção.
49

Ocorre-nos então, pensarmos a maneira que a imagem serve ao


conhecimento, como sua transcendência ao longo dos anos, desde o renascimento
italiano por pintores, cientistas, fotógrafos, filósofos modernos até professores e
pesquisadores atuais, se debruçaram sobre sua plasticidade e potência em não somente
mostrar uma história, mas possibilidades diversas. Sua história e sua contribuição é
lacunar e rizomática. As imagens perpassam a história e nos atravessa em tantos
sentidos que reduzi-las a uma única contribuição, seria negar sua potência heterogênea.
Recorremos à memória, à montagem e à dialética num esforço de manifestar que as
imagens não são imediatas, nem passíveis de um fácil entendimento. A imagem é um
conjunto de múltiplas relações de tempo. Olhar para uma imagem, seria alcançar o lugar
em que ela resguarda sua beleza escondida, “o lugar onde ela arde [...] onde a cinza não
esfriou” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 215).

Nisto pois, a imagem arde. Arde com o real do que, em dado momento,
se acercou (como se costuma dizer nos jogos de adivinhação “quente”
quando alguém se acerca do objeto escondido). Arde pelo desejo que a
anima, pela intencionalidade que a estrutura, pela enunciação, inclusive
a urgência que manifesta (como se costuma dizer “ardo de amor por
você ou “me consome a impaciência”). Arde pela destruição, pelo
incêndio que quase a pulveriza, do qual escapou e cujo arquivo e
possível imaginação é, por conseguinte, capaz de oferecer hoje. [...]
Mas, para sabê-lo, é preciso atrever-se, é preciso acercar o rosto à
cinza. E soprar suavemente para que a brasa, sob as cinzas, volte a
emitir seu calor, seu resplendor, seu perigo. Como se, da imagem cinza,
elevara-se uma voz: “não vês que ardo?”. (DIDI-HUBERMAN, 2012,
p. 216)

Junto a isso, Didi-Huberman (2013) ao refletir sobre a história da arte


como disciplina, coloca a própria história da arte em perspectiva. Do ponto de vista da
disciplina, o autor a entende a partir da produção de um discurso sobre ela. A história da
arte é formada com base em discursos sobre a arte. Por isso defende que o discurso
histórico não nasce, sempre recomeça.
Concluímos, portanto, que o período compreendido como renascimento,
ao propagar a técnica da perspectiva em pinturas, foi responsável por disseminar formas
de ver o real que povoaram nossa memória artificial ao produzirem lugares e espaços do
real como imagens potentes e inesquecíveis. A imagem inflama o real por conta de sua
potência em produzir o real como potência e não como essência. O discurso do
renascimento (século XVIII e XIX) tentou reconfigurar o realismo do século XIX como
50

sendo o real, essencializando-o, entretanto, esse realismo não é uma essência, já que o
realismo é apenas um dos modos de ver o real, mas não único.
A partir de 1540, a técnica da perspectiva seduziu toda Europa e foi
reconhecida como um meio legítimo de representação espacial nas artes visuais. Até
que quatro séculos mais tarde, suas técnicas foram aplicadas na fotografia. Com base no
seu efeito de realidade, a perspectiva originada no renascentismo italiano, fez com que
suas operações e técnicas produzissem um verdadeiro código de visualidade, que cada
vez tem a intenção de se aproximar do real. De acordo com Machado (2015),
a fotografia, no momento em que se materializa no daguerreotipo,
perpetuando o modelo renascentista de codificação da informação,
desencadeou um delírio de aperfeiçoamento tecnológicos destinados a
produzir uma impressão de realidade cada vez mais impositiva (MACHADO,
2015, p. 32)

A invenção da fotografia precede a descoberta das placas sensíveis à luz.


Segundo ele, a invenção da câmera fotográfica foi inventada já no renascimento, a partir
dos princípios da câmera obscura.
Descreve que as câmeras obscuras “eram caixas negras inteiramente
lacradas que deixavam vazar a luz apenas por um pequeno orifício, de forma que os
raios luminosos penetravam em seu interior fazendo projetar numa das paredes o
“reflexo” invertido dos objetos iluminados” (MACHADO, 2015, p. 36). Os pintores se
utilizavam deste artifício para uma representação mais “fiel” da realidade visível, ao
passo que o exercício do artista era somente fixar a imagem com tinta no papel, por isso,
explica que a fotografia já havia sido produzida em tal período.
Considerar a fotografia, como invenção renascentista implica em
compreender que, para além da interpretação moderna de sua origem química, essa
fixação luminosa na película supõe que “em toda fotografia deve intervir uma verdade
originária, pois é o próprio objeto focalizado que ‘imprime’ seus sinais nos grãos de
prata do negativo” (MACHADO, 2015, p. 38). Deste modo, compreendemos que
atrelada à criação e ao uso da câmera obscura, a fotografia pode expressar-se como um
processo de refração que transfigura e modifica a luz recebida.
É nesta chave que André Bazin (1983) argumenta a natureza da
fotografia, sua essência em sua especificidade, num esforço de reavaliar sua importância
para o campo das artes modernas, trazendo a diferença da natureza da fotografia em
relação a natureza da pintura. Para o crítico, a diferença (a originalidade) da fotografia
51

em relação à pintura, situa-se na questão da objetividade essencial, uma vez que nesse
entendimento a imagem é formada automaticamente, sem uma intervenção criadora do
homem. A fotografia, carrega em sua estética a revelação do real, pois para além de um
dos acontecimentos mais importantes da história das artes plásticas, a fotografia
“permitiu à pintura ocidental desembaraçar-se definitivamente da obsessão realista e
reencontrar sua autonomia estética” (BAZIN, 1983, p 127).
Machado (2015) alega que a fotografia não é somente o registro de um
objeto, uma situação ou um lugar. Essa imagem produzida cria uma realidade que não
está nem fora, nem antes dela, mas está nela, uma vez que a realidade não permanece
íntegra quando uma câmera está apontando para ela, e por isso a câmera nunca é passiva
diante de seu objeto. Machado (2015) ainda levanta alguns questionamentos em relação
à pesquisa com fotografias em antropologia, para questionar quais limites que a câmera
exerce em relação a quem está sendo fotografado, pois sua própria aparição tensiona a
imparcialidade do observador, podendo interferir sobre aquele ou aquilo fotografado.
A fotografia como “escrita da luz” manifestou-se amplamente no século
XIX devido ao advento dos avanços tecnológicos, da química e da física. Para sua
interpretação, existe uma linguagem fotográfica, um estudo imagético, referindo-se à
compreensão da luz, pontos de fuga, cores, mas, sobretudo, pelo ponto de vista do
fotográfico que nos traz a discussão sobre o que é real e natural na imagem fotografada.
A fotografia é uma imagem que carrega aspectos relacionados à realidade do ser
humano por trazer um modo de ver espaços, lugares, pessoas e culturas, modo de
ver designado da técnica da perspectiva. A imagem entendida como representação do
real, cria esse modo de ver o real e naturaliza-o.
Como já discutido por Pasolini (1990), a primeira percepção que temos
do mundo é visual. Podemos afirmar que muito do que percebemos e aprendemos em
nossas relações no mundo, são advindas da relação que estabelecemos com nossa
visualidade, já que aquilo que recebemos como informação nos chega por meio de
imagens e códigos visuais, como símbolos, sinais, ícones. Portanto, há uma linguagem
fotográfica e imagética que insere algumas formas de análise e interpretação das
imagens.
Há um estudo mais técnico que sugere a compreensão da luz, dos pontos
de fuga, do enquadramento, como o caso dos pintores renascentistas Alberti e della
Francesca que se referiam à imagem sob a ótica da perspectiva, mas por outro lado,
52

como parte dessa análise e interpretação das imagens, a perspectiva e o olhar do


fotógrafo em relação aquilo fotografado é um dos pontos de partida para compreensão
da imagem fotográfica.
Almeida sugere que a televisão, o cinema e as outras formas tecnológicas
que trabalham na perspectiva das artes visuais, são responsáveis por nos educarem o
olhar dentro de um processo que passa a ser naturalizado. Nossa educação do olhar é
formada pelos agentes visuais, da mídia, por exemplo, que intentam nos causar o devido
impacto de nos chamar a atenção.

3.3 A EXPERIÊNCIA E A EDUCAÇÃO DA PERCEPÇÃO EM WALTER


BENJAMIN

No ensaio “Pequena história da fotografia” (1931), Benjamin faz uma


reflexão filosófica sobre a fotografia e sua especificidade analisando o impacto que
provocara sobre o mundo das artes, principalmente devido sua reprodutibilidade técnica.
Sua preocupação é apresentar, brevemente, um pouco a história da fotografia que por
muitos anos foi teorizada com base em uma visão divina de arte, sem fundamentos
científicos, já que as “tentativas de teorização são [eram] rudimentares” (BENJAMIN,
1985, p. 92). Essas tentativas de explicar a fotografia, carregavam um conceito filisteu
de arte, incapaz de considerar qualquer técnica. “E, no entanto, foi com esse conceito
fetichista de arte, fundamentalmente antitécnico que se debateram os teóricos da
fotografia durante quase cem anos, naturalmente, sem chegar a qualquer resultado”
(BENJAMIN, 1985, p. 92). O autor deposita no físico Arago, a mudança do discurso a
respeito da fotografia, com base no domínio de técnicas específicas e científicas.
Por volta de 1840, houve um auge dos retratos em miniatura, e assim
foram surgindo os álbuns de fotografia. A relação entre o fotógrafo e sua técnica é
decisiva para a fotografia. É neste sentido que cita o cinema russo como um expoente
exemplo para discussão sobre a técnica da imagem, pois, nos filmes russos, “o ambiente
e a paisagem só se revelam ao fotógrafo que sabe captá-los em sua manifestação
anônima, num rosto humano.” (BENJAMIN, 1985, p. 102).
Sua intenção é mostrar como a representação do rosto humano causou
um impacto nas imagens. Cita Lichtwark (1907) que disse: “Nenhuma obra de arte é
contemplada tão atentamente em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós
mesmos, de nossos parentes próximos, de nossos seres amados”. (LICHTWARK, 1907
53

apud BENJAMIN, 1985, p.103). Finaliza o texto apresentando a “arte como fotografia”
no sentido de considerar a importância da reprodução fotográfica das obras, mais do que
a construção artística de uma fotografia, que transforma a vivência a um objeto. Para a
função artística essa inversão (arte como fotografia e não o contrário) é mais importante,
pois a realidade tem outra forma de visibilidade na fotografia. Sua preocupação era
mostrar e apontar a relação moderna da sociedade contemporânea que passava naquele
momento, a fotografar as obras de arte.
Destaca, neste sentido, uma tensão nessa relação de fotografar as obras
de arte, pois, essa nova concepção de arte modificou o aperfeiçoamento das técnicas de
reprodução e onde antes havia criações individuais, no mundo moderno existem
criações coletivas, possibilitando certo domínio sobre elas. Quando a fotografia se
liberta de certos contextos sociais, políticos e científicos, ela pode ser considerada
“criadora”, e já apontava que “ a fotografia está [estava] substituindo a pintura”.
(BENJAMIN, 1985, p. 104).
No século XIX a fotografia e o cinema estavam desempenhando,
portanto, mudanças na relação das pessoas com o mundo, e Benjamin entendia que os
modos de percepção das pessoas sobre o mundo se alteraram nessa relação, e assim, o
cinema e a fotografia seriam potenciais instrumentos que acompanhariam essas
mudanças e corresponderiam aos seres humanos modernos.
Em 1955, publicou a primeira versão do texto A obra de arte da era da
reprodutibilidade técnica. No prólogo do texto, traduzido da última versão do texto
original (Das kunstwerk im zeitalter seiner technischen reproduzierbarkeit, apresenta
uma citação de Paul Valery21 para introduzir aos leitores o modo como a arte se
transformou ao longo dos anos:
Matéria, espaço e tempo não são mais o que eram há vinte anos. Inovações
tão colossais, que alteram o conjunto das técnicas artísticas, acabam por
influenciar a própria invenção e talvez terminem por modificar da forma mais
extraordinária o próprio conceito de arte. (VALÉRY, P. s/d, p.103-104 apud
BENJAMIN, W. 2012, p.10)

Benjamin (2012), com base em Valéry, portanto, explica que o século


XX foi marcado por mudanças tecnológicas as quais não se resumem apenas a
aparelhos, são novas formas de percepção da sociedade. A princípio, as obras de arte
eram passíveis de reprodução, uma vez que toda atividade humana poderia ser imitada,

21
Paulo Valéry (1871 – 1945), poeta e filósofo francês do século século XX . Foi escritor da escola
simbolista, escrevendo sobre matemática, filosofia e música.
54

logo reproduzida. A xilogravura, a gravura em metal e água-forte na Idade Média e a


litografia no início do século XIX foram formas de atividades humanas que
reproduziam as criações, mas foi na fotografia a forma última de reprodução, superando
essas outras formas devido a sua rapidez.
O olho humano capta as imagens com mais agilidade e precisão do que a
mão consegue desenhar, com isso o processo de reprodução ganhou mais velocidade e
transformou a forma como a arte é percebida. Entretanto, ainda que as obras de arte
possam ser reproduzidas, a reprodução não permite que a obra carregue sua história e
sua autenticidade, sua existência única, “o aqui-e-agora” (BENJAMIN, 2012).
A fotografia aproxima o real para o espectador e ouvinte, é uma forma de
arte diferente daquela concebida pela pintura, mas para Benjamin (2012) as novas
formas de arte degradam a experiência estética autêntica das obras de arte. Mesmo que a
reprodução conserve o produto idêntico, há a desvalorização de sua “aura”.
A “aura” representa esta autenticidade, originalidade e historicidade da
obra de arte. É material, pois é um modo de recepção que emana do objeto, e neste
sentido, a fotografia, por não carregar esta originalidade, corresponde exatamente às
características das massas contemporâneas ao desejar aproximar as coisas. “A cada dia
torna-se mais irrecusável a necessidade de chegar o mais perto possível do objeto por
meio de sua imagem” (BENJAMIN, 2012, p.16).
A obra de arte como única, (em sua unicidade) é reconhecida como uma
tradição. Até o século XIX os museus eram dispostos de determinada maneira para que
as pessoas tivessem as mesmas experiências e impressões das obras de arte. Existia a
tradição de depositar certo “valor” e reconhecimento nas obras, no entanto, esse valor
não está na obra, ele é criado pelas pessoas (histórica e socialmente).
No texto, A obra de arte da era da reprodutibilidade técnica, exemplifica
a estátua de Vênus como sendo objeto de culto para os gregos, e um ídolo maléfico para
os clérigos da Igreja Medieval, todavia, em ambos os casos, permanecia na obra sua
unicidade, sua aura, por isso, existe a tradição, já que estes objetos tornaram-se obras de
arte depois de percorrerem a trajetória de objeto de culto e adoração por meio da
religião.
Nesse sentido, a reprodutibilidade técnica está nas obras (filmes e
fotografias) que se reproduzem, e na criação dos modos de percepção da arte. A relação
com a obra passou a ser mediada por um interesse que é externo à obra, por meio da
55

comunicação e da linguagem, e do valor de consumo. Por esse motivo, preocupou-se


em compreender tecnicamente de que maneira esse novo aparato tecnológico se
relaciona com a percepção do ser humano no tempo e no espaço, pois, no século XIX a
forma do homem se relacionar com o mundo mudou, uma vez que seus sentidos foram
“separados” do corpo, por meio de uma vivência racionalizada.
Benjamin (2012) explica que as obras de arte passaram por um processo
político de reconhecimento, que denominou “valor de culto” cujo sentido criava certo
consenso entre quem as via. As obras com valor de culto, não necessariamente estavam
relacionadas a uma ordem religiosa, mas a uma ordem de sentido em que o objeto tinha
um significado prévio ao contato com o espectador, um significado do objeto a ser
descoberto ou aprendido, como uma mensagem dogmática, pois, no “valor de culto”
haveria uma exposição, mas uma exposição programada, em que a atuação do
espectador e da espectadora como participante da produção de significado, seria
diminuída.
Os significados da obra de arte podem oscilar entre os polos do valor de
culto e do valor de exposição, mas não de forma linear, como entre dois pontos limites.
As duas formas de valor se contaminam entre si e se colocam na relação com a imagem,
e abrem-se à multiplicidade das formas de relação e criação de significado, de acordo
com os contextos da obra, da pessoa que observa e do momento da observação. A
produção artística, de fato tem seu início a partir das imagens que serviram/servem ao
culto, pois antes de serem vistas, eram cultuadas. Mas, na medida em que se
emancipam, - novamente, não como linearidade histórica, mas com relação a diferentes
funções - aparecem as possibilidades de sua exposição, já que o valor de culto ao ser
consolidado por meio da cultura, evidencia o próprio caráter de exposição.
A reprodução faz com que os espectadores e as espectadoras se
apropriem dos objetos e obras de culto e adoração como forma de arte, pois é a única
que as pessoas têm o contato. A estátua de Vênus era reconhecida como objeto de culto
pelos gregos, mas só ao longo dos anos foi considerada obra de arte por outras pessoas
que não necessariamente vivenciaram esse período grego e por meio da reprodução
técnica da obra, compreendemo-las a partir do valor de exposição.
Os diferentes métodos de reprodução técnica da obra de arte multiplicam
de forma tão notável as possibilidades de exposição da obra, que o deslocamento
56

quantitativo entre seus dois polos de valor provocou uma mudança qualitativa em sua
natureza, semelhante àquela experimentada em tempos primitivos.
Assim como naquela época a obra de arte foi, sobretudo, um instrumento
da magia, dado o peso absoluto do seu valor de culto, e só mais tarde foi reconhecida
como obra de arte, hoje, graças ao peso absoluto do seu valor de exposição, ela adquire
novas funções inteiramente novas, das quais a função artística, a única da qual temos
consciência, talvez revele adiante como uma função secundária. A fotografia e, melhor
ainda, o cinema fornecem os fundamentos mais úteis para o estudo desta questão.
(BENJAMIN, 2012, p. 19) As artes, compreendidas em seu valor de exposição, exigem
determinado tipo de recepção, e não seria mais adequado contemplá-las, pois, elas nos
perturbam a nos sentirmos motivados a buscar mecanismos mentais para compreendê-
las e decifrá-las.
Ainda que na fotografia, por meio dos retratos humanos possa existir um
certo valor de culto, ela pode alterar os próprios modos de percepção da arte, e por isso
Benjamin (2012) discute que gastou-se muito tempo debatendo sobre sua identidade (se
é considerada arte ou não), sem dar-se conta de seu grande potencial de modificar a
própria natureza da arte. A fotografia torna mais evidente que a imagem ganha
significação no processo de relação com o espectador.
As artes que trabalham com as imagens, seja na fotografia, ou no cinema,
conduzem orientações, que ao serem recebidas pelos espectadores demandam
interpretações e análises. Por esse motivo, considera-se que a fotografia e o cinema
correspondem a uma outra forma de linguagem das artes, diferente do teatro por
exemplo. São mediações diferentes, uma vez que o ator do teatro apresenta sua
produção artística diretamente para o público, ao passo que a atuação do ator de cinema
é realizada por um aparato técnico e mecânico. Assim, as necessidades do cinema são
diferentes. Benjamin (2012) cita Pirandello para mostrar a maneira como o dramaturgo
entende as modificações na atuação do ator de cinema:
O ator de cinema sente-se no exílio. Exilado não somente do palco,
mas também da sua própria pessoa. Com um mal-estar indefinível,
percebe o vazio inexplicável que surge da transformação do seu corpo
em uma aparição fugidia, que se evapora; roubam sua realidade, sua
vida, sua voz e os ruídos que produz enquanto se movimenta,
transformando-os em uma imagem silenciosa que treme durante certo
momento na tela e em seguida desaparece no silêncio.
(PIRANDELLO, s/d, apud BENJAMIN, 2012, p.22).
57

Por meio das palavras de Pirandello, nota-se que o cinema modificou


também a atuação dos atores que se sentiam estranhos à própria imagem por intermédio
da câmera. Segundo Benjamin (2012), o ator de cinema deve atuar na plenitude do seu
ser, mas renunciando sua aura, já que esta é material e não pode ser reproduzida. No
cinema russo, por exemplo, aconteceu um processo de utilização de “não artistas” para
representar e aproximar o real, a partir de pessoas que possam se representar. O cinema
russo é um grande expoente de filmes revolucionários e a representação cinematográfica
da realidade é superior à da pintura em relação às necessidades específicas do ser
humano moderno.

Figura 10 Ivan, o terrível. Serguei Eisenstein. 1947. (União Soviética). A imagem representa, em
perspectiva, uma cena do filme. Eisenstein, expoente cineasta da época tinha ambiciosas propostas para o
cinema russo.

A experiência cinematográfica não se caracteriza somente pela forma


como o ser humano é representado por meio da câmera, mas o modo como ele
representa e ressignifica o mundo filmado. As câmeras, portanto, constroem suas
próprias configurações simbólicas ao apresentarem uma realidade que significa as
coisas, os objetos, os espaços e os lugares filmados. Neste sentido, “há nas câmeras,
uma força mais formadora que reprodutora” (MACHADO, 2015, p.14).
Assim, o cinema é uma experiência maior em que o filme é uma parte
deste produto. “O filme amplia a visão sobre as coerções que regem o nosso cotidiano e
é capaz de nos assegurar um campo de ação insuspeitável” (BENJAMIN, 2012, p. 29).
O autor vê no cinema grandes possibilidades de se proliferarem sentimentos e
experiências por meio das imagens, das interpretações e sensações que as câmeras, as
lentes e os efeitos provocam.
58

Benjamin (1987) avalia que a experiência do “choque” já estava


onipresente na obra do poeta Baudelaire, mas seu efeito expandiu-se com as artes e
considera a situação de uma imagem “contaminar” a outra. No cinema, este sentido da
“contaminação” é construído em movimento. O efeito de choque pode ser
compreendido tanto em relação às imagens, no sentido de uma imagem depender da
próxima imagem em sequência - sequencialismo cinematográfico - quanto na relação
das pessoas em plateia (ação sensível do espectador que afeta o outro).
Ao afirmar que “a reprodutibilidade técnica da obra de arte altera a
relação das massas com a arte. Retrógradas diante de Picasso, elas se tornam
progressistas diante de Chaplin” (BENJAMIN, 2012, p. 27), o autor explica que esse
comportamento progressista das plateias modernas de cinema, é definido pela
combinação imediata e particular diante da arte cinematográfica. A pintura, por outro
lado, que não foi pensada para ser apreciada coletivamente, enfrentaria certa crise pelo
avanço do caráter coletivo de reação e crítica no cinema. “As pinturas foram feitas para
serem vistas por poucos indivíduos. A contemplação simultânea de quadros por parte de
um grande público, [...], já é um sintoma da precoce da crise da pintura” (BENJAMIN,
2012, p. 28). As imagens não permitem que as pessoas as vejam mais de uma vez, pois,
elas mudam a todo momento causando diferentes sensações. Assim, o cinema é um
eficaz meio de comunicação para as massas, pois tem a possibilidade de comunicar-se
com as multidões por meio das salas escuras.
Na era da reprodutibilidade técnica, o cinema estabelece uma nova
forma da função social da arte, contribuindo para uma nova percepção do mundo, que o
homem moderno já acompanhava desde as grandes cidades e da industrialização. O
cinema ampliou a percepção do mundo visível e acústico, por apresentar uma realidade
próxima e mais exata, em que o conteúdo e as situações do filme podem ser analisados
de modo mais abrangente.
Deste modo, as novas formas de arte, como o cinema e a fotografia
impactam os modos de percepção do mundo uma vez que eles deixam o “lado aurístico”
das obras artísticas de culto e adoração num esforço de aproximarem cada vez mais o
real para o espectador, proporcionando uma experiência diferenciada, em que o
autêntico dá lugar ao reproduzível.
O cidadão moderno vive constantemente sujeito a situações que o
protegem dos “choques”, e no caso do cinema, ela causa a proteção do choque por meio
59

da distração. As massas contemporâneas emanam uma nova percepção em relação à


arte, já que o maior número de espectadores impulsionou um modo diferente de
participação, quantidade tornou-se qualidade, e esse diferente modo de participação não
implica em compreender o cinema como uma distração, ao passo que a “arte” exigiria
recolhimento, já que “distração” e “recolhimento” estão em distintos patamares. O ato
de distrair-se pode também gerar o ato de acostumar-se, e sendo assim, podemos
realizar outras tarefas quando estamos distraídos, porque nos acostumamos. “Por meio
da distração que a arte nos oferece hoje, podemos controlar particularmente até que
ponto a nossa percepção se tornou apta a executar as novas tarefas.” (BENJAMIN,
2012, p. 33), e conclui:

a recepção pela distração, cada vez mais notável em todas as áreas artísticas e
que constitui um sintoma de profundas mudanças na percepção, tem no
cinema o seu melhor campo experimental. Nos seus efeitos de choque, o
cinema vem ao encontro dessa forma de recepção. A desvalorização do valor
de culto ocorre no cinema não somente porque ele transforma o público em
especialista, mas também porque essa postura de especialista não requer
atenção. O público avalia o filme, mas o faz de forma distraída. (BENJAMIN,
2012, p. 34)

Benjamin (2012) procura entender a relação do público com a arte, e de


que maneira essa relação ocorre por meio deste aparato tecnológico uma vez que o ser
humano moderno acompanha as mudanças sociais. O século XX impulsionou mudanças
que alteraram a forma como as pessoas se inseriram no mundo e o compreendiam. O
autor ainda apresenta uma visão muito confiante do grande potencial que o cinema
revelaria por acreditar que o filme possibilitaria às massas seu autoconhecimento. Ele
enxergava o cinema como uma arte emancipada que não estava a serviço de nenhuma
classe social, e por isso teria o potencial de formar espectadores também emancipados.
Entretanto, o autor coloca que o caráter político do cinema (de mobilização das massas)
só seria útil ao progresso da humanidade, se fosse liberto do capitalismo, que por meio
do fascismo, apropriaria-se dos meios de comunicação das massas, vendendo produtos
que correspondem aos movimentos reacionários. Portanto, o fascismo faria uma
“estetização da política”, a qual o autor contrapõe à “politização da arte” como uma
saída de libertação deste movimento.
No epílogo do texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica, apresenta a discussão de como o fascismo se apropria da classe operária
buscando, a estetização da política, mostrando que esse esforço de estetizar a política,
60

culmina na guerra. Por isso, declara que a “resposta do comunismo é a politização da


arte” (BENJAMIN, 2012, p. 36).
Essa postura de opor fascismo e comunismo (política e arte) como uma
forma de revelar o conceito de cultura com base no fascismo alemão, mostra o que o
fascismo escondia em termos do progresso que a tecnologia poderia alcançar para
emancipar a sociedade[GB2], uma vez que a política fascista “recuperou o culto e a magia,
com seus mecanismos de mitificação e ritualização, herdados de duas experiências
eficazes com as massas: a Igreja e o Exército”(TOMAIN, 2004, p. 104).
Compreendemos, portanto, como a arte introduziu e consolidou novas
formas de percepção do mundo, alterando as percepções cognitivas das pessoas, que ao
terem contato com as novas formas de arte (como o cinema e a fotografia) passaram a
enxergar e ressignificar o contexto em que viviam. Benjamin (2012) dialoga com Sergei
Eisenstein sobre a montagem nos filmes, como o poder criativo, em que várias células
justapostas compõem um produto final.
Sua compreensão sobre o ser humano moderno contribui para pensarmos
a maneira que se formam as subjetividades, atrelando as formas de percepção da
sociedade, da política, da economia, da cultura e as potenciais mudanças que a arte, de
modo sensível e impactante transformam as pessoas. A reprodutibilidade técnica alterou
os processos de significação, modificando a relação do espectador e da espectadora com
a imagem. Essa relação se alterou porque ocorreu uma mudança no processo de
significação das pessoas em relação ao mundo em suas formas de percepção.
As transformações da experiência estética, a partir da cultura capitalista e
de uma cultura tecnológica, nos permitiram uma compreensão sobre a crítica da arte e
da cultura, e para tanto, é necessário entender a concepção de história e sociedade e a
forma como as pessoas se relacionam e percebem o mundo. A crescente urbanização e o
povoamento dos grandes centros citadinos exerceram grande impacto na experiência
visual da sociedade. A repercussão das mídias e tecnologias interfere na formação do
pensamento das pessoas, ao transmutarem-se em imagens, e não mais em histórias ou
narrativas, assim, essa nova forma de cognição desdobra-se performando uma nova
estrutura de percepção, já que a imagem transporta presente e passado.

3.4 CINEMA E EDUCAÇÃO: O CINEMA COMO EXPERIÊNCIA


61

A origem do cinema, associada à invenção do cinematógrafo, assegurou


ao século XX a capacidade de capturar imagens, que ilusionam as pessoas pelo
movimento. O cinematógrafo produz imagens estáticas (fotogramas) que, ao serem
exibidas a uma velocidade maior que a persistência retiniana, simulam a impressão de
movimento.
A primeira exibição de um filme, em 1895, A saída da fábrica, feita
pelos irmãos Lumière, causou uma grande movimentação nos espectadores, abrindo um
amplo campo de estudos a respeito da sétima arte. Na primeira metade do século XX, o
cinema afirmou-se como arte pela relação estabelecida com artistas que almejavam, por
meio desta experiência, produzir efeitos impactantes e mágicos.
Para este trabalho o cinema será abordado e apresentado como forma de
educação estética e política, com base em sua configuração ideológica a partir do século
XX.
A relação estabelecida por meio das câmeras produz diferentes vivências
e experiências nos espectadores, pela forma de contato imediato que se abre para outros
modos de produção de conteúdo e realidades. A imagem em movimento do cinema
ilusiona o espectador por apresentar uma forma real de um contexto que pode ser
interpretado com base em várias situações.
Do ponto de vista cinematográfico, os filmes podem ser entendidos a
partir de sua estética e sua classificação em gêneros, mas do ponto de vista do cinema
como uma forma de educação estética e política, o cinema pode ser revelado como uma
experiência que se mostra aos espectadores com uma maior ou menor abertura em
relação à sua linguagem. Os filmes que operam nas imagens transparentes, dispensam o
espectador de decifrar e decodificar seus códigos, ao passo que os filmes que operam
nas imagens opacas precisam de espectadores ativos para que esses códigos sejam
decifrados e decodificados.
Ismail Xavier (2012) trabalha os conceitos de opacidade e transparência
para designar os tipos de montagens que se mostram mais ou menos para o espectador,
sobre essa relação estabelecida na e com as câmeras.
62

O efeito de choque, discutido com base em Benjamin (2012) que se


reproduz tanto na imagem como no espectador, pode se relacionar à emancipação e
alienação dos espectadores22.
Entendemos, neste sentido, que alguns filmes revelam imagens
cinematográficas potentes, capazes de superarem uma visão conservadora e tradicional,
que aproximam os espectadores da arte, proporcionando-lhes um espaço criador,
reflexivo e subjetivo. Tal constatação pode ser utilizada para compreender seu uso em
espaços escolares e educativos como potencial “instrumento” para arte e criação. De
acordo com Adriana Fresquet (2013),
o tipo de vivência do cinema na educação revela uma potência da
imagem cinematográfica, que supera a visão tradicional linguística,
semiótica e semiológica, propiciando, no espaço educativo, uma
experiência sensível e direta com as obras de arte (FRESQUET, p.26,
2013).

A autora ainda afirma que o cinema pode ser encarado como uma janela,
que nos abre a um mundo, que muitas vezes não conseguimos enxergar com nossos
próprios olhos, e ao mesmo tempo, tem um efeito reflexivo, como um espelho, que nos
permite fazer reflexões, viagens ao nosso interior em um processo subjetivo, muito
íntimo e particular.
O cinema encarado como um processo de consolidação de visualidade, o
qual estabelece uma hegemonia de ver e sentir que naturaliza sensações que se
propagam nos espectadores da mesma forma, não causando múltiplas experiências, se
opõe à maneira como esse trabalho o compreende, como um desestabilizador de
políticas e regimes de verdade, que os desconstrói.
Considerado um dispositivo23 ele tem o potencial de romper com o
processo de naturalização das sensações, tornando comum aquilo que não nos pertence.
Por meio da imagem cinematográfica, perturba e modifica os sujeitos que se abrem a
este contato. É por meio desta última perspectiva que se rompe o modo como o cinema
aliou-se a educação, enquanto um instrumento/suporte didático para expressar
conteúdos, pois, na perspectiva da arte, o cinema vai para a escola como ato e criação.

22
Apontamos que Benjamin (2012) e Xavier (2012) expõem e trabalham os conceitos citados no texto,
entretanto nosso interesse é investigá-los nas imagens, que não são emancipatórias ou alienantes, mas
produzem uma relação com o espectador cujos sentidos formados podem ser frutos da imagem opaca e da
imagem transparente, relacionando as experiências emancipatórias e alienantes no espectador.
23
Os dispositivos são exercícios de realização mediados por regras técnicas do que deve ou não deve ser
feito no exercício.
63

O cinema pode ser visto como um território, que junto com os territórios
de gênero, da escola, da educação e outros, promovem uma relação de deslocamentos.
Esses deslocamentos impulsionam desvios e idas a outros territórios, que não
necessariamente (des)colonizam uns aos outros, mas, os desterritorializam. É nesse
movimento que nossas verdades são desconstruídas, que nos transformamos, que
saímos de nossa zona de conforto, que nos sentimos estrangeiros ao próprio espaço.
Toda essa ação transformadora é educadora e justifica a entrada do cinema na escola.
Segundo Almeida (2009), a compreensão de um filme acontece no
intervalo entre as cenas. O autor explica que são nesses intervalos (o lugar do não
“visto”), que acontece a significação do que é visto. As aprendizagens e a interpretação
dos filmes ocorrem nas lacunas de uma cena para outra; isso quer dizer que, quando
uma imagem é substituída por outra ocorre um “processamento” na compreensão da
cena, por isso a aprendizagem relaciona-se com os cortes das filmagens. Benjamin
(2012) já havia declarado que no cinema as imagens isoladas dependem das cenas
anteriores para sua compreensão. Para Xavier (2012) esse corte, a substituição de uma
imagem pela outra, dá continuidade à história e faz parte da intervenção humana, pois
mostra um ato de manipulação.
Entretanto, a interpretação de um filme feita somente pela mensagem
explícita (visível e dedutível) é uma interpretação incompleta. Buscar interpretações de
um filme com base em teorias sociológicas, estéticas e políticas é sinônimo de submeter
os filmes para comprovação dessas teorias. Os filmes não são expressão de seus
conceitos, mas sim ideologias que se fazem por meio de alegorias cinematográficas,
portanto, defendemos uma postura de diversas compreensões de um mesmo filme, e em
diferentes épocas, já que maneira como o filme afeta cada sujeito espectador é
diferenciada pelo contexto e pela memória de cada indivíduo (ALMEIDA, 2009).
Machado (2012) no prefácio do livro O discurso cinematográfico:
opacidade e transparência explica que

Quando o “dispositivo” é ocultado, em favor de um ganho maior de


ilusionismo, a operação se diz transparência. Quando o “dispositivo” é
revelado ao espectador, possibilitando um ganho de distanciamento e crítica,
a operação se diz opacidade. (MACHADO, 2012, p. 6)

A imagem cinematográfica é afetada pelo mundo, ela “sofre” o real, é


fruto do encontro entre máquina, sujeito e o mundo visível. Por isso o cinema tem uma
dimensão estética, sua proposta é criativa e não transmissora de saberes. É na chave da
64

criação que existem as possibilidades de experimentação das imagens em opacidade,


formadoras de sujeitos emancipados. A dimensão estética do cinema reside no espaço
do filme e seus potenciais efeitos e reações, mas “não há passagem ideal entre o que um
filme quer dizer e a experiência que se faz com esse filme” (MIGLIORIN, 2015, p. 37).
Essa descontinuidade, segundo Jacques Rancière (2009) pertence a um
regime estético das artes. Regime este que não organiza o mundo a partir de um
conhecimento prévio, antecedente a própria imagem, mas identifica a arte no seu
próprio sentido singular, desobrigando-a de regras e hierarquias, deixando de ser
imitação/representação para ser criação.

3.4.1. O CINEMA E A REALIDADE: ASPECTOS DO DOCUMENTÁRIO E A


BUSCA PELO REAL

A possibilidade do registro da natureza, dos objetos, espaços e lugares a


partir da técnica da perspectiva e invenção da fotografia despertou um interesse de
aproximação com o real por meio dos aparelhos audiovisuais e ganhou maior destaque
no cinema com o advento da imagem em movimento.
Quando se diz que um filme é um documentário, nos remetemos à ideia
de veracidade, realidade e fatos. Por “documentário” propaga-se a ideia da
caracterização verídica daquilo mostrado na imagem. Há uma fixação em representar o
real, que desde a técnica da perspectiva criou modos de ver e cria percepções do
mundo. Mas, há uma linha muito tênue em considerar filmes em documentários e/ou
ficção.
A delimitação precisa do gênero é muito complexa, e a relação entre
cinema e a realidade não é definida pela “representação”, pois o documentário não
refere-se à realidade. Existe na área cinematográfica um debate grande e pouco preciso
a respeito da definição do gênero documentário. Alguns cineastas já exploraram essa
fronteira, como FilmeFobia (2008) de Jean-Claude Bernadet, que caminha exatamente
entre as vias do documentário e da ficção, Era o hotel Cambridge (2016), de Eliane
Caffé, Jogo de Cena (2007) de Eduardo Coutinho, entre outros. Caracterizam-se pelo
trabalho com atores profissionais, e pessoas cujas histórias são incorporadas na
narrativa do filme, causando a sensação de aproximação com o real, que é a todo tempo
forjado e moldado com base em escolhas na montagem.
65

A abordagem que queremos explorar, com base na apresentação do


documentário no cinema, é a própria noção de realidade e a construção de imagens
cinematográficas que movimentam no espectador um senso de verdade e representação
absoluta. O cinema documentário representa a realidade?

Nos documentários, encontramos histórias ou argumentos, evocações ou


descrições, que nos permitem ver o mundo de uma nova maneira. A
capacidade da imagem fotográfica de reproduzir a aparência do que está
diante da câmera nos compele a acreditar que a imagem seja a própria
realidade reapresentada diante de nós, ao mesmo tempo em que a história, ou
o argumento, apresenta uma maneira distinta de observar essa realidade
(NICHOLS, 2005, p. 28).

Bill Nichols (2005) afirma que o entendimento do documentário e da


ficção compreende a distintos campos, por conta das especificidades que apresentam
cada gênero. Embora alguns autores concordem que o documentário, assim como a
ficção tem uma carga ideológica e é construído como qualquer outro filme, no
documentário imperam questões éticas e não pode ser reduzido a uma ficção. Aponta
que o documentário é um gênero cinematográfico, e pode ser dividido em seis tipos
(poético, expositivo, observativo, participativo, reflexivo e performático).
Em cada um desses tipos estariam identificados diferentes modos de
representação, que seriam “subgêneros” do gênero documentário.
Por outro lado, para Roger Odin (2012) o documentário compreende a
um campo, em que os filmes podem ser interpretados como documentos e o que
mudaria na compreensão do filme seria o tipo de leitura que os espectadores e as
espectadoras fazem (leitura documentarizante vs leitura fictivizante). Para o autor,
tornou-se um critério categorizar filmes que não são documentários por ficção, e vice-
versa, por isso, preocupa-se em refletir sobre as fronteiras e as relações entre cinema e
realidade, para mostrar que distinguir um filme por documentário ou ficção, não está
exatamente opondo um ao outro. Existe uma leitura dos filmes que pode ser
“documentária” ou mais “documentarizante”, já que o documentário não teria o
privilégio de referir-se à realidade (ODIN, 2012).
Se um filme se passa em um ambiente exterior, como por exemplo, os
westerns, podemos fazer uma leitura do filme que corresponda à suas paisagens e a
forma como as pessoas espectadoras, podem aprender como se vestem, como
conversam e como se comportam tais polícias e cowboys. Então, o autor nos provoca:
todo filme de ficção pode ser considerado um documentário? Deste modo, o problema
66

se complicaria, pois o inverso seria válido, e todo documentário seria um filme de


ficção. Poderíamos, portanto, questionar se é que realmente existe um gênero
documentário?
Em vista disso, o autor mostra que existe um espaço de leitura dos filmes,
de uma leitura documentária, ou de uma leitura “documentarizante”, ou seja, “de uma
leitura capaz de tratar todo filme como documento”, assim, em relação a uma leitura
documentarizante, e uma leitura fictivizante, o que está em jogo, seria a postura do
leitor em considerar o enunciador do filme. Odin (2012) aponta, portanto, que
considerando as diferentes leituras que podem ser feitas do filme, o documentário seria
um conjunto composto de vários gêneros, já que cada filme nos induz a uma certa forma
de leitura.
A construção dos filmes em documentário programa-se em convencer ou
expor uma realidade, um contexto segundo aquelas condições de filmagem e relações
com o aparelho audiovisual (subjetividades dos cineastas, modos de ver e percepções de
mundo) que tem por ideal centralizar um discurso e encadear imagens que se organizem
de modo a dar sentido àquela narração conferindo-lhe legitimidade (BRUZZO, 1998).
Segundo Cristina Bruzzo (1998), “a falsa ideia de que os acontecimentos
mostrados no documentário acontecem independentemente do fato de haver a filmagem,
credita no cinema não ficcional o pressuposto da não intervenção” (BRUZZO, 1998, p.
25). Nesse sentido, assim como qualquer filme de ficção, o documentário é também
uma construção, uma construção ideológica. De acordo com Luiz Augusto Rezende
(2013) “o documentário não estaria mais próximo da realidade que a ficção, nem estaria
mais próximo da realidade que da ficção (REZENDE, 2013, p. 31).
A questão que nos interessa discutir a ser apresentada com base no
estudo do documentário é o próprio conceito de representação, e o quanto essa noção
representativa no cinema e na fotografia afetam o modo como compreendemos e
enxergamos essas imagens. Dizer que uma imagem e uma fotografia representam um
objeto, um lugar, uma situação, não significa dizer que elas espelham o que mostram.
Em relação aos aspectos técnicos dos filmes, tendo em vista a crítica à
montagem idealizada por Bazin (2005) a “estética da transparência”, críticas são
expostas aos filmes em que os narradores não deixam os próprios fenômenos
expressarem seus sentidos. Para o autor, o ideal seria um filme em que os
acontecimentos se realizassem por si só. Resende (2008, p. 39) arrisca-se a dizer “que,
67

se Bazin estivesse vivo, talvez tivesse encontrado em Abbas Kiarostami a melhor


tradução até agora para seus anseios”. A partir do realismo exposto em suas produções,
este cineasta induz os espectadores a se inserirem em seus filmes, os quais são repletos
de incertezas e incompletudes.
Abbas Kiarostami, de forma brilhante explora a ideia de que o cinema é
uma arte de singularidades em que os homens contam sua história e o mundo ao seu
redor (BERGALA, 2006). Neste sentido, optou por não submeter-se à lógica da
indústria e do mercado cinematográfico, as quais indicam leis prontas e modelos de
filmagem. Partilha também de uma “politique of slowness” (política de lentidão), em
que demonstra nos filmes ser resistente à aceleração cultural das coisas, considerando o
tempo como matéria-prima bruta, a ser lapidado para que o mundo, a natureza e os
objetos possam ser contemplados em seu próprio tempo.
Em relação a proximidade com o real, Kiarostami intenta mostrar
histórias cotidianas, mas não somente narrá-las. De acordo com Jean-Claude Bernadet
(2004) para Kiarostami, é um perigo que o cinema se limite a apenas contar histórias.
Sua intenção é mostrar as particularidades do mundo real e cotidiano, e o faz de modo a
não trabalhar com atores profissionais, filmando e explorando as paisagens naturais, e
nesse sentido, tenciona os limites da ficção e do documentário.
Esses limites entre ficção e documentário, portanto, tencionam a
produção dos filmes que oscilam nesses polos e Machado (2011) defende uma postura
de que na verdade, o que precisa ser revisto é o próprio termo documentário. É difícil
delimitar o que caracteriza o documentário, e por isso sua definição, se dá por aquilo
que não é, “não-ficção”, mas, o autor defende que atualmente está acontecendo uma
expansão do conceito, bem como sua superação, já que é complexo determinar todas as
formas de fazer documentário que podem existir. O autor enumera algumas, como o
documentário híbrido, o falso documentário, o metadocumentário, o documentário
sonoro, a animação documental e o documentário machinima, para explorar que não
existem formas neutras e fechadas de se construírem ideologias e representações em
relação aos ideais filmados.

3.4.2 ENTRE O ROAD-MOVIE E O FILME-CARTA: UM PERSONAGEM EM


CRISE PELA ESTRADA
68

O deslocamento humano ao longo da história, sempre existiu seja como


forma de expedição, necessidade e/ou sobrevivência. As narrativas históricas que datam
o surgimento da humanidade relatam, portanto, as movimentações pelo espaço
geográfico. Alia-se a essa compreensão de movimento pelos lugares, a ideia de viagem
e deslocamento, à descoberta de novos espaços, a partir de atividades de exploração,
conquista e colonização de novos territórios. Presume-se, neste sentido, que a viagem
pode estar relacionada ao ato de deslumbramento ou estranhamento com o novo a partir
das experiências que o viajante conheceu.
A abordagem discutida neste texto compreende a viagem como marcada
pela aventura em seu sentido do acaso, do destino e do inesperado. Nesse processo, o
viajante ao se deparar com o novo, conhece o outro, outras culturas, outros lugares
outros tempos e espaços que podem causar-lhe o estranhamento e a descoberta de si.
Assim, a viagem como movimentação pelo espaço, em busca de novas experiências e
novas descobertas, ocasionam distintas aprendizagens e formas de ver o mundo.
No cinema, essa compreensão de viagem, abordada pelo gênero road
movie representa as travessias e as histórias que se passam durante as viagens: as
narrativas de viagem. O gênero road movie desdobra-se a partir de outro gênero
cinematográfico, o western norte americano, em que seu enredo baseia-se no
deslocamento dos personagens explorando e conquistando novos territórios, e na
necessidade de busca por meio da estrada. Traz a mobilidade e a movimentação pelo
espaço como forma de aventuras e descobertas.
Por outro lado, a viagem não só representa o ato de encontrar incríveis
lugares para satisfazer uma busca pessoal por novas experiências. Segundo David
Laderman (2002), nos filmes de estrada estão presentes também as manifestações de
protagonistas que buscam por meio da viagem uma fuga da vida social regrada. O autor,
ao descrever a cena final de Thelma and Louise (Ridley Scott, 1991), mostra que este
filme traz o impulso central dos road movies: “rebelião contra normas sociais
conservadoras” (LADERMAN, 2002, p. 1). Ainda segundo este autor, nos road movies
a estrada é um elemento essencial que caracteriza o “curso da vida, o movimento do
desejo e a sedução da liberdade e o destino”, em que garante ao viajante direção e
propósito. A estrada, ao mesmo tempo que “fornece uma saída para nossos excessos,
seduz nosso desejo por emoções e mistérios”. (LADERMAN, 2002, p. 2).
69

O protagonista, personagem aventureiro, em movimento pela estrada,


centra-se na narrativa com base em seus relatos de viagem, que o constroem de um
modo diferente. De acordo com Marcio Markendorf (2013), os road movies se
estruturam de igual modo às literaturas de aventura, entretanto, nos filmes de estrada a
viagem assume um caráter distinto das narrativas de aventura, pois, a paisagem
geográfica uma vez explorada na aventura, cede lugar à “paisagem humana” nos filmes
de estrada, por serem histórias sobre construção de identidade e descoberta de si, e não
histórias que tratem de conquistas territoriais. (MARKENDORF, 2013, p. 3).
Timothy Corrigan (1991) destaca que os road movies emergiram,
sobretudo, na década de 1950, relacionando os impactos da segunda grande guerra, ao
homem e às máquinas. O autor constrói uma compreensão dos filmes de estrada em
relação à diferença dos gêneros feminino e masculino, já que os road movies,
respondem à uma “fratura” histórica e cultural, onde o homem foi tradicionalmente
suporte do cinema dominante. (CORRIGAN, 1991, p.142)
Os filmes de estrada, com base nesta caracterização da viagem como
propulsora de uma mudança e desenvolvimento dos personagens, dialogam com
aspectos que configuram os romances de formação. Na crítica literária, o conceito
“romance de formação” é traduzido da junção alemã Bildungsroman, que surgiu no
século XVIII e remete ao processo formativo de um personagem ao longo de sua
trajetória descrita na narrativa. Nessas narrativas, o personagem principal tem sua
história contada com base em seu crescimento espiritual, moral, religioso, político,
social, físico ou psicológico. A proposta dos romances de formação é mostrar a jornada
em evolução dos personagens.
Compreende-se o conceito de “romance de formação” como
contemplativo dos processos formativos, das mudanças e do desenvolvimento do
personagem na narrativa. De acordo com Cristina Ferreira Pinto (1990),
O “bildungsroman” apresenta as consequências de eventos externos sobre o
herói, registrando as transformações emocionais, psicológicas, e de caráter
que ele sofre. Há uma ênfase, portanto, no desenvolvimento interior do
protagonista como resultado de sua interação com o mundo exterior. (PINTO,
1990, p. 10)

Ao caracterizar este gênero literário, a autora nos chama atenção para a


representação da personagem feminina, e mostra que somente a partir de 1972 com os
estudos de Ellen Morgan, ao afirmar que o Bildungsroman seria um “caso masculino”, a
70

personagem feminina começa a ser pensada e problematizada, dada sua ausência na


tradição dos bildungsroman.
Pinto (1990) afirma que o bildungsroman pode ser considerado um
gênero ou subgênero da literatura, porém, segundo François Jost (apud PINTO, 1990,
p.10) este “não constitui uma categoria isolada”, sobretudo, na literatura moderna, pois,
possui um caráter híbrido.
Segundo a autora, os poucos romances de formação que traziam
personagens femininas, relacionavam as aprendizagens à preparação para o casamento e
a maternidade, sendo as experiências e o espaço formativo muito limitados, “não
havendo margem para seu crescimento interior” (PINTO, 1990, p. 13).
Entretanto, Charlote Brontë em 1847, lançou seu romance Jane Eyre,
grande expoente desta corrente literária que abordou a personagem Jane da infância à
idade adulta narrando suas experiências ao longo da vida, e o modo como as instituições
da família e da escola lhe proporcionaram fortes aprendizagens e maturações. Porém,
muitas escritoras na época, para terem seus trabalhos reconhecidos, adotavam
pseudoanônimos masculinos, como Mary Ann Evans que ficou conhecida apenas por
George Eliot.
No caso de Tão longe é Aqui, o romance de formação em seu aspecto
formativo contempla as aprendizagens de uma mulher viajante, que para além da
discussão e reflexão sobre a maternidade (tema recorrente no filme) traz os debates e
perspectivas políticas e sociais em meio a uma “rede” de culturas e mulheres, que
apresentam suas vidas e seus desafios em meio a um mundo intolerante e machista,
atualizando novos debates sobre a tradição dos bildungsroman, como aponta Pinto
(1990).
Assim como nos romances de formação, nos road movies a trajetória do
viajante aventureiro carrega acontecimentos, que culminam em experiências e
aprendizagens do personagem protagonista. Marcos Strecker (2010), coloca que o road
movie “é parente da literatura de aventura” e “em certa medida, uma expressão
contemporânea do romance de formação” (STRECKER, 2010, p. 26). Para o autor, nos
filmes de estrada, os personagens entram em jornadas de descoberta e busca pelo
desconhecido.
Por meio dos acontecimentos da viagem de Eliza, entendemos que
ocorreu um processo de desenvolvimento, amadurecimento e transformação da
71

narradora, cuja jornada permitiu-lhe compreender sua situação de ser mulher por meio
de histórias e encontros com outras mulheres. Por intermédio do outro e do
estranhamento a outras culturas e lugares, a jornalista experimentou um mundo novo,
que a impulsionou a construir um novo olhar sobre aquelas mulheres daqueles países
pelos quais passou, e com base nesta caracterização dos road movies, o longa pode ser
compreendido e analisado dentro desta chave.
Em relação ao filme-carta, interpretamos que a escolha feita por Eliza, ao
contar a história por meio de uma narrativa endereçada, representa certa liberdade em
abordar temas complexos e polêmicos. O filme-carta também estabelece uma relação
ímpar com a tecnologia por ser adaptável à diferentes técnicas e pode ser pensado com
base em regras internas, próprias dos realizadores. Cezar Migliorin (2015), argumenta
que o cinema produz uma imagem que diverge da realidade, em relação àquilo que foi
filmado. Portanto, ao adequar o filme e realidade, existe um processo que é violento, por
proibições em representar determinados assuntos, e no filme-carta, existe um espaço
que é pedagógico ao desafiar os realizadores à um lugar ante a realidade. Cada filme
molda uma forma de ver o mundo, e o filme-carta possibilita um trabalho múltiplo, com
base em diferentes possibilidades em relação à imagem, do ponto de vista adotado e da
montagem.
O autor ainda pontua que no filme-carta, assim como nas artes em geral,
“o público é inventado na própria obra, ele não preexiste como um consumidor que
deve ser atendido, ou criado com o produto” (MIGLIORION, 2015, p. 158).

Por um lado, elege-se um destinatário - a mãe, o amigo, uma outra


cidade, o mundo - constrói-se uma relação dual entre aquele que
escreve e aquele que recebe a carta. Por outro, não há apenas dois: é
de um filme que se trata e este será visto em grupo, no cinema
eventualmente. O filme-carta traz assim um fio estendido que vai do
realizador ao destinatário, mas que ao chegar ao destinatário já vai
rachado, aberto a uma multiplicidade de destinatários que o cinema
virtualmente possui. Essa linha rachada é parte de uma máquina
cinema que opera na fragilidade do gesto da carta e, ao mesmo tempo,
na busca do espectador qualquer (MIGLIORIN, 2015, p. 158)

A escolha do destinatário de uma carta exerce a função de não somente


endereçar o filme a um público, mas movimenta o realizador ou a realizadora a engajar-
se na forma como irá apresentar o mundo à essa pessoa. Em Tão longe é Aqui, a escolha
de Eliza de destinar a carta a uma filha, simboliza a maternidade que tem espaço
72

suficiente para erros, desculpas, embaraços e recolhimentos. Na carta de Eliza, abre-se


um delicado espaço para que as pessoas também possam compreender suas angústias e
estranhamentos em relação à outra cultura.
73

4. REPRESENTAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PORMENORIZADA

Com base em nossas questões de pesquisa: “qual é a percepção de uma


mulher que filma?; “o que dizem (como educam) as imagens produzidas neste
encontro?”; e “como o gênero (sexualidade) se endereça como gênero
cinematográfico?”, o trabalho pretendeu explorar e interpretar as imagens feitas por
Eliza Capai apresentadas no longa-metragem. Para tanto, utilizamos a ideia de “imagem
agente” desenvolvida por Almeida (2009).
As imagens agentes, por constituírem-se de discursos próprios, contam
uma história a partir de uma referência única. Portanto, para este trabalho, após
apresentarmos uma revisão/discussão teórica e bibliográfica de autores e autoras tanto
para entendermos a educação visual, como para compreendermos o modo e o contexto
em que as mulheres produzem filmes, fizemos uma interpretação das imagens agentes
do longa-metragem que nos possibilitaram perceber e assimilar algumas ideias e
conceitos que o filme explora.
Manuela Penafria (2009) coloca que este processo de “análise fílmica”
consiste de modo geral em duas etapas, quais sejam: decompor (descrever) e em seguida
estabelecer e compreender as relações entre esses elementos decompostos, ou seja,
interpretar. Portanto, escolhemos quatro mulheres que guiaram nossa compreensão do
filme. Quatro personagens que delinearam um entendimento da narrativa por
simbolizarem aspectos que nos permitiram explorar suas vidas e suas colocações em
diferentes perspectivas: Siham, Hawa, Awa Mente, e a própria Eliza.
Siham representa uma voz feminina que reflete certa surpresa (construída
por (pre)conceitos) que se tem ao lidar com tal força voraz, que se manifesta sob um
discurso notável e encantador. Hawa, representa uma voz feminina e natural da firmeza
e da própria fertilidade. Aparece amamentando, trabalhando, é desafiada e desafia. Awa
Mente, simboliza o poder mental da comunicação, das mudanças, da sabedoria e da
liberdade, as ideias em expansão. Por fim, Eliza, narradora e personagem, representa a
mutação e a fluência constante dos aspectos da vida que nunca permanecem no mesmo
lugar, mostrando que nada é eterno ou imutável. É também um símbolo de germinação
e absorção, associada à capacidade de adaptabilidade do ser humano.
Para tanto, separamos em partes distintas os enquadramentos em que
apareciam e dos áudios, como forma de decompor o que é imagem do que é
74

interpretação. Segundo Penafria (2009) o filme deve ser “desconstruído” para sua
interpretação, assim, é importante que se descreva os planos, as sequências, os
enquadramentos e os sons, e assim reconstruí-los por meio da compreensão e da
interpretação dessas partes. No caso das imagens agentes, separamos o áudio e o
enquadramento para que pudéssemos obter um significado desses dois aspectos.
Penafria (2009) ainda destaca que nos documentários existem algumas
características a serem consideradas na interpretação como o aspecto visual e sonoro
para reconhecer os ângulos que são filmados os personagens e demais objetos e como as
vozes e os sons acompanham esses momentos; o tipo de narração, identificando quem
faz a narração, que em Tão longe é Aqui é notadamente marcado por uma narradora-
personagem/observadora presente e onisciente, e por fim, a compreensão do sentido
ideológico, caracterizando a posição do realizador em relação aos temas abordados pelo
filme.
Nesse sentido, a autora avalia que a compreensão externa do filme
(fontes bibliográficas e pesquisa documental) auxiliam uma interpretação complementar
e paralela aos temas que o filme traz. No caso de Tão longe é Aqui, a compreensão
externa do filme se deu pelo recorte bibliográfico, de acordo com as autoras que
estudam o filme feito por mulheres, junto a autores que propõem uma educação visual
por meio de imagens. Com base nas imagens do filme, utilizamos o dicionário de
símbolos que representa também uma escolha bibliográfica, como uma forma de
significar alegorias ocidentais presentes no longa-metragem.
Na concepção visual da imagem são empregados elementos que a
compõem a partir de suas linhas, formas, volumes e texturas. A imagem manipula o
espaço tridimensional, recriando outros sentidos, explorando as relações entre luz,
sombra e cor. Todos esses aspectos da imagem movem-se com a narrativa, de acordo
com o ritmo do realizador e suas escolhas sonoras, assim como esses ritmos
desenvolvidos, por meio de metáforas e simbologias comunicam ideias por meio das
falas, dos gestos, das músicas, das paisagens, das escolhas visuais e verbais.
Laurent Jullier e Michel Marie (2009), propõem “lermos” as imagens do
cinema em dois momentos: a nível do plano e a nível da sequência. A nível do plano,
observamos quais as relações entre um corte e outro (como nos intervalos
significativos), e consequentemente, a nível da sequência, observamos se a relação entre
os planos, cria um discurso, uma história e uma narrativa.
75

No nível do plano, procuramos descrever qual o ponto de vista e a


angulação da câmera, se havia profundidade de campo e quais aspectos sonoros
conduziam cada cena. No nível da sequência, avaliamos a relação entre os planos
(montagens e cenografia) e como essa relação produziu significados e sentidos em nossa
interpretação. No nível do filme, caracterizamos os gêneros documentário, road-movie e
filme-carta que delineiam os traços estilísticos de Tão longe é Aqui.
Em relação aos motifs24 e as alegorias, com a intenção de percebemos
quais detalhes adquiriram significado por meio da repetição, notamos que as paisagens
naturais (mar, água, areia, deserto e terra) e as filmagens em primeiro plano reforçaram
as ideias principais do filme, em relação ao feminino e sua relação com a natureza e a
gestação (germinação, fertilidade) e uma postura mais “jornalística” de Eliza, ao filmar
as mulheres sempre em primeiro plano. As alegorias, correspondem às simbologias que
Eliza escolhe e filma, como forma de reafirmar tais imagens.
Para introduzir os aspectos técnicos e característicos do longa-metragem,
dividimos as próximas seções em subdivisões que apresentam o filme e sua proposta, a
viagem de Eliza e os países pelos quais passou e o modo como entendemos as relações
que foram estabelecidas ao longo da narrativa pelas imagens e sons que formam Tão
longe é Aqui.

24
Os motifs referem-se aos elementos que se repetem por terem um significado expressivo na narrativa.
76

5. TÃO LONGE É AQUI: SOBRE O LONGA METRAGEM

Em 2010, a jornalista brasileira Eliza Capai embarcou para o continente


africano para visitar e conhecer seis países, com a proposta de ouvir histórias de
mulheres daqueles lugares. A jornalista, responsável por documentários e curtas
metragens que retratam e apresentam a vida de mulheres, produziu diversas matérias
para o canal brasileiro de televisão GNT. Suas matérias foram apresentadas em
programas com temáticas sociais, políticas e de gênero. A proposta de ir para África
emergiu nesse contexto de produção, por isso a ideia de descobrir quais eram as formas
e peculiaridades de construir-se como mulher nos países africanos.
Sua motivação foi procurar os países com determinados problemas
sociais que relacionassem com as questões de gênero. Por isso, decidiu conhecer Cabo
Verde para compreender como se dava a falta de água no país; Marrocos para conhecer
uma mulher que havia se divorciado em um país islâmico; Mali e a questão da
poligamia e mutilação feminina; África do Sul para conhecer um time de futebol
formado por mulheres lésbicas e a luta contra o estupro “corretivo”, e Etiópia.
As filmagens iniciaram-se em 2010, e a jornalista passou seis meses no
continente visitando esses países e conhecendo mulheres protagonistas de fortes e
emocionantes histórias. Ao voltar da viagem, Eliza juntou-se ao produtor Daniel
[Augusto, co-roteirista) para estudar as possibilidades de produção de um longa-
metragem a partir das imagens produzidas durante a viagem.
Em 2013, lançaram então o longa metragem Tão longe é Aqui cujo
enredo narra a história da viagem da jornalista em meio a história das mulheres, lugares,
tempos e espaços que vivenciou. Foi estreado no dia 08 de outubro de 2013 e pré-
estreou no Festival Internacional de Cinema Feminino (FEMINA), com prêmio especial
do júri. No Festival do Rio, (estreia oficial) ganhou o prêmio de melhor filme na Mostra
Novos Rumos, e atualmente é exibido pelo Canal Curta, canal brasileiro de televisão.
Em setembro de 2017, Eliza Capai aceitou meu convite e conseguimos
fazer uma entrevista25. Nesta conversa, apontou suas percepções da viagem e suas
experiências para além daquilo construído na narrativa fílmica, a montagem e
elaboração do longa e discutimos sobre as possibilidades, formas e jeitos das mulheres
transformarem a arte, uma arte feita por mulheres, com as percepções de ser mulher em
um mundo machista.
25
Anexo.
77

O longa Tão longe é Aqui, interpretado na chave dos gêneros fílmicos


oscila e cruza os limites e possibilidades do road movie, do documentário e de um
filme-carta.
Considerando o gênero road movie, apresenta a viagem feita por Eliza
em alguns países do continente africano. A partir do filme e suas imagens é possível
observarmos elementos que o constituem como um road movie, como a estrada, e os
meios de transporte pelos quais a jornalista se locomoveu pelo continente, mostrando
belas paisagens naturais.
No filme, é visível o modo como a personagem, narradora e viajante
passa por um processo formativo de sua constituição de ser mulher por meio de outras
mulheres, histórias e estranhamentos, processos esses que despertaram mudanças em
seu desenvolvimento, a partir das experiências e vivências que protagonizou em sua
viagem.
Para além da viagem realizada, o longa metragem também pode ser
pensado na chave do documentário a partir dos modos de produção da narrativa em
relação à maneira que Eliza explora os lugares, os espaços, as culturas, as modas, as
cores e aquelas mulheres. Esse enquadramento no documentário, no entanto, refere-se a
um modo mais crítico de estudá-lo e compreendê-lo, já que nas imagens e fotogramas
em sequência das imagens produzidas, é construída uma forma de perceber e sentir
aquelas mulheres naqueles países. Essas imagens em sequência não são aquelas
mulheres. As imagens constroem uma percepção daquelas mulheres, que é a percepção
de Eliza, mulher viajante, branca, brasileira, formada em uma faculdade ocidental,
portanto, formada dentro de uma lógica, dentro de um feminismo estruturado.
A quebra deste paradigma ético e representacional tem seu fechamento
(ou talvez sua abertura) no modo como a jornalista escolheu narrar os acontecimentos:
por meio de uma carta. De modo particular e simbólico, a carta é um gênero textual que
se permite uma abertura mais subjetiva e íntima, que, longe de narrar a verdade sobre
aquelas culturas e aquelas mulheres, narra aquelas culturas e aquelas mulheres na
percepção de Eliza.

5.1.1 TÃO LONGE É AQUI: OS PAÍSES E AS MULHERES


78

Cabo Verde foi o primeiro país que a jornalista aterrissou. São narradas
suas primeiras palavras com a filha, por meio da carta, contando sobre a aventura que
estava por vir. Primeira vez cruzando o Atlântico, prestes a completar 30 anos em uma
jornada de conhecimento, busca e aprendizagens com outras mulheres e culturas. No
momento que começa a carta, Eliza reflete sobre a questão do tempo e o medo de não
conseguir realizar seus sonhos.
O segundo país que a jornalista passou foi Marrocos. Lá, relata seus
primeiros estranhamentos com a não presença das mulheres nos estabelecimentos
comerciais, como o restaurante que estava almoçando um tradicional cuscuz. Conhece
Fatima e Laila admirando o mar e Assia que descreve seu caso de separação em um país
islâmico. Nesse país Eliza entrevista Siham, que se descreve como africana, árabe e
mediterrânea. A fala de Siham é muito segura em relação à sua visão de mundo. Ao
falar sobre identidade, tolerância e feminismo, afirma que um grande problema
ocidental, é a visão equivocada sobre os extremismos orientais, afirmando que o
“excesso de ocidentalismo também é uma forma de intolerância” (TÃO LONGE...,
2013) e finaliza se pronunciando sobre a ideologia feminista e a questão do véu, que
cobre o corpo, simbolizando o respeito à mulher, pois, uma vez vestidas desta maneira,
as olhamos no rosto, já que não são somente um corpo.
O forte discurso de Siham, fecha seu rosto em close e conduz à próxima
cena em silêncio, apenas mostrando paisagens naturais até que a jornalista, por meio de
um tradutor, entrevista uma mulher berber26. Eliza pede ao tradutor que a pergunte se
gosta das roupas que usa, e ele se nega a fazer a pergunta.
Mali foi o próximo destino da jornalista. Ao chegar na rodoviária, na
capital do país (Bamako), Eliza filma algumas crianças a olhando, e a comparando com
uma boneca branca. As crianças mostram a boneca dizendo “a branca, a branca”. Eliza
relata na carta que era a única pessoa de pele branca no lugar e se sentiu envergonhada
por isso. Esperou por três horas o ônibus sair para seu destino: Pays Dogon, uma vila
afastada da vida moderna da cidade grande, sem eletricidade e água encanada, porém

26
Os berberes são povos autóctones (naturais do norte da África). Segundo Abdallah Laroui (1994), os
povos autóctones sempre tiveram sua história contada sob o olhar estrangeiro, pois, a região do Magreb
(região noroeste da África que inclui Marrocos, Argélia e Tunísia), recebeu a invasão de muitos povos,
como gregos, fenícios, bizantinos, romanos, árabes e por isso o historiador explica que são importantes
estudos que compreendam esses povos com base em sua história, pelo seus próprios pontos de vista. Os
berberes se dividiram em vários povos, sendo indefinida se sua origem é ocidental ou oriental. Receberam
variadas nomeações, como lebu, lebou, líbios e mouros. A língua falada é a tamazight (tamazigue), que se
desdobra em outras línguas e dialetos (SILVEIRA, 2017).
79

um destino procurado por turistas que almejam vilarejos históricos, com arquiteturas
milenares.
Seu último roteiro, África do Sul, conheceu um abrigo que cuida e
hospeda pacientes HIV positivos, sob os cuidados de Patience, uma encantadora
professora que conta sua luta de ambição e superação em relação ao vírus. Eliza
também conheceu um time de futebol de lésbicas, que se unem contra o machismo, e o
“estupro corretivo” (prática para “corrigir” as meninas).
No roteiro de Eliza, a Etiópia também estava presente, mas as filmagens
do país aparecem no filme não com um lugar programado, mas como imagens, com as
narrativas de Eliza sonhando.
A jornalista finaliza o filme após seu encontro com a cantora Omagugu, e
ao som de sua música, conta o que deseja para sua filha, e retoma a carta dizendo
esperançosa que comemorará seu aniversário de 30 anos e espera um dia voltar, quando
a filha (aqui Eliza narra sua vontade de um dia querer que a filha exista de verdade,)
também completar a mesma idade.

5.1.2 TÃO LONGE É AQUI: APRESENTAÇÃO SIMBÓLICA

As meninas e mulheres filmadas por Eliza, em sua quase totalidade são


filmadas sempre em close. O aspecto do documentário, neste caso, nos traz a sensação
de aproximação com o real. A filmagem em close-up revela as pessoas como são, já que
a expressão facial demonstra a forma mais subjetiva das pessoas. Mais que a fala, a
representação da face demonstra gestos mais subjetivos e dramáticos simbolizando o
espírito lírico e poético do diretor. Para Bela Bàlazs (apud Xavier, 1983) a expressão
facial é completa em si mesma, não havendo necessidade de compreendê-la no tempo e
espaço. O autor define close-up como as imagens que expressam a sensibilidade poética
do diretor. Mostram as faces das coisas e também as expressões, que nelas, são
significantes porque são reflexos de expressões de nosso próprio sentimento
subconsciente (BÁLAZS apud XAVIER, 1983, p. 91).
A realização fílmica de Tão longe é aqui mostra uma postura de câmera
que ao expor essas mulheres, revela o comportamento e enfrentamento diante da
câmera, como é o caso das histórias contadas pelas integrantes do time de futebol de
lésbicas, na África do Sul, que se mostram para a câmera, encarando-a e enfrentando-a
80

ao exporem seus sofrimentos e preconceitos vividos. Essas mulheres produzem um


enfrentamento diante do olhar fetichista masculino.
Em Cabo Verde, Eliza conhece Windia, uma garotinha que veio da Guiné
com a mãe para Cabo Verde e desperta em Eliza suas primeiras reflexões maternas. A
jornalista pergunta a Windja qual seu livro preferido, e depois da garota responder
“Cinderela”, solicitou à menina que lhe dissesse qual seria seu pedido se lhe aparecesse
uma fada madrinha. É notável na expressão da garota a mudança em seu sorriso e seus
olhos, ao refletir sobre a possibilidade de escolher qualquer coisa para se realizar.
Windia deseja uma casa, que seja grande, linda e acomode um quarto só para ela. Eliza
filma a menina em close-up e inicia as narrações com indagações sobre como seria a
vida de sua filha se tivesse nascido naquele vilarejo. As narrações são visualizadas em
cenas embaixo da água e Eliza reflete a vida de sua filha naquela menina. Seus sonhos,
desejos e imaginações, que pouco seriam influenciados pela presença de seu pai.
No Marrocos, Eliza tem encontros muito significativos, transformadores
e movimentadores. Para esta interpretação, Nichols (2005) aponta alguns aspectos que
envolvem o documentário, em especial o documentário participativo, que dialogam com
a perspectiva adotada pela jornalista ao entrevistar as mulheres africanas.
O modo participativo de documentário, compreende os princípios morais,
éticos e políticos do encontro, “um encontro entre alguém que controla uma câmera e
alguém que não a controla” (NICHOLS, 2005, p.154). Neste sentido, questiona “quanto
um cineasta pode insistir num testemunho, quando é doloroso para o outro prestá-lo?
Que responsabilidade tem o cineasta pelas consequências emocionais de ser filmado?
(NICHOLS, 2005, p. 155, [grifos meus]). Portanto, a presença da cineasta causa certo
impacto na cena, assim aquilo registrado e nos ensinado vai depender deste encontro.
No Marrocos, na cena em que entrevista a mulher berber, Eliza não
insistiu para que o tradutor interrogasse a mulher e aceitou o “não” como resposta de
sua pergunta. No entanto, a questão posta neste contexto, é de amplitude cultural.
Fatima Sadiq (2008) analisa que o Marrocos possui uma cultura que regula a vida de
homens e mulheres, de modo que o comportamento e o pensamento são alterados pela
postura cultural dos marroquinos. Com isso, estereótipos são criados e culturalmente
passados a cada geração em relação às mulheres, já que a história do país tem sido
oficialmente contada pelos homens e a representação feminina é formada com base no
ponto de vista masculino.
81

De acordo com a autora, o legado histórico, passado de modo oral pelos


marroquinos aprofundou o abismo entre os sexos e seu impacto tem se acentuado pelo
status da história escrita como uma instituição “venerada” no contexto sociocultural
marroquino. A íntima associação entre a história nacional do Marrocos e as línguas
escritas a distancia ainda mais das mulheres, cuja assustadora maioria é ainda analfabeta
e, portanto, ignorante da própria história escrita do Marrocos. (SADIQ, 2008, p.15)
A autora mostra que a questão da língua é um forte elemento que impacta
na diferenciação entre homens e mulheres, sobretudo as mulheres pobres. A fala, na
cultura do Marrocos é importante como formadora de laços entre as pessoas, já que a
oralidade é uma das principais características culturais do país. Portanto, a fala e a
oralidade, como significativos meios de comunicação, moldam as representações dos
papeis sociais de homens e mulheres. No caso das mulheres marroquinas, sendo a
maioria analfabeta, a oralidade é um poderoso aliado, já que suas histórias e
ensinamentos são exclusivamente passados por meio oral, uma vez que não têm acesso
aos textos escritos.
As cenas que seguem após o encontro com a mulher berber, têm a estrada
como condutora das reflexões de Eliza sobre o futuro da filha, casada com homem
marroquino. Novamente, a jornalista se questiona como seria se a filha tivesse nascido
naquele lugar, e narra uma situação em que a filha, casada com Farid (nome árabe
comum), vivenciava uma diferente experiência cujos papeis sociais do homem e da
mulher foram trocados, em um Marrocos futuro, onde as mulheres não usavam mais
véus, e os homens andavam pelas ruas se sentindo espantados de vê-las caminhando
livres. A história termina com a infelicidade de Farid viver essa situação, desejando que
essa realidade desaparecesse. A narração demonstra certo estranhamento e desgosto de
Eliza com base em seus encontros e experiências no Marrocos.
No Mali, Eliza se hospedou no telhado da casa de Hawa, professora da
vila, única falante da língua francesa. Seus diálogos com Hawa são bastante profundos,
labirínticos e emblemáticos. Hawa é fruto de um casamento poligâmico, pediu que Eliza
pagasse por sua entrevista com ela, explicitando a diferença entre elas devido a sua cor
da pele e relatou sua condição de vida, de trabalhos árduos.
Hawa comenta sobre a vida em Pays Dogon, sobre as mulheres
trabalharem muito devido à falta de água encanada e recursos, e sente-se inferiorizada
em relação a essa situação por dizer que diferente da cidade grande, onde há a luz, no
82

vilarejo há a escuridão. Podemos interpretar essa relação que Hawa estabelece se


sentindo inferiorizada em relação às pessoas que moram na cidade grande, comparando
a vila em Dogon com a “escuridão”. “Na cidade, muita gente fala francês, eles são
civilizados, eles foram à escola. Aqui tem a escuridão. Mas lá na cidade não tem a
escuridão, tem a luz” (TÃO LONGE...2013). E assim, Eliza começa suas reflexões
sobre pagar pela entrevista de Hawa, e sua infelicidade ao ler um guia de viagens sobre
o Mali em que descreviam a poligamia masculina e a mutilação como práticas do país.
Eliza filma algumas meninas cantando, algumas paisagens naturais e revela seu lado
materno colocando a filha mais uma vez naquela situação e pela primeira vez revela a
dificuldade de fazer a matéria sobre esse tema.
Na sequência mostra paisagens naturais noturnas, com a intenção de
desvelar seus sonhos. Notamos que em algumas cenas do filme aparecem filmagens
realizadas na Etiópia. Essas cenas tem o objetivo de expressar os sentimentos mais
subjetivos da jornalista. Todas as distâncias, estranhamentos e perturbações são
registradas na forma de sonhos, para assim simbolizar o lugar do subjetivo em choque
com a realidade.
Após filmar Hawa, narra encontrar uma mulher africana e as duas se
olham. A moça repara em sua cor, seu corpo, seu cabelo, suas roupas e o estranhamento
é mútuo porque, a jornalista, embora narre que a moça a observava reparando em tudo
que estava “errado” nela, também a está observando, reparando, filmando. O errado,
assim como o certo, está nos dois lados. Mas não se trata de uma dicotomia de
oposições, mas dicotomias (entre certo e errado) dentro de uma dicotomia. Se
pensarmos na questão “luz” e “escuridão”, interpretamos que Eliza, em sua claridade de
branca, buscou a escuridão em algumas questões culturais, como a mutilação
(escuridão), mas notamos que encontrou sua escuridão, dentro de seus próprios
posicionamentos.
83

Figura 11 Sequência de cenas. Africana observando Eliza com a câmera. Etiópia, 2010.

No Mali, ao ser comparada à boneca, e presenciar a poligamia e a


mutilação, mostra a forma como era vista, como uma mulher branca. São elementos que
incorporaram-se na narrativa e que por meio do estranhamento à outras mulheres, Eliza
se reconheceu como essa mulher branca, ocidental e privilegiada em termos legislativos
(em relação à poligamia, por exemplo).
A jornalista, portanto, assume sua postura de viajante, e estranha àquela
cultura revelando mais uma vez não entender aqueles lugares, aquelas organizações,
aquelas sociedades e aquelas mulheres. Na festa da vila, relembra seu antigo amor, cuja
desilusão amorosa impulsionou sua jornada, e outra vez coloca sua filha naquela
situação, de moradora do vilarejo, repleta de sonhos apagados por aquela condição de
vida, e o aperto de imaginar essa situação, a faz caminhar sozinha pelos vilarejos. Ao
conversar com outras mulheres de Pays Dogon sobre a poligamia menciona o fato de
viver em um país com leis diferentes em relação ao casamento e mais uma vez notamos
as diferenças abissais que contornam sua vida de mulher branca e ocidental.
Uma questão aparente no filme é forma como a jornalista aborda os
poucos homens que aparecem em sua trajetória por esses países. O pouco contato que
teve com essas figuras masculinas, foram em situações lastimosas mostrando o desprezo
e a desconsideração com a jornalista e aquelas mulheres, como o tradutor que se negou
a fazer a pergunta à mulher berber e o guia do Mali que dormiu no roteiro de passeio.
84

Os encontros em Dogon a deixaram muito perturbada, e narra na carta


sua insuficiência e limitação ao compreender as experiências que vivenciou na vila. A
sequência seguinte, mostra mulheres manuseando um tear, e depois, a jornalista inicia
um diálogo com uma socióloga africana para admitir suas incompreensões e procurar
entender um pouco mais sobre a cultura do país.
Metaforicamente, o tear representa a construção paulatina dos fios que
criam tecidos e histórias. Os fios podem estar emaranhados, fissurados e formar um
tecido. A metáfora do tear compreende a mesma situação ao analisarmos a história que
Eliza construiu com base em seus encontros. Os rompimentos e as sobreposições, assim
como acontecem nos tecidos, formam as histórias com base nos encontros. São
passagens que preparam um imaginário e o olhar atencioso aos rasgos, espaços e
fissuras impedem a criação de uma narrativa única.
Awa Mente, a socióloga, comenta a importância de cada sociedade fazer
sua própria análise e que não há um modelo perfeito da situação da mulher. Segundo
ela, estamos em um momento em que as mulheres devem falar por si mesmas, pois, as
sociedades e as culturas possuem estruturas diferentes. A sequência de Eliza
conversando com Hawa, refletindo sobre a mutilação, entrevistando Awa Mente e
finalmente falando de si, fantasia uma narrativa pensada a um determinado público.
Ao idealizar a estrutura fílmica e a sequência das cenas, interpretamos
que as imagens nos mostram uma realidade que se desvincula de sua narração. É nesta
chave que as aprendizagens e interpretações ocorrem, pois, elas justamente acontecem
dentro daquilo que erra, que escapa, que foge. Por isso, a forma como Eliza absorveu
sua vivencia em relação à mutilação e à escuridão citada por Hawa implodem na fala de
Awa Mente que desconstrói evidências. Essas imagens, nesse sentido, “mostram” aquilo
que “escondem” pois, requerem uma postura diferente do espectador e da espectadora.
O filme é uma composição desses erros e por isso o resultado final é
muito diferente da proposta inicial, e considerar esses erros e deslocamentos é assumir
um lugar para sua interpretação, como se Eliza tivesse que desmanchar o “tapete” que
havia pensado e construído, para compor com outros fios que ela viu pelo caminho, pela
trajetória, sob o risco de produzir uma visão falha das percepções, mostrando um
símbolo do outro sem dar elementos mínimos para essa compreensão, por isso, não
filma a mutilação.
85

O diálogo com a socióloga desencadeou o grande desfecho da busca de


Eliza. Após esse encontro, a jornalista narra, portanto, sua grande desilusão amorosa.
Eliza filma o deserto em um fim de tarde, vazio, frio, desabitado, simbolizando sua
solidão. Após os encontros, as vivências, as experiências e a não compreensão de
algumas situações, a fez reconhecer seus questionamentos e suas falhas. De modo
poético, ao filmar o deserto narra o quanto se doou ao antigo homem, que não a via,
usava diferentes máscaras, com diferentes histórias e ela, que o amava, transformou os
enganos em “pedaços de barro”, e engoliu os pedaços, até que virou barro também.
Em seu último suspiro, escapou, arrumou a mala, cruzou o Atlântico, e
vomitou todo o barro no meio do deserto, revelando que precisou sair de tão longe, para
chegar “aqui” (representando sua busca interna). A frase, que faz menção ao título do
filme, revela, portanto, que todas mágoas, desentendimentos e o grande propulsor da
viagem, a desilusão amorosa, foram superados, ao “vomitar o barro no deserto”. Ao
narrar “tive que vir tão longe pra chegar aqui”, a jornalista vira a câmera para seu rosto,
filmando seu olho em plano detalhe. O close em seu rosto junto a frase manifestam o
final de sua trajetória, o fim de uma jornada cuja busca e reconhecimento de sua
identidade como mulher, foram construídos por meio de cada história, cada encontro e
cada aprendizagem.
Notamos nesta sequência que Eliza, ao falar de si, escolhe o deserto
como alegoria para sua narração. No começo no filme, as primeiras alegorias que
remetem à filha, são filmagens do mar. Água e areia, que aglutinadas formam o barro,
que é moldado por Eliza, a partir de seus enganos. O gesto é mítico: moldar o barro e
soprar a vida, e a ação também, como divindades de destruição que engolem (o Leviatã
judaico-cristão, o Cronos Grego, o Ganesha hindu ou o Satã do cristianismo moderno) e
depois criam com isso.
De acordo com Markendorf (2013)
Ao versar sobre encontros e relações entre pessoas em situações de viagem, a
jornada do filme de estrada representa uma metáfora para a busca de uma
personalidade em crise, cuja necessidade de deambulação tem a ver com o
desejo de confrontar-se com novos desafios, sendo o percurso espacial o
dinamizador das andanças para os confins da própria subjetividade
(MARKENDORF, 2013, p.04).

No final de suas reflexões, Eliza desiste da carta, revela não ter uma
filha, considerando uma “babaquice” relatar suas narrativas. No entanto, Eliza segue
relatando suas narrativas de viagem. Desiste da narração materna com a filha, mas não
86

se desfaz do filme. A “babaquice” da carta, da filha, da maternidade, revela uma


expressão da narradora/personagem como um parâmetro fictício de apresentar esses
lugares e essas mulheres, e nesse sentido, após o choque de alteridade com outras
culturas vivenciadas por outras mulheres, produz nos espectadores a sensação de
renúncia ao que se propôs mostrar e narrar à menina fictícia.
Do ponto de vista narrativo, Eliza escolhe uma história para tratar um
tema e à medida que o filme vai mudando, a narrativa acompanha essa mudança. Eliza
não desiste da maternidade como filme e como filha, mas o tema muda e continua
aparecendo, sai do contexto da filha, mas continua na narrativa, por meio de alegorias. É
o erro (a errância), o deslocamento sobre a maternidade que faz essa mudança
acontecer, fazendo a imagem da maternidade agir de um modo diferente sob o fluxo
narrativo, endereçando e contaminando as imagens com um sentido diferente,
construindo uma outra interpretação sobre a mesma coisa.
Eliza tem um fluxo de criação, de moldar e dar a vida, e o da destruição.
Cria e destrói ela mesma. Simbolicamente a menina que era fictícia é renunciada, mas
não no sentido de não existir, porque ela vira real, sendo o próprio prolongamento de
Eliza, pois, a menina deixa de ser fictícia no momento que Eliza assume que a filha é
ela.
Por fim, uma nova mulher, com novas aprendizagens, celebrando a vida,
os encontros e as aprendizagens. A filmagem desta sequência começa mostrando um
pôr do sol, simbolizando um desfecho, um fim, depois segue mostrando a estrada, que
representa sua direção, seu destino e seu propósito, para então, filmar a grama, que aos
dizeres de sonhar que a filha exista um dia, filma um chão florido, simbolizando aquilo
que está por vir, que está a nascer.

5.2. QUATRO EXISTÊNCIAS EM TRÂNSITO

a. Siham

A primeira aparição de Siham, em terras marroquinas, é no


estacionamento de uma famosa rede de supermercados (Marjane). A mulher fala ao
celular segurando a chave do carro. Siham é filmada em plano aberto, em perspectiva, o
que nos permite fazer a relação com o espaço em que está se movimentando. Na
próxima sequência aparece no carro, dirigindo, em ângulo de perfil. As duas cenas,
mostram uma mulher moderna, e muito próxima de uma mulher ocidental em relação a
87

sua roupa e seus acessórios. Siham não usa véu, usa um tipo de roupa mais próximo do
que usam as mulheres ocidentais como a calça e o cabelo mais curto.

Figura 12 - Siham. Marrocos, 2010.

Em sua entrevista, está sentada e é filmada em primeiro plano (close), em


ângulo 3x4. Sua aparição neste caso, assim como quase todas as mulheres que aparecem
no filme, filmadas em primeiro plano, espelham uma postura jornalística de Eliza, que
se preocupa em capturar as expressões de Siham e das demais mulheres. A escolha
deste enquadramento determina qual a distância entre a câmera e a mulher.

Figura 13 - Siham em primeiro plano. Marrocos, 2010.

Siham também é filmada dentro de uma mesquita. Aparece em perfil,


observando o lugar que ilustra um pouco do discurso sobre a monogamia e as leis no
Marrocos e a questão da intolerância.

Figura 14 - Siham filmada de costas visitando um templo. Marrocos, 2010.


88

Siham é uma das poucas mulheres que aparece em vários ambientes e


espaços. No templo, também é filmada em plano aberto, dentro e fora do espaço. Eliza
filma sua caminhada, sua apropriação em diferentes espaços culturais e sociais. Uma
escolha que nos faz refletir sobre a ocupação nesses espaços, já que são espaços
notadamente ocupados por homens. Notamos seu deslocamento e sua liberdade.

b. Hawa
Hawa, moradora da vila de Pays Dogon, no Mali, é entrevistada em sua
casa, onde mora com o marido em uma relação poligâmica, junto com a segunda
esposa. A escolha por entrevistar Hawa se deu pelo fato da mulher, professora da vila,
ser uma das únicas falantes da língua francesa. Em sua conversa com Eliza, é filmada
em primeiro plano, e na sequência também é filmada fazendo os serviços da casa,
preparando a comida, cozinhando, e amamentando a filha. Eliza conversa com Hawa
sentada, sempre em primeiro plano e close. Nos enquadramentos, estabelece-se relações
entre Hawa e seu meio.

Figura 15 - Hawa em primeiro plano. Mali, 2010.

Neste enquadramento o conjunto das cores chama a atenção pelos tons


terrosos, como sua roupa e o cenário, que por meio das cores nos endereça como uma
ferramenta, enxergarmos um clima, uma ‘temperatura’. Neste caso, destaca-se a cor
marrom, que, em geral, relaciona-se à cor da terra. Em algumas culturas simboliza
solidez e humildade, mas sobretudo, indica proximidade com a natureza, e a fertilidade,
uma vez que a terra possui os nutrientes necessários para gerar outras vidas.

Figura 16 - Hawa amamentando. Marrocos, 2010.


89

Figura 17 - Hawa filmada na vila em plongée e contra-plongéé. Mali, 2010.

Em plongée e contra-plongée, Hawa é filmada na vila, primeiro ao lado da lousa,


em que leciona, e depois preparando a comida, de costas, amassando espigas de milho
em um pilão de madeira. Novamente, observa-se as que as cores seguem o padrão
marrom/terroso.

c. Awa Mente

Awa Mente, socióloga africana, é filmada também em primeiro plano.


Embora curta, sua aparição é muito significativa na construção da narrativa, pois, por
meio de um aporte teórico, permite que Eliza compreenda a situação das mulheres em
Pays Dogon, e na África de modo geral. A conversa com Awa Mente é intercalada o
tempo todo por imagens de um tear.

Figura 18 - Awa Mente em primeiro plano, ao fundo um tear. Mali, 2010

d. Eliza Capai

A primeira aparição de Eliza acontece na própria narração da carta para a


filha. O filme inicia com uma imagem do céu, em plano aberto, contra-plongée, e na
90

mesma sequência, Eliza afunda a câmera no mar. Na maior parte do filme, aparece
narrando a carta para a filha. No entanto, em algumas cenas e sequências, a presença de
Eliza se dá por meio de alegorias e imagens agentes que constroem a narrativa e
carregam uma discursividade própria.
Quando desembarca no Cabo Verde, filma os pássaros e muitas
paisagens naturais. Todas são embaladas pela narração da carta. Na cena dos pássaros
voando, narra sua chegada. Sua presença está na liberdade de viajar ao filmar os
pássaros voando. No Mali sua presença aparece em uma boneca branca quando as
crianças ficam insistentemente mostrando pela janela do ônibus que as duas se
pareciam, e depois quando Hawa reafirma a diferença das duas pela cor.
Essas constatações desenvolvem em Eliza sua aparição em uma
filmagem de um vaso de barro e em uma caverna, como alegorias que retratam seus
sentimentos em relação à essas situações.
Eliza é uma personagem que constrói toda a narrativa do filme, portanto
está presente em todo longa-metragem.

5.3. VOZES RESSOANTES

a. Siham

As falas de Siham são embaladas por fortes discursos políticos e


feministas. Inicia sua conversa em inglês e muda para o francês mostrando dominar as
duas línguas.
Seu tom de voz é muito equilibrado e seguro, como se sua mensagem
fosse distinta e importante, por isso denota um tom contínuo e uma intensidade normal,
mostrando que seu timbre e sua respiração estão em controle. A mulher tem uma visão
abrangente da situação de ser mulher no Marrocos e foi entrevistada justamente por sua
forma de perceber seu contexto em um país islâmico. Por isso, explica sobre o
casamento monogâmico e as novas leis em vigência no país. Quando perguntada como
se identifica, diz que se considera árabe, africana e ‘profundamente mediterrânea’.
O mar mediterrâneo é um mar do oceano Atlântico (pela parte Oriental) e
abrange a Europa meridional, a Ásia ocidental e a África setentrional, portanto, suas
águas banham as regiões dos três continentes, e desde a antiguidade é uma das mais
importantes rotas de comércio. Se considerar ‘mediterrânea’ representa essas
91

abrangências do mar, que refletem as culturas e cruzamentos desses espaços


característicos dos países que o mar cerca.
Siham situa as novas mudanças em relação à vida da mulher, mas
localiza as formas de intolerância como propriedades tanto ocidentais quanto orientais,
começando pela visão ocidental sobre o oriente como intolerantes em relação ao modo
como compreendem a vida, entretanto, a mulher aponta que o ‘excesso’ de
ocidentalismo, também é uma forma de intolerância.

[21’35’’]“É muito fácil falar que as pessoas de véu e barba que são
os intolerantes da história, que são os dogmáticos, porque justamente
eles tratam todos como infiéis, os hereges, eles são agressivos. Sim! É
verdade! Essas são suspeitas fáceis, porque elas são visíveis, e falam
abertamente, ainda mais no contexto atual, a luta contra o terrorismo,
toda essa instabilidade... Mas, a intolerância do outro lado é da
mesma forma equivalente. Tudo isso para te falar que a
intolerância...um ocidentalismo excessivo é também uma forma de
intolerância, porque se converte em um dogma, que eu tenho a razão,
e que as pessoas deveriam fazer como eu para estarem corretas, e se
elas não são como eu, elas não estão certas, e que eu devo atacar e
denegrir qualquer que seja o conteúdo da minha ideologia, é
intolerância.” [22’46’’]

Nesta sequência, Siham é filmada em primeiro plano, e as cenas são


intercaladas com imagens das ruas e das pessoas em Marrakech. Quando a mulher
termina seu discurso sobre o ocidentalismo em excesso, ocorre uma pausa e bebe uma
xícara de chá. Esse hiato, após o discurso demonstra que suas fortes palavras precisam
de um tempo para serem digeridas, interpretadas.

Figura 19 - Siham tomando uma xícara de chá, em primeiro


plano. Marrocos, 2010.
92

No final de sua fala, Siham discursa sobre o uso do véu, e Eliza filma
seus olhos em plano detalhe. Siham explica que usar o véu apenas mostrando os olhos,
caminha com a discussão do feminismo, de que as mulheres não são só um corpo, e por
isso devemos olhá-las nos olhos, já que essa é, segundo ela, a mensagem do véu.

Figura 20 - Siham em plano detalhe. Marrocos, 2010.

Em oposição à fala madura e segura de Siham, no Marrocos, a entrevista


com a mulher Berber mostra uma relação e uma posição diante da câmera totalmente
diferente. Em todo tempo que é filmada, a mulher se mostra muito ofegante e ansiosa.
Como não entende a língua, seus olhos vagam muito rapidamente de Eliza para o
tradutor na esperança de compreender algo. Sorri, fica séria, respira rápido e sorri
novamente. O tradutor se recusa a perguntar a mulher algo que ela teria que dar sua
opinião (sobre o que achava das roupas que as mulheres berberes usavam). A mulher
não teve o direito de ouvir a pergunta e decidir sobre sua resposta, porque a indagação
foi interrompida pelo tradutor.

Eliza: Há alguma coisa, como nos olhos, a expressão, as roupas que


faça com que ela se sinta berber, ou que se sinta dessa região… se tem
alguma coisa que ela sinta que ela é parte desse grupo?
Tradutor: eu entendi, eu entendi… ela disse que para uma mulher
berber… você entende que é uma mulher berber pelas roupas porque
tudo está coberto. Também tem o véu. E às vezes, porque aqui no
Marrocos há três tipos de berber … às vezes pelos olhos, às vezes pelo
resto, ok?
Eliza: Ok, e se ela gosta de usar este tipo de roupas e se sentir parte
deste …
Tradutor: Não, é porque ela só tem essas roupas.
Eliza: Sim … só pergunte. Só para ver o que ela vai falar …
Não?
Tradutor: Não. [26:12]
93

[
2
5
:
4
4
]

E
l

Figura 21 - Sequência da entrevista com a mulher berber.


Marrocos, 2010.

Depois da resposta negativa, há uma pausa. Eliza filma a mulher, que


sorri, sem compreender o que os dois estavam conversando. Eliza filma duas meninas,
que podem ser suas filhas, ou meninas da região que também sorriem para câmera.
A mulher caminha com as meninas durante um tempo, e em seguida, a
cena é cortada mostrando Eliza em uma van, filmando a estrada, que nesta cena embala
as narrações da narradora com a filha.

b. Hawa
A fala de Hawa pode ser considerada umas das mais emblemáticas e
representa um dos grandes entraves de Eliza em relação a sua compreensão e suas
expectativas. Hawa tem um tom de voz também seguro e uma posição diante da câmera
bastante destemida e corajosa. Conta como funciona a estrutura de um relacionamento
poligâmico, com uma risada um pouco tímida, mas compartilha seu cotidiano ao lado da
filha.
94

Quando questionada sobre sua diferença em relação a Eliza, devolve a


pergunta como se a resposta fosse muito óbvia em relação a diferença das duas.

Figura 22 - Hawa em primeiro plano. Mali, 2010.

[34:55]Eliza: Tem alguma coisa que você pensa “sim, esta é uma
mulher de Dogon”, “eu sou diferente das outras mulheres porquê…”
Hawa: Você é brasileira? Não, aqui em Dogon todas as mulheres são
iguais.
Eliza: O que tem de diferença, de mim por exemplo?
Hawa: A diferença entre você e eu?
Eliza: Sim.
Hawa: Porque você é branca e eu sou negra.
Eliza: ok. [35:14]

Hawa também comenta sobre o trabalho das mulheres em Dogon, em


comparação com as mulheres que moram na cidade. Diz que na vila existe a escuridão
sem as luzes da cidade.

c. Awa Mente

Filmada na mesma perspectiva “jornalística”, em primeiro plano, sua


conversa é embalada pelo som do tear que aparece nas sequências de sua filmagem
intercalando suas falas.
Awa Mente também apresenta um tom de voz bastante seguro. Sua fala
sugere maiores reflexões ao defender que cada sociedade faça sua própria análise,
enquanto que as mulheres devem falar por si mesmas. Também comenta sobre a solidão
das mulheres europeias, pois acredita que as sociedades ocidentais estão caminhando
para o individualismo. Esse trecho desperta em Eliza um profundo sentimentalismo e
corta a cena filmando um deserto por mais de um minuto. Essas palavras a despertaram
para o fato de estar viajando sozinha, retomando a questão da decepção amorosa.
95

d. Eliza Capai

A narração que Eliza faz durante o filme acompanha todas as


histórias e momentos da viagem em relação ao seu tom de voz. Quando fala com as
outras mulheres e quando narra a carta.

[00:20] Querida filha, minha filha querida, pela primeira vez cruzo o
Atlântico … do Brasil para África! Sigo sozinha, com uma mochila,
uma câmera, microfone, fazendo umas reportagens … não planejei
muito. Sai sem roteiro e quero dividir contigo o que fui encontrando.
Espero que você esteja bem quando receber essa carta filha. Quando
será que vai ser? [01:20]

Eliza inicia o filme narrando o início da viagem à filha. Uma voz de


esperança, empolgada com as experiências que estavam por vir. Ao se indagar quando a
filha receberá a carta afunda a câmera na água, e o som é bastante forte.

Figura 23 - Eliza filma sua mão em plano detalhe na


água, um dos motifs do longa.

Assim que desembarca em Cabo Verde, narra a carta de modo animado e


entusiasmado pelo fato de estar viajando tão longe. Mas, o tom diminui um pouco
quando relata ter medo de não dar tempo de realizar seus sonhos.
96

Figura 25 Paisagens naturais que simbolizam sua viagem: a Figura 24 - Paisagens naturais que simbolizam
liberdade dos pássaros. sua viagem: a dimensão da estrada.

[3:23] Cheguei no Cabo Verde, e daqui há alguns dias eu completo os


meus trinta anos. Pela primeira vez senti um medo, medo de não dar
tempo de fazer tudo que eu quero fazer. Queria te entregar essa carta
quando você também completar trinta. Será que aguentei esperar isso
tudo? [04:04]

As reflexões são narradas junto a imagens de estrada que dão o sentido às


reflexões, aspectos característicos dos road-movies.
Ao conhecer algumas meninas, como o caso de Windja, que a
despertaram sua maternidade ao ver sua filha naquela menina, sua narração muda o
timbre ao imaginar a filha nascendo naquele lugar e vivendo aquela vida.

Figura 26 - Windja em primeiro plano. Na segunda imagem aparece atrás do balde de água que
carregava pela vila. Cabo verde, 2010.

[12:00] Windja … é um bom nome para dar para um filha! Você


poderia se chamar Windja. Ficava olhando para ela e pensando em
você, como seria? Se você tivesse nascido aqui? Será que teria nascido
em um vilarejo sem água? Busca água no poço, cuida do irmão, vê
pouco a mãe … eu. Você lia muito, imaginava muito e sua imaginação
era poderosa! Às vezes, imaginava que ‘tava’ caminhando até o poço.
De algum modo, a água se materializava em casa. Desejou um vestido
lindo para a mãe e um vestido ainda mais lindo apareceu! Mas existia
um certo … segredo. Você não entendia muito como imaginava. Você
97

tinha medo que um dia sua imaginação fosse embora como seu pai …
do seu pai você guardava uma, ou duas histórias que toda noite
recontava em silêncio antes de dormir. Cada dia você mudava uma
palavra da história, até que um dia … [13:55]

Figura 27 - Sequência de imagens que mostram Eliza submersa na água, e depois caminhando na areia.

Nesta parte da narração da carta, Eliza se filma no mar, e quando começa


a falar para a filha do pai, filma o fundo do mar e a areia, no enquadramento temos a
sensação de imensidão e uma profundidade, e um ruído junto a sua voz é iniciado na
narração da carta, que segue até o fim da narração. Nas últimas palavras, Eliza se filma
saindo da água e caminhando na areia, e na mesma sintonia caminhando no deserto, na
areia novamente.
Seu próximo destino foi Marrocos e pela primeira vez em um país
islâmico, relata à filha que era a única mulher presente no restaurante. As mulheres
estavam na rua, passando. Conta a história de Fátima e Laila, na sequência entrevista
Siham e a mulher berber. Após esses encontros, sobretudo, a conversa com a mulher
berber em que teve um “não” como resposta a uma intenção de pergunta, Eliza volta a
narrar a carta, contando uma história a sua filha. Essa história é narrada em uma van, e
as imagens mostram uma estrada, um caminho que guia toda a narrativa. O tom de Eliza
98

simboliza estar contando uma história infantil, em que a voz se articula com os
acontecimentos, dando ênfase às ações, falando mais rápido e de modo mais eufórico.
Aos 27´28’’, o mesmo ruído que embalou a narração para a filha volta e segue
acompanhando até o final da história quando chega no Mali.
Claramente, a história que Eliza conta e fantasia para sua filha endereça
suas convicções de ser uma mulher ocidental e sua insatisfação com as condições
daquelas mulheres, pois é justamente após o encontro com a mulher berber, que a
narrativa traz essa invenção de Eliza.

Figura 28 - Cena de uma estrada no Marrocos que embala a


narração da história que Eliza conta para a filha.

[26:58] Será que você usaria véu se morasse aqui? Como vai ser o
Marrocos quando você tiver a minha idade? Se você fosse marroquina,
você teria se divorciado de Farigi. Não, se você fosse marroquina você
seria casada com Farigi.
Certa manhã Farigi acordou e viu ao seu lado três homens. Achou
estranho. Levantou sem fazer barulho… vai que eles acordavam… Foi
até a cozinha e te encontrou. Ia pedir um chá. Mas você foi mais
rápida: hoje você lava a louça e faz compras! Farigi achou melhor não
comentar. Foi para o mercado. As ruas pareciam iguais, com exceção
que todas as mulheres estavam sem véu e olhavam diretamente para
ele. Ver as mulheres assim, causava certo … espanto em Farigi, que
demorou para perceber que os homens é que cobriam a cabeça. Um
pouco sem graça, Farigi comprou um véu sob o olhar punitivo da
vendedora. Voltou para casa com as compras e adormeceu,
forçadamente, no banheiro, na esperança que aquela realidade
desaparecesse. [28:51]

Ao chegar no Mali, filma pela janela do ônibus muitas pessoas vendendo


diversos itens e mercadorias. Pelo enquadramento, recortado pela janela do ônibus, a
sensação é de muito alvoroço e tumulto. Relata ter ficado algumas horas esperando o
ônibus, e pela pequena janela, filma crianças lhe mostrando uma boneca branca.
99

[29:26] Crianças: A branca! Esta é a branca!


Eliza: Cheguei na capital do Mali, a dois mil quilômetros de
Marrakesh. Rodoviária.
Crianças: A branca! A branca!
Eliza: Eu era a única branca da rua. Acho que eu nunca tinha sido a
branca do lugar. Três horas esperando o ônibus sair.

Figura 29 - Cenas da rodoviária no Mali.

[31:02] Cheguei em Dogon. Uma secura … um calor. Um monte de


criança correndo de um lado para o outro. Não dava para entender
quem morava ali onde eu ia me hospedar, quem que era filho de quem
[31:22]

Em Pays Dogon, conhece Hawa e por meio de tais vivências reflete sobre
a cultura local em relação à mutilação feminina e ao casamento poligâmico.

[37:46] Nunca tinha pago por uma entrevista, fui dar uma volta
sozinha. Sentei para ler o guia de viagem. Ele falava que o Mali era um
dos países mais pobres do mundo, se pudesse visitar um lugar, era
para vir para cá, para Dogon … que aqui tem uma história milenar,
que a arquitetura é única, que as famílias têm núcleos poligâmicos, que
a mutilação feminina é uma prática … daí eu fechei o guia. Tinha que
fazer uma matéria sobre isso, filha, mas não tô conseguindo ….
[38:40]

Pelo som de sua voz, notamos que no meio da descrição do guia, seu tom
é tanto quanto irônico ao falar sobre a cultura do país, sobre poligamia e mutilação. Ao
final da narrativa, sua voz já é mais fraca, quando relata não estar conseguindo fazer a
reportagem sobre esse tema. Em seguida, essa cena é cortada e filma um grupo de
meninas cantando.

[39:08] Eu olhava para essas meninas e …. Tsc … eu olhava para


essas menin … tsc .. tá tudo cortada … como será... que o corpo reage?
Será que tem prazer igual ao meu? Será que isso importa aqui? Muito
longe … [39:55]
100

Após essa narração, há uma pausa, Eliza filma o céu, já está escuro,
simbolizando a noite e um sonho.
[41:02] Encontro a africana de novo. Me olha. Eu olho. Ela e as outras
mulheres estavam com tudo invertido. Pulseira de relógio de colar,
botão no lugar do brinco … vou anotando cada coisa, e analisando
tudo o que está errado. Elas me olham, elas olham o que há de errado
em mim. Estranham a minha cor, minha textura, meu peito pequeno,
minha flacidez de branca, meu brinco no lugar do botão, meu colar no
lugar do relógio. [42:21]

Essa passagem diz sobre o estranhamento, talvez uma tentativa de Eliza,


de também se explicar e tentar se situar como uma mulher ocidental que estranha aquela
cultura, mas também é observada. Eliza diz que observa tudo que está invertido na
mulher africana, tudo que está de “errado”, assim como a africana também a observa.

[43:37] Cai no meio da festa da vila, não estava entendendo nada,


parecia que só tinha homem, deu uma tristeza de estar ali sozinha …
lembrei dele, lembrei de quem vim até aqui para esquecer, lembrei de
quem eu vim até aqui para esquecer [44:17]

Ao narrar a festa da vila, sua voz continua fraca, um pouco frustrada,


triste. Relata a saudade do ex-namorado, sua lembrança do amor. O áudio mescla as
batidas da africana no ritual, na mesma batida em que aparece Hawa batendo o milho no
pilão. Conta que o guia chegou atrasado para o passeio marcado. Almoçou em um sol
de 40 graus. Quando o guia dormiu, narra na carta que não gostaria que a filha nascesse
naquele lugar, vivendo aquelas condições permitidas naquela cultura como a poligamia
e a mutilação.
[47:37] o guia dormiu, nem sei direito onde é que eu estou. Filha, se
você tivesse nascido aqui … nem f* você teria nascido aqui. Você foi
colocada lá, pelo se sentia assim, passou por tudo que passa, uma
garota dali, mutilação, poligamia, e assim por diante … volta e meia,
você tinha sonhos, de pertencer a outro lugar, uma cicatriz, uma
cicatriz nas costas, parecia um sinal de um lugar distante, uma vida
distante e sangrava toda vez que você via uma coisa errada, um dia,
um dia filha, suas costas sangraram demais, mais do que você podia
aguentar. Eita. não quero mais imaginar isso. [49:16]
101

Figura 30 - Imagem de um vaso e de uma caverna.

Nessa narração, aparece a imagem de um vaso, um pouco cheio. A


imagem do vaso pode remeter a simbologia que faz Eliza, quando caminha pelo deserto
e poeticamente compara sua relação amorosa, com um vaso de barro. Em seguida, filma
a entrada de uma caverna.
Por conta do guia estar dormindo, saiu sozinha, encontrou com algumas
mulheres e conversaram sobre o casamento poligâmico. Eliza tenta compreender a
cultura e conversar com as mulheres sobre isso. As mulheres se espantam ao saber que
no Brasil a prática é proibida e dizem não estar de acordo com o casamento poligâmico.

[50:22] Realmente, vocês têm outro comportamento, os homens e as


mulheres, vocês se falam. Aqui são as mulheres de um lado e os
homens de outro lado.
É possível um homem se casar com mais de uma mulher, né?
É.
Eu gostaria que … porque no meu país, isso não é possível, é
proibido. É proibido. Se um homem é casado com duas mulheres, ele
vai para prisão
Ah não!!!
Sim … e eu gostaria de entender isso, porque para mim … eu tive a
mesma reação que você teve agora! O que? Um homem pode se casar
com duas mulheres? Não é possível!!
Não, isso não é bom, e eu não gosto disso … [51:21]

Sua insatisfação talvez não seja somente pela cultura, já que existe uma
grande se distância por ser branca e ocidental, mas talvez sua inquietação seja o fato de
que somente as mulheres têm sua vida afetada por conta dos homens. É uma cultura,
mas também uma cultura machista. Sua infelicidade da filha nascer naqueles lugares
endereça não só sua repulsa aos lugares de fato, mas sua repulsa aos homens que seriam
seus pais: o tradutor que se negou a fazer a pergunta, o guia que dormiu durante o
passeio marcado, ou marido de Fátima que a estuprava?
102

[51:59] voltei antes de Dogon, não consegui fazer a matéria que


precisava fazer, não consegui entender foi nada … [52:09]

Suas inquietações a fizeram procurar a socióloga Awa Mente, que a


auxilia em uma compreensão mais ampla sobre a estrutura das sociedades africanas e o
lugar das mulheres nessas condições. Após esse encontro Eliza se encontra, percebe que
antes de compreender aquelas mulheres naquelas condições, precisava se compreender
em suas condições. O impacto da cultura a perturbou pelas suas expectativas
fracassadas. Não concorda com o casamento poligâmico, mas seu namoro monogâmico
também a fez sofrer.

[55:21] eu nasci num país onde não tem mais casal … eu nasci no
Brasil, tenho quase 30 ... quase 30. Um dia, doía a alma, doía o corpo,
o tempo, tudo, para um homem … um homem. Um homem que não me
via, cada dia ele chegava em casa com uma máscara nova, uma
história na boca que hoje desmentia, eu, que amava tanto que queria
tanto ser dois … e logo mais ser três dele, fui transformando cada
engano em pedaço de barro, e engolindo os pedaços de barro, um a
um, até que virei barro também, num último respiro, escapei, arrumei a
mala, cruzei o mar e vomitei o barro inteiro no meio do deserto … tive
que vir tão longe para chegar aqui. Não quero mais escrever essa
carta para minha filha, eu não tenho filha! Chega dessa babaquice,
chega … [57:22]

Figura 31 - Eliza em plano detalhe.

Na África do Sul, relata já estar cansada, quer terminar logo o trabalho, e


ir de volta para casa. Conversa com Patience e as jogadoras do time de futebol.
Na conversa com o time de futebol, conversa com uma moça que foi
estuprada e perdeu o bebê, mas mesmo assim quis engravidar de novo por se sentir
culpada. A moça conta que está feliz por ser uma mãe lésbica.
103

Figura 32 - Jogadora do time de futebol de lésbicas. África


do Sul, 2010.

Para finalizar o filme, Eliza filma uma cantora, que faz a música para
embalar o final do longa.

Figura 33 - Cantora com sua filha. África do Sul, 2010.

Figura 34 – Criança filmada nas cenas finais do filme, que indica ser também filha da cantora.

[1:05:51] diário de viagem: dia 27. Conheci Omagugu num show,


ofereci de gravar um clipe e ela me dá uma música para usar no vídeo.
Qual seu sonho quando sua filha tiver a sua filha tiver a nossa
idade?
Eu sonho que ela se torne uma pessoa forte e bem sucedida.
Que ela não tenha medo de se mostrar, de ser ela mesma. Eu
104

acho que o maior presente que você pode dar é ser você
mesmo, ser livre ser o que você quiser ser. É isso que desejo
para ela.

Tá quase na hora de voltar, sigo os dois últimos dias de viagem na


Cidade do Cabo. Vim comemorar meu aniversário aqui. 30! Filha, hoje
acordei achando que vai dar tempo, acordei querendo que você exista
um dia, vir comemorar nosso aniversário aqui … trintonas! [1:10:09]

5.4. IMAGENS AGENTES

Segundo o Dicionário de Símbolos27, “água” significa fonte de vida,


meio de purificação, centro de regenerescência (reconstituição), infinidade dos
possíveis, promessas de desenvolvimento, bem como retorno às origens.

Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver totalmente, salvo
por uma morte simbólica, é retornar as origens, carregar-se de novo,
num imenso reservatório de energia e nele beber uma força nova: fase
passageira de regressão e desintegração, condicionando uma fase
progressiva de reintegração e regenerescencia” (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 2006. p. 14)

No primeiro destino de Eliza, Cabo Verde, aparecem muitas filmagens na


água que conduzem as primeiras narrações com a filha. O significado da água,
relaciona-se, sobretudo à energização. Assim como no banho, o contato com a água
simboliza uma fase de regressão e desintegração que traz força, vida e pureza.
Em Cabo Verde, Eliza se filma na água e mostra em profundidade, a
areia no fundo do mar. Filma seu caminhar sobre as ondas, e são nesses momentos que
estabelece os primeiros relatos da viagem e suas primeiras reflexões sobre sua jornada.
A representação da água remete à simbologia da origem da vida, à
fertilidade e à fecundidade, o início para a vida.
No catolicismo, a imagem da água representa cura e purificação. Água
como purificação é sinônimo de permeabilidade, por não ter forma é permeável em
tudo. A água como a gravidez na maternidade, traz a impressão de indissociabilidade
das coisas. No início, Eliza começa falando com a filha como se tudo trouxesse para
um ponto de partida confuso e recluso, como no útero.

27
CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números). Tradução: Vera da Costa e Silva [et al.]. 20ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2006.
105

A “água benta” ou o ritual do batismo, simbolizam esses momentos de


poder sagrado, cura e limpeza. No hinduísmo a água também relaciona-se à purificação
e regeneração. No taoismo28, simboliza sabedoria e virtudes por estar relacionada ao
feminino (yin). A água conecta-se à fonte de vida e criação, nas mais antigas tradições.
Entendemos que nas filmagens em Cabo Verde e Marrocos, as imagens
trazem a água como forma endereçar a acepção e a maternidade, já que harmonizam-se
junto à narrativa de Eliza para a filha. Junto à água, Eliza filma a areia, tanto do fundo
do mar e na praia, como no deserto. O simbolismo da areia, vem da quantidade de seus
grãos, pela sua imensidão. É plástica, fácil de ser penetrada pois, abraça as formas que
a ela se moldam, por isso, representa o útero. É símbolo de matriz e prazer que se
experimenta ao andar e deitar sob ela.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (2006), “areia” relaciona-se
inconscientemente ao regressus ad uterum (regresso ao útero), dos psicanalistas. Desse
modo, andar na areia de modo efetivo, simboliza repouso, segurança e regeneração.
Eliza escolhe o deserto como cenário para a sequência em que revela sua
decepção amorosa e consequentemente sua superação. Nesta sequência, o deserto se
torna pano de fundo para ilustrar não somente a solidão da personagem, mas sua busca
pela regeneração e superação. O simbolismo do deserto relaciona-se a dois sentidos:
indiferenciação inicial ou extensão superficial, estéril.
Indiferenciação como desorientação, pois, o deserto não tem referências
visuais, a orientação no deserto é interna. É o lugar de internalidade das referências;
externamente a areia do deserto sugere a efemeridade das formas e aponta também a
necessidade de uma busca. O que não é efêmero no deserto é olho, pela sua
necessidade de saber o que procura. Esse é o sentido da orientação interna “A
ambivalência do símbolo é manifesta a partir da simples imagem da solidão. É a
esterilidade sem deus. É a fecundidade” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p.
332).
Ainda segundo o Dicionário de Símbolos, “terra”, simbolicamente
representa o aspecto feminino em relação ao masculino (céu), já que todos os seres
recebem seu nascimento dela, por simbolizar a mulher, mãe, substancia universal,
matéria-prima. A terra, em sua função maternal, dá a vida. Para os védicos29, a terra

28
Tradição filosófica do leste asiático.
29
Antiga religião da Índia.
106

simboliza a mãe, que é fonte de fertilidade e origem, por ser protetora contra os males
da destruição. Os dogons representam a terra como uma mulher.
Em Pays Dogon, contrata um passeio guiado, mas por conta do guia ter
dormido, Eliza, que saiu sozinha, explora o vilarejo. Na sequência filma as paisagens
locais e as mulheres trabalhando, e a entrada de uma caverna.

Figura 35 – Caverna filmada por Eliza.

De acordo com o dicionário de símbolos, a caverna representa o


arquétipo do útero materno. Para Platão, simboliza um lugar de sofrimento, punição e
ignorância, e a luz da entrada da caverna, indica a elevação ao céu, saída 30. No aspecto
simbólico, a caverna representa o mais trágico dos aspectos. Cavidade sombria, temível
abismo, região subterrânea, de limites invisíveis, é um símbolo do inconsciente, e de
seus perigos. A caverna simboliza a exploração do eu interior, do eu primitivo,
recalcado nas profundezas do inconsciente. É também considerada um grande
receptáculo de energia, energia telúrica (forças e energias que vem da terra). O caráter
central da caverna faz com que ela seja o lugar do renascimento e da regeneração e
também da iniciação que é um novo nascimento. Entrar na caverna é portanto, retornar a
origem e daí subir ao céu do cosmo. A caverna é o lugar de passagem da terra para o
céu. A imagem da caverna aparece no sonho ligada a outras imagens de igual vetor
(caverna, mulher, mamífero, universo, subjetivo) pode ser encontrado também no
universo onírico (fantasias x real) do ser humano atual. Assim é que a psicanálise
revelou a equivalência simbólica da imagem da mulher e imagens do interior (tais como
a casa e a caverna), e o filme faz essa associação.

30
Mito/alegoria da caverna.
107

Temos uma sequência de Hawa falando sobre a escuridão, em seguida a


imagem de uma casa em ruinas numa visita que seria guiada por um homem que
dormiu, e Eliza decide se autoguiar, mas quando isso acontece, ela vai para o deserto e
não para as casas arruinadas do vilarejo histórico. A narrativa aponta para esse
movimento interno de saída da caverna que simboliza seu desprendimento do guia para
assumir um outro rumo. Assumir a própria deriva.
O filme endereça a caverna como símbolo do lugar da identificação, ou
seja, o processo de interiorização psicológica, segundo o qual o indivíduo se torna ele
mesmo, e consegue chegar à maturidade. Desse ponto de vista, a caverna simboliza a
subjetividade em luta com os problemas de sua diferenciação.
Há uma mudança de compreensão “psicológica” para “sociológica”, do
simbólico para a narrativa. O posicionamento de Eliza muda a partir da cena da caverna,
e passa a externalizar outros sentimentos. Seu diálogo com Hawa, seguido pela sua
caminhada no vilarejo, a casa em ruínas, o guia adormecido, a mutilação e sua conversa
com Awa Mente são cenas emblemáticas que mudam Eliza e justificam a posição da
socióloga ao dizer, de alguma maneira para Eliza, que ela precisaria desmanchar o
“tapete” que trouxe e construir um novo, a partir de fios novos. Eliza faz isso
internamente e passa a fazer socialmente depois, por isso a mudança. Ao conversar com
Hawa mostra a própria escuridão que ela como pessoa de um “país da claridade”,
(civilizado), é a própria escuridão (ignorância) que ela carrega.
A compreensão que passa a ter daquelas mulheres aparece na narrativa
em um erro bastante explícito, ao contar sobre a mutilação. Eliza a princípio filma
indícios da prática, e depois da festa da vila, as imagens revelam seu sonho, na Etiópia
com mulheres em um ritual, em que a respiração da moça iguala ao som de Hawa
batendo no pilão. O processo de bater algo no pilão representa uma transformação do
grão, e como alegoria, é a transformação pessoal de Eliza, uma mudança em sua
compreensão.
No “país da escuridão” essa sequência tem outro significado, um ritual,
imagens que para nós “da claridade” têm um sentido. O processo que Eliza passa ao
conversar com as mulheres que ela encontrou até então, ganhou outro sentido que não
seria alcançável por nós e essa talvez seja uma justificativa para não mostrar a
mutilação, já que não é alcançável por nós e nem por ela.
108

Explicitar esse erro, está dentro de um processo que é evidenciar para o


espectador a escuridão de seu próprio entendimento.

Para os dogons e os bambaras do Mali todo ser nasce com duas almas
de sexo oposto. O clitóris contém a alma masculina da mulher donde a
origem da excisão que, suprimindo a ambivalência natural, confirma a
mulher no seu sexo. O clitóris removido se transforma em escorpião.
No homem, é o prepúcio que contém sua alma feminina. A circuncisão,
nele, corresponde à excisão, acentuando e confirmando seu caráter viril.
(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p. 260)

Ainda no Mali, quando volta de Pays Dogon, Eliza faz a reportagem com
Awa Mente, filmando mulheres trabalhando em um tear. Na tradição do Islã, o tear
simboliza a estrutura e o movimento do universo. O trabalho de tecelagem é um
trabalho de criação, o que une a reflexão que a socióloga faz à Eliza.

Tecido, fio, tear, instrumentos que servem para fiar ou tecer (fuso, roca)
são todos eles símbolos do destino. Servem para designar tudo o que
rege ou intervém no nosso destino: a lua tece os destinos, a aranha
tecendo sua teia é a imagem das forças que tecem nossos destinos. As
moiras são fiandeiras, atam o destino, são divindades lunares. Tecer é
criar novas formas. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p.872)

A narrativa conceitual de Tão longe aqui, nos conta, portanto, uma


história sobre maternidade. A água, a areia, a caverna, o deserto e a terra (marrom),
simbolizam nessa trajetória, a própria mulher, em seu sentido mais puro, do útero à
fertilidade.
Quando Eliza conta a sua história pessoal amorosa e traz símbolos já
construídos ao longo do filme, ela une o significado da água e da terra num barro que
ela come para depois vomitar, ela revive a alegoria que as imagens formularam até
então sobre a saída da caverna, de por de dentro para fora, de saída. O vaso de barro que
aparece nas alegorias do filme, une ao mesmo tempo os movimentos de construção e
destruição pela junção das potencias da agua e da terra no interior da caminhante. O
vaso aparece carregando água, como vaso de barro que é filmado, como pilão e o
próprio vaso que Eliza “vomita”, ao se desvencilhar da relação amorosa no deserto. O
barro, como transformação (imagem agente), é que a permite desistir da alegoria da
filha, mas não a faz desistir da maternidade.
109

Entendemos e defendemos que tornar-se mãe é uma opção, mas também


salientamos que o corpo feminino é a própria natureza. As alegoria da caverna, da água,
da areia e da terra transportam uma excentricidade em compreender a mulher, o
feminino, e consequentemente a maternidade, que no caso de Tão longe é aqui, aborda
as especificidades de Eliza, que justamente nos endereça a esses significados atribuídos
à maternidade.
Tão longe é aqui é um filme sobre a mulher em sua singularidade e sobre
ser mãe. Sobre ser mãe de uma menina e contar à ela sobre o que é ser mulher. Não
somente mulheres de Cabo Verde, Marrocos, Etiópia, Mali e África do Sul, mas sobre
ser uma mulher que também pertence a esses lugares, a essas culturas, mas que,
sobretudo, pertence à um universo excepcional.
As escolhas de Eliza abrangem os simbolismos da acepção, da
maternidade, do útero, de ser mulher, mas também, abrangem a essência de encontrar-
se. Entretanto, esse universo se torna restrito quando interpretamos um endereçamento
que, desde a fala de Siham sobre a barbárie ocidental, que torna-se o jogo luz-escuridão
em Hawa e acontece em Awa Mente pela necessidade de alteridade provocada pela
socióloga, produz um endereçamento, que foge, desvia e o erra toda vez que Eliza se
coloca para a filha, pois, na narração íntima com a menina, se permite ser ocidental sem
reserva. Se abre e não se limita a extravasar seus próprios preconceitos, e talvez, sua
falta de alteridade para com aquelas mulheres.
O longa, que se propôs apresentar as mulheres, mesmo que
estrategicamente, a uma menina branca e ocidental (filha fictícia), não atinge seu ápice,
pois, a diferença que afetou Eliza de alguma maneira, não a movimentou para a
alteridade. Porém, a própria personagem/narradora alega suas dificuldades em não
entender aquelas vidas e se redime dizendo que não conseguiu fazer algumas matérias
(como é o caso da mutilação das meninas em Pays Dogon), nesse sentido, optamos no
trabalho por utilizar o dicionário de símbolos que se baseia em interpretações ocidentais
sobre os signos e alegorias que foram criados por Eliza em terras africanas.
Dessa forma, Tão longe é Aqui, interpretado com base em questões que
perpassam o cinema em seu potencial educativo, por meio de imagens agentes, nos
movimentou e afetou a busca da personagem por encontrar mulheres que não as
encontrou. Eliza errou, e caiu totalmente em si. Sua ida, travestida de seus
fundamentalismos brancos e ocidentais foi de encontro a um exótico experimento,
110

perpassado por barbáries de mutilação e poligamias que esbarrou nas próprias barbáries
que sofre, em relação à sua solidão e sua desilusão amorosa.
A questão da maternidade é pulverizada, Eliza abre mão de sua filha
como alegoria e figura fictícia, e a maternidade passa a ser desvencilhada da gravidez,
desprendendo o sentimento de gravidez (como gestação) do sentimento de maternidade.
Se tornam dois acontecimentos diferentes.
Esses aspectos ganham sentido em conformidade com os traços
estilísticos da obra, que compreendidos sob o gênero road-movie, logo o romance de
formação, e o filme-carta, integram narrativas de viagem que se propõem a nos afetar e
nos despertar para a percepção que se encontra na alteridade, e o modo como essas
diferenças afetaram a personagem e ela se afetou com isso. Entendemos que a alteridade
se dá pela estranheza e pela necessidade de aprender a relacionar-se com o outro a partir
de suas diferenças, mas em um sentido de reconhecer nessas diferenças o
estabelecimento de uma relação, que não se baseie em julgamentos prévios.
Castro (2015), propõe repensarmos a lógica incidida no Ocidente, pois,
muitos apontamentos e problemas criados pelas teorias antropológicas, são frutos dos
quais o próprio imaginário ocidental quer reconhecer e explicar. O autor alega que o
lado mais perverso do pós-colonialismo é fazer a relação de se enxergar no outro.
Alguns discursos europeus provocam uma experiência de dizer que nos reconhecemos
quando vemos o outro, mas este seria, talvez, um atalho e uma maneira de refletirmos
que no fundo estamos o tempo todo girando em volta de nós mesmos. Por isso, a
necessidade de experimentação de outras culturas. O espaço geográfico é ambientado
por diversos pontos de vistas e percepções de mundo, que abrangem uma forma de
compreender a si e aos outros que não são iguais. A forma como seres humanos se
enxergam e se compreendem é sempre diferente, devido a questão cultural, e sobretudo,
pela forma como a cultura é incorporada por cada pessoa que a ressignifica de um modo
diferente.
Deste modo, em meio a estas questões, voltamos as próprias questões que
motivaram essa pesquisa, quais sejam: qual é a percepção de uma mulher que filma?; o
que dizem (como educam) as imagens produzidas neste encontro?; como o gênero
(sexualidade) se endereça como gênero cinematográfico?. Notamos que existe não só
uma forma de percepção que é feminina e portanto, diferente, por partilhar de outras
experiências, mas existem também percepções entre as mulheres que produzem cinema.
111

Em relação ao longa Tão longe é Aqui, as imagens produzidas no encontro de Eliza com
a câmera, filmando outras mulheres, mostraram uma forma de concebermos a questão
da maternidade e forma como Eliza escolheu simboliza-la. Salientamos ainda, que
reconhecer a personagem/narradora como branca e ocidental, ao mesmo tempo que a
coloca em um espaço, a retira de outros, pois nosso esforço é o de mostrar que existem
mulheres. Nesse sentido, a questão de gênero posta no longa-metragem, como
sexualidade, se endereça como um gênero cinematográfico, ao delinear os aspectos da
percepção de uma mulher produzindo imagens que se enquadram em gêneros existentes,
mas que de forma híbrida, formam novos gêneros cinematográficos.
O efeito de Eliza transitar entre esses gêneros existentes evidenciou a
vacuidade de sua própria formação jornalística, mas vácuo este, não no sentido de ser
vazio, mas de poder ser muitas coisas, assim como ela atravessa diversas formas
específicas de ser mulher e de algum modo, encontramos todas essas formas nela,
assumindo-se como uma mulher movimentada por todas essas imagens agentes. Essa
maternidade vai sofrendo essas transformações, e essas transformações vão mudando
essa imagem agente que é a maternidade, pois, cabem todas elas, e Eliza as carrega.
Por fim, ao longo de todo processo do trabalho, considerando as questões
que guiaram nossa pesquisa, à luz do entendimento que fizemos da educação visual,
consideramos o modo como a perspectiva se ajusta a essa questão. Metaforicamente, a
perspectiva como olhar através de uma janela, mostra um jeito bem menos interessante
de olhar esse filme. Ao olhar para aquelas mulheres, na verdade estamos vendo as
mulheres, pelo olho de Eliza, as mulheres de Eliza que se espelha naquelas.
Fundamentamos o trabalho com base em uma metodologia de
decomposição e interpretação das imagens, que nos educaram a uma forma de
percepção e uma compressão sobre maternidade e finalizamos nos questionando,
portanto, com base nos modos de endereçamento, considerando coincidências e
errâncias, que espectadora foi produzida neste processo? Refletimos essa passagem,
essa trajetória e essa jornada, no fundamento da errância.
Errância como aquilo que transgride reinventando o corpo, o cosmo, a
mente. Na errância, há um encontro, um caminhar que assume uma forma de
pensamento que explora no encontro, por meio da alteridade o que outro desperta.
112

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Venho pensando em escrever essa carta há um tempo e me prendia em


qual destinatário escolher porque essa pessoa iria delinear totalmente minhas palavras,
encaminhando em conclusões efetivas. Pensei em Eliza, que a princípio foi uma das
primeiras mulheres que me despertou a questão feminina, feminina mesmo, também
feminista mas quero utilizar a palavra feminina porque ultimamente venho me armando
tanto de discursos feministas, que a mim, só fazem sentido se eu pensar no feminino.
Porque foi isso que me suscitou ao longo dessa jornada.
Talvez essa carta seja minha narrativa de formação, meu Bildungsroman,
minha viagem que sem deslocamento e sem a estrada dos propósitos de Laderman, me
garantiu um processo tão flutuante, forte e vigoroso. Maturação. Essa palavra define um
pouco o que essa trajetória de dois anos me proporcionou e me garantiu uma
compreensão do porquê lutar.
A primeira vez que assisti Tão longe é Aqui, me senti impactada por uma
sensibilidade. A minha percepção, de uma mulher branca também ocidental, via aquelas
africanas como mulheres e mães. Que existem e resistem. E que estranho pensar que
foram essas mulheres, negras, algumas pobres, algumas lésbicas, algumas portadoras de
HIV, algumas que cantavam, outras que subverteram a lei e se separaram, que fizeram
de Eliza (e a mim) uma mulher mais desprendida, mais mãe, mais ... mulher. Estranho?
Nem tanto se pensarmos que é o feminino, forte e flutuante, conectando essa rede de
mulheres.
Não quero romantizar essa jornada com essas palavras de força,
resistência de mulheres guerreiras, porque isso também nos define, mas antes disso
somos nós. Apenas, nós. Eu, você, Eliza, Hawa ... cada uma em sua excentricidade
buscando seu espaço para existir, antes de resistir.
Escrevo essa carta a todas mulheres que me fizeram ser quem sou hoje e
que me ensinaram muito. Mas, afinal o que é ser mulher?
Essa pergunta talvez não tenha uma resposta pronta e definida pensando
no contexto cultural e estético que essa jornada me ensinou, mas vejo indícios para
pensar nessa questão, quando penso em uma excentricidade, porque, mesmo com as
questões culturais que constroem vários tipos de mulheres, existe ainda uma cultura de
homens, uma cultura machista que seja em qualquer lugar do mundo, submetem
mulheres à determinados comportamentos.
113

Essa jornada me permitiu ler sobre a subordinação imposta as mulheres


marroquinas e como o uso da burca em países islâmicos é prejudicial à saúde das
mulheres em menopausa por conta da pouca exposição ao sol, que é fonte de vitamina
D. Conheci Assétou Touré, do Mali, que dedica sua vida à lutar contra a prática de
mutilação no Mali. Ela disse em uma entrevista que sua dor, quando passou pelo
processo, foi tão grande, que chegou a desmaiar e depois desse dia, se empenhou em
lutar para que nenhuma mulher passasse mais por isso. Será que estou fazendo a mesma
leitura ocidental, recheada de julgamentos de como uma mulher branca e brasileira tem
privilégios sobre essas culturas? Talvez. Porém, vejo que mesmo nesse contexto,
mulheres estão se mobilizando e se fazendo ver por um mundo que impera uma cultura
machista e do estupro. Descobri iniciativas no Egito, no Marrocos e li uma tese recente
sobre um estudo do feminismo islâmico.
Medo de ser mulher? Medo de ter uma filha mulher? Agora não mais.
Porque o caminho que descobri foi longo e todo processual, de lutas, de alguns receios,
muita preocupação e incertezas. Mas a jornada me fez encontrar, algo que sempre
existiu, uma força tão voraz mas tão sensível que aguentou firme toda essa trajetória
para se aflorar em um sentido maduro e resistente. Sou mulher. Existo e resisto.
Aprendi a ser forte como a rainha Kahina, que vista por escritoras
magrebinas foi uma incrível heroína berber, que uniu seu povo e resistiu às invasões
árabes. Uma mulher, rainha, africana, no século VII. Me apaixonei ao ler Woolf e
Brontë, que em épocas antigas tiverem um potencial imenso em propagar por meio da
literatura um universo a parte, de mulheres que precisavam ser ouvidas.
Então durante todo esse processo de pesquisa, escrita e leitura, pude
avaliar que fui produzida como espectadora, como mulher espectadora. Ver o filme,
estudar sobre mulheres e compreender o cinema em seu potencial educativo, me
produziu exatamente essa alteridade de enxergar de outro lugar a discussão sobre ser
mulher, e como juntas somos fortes. Reconhecer essas diferenças entre mulheres, mas
que se unificam pela percepção de um mundo que foi construindo com base em outras
percepções. Esse filme me permitiu não só apenas estabelecer essa relação de alteridade
entre mulheres, mas, me permitiu compreender que nada é natural, porque ser mulher, é
tornar-se.
Mas reitero, que esse processo, aconteceu de uma forma brilhante por
meio do cinema. Foi justamente essa forma de arte que me sensibilizou e me despertou
114

para um universo magnífico, das coisas possíveis. Possíveis, porque vejo no cinema
uma fonte inspiradora não só de mudança, mas de uma sensação indescritível de nos
apresentar tantos mundos, tantas realidades, tantas percepções, que ainda não havia
encontrado em nenhum outro lugar.
Quando procurei no dicionário de símbolos as alegorias que se repetiam
no filme e notamos que todos os motifs remetiam a questão da mulher em seu poder de
acepção e vida, a princípio achei uma enorme coincidência, como uma mágica em que
tudo se encaixa, mas depois percebi que na verdade, essa rede de mulheres, em nosso
potencial maternal está presente em tudo! E com isso, entendi também que não estamos
falando de gravidez, filhos, gestação de um modo próprio, mas de um modo simbólico,
que existe um sentimento de maternidade, um sentimento dessa força voraz e faminta
que existe, e não só resiste, mas se faz ver em tênues nuances de um mundo dominado
por homens.
Esse trabalho, produzido em tempos emblemáticos em nosso país, me
lembrou o livro de Susan Sontag, Diante da cor dos outros, que abre um espaço muito
forte de discussão sobre as imagens de crueldade e sofrimento que nos chegam cada vez
mais rápido pelos meios de comunicação, e que nos provocam sentimentos, nos
influencia, mas será que somos sensibilizados por isso? Como nós espectadores,
lidamos com isso e nos mobilizamos? No início do livro, há a menção de Três guinéus,
escrito por Virginia Woolf sobre a guerra, e o avanço do fascismo na Espanha. A carta
seria uma resposta à pergunta de um advogado “Woolf, como podemos evitar a
guerra?”, e Woolf observa que a princípio não existe um diálogo autentico entre os dois,
já que não pertencem ao mesmo gênero, e que os homens fazem a guerra, desfrutam
dela glória e satisfação, enquanto essa não é uma necessidade (da maioria) das
mulheres.
Eu concordo com Woolf, acredito também, que hoje evoluímos para uma
outra sociedade, mas que ainda cruza percalços pelos caminhos do machismo. Me
lembrei também do documentário que saiu esse ano pela netflix, Feministas: o que elas
estão pensando?, sobre os retratos de mulheres da década de 1970 que fez Cynthia
McAdams, de mulheres ativistas, feministas e livres, e como essas mulheres se sentem
hoje, vendo essas fotos, discutindo o feminismo e as mesmas questões de 1970.
115

Imagens. Imagens de sofrimento, imagens de guerra, imagens de


feministas, imagens de mulheres nuas, imagens de mulheres livres, imagens em
movimento de mulheres.
Imagens agentes que ressoam nas pessoas uma forma de estética, e de
política ao arquitetarem o modo como essas pessoas vão perceber o mundo. Então
podemos perceber um mundo que é afetado diariamente pela crueldade, pelo
sofrimento, pelo fascismo, pela alienação, que chega até nós. Mas as imagens do cinema
e essas imagens do feminismo ainda me deixam com um sentimento de sentir-me
arquitetada e totalmente construída pelas minhas referências, e passo a perceber e
enxergar um mundo que é múltiplo, espaçoso e totalmente “alter”, do outro, da relação e
da diferença.
Meu desejo é que esse sentimento, que ainda não sei descrever, que sinto
quando vejo um filme, que sinto mais ainda, quando vejo um filme feito por uma
mulher, possa alcançar muitas pessoas e que esse sentimento reverbere as mais
múltiplas sensações, porque além de aprender, foi isso que senti nesse processo.

Ana Carolina Domingues,


Jan. 2019
116

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, A. C. De dentro do espelho: a imagem-cristal no cinema de laura


mulvey e agnès varda. In: XXI ENCONTRO SOCINE - Sociedade Brasileira de
Estudos de Cinema. 2017. João Pessoa: Anais...SOCINE, 2017.
ALMEIDA, M. J. Imagens e Sons - A nova cultura oral. São Paulo - SP: Cortez,
1994.
ALMEIDA, M. J. A educação visual da memória: Imagens agentes do cinema e da
televisão. Proposições, p. 9–25, jul. 1999.
ALMEIDA, M. J. As idade, o tempo. Proposições, v. 15, n. 1, p. 39–61, 2004a.
ALMEIDA, M. J. O estúdio da televisão e a educação memória. Educação e
Sociedade, v. 25, n. 86, p. 269–272, 2004b.
ALMEIDA, M. J. Um castelo para memória. Educação Temática Digital, v. 9, n. 1, p.
229–265, 2007.
ALMEIDA, M. J. Cinema - Arte da Memória. 2. ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 2009.
ARAÚJO, L. C. Cleo de Verberena e o trabalho da mulher no cinema silencioso
brasileiro. In: HOLANDA, K; TEDESCO, M. C. (org.). Feminino e plural: mulheres
no cinema brasileiro. Campinas - SP: Papirus, 2017.
ARTHUSO, R. L. Cinema independente e radicalismo acanhado : ensaio sobre o
novíssimo cinema brasileiro. Dissertação (Mestrado em Meios Processos
Audiovisuais). Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo
p. 172. 2016.
BAZIN, A. A ontologia da imagem fotográfica. In: XAVIER, I. (org.). A experiência
do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.
BAZIN, A. Orson Welles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
BENJAMIN, W. Pequena história da fotografia. In: Obras escolhidas. vol. 01 – Magia,
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 91–107.
BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo - SP: Editora
Brasiliense, 1987.
BENJAMIN, W. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Benjamin e a
obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 256.
BERGALA, A. Erice - Kiarostami: The pathways of creation. In: BERGALA, A.
BALLÓ, J. (org.). Erice Kiarostami Correspondences. Barcelona: CCCB, 2006. p.
161.
BERGER, J. Ways of seeing. Penguin Classics, 2008.
BERNADET, J.-C. Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
BRASIL. O cinema de gênero vive! FilmeCultura 61. nov-dez 2013/jan 2014.
117

BRASIL. Mulheres, câmeras e telas. FilmeCultura 63. 1º semestre de 2018.


BRUZZO, C. O documentário em sala de aula. Ciência e ensino, v. 4, 1998.
BURNS, E. M. História da Civilização Ocidental - do homen das cavernas até a
bomba atômica. 21. ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1977.
CASTRO, E. V. Metafísicas Canibais - elementos para uma antropologia pós-
estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
CERTEAU, M. DE. History: Science and Fiction. In: Heterologies: Discourse on the
other. University of Minnesota Press. p. 217–218, 1986.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, fíguras, cores, números). 20. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2006.
DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tocam o real. Revista do Programa de
Pós-Graduação em Artes da Escola de belas Artes da UFMG. Tradução de Patrícia
Carmello e Vera Casa Nova, v. 2, n. 4, p. 204–219. Belo Horizonte, 2012.
DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
ELLSWORTH, E. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de
educação também. In: SILVA, T. T. (org.). Nunca fomos humanos - No rastro dos
sujeitos. Belo Horizonte. p. 208.
FRESQUET, A. Cinema e educação - reflexões e experiências com professores e
estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autentica
Editora, 2013.
FREUD, S. Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das
perversões sexuais. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
FURLAN, A. S. R. Pintura e pensamento matématico na obra de Piero Della
Francesca. III Encontro de História da Arte - IFCH/UNICAMP. Anais...Campinas -
SP: 2007
FURLAN, A. S. R. A abordagem da perspectiva no tratado de piero della
francesca. In: V ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE – IFCH / UNICAMP, 2009,
Campinas - SP. Anais...Campinas: EHA, 2009, p. 195-2002.
GLEDHILL, C. Gender Meets Genre in Postwar Cinemas. Champaign: University of
Illinois Press, 2012.
HANSEN, M. B. Pleasure, Ambivalence, Identification: Valentino and Famele
Spectatorship. Cinema Journal, v. 25, n. 6, 1986.
HOLANDA, K. Cinema brasileiro (moderno) de autoria feminina. In: HOLANDA, K;
TEDESCO, M. C. (org.). Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro.
Campinas, SP: Papirus, 2017a. p. 43–59.
HOLANDA, K. Da história das mulheres ao cinema brasileiro de autoria feminino.
Revista Famecos, v. 24, n. 1, 2017b.
JULLIER, L; MARIE, M. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Editora Senac,
2009.
118

KAPLAN, E. A. Troubling Genre/Reconstructing Gender. In: GLEDHILL, C. (org.)


Gender meets genre postwar cinemas. University of Illinois Press, 2012. p. 71–83.
KOSSOVITCH, L. Prefácio. In: BATTISTA, L. A. Da pintura. Tradução de Antonio
da Silveira mendonça. 4. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.
LADERMAN, D. Driving Visions - exploring the road movie. Austin: University of
Texas Press, 2002.
LAROUI, A. Histoire del Magreb. Madri: Editorial MAPFRE, 1994.
LEITE, F. C. Na trilha dos sujeitos: audiovisual, memória e o evento do
empoderamento para as mulheres. Revista Geminis, v. 3, n. 2, p. 206–222, 2012.
MACHADO, A. Novos territórios do documentário. Revista Digital de Cinema
Documentário, v. 11, 2011.
MACHADO, A. Prefácio. In: XAVIER, I. (org.). O discurso cinematográfico - a
opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2012.
MACHADO, A. A ilusão especular - uma teoria da fotografia. São Paulo: G. Gili,
2015.
MARKENDORF, M. Mulheres na estrada: a trajetória das heroínas de road
movies. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 - Desafios atuais dos
feminismos, 2013. Anais... Florianópolis: Fazendo gênero 10. 2013. p.1-12.
MIGLIORIN, C. Invevitavelmente cinema - educação, política e mafuá. 1. ed. Rio de
Janeiro: Beco do Azougue, 2015.
MUNERATO, E; OLIVEIRA, M. H. D. As musas da matinê. Rio de Janeiro: Rioarte,
1982.
NAGIB, L. Além da diferença: a mulher no Cinema da Retomada. Devires, v. 9, n. 1, p.
14–29, 2012.
NICHOLS, B. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.
ODIN, R. Filme documentário, leitura documentarizante. Significação, v. 39, n. 37, p.
10–30, 2012.
PASOLINI, P. P. Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas. In: Os jovens
infelizes - Antologia dos ensaios corsários. São Paulo - SP: Brasiliense, 1990. p. 125–
136.
PENAFRIA, M. Análise de Filmes - conceitos e metodologia(s). In: VI Congresso da
Associação Portuguesa de Ciências e Comunicação. 2009. Anais... Lisboa: SOPCOM,
2009, p. 1-10.
PINTO, C. F. O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros. Coleção De
ed. São Paulo: Perspectiva, 1990.
RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. 2. ed. São Paulo: EXO,
2009.
RESENDE, D. M. M. O cinema de Abbas Kiarostami: Entre a transparência e a
auto-inquirição. Dissertação (Mestrado Artes Visuais). Escola de Belas Artes, Belo
119

Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.


REZENDE, L. A. Microfisica do documentário: ensaio sobre criação e ontologia do
documentário. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
SADIQI, F. Stereotypes and Women in Moroccan Culture. Cadernos Pagu, v. 30, p.
11–32, 2008.
SCOTT, J. História das mulheres. In: BURKE, P. (org.). A escrita da história. São
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 63–95.
SILVEIRA, J. E. S. Kahine: uma rainha berbere do século VII vista por escritoras
magrebinas contemporâneas. Trabalho de Conclusão de Curso em História. Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas. Porto Alegre. Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, 2017.
STRECKER, M. Na estrada - o cinema de Walter Salles. São Paulo: Publifolha,
2010.
TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VEIGA, A. M. Cineastas brasileiras em tempos de ditadura - cruzamentos, fugas,
especificidades. Tese (Doutorado em História). Centro de Filosofia e Ciências
Humanas. Florianópolis. Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.
VEIGA, A. M. Estéticas de políticas de resistência no “cinema de mulheres” brasileiro
(Anos 1970 e 1980). In: HOLANDA, K; TEDESCO, M. C. (org.) Feminino e plural:
mulheres no cinema brasileiro. Campinas - SP: Papirus, 2017.
XAVIER, I. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme,
1983.
XAVIER, I. O discurso cinematográfico - a opacidade e a transparência. 2. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2012.
YATES, F. A. Art of memory. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press, 1999.

FILMOGRAFIA:
AS boas maneiras. Juliana Rojas e Marco Dutra. 2017. Brasil.
CARTÃO Vermelho. Laís Bodanzky. 1994. Brasil.
COMO nossos pais. Laís Bodanzky. 2017. Brasil.
CHEGA de Saudade. Laís Bodanzky. 2008. Brasil.
ELENA. Petra Costa. 2012. Brasil
ERA o hotel Cambridge. Eliane Caffé. 2016. Brasil
FILMEFobia. Jean-Claude Bernadet. 2008. Brasil.
IVAN, o terrível. Serguei Eisenstein. 1947. União Soviética.
JOGO de cena. Eduardo Coutinho. 2007. Brasil.
NARRADORES de Javé. Eliane Caffé. 2003. Brasil.
120

O dia de Jeruza. Viviane Ferreira. 2013. Brasil.


OS homens que eu tive. Teresa Trautman. 1973. Brasil.
PARA ter onde ir. Jorane Castro. 2017. Brasil.
QUE bom te ver viva. Lucia Murat, 1989. Brasil.
RIDDLES of the Sphinx. Laura Mulvey e Peter Wollen. 1977. Estados Unidos.
SINFONIA da Necrópole. Juliana Rojas. 2014. Brasil
SISTER my Sister. Nancy Meckler. 1994. Espanha.
TÃO longe é aqui. Eliza Capai, 2013. Brasil.
THE hours. Stephen Daldry. 2003. Estados Unidos.
TRABALHAR cansa. Juliana Rojas e Marco Dutra. 2011. Brasil.
UNE Chante, L'Autre Pas, L'. Agnes Varda, 1977. França/Bélgica/Venezuela.
121

ANEXO

Entrevista realizada via Skype e transcrita, com a cineasta Eliza Capai em setembro de
2017. A entrevista foi publicada na Revista FilmeCultura nº 63 (2018), na edição
Mulheres, câmeras e telas.

Ana Carolina: Como foi a experiência da viagem pelo continente


africano? Quais seus sentimentos durante a conversa com aquelas mulheres,
especialmente sobre as diferenças e proximidades que sentiu em relação às mulheres do
Mali?
Eliza: Essa viagem me pirou. Fui com um objetivo muito diferente
daquele proposto. Minha família tem origem portuguesa e italiana. Minha bisavó era
negra, descendente de um relacionamento de um escravo com uma índia, então, fui com
essa visão de origens e pertencimento do nosso país. Mas, quando cheguei lá, fui para
lugares que não havia turistas brasileiros e eles não tinha referências do que é Brasil.
Como também não havia televisão nesse vilarejo em Dogon, não se tinha a ideia de
onde ficava o país. Quando dizia “sou do Brasil”, eles imaginavam que Brasil ficava na
Europa junto da França.
Talvez o que você esteja colocando, me remete à quando eu escutava as
perguntas que eu fazia para aquelas mulheres. Como é uma mulher Dogon? Qual a
diferença entre nós? Essas são perguntas das nossas faculdades, que são baseadas em
um modelo ocidental. Essas perguntas são completamente descoladas daquele lugar.
Elas fazem parte do nosso mundo, e não do mundo delas. Acho que falar de feminismo
naquele lugar é um pouco machista.

Ana Carolina: Você acha que seu trabalho se enquadra em algum


movimento recente do cinema brasileiro, em relação à forma independente de
produção?
Adoraria que me encaixassem! Os críticos que criam esses movimentos,
mas meu cinema é, sem dúvida, independente. Em relação à viagem para África,
consegui vender uma série para o GNT em forma de matérias. Fiquei lá durante sete
meses, e quando acabou o dinheiro, voltei. Depois, fiz um financiamento para fazer o
filme, então podemos dizer que é um filme “ultra” independente.
122

Mas, me sinto muito encaixada nesse movimento que as novas


tecnologias permitiram em que muitas pessoas podem fazer filme. Na faculdade, era
impossível pensar que ia fazer um longa sozinha. Era impossível pensar, porque era
muito caro, e hoje consegui fazer com uma câmera, que por meio de um programa de
TV, consegui comprar o equipamento. É um salto muito grande!
Ana Carolina: Como surgiu a ideia de reunir o material e contar a
história daquelas mulheres?
Eliza: Ao pegarmos o material para fazer o filme, vimos que era um
material de TV. Eram matérias muito diversas, e cada uma tinha uma temática diferente
tentando entender quem eram aquelas mulheres daqueles lugares e quais as
possibilidades de ser mulher naqueles lugares. Havia uma diversidade muito grande de
possiblidades ali, no entanto, algumas possibilidades de temas me chamavam a atenção.
Poligamia me chamava atenção, no Cabo Verde a questão da água me chamava a
atenção, no Marrocos, a questão das mães solteiras, também me chamavam a atenção.
Então, como tinha um material muito diverso, pensamos o que os unia.
Temos o estereótipo do que são as mulheres africanas. Muitas vezes
falamos, as africanas, mas não existem as africanas. Se não existem as brasileiras
imaginem as africanas, com 200 línguas diferentes e religiões diferentes. Portanto,
quando fiz as matérias para o canal GNT, a ideia foi quebrar com esses estereótipos, e
assim, cada episódio eram mulheres que não tinham absolutamente nada a ver com a
anterior, porque falavam outra língua, tinham outra cor e outra moda.
Em relação ao longa, morria de medo de fazer um filme antropológico,
em que eu, branca, chegasse lá é falasse: “olha o que fazem aqui, isso não é muito
legal”. Tinha muito medo de ser esse filme, porque não acredito nisso, eu não acredito
que exista uma fórmula de como ser mulher. Estamos em um país, que, se compararmos
as leis com vários dos países que estive, são leis muito mais avançadas no que tange a
questão a feminina. Muitos países que passei não aceitam o divórcio. Temos muito mais
liberdade aqui. Podemos decidir se casamos ou não, se teremos filhos, podemos sair à
noite, coisas que parte daquela sociedade não pode. Se isso é melhor, não sei. Mas fico
me perguntando, qual seria um lugar legal de ser mulher. Concluo que, para mim, ter
uma legislação que te permite fazer o que quiser e ter escolhas. Isso é confortável, mas
não digo para aquelas mulheres que esse seja um lugar confortável.
123

Ana Carolina: Você comentou que não gostaria que o filme ganhasse
um tom mais objetivo e “antropológico”, quais estratégias pensou e usou para tensionar
o limite do documentário e da narração?
Eliza: Eu e Daniel buscamos muito e por isso chegamos na ideia da
carta. A ideia da carta é a tentativa de ser um filme muito pessoal. Não estou falando
para o mundo todo como é a situação na África. Estou falando para minha filha, então
para minha filha posso falar de um sentimento que é pessoal e não taxativo. Era o modo
como eu sentia aquilo, com os incômodos que tive, entretanto não falo a verdade
absoluta daquele lugar.
Para mim, essa era uma preocupação muito grande, porque não entendia
aqueles lugares. Eu ficava um mês em cada lugar. Imagine uma pessoa no Brasil um
mês para falar como são as brasileiras, é impossível isso! Estamos a 200 anos tentando
entender qual é o nosso lugar como mulher na sociedade.

Ana Carolina: Hawa é uma das mulheres que chamam a atenção no


filme, por pertencer a um vilarejo sem eletricidade, portanto, seu trabalho é diferente,
seu espaço é diferente e seu tempo é diferente. Como essas mulheres entendem o
feminismo?
Eliza: Se Hawa é feminista, não sei, não entendo a língua dela. Então
não sabemos o lugar dela. Eu acho que é interessante ver o que isso desperta em nós.
Quando alguém fala “você é branca e é isso que nos separa”, para mim não acho que
seja o que nos separa. Para mim, o que nos separa é que ela tinha um marido, que tinha
outra mulher! Não consigo me imaginar nessa situação. Assim como ela não conseguia
me enxergar na minha situação, cheia de equipamentos, viajando sozinha. Então
tínhamos várias coisas que nos separávamos, mas para ela, era a cor da pele.
O feminismo, a palavra “feminismo”, tal qual a gente fala dele claro, são
Siham e o time de futebol lésbico na África do Sul, que dialogam de uma forma
parecida com nossas faculdades ocidentais.
Na África do Sul, por exemplo, existe estupro para todas as modalidades.
Um deles é o “corretivo”, ou seja, para as lésbicas entenderem que na verdade elas
gostam de homem e não são lésbicas, e por isso precisam de um “corretivo”. As
meninas então estão ali, porque o time de futebol é uma maneira que elas encontraram
de se unir. São lésbicas, pobres e pretas, num país que faz estupro corretivo. Elas
124

precisam entender o lugar em que estão para se empoderarem. Ali elas discutem o
feminismo de maneira aberta. Onde Hawa está, é uma discussão que nosso feminismo
não chega, não havia espaço para discussão sobre esse tema. Se formos pensar, nossos
interiores não são diferentes. A poligamia não está na lei, mas muitas famílias são
assim.

Ana Carolina: Quais são suas referências? Algo te influenciou na


montagem do longa?
Eliza: Quando fui para África, assisti algumas produções de Jean
Cocteau e gosto muito do modo como ele faz uma inversão no papel do colonizado.
Quando comecei a editar o filme, por acaso assisti Viajo porque preciso volto porque te
amo (2010).
Nesse filme, a partir de um material desconexo, criam uma narrativa.
Com imagens desconexas conseguiram criar uma narrativa muito poderosa. Foi um
start para que eu não fizesse um documentário. Foi então que surgiu a ideia da carta,
para que não fizéssemos um trabalho jornalístico.

Ana Carolina: Você passou por Cabo Verde, Mali, Marrocos, África do
Sul e Etiópia, no entanto, durante o longa, notamos que as paisagens da Etiópia não
foram organizadas como os demais destinos. Por quê?
Eliza: A escolha da carta para a filha simboliza a crise de maternidade,
que é uma crise real. Por meio da carta, pudemos jogar preconceitos e distancias sem
soar demasiadamente violento, então essa foi uma questão resolvida. Mas havia outra
questão que foi a que eles me colocaram lá, como colonizada, quando as crianças me
identificam com uma boneca branca. Eles me colocaram no lugar de meu inimigo
histórico, que é o colonizador e eu virei minha inimiga histórica! Se eu falasse de
racismo, a narrativa ia perder-se, mas, então, como falar disso, sem ser racista? Aí
vieram os sonhos, porque o sonho é esse lugar do subjetivo tentando entender a
realidade. Então, as paisagens da Etiópia simbolizam os sonhos, trazem os tabus e os
preconceitos.

Ana Carolina: Tão longe é aqui, é um filme que traz tanto a perspectiva
de uma mulher filmando, quando a perspectiva de mulheres filmadas. Qual sua visão
125

sobre o espaço das mulheres na arte e no audiovisual? Quais possibilidades de arte e


feminismo para transformação?
Eliza: Acredito que agora se chamou mais a atenção para isso, porque até
pouco tempo atrás nossas referências eram masculinas. Ao viajar, estava começando a
entender, mas, começou no Brasil o entendimento de que o espaço para as realizadoras é
pequeno.
Eu acho que vivemos em um momento muito poderoso de tomada de
consciência. Sobre o lugar que gostaríamos que as mulheres ocupassem e o lugar que
realmente estamos ocupando. Nos damos conta de que os números são muito diferentes
em relação às produções masculinas e femininas, é muito agressivo ver isso. Boa parte
das produções femininas estão longe, porque não se tem dinheiro, e se fazem, o fazem
porque se tem que fazer, como uma terapia. Então tomar consciência disso é muito
duro. Ao mesmo tempo tomar consciência disso é o início dessa transformação. Vi nos
últimos tempos um florescimento muito grande de grupos de mulheres diretoras de
fotografia, mulheres no audiovisual e mulheres editoras. É a criação de uma rede, para
que quando pensarmos na formação de uma equipe, para chamar alguém para o
trabalho, vem uma consciência junto disso. Se existe uma fotógrafa boa, porque não
chamá-la?
Estamos vivendo um momento um tanto agressivo, mas um tanto um “pé
na porta”. Num mundo que é agressivo, por conta do machismo, como responder a isso
a fim de uma transformação? Fico me fazendo muitas vezes essa pergunta. Se não
conseguimos a transformação de formas mais carinhosas. Mas acho que está
funcionando. Estamos conseguindo fazer mais filmes dirigidos por mulheres, e acredito
que quando são filmes dirigidos por mulheres, as pessoas têm tido mais carinho com
eles, porque sabemos o quão difícil é uma mulher conseguir um financiamento e
conseguir chegar com um filme numa sala de cinema. Com isso, conseguimos uma
multiplicidade de olhares de como encarar nossa sociedade, que é muito positivo.
Acredito que a arte funciona num lugar de formação do subjetivo que é
muito potente, mas não é obvio. É um movimento que vem nos aproximando, em que a
nova geração de cineastas que estão na escola, estão aprendendo que mulheres podem
dirigir cinema. Eu, por exemplo, não aprendi isso na escola.
Começamos a ver a realidade com diferentes formas de luta contra o
machismo. Um exemplo disso, é o filme Era o hotel Cambridge (Eliane Caffé), sobre
126

ocupação. Para mim, neste filme não há nenhum discurso feminista (inclusive acho que
existam mais personagens homens), mas tem ali uma forma de escutar esses homens,
que é tão empática, cujo olhar vem de um outro lugar. Não é um olhar de alguém que
sempre teve os benefícios sociais, mas o olhar de alguém que tem a sensibilidade de se
colocar no lugar do outro (embora neste caso seja de uma mulher, homens, obviamente,
podem fazer isso também). Mas acredito que agora, temos essa multiplicidade de
olhares que afetam nossa formação.

Você também pode gostar