Texto 4 Unidade Ii Os Contos de Fadas e A Formação de Valores Morias

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Revista do SELL

v. 4, no. 2
ISSN: 1983-3873

OS CONTOS DE FADAS E A FORMAÇÃO DE VALORES MORAIS

FAIRY TALES AND THE MORAL VALUES FORMATION

Dalva Ramos Resende Matos


UFG / UFU / UFMT

RESUMO: Os contos de fadas encantam os leitores por meio da fantasia e do


maravilhoso, mas, ao mesmo tempo, eles também ajudam a criança a perceber o mundo
e prestam suportes simbólicos para a formação de seus valores morais e éticos, pois
abordam dilemas inerentes ao amadurecimento humano e exteriorizam os seus
sentimentos mais profundos, dos mais sublimes aos mais primitivos. Sendo assim, este
artigo trata-se de um estudo teórico-analítico sobre os contos de fadas e os valores
morais, fundamentado à luz de pesquisas em diversas áreas, como Literatura, Psicologia
e Psiquiatria. Inicialmente, será apresentada uma breve fundamentação teórica sobre
esse gênero narrativo, abordando conceitos elementares e traçando um panorama da
história sociocultural dessas narrativas. Em seguida, a título de ilustração, será feita uma
breve análise das moralidades apresentadas por Perrault nos contos As Fadas e
Cinderela. Vale ressaltar que o objetivo deste trabalho não é transformar os contos de
fadas em um objeto funcional, mas sim colocar em pauta a contribuição deles para a
formação dos valores das novas gerações, pois, segundo Walter Benjamin, esse gênero
literário é hoje o conselheiro das crianças, porque foi antes o primeiro da humanidade.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria literária; Psicanálise; Conto de fadas; Valores morais.

ABSTRACT: Fairy tales delight the readers through fantasy and wonderment, but, at the
same time, they also help children understand the world and provide symbolic support for
the formation of their moral and ethical values, because they handle dilemmas that are
intrinsic to the human growth and externalize their deepest feelings, from the most
primitive to the most sublime ones. Therefore, this article talks about a theoretical and
analytical study of fairy tales and moral values, based on researches in many different
fields such as Literature, Psychology and Psychiatry. Initially, it is shown a brief theoretical
background on this narrative genre, handling basic concepts and drawing an overview of
the sociocultural history of these narratives. Then, by way of illustration, a brief analysis of
morals presented by Perrault in the tales “The fairies” and “Cinderella” is taken. It is
noteworthy that the objective of this article is not to turn fairy tales into a functional object,
but to highlight their contribution to the formation of the values of the younger generations,
because, according to Walter Benjamin, this literary genre is currently the children's
adviser, as it was the first of mankind.

KEYWORDS: Literary Theory; Psychoanalysis; Fairy tales; Moral values.

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1 Introdução

Em uma sociedade em que a aparência vale mais do que a essência, a competição


e o individualismo prevalecem nos relacionamentos e os valores morais parecem ser
progressivamente esquecidos, faz-se necessária a formação de valores básicos para a
vida e a convivência em uma sociedade plural e democrática (CHALITA, 2003).
Nesse contexto, segundo Antonio Candido, a literatura pode contribuir com o seu
poder humanizador para que o leitor seja levado, ainda que de maneira inconsciente, a
buscar, na leitura literária, a reflexão, a sabedoria, a boa disposição para com o próximo,
o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, a
compreensão da complexidade do mundo e dos seres. Segundo esse autor: “A literatura
desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 1995,
p. 249).
Sob esse prisma do aspecto humanizador da literatura, os contos de fadas podem
auxiliar e muito na tarefa de construção da personalidade infantil, pois mais do que
qualquer outro tipo de narrativa, eles dirigem a criança para a descoberta de sua
identidade e também sugerem as experiências que são necessárias para desenvolver o
seu caráter. Nesses contos infantis, encontram-se o amor, os medos, as dificuldades de
ser criança, as carências (afetivas e materiais), as autodescobertas, as perdas, as
buscas, a solidão, a imoralidade das personagens malévolas e as virtudes dos heróis e
heroínas.
Como obra de arte, esses contos encantam a todos por meio do lúdico, da fantasia,
dos significados psicológicos e contribuem, de forma efetiva, para a educação moral da
criança. Dessa forma, ao mesmo tempo em que essas narrativas encantam as crianças
com o prazer literário, também ensinam. Não um saber institucionalizado, mas uma
sabedoria de vida, pois ajudam as crianças a perceberem o mundo e prestam suportes
simbólicos para a formação de seus valores morais e éticos, abordando dilemas inerentes
ao amadurecimento humano e exteriorizando os sentimentos mais profundos, dos mais
sublimes aos mais primitivos.
Assim sendo, lições de moral como a humildade da Cinderela, a paciência da Bela
Adormecida, a pureza da Branca de Neve, a exaltação da beleza interior em A Bela e a
Fera e outros sentimentos como o amor, a fraternidade e a bondade, manifestados por
heróis e heroínas dos diversos contos de fadas, vão ao encontro dos anseios infantis de
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corresponder a uma imagem do bem que sempre vence no final. Em contrapartida,


sentimentos como a inveja, o ódio, a cobiça, a desobediência, o egoísmo e a vingança,
exteriorizados simbolicamente no perfil de personagens do mal - como bruxas, madrastas
cruéis e irmãs invejosas - são rejeitados.
Os contos de fadas são tão ricos que têm sido fonte de estudo para psicanalistas,
sociólogos, antropólogos, linguistas, críticos literários e outros especialistas, cada qual
dando sua interpretação e aprofundando no seu eixo de interesse. Neste trabalho, o olhar
será voltado para a contribuição dessas narrativas para a formação dos valores morais e
éticos das crianças, por meio de um estudo teórico-analítico dos contos de fadas. Para
isso, inicialmente, serão apresentados os resultados de uma pesquisa bibliográfica sobre
esse gênero narrativo, explicitando conceitos elementares e mostrando um panorama da
história sociocultural das origens dessas narrativas às produções modernas. Em seguida,
a título de ilustração, será feita uma breve análise das moralidades apresentadas por
Perrault nos contos As Fadas e Cinderela.
Sabe-se que o tema deste artigo é palco de divergências entre especialistas de
várias áreas. Por isso, ressalta-se que o objetivo deste trabalho não é reduzir o conto de
fadas a um objeto funcional, muito menos uma tentativa de atribuir utilidade a todo custo
para a literatura, uma vez que o maior encantamento desse gênero narrativo reside no
maravilhoso, na fantasia, na arte literária. O próprio Bruno Bettelheim, em sua obra A
psicanálise dos contos de fadas, destaca que:

O prazer que experimentamos quando nos permitimos ser suscetíveis a


um conto de fadas, o encantamento que sentimos não vêm do significado
psicológico de um conto (embora isto contribua para tal) mas de suas
qualidades literárias – o próprio conto como uma obra de arte. O conto de
fadas não poderia ter seu impacto psicológico sobre a criança se não fosse
antes de tudo uma obra de arte. (BETTELHEIM, 1992, p.20).

Também é possível afirmar que o conto de fadas é constituído de forma e conteúdo


ordenados com a finalidade de impressionar e causar sentimentos relacionados às
virtudes morais, bem como suscitar comoção, indignação, alegria e superação. Por isso, o
“[...] maravilhoso, concretizado em imagens, metáforas, símbolos, alegorias... é o
mediador, por excelência, dos valores a serem individualmente assimilados pelos ouvintes
ou leitores (para além do puro prazer que sua linguagem possa transmitir...).” (COELHO,
1984, p. 23, grifo do autor).

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2 O maravilhoso, o conto de fadas e as fadas

No universo do maravilhoso, o gênero “conto de fadas” tem sido utilizado para


designar histórias provenientes da oralidade, com ou sem presença de fadas, que se
passam em um tempo e espaço indeterminados, tendo como núcleo as ações de um
herói ou uma heroína que empreende uma trajetória difícil, permeada de provas, cuja
superação leva ao sucesso final. A presença do “maravilhoso” é fundamental nessas
narrativas, pois, na trajetória do(a) protagonista, são os meios mágicos que lhe
possibilitam ultrapassar as difíceis provas qualificadoras. (COELHO, 1987)
De maneira geral, os gêneros conto maravilhoso, conto de fadas e conto exemplar
vêm sendo tratados como sinônimos. Porém, Coelho (2003) explica que há entre eles
uma diferença essencial em função da problemática que lhes serve de fundamento.
Segundo essa autora, o conto maravilhoso tem raízes orientais, não há, nele, a presença
de fadas e seu enredo gira em torno de uma problemática material-social-sensorial, ou
seja, parte de um ambiente de miséria e está ligada à realização socioeconômica (a
busca de riquezas; a conquista de poder; a satisfação do corpo, etc.) do indivíduo no seu
meio. Exemplos: Aladim e a Lâmpada Maravilhosa; O Gato de Botas; Ali Babá e os
Quarenta Ladrões. Já o conto de fadas tem origens célticas. Com ou sem a presença de
fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se dentro da
magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, bruxas, gigantes, objetos
mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida...) e o enredo gira
em torno de uma problemática espiritual-ética-existencial ligada à autorrealização do
indivíduo, seja por meio do encontro do seu verdadeiro “eu” ou pela união matrimonial do
Cavaleiro com a Amada (princesa ou plebeia), como: Rapunzel; Cinderela; Branca de
Neve e os Sete Anões; A Bela e a Fera. Já os contos exemplares misturam as duas
problemáticas: a social e a existencial, como Chapeuzinho Vermelho; O Pequeno Polegar;
João e Maria.
Quanto ao termo “fada”, etimologicamente, vem do latim fatum que significa
destino, fatalidade, oráculo. Segundo Coelho (1987), as fadas tornaram-se conhecidas
como seres fantásticos ou imaginários de grande beleza, que se apresentavam sob a
forma de mulher. Dotadas de virtudes e poderes sobrenaturais, interferem na vida dos
homens para auxiliá-los em situações-limite, quando mais nenhuma solução natural seria
possível. Mas, elas podem também ser más e vingativas como a fada que pune os pais

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da Bela Adormecida. Geralmente, estas últimas trazem uma ligação íntima com as forças
diabólicas e são conhecidas como bruxas ou feiticeiras.
No dizer da escritora infantil Kátia Canton, a explicação para o termo “conto de
fadas”, a despeito de nem todas as histórias apresentarem fadas, seria uma maneira de
marcar um tipo de conto.

Fadas foram criadas para diferenciar os contos de gente rica, que vivia
perto do rei, dos contos dos pobres, que moravam no campo. Personagens
mágicas, com roupas de tule branco, chapéus pontiagudos e varinhas de
condão, as fadas faziam um modelito na França do século 17, do mesmo
modo como o estilo punk ficou na moda nos anos 80. (CANTON, 1997,
p.15).

Assim sendo, o que caracteriza esses contos não é a presença ou a ausência do


elemento “fadas”. Para Todorov, o que distingue o conto de fadas não é o estatuto do
sobrenatural, mas sim uma certa escritura.

No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam


qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor implícito.
Não é uma atitude para com os acontecimentos que caracteriza o
maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. Os contos de
fadas, a ficção científica são algumas variedades do maravilhoso; mas eles
já nos levam longe do fantástico. (TODOROV, 1979, p. 160).

Em relação à estrutura narrativa, os contos de fadas iniciam-se com um problema


vinculado à realidade (estado de penúria, carência afetiva, conflito entre mãe e filho) que
desequilibra a tranquilidade inicial. O desenvolvimento é uma busca de soluções, no plano
da fantasia, com a introdução de elementos mágicos (fadas, bruxas, anões, duendes,
gigantes, talismãs etc.). A ordem é restaurada quando acontece, no desfecho da
narrativa, uma volta ao real. Por meio dessa estrutura fixa, “[...] os autores, de um lado,
demonstram que aceitam o potencial imaginativo infantil e, de outro, transmitem à criança
a ideia de que ela não pode viver indefinidamente no mundo da fantasia, sendo
necessário assumir o real, no momento certo.” (AGUIAR, apud ABRAMOVICH, 1989, p.
120).
O desfecho é, geralmente, do tipo “felizes para sempre”. Para Cunha, o final feliz é
importante, uma vez que é um requisito essencial, sobretudo para as crianças mais
novas.

Se o adulto é capaz de ler um livro ou ver um filme que acabe mal, sem
deixar de apreciar o livro ou o filme, pelo aspecto puramente artístico, ou

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pela realidade da vida neles apresentada, tal não se pode esperar da


criança. Normalmente, ela vive a história, identifica-se com a personagem
simpática, e o final desagradável a feriria inutilmente. (CUNHA, 1986, p.
77).

Essa autora não defende o final com a mais absoluta felicidade, mas acredita que a
amargura não deveria ser desenvolvida no espírito infantil, uma vez que o leitor infantil
ainda não sabe lidar com finais tristes para as personagens do bem. Ao ver seus
problemas personificados por heróis e heroínas dos contos de fadas, a criança renova
sua esperança de um futuro melhor quando o bem triunfa no final.

3 Panorama da história sociocultural dos contos de fada: sob o prisma da


moralidade

Por serem de tradição oral, os contos de fadas perdem-se na memória dos tempos
e os estudos atestam que a origem desse gênero é complexa e imprecisa.
Provavelmente, esses contos são oriundos das narrativas primordiais que ensinavam aos
homens como enfrentar os poderes divinos, controlar as forças da natureza e
compreender os segredos da alma humana. As pesquisas mais recentes vêm ampliando
o conhecimento das longas e emaranhadas trajetórias percorridas por essas narrativas
arcaicas, até se transformarem na literatura folclórica em cada canto do planeta e nos
contos de fadas para crianças.
Para a produção deste breve panorama histórico, buscou-se a maioria das
informações em Coelho (1984, 1987, 2003) e não há, aqui, a preocupação de mostrar a
trajetória exclusiva dos contos de fadas, uma vez que a história destes está associada a
dos contos maravilhosos e dos contos exemplares. Além disso, no passado, não havia a
distinção entre esses gêneros, nem mesmo por parte dos especialistas, as narrativas
eram agrupadas por títulos genéricos. No Brasil e em Portugal, essas histórias surgiram,
no fim do século XIX, como contos da carochinha, já o folclorista Câmara Cascudo
denominou-as contos de encantamento. E a verdade é que mesmo hoje todas essas
histórias são chamadas vulgarmente de contos de fadas ou contos maravilhosos.
Segundo Coelho (2003), dentre as descobertas mais importantes desenvolvidas
por historiadores, antropólogos, filólogos, etnólogos e outros pesquisadores, está o
cruzamento das várias pesquisas que acabou revelando as raízes desses contos de
expansão popular: a fonte oriental (procedente da Índia, séculos antes de Cristo) que vai

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se fundir, ao longo dos séculos, com a fonte latina (greco-romana) e com a fonte céltico-
bretã (na qual originaram as fadas). Sabe-se, portanto, que os contos de fadas são de
origem céltica, século II a.C., e surgiram como poemas que revelavam amores estranhos,
fatais, eternos. Originalmente, foram concebidos como entretenimento para adultos e
eram contados em reuniões sociais, nas salas de fiar, nos campos e em outros ambientes
onde os adultos se reuniam. Para alguns estudiosos, não continham lições de moral e
apresentavam fortes doses de incesto, canibalismo, estupro e adultério.
Contudo, a partir dos estudos filológicos e antropológicos, desenvolvidos na
Alemanha a partir do século XVIII, visando estabelecer a “língua oficial alemã” em meio
aos vários dialetos orais, descobriu-se que as narrativas ancestrais – contadas nos serões
familiares ou “ao redor do fogo”- mais do que um mero entretenimento, eram valiosos
instrumentos transmissores de valores de geração em geração, consolidando o Sistema
de comportamentos consagrados por determinado grupo social (COELHO, 2003).
Como literatura destinada ao público infantil, historicamente, os contos de fadas
tradicionais, bem como a Literatura Infantil, nasceram na França do séc. XVII na corte do
rei Luís XIV pelas mãos do erudito Charles Perrault. Naquela época, o escritor reuniu
narrativas orais na obra intitulada Histórias e Contos do tempo passado, com moralidades
(1697), mais conhecida como Contos de Mamãe Gansa, e destinou essa coletânea às
crianças, acrescentando-lhes uma moralidade conveniente aos princípios educacionais da
época. Nos contos registrados por Perrault, estão: A Bela Adormecida no Bosque,
Cinderela, Henrique do Topete, O Gato de Botas, O Pequeno Polegar, As fadas,
Chapeuzinho Vermelho e Barba Azul.
Segundo Benedetti (2012), a autoria desses contos publicados pela primeira vez
em 1697 foi atribuída pelo próprio Charles Perrault a Pierre Darmancour, seu filho, que
tinha então dezenove anos. O objetivo era escapar das críticas por parte de seus
opositores na famosa polêmica entre os defensores dos antigos e os dos modernos.
Somente partir de 1781, a obra passaria a ser definitivamente atribuída a Charles
Perrault.

A origem dos textos utilizados por Perrault não é datada. Como tudo o que
pertence à cultura popular, não tem paternidade nem certidão de
nascimento. No entanto, seus contos estão impregnados da época em
que foram fixados por escrito. Roupagens, costumes, conceitos e
preconceitos são do século XVII. E assim fixados chegaram até nós.
(BENEDETTI, 2012, p.13).

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Algumas dessas narrativas foram recontadas pelos Irmãos Grimm, Jacob (1785-
1863) e Wilhelm (1786 – 1859), filólogos, folcloristas, estudiosos da mitologia germânica,
que viajaram, no século XIX por todas as regiões de língua alemã, coletando, da memória
popular, antigas narrativas maravilhosas, lendas e sagas que transcreviam à noite. Esse
fantástico material foi usado de forma sensível e com preocupação de estilo, conservando
a ingenuidade popular, a fantasia e o poético em uma coletânea conhecida hoje como
Literatura Clássica Infantil. Dentre os contos mais conhecidos estão: A Bela Adormecida,
Branca de Neve e os Sete Anões, A Gata Borralheira, Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel,
João e Maria e dezenas de outras histórias maravilhosas que correm o mundo.
Inicialmente foram publicadas avulsamente entre 1812 e 1822, e mais tarde reunidas no
volume Contos de fadas para crianças e adultos, conhecido também como Contos de
Grimm.
É importante ressaltar que, influenciados pelo espírito cristão que se firmava na
época romântica e cedendo à polêmica levantada por alguns intelectuais contra a
crueldade de certos contos, os Grimm foram retirando episódios de demasiada violência e
crueldade das várias edições de suas publicações ao longo dos anos. Assim, o público-
alvo foi mudando e a edição compacta, de 1825, reunia apenas histórias maravilhosas de
cunho educativo voltadas especificamente para as crianças.
O acervo da Literatura Infantil Clássica seria completado anos depois com os
Eventtyr, 168 contos publicados entre 1835 e 1877 pelo dinamarquês Hans Christian
Andersen (1805 -1875). Filho de sapateiro e lavadeira, Andersen obteve fama ainda vivo.
Sua vida foi como seus contos de fadas, onde meninos e meninas pobres passam por
terríveis humilhações e, como por magia, experimentam situações maravilhosas. Parte de
sua obra foi retirada da literatura popular, mas muitos contos são criação do próprio
escritor. Histórias como O Patinho feio, Os Cisnes Selvagens, A pequena Sereia e A
Rainha da Neve têm encantado várias gerações de crianças e adultos em versões
alemãs, francesas, italianas, espanholas, portuguesas, brasileiras... No universo literário
de Andersen, não há o ludismo, a alegria e a leveza existentes na maioria dos contos de
Perrault e Grimm. Exceto os poucos momentos de bom humor, predomina, na obra desse
escritor dinamarquês, um ar de tristeza ou dor, porém há uma grande ternura voltada para
os pequenos e desvalidos, como na emocionante A pequena vendedora de fósforos.
Atualmente, Andersen é consagrado como o verdadeiro criador da literatura infantil
romântica por ter conseguido a fusão entre o pensamento mágico das origens arcaicas e
o pensamento racionalista dos novos tempos. Além disso, ele é “[...] a primeira voz
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autenticamente romântica a contar histórias para as crianças e a sugerir-lhes padrões de


comportamento a serem adotados pela nova sociedade que naquele momento se
organizava.” (COELHO, 2003, p. 25, grifo do autor).
Dentre os valores expressos na obra de Andersen, estão os de espírito cristão e os
do espírito liberal-burguês. No primeiro, há a exaltação de virtudes como a paciência, a
resignação, o amor, a obediência, o recato, a caridade e a necessidade do ser humano
atravessar o “vale de lágrimas” para chegar ao céu. Já em relação ao espírito liberal-
burguês, as histórias de Andersen enalteciam o individualismo generoso e empreendedor,
a igualdade entre os homens, a fraternidade e o paternalismo dos ricos para amenizar o
sofrimento dos pobres.
O avanço do racionalismo cientificista e o pragmatismo da sociedade progressista
provocaram uma gradativa marginalização do maravilhoso dos contos de fadas, de
natureza sobrenatural ou mágica. Por isso, a obra da Condessa de Ségur Novos contos
de fadas (França-1856), que tentava unir o maravilhoso feérico arcaico com o
racionalismo moderno, fracassou no interesse do público. Entretanto, a autora conseguiu
sucesso absoluto com Meninas exemplares, também de 1856, ao se voltar para a vida
real e ir forjando, com muito bom humor, os modelos de conduta que deveriam ser
seguidos por suas jovens leitoras.
Na década seguinte, no lugar do maravilhoso feérico, sobrenatural, começa a fazer
sucesso o fantástico absurdo, como Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll,
publicado na Inglaterra em 1865. Uma outra vertente foi a fusão do maravilhoso dos
contos de fadas com o racionalismo realista dos contos exemplares em Pinóquio,
publicado em 1883 na Itália por Collodi. Nesta obra, diante do pensamento positivista e da
orientação educacional da época, o maravilhoso feérico é usado como instrumento do
racional e a história do boneco de madeira transforma-se em um divertido manual de
conduta para as crianças da sociedade progressista.
Na sequência, por várias décadas, o conto de fadas e o conto maravilhoso
entraram em recesso, mas voltam a ser descobertos no século XX na área do simbólico,
como fonte de conhecimento das vivências humanas. Em pleno século XXI, a magia do
maravilhoso está de volta. Multiplicam-se, nas livrarias, no cyberespaço e nas telas de
cinemas, edições clássicas e novas versões dos contos de fadas ou contos maravilhosos,
lendas e mitos. Isso pode ser verificado por meio do sucesso de público dos contos de
fadas modernos Harry Potter e Shrek. Neste último, em meio a paródias de personagens
clássicos, há a exteriorização de valores básicos, como a amizade entre o ogro e o burro
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falante, a beleza interior de Shrek e o amor verdadeiro entre este protagonista e a


princesa Fiona.
Os contos de fadas continuam vivos, venceram a barreira do tempo e estão à
disposição em livros impressos e digitais, filmes, CD-ROM e outras multimídias.
Independente do suporte, esses contos vêm encantando pela arte literária, pelo
maravilhoso e, ao mesmo tempo, fornecendo subsídios para a formação de valores das
novas gerações.

4 O maravilhoso e a formação dos valores morais: outros olhares

Como já foi dito, os contos de fadas têm sido fonte de estudo para especialistas de
diversas áreas. Ao fazer uma correlação analógica entre as coordenadas do universo
literário e do universo humano propostas pelo etnólogo e folclorista Wladimir Propp, é
possível compreender a fascinação que esses contos têm sobre o espírito humano. Mas
apesar de Propp (1992) ter aberto o caminho para uma renovação dos estudos dos
contos, a partir de uma nova proposta de análise estrutural e das significações do conto
fantástico russo, foram os estudos centrados na psicanálise de Jung, Freud e Bettelheim
que difundiram no ocidente uma certa maneira de abordar os contos de fadas.
A partir da década de 80 do século XX, os psicólogos infantis passaram a valorizar
os contos de fadas, utilizando-os na terapia de crianças para ajudar a resolver problemas,
levando-as à reflexão sobre os acontecimentos que se desenrolam nos contos. Dessa
forma, elas encontram nos contos de fadas valores humanos éticos e morais, o que as
leva a uma identificação com as personagens do bem e ao desejo de vencer o mal. No
processo de mediação de valores:

O desejo de corresponder a uma imagem de “homem de bem” ou “mulher


de bem” gera a preocupação com o chamado imago social. Desse desejo
de corresponder a uma imagem social do “bem”, surge um medo de ser
rejeitado pelo grupo e de ser diferente. A sombra, na conceituação
proposta por Jung, contém os aspectos ocultos, reprimidos e
desfavoráveis do homem. Para ultrapassar a limitação, o ego entra em
conflito com esta sombra a fim de enfrentar a não aceitação de
características pessoais socialmente mal vistas. (OLIVEIRA, 2013, on-line,
grifos do autor).

Por outro lado, os psicanalistas freudianos preocupam-se em mostrar que tipo de


material reprimido ou inconsciente está subjacente nos contos de fadas e como estes se

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relacionam aos sonhos e devaneios. Para Bettelheim (1980), os contos de fadas falam-
nos na linguagem de símbolos que representam conteúdos inconscientes. Seu apelo é
simultâneo à nossa mente consciente e inconsciente, a todos os seu três aspectos – id,
ego e superego – e à nossa necessidade de ideais de ego também. No conteúdo dos
contos, os fenômenos internos psicológicos recebem corpo de forma simbólica.
Nesse sentido, os contos de fadas podem contribuir para formação de valores,
porque a criança imagina que sofre com o herói suas provas e tribulações, e triunfa com
ele quando a virtude sai vitoriosa e o mal é derrotado. A criança faz tais identificações por
conta própria, e as lutas interiores e exteriores do protagonista imprimem moralidade
sobre ela (BETTELHEIM, 1980). Portanto, não cabe ao leitor (ou contador de histórias)
adulto explicar os significados e as lições de moral veiculados pelos contos de fadas. A
própria criança, leitora ou ouvinte, deve apreender os significados e valores veiculados
por esse gênero literário.
Além disso, o maniqueísmo que divide as personagens desses contos em boas ou
más, belas ou feias, poderosas ou fracas, auxilia a criança na compreensão de certos
valores básicos da conduta humana ou do convívio social. Essa dicotomia, se transmitida
na infância (até os nove ou dez anos) por meio de uma linguagem simbólica, não será
prejudicial à formação da consciência ética, pois para a Psicanálise, a criança é levada a
se identificar com o herói bom e belo, não devido à sua bondade ou beleza, mas por
sentir nele a própria personificação de seus problemas infantis: seu inconsciente desejo
de bondade e beleza e, especialmente, sua necessidade de proteção e segurança
(COELHO, 1984).
Sobre a presença do mal nos contos de fadas, ele é tão onipresente quanto as
virtudes. Para Cashdan, cada um dos principais contos de fadas é único, à medida em
que trata de uma predisposição falha ou doentia do eu. Após o era uma vez em um lugar
muito distante, os contos falam de vaidade, gula, inveja, luxúria, hipocrisia, avareza ou
preguiça - os sete pecados capitais da infância. “Embora um determinado conto de fadas
possa tratar de mais de um `pecado´, em geral um deles ocupa o centro da trama.” (2000,
p.28, grifo do autor). Isso pode ser visto na vaidade da Rainha Malvada em Branca de
Neve e na inveja das irmãs de Cinderela.
Em praticamente todos os contos de fadas, o mal recebe corpo na forma de
antagonistas e suas ações. Na ficção, ao contrário da vida real, essas personagens,
geralmente, são boas ou más, sem meio termos. Essa polarização, ao invés de prejudicar
a criança, auxilia-a na compreensão da diferença entre virtudes e maldades, o que seria
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mais difícil se as personagens fossem representadas com a relatividade e a ambiguidade


dos seres humanos. Para Bettelheim (1980), as ambiguidades e complexidades devem
esperar até que esteja estabelecida uma personalidade relativamente firme na base de
identificações positivas.
Além disso, Coelho lembra que a criança incorpora os valores que desde sempre
regeram a vida humana, cabendo a cada sociedade decidir o que seriam virtudes ou
desvios de caráter. Para essa autora:

[...] o que a criança encontra nos contos de fada são, na verdade,


categorias de valor que são perenes. Impossível prescindirmos de juízos
valorativos: A vida humana, desde as origens, tem-se pautado por eles. O
que muda é apenas o conteúdo rotulado de “bom” ou “mau”, “certo” ou
“errado” ( COELHO, 1984, p. 34, grifos do autor).

Em termos éticos, a Teoria da Virtude, inspirada em Aristóteles, reconhece que


diferentes tipos de permutações de virtudes podem ser encontrados em diferentes
espaços sociais e que cada sociedade deveria promover as virtudes que valoriza. Dessa
forma, os antigos gregos valorizavam particularmente a coragem, ao passo que os
cristãos medievais valorizavam a castidade. (WINCH; GINGELL, 2007, p.212). Nessa
perspectiva, isso implica dizer que, apesar de variações em relação a cada época e país,
as virtudes básicas externadas nos contos de fadas são comuns em muitas sociedades,
apenas umas são mais valorizadas do que as outras.
Assim sendo, por falar das emoções que toda criança vive e porque a humanidade
continua hoje com a mesma necessidade de acreditar em forças mágicas para poder
explicar o que acontece em seu particular e a todos em geral, é que os contos de fadas
têm atravessado fronteiras geográficas e perpetuado por milênios. Porque essa forma
literária, segundo Benjamin (1980), é hoje o conselheiro das crianças, porque foi antes o
primeiro da humanidade. Sobre essa dimensão utilitária da narrativa, esse mesmo autor
esclarece:

Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre


em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade
pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática,
seja num provérbio ou numa norma de vida ― de qualquer maneira, o
narrador é um homem que sabe dar conselhos. (BENJAMIN, 1996, p. 200).

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5 As moralidades em Cinderela e As Fadas, de Perrault

O francês Charles Perrault (1628-1703), escritor e advogado de prestígio, autor de


diversos livros para adultos, tornou-se célebre e imortal por seu único volume de contos
para crianças. Suas histórias foram recolhidas junto ao povo, respeitando o que tinham de
cruel, de moral própria e de poético, com a intenção de recriar o maravilhoso popular. No
início de sua produção literária, o trabalho de Perrault era voltado para o público adulto,
os argumentos dos seus contos eram centrados em mulheres injustiçadas, ameaçadas ou
vítimas, confirmando seu apoio à luta feminista na defesa dos direitos intelectuais e
sentimentais das mulheres. Foi somente a partir de 1697, ano de lançamento de Histórias
ou contos do tempo passado, com moralidades, que o autor manifestou sua intenção de
produzir uma literatura para crianças, conforme afirma Coelho (1987, p. 68):

A partir daí Perrault volta-se inteiramente para essa redescoberta da


narrativa popular maravilhosa, com um duplo intuito: provar a equivalência
de valores ou de “sabedoria” entre os Antigos Greco-latinos e os Antigos
nacionais, e, com esse material redescoberto, divertir as crianças,
principalmente as meninas, orientando sua formação moral.

Essa produção voltada para a formação moral das meninas da França do século
XVII é facilmente percebida nas produções de Perrault. O enredo do conto de fadas
Cinderela, apesar de possuir aproximadamente trezentas versões, segue a mesma
linearidade até hoje, isto é, a heroína é humilde, faz serviços domésticos, cuida do
borralho da lareira, sofre nas mãos da madrasta e das irmãs, até encontrar redenção
pelas mãos da Fada-madrinha e pelo casamento com o Príncipe. Na versão de Perrault,
nada se sabe sobre o pai de Cinderela, que exerce um papel insignificante, e a mãe
biológica faleceu. Entretanto, a madrasta e as irmãs postiças têm grande destaque na
trama. Bettelheim (1980) salienta que antes de Perrault escrever o conto Cinderela ou
Gata Borralheira, o termo “viver entre as cinzas” simbolizava o rebaixamento de um irmão
em detrimento de outro, independentemente do sexo dele. Também afirma que o termo
era atribuído a qualquer empregada suja, de condições precárias, cujo ofício era limpar as
cinzas da lareira.
Após essa narrativa, como era peculiar em suas Histórias e contos do tempo
passado, com moralidades (1697), obra conhecida também como Contos de Mamãe
Gansa, o autor acrescentou as seguintes moralidades em forma de versos:

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Moral
Na mulher a beleza é um raro tesouro,
De admirá-la ninguém cansa jamais;
Mas chamamos de graça algo que mais
Valor ainda tem prata ou ouro.

Foi o que à Cinderela ofertou a Madrinha,


Dando-lhe trato e instrução,
Tanto que dela fez uma rainha.
(Assim é deste Conto a Moral ou Lição.)

Beldades, vale mais que estar bem penteadas,


O dom da graça para prender um coração,
É este, na verdade, o dom das Fadas;
A graça pode tudo, o resto é ilusão.

Outra moral
Por certo é uma grande vantagem
Ter inteligência e coragem,
Ser bem nascido, ter bom senso,
E outros dons mais, em rol imenso
Que o Céu nos dá como quinhão,
Mas tudo isso será vão
Para na vida ter sucesso, caso não
Houver para vos dar uma mãozinha
Algum bom padrinho ou madrinha
(PERRAULT, 2007, p. 114).

Nessas moralidades, há a exaltação da graça, das boas maneiras em detrimento


da beleza física. A Cinderela somente conquistou o Príncipe devido à graciosidade
concedida a ela pela Madrinha. A moça encantou a todos não somente por ser linda
fisicamente; mas, principalmente, pelo seu bom comportamento e pela sua boa educação:
ela era gentil, dançava divinamente, sabia se portar à mesa e foi generosa inclusive com
suas malvadas irmãs, oferecendo-lhes laranjas e limões doces durante o jantar no baile e,
mais tarde, levando-as para o castelo e casando-as com ilustres senhores da corte
(CONTOS, 2010).
Já a história As Fadas, apesar de não ser tão popular como Cinderela, possui
todos os elementos de um genuíno conto de fadas. A narrativa acontece em tempo e
local indeterminados e a protagonista não tem um nome próprio, por isso, ela representa
qualquer menina vítima das maldades dos familiares. Inicia-se com um problema
vinculado à realidade (estado de penúria, carência afetiva, conflito entre mãe e filha,
rivalidade com a irmã) que desequilibra a tranquilidade inicial. O desenvolvimento é uma
busca de soluções, no plano da fantasia, com a interferência de uma fada, e no final, a
ordem é restaurada via casamento com um príncipe. Portanto, tem como eixo gerador

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uma problemática existencial. Segundo Coelho (1987, p.13): “Ou melhor, tem como
núcleo problemático a realização essencial do herói ou heroína, realização que, via de
regra, está visceralmente ligada à união homem-mulher.”
Nessa produção de Perrault (2007), o narrador conta que era uma vez uma certa
viúva que tinha duas filhas: a mais velha, parecida com a mãe em feições e gênio, era
má e feia; já a caçula por sua doçura, gentileza e bondade era o retrato do pai. Por isso,
a mãe tinha uma enorme aversão pela filha mais nova e todo o trabalho doméstico era
delegado para ela, inclusive ir duas vezes por dia buscar água em uma fonte que ficava a
duas léguas de distância da casa delas. Um dia quando a heroína estava na fonte,
apareceu uma fada disfarçada de pobre mulher e pediu água para ela. Muito gentil, a bela
moça disse “Pois, sim, minha boa senhora”, e serviu a água. Como recompensa, a Fada
concedeu-lhe o seguinte dom: “[...] a cada palavra que disserdes, saia de sua boca uma
flor e uma pedra preciosa.” Ao voltar para casa, a cada gentileza dita pela moça, saiam
rosas, pérolas e diamantes de sua boca. Espantada, a mãe quis saber a razão disso e
logo enviou sua filha mais velha para a fonte. Mas esta muito mal-educada insultou a
Fada que lhe pediu água e, como castigo, a cada falar da moça, saiam serpentes e sapos
horrendos de sua boca. Ao ver isso, a mãe expulsou a heroína de casa e esta
empreendeu uma longa e penosa viagem até encontrar o filho de um rei, que vendo sua
beleza, sua gentileza e de sua fala sair joias, casou-se com ela.
Após a narrativa, Perrault (2007, p.107) acrescentou as seguintes morais:

Moral
As pístolas e os Diamantes
Podem as Mentes fascinar;
Mas as palavras confortantes
Têm ainda mais força, e um valor sem par.

Outra Moral
A honestidade exige alguns cuidados,
E quer também alguma complacência,
Mas cedo ou tarde tem sua recompensa,
E em momentos até os menos esperados.

Nessas morais, há a valorização da gentileza (palavras confortantes), dom mais


precioso que quaisquer diamantes ou pístola (antiga moeda francesa que valia dez
francos). A mulher que tiver um falar doce e for honesta será recompensada com um bom
casamento quando ela menos esperar.
É possível também perceber um maniqueísmo latente nos dois contos. Em ambos,
a heroína é doce, gentil, bela, bondosa e educada. Já as vilãs - mãe/madastra e irmãs -
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são feias, invejosas, mal-educadas e delegam à “mocinha” todos os afazeres domésticos.


Assim sendo, entre os valores ético-sociais realçados em Cinderela e As Fadas, podem
ser citados o servilismo atribuído aos trabalhos domésticos, a exaltação da beleza e das
qualidades essenciais à mulher do século XVII: submissão, bondade, cortesia, gentileza.
Há também a importância do falar educado e cortês, além da recompensa (um bom
casamento) como estímulo às virtudes.
Por fim, vale dizer que, nessas duas narrativas, tal como acontece em diversos
outros contos de fadas, as outras personagens da história não têm nomes próprios. A
mãe, a madrasta, as irmãs, o rei, o príncipe, todos são colocados de forma anônima. Isso
indica que não somente as protagonistas da história poderiam ser qualquer garota, como
também as outras personagens poderiam ser outras pessoas. A história não se refere
exclusivamente a um grupo, ela se coloca como se pudesse acontecer com qualquer ser
humano. Assim sendo, o conto de fadas pode viabilizar que a própria criança, ouvinte ou
leitora do conto, projete-se na história. Desta forma, Cinderela e a heroína de As Fadas
poderiam se chamar Maria, Stephanie, Nicole, Natasha, ou até mesmo ser personificada
em um menino que sofresse, em sua infância, dilemas semelhantes.

6 Considerações finais

Este estudo não pretendeu de forma alguma desmerecer o caráter maravilhoso dos
contos de fadas. Como já foi dito, sabe-se que o encantamento desse gênero reside na
magia, na fantasia, na obra de arte literária. O que se buscou aqui foi voltar o olhar para
seu aspecto moralizante, estabelecendo um diálogo, sobretudo, entre Literatura,
Psicologia, Psicanálise e Semiologia. Para isso, buscou-se respaldo nos trabalhos de
estudiosos dessas diferentes áreas, como Todorov, Coelho, Benjamin, Bettelheim, Freud,
Yung e Propp, dentre outros.
Procurou-se desenvolver um estudo, apresentando uma pesquisa bibliográfica
sobre alguns conceitos elementares, a história sociocultural desse gênero literário e a
visão de alguns especialistas sobre o tema em questão. Por fim, realizou-se uma breve
análise das moralidades expressas nos contos Cinderela e As Fadas, de Charles Perrault.
Contudo, é importante dizer que toda a riqueza dos contos de fadas fica
comprometida por adaptações, suavizações e alterações das versões originais por meio
de edições escritas ou cinematográficas que pasteurizam os clássicos, tirando sua
densidade, significação e revelação. Para Bettelheim (1980, p.12): “A aquisição de
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habilidades, inclusive a de ler, fica destituída de valor quando o que se aprendeu a ler não
acrescenta nada de importante à nossa vida.”
Por fim, espera-se que este trabalho possa estimular novas análises de valores
morais e éticos em outros contos de fadas clássicos e/ou modernos, seja confirmando ou
refutando a abordagem adotada neste artigo. Além disso, sugere-se também uma
investigação de caráter qualitativo, nas áreas de Educação e/ou Ensino de Literatura, por
meio de uma pesquisa de campo para verificar se/como os contos de fadas estão sendo
abordados na escola e no contexto familiar.

Referências

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