A Casa Dos Mortos, Do Poema Ao Filme (Debora Diniz)

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Fonte: http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tint/about/submissions#copyrightNotice.
Acesso em: 14 jan. 2014.
ENSAIO
A CASA DOS MORTOS: DO POEMA AO FILME*

Debora Diniz**

Resumo – A casa dos mortos é uma etnografia fílmica de um manicômio judiciário brasileiro. Este ensaio descre-
ve as etapas iniciais de realização do filme, em particular a fase do trabalho de campo e de elaboração do roteiro.
Meu objetivo é mostrar como as propostas iniciais de argumento do filme foram provocadas pelo encontro
etnográfico e suspensas pelo poema-testemunho de Bubu, um interno com 13 passagens pelo hospital. O encon-
tro etnográfico é decisivo para a definição do roteiro, que apenas se materializa como um texto sobre as imagens
na etapa da montagem do filme. Essa particularidade da narrativa etnográfica traz uma série de desafios buro-
cráticos para a fase de autorizações institucionais para a realização do filme, em particular sobre instituições
fechadas e totalitárias como são os hospitais psiquiátricos e os presídios.
Palavras-chave: antropologia visual, documentário, etnografia, saúde mental, direitos humanos.

A primeira história sensível que ouvi sobre a população de manicômios judiciários foi a do
ladrão de bicicleta: “Há ladrões de bicicleta em todos os manicômios judiciários. São loucos
que roubaram bicicletas e vivem esquecidos”, um anúncio sobre a vida de homens silencia-
dos pelo poder psiquiátrico-penal (FOUCAULT, 2003). O ladrão de bicicleta era o personagem
infame, cujo murmúrio da história anunciava as fendas de um dos regimes mais cruéis de
controle da loucura – a institucionalização dos loucos em hospitais-presídios. Em seguida ao
ladrão de bicicleta, como um espectro à imagem do “louco ingênuo”, estavam as narrativas
espetaculares sobre os crimes terríveis cometidos por loucos furiosos e violentos. Os “loucos
perigosos” seriam os homens que mataram suas famílias ou os fabulosos assassinos seriais
ou canibais, um grupo de personagens ricos que atiçavam a fronteira entre a realidade e a
fantasia sobre a loucura e o crime. Foi entre esses dois personagens – o “louco ingênuo” e
o “louco perigoso” – que passei a visitar os 26 manicômios judiciários do Brasil em busca de
histórias, imagens e vidas (DINIZ, 2012).

* Reproduzido da revista Encontros Lusófonos, Tóquio, n. 14, p. 1-11, 2012 (Instituto Iberoamericano – Universidade Sofia).
** Professora do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora no Instituto
de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis).

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A casa dos mortos: do poema ao filme – Debora Diniz

O ladrão de bicicleta me lançava a uma aproximação humanitária das histórias dos “desa-
parecidos” pela loucura (ALTHUSSER, 1992), mas o espectro do louco perigoso o acompanhava
como um duplo moral imposto pela cultura do medo. Passei a buscar os ladrões de bicicleta
em todos os pátios de hospitais que visitei, no intuito de conhecer suas histórias e ler seus
arquivos. Eu os identificava pelo que havia sido imortalizado pelo arquivo psiquiátrico-penal
e os acompanhava como uma imagem viva de um regime de apartação pela loucura. Mas o
dispositivo penal não me permitia esquecer o seu espectro – a história do outro louco que
justificaria o controle absoluto de vidas consideradas abjetas, o louco perigoso. Os dois lou-
cos são personagens do documentário etnográfico A casa dos mortos, uma narrativa política
sobre os habitantes dos manicômios judiciários brasileiros1. Jaime foi o primeiro louco peri-
goso que conheci trancado em uma cela solitária de disciplinamento. Almerindo foi o primeiro
ladrão de bicicleta cuja história do arquivo memorizei antes de conhecê-lo, mediada pela
câmera. Os dois, Jaime e Almerindo, e outros homens e mulheres desaparecidos, estavam
internados em um manicômio judiciário em Salvador, Bahia, cidade no nordeste do Brasil.
Este ensaio descreve as etapas iniciais de realização do filme A casa dos mortos, em par-
ticular a fase do trabalho de campo e de elaboração do roteiro. Meu objetivo é mostrar como
as propostas iniciais de argumento do filme foram provocadas pelo encontro etnográfico e,
posteriormente, suspensas pelo poema-testemunho de Bubu. O encontro etnográfico é de-
cisivo para a definição do roteiro, que apenas se materializa como um texto sobre as imagens
na etapa da montagem do filme. Essa particularidade da narrativa etnográfica traz uma série
de desafios burocráticos para a fase de autorizações institucionais para a realização do filme,
em particular sobre instituições fechadas e totalitárias como são os hospitais psiquiátricos e
os presídios.

ANTES DO FILME

A ideia do filme veio antes de minha aproximação etnográfica do tema da loucura e do


crime2. Decidida a realizar um filme sobre a vida nos manicômios judiciários, passei a visitar
as unidades no país em busca de histórias. O Brasil possui 26 estabelecimentos custodiais
psiquiátricos, entre hospitais e alas psiquiátricas em presídios. São 3.900 indivíduos, organi-
zados em dois grupos populacionais: os em “medida de segurança” e os “temporários”, aqueles
transferidos de presídios para exames psiquiátricos3. A medida de segurança é um dispositivo

1 - O filme é falado em português, mas foi legendado para as línguas inglesa e espanhola. Ele pode ser assistido com legendas
em língua inglesa em: <http://www.youtube.com/watch?v=FLuZVLojKJw>.
2 - O filme foi proposto pela, então, coordenadora da área técnica de saúde da população prisional do Ministério da Saúde, Maria
Cristina Fernandes. Segundo ela, o filme seria um passo inicial para provocar as políticas públicas voltadas para essa população.
3 - Dados completos sobre o cenário dos loucos infratores internados em manicômios judiciários podem ser encontrados em
Diniz (2013).

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que absolve o indivíduo da infração penal por considerá-lo inimputável4. A avaliação da


inimputabilidade se dá por uma perícia psiquiátrica sobre o estado mental do indivíduo. Não
basta o sofrimento mental para qualificar um indivíduo como inimputável; é preciso que a
perturbação da saúde mental altere suas condições de julgamento, seu controle de si e seu
comportamento. Ao ser considerado inimputável, o indivíduo é absolvido da pena, porém
encaminhado à custódia para tratamento psiquiátrico compulsório.
Os manicômios judiciários são instituições híbridas, onde tratamento e punição se encon-
tram em uma mesma geografia e engenharia de poder. Os hospícios foram descritos por
Erwing Goffman (1974) como um exemplo de instituição totalitária, onde os regimes do
corpo e de controle da vida se atualizam em rotinas regradas pela vigilância policial e psiqui-
átrica. O primeiro grupo de loucos-infratores que conheci foi em uma ala psiquiátrica de um
presídio de segurança máxima no sul do Brasil. As fronteiras entre as celas dos loucos e as
celas dos presos comuns eram demarcadas por territórios internos, indissociáveis à primeira
visita. A população dos loucos, no entanto, se organizava segundo uma ordem custodial ní-
tida: os indivíduos mais dependentes eram tutelados por companheiros que recebiam bene-
fícios institucionais pelas tarefas de cuidado. Uma hierarquia da fragilidade e precariedade
dos corpos organizava as celas entre “auxiliares”, “perigosos”, “dependentes”, “dementes”,
“comprometidos” ou “idosos” – um cardápio de classificações internas e próprias a cada
unidade, cujas variações anunciavam os “desaparecidos” pelo regime de custódia.
As visitas exploratórias aos hospitais me mostraram a diversidade de espaços, organiza-
ções e regimes de vida – cada hospital era uma realidade singular. A decisão por realizar o
filme em Salvador pautou-se por razões éticas e estéticas. A primeira delas, por ser uma
unidade de porte médio, com 158 pacientes na época das filmagens. O tamanho da popu-
lação me permitiu conhecer as histórias dos pacientes pelos arquivos antes de uma aproxi-
mação face a face. Além disso, foi possível desenvolver estratégias de apresentação do
projeto do filme à comunidade, reconhecendo suas lideranças locais para a negociação5. A
segunda razão, por ser uma população singularmente racializada e compulsoriamente uni-
formizada de amarelo, cujo contraste de cores e marcas corporais denunciava a desigualda-
de racial e de classe que acompanha o regime asilar da loucura6. Por fim, o hospital havia
sofrido uma intervenção judicial que resultara em uma exposição do funcionamento e da
administração: a consequência foi um desnudamento público que fortaleceu a equipe para
expor-se como personagem de uma narrativa fílmica. Acredito que a proposta do filme operou

4 - No caso dos indivíduos semi-imputáveis, não há absolvição. No entanto, a vasta maioria dos indivíduos que vivem nos
manicômios foi considerada inimputável.
5 - A proposta do filme foi apresentada à equipe de profissionais e aos pacientes. Somente participaram aqueles que
concordaram com o projeto do filme.
6 - Salvador é a capital com maior concentração de negros no Brasil.

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A casa dos mortos: do poema ao filme – Debora Diniz

como um alento diante do já vivido pela administração – não havia nada a esconder, ao
mesmo tempo em que aquela poderia ser uma oportunidade de mostrar o quanto o hospital
era uma realidade esquecida e, na perspectiva da administração, em vias de transformação.
O diretor médico do hospital de Salvador acolheu a proposta do filme. No entanto, sua
autorização deveria ser seguida de outras, uma burocracia que se ampliava, dado o regime
tutelar de vida dos pacientes7. O poder psiquiátrico é mais vigoroso que a força repressiva
dos agentes penitenciários, que circulam sem armas ou outros instrumentos de contenção
física. Os pacientes sabiam que eu não era psiquiatra, mas reconheciam no jaleco branco o
sinal da proteção institucional. Não sei se por uma pacificação compulsória dos pacientes
pelo regime de controle ou se pela custódia do jaleco branco, o trabalho de campo transcor-
reu sem incômodos durante os dez meses que frequentamos o manicômio. O senso do peri-
go não esteve presente no encontro etnográfico entre a equipe de filmagens e os pacientes.

A CHEGADA DA CÂMERA

Passei meses estudando os arquivos. Eu precisava conhecer cada paciente pelo registro
psiquiátrico e penal. Ouvi as narrativas da administração, andei pelo pátio nos horários de
convivência e banhos de sol. Os pacientes passaram a me conhecer e ganharam corpo
para além dos murmúrios a que se viam resumidos nos arquivos (FOUCAULT, 2003). O la-
drão de bicicleta se personalizou em Almerindo, um homem internado havia 32 anos por
causa de um furto de bicicleta e uma agressão leve. Mas Almerindo me parecia não ser
suficiente para uma etnografia política sobre instituições que se justificam pela cultura do
medo – os manicômios judiciários, dizem seus defensores, servem à defesa social. Alme-
rindo sozinho poderia ser entendido como um equívoco de uma engrenagem prisional,
uma história de “louco ingênuo” desaparecido, tornado visível pelo filme. Era preciso en-
contrar o personagem do “louco perigoso” para a fábula do medo e do perigo sobre a
loucura. Passei a buscá-lo pelas classificações psiquiátricas dos arquivos: um homem jo-
vem, com sucessivas internações, descrito como “insensível, frio, manipulador e egoísta”,
cujo crime teria sido um ou mais homicídios. Sua descrição médica era a de transtorno de

7 - O projeto do filme foi revisado quanto aos aspectos éticos por um comitê de ética em pesquisa da Universidade de Brasília.
Além disso, todos os pacientes assinaram (ou colocaram a impressão digital) um termo de consentimento livre e esclarecido
para gravação de imagem e som para participar do filme e uma autorização. Somente dois pacientes não desejaram participar,
e sua vontade foi acolhida pela equipe. O projeto do filme foi inicialmente apresentado à equipe de saúde e administração do
hospital, depois às alas e suas lideranças e, por fim, ao conjunto dos pacientes. A coleta dos termos foi realizada pelas lideranças,
um mecanismo encontrado pela equipe do filme para permitir que a própria comunidade encontrasse suas estratégias de
negociação para o aceite ou a recusa de participação. Além das autorizações internas e individuais, secretarias do governo do
estado da Bahia autorizaram a realização do filme.

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conduta e comportamento antissocial ou, em termos populares, psicopatia. Foi assim que
encontrei Jaime preso em uma cela solitária, antes tendo sido alertada pelo diretor de que ele
seria o único paciente de quem eu não deveria me aproximar sozinha. Jaime acabara de as-
sassinar um colega de ala.
Entre Jaime e Almerindo, o “louco perigoso” e o “louco ingênuo”, defini o argumento do
filme. Os dois homens eram pêndulos de uma narrativa entre o medo e o abandono. Após
meses de convivência no manicômio, decidi ligar a câmera em um dia que se anunciaria
festivo. Haveria um torneio de futebol entre manicômios: esperavam-se visitantes, outros
pacientes e suas famílias. Ensaiavam-se músicas e eram preparadas comidas para o dia que
seria vivido fora das alas. Uma movimentação ideal para que a câmera fosse apresentada. Foi
assim que chegamos antes dos visitantes, em um prenúncio do dia. Essa foi a cena inicial do
filme, o encontro entre a equipe de filmagens e os loucos, mediado pela câmera e por uma
fronteira invisível no pátio do hospital. Os homens se descreviam como em uma anamnese
médica e policial, e a câmera silenciosa os perseguia sem avançar na geografia dos espaços.
Eles se apresentavam como ladrões, assassinos, inocentes, presos que já haviam cumprido
suas penas. Em um misto de excesso de rostos e vozes, a audiência se descobre no pátio de
um manicômio judiciário.
Jaime não foi liberado para o jogo de futebol. Estava em uma cela solitária, um regime de
exceção em um hospital cujas grades haviam sido retiradas dos quartos – sinal tímido da
aproximação dos manicômios judiciários do movimento de reforma psiquiátrica e uma atua-
lização tardia da alegoria de Pinel da quebra das correntes dos loucos em Salpêtrière8. Além
dele, ficaram nas celas os pacientes mais debilitados, os idosos com dificuldade de locomo-
ção ou aqueles em torpor pelos medicamentos. Na abertura do filme, ao atravessar a barrei-
ra invisível da entrada no pátio e escutar as apresentações dos indivíduos sobre si mesmos,
entramos na ala do primeiro andar – exatamente onde estavam os que não participariam do
dia de festa. Ao fundo estava Jaime, perambulando em sua cela solitária. Os primeiros minu-
tos do filme são um contraste à profusão de vozes e sons da abertura. Jaime está silencioso
e nos mira. Atrás das grades, não há como escapar do encontro. Foi assim que fui apresen-
tada a Jaime, e só depois ao poema-testemunho de Bubu.
Bubu era um homem com 12 internações em hospitais psiquiátricos, entre manicômios
judiciários e internações civis. O arquivo o descrevia como alguém que perturbava a ordem
pública – filho de uma vereadora de um município do interior da Bahia, sua principal agita-
ção era fazer campanhas políticas contra a mãe. Entre idas e vindas ao manicômio, já tinha

8 - A Reforma Psiquiátrica brasileira teve início em finais dos anos 1970. Foi um processo extenso de revisão das regulamentações
sobre a loucura, cujo marco foi a lei da reforma psiquiátrica em 2001. Uma das principais conquistas da Reforma Psiquiátrica
foi a contestação da internação psiquiátrica asilar como forma de tratamento. Houve uma abertura gradativa dos manicômios
civis, exceto dos manicômios judiciários.

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A casa dos mortos: do poema ao filme – Debora Diniz

acumulado passagens na delegacia por agressão física grave. Apresentado como esquizofrê-
nico pelo laudo psiquiátrico, redescrevia-se como intelectual incompreendido. Lançou-se
diante de mim e reclamou que lhe explicasse as razões que me levavam ao hospital. Eu esta-
va em sua ala, ao lado de seu único território, a cama, e ali ele era o senhor: eu lhe devia
explicações pessoais por aquela intromissão. Em uma troca de lugares, postou-se atrás da
câmera e passou a me inquirir sobre os planos do filme. Nesse encontro, ouvi pela primeira
vez sua descrição de que vivia em uma “cela dos mortos”.
No dia seguinte, fui novamente procurada por Bubu. Dessa vez, ele trazia um papel ma-
nuscrito entre os dedos. “Fiz um poema para o seu filme. Ele se chama A casa dos mortos”,
anunciou em tom solene. Fui sua primeira audiência: um poema-testemunho em que ele é
personagem e crítico do poder psiquiátrico, ao mesmo tempo em que a nosologia médica da
esquizofrenia é substituída por “surtos de loucura brejinhótica”9. Nos versos, encontrei um
roteiro para o filme – uma voz em três atos: “As mortes sem batidas de sino”, “As vidas sem
câmbios lá fora”, “As drogas usuais e ditas legais” – e uma autoridade estética nativa para a
narração. A escuta do poema foi perturbadora. Provocou uma suspensão no pêndulo Jaime
e Almerindo, pois havia ainda um terceiro personagem a ser localizado, aquele cuja existên-
cia oscilava entre o perigoso e o ingênuo. O terceiro personagem era o habitante ainda não
desaparecido do mundo externo, aquele sem lugar dentro ou fora do manicômio. Eles eram
muitos dentro do hospital, com histórias singulares e anônimas ao mesmo tempo.
Antônio chegou em surto, amarrado à carroceria de uma caminhonete. A presença da câ-
mera, mesmo sem mediação pela minha voz, foi suficiente para provocar nele o rito da
anamnese. Eram frases desconexas, mas que remetiam à sua biografia em delírio: dizia de
onde vinha, quem era, onde trabalhava. Com Antônio, pude etnografar o rito de acolhimen-
to, a passagem da vida comum ao uniforme hospitalar, a docilidade da incorporação da
medida de segurança em um novo habitante. Antônio chegou em meio às festas de São João,
quando havia música e suspensão da ordem cotidiana. Era um habitante já conhecido do
hospital, pois o arquivo registrava passagens anteriores. As regras da casa foram brevemen-
te anunciadas pela enfermeira que o atendeu: medicamentos, corte das unhas e uniforme.
Antônio provoca riso na audiência, um riso que desperta receios sobre seu estatuto ético: se
legítimo ou obsceno.
Música e humor acompanharam o trabalho de campo para as filmagens. Salvador é uma
cidade musical e, na ausência do encontro pela palavra, a música era a alternativa escolhida
pelos habitantes para se aproximarem de mim. As apresentações de Almerindo são todas
iniciadas por cantorias espontâneas: bastava mirá-lo para que cantasse. Foi assim antes de
sua entrada na sala da defensoria pública, foi assim na cena final do filme, em que um grupo

9 - Oliveira dos Brejinhos é o nome da cidade de origem de Bubu, onde sua mãe é vereadora.

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relembrava a visita ao zoológico10. Os anônimos foram os responsáveis por essa combinação


entre música e humor: entre trechos de música e destemperos permitidos ao estatuto de
louco, o filme ganha leveza no encontro com a audiência. Uma cena de grande repercussão
nas mídias virtuais é a de um dos personagens que se lançou na tela e percorreu um texto
mental sem pausas: frases bíblicas, desejos televisivos, programas de computador foram al-
guns dos elementos de seu repertório desconexo11. Se a entrada do humor e da música
desconcertou a audiência, por outro lado, trouxe desafios adicionais à montagem, sendo o
principal deles a cessão dos direitos autorais para um filme sobre loucura e crime12.

A MONTAGEM

O poema-testemunho de Bubu passou a ser um guia dos atos na etapa de montagem. Os


três atos enunciados pelo poema organizaram os capítulos do filme, cada um com seu pro-
tagonista: Jaime, o morto sem luto; Antônio, o sem lugar; Almerindo, o desaparecido. Foram
quase 50 horas de filmagens, entre ritos hospitalares, festas, silêncios e saídas terapêuticas.
Almerindo e Jaime já me acompanhavam do campo para a edição como personagens do
filme, mas Antônio foi um instantâneo etnográfico que alcançou o lugar do terceiro perso-
nagem na fase da montagem. Antônio acompanha o segundo e mais longo capítulo do filme,
aquele que mostra os habitantes da casa e sua rotina. Há uma sobreposição entre a história
de Antônio e a de outros habitantes anônimos do manicômio.
Um documentário etnográfico resiste à possibilidade do roteiro prévio, pois o instantâneo
desafia permanentemente o olhar. O real que se recusa ao ensaio é ainda mais singular no
caso de um filme sobre a loucura: não seria possível repetir cenas ou ensaiá-las para a arqui-
tetura do cinema direto. Paradoxalmente, também não há como iniciar as filmagens sem um
argumento sólido sobre o que poderá ser a narrativa na etapa da montagem. Essa é uma
tensão permanente no documentário etnográfico: é da etnografia que nascerá o filme, mas
a montagem não prescinde de um argumento ou mesmo de um roteiro pós-filmagens. O
poema de Bubu operou como esse texto para as imagens: os atos foram os cortes entre os
capítulos, e os três personagens, os protagonistas de cada ato. Sua voz causa um ruído no

10 - As saídas são eventos raros na rotina do manicômio judiciário. No entanto, para pacientes de longa permanência, descritos
como “problemas sociais”, como é a história de Almerindo, a equipe de saúde procura realizar saídas terapêuticas. Durante as
filmagens, acompanhamos saídas para a praia e o zoológico.
11 - O corte dessa cena de 47 segundos já teve quase um milhão de views no YouTube: <http://www.youtube.com/
watch?v=CymXSOBsL-Q>.
12 - Nem todos os artistas ou detentores de direitos autorais autorizaram a difusão de suas músicas no filme, por isso, algumas
cenas não puderam ser incluídas na montagem.

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A casa dos mortos: do poema ao filme – Debora Diniz

filme, pois não se trata de uma voice of god neutra e universal. É uma voz situada na geo-
grafia e na estratificação social.
Jaime se suicidou durante as filmagens. Há duas cenas em que ele aparece: a primeira
atrás das grades, na cela solitária, e a segunda em sua primeira saída para o banho de sol. O
encontro com Jaime foi conduzido por Uilton, um paciente que se autoclassificou como as-
sistente de filmagens. A única cena do filme em que se simula uma entrevista em formato
de retrato foi realizada por Uilton: Jaime se posicionou diante da câmera como o “louco
perigoso”, descrevendo seus feitos e delírios fora do hospital e dentro dele. Jaime mirou a
câmera sem posar, pois a engrenagem não o intimidava (BARTHES, 1981). A presença de
Jaime na tela é perturbadora não só para a audiência, mas para uma narrativa política sobre
a inumanidade dos manicômios judiciários. O “louco perigoso” é quem desafia a tese de que a
sequestração e o asilamento dos loucos seriam tratamentos injustos em saúde mental –
Jaime, ao corporificar o psicopata assassino, conforta quem o assiste pela certeza de que ele
está morto ou de que outros como ele estão encarcerados.
Jaime não foi quem provocou o meu engajamento com a questão da loucura criminosa.
Assim como a audiência, eu o mantinha sob suspeita, o que é diferente de ter experimen-
tado medo em nossos encontros. Um teste extremo de convivência ocorreu entre a cena do
banho de sol e a narrativa do suicídio no filme: fui trancada com ele e mais quatro pacien-
tes em uma ala. Um simples desencontro entre as equipes de enfermagem me deixou sem
comunicação, confinada com os cinco homens mais perigosos do hospital. Enquanto
aguardávamos que alguém me localizasse, nos mirávamos com a surpresa de quem não
esperava uma convivência tão íntima e mutuamente desprotegida. Sem a intermediação da
câmera e blindada pelo jaleco branco, não houve comunicação entre nós. Mas também
nenhum sinal inoportuno, além de minha presença no espaço que era deles e o apartado da
rotina institucional.
A narrativa sobre o suicídio de Jaime foi uma das cenas de montagem mais delicada. Ao
representar o ato “Das mortes sem batidas de sino”, Jaime corporificou o personagem abjeto
pela loucura criminosa, cuja morte não desperta o luto (BUTLER, 2009). A imagem de Jaime
morto seria insuportável ao filme, por isso a opção por contá-la por meio das vozes e gestos
de outros pacientes. O lençol foi a materialidade que restou da engenharia abstrata do sui-
cídio, uma cultura compartilhada nos manicômios judiciários. Todos sabem como morrer e
matar, uma tecnologia sobre o corpo que se mostra útil à sobrevivência individual e comu-
nitária. Mas representar Jaime no suicídio não garantiria o reconhecimento de sua história
como de abandono ou injustiça: há uma distância ética provocada pelo estigma da loucura
criminosa e tenho dúvidas de se o filme é capaz de repará-la. Por isso, não deposito no filme
a potência de provocar o reconhecimento político, mas talvez a de registrar lembranças em
quem assista a ele (DINIZ, 2012). Como Susan Sontag (2003), acredito que lembrar histórias
de sofrimento é um ato ético de sensibilização para a dor do outro.

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TRAMA INTERDISCIPLINAR - v. 4 - n. 2 - 2013

UM FILME POLÍTICO

O título do filme seria um exagero narrativo caso não tivesse sido concedido por Bubu, em
um intertexto com Fiódor Dostoiévski (2010) ou Lima Barreto (2010). Por isso, é Bubu quem
anonimamente escreve no chão o título para o quadro de abertura. É ele também quem lança
o veredicto final, em um recurso afetivo de comparar os manicômios judiciários aos infernos
de Dante Alighieri. Bubu desdenha os saberes psiquiátricos e lança-se como autor de sua
biografia – uma resistência feroz ao poder psiquiátrico e penal que o reduz a trechos de
arquivo. Depois de finalizado, o filme foi lançado no hospital com a presença dos pacientes,
da equipe de saúde e da administração, momento em que Bubu leu o poema na íntegra e fez
comentários sobre o filme. Por ocasião do lançamento nacional, o jornal O Estado de S.Paulo
fez um reportagem sobre Bubu e sua história, cujo título era Mais louco é quem me diz
(TAVARES, 2009)13.
Bubu e a administração do hospital foram os primeiros a assistir ao filme, ainda em uma
etapa preliminar para revisões. Negociamos pontos de vista e possibilidades narrativas, em
um exercício de antropologia compartilhada (ROUCH, 2003). O filme permitiu aos pacientes,
à equipe de saúde e à administração, assisti-lo e criticá-lo, antes mesmo de sua finalização,
uma experiência pouco comum às etnografias textuais. Essa não foi uma exigência contra-
tual para a realização do filme, mas um compromisso ético e político que assumi com os
personagens do filme, em particular com o Bubu e sua criação poética. A relação de Bubu
com o filme foi ambígua após o lançamento: houve momentos em que se sentiu valoriza-
do com a presença do poema no filme, e houve momentos em que reclamou sua retirada da
narrativa por considerar que a presença de Antônio e Almerindo perturbavam uma história
que deveria ser exclusivamente sua.
A casa dos mortos é uma etnografia de um manicômio judiciário brasileiro. Minha ambi-
ção é que fosse mais do que um relato etnográfico: um filme político com histórias esqueci-
das e desconhecidas pela sequestração e pelo asilamento da loucura. O estigma da loucura
criminosa transformou Almerindo em um “desaparecido” da vida social; o filme apenas o
localizou. Há um limite ao uso do filme como evidência para a ação política – é uma narra-
tiva de evidência, mas não é suficiente para alterar os regimes de apartação e desigualdade.
Almerindo existe, está vivo e abandonado em um hospício. Sua história nos provoca um
mal-estar ético e não é fácil esquecer-se do louco ladrão de bicicleta que passou a vida em
um manicômio. Por isso, acredito na potência narrativa dos documentários para nos provo-
car uma aproximação ética, muito embora tenha dúvidas sobre sua suficiência para a repre-
sentação necessária ao reconhecimento político.

13 - O filme recebeu 25 prêmios em festivais.

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A casa dos mortos: do poema ao filme – Debora Diniz

A casa dos mortos


Poesia de Bubu
Salvador – Bahia – Brasil, terça-feira, 13 de maio de 2008
96 versos em dez estrofes

A casa dos mortos


das mortes sem batidas de sino.
– Cena 1 deste filme-documentário
do mesmo destino de sempre;
é que aqui é a casa dos mortos!

***

A casa dos mortos


das overdoses usuais e ditas legais.
– Cena 2 deste filme-documentário
do mesmo destino de sempre;
é que aqui é a casa dos mortos!

***

A casa dos mortos


das vidas sem câmbios lá fora.
– Cena 3 deste filme-documentário
do mesmo destino de sempre;
é que aqui é a casa dos mortos!

***

Prá começo de conversa, são 3 cenas,


são 3 cenas anteriores e posteriores
às minhas 12 passagens
pelas casas dos mortos,
que são os manicômios;
– tenho – digamos assim! –
surtos de loucura existencial brejinhótica,
relativos à minha cidade natal,
Oliveira dos Brejinhos – Bahia – Brasil;

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TRAMA INTERDISCIPLINAR - v. 4 - n. 2 - 2013

voltando às cenas:
... cenas que, por si sós,
deveriam envergonhar os ditames legais
das processualísticas penais e manicomiais;
mas, aqui é a realidade manicomial!

***

Pois, bem: são 3 cenas,


são três cenas repetidas e repetitivas
de um ritual satânico-sacro
com poucos equivalentes comparados de terror,
cujo estoque self-made in world
é o medicamentoso entupir de remédios,
o qual se esquece de que
A Era Prozac
das pílulas da felicidade
não produz A Era da Felicidade
da nossa almática essência de liberdade;
mas, aqui é a realidade manicomial!

***

E, ainda sobre as 3 cenas:


são 3 cenas de um mesmo filme-documentário:
Cena 1, das mortes sem batidas de sino;
Cena 2, das overdoses usuais e ditas legais;
Cena 3, das vidas sem câmbios lá fora
– que se reescrevam, então,
Os Infernos de Dante Alighieri;
mas, aqui é a realidade manicomial!

***

Reporto-me às palavras de um douto inconteste,


um doutor que rompeu o silêncio,
o jornalista Jânio de Freitas,
do jornal A Folha de São Paulo:

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A casa dos mortos: do poema ao filme – Debora Diniz

“A psiquiatria é a mais atrasada das ciências”


– Parafraseio Jânio de Freitas
porque a casa dos mortos,
que é a metáfora arquitetônica
pela qual designo a psiquiatria,
pede que se fale
contra si mesma!

***

E, por falar, também, em lucidez,


sou lúcido e translúcido:
a colunista-articulista Danuza Leão,
no jornal baiano A Tarde, explica:
“Lucidez é reconhecer
a sua própria realidade,
mesmo que isso lhe traga sofrimentos.”
Mas, qual, ó Bubu!:
isto aqui é a casa dos mortos,
e, na casa dos mortos,
quem tem um olho é rei,
porque esta é a máxima e a práxis
da casa dos mortos.

***

Hospital São Vicente de Paulo /


Taguatinga – Distrito Federal – Brasil, abril de 1995:
o laudo a meu respeito (eu Bubu)
é categórico e afirma sinteticamente:
“O senhor Bubu é perfeita e plenamente lúcido!”.
Mas, é que lá a psiquiatria é Psiquiatria Federal,
com P maiúsculo,
de propriedade patenteada
e de panteão da civilização;
enquanto que, aqui na Bahia,
a psiquiatria é psiquiatria estadual,
com p minúsculo,

33
TRAMA INTERDISCIPLINAR - v. 4 - n. 2 - 2013

de pôrra-louquice
e de prostíbulo do conceito clínico
(não custa nada afirmar:
eu Bubu fui absolvido
pela Psiquiatria Federal,
e eu Bubu fui condenado
pela psiquiatria estadual
– eis o mote da minha história!)

***

Isto é um veredicto!
– tomara que fosse um ultimatum
à casa dos mortos!

The house of the dead: from the poem to the film

Abstract – The house of the dead is an ethnographic film of a Brazilian psychiatric prison. This paper describes
the production and the making of the film, particularly the fieldwork and the script writing. The initial idea of the
film was changed by the ethnographic encounter with Bubu, a man with 13 hospitalizations. Bubu wrote a tes-
timony of his life in poetic stanzas, which was the voice over of the film. The final script emerged while editing
the film, a characteristic of ethnographic movies. This peculiarity of the ethnographic narrative brings several
bureaucratic to the making of the film.
Keywords: visual anthropology, documentary, ethnography, mental health, human rights.

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, L. O futuro dura muito tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BARRETO, L. Cemitério dos vivos. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
BARTHES, R. Camera lucida: reflections on photography. New York: Hill and Wang, 1981.
BUTLER, J. Frames of war: when is life grievable? New York: Verso, 2009.
DINIZ, D. The house of the dead — the ethics and aesthetics of documentary. In: MACNEILL, P.
(Ed.). Bioethics and arts. London: Blackwell, 2012.

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A casa dos mortos: do poema ao filme – Debora Diniz

DINIZ, D. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: Letras Livres/
UnB, 2013.
DOSTOIÉVSKI, F. Recordações da casa dos mortos. Tradução Nicolau S. Peticov. São Paulo:
Nova Alexandria, 2010.
FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: MOTA, M. B. (Org.). Ditos e escritos IV – estra-
tégia, poder, saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 203-222.
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
ROUCH, J. The camera and man. In: Ciné-ethnography (visible evidence). Tradução e edição
Steven Feld. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003. p. 29-46.
SONTAG, S. Recording the pain of others. New York: Picador, 2003.
TAVARES, F. Mais louco é quem me diz. O Estado de S.Paulo, 5 abr. 2009. Aliás, J8.

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