2021 PieroDiCristoCarvalhoDetoni VCorr
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Versão corrigida
São Paulo
2021
PIERO DI CRISTO CARVALHO DETONI
Versão corrigida
São Paulo
2021
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
São Paulo,10/10/2021
a
Assinatura do (a) orientador (a)
DETONI, Piero di Cristo Carvalho. “PACIFICA SCIENTIAE OCCUPATIO”: a experiência
historiográfica no IHGB na Primeira República. 587 f. Tese (Doutorado) apresentada à
Faculdade de Filosofia. Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção
do título de Doutor em Ciências (História).
Aprovado em:
Banca Examinadora
Paul Ricoeur1
1
RICOEUR. Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, pp. 392-393.
2
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e cultura histórica: notas para um debate. Ágora (Unisc),
vol. 11, 2005, p. 32.
Resumo
DETONI, Piero di Cristo Carvalho. “Pacifica scientiae occupatio”: a experiência
historiográfica no IHGB na Primeira República. 2021. 500? f. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021.
Esta tese aborda os contextos historiográficos que enredaram a produção intelectual do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro/IHGB no período da Primeira República. Durante quase um
século, a instituição foi referencial para a cultura nacional e especialmente para os estudos
históricos. A fonte explorada na pesquisa foi a Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro/RIHGB, nos exemplares dos anos de 1889 a 1930, analisando os discursos
institucionais, relatórios e pareceres de comissões de estudos, artigos de revista e teses
acadêmicas. Em decorrência da análise considero que a agremiação congregava uma
comunidade científica marcada pelo signo do dissenso. No texto empreendi uma descrição da
experiência historiográfica partilhada por aqueles sujeitos, destacando as disputas e as tensões
pela melhor forma de operar o trabalho de escrita da história. Esta é abordada, aqui, através da
orientação dada por Michel de Certeau, no último quartel do século XX: um lugar, uma prática
e uma escrita.
This thesis addresses the historiographic contexts that entangled the intellectual production of
the Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/ IHGB in the period of the First Republic. For
almost a century, the institution was a reference for national culture and especially for historical
studies. The source explored in the research was the Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro/RIHGB, in the copies from the years 1889 to 1930, analyzing the
institutional speeches, reports and opinions of study commissions, magazine articles and
academic theses. As a result of the analysis, I consider that the association brought together a
scientific community marked by the sign of dissent. In the text I undertook a description of the
historiographic experience shared by those subjects, highlighting the disputes and tensions over
the best way to operate the work of writing history. This is approached, here, through the
guidance given by Michel de Certeau, in the last quarter of the 20th century: a place, a practice
and a writing.
Introdução................................................................................................................................17
Pátria e nacionalismo...............................................................................................................134
Olhar retrospectivo..................................................................................................................335
Cap. 13: Entre iberismo e americanismo. O passado colonial nas páginas da revista do
IHGB da Primeira República...............................................................................................415
Elogio à Portugal.....................................................................................................................415
O IHGB e a Abolição...............................................................................................................475
A Abolição como fato histórico: das medidas estatais à aclamação popular............................480
Morre um liberal, mas não morre a liberdade! Líbero Badaró, mártir da historiografia
republicana..............................................................................................................................523
Desilusão republicana..............................................................................................................533
Considerações finais..............................................................................................................539
Fontes.....................................................................................................................................543
Bibliografia citada.................................................................................................................557
Introdução
Esta tese de doutorado tematiza a experiência historiográfica no IHGB na Primeira
República. A perspectiva experiencial envolvida junto à operação de saber movimentada pelos
sócios da agremiação se encontra no âmbito da historiografia como “fazer”, abrangendo, então,
um horizonte tripartite: um lugar, uma prática e uma escrita, conforme a proposição de Michel
de Certeau. Tendo isso em vista, dimensionamos os contextos epistêmicos que enredaram essa
disposição de conhecimento, abordando-os a partir de uma proposta temática, dividida em
partes e em capítulos. A escrita da história no IHGB, na periodização em questão, foi concebida
através do signo do dissenso, ou seja, marcada por disputas e por tensões pela melhor maneira
de ser operacionalizada, condição para a elevação de uma comunidade científica.
Nos primeiros momentos das atividades promovidas pelo IHGB, no cenário
sociocultural posterior à Independência e de estruturação da máquina estatal imperial, se lhe
impunha ao grêmio, fundado em 1838, sistematizar a produção historiográfica até então
elaborada no intuito de fortalecer um contorno identitário, uma fisionomia narrativa singular,
ao jovem país. Dito de outra maneira: estava em pauta um projeto, não homogêneo, de
nacionalização do passado do Brasil. A sua tarefa, consoante com as razões do tempo, incidia
na proposição de uma espécie de perfil para a nação brasileira, garantindo, assim, uma
identidade possível junto ao concerto das nações, tendo em vista, vale ressaltar, a assimilação
dos eixos sociais promotores da vida pública oitocentista.
Criado nos moldes das Academias Ilustradas surgidas na Europa, tanto no que se referia
ao seu projeto de busca das origens da nacionalidade quanto em termos de sociabilidade de
Corte, incluindo aí a proximidade com o imperador Pedro II, os seus trabalhos também se
orientaram por elementos próprios da crítica erudita antiquária; o que o capacitava na difícil
empresa de narrativizar a experiência histórica brasileira e de promover as suas práticas, já
previstas nos primeiros estatutos, de coleta, de organização e de armazenamento das fontes que
dariam condições de possibilidade para tanto. Ocupava-se, ainda, em alinhar o Brasil aos
parâmetros sociais das ditas progressivas nações europeias e, paralelamente, em definir o nosso
Outro, ou seja, o indígena.
Foram muitas as iniciativas desenvolvidas pelo IHGB no correr do século XIX: a
publicação periódica da sua Revista - com estudos inéditos e divulgação de fontes;
empreendimentos de pesquisa no exterior; concursos de monografias; aproximações
intelectuais com estabelecimentos congêneres; expedições científicas e a realização de
trabalhos junto ao Estado nas disputas fronteiriças. Sem dúvidas a sua presença foi fundamental,
17
e o seu status proeminente, no processo de institucionalização e de disciplinarização da história
no Brasil. Contudo, o seu lugar de destaque passou a ser dividido, já no fim do século, com
outras instituições: os Museus Paraense e Paulista, a Academia Brasileira de Letras/ABL e os
Institutos Regionais. Sem contar que inúmeras interpretações alternativas sobre a realidade
nacional eram movidas pelos intelectuais, então de “periferia”, da geração de 1870. Além disso,
com a ascensão da República, o IHGB passou por sérias turbulências, a ponto de quase cerrar
as suas portas, pois perdera os subsídios do governo e em razão da desconfiança acerca da sua
relação historicamente próxima com a Monarquia e, especialmente, com a figura do imperador,
o seu grande mecenas.
Guardadas essas recorrências de ordem burocrática e de redimensionamento
institucional, que não foram, é necessário frisar, capazes de retirar o estatuto do IHGB como o
lugar social mais destacado de produção do conhecimento histórico no Brasil, o recorte temático
geral que se desenha nesta tese abarca a perquirição das concepções de história agenciadas
enquanto devir e, principalmente, como prática e como conhecimento nas reflexões dos seus
membros em uma das nossas quadras mais conturbadas: o contexto que emoldurou os decênios
inaugurais da República. Desejamos compreender as suas ações nessa nova fase do Instituto
inserindo-as como produtoras e produtos de uma cultura histórica que paulatinamente ganhava
forma. O que se impõe é a assimilação dos seus esforços perante a constituição de uma nova
consciência histórica marcada pelos eventos da Abolição e da Proclamação, o que demandava
a atualização de dispositivos de inteligibilidade, epistemológicos e narrativos, no que dizia
respeito a produção de conhecimento histórico, sendo eles, no limite, capazes de prover sentido
àquela nova experiência que se descortinava. Nessa direção, a temática desta tese aponta que o
processo de escrita da história elaborado pela comunidade científica do Instituto Histórico
republicano foi atravessado por contendas simbólicas, políticas e epistemológicas fundamentais
para o estabelecimento da chamada moderna historiografia brasileira.
O que nos interessa na abordagem das práticas, das atividades, das elaborações
prescritivas e das narrativas oferecidas pelos sócios do IHGB não é outra coisa senão a
elaboração de um grande mapa do saber histórico vigente na Primeira República. Uma espécie
de grande léxico, sempre em disputa, contendo os principais temas, metodologias, categorias,
virtudes epistêmicas, habilidades, desejos e conceitos utilizados por aqueles que se dedicavam
ao estudo da história no interior daquele que era, é sempre bom lembrar, o locus mais
privilegiado de produção historiográfica em nosso país.
18
A tese está dividida em cinco partes, compreendo dezesseis capítulos. É possível que o
leitor visualize as temáticas compreendidas pelas partes sendo orientadas pela já mencionada
noção de operação historiográfica (lugar, prática e narrativa).
A primeira parte, correspondendo questionamentos em torno do IHGB enquanto lugar
social, abrange dois capítulos. Neles, se observa as condições de possibilidade abertas pelo
Instituto enquanto lugar, bem como os seus imediatos interditos. Todavia, não foi realizada uma
história social da Instituição, algo já disponível exemplarmente pela bibliografia especializada,
mas se tematizou o funcionamento do Instituto através da fecunda noção de comunidade
científica preconizada por Thomas Kuhn. Assim, nessa primeira parte da tese nos preocupamos
com as performances da matriz disciplinar da história que perpassa as atividades do IHGB na
Primeira República. Mostrou-se preciosa a mobilização da categoria persona acadêmica, que
compreende a ideia de ética historiográfica, um modelo de conduta partilhado socialmente e
assimilado por modos de subjetivação acadêmica, recuperados, neste estudo, através das
figurações movidas pelos próprios sócios acerca do Instituto e sobre as suas atividades
imediatas. A persona do IHGB, responsável por movimentar a matriz disciplinar, pode ser
apreendida através da sua divisa institucional: pacifica scientiae occupatio. Ela, antes de tudo,
instituía o dissenso como modus operandi da prática historiográfica ali realizada, favorecendo
um lugar de fala legítimo. A subjetivação da disposição dissensual (relativizada e historicizada)
em termos de pesquisa, reverberando as exigências da matriz disciplinar e acenando para a
postura sociocognitiva do grêmio, fomentou uma postura importante por parte daquela
comunidade científica: a exploração da diversidade possível para aquele regime de
conhecimento sem rivalidades sectárias. Por esse motivo os sócios tenderam a mobilizar a
metáfora epistêmica do areópago para representar o IHGB.
A pacifica scientiae occupatio, ademais, orientava por meio de um registro duplo e
suficiente para lhe garantir as prerrogativas de uma produção de conhecimento autônoma,
imparcial e objetiva. Falamos da retórica da neutralidade e da pátria como remetente direto das
atividades historiográficas do IHGB. O que se observa, sendo essa situação umas das principais
responsáveis pela sobrevivência do Instituto na Primeira República, são os sócios, ao menos
prescritivamente, praticando uma ciência experimental, isolando os seus produtos intelectuais
da subjetividade, das paixões e do particularismo. O remetente pátria favorecia esse regime
científico, pois ela se mostrava como uma espécie de entidade que transcendia o sectarismo
político ordinário.
19
As dinâmicas do IHGB enquanto lugar social, dando prosseguimento às performances
da pacifica scientiae occupatio, são apreendidas por esta tese através da análise dos pareceres
da Comissão de história. No limite, por meio deles, que se se configuram como gênero
historiográfico, vemos o lugar agindo junto ao estabelecimento de um saber válido, sendo
possível verificar a eleição de disposições epistemológicas, fluxos de temas, modos de escrita
e figurações ideais do historiador em sua prática.
A segunda parte da tese, preocupada com o valor político e pedagógico da história,
tem como seu centro de atenção dois eixos intercambiáveis: o apelo a uma escrita da história
que possui como remetente a pátria e o magistério moderno da história. De uma forma ou de
outra, o que estava em jogo era não perceber a história brasileira enviesada através do olhar do
Outro, daí a importância do topos do amor pátrio e a perspectiva de um devir nacional em
formação, que remete a uma forma moderna de aprender com a história. O que essa parte do
trabalho invoca são as maneiras possíveis da história fomentar o sentimento de pertencimento,
algo importante devido a novidade da República. Desse modo, a mobilização da disposição
patriótica ambiciona colocar, modernamente, a história em movimento, lançando-a em um
futuro em aberto, sendo que as prerrogativas da exemplaridade, em uma perspectiva própria do
âmbito formativo, projetadas junto a esse sentimento ambicionam a instrução geral, mas por
meio de uma espécie de tomada de consciência de que se está apreendendo uma nova
experiência temporal que necessita ser articulada lado a lado à construção nacional brasileira.
Assim sendo, não era tão somente uma retomada do passado por ele mesmo o que acudia
as iniciativas dos sócios do IHGB, mas uma maneira de alcançar no tempo transcorrido, a partir
da história mestra da vida em sua versão moderna, exemplos que norteassem o presente e
promovessem o agenciamento pragmático do futuro. Todo esse registro temporal estava
compassado com modulações próprias das políticas de memória instituídas a partir dos
republicanismos em circulação, interação e apropriação.
É possível sustentar, sobretudo através da ideia de magistério em perspectiva formativa,
que a produção historiográfica do IHGB na Primeira República ainda era marcada pelas
disputas entre antigos e modernos. Não é um exagero dizer que aí encontra-se a sua
peculiaridade, entrevista pelas demandas simultâneas de uma pedagogia da história aproximada
de uma história que se quer científica. Esta tese aciona o par antigo/moderno como ferramenta
heurística para situar o saber histórico então elaborado. Complementando o todo dessa
discussão, o encerramento da segunda parte do estudo aborda o âmbito público da história
prescrita e produzida pelo Instituto Histórico.
20
A parte três, que aborda o problema do cientificismo no IHGB, tem como horizonte
compreensivo mais amplo a investigação das formas possíveis da história se elevar ao patamar
de ciência, mais especificamente de uma ciência social. É preciso lembrar que os sócios do
IHGB formavam uma comunidade científica, havendo a circulação de tradições quanto ao fazer
historiográfico, implicando no conhecimento do método crítico e do trabalho empírico, bem
como assimilando as ciências sociais como espaço de trabalho explicativo. A historiografia do
IHGB é altamente analítica, condição primeira para a montagem de parâmetros explicativos
ditos científicos. Contudo, o problema da cientificidade da história não estava livre da
dissensão. Ou seja: havia disputas e tensões envolvendo o caráter científico da disciplina na
instituição, chegando ao ponto de alguns importantes autores assinalarem que ela não se
constituía como tal. Nessas propostas de ciência da história presente no Instituto não se
verificava uma perspectiva unitária de apreensão do real. O que se pode afirmar é uma intensa
dinâmica de apropriação do cientificismo europeu, tornando cada viés científico em discussão
único, sobretudo, se levado em conta os movimentos de adaptação à ambiência nacional
A(s) ciência(s) da história em circulação no grêmio possuíam um esteio epistêmico
comum: autonomia, objetividade e imparcialidade. Essas disposições compunham a já citada
retórica da neutralidade. De todo modo, é essa preocupação com a cientificidade da história
que guiará a história junto ao desafio da complexidade, em que a disciplina vê a necessidade de
se portar interdisciplinarmente. Além do mais, o cientificismo corrente na agremiação carioca
é apropriado por diversos sócios religiosos, movimento de saber, de base tomista, que não
impede o encontro entre a fé e a razão, ou entre a crença e a ciência. Essa historiografia
ultramontana ao invés de desautorizar os predicados científicos da história os fortalece
categoricamente, chegando a um grau tão avançado que até mesmo os mistérios de Deus passam
a ser aprendido pela disciplina.
A quarta parte trata de forma mais detalhada a dimensão metódica implicada na
produção do conhecimento histórico no IHGB na Primeira República. Nesse momento da nossa
pesquisa enfatizamos a tradição erudita que se forma no Instituto, com raízes que remontam aos
momentos originários da agremiação, e a tentativa, por parte dos sócios, de solucionar o
problema das lacunas da história, o que movimentava a crítica histórica, chegando ao ponto de
se abordar o fato social. O que se percebe nessa reflexão é a atualização do regime
historiográfico metódico, muito em função das demandas por reescrita da história derivadas do
contexto pós 15 de novembro. Está em discussão a delimitação de uma operação que vai do
arquivo à escrita. Tudo isso atravessado pela potente ideia de dúvida metódica, disposição de
21
saber que movimenta a investigação historiográfica. A ideia de regime historiográfico, com
todas as habilidades, virtudes e desejos implicados em sua mobilização, oferece a chance de
promover a identificação do ofício do historiador no contexto, ainda mais se levado em
consideração a poligrafia. Não era apenas o trabalho com as fontes o que estava em altercação,
mas o seu próprio estatuto e a possibilidade de ampliação do seu alcance enquanto esteio
empírico. Sofisticava-se a percepção de que elas seriam um espelho da realidade, um decalque;
oferecendo tão somente uma perspectiva historiográfica pautada no mimetismo ingênuo. Além
disso, o historiador passa, não de forma unânime, a posicionar o todo da sua investigação a
partir de uma perspectiva ancorada no presente, ou seja, institui-se o olhar retrospectivo, um
dos componentes para a investigação do significado da síntese para os sócios do IHGB.
Ainda no âmbito do metodismo, em se que se elabora uma identidade para a figuração
do historiador na Primeira República, percebemos a emergência da categoria historiografia,
tematizada por Pedro Lessa e por Max Fleiuss, oferecendo as condições de possibilidade para
o entendimento do todo da pesquisa histórica, do arquivo à narrativa. Desse modo, vemos que
os referidos sócios possuem a consciência que historiografia vai além da dimensão narrativa do
conhecimento histórico, pressupondo, pois, uma operação de conhecimento. A historiografia,
conforme se desenha nesta tese, é uma prática, ou melhor, um fazer.
A última parte empreende uma análise sobre as narrativas da história presentes na
Revista do IHGB. Desse modo, nos posicionamos no último estágio, que não é sequencial, da
operação historiográfica movimentada pelo Instituto. Colocamos em relevo as lutas de
representação envolvendo as formas de narrativação da experiência histórica brasileira no
contexto assinalado, ressaltando problemas referentes à história do Brasil colonial, à
Independência, à Abolição e à República. Essa disposição narrativa, que não esgota os
conteúdos da Revista, coloca em primeiro plano maneiras exequíveis de ordenar o tempo da
nação, sobretudo, após os eventos envolvendo a Proclamação. Em uma atitude moderna os
sócios do grêmio se lançam ao escrutínio do sentido histórico da pátria, não sem disputas e
tensões, operadores epistêmicos da nossa investigação. Em suma, observamos a atualização
historiográfica empreendida no IHGB após o 15 de novembro, em que se busca redimensionar
uma nova fisionomia narrativa para o Brasil.
O IHGB no período delimitado foi objeto de estudos relevantes, alguns dos quais citados
nesta pesquisa, e outros que, embora conhecidos, não estão referenciados. Na perspectiva de
atualização da história da história nacional, consideramos necessário esmiuçar detalhadamente
o conteúdo de sua Revista, para melhor explicitar as diversas maneiras propostas para os
22
trabalhos históricos e historiográficos, das personagens mais conhecidas e reconhecidas como
intelectuais insignes como das menos conhecidas, figuras meio apagadas, quase sombras, no -
cenário cultural local, além das figuras internacionais que percorriam o mesmo espaço.
Durante a realização desta pesquisa de doutoramento, a multiplicidade de temas e de
propostas encontradas nas leituras foi inicialmente uma dificuldade. Desse modo, a solução que
encontramos foi, como dito, a da apresentação por temas, agregando e estruturando o que
aparece como caótico e desconexo, mas que, organizado, permitiu o reconhecimento do espaço
institucional como areópago, tal como proposto por diversos sócios da agremiação.
23
Preâmbulo: Os passados da história no IHGB republicano
I.
3
A partir de agora a abreviatura IHGB será utilizada na referência ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
24
conhecimento histórico”.4 E isso tudo pode ser verificado, segundo João Pandiá Calógeras,
através da sua própria missão. O Instituto não visa “sistematizar e criar um cânon ou escola;
estimula investigações, soma esforços, mas deixa inteira às inspirações individuais de escolha
de métodos e modos de apreciar. Provoca a atividade de pesquisa: não as norteia”.5
A reconstituição desses “cenários de disputas e tensões em que ações eletivas são
acionadas ajuda-nos a compreender o trabalho de escrita da história como parte de um esforço
maior de construção social da vida humana”.6 Para Manoel Luiz Salgado Guimarães, parte dos
desafios lançados à história da historiografia apontam para uma percepção investigativa
tripartite e cruzada - disposição propedêutica desta tese: 1) a abertura para uma “investigação
sistemática acerca das condições de emergência dos diferentes discursos sobre o passado
pressupõe o reconhecimento da historicidade do próprio ato de escrita da história, inscrevendo-
o em um tempo e em lugar”; 2) após esse direcionamento crítico se faz necessário uma analítica
que inscreva essa prática escriturária no âmbito das disputas entre memórias localizadas no
interior da matriz disciplinar, em conformidade com um processo que busca dar uma
compreensão plausível ao mundo da vida dos contemporâneos. Porque uma modalidade de
escrita da história que passa a ser “vitoriosa” em uma determinada matriz disciplinar tende a
levar ao silenciamento todo o percurso que a consagra. Assim sendo, esse movimento de
construção do saber historiográfico passa a ser visto como algo natural; 3) de forma tal que se
pode reconhecer que esse registro advém das memórias criadas na própria matriz disciplinar,
que leva a construção do saber histórico a perder a sua “ancoragem no mundo como parte do
drama social humano, quando escolhas são efetuadas, que definem o passado que se deseja, ou
que se necessita, como forma de inventar um futuro”.7 Assim, se suspende, a partir dessa
vigilância historiográfica, a ideia de escrita da história como algo evidente.
O material analisado na RIHGB republicano é capaz, enquanto vestígio tangível de
passados disciplinares específicos, de nos remeter uma mensagem passada acerca das
possibilidades abertas, em termos de procedimentos epistemológicos e de estratégias
discursivas, junto à realização da operação de escrita da história do Brasil. Ele nos faz pensá-
los como indícios, “não necessariamente articulado por uma linguagem consciente, acerca de
culturas passadas, demandando do leitor outro tipo de procedimento interpretativo”, qual seja,
4
WEHLING, Arno. Historiografia e epistemologia histórica. In: MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, p 177.
5
CALOGERAS, Pandiá. Estudos históricos e políticos (Res Nostra). São Paulo: Editora Nacional, 1936, p. 35.
6
GUIMARÃES, Historiografia e cultura histórica... op. cit., p. 32.
7
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar.
In: PESAVENTO, Sandra (org.). História cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2003, p. 24.
25
o que respeita o regime de escrita vigente, tendo em vista a sua produção e o seu consumo em
uma dada cultura histórica. Nessa mensagem passada encontra-se a oportunidade, entre outras
coisas, da percepção dos passados da história situados em seus contextos epistêmicos
estruturantes. Preocupação geral desta tese.
Os textos dos sócios do Instituto, que passam por discursos institucionais, relatórios e
pareceres de comissões de estudos, artigos de revista e teses acadêmicas, são aqui tratados a
partir de um particular processo de escuta, dado que historicizando os seus horizontes de
significação discursiva atentamo-nos para os seus cenários de emergência. Alguns deles
performam-se como textos prescritivos. Eles preocupam-se com a caracterização normativa
daquilo que os sócios entendem como a melhor forma de escrever a história, imbuídos que estão
na proposição de significações epistêmicas plausíveis junto aos desafios enfrentados pela matriz
disciplinar em funcionamento.
Portanto, nesse processo de escuta consideramos as maneiras específicas pelas quais as
textualidades discursivas que estamos trabalhando articulam projetos de escrita, efetivos ou
indiretos, de história. O que demanda a percepção das modulações cognitivo-epistêmicas
impressas no trabalho de narrativização controlada da experiência. Em suma, lê-los e
compreendê-los “em sua historicidade é devolvê-los ao tempo em que foram produzidos,
alargando, dessa forma, os sentidos de uma disciplina que possui ela mesma sua história”. 8
Proceder dessa maneira nos faz adentrar a um conjunto de contextos epistêmicos disponíveis,
a uma matriz disciplinar em que o conhecimento acerca do processo histórico elabora-se a partir
de ordens singulares, de uma gramática epistêmica, de uma sintaxe meta-paradigmática em que
as experiências vividas encontram razão para tornarem-se narrativas. Esse processo de tradução
da experiência da história deriva de regras e de procedimentos partilhados, sempre em disputa,
por um coletivo de pensamento situado historicamente. Essa comunidade incita modos
peculiares em que a temporalidade, a epistemologia e a escrita se articulam
historiograficamente.
O exame das fontes permite-nos indicar a complexidade das discussões promovidas e
em que momento elas acontecem, bem como as disputas e as tensões que atravessam a
experiência historiográfica articulada no Instituto. De forma tal que não se propõe, nesta tese
em particular, a pesquisa de regularidades, de referências intertextuais, de uma economia
epistêmica comum, ou pela partilha consensual de conceitos, categorias e noções entre os
8
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Apresentação. In: _____. Livro de fontes de historiografia brasileira. Rio
de Janeiro: EdUERJ, 2010, p. 16.
26
sócios, compreendendo que esses aspectos não são unitários, porém, são articulados lado a lado
e ao mesmo tempo que as interrogações epistemológicas em discussão, as concepções
heterodoxas ou plurais de história e de historiografia e as mutações e as descontinuidades de
tradições sobre o métier do historiador. Uma tentativa de dissenso, que se apresenta
relativamente possível e factível pela ética historiográfica do IHGB, traduzida pela divisa
“pacifica scientiae occupatio”.
II.
9
OLIVEIRA, Maria da Glória de. A história da historiografia brasileira e as suas evidências. História da
Historiografia, n. 10, 2012, p. 275. Disponível em: https://cutt.ly/NcZwNlQ Acesso: 08 abr. 2021.
10
CALOGERAS, Estudos históricos... op. cit., p. 35.
11
Idem, p. 35.
27
estabelecimentos regionais congêneres, que recriam as ações de “culto aos estudos do passado
nacional”, agora sob a perspectiva republicana: Manoel Barata, Barão de Studart, José Higino,
Alfredo de Carvalho, Francisco Vicente Vianna, Bernardino de Souza, Teodoro Sampaio, Braz
do Amaral, Oliveira Lima, José Pedro Xavier da Veiga, Toledo Piza, Orville Derby, Basílio de
Magalhães, Oliveira Vianna, Washington Luís, Alfonso Taunay, não esquecendo Capistrano de
Abreu. Todos eles estão presentes em uma “colmeia de trabalhadores, (que) examinou o país
inteiro, e institutos, arquivos e bibliotecas regionais atestam por sua pujança e brilho de suas
contribuições o alto valor da matriz a que se filiam”.12
Como aponta Salgado Guimarães, os artefatos historiográficos produzidos por esses
intelectuais, constituídos por práticas e por textos que almejam reconstruções identitárias, são
fontes possíveis para uma verificação metódica acerca de como os sujeitos ordenam a
temporalidade humana narrativamente, bem como para o entendimento das formas como a
história se constitui como instância de saber e disciplina.13 Ao estudar a “cultura histórica
investigamos o desenvolvimento social da experiência histórica e de sua manifestação objetiva
na vida de uma comunidade”.14 Essa apreensão da temporalidade através do saber histórico, as
formas de prover inteligibilidade à consciência histórica, ocorre discursivamente, e ela pode ser
traduzida por intermédio de enfoques políticos, cognitivos, narrativos ou através de outros
dispositivos coletivos que ambicionam a promoção de sentido e de significado para o passado.15
Todas essas dimensões são acionadas no IHGB no contexto da República, com especial atenção
para os enfoques que dotam a história de caráter disciplinar e narrativo, condições entendidas
como relevantes para o acesso à consciência histórica.
As transformações advindas da ruptura entre o Império e a República federativa não se
restringem tão somente ao plano político. Novas “políticas da memória” passam a ser
implementadas nesse contexto e entram em uma movimentação conflitiva. No período pós-
1889 emergem discussões acerca do estatuto do passado brasileiro e novas expectativas sobre
o futuro da nação são colocadas em exame. Isso reclama um processo de reescrita da história
brasileira, em que a própria epistemologia do conhecimento histórico passa por revisões e por
12
Ibidem, p. 35.
13
GUIMARÂES, Historiografia e cultura histórica... op. cit., 2005.
14
MARCOS, Fernando Sanchéz. Cultura Histórica. Culturahistórica, Espanha, 2009. Disponível em:
http://www.culturahistorica.es/sanchez_marcos/cultura_historica.pdf . Acessado em 18 de dez. 2016.
15
RÜSEN, Jörn. ¿Qué es la cultura histórica?: Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia.
Culturahistórica, Espanha, 2009. [Versión castellana inédita del texto original alemán en K. Füssmann, H.T.
Grütter y J. Rüsen, eds. (1994). Historische Faszination. Geschichtskultur heute. Keulen, Weimar y Wenen:
Böhlau, pp. 3-26]. Disponível em: http://www.culturahistorica.es/ruesen/cultura_historica.pdf > Acessado em 03
de dez. 2020.
28
readequações junto às demandas dos novos tempos, porque as próprias maneiras de objetivar
uma dada realidade histórica são dependentes das suas formas de objetivação. Ou seja, as
esferas temporais relativas à experiência histórica brasileira, o seu passado e o seu futuro,
entram em um processo que estabelece negociações e reajustamentos junto à nova ordem
estabelecida. Mesmo que possamos assinalar que o 15 de novembro não corresponda a uma
modificação abrupta no cenário político brasileiro, na medida em que há a prevalência dos
mesmos grupos existentes desde a crise do Império, acrescido de um grupo militar mais ativo,
esse contexto passa a experimentar certo clima de inquietude que se espraia por diversos tecidos
sociais e intelectualizados do momento. Argumentamos que as primeiras décadas republicanas,
nos mais diversos substratos sociais e intelectuais, vivenciaram um relativo dinamismo de
projetos e de discussões acerca dos possíveis caminhos que a experiência nacional teria ou
poderia tomar. Ainda mais diante de um rápido processo de desilusão com relação à disposição
política recém instaurada. Desse modo, a própria maneira implicada nas formas de se construir
historiograficamente essa realidade histórica, do arquivo à escrita, passa por um momento
epistêmico reavaliativo importante.
Não defendemos essa ambiência como uma transição situada entre um antes e um depois
ou como um momento de passagem, mas a assimilamos a partir das soluções encaminhadas
para os problemas levantados pelas gerações antecedentes, ligadas às interpretações romântico-
historicistas da história, bem como a partir dos próprios problemas por ela colocados e diante
dos quais respostas possíveis são elaboradas.
Essa consideração nos parece importante por oferecer a oportunidade da “elaboração”
da memória disciplinar então emergente no contexto universitário, a qual alimenta uma
perspectiva depreciativa sobre os produtos intelectuais e culturais, incluindo aí os referentes às
formas e aos modos operatórios da historiografia, imediatamente anteriores a esse período.16
Essa postura nos faz enxergar a operação intelectual daqueles que se arrogam historiadores
como um campo em construção.17 Estamos diante de uma espécie de Janus bifronte. A escrita
da história no contexto republicano não é mais, por um lado, a que respeita totalmente os
protocolos disciplinares estabelecidos pelas gerações que fundaram o Império, assim como, de
outro, ainda não é a que obedece aos padrões acadêmicos estabelecidos nos cursos e nos
16
FRANZINI, Fabio. A década de 1930, entre a memória e a história da historiografia. In: PEREIRA DAS
NEVES, Lucia. M. B; GUIMARÃES, Lucia. M. P; GONÇALVES, Márcia; GONTIJO, Rebeca (orgs.). Estudos
de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 261.
17
Cf. LATOUR, Bruno. Abrindo a caixa-preta de Pandora. In: _____. Ciência em ação. Como seguir cientistas e
engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
29
departamentos de história instituídos nas recém-fundadas universidades brasileiras.18 Estamos
em um terreno em que regimes historiográficos convivem abertamente. Atentamo-nos a partir
de um olhar vigilante, utilizando a metáfora latourniana da caixa preta do saber, para algumas
dimensões dessas formas específicas de fazer historiografia na busca da historicidade da rede
complexa de interações e de controvérsias político-epistemológicas que contribuem para o
estabelecimento da matriz disciplinar da história na República.
Como salientamos, entre os discursos e as prescrições produzidas pelos sócios do IHGB
havia uma constante preocupação, ainda que não sistemática, de meditar e discutir uma série de
problematizações que se referem à produção mais adequada de um texto com feições
historiográficas e que dão conta, razoavelmente, de abordar o passado em sua singularidade.
Tal posicionamento questiona certo consenso que aborda a produção historiográfica brasileira
do alvorecer republicano no patamar do chamado “paradigma positivista” da história. Nesse
contexto em particular nem mesmo a cientificidade da historiografia parece ser algo evidente.
A diversidade de posições não é de fácil identificação e compreensão, sendo necessário uma
sensibilidade hermenêutica, pois elas estruturam-se através de caracteres sutis, mas que em um
exame mais detido mostram-se importantes na construção dos diferentes trabalhos ali
confabulados e na determinação da maior ou da menor aceitação de certas figurações do
historiador como úteis ou inválidas para aquele contexto, o que faz movimentar regimes
historiográficos concorrentes naquele polo de saber.
No contexto disciplinar abordado, o trabalho historiográfico ampara-se em predicados
formais e epistêmicos destituídos de esteio profissionalizante stricto sensu, universitário ou
especializado. São tempos de historiadores por vocação, segundo a pertinente expressão de
Raquel Glezer: homens que “apesar da sua formação profissional ter sido feita em outra área
de conhecimento, dedicavam-se à história”.19 Os primeiros cursos de história aparecem nos
anos de 1934 e de 1935, na Faculdade de Ciências e Letras da USP e na Universidade do
Distrito Federal. Ou seja: são as diretrizes da especialização e da profissionalização que se
tornam imperativas nessa conjuntura, movimentando-se como fatores decisivos nas contendas
intelectuais que animam aqueles sujeitos.20 Porém, a nossa entrada no universo da historiografia
18
Cf. NICOLAZZI, Fernando. Ensaio histórico e escrita da história: a historiografia brasileira entre 1870 e 1940.
Mimeo, 2009.
19
GLEZER, Raquel. O fazer e o saber na obra de José Honório Rodrigues: um modelo de análise historiográfica.
Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História Social, FFLCH, Universidade de São
Paulo, 1977, p. 234. Disponível em: https://cutt.ly/ScLFnLl Acesso: 08 abr. 2021.
20
Cf. IGLÉSIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, n. 1,1988, pp. 55-78. Disponível em: https://cutt.ly/WvBIeZx Acesso: 08 abr. 2021; FERREIRA, Marieta
30
brasileira não será pela porta principal, a do modelo científico-acadêmico profissional
majoritário do qual somos herdeiros, mas será pela porta de trás, a do “conhecimento histórico
em construção”, uma porta bem menos grandiosa. Seguindo Bruno Latour, nesse interim
encontramos as seguintes situações:
de Moraes. Notas sobre a institucionalização dos cursos universitários de História no Rio de Janeiro. In:
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
21
LATOUR, Bruno. Abrindo a caixa-preta de Pandora, op. cit., p. 18.
22
LATOUR, Abrindo... op. cit., p. 31.
31
consideração que os eventos da Abolição e da República tornam possível imaginar a existência
de uma nação constituída por uma população juridicamente constituída por homens e por
mulheres livres.23 Consideramos que todas essas problemáticas podem ser acionadas a partir
das práticas desenvolvidas no IHGB.
Além do mais, há todo um debate historiográfico que denuncia, em meio aos confrontos
de memória e de poder existentes nas décadas de 1920 e de 1930, a cristalização da “imagem
da república oligárquica e, por conseguinte, da nação incompleta - cujos intelectuais seriam
incapazes de pensar por si próprios, sendo meros repetidores, ‘importadores de ideias’”.24
Desde os anos 20 notam-se, em diversos extratos sociais e intelectuais, severas críticas aos
insatisfatórios modos de governabilidade empregados pelo Estado republicano, locus acentuado
de práticas coronelistas e caudilhistas, de egoísmos políticos, de ausência de ação coletiva, de
insolidarismos públicos; de padrões constitucionais incompatíveis com o Brasil Real, posto que
copiados do modelo federativo norte-americano, ou seja, sem ressonância alguma junto à
experiência social nacional. Essa tradição inventada, responsável por dar o rótulo de República
Velha ao contexto, amadurece e se consolida com o Estado Novo, que tomado em bloco é
intencionalmente acoplado aos objetivos “dos revolucionários de 1930” e entendido como “um
desdobramento natural da ‘revolução’, produzindo um corte radical com o passado do país”. A
Primeira República, também concebida estrategicamente em conjunto, é “avaliada como um
grande fracasso e equívoco, praticamente desde o seu começo, em 1889 ou 1891, anos da
Proclamação ou da Constituição, não importa”.25 Porém, tal afirmação não condiz, cabe
assinalar, com a realidade político-social-cultural correspondente aos primeiros momentos
republicanos. O que não significa que ali não haja desmandos políticos ou mazelas sociais.
Muito pelo contrário. Mas o que precisamos deixar em relevo é que os intelectuais daquele
contexto, inclusive aqueles que se identificam e são reconhecidos como historiadores, buscam,
sim, a modernização
23
GOMES, Angela de Castro. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p. 25.
24
AVELAR, Alexandre de Sá; FARIA, Daniel Barbosa Andrade de; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria.
Introdução (orgs.). Contribuições à história intelectual do Brasil republicano. Ouro Preto: EDUFOP/PPGHIS,
2012, p. 20.
25
ABREU, Martha; GOMES, Angela de Castro. Apresentação (dossiê A nova ‘velha’ República). Tempo, UFF,
Niterói, v. 13, n. 26, 2009, p. 3.
26
GOMES, A República... op. cit., p. 25.
32
E recorrendo às formulações de Pierre Nora avançamos no sentido da compreensão da
historiografia como um lugar de memória27, dado que ela, no movimento de diálogo com o
tempo transcorrido e de mobilização de recursos coletivos de reconstrução do passado a partir
das demandas sociopolíticas do presente, efetiva uma postura que confere significados
possíveis àquilo que foi e já não é mais, ou seja, à própria passadidade do passado em
conformidade com o presente. O trabalho historiográfico deve direcionar-se para o vislumbre
das “artimanhas da memória” decorrente desse procedimento caro às formas de historicização
dos artefatos culturais humanos, pois tendem a naturalizar objetos sobre os quais o seu olhar se
direciona mais efetivamente. Esse tipo de interrogação nos leva a colocar em primeiro plano as
intrínsecas relações entre história e memória, posto que o conhecimento sobre o passado não
pode estar desvinculado da sua relação com o presente que o efetua e o evoca. Nas palavras de
Salgado Guimarães: “Escrever sobre o passado é igualmente silenciar sobre aspectos do
presente, erigir referências canônicas para adentrar este passado”.28 Ou, de acordo com a
ponderação de François Hartog: “dizer a ‘evidência da história’, não é desde já estabelecer uma
dúvida, deixar lugar a um ponto de interrogação: é tão evidente, depois de tudo”?29
III.
Parece incrível, mas é exato; quase não há no Instituto quem saiba fazer esta
coisa tão simples – editar um livro. A prova é que nem mesmo as coisas mais
comezinhas, como determinar a época em que foi escrito, (...) nem mesmo
isso se julgam obrigados os seus sócios.30
Tal parecer é corroborado pela análise de Lucia Maria Paschoal Guimarães, para quem
o IHGB no final de século XIX se vê em momento de retraimento das suas atividades de
pesquisa histórica, em que a Escola Palatina, exortada por Araújo Porto-Alegre, “perdera o
brilho de outrora”31. Isso pode ser percebido, segundo a estudiosa, pela pouca produção das
comissões de estudos e pelo desaparecimento dos concursos de monografia e dos debates
27
Cf. NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, n. 10, 1993,
pp. 07-28. Disponível em: https://cutt.ly/jcZq9lp Acesso: 08 abr. 2021.
28
GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. A cultura histórica oitocentista... op. cit., p. 98.
29
HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2011, p. 11.
30
Ver GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889 – 1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007, p. 22.
31
GUIMARÃES, Da Escola... op. cit., p. 22.
33
acadêmicos em suas sessões. A burocracia assombra o recinto, pois os quadros sociais da
agremiação estão entregues à servidores ou pessoas próximas da família real. O Instituto
“arrastava-se, por entre homenagens e cerimoniais, relegando as atividades acadêmicas para
um plano secundário: convertera-se num salão elegante do Paço”.32 Além disso, as dificuldades
do agora Silogeu se materializam através do corte das verbas estatais, reduzidas à metade do
que era repassado pelo governo imperial. Para muitos intelectuais e políticos republicanos o
Instituto representava “uma herança típica de ancien régime”.33 Porém, esse momento em que
quase encerra as suas atividades, em que chega a aceitar em suas fileiras sócios que contribuem
financeiramente para o funcionamento da agremiação (sócios beneméritos), começa a ser
superado com a presidência do barão do Rio Branco a partir de 1908.
A tese de Lúcia Guimarães assinala que o ritmo empregado por Juca Paranhos, somado
ao seu prestígio político e pessoal, leva o IHGB a uma nova projeção naquele universo
intelectual, dando uma guinada em suas atividades. A sua precoce morte em 1912 foi sentida
pelos sócios, porém, o novo presidente, o conde de Afonso Celso, até então orador oficial do
grêmio, continua com o processo de ampliação das suas contribuições ao estudo do passado do
país, que chega a materializar-se, por exemplo, na realização de dois congressos nacionais de
história, ocorridos, respectivamente, em 1914 e em 1931. Além disso, a partir da década de
1910 o IHGB volta a colocar em circulação, segundo Fábio Franzini e Rebeca Gontijo, o debate
político e cultural do país em compasso com o discurso histórico ali elaborado e pensado.34
A passagem do Império brasileiro para a República no final do Oitocentos é um período
de intensa atividade intelectual, conforme Hugo Hruby.35 O IHGB, devido aos vínculos tecidos
pelos seus sócios com a Monarquia desde a sua fundação, e por ser reconhecido e atuar, até
aquele dado momento, como o lugar social considerado mais reconhecido na produção do
conhecimento histórico disciplinar no Brasil, não fica totalmente incólume a esses debates,
mesmo que a posição de Lucia Guimarães esteja correta. Como não pode deixar de ser
percebido que as distintas concepções e ideias sobre a história e sobre o ethos do historiador no
Instituto estão atreladas a um projeto que foi interrompido de alguma maneira pelo novo regime
32
Idem, p. 22.
33
Ibidem, p. 23.
34
FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Panorama da historiografia brasileira contemporânea (1930 - 1980).
Mimeo, 2016, p. 2.
35
CF. HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande obra: a história do Brasil
no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-graduação em História, Pontifícia Universidade Católica/RS, Porto Alegre, 2007. Disponível em:
http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/2500 Acesso: 08 dez. 2020.
34
político, que segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães intenta a produção de uma “história
nacional como forma de unir e transmitir um conjunto único e articulado de interpretações”.36
Criado em 1838, o IHGB permaneceu sob a proteção direta do imperador durante quase
toda a segunda metade do século XIX, sendo muito atingido, nas finanças e autoridade, com o
final da Monarquia. Todavia, mesmo recrutando agentes manifestadamente monarquistas, a
agremiação percebe, com certa rapidez, a necessidade de se adaptar à nova atmosfera política e
social partindo para uma “recomposição, tanto organizacional como acadêmica, de sua prática
e de seu discurso”.37
A identidade do historiador, da sua disciplina e das suas práticas são atualizadas com o
advento da República. O trabalho de construção simbólica de uma nação republicana exigiu a
reconfiguração da episteme historiográfica, bem como uma negociação com o pecúlio
intelectual herdado do período imperial, tanto em termos de prescrições quanto em temáticas e
formas de abordagem do passado, o que possibilitou novos parâmetros de legitimidade para a
disciplina. Heróis, narrativas, hinos e celebrações diversas foram acionados como forma de
instituir um espaço propriamente simbólico que fosse condizente com a ambiência nacional-
republicana. O papel do historiador, agenciador de temporalidades, passou a ser o de afirmar
que o novo contexto político não era fruto do acaso, mas resultado de longos processos de
transformação social, cuja memória precisava ser recuperada. O Instituto Histórico foi
protagonista nesse processo. Essas considerações são importantes porque, como assinala
Salgado Guimarães, cada geração reinventa para si a herança intelectual que deseja para o seu
presente. Isso ocorre entre aqueles intelectuais que assumem a tarefa historiadora como um
ofício, uma profissão, um magistério ou uma vocação intelectual. Esse movimento é de natureza
disciplinar, no qual esses sujeitos
36
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. In: Estudos Históricos, CPDOC/Vértice, Rio de Janeiro, n. 1,
1988, p 17. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1935 Acesso: 08 abr.
2021.
37
GOMES, A República... op. cit., p. 30.
38
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Apresentação. In: HARTOG, François. O século XIX e a história. O caso
Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1998, p. 9.
35
compreenderam, no período delimitado, a história enquanto conhecimento e como processo,
em um momento decisivo de reelaboração da memória nacional. Mais: quer assinalar quais os
contextos epistêmicos foram acionados pela agremiação, preocupada com os fundamentos e
princípios estruturantes da disciplina história, o que implica observar como ela dotava de
sentido explicativo a experiência histórica nacional. Enquanto saber disciplinado a história
mobiliza instrumentos intelectivos e virtudes epistêmicas para realizar essa operação.
Historicizar esse processo a partir das atividades, das reflexões e das narrativas oferecidas pelos
sócios do Instituto é o desafio que enfrentamos. Podemos dizer que uma questão perpassa a
nossa temática de estudo: o que é história e quais os seus atributos, funções e usos no interior
da instituição no período? O momento intelectual e político em que se inscreve a nossa análise
favorece este estudo: a escrita da história no Brasil republicano passa por um duplo processo
reavaliativo. Primeiramente relacionado com demandas de legitimação de um saber
disciplinado e, em paralelo, com a redescrição da experiência histórica nacional:
39
GONTIJO, Rebeca. Historiografia e ensino de história na Primeira República: algumas observações. Anais do
XII Encontro Regional de História do Rio de Janeiro - Usos do Passado (2006). Niterói: UFF, 2006, p. 4.
Disponível em: https://cutt.ly/YcLHWN7 Acesso: 08 abr. 2021.
40
GONTIJO, Historiografia e ensino de história... op. cit., p.5.
36
República, de modo a permitir que identifiquemos em seus trabalhos e pensamento um domínio
de práticas específicas de pesquisa, de leitura e de escrita no âmbito da história.41 Angela de
Castro Gomes assinala que por mais complicado que seja a identificação do perfil do historiador
e da sua disciplina nesse contexto podemos acessá-la por meio do estoque de tradições
historiográficas disponível, incluindo a recorrência de temas, de procedimentos de investigação
e de referências intelectuais (figuras-chave).42 Esse parecer teórico habilita-nos na investigação
de chaves de leitura referentes à historicidade da disciplina história e às condições de
emergência e de circulação de problemáticas propriamente historiográficas, bem como propõe
possíveis reflexões (in)atuais para esse campo de saber. O IHGB é o nosso locus de análise.
O Instituto foi, no alvorecer republicano, um dos auditórios privilegiados que colocou
em discussão e em circulação uma espécie de agenda de pesquisa coletiva, que não era
enunciada de forma uniforme por meio de manifesto teórico ou por tratado, por exemplo, mas
que perpassava a preocupação dos seus sócios em individual e das comissões acadêmicas em
geral. Rebeca Gontijo sinaliza as principais demandas requeridas à disciplina no período em
questão, e que são fomentadas pelo IHGB naquele(s) contexto(s) específico(s): 1) pesquisa de
documentos e ampliação do acesso aos mesmos; 2) reflexões epistemológicas quanto ao
trabalho da escrita da história; 3) métodos de análise; 4) problemas da narrativa e da
interpretação. Essa agenda invisível de problemas historiográficos era fragmentada e dispersa
em razão dos meios utilizados para a sua divulgação: artigos, resenhas, discursos, prefácios,
traduções e notas bibliográficas. Nesse material, aparecem “apontamentos úteis não tanto para
estabelecer como a história deveria ser escrita, mas para indicar aquilo que o historiador não
deveria esquecer ao longo do trabalho, sob pena de não ter sua autoridade reconhecida”.43
Nosso objetivo é redescrever parte da história do conhecimento histórico no Brasil, e
partindo das atividades e das práticas desenvolvidas no IHGB republicano percorremos as
condicionantes de inteligibilidade implicadas em sua consecução em si. Um postulante a
historiador tem as condições de julgar, em meio aos impasses, as clivagens, aos dissensos e as
divergências da sua matriz disciplinar, sobre aquilo que é aceitável ou não em termos de
produção historiográfica, em razão dele estar subjetivado por normas, não unitárias, próprias
de uma prática. Em resumo, estudamos um lugar de produção do conhecimento histórico que
era evocado pelos sócios como “corporação”, “congregação”, “oficina”, “templo”, “escola”,
“colmeia” – em muitos momentos eles se autointitulam como “obreiros”. Designações que
indicam, em última instância, um trabalho coletivo independente das performances dos regimes
41
Idem, 2006.
42
GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
43
GONTIJO, Historiografia e ensino de história... op. cit., p. 4.
37
historiográficos circulantes, apropriados ou recusados como autorizados. Esta tese visualiza,
em última instância, os contextos da operação historiográfica experienciada no IHGB em sua
fase republicana, do arquivo à escrita efetiva da história.
38
Parte I
39
Capítulo 1 - “PACIFICA SCIENTIAE OCCUPATIO”. Sobre a constituição
de uma persona acadêmica no IHGB republicano
(...) o Instituto não visa sistematizar e criar um
cânon ou escola; estimula investigações, soma
esforços, mas deixa inteira às inspirações
individuais de escolha de métodos e modos de
apreciar. Provoca a atividade de pesquisa: não as
norteia.44
44
CALÓGERAS, João Pandiá. Estudos históricos.... op. cit., p. 36.
45
CORREIA, Conselheiro Manoel Francisco. Alocução do vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LX, parte II, 1897, p. 421.
46
Podemos caracterizar as propostas de ciência circulantes no IHGB a partir da definição clássica oferecida por
Robert Merton: 1) um conjunto de métodos característicos por meio dos quais o conhecimento é certificado; 2)
um estoque de conhecimentos acumulados que se origina da aplicação desses métodos; 3) um conjunto de valores
e costumes culturais que governam as atividades denominadas científica; ou 4) qualquer combinação das três
anteriores. MERTON, Robert. A ciência e a estrutura social democrática. In: MARCOVICH, Annne; SHINN, Terry
(orgs.). Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 183.
47
PERNAMBUCO, Belisário. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901, p. 266.
40
Um conjunto de virtudes epistêmicas, habilidades e desejos foi acionado para o
cumprimento do eixo orientador dessa persona acadêmica no Instituto Histórico,48 entre os
quais a diligência, o rigor e a confiabilidade, próprios do regime historiográfico metódico, como
também o reclame pela função social da história tendo como fim último o conhecimento da
pátria, remetente direto dessas asserções, além da conduta da abnegação. A noção de pátria ao
mesmo tempo que circunscreve o ser nacional marginaliza os seus Outros. De todo modo,
também estava presente o caráter supostamente desinteressado das suas atividades, que torna
os sócios “evangelizadores do saber”, em razão tanto das habilidades historiográficas quanto
das operações científicas. É a retórica da neutralidade. O desejo por uma verdade científica,
para além dos seus códigos internos, direciona-se no sentido da “perfectibilidade humana”
relativa e historicizada – esteio para o necessário “cultivo humano”.49 O que evidenciava o
aristocratismo dessa história desejada por parcela dos sócios. A “pacifica scientiae occupatio”
agenciava a performance da matriz disciplinar da história junto aquela comunidade científica
inserida na Primeira República. Essa matriz se orientava através da perspectiva do
cientificismo50 se transformando, conforme passavam os anos, em direção a um
“condicionalismo” pós-evolucionista e pós-determinista.
Podemos exemplificar como a matriz disciplinar da história abarcava disposições
paradigmáticas, ou regimes historiográficos, diferentes a partir de uma mesma comunidade
científica. O presidente do IHGB Olegário Herculano defende, por exemplo, que a história faz
parte do conjunto das ciências sociais, demandando o maior cuidado, o maior esmero e a maior
“atenção dos homens de letras”.51 Em um parecer da Comissão de História, de 1899, a história
é alçada à categoria de ciência “cosmopolita”.52 Enquanto isso, de um modo parecido com o
48
A categoria persona acadêmica abre, em síntese, a possibilidade de se pensar diferentes maneiras de ser algo, e
no caso estamos falando das formas de reconhecimento do historiador disciplinado. Podemos concluir que há uma
tensão essencial entre esses modelos de conduta ideais e as virtudes epistêmicas requeridas, ou deixadas à
disposição, pela matriz disciplinar. Se os repertórios de virtudes epistêmicas que estão disponíveis em dados
contextos dão suporte para diferentes concepções de história, argumentamos que a persona acadêmica articula
modelos exemplares de conduta através dos quais o sujeito aprende a ser historiador; projetando, inclusive,
imagens de si para referendar a sua prática socialmente, O esquema proposto por Herman Paul possibilita-nos
sondar o que entendemos como uma espécie de ethos do historiador e de seu conhecimento produzido. Em resumo,
as habilidades, os desejos e as virtudes epistêmicas compõem certos modelos típicos ideais junto ao trabalho do
historiador, emergindo aí, então, a necessidade de uma persona acadêmica. PAUL, Herman. Sources of the Self:
Scholarly Personae as Repertoires of Scholarly Selfhood. BMGN: Low Countries Historical Review, n. 131, 2016,
pp. 135-154. Disponível em: https://cutt.ly/RcZrbQd Acesso: 08 abr. 2021.
49
PERNAMBUCO, Belisário. Discurso de posse. RIHGB, p. 266.
50
Arno Wehling considera o cientificismo como uma forma de compreensão do mundo que se opera de modo
racional, derivando, inclusive, em leis fundamentais. Cf. WEHLING, Arno. A invenção da história: estudos sobre
historicismo. Rio de Janeiro: EDUFF, 2001.
51
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, p. 427.
52
Parecer da Comissão História sobre as obras de Adolfo Saldías. RIHGB, tomo LXII, parte II, 1899, p. 357.
41
que Silvio Romero elabora em sua História da literatura (1888), Manoel Francisco Correia
separa o conhecimento em geral entre ciências físicas e ciências morais, sendo que a história se
localiza no limite dessa fronteira epistemológica, configurando-se como uma ciência mista.53
A matriz disciplinar acolhia posições historiográficas relativamente distintas, sendo que a sua
base epistêmica era ancorada pelo metodismo e por um cientificismo em mutação, oferecendo
condições de possibilidade para a implementação do dissenso na comunidade de historiadores.
Em suas prescrições normativas Joaquim Nabuco enfatiza o caráter de comunidade
científica54 que o Instituto Histórico arroga para si desde a sua fundação. Como se passados
todos os movimentos políticos e intelectuais da segunda metade do século XIX ele preservasse
o núcleo duro da matriz disciplinar que lhe orienta. O IHGB deve, para ele, “conservar o antigo
brilho das tradições desta casa”. Deve se preservar, pois, “o mesmo espírito de sua fundação”.55
Entre as falas daqueles sócios encontramos a consciência e a percepção, assim como é
visível no discurso de Joaquim Nabuco, de que havia tradições historiográficas, modos de fazer,
de pensar e de escrever a história brasileira; repertórios de conhecimentos que acompanham as
ações dos sócios desde os seus momentos fundacionais. Um lugar comum nessas apreciações
sobre a atividade historiográfica realizada ao longo dos tempos no Instituto diz respeito à
representação do grêmio como um lugar de culto “das tradições nacionais” metodicamente
orientado56. Um lugar responsável por manter os elos que ligam os sujeitos às suas
nacionalidades por meio de instrumentos cognitivos apropriados.57 Aparecia aí a noção de
tradição, inventada como sempre, delimitando os planos da identidade e da alteridade.
O desejo imediato de Nabuco era que o historiador do IHGB trabalhasse de forma
diligente com a dimensão empírico-erudita, não sem mobilizar a análise conceitual, e que,
53
CORREIA, Conselheiro Manoel Francisco. Alocução do vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXX, parte II, 1897.
54
Comunidade científica é entendida neste trabalho a partir da abordagem de Thomas Kuhn. Segundo a sua
epistemologia da ciência, uma comunidade científica se performa através de um grupo de praticantes de uma
especialidade dita científica que se apresentam unidos por elementos compartilhados, porém perpassados pelo
dissenso, passíveis de subjetivação através da iniciação em uma matriz disciplinar. É a partir do ambiente fornecido
pela comunidade científica que os praticantes de uma especialidade científica se auto-representam e são percebidos
como responsáveis pela resolução de um conjunto de problemas de maneira pericial. KUHN, Thomas. A tensão
essencial. Lisboa: Edições 70, 1977.
55
NABUCO, Joaquim. Discurso de posse. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1896, p. 309.
56
MAGALHÃES, Basílio de. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVII, parte II, 1914, p. 585.
57
Robert Merton esclarece o processo de internalização e de subjetivação do ethos da ciência, fundamental para a
instauração da uma persona acadêmica: “O ethos da ciência é esse complexo afetivamente modulado de valores e
normas que se considera serem obrigatórios para o homem de ciência. As normas são expressas na forma de
prescrições, proscrições, preferência e permissões. Elas são legitimadas em termos de valores institucionais. Esses
imperativos, transmitidos por preceitos e exemplo, e reforçados por sanções, são internalizados em graus variados
pelos cientistas, modelando sua consciência científica ou, se alguém preferir a e expressão mais atual, seu
superego”. MERTON, Robert. A ciência e a estrutura social democrática..., op. cit., p. 183.
42
sobretudo, não caísse em uma “escola religiosa”, ou em uma única maneira de abordar temáticas
e problemas de pesquisa. Havia, em sua acepção, um movimento de canonização historiográfica
por parte de certos historiadores brasileiros no início de República. O seu protesto caminha no
sentido de o Instituto não ficar refém da redução da “história nacional a três nomes: Tiradentes,
José Bonifácio e Benjamin Constant.”58 É uma crítica à memória disciplinar majoritária que se
formava com o advento do novo regime, em que se questiona, ademais, a ideia de próceres
unitários da República, principalmente quando se faz do passado colonial e imperial tábula
rasa. Não deixa de ser uma crítica à parcialidade nas análises historiográficas. Em seus dizeres:
58
NABUCO, Discurso... op. cit., p. 310.
59
Idem, p. 310.
60
PINTO, Edgar Roquette. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVI, parte II, 1913, p. 589.
43
A matriz disciplinar da história enredava a fala dos sócios, em que se mantinha e se
reforçava, em meio às diferenças, uma postura intelectual fundamentada através de uma espécie
de “apostolado científico que se impunha à respeitosa admiração do mundo civilizado”. Para
alguns sócios, o olhar do Outro, sobretudo, do europeu, condicionava relativamente os produtos
intelectuais nacionais. O fazer historiográfico do grêmio era representado como uma contínua
cadeia de progressos descontínuos. As ações e os estudos do passado serviriam de estímulo para
as gerações presentes assim como para as futuras. Os seus trabalhos, reforçados pelo exemplo
da sua Revista, que informa os fazeres ali cultivados, apresenta-se como um “monumento
construído por nossos maiores.”61
Eis uma caracterização da persona “pacifica scientiae occupatio”, o ethos
historiográfico-institucional do IHGB:
Nesse sentido, não era o credo político ou a seita religiosa partidária, nem a
proeminência do social ou os desígnios da fortuna, que dirigiam as atividades ali executadas. O
Instituto era figurado, por meio dessa persona acadêmica, como uma comunidade
desenvolvida, em que se balizavam, mas não se eliminavam, as diferenças - diferenças essas
vistas em perspectiva historicizada. Os regimes historiográficos, as virtudes epistêmicas, os
paradigmas ou as formações discursivas existiam correlatamente e em disputa, desde que
fossem de matriz europeia. Em termos de conduta se queria afastar das atividades
historiográficas interferências externas. De todo modo, todas essas perspectivas eram abarcadas
pela matriz disciplinar. Somado a isso temos outra qualidade investida na persona: “(...) o seu
programa é acatado com veneração, porque orienta-se pelo patriotismo nesse acrisolado estudo
que glorifica o passado, estimula o presente, e torna rutilante a alvorada do futuro”. 63 Vemos
essa equação movimentando as atividades do IHGB em sentido epistêmico e social.
Todavia, não é difícil decompor com exemplos essa equação. Segundo o sócio Manoel
Francisco Correia, a história disciplinada e científica também se compromete com a descoberta
da “marcha evolutiva da civilização na confusão de acontecimentos que revoluteiam,
61
PERNAMBUCO, Discurso... op. cit., p. 266.
62
Idem, p. 267.
63
Ibidem, p. 267.
44
tumultuam e se atropelam”.64 E para Manoel Peregrino da Silva, o Instituto Histórico, para além
da pesquisa erudita, deve operar a “síntese histórica”, no caso evolucionista, pois é essa a
“moderna concepção de história” capaz de extrair regularidades dos fatos que compõe a
experiência da história.65 Para o pernambucano Alfredo de Carvalho, a história deve ser
organizada cientificamente, movimentando, então, as leis de condicionamento e as conexões
ente os fatos históricos, deixando de estar vinculada apenas à dimensão erudito-factual.66 É a
persona acadêmica que possibilitava essas abordagens relativamente diferenciais sobre a
história. Além disso, era uma ciência da história que se ocupava com a dimensão social, que
abria margem para que se pudesse inventariar a civilização e a pátria brasileiras. Por outro lado,
o peso da matriz da história era inconteste, pois mesmo que os sócios do IHGB mobilizassem
regimes historiográficos concorrentes, que para nós significam paradigmas, havia a disposição
mais abrangente que demanda a sistematicidade junto ao estudo da história, materializada no
racionalismo e no metodismo investigativo, bem como no desejo pela compreensão dos
princípios invisíveis que articulam os fatos históricos no tempo.
Os regimes historiográficos atuantes no Instituto eram diversos: evolucionista,
darwinista social, positivista, providencialista, moralista, metódico, nacionalista-patriótico e, o
mais comum, os híbridos. Todos eles eram subsidiados epistemologicamente pela matriz
disciplinar da história. Ou seja, esses regimes historiográficos performavam a partir do
metodismo, da possibilidade de a história ensinar e da determinação racional do processo
histórico, derivando daí, inclusive, leis (deterministas ou condicionais). A “pacifica scientiae
occupatio” movimentava a comunidade de historiadores ao culto e ao estudo da pátria por meio
de instrumentos intelectivos, racionais e metódicos considerados adequados.
Nesse sentido, o IHGB é concebido por Ramiz Galvão enquanto um lugar social de
produção do conhecimento em que se venera e onde se cultua as seguintes virtudes epistêmicas:
a “verdade” e a “justiça”, mecanismos intelectuais caros ao regime historiográfico metódico.
Além disso, o grêmio congrega em seus esforços investigativos, em suas atividades e em seus
fazeres a “liberdade de opiniões”, uma síntese da possibilidade de diversos paradigmas de
conhecimento disponíveis coabitarem o mesmo espaço-tempo. Nesse lugar específico se
demanda e se deseja, segundo ele, o culto e a projeção “das convicções sinceras” – “só se requer
o talento, o saber e o patriotismo”.67 O orador, com essas palavras, equaciona e decompõe
64
CORREIA, Discurso... op. cit., p. 419.
65
SILVA, Manoel Cícero Peregrino da. Discurso de posse. RIHGB, tomo LVIII, parte II, 1905, p. 606.
66
CARVALHO, Alfredo Ferreira de. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXX, parte II, 1907, p. 732.
67
GALVÃO, Ramiz. Discurso de recepção do sócio Francisco José de Oliveira Vianna. RIHGB, tomo 94, parte
II, 1924, p. 601.
45
analiticamente as disposições intelectuais, cognitivas e sociais implicadas na persona pacifica
scientiae occupatio.
A ideia de uma comunidade científica aparece também no discurso do sócio Manuel
Porfírio de Oliveira Santos, no qual a contribuição para aquele projeto coletivo tem como
horizonte a própria vocação, no sentido de “condição de sucesso em todos os cometimentos da
vida humana”.68 E o sócio admite que do trabalho em conjunto que congrega, sem justapor,
posturas paradigmáticas se retira um “rico ensinamento”, qual seja, o encontro entre a ciência
e a pátria, sendo “um estímulo o vosso exemplo de pioneiros da ciência”.69
E nela não havia apenas um posicionamento único de ciência da história, mas o convívio
de proposições relativamente diferenciais, reveladoras do núcleo epistêmico daquela matriz
disciplinar, que está vinculada a dimensão de “culto”, no sentido de cultivo de padrões sobre
como fazer e reproduzir ciência. Em suas palavras: “Falei-vos há pouco do estímulo do vosso
exemplo: é natural, pois, que eu acrescente, que vejo nele ao mesmo tempo o incentivo da
emulação – essa quase virtude, que não é um atributo só dos moços, senão também dos
velhos”.70 A abnegação também era percebida nessa ideia, posto que “quantas horas se pode
aspirar como prêmio das lucubrações e fadigas” “que tanto abreviam a vida dos homens de
letras” – essas condutas estão presentes na elaboração do saber histórico e no reconhecimento
social de um fazer que se elabora coletivamente. Podemos dizer, a partir dessa autopercepção
dos sócios quanto à natureza dos trabalhos do grêmio, que o Instituto era o núcleo mais
representativo da matriz disciplinar da história no Brasil, em razão do seu estado de
especialização, das formas de disseminação do saber historiográfico produzido por seus sócios,
da divisão de trabalho presente nessa comunidade de historiadores, por comportar disposições
historiográficas divergentes e, também, pelo número expressivo de intelectuais que se
dedicavam ao estudo da história, à prática historiográfica e à publicação de livros de história.
O sócio Julio Fernandez enfatiza que o maior patrimônio do IHGB, resultado prático de
todo um trabalho científico da comunidade, é a sua Revista: “el presente mejor y mas completo
archivo”, a que os estudiosos em geral podem se utilizar em suas pesquisas nos mais diversos
ramos de saber; o que torna a “casa da história” um verdadeiro “laboratório científico” e uma
assembleia de “doutos”, apta a receber todas as disciplinas disponíveis que dialogam com a
história, como a antropologia e a geografia.71 A comunidade científica abriga posições
paradigmática divergentes, porém a sua persona acadêmica tem como base e requer o “amor à
68
SANTOS, Manuel Porfírio de Oliveira. Discurso de posse. RIHGB, tomo 90, parte II, 1921, p. 797.
69
Idem, p. 797.
70
Ibidem, p. 798.
71
FERNANDEZ, Julio. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXV, parte II, 1902, p. 296
46
pátria”, o trabalho coletivo e a busca refletida da verdade condicional. A retórica cientificista
faz com que a comunidade de historiadores do IHGB deseje ser autônoma, sem interferências
externas em sua produção intelectual. Esses são requisitos da persona “pacifica scientiae
occupatio”, que pretende fazer do Instituto, em termos de postura cognitiva, um lugar
independente e relativamente aberto ao dissenso no contexto. A RIHGB é a forma como essa
comunidade específica divulga a sua produção intelectual, que se arroga, naquele contexto
epistêmico, científica. O material da Revista, tomado como produto científico, se constitui como
um instrumento de visibilidade, de legitimidade e de autoridade no que tange à prática
intelectual desenvolvida pelos agremiados.
Por conta disso tudo o Instituto possui, para Ramiz Galvão, a representação de um
areópago, quer dizer, um lugar que congrega várias vozes ou posições sobre o que é a história,
bem como um ambiente que guarda as tradições. Princípios básicos e estruturantes da persona
acadêmica “pacifica scientiae occupatio”, desde que sejam vistos, também, através das
virtudes epistêmicas metódico-historicistas da “justiça”, da “correção”, da “honestidade” e da
“retidão no juízo”. Não é apenas a documentação de arquivo a sua preocupação, mas as formas
e os modos possíveis de adentrar ao passado enquanto “ressureição”, no sentido de processo e
de devir, à moda micheletiana.72 Mas esse mergulho ao passado deve estar compassado com as
virtudes do regime historiográfico metódico.
A dimensão de comunidade científica também é invocada pelo diplomata-historiador
Manuel de Oliveira Lima, que ao ver-se fazendo parte daquela “associação científica” logo se
imagina coparticipe de trabalhos coletivos. O IHGB se mostra, para esse sócio, como a
instituição mais bem preparada para a realização dos trabalhos históricos no Brasil: “colaborarei
desta forma, posto que modestamente, na obra importantíssima já realizada por essa associação
a qual a história nacional tudo deve”.73 Teófilo Braga chama, segundo Oliveira Lima, a atenção
para a Revista do grêmio como um indício para se verificar que naquele recinto existe tradições
bem delimitadas de estudos sobre a história brasileira. A Revista, assim como as ações dos
sócios, propõe novas pesquisas no presente e, certamente, serve de fonte para trabalhos futuros.
“Os documentos valiosíssimos aí publicados, as memórias interessantíssimas aí estampadas,
abrangem e encerram todo o nosso passado”.74 Ela se constitui como terreno fértil para subsidiar
trabalhos que a colocam sobre o crivo da reflexão teórica, dando-lhes significação filosófica,
onde a “lei do progresso” toma campo para o descobrimento das ditas linhas mestras que
72
GALVÃO, Ramiz. Discurso de recepção do sócio Francisco José de Oliveira Vianna. RIHGB, tomo 94, parte II,
1924, p. 456.
73
LIMA, Manuel de Oliveira. Discurso de posse. RIHGB, tomo LVIII, parte II, 1895, p. 368.
74
LIMA, Discurso... op. cit., p. 368.
47
governam a experiência da história. É por meio da captura refletida de matérias e de memórias,
mas não no sentido meramente cumulativo de conhecimento, que se pode descobrir o sentido
último da nacionalidade em formação. Para Oliveira Lima, as atividades do Instituto figuram
como um exemplo notável de trabalho científico coletivo no Brasil, instaurando uma
comunidade científica de estudos da história. É uma comunidade justamente por comportar
perspectivas historiográficas relativamente divergentes, mas, também, porque partilha uma
matriz disciplinar comum.
Oliveira Vianna, em seu discurso de posse, como uma forma de demonstrar o seu
conhecimento acerca das atividades, dos interesses e dos desejos daquela corporação, vale-se
de algumas ideias do orador Ramiz Galvão, considerando-o mestre insuperável tanto nas “letras
clássicas” quanto nas “letras históricas”. As palavras que Vianna recupera de Ramiz para iniciar
a sua preleção, e se inserir em uma comunidade científica específica e ordenada, caminham no
sentido do reconhecimento das seguintes disposições disciplinares: 1) o IHGB necessita contar
com sujeitos versados em todas as especialidades intelectivas, na medida que os problemas de
pesquisa em história, geografia e etnografia são “vastíssimos”; 2) podendo, então, os seus
intelectuais exercitarem o “talento” e a “cultura universal” para a consecução do “livro da
pátria”; 3) a concepção de história desenvolvida no Instituto envolve, pois, múltiplas questões,
o que demanda, necessariamente, “variados ramos do saber humano” (interdisciplinaridade).
Ela é a mestra (moderna) e todos lhe “prestam reverência e subsídio”.75
O sociólogo Oliveira Vianna apontou, tornando a sua voz uníssona com a de Ramiz
Galvão, que essas prerrogativas tornavam a tarefa do Instituto uma das mais complexas em
termos de elaboração de saber, posto que a grandiosidade da obra, que passava por um trabalho
de cooperação coletiva, exigia um perfeito “espírito de excelência”, condizente com a própria
persona do grêmio. O que é próprio de uma comunidade que se comporta e se faz representar
como científica. Assim, o IHGB é entendido como o maior “centro cultural científico” do país.
Para certa parcela dos seus membros, nesse centro se reelabora até certo ponto as heranças da
matriz civilizacional europeia e racional. Existiam outras instituições no país autorizadas para
o estudo das transformações históricas, mas o Instituto Histórico era considerado a instituição
em que esse tipo de operação de conhecimento era praticado com excelência. 76 Essa
75
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Discurso de posse. RIHGB, tomo 94, parte II, 1924, p. 433.
76
Essa representação do IHGB relaciona-se com a ideia de ciência normal preconizada por Thomas Kuhn. Em
uma ideia inicial a ciência normal progride em razão da especialização proporcionada por um paradigma em uso.
No entanto, no Posfácio da segunda edição de A estrutura das revoluções científicas, Kuhn admite que se tivesse
que escrever novamente o seu ensaio, começaria pela identificação de comunidades científicas que possuem
compromisso amplamente compartilhados, ao invés de investigar possíveis áreas da ciência envolvidas com certos
temas de pesquisa, quer dizer, os paradigmas. É o que tentamos fazer aqui. O progresso científico apresenta-se
48
comunidade científica pode dinamizar a própria performatividade da matriz disciplinar. Os
planos especializado e generalista conviviam na ética da agremiação.
De acordo com a leitura de Oliveira Vianna, o Instituto Histórico
A extensão e a longevidade das atividades do IHGB são vistas pelos sócios como um
indicativo que a nação imaginada Brasil deve muito aos seus trabalhos. Ele é entendido, e se
faz entender, como o lugar mais representativo no que se refere à criação e à recriação dos
códigos que conformam a brasilidade (majoritária). Desde os tempos do Império, em 1838, o
grêmio registrava os feitos daqueles que são responsáveis por fundarem a nacionalidade. O
Instituto é percebido como um centro de cultura que vivenciava e registrava todos os momentos
de dúvida, de inquietação e de afirmação nacional e seus trabalhos representavam as fases da
história do país: “nos vossos arquivos, guardastes a história do Brasil colonial; mas do Brasil
autônomo, do Brasil-Império e do Brasil-República, sois a testemunha viva e presencial”.78
Os fatores contemporâneos não passavam, para alguns sócios, incólumes aos registros
do Instituto, na medida em que a sua sensibilidade tem um quê de sismógrafo no que tange aos
fatos referentes à consciência nacional e coletiva. Mesmo que haja certo veto à história do
tempo presente, as questões coevas movimentavam subterraneamente, pelo olhar retrospectivo,
as pesquisas e as narrativas historiográficas. Admitia-se que todos os fatores relacionados à
“alma nacional” encontravam ressonância no interior daquela instituição. O ser nacional
brasileiro era bastante fragmentado. Algo que era apagado pelo unificador conceito de nação
mobilizado por certos sócios do IHGB, assim como pela noção de pátria. De todo modo,
como um aprofundamento do conhecimento de determinados fatos. Essa forma de progresso é efetivada em razão
da prática da ciência normal especializada (e dissensual) que, por sua vez, mostra-se possível graças a
complexificação da matriz disciplinar. KUNH, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo:
Perspectiva, 1975, p. 220. Para uma abordagem epistêmica sobre o tema do progresso científico e da
incomensurabilidade em Thomas Kuhn ver MENDONÇA, André Luis de Oliveira; VIDEIRA, Antonio Augusto
Passos. Progresso científico e incomensurabilidade em Thomas Kuhn. Scientiae Studia. São Paulo, vol. 5, n. 2,
2007. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ss/v5n2/a02v5n2.pdf Acesso: 08 abr. 2021.
77
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 433. Ocorreu entre os sócios do IHGB no período uma “patrimonialização” da
produção historiográfica da instituição. A produção intelectual daquela comunidade de historiadores era exposta
como uma referência que necessitava permanentemente ser rediscutida. De alguma maneira, essa herança
intelectual se solidificava como algo a ser conservado, mesmo que possa não ter a mesma pertinência face ao que
originalmente significa. José Alves de Freitas Neto oferece um estudo, partindo do caso argentino de Bartolomé
Mitre, que reforça a nossa percepção quanto a ideia de patrimônio historiográfico. Cf. NETO, José Alves de
Freitas. Mitre e a edificação de um patrimônio historiográfico argentino. História da historiografia, n. 7, 2011, pp.
78-93. Disponível em: https://cutt.ly/wcL5HEN Acesso: 08 abr. 2021.
78
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 454.
49
passado-presente-futuro eram instâncias que se acoplavam e davam sentido aos desejos dos
sócios desde o momento da sua fundação.
Oliveira Vianna sintetiza, mais uma vez, os anseios e os desejos dos associados:
Nos códices da vossa biblioteca; nos manuscritos dos vossos arquivos; nas
páginas da vossa Revista; cada um dos obreiros da nossa História, cada um
dos edificadores da nossa nacionalidade, cada um dos seus heróis, anônimos
ou gloriosos, escrevem um testemunho, fixou na memória, preparou uma
revelação; de cada um a alma palpita nesta casa, dentro desta cidade de livros,
cheia do grande silencio do mundo, mas rumorosas das grandes vozes do
passado.79
79
Idem, p. 454.
80
GALVÃO, Ramiz. Discurso de recepção do sócio Afrânio Peixoto. RIHGB, tomo 85, parte II, 1919, p. 509.
81
Essa afirmação leva-nos diretamente ao conteúdo da categoria persona acadêmica criada por Herman Paul:
“modelos de construção de si [selfhood] acadêmicos ou os modelos de habilidades, atitudes e disposições que são
considerados cruciais para a busca do conhecimento acadêmico”. PAUL, Herman. “What is a Scholarly Persona?
Ten theses on virtues, skills, and desires”. History & Theory, v. 53, n. 3, 2014, p. 353. Disponível em:
https://cutt.ly/7cZtOtO Acesso: 08 abr. 2021.
82
GALVÃO, Discurso... op. cit., p. 510.
50
posteridade”: estudos de antropologia, de geografia, de sociologia, de história e de demais
campos de conhecimento cruzados. Nesse movimento epistemológico as habilidades, os
desejos e as virtudes se multiplicavam no interior dessas instâncias de saber, sendo que em seus
fazeres havia intercâmbio de conhecimentos, o que tornava esse acervo cognitivo cultivado pela
comunidade de historiadores no IHGB, sobretudo, a partir da sua Revista, fonte de pesquisas e
de informações confiáveis a todo e qualquer pesquisador. É uma tarefa “semi-secular” e que
pode ser entendida por meio destas imagens epistêmicas: “(...) o Brasil é um gigantesco veeiro
de ouro, que deve ser explorado em todos os sentidos. A natureza e a sociedade são dois
documentos sempre lidos e sempre inesgotáveis de assuntos”.83 Eram convocados a participar
do Instituto tanto autores especialistas em história, em geografia e em antropologia, como
generalistas que, de algum modo, se preocupavam com os chamados “assuntos brasileiros”.
É preciso, para Damasceno Vieira, que esses agentes “tragam para este Instituto o
resultado de suas pesquisas, das suas análises, das suas generalizações em toda a ordem de
trabalho, a fim de que se constitua aqui o mais vasto e o mais seleto repositório da riqueza
intelectual do país.”84 Desse modo, mostra-se interessante a forma como João Xavier da Mota
se reconhece enquanto membro do Instituto Histórico. Ele o toma como uma comunidade
científica. Há uma dimensão comunitária de ciência em sua representação. O exemplo dos
trabalhos anteriores serve como ponte para novas iniciativas acadêmicas e o seu compromisso
dito desinteressando reforça o poder da matriz disciplinar da história: “(...) meu mais ardente
desejo é que outros venham cheios de saber dar-lhe novos fulgores, para ele (o Instituto) avançar
na senda gloriosa que tem trilhado e lhe foi traçada pelos seus inolvidáveis fundadores”.85
Através da sua persona o IHGB recruta certa diversidade de estudiosos, bem como abre
margem para distintas formas de estruturação epistêmica implicadas em obras com teor
histórico, geográfico e antropológico; o que torna possível a emergência de uma comunidade
científica.86 Tristão de Alencar Araripe, orador na posse de Damasceno Vieira, afirma: “O
Instituto Histórico, quando vos aceitem como parte desta corporação, teve em consideração os
vossos trabalhos, os vossos serviços tão liberalmente consagrados às ciências e à pátria”.87
Dessa forma, o Instituto é apresentado partir da ideia de “comunidade social” daqueles que se
83
VIEIRA, Damasceno. Discurso de posse. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, p. 316.
84
VIEIRA, Discurso... op. cit., p. 316.
85
MOTA, João Xavier. Discurso de posse. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, p 269.
86
SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
RIHGB, tomo LIII, parte II, 1891, p. 532.
87
ARARIPE, Tristão de Alencar. Discurso de recepção do sócio Damasceno Vieira. RIHGB, tomo LV, parte II,
1892, p. 533.
51
dedicam ao “estudo das letras”, categoria que no contexto designava todas as formas de trabalho
e de operação de saber a partir daquilo que hoje chamamos de humanidades.
As representações do IHGB aceitas e legitimadas aparecem, em Joaquim José Gomes
da Silva, da seguinte forma: “assembleia de sábios nacionais e estrangeiros”, e os seus sócios
são considerados “cultores”, no sentido comunitário de um fazer que se cultiva (em história e
em geografia), além de todos serem chamados de homens de letras.88 Essa ideia de “homem de
letras” é vista em sentido lato sensu, o que contribui para o entendimento do tipo de ciência
produzida pelo IHGB, ou seja, de fronteiras disciplinares flexíveis.89 A sua contribuição é,
então, um “passaporte para minha viagem até este mundo de literatos”. 90 O Instituto, mesmo
sendo percebido e legitimado como um lugar de especialização, também era concebido através
de uma comunidade em que as fronteiras disciplinares eram porosas. O grêmio é apresentado
por esse sócio como “corporação ilustrada e patriótica”, conforme atesta: “(...) dignarem-se de
descerrar as portas deste templo da sabedoria para deixar passar o humilde leigo, que hoje toma
uma cadeira no recinto, em que tem assento os mais notáveis representantes das ciências
humanas, políticas, sociais e positivas de dentro e fora do país”.91
Manuel Porfírio de Oliveira Santos argumenta que através do sentimento de gratidão
(em razão de ser aceito pela comunidade) verifica-se o sentido de um anseio pessoal que se
exprime como a tradução de um reconhecimento - algo que não se esquece e que se torna um
dever, posto que é situado por modelos de conduta por todos conhecidos: “pacifica scientiae
occupatio”. Há, para esse sócio em específico, responsabilidade quanto à investidura do cargo,
pois é um título que representa um ethos historiográfico. O Instituto Histórico é a mais “antiga
associação científica do Brasil” e, nessa qualidade, é a representante “do pensamento e dos
sentimentos brasileiros em tudo o que respeita ao passado, ao presente e ao futuro da nossa
nacionalidade”.92 Assim, se forma uma figuração93 possível para o IHGB: “Bem comparado,
vejo no Instituto um conselho de sábios, de homens de Estado, de magistrados e de
88
SILVA, Joaquim José Gomes da. Discurso de posse. RIHGB, tomo LIV, parte II, 1891, p. 189.
89
Ver: NETO, Antônio Machado. A estrutura social na República das Letras. São Paulo: EDUSP, 1973.
90
SILVA, Discurso... op. cit., p. 190.
91
Idem, p. 190.
92
SANTOS, Discurso... op. cit., p. 799.
93
Roger Chartier argumenta que uma “figuração é uma formação social cujo tamanho pode ser muito variável (os
jogadores de um jogo de cartas, a tertúlia de um café, uma turma de alunos de uma escola, uma aldeia, uma cidade,
uma nação), em que indivíduos estão ligados uns aos outros por um modo específico de dependências recíprocas
e cuja reprodução supõe um equilíbrio móvel de tensões”. CHARTIER, Roger. Formação social e Habitus: uma
leitura de Norbert Elias. In: _____. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 100.
52
profissionais, que, à semelhança do areópago, o maior tribunal de Atenas, tem a seu cargo a
guarda das leis, da religião e dos costumes e a vigilância da educação pública do Brasil!”.94
Mais uma vez o exemplo da Revista como veículo de disseminação95 do saber produzido
pela comunidade de historiadores do Instituto aparece como o locus privilegiado para se
observar a concorrência paradigmática inscrita na matriz disciplinar. Ela constitui-se como uma
“mina de tesouros e de doutrina”, estando ali desde a poesia até os dotes eloquentes dos
oradores, do crivo metódico dos historiadores aos juízos dos jurisconsultos. Assim, temos uma
imagem mais aproximada da sua atuação, que mormente é, no início do período, percebida
acriticamente como um reduto de monarquistas ou alienados seguidores de Pedro II.96 O modelo
de conduta mais destacado no IHGB, a “pacifica scientiae occupatio”, confirmado por meio da
sua publicação mais destacada, é outra vez recuperado - agora pelo sócio Garcia Merou:
94
SANTOS, Discurso... op. cit., p. 800.
95
Marta Ferreira Abdala Mendes conceitua a noção de disseminação científica: “(...) a disseminação científica
seria o processo que pressupõe a transferência de informações, transcritas em códigos especializados, a um público
seleto de especialistas. Pode ser resumida como a comunicação que se estabelece dentro da comunidade científica,
a fim de difundir os resultados científicos, sendo realizada em dois níveis: 1) Intrapares: dirigida ao público
especializado de uma mesma área do conhecimento e 2) Extrapares: as informações circulam para especialistas de
outras áreas de conhecimento”. MENDES, Marta Ferreira Abdala. Uma perspectiva histórica da divulgação
científica: a atuação do cientista-divulgador José Reis (1948-1958). Tese (Doutorado em História) – Programa de
Pós-graduação em História das Ciências e da saúde da Casa de Oswaldo Cruz, FIOCRUZ, 2006, p. 28. Disponível
em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/19779 Acesso: 03 dez. 2020. Cf. também BUENO, Wilson. C.
Jornalismo científico: conceito e funções. Ciência e Cultura, v. 37, n. 9, pp. 140-1427, 1985.
96
Cf. GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola... op. cit., 2006.
97
MEROU, Martin Garcia. Discurso de posse. RIHGB, tomo LVIII, parte II, 1895, p. 337.
98
Essa característica projetada junto ao IHGB é uma herança advinda dos seus primeiros movimentos
fundacionais. O objetivo dos associados, no passado e no presente, revela o intuito do “esclarecimento” pelas
53
Instituto, fomenta formas ideológicas elitista e conservadoras, atualizando certo processo
civilizador junto ao âmbito do conhecimento.
A “pacifica scientiae occupatio” agenciava, por meio dos seus modelos de conduta,
atividades intelectuais e instaurava um lugar de fala autorizado e legitimado. A instituição era
percebida como uma comunidade científica em que paradigmas, regimes historiográficos,
formações discursivas eram mobilizados em meio à “uma atmosfera tranquila”, “um doce
remanso”, em que se sobressaem e se condensam todos “os cirros de pureza cristalina, todos os
pensamentos, todos os ideais que almejam o bem da Pátria e da humanidade”.99
No desempenho das suas atribuições o IHGB, para Susviela Guarch, tem como objetivo
animar todas as formas possíveis de disseminação científica. Ele era considerado o mestre das
demais instituições que surgiram derivadas dos seus objetivos e do seu programa. Por seu
exemplo, “doutos” estudiosos da pátria estão à procura de novos conhecimentos, que são os
maiores bens da humanidade. O IHGB, além disso, organiza eventos e traz para o Brasil quadros
estrangeiros também preocupados com o estudo da história em suas variadas formas 100 - todos
os requisitos de uma comunidade científica.
Para João de Lira Tavares, nenhuma associação é mais digna de engrandecimento cívico
que o Instituto Histórico. E aí entra a face de Janus da persona ali circulante. Em primeiro lugar:
nenhuma instituição é mais “fecunda de constantes incentivos às ações dignificadoras do
homem” (branco) junto à pátria. Em segundo lugar: ali se colhe “pacientemente e se perpetua
com carinho, examinando e corrigindo, as mínimas informações interessantes à elucidação dos
fatos sociais”.101 Na fusão dos horizontes dessas duas marcas epistêmicas encontramos o
sentido da “pacifica scientiae occupatio”. Essa insígnia condensa os modos de condutas do
IHGB diante do saber histórico, perante a sua prática e frente ao seu público leitor.
Recorremos ao plano prático das prescrições dos sócios para elucidarmos a
performatividade do citado lema no que se refere à fusão dessas marcações epistêmicas
assinaladas. Alexandre José Barbosa Lima defende, em perspectiva moderna, que a história
deve transcender a sua dimensão episódica, bem como buscar soluções para a falta de coesão
científica entre os fatos no tempo. Para ele, é necessário deixar em relevo os “nexos” que
conectam os acontecimentos uns aos outros, o que implica na interdição do acaso na história e
na possibilidade de intervir racionalmente junto à evolução da civilização, capturando a sua lei
elites, as quais, por seu turno, se encarregam de “ilustrar” a sociedade em geral. Cf. NAXARA, Márcia Regina
Capelari. Pensando origens para o Brasil no século XIX: história e literatura. História: Questões & Debates.
Curitiba, n. 32, 2000, pp. 47-64. Disponível em: https://cutt.ly/acL5aW0 Acesso: 08 abr. 2021.
99
GUARCH, Susviela. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901, p. 229.
100
GUARCH, Discurso... op. cit., p 229.
101
TAVARES, João de Lira. Discurso de posse. RIHGB, tomo 80, parte II, 1916, p. 805.
54
geral e o seu ritmo.102 Em uma direção assemelhada Gastão Rush assinala que a história supera
a dimensão de crônica dos fatos, postulando a tarefa de elucidar as “leis imprescritíveis” que
orientam os sujeitos no tempo a partir do soerguimento do “denso véu do futuro”. A história
modula-se a partir de encadeamentos lógicos e racionalizáveis, e por meio dos seus elos se retira
o aprendizado necessário para compreender a civilização, em plano universal, e a pátria, em
plano nacional.103
A dimensão de trabalho coletivo e público da história, prescrita pela persona “pacifica
scientiae occupatio”, pode ser verificada na fala de Nicolau Debbané:
102
LIMA, Alexandre José Barbosa. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXI, parte II, 1908, p. 574.
103
RUSH, Gastão. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXX, parte II, 1907, p. 747.
104
DEBBANÉ, Nicolau José. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVIII, parte II, 1915, p. 652.
105
BELARMINO, José de Souza (padre). Discurso de posse. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1896, p. 285.
106
BELARMINO, Discurso... op. cit., p. 285.
55
Por uma ciência (des)apaixonada?
Nos salões da agremiação carioca não adentram, afirma Olegário Herculano, dissensões
políticas. Os intuitos dos sócios são considerados “nobres” e os seus serviços desinteressados,
conforme a sua persona.107 Por décadas no IHGB não arrefece o zelo pela causa da pátria,
instância antropológica que representa a identidade nacional por anterioridade. Os sócios
trabalham por amor ao Brasil, como ressalta o presidente Olegário, sem remuneração de
qualidade alguma, sem outro incentivo que não o do cumprimento rigoroso de um dever
considerado cívico.108 Em outras palavras: abnegação cívico-intelectual.
Por tudo isso, são “dedicados levitas” os membros do IHGB na opinião do sócio
Damasceno Vieira. A “pacifica scientiae occupatio” é atravessada pela retórica da
neutralidade, na qual se declara que os credos particulares estão abaixo da pátria e do trabalho
metódico organizado com todas as suas regras inscritas na matriz disciplinar.
Crises políticas, de consciência histórica, regimes historiográficos beligerantes, são
aplainados pela persona, que aglutina em torno de si “distintos homens” versados em letras e
em ciências do país. Uma ciência em construção cujo eixo diretor se estabelece pelo amor à
pátria e pela autonomia científica. Esse é o conteúdo da “caixa-preta” do saber produzido pelo
Instituto Histórico.109 É um cultivo científico que se quer isento das prerrogativas políticas e
dos interesses particulares, mesmo que isso implique descompasso entre o que é prescrito e o
que se é produzido como historiografia. Para Vieira,
107
Essa dimensão da persona acadêmica do IHGB relaciona-se com uma das disposições inscritas no ethos da
ciência formulada por Robert Merton, qual seja, a do universalismo. Essa instância revela que a “objetividade
exclui o particularismo”, ou seja, o plano de certificação de um conhecimento que se quer científico não deve
envolver critérios religiosos, políticos, étnicos, de classe ou de gênero. Conforme bem pontua o sociólogo da
ciência: “O universalismo encontra expressão imediata no cânone de que as alegações de verdade, de qualquer que
seja a fonte, devem ser submetidas a critérios impessoais preestabelecidos; consoante com a observação e com o
conhecimento anteriormente confirmado”. MERTON, A ciência e a estrutura social democrática... Op. cit., p. 186.
108
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXII, parte II, 1897, p. 421.
109
A metáfora epistêmica da caixa preta do conhecimento é de Bruno Latour. O seu significado em nosso trabalho
pode ser verificado na introdução da tese. LATOUR, Bruno. Abrindo... op. cit., p. 16.
110
VIEIRA, Discurso... op. cit., p. 315.
56
Ao explicar a persona acadêmica que acompanha o Instituto, o conde Afonso Celso
declara que ela se ocupa com a agência da ideia de “cultura pátria”.
O lema todo da persona é: “Auspice Petro secundo, pacifica scientiae occupatio”.
Significa que mesmo na República a figura de Pedro II era lembrada como a de seu mais austero
sócio. A insígnia está nessa ordem por conta das atividades do IHGB terem sido inauguradas
no Império. Pedro II foi, por mais de meio século, a estrela da comunidade de historiadores do
Instituto, que fundado sob os moldes das Academias se vinculava ao Estado.111 Porém, em
termos epistemológicos, a persona apontava para a ideia de pátria como entidade superior, ou
à parte, de qualquer vertente ou orientação política. Não por acaso que diversos sócios
representavam as ações da instituição como “culto da Pátria”. Era mais do que a monarquia que
estava grafada nessa insígnia, mas a figura de Dom Pedro II, o imperador esclarecido, que o
Instituto Histórico, como forma de acomodar as rivalidades políticas e as controvérsias de saber,
alça à símbolo da comunidade de leitores(as) de história que acompanha o Instituto. A
mobilização da imagem de Pedro II, assim como a da pátria, gera, nele, autonomia para a prática
historiográfica perante a política - esse era o desejo dos sócios naquele presente republicano.
Vejamos a caracterização dada pelo conde de Afonso Celso, alguém que nutre simpatias
pela Monarquia, para o antigo imperador:
111
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial. O Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). RIHGB, tomo 156, vol. 388, 1995.
112
CELSO, Afonso. Discurso de posse. RIHGB, tomo LVI, parte II, 1893, p. 149.
113
Luciana Pessanha Fagundes admite que as relações oficiais do regime republicano com o passado monárquico
só se tornaram mais amigáveis a partir da década de 1920. Cf. FAGUNDES, Luciana Pessanha. Entre
comemorações, rituais e passados construídos: a Monarquia sob o olhar da Primeira República. Anais do Seminário
cultura e política na Primeira República: campanha civilista na Bahia. Santa Catarina: UESC, 2010. Disponível
em: https://cutt.ly/ccLA2fz Acesso: 08 abr. 2021.
57
não se coloca em suspeita total o papel, por exemplo, de Benjamin Constant, considerado o
fundador da República, mas se tem o princípio epistemológico do distanciamento: somente com
o passar do tempo, e o autor fala em um quarto de século, se pode julgar com propriedade o
passado. Há, aqui, uma interdição a uma história imediata, relacionada ao regime de ciência
historicista.114 José Bonifácio e Tiradentes são, sim, inauguradores das ideias de independência
e de República, porém, deseja-se alargar e acomodar outros indivíduos agentes da história
brasileira, como por exemplo os “heróis pernambucanos de 1817”. Bonifácio como prócere
submete, por outro turno, o silenciamento de atores como Pedro I. Os dois são coparticipes de
um mesmo fato histórico: a Independência. “A ideia é que entre Tiradentes e José Bonifácio de
um lado e Benjamin Constant de outro, isto é, entre a Independência e a República, estende-se
um longo deserto de quase setenta anos, a que posso dar o nome de deserto do esquecimento”.115
Há a ideia de progresso entre o Primeiro e o Segundo Reinado: “(...) progresso material,
intelectual e moral do país”.116 A reelaboração da história brasileira desejada por Joaquim
Nabuco não era orientada por motivos de origem política (mas talvez ideológicos), porém,
movimentava-se através de uma tomada de consciência de que o passado era relativamente
plural tanto quanto o presente; o que demandava uma visão sinóptica sobre o mesmo. Ademais,
o substrato patriótico, que está em um modo de anterioridade diante das formas políticas e da
nação, proporcionava ao historiador republicano extrair das suas investigações personagens e
situações que correspondiam ao plano da identidade (excludente) brasileira, não estando elas à
gosto dos impulsos políticos do tempo. Essa disposição movia a persona em questão.117
Retoricamente se tenta desenhar, como Félix Pacheco, um projeto epistemológico
distanciado de tudo o que ocorre nos meandros políticos, das paixões, que estão do “lado de
114
Segundo Marieta de Moraes Ferreira, desde o século XIX ao “(...) estudo da história se atribuiu a interpretação
do passado distante, tendo o passado recente sofrido uma interdição. Fundando-se numa concepção de que o
afastamento temporal era uma condição para se obter uma maior objetividade na escrita da história e defendendo
uma ruptura entre o passado e o presente, sustentava-se que só os indivíduos possuidores de uma formação
especializada poderiam executar essa tarefa”. FERREIRA, Marieta de Moraes. Notas iniciais sobre a história do
tempo presente e a historiografia no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, 2018, p. 82.
Disponível em: https://cutt.ly/7cLDeM0 Acesso: 08 abr. 2021.
115
NABUCO, Joaquim. Discurso de posse. RIHGB, p. 311.
116
NABUCO, Joaquim. Discurso... op. cit., p.311.
117
Mara Cristina de Matos Rodrigues adverte que, de algum modo, os reclames de Joaquim Nabuco foram
incorporados ao leque de problemas historiográficos desenvolvidos ao longo da primeira metade do século XX: a
“despeito do conhecido processo de republicanização da memória nacional, em curso desde os primeiros tempos
da proclamação, parece que essa advertência surtiu efeito dentre seus pares. A memória nacional ampliou-se tanto
no sentido de evitar o apagamento da memória imperial, como reclamava Nabuco, quanto no sentido de aumentar
seu repertório de eventos e heróis republicanos para além daqueles aos quais a historiografia vinha se dedicando
nos primeiros anos após o 15 de novembro de 1889”. RODRIGUES, Mara Cristina de Matos. Memórias regionais
no IHGB: os centenários das revoluções pernambucana e farroupilha – 1917 e 1935. Revista Memória em rede,
Pelotas, vol. 4, n. 10, 2014, p. 2. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/107194 Acesso: 08 abr. 2021.
58
fora” do grêmio. É o modelo de ciência experimental renascentista que acredita ser possível ao
sujeito cognoscente se afastar totalmente diante do produto científico por ele elaborado.
Era uma estratégia que buscava dar garantia de funcionamento ao IHGB no que se refere
à política institucional e à forma mesmo de credenciar as suas atividades enquanto comunidade
científica.118 Era essa disponibilidade historiográfica que servia de esteio para a persona
performada no Instituto Histórico. Percebemos essa estratégia em duas passagens escritas por
Pacheco em seu discurso de posse em 1913:
Percebesse que o ar, neste grave salão, que o tempo encheu de harmonia
solene, não é o mesmo que lá fora se respira. A meia sombra que aqui reina,
entre as velhas preciosidades acumuladas, só pode convidar ao fecundo
silêncio, gerador dos pensamentos altos e inspirador das obras dignas, a que
todos deveriam consagrar uma parcela do seu tempo e de seu engenho. Sinto-
me leve ao subir as longas escadas que aqui me conduziram e estou
evidentemente desapresso neste recinto de paz severa e de calma sabedoria.119
A persona é retomada por Ramiz Galvão no cerimonial de posse dos sócios Enéas
Galvão e Afrânio de Melo e Franco. É ela quem oferece os rumos que as pesquisas no Instituto
Histórico devem assumir, colocando em movimento todo um ethos historiográfico: “Não trazeis
para aqui o partidarismo político, que tantas vezes desvaira espíritos cultos; também não vos
apaixonam exclusivismos filosóficos, que conduzem por vezes os mais respeitáveis cientistas
à juízos menos seguros”.121
Nesse sentido, a persona “pacifica scientiae occupatio” mobilizada pelos sócios do
IHGB se configura como a ética historiográfica assumida pela instituição. Em João Coelho
Gomes Ribeiro, a sua performatividade relaciona-se com o sentimento de abnegação daquilo
que é externo à ciência da história, bem como ao rigor operado nas pesquisas. Além disso, ela
118
Francisco Gouvea de Sousa investiga o ethos científico da comunidade de historiadores do IHGB. Em suas
palavras, “(...) a construção do tempo moderno se deu em um contexto em que o desenvolvimento moral, que
compreende o papel de certos homens dentro de uma sociedade e Estado, é separado da política em um movimento
onde a crítica, como instrumento da moral, submete a política ao juízo da razão. Assim, abrandar os ânimos,
respeitar a razão, dar continuidade a debates anteriores são faces da moral particular a esses sócios do IHGB
comprometidos em se distanciar das tergiversações políticas”. SOUSA, Francisco Gouvea de. Entre fronteiras e
nações: um estudo sobre a revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro desde 1870 a 1890. Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História Social da Cultural, Pontifícia Universidade
Católica/RJ, 2008, p. 94. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/12208/12208_1.PDF Acesso: 03
dez. 2020.
119
PACHECO, Félix. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVI, parte II, 1913, p. 563.
120
PACHECO, Discurso... op. cit., p. 563.
121
GALVÃO, Ramiz. Discurso de recepção dos sócios Enéas Galvão e Afrânio de Melo e Franco. RIHGB, tomo
LXXVII, parte II, 1914, p. 617-618.
59
traz consigo o espírito comunitário da produção de ciência em que existe atributos morais a
serem seguidos. O trecho é longo, mas de grande valia para percebermos a persona que se
constituiu no Instituto no período em questão:
122
RIBEIRO, João Coelho Gomes. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXIV, parte II, 1911, p. 638.
123
TAVARES, Raul. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXV, parte II, 1912, p 490.
60
exemplos de abnegação, de patriotismo e de altivez, que escrevem, no limite, com heroísmo e
com orgulho as páginas mais exemplares da história da humanidade.124
Segundo Francisco Agenor de Noronha Santos, tudo no IHGB orienta-se pelo “retiro
sagrado” do silêncio das atividades científicas, onde “vive a cuidar de velhos papéis que
rendado de suas laudas dizem muito de outros tempos”, contribuindo para tornar viva as
tradições nacionais e para realizar um saber detalhado sobre a história “dessa formosa terra da
Guanabara”.125 A importante tarefa que o Instituto Histórico exercita, alheia às rusgas de
partidos e às contendas literárias, direciona-o cada vez mais, afirma o sócio, ao apreço dos que
vivem nos canteiros da inteligência e da pátria.
Ele coloca em evidência as atribuições dos sócios da agremiação, entre elas, por
exemplo, a análise dos grandes acontecimentos - os de maior ressonância - da história nacional
e a realização do julgamento dos elementos econômicos e sociais que ajustam o conflito das
raças sobre o território brasileiro no correr dos séculos, o que imprime, também, uma leitura
acerca do movimento de expansão geográfica. Esse registro implica no conhecimento da
geografia física e política, da história econômica, da antropologia e dos mais diversos ramos
que explicam os sujeitos em sua pátria - função do IHGB para esse sócio. “Dentro da alma forte
e sacrificada dos grandes obreiros, que ergueram o monumento de trabalho – que é o IHGB,
havia a comunhão de esforços para levar avante essa tarefa dificílima”.126 O que se elabora e se
deseja é uma história única (nacional-patriótica) para um país plural como é o Brasil.
João da Costa Lima Drumond se diz inspirado em seus estudos pela matriz disciplinar
da história. Para além do incentivo ao estudo da história, o novo sócio vê o grêmio disciplinar
a história a partir de duas principais virtudes epistêmicas: imparcialidade e objetividade. É por
meio desse aparelhamento científico que os chamados obreiros de Clio podem “(...) extrair
grandes lições da experiência humana, no culto do passado”.127
Ao figurar como novo sócio do Instituto, o estudioso Antonio Augusto de Lima diz
“venerar sem fetichismo as coisas do passado”, abrindo, então, “a alma confiada às aspirações
do futuro sem as vertigens da utopia”. De todo modo, Lima alega ser a situação moral e social
do IHGB, em que há uma ciência que supera as paixões, que infunde nas gerações o patriotismo:
“por ele tem passado esse sentimento de unidade histórica e de integridade territorial, que
forma, no espaço e no tempo, o próprio sentimento da pátria”.128 O projeto historiográfico do
124
TAVARES, Discurso... op. cit., 496.
125
SANTOS, Francisco Agenor de Noronha. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXV, parte II, 1912, p. 427.
126
SANTOS, Discurso... op. cit., p. 428,
127
DRUMOND, João da Costa Lima. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXV, parte II, 1912, p. 328.
128
LIMA, Antonio Augusto de. Discurso de posse. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1906, p. 401.
61
IHGB não pode ser assinalado por meio da abordagem de leis ou pela análise de decretos e atos
políticos, que padecem na precariedade da sua origem mutável, dado que ele sobrevive pela
convergência dos esforços intelectuais permanentes para a guarda da memória (eletiva) do povo
- “não interpretada através das urnas políticas, mas perscrutando intimamente as inclinações
naturais, nos seus antecedentes históricos, na sua religião e sua cultura cívica e moral”.129
É no Instituto que a história disciplinada se conjuga com a noção majoritária de história
pátria, formando então a sua persona “pacifica scientiae occupatio”. Os ruídos dos
acontecimentos de “fora” da agremiação, de “fora” do recinto científico, são ecos amortecidos,
quando não cessam de todo. Aí, sim, podem eles serem julgados racionalmente. Nele se tolera
opiniões relativamente distintas, pois na matriz disciplinar cientificista da história localizam-se
paradigmas em concorrência: discerne no “turbilhão dos sucessos não o que deve ser senão o
que é”, afirma Antonio Augusto de Lima. E as suas decisões são tomadas, em tese, a partir do
ponto de vista humano, sem superstições de seitas ou paixões de partidos. É por isso que a sua
missão tem sido, e continua sendo, o “sagrado ministério” da nossa formação nacional.130 Por
isso, João Pandiá Calógeras o representa através da ideia da “plenitude da calma”, pelo
recolhimento de quem, para “descansar do labor diurno, se acolhe no gabinete de estudo e ali
procura indagar fatos sem outra paixão além do respeito a probidade intelectual”.131
Alberto Rangel também mobiliza a “pacifica scientiae occupatio”. Para ele, o Instituto
abriga tradições de pensamento e de interpretações do passado, posicionando-se de forma
autônoma e instaurando o dissenso ante essas disposições intelectuais. Ali os sócios acionam
um passado vivo só possível, em tese, pela retirada do posicionamento do sujeito cognoscente
historiador perante as paixões políticas que o circundam. Por meio de “uma educação filosófica
bebida numa escola de observação e experiência” a história se performa, de uma forma ou de
outra, por “meio de métodos pertinentes e eruditos.132
129
LIMA, Discurso... op. cit., p. 402. Essa performance da “pacifica scientiae occupatio” vincula-se à demanda
por imparcialidade por parte do sujeito cognoscente historiador. Porém, como já aludimos, o remetente das
investigações do IHGB é a pátria. Hugh Lacey tem uma boa interpretação para que compreendamos essa dupla
demanda requerida pela persona acadêmica circulante no Instituto: “O ideal da imparcialidade requer que os
valores éticos e sociais – e a aplicabilidade de uma teoria a serviço de quaisquer valores particulares – não
desempenhem papel cognitivo algum na aceitação da teoria. Por outro lado, os valores éticos e sociais
necessariamente desempenham papeis na justificação de endossamentos”. LACEY, Hugh. A imparcialidade da
ciência e as responsabilidades dos cientistas. Scientiae studia, São Paulo, vol. 9, n. 3, 2011, p. 488. Disponível em:
https://cutt.ly/9cLBhSD Acesso: 08 abr. 2021.
130
LIMA, Discurso, op. cit., 402.
131
CALÓGERAS, João Pandiá. Discurso de posse. RIHGB, tomo LVIII, parte II, 1905, p. 216.
132
RANGEL, Alberto. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXV, parte II, 1912, p. 391.
62
Solidônio Leite comunga do ideal de ciência do IHGB: uma “Casa de estudos onde, à
mercê de Deus, não há partidos políticos, nem ódios nem ambições mesquinhas”.133A persona
indica que nele os valores de uma moral particular, as disposições partidárias e o sentimento de
paixão não possuem, prescritivamente, valoração historiográfico-científica. Os seus trabalhos
congregam princípios científicos e interpretação da memória coletiva134, isto é, imparcialidade,
objetividade e pátria.
Enquanto isso, o sócio argentino Ramon Cárcano também se faz sabedor da persona
acadêmica do Instituto Histórico. Segundo a sua perspectiva, ali jamais entram violências e
lutas, sejam de qualquer natureza. Ciência e patriotismo majoritários dominam as atividades da
agremiação: “Se há encendido las ideas y no han estalado las pasiones. Se conservado siempre
la asociacion de los nobles anseios, que significa la solidaridad de la pátria”.135 Dentro dessa
concepção epistêmica e, também, institucional localizam-se os interesses da investigação
historiográfica, da engenhosidade dos publicistas, da inspiração e da eloquência dos oradores,
dos aconselhamentos serenos dos pensadores e dos estadistas. Os interesses identitários, as suas
concordâncias e as suas discordâncias, se revelam através da atividade intelectual, responsável
por analisar, validar e consolidar as orientações coletivas dessa comunidade em específico.136
O monarquista Eduardo Prado reconhece que ao ser “laureado” com o título de sócio da
instituição está apto a fazer parte, pois, de uma longa herança de trabalhos e de estudos junto,
principalmente, ao campo da história. A ideia de herança dá a medida certa do senso de
comunidade científica, pois coloca em destaque disposições intelectivas e morais que se
consolidam, não sem controvérsia, no tempo. “Para quem tem tido uma vida por tantas partes
dispersas, a quietação deste remanso de turva corrente contemporânea oferece muitas
consolações e muitos encantos”.137 “Pacifica scientiae occupatio”. Eduardo Prado aciona uma
imagem que simboliza as atividades e a tradição de pensamento da instituição fomentadas pela
matriz disciplinar. Antigamente o seu prédio foi um convento, e nisso a simbologia dupla: o
IHGB preserva uma operação de pensamento em que prevalece “a paz e o estudo”.138
133
LEITE, Solidônio. Discurso de posse. RIHGB, tomo 85, 1919, p. 435.
134
A noção de memória coletiva acionada por nós possui dimensões identitárias, da forma como concebe Michel
Pollak. É possível dizer “(...) que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de
continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. POLLAK, Michael.
Memória e identidade social. Estudo históricos, vol. 5, n. 10, 1992, p. 5. Disponível em: https://cutt.ly/jcZuayL
Acesso: 08 abr. 2021.
135
CÁRCANO, Ramon. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXIII, parte II, 1910, p. 204.
136
CÁRCANO, Discurso... op. cit., p. 205.
137
PRADO, Eduardo. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901, p. 239.
138
PRADO, Discurso... op. cit., p. 239.
63
Para Garcia Merou, falar do Instituto é falar de um areópago que congrega tradições de
pensamento, ou tradições de se fazer história: posições historiográficas que reforçam o
sentimento nacional a partir da história.139 Para o sócio argentino, nenhuma associação que
congrega as esferas artísticas, científicas e literárias alcança tamanha notoriedade no continente
como o IHGB. Nascido em meio a um “turbilhão político”, em que inúmeras facções políticas
se movimentam de forma conflitiva junto à cena pública no momento da construção do Estado
nacional, mantém-se o grêmio diante desse “espírito de anarquia” e de “despotismo”, “tranquilo
e silencioso”.140 Essas adjetivações são absolutamente ideológicas. Está é a genealogia da
“pacifica scientiae occupatio”. A pátria em estado solar diante das facções políticas e da
parcialidade intelectual, e a ciência no controle das atividades historiográficas. Esses eixos
formam um programa investigativo intersubjetivo. Merou afirma que “assim a história desta
associação, durante mais de meio século, constitui a história intelectual do Brasil”.141
Outro sócio argentino, Lucas Ayarragaray, possui uma ideia clara sobre a “pacifica
scientiae occupatio”. Para ele, o Instituto Histórico estuda, investiga e medita o que está
disponível pela “civilização imaterial”, que, em suma, reúne tudo o que é de invisível junto à
formação histórica nacional, ou seja, as suas próprias tradições e a sua memória coletiva
(majoritária), não sendo uma perspectiva de história sem pregnância social, porém,
legitimadora dos signos patrióticos e civilizacionais, o que implica, cabe dizer, usos políticos
do passado. Essa proposta do sócio é agenciada pelo regime historiográfico moralista.142 De
todo modo, a partir desse regime também se investiga, no limite, a pátria. É ressaltado, pois,
que os interesses mais imediatos daquela congregação de historiadores estão relacionados mais
especificamente com a valorização das origens e com a investigação dos caracteres morais que
orientam a formação da nação. É obra de meditação, transcendência e desinteresse. A crítica
moral é, cabe salientar, dotada de cientificidade, perfazendo a matriz disciplinar cientificista.
Porém, apresenta uma visão de mundo extremamente conservadora. Assim,
139
Mais do que uma assimilação passiva da tradição há uma (re)invenção dela. A tradição é formada por um
conjunto de elaborações simbólicas que é transmitido de geração em geração, tendo uma dimensão repetitiva. De
todo modo, a tradição deve ser concebida como uma instância dinâmica, uma orientação para se adentrar o passado
e uma forma de organizar o presente para o tempo futuro. Eric Hobsbawm assinala que “a invenção das tradições
é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que
apenas pela imposição da repetição. Cf. HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. _____;
RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
140
MEROU, Discurso... op. cit., p. 336.
141
Idem, p. 336.
142
Um adendo: a obra de Ayarragaray é marcada por um flagrante “racismo científico”.
64
minoria esclarecida. La del Brasil tiene aqui su cenáculo, à donde acuden de
tiempo em tiempo sus representantes màs genuínos para discurrir sobre el
origen y el fin moral de las cosas e desentrafiar de la subversión aparente
fuerzas imponderables que elaboran e gobiernan. Asi construyen, recogidos
em la meditación, la obra transcendental y desinteressada, que cumpletará y
ennoblecerá lo que em el porvenir há de constituir el gran Brasil, aureolado
com la irradiación de las belas letras y de las artes.143
Quer dizer, o IHGB é figurado, acionando a sua persona, como um lugar “tranquilo” e
“autorizado” diante da causa maior da civilização imaterial, correspondendo a pátria, a cultura,
o idealismo, a espiritualidade e a superioridade do pensamento. Há, no texto, certa dose de
conservadorismo e aristocratismo. Mas a performance do regime historiográfico moralista
atende a “pacifica scientiae occupatio”. O conhecimento elaborado por esse regime
historiográfico, chancelado por aquela persona acadêmica, torna-se um antídoto potente para
aquilo que Ayarragaray chama de civilização material, que concebe o mundo social através do
imperativo imediatista da técnica, que de algum modo pode ser inimiga do progresso moral
(conservador) como um todo.
143
AYARRAGARAY, Lucas. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVII, parte II, 1914, p. 524.
144
CELSO, Discurso... op. cit., p. 149.
145
Fernando Catroga oferece um quadro conceitual importante para que compreendamos o significado da noção
de pátria, a qual se torna o remetente implícito da ciência da história produzida no IHGB: “No seu sentido mais
estrito, ela englobaria, portanto, um território específico sacralizado pelos seus deuses (lares pátrios), onde se
circunscreve um sentimento de pertença inclusivo e com fronteiras traçadas pela inserção e filiação dos indivíduos
nos grupos de tipo comunitarista, dado que eles evolviam tanto os vivos, como os morto e os que hão de vir”.
CATROGA, Fernando. Pátria e nação. NAXARA, Márcia; CAMILOTTI, Virgínia (orgs.). Conceitos e linguagens,
construções identitárias. São Paulo: Intermeios, 2013, p. 15.
146
Essa disposição do conhecimento histórico relacionada com a cientificidade responde ao contexto epistêmico
apresentado por Luciana Murari: “A atmosfera que respiravam estes intelectuais brasileiros nas últimas décadas
do século XIX pode ser definida pelo que Ernest Renan, uma das grandes fontes desse novo pensamento, chamara
65
memória coletiva do país (excludente) com uma forma de elaborar o saber que respeitava a
verdade, a objetividade e a imparcialidade – virtudes historicizadas. É essa fusão epistêmica
que orientava a persona da agremiação.147 Diversas vertentes de patriotismo e variados projetos
de ciência eram abarcados pela comunidade de historiadores. Trocou-se o regime político e
houve mutações na episteme, mas o Instituto, ao menos prescritivamente, se manteve sempre
igual a si mesmo. Era uma concepção de política institucional que reunia, no limite,
sensibilidade patriótica e científica majoritárias em moldes modernos. Desde 1838 assentavam-
se em suas fileiras cientistas diversos, com seus estilos de pensamento148 específicos,
movimentando paradigmas diversificados, todavia relativamente colonizados. Ali estavam
homens de letras de variadas estirpes, cientistas de todas as escolas, artífices mobilizando
distintas formas de evocar o passado. Não havia mulheres. Havia certa pretensão de
universalidade do saber em sua missão cultural. Em resumo, e partindo da percepção dos seus
próprios sócios, o IHGB, nessa direção, era um “centro cultural” patriótico por excelência.
O presidente da instituição, Joaquim Norberto de Souza e Silva, por ocasião da posse
de Joaquim José Gomes da Silva Neto, mostra uma face da “pacifica scientiae occupatio”: a de
uma ciência que informa e está à serviço da esfera pública cívica - uma concepção de
conhecimento de utilidade social. Porém, cabe ressaltar, não se trata de uma ciência partidária,
posto que ela se pretende autônoma. Diz o presidente:
Em seu discurso prescritivo sobre a história, Afrânio Peixoto assinala que o grêmio,
desde a publicação dos seus primeiros estatutos em 1838, se porta de forma relativamente aberta
para grande leque de pensadores. Além da produção científica, o Instituto se preocupa com a
história pública, com uma epistemologia que defende a autonomia, a imparcialidade e a
de fé na ciência”. MURARI, Luciana. Brasil, ficção geográfica. Ciência e nacionalidade no país d’Os Sertões.
São Paulo: Annablume, 2007, p. 32.
147
A autonomia científica elaborada pelos sócios do Instituto remonta à uma tradição que tem como símbolo
Galileu Galilei e a sua postura ante à Igreja. O que está em jogo é a possibilidade de conduzir a pesquisa dita
científica sem intervenções externas: MARICONDA, P. R; LACEY, H. A águia e os estorninhos: Galileu e a
autonomia da ciência. Tempo Social, vol. 13, n. 1, 2001, pp. 49-65. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ts/v13n1/v13n1a05.pdf Acesso: 08 abr. 2021.
148
Cf. FLECK, Ludwik. Consequências para a teoria do conhecimento da história apresentada a partir de um
conceito. In: _____. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrifactum, 2010.
149
SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Discurso de recepção do sócio Joaquim José Gomes da Silva. RIHGB,
tomo LIV, parte II, 1891, p. 191.
66
objetividade, condições ideais para a promoção do dissenso em sua comunidade. Cabe
mencionar que além de coligir, metodizar, publicar e arquivar os documentos necessários para
a história, a geografia e a etnologia, também faz parte dos seus horizontes a promoção de
conhecimentos na esfera do ensino público; divulgando cursos, conferências e publicações
variadas, compreendo o que o estudioso chama de educação nacional. “Não só os geógrafos e
os historiadores têm, pois, assento devido aqui, senão também os didatas, os professores ou
escritores, todos aqueles que fazem objeto de suas investigações – a terra e a gente do Brasil”.150
A persona domina a visão de história e de ciência do sócio José Maria Moreira, General
do exército. O Instituto é visto como uma escola, “augusto e grandioso templo nacional”,
“templo da religião da pátria”, em que “patriotas e previdentes” podem construir um tipo de
ciência comunitária onde não há apenas um paradigma ou regime historiográfico dominante.
Ao mesmo tempo percebe-se pregnância no sentido de ser um saber que se orienta para um fim
identitário, no caso, o conhecimento da pátria (única).
Essas posições paradigmáticas eram todas de matriz eurocêntrica, mesmo com o
processo de apropriação. Era um saber cívico o que se desejava. Tais eram os elementos da
persona acadêmica e que perfaziam a concepção de ciência dos sócios do IHGB.151 A persona
era, com o passar dos anos, cada vez mais subjetivada por aquela comunidade de historiadores,
agenciando as atividades dos sócios. Uma ciência da história patriótica (majoritária), cívica
(esfera pública republicana) e distanciada das paixões humanas (ciência experimental) 152 era o
destino do seu programa epistêmico-historiográfico.
José Higino Duarte Pereira possui uma visão comunitária da ciência que é produzida no
Instituto Histórico republicano. Ele entende a instituição como uma “corporação”. Mas não é
uma ciência fechada em si mesma e que não abrange temáticas sociais, porém, um saber que
presta “relevantes serviços à história de nossa pátria”, ocupando, por isso, lugar destacado entre
as instituições congêneres existentes no Brasil.153 É necessário sempre dizer que a pátria como
identidade nacional silencia agentes sociais e harmoniza diferenças sociais, naturalizando-as.
150
PEIXOTO, Afrânio. Discurso de posse. RIHGB, tomo 85, parte II, 1919, p. 503.
151
MOREIRA, José Maria. Discurso de posse. RIHGB, tomo 90, parte II, 1921, p. 810.
152
As intricadas relações entre paixão e razão acompanham a história da filosofia. Esse problema remonta,
inicialmente, à Platão. A contenda entre essas duas dimensões é, na história da filosofia, “(...) marcada por um
permanente conflito, em que a razão se colocava como capaz ou disposta a controlar e, quiçá, extinguir as paixões
humanas, entendidas como apetites, desejos, sentimentos e emoções. Se quisermos estabelecer um conhecimento
verdadeiro, uma política justa e uma vida ética feliz, deveremos dominar e extirpar o que é contingencial em nós,
em nome do que é necessário e universal”. Isso vale para a história. CARVALHO, Alonso Bezerra de. Razão e
paixão: necessidade e contingência na construção da vida ética. Conjectura, vol. 17, n. 1, 2012, p. 215. Disponível
em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/127115 Acesso: 08 abr. 2021.
153
PEREIRA, José Higino Duarte. Discurso de posse. RIHGB, tomo LIV, parte II, 1891, p. 166.
67
De todo modo, essa relação com o mundo social não interfere, se vista pela ótica da sua política
institucional, no princípio de autonomia daquela comunidade, assegura Pereira.
É como associação letrada, e como comunidade de historiadores atravessada por uma
persona, que o IHGB recebe o sócio Felisbelo Freire. Dois eixos são observados para a sua
escolha: o “amor às letras” e seus préstimos aos estudos históricos, bem como a sua
sensibilidade social. Ambas as qualidades solicitadas pelo ethos em questão.154
Homero Batista salienta, em sua recepção, que são três as distinções que o levam a
pertencer aos quadros sociais do Instituto: de homem público, de servidor da nação e de homem
de letras. Essas categorias levam o IHGB a aceitar esse sócio em suas fileiras.
Vemos que se conjuga o trabalho intelectual com demandas que são da alçada pública.
Essa era uma das condições para que a divisa “pacifica scientiae occupatio” se desenvolvesse
nessa comunidade de historiadores. Para o grêmio eram recrutados os estudiosos que aspiravam
um lugar em que se trabalhava os aspectos da cultura em geral e as preocupações patrióticas
majoritárias em termos de saber produzido.155 Lembramos que o referente historiográfico dos
sócios era a pátria, instância que preservava a memória coletiva do Brasil e a sua identidade,
transcendendo as disputas políticas, as paixões, o sectarismo e o subjetivismo. Uma pátria
majoritária, cabe dizer, que emudecia diversos segmentos de identidade e de cultura.
A ideia de “pacifica scientiae occupatio” está presente no discurso de Antonio Olinto
Pires, mais especificamente através da convicção que o IHGB é uma “assembleia de estudiosos”
que se movimenta epistêmicamente a partir do desinteresse (partidário), entregando-se à
verdade das coisas transcorridas. Essa ideia não se desvincula da construção social da
identidade nacional. O ideal da persona congrega essas duas perspectivas. A verdade
(experimental) e a pátria (majoritária) acima das facções políticas ordinárias e dos sentimentos
apaixonados. É, inclusive, por conta dessa concepção de ciência que o Instituto conseguiu
adentrar ao século XX republicano. Ali conviviam monarquistas, republicanos, cristãos, ateus
e sujeitos, em tese, com qualquer outro tipo de credo, desde que mantivessem duas ideias
máximas: a “verdade” e o “culto da pátria”.
Tais deliberações não são menos importantes para a política, desde que seja um agir que
suspenda as facções. É a ideia de pátria que assegura as atividades do IHGB. A pátria está,
enquanto componente antropológico vital, em um movimento anterior ao da nação e da política.
Essas duas instâncias são, em realidade, dependentes dessa noção. Mas tudo isso em uma
154
ARARIPE, Tristão de Alencar. Discurso de recepção do socio Felisbelo Freire. RIHGB, tomo LIII, parte II,
1890, p. 549.
155
BATISTA, Homero. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVI, parte II, 1913, p. 575.
68
perspectiva de história única, onde prevalece o conceito de história como singular coletivo. A
“pacifica scientiae occupatio”, por meio da Revista e do regime historiográfico metódico, bem
como através de outras atividades dos sócios, oferecia aos leitores de história e ao público em
geral um horizonte tão amplo de entendimento da realidade histórica que “talvez não haja em
nenhum outro país do nosso continente”. Quem percorre os seus trabalhos, de uma forma ou de
outra, encontrará estudos relacionados às coisas da “nossa terra”, podendo dali “beber o filtro
da verdade que os conforta e anima no prosseguimento de suas pesquisas e esforços”. A
“pacifica scientiae occupatio”, que movimenta a matriz disciplinar cientificista da história,
engendrava estudos que advém de “um remanso de confraternidade e de paz”, em que tudo era
regido por uma fórmula epistemológica de longa duração, qual seja, o afastamento “do
torvelinho das paixões e dos ódios, na convivência amiga dos cultores das ciências e das letras
na intimidade salutar dos livros (...)”.156 É uma obra cívica e imperecível, posto que a pátria,
mais até do que a nação, supera os pensamentos estritamente político-partidários, os
sentimentos próprios da paixão e da parcialidade. A pátria (majoritária), como lugar de origem,
de civismo e de memória, formava o culto direcionador das atividades do grêmio. Era o seu
remetente intelectual e a sua garantia de existência enquanto lugar autorizado de saber. Por
meio do estudo da história pátria o Instituto Histórico pôde arrogar para a si a autonomia -
fomentando o dissenso historiográfico - de sua performance institucional.
Afrânio Peixoto admite que o IHGB é o grande “centro espiritual de nossa
nacionalidade”. Os sócios do Instituto, em um lugar comum naquela conjuntura epistêmica, são
vistos como aqueles que desvelam a “alma do Brasil”, na medida que a trajetória da agremiação
se confunde com a própria memória coletiva da nação. Desejava-se a preservação do plano
ideológico presente nas formas do IHGB oferecer sentido para história brasileira. Se cria, dessa
maneira, a ideia de uma história única com um sentido francamente essencialista.
Epitácio Pessoa também recupera a persona “pacifica scientiae occupatio” ao afirmar
que a sua entrada para a comunidade científica do Instituto é a possibilidade de
156
Cf. VIEIRA, Discurso... op. cit., p. 341.
157
PESSOA, Epitácio. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901, p. 195.
69
Souza e Silva, também mobiliza a persona “pacifica scientiae occupatio”. É por meio desse
ethos, o programa epistemológico e de conduta da agremiação, que a instituição consegue,
como vimos, sobreviver academicamente na Primeira República e se manter como a principal
instituição que se dedica ao estudo da história. A obra que lhe deu acesso àquela comunidade
de historiadores foi o Dicionário Histórico das campanhas do Uruguai e Paraguai, redigida,
segundo consta, no calor da Guerra do Paraguai. Ela é uma mostra das faces do trabalho dito
científico, em que se mobiliza as virtudes epistêmicas da sinceridade e do rigor, que se
coadunam com o esforço do estudo patriótico. O trabalho aceito para o seu ingresso no IHGB
prega o “culto da pátria”, sendo, ademais, considerado fonte para outros trabalhos vindouros, o
que reforça a ideia de comunidade de historiadores. O sócio produz uma história dos
vencedores, mesmo apelando para a retórica da imparcialidade:
Nas palavras de Edgar Roquette-Pinto, o IHGB pratica o mais nobre “culto do passado”,
quer dizer, ele tem uma atividade conhecida por todos em razão do seu aspecto de continuidade
de tarefas, bem como é um lugar em que se procura enaltecer o passado de modo eletivo. Vemos
aqui mais elementos da persona “pacifica scientiae occupatio”.
Essa era outra forma com que o Instituto Histórico, entre outras maneiras, se legitimava
como lugar de conhecimento autorizado para a produção do conhecimento histórico no(s)
contexto(s) epistêmico(s) do período. Segundo o sócio, “aqui repousam as nossas mais puras
tradições e se guardam com desvelo as lições dos que se foram”.159 A distinção de poder
participar do grêmio também estava inscrita nos horizontes da persona, ou ethos historiográfico,
sobretudo, no que diz respeito a sua fama pública de lugar que apreende a história pátria
(homogênea-unitária-essencialista):
158
ARARIPE, Tristão de Alencar. Discurso de recepção do sócio João Vicente Leite de Castro. RIHGB, tomo LII,
parte II, 1889, p. 533.
159
PINTO, Discurso... op. cit., p. 587.
160
Idem, p. 587.
70
O arcebispo Joaquim Arcoverde, mesmo sendo religioso, também aciona a persona
“pacifica scientiae occupatio”. Para ele, as atividades do IHGB se fazem conhecer e são
conhecidas pela construção da “imagem da pátria”. A pátria mostra-se como o nó organizador
dos laços de pertencimento virtualmente existentes entre homens e mulheres. Por outro lado,
Arcoverde aciona o regime historiográfico metódico e coloca em relevo a razão, sendo a
persona acadêmica totalmente contemplada: “desde o alvorecer da razão, já eu era estimulado
a sacudir o pó que encobre os túmulos dos nossos velhos heróis, a evocar a sua memória, a
interroga-los acerca de seus feitos e de suas glórias (...)”.
A persona está atravessada pelas noções de veneração e de justiça: o culto e a reverência
do passado, a razão historiadora e a verdade. Além disso, argumentava o arcebispo Arcoverde
que a partir dos “sacrifícios” dos “grandes varões ilustrados” se recolhia ensinamentos. Assim,
as “dedicações pela pátria” os tornam “veneráveis” “no pedestal de honra em que os coloca a
justiça da história para nos servirem como lição objetiva de patriotismo voraz”.161
Quer dizer, em suma, que a razão e o metodismo historiográfico mostravam-se como as
disposições epistemológicas aptas a tornar presente tais lições. Não é menos importante
assinalar que Joaquim Arcoverde concebia os sócios do IHGB como “sábios” e “patriotas”, isto
é, as faces da “pacifica scientiae occupatio”.
Para Lucas Ayarragaray, o IHGB internaliza e subjetiva a sua persona acadêmica. Há
meditação metódica em suas atividades de interpretação da realidade do presente pelo passado,
“em armonia com las transformações experimentadas por el sentido histórico y exhunando las
cosas que fueran”.162 E assinala que mais do que eruditos, os sócios do IHGB são instados a
serem psicólogos e sociólogos, estando aí visivelmente um pendor público para essa história
que se quer realizar. Ou seja, a persona “pacifica scientiae occupatio” subjetivada por aqueles
letrados quer investigar a pátria, emergindo daí, então, problemas de ordem pública (não
partidária), como é o caso do descobrimento das raízes sociais e psicológicas do povo brasileiro.
Afonso Arinos de Melo Franco apresenta o Instituto como um lugar “augusto” e
“venerável”, em que o passado ali cultivado ora causa-lhe um sentimento afável ora de terror.
Essas adjetivações não dão outra ideia que não seja a de aristocracia intelectual. Mas o que
importa dizer é que o grêmio congrega a cientificidade das atividades meditadas com as
“recordações vivas dos grandes homens da Pátria”.
161
ARCOVERDE, Joaquim (Arcebispo). Discurso de posse. RIHGB, tomo LXI, parte, 1898, p. 650.
162
AYARRAGARAY, Discurso... op. cit., p. 528.
71
As atividades meditadas ligavam-se ao caráter científico proporcionado pela prática dos
sócios, sobretudo, em se tratando de uma comunidade científica atuante há mais de cinco
décadas. Já as recordações vivas ligavam-se a um passado não apenas disciplinar, mas, sim, no
âmbito da memória coletiva, do passado vivo, que age corporalmente e sensivelmente na vida
dos sujeitos históricos. Então, a “pacifica scientiae occupatio” não se preocupava apenas com
o passado disciplinar, mas também com o passado vivo, prático, do Brasil.163
Essa persona acadêmica presente na instituição também é subjetivada por João Mendes
de Almeida Junior. Para ele, quaisquer que sejam os fatores secundários invocados na formação
do povo brasileiro há um princípio que domina o pensamento do Instituto: a unidade nacional
mantida pelo sentimento patriótico e pela tradição. Observemos bem a ideologia da história
única criada pela instituição. Esse horizonte da memória coletiva é devidamente racionalizado
pela dúvida metódica, da forma estabelecida pela matriz disciplinar da história. Por conta disso
ele “é o guarda vigilante de todos dos esforços dos maiores para formação de nossa unidade”,
163
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXVI, parte II, 1903.
164
JUNIOR, João Mendes de Almeida. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXVI, parte II, 1903, p. 221.
165
LEAL, Aurelino. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVIII, parte II, 1915, p. 705.
72
edifício vós podeis também mandar gravar está divisa: ‘Aqui se aprende a
defender a pátria’”.166
É nesse sentido que os trabalhos do Instituto Histórico são figurados através de um cunho
prático, de tal modo que todos os seus esforços convergem para um alvo comum, qual seja, o
patriotismo cívico-ideológico, elo comum societário e fomentador da identidade.
O IHGB é considerado, para Carlos Vidal de Oliveira Freitas, uma “corporação
científica” e uma “associação de doutos”, em que se fabrica e se cultiva as mais altas “virtudes
morais e cívicas”. Lugar em que se fomenta “com amor o estudo da história”, o Instituto
compreende, para esse sócio, uma “sociedade de homens de saber”, um “templo de saber” cujo
“altar-mor é a pátria”. Ciência (experimental), pátria (majoritária) e comunidade de saber
(elitista e conservadora) se intercambiam dando forma a persona acadêmica na instituição. Na
agremiação se venera, munidos pelos artifícios científicos e cognitivos, “a memória dos grandes
cidadãos, grandes pelo saber e pelas virtudes, grandes pela abnegação com que serviram ao
país”.167 Formas possíveis de (ab)usos do passado
O IHGB apresenta-se, para além de uma corporação científica, como uma casa de
“varões ilustres” que por meio dos seus trabalhos historiográficos “colorem” pontos
significativos da identidade nacional. Os sócios são reconhecidos por serem “portadores de um
saber ciclópico” e “venerados pela grandeza e qualidade dos serviços prestados não só a causa
das letras, mas, igualmente ao bem-estar e progresso de toda a Nação”.168
Nesse contexto ainda se acreditava no caráter ilustrado dos intelectuais, estabelecendo,
na verdade, uma versão contemporânea do processo civilizador.
Para André Werneck, o estudo da história é a forma mais positiva de formar “bons
cidadãos” através do estudo dos sujeitos e das situações históricas que criam a identidade
nacional e despertam o desejo pelo conhecimento da história pátria.
Reconhecemos, aí, a conservadora história moral e cívica, o aprendizado da história
verificado na matriz disciplinar da história naquele contexto. Desse modo,
166
DEBBANÉ, Discurso... op. cit., p. 653.
167
FREITAS, Carlos Vidal de Oliveira. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXIII, parte II, 1900, p. 511.
168
CAVALCANTI, Amaro. Discurso de posse. RIHGB, tomo LX, parte II, 1897, p. 410.
73
preparar elementos que futuramente seriam a base de nossa
prosperidade e grandeza.169
169
WERNECK, André. Discurso de posse. RIHGB, tomo LX, parte II, 1897, p. 333.
170
OLIVEIRA, Conselheiro Luiz Maria de. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXVII, parte II, 1904, p. 436;
PARANAGUÁ, Joaquim Nogueira. Discurso de posse. RIHGB, tomo LVIII, parte II, 1905, p. 631.
171
DEBBANÉ, Discurso... op. cit., p. 652.
74
através da experiência da história - por isso falavam em termos de tradições - são acionados
pela “pacifica scientiae occupatio” no sentido de identidade majoritária da história. Além disso,
há a função pública da história que se apresenta por meio do trabalho com os vestígios das
tradições. Eis, aí, o papel do IHGB como “associação científica”.172
Enquanto isso, para Susviela Guarch a comunidade de historiadores do Instituto é
admirada não só no Brasil como no exterior. É um centro destinado à “verdade” do passado
para que se determine o “presente”. Sabemos, contudo, que a verdade é filha do tempo.
Essa é uma postura ideológica, pois a busca pela verdade do passado é um processo que
envolve políticas da memória. Mas essa é uma filosofia que acompanha o grêmio e que
estabelece, por meio da atuação dos sócios, a persona “pacifica scientiae occupatio”. Os sócios
elaboraram, desde a fundação, essa divisa e a fizeram tornar-se uma marca epistemológica. Dois
fatores sintetizam as atribuições dos sócios do IHGB: a união da memória e da inteligência; da
pátria e da ciência. A sua persona vincula-se, assim, à “memória da ciência e da humanidade,
onde encontra eterna consagração”.173 Como mais um “obreiro da ciência” a fama pública da
instituição torna Susviela Guarch tanto um patriota quanto um cientista. Em sua figuração
republicana, ela aparece como uma “douta assembleia” de sujeitos preocupados com a história
- científica e patriótica. Um tipo de ciência que instaurava uma artificialidade programada ao
instituir o certo e o errado, a adequação das formas ou a sua inadequação por meio de um
experimentalismo neutro, e uma pátria majoritária, ou seja, que unificava arbitrariamente aquilo
que pertence e aquilo que não pertence às tradições nacionais.
172
SILVA, Alfredo do Nascimento. Um átomo da história pátria. RIHGB, tomo 55, parte II, 1892, p. 107.
173
GUARCH, Discurso… op. cit., p. 227.
75
Capítulo 2 - Recepção, circulação e legitimação de obras históricas: a
Comissão de história
Comissão de história
174
Parecer da Comissão de história do IHGB sobre as obras de Franklin Dória. RIHGB, tomo LXXVI, parte II,
1913, p. 537-538.
175
O recurso à narrativa de viagem não era novidade no IHGB, pois desde a fundação da agremiação ele fazia
parte da elaboração do saber que se queria historiográfico. “As viagens científicas integraram, com efeito, as
76
visualidade que os tradicionais livros de história não possuem; eles fazem, por meio dos seus
dispositivos de visualidade, os leitores sentirem-se participantes de uma comunidade
imaginada; se tem a ideia que o viajante registra a verdade dos fatos, pois a visualização por
meio da descrição implica que ele “esteve lá” e “viu”; esses relatos servem como fonte. É
possível acompanharmos essas demandas, bem como a forma de recepção dessas narrativas de
viagem, em alguns pareceres da Comissão de história.
Essa postura da comissão atualizava uma tradição antiga em que os relatos de viagem
eram apresentados como obras históricas, praticamente seguindo a tradição herodoteana.
Heródoto mobilizava o procedimento da autopsia e estabeleceu a figura do Hístor em suas
narrativas. A autopsia traz a marca de enunciação “eu vi”, que possuí a função disruptiva de
provar algo em uma economia narrativa. O Hístor é a testemunha que sabe por que viu.176
Tal disposição antiga de fazer crer e ver era complementada com o testemunho da
audição, pois além de ter visto pode-se ouvir. Assim, a comissão aceitava como obra de história
viagens que cumprissem esses requisitos e modos de performance narrativa.
Para emitir o título de sócio ao major João Vicente Leite de Castro julgava-se a sua obra
Dicionário geográfico e histórico das companhias do Estado Oriental do Uruguai e do
Paraguai, obra que veio a lume no volume 50 da Revista. O Dicionário tem como fonte um
itinerário de viagem. Ressalta-se na obra os atos de heroísmo dos aliados na guerra do Paraguai,
com a descrição minuciosa de lugares e de cenários onde se desenvolveu o conflito. É escrita
com documentos oficiais, algo caro para os cânones, e vale-se da autopsia, pois ali estão
testemunhos de quem presencia os fatos. Abre-se duas vias de observação que conferem
credibilidade à obra: a indireta e a direta;177 ambas oferecerem legitimidade a um texto que se
quer de história naquela conjuntura.
A Comissão outorgou o título de sócio para Alfredo Ernesto Jacques Ourique em razão
do estudo sobre as regiões limítrofes entre Paraná e Santa Catarina. É um trabalho dentro dos
cânones da crítica histórica. Ele possui, então, “mérito científico”.178 Há um lugar-comum na
obra do autor: o apelo à narrativa de viagem.179 Nessa viagem, Ourique oferece aos leitores a
primeiras propostas metodológicas do IHGB”. FERREIRA, Lúcio Menezes. Ciência nômade: o IHGB e as viagens
científicas no Brasil Imperial. História, ciência, saúde – Manguinhos, vol. 13, n. 2, 2006, p. 276. Disponível em:
https://cutt.ly/ocLSCCw Acesso: 08 abr. 2021.
176
HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte:
Humanitas, 2014, p. 291.
177
Sobre a observação, os seus limites e as suas potencialidades ver BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O
ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
178
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Alfredo Ernesto Jacques Ourique. RIHGB, tomo LIII, parte
II, 1890, p. 531.
179
François Furet observa que grande parte dos relatos de viagem, no caso francês, estampam o título de história.
77
possibilidade de conhecer os indígenas da região Sul, o que mostra preocupações
antropológicas em seu texto. A dimensão visual legitima o texto que se pretende de história. Na
incursão pelo Sul, Ourique estuda as raças, os usos e as instituições indígenas. Narra fatos que
os caracterizam, especialmente os Botocudos, a partir de um grau de desenvolvimento
intelectual parelho ao das “raças mais adiantadas”, suspendendo teorias correntes como a da
decadência indígena ou a da degeneração.180
O bispo Carlos Luiz d’Amour também foi aceito pelo IHGB. Interessante observarmos
que em princípio o religioso não produzia historiografia. A sua produção caracteriza-se por
cartas pastorais, relatando visitas às dioceses. Nelas há, todavia, elementos úteis ao historiador:
o conhecimento das populações interioranas do país in loco, pois as cartas pastorais eram
narrativas de viagens, além dos fatos narrados interessarem à história religiosa do Brasil.181
Também as cartas pastorais de João Batista Correa Nery foram aceitas em 1909: eram sobre
dioceses do Sul de Minas. Encontramos nelas o histórico das dioceses, as suas posições, os seus
limites, a extensão geral de cada uma; as freguesias, a população e os aspectos culturais. As
narrativas são legítimas pelo fato do narrador ser uma testemunha ocular. Assim, “as narrações
de D. João Nery apresentam a vantagem de serem minuciosas e de trazerem informações
históricas modernas”.182 O autor, além disso, visualizava lugares específicos e compulsava os
arquivos das regiões visitadas, confirmando o que via. Um trabalho de historiador.
O Pe. Joaquim Souza foi aceito em 1897. A Comissão indica que Sítios e Paisagens é
uma moderna crônica, em que o factual e o episódico informam totalidades processuais. Essa
disposição se torna factível pelo empirismo do testemunho ocular. O autor preocupava-se com
Para uma abordagem sobre o conceito de história implícito nessa literatura de viagem ver FURET, François.
“L’ensemble histoire” In: _____. FURET, François. Livre et société dans la France du XVIII siècle. Tomo II. Paris:
Mouton and Co., 1970.
180
Kaori Kodama assinala que as viagens para o conhecimento das populações indígenas era um recurso que
acompanhava as pesquisas etnográficas durante o século XIX. Todavia, apesar “(...) de os letrados saberem que
um dos requisitos ligados ao conhecimento científico deveria pautar-se no conteúdo verossímil do caráter da fonte,
dado pelo testemunho ocular, sabiam também que este, por si, não era única garantia de um conhecimento
‘verdadeiro’ e científico”. KODAMA, Kaori. Os estudos etnográficos no Instituto Histórico e Geográfico Brasil
(1840 – 1860): história, viagens e questão indígena. Boletim Museu Emílio Goeldi, Belém, vol. 5, n. 2, 2010, p.
264. Disponível em: https://cutt.ly/ycLV0cm Acesso: 08 abr. 2021.
181
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Carlos Luiz d’Amour. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, pp.
363-364. No entanto, deve ser salientado que esse tipo de fonte é impregnado pela ideologia da Igreja católica.
Portanto, o saber advindo da visão dos bispos deve, necessariamente, passar pelo crivo crítico do método histórico,
mesmo que grande parte dos sócios possa concordar com o conteúdo das cartas em razão de serem cristãos. Para
José Carlos Souza, o objetivo das cartas “pastorais é orientar, exortar e admoestar (...) as comunidades, tendo em
vista os seus problemas e/ou necessidades”. ARAÚJO, José Carlos Souza. A Igreja católica no Brasil: um estudo
de mentalidade ideológica. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 102.
182
Parecer da Comissão de história sobre as obras de João Batista Correa Nery. RIHGB, tomo LXXII, parte II,
1909, p. 304.
78
a tríade coligada fatos, lugares e homens, numa “coleção” em que tudo se prende à história
brasileira. Segundo a Comissão:
(...) tendo para cada um dos acontecimentos uma surpresa histórica, uma
novidade, uma reflexão ou juízo circunstanciado e crítico; é enfim, um
trabalho de merecimento, cuja leitura desperta o gosto pelas nossas crônicas,
muitas das quais se acham esquecidas no interior do Brasil.183
183
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Joaquim Silvério de Souza. RIHGB, tomo LX, parte II, 1897,
p. 355.
184
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Francisco Manuel da Cunha Junior. RIHGB, tomo LV, parte
II, 1892, p. 372.
185
Parecer da Comissão... op. cit., 1892, p. 372.
186
Os relatos de viagem de Frank Vincent não deixam de expressar as suas impressões pessoais sobre a experiência
da viagem. Todorov assinala que, do ponto de vista dos leitores, o autor desse gênero literário-historiográfico deve
narrar a descoberta daqueles sujeitos considerados Outros, os ditos “selvagens” de regiões longínquas ou
representantes de civilizações não europeias. TODOROV, Tzvetan. A viagem e seu relato. Revista de letras da
UNESP, São Paulo, vol. 46, n.1, 2006, pp. 231-244. Disponível em: https://cutt.ly/fcZnebK Acesso: 08 abr. 2021.
187
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Frank Vincent. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, p. 406.
79
A obra Expedição a Mato Grosso – A Revolução de 1906 foi aprovada em 1906,
conferindo o título de sócio à Dantas Barreto. Os arguidores sinalizam que o seu livro não é de
história stricto sensu, posto que o seu autor está próximo temporalmente do seu objeto de
estudo. Ele está inserido em um momento no qual as paixões ainda estão vivas, resultando, em
tese, na parcialidade do relato: “Impossível é apurar com perfeita análise os acontecimentos,
suas origens reais, o caráter exato dos vultos políticos, que neles tomaram parte, o verdadeiro
móvel de todos os seus atos e deduzir daí todas as considerações filosóficas que o caso
suscita”.188 Se o livro do General não se configurava como obra de história propriamente dita,
poderia servir ao menos como subsídio para uma futura pesquisa. Os eventos beligerantes
ocorridos em Cuiabá em 1906, que resultaram em uma “verdadeira guerra civil”, são retratados
fielmente pelo militar. Frisamos que Dantas Barreto, mesmo sendo testemunha ocular do
conflito, não demonstra parcialidade em suas análises – mesmo apresentando certa indignação
sobre o comportamento do governo federal diante da população mato-grossense revoltada. Um
adendo: o fato de se interditar uma história do tempo presente não impossibilita que parcela dos
sócios se valham do horizonte regressivo da história.
Inferno verde foi a obra de Alberto Rangel avaliada pela Comissão. O livro não foi
considerado obra de ficção e, também, não se encerra no estilo do autor. Mas os artifícios de
ficção mobilizados, creditados como obra de artista, são tributários das viagens que o autor fez
ao Amazonas, e devedores da observação, o que fez da obra uma sucessão de representações
sociais reais. “A História não é, simplesmente, a exposição dos acontecimentos políticos, feita
a abstração do meio físico e do Estado de cultura dos espíritos. Como observação dos
fenômenos sociais, ela tem que atender a todas as condições, que os tornam possíveis, e os
elementos de que se compõem”.189 E foi feita uma “leitura euclidiana” da obra de Rangel,
interpretação a qual se filia tematicamente, como podemos comparar através do prefácio190
escrito pelo engenheiro-jornalista ao livro em questão, em que se ambiciona retratar problemas
sociais congênitos da nação.
188
Parecer da Comissão de história sobre as obras do General Dantas Barreto. RIHGB, tomo LXXI, parte II, 1908,
p. 470-471.
189
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Alberto Rangel. RIHGB, tomo LXXIV, parte II 1912, p. 306.
190
Euclides da Cunha apresenta a obra de Rangel enfatizando a sua escrita vingadora: “É uma grande voz,
pairando, comovida e vingadora, sobre o inferno florido dos seringais, que as matas opulentas engrinaldam e
traiçoeiramente matizam das cores ilusórias da esperança”. CUNHA, Euclides. Preâmbulo. In: RANGEL, Alberto.
Inferno verde (cenas e cenários do Amazonas). Tours: Tipografia Arrault, 1927.
80
Topos temático recorrente nos pareceres da Comissão é o da história regional. Essa
discussão não era nova entre os historiadores, posto que acompanha as dinâmicas de centro e
periferia implicadas, desde os antigos, nas obras historiográficas. Nos contextos das
historiografias clássica e moderna o centro nos remete, em termos de paradigma vigente, às
regiões que consolidam a hegemonia, não só politicamente como em termos civilizacionais,
como no caso da maioria dos países europeus de passado imperialista e dos Estados nacionais
modernos. A escrita da história reproduz a lógica de poder política e a de distribuição espacial.
Na passagem para o século XX o conjunto de pareceres da Comissão nos faz refletir
sobre o destino desse importante par de categorias, pois denuncia que uma das principais
reclamações do momento é, justamente, a falta de histórias regionais, situação em que o par
centro/periferia foi atualizado. Nas histórias regionais do período o centro estava na periferia,
ou o todo estava nas partes, posição que pode ser confirmada pelo desejo dos Estados federados
de possuir uma história republicana autônoma. Esse cenário tem como uma das suas mais
notáveis perspectivas historiográficas a mutação na operação que tinha como fim último a
elaboração de uma história geral do Brasil, desejada desde os primórdios do IHGB.
Desse modo, em 1889 foi avaliado o ingresso de Evaristo Castro para sócio. A obra
remetida pelo estudioso foi Notícia descritiva da região missioneira da Província do Rio
Grande do Sul. O autor analisou cada um dos Sete Povos das Missões, da sua fundação até a
destruição, esclarecendo como ocorreu a colonização e investigou todo o processo de
aculturação. Descreveu física e politicamente esses povos, dando a ver o passado dessas
comunidades do nível tangível ao invisível. Nesse plano chegou, por meio de documentação
oficial e fontes orais, aos usos e às instituições daquelas comunidades, dando conotação social
à obra. O trabalho alcançou as demandas postas à historiografia regional: uma obra que se
orientava a partir da escala local, evidenciou a aculturação, fez descrições físicas e políticas,
descreveu os usos e as instituições de uma comunidade. Na Comissão argumentaram que seu
livro de história regional era obra de história, de geografia e de etnografia 191 , o que implicava
em uma consciência interdisciplinar.
191
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Evaristo Afonso de Castro. RIHGB, tomo LII, parte II, 1889,
p. 422. Na República se intensificou a problemática do regionalismo historiográfico, matéria entre os sócios desde
a fundação. Ou seja, mesmo que ocorressem divergências, a relação dos Estados com o plano da nacionalidade era
articulada por força do discurso. Os fatos históricos passados nos Estados da Federação eram considerados
significativos e importantes, devendo se constituir como subsídios para a elevação de um passado nacional comum,
servindo, então, à finalidade da elaboração e da legitimação do Estado-nação. MELO, Ciro Flávio de Castro
Bandeira de. Senhores da História e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História
na segunda metade do século XIX. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008.
81
Novos temas passaram a ser demandados após a Proclamação da República. E mesmo
antes: desde a recepção do cientificismo europeu novas formas de abordagem ao nacional foram
acionadas, e dois elementos se tornaram mais evidentes: a reclamação por histórias mais
regionalizadas192, colocando em segundo plano modelos como a História Geral do Brasil escrita
por Varnhagen e temáticas que fugissem da abordagem no nível do empirismo ingênuo.193
Tal foi o caso de História da seca no Ceará (1877-1880), de Rodolfo Marcos Teófilo.
O autor permaneceu, de início, detido nos protocolos do fazer historiográfico formulado pelos
intelectuais fundadores do Império, iniciando a sua história com uma corografia, propedêutica
da história, por sua capacidade de fazer ver o espaço. As primeiras histórias regionais modernas
que se têm notícia eram corografias. Ele narrou a situação, limites, superfície, litoral,
configuração física, constituição geológica; clima, estações, secas e os grandes invernos. Mas
o seu estudo ultrapassou a corografia, pois dos elementos geodescritivos passou ao elemento
humano, em simbiose com o meio. Teófilo era, como se deixa entrever, um adepto das teorias
deterministas do meio: descreveu a indústria agrícola, a criação pastoril, o comércio, o
movimento marítimo, as estradas de ferro, as rendas gerais e provinciais. É interessante como
o macro está no micro. E, depois, ao âmbito das instituições: divisão civil, judiciária, executiva
policial, eclesiástica e escolar. Era uma história total em que o nacional estava no regional, pois
o tema da seca trouxera novos atores para a trama da história: mendigos, sertanejos, desvalidos,
vítimas - todos sofrendo flagelos físicos e morais. Merece menção da Comissão o fato de o
autor ser testemunha do seu relato, movimentando a autopsia.194
192
A análise de Annne-Marie Thiesse sobre as relações entre regional e nacional na França da Terceira República
(1870-1940) é útil para a compreensão do caso brasileiro: “O regionalismo correspondia a uma representação da
nação como um conjunto de diversidades complementares. A unidade (nacional) é rica por suas diversidades
(regionais): esta fórmula foi muito utilizada na época pelos países que atingiam a última fase do processo da
construção nacional. Dessa forma, a unidade estando bem consolidada, a diversidade poderia retomar seu lugar,
sendo a ela subordinada. Insistir sobre a complementaridade das diversidades geográficas era também uma maneira
eficaz de ‘pacificar’ a sociedade, sugerindo que as diferenças sociais, também, fossem complementares e não
devessem, portanto, suscitar antagonismos”. THIESSE, Anne-Marie. Ensinar a nação pela região: o exemplo da
Terceira República Francesa. Educação, Santa Maria, v. 34, n. 1, 2009, p. 15. Disponível em:
https://cutt.ly/VcZbCHE Acesso: 08 abr. 2021.
193
No necrológio de Varnhagen, escrito em 1878, Capistrano de Abreu, a partir da crítica ao Visconde de Porto
Seguro, sinalizava para as novas demandas colocadas à atividade historiográfica: “É pena que ignorasse ou
desdenhasse o corpo de doutrinas criadoras que nos últimos anos se constituíram em ciência sob o nome de
sociologia. Sem esse facho luminoso, ele não podia ver o modo porque se elabora a vida social”. ABREU, João
Capistrano de Abreu. Necrológico de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. In: NICOLAZZI,
Fernando (org.). História e historiadores no Brasil: do fim do Império ao alvorecer da República – 1870-1940.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015, p. 22.
194
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Rodolfo Marcos Teófilo. RIHGB, tomo LII, parte II, 1889,
p. 477-479. Para um enfoque teórico sobre a autopsia e a epistemologia da visão ver HARTOG, François.
Evidência da História... op. cit., 2011.
82
Irineu Jofly foi aceito como sócio correspondente em 1891 por conta do seu livro Breve
notícia sobre a Paraíba. Os arguidores alertaram que havia um “estado de ignorância” no que
dizia respeito ao interior do Brasil. Por tal motivo, o de tornar o Brasil mais conhecido entre os
brasileiros(as), havia mérito na obra; uma contribuição para a pátria.195 Na organização do livro
seguiu os protocolos: linguagem simples e sem atavios, enumeração sumária dos dados
etnográficos, circunspecção geográfica do plano regional como abertura para os dados e os fatos
históricos propriamente ditos. E novamente o fator de legitimação narrativa foi a autopsia:
conhecedor das tradições locais, o autor agregava informações úteis ao livro, provenientes de
suas incursões pelos sertões nordestinos.196
Inocêncio Serzedelo Correia foi aprovado, em 1899, tendo em vista os méritos da obra
O Rio Acre (ligeiro estudo sobre a ocupação Paracicini no Rio Acre. Limites, navegação e
comércio com a Bolívia). Interessante que por meio de uma temática regional Correia contribuiu
com a síntese pelo fato da disputa no Acre entre Brasil e Bolívia estar colocada em perspectiva
histórica, remontando do período colonial até o momento em que apresentou a obra.
Uma forma de atualização da historiografia imperial para a praticada na República foi
o recurso aos jogos de escala. E a obra acima citada, partindo do jogo de escala entre regional
e nacional, também se vale do regime historiográfico metódico, posto que instaura a dúvida
sistemática para a análise dos tratados envolvendo os dois países.197
Otaviano de Toledo ofereceu uma “memória” sobre Araxá à Comissão julgadora em
questão. Consideramos importante o uso dessa expressão, pois as “memórias” no século XIX
serviam como gênero preparatório para a história geral. Talvez o autor ambicionasse um estudo
abrangente partindo da história regional. O que se retém como inovação é o capítulo dedicado
à instrução, raro entre historiadores; sendo mais frequente entre ensaístas e publicistas. Tal tipo
de estudo era considerado um dever patriótico.198
195
As viagens de Capistrano de Abreu ao interior do Brasil para o conhecimento das populações e da natureza
sertaneja são sintomáticas dessa demanda historiográfica na Primeira República. Além disso, o conhecimento do
interior do Brasil faz-se necessário para a “aplicação” das teorias mesológicas correntes no contexto. De acordo
com Rebeca Gontijo, as “teorias mesológicas eram, então, amplamente aceitas como capazes de explicar as
desigualdades sociais. Segundo Capistrano, a natureza é um dos ‘motores’ atuantes na ‘feitura do caráter nacional’.
Outro ‘motor’ é a raça, seja ela admitida como produto da natureza ou como fator originário e irredutível. Mas,
afirma o autor, meio e raça não são os únicos fatores a contribuir para a construção da estrutura social. Considerava
ele que se ambos ‘agem sobre a sociedade, a sociedade reage sobre eles; o meio social de efeito passa a ser causa;
de resultante passa a ser componente’”. GONTIJO, Rebeca. Capistrano de Abreu, viajante. Revista Brasileira de
História, São Paulo, vol. 30, n. 59, 2010, p. 23. Disponível em: https://cutt.ly/0cLHh43 Acesso: 08 abr. 2021.
196
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Irineu Jofly. RIHGB, tomo LIV, parte II, 1891, p. 281.
197
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Inocêncio Serzedelo Correia. RIHGB, tomo LXII, parte II,
1899, pp. 352-355.
198
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Otaviano de Toledo. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, p. 299.
83
O padre José de Almeida foi aceito em 1894, sendo avaliado por um opúsculo sobre
Barbacena. Observa-se no micro o geral, em obediência às demandas das histórias regionais.199
Essa disposição de escala possibilitava uma história total. Diferentemente da história geral, essa
história total não era empírico-cumulativa, mas representacional. Ela operava os saberes da
corografia, da geografia, da etnografia e da história, o que nos permite afirmar que essas
instâncias de saber são interdependentes no período estudado.200
Lucio de Azevedo foi aprovado em 1894 por Estudos de história paraense. O livro
respeitava os cânones da crítica, revelando o seu “gênio investigador”, considerada pelos
membros da Comissão como “conscienciosa”, “judiciosa” e “inclinada ao espírito da verdade”,
qualidades que a fazem atender as diretrizes metódicas. Ela não se modula apenas no plano
episódico, atingindo em seu estudo o plano das representações sociais.201
Cincinato Braga foi acolhido no Instituto em 1895 com uma monografia sobre São
Carlos. O trabalho foi considerado “conciso”, porém nos protocolos metódicos. Era uma outra
obra de história regional que desejava fazer o interior do Brasil conhecido. 202 Chama a nossa
atenção que essa monografia também foi categorizada como “memória” pela Comissão,
indicando ser ela um trabalho preparatório e devidamente criticado: “Dando o devido valor a
todas as parcelas que devem concorrer para a formação do grande todo da nossa história (...)”.203
Manoel Baena enviou duas obras para serem avaliadas: Informações sobre as Comarcas
da Província do Pará e Índice alfabético da legislação provincial do Pará, 1854 a 1880. O
parecer da Comissão indica que suas obras revelam disposição para o estudo da história pátria.
199
As histórias regionais são assim classificadas em razão do elemento espacial ser colocado no plano das escalas.
Deve-se ter em mente que a noção de espaço oferece a compreensão sobre as relações sociais, conflituosas ou não,
nele desenvolvidas, permitindo assimilar as formas de vida através de tensões, de interações e de interpretações.
A elaboração e a construção de uma escala local, por ser atividade de um agrupamento humano, compreende:
estabelecimento de relações sociais (interatividade e complementaridade); identidade e memória cultural
(sentimento de compartilhamento de pertencimento); particularidade política (representações, instituições); e a
conexão entre as diferentes escalas da organização social (família, classe e intercâmbios extra grupais). Cf.
BOURDIN, Alain. A questão local. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 25-57.
200
Parecer da Comissão de história sobre as obras do Pe. José Joaquim Correia de Almeida. RIHGB, tomo LVII,
parte II,1894, pp. 302-304.
201
Parecer da Comissão de história do IHGB sobre as obras de Lucio de Azevedo. RIHGB, tomo LVII, parte II,
1894, pp. 379-380.
202
A história regional enquanto um lugar-comum na Primeira República obedecia ao seguinte pressuposto
epistemológico: “trata-se de explorar a dinâmica segmentar e conflituosa pela qual uma forma de pertencimento
territorial inscrita na ordem das relações metonímicas – ou seja, de uma alteridade que se estabelece na relação
parte-todo – é integrada aos quadros de uma cultura nacional que lhe precede e dá sentido. A região, aqui entendida
como classificação derivada de um processo anterior de unificação política, depende, como outras unidades de
singularização cultural, da organização da experiência em um relato encadeado, capaz de oferecer um sentido de
ancestralidade, isto é, de continuidade e coerência entre passado e presente”. NEDEL, Letícia Borges.
Regionalismo, historiografia e memória: Sepé Tiaraju em dois tempos. Anos 90, Porto Alegre, vol. 11, n. 19/20,
2004, p. 348. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/6361 Acesso: 08 abr. 2021
203
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Cincinato Braga. RIHGB, tomo LVIII, 1895 p. 323.
84
Salienta, além do mais, as descrições geográfica e histórica minuciosas das regiões paraenses,
destacando as faixas interioranas.204
Manuel de Oliveira Lima tornou-se sócio em 1895 por Pernambuco e seu
desenvolvimento histórico. Suas qualidades de escritor foram admiradas: “deleite de leitura”,
“trabalho de mérito real” e de “incontestável valor”. O trabalho representava, em última medida,
o regionalismo historiográfico: “Gravitando em torno dos acontecimentos históricos de
Pernambuco, que formam o assunto principal do seu estudo, o autor do livro nos dá em rápido
esboço, como acessórios de seu tema, brilhantes páginas sobre toda a história do Brasil desde a
sua descoberta até o momento atual”.205 A obra baseia-se em fontes críveis e criticadas, porém
o escritor se faz presente. A narrativa “corre fluente” e “correta”, sendo ao mesmo tempo
“sincera” e “desapaixonada”. Esses aspectos são, para não poucos sócios, dotes de um
historiador.206 Para se fazer história regional havia a necessidade de trilhar todas as etapas da
operação historiográfica. No limite, a história regional buscava ser a história do Brasil.
Em 1899 o Capitão Honório Lobo foi avaliado pela Memória histórica sobre
Paranaguá. O livro aparece como outra obra de história regional. O autor remontou os
primeiros povoadores da localidade, ainda no século XVI, em que narrou o movimento do
sertanismo bandeirante, outra marca temática dessa historiografia. E trabalhou com vestígios
arqueológicos encontrados naquela região para dar suporte à sua narrativa historiográfica,
mobilizando, além disso, documentos oficiais da câmara e livros de memorialistas para fazer a
história da cidade como parte da história de São Paulo, por sua vez parte da história do Brasil.207
Notícia histórica e geográfica de Angra dos Reis, precedida de um bosquejo histórico
das descobertas das Américas credenciou Honório Lima a participar das atividades do IHGB
em 1889. Essa obra distancia-se de uma história factual. A Comissão encontrou nela vários
eixos temáticos: a história dos usos e das instituições, o descortino das tradições locais de Angra
dos Reis, a análise das agremiações sociais, o comércio, a indústria, a riqueza patrimonial, as
vias de comunicação, os produtos naturais, as causas de progresso e de atraso. A obra de Lima
é um retrato das transformações por que passava a historiografia na época em sua luta para
204
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Manoel Baena. RIHGB, tomo LVIII, parte II, 1895, pp. 377-
378. Para Albuquerque Júnior, a historiografia regional não pode limitar-se a representar as localidades, estando
distante de uma proposta em que há “um trabalho de explicação do regional”, “de elaboração do regional, de
ressignificação, de atualização do sentido que a região possa ter”, “um trabalho de invenção ou reinvenção do
regional e do local”. JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. “Receitas regionais: a noção de região como um
ingrediente da historiografia brasileira ou o regionalismo como modo de preparo historiográfico”. Anais do XIII
Encontro de História Anpuh-Rio - Identidades, Rio de Janeiro: UFRRJ, 2008, p. 9. Disponível em:
https://cutt.ly/4cLCyAE Acesso: 08 abr. 2021.
205
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Oliveira Lima. RIHGB, tomo LVIII, 1895, p. 324.
206
Parecer da Comissão... op. cit., p. 324.
207
Parecer da Comissão de história sobre as obras do Capitão Honório Décio da Costa Lobo. RIHGB, tomo LXII,
1899, pp. 319-320.
85
deixar de colocar a sucessão política no tempo, muitas vezes com ares de crônica, como
leitmotiv da história.208 Mas que fique bem entendido: há certo rescaldo providencialista nesse
livro. Outra história regional carioca é a de Felisbelo Freire, História da cidade do Rio de
Janeiro, na qual através do regional o autor opera uma espécie de síntese nacional. Foi
ressaltado que a obra obedecia “aos métodos científicos da moderna ciência da história”,
“jogando com todos os elementos para descrever os fatos”; revelando a “evolução geral dos
acontecimentos” e a “marcha da civilização” naquele contexto regional, bem como atendendo
a demanda por estudos sobre as instituições “e a formação do elemento étnico e a política”.209
Adelino Antônio de Luna Freire enviou, em 1898, para a Comissão uma série de títulos
sobre a história de Pernambuco. O que está definido nos trabalhos dele como uma filosofia da
história é a causa republicana em Pernambuco - que se manifesta desde os tempos coloniais,
sendo reforçada pela Revolução de 1817 e pela Confederação do Equador. E aparece outro
topos temático dessa historiografia: os Estados, ao contarem a sua história, agora a partir de um
sentido republicano, buscam a origem e a prioridade dessa ideia. Vários Estados da Federação
passaram a contar com histórias regionais da República.210
Pedro Solto Maior também ofereceu um livro sobre a história de Pernambuco, no qual
demonstra fatos e situações que comprovam a prioridade do Estado na luta pela Independência
e na difusão das ideias republicanas. Porém, a organização da matéria do livro requeria cuidado
e cautela visto que não se localizou um eixo norteador que ligasse a luta contra os holandeses à
Revolução de 1848. A obra foi considerada uma ilusão teleológica, pois cada movimento em si
possui, em sua avaliação, caraterísticas próprias e situadas. Mesmo que sejam movimentos
republicanos possuíam dimensões específicas.211
A história da Sabinada levou Braz do Amaral a fazer parte do Instituto Histórico. A
exposição dos eventos foi considerada minuciosa, a narrativa atraente e as conclusões foram
tidas como objetivas e imparciais; e mesmo não desvendando completamente quais os
“instigadores” desse movimento sedicioso que custou alto número de vítimas, “oferece,
contudo, um quadro fiel e empolgante dos tristes acontecimentos”.212 Sublinhamos que o
208
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Honório Lima. RIHGB, tomo LXII, parte II, 1889.
209
Parecer da Comissão História sobre as obras de Felisbelo Freire. RIHGB, tomo LXXIV, parte II, 1902, p. 409.
210
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Adelino Antônio de Luna Freire. RIHGB, tomo LXI, parte
II, 1898, pp. 689-690. Sobre o caso de Pernambuco ver RIBEIRO, Mariana dos Santos. Construindo memórias e
histórias: o IHGB e o IAGP em meio às celebrações do centenário do movimento pernambucano de 1817. Tese
(Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade
Católica/RJ, 2012. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=19904@1> Acesso: 03 dez. 2020.
211
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Pedro Solto Maior. RIHGB, tomo LXXIV, parte II, 1911, pp.
486-487.
212
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Braz do Amaral. RIHGB, tomo LXXIV, parte II, 1911, p.
480.
86
movimento não foi considerado, por esse autor, como um precursor da República. E por outro
lado, cabe ressaltar, o Estado que colocou termo a revolta foi enaltecido.
Aníbal Veloso Rebelo estudou as tentativas de emancipação anteriores à 1822. Depois
de evidenciar o papel importante do fator indígena nas lutas pela soberania, analisa
criteriosamente o influxo das ideias liberais, trazidas no século XVII pelos beligerantes
holandeses, além de realçar os impactos do ideário da Revolução Francesa aqui nos trópicos. O
que se observa no trabalho de Rebelo, que integra as teses do Congresso de História Nacional,
é a consolidação de um passado republicano, diferentemente do que ocorre com a história da
Sabinada escrita por Braz do Amaral, através das revoltas ocorridas no período colonial.
Em suma, tal tipo de construção historiográfica ocorria desde a Proclamação da
República, e na de década de 10 já estava francamente estabilizada. Os Estados passaram,
portanto, a ter as suas histórias republicanas.213
O projeto de uma história geral acompanhou o desejo das nações modernas. Conjugando
perspectiva iluminista (civilização) e um ideário romântico (nação) as histórias gerais
pretendiam um domínio total sobre os fatos. Esse gênero historiográfico promovia um jogo de
escala que se estruturava do macro ao micro, do universal ao nacional, do geral ao particular,
da nação para a região. Isso implicava em uma perspectiva política na qual a civilização se
irradiava do centro para a periferia. Essa concepção de história aplainava e homogeneizava as
diferenças sociais em prol dos laços comuns que formavam e fundamentavam a nação. A
história geral era a soma das partes que formavam o nacional, com cronologia linear e
ascendente. Esse gênero não abordava temáticas referentes ao presente. Por fim, a história geral
era factual e não conceitual, porém, fortemente erudita.
A produção de uma história geral implicava na mobilização da metáfora do mosaico,
quer dizer, os múltiplos relatos, as histórias particulares, poderiam ser totalizados pelo
historiador. A história geral era, nesse sentido, concebida como a somatória dessas histórias
especiais a partir de um horizonte mais amplo. O programa de uma história geral do Brasil
demandava a solução de problemas políticos, estéticos e teóricos. Essa nova tecnologia
historiográfica necessitava urdir um modelo explicativo geral, equacionar uma disposição de
saber erudita, criando uma nova forma de relação com o Estado. Nos primórdios do IHGB o
213
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Aníbal Veloso. RIHGB, tomo LXXVIII, parte II, 1915, pp.
749-752.
87
modelo de história geral foi predominante frente as histórias particulares. A compreensão
dirigida ao passado colonial em termos de continuidade suspendia, ou tornava marginal, a
relativa performance autônoma desse tipo de história. Assim, a história geral era capaz de
equilibrar, como no caso da História geral do Brasil (1854) de Varnhagen, a demanda erudita
moderna, uma forma narrativa, herança das filosofias da história setecentista, e uma proposta
de interpretação do Brasil que promovia o Estado como o grande personagem desse enredo
Na passagem para o século XX ocorreu a superação de tal modo de narrativizar a
experiência. Havia uma série de interditos e de impossibilidades epistemológicas colocadas à
História geral desde a década de 1870. De modo geral, passou-se a ver, por exemplo, o universal
a partir do regional, mudando o jogo de escala macro/micro, considerando a proliferação de
histórias regionais utilizando a parte pelo todo, o que implicava na regionalização monográfica
do saber historiográfico do país, almejando a síntese histórica (evolucionista ou modernista),
movimentando o conceitual diante do factual e o temático diante do cronológico. O que passou
a mover a pesquisa historiográfica foram os problemas advindos do presente do sujeito
cognoscente, abrindo a possibilidade para a emergência das especialidades da história.
Esse movimento epistemológico pode ser verificado, com riqueza de detalhes
considerável, nos pareceres emitidos pela Comissão de história do Instituto, reproduzindo,
mesmo que imperfeitamente, as transformações historiográficas mencionadas.
Apresentamos a seguir uma amostra de como os modos possíveis de escrita da história
disponíveis no contexto republicano absorveram a retração do modelo de história geral, ou
síntese historicista. Talvez o ensaio de interpretação do Brasil, a síntese modernista, seja o
herdeiro das histórias gerais. Veremos, então, como as histórias particulares, ou especialidades
da história, ou modos de escrita da história, se portaram diante das rupturas epistêmicas
presentes através da perda do protagonismo do modelo historiográfico antes dominante. Essa
disposição reabilitou modelos de história silenciados pelo projeto de história geral, e apresentou
novos e/ou reformados modos historiográficos.
Tentamos demonstrar como o conjunto das transformações historiográficas na episteme
republicana pode ser observado a partir de cada modo particular de história, avaliado pela
Comissão de história.
1) Biografias históricas: A História do General Osório, de Fernando Luiz Osorio, foi analisada
em 1895. Era obra projetada em dois volumes, mas apenas o primeiro foi publicado, o que
oferece um indício de sua recepção: a Comissão diz que não é possível, tendo como base o
primeiro livro, “estudar ou apreciar a unidade filosófica que deve presidir a todo o escrito
88
literário ou científico”.214 Segundo ela, deveria haver uma razão, mesmo nas biografias, que
orientasse a trama dos fatos, uma disposição de sentido que desse suporte ao enredo
historiográfico, que direcionasse os fatos a partir de uma espécie de espectro plurievolutivo, o
que no período se tornara possível através da sociologia.215 O mérito da obra estava na
compreensão do diálogo entre história geral e regional. Ressalta que a verdade sobressai na
pena de Osorio por seu metodismo216, provocando nos leitores um “juízo reto” sobre o
biografado, em que as manifestações da sua individualidade são colocadas em relevo.217
Enquanto isso, os escritos de Velho da Silva, condensados em Vultos da história pátria,
apresentam um panteão dos “grandes homens” republicanos, em que “eminentes patriotas”
foram biografados, inserindo-os em todos os ramos da atividade humana. As biografias estão
dispostas cronologicamente para não se constituírem em fragmentos, mas, sim, como partes
ligadas entre si, decorrendo daí a realização do objetivo do ensino elementar: o estudo da
história do Brasil através da biografia dos seus homens ilustres.218
O livro de Afonso Celso apreciado pela comissão, Vultos e Fatos, é uma miscelânea que
apresentava biografias de chefes e de ex-chefes de Estado e curiosidades de viagens. O Conde
era, como é de conhecimento comum, um monarquista histórico, o que não o impediu de ser
aceito como sócio. O mais interessante da obra é o retrato intimista de Pedro II nos momentos
subsequentes à queda do Império. O Instituto abriu espaço para uma história do tempo presente,
posto que está detalhado no livro, por exemplo, que a Pedro II repugnava em acreditar que fora
traído nos atos que resultaram no 15 de novembro. Em outro momento do livro, o do banimento
da realeza, o ex-monarca é mostrado saudoso, mas jamais afeito a uma conspiração.
Enfatizamos, então, essa história não oficial, intimista, de Pedro II.219
214
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Fernando Luiz Osório. RIHGB, tomo 95, parte II, 1925, p.
328.
215
Sobre a dimensão sociológica subjacente a interpretação dos fatos históricos no contexto epistêmico da Primeira
República ver NICOLAZZI, Fernando. Raízes do Brasil e o ensaio histórico brasileiro: da história filosófica à
síntese sociológica, 1836 – 1936. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 36, n. 73, 2016, pp. 89-110.
Disponível em: https://cutt.ly/3cZqzEx Acesso: 08 abr. 2021.
216
Temístocles Cezar informa que desde o século XIX biografia e história dialogavam mediante à duas questões
principais: “a constante busca de marcas de cientificidade e a tarefa de escrever a história da nação. Em ambos os
casos, era preciso romper com a poética da história (...)”. CEZAR, Temístocles. Livros de Plutarco: biografia e
escrita da história no Brasil do século XIX. Métis: história & cultura, Caxias do Sul, vol. 2, n.3, 2003, p. 74.
Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/1042 Acesso: 08 abr. 2021.
217
Parecer da Comissão... op. cit., 1925, p. 328.
218
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Velho da Silva. RIHGB, tomo LXI, parte II, 1898.
219
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Afonso Celso. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, p. 374. Anos
despois, entre 1913 e 1916, verificamos uma iniciativa de biografia que estabelece essa tensão “entre a vida pública
e a vida privada na tentativa de traçar uma imagem complexa das personagens”. São as pesquisas sobre Domitila,
a Marquesa de Santos, apresentadas por Afonso Taunay e Alberto Rangel. A diferença aparece no trabalho mais
dedicado em todas as fases da pesquisa histórica por parte dos autores. De todo modo, vemos esse tipo de biografia
ganhar terreno na Primeira República. ANHEZINI, Karina. Desnudar a historiografia na Primeira República:
89
O historiador argentino Adolfo Saldías foi aceito como sócio pelo livro Rosas y su
epoca. A biografia retrata o contexto histórico, político e social, movimentando jogos de escala
e faz da história de uma vida a história de uma época. Uma obra que se refere a um indivíduo e
a um país estrangeiro não foi um interdito, pois a ciência da história é, no limite, cosmopolita:
“A história, ciência cosmopolita por excelência, não comporta particularismos. Alteiem-se os
acontecimentos, sobressaiam os lados nobres da humanidade, e em uma imensa tela, avistada
de todos os pontos do horizonte, desdobrar-se-á o quadro majestoso da civilização ocidental”.220
Rodrigo Otávio submeteu o livro Felisberto Caldeira (crônica dos tempos coloniais).
Não era uma biografia que relatasse exaustivamente a vida de um indivíduo, mas uma forma
especifica de fazer história em que aparecem jogos de escalas a partir da narração sobre um
sujeito construindo um contexto histórico. Pelas referências indiretas contidas no parecer da
Comissão de história, essa relação do biografado com o seu contexto, ou de uma escrita
biográfica que insere os sujeitos junto ao “meio”, é devedora das reflexões do intelectual francês
Hippolyte Taine, através da ideia de “homem partícula”.221
Uma biografia habilitou José Manuel Cardoso de Oliveira, a obra Pedro Américo, sua
vida e suas obras. Destacamos que se trata de uma biografia com uma estrutura ainda próxima
aos modelos antigos de história, pois é um panegírico encomiástico: elogio à vida do pintor
Pedro Américo. Mesmo sendo um livro que prima pelo estilo literário e que movimenta o
metodismo crítico, a Comissão considerou que em razão de “tudo elogiar” diminuía seu mérito,
mas não deixava de ser louvável a forma como o autor conectou as principais obras de Américo
com o espírito patriótico demandado pela conjuntura historiográfica.222
A Comissão julgou que a obra de Lafaiete de Toledo, Os poetas mineiros, deveria
figurar na Revista. O estudo sobre os poetas de Minas Gerais é um trabalho que abrange a
cultura em geral, demonstrando como a biografia era tida como fragmento desse âmbito; e não
somente uma narrativa que encerrava a vida e a morte de um sujeito histórico.223
Entre as obras remetidas por Ernesto Sena foi destacada a sobre o Conselheiro Antonio
Ferreira Vianna. O livro fugiu de uma análise focada na vida e na obra de um indivíduo, pois
construiu, paralelamente, contextos históricos. Pela biografia narram-se contextos possíveis, e
Alberto Rangel e Afonso Taunay na construção da Marquesa de Santos. In: BENTIVOGLIO, Julio;
NASCIMENTO, Bruno César (orgs.). Escrever história: historiadores e historiografia brasileira nos séculos XIX
e XX. Serra: Editora Milfontes, 2017, p. 199.
220
Parecer da Comissão história sobre as obras de Adolfo Saldías. RIHGB, tomo LXII, parte II, 1899, p. 357.
221
LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, J. (org.). Jogos de escalas. A experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998, p. 237.
222
Parecer da Comissão de história sobre as obras de José Manuel Cardoso de Oliveira. RIHGB, tomo LXVI, parte
II, 1903, pp. 139-140.
223
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Lafaiete de Toledo. RIHGB, tomo LXV, 1892, p. 298.
90
no caso desta em específico passagens e situações relativas à política parlamentar imperial.
Ressaltou-se, ademais, as faces do biografado: jornalista, orador, escritor e jurisconsulto. Não
era uma biografia linear do nascimento à morte, mas, sim, uma biografia espectral, em que
vários contextos emergiam em paralelo com a narrativa central.224
E o livro de Eugênio Egas sobre Diogo Feijó foi definido como obra conscienciosa e
bem formulada, “(...) da qual pode-se extrair essa caraterização quem, dotado de penetração
analítica e de capacidade imaginativa, quiser assinalar o valor social de Feijó na evolução
política do povo brasileiro”.225 A partir da sua vida pública desenham-se as tensões e as disputas
no pós-Independência. Mas não apenas a dimensão pública do Pe. Feijó foi narrada – a sua vida
privada como religioso, professor e intelectual também foi abordada em um movimento de
imbricamento dessas duas facetas, em que uma ilumina a outra.
2) História econômica: Liberato de Castro Carreira foi avaliado através da obra História
financeira e orçamentária do Império do Brasil desde a sua fundação. A Comissão julgadora
argumentou que os fatos tratados não eram novos, mas a disposição dos conteúdos, todavia,
dava a entender que o seu fio condutor narrativo previa, em forma de antecipação, a República
por meio do viés econômico. A Comissão apresenta o parecer que o autor lidava bem com a
tarefa historiadora em sua totalidade. Reuniu materiais úteis, proveitosos e até então pouco
trabalhados; e embora se “emaranhe em um dédalo árido”, que é o universo do econômico,
achou um “fio de Ariadne” que o levou por “cardos e espinhos” até o fim do seu objetivo,
compreendendo, pois, todo espaço da Independência do Brasil até a queda das instituições
monárquicas. Assim, o estudioso demonstra como os mesmos elementos que organizam a
Monarquia se mantem na República - tudo isso pela perspectiva econômica.226
Portugal econômico, de Anselmo de Andrade, é uma amostra que essa instituição podia
ser considerada de interesse em outros países. A Comissão destacou que o autor analisou
aspectos sociais, culturais e políticos pela lente econômica, compreendendo a economia
224
As biografias escritas pelos sócios buscam, assim como era feito na Europa, elaborar contextos sociais. O gênero
não é mais cingido pelo vaticínio da narração da vida do biografado do nascimento à morte. As biografias na
passagem para o século XX são, no limite, espectrais. Elas passam a compreender aquilo que Pierre Bourdieu
concebe como “pluralidade de campos de ação” em que o indivíduo se insere. Há, assim, a possibilidade de
reconstituir o contexto, ou seja, a “superfície social” em que o indivíduo se torna agente. Cf. BOURDIEU, Pierre.
A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da História
Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
225
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Eugênio Egas. RIHGB, tomo LXXVI, parte II, 1913, pp.
536-538.
226
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Liberato de Castro Carreira. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892,
p. 273. Edgar Carone sinaliza que no contexto da Primeira República os estudos de história econômica passam a
circular com maior intensidade. Cf. CARONE, Edgar. A República Velha: instituições e classes sociais. São Paulo:
Difel, 1972.
91
portuguesa desde a constituição geológica, passando pelo estabelecimento de latifúndios, as
aptidões agrícolas e industriais, o movimento migratório, até chegar ao regime de propriedade,
vendo a dinâmica do capital acumulado, a circulação fiduciária, os estabelecimentos de
previdência e crédito, as taxas de juros e a exportação e a importação. Percebemos a realização
de uma história da instituição economia.
Essa é uma das grandes transformações existentes entre a historiografia dos fundadores
do Império e a republicana: a passagem da analítica dos costumes para a das instituições.227
Bernardo Teixeira de Moraes Leite Velho aborda a economia como instituição social.
Historiograficamente, os seus trabalhos são metódicos, mas com a análise voltada para fontes
que respondem a problemas econômicos. Assim, as histórias econômicas desde cedo
estabelecem as suas identidades: “(...) apoia-se o escritor em copiosos dados estatísticos e fatos
averiguados, confrontando-os com os de origem estrangeira, e revela-se conhecedor da situação
econômica das nações europeias e norte-americana”.228
A Comissão avaliou Allocution prononcée, do Conde de Figueiredo, primeiramente pelo
fato do livro se debruçar por um campo em desenvolvimento no Instituto, a história econômica,
que conferiu o título de sócio ao Conde; e depois, por analisar com critério a evolução política
e econômica operada no Brasil à luz dos acontecimentos do 15 de Novembro, algo que mostra
que o Instituto estava ciente da importância da produção de trabalhos que se valessem do olhar
retrospectivo, destacando os estudiosos que se empenhavam nesse tipo de análise. 229 Era um
registro diferente da antiga economia política romântico-historicista, dado que se privilegiava
a abordagem econômica de matiz sociológico a partir da preocupação com as instituições.
Em 1891, Antonio Francisco Bandeira Junior foi proposto para sócio. Em seus livros
aparecem duas preocupações historiográficas em destaque: as condições possíveis para a
realização de uma história do tempo aproximado, no caso a história do Império, e o
estabelecimento de noções de história econômica. As notícias históricas abrangem ramos da
administração pública: os ministérios de Pedro I, das Regências, da Menoridade e do Segundo
Reinado; examina a dívida interna, a dívida flutuante, a dívida ativa, as receitas e as despesas
do Brasil, a taxa de câmbio de 1853 até 1889, as rendas alfandegárias, entre outros problemas
227
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Anselmo de Andrade. RIHGB, tomo LXVI, parte II, 1903,
pp. 135-140.
228
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Bernardo Teixeira de Moraes Leite Velho. RIHGB, tomo
LXVI, parte II, 1903, p. 135. Na década de 1940 já era percebida por alguns intelectuais brasileiros a importância
da história econômica na Primeira República. GOMES, Angela de Castro. “Primeira República no Brasil: uma
história da historiografia”. In: _____; MOURÂO, Alda (orgs.). A experiência da Primeira República no Brasil e
em Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; Editora FGV, 2014.
229
Parecer da Comissão de história sobre as obras do Conde de Figueiredo. RIHGB, tomo LIII, parte II, 1890, p.
459.
92
econômicos. É da sua autoria, entre outros opúsculos, Crise financeira e o elemento servil, que
traz novos problemas investigativos para a cena historiográfica republicana, por enfatizar,
através do prisma econômico, os problemas gerais dos cativos.230
Fatos econômicos, de Miguel de Carvalho, aborda acontecimentos históricos que são
analisados pela lente econômica, assinalando, então, a sua dimensão social. O autor apresenta
a percepção do que era exigido: os fatos sociais deveriam ser classificados analiticamente, não
mais como episódicos. Uma dessas classificações de fatos é a econômica.231
A história econômica submetida em 1915, A moeda circulante no Brasil¸ credenciou
Ramalho Ortigão, que abordou a natureza e a função da moeda. Para o caso brasileiro associa
o seu estudo à grande inflação que o país vivia em 1915. O estudo da moeda e a sua interação
social era considerado deflagrador de representações dignas de análise por intermédio de toda
uma técnica historiográfica autorizada, o que implicava a classificação analítica e a explicação
sociológica, via economia, das mesmas.
3) História do direito: Isidoro Junior concorreu a uma cadeira como sócio do IHGB, no ano
de 1896, com a História do Direito Nacional, na qual compreende o direito como uma ciência
social e o seu foco de estudo, as instituições jurídicas, como instituições sociais, comparando o
direito romano e germânico com as leis dos primeiros povos ocidentais, que ainda se valem do
direito costumeiro, no intuito de criar paralelos sociológicos. Discorreu sobre a organização do
direito na Península Ibérica, estabelecendo como o direito se processa em Portugal - desde a
contribuição dos povos que ali se estabeleceram até a instauração dos tratados de leis pelas
dinastias, conciliando o plano jurídico com o social. O final do livro foi dedicado ao Brasil, as
características das três raças formadoras da nacionalidade, e qual a contribuição de cada uma
para o direito pátrio. E analisou como o direito relacionava-se com a colonização do Brasil, o
que demonstrava a faceta social da instituição.232
230
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Antonio Francisco Bandeira Junior. RIHGB, tomo, LIV, parte
II, 1891, pp. 208-209.
231
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Miguel Joaquim Ribeiro de Carvalho. RIHGB, tomo LXXVI,
parte II, 1913, p. 561.
232
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Isidoro Martins Junior. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1896, p.
232. Mesmo privilegiando as instituições jurídicas como fenômeno social essa forma tradicional de abordagem da
história do direito ainda é vinculada a uma espécie de tecnicismo exagerado, bem como orienta-se por meio de um
excesso de erudição que priva o analista de mobilizar uma síntese interpretativa. Segundo Antônio Carlos
Wolkmer: “Daí a historiografia jurídica presa aos textos legais e à exegese de seus corifeus orientar-se rumo, ora
a um formalismo técnico-dogmático, ora a uma erudição antiquada da vida social”. WOLKMER, Antônio Carlos.
Paradigmas, historiografia crítica e direito moderno. Revista da Faculdade de Direito, Curitiba, ano 28, n. 28,
1994/1995, p. 60. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/9368 Acesso: 08 abr. 2021.
93
João Mendes de Almeida Júnior foi recebido em 1901, com o Processo criminal
brasileiro, obra que o classificou como jurisconsulto, historiador e escritor. Como jurisconsulto
apresentou todo o aparato de saber do direito, considerando o apelo social da instituição
jurídica, e como historiador colocou em perspectiva tal instituição mobilizando o regime
historiográfico metódico. Como escritor, para além do estilo, observava-se a retirada do
posicionamento autoral junto à estruturação da obra, na medida em que os fatos históricos
respondem, em tese, a sistematicidade da ciência e do método.233
Outro livro de história do direito foi oferecido em 1915: A política brasileira no Prata
até a Guerra contra Rosas, de Pinto da Rocha. Conhecedor do direito internacional ofereceu
aos fatos a sua interpretação moral, histórica e jurídica. A Comissão faz um parecer rico em
informações, assinalando que fazer história do direito é fazer história
(...) a monografia de Pinto da Rocha orna-se com duas virtudes de alto valor:
tem o sentimento da História, isto é, traduz o sentimento geral, que as massas
experimentam sem poder definir, e sobrenada, na poeira informe do fatos,
como nebulosa esparsa, de onde surgirão mundos – e indica a direção, que a
Política imprimiu ou parece ter impresso às energias sociais, vencendo
dificuldades criadas pela confusão de documentos, que ainda não sofreram
desbastamento depurador da Crítica, nem foram sequer metodicamente
classificados para o aproveitamento da história.234
Hélio Lobo foi credenciado em razão dos seus livros também fundirem história e direito.
O estudo do direito em perspectiva histórica era uma das especialidades mais demandadas no
contexto, posto que deixava à disposição do leitor a análise de instituições sociais. O livro era
sobre os litígios de fronteira entre Brasil e Bolívia. O estudo do direito histórico abriu espaço
para que o intelectual praticasse os modos da história diplomática.235
Se no Império encontramos a prevalência dos modelos de história filosófica e de história
geral, que acima de tudo estavam preocupados com os costumes da sociedade, na passagem
para o século XX o objeto de atenção passava a ser as instituições.
A monografia de Agenor de Roure, Formação do direito orçamentário brasileiro,
apresentava direito e economia em perspectiva histórica. O livro abordou a evolução financeira
233
Essas propostas historicistas de apreender a história do direito, ocultando-se através do mito da neutralidade e
da universalidade dos pressupostos científicos, distancia-se do “problema crítico do conhecimento histórico” e
modula-se por meio de uma visada linear e conservadora”. HESPANHA, Antônio M. A história do direito na
história social. Lisboa: Livros Horizontes, s/d, p. 9, p, 12-13.
234
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Pinto da Rocha. RIHGB, tomo LXXVIII, parte II, 1915, p.
640.
235
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Hélio Lobo. RIHGB, tomo LXXV, parte II, 1912, pp. 303-
305.
94
do Brasil, destacando os princípios do direito orçamentário: a anualidade, a fiscalização e a
prestação de contas, e como eles se cristalizaram na legislação brasileira. Conforme a comissão:
236
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Agenor de Roure. RIHGB, tomo 82, parte II, 1917, p. 683.
237
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Oliveira Santos. RIHGB, tomo 85, parte II, 1920, p. 459
238
Parecer da Comissão... op. cit., p. 460. O que é possível observar na recepção das obras de história do direito é
uma tensão entre aquelas que recorrem às investigações do passado jurídico como uma maneira de legitimar o
Direito diante dos defensores de uma ciência do Direito vinculada ao estudo da forma. Cf. WIEACKER, Franz.
História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967, p. 43; LARENZ, Karl.
Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 82.
239
São modelos de análise linguística indígena os trabalhos realizados na passagem para século XX por João
Capistrano de Abreu e por Karl von den Steinen. Embora as suas obras “não satisfaçam a muitos requisitos da
moderna linguística descritiva (que elas precederam de muitos anos), podiam ambas ter provocado uma mudança
radical nos estudos das línguas indígenas brasileiras. Steinen e Abreu puseram completamente de lado a
preocupação imediatista de formular regras para eventual aprendizado prático sofrível da língua em questão, para
descrever, como descrevem, cientificamente, tão objetivamente quanto lhes foi possível, as línguas que tiveram
ocasião de documentar. As descrições de ambos são baseadas antes de tudo, como se requer das descrições
modernas, em textos nativos, e a de Abreu é acompanhada da maior coleção de textos indígenas que já se editou
no Brasil”. RODRIGUES, Aryon D. Os estudos de linguística indígenas no Brasil. Revista de Antropologia. São
Paulo, vol. 11, 1963, p. 11. Disponível em: https://cutt.ly/zcZdngt Acesso: 08 abr. 2021.
95
instituições dos indígenas, quanto pública, já que era um canal possível para agregá-los à
sociedade - considerando o processo de aculturação que isso resulta. 240 A linguagem dos
indígenas deveria ser descrita densamente e por meio de fontes primárias.
O IHGB avaliou, em 1889, a obra Origem das espécies e América pré-histórica, de
Feliciano Bitencourt. A Comissão disse que a primeira parte da obra nada tinha de histórica,
mas possuía alto “valor científico”, “e só por ela vê-se que seu autor está habilitado a ser
excelente auxiliar nos nossos trabalhos”.241 Era importante, e o trabalho de Bitencourt
corroborava isso, conhecer a origem de homens e de mulheres, os antepassados, à época de suas
aparições na terra para que se observasse o desenvolvimento histórico. O autor era adepto do
poligenismo e partidário da teoria dos centros múltiplos de criação.242 O estudioso se mostrava
aberto às doutrinas científicas que circulavam no país. A sua escolha como sócio demostrava
que o IHGB era um dos locais de recepção dessas ideias e espaço importante para elas.243
Romaguera Corrêa concorreu ao posto de sócio em 1898, enviando à Comissão de
história o Vocabulário rio-grandense, um estudo sobre as línguas indígenas localizadas no Rio
Grande do Sul. Observamos, nesse sentido, que esse é um tema clássico e fundamental para a
realização da história do Brasil, pois desde ao menos Humboldt considerava-se a língua dos
indígenas como vestígio possível para reconstituir a história desses povos.244 O que podemos
observar é uma maior sistematicidade analítica que se queria científica.
João Maria Pereira de Lima submeteu Iberos e bascos, remontando às origens primitivas
de Portugal em busca da “ancestralidade” nacional, algo que até aquela quadra de tempo não
era abordado, via de regra, pela historiografia portuguesa que situava a sua identidade a partir
do cristianismo e do estabelecimento da primeira dinastia. A sua posição etnográfica sofreu
questionamentos por parte da Comissão: o seu monogenismo naquele contexto intelectual
específico era alvo das mais variadas controvérsias antropológicas.
240
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Antonio Alves Câmara. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901.
241
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Feliciano Pinheiro de Bitencourt”. RIHGB, tomo LXII, parte
II, 1889, p. 421.
242
Parecer da Comissão... op. cit., 1889, p. 421.
243
De acordo com Lilia Schwarcs, os monogenistas compõem uma vertente majoritária de compreensão da
natureza humana e de sua origem até meados do oitocentos, baseando-se no humanismo e em princípios bíblicos,
decorrendo dessa postura a ideia de que a humanidade é uma só. Já os poligenistas, que emergem após a segunda
metade do século XIX, acreditam na pluralidade de centros de criação como espelhamento às diferenças raciais, o
que fortalece a perspectivas biologizantes em sua disposição de taxonomizar os comportamentos humanos,
considerados determinados por leis naturais. Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas,
instituições e a questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
244
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Romaguera Corrêa. RIHGB, tomo LXI, parte II, 1898, pp.
693-694.
96
A monografia de Moreira Teles, O Brasil e a emigração, notas de estudos de Brasil e
Portugal, é um trabalho interdisciplinar. O autor à primeira vista tem por objeto a vida
econômica nacional sob o ponto de vista das relações entre Brasil e Portugal, passando ao
assunto da imigração, que naquele contexto era um problema antropológico. Para ele, os
melhores imigrantes para o Brasil são os portugueses, porque o povo necessita manter a sua
unidade étnica, abalada pelo processo de miscigenação, ou “pela assimilação tumultuária de
vários elementos estranhos”.245 A mestiçagem era, pois, motivo de disputas intelectuais.
5) História da arte: Ernesto da Cunha de Araujo Vianna ofereceu uma monografia, bem aceita
pelos sócios da instituição, sobre história da arte. A sua especialidade era a análise de pinturas,
de esculturas e da arquitetura. Os participantes da Comissão consideraram inegável a relação
das produções artísticas com a “dinâmica social”. As fontes para o estudo da história foram
telas, estátuas, cenóbios e catedrais. “E como as manifestações estéticas constituem apanágio
das civilizações duradas no cadinho da multimilenária história humana, complexa é a sua
apreciação integral que demanda sólidos conhecimentos práticos e fortes estudos de Sociologia
– donde há notória escassez dos críticos de arte, digamos de tal nome”.246
Laudelino Freire produziu uma monografia sobre a história da arte vivamente aceita no
IHGB em 1917. A Comissão considerou que o autor transmitiu com detalhamento os traços
característicos da evolução da pintura do Brasil em todas as suas fases, com boas biografias
sobre pintores brasileiros, além da reprodução de seus quadros. Em suma: a obra de Freire é
245
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Moreira Teles. RIHGB, tomo 83, parte II, 1918, p. 308. Desde
a emergência e a circulação de ideias e de teorias raciológicas no país o Brasil é concebido como um espaço de
mistura racial, “com todas as implicações que isso traria em termos de (im)possibilidade de progresso e de
civilização. De acordo com as teorias raciais, a mestiçagem emergia nesse momento como incógnita, uma
ambiguidade que pairava sobre a ideia polêmica de paraíso racial. Ao mesmo tempo mácula e singularidade, a
mescla das raças significava a degeneração e a ameaça ao futuro, mas também despertava curiosidade de estudiosos
nacionais e estrangeiros”. DANTAS, Carolina Vianna. O Brasil café com leite. Debates intelectuais sobre
mestiçagem e preconceito de cor na primeira república. Tempo, vol. 13, n. 26, 2009, p. 60-61. Disponível em:
https://cutt.ly/PcLOmTe Acesso: 08 abr. 2021.
246
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Ernesto da Cunha de Araujo Vianna. RIHGB, tomo LXXVIII,
parte II, 1915, p. 787.
247
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Laudelino Freire. RIHGB, tomo 82, parte II, 1917, p. 682.
97
Cousas do passado, de Escragnolle Dória, era mais um livro que recolhia temas fora do
eixo temático da formação nacional. O livro, de forma inovadora, oferece um quadro geral da
arte brasileira e uma “história do cotidiano”.
Esses temas, no contexto da República, ganham força e tornam-se populares, fazendo
com que o leitor de história tivesse maior variedade de assuntos para estudo, ou por interesse
de pesquisa e erudição ou mesmo para satisfazer a sua curiosidade.248
Aspectos da arte brasileira colonial, de Antonio da Cunha Barbosa, é recebido em 1898.
A Comissão informou que o livro demonstrava monumentos valiosos cujo subsídio material
era suficiente para a reconstituição da arte do período colonial. A arte era vista como fonte e
como estímulo de análise, mostrando a abertura para problemas e objetos atualizados na
passagem para o século XX com o IHGB como um importante palco para essas renovações. A
Comissão reservou atenção em seu parecer ao afirmar que o autor não era apenas historiógrafo,
narrando cronologicamente a sequência de pintores e escolas artísticas, mas se mostrava,
igualmente, como crítico da arte, fazendo apreciações estéticas das obras na duração.249
6) História religiosa: O ingresso de Dom João Esberard foi assegurado por suas obras,
consideradas como um “passaporte para a sua peregrinação no mundo das letras e das
ciências”.250 A monografia remetida à comissão abordava temas que emergiam na virada para
XX. Ela é um estudo histórico-litúrgico sobre a Rosa de Ouro oferecida na ocasião em que o
Papa Leão XIII abençoou a princesa Isabel por conta da promulgação do 13 de maio, estudo
considerado inovador para época por se dedicar à análise das representações.
Vicente Lustosa foi recebido por A Igreja Católica e o Estado, livro cuja temática não
se vinculava ao problema da formação nacional. É um estudo de caso. O seu eixo orientador é
político e situado em um contexto aproximado. Lustosa investigava todas as consequências
políticas da separação entre Estado e Igreja católica na República, com argumentos até o plano
cultural. A cisão entre essas duas instituições levara a transformações de natureza moral na
sociedade. É o relato do processo chamado pela historiografia de “romanização”.251
248
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Escragnolle Dória. RIHGB, tomo LXXV, parte II, 1912, pp.
231-232. “No final do século XIX, como sabemos, houve uma grande mudança, especialmente da pintura. Os
velhos temas históricos, tratados de forma retórica, perderam grande parte de sua importância. E um enorme
interesse pela vida cotidiana tornou-se mais atrativo em uma sociedade em processo rápido de modernização”.
PEREIRA, Sonia Gomes. Revisão historiográfica da arte brasileira no século XX. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros, São Paulo, n. 54, 2012, p. 106. Disponível em: https://cutt.ly/JcZy3i9 Acesso: 08 abr. 2021.
249
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Antonio da Cunha Barbosa. RIHGB, tomo LXI, 1898, p. 640.
250
Parecer da Comissão de história sobre as obras de João Esberard. RIHGB, tomo LIV, parte II, 1891, p. 252.
251
O processo de romanização, que não é um movimento homogêneo e vertical, pode ser resumido na aproximação
das lideranças políticas da Igreja católica brasileira com as diretrizes do Vaticano, em termos de postura
institucional e de liturgia. Essa movimentação ganhou força com a Proclamação da República e com o fim do
98
O livro de Paulo Barreto, Religiões do Rio¸ ocupou lugar destacado entre as obras de
história disponíveis. A obra foi considerada única em seu gênero na literatura local. A Comissão
argumentou que havia vários títulos circulantes no país capazes de detalhar os quadros sociais
da nação, desde o romance até os livros de viagem, porém, poucos abordavam o elemento da
crença - vital para a vida social. O livro tem “tom histórico, porque fotografa o Estado d’alma
fluminense num período de sua evolução”.252 Destacamos que é uma história secular das
religiões, que respondia aos reclames da matriz disciplinar da história, com pendor metódico-
cientificista, diferente das tradicionais histórias eclesiásticas.
7) Historiografia literária e forma literária: Eduardo Prado foi aceito como sócio com Le
Brésil, uma síntese histórica dos movimentos literários brasileiros. Ressaltamos que a Comissão
considerava o fenômeno literário fonte de destaque para se acessar a realidade histórica, como
era para os românticos: o espelho da nação. Outro ponto sublinhado é que Prado vale-se do
metodismo historiográfico para criticar as correntes literárias, as obras e os seus autores. Fazer
história da literatura era, portanto, também fazer história.253
O IHGB se mostrava, por meio da sua Comissão de história, aberto à múltiplas
tendências e formas de praticar o métier. É o caso de Tristão de Alencar Araripe Junior, que foi
aceito sócio por conta das suas obras histórico-literárias. A Comissão julgava que por meio do
romance poder-se-ia acessar uma dada realidade histórico-social. Acenava-se, portanto, que o
romance tinha condições de se tornar um documento, cabendo aos historiadores torná-lo um
vestígio tangível do passado. Destacamos que os participantes da Comissão encontraram no
romance de Araripe Junior pesquisa histórica para a reconstituição dos cenários e das
personagens das suas tramas, como em Reino encantado.254
regime do Padroado. Ver MARIN, Jérri R. História e historiografia da romanização: reflexões provisórias. Revista
de Ciência Humanas, n. 30, pp. 149-169, 2001. Disponível em: https://cutt.ly/rcL2rBI Acesso: 08 abr. 2021.
252
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Paulo Barreto. RIHGB, tomo LXX, parte II, 1907, p. 690.
253
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Eduardo Prado. RIHGB, tomo LXII, 1899, pp. 309-310. O
livro de Eduardo Prado se enquadra em uma longa tradição que concebe a literatura como um documento revelador
da realidade histórico-social: “Ao longo de nossa história político-intelectual, as mais diferentes correntes de
pensamento tenderam a conceituar a literatura enquanto instância portadora e/ou refletora do mundo social. Assim,
a produção literária aparecia como reflexo imediato e diretamente condicionado pela ordem social. Raros foram
os nossos autores que se rebelaram contra esse paradigma de análise, buscando formas alternativas para pensar a
relação literatura-sociedade. Os que tentaram esse caminho foram tachados de alienados, alienígenas, e
definitivamente proscritos da legião dos escritores consagrados. Afinal, a grande acusação que sobre eles pesava
era séria: desconhecer a nação”! VELLOSO, Mônica P. A literatura como espelho da nação. Estudos históricos,
Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, p. 239. . Disponível em: https://cutt.ly/GcZQup8 Acesso: 08 abr. 2021.
254
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Tristão de Alencar Araripe Junior. RIHGB, tomo LVI, parte
II, 1893, pp. 166-167.
99
8) História social: Hospital dos Lázaros, de autoria de Francisco Batista Marques Pinheiro, foi
analisado em 1895. É considerado inédito, entrando no arco de atualização dos estudos
históricos. Foi ressaltado pelos avaliadores a diligência do pesquisador em dar todos os
contornos do hospital, com as suas instalações no geral e as características do seu
funcionamento. O mais importante: o autor fez uma análise social da doença, que naquele
contexto era um sinal de exclusão. Estava, aí, a inovação dos estudos de Pinheiro: ele colocou
luz alta sobre sujeitos excluídos, marginalizados e estigmatizados pela sociedade, mesmo que
sob uma ótica racionalizadora que classificava os agentes sociais.255
O estudo de João Tolentino Guedelha Mourão sobre o divórcio foi acolhido em 1902.
Temos por meio dessa pesquisa outra monografia fora do eixo da formação nacional. Os novos
temas abertos na passagem do século XX deram condições, pois, para o estudo das instituições
e suas representações, como é o caso da análise sobre o divórcio. A pesquisa colocou em
evidência as consequências sociais do divórcio em uma sociedade majoritariamente cristã, em
que havia formas distintas de encarar essa instituição, dependendo do gênero. E todas as
consequências foram apresentadas, sobretudo, aquelas que estigmatizavam a mulher
divorciada. Podemos classificar a obra como um estudo sobre as representações sociais.256
A monografia A mulher e a guerra, de Érico da Gama Coelho, é uma exposição temática
do modo pelo qual as mulheres se relacionam com a guerra, na perspectiva da erudição
histórica. A obra, fartamente documentada, vai do mito das Amazonas às guerras
contemporâneas. O autor coloca em relevo que as mulheres aparecem como protagonistas da
história. Há uma proposta analítica de caráter psicológico no que tange às mulheres nos campos
de batalha: elas desaprovam a guerra agressiva, mas eram de um valor heroico, de uma
abnegação incomparável na guerra defensiva.257 No final fez uma defesa delas no mundo
contemporâneo, destacando os seus direitos sociais usurpados. Mesmo assim as mulheres, nessa
obra em específico, não estavam totalmente livres dos recorrentes preconceitos de gênero.
255
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Francisco Batista Marques Pinheiro. RIHGB, tomo LVIII,
parte II, 1895, pp. 316-317. Um breve panorama sobre a história da saúde pública, que nos faz localizar
historiograficamente o exercício intelectivo de Francisco Batista Marques Pinheiro, pode ser verificado em ROSSI,
Daiane Silveira; WEBER, Beatriz Teixeira. Apontamentos historiográficos sobre a história da saúde pública. Anais
do XVII Simpósio nacional de história conhecimento histórico e diálogo social – ANPUH, Natal: UFRN, 2013.
256
Parecer da Comissão de história sobre as obras de João Tolentino Guedelha Mourão. RIHGB, tomo LXV, parte
II, 1902., pp. 491-492.
257
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Érico da Gama Coelho. RIHGB, tomo 80, parte II, 1916, p.
608-609.
100
O que os pareceres da Comissão também nos revelam é a caracterização ideal do ofício
do historiador. Esses pareceres, de uma forma ou de outra, não circunscreviam apenas a
narrativa da história, a última parte da operação historiográfica, mas descreviam todo o processo
cognitivo, metódico e técnico que envolvia a fabricação do conhecimento histórico. Em outras
palavras, ao julgar os méritos das obras de história que os postulantes à sócios do IHGB
remetiam àquela Comissão os avaliadores expunham as dimensões do fazer historiográfico.
Os pareceres da Comissão de história nos servem, dessa maneira, como vestígios
tangíveis da prática da história no contexto epistêmico assinalado pela tese. Consideramos que
o parecer favorável da banca avaliadora autorizava a obra em juízo, a prática historiográfica por
trás da sua fabricação e o intelectual que a concebeu, tornado, pela instituição de saber mais
representativa no que se refere à disciplinarização da história, um historiador.
Gabriel do Monte Pereira foi acolhido como sócio em 1894 por suas aptidões eruditas –
traço que marcava a prática do historiador no contexto.258 Bibliotecário da Biblioteca Nacional
de Lisboa remeteu ao Instituto documentos de interesse à história ibérica, precedidos de breve
narrativa crítica. A Comissão qualifica as suas habilidades: “literato de boas letras”, “crítico
judicioso”, “epigrafista”, “arqueólogo”, “curioso da verdade” e “bom narrador”. Essas
habilidades descreviam o fazer de um historiador erudito.259 A tarefa erudita era considerada
fulcral na produção do saber histórico. Através dela o material que formava a base empírica de
uma pesquisa histórica passava pelo crivo cognitivo que estabelecia a verdade. A erudição,
através das suas habilidades, tornava o material empírico (as fontes) do historiador apto, ou não,
a referendar um plano investigativo, bem como tinha a ambição de delimitar o verdadeiro,
condição para toda e qualquer obra histórica. A erudição buscava solver problemas
historiográficos. Diferentemente do caso europeu, em que a erudição passou a ser criticada, no
Brasil essa forma de perceber o universo fenomênico foi transformada em elemento basilar da
258
Pedro Afonso Cristovão do Santos tem uma definição para a prática da erudição que pode ser útil para
compreendermos a performance do regime historiográfico metódico na passagem do século XIX para o XX:
“Enquanto hipótese, sugerimos que o espaço primordial da erudição eram os momentos não-narrativos de um
texto, ou os momentos em que a narrativa era suspensa, para dar lugar a demonstrações e raciocínios voltados para
a resolução de alguma questão histórica específica. Desse modo, algumas narrativas poderiam ser eruditas em
função de seu lastro documental e da maneira como combinavam narrativa com momentos de resolução de
dúvidas; outros escritos seriam especificamente de erudição, dedicados exclusivamente à resolução de problemas
(...). A erudição ocuparia, assim, os momentos em que a narrativa é temporariamente suspensa para a resolução de
alguma ‘dúvida’ (vocabulário já presente na produção acadêmica setecentista), ou seja, um problema
historiográfico”. SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos. Cobiçando o Amazonas: erudição histórica e diplomacia
na questão dos limites entre Brasil e França no Segundo Reinado. Tese (Doutorado em História – Programa de
Pós-graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2014, p. 59. Disponível em:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-20012015-121856/pt-br.php Acesso: 03 dez. 2020.
259
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Gabriel do Monte Pereira. RIHGB, tomo LVII, parte II, 1894,
p. 375.
101
tarefa historiadora. O fator erudição histórica, no sentido de meditação prolongada sobre certos
assuntos, da posse do saber enciclopédico, da manipulação de técnicas investigativas era um
determinante que levava um estudioso a ser figurado como um historiador no IHGB na
República. Esse foi o mérito, por exemplo, de Clóvis Lamarre em Camoens et les Lusiades:
étude biographique et littéraire, suive du poëme annoté.260
A Comissão também avaliou as obras de Miguel Arcanjo Galvão. O que foi ressaltado
pelos sócios do Instituto estava inserido nas diretrizes do regime historiográfico metódico.
Várias qualidades foram apontadas para tanto: “paciente espírito de investigação”, “busca da
verdade insondável”, “decodificação de documentos insuspeitos”, “estudo fiel e
circunstanciado” de períodos da história brasileira. Todas essas habilidades formavam, pois, a
figuração ideal do historiador na Primeira República.261
Os trabalhos sobre o “descobrimento do Brasil” ofereceram à Zeferino Cândido a
oportunidade de fazer parte do IHGB. Cândido orientava as suas pesquisas através do regime
historiográfico metódico. Não deixando de valorizar “os créditos literários do seu autor”,
compreendia-se que as suas pesquisas históricas tinham condições de existência “pelo paciente
espírito de investigação”, bem como pelo “judicioso critério na apreciação dos fatos”. Essas
virtudes epistêmicas mobilizadas pelo novo sócio estavam de acordo com a tradição erudita.
As pesquisas de Cândido abriram espaço para a instauração da “narrativa dupla”,
conforme estabelecido por Anthony Grafton, pois é obra de pesquisa paciente, meditação
erudita e pautada em critérios analíticos, respeitando protocolos disciplinares, podendo os
leitores acompanharem os seus resultados.262 A sua aprovação, tendo em vista o exposto,
“revela em inteiro relevo o critério e penetrante intuição de seu autor no julgamento dos fatos,
o que constitui a primeira e mais importante tarefa do historiador”.263
Alberto de Toledo torna-se sócio em 1901, com Uma reivindicação improcedente,
trabalho de erudição histórica que colocava em dúvida a prioridade da ideia republicana em
Pernambuco. A análise de Toledo, sob farta documentação, concluiu que na Revolta de 1710
não havia intuitos políticos. Essa ideia, do republicanismo dos Mascates, é amplamente aceita
no contexto. Porém não é só de uso político do passado que vivia a historiografia. A dúvida
metódica colocava em suspensão esse novo cânone republicano: “O autor da impugnação
260
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Clóvis Lamarre. RIHGB, tomo LXII, parte II, 1889, p. 477.
261
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Miguel Arcanjo Galvão. RIHGB, tomo LXI, parte II, 1898,
p. 477.
262
Cf. GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre as notas de rodapé.
Campinas: Papirus, 1998.
263
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Zeferino Cândido. RIHGB, tomo LXII, parte II, 1899, p. 351-
352.
102
mostra-se, então, senhor da história da época e apresenta erudição e lógica nas suas deduções;
pelo que, senão escreveu uma história, apurou a verdade de um fato que jamais poderá ser posto
em dúvida, à vista dos argumentos que apresenta”.264
Bernardo Teixeira de Moraes Leite Velho entrou para as fileiras do Instituto pelo Estudo
histórico das relações diplomáticas e políticas entre França e Portugal, desde a constituição
da monarquia portuguesa até a queda de Napoleão Bonaparte. A Comissão arguidora
considerou uma obra de erudição histórica, sobretudo, porque Leite Velho valeu-se do valioso
recurso da diplomática: estudo crítico e metódico de documentos oficiais e tratadísticos. O autor
possuía “erudição”, “laboriosidade” e “espírito de método pouco vulgares”.265
Outro trabalho que mobilizava a erudição histórica proporcionou o título de sócio à
Augusto de Siqueira Cardoso: Notas genealógicas sobre os ascendentes e descendentes Pedro
Taques de Almeida Paes Leme. O recurso à genealogia é uma das modalidades (técnico-
narrativas) de estudo da história mais antigas ligadas ao regime historiográfico metódico. Esse
trabalho implica erudição: a consulta de genealogias paralelas para a confrontação das
informações, a pesquisa de códices antigos e a procura por documentos de cartório e de arquivo.
Tudo isso visando a virtude epistêmica metódica da “autenticidade”.266
A Genealogia paulistana foi o livro aprovado para o ingresso do sócio Luiz Gonzaga
da Silva Leme. A genealogia elaborada por ele, segundo a Comissão em questão, era a mais
completa e autêntica existente no Brasil. Os sócios ressaltaram que a obra estava repleta de
fatos devidamente criticados, bem como estaria à disposição dos futuros historiadores que se
ocupariam com a síntese integral da experiência história nacional.267
Diogo de Vasconcelos foi recebido pela Comissão em 1904. A Comissão considerou
que suas obras sobre a história de Minas Gerais não se constituíam em mera exposição de fatos
em ordem cronológica, porém estavam distantes da síntese do desenvolvimento histórico-social
264
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Alberto de Toledo. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901, p.
300-301.
265
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Bernardo Teixeira de Moraes Leite Velho, RIHGB, tomo
LXVI, 1903, p. 132.
266
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Augusto de Siqueira Cardoso. RIHGB, tomo LXVI, parte II,
1903, p. 160.
267
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Luiz Gonzaga da Silva Leme. RIHGB, tomo LXVII, parte
II, 1904. A genealogia era concebida no contexto como uma das mais tradicionais ciências auxiliares da história.
Esse tipo de estudo, que se vale fartamente do regime historiográfico metódico, aborda a origem, o
desenvolvimento e a disseminação de grupos humanos inter-relacionados. O mote principal desses estudos é a
localização de ascendentes e de descendentes de indivíduos ou grupos. O procedimento de pesquisa genealógico
envolve a identificação dos parentescos formais ou informais entre indivíduos por meio de um leque amplo de
fontes, mormente escritas, que possam comprovar uma correlação entre eles. SILVA, Armando Barreiros Malheiro
da. A genealogia em Portugal e o desafio do presente. Porto: Centro de estudos de genealogia, heráldica e história
da família, s/d. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/35305 Acesso: 08 abr. 2021.
103
daquele Estado. Os seus livros não possuíam, em tese, plano de organização e tampouco ideias
gerais que pudessem enredar os fatos estudados. Mas o seu trabalho possuía valor erudito, sendo
considerado uma “memória” atravessada por todo o crivo crítico.268
A Comissão avaliou Limites dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, de Bernardo
Horta de Araujo. O trabalho sobre fronteiras, presentes no contexto federativo republicano, foi
dos que mais demandaram do historiador a mobilização do regime historiográfico metódico. A
obra conta com uma coleção vasta de documentos antigos e modernos, particulares e oficiais,
devidamente criticados e autenticados pela erudição histórica. Destacamos que no livro há um
horizonte metódico com o objetivo de estabelecer a verdade e a justiça, disposições epistêmicas
caras a toda obra que se quer de história, conforme a Comissão avaliadora.269
Daniel Azevedo com a Contribucion al estudio de la cartografia de los paises del Rio
de la Plata foi aprovado em 1906. O esforço de Azevedo no estudo de mapas históricos,
orientado pelo crivo crítico e conhecimento bibliográfico, foi destacado em razão do metodismo
implicado em sua pesquisa sobre os limites territoriais envolvendo Brasil e Paraguai. A matéria
em juízo foi considerada de difícil compreensão, sendo possível o seu estudo somente através
do suplemento erudito advindo de uma longa trajetória junto ao estudo da história.270
Norival Soares de Freitas foi acolhido pela Comissão por seu trabalho de captura, de
organização, de crítica e de divulgação de fontes históricas. É um trabalho que requer desde o
estabelecimento de um arquivo, no sentido de corpus de fontes disponíveis, passando pela
erudição acadêmica que o situa compreensivamente, até a crítica, que vai desde a conferência
da autenticidade das fontes à análise classificatória dos fatos históricos que o material empírico
informa.271 Vemos que a erudição crítica atravessava a operação historiográfica.
Alberto Lamego ganhou uma cadeira em razão do “trabalho de uma vida dedicado” à
erudição histórica, que o levou a publicar A terra goitacá à luz de documentos inéditos, o
primeiro de uma série de cinco volumes, em que o autor “pretende enfeixar, amontoando-os
convenientemente, os preciosos papéis antigos, em número superior a mil, que se lhe depararam
268
Fabiana Dias admite que essa divisão do trabalho da operação historiográfica, em que as memórias se orientam
pela arrecadação de materiais comprobatórios, advém do contexto academicista do século XVIII. Cf. DIAS,
Fabiana. Da gênese do campo historiográfico: erudição e pragmatismo nas Associações Literárias dos séculos
XVIII e XIX. Revista de teoria da história, ano, 2, n. 4, 2010, p. 20. Disponível em:
https://www.revistas.ufg.br/teoria/article/view/28936 Acesso: 08 abr. 2021.
269
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Bernardo Horta de Araujo. RIHGB, tomo LVIII, parte II,
1995, p. 586-587.
270
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Daniel Garcia Azevedo. RIHGB, tomo LVIV, parte II, 1896,
p. 385.
271
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Norival Soares de Freitas. RIHGB, tomo LVI, parte II, 1908,
pp. 521-524.
104
nas bibliotecas e arquivos, públicos e particulares, da Europa (...).272 O autor era leitor do
manual de Charles Langlois e Charles Seignobos, Introdução aos estudos históricos (1897), e
salientava que sem documento não havia história.273 O que não significava ausência de teoria.
No ano de 1891 a Comissão de história aprovou João Batista Perdigão de Oliveira, com
as virtudes epistêmicas próprias do regime historiográfico metódico: a “imparcialidade” e a
“objetividade”. Assim, o historiador deve demonstrar a “pertinência de estudo” das suas
investigações.274 A Comissão destacou que a obra de Oliveira recuperava os mártires e os heróis
do Ceará a partir de um viés republicano. Percebemos que na avaliação dos escritos de Oliveira
ocorreu a recuperação de um léxico epistemológico que oferecia condições de possibilidade
para existência da comunidade de historiadores do IHGB. A “imparcialidade” e a
“objetividade” eram procedimentos cognitivos que faziam da obra de história um produto
cientificamente referendado. A pertinência do estudo estava relacionada com a disposição
metodicamente conduzida do trabalho historiográfico, em que se testa se o mesmo é exequível.
José Soto, com o Álbum da guerra del Paraguay, se ofereceu para sócio em 1896. A
Comissão parabenizou o autor pela parte gráfica do livro, no que tange a reprodução de
fotografias de cenas e de pessoas na Guerra do Paraguai, o que era inédito. Porém, o patriotismo
exagerado do escritor argentino o impediu de ver, e de fazer ver, os atos heroicos das outras
nações, como a brasileira; tendo o livro um interdito: a falta de imparcialidade.275 A ciência da
história defendida pela comunidade de historiadores do IHGB absorvia a verve patriótica, como
uma ideia suprapartidária, algo que não fora assimilado por Soto, derivando o veto a sua obra.
A Revolução de 1842 foi o objeto de estudo de João Batista de Moraes. Em princípio,
em termos de metodologia e de teoria da história, a Comissão se ressentiu do que chamou de
“partidarismo” implícito. Por ser um agente da política imperial foi compreendido o
partidarismo em sua análise sobre a política do Segundo Reinado, mas que fora amenizado pela
estrutura da obra: profundamente patriótica e abundante em documentos oficiais e privados. O
livro foi considerado uma janela possível para o conhecimento verdadeiro da história pátria.276
272
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Alberto Lamego. RIHGB, tomo LXXVIII, parte II, 1915, p.
620.
273
Elena Hernández Sandoica argumenta que Langlois e Seignobos entendem que “a história, sob pena de se
perder na confusão dos seus materiais, tem de obedecer estritamente à necessidade de proceder sempre por
questões, como as outras ciências”, o que implica que eles não negam o papel hermenêutico-interpretativo em
relação às fontes, bem como a relação que a historiografia deve manter com as demais ciências sociais. Cf.
SANDOICA, Elena Hernándes. Los Camiños de la historia. Cuestiones de historiografia y método. Madrid:
Editorial Sínteses, 1995.
274
Parecer da Comissão de história sobre as obras de João Batista Perdigão de Oliveira. RIHGB, tomo LIV, parte
II, 1891, p. 202.
275
Parecer da Comissão de história sobre as obras de José Soto. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1996, p. 264.
276
Parecer da Comissão de história sobre as obras de João Batista de Moraes. RIHGB, tomo LXXII, parte II, 1909,
105
Francklin Dória entregou à Comissão de história, em 1896, o livro A Independência do
Brasil, Ensaio Histórico. Antes de adentrar aos pormenores da obra a Comissão ofereceu este
parecer: “A história do Brasil é ainda alguma coisa por fazer, não tendo por enquanto saído do
período oscilante da sua formação. A semelhança de um edifício à distância, iluminado em
noite de festa, há intervalos preenchidos por sombras, vultos, que nem todos se distinguem”.277
Os examinadores continuaram o parecer dizendo que naquele contexto historiográfico
múltiplos eram os elementos arquivados para a história definitiva do Brasil, porém, nenhum
escritor ousava consubstanciar em “molde duradouro” o correto trabalho das gerações de
cronistas, de “historiadores incompletos e parciais”.278 Tais afirmações demarcavam um lugar-
comum nas reflexões da comunidade de historiadores do IHGB naquele contexto: o desejo da
escrita do que eles chamavam de “grande livro da pátria”, que de certo modo iria atualizar, ou
substituir, a história geral do Brasil escrita por Varnhagen na década de 1850.
As obras de Joaquim Nabuco foram aceitas em 1896, sem considerações especiais, mas
talvez as qualidades projetadas ao intelectual nos permitam pensar o que era ser um historiador:
suas obras são escritas com “mão de mestre”; elas revelam “dotes de fino e erudito escritor”;
seu “gênio é altruísta, busca a justiça e o amor ao próximo”; seu “tino de historiador” é de
“filósofo” e de “observador”, além de ser “criterioso”. Um elemento estava acima dessas
qualidades: o “amor pela pátria”.279 Acompanhando o parecer encontramos a figuração do
historiador ideal para a comunidade do Instituto Histórico.
O argentino Mariano Poliza remeteu diversas obras da sua autoria em 1898, porém, foi
a História argentina que mais se destacou na visão dos sócios. Isso por conta de três elementos:
a perspectiva de conjunto, a visão filosófica dos acontecimentos históricos e o aporte
interdisciplinar na análise (Poliza era geógrafo, historiador, economista e antropólogo). Esses
três elementos conjugados foram considerados motivos suficientes para subsidiar a execução
de uma síntese histórico-sociológica (modernista) da experiência nacional. O caso de Mariano
Poliza apresentava-se, nesse sentido, exemplar.280
Miguel Joaquim Ribeiro de Carvalho foi considerado merecedor de fazer parte do
grêmio por conta da publicação de Organização republicana do Estado do Rio de Janeiro,
p. 305.
277
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Francklin Dória. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1896, p. 305.
278
Parecer da Comissão... op. cit., 1896, p. 305.
279
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Joaquim Nabuco. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1896, pp. 268-
269.
280
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Mariano Poliza. RIHGB, tomo LXI, parte II, 1898. pp. 576-
577.
106
1889-1894, uma obra de história do tempo presente. A Comissão avaliou esse tipo de produção
através das suas lentes metódicas e da “pacifica scientiae occupatio”:
Já tem dito e repetido em ocasiões solenes que o nosso Instituto é uma arena
neutra, onde são respeitadas todas as crenças políticas e religiosas e que para
a admissão em seu seio ele somente atende à aptidão científica manifestada
pelos que cultivam os estudos de nossa história e geografia.281
281
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Miguel Joaquim Ribeiro de Carvalho. RIHGB, 1913 pp. 362.
282
Parece da Comissão... op. cit., 1913, p. 362-363.
283
Sobre a recepção das ideias de Buckle e a historicização da posição de Lessa diante do contexto intelectual da
passagem para o século XX conferir o estudo de MURARI, Luciana. Tudo o mais é paisagem. Representações da
natureza na cultura brasileira. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História Social,
Universidade de São Paulo, 2002. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-
24042007-111238/pt-br.php Acesso: 03 dez. 2020.
284
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Pedro Augusto Carneiro Lessa. RIHGB, tomo LXIV, parte
II, 1901, p. 224.
107
imparcialidade, pela independência e pela elevação no julgamento dos agentes sociais que
vivenciaram os fatos ali ocorridos - dando voz aos marginalizados pela guerra e aos vencidos.285
A Comissão de história foi favorável à escolha de Augusto Tavares de Lira como sócio
em 1905. As suas obras sobre as regiões interioranas do Estado do Rio Grande do Norte estavam
perfeitamente em compasso com o metodismo exigido ao historiador para fazer parte do
grêmio. Seus escritos apresentam “estimáveis característicos de investigação histórica”, muita
solidez na argumentação e “penetrantes deduções”. E Lyra se portava, ainda, como um “analista
e argumentador vigoroso”, “em estilo sóbrio e correto, sem afetações pretenciosas”.286
Percebemos que a Comissão não julgava somente o mérito narrativo da obra de história
específica, mas toda a prática historiográfica implícita nos livros remetidos.
Assim, a redescrição de todos esses fios abertos acerca da figuração da história e do
historiador na República, do momento do arquivo à fase da exposição, nos leva à um nó que
nos habilita a ver os predicados requeridos pela chamada moderna historiografia brasileira.
285
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Euclides da Cunha. RIHGB, tomo LXVI, parte II, 1903, p.
131.
286
Parecer da Comissão de história sobre as obras de Augusto Tavares de Lira. RIHGB, tomo LX, parte II, 1897,
p. 738.
108
Parte II
O valor político e pedagógico da história
109
Capítulo 3 - Uma escola de nacionalismo, um templo de patriotismo
Pela organização, pela natureza de seus estudos e
também pela sua antiguidade, pode esta
Congregação considerar-se como o guarda fiel das
tradições e da história da nossa pátria (...).287
Gastão Rush
287
RUSH, Discurso... op. cit., p. 746.
288
ANDRADA, Martim Francisco Ribeiro de. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXII, parte II, 1909, p. 385.
289
PRADO, Discurso... op. cit., p. 238.
290
“Definindo, pois, o sentimento pátrio – patriotismo – como uma fidelidade, o que implica uma relação sacrificial
e um vínculo que é de ordem sentimental, mesmo na sua acepção mais local e comunitária e, portanto, subjetiva,
existe nele sempre uma dimensão contratualista”. BERNARDES, Joana Duarte. O moderno do antigo: a estesia
110
Araripe disse que uma das suas virtudes relacionava-se com o “bem do gênero humano”.291 E
Antônio Coutinho Pereira ressalta, corroborando a fala de Eduardo Prado, que os quadros do
Instituto Histórico eram constituídos por “operários de uma oficina em que a força motora é o
patriotismo”, na medida em que tão “dignas, nobres e gloriosas são sempre as tradições do povo
brasileiro (...) que fielmente guarda este Instituto até hoje”.292
Mas cabe destacarmos, contudo, que a ideia a qual a história brasileira deveria atender
as prerrogativas do patriotismo não se apresentava necessariamente como uma inovação em
termos historiográficos, mesmo que seja possível ponderar que os seus usos na Primeira
República possuem uma nova conotação semântica e uma nova utilidade prática. O botânico
viajante Karl von Martius deixara em destaque, na sua premiada dissertação Como se deve
escrever a história do Brasil (1845), texto fundacional da moderna historiografia brasileira, às
gerações futuras as virtudes que uma escrita da história patriótica abrangeria. Para o naturalista,
atento aos preceitos de Cícero, a história é uma mestra, porém, modernamente ela ensina via
experiência o presente e mesmo o futuro: “Ela pode difundir entre os contemporâneos
sentimentos e pensamentos do mais nobre patriotismo”. A escrita da história atingia o
sentimento, que se tornou um verdadeiro topos no contexto, do “amor pátrio”, o que significa
não conceber o Brasil através de um olhar que não seja o nacional. Dessa maneira, virtudes
cívicas emergiam em forma de ação social, tais como: a coragem, a constância, a indústria, a
fidelidade e a prudência. O Conselheiro Tristão de Alencar Araripe atualiza o bávaro Von
Martius: “o historiador [é o] benfeitor da pátria, se souber no manejo da pena escolher assuntos
a figurar os grandes moldes, em que deve fundir-se o patriotismo brasileiro”.293
De todo modo, frisamos que essa concepção de pátria acabava, de uma forma ou de
outra, marginalizando culturas e identidades singulares que coabitavam o território brasileiro;
também elas possuidoras de horizontes patrióticos singulares.
O historiador português Fernando Catroga admite que o apego à noção de pátria para os
sujeitos que almejam situar-se no tempo, orientando-se, posiciona-se ôntica, lógica e
cronologicamente anterior à ideia de Estado e de nação, sendo deles uma espécie de substrato
com feições antropológicas. Esse dado ajuda a compreender melhor como esta noção passa a
ser fundamental no processo de organização social na República por acionar profundos
cívica do jovem Almeida Garret nas revoluções liberais ibéricas. In: AZEVEDO, Francisca; CATROGA,
Fernando; HERMANN, Jacqueline (orgs.). Memória, escrita da história e cultura política no mundo luso-
brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 255.
291
ARARIPE, Tristão de Alencar. Indicações sobre a história nacional. RIHGB, tomo 57, parte II, 1894, p 279.
292
PEREIRA, Comandante Antônio Coutinho Gomes. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXIV, 1911, p 526.
293
ARARIPE, Indicações... op. cit., p 264.
111
sentimentos de pertencimento. Um observador atento da vida política e intelectual nacional,
como José Veríssimo, nos oferece a ideia exata do que estava em jogo para os sócios do Instituto
quanto ao cultivo sentimental do patriotismo, e quais os seus efeitos na vida prática da nação e
da sociedade: “(...) o amor da pátria alenta-se do conhecimento do passado, e do seu presente,
e da fé no seu futuro”.294
Se recorrermos à semântica antiga do vocábulo pátria, que pode ser remontada à
Homero, ela significa primordialmente, em sua forma mais básica, “terra dos pais” (hêpatris),
o que engloba “tanto o enraizamento natalício, como a fidelidade a uma terra e a um grupo
humano identificado por uma herança comum, real ou fictícia”. 295 O seu valor cívico e
ideológico torna-se, para Fernando Catroga, nodal para as sociedades em variados estratos de
tempo, dado que a sua mobilização inculca o autorreconhecimento e une, eficazmente, uma
pequena comunidade, conduzindo os indivíduos a aceitarem os imperativos do grupo - doação
que podia ir até ao sacrifício da própria vida.296
A consequência dessa prerrogativa argumentativa é clara: é por intermédio da
perspectiva patriótica que as comunidades ou os grupos, e estamos falando em termos de Estado
e de nação, chegando ao ponto extremo do cidadão, podem narrar a história desejada. Assim,
em busca de certa ancestralidade fundacional os grupos passam a compartilhar características
comuns: as mesmas ficções de origem, o mesmo idioma, o mesmo território e a mesma memória
coletiva e cultural. Essa “terra dos pais”, e as suas respectivas ficções de fundação, tornam-se
a origem das origens, um esteio de certa maneira sacralizado que se constrói, se filia, se impõe
e se identifica - estrutura estruturante. O processo de atribuição de sentido patriótico é um
movimento que também define a alteridade.
Para o geógrafo Yi-Fu Tuan, uma pátria impõe referenciais que fazem os seres humanos
se identificarem, os quais podem ser de grande visibilidade e relevância pública, tais como
monumentos, templos, campos de batalha sagrados ou cemitérios. Esses sinais visíveis existem
em razão da demanda por um sentimento de identidade coletiva. Eles incentivam a consciência
e a lealdade para com um lugar – geográfico e/ou simbólico. Porém, essa afeição à pátria pode
se instaurar com gestos pequenos: ter familiaridade com um lugar natalício, a certeza da
alimentação e da segurança, as recordações de sons e de odores, a rememoração de atividades
coletivas e prazeres mínimos acumulados ao longo do tempo. A ambição dos sócios do IHGB
294
VERÍSSIMO, José. A educação nacional. Rio de Janeiro; São Paulo; Belo Horizonte: Livraria Francisco Alves,
1906, p. 72.
295
CATROGA, Pátria e nação... op. cit., p. 13.
296
Idem, p. 13.
112
era transformar em narrativas essas experiências. Tuan argumenta que a pátria é uma concepção
coletiva, onde homens e mulheres partilham referenciais de forma intersubjetiva. A afeição
patriótica é, nesse sentido, um fenômeno de escala mundial. Ela é a energia vital da nação. Ela
não se vinculada à nenhuma cultura ou sociedade em especial, variando de intensidade entre os
diferentes períodos históricos.297 A história pátria garante, no limite, a sobrevivência e a difusão
de um patrimônio de referenciais intersubjetivos construído na duração.
A noção de pátria circulava nas prescrições e nas narrativas dos sócios do Instituto
Histórico como uma herança que se deve transmitir e difundir, isto é, um destino que se desvela,
ou mesmo uma vocação de grupo que se autoconhece e se autoconstrói. A história pátria
(majoritária) possui, portanto, um quê de culto, quer dizer, um lugar sacralizado em que se
acessa todo um repertório de tradições, e instância em que os brasileiros e as brasileiras se
reconhecem como agentes históricos e sujeitos dotados de cultura: “sacrário augusto dos
gloriosos feitos da nossa história, e onde se conserva, em toda a sua pureza, o culto da Pátria”.298
Assim, a ideia de pátria relaciona-se com a de memória – ela é feita de recordação (e
comemoração).299 Uma memória que é, via de regra, seletiva na forma de organização e de
orientação daquilo que é o nacional, pois falar em rememoração é ativar políticas da memória,
que no caso direcionam a fundação de um passado, agora, republicano.
Nesse sentido, a concepção de história de Agenor de Roure estava intimamente ligada
com a noção de pátria. O sócio admite que ela possui um apelo sentimental, próprio do coração,
além de promover a solidariedade humana e coletiva. Assim, a ideia de pátria servia como
combustível indispensável para a nacionalidade. O seu esteio era de matriz antropológica, de
ligação a uma espécie de cosmovisão. O conceito de pátria circulante na instituição aplainava
as diferenças culturais fazendo com que existissem pátrias interditadas no interior de uma pátria
maior, que supostamente representava a brasilidade. Assim sendo,
297
TUAN, Yi-Fu. Afeição pela Pátria. In: _____. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Londrina: EDUEL,
2013.
298
CASTRO, José Olímpio Viveiros de. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXX, parte II, p. 709.
299
No entanto, dessa dimensão resulta outra consequência: “(...) quando se passa da esfera subjetiva para a pública,
ela não pode ser pensada fora das políticas da memória e das suas finalidades apelativas, integradoras e
escatológicas, como sobejamente o demonstram os múltiplos usos e abusos ideológicos a que sua ideia esteve
(está) sujeita”. CATROGA, Fernando. Pátria e nação... Op. cit., p. 14-15.
300
ROURE, Agenor de. Discurso de posse. RIHGB, tomo 82, parte II, 1917, p. 715.
113
Todo o movimento temporal da nação, as suas formas de entendimento de si mesma,
está lastreado pela ideia de pátria. De tal modo que a ideia eurocêntrica de progresso pode até
ser projetada no presente e virtualmente no futuro, porém as suas raízes estão no passado, na
tradição dos povos, na memória viva. O cultivo da história é o próprio cultivo da pátria. A ideia
de pátria ressoa como memória coletiva301 para aqueles sujeitos, sendo ela unidade de língua,
de religião, de direito, de costumes, etc. Para que a pátria possa existir em sua plenitude abarca,
assim, uma tradição moral e sentimental. É o amor pela terra de origem, tanto em sentido
geográfico quanto de educação sentimental. A pátria toma, nesse sentido, como ideia a
recordação do invisível do passado que nos constitui. “Do amor ao torrão natal vem o amor da
Pátria, justamente porque das recordações do passado é que se alimenta o sentimento de
patriotismo”.302 De acordo com a historiadora alemã Aleida Assmann, o passado recordado,
como o patriótico, não se confunde com o saber desinteressado sobre o passado denominado de
história: “(...) a reflexão sobre a recordação conduz ao cerne da reflexão sobre a motivação da
formação da identidade nacional”.303 É impossível não perceber que a instituição de uma pátria
significa, também, erigir fronteiras ante a alteridade do Outro.
É a dimensão subjetiva, ou intersubjetiva, que envolve o sentimento de pátria. É o grau
mais íntimo em termos de pertença coletiva a um dado agregado humano no tempo e no espaço.
Para Assmann, o “(...) patriotismo surge como fundamento de uma nova identidade comum,
que abarca diversos estratos sociais, sem, no entanto, suprimi-los”.304
Valendo-se das metáforas epistêmicas do “berço”, da “origem”, do “túmulo” e do
“destino”, Agenor de Roure sintetiza o ideal de pátria:
(...) assim como o sino arrasta os fiéis da religião para junto do altar da igreja,
o coração toca a reunir os fiéis do patriotismo junto ao altar da Pátria, para a
defesa dos túmulos que guardam recordações, para a defesa dos berços dentro
dos quais vivem as esperanças. Sem os túmulos e sem os berços, sem o
passado e sem o presente, não se pode cuidar do futuro da Pátria. Sem as raízes
de ontem e sem a floração de hoje, não há arvore que amanhã de frutos.305
301
As prescrições dos sócios do IHGB são compatíveis, mas não justapostas, com a clássica leitura da memória
coletiva realizada por Maurice Halbwachs. A história torna-se, para o estudioso francês, um mecanismo de
reestabelecimento da continuidade da tradição, quer dizer, da memória coletiva. Segundo Halbwachs, “(...) para
evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras”. HALBWACHS, Maurice.
A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, p. 72.
302
ROURE, Discurso... op. cit., p. 716.
303
ASSMANN, Aleida. A luta das recordações nas histórias de Shakespeare. In: _____. Espaços da recordação.
Formas e funções da memória cultural. Campinas: UNICAMP, 2011, p. 91.
304
ASSMANN, op. cit., p. 86
305
ROURE, Discurso… op. cit., p. 716.
114
Vemos, então, que a pátria representa a memória coletiva que se deseja colocar em
evidência, e não aquela que de fato representa a pluralidade identitária inscrita no processo
histórico. Ela oferece sentido para a existência da comunidade, dado que é o elemento que
difunde as memórias compartilhadas. Assim sendo, mantém-se o culto do passado, ou seja, o
cultivo das tradições; isso em uma dimensão “passadista”, posto que significa, acima de tudo,
a conservação da pátria. Esse processo coloniza a identidade e a cultura do Outro da nação,
indígenas e cultura afrodescendente, por exemplo.
As nações possuem, para Agenor de Roure, corpo e alma em sentido metafórico – o
território é considerado o corpo e a história a alma. Portanto, um país que não cultiva a história,
o seu estudo enquanto memória coletiva, é uma espécie de corpo sem alma: “Se devemos
cultivar a terra, não podemos abandonar o culto das tradições; porque, sem elas, pode existir o
país, mas a Pátria sofre, definha e morre”.306
As nacionalidades são compostas, para Félix Pacheco, por estratos de temporalidade.
Esses estratos são acumulados com a passagem do tempo histórico e tomam a feição de tradição.
A atualidade é, pois, transitória e efêmera. No mais íntimo da nação está o seu passado
modelado pelos desígnios da pátria. Diante desse cenário, o autor desenvolve uma intricada
teoria sobre a tradição ou memória coletiva, ambas se travestindo de sentimento patriótico. Quer
dizer, ele deseja o acesso ao nível experiencial da história:
É, como se vê, uma obra colossal. Este grêmio augusto e venerável simboliza,
por assim dizer, a Pátria na impessoalidade tranquila e formosa de suas
expressões. O que vós tendes feito para assegurar a unidade cultural do Brasil,
pelo respeito às tradições coletivas da raça e do povo, é serviço que não se
mede e para o qual não há louvores que bastem.308
306
Idem, p. 716.
307
PACHECO, Discurso... op. cit., p. 563.
308
Idem, p. 567
115
país natal foi cenário empolga os ‘filhos da terra’ e enche-nos de orgulho e fé; orgulho pelos
ascendentes que emergiram, fé pelas energias de que foram herdeiros e que constituem os seus
combates na continuada porfia, que é a grandeza nacional”.309
Apontava Oliveira Vianna, em uma interpretação da história que se vale dos princípios
patrióticos circulantes, que os grupos sociais se parecem com os grupos individuais, quer dizer,
eles pressupõem “determinantes” relativas que vem do passado e que conformam a
personalidade coletiva. Nisso está o peso da pátria como “lugar dos pais”, o que implica em um
autoconhecimento que também destaca certas obscuridades do passado. Afirma Vianna: “(...)
o conhecimento dessas ‘determinantes’ nacionais é, pois, essencial à ação de todos os que
exercem uma função dirigente na sociedade, principalmente os que tem o encargo da direção
política”.310 Desde o Império, argumenta ele, há um idealismo por parte dos legisladores em
querer ver as instituições políticas brasileiras pelos olhos dos outros, numa espécie de mal de
Nabuco. O desconhecimento da pátria leva, de qualquer maneira, os constituintes e os
legisladores a formularem princípios estranhos a nossa formação, portanto, totalmente
inadequados. Nesse sentido, “(...) entre os fatores que determinam a marcha das sociedades, o
papel reservado à ação da vontade consciente é modestíssimo, é insignificante mesmo”.311 Para
além dessas determinantes há, todavia, todo um mundo de forças organizadas que chega a
incidir mesmo no presente dos sujeitos cognoscentes. Por isso o reclame pela noção de pátria,
a qual absorve, de algum modo, todas essas demandas e requisitos, inclusive a face negativa do
passado. Como argumenta o sociólogo carioca: “(...) se descartamos o que deve ser levado a
cargo do automatismo, do hábito das paixões e sobretudo da imitação, veremos que o número
de atos verdadeiramente voluntários é bem pequeno”.312
De todo modo, tal disposição torna evidente que os usos políticos do passado patriótico
podem levar a uma postura política de cariz autoritário, como podemos perceber na própria
obra e posição pública de Oliveira Vianna.
Mas o que as discussões em torno da noção de pátria revelam é que o passado exerce
uma força poderosa e sutil no presente. Homens e mulheres estão enlaçados de todos os lados
por uma espécie de “atmosfera impalpável e imponderável” chamada passado vivo. O passado
patriótico performa-se, então, através de uma interferência no agir social de maneira profunda
309
LEAL, Discurso... op. cit., p. 705.
310
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 451
311
Idem, p. 451.
312
Ibidem, p. 451. Um estudo que se atém à interpretação política de Oliveira Vianna acerca do passado nacional,
bem como ao significado da ideia de Brasil legal e Brasil real, é o de SILVA, Ricardo. Liberalismo e democracia
na sociologia de Oliveira Vianna. Sociologias, Porto Alegre, n. 20, 2008, pp. 238-269. Disponível em:
https://cutt.ly/jcZxkiJ Acesso: 08 abr. 2021.
116
e invisível.313 Oliveira Vianna torna científica, no caso, a noção de pátria, autorizando ainda
mais a sua elevação à pensamento majoritário.
313
VIANNA, Discurso... op. cit., 1924.
314
JUNIOR, Joaquim Xavier da Silveira. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXX, parte II, 1907, p. 646.
315
FURTADO, Alcibíades. Discurso em razão da recepção do sócio Joaquim Xavier da Silveira Junior. RIHGB,
tomo LXX, parte II, 1907, p. 645.
316
Esse impasse entre história científica e história patriótica, ou que requer um posicionamento político, não é um
problema somente colocado aos sócios do IHGB. O ensaísta Manoel Bomfim enfrentava, segundo Rebeca Gontijo,
a mesma questão, e tal qual certos agremiados do Instituto advogava por uma história que congregasse
imparcialidade e posição política. Cf. GONTIJO, Rebeca. Manoel Bomfim, ‘pensador da história’ na Primeira
República. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, 2003, pp. 129-154. . Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16523.pdf Acesso: 08 abr. 2021.
317
JUNIOR, Discurso... op. cit., p. 646.
318
PINTO, Adolfo Augusto. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXII, parte II, 1909, p. 358.
117
meditação refletida sobre os destinos da nação, “como sagrado Aventino em que o sentimento
do amor pátrio se recolhe em retiro espiritual”.319 A ideia de pátria travessa, então, todas as
atividades da agremiação.
O sócio Alfredo de Carvalho, bastante conhecido nos círculos letrados da passagem para
o século XX por causa das suas atividades no Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico
Pernambucano/IAHGP, foi recepcionado no Instituto em 1907. Em seu discurso de posse fica
evidente uma das principais percepções acerca de qual é a sua tarefa naquele contexto. Ou seja,
a instituição é concebida como um lugar que vai além de uma mera “reunião de eruditos”, na
medida em que aquele recinto é o grande responsável por guardar a memória da brasilidade -
as suas tradições mais íntimas; aquilo que lhe afigura enquanto o mais primordial em termos
identitários e de sentido. Em seu entender, a verdadeira casa do patriotismo: “(...) pois não sei
de expressão mais sublimada deste nobilíssimo sentimento coletivo que esse vosso mister de
manter vivas as tradições da nossa terra, lemindo as incertezas do presente com as memórias
melhores de outra idade”.320 Interessante o posicionamento desse sócio, posto que ele
argumenta, e os termos são de sua autoria, que essa é a utilidade social da “ciência da história”
praticada por aqueles intelectuais.
Para os desavisados que não sabem situar qual o tipo de experiência intelectual era
fomentada pelos sócios do IHGB, Alfredo de Carvalho é bastante esclarecedor: “o culto do
passado é a religião das nacionalidades”.321 De outro modo: um povo pode acompanhar os seus
destinos, a sua história em si e para si, através da consciência acerca das suas origens, o que
denota, inclusive, uma dimensão sociológica para esse tipo de saber, pois deixa à disposição
dos interessados a possibilidade de prever as ações dos homens e das mulheres no tempo.
Portanto, a história praticada no Instituto não serve apenas de “simples deleite de curiosos”,
mas é uma verdadeira “tarefa de pensadores”, porque não é algo novo a tentativa de organizá-
la em moldes científicos; o que oferece vazão para que os interessados em compreender as
formações histórico-sociais no tempo possam determinar as “leis de subordinação” e as
“relações de dependência” existentes entre os fatos humanos. Afirma Alfredo de Carvalho:
(...) não obstante a variedade prodigiosa e a falácia ocasional das teorias que
modernamente tem surgido para explicar a direção, significação e condições
do desenvolvimento da humanidade – desde o teoracionalismo de Herder e o
319
PINTO, Discurso... op. cit., p. 358.
320
CARVALHO, Alfredo Ferreira de. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXX, parte II, 1907, p. 732.
321
CARVALHO, Discurso... op. cit., p. 732.
118
espírito absoluto de Ratzel – a história não pode ser um mero registro de
fastos.322
Interessante notar que Tristão de Alencar Araripe mobiliza outro recurso estético-
historiográfico no interior do seu argumento: o recurso da cor local, tão caro entre os nossos
historiadores românticos. Então, quando o Conselheiro fala que o historiador deve “pintar” os
grandes cidadãos brasileiros, ele não deixa de entrever que os leitores de história têm à
disposição a visualização de um agir moral passado em que o espírito de patriotismo prevalece
e torna-se fundamental na formação histórica brasileira.
Enquanto isso, Eugênio Egas afirma que o Brasil ainda não possui história, porque não
tem sociedade. Por isso, cumpre infundir no espírito dos cidadãos e das cidadãs o patriotismo
através da biografia dos grandes vultos e pela narrativa dos grandes feitos e acontecimentos,
que na fórmula de Buckle atestam a vitória do homem sobre a natureza através da técnica no
intuito de proporcionar o progresso e o bem-estar geral.
322
Idem, p. 732.
323
Para um estudo sobre o gênero biográfico no século XIX ver OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas,
narrar a história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2011, p. 58: “Afora sua eficácia como instrumento de civilização, nas vidas e nos feitos dos grandes personagens
revela-se o ‘movimento geral’ da história”.
324
ARARIPE, Indicações... op. cit., p. 274.
119
Demandavam o registro dos fatos praticados em defesa dos direitos, da honra e do amor
pátrio. Lembramos que o escrutínio e a divulgação de uma biografia estão de acordo com os
cânones da história científica.
O empenho e o desejo dos sócios, por meio do demorado, paciente e consciencioso
trabalho de erudição e de análise, era o de marcar bem a ideia de pátria; apresentando-a soberana
e digna de um culto permanente, promovendo a verdade, e todas as habilidades envoltas nesse
trabalho, visando o desejo de nacionalizar a própria nação. Era um registro epistêmico
altamente colonizador. A consagração das tradições brasileiras enchia o Instituto do espírito de
patriotismo e de ufanismo325, uma possível mutação do topos da história mestra da vida.
Segundo Solidônio Leite, no IHGB “não fica lugar para outras coisas, que jamais
penetraram nesta casa onde sem desfitar a imagem da pátria, todos se filiam e a conceituam
para glorifica-la”.326 Diante desse trabalho considerado hercúleo, que é a marca do patriotismo-
nacionalista dos seus sócios, a Revista é a prova cabal desse esforço, e o trabalho de erudição e
de crítica diligente se apresenta, para ele, com fundo patriótico. Somente pela via da crítica se
reavivaria o sentimento nacional, pois era via esse saber que os(as) brasileiros(as), à luz da
verdade, poderiam conhecer a si mesmos.
Já o nacionalismo de Basílio de Magalhães é devedor das posições filosóficas de
Auguste Comte, a quem chama de “incomparável pensador de Montpellier”. O amor pela terra,
pelo Brasil, por sua nacionalidade, guia o historiador pelos caminhos da história. Uma das faces
da concepção teórica da história dele é a do empiricismo, entendido em termos filosóficos como
a aproximação com a dimensão sensível da experiência. Leitor de Comte, assim expõe a sua
visada argumentativa, a qual não aceita pré-disposições teóricas e metafísicas:
325
Sobre o ufanismo patriótico na Primeira República, especialmente na literatura cívico-patriótica, ver HANSEN,
Patrícia. Brasil, um país novo. Literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na
Primeira República. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade
de São Paulo, 2007. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-12022008-111516/pt-
br.php Acesso: 02 dez. 2020. Para uma avaliação mais abrangente do tema ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Ufanismo:
versão otimista da nação. In: _____. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990.
326
LEITE, Discurso... op. cit., p. 432.
327
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 798.
120
Essa concepção teórica de história orientava e fortalecia o regime historiográfico328
nacionalista-patriótico, na medida que a realidade do mundo da vida o tornava sujeito sensível
de uma comunidade de valores comuns, incidindo, inclusive, sobre os corpos.
Em Eduardo Prado, o Instituto aparece cercado por insígnias patrióticas:
Para Prado, os trabalhos dos sócios são figurados na Primeira República como
imperecíveis. Todas as formas de análise são congregadas em seus salões, e ainda assim as suas
portas estão abertas para pesquisas recentes e inovadoras, em razão da conjugação entre o dever
patriótico e a ciência geral da historiografia, que a tudo faz parecer importante em termos de
contribuição ao estudo do Brasil. Nesse sentido,
(...) poderá, quem sabe, apagar-se do coração dos homens futuros o sentimento
de Pátria, mas se dentro deles surgir, nesta terra, algum psicólogo, que com
reverência devida as grandes coisas mortas, quiser escrever a história do
patriotismo brasileiro, uma página, e das mais belas, será, senhores, em honra
vossa.330
328
A categoria “regime historiográfico” mobilizada por esta tese é formulada por Fernando Nicolazzi. “Se a
operação historiográfica, da forma como é pensada por Michel de Certeau (um lugar, uma prática, uma escrita),
nos direciona ao centro do trabalho histórico, um regime historiográfico, sem perder de vista a operação que lhe
dá sentido, direciona o olhar analítico ao seu entorno, às expectativas projetadas a ela a as suas formas de recepção;
remete ainda à experiência do tempo que torna possível definir as relações entre passado, presente e futuro, mas
também às delimitações de ordem teórica e/ou prescritiva que não se converteram em textos historiográficos
propriamente ditos”. NICOLAZZI, Fernando. A história e seus passados: regimes historiográficos e escrita da
história. In: BENTIVOGLIO, Júlio; NASCIMENTO, Bruno (orgs.). Escrever história: historiadores e
historiografia brasileira nos séculos XIX e XX. Serra: Editora Milfontes, 2017, p. 26.
329
PRADO, Discurso... op. cit., p. 238.
330
Idem, p. 239.
331
BATISTA, Discurso... op. cit., p. 580.
332
Idem, p. 580.
121
(...) a conhecer e a amar a pátria. Conhecendo-a, tem-se a impressão de sua
grandeza, no esplendor da terra fecunda e vasta; amando-a, o sentimento de
dever de a sustentar e conhecer, como herança de honra, a transmitir, intacta
e digna, às gerações de amanhã”.333
As atividades de saber elaboradas pelo Instituto Histórico são apreendidas por Enéas
Galvão através de um chamado da pátria. Elas correspondem, simultaneamente, ao apego pelo
saber e pela nação, e além de chegarem aos seus pormenores fenomênicos, capturam o seu
sentido diretor. Em suas palavras:
Constituis, pelo rumo de vossas investigações e pelos altos intuitos que vos
animam nessas pacientes pesquisas acerca de tudo que diz respeito à formação
e desenvolvimento da nossa nacionalidade, não apenas um importante centro
de atividade intelectual, mas, também, uma verdadeira escola de amor da
Pátria.334
Solidônio Leite fala que o caminho da verdade, uma virtude epistêmica 335, é a forma
mais grandiosa de se praticar o amor pela pátria. Uma verdade que somente os historiadores
podem alcançar, dado que estão equipados metodicamente para desautorizarem filosofias de
sentido que deturpam uma possível leitura particular do Brasil. Essa Casa cuida dos materiais
para a realização de uma história integral da sociedade, meditada com rigor científico para que
a historicidade da pátria seja respeitada também em sua integridade. Assim, o agremiado
adverte: “a história de um povo não se escreve convenientemente sem que a preceda do longo
trabalho preparatório, onde possa se apoiar com segurança”.336 Uma dessas operações
cognitivas é justamente a busca pelo singular como forma de desautorização de teorias que
enquadram o país em supostas “leis gerais”, os determinismos, com valoração científica, muitas
das quais detratoras da pátria.
Vemos, nos textos acima citados, a missão patriótica do trabalho erudito.337
333
Ibidem, p. 580.
334
GALVÃO, Enéas. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVII, parte II, 1914, p. 609.
335
Categoria do saber elaborada por Herman Paul. Ela mostra-se importante para avaliarmos as performances da
prática dos historiadores. Isso abre a possibilidade para investigarmos não apenas o funcionamento interno dos
textos considerados historiográficos, na medida em que, como quer Paul, os “fazeres” do historiador invocam
performances reguladas por virtudes partilhadas por um campo disciplinar. PAUL, Herman. What is a Scholarly…
op. cit., p. 348-371.
336
LEITE, Discurso… op. cit., p. 429
337
Angela de Castro Gomes é precisa sobre a figuração do erudito e sobre o seu trabalho na Primeira República:
“Não sendo ‘profissionais’ da história – são por ofício diplomatas, professores, jornalistas –, dedicam-se a esse
campo do conhecimento de forma sistemática e apaixonada, acumulando um grande saber, cuja principal fonte de
legitimidade é o trabalho de pesquisa documental: o trabalho de consultar, reunir, criticar e ‘copiar e fazer copiar
documentos manuscritos’. Esse tipo de erudição é assim uma forma de acumulação de conhecimentos que não
deriva de estudos formais e que exige esforço longo, regular e direcionado”. GOMES, História... op. cit., p. 99.
122
A posição de Afonso Arinos é interessante, pois prefere uma história patriótica a uma
história científica. E aqui não há a coadunação das duas modalidades. Nós “não temos história,
nem historiadores; cumpre fazê-la, antes de escrevê-la. Deixemos este encargo às gerações do
porvir, em vez de fazer a história da nossa pátria, incumbe-nos de construir a própria pátria”.338
Ele encontra no historiador romano Tito Lívio um aliado para tal propósito, pois o autor antigo
faz da história um instrumento de eloquência criadora e de patriotismo. Ademais, se vale da
herança grega que a modula em arte para cativar a educação cívica. Para o caso brasileiro,
especificadamente, não se necessita do historiador cientista, mas de um intelectual com
qualidades historiadoras que movimentem a opinião pública a partir de um acentuado
patriotismo. A “missão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro não é tanto a de ser
geógrafo ou historiador, quanto a de ser brasileiro”.339 O IHGB é figurado, através das suas
atividades, por João Xavier da Mota como “templo da história pátria”.
A pátria acima da nação é uma constante nos discursos dos sócios. Segundo eles, uma
história pátria não se detém na factibilidade dos episódios, mas volta-se para o substrato mais
profundo da experiência da história. Os fatos que estão envoltos em sua estrutura narrativa
possuem profundidade social, são relativos e direcionam a história para um triplo aspecto
temporal: passado-presente-futuro. A história pátria possui, nesse sentido, uma teoria da
historicidade, em que através da circunscrição do fato se extrai partículas de experiência da
história passada. É o futuro do passado e o passado do futuro, além de ser a história do presente
passado e do presente contemporâneo.340
A principal dimensão, e isso está no âmbito da ética, que coliga os sócios do IHGB é o
“amor do seu país”. É um amor sem ostentação, na medida em que os sócios estão reunidos em
uma assembleia de “doutos” cuja virtude da abnegação orienta as suas atividades. É um
direcionamento que aciona virtudes de pertencimento à esfera pública. Este é o paradoxo
orientador das atividades da instituição: caminha pelo internalismo das ciências, respeitando
formas específicas de uma prática, bem como realiza um saber útil à sociedade de maneira
ampla.341 Ela é figurada como “um lugar sagrado” que só dá acesso aos “grandes eleitos da
338
FRANCO, Discurso... op. cit., 1903, p. 216. Sobre o desejo dos sócios da instituição de escreverem o grande
livro da pátria no futuro ver HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande obra:
a história do Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1912). Dissertação (Mestrado em História)
– Programa de Pós-graduação em História, Pontifícia Universidade Católica/RS, 2007. Disponível em:
http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/2500 Acesso: 03 dez. 2020.
339
FRANCO, Discurso... op. cit., p. 216.
340
MOTA, João Xavier. Discurso de posse. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, p. 367.
341
Peter Burke afirma sobre a relações entre internalismo e externalismo: “De um lado, temos a abordagem
‘interna’, que explica a mudança em uma ordem de conhecimento em termos de crescimento e declínio a partir de
dentro; de outro lado, a abordagem ‘externa’, que associa a mudança dentro de uma ordem de conhecimento à
123
inteligência e do saber”. A “glorificação da pátria” aparece, nesse sentido, como um
pensamento diretor, uma ambição de trabalho - um ideal maior que norteia o saber e o fazer de
todos os sócios. E como sabemos: saber é poder.
mudança no mundo exterior a ele”. BURKE, Peter. O que é história do conhecimento? São Paulo: Editora da
UNESP, 2016, p. 153.
342
Para Joana Duarte Bernardes, os conceitos de pátria, liberdade, virtude, patriotismo, cidadão, igualdade e nação
emergem na literatura europeia ligada a temas cívicos e a momentos revolucionários. “Assim foi na Inglaterra das
revoluções do século XVII, na Revolução Francesa, nos movimentos antinapoleônicos e nos levantes populares
da península Ibérica contra Napoleão”. BERNARDES, Joana Duarte. O moderno do antigo... op. cit., p. 253.
343
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 585. A temática do amor pátrio está presente no romantismo brasileiro.
Nesse ambiente ela relaciona-se com a experiência estética do exílio e da saudade. Marcelo de Mello Rangel
aborda esse assunto a partir da poesia de Gonçalves de Magalhães. “No ‘Oceano’, distante da ‘pátria’, tudo é
‘cemitério’, ‘horror’, morte, ou seja, a possibilidade de ser arrancado à alegria provocada pela companhia dos
parentes e amigos. No ‘Oceano’, bem como na ‘pátria’, há ‘tempestades’ e ‘trovões’, entretanto apenas na ‘pátria’
o poeta encontrava ‘braços estendidos”. RANGEL, Marcelo de Mello. Gonçalves de Magalhães e a civilização do
Império do Brasil através da poesia. História e perspectivas, Uberlândia, vol. 24, n. 45, 2011, p. 172. Disponível
em: https://cutt.ly/acZpDXo Acesso: 08 abr. 2021.
344
GEORLETE, F. A. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXII, parte II, 1909, p.377.
345
Sobre a temática do “mal de Nabuco” na paisagem intelectual da passagem do século XX ver JUNIOR,
Guilherme Simões Gomes. Mal de Nabuco. Paisagem, crônica e crítica. Tempo social, São Paulo, vol. 27, n. 2,
124
Segundo Magalhães,
(...) conhecido e amado nas suas coisas e em seus homens, o que, em suma,
quer dizer: conhecido e amado na estrutura que o corporifica e na alma que o
vem espiritualizando através dos séculos, e em sua geografia e história.348
Esse gesto, essa habilidade que a escrita da história provoca, evoca três formas distintas
de elaboração da temporalidade: o passado é cultuado, o presente é ilustrado e o futuro é
edificado de forma planejada. Isso leva à missão da agremiação: proporcionar “a solidariedade
2015, pp. 201-230, esp. p. 206. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/108183 Acesso: 08 abr.
2021: “O primeiro sintoma do mal de Nabuco é a sensação de estrangeiro na própria pátria, o desejo da viagem e
a conclusão de que o perambular pela paisagem brasileira não vale um passeio no cais do Sena ou na estrada de
Amalfi. O segundo sintoma é a inadequação no velho mundo e o reconhecimento de que as impressões causadas
pelas melhores obras da civilização reverberam no habitus mental forjado no engenho de açúcar pernambucano,
onde o menino passou os primeiros oito anos de vida; tema que é abordado na autobiografia de Nabuco em capítulo
posterior: ‘Massangana’, a casa da madrinha, onde o homem tomou forma, na condição de senhor em uma
sociedade escravista”.
346
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 597.
347
Idem, p. 587.
348
PINTO, Discurso... op. cit., p. 361.
125
do indivíduo para com a espécie e com os seus” - posicionamento de elevado pendor
nacionalista, que para ser atingido necessita do amor à pátria.349
O topos do amor pátrio também é mobilizado por Manuel Porfírio de Oliveira Santos,
que ao considerar o IHGB um “laboratório de pesquisas científicas”, uma “grande oficina de
trabalho”, um “templo” e uma “escola”, também apregoa que o culto do passado é próprio do
civismo republicano, que dizer, uma “grande virtude pública”, que se resume através das ideias
de amor às “leis e à pátria”.350 O amor pátrio como civismo é um chamado aos brasileiros e às
brasileiras para que se defenda, se estimule e se divulgue a federalismo científico como a forma
de política mais adequada para o caso nacional. Isso não é considerado uma posição partidária
por parte dos sócios, pois o federalismo é considerado o estágio mais avançando da democracia.
O amor pátrio, e cívico, legitima o federalismo. Chega-se a chamar cada Estado de pátria.
De todo modo, a vida social ideal repousa, para Alberto Torres, sobre o altruísmo, mas
ela tem a sua forma mais primária na família tradicional. A solidariedade coletiva, que excita o
patriotismo cívico, ampara-se no desejo gregário da segurança material, derivando na família,
nos estímulos afetivos, nas ações desinteressadas, no instinto do sacrifício e no esforço por
outrem. É uma ilusão a supremacia do amor pátrio sobre o amor familiar tradicional, pois esse
substrato primordial é, também, fonte fundamental para a emergência do civismo.351
No discurso de posse de Artur Guimarães o topos do amor pátrio é acionado mais uma
vez como condição sine qua non para a manutenção das tradições nacionais. “Qual dos ilustres
consócios, a começar pelo venerando presidente atual do Instituto, não se abrasa em santo
patriotismo quando sonha para o Brasil elevados feitos e o quer grande, unido, forte, reto,
próspero”.352 O amor à pátria serve de esteio para uma tripla temporalidade: é exemplar, serve
de guia ao presente e, ao mesmo tempo, é orientadora do futuro. Todos devem, embora haja
diversidade de formação, abraçar a causa patriótica com amor. Ser patriota é conhecer a verdade
em todos os sentidos: “se cometeu erros, é de seu interesse e dignidade saber quais foram, para
os emendar, ou para não cair outra vez neles”.353 Mais do que individual esse deve ser a
disposição temporal dos agentes sociais diante da sua pátria. Ama-se o passado, então, para que
os seus erros não perpetuem.
O geólogo e “amigo do Brasil” John Casper Branner não concebe o progresso a partir
do universo material que cerca os homens e as mulheres, mas, sim, a partir da dimensão
349
Idem, p. 361.
350
SANTOS, Discurso... op. cit., p. 800.
351
TORRES, Alberto. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXIV, parte II, 1911, p. 554.
352
GUIMARÃES, Artur. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXVII, parte II, 1904, p. 472.
353
GUIMARÃES, Discurso… op. cit., p. 473.
126
imaterial, espiritual, relacionada à constituição nacional e patriótica do povo. Para ele, não são
os edifícios novos, as avenidas largas, as ruas bem calçadas, a iluminação elétrica, os
incontáveis automóveis, tudo que é conhecido sob o nome de progresso, o mais importante.
Pelo contrário: “o espírito forte crescente de nacionalismo e de patriotismo brasileiro, de fé
iluminada e de confiança bem fundada no futuro deste grande país” está condicionado a forma
como os seus cidadãos amam o seu lugar de origem e de destino. Para ele, a ideia errônea de
que o progresso de uma nação é essencialmente material leva muitos indivíduos a abandonarem
os seus costumes para adotarem costumes estrangeiros. Discorda radicalmente dessa ideia, pois
desloca a essência dos conceitos de pátria e de nação. Necessariamente, cada nação tem as suas
próprias caraterísticas e é de se esperar, afirma o novo sócio, que o Brasil continue a ser o Brasil
e cada vez mais brasileiro e patriótico – cada vez mais amado integralmente.354
De acordo com Laudelino Freire, o Instituto Histórico é o abrigo seguro do patriotismo,
tão necessário ao tempo presente com suas “cristalinas fontes de instinto de nacionalidade”,
fator imprescindível para a completa integração que oferece a consciência de que o Brasil é dos
“seus filhos”. Mais: dos filhos que o amam.355 Ao que parece por sua fala, não são todos os
“filhos” de modo integral, mas tão somente aqueles que se submetem ao ideal patriótico
civilizador, sendo a pátria uma instância que marginaliza e separa.
A recuperação de futuros-passados patrióticos apontava para dois movimentos: um, que
a dimensão patriótica estava presente em nossa história, sendo necessário resgatá-la, e outro,
que essa dimensão era, ao mesmo tempo, produtora de uma cultura cívica no presente,
importante para o estabelecimento da ordem pública.
O amor patriótico é, tendo em vista o que foi assinalado, entrevisto como produto e
produtor de um modo específico de conceber a experiência histórica:
Foi o patriotismo quem deu-nos por pátria um país vastíssimo; quem formou
a independência política com regime constitucional em 1822; quem assegurou
a integridade dos povos do mundo sem a mácula da escravidão doméstica em
1888, e quem acaba de dar-nos o governo da democracia em 1889.356
Essa demanda pela difusão do patriotismo não deixa dúvidas acerca das expectativas de
colocar a história em movimento, projetando-a em um futuro em aberto, em que as dimensões
de exemplaridades vinculadas a esse sentimento devem instruir, mas a partir da condição da
354
BRANNER, John Casper. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVI, parte II, 1913, p. 512-13.
355
FREIRE, Laudelino. Discurso de posse. RIHGB, tomo 82, parte II, 1917, p. 745.
356
ARARIPE, Indicações, op. cit., p 289.
127
tomada de consciência de que se está experienciando uma nova temporalidade que deve ser
elaborada pari passu com a construção da nação.
É fundamental para o conhecimento dos “grandes homens” da nação, assevera André
Werneck, a observação do meio em que vivem em todas as suas condicionantes, ou seja, a
visualização dos recursos que contam para servir a nação, onde “aproveitando, pois, as forças
existentes, criando outras, e muitas, com material desequilibrado e heterogêneo, fazendo obra
duradoura e útil” criam e fortalecem os laços que os prendem uns aos outros, provocando a
solidariedade dos habitantes do mesmo território e dando origem ao amor da pátria.357 Os
“grandes homens” republicanos ao serem circunscritos em seu meio, superando os atavismo
deterministas, inventam modos de ser patrióticos.358
Para Werneck, a pátria representa, não é por acaso o recurso historiográfico da biografia
entre os sócios, os “servidores” a que deve a sua grandeza, os que sabem impor a nacionalidade
aos contemporâneos, quer dizer, os que usam do seu poder simbólico para o bem da liberdade,
da prosperidade, da indústria e para a grandeza moral e material do país. Através do
conhecimento do passado se pode julgar, para ele, o valor dos grandes homens da pátria, pois
esse registro se modula “com ânimo desprevenido, abandonando pequenos senões que são
comuns na natureza”.359 De todo modo, esses “grandes homens” só possuem esse estatuto,
admite, por terem amado e cultuado a pátria.
Esses grandes homens eram entendidos como sujeitos brancos, cristãos e membros da
elite política ou letrada.
Dessa maneira, Roquette-Pinto argumenta que o Brasil não é “inseparável”, mesmo com
diversidade de gentes com seus costumes diversos e línguas diferentes. O amor à pátria e às
tradições novamente é evocado: “(...) hão de ficar sempre irmanados se a sua união amorosa
for cimentada pelas tradições, agasalhadas na alma coletiva”.360
E o político e intelectual Alberto Torres assume que para homens e mulheres a imagem
da pátria reside na ideia da sociedade que ampara e que protege no abrigo da lei dos costumes,
357
WERNECK, Discurso... op. cit., p. 333.
358
Para uma análise dos óbices das teorias do meio cf. MURARI, Luciana. “Em guerra contra a natureza:
representações do conflito entre o homem e o meio no Brasil”. In: _____. Tudo o mais é paisagem. Representações
da natureza na cultura brasileira. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História Social,
Universidade de São Paulo, 2002. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-
24042007-111238/pt-br.php Acesso: 03 dez. 2020.
359
WERNECK, Discurso... op. cit., p. 334.
360
PINTO, Discurso... op. cit., p. 590.
128
na sorte da família e na garantia do futuro da prole. Na contemporaneidade a pátria garante,
acima de tudo, a segurança da ordem e do progresso.361
Vemos, então, que o amor pela pátria é a própria garantia de existência de uma sociedade
de tipo conservador – no passado, no presente e no futuro.
As palavras de Afonso Celso na recepção ao sócio Gastão Rush são sintomáticas para o
entendimento da pátria enquanto loci. Após afirmar a importância epistemológica de se
conjugar história e geografia, que é o objeto de análise privilegiado por Rush em seu discurso,
o orador destaca o “patriótico programa político e social” que o (re)conhecimento da paisagem
nacional proporciona aos leitores-cidadãos da República:
A noção de pátria como loci abrange tanto o reconhecimento amoroso da paisagem natal
quanto o sentimento de situar-se no tempo a partir das suas origens.363 Para o agremiado
Aurelino Leal: “É a consciência histórica do habitat, que ele aprendeu a amar através das
tradições ouvidas, na lareira dos avós encanecidos; das lendas que os velhos lhe ensinaram, das
superstições locais que lhe espalharam no cérebro, tudo a lhe afirmar a sua posição de
representante de outras gerações, que venera e imita”.364
Segundo Gentil de Assis Moura, a pátria relaciona-se ao ambiente: ao solo de origem
ancestral que oferece esteio à nacionalidade. Por esse motivo que a história não pode, em sua
acepção, se desinteressar pelo estudo dos impactos do território e do clima sobre a orientação
nacional. Cientificiza-se, para alguns sócios, a disposição sentimental diante da pátria. Deve-se
reconhecer o solo da pátria e buscar, em plenos sertões, quem está sofrendo a “agrura do mais
361
TORRES, Discurso... op. cit. p. 553.
362
CELSO, Afonso. Discurso em razão da recepção do sócio Gastão Rush. RIHGB, tomo 70, parte II, 1907, p.
748.
363
E Joana Duarte Bernardes nos deixa inteirados sobre as faces da noção de pátria. Neste caso enquanto loci:
“Sendo o lugar onde se nasce, sendo a paisagem, a terra que a vista alcança e cuja possibilidade de apreensão
denuncia uma marcação física do eu (por conseguinte, a emergência de um efeito aurático advindo da terra), e
uma de-marcação memorial que, pressupondo a distância temporal e (muitas vezes) geográfica, compreende a
presença de outros tornados patrícios - como uma fidelidade”. BERNARDES, Joana Duarte. O moderno do
antigo... op. cit., p. 255.
364
LEAL, Discurso... op. cit., p. 707.
129
completo desconforto”. Não se pode deixar de abordar o “influxo histórico” formador do ser
nacional e de se observar as “pegadas de nossos antepassados”, muito menos deixar de
vislumbrar “a fascinação das cenas que as paragens evocam, das aspirações que geram, como
que penetram no ar, não achando por certo que seja um elemento entranho neste meio”.365
Em suma, não se poderia deixar o(a) brasileiro(a) ser um estranho em sua própria pátria,
um desterrado em sua própria terra. A preocupação com o desterro, do não reconhecimento de
si, acompanha as preocupações dos sócios do Instituto no período. É justamente a partir de tal
preocupação que a ideia de pátria ganha força enquanto eixo diretor explicativo e formativo via
saber histórico. Estar no desterro significava, entre outras coisas, não se reconhecer
identitariamente, estar perdido em temporalidades destoantes, alienado pela alteridade do
Outro. Essa necessidade do recurso à pátria é mais do que apenas a menção ao solo de origem
– é uma referência que supera o sentimento de não pertencimento a um dado agregado cultural,
como se existisse um exílio em sua própria terra.
Martim Francisco Ribeiro de Andrada oferece o antídoto para a possível desorientação
de sentido que o sentimento de desterro tende a acarretar:
Pode-se admirar a magnificência das outras cidades, mas ninguém ama senão
a cidade onde nasceu. Verdade axiomática na natureza humana, esse amor é
indestrutível, é permanente em todos os estágios da existência, em todas as
idades, em todas as condições.366
Destacamos que Ribeiro de Andrada tomava a ideia de pátria como uma predisposição
antropológica do sujeito, ou seja, um dado próprio da natureza humana em sua ambição por
situar-se identitariamente a partir da sua origem, não apenas por intermédio de um lugar
geográfico, mas sentimental, no sentido de pertencimento afetivo para com as estruturas
simbólicas de um grupo humano específico e natalício. Lembrando que estabelecer um ponto
de origem patriótico significa silenciar trajetórias identitárias, patrióticas, que correm em
paralelo ao plano de sentido que se estabelece.
De acordo com Alberto Torres, as formas de veneração prendem-se ao passado, ao
apreço às “glorias de antanho” e ao culto à “memória dos avós” por força de um sentimento
que nada tem de comum com o misticismo ou com os cultos religiosos dos antigos. O
365
MOURA, Gentil de Assis. Discurso de posse. RIHGB, tomo 87, parte II, 1920, p. 428.
366
ANDRADA, Discurso... op. cit., p. 387.
130
reconhecimento da paisagem natal dilata-se sentimentalmente, e nesse sentido realoca o homem
junto a desordem367 do tempo, e vai ao horizonte da “terra do berço”, onde encontramos o
Canto dos pássaros e o perfume das flores que conhecemos. Mas as nossas
almas ligam-se, na sociedade, por força dos costumes, das leis, dos interesses,
das relações de comércio, mais íntimas da pátria, e, principalmente, pela
sensação, de apoio e mutualidade, da vasta mutualidade vizinhança moral –
desenvolvimento do sentimento doméstico – que nele se inspira e dele tira
forças. Este é o sentimento dinâmico, o sentimento propulsor que nos dirige,
apontando-nos o futuro, isto é, para a sorte da prole. A pátria é, em sua última
essência, o lar da prole. O lar, os penates do homem moderno, estão ligados a
imortalidade que tem na terra, na perpetuidade da família.368
Nada mais lógico, por conseguinte, nem mais consentâneo com os próprios
ensinamentos da história, de que o elevadíssimo apreço em que temos as
nossas origens ibéricas, e o carinhoso empenho que pomos em que se
transmitam às populações futuras desta esplêndida região sul-americana o
cunho de nossa nacionalidade e o acervo de nossas tradições”.369
367
O diagnóstico dado não por poucos intelectuais da Primeira República aponta para a impressão de uma espécie
de “desordem no tempo” da nação, como se houvesse um descompasso, no plano da ordem histórica, entre o que
se quer ou pode ser e o que de fato é, Cf. NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história: a viagem, a memória, o
ensaio. Sobre Casa Grande & Senzala e a representação do passado. Tese (Doutorado em História) – Programa de
Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. Disponível em:
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/13823 Acesso: 03 dez. 2020.
368
TORRES, Discurso… op. cit., p. 555-556.
369
JUNIOR, Discurso… op. cit., p.649.
370
Idem, p.649.
371
Ibidem, p.650.
131
O Instituto era considerado, nesse sentido, um dos detentores do patrimônio histórico-
cultural nacional de tipo colonizador, e essa tarefa não era de pequena envergadura, posto que
sem os operosos trabalhos dos seus sócios existia a possibilidade, sobretudo pela velocidade da
passagem do tempo naquela contemporaneidade, do seu desaparecimento.
A odisseia brasileira é resumida da seguinte forma: defesa do território dos invasores
estrangeiros no período colonial e assimilação do negro e do indígena ao influxo português,
suspendendo os estigmas da degeneração372 advindos da noção de raça. Se deseja a superação
“desse prejuízo das raças a que o verniz do gobinismo tolamente emprestava máscara de ciência
(...)”. Essas disposições históricas marcam a identidade nacional e alçam o Brasil à categoria
de sociedade supostamente civilizada: ele passa a ser concebido como um incidente do passado,
fruto do acaso e sem o determinismo das filosofias da história e de certos evolucionismos ou a
pecha do providencialismo. O passado nacional, essa herança e esse patrimônio, não é
traumático para Ribeiro de Andrada, porém é positivado sem grandes conflitos, sobretudo
quando observado pela lógica identitária: “nossas prendas avultam obscurecendo nossos
defeitos”, e o “nosso passado, adorna-o um exame de singularidades boas”.373
Basílio de Magalhães mobiliza o regime historiográfico nacionalista-patriótico. Para se
evitar as desterro, a sensação de efemeridade das coisas mundanas, faz-se necessário o
conhecimento do ser da brasilidade em todos os seus sentidos, passando desde o domínio étnico
e chegando mesmo às atividades de melhoramento social e político. O nacionalismo pregado
pelo autor está relacionado ao desejo de ver o país se “peculiarizar”. É necessário “tomarmos
forma própria, como todo povo que quer viver digna e cumpridamente ao consórcio
universal”.374 É possível identificar-se com os legados da cultura ocidental, admirar o mundo
greco-romano e se maravilhar com as civilizações levantinas. Tudo isso é possível, mas só a
partir do momento que tivermos, em última medida, “esgotado a matéria prima nacional, e
como uma distração de viageiros ricos e ociosos”.375
Nesse sentido, se passa a pensar a interação de brasileiras e de brasileiros com o
substrato nacional através da forma de culto: “(...) só o culto acendrado de nossas tradições
pode tonificar a geração de agora, amolentada, além do mais, por esta desoladora crise
proteiforme, que a alquebra e apavora simultaneamente”376.
372
Sobre a recepção das teorias científicas raciológicas no Brasil e seus usos por intelectuais os mais diversos ver
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil – 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
373
ANDRADA, Discurso... op. cit., p. 385.
374
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 597.
375
Idem, p. 597.
376
Ibidem, p. 599.
132
Culto e cultivo aparecem correlatamente: cultivar, ou seja, dar vida ao sentimento
patriótico. Esse movimento, ou disposição, era uma verdadeira construção, ainda valendo-nos
da ideia de culto como cultivo e, também, como veneração. O que implicava, também, uma
depuração daquilo que pode ou não pode ser da ordem patriótica. Esse gestual leva a largos
traços de ufanismo. Diante da desordem do tempo o remédio do amor à pátria, do avivamento
nacionalista, parecia ser um caminho para o ordenamento experiencial e para a transcendência
da sensação de desterro. “Precisamos desse culto, como de um remédio urgente e eficaz”377.
O regime historiográfico nacionalista-patriótico, essa formação discursiva ou
paradigmática, tem como eixo uma máxima historiográfica formulada por Eduardo Prado, qual
seja, a história “é uma escola de patriotismo e de dignidade cívica”. 378 E o sociólogo e
historiador Oliveira Vianna tem uma concepção contemporânea de pátria, que significa a terra
dos ancestrais ou a terra dos pais, o mundo em que vivem os antepassados, ou o cultivo do solo
a partir de toda a espiritualidade que o termo confere:
(...) centro da grei, com as tradições que eles criaram, com a civilização que
fundaram, com as dores que sofreram, com as alegrias que tiveram, com as
glórias e triunfos que alcançaram. Mas, se o novo patriotismo renega o
passado, renega tudo: logo, renega a pátria – e será preciso forjar com os
materiais da nossa língua, um novo vocabulário para exprimir o patriotismo
desses patriotas sem pátria379
Essa forma de culto do passado, de admiração por ele, como resposta ao sentimento de
crise da ordem do tempo e do sentimento de desterro, não implica em um retorno ao passado
por ele mesmo, ou desdém com o presente, e indiferença para com o futuro. Essa admiração
tinha, então, a função de prestar homenagem aos agentes sociais do passado, fazendo os
contemporâneos herdeiros de uma pátria. Estes possuem exemplos a seguir, pois naquele
contexto a história, ao menos como saber, ainda ensina, é magistra vitae, o que abre condições
para os patriotas do futuro construírem a nação.
A luta contra a ruína380, ou contra o sentimento de desterro, movimentava, também, o
topos do amor pátrio. Ela é o antídoto para os males nacionais. “O mal de muitas almas
377
Ibidem, p. 598.
378
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 450.
379
Idem, p. 450.
380
Para uma teorização sobre a ideia de ruína a partir da obra de Euclides da Cunha ver HARDMAN, Francisco
F. Brutalidade antiga: sobre história e ruína em Euclides da Cunha. Estudos avançados, 10, 26, 1996, pp. 291-310.
Disponível em: https://cutt.ly/ucLLdwS Acesso: 08 abr. 2021. Cabe salientar que há duas formas de se conceber
as ruinas. A primeira, de matriz romântica, insere as ruinas naquilo que é chamado de antiguidades nacionais,
servindo, então, como fato de contemplação. Porém, há o sentimento de arruinamento. Ele parte desta lógica:
aquilo que não é antes de ser.
133
brasileiras é o de se acharem desprendidas do passado e desenraizadas da terra”.381 Na intuição
de Eduardo Prado, o Brasil se compõe por sujeitos desnacionalizados, isto é, eles se constroem
identitariamente a partir de signos de sentido emanados dos Outros.
A pátria é visualizada por Afonso Arinos como elemento de coesão social - material e
imaterialmente. Uma unidade invisível que forma a imaginação do nacional:
Mas, essa unidade, essa coesão, de cuja realidade material poderia nascer e
vibrar a alma brasileira, como a harmonia imaterial e divina resulta e nasce da
união das peças grosseiras de uma lira, segundo a imagem Simnies, no seu
diálogo com Sócrates, referido no Fédon, de Platão; essa unidade, condição
indispensável a que o povo brasileiro ocupe lugar no mundo, está ameaçada
todos os dias, não pelos estrangeiros, mas por nós mesmos.382
Na pátria está a origem das origens. É um sentimento que congrega o culto dos
antepassados e o reconhecimento pelos “serviços prestados”. É a gratidão exemplar e a
conservação da raça, da religião, da língua - “todas as qualidades de permanência”.383 A
colonialidade do poder é explícita nessas variantes do significado de pátria.
Nesse sentido, é tempo, pondera Afonso Arinos, de cultivar elementos próprios da
pátria, como por exemplo a “constância”, o “respeito pelas causas permanentes”, “o amor pelas
causas definitivas”, “a percepção do instinto de estabilidade”. Sem essas qualidades a ordem
social está ameaçada. Além disso, sem elas os povos se dispersam, se pulverizam ou entram em
estado de decadência absoluta. “No meio desse fermento de desagregação, vós sereis como as
amphyctionias gregas, meus senhores, vós tereis essa alta missão social e política de velar pela
tradição e o culto comuns”.384
Para Artur Pinto Rocha, é no seio da história pátria, como se fosse um verdadeiro
“relicário”, que o pensamento fomenta laços de coesão entre os agentes históricos, os fazendo
viver em sociedade e partilhar os mesmos vínculos; oferecendo, assim, condições do humano
transcender o desterro, próprio das formações nacionais no movimento conflitante de
identidade e de alteridade a que passam no momento de avaliar o seu pecúlio patriótico.385
Pátria e nacionalismo
381
PRADO, Discurso... op. cit., p. 239.
382
FRANCO, Discurso... op. cit., p. 217.
383
Idem, p. 217.
384
Ibidem, p. 219.
385
ROCHA, Artur Pinto. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVIII, tomo II, 1915, p. 676.
134
“período de intensa reafirmação nacionalista”, no qual se reconciliam velhos(as) e moços(as),
revolucionários(as) e conservadores(as), militares e civis. Há uma bruma densa e agônica que
sinaliza que um mundo acabou e que algo de desconhecido está por vir, “mas o veículo comum
de todas as reformas possíveis ou imagináveis era o nacionalismo”. E tal atmosfera nacionalista
não passava desapercebida aos olhos dos sócios do IHGB.386 O nacionalismo não era apenas
uma fórmula política, mas um princípio organizador que justificava e ao mesmo tempo
orientava as investigações daquela antiga agremiação carioca.
Assim, o conhecimento do passado não se apresentava, para alguns dos sócios do
Instituto, como um mero atrativo de colecionador ou constituído por cenas que satisfaziam a
curiosidade dos leitores. Não era apenas de “interesse paleológico”: ele era entendido como
uma escola de educação cívica - fórmula incomparável de desenvolvimento do nacionalismo387,
onde se poderia, no limite, delimitar a própria consciência coletiva. Considerava-se que por
meio dessa forma específica de abordar o tempo localizavam-se as melhores condições de
emular e de conferir credibilidade ao civismo, surgindo daí a força para enfrentar os problemas
contemporâneos mais urgentes. É o que se pode chamar, pois, de “verdadeira moral da história”,
segundo Afrânio Peixoto. Há, portanto, a promoção de um compromisso com a esfera pública,
em que se disponibiliza elaborações simbólicas, identitárias e de sentido para a ordem
republicana.388 O posicionamento de Peixoto, que congrega “civismo patriótico” e
“nacionalismo”, também não é algo novo na vida intelectual do Ocidente.
Em 1882, o historiador francês Ernest Renan, uma referência corrente na atmosfera
intelectual brasileira na Primeira República, também formaliza essa aproximação em uma
famosa aula na Sorbonne. Para ele, a nação é “um princípio espiritual”, formado por estes
atributos: “a raça, a língua, os interesses, a afinidade religiosa, a geografia, as necessidades
militares”. Nessa ordem de fatores há dois caminhos que o historiador deve observar para se
compreender o sentimento nacional:
386
MARTINS, Wilson. Pátria, latejo em ti. In: _____; História da inteligência brasileira (1915-1933). Vol. VI.
São Paulo: Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1978.
387
As ideias de nacionalismo dos sócios do Instituto podem ser melhor entendidas a partir da clássica formulação
defendida por Benedict Anderson: uma união entre todos os cidadãos em torno de um sentimento, de cariz
antropológico, compartilhado. No nacionalismo moderno a sociedade não é mais imaginada a partir de uma
imagem central legitimada por um poder sobrenatural, porém, se organiza em torno do sentimento de consciência
nacional. Ele ressalta a importância da linguagem comum para o nacionalismo, ou seja, os cidadãos partilham
signos intersubjetivamente como forma de evidenciar a fidelidade à causa nacional. Em suma, o nacionalismo é
uma identidade compartilhada, soberana e finita, a qual os cidadãos projetam toda a sorte de sacrifícios.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
388
Para uma análise que concretiza os argumentos de Afrânio Peixoto conferir GOMES, Angela de Castro.
República, educação cívica e história pátria: Brasil e Portugal. Anais do XXV Seminário Nacional de História.
Fortaleza: UFC, 2009. Disponível em: https://cutt.ly/RcLGk5J Acesso: 08 abr. 2021.
135
(..) a posse em comum de um rico legado de lembranças; a outra, o
consentimento atual, o desejo de viver juntos, a vontade de continuar a valer
a herança que recebemos indivisa. (...) A nação, como o indivíduo, é o
resultado de um longo passado de esforços, de sacrifícios e de devoções. O
culto dos ancestrais é, entre todos, o mais legítimo; os ancestrais fizeram de
nós o que somos. Um passado heroico, grandes homens, glória (refiro-me à
verdadeira), eis o capital social sobre o qual assenta-se uma ideia nacional.
Ter glórias comuns no passado, uma vontade comum no presente; ter feito
grandes coisas juntos, querer continuar a fazê-las, eis as condições essenciais
para ser um povo. [...] No passado, uma herança de glória e lamentos a ser
partilhada, no futuro, um mesmo programa a ser realizado (...). Uma nação é,
pois, uma grande solidariedade, constituída pelo sentimento dos sacrifícios
que fizemos e daqueles que ainda estamos dispostos a fazer. Ela supõe um
passado; resume-se, porém, no presente, por um fato tangível: o
consentimento, o desejo claramente expresso de continuar a vida em
comum.389
Vemos que a ideia de nação se vincula à de pátria, pelo fato de exigir um território, real
ou imaginário, e uma população. Para a nação se afirmar como um “nós”, ela deve narrar-se,
pois, como um destino social ditado pelas origens. A pátria é “(...) o alfa fundamental de todas
as filiações étnico-culturais e políticas, matriz que age como um apelo, ou melhor, como uma
herança, cujo dever de transmissibilidade acena para contornos escatológicos”.390 A nação é
ôntica e cronologicamente posterior à pátria. O que não se percebe, nessa operação, é que o
estabelecimento das origens implica, necessariamente, um uso político do passado.
De qualquer forma é preciso, para Afrânio Peixoto, nacionalizar a nação,
proporcionando uma visada social sobre ela em sua dimensão de pátria. Ressalta-se, nesse
movimento, os trânsitos complementares entre cultura e civilização. É suspensa a noção prévia
de vícios e de virtudes e elabora-se o nacional (o seu ser) sem o espectro do Outro lhe
conformando e estigmatizando. Em suma, busca-se o rompimento com todas as formas e com
todos os tipos de estereótipos projetados ao Brasil e aos brasileiros391. Ao mesmo tempo que
internamente a imagem construída para combater os estereótipos externos segmenta grupos
sociais diferenciais, estereotipando-os. Argumenta o estudioso:
389
RENAN, Ernest. O que é uma nação? Apud: ROUANET, Maria Helena (org.). Nacionalidade em questão. Rio
de Janeiro: UERJ, 1997, p. 38-40.
390
CATROGA, Pátria e nação, op. cit., p. 23.
391
Tania Regina de Luca também entende, em seu estudo sobre a Revista do Brasil, que no contexto da Primeira
República há, por parte dos intelectuais, uma revalorização do passado nacional no sentido de redescobri-lo sem
o filtro estrangeiro. “A história, a geografia, a língua, a produção literária, o sistema político, as características
antropológicas da população passaram a ser esmiuçados num esforço que, segundo seus mentores, permitiria aos
brasileiros assenhorarem-se efetivamente do país”. LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico
para a (n)ação. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 41.
136
Já no-los descreveram, sentados indolentemente sobre os calcanhares, à porta
do rancho, pitando descalços o seu cigarro de palha, cuspindo para o lado, o
olhar baço que mira sem ver, quase em modorra, tanto sem ação sem
pensamento... Ou então, em uma arrancada, sobre alazão, por montes e vales,
cerrados e caatingas, campeando o barbatão, dias de esforço e de luta heroica,
apenas com um punhado de paçoca e um gole de água. Tiram daí conclusões
definitivas sobre o Brasil todo, e de sempre, preguiçoso e inerte para uns,
sóbrios e sofredores para outros392
O remédio para essa situação encontrava-se no elemento patriótico, e ele deve ser
requerido no sentido do fortalecimento da identidade nacional. A ideia de pátria associa-se,
392
PEIXOTO, Discurso... op. cit., p. 506.
393
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 598.
394
Idem, p. 600.
137
como vimos, a de civismo em Basílio de Magalhães. Uma pátria congrega, no limite, os
“impulsos da própria sinergia, [prossegue] a sua rota de paz em demanda do progresso e do
porvir, sempre livre, sempre unida, sempre grande e sempre forte”.395 A pátria é, nesse sentido,
uma organização sócio-simbólica bastante eficiente, agindo ideologicamente no
estabelecimento do novo regime, que a requer como civismo.
No cerimonial de posse do presidente americano Theodor Roosevelt a questão da
temporalidade das Américas naquele contexto historiográfico e político foi colocada em relevo,
bem como as diretrizes patrióticas de reforço das identidades nacionais dos países americanos.
Advogava Roosevelt, com exceções mínimas, que todas as nações americanas, incluindo o
Brasil, possuem um legado comum da “civilização ocidental”, mas em contraste com as velhas
nações divergentes belicamente da Europa possuem substancialmente formas análogas de
governo e paralelos de ideais, de religião, de passado e de cultura.396 São, portanto, os elementos
patrióticos que agem junto à estruturação de uma nacionalidade, dando a ela identidade e a
possibilidade da compreensão da alteridade; do Outro como construção social e cultural, o que
auxilia na resolução de todo e qualquer desconcerto entre comunidades imaginadas.
Para Oliveira Vianna, o que a observação atenta dos países com “efervescência
patriótica” demonstra é que o orgulho nacionalista do passado corresponde, pari passu, ao
orgulho com relação as expectativas de futuro que se elaboram no presente. Esse movimento
permite a fuga de estereótipos dados pelos Outros e a revivência daquilo que o ser nacional
possui de forma sui generis. Essa abordagem oferece, em resumo, o culto nacional do passado
enquanto instância “sagrada”, mesmo que pareça em um segundo momento uma
essencialização. E reforça a argumentação:
Toda marcha impetuosa para o futuro busca sempre as razões de seu ritmo na
admiração das grandezas ancestrais. Nunca como agora, o sentimento
nacional dos grandes e pequenos povos se mostrou mais robusto e militante;
mas nunca, como agora, o culto do passado, o orgulho do passado, o
sentimento do passado se mostraram também mais ardentes, mais vivazes,
mais conscientes, mais profundos. Todos os povos como que se voltam sobre
si mesmos, procurando, nas suas tradições e na sua história, o segredo da sua
força, o sentimento da sua unidade, a revelação do seu futuro.397
Não era uma volta ao passado por ele mesmo o que estava em jogo para esses sujeitos,
mas uma forma de buscar no pretérito, tal qual a história mestra da vida prescreve
395
Ibidem, p. 600.
396
ROOSEVELT, Theodor. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVI, parte II, 1913, p. 677.
397
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 452.
138
modernamente, exemplos que orientassem o presente e projetassem um futuro em aberto. Isso
passava, necessariamente, por políticas da memória compassadas com o(s) republicanismo(s).
Tendo isso em vista, a pátria, na visão de Afrânio Peixoto, também se confundia com a
tarefa do civismo, sendo uma escola de patriotismo. O civismo modelarmente recuperava os
ícones do passado que se querem, agora, republicanos. Grandes homens e grandes feitos são
projetados ao futuro. É uma profissão de fé essa atividade: um caminho para a educação
nacional. No seu labor diligente, as atividades do IHGB ofereciam um arquivo de civismo. As
suas “memórias” passavam a ser partes de um quebra-cabeça cuja construção levaria ao
entendimento da nacionalidade. É “um batismo civilizado, na promessa milagrosa dos seus
primeiros passos, para essa maravilha que hão de ver os pósteros assombrados”.398
De acordo com Roquette-Pinto, “o Brasil precisa do nosso esforço para a sua
nacionalização definitiva”.399 E fala nesse contexto do tema da “grande pátria”, que se
diferencia de imperialismo e aparece como a instância garantidora da identidade de todos os
seguimentos sociais através da ideia de nacionalismo.
Do todo ao fragmento a pátria, nos discursos pronunciados na instituição, é desejada
através do congraçamento das suas partes, “qual uma grande família cujos filhos prosperam nos
seus lares, trabalhando pelo bem comum e ligados pelo mesmo intento”.400 O problema é que
esse mosaico que abrange a noção de pátria conta com peças autônomas ou de outro tabuleiro,
dito de outra forma, o ideário patriótico autocentrado pode se dirigir para as periferias do país
em um processo neo-civilizador.
O regime historiográfico nacionalista-patriótico, estudado através do Instituto,
antecipa cronologicamente as dimensões próprias daquilo que Christian Lynch chama de
“paradigma nacionalista periférico”. A emergência desse paradigma sugere uma mudança na
maneira de conceber o lugar específico dos países periféricos no mundo, bem como a maneira
pela qual se afere a “qualidade” da sua produção cultural. Conforme ele pontua: a
398
PEIXOTO, Discurso... op. cit., p. 504.
399
PINTO, Discurso... op. cit., p. 590.
400
Idem, p. 590.
401
LYNCH, Christian. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da
condição periférica (1880-1970). Dados, Rio de Janeiro, vol. 56, n. 4, 2013, p. 745. Disponível em:
https://cutt.ly/1cLM3KK Acesso: 08 abr. 2021.
139
Mesmo assim, é imperioso dizer, no âmbito local se recria as disposições simbólicas
de domínio entre centro e periferia.
Há em algumas falas dos sócios o desejo de nacionalizar o Brasil, de mostrar ao mundo
civilizado as características marcantes da pátria. Existe um passado já estudado pelas gerações
anteriores, porém na República há, para alguns estudiosos, o reclame por uma pátria que esteja
desvinculada das dimensões ocidentalizantes que marcam a sua construção no século XIX, para
mostrar ao Brasil o que há de brasileiro em nosso país. O remetente discursivo sempre é a pátria,
instância que supera o Estado-nação e a própria ideia de sociedade, destinos manifestos do
discurso histórico no século anterior.
Roquette-Pinto esclarece a sua posição intelectual: “À medida que os anos vão chegando
o que o entusiasmo contemplativo das primeiras idades se vai transformando, sinto cada vez
mais que o Brasil precisa ser conhecido e nacionalizado”.402 Acreditamos, nesse sentido, que o
patriotismo seja uma espécie de pêndulo entre centro e periferia. Além disso, havia muito o que
ser estudado na história do Brasil, não sendo uma história fechada sobre si mesma.403
Esses dois vetores se aproximam dialogicamente: nacionalização da pátria e
conhecimento mais aprofundado da mesma: “O que nos falta é conhecer o que se tem
descoberto e conhecido”.404 Então, esses elementos conjugam-se um ao outro em forma de
desejo historiográfico: “Abra-se o melhor mapa do Brasil; por pouco que se tenha andado pelas
terras do colosso verse-a quantas coisas faltam nessa carta para que ela possa orientar um
naturalista, um industrial, um comerciante ou um estadista”.405
Os analistas da situação nacional não poderiam se esquecer das artimanhas do meio,
no sentido de singularização identitária territorial. A teoria do clima está presente no
pensamento de Afrânio Peixoto por ser uma fórmula invisível que condiciona os aspectos
nacionais. Mas é por converter tão bem a natureza, em uma direção contrária à bastante
difundida teoria de Buckle, que se “enche de brio” o ser nacional. Para o autor, é premente
redescobrir o Brasil com toda a aparelhagem científico-historiográfica disponível. É pátria
enquanto desvelamento.
Enquanto isso, até mesmo uma periodização temático-identitária foi formulada por
Ribeiro de Andrada para criar horizontes de sentido à experiência histórica brasileira. Baseada
402
PINTO, Discurso... op. cit., p. 588.
403
“Ao mesmo tempo, o campo de estudos históricos encontrava-se em plena formação, exigindo certa autonomia
em relação a outros tipos de estudo; estabelecendo as regras para uma historiografia cientificamente orientada e
impondo um ideal cívico-patriótico com o qual aqueles que escreviam a história deveriam se identificar”.
GONTIJO, Historiografia e ensino de história... op. cit., 2006.
404
PINTO, Discurso... op. cit., p. 588.
405
Idem, p. 588.
140
nas idades do país, ele propôs um esquema formativo em que os elementos patrióticos
emergiam como condição para a identificação da nacionalidade. Interessante sublinhar que a
ideia de história pátria possuía a característica de estar acima dos interesses políticos de cada
época e dos regimes instaurados. A história pátria podia ter a função de criar distância histórica
diante do passado português, não no sentido de negação absoluta de um passado que já foi
partilhado, mas, sim, em termos de ajustes de contas sem litígios: “O Brasil já é alguém de valor
iniludível na família dos povos. Licitamente, generosamente ajustou suas contas ao deixar o
teto paterno”.406 Em sua infância, mas já nos primeiros rasgos de soberania, derrotou o invasor
holandês; a Batalha dos Guararapes foi a sua puberdade; a maioridade veio com o Ipiranga; a
Regência representava os desencontros de quem se faz adulto; o Segundo Reinado o momento
do juízo definitivo; a participação nas convenções de paz em Haia significava o momento exato
em que o Brasil se fazia merecedor de estampar o status de nação ilustrada diante da civilização.
Temos, ainda, o nacionalismo patriótico de Alfredo Pinto Vieira Melo que procura não
induzir hostilidade aos de “outras terras” ou de outros continentes, pois podem colaborar na
grande obra do dito progresso brasileiro. Porém, Melo combate o “cosmopolitismo”, que se
infiltra na vida das nações e que conduz ao “comunismo” negador da noção de pátria. O
nacionalismo defendido por Melo se moldava às preocupações locais.
Era uma concepção de federalismo político como símbolo sagrado da união indissolúvel
da pátria, na qual há o vínculo comum que estreita a solidariedade entre os Estados, ou seja,
algo absolutamente conveniente para a conjuntura político-social da Primeira República e que
afastava os detratores da carta de 1891. Essa ideia consistia na defesa da soberania perante
qualquer outra nação, na prática confiante da justiça como ideal supremo de força moral, no
sentimento de confraternização, na educação cívica da mocidade; tudo isso para não deixar o
país ser absorvido pela indiferença cosmopolita que assombrava as “grandes nações”.407
Então, a história pode seguir, conforme quer Melo, a sugestão de Robertson, qual seja,
de acompanhar o desenvolvimento e a constituição das nacionalidades: devendo assinalar, em
última medida, as modificações efetuadas na legislação, nos usos e nos costumes, na política -
em tudo aquilo que concorresse para o aperfeiçoamento do sentimento patriótico e das
instituições.408 Era a concepção, como pode ser entrevisto, moderna de história.
Além do mais, ela pode ser também, afirma Olegário Herculano, próxima da “doutrina
de Guizot”: o estudo dos fenômenos sociais que diretamente atuam sobre a vida da pátria para
406
ANDRADA, Discurso op. cit., p. 386.
407
MELO, Alfredo Pinto Vieira. Discurso de posse. RIHGB, tomo 85, parte II, 1919, p. 349-50.
408
MELO, Discurso... op. cit. p. 350.
141
dali retirar ensinamentos que circunscrevem, então, o Estado e a sociedade, tanto física quanto
moralmente.409 Era o magistério da história. Ou seja: se desejava efetivar um movimento no
plano do devir histórico que cria e recria o nacional, amparado por uma base patriótica.
409
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 428.
142
Capítulo 4 - Historia magistra vitae? O aprendizado da história no IHGB
410
SANTOS, Discurso... op. cit., p. 800.
411
Michel Foucault, em sua aula no Collège de France A ordem do discurso, afirma que uma disciplina pode ser
definida da seguinte maneira: “um domínio de objetos, um conjunto de métodos e um corpus de proposições” que
passam a ser considerados legítimos, com valoração de verdade, conformando certas regras, técnicas e
instrumentos conhecidos. De algum modo, esses instrumentos são compartilhados por determinados grupos,
coletivos de pensamento, por intermédio de um jogo dinâmico de consensos e de dissensos. Em outra oportunidade,
esclarece o conceito de disciplina: “conjunto de elementos (objetos, tipos de formação, conceitos e escolhas
teóricas) a partir de uma única mesma positividade, no campo de uma formação discursiva unitária”. Todo esse
aparato de saber, de formas de prover inteligibilidade ao mundo fenomênico, fica à disposição daquele que queira
dela se valer epistêmicamente. A validação dos conhecimentos inscritos em uma disciplina não está vinculada a
nenhum autor em especial, mas, sim, a uma comunidade discursiva historicamente ambientada. Cf. FOUCAULT,
Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Editora Loyola, 2007, p. 30; FLECK, Ludwik. Consequências para a
teoria do conhecimento... Op. cit., 2010; FOUCAULT, Michel. Saber, historia y discurso. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: Prometeo Libros, 2015, p. 86.
412
Rodrigo Turin analisa a recepção dos antigos, ou da antiguidade clássica, nas duas primeiras décadas de
funcionamento do IHGB, momento que coexistiam os modelos antigos e modernos de história. “De todo modo,
longe de ser algo naturalizado, porque ainda a ser construída, a elaboração de uma escrita moderna da história
nacional não deixaria de coexistir e de confrontar-se, de diferentes formas e com sentidos diversos, com a
autoridade da tradição clássica”. TURIN, Rodrigo. “Os antigos e a nação: algumas reflexões sobre os usos da
antiguidade clássica no IHGB (1840-1860). Revue électronique du CRH. v. 7, 2001, p. 1. Disponível em:
https://journals.openedition.org/acrh/3748 Acesso: 08 abr. 2021. O autor reitera que não há um único uso possível,
ou somente um eixo de recepção, dos antigos entre 1840 e 1860. E recupera estes 5 horizontes compreensivos
sobre os antigos: 1) críticas à autoridade dos antigos; 2) seu uso como emulação; 3) os antigos enquanto figuras
de autoridade; 4) seu uso comparado com os indígenas. 5) seu uso para heroicizar vultos da história brasileira.
413
A historiadora Angela de Castro Gomes sintetiza o principal eixo das discussões fomentadas por aqueles sujeitos
que se arrogam historiadores, e que são percebidos como tais, naquela sociedade letrada. De um lado há as
“demandas da conjuntura política, que se traduzem em pontos substantivos a serem contemplados na narrativa da
história do Brasil: datas, vultos, eventos, explicações, etc. Mas eles também envolviam toda uma discussão sobre
a própria natureza e características do saber histórico, remetendo-o ao tipo de produção que estava sendo
consideradas como científica”. GOMES, Angela de Castro. A república... Op. cit., p. 25.
143
Talvez o que possa ser assinalado de imediato é que o saber histórico elaborado na
Primeira República ainda traz em seu cerne resíduos das disputas epistêmicas entre antigos e
modernos, e talvez esteja aí uma das suas especificidades. Há momentos de coadunação
justaposta entre os pares. Por vezes encontramos, dependendo do pecúlio intelectual de
determinado sócio da agremiação, maior pendor para os modernos ou maior simpatia pelos
antigos. Mas o que vale ressaltar é que o par estava lá, e é a partir dessa dinâmica dialógica que
encontramos certas dimensões próprias da história no contexto abordado.414
Temístocles Cezar argumenta o seguinte:
Um dos topos disciplinares que acompanhava o saber histórico no século XIX e primeira
metade do seguinte, e um dos principais fatores das contendas que definiam as balizas de um
saber histórico tido como moderno no Brasil, é o que destacava o elemento da cientificidade.416
No entanto, em um movimento de coadunação justaposta, a exigência de um fim pedagógico
para a história, ou seja, que de algum modo ela possa intervir modelarmente junto à sociedade
não deixava de apontar para as heranças da historia magistra vitae417 no interior dessa
conjuntura historiográfica. Dito de outra forma: a demanda por cientificização não invalida, na
maioria dos casos, o aspecto pedagógico da história - pelo menos enquanto saber. Os
referenciais clássicos ainda se apresentavam atuantes, mesmo em estado de rarefação, nas
414
Francisco Murari realiza um exercício de aproximação e de distanciamento entre antigos e modernos em que
observa o valor pedagógico da história alcançar o século XX, como no caso Hannah Arendt. “Por essa fórmula
retórica de uma percepção de visada direta sobre o passado antigo Hannah Arendt condensa o anelo de um
refrigério que alivie, se não cure, o pathos de seu tempo”. MURARI, Francisco. O fardo e o fio: na contramão da
procissão historiográfica. História da historiografia, n, 15, 2014, p. 84. Disponível em: https://cutt.ly/LcL7AFB
Acesso: 08 abr. 2021.
415
CEZAR, Temístocles. Lições sobre a escrita da história: as primeiras escolhas do IHGB. In: PEREIRA DAS
NEVES, Lucia Maria Bastos (et al). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2011,
p. 117-118.
416
Ver IUMATTI, Paulo Teixeira; VELLOZO, Júlio Cézar de Oliveira. Conhecimento, política e instituições no
Brasil (1889 – 1934). Revue Pluridisiscplinaire du Monde Lusophone, n. 2, pp. 1-72, 2014; TURIN, Rodrigo. Uma
nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista. História da historiografia, n. 2, 2009, pp. 12-28.
Disponível em: https://cutt.ly/zcZmlKZ Acesso: 08 abr. 2021.
417
Jörn Rüsen nos explica essa constituição exemplar de sentido: “A história ensina, a partir de inúmeros
acontecimentos do passado que transmite, regras gerais do agir. A memória histórica volta-se para os conteúdos da
experiência do passado que representam, como casos concretos de mudanças no tempo (no mais das vezes por
ações intencionais), regras ou princípios tomados como válidos para toda mudança no tempo e para o agir humano
que nela ocorre”. RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, p. 51.
144
reflexões dos sócios. Esses dois estoques epistêmicos conviviam, reforçando a argumentação,
em um processo de tensão não totalmente excludente ou diametralmente oposto.418
Tanto nos discursos proferidos nos salões da agremiação quanto nas elaborações
prescritivas acerca do melhor modo de estruturar a história enquanto saber estabelecido, o que
o leitor encontrava eram constantes menções à antiguidade e à questão da moralidade do agir
humano; citações aos seus historiadores, bem como as formas como elaboravam a história, as
quais eram mobilizadas como contraponto, ou como fatores essenciais, para a prática
historiográfica dita moderna.
O que o diálogo epistêmico entre antigos e modernos apontava para a escrita da história
na República era, entre outras coisas, a tentativa de encontrar uma abertura de conhecimento
mais apropriada face aos parâmetros protocolares exigidos pelos novos regimes historiográficos
em elaboração e em circulação no período. Mas isso significava que não é de todo contraditório
o acoplamento dos elementos do par, havendo distanciamentos e aproximações, mesmo que
grande parte dos sócios mobilizasse o repertório clássico para legitimar um novo ethos para o
historiador, sobretudo, a partir do da retórica cientificista, abrangendo todo o horizonte de
transformação pós-evolucionista.
O visconde de Ouro Preto movimenta, por exemplo, em sua reflexão tanto os preceitos
antigos quanto os preceitos modernos de história. Segundo suas palavras, a história não é
somente, recobrando Cícero, a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a memória viva, a
mestra da vida419, a mensageira do passado - adjetivações que compreendem o topos antigo.
Ela é, além do mais, amiga dos oprimidos. Em suma: a grande justiceira.420 Nessa perspectiva
de denúncia, ela torna o passado adjetivo e não substantivo, ou seja, a própria história, pela via
418
Para um estudo sobre a construção historiográfica da antiguidade face a identidade nacional brasileira no
começo do século XX a partir dos compêndios didáticos de história ver TAVARES, André Luiz Cruz. A presença
da história antiga nos compêndios didáticos de história da Primeira República e a construção identitária
nacional. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual Paulista
(UNESP), 2012. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/103083Acesso: 02 dez. 2020. Segundo
ele, nas primeiras décadas do século XX, “(...) vários historiadores europeus, norte-americanos e brasileiros
propuseram trabalhos estabelecendo esta relação do Mundo Antigo com as questões identitárias nacionais e com
as mais diversas manifestações sociais e culturais atuais, todos evidenciando, à sua maneira, o aliciamento da
Antiguidade por indivíduos ou grupos sociais interessados em legitimar suas reivindicações e anseios do presente
no passado antigo”.
419
Reinhart Koselleck circunscreve o conceito de história na antiguidade, momento em que vigora o topos da
história mestra da vida: “Assim, a história seria um cadinho contendo múltiplas experiências alheias, das quais
nos apropriamos com um objetivo pedagógico; ou, nas palavras de um dos antigos, a história deixa-nos livres para
repetir sucessos do passado, em vez de incorporar, no presente, os erros antigos. Assim, ao longo de cerca de 2 mil
anos, a história teve o papel de uma escola, na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em
grandes erros”. KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae. Sobre a dissolução do topos na história moderna
em movimento. In: _____. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006, pp. 41-60.
420
OURO PRETO, Visconde. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXIII, parte II, 1900, p. 525.
145
de um perspectivismo futurocêntrico moderno, modela o passado. O passado era, nesse sentido,
concebido em transformação.421 Portanto, em um mesmo registro vemos o visconde de Ouro
Preto, assim como outros sócios, mobilizando elementos antigos e modernos pretendendo, de
alguma maneira, deixar à disposição dos sujeitos formas possíveis de orientação no tempo,
princípio epistêmico de toda e qualquer história.
A história traz esses adjetivos, entre virtudes epistêmicas e a sua importância como
processo: extraordinário coeficiente de vida, luz da verdade, fanal da civilização, vínculo a
prender elos da interminável teia humana. Preceitos antigos que são orientados modernamente
para o entendimento racional do agir humano junto à esfera pública nacional. O autor citado
toma a ideia de história como algo imperecível, permanente na imortalidade dos tempos. A
história era, por outro lado, um contínuo, a preservação da experiência por meio da tradição,
possível de ser acessada pelo sujeito histórico dotado de patriotismo e capaz de se orientar no
mundo por ter uma identidade que o antecede.
Percebemos nas preleções do presidente Olegário Herculano de Aquino e Castro
referências ao modo antigo de conceber a história e a historiografia matizado por elementos
modernos. As duas matrizes se intercambiavam e formavam uma modalidade única capaz de
abordar o passado, havendo nesse processo a permanência dos resíduos das tecnologias
historiográficas dos antigos juntamente com os novos elementos demandados pelos modernos.
Não havia exclusão, porém, também não havia justaposição. Assim, a história é considerada
literatura, ferramenta útil e proveitosa, “primeiro canto ao alvorecer da vida nacional”, mestra
da vida, testemunha irreversível dos tempos, fonte irrecusável dos tempos, fonte de luz
inextinguível junto à existência, ciência social destinada à enriquecer o futuro com as
experiências do passado; a história tem por escopo a verdade e o supremo encargo de
acompanhar a marcha progressiva da humanidade, registrando os anais com imparcialidade
conscienciosa, inalterada calma, rigorosa exatidão e indefectível justiça os acontecimentos
mais notáveis noticiados na vida das nações; delineando com fidelidade o caráter pessoal e
político dos homens e das mulheres que mais se distinguem, e descrevendo com discernimento
o impacto que exercem - agentes e fatos - sobre a época e o meio social que representam.422
421
Nesse sentido, o “perspectivismo histórico passou de uma mera determinação do conhecimento para uma
determinação fundamental de toda experiência e de toda resultante da ‘história em si’”. KOSELLECK, Reinhart.
Ponto de vista, perspectiva e temporalidade – Contribuindo à apreensão historiográfica da história. In: _____.
Futuro passado... op. cit., pp. 161-188.
422
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 427. Segundo Vicente da Silveira Detoni, o topos da história
mestra da vida sobrevive na Primeira República, corroborando nossa investigação: “(...) o topos das lições da
história encontrou meios de sobreviver no interior dos procedimentos da produção de um novo livro sobre a história
do Brasil, uma escrita mais científica, mais sintética, e que, perante as novas configurações da sociedade brasileira,
146
Recapitulando: o estatuto da herança historiográfica clássica pode ser observado a partir
de um vetor de dupla face, ou seja, em um primeiro movimento as figurações antigas eram
celebradas como necessárias para a própria existência dos modernos historiadores. Porém, em
um esforço que historiciza as próprias produções e as formas historiográficas disponíveis, eram
colocados novos desafios ao métier, em que ressaltavam as limitações antigas e apontavam para
o caminho da complexificação delas. Em outras palavras: estávamos em um jogo constante de
rupturas/continuidades, herança/desafio, pecúlio/novidade, tradição/inovação,
atualização/desatualização. A partir dessa movimentação foi se desenrolando, pari passu, a
disciplinarização da história na Primeira República, e surgindo as figurações socialmente
reconhecidas de historiador.
ordenaria mais uma vez o passado, atualizando a capacidade dele oferecer uma orientação política”. DETONI,
Vicente da Silveira. A moderna historia magistra vitae de José Oiticica: regimes historiográficos e ordem do tempo
no Brasil (c. 1870-1940). Dissertação de mestrado. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2019. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/206273
Acesso: 03 dez. 2020.
423
François Hartog embasa a nossa argumentação, posto que admite que em “(...) seu princípio, esta história
retórica, concebida como coletânea de exemplos, era feita por quem se supunha fazer a história (os cidadãos, o
homem público, o príncipe)”. HARTOG, François. O tempo desorientado: tempo e história. Como escrever a
história da França? Anos 90, v.5, n.7, 1997, p. 10. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/6183
Acesso: 08 abr. 2021.
424
Cf. ARARIPE, Indicações... op. cit., 1894.
147
No entender de Araripe, a história moderna desloca o foco do indivíduo para as
coletividades, dos heróis para as nações – em um viés eurocêntrico, cabe mencionar. Ela é
conduzida, além disso, por uma linha ascendente de progresso amparada pela concepção de
civilização; apresentando-se mais espacializada, se expandindo para outros continentes como a
América, bem como multitemática, abrangendo diversos fatores que conduzem homens e
mulheres no tempo e em sociedade.425 Vejamos os seus apontamentos:
425
A perspectiva de Tristão de Alencar Araripe corrobora, é bem verdade, as colocações de Manoel Luiz Salgado
Guimarães acerca da invenção moderna das nações. Emerge, no Oitocentos, um “novo personagem histórico: a
nação. Narrativa por excelência da legitimidade nacional, a história deve ensinar de forma organizada o passado
necessário para a produção de sujeitos nacionais. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. A cultura histórica
oitocentista... op. cit., p. 18.
426
ARARIPE, Indicações... op. cit., p. 265.
427
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito da história. RIHGB, tomo 69, parte II, 1906, p.
208.
428
A figura do historiador químico, presente entre os chamados metódicos da passagem do século XIX para o XX,
e que tem na figura de Fustel de Coulanges o seu principal representante, é um exemplo sintomático dessa negação
do artifício literário na operação historiográfica. O historiador químico, ademais, suprime a instância autoral em
favor da objetividade absoluta da sua análise. Ver HARTOG, François. O século XIX e a história. O caso Fustel
de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003.
148
Porém, essa assertiva não é absoluta. Bárbara Winther acredita, por exemplo, que os
historiadores da antiguidade clássica “não são considerados exemplos a serem seguidos em
todos os aspectos. Um desses aspectos diz respeito à aproximação com a literatura, a forma
poética de escrita, considerada por alguns dos autores que analiso uma forma que não se adéqua
à escrita da história”.429 Por outro lado, Vicente Detoni recupera as pouco conhecidas
prescrições sobre a história e sobre a historiografia saídas da pena do anarquista José Oiticica,
publicadas em 1910, nas quais se salienta que as exigências por imparcialidade e por
objetividade são perpassadas por uma demanda própria do “domínio da arte da exposição”.430
Já Ivan Norberto Santos assegura a existência da aceitação da dimensão artístico-literária por
certa parcela dos historiadores republicanos: a “(...) qualidade literária da narrativa, portanto,
não era então fator de desmerecimento para a elaboração do conhecimento histórico, sendo,
para muitos, peça fundamental da sua realização”.431
De todo modo, para alguns sócios do Instituto Histórico a história na antiguidade ainda
está despida dos atributos de cientificidade necessários para oferecer a autoridade requerida.
Entre os antigos encontra-se, argumenta Raul Tavares, a habilidade da “elegância narrativa”,
mas ela não é, de todo modo, perpassada pela apresentação de um método. Além disso, ela
mostra-se parcial e não objetiva, “narrativa e não profunda”. Segue, desse modo, alguns casos:
“(...) militarmente escreveu Cezar; descritivamente Xenofonte; literariamente Salústio; Tácito
moralmente. Só Políbio percebeu-a na miragem de seus largos horizontes a gente e a época para
mostrar como deveria ser no futuro”.432
Assim, a menção à dimensão do “espírito”, propriamente romântica, aludida por Araripe
era uma das manifestações próprias dos modernos, dado que ela sinalizava para uma expansão
da ótica interpretativa dos antigos. Esse “espírito” era o próprio conceito moderno de história.
Agora o saber historiográfico, que buscava a sua complexificação, deveria atingir, sob o fio
429
SILVA, Bárbara Winther da. A escrita da história no IHGB no final do Império e Primeira República.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História: Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro, 2015, p. 21. Disponível em: https://tede.ufrrj.br/jspui/handle/jspui/3196 Acesso: 03 dez. 2020.
430
DETONI, A moderna... op. cit., p. 46.
431
SANTOS, Ivan Norberto. A historiografia amadora de Rocha Pombo: embates e tensões na produção
historiográfica brasileira da Primeira República. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-
graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009, p. 63. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=141713 Acessado
03 dez. 2020. Assim, parece ser possível encontrar naquela conjuntura epistêmica de início de século certa
aproximação entre a historiografia clássica e a moderna por intermédio da questão da arte literária Exemplo:
Oliveira Vianna diz que nas obras de Xenofonte, de Tucídides, de Tácito e de Tito Lívio o resultado é a realização
de obras de arte, na medida em que nelas encontramos as seguintes habilidades e virtudes epistêmicas: “arte da
narração, arte da criação, a arte da ressureição para falar com Michelet”. Todas elas fundamentais e ideais para o
moderno historiador. VIANNA, Discurso... op. cit., p. 445.
432
TAVARES, Discurso... op. cit., p. 494.
149
invisível da civilização, todos os caracteres que constituem o sujeito enquanto ser histórico –
tarefa postulada pelos românticos e pelos fundadores do IHGB. A dimensão pedagógica
permanecia no âmbito do saber, quer dizer, a história possuía a função de ilustrar as sociedades
em perspectiva moderna e futurocêntrica; aumentando, dessa maneira, a percepção dos
atributos que garantissem uma organização social e política harmoniosa e que pudesse atender
ao maior número de nações possíveis.433
Com relação aos episódios militares, recorrentemente evocados pela historiografia na
Primeira República, eles não tinham como princípio a exaltação dos conflitos por eles mesmos,
ou a retirada de um extrato moral beligerante, como era realizado entre os antigos, posto que o
“espírito moderno”, carregado de perspectivas pacifistas, dirigia a teleologia dos fatos
históricos. João Ribeiro oferece, em 1915, mostras dessa ideia. O autor de História do Brasil –
curso superior (1901) entende que a instauração da República é um desses acontecimentos
governados pela paz proporcionada pelo “espírito moderno”. O fim da escravidão e a queda da
Monarquia tardavam a se tornar realidade, no entanto o seu fim já estava prefigurado pelo
“espírito moderno”, apresentando-se como acontecimentos necessários e com grau de
previsibilidade determinado. Nesse sentido, não se verificaram nesses episódios conflitos
belicosos e que instaurariam uma guerra civil ou revoltas sanguinolentas. A República,
enquanto exemplo de uma particular perspectiva moderna da história, foi colocada em escala
processual, distante de uma ideia de natureza histórica estática, própria dos antigos.434
Araripe pode complementar a argumentação: a Proclamação da República decorre do
motor da história evolucionista e progressista eurocêntrico; sendo a Monarquia de Pedro II uma
fase preparatória, e porque não, necessária. A República foi um evento necessário. A sua
eclosão estava em maturação e em espera, pois era prefigurada pela teleologia moderna.
Para Ribeiro:
433
A diferença da proposta de Tristão de Alencar Araripe acerca do movimento civilizador da história em relação
à leitura dos sócios fundadores do Instituto reside no fato do historiador cearense não marginalizar negros e índios.
Araripe tem uma teoria própria da miscigenação. Com relação ao projeto do IHGB Manoel Luiz Salgado
Guimarães é claro: “Ao definir a nação brasileira enquanto representante da ideia de civilização no novo mundo,
esta mesma historiografia estará definindo aqueles que internamente ficarão excluídos deste projeto por não serem
portadores da noção de civilização: índios e negros. O conceito de nação operado é eminentemente restrito aos
brancos, sem ter, portanto, aquela abrangência a que o conceito se propunha no espaço europeu”. GUMARÃES,
Nação e civilização... op. cit., p. 7.
434
Cf. RIBEIRO, João. Discurso de Posse. RIHGB, tomo 78, Parte II, 1915.
435
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 626.
150
Enquanto isso, Agenor de Roure suspendeu os pareceres que caminhavam no sentido
de localizar a história sob o prisma dos grandes crimes e das misérias da humanidade. Não se
desejava, nesse sentido, e a sua história mestra da vida tem um quê de denúncia, glorificar
tiranos, déspotas, assassinos, ladrões ou conquistadores. E o aprendizado da história se
performa na direção de denúncia das infâmias e dos erros praticados nas sociedades, para que
assim as gerações futuras possam desviar-se deles; algo, por sinal, já praticado pelo historiador
romano Tácito436. Em suas palavras:
As lições do passado não nos veem somente dos atos de heroísmo, das boas
noções, dos nobres gestos, das cavalheirescas atitudes e das leis morais e
cavalheirescas. Elas resultam, talvez com mais força, dos erros, das vivências
das injustiças e dos crimes das gerações anteriores. A História ensina o que é
bom e deve ser mantido e inflado, mantido ou melhorado; mas ensina também
a conhecer os caminhos tortuosos, as veredas escuras, os lôbregos caminhos
do coração de um déspota e, melhor ainda, o labirinto da alma coletiva dos
povos, de modo a guiarmos a humanidade por uma estrada mais larga e mais
livre, cheia de luz e de ar, venerando os tropeços e os obstáculos com mais
facilidade do que as gerações precedentes, por isso mesmo que os conhecemos
e podemos evitar.437
436
Sobre a linguagem do tacitismo ver ARAUJO, Valdei Lopes de. A época das revoluções no contexto do
tacitismo: notas sobre a primeira tradução dos Anais. Estudos ibero-americanos, v. 26, n. 2, 2010, pp. 343-365.
Disponível em: https://cutt.ly/RcLv8sW Acesso: 08 abr. 2021.
437
ROURE, Discurso... op. cit., pp. 718-719.
438
Idem, p. 719.
151
O próprio presente se apropria do passado: historia magistra vitae, segundo Araripe. Os
grandes homens, não as nacionalidades, não o povo, são os sujeitos da história. Para o estudioso
cearense, os modernos estavam do lado da mudança, da transformação, do processo histórico,
e mesmo quando elencavam os grandes homens, esses eram portadores da civilização, da paz,
capazes de proporcionar melhoramentos progressivos às nações. Mas aqui a figuração antiga
da história coadunava-se à moderna, na medida que para o estudioso o tom pedagógico era
capital, mesmo que agora direcionado ao futuro. Uma nova historia magistra vitae? A ideia de
povo é fundamental, não só tematicamente, mas enquanto elemento diretor da narrativa. Disso
resultaram novas preocupações: o refinamento das instituições, a prevalência da paz, a ordem
política, as conquistas da técnica e da indústria, a harmonia entre os povos. É o processo
civilizador edificante, resultado da aproximação entre os conceitos antigo e moderno de
história. As suas Indicações nos servem de guia para entendermos estes apontamentos:
439
ARARIPE, Indicações... op. cit., p. 267.
440
ARARIPE, Indicações... op. Cit., p. 266.
152
sentimento da amizade”.441 Diante dessa situação se reivindicava o saber dos modernos, que se
corporificava através dos trabalhos que se encontram, por exemplo, na RIHGB, dado que nesse
suporte o historiador encontrava material sólido e pacientemente metodizado, isto é, depurado
das fábulas e do espírito subjetivo, para encontrar a verdade dos fatos, notícias ou sucessos. Diz
ele que sobrevivendo um único exemplar da Revista há um “brado contra as mentiras”.442
Já Alfredo do Nascimento Silva aponta, em seu sugestivo artigo Um átomo de história
nacional, que a missão do historiador moderno se desloca para a complexidade dos fatos
históricos - vistos como verdadeiros prismas. Ali, nessa espécie de espectro, podem ser vistos
elementos relacionados ao território, aos costumes, à raça, às tribos, aos povos e, em um grau
inicial, à família; muito próximo daquilo que Mommsen pregava no contexto alemão, ou Fustel
de Coulanges na França. Argumenta Nascimento Silva: “é o indivíduo homem, a célula viva da
sociedade”. Valendo-se dessa metáfora epistêmica organicista prossegue: “a célula é o átomo
do indivíduo, este é a célula da humanidade, e ela uma diminuta parcela do mundo, que por sua
vez é apenas um átomo do universo”. O historiador moderno tem a sua disposição, portanto, “a
apreciação da marcha da civilização”, sendo necessário para o seu o perfeito entendimento
441
LEITE, Discurso... op. cit., p. 433.
442
Idem, p. 433.
443
SILVA, Um átomo... op. cit., p. 107.
444
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 587.
153
historiográfico, quer dizer, entre os antigos, em uma percepção muito próxima a de Tristão de
Alencar Araripe, se estendendo até os cronistas coloniais luso-brasileiros,
445
Idem, p. 588.
446
Ibidem, p.588.
447
Manoel Luiz Salgado Guimarães esclarece esse ponto ao destacar as premissas básicas a que um historiador
deve subordinar o seu plano de escrita diante da demanda por uma figura autoral capaz de refletir teoricamente
sobre os fatos que podem, em um movimento filosófico, ordenar o tempo da nação: “A exigência de uma história
filosófica descartava do horizonte de possibilidades os anais, as crônicas como legítimas formas de gênero
histórico agora em processo de redefinição. Mais do que simplesmente narrar os fatos acontecidos localizando-os
temporalmente, seria preciso a intervenção do historiador/autor, uma proposta de inteligibilidade para os fatos do
passado submetidos agora a um trabalho de seleção e enredamento específicos. Reconstruir o passado que se deseja
narrar, essa a tarefa dessa primeira geração de escritores e literatos que igualmente vão se construindo, através da
escrita que propõe, como os primeiros historiadores do Brasil”. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. A disputa
pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil. In: CARVALHO, José Murilo (org.). Nação e cidadania
no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 101.
154
uma escala de valor científico. Conforme Comte, sem Deus nem Rei: “fórmula visceral da
escola política por ele fundada”.448
É de 1854 a primeira História geral do Brasil, escrita por Francisco Adolfo de
Varnhagen. Para Magalhães, Varnhagen supostamente aplica o plano de Martius, e duas
objeções à obra são levantadas, saídas da pena do Barão Homem de Melo e de Eduardo Prado.
Para o primeiro, “Varnhagen reduz o passado ao sentido de suas ideias, mutilou a verdade
histórica para fazer prevalecer a sua opinião. Tudo na obra do sr. Varnhagen é pálido e sem
vida”449. E recorre às palavras de Eduardo Prado, também pouco amenas: “O eminente e
excêntrico Varnhagen tem toda a dureza de um saxão, que era, e uma inexplicável índole
deprimidora de toda a grandeza e de toda a beleza; é, enfim, o homem que em nossa História
menoscaba de todas as heroicidades”.450 Vemos dois conjuntos de argumentos sendo
articulados a partir da crítica à historiografia de Varnhagen: a crítica à falta da virtude
epistêmica da imparcialidade científica451, que em consequência leva à falta de padrões
objetivos e de neutralidade em suas abordagens, e julgamentos sobre os modos de exposição
que Porto Seguro empregava em sua História – aqui a dimensão literária do texto histórico,
herança antiga, é demandada entre os modernos. Esses dois pareceres sobre a historiografia de
Varnhagen sinalizam para coexistência de preceitos antigos e modernos na prática
historiográfica. Para chegar a essa conclusão observamos a dupla demanda: pela imparcialidade
e pelo apelo ao âmbito literário da história.
448
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 589.
449
Idem, p. 590.
450
Ibidem, p. 590.
451
Por mais que certa memória disciplinar, sobretudo a da primeira metade do século XX, tenha atribuído ao
contexto moderno e cientificista a propagação e os usos da virtude epistêmica da imparcialidade, ela é uma herança
antiga que pode ser remontada à Tácito e à sua máxima (política e epistemológica) sine ira et studio. Ver
MOMIGLIANO, Arnaldo. Tácito e a tradição taciteana. In: _____. As raízes clássicas da historiografia moderna.
Bauru: EDUSC, 2004.
452
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901, p. 321.
155
Em Enéas Galvão vemos a pressão exercida pelo passado. O topos da história mestra
da vida atravessa o seu discurso de posse no IHGB e se constitui como terreno seguro para o
desenvolvimento da experiência da história. A exemplaridade é o clarão por onde se
desenvolvem os acontecimentos históricos:
453
GALVÃO, Discurso... op. cit., p. 609.
454
PEIXOTO, Discurso... op. cit., 471.
156
ao plano da temporalidade. Se estabelecia, então, a noção de historicidade – demanda do
vaticínio magisterial da história e da historiografia.
Os modernos também tomaram o tempo e o espaço em comunhão como condição para
o aprendizado, que nesse caso pende para teorias deterministas. O passado geográfico explicava
o presente. E nesse rol de autores estavam: Bodin, Charron, Montesquieu, Buckle, Taine, Abbé
Raynal, Edgar Quinet e Renan. Esses autores concebiam teorias do meio que explicavam o
presente dos povos. Notamos que Afrânio Peixoto transforma o seu o olhar analítico em
retrospectivo. O saber geográfico, no sentido ontológico de conhecimento do meio, como
ensinamento do presente se localizava entre os clássicos. A fusão das disciplinas história e
geografia, consequência epistêmica desse movimento, possuía uma história que ele historiciza
para abordar a geografia como mestra da vida e do presente (uma memória disciplinar).
O nosso argumento é que o topos magisterial atravessava a episteme romântico-
historicista e possuía força de agenciamento no século XX, pelo menos em sua primeira metade
e em termos de saber.
Enquanto isso, o estudo de todas as facetas da inteligência humana, com atenção para a
dimensão da história, seguia irrestritamente os preceitos ciceronianos para alguns sócios do
IHGB: “criou-lhe a adolescência, recriou-lhe a velhice, adornou-lhe os sucessos prósperos e
consolou-o nos adversos.”455
O passado era, e consequentemente a história, concebidos como elementos que
beiravam a sensação de onipresença.
É nesse sentido que a permanência do topos da história mestra da vida encontra lugar
destacado nos argumentos do sócio argentino Garcia Merou, posto que em sua concepção de
história há momentos de clarividência das situações que acometem os sujeitos em seu tempo
como também momentos em que eles são tomados por crises e pela falta de entendimento no
que tange à passagem do tempo, quando a humanidade vacila por caminhos obscuros. É
recorrendo ao passado, à situações já experienciadas, que o problema é solvido.456 Sem os
ensinamentos do passado a humanidade jaz em um crepúsculo melancólico, argumenta Merou.
Tal diretriz historiográfica é devedora de autores como Sêneca, Marcial, Plutarco e Luciano de
Samósata. Segundo Merou: “nesses períodos de luto, os que quiserem reanimar a chama divina,
os que poriam uma nova chama sagrada, duvidam e se desesperam, sobretudo, os estadistas e
intelectuais. Porém, a história está ali para ensinar o caminho a seguir”.457
455
DÓRIA, Franklin Américo de Menezes. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXI, parte II, 1896, p. 335.
456
MEROU, Discurso... op. cit., p. 337.
457
Idem, p. 338.
157
Percebemos que havia um certo aristocratismo no resgate do magistério da história por
parte de Merou, posto que as formas de governo, inspiradas em clássicos da historiografia,
deveriam ser regidas por sujeitos ilustrados.
Em se tratando de história como devir, como processo, não há certeza acerca dos seus
direcionamentos na concepção de Manuel Porfírio de Oliveira Santos. O devir histórico
surpreende o analista do tempo, que fica indeciso ante a sua performatividade. De acordo com
as suas palavras: “Em relação ao passado (vós o sabeis) nada se pode ter como certo com o
concurso da História; e daí a primeira razão de ser deste Instituto, a criação portentosa dos
nossos maiores”!458 Nesse sentido é que a história, como saber e como devir, deve ser
assimilada, modernamente, como a grande mestra da vida.
O topos tende a se desviar produtivamente para questões epistemológicas. É ele que
descobre a inconstância do devir. Não é este, nessa direção, o sentimento dos filósofos da
história, que o colocam em um patamar inferior, posto que para eles é pela “incerteza do seu
testemunho” que se guia o processo histórico. Localiza-se aí, para aqueles sujeitos inspirados
pelo apostolado da razão iluminista, a causa “principal dos seus erros” em termos de construção
de um saber científico.459 Porém, essa história mestra da vida, em uma lógica moderno-
científica, pode extrair lições do passado a partir do momento em que ela coloca à disposição
as continuidades ao analista-historiador, quer dizer, a evidenciação das recorrências, das
tendências e das leis é o seu destino manifesto diante de uma consciência histórica que tem
como leitmotiv a ideia de transformação formativa. Se falta muitas vezes a verdade nas
narrações históricas, “nem por isso deixa a História de ser mestra da vida, a fonte justa onde se
bebem as lições do passado, sem cujo conhecimento não teríamos hoje a maravilhosa obra deste
glorioso Instituto”.460 Vem do passado, assinala Santos, a luz que mostra, no presente, o
caminho a seguir em busca de um futuro benfazejo. “Essa luz é a História!”.461
A figuração da história e do historiador para esse sócio está amparada nos ensinamentos
de Tucídides, quer dizer, o historiador é antes de tudo um analista, que pode errar em suas
sentenças, mas nunca falsear a verdade da história. É esse “o único ponto em que me parece ter
razão os filósofos, que tanto deprimem a arte de Tucídides – o maior historiador da Grécia”.462
O fato de o estudo da história poder distinguir o falso do verdadeiro é o que faz desses trabalhos
obra de ciência. O essencial é, nesse sentido, extrair, no campo de qualquer uma dessas
458
SANTOS, Discurso op. cit., p. 800.
459
Idem, p. 800.
460
Ibidem, p. 800.
461
Ibidem, p. 800.
462
Ibidem, p. 800.
158
possibilidades, o discernimento dos fatos para as conclusões que se prestam. Só assim, e
amparada em preceitos antigos de interpretação da história, se faz ciência. Dessa maneira, esse
princípio básico de toda operação historiográfica, a expurgação do falso diante do verdadeiro,
apresenta-se como uma herança antiga.463
Para Jonathas Serrano, a história é “uma ciência educativa por excelência”, pois coloca
em presença da vida a sua “infinita variedade” de fontes e todas as suas possibilidades de
“reavivamento”. E, de acordo Langlois e Seignobos, não se contesta nessa forma de
aprendizado a intima conexão entre história e ciências sociais. Estas facilitam, graças a
observação, a compressão de temporalidades mais recuadas que sobrevivem na atualidade,
enquanto aquela oferece informações acerca da formação humana e permite melhor esclarecer
a humanidade; extraindo lições.464 Deve ser dito que esse passado que ensina congrega ideais
civilizatórios europeus (que se valem do conteúdo das formações edificantes antigas)
compassados com as exigências patrióticas.
E para o sócio José Maria Moreira, o ser humano era um pequeno ponto da existência.
Essa existência que do passado extrai lições o faz caminhar em um vir a ser ininterrupto - devir.
Do passado se lança as bases para o entendimento do homem, esse grão de areia em um oceano
cercado pela efemeridade da vida: “(...) e o pensamento, assim formulado, não se faz
impenetrável; é transparente. Acontece que aí, logo acrescentei: igual por igual, o mundo físico
se resume no ponto; o mundo moral, no homem”.465
Eis que a história mestra da vida continua a ter pregnância performática e prescritiva
entre os sócios do IHGB:
463
Sobre a herança da historiografia de Tucídides entre os historiadores modernos, com especial atenção para o
caso alemão do século XIX, ver PAYEN, Pascal. A constituição da história como ciência no século XIX e seus
modelos antigos: fim de uma ilusão ou futuro de uma herança? História da Historiografia, n. 6, 2011, pp. 103-
122. Disponível em: https://cutt.ly/wcZt5F5 Acesso: 08 abr. 2021.
464
SERRANO, Jonathas. Discurso de posse. RIHGB, tomo 85, parte II, 1919, p. 522.
465
MOREIRA, Juliano. Discurso de posse. RIHGB, tomo 82, parte II, 1917, p. 808.
466
MOREIRA, Discurso... op. cit., p. 808.
159
O passado ensinava: o ser humano era fruto do passado replicado no presente em
movimento formativo. Para esse sócio é a história mestra da vida. Ela quem subordinava o
saber dos sujeitos, em uma perspectiva ontológica e como ser social. Eram os ensinamentos da
história que norteavam as direções do devir humano. O indivíduo interagia com a história. Mas
para além do sentido biografista de Carlyle e Emerson, e no sentido de Comte: aquele que
sentenciava que se o homem se agita a humanidade o conduz. Ou seja, há uma coadunação
entre preceitos antigos e modernos de história. O passado se faz como fonte de ensinamentos e
de vida, porém, é a partir do desenvolvimento do devir, do sentido dos acontecimentos junto ao
tempo, que ocorre a elaboração do agir humano. A história tinha funções pedagógicas nessa
prescrição. É ela que incita o ser humano a compreender a história em formação:
O topos do passado exemplar é sugerido por Homero Batista. Mas para esse agremiado
não era só o futuro, em perspectiva moderna, que conferia sentido ao passado na forma de
memória à posteridade, mas era o próprio passado que assumia o estatuto de portador de uma
experiência socialmente útil para o desenvolvimento não só do homem como da nação. Há
sempre que se perguntar sobre as políticas da memória implicadas na moderna história mestra
da vida. Em seus dizeres:
467
Idem, p. 809.
468
BATISTA, Discurso... op. cit., p. 577.
160
e poderosa sugestão: “a força do homem de hoje é seguir pegadas do homem de ontem,
imitando-lhe a conduta moral e cívica”.469
José Bernardino Bornan argumenta, por seu turno, que entre filósofos, políticos, sábios
e grandes personalidades a história é concebida, naquele presente de passagem para o século
XX, como modelo digno de emulação, em uma atualização dos códigos dos antigos. O passado,
então, como celeiro de exemplaridade tanto no sentido ontológico quanto epistêmico. Os
antigos embasam a história desejada por Bornan. Segundo ele, ela tem imunidades, ou melhor,
prerrogativas: cumpre dizer a verdade, louvar os beneméritos e estigmatizar os maus. A piedade
pode perdoar os erros e mesmo os crimes dos homens que desapareceram do cenário do mundo;
a história não. Ela é inexorável. Assim, se a piedade escreve na “lousa do sepulcro” do mau
cidadão uma prece, a história, se ali tivesse que escrever algo, escreveria um epitáfio de
maldições. Porque é a história o guia máximo para o estabelecimento de padrões éticos
socialmente aceitáveis.470
Olegário Herculano reforça as funções magisteriais da história dizendo que são
seguramente dignas de reflexão as lições que são fornecidas pelos copiosos “anais da vida dos
povos e o que dela se colhe”. As verdadeiras glórias eram as que consistiam no conhecimento
e na prática das irrefragáveis leis sociais da humanidade – grande parte emanando do pretérito.
A realização de grandes ideias e de generosos cometimentos entrelaçava a sabedoria e a
prudência, a liberdade e a ordem, a moral e a virtude; assinalava o triunfo da justiça e da
equidade.471 Todas essas virtudes, em Herculano, estão atravessadas pelo eurocentrismo.
Valendo-se da referência antiga de Plutarco, fala da eternidade da história: viva
testemunha dos tempos, luz da verdade e escola da experiência. Pondera que a razão humana,
tardia em seus progressos, necessita de um guia esclarecido que dirija e ative a sua incerta e
demorada busca pela verdade das coisas no mundo. Esse guia não é outro senão a história.
Ela o toma, pois, pela mão desde os primeiros passos, desde a sua infância;
caminha com seus passos e previne através dos seus conselhos os desvios da
fraqueza ou da inexperiência, recolhendo geração a geração o testemunho
daqueles cujo acordo inspira o agir humano via experiência por meio do
aprendizado.472
469
LEAL, Discurso... op. cit., p. 707.
470
BORNAN, José Bernardino. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVIII, parte II, 1915.
471
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXII, parte II, 1899, p. 409,
472
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXI, parte II, 1898, p. 730.
161
Desse modo, a realidade dos fatos passados é o meio seguro que espanta as ilusões e as quimeras
que embalam todas as idades dos espíritos “mal orientados”, a quem ao desgosto do estado
presente das coisas, em uma ideia de uma suposta perfeição imaginária do status quo, ou no
sofrido desejo de celebridade instantânea, tem praticado e inspirado o amor pelas novidades
imediatistas ante as coisas que duram e se eternizam.473 Quer dizer: o presidente do Instituto
estava prescrevendo uma moderna história mestra da vida.
473
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 730.
474
Um estudo importante para a compreensão das relações entre moral, normatividade, orientação e história,
privilegiando uma análise de fenômenos mais contemporâneos, é o seguinte: MATA, Sérgio da. Historiografia,
normatividade, orientação: sobre o substrato moral do conhecimento histórico. In: ARAUJO, Valdei Lopes de;
MOLLO, Helena Miranda; NICOLAZZI, Fernando (orgs.). Aprender com a história?: o passado e o futuro de
uma questão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. “Da Antiguidade Clássica à era moderna, como sabem todos, o
elemento normativo era considerado um dos principais aspectos definidores – se não definidores – do
conhecimento histórico”. MATA, Historiografia... Op. cit., p. 61.
162
vigorosos das grandes emoções, a palavra entusiástica escapa involuntária dos lábios não afeitos
à eloquência, como o braço guerreiro afronta a morte que o espera (...)”.475
A história também ensinava para Susviela Guarch: o desequilíbrio do corpo social, mal
de origem da sociedade, especialmente quando a educação ocupava segundo plano na
administração pública ou entre os cidadãos de modo geral, se originava da falta de pressupostos
morais colocados como balizas reguladoras do agir. A moral é aprendida, por isso a força do
topos magisterial. O magistério da história via moralidade servia para a correção de diversas
modalidades de ação social, como por exemplo a usurpação dos direitos dos cidadãos, os
egoísmos, a falta de humanitarismo das nações que preferem adorar os ídolos da guerra, a moral
extraviada da família ou na ausência do trabalho. Da moral derivavam imperativos categóricos.
O topos magisterial, via moralidade, sobrevivia por meio de um caleidoscópio de temas
públicos: pela instituição da educação, pelo espírito moral, pelo sentimento de humanidade e
confraternização dos povos, pela distinção moral daquilo que é ético.476 Mal compreendidas
essas características do topos por quem há de cultivá-las encaminha-se, em vez da aurora de
paz, uma “noite de eterna luta” entre os governantes e o povo; nunca a verdade ou a sonhada
harmonia da ordem social.477 A moralidade, resultado do aprendizado da e com a história,
garantia ideologicamente toda e qualquer forma de relacionamento societário, seja em escala
micro, da comunidade, seja macro, da nação.
A ideia de moralidade estava compassada com a de ordenamento social: o conhecimento
da história, e consequentemente dos padrões morais que dirigem as instituições sociais
humanas, era o orientador dos sujeitos em suas existências. Essa qualidade era um resíduo
atuante do topos ciceroniano. O espectro moralizante, fruto da permanência subterrânea do
topos magisterial, pode eleger formas supostamente virtuosas de se portar no mundo da vida,
tais como a lealdade, a gratidão e a honra étnica, tudo isso projetado em âmbito nacional. Esses
mesmos elementos morais são projetados pelos historiadores do Instituto Histórico na
reconstrução do passado que se quer atuante no presente. Eram princípios considerados
universais, racionalizados e aptos a se desenvolverem na esfera pública.
O padre Belarmino fez a conjugação entre antigos e modernos. Se de um lado havia a
necessidade, o desejo, de avançar na síntese histórica da nação, inclusive partindo de métodos
475
NASCIMENTO, Alfredo. Discurso em razão da recepção dos sócios Garcia Merou e Tomaz Ribeiro. RIHGB,
tomo LVIII, parte II, 1895, p. 340.
476
Jörn Rüsen afirma, ao analisar a constituição de sentido exemplar, sobre a moral, ou regras gerais de conduta,
junto a experiência da história: “Com a validade atemporal das regras gerais, a história ensina sua própria
supratemporalidade como sua ‘moral’, com a qual ganharia significado para a vida prática atual”. RÜSEN, História
viva... op. cit., p. 52.
477
GUARCH, Discurso... op. cit., 1901.
163
sociológicos contemporâneos aptos a perquirir os fatos sociais, chamados naquela situação
epistêmica de “indução conjectural”, a apreciação da história deveria ser de origem moralizante,
na qual se buscam regularidades que visavam ensinar. Vemos o conteúdo do topos ciceroniano
se convertendo a partir de mecanismos cognitivos de natureza moderna.
Segundo o padre: “(...) para mim, aquele que melhor aprecia os fatos, é o melhor
historiador, deve o Instituto dirigir as suas vastas vistas, e pouco a pouco despertar o gosto pela
crítica moralizante”.478 Nesse sentido, o religioso cristão advoga que “as letras instrutivas não
devem ficar isoladas das letras educadoras”.479 E em outra prescrição historiográfica
compreende a performatividade do moderno magistério da história. “Seja qual for a fórmula
adequada, o historiador de um país pode ser um moralista que educa, um clínico que cura, um
engenheiro que trabalha, um jurisconsulto que dita leis”.480
O historiador sob a orientação do padre Belarmino deve instruir, corrigir e educar a
nação. O que implica a imposição de formas de ser e de agir no mundo e na vida. O Brasil é
visto como um país novo481 para o padre e o ensinamento da história caminha no sentido de se
evitar os traumas do passado. Não há em seu entender uma continuidade pacifista na trajetória
do país no tempo. De acordo com as suas palavras: “é preciso verificar as impressões do terror
do século passado e da ambição guerreira dos primeiros anos deste, atuando no espírito, nos
costumes, na religião, na política da nova nação e bem assim nas outras da América latina”.482
Assim, a opinião corrente era, para Lucas Ayarragaray, que o papel fundamental da
história estava ligado intimamente ao desvelamento dos modos e dos destinos de uma
civilização. Apresentava uma divisão alegórica entre “civilização material” e “civilização
imaterial”, sendo a última o lugar destacado para se verificar os elementos circundantes da
moral de um povo. Eram os sentimentos elevados da moral, em tese, que orientavam as
civilizações imateriais. A moral era entendida enquanto virtude e estava do lado dos antigos,
distante, pois, da civilização da técnica moderna; responsável por tornar o homem desconectado
da sua pátria. Em suas asserções:
(...) es, sin embargo, la civilización espiritual que suspedita y orienta y es, por
su intermedio, que se transmite le edad em edad fuerza del povo, el sopio
478
BELARMINO, Discurso... op. cit., p. 287.
479
Idem, p. 287.
480
Ibidem, p. 288.
481
Interessante notar que essa expressão “país novo” é frequentemente mobilizada no período. Segundo Antonio
Candido, ela designa a seguinte situação: a ideia de que a nação “ainda não pudera realizar-se, mas que atribuía a
si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro”. Além disso, o país novo traz a conotação semântica da
“pujança virtual, portanto, a grandeza ainda não realizada”. CANDIDO, Antonio: A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p. 141.
482
BELARMINO, Discurso... op. cit., p. 288.
164
moral que suscita los pensadores, los visionarios y reformadores que impulsan
a la humanidade a hacer la jornada a grandes passos, como los dioses de la
Ilíada.483
Era a moral advinda, como quer o sócio acima citado, dos antigos a forma concreta pela
qual se estabelecia e se instaurava o sentimento patriótico. Estamos falando de formas de
conduta consideradas exemplares que visavam o bem e a melhoria social, bem como o
estabelecimento de uma ética social afetiva entre os agentes históricos nacionais. A moralidade
era desde a antiguidade a responsável pelo destino dos povos. “Sin embargo, las potencias
morales, de donde iban a manar a torrentes de emociones é ideas que pronto arrasarian, para
transformar, vieja organizáción del mundo (...)”.484
A modernidade colocava obstáculos ao homem para conhecer o mistério, o sobrenatural,
o invisível da providência, pois agia em prol do aperfeiçoamento da técnica e da ciência,
capazes, segundo ele, de tornar o homem inumano e incapaz de dotar de sentido a sua existência,
posto que se distanciava da experiência do mundo. Para o sócio argentino, esse era o destino da
“civilização pagã”, que refém do ceticismo não conseguia mais orientar-se modelarmente via
exemplaridade do passado e da moral, bem como pela perspectiva providencial. Era um
verdadeiro desencantamento do mundo.485 Destacamos, contudo, o conservadorismo de
Ayarragaray. Podemos compreender os limites da civilização pagã através do texto:
483
AYARRAGARAY, Discurso... op. cit., p. 525.
484
Idem, p. 525.
485
Essa expressão é utilizada aqui como uma forma de esclarecer a leitura da história de Lucas Ayarragaray. Essa
expressão, com carga sociológica, marca a trajetória intelectual de Max Weber. Em seu sentido original, ela
demonstra o processo de racionalização moderna do mundo em perspectiva de longa duração. Para o sociólogo:
“(...) significa principalmente, portanto, que não há forças misteriosas incalculáveis, mas que podemos, em
princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. Já não precisamos
recorrer aos meios mágicos para dominar ou implorar aos espíritos, como fazia o selvagem, para quem esses
poderes misteriosos existiam. Os meios técnicos e os cálculos realizam o serviço”. WEBER, Max. A ciência como
vocação. In: _____. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p 165.
486
AYARRAGARAY, Discurso... op. cit., p. 526.
165
vive, afirma ele, da “aparência sem alma”, na medida em que está à serviço do imediatismo e
do tecnicismo de todas as instituições. As raízes morais “que habian nutrido la brilhante y
grandiosa civilización pagana habian muerto; sólo pendian frutos extenuados de las ramas
secas”.487 Os elementos morais combatidos pelos modernos deveriam ser resgatados enquanto
força de sentido e de orientação para o mundo contemporâneo: a família, a religião, o
sentimento, a fama pública, a solidariedade política dos cidadãos; em suma, “la organización
de los interesses tradicionales, ardia el verbo, la potencia propria de la convicción infinita, la
seguridad in la gravitación hiperbolica del alma humana y la crecucia em la realización
inevitable del destino”.488
Para Ayarragaray, havia um movimento agônico entre um mundo que se esvai e um
nascente, que deve resgatar valores da antiguidade. O estudioso argentino pretendia estabelecer
um verdadeiro (re)encantamento do mundo pela via espiritual, metáfora expandida para tudo
aquilo que torna o mundo dos homens habitável moralmente através do tradicionalismo
conservador, em que o passado age como força orientadora diante das carências de sentido
atribuídas ao mundo moderno. Segundo o autor:
Vosotros, que sentis agitados por todas las inquietudes del pensamento
contemporáneo y creis em las fuerzas imponderables y sois atraidos por los
misterios do mundo e da vida haceis obra duradoura, poniendo vuestros
empeños para desenvolver-los fatores espirituais de la civilización
brasileira.489
487
Idem, p. 526.
488
Ibidem, p. 526.
489
Ibidem, p. 528.
490
Ibidem, p. 530.
166
posto que culturalmente criados.491 Segundo Tavares: “A justiça é a maior e mais profunda de
todas as virtudes: História sem virtude, é como um templo sem amor”.492 O mais importante
para se reter aqui é que a justiça (retributiva) em Tavares é uma virtude que possibilita uma
ética da responsabilidade para com o passado com ressonância moral. “Nela se deve calcar a
História: dela se deve impregnar até à medula a alma do historiador. Mal-aventurados aqueles
que acreditam enganar a posteridade, faltando com a justiça à História”.493
Há uma série de motivos, argumenta Aurelino Leal, que justificam a atividade
historiadora; e todos eles se movem dentro do círculo moral, que engloba a moral cívica e a
moral social. “Esses elementos da moral nos são legados do mundo antigo e são luz para o
mundo de hoje”.494 A moralidade é uma estrutura estruturante da ordem social.
Jonathas Serrano advoga que para além do caráter disciplinar da história ela pode
produzir uma “ética da ação”. Uma história, amparando-se em Ernest Renan, sob o ponto de
vista moral. Há que explicar vícios e virtudes em todos os âmbitos sociais e políticos. Mas a
moralidade, para Serrano, não está ligada tão somente a verificação da queda dos tiranos e a
punição ou glorificação dos cidadãos da República. A moral em história revela, modernamente,
a existência de determinantes sociais.495 Metamorfose da historia magistra vitae sob a égide
moderna, trazendo consigo a cientificização historiográfica e revelando os motivos morais que
nutrem um dado agregado humano.
Enquanto isso, o verdadeiro progresso, salienta Olegário Herculano, fomentando uma
nova lógica moderna assim como Ayarragaray, distintivo da civilização é o aperfeiçoamento
moral pela cultura do espírito. Ela incute, além disso, no homem e na mulher a consciência do
dever, da dignidade e da honra. A história para ele é a grande fomentadora do ordenamento
social, a qual se orienta por padrões culturais filtrados pelo raio de ação do processo neo-
civilizador. Argumenta o presidente do IHGB:
491
O manual de Luciano de Samósata Como se deve escrever a história, escrito no século II d. C., uma das poucas
prescrições historiográficas legadas pelo mundo antigo, é assertivo quanto a posição do historiador almejar uma
história justa (historias dikaías). A verdade, um dos traços mais significativos da historiografia desde a sua
emergência na Grécia, em Luciano não é senão o instrumento que conduz ao justo, ver LOPES, André Leme.
Moralidade e justiça na historiografia antiga: o ‘manual’ historiográfico de Luciano de Samósata. História, v. 24,
n. 2, 2005, pp. 187-205. Disponível em: https://cutt.ly/3cLMtvv Acesso: 08 abr. 2021.
492
TAVARES, Discurso... op. cit., p. 492.
493
Idem, p. 492.
494
LEAL, Discurso… op. cit., p. 705.
495
SERRANO, Discurso… op. cit., p. 522.
167
mais profícuas lições ir procurar, senão nos fastos dessa mesma humanidade,
gravados sem indeléveis nas fulgentes páginas da história?”496
Os autores acima citados admitiam que onde as letras, as ciências e as artes ostentavam
as suas faculdades e o seu vigor intelectual, onde resplandeciam as “belas” imagens que
glorificavam a natureza humana, onde se encontravam acumulados, então, os verdadeiros
patrimônios de sabedoria que constituíam a grandeza moral do homem, achava-se forte e
luminoso o farol da história, iluminando a civilização. Acreditavam no papel civilizador, em
uma espécie de educação ilustrada, das letras e dos intelectuais junto à sociedade. O
estabelecimento da moral implicava formas de agir no mundo pautadas pela lógica do
ordenamento social enquanto adequação a algo. O que, em muitos sentidos, manifestava
configurações próprias de um processo de imposição ideológica.
496
CASTRO, Discurso… op. cit., p. 731.
497
ROURE, Discurso op. cit., p. 716-717.
498
Idem, p. 717.
499
Ibidem, p. 717.
500
Ibidem, p. 717.
168
olho nu parecem ser uma só estrela, de um olho só brilho”.501 O tempo decorrido, matéria do
historiador, que propiciava o distanciamento histórico ao observador, se distinguia do tempo
enquanto experiência, posto que aquele estava mais próximo do sentido que da presença. O
direcionamento dado permite que acreditemos que o topos da história mestra da vida sobrevivia
na episteme modernista, como no exemplo citado de Agenor de Roure. Além disso, o topos se
transvestia de análise moderna: era para tirar lições do passado que o historiador transformava
o tempo da experiência, da memória coletiva, do vivido, da moderna história mestra da vida,
em uma maneira de visualizar a formação.
Há uma passagem em que Roure sintetiza a sua concepção de temporalidade e como ela
se coaduna em uma perspectiva metodológica moderna, porém com fatores explicativos
próprios da mutação que o topos magisterial atravessava na passagem do século XX no Brasil:
Em João Coelho Gomes Ribeiro encontramos a tradição, outra forma específica de lidar
com passado enquanto experiência, como lugar destacado para a abordagem da temporalidade.
501
Ibidem, p. 717.
502
Ibidem, p. 717.
503
Ibidem, p. 718.
169
O que esses sujeitos parecem não compreender é que toda tradição é inventada, sendo demanda
política do presente. Era a tradição o ponto de origem e de destino dos estudos históricos
praticados no IHGB, tanto no sentido de memória coletiva quanto de continuidade de atividades
e de atos elaborados socialmente por uma dada coletividade autônoma. Ela emprestava
materialidade ao passado que se performava pela exemplaridade. Era a ela que as instâncias do
presente e do futuro deviam recorrer na direção da promoção de uma comunidade de sentido.504
Através da tradição se movimentava o tempo histórico no Instituto, sendo ela um
vestígio do topos da historia magistra vitae na Primeira República. Para uma importante parcela
dos sócios da instituição a tradição, metamorfose da historia magistra vitae na modernidade,
apresentava-se como o pretexto necessário para a realização da tarefa historiadora nas primeiras
décadas republicanas, justamente por referendar o novo contexto social junto aos intrincados
movimentos próprios de usos do passado e das políticas da memória:
A história era, para o sócio Basílio de Magalhães, a verdadeira mestra da vida, não só
em termos de saber, mas falando de devir. O topos magistral atendia as demandas e os desejos
desses letrados. E ela, para além do conhecimento histórico, se dirigia à vida. Era possível
aprender com a história no alvorecer republicano. Magalhães defendia que a função do topos
era, em primeiro lugar, de estruturação do saber, sendo que essa instância se elaborava por meio
do diagnóstico da experiência da história. Além disso, o topos não se encerra no domínio do
pequeno mundo dos historiadores, na medida em que ele tem função pública, isto é, fomenta o
ufanismo e o nacionalismo; justapondo-se a outro topos, qual seja, o do amor pátrio. Todas
essas dinâmicas aproximavam a história da experiência, da tradição e da memória coletiva. Se
desejava, no limite, a “carnalidade” exemplar do passado.
504
Jörn Rüsen demonstra que o tempo é derivado da experiência. Esse parecer ajuda-nos a compreender as relações
entre tradição, temporalidade e história mestra da vida realizadas pelos sócios do IHGB: “O tempo é uma dimensão
fundamental, universal e elementar da vida humana. Ele é experimentado como devir e fenecer, nascimento e
morte, mudança e duração. Sendo experiência, ele precisa ser de tal modo apropriado mediante feitos
interpretativos da consciência humana para que o ser humano possa orientar-se nele, estabelecer uma relação
significativa entre sua vida e ele”. RÜSEN, Jörn. Cultura faz sentido. Orientações entre o ontem e o amanhã.
Petrópolis: Vozes, 2014, p. 13.
505
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 639.
170
Mesmo em uma atmosfera moderna, os desígnios do passado ainda atingem o presente:
são eles os orientadores da experiência, ao menos em âmbito prescritivo, para Homero Batista.
O que estava em jogo era a possibilidade de a história ensinar a partir do passado, sendo possível
verificarmos, pois, aspectos da ideia de história mestra da vida nos discursos dos sócios:
Era esse o papel por excelência dado por Homero Batista às atividades do IHGB, sendo
considerado uma difícil missão patriótica, posto que essa concepção de história coloca em
evidencia aspectos próprios da consciência nacional, “que se revê e se retempera na própria
história”.507 Outra passagem do seu discurso mostra a eficácia do ensinamento do passado,
tomado enquanto experiência, junto ao presente:
506
BATISTA, Discurso... op. cit., p. 579
507
Idem, p. 579.
508
Ibidem, p. 579.
509
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 320.
510
Fernando Catroga sinaliza que o topos historia magistra vitae permanece atuante no século XIX adiante,
diferentemente da tese canônica de Reinhart Koselleck que advoga uma dissolução do topos no Oitocentos. Além
disso, assume Koselleck, que na modernidade as filosofias da história deslegitimam as narrativas exemplares
epistemologicamente. Em posição diametral Catroga assume o seguinte: “Em termos epistêmicos, a legitimação
da coerência interna das grandes explicações sobre o sentido do tempo, quer do saber historiográfico propriamente
dito, relevava as relações entre antecedentes → consequentes. O que se entende, dado que não seria convincente
explicar a sequência do eixo temporal a partir do efeito que elas mesmas procuravam demonstrar. Daí, a versão
moderna e historicista da asserção ciceroniana, muitas vezes camuflada sob a as vestes da previsão, pois a teoria
da história dos filósofos, tal como as dos historiadores, continuarão a defender a importância de se explicar o
passado, a fim de se compreender o presente e se transformar o futuro”. CATROGA, Fernando. Ainda será a
História Mestra da Vida? Estudos ibero-americanos. PUC-RS, Edição especial, n. 2, 2006, p. 21. Disponível em:
https://cutt.ly/McLYAAs Acesso: 08 abr. 2021.
171
Em José Olímpio Viveiros de Castro, no cerimonial de posse datado de 1907, o topos
magistral aparece, mas readequado aos parâmetros modernos. A história é, “realmente, a grande
mestra da vida, iconoclasta impiedosa a derribar ídolos, às vezes transviada, mas sempre
sedenta de verdade”.511 O passado ainda era considerado fonte de ensinamento, porém esse
magistério não ocorria irrefletidamente, por meio de um estoque de exemplos, mas
iconoclasticamente, quer dizer, colocando abaixo qualquer pretensão de verdade geral ou de
idolatria. As palavras desse sócio colocavam em suspensão a própria noção de verdade, porque
essa passava a ser produto de uma construção intelectiva que dependia do sujeito cognoscente
e da sua visão perspectivada. Não se procurava a verdade fenomênica em si, ou seja, uma
projeção espelhada da realidade, mas a possibilidade de se enxergar o correto, o plausível, o
pertinente, o verossímil, dentro dos aparatos críticos aplicados sob a forma de inquérito que o
historiador tinha à disposição e que estruturavam o regime historiográfico metódico.
O progresso social não estava, para o antropólogo Roquette-Pinto, atrelado à recusa do
ensinamento do passado ou do passado em si mesmo. As “formas tradicionais brasileiras”
deveriam ser respeitadas e elevadas ao patamar mais alto de veneração. A historia magistra
vitae estava em perfeito funcionamento de sentido ao lado da ideia moderna de progresso. Uma
das condições para o progresso era o próprio culto do passado: “Destruí-los [os signos do
passado] sob pretexto de progresso, impiedosamente, não é trabalhar pelo nosso bem; progresso
nunca foi incompatível com a veneração justa e digna, que não é absolutamente fetichismo”.512
A história mestra da vida também é invocada por Félix Pacheco. Nessa forma de se
conceber teoricamente a experiência da história era o passado o orientador das demais
instâncias temporais. O fluxo do passado designava como as coisas aconteciam. Porém,
diferentemente do caso do topos antigo, não é um passado tomado como natureza humana e
moral intocáveis e imutáveis, mas como mobilidade e passível de transformação em sua
formulação. Contudo, a ideia de que o passado ensina estava presente: ensina pela
transformação, pois é ele o esteio seguro por onde se desenvolve o sentimento patriótico-
nacional. Nas atividades do Instituto, “vive, em verdade, o grande Brasil no processo definitivo
de sua gloriosa evolução. É uma existência reversiva, mas útil e fecundíssima: o que seria das
nações, se elas não pudessem remirar-se no seu passado”?513 A atualidade é sempre
compreendida em estado de depuração, diferentemente da solidez do passado. “Vós só
511
CASTRO, Discurso... op. cit., p. 710.
512
PINTO, Discurso... op. cit., p. 596.
513
PACHECO, Discurso... op. cit., p. 564.
172
conservais o sedimento bom, que for ficando do tumulto incontido”.514 Arremata Félix Pacheco
com esta elaboração epistêmica acerca do passado a maneira como ele é parcialmente
concebido no IHGB:
514
Idem, p. 564.
515
Ibidem, p. 564.
516
Ibidem, p. 565.
517
Ibidem, p 566.
518
Ibidem, p. 566.
519
GALVÃO, Discurso... op. cit., p. 610.
520
TAVARES, Discurso... op. cit., p. 491.
173
exemplaridade do passado toma a feição de força e de agenciamento social futurocêntrico. E os
exemplos deles servem aos homens públicos de toda sorte: “Resta-nos, porém, a esperança de
que eles mais do que ninguém hão de nos governar, guiando os nossos passos incertos pelo
roteiro seguro do magnífico e impagável exemplo”.521 Neles foi projetado atributos e qualidades
como a fé, a crença e o ideal, tudo aquilo que reforça a exemplaridade. Interessante que o
passado passou a ser transposto para o futuro tal como numa capsula do tempo.
Desvendar não só os enigmas passados, mas os do futuro, era o caminho que o
historiador deveria trilhar, abrindo margem para uma direção futurocêntrica da história. Uma
moderna história mestra da vida? “Estender indefinidamente a imaginação sobre o espaço para
descortinar o mundo do futuro, não é missão mais exaustiva que discernir o mundo do passado.
E essas preocupações atraem igualmente a curiosidade humana”.522
Para o agremiado Eugênio Egas, havia deturpação na historiografia moderna, na qual se
desejava tudo destruir, tudo aniquilar, tudo arrasar. A história voltava, nesse caminho, a ser tão
somente a “simples recordação de tiranias e matanças, que, imortalizando os atos execráveis de
uma idade, perpetua a ambição de se cometerem outros em todas as que se seguem”.523 Havia,
pondera o sócio em questão, alguma lei que determinasse a fatalidade de tão abomináveis
acontecimentos? Por qual razão os ideais de paz universal ainda não se tornaram realidade? De
todo modo ficou o seguinte recado: “(...) erros e desvarios de contemporâneos comprometem o
presente, retardam os frutos do futuro, mas não podem aniquilar a boa obra do passado, alicerce
das construções sociais”.524 Era a leitura criteriosa do passado, mediante instrumentos
considerados científicos, que o tornava centro orientador da sociedade, fazendo com que a
história trilhasse o horizonte de ser mestra da vida.
Alertava Olegário Herculano sobre as vantagens da historia magistra vitae em seu
contexto moderno. Para ele, era incontornável a necessidade de um povo que se quisesse
civilizado conhecer a sua história, de perscrutar as tradições do seu passado, as memórias do
seu tempo, com o fito de ajuizar as condições do futuro. Através da história se compreende,
continuava o presidente, a vida social em todas as fases da sua formação, sendo que o farol era
o passado. Através da história pode-se estudar os “tipos” característicos de uma época, as
dimensões de índole de um povo, os princípios morais, as ideias que circunscreviam uma dada
situação. O passado oferecia a oportunidade de acompanhamento do curso dos acontecimentos
521
Idem, p. 491.
522
TAVARES, Discurso... op. cit., p. 805.
523
EGAS, Eugênio. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVIII, parte II, 1915, p. 720.
524
EGAS, Discurso... op. cit., p. 721.
174
e de ponderação das tendências históricas que delimitavam às instituições sociais, construindo,
assim, a representação de um futuro possível. Por meio dos ensinamentos do passado existia a
chance de se determinar com o rigor da justiça o valor moral dos homens que pelo pensamento
e pela ação, pela palavra e pela escrita, realizaram as suas ações no cenário do mundo.525 Sendo
eles, portanto, ícones possíveis para as gerações que ainda estão por vir.
Mas é interessante observarmos, mais uma vez, a questão da moralidade. Essa
preocupação moderna apresentava-se como um resíduo da historia magistra vitae, como
apresentado. Existia a valorização do sentimento moral, que se consubstanciava na ideia de
patriotismo, que ensina em perspectiva futurocêntrica. O conteúdo moral, para alguns sócios,
se distinguia: entre os antigos encontramos a ideia de natureza humana transmitida pela
continuidade estática entre passado e presente, com a ideia de honra, glória e eternização; entre
os modernos havia a ideia do progresso futurista, principalmente na ordem material, industriosa
e técnica, da paz entre os povos e da elevação do patriotismo como categoria central no
aprimoramento do gênero humano. Em última medida ocorre uma transformação da moralidade
entre antigos e modernos. Mas a disposição para a aprendizagem continua, pois é uma constante
antropológica. Tristão de Alencar Araripe deixou-nos algumas indicações:
525
CASTRO, Alocução do presidente… op. cit., p. 412.
526
ARARIPE, Indicações... op. cit., p. 279.
527
PEIXOTO, Discurso… op. cit., 1919.
175
O que apresentamos por hora era a capacidade moderna do ensino da história. Ela era,
para muitos sócios, elaborada cientificamente em termos de utilidade pública. Ela refazia o
passado, o transformava em memória, além de ensinar o presente e o próprio futuro. O topos
em seu contexto-epistêmico agora modernista ensinava em uma dimensão tripla: reconstruía o
passado, fazendo-o fator de orientação formativa, além de ensinar o presente e prever o futuro.
176
Capítulo 5 - Uma história pública? O valor pragmático do estudo do passado,
ou a utilidade social da história
Convém, portanto, sugerir a instrução nacional
pelo doutrinamento da história.528
528
ARARIPE, Indicações, op. cit., p 262-263.
529
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXIII, parte II, 1900, p. 537-538.
530
O conceito de civilização empregado por Olegário Herculano de Aquino e Casto assemelha-se ao francês
descrito por Norbert Elias. De acordo com Elias, “(...) civilisé era, como cultive, poli, ou police, um dos muitos
termos, não raro usados quase como sinônimos, com os quais os membros da corte gostavam de designar, em
sentido amplo ou restrito, a qualidade específica de seu próprio comportamento, e com os quais comparavam o
refinamento de suas maneiras sociais, seu ‘padrão’, com as maneiras de indivíduos mais simples e socialmente
inferiores”. ELIAS, Norbert. Sociogênese do conceito de civilisation na França. In: _____. O processo civilizador.
Vol. 1: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 52. A diferença em Olegário Herculano é que a
sua noção de civilização absorvia a dimensão edificante dos antigos
531
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXI, parte II, 1896, p. 347.
177
desenvolvimento das forças intelectuais pela instrução e por meio da efetividade do direito e da
seguridade das liberdades públicas. Tudo era propriedade da civilização.532
E Tristão de Alencar Araripe assume, em suas Indicações sobre a história nacional, que
a função social da história533 é a de instruir e civilizar os povos.534 Os domínios da história
guardavam a capacidade de ensinar e de formar cidadãos e cidadãs. Em seu entender, a história
tinha a vocação para guiar os destinos dos agentes históricos na esfera pública nacional,
provendo aos seus cidadãos “experiência” e “tino preventivo”. Devia-se sugerir a instrução
nacional através do “doutrinamento da história”.535
A proposta de realizar o doutrinamento dos cidadãos via saber histórico, em sua acepção
pedagógica moderna, apresentava o dilema sobre qual tipo de passado deveria ser evocado, e
de que forma possuía, ou não, uma função pragmática536 no presente, quer dizer, de que maneira
as representações históricas poderiam se performar enquanto esteio para o melhoramento e a
intervenção no mundo político-social do país. A exemplaridade do passado permanecia entre
as preocupações dos letrados do Instituto, porém ela não era uma fonte irrefletida e natural,
mas, sim, uma instância na qual se poderia apoiar criticamente, ou um gérmen que tinha o futuro
encapsulado em si. De todo modo, o tempo histórico em sua dimensão pragmática abria a
possibilidade de os sujeitos gerirem, de alguma maneira, o mundo fenomênico. A palavra de
ordem é patriotismo, “um sacro amor”537, e o passado brasileiro deixa à disposição os estímulos
532
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p.730-31.
533
A história passa a ter valoração pragmática e utilidade política e social pari passu com a sua estruturação como
ciência no contexto da segunda metade do século XVIII e primeira do século XIX. “A utilização política da
‘História’, que atingia um amplo público de ouvintes e leitores, só foi possível porque a História foi entendida não
apenas como ciência do passado, mas sim como espaço de experiência e meio de reflexão da unidade de ação
social e política que se tem em vista”. GÜNTER, Horst; ENGELS, Odilo; KOSELLECK, Reinhart; MEIER,
Christian. O conceito de história. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 190.
534
A concepção de civilização de Tristão de Alencar Araripe e de outros sócios coevos, remonta, como quer Jean
Starobinski, à segunda metade do século XVIII francês: a “(...) palavra civilização tanto mais rapidamente quanto
constituía um vocábulo sintético para um conceito preexistente, formulado anteriormente de maneira múltipla e
variada: abrandamento dos costumes, educação dos espíritos, desenvolvimento da polidez, cultura das artes e das
ciências, crescimento do comercio e da indústria, aquisição das comodidades materiais e do luxo. Para os
indivíduos, os povos, a humanidade inteira, ela designa em primeiro lugar o processo que faz deles civilizados
(termo preexistente), e depois o resultado desse processo. É um conceito unificador”. STAROBINSKI, Jean. A
palavra ‘civilização’. In: _____. As máscaras da civilização. São Pulo: Companhia das Letras, 2001, p. 14.
535
ARARIPE, Indicações, op. cit. p 262-263.
536
Essa ideia de história pragmática pode ter raízes a partir de uma recepção difusa de certo hegelianismo na vida
letrada brasileira do século XIX e primeira metade do XX. Hegel elaborou três formas de história: a história
original, a história reflexiva, a história filosófica. A história pragmática localiza-se como uma modalidade da
história reflexiva, que recebe essa designação em razão de ministrar ensinamentos e instrução. Hegel ressalta a
mobilização da história pragmática para o ensinamento moral. A história pragmática cumpre, portanto, o vaticínio
de ser uma mestra educadora. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1999, p. 15.
537
ARARIPE, Indicações, op. cit., p 289.
178
necessários para que os contemporâneos alcancem esse sentimento de pertencimento
civilizacional via instrução pública.
O saber histórico para Adolfo Augusto Pinto era fonte de progresso, de aperfeiçoamento
moral e de autoconhecimento histórico-social não apenas da nação, mas dos próprios sujeitos
enquanto participantes de uma mesma cultura. Vemos, então, os regimes de historicidade
moderno e clássico atuando em uma mesma episteme e recorte espaço-temporal, isto é, na
Primeira República brasileira. Para esse estudioso:
O passado está morto: entretanto não há fonte mais exuberante de vida, mais
forte estímulo do progresso, melhor escola de aperfeiçoamento do que este
glorioso campo santo – o reino dos mortos! Desamá-lo seria desamar as nossas
próprias raízes, o ambiente e o processo de nossa formação, a maior porção
do nosso ser; seria, em resumo, desamarmos a nós mesmos.538
Luiz Alves da Silva Porto assumia que o seu conhecimento sobre história era mais
aproximado da utilidade social da disciplina. Disse que por conta do trabalho ordinário em mais
de meio século não lhe sobrara tempo “para o estudo de gabinete”, no qual se adquire o saber
meditado. Não lhe fora “dado folhear os livros de ciências”, mas asseverava que seguia o
caminho da análise e do estudo dos “homens e das coisas”, “formando, então, um pequeno
pecúlio de experiência, o qual, a seu turno, não se aprende nos livros”.539
Para o jornalista José Carlos Rodrigues, a produção historiográfica dos sócios do IHGB
não deveria se restringir à atividade de “coligir narrativas fiéis dos acontecimentos”, uma das
tarefas tradicionalmente realizadas pela agremiação e que não poucas vezes foi reafirmada
naqueles salões, através do regime historiográfico metódico. Também era condição para a
realização de um trabalho de teor historiográfico encontrar o sentido subjacente aos fenômenos
passados, o que pode ser percebido através das categorizações de sentido dadas à história: a
“alma do povo”, o centro dos “ideais e aspirações” de um país, a “síntese do seu temperamento
moral e intelectual”.540 Os estudos históricos educam e cultivam o que Rodrigues chama de
“consciência nacional”, a maior tarefa que o historiador enquanto figura intelectual pode
fomentar. Resumindo sua argumentação: “um país sem tal ideal é um agrupamento, mas não
538
PINTO, Discurso... op. cit., p. 364.
539
PORTO, Luiz Alves da Silva. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXII, parte II, 1899, p. 323.
540
RODRIGUES, José Carlos. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXX, 1907, p. 727. Os historiadores se encaixam
na larga categoria “intelectuais” no contexto da Primeira República. Segundo Angela de Castro Gomes e Marieta
de Moraes Ferreira, pode-se perceber, a partir de um balanço sobre a produção intelectual na Primeira República,
o seu papel vanguardista na política, lugar em que esses sujeitos arrogam para si, bem como assimilam a
identificação geral que a sociedade brasileira projeta junto ao seu vaticínio, a missão de esclarecer as elites
envolvidas com a construção do Estado-nação. GOMES, Angela de Castro; FERREIRA, Marieta de Moraes.
Primeira República: um balanço historiográfico. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 270.
Disponível em: https://cutt.ly/AcLGwvf Acesso: 08 abr. 2021.
179
uma nacionalidade: terá crônicas e memórias, mas não história propriamente”. 541 Também
podemos destacar em seu texto estas palavras: “pesquisar este passado, porém, não é
necessariamente tarefa do antiquário (...)”.542 A aptidão, cara ao exercício do historiador, pode
fortalecer os vínculos patrióticos, fundamentais à consciência nacional, sendo responsável por
guiar o horizonte de sentido dos sujeitos dentro de um todo coletivo que se quer civilizado.
Tal perspectiva acerca da figuração e do papel da história como saber que intervém no
social pode ser melhor compreendida através deste outro rápido comentário realizado pelo
jornalista em seu discurso de posse:
Ainda há dias um célebre arquiteto francês, que por aqui passou, nos
aconselhava que não imitássemos as capitais europeias, mas nos aplicássemos
a realçar nossas próprias belezas naturais. Ora, quanto mais acertado é tal
conselho no que toca ao nosso próprio gênio, à nossa índole nacional: como
adquirirmos essa consciência senão pelo estudo da nossa própria história.543
Tendo isso em vista, o saber histórico em sua dimensão pragmática ressalta a identidade
nacional, a sua independência como agrupamento humano face às demais nações; o que é
motivo suficiente para que se evite toda a sorte de impulsos e de paixões no interior de tal
coletividade, bem como a alienação pela cultura alheia.544
O adágio magisterial moderno estava em pauta para aqueles sócios do Instituto
Histórico: a análise intelectual dos eventos passados fornecia estabilidade ao presente, bem
como o esteio para os projetos futuros do país.
Nas suas prescrições sobre a utilidade da história para a sociedade, Joaquim Xavier da
Silveira Junior ressaltava que no Brasil contemporâneo existia a necessidade de enaltecer os
nossos antecedentes morais e étnicos, que por seu turno enchiam os cidadãos da República do
sentimento de ufania e de glória, dando ao país um lugar destacado entre os povos que
almejavam o engrandecimento da civilização nos trópicos.545
O comandante Antônio Coutinho Gomes Pereira era um dos sócios que ressaltavam a
característica social presente na construção e na organização do saber historiográfico.
Apresentava-se como um “modesto operário” que auxiliava os “grandes arquitetos” na
execução de um saber plural e abrangente, destinado a capturar as linhas mestras que envolviam
541
RODRIGUES, Discurso... op. cit., p. 727.
542
Idem, p. 728.
543
Ibidem, p. 728.
544
Renato Ortiz admite que as discussões que giram em torno da identidade brasileira se operacionalizam em
contraponto ao estrangeiro. Cf. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense,
2006, p. 7.
545
Cf. JUNIOR, Discurso... op. cit., 1907.
180
o sentido do passado. Por isso a história se expandia cada vez mais - ela trazia todas as
qualidades da sua conceituação magisterial moderna:
546
PEREIRA, Discurso... op. cit., p 522.
547
Eliana Dutra adverte “que a realidade de uma escrita da história, como monumento nacional, praticada por
alguns historiadores afinados com a moderna ciência da história, é um demonstrativo da rota tomada pelo país na
via da cultura e da civilização”. DUTRA, Eliana de Feitas. Rebeldes literários da República: história e identidade
nacional no Almanaque Brasileiro Garnier (1903 – 1914). Belo Horizonte: Editora Humanitas, 2005, p. 215-216.
181
O valor pragmático da história, de saber que informa e transforma a realidade,
especialmente pela ação difusora da instrução pública ilustrada, sanava as principais carências
de orientação porque passava a sociedade em questão com o seu recém instaurado modelo
político-administrativo e de sociedade. Na perspectiva magisterial moderna a história abria a
possibilidade de uma compreensão não estática do passado e projetava, igualmente, futuros em
aberto aos brasileiros e às brasileiras; sendo esses futuros possíveis construídos pela ação
humana, senhora do devir, posto que estes passavam a pertencer à instância do racionalizável.
Aptos, pois, a modelar o presente e a perspectivar projetos de modernização que poderiam
colocar o país na vanguarda civilizacional. Essa disposição fez do passado elemento identitário
em direção tanto interna quanto eterna.
O sócio Alfredo do Nascimento e Silva não titubeou em afirmar a máxima: a história
conhece as mazelas do passado e previne os seus desdobramentos no presente e no futuro. E a
pragmática da história estava à serviço do esclarecimento548 dos povos e das sociedades, o que
atende aos interesses da civilização.
Interessante a perspectiva do autor: o esclarecimento via história, como processo e como
episteme, passa pelo delineamento completo de todos os segmentos sociais em que os agentes
históricos estão inseridos. Do mais simples ao mais complexo, evolutivamente: do homem,
célula matriz da sociedade, passando por tribos, famílias, raças e povos. 549 Movimento que
imprime uma clara tentativa de hierarquizar os estratos do tempo. É um tipo de história
absorvida pelos ditames que estabelecem um estado de colonialidade.
O povo é, em seus variados aspectos étnicos e sociais, o agente da história nessa
formação discursiva. A pragmática utilitária da história se ocupa com o seu porvir, o seu vir
ser; a nação é vista em formação, ela não possui um acabamento prévio: “no futuro desse quadro
jaz uma multidão muito maior e muito diversa dessa que acabamos de ver”. 550 O texto de
Araripe é paradigmático nesse sentido e o cânone republicano passou a eleger personagens que
faziam parte do que se considerava ser o povo brasileiro, representante ativo da história. A
pragmática da história, e com ela a função social da história, oferece os contornos da moderna
548
Sobre as dimensões envolvendo o esclarecimento da história cabe a seguinte reflexão: “O conceito de
esclarecimento, na medida em que possui o sentido de processo, significa algo inacabado, voltado, por excelência,
para o futuro. Este ponto de partida da presente exposição não é desprovido de pressupostos. A liberdade e a crença,
dela decorrente, de que haja algo como um progresso ou aperfeiçoamento ético do ser humano, são os alicerces
imprescindíveis da compreensão da história aqui em jogo. Pressupõe-se, por outras palavras, que os homens não
são deterministicamente programados em seu agir, mas que são, ao contrário, capazes de auto-regular-se, auto-
orientar-se. BICCA, Luiz. O esclarecimento e a moral da história. Síntese. Revista de filosofia, Belo Horizonte, v.
17, n. 51, 1990, p. 34. Disponível em: https://cutt.ly/WcLmTtZ Acesso: 08 abr. 2021.
549
NASCIMENTO E SILVA, Um átomo... op. cit., p. 100.
550
Idem, p. 100.
182
historia magistra vitae. O que estava em jogo era o rastreamento de uma formação discursiva
que assumia existir entre os modernos a possibilidade a história fornecer ensinamentos.
Para Barbosa Lima, a história supera uma mera disposição factual sem profundidade
social ou interpretativa, em que não se faz possível encontrar diretrizes de sentido entre os
eventos. Ressalta, por outro lado, a utilidade social e pragmática para esse tipo específico de
saber. Diz ele: “na confusão aparente com que os acontecimentos se sucedem há que aprofundar
o exame desse possível nexo (...)”.551 Esse gesto, de natureza indutiva e próprio da pesquisa em
si, deixa à vista o que pode ser considerado como um mero acidente histórico e aquilo que, de
fato, se reproduz insistentemente, ainda que sob fisionomia multidirecional, caracterizando
tendências ou séries repetitivas; acentuando feições, assim, destinadas a prevalecer, oferendo
um uso prático do estudo da história para aqueles que se interessam em intervir positivamente
em termos de ação social.
Percebemos, no discurso de Barbosa Lima, a influência da sociologia positivista
capitaneada por Auguste Comte, chamada pelo sócio de “sociologia dinâmica”, que oferece,
pautada em postulados ditos científicos, uma teleologia altruísta e positiva ao povo diante da
dinâmica dos fatos históricos no tempo, na medida em que promete a paz, a eliminação da
guerra, da tortura e da escravidão.
Tendo como pressuposto tais considerações epistemológicas, o autor citado enxerga o
sentido histórico das nacionalidades de tipo ocidental ancorado em aspectos “egoístas” sobre o
que chama de inclinações simpáticas ao povo: “longos séculos se passam antes que as vitórias
do altruísmo se possam generalizar e impor aos estadistas e as multidões”. 552 Essa história que
o associado elabora de maneira prescritiva não deixa de possuir, em certa medida, tons de
denúncia, evocando mesmo uma linguagem tacitista em sua formulação, e isso não entra em
choque, a seu ver, com as condições de imparcialidade caras ao ofício - ambas as posições
convivem epistêmicamente:
551
LIMA, Discurso... op. cit., p. 570-71.
552
Idem, p. 571.
553
Ibidem, p. 576.
183
Para se atingir condições de imparcialidade o saber produzido pelo Instituto Histórico
necessitaria inclinar-se pela busca da “verdade objetiva”, porque os eventos de natureza moral
e social, que estão sob os cuidados do historiador, trazem consigo a singularidade de portarem-
se de maneira modificável. A análise isenta, guiada pela ciência e pelo senso de objetividade,
permitiria uma conduta favorável ao historiador no sentido de produzir uma narrativa dita
verídica e pública, que significava justa e neutra, dos fatos passados, podendo ressaltar, nessa
direção, tanto a dimensão conflitiva ali presente quanto a de tons continuístas inscritas no
conjunto de contextos que formam o tecido histórico.
Para Gastão Rush, a história não pode ser elaborada e concebida como “um simples
repositório de fatos”. O seu papel e a sua utilidade alcançam outro patamar: “o de guia seguro
para os que se dedicam à difícil tarefa de governar”. Ou seja, a história, em sua dimensão
pragmática, cumpre funções políticas ideológicas e pode estar relacionada com o ordenamento
possível do espaço público. Esse sócio acredita em leis que condicionam as instituições e a
sociedade, e a história pode fornecer o conteúdo dessas leis, preservando a sua neutralidade,
aos estadistas, tornando possível conhecê-las profundamente visando uma intervenção social,
“para levantar o denso véu que cobre o futuro, para maior benefício de sua pátria e da
humanidade”.555 Ao crer na cientificidade da história e em sua utilidade social e pragmática,
porque proporciona “uma série de encadeamentos, cujos elos oferecem não poucas vezes bem
fundadas analogias”, passa a ser possível ao historiador desvelar e evidenciar situações passadas
em que o provimento do bem da esfera pública, preservando a axiologia de sua epistemologia,
ou a harmonia social são prejudicados. Exemplifica com a “teoria imperialista”:
554
Por mais que o campo da história pública e suas práticas sejam demandas da atualidade, e que as suas
perspectivas estejam relacionadas com problemas contemporâneos, podemos posicionar a ideia de história pública
em perspectiva histórica. Para o caso em questão projetamos a ideia de história pública para o contexto estudado,
pois nesse momento a história também era pensada para o grande público, possuía função de intervenção na esfera
pública, preocupava-se com os problemas sociais da época, implicando, portanto, em uma postura que transcendia
ao internalismo de uma comunidade epistêmica. Ver ALMEIDA. Juniele Rabêlo; ROVAI, Marta Gouveia de
Oliveira (orgs.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
555
RUSH, Discurso... op. cit., p. 747.
556
Idem, p. 749. Mescharcebê não pode ser localizado
184
Angela de Castro Gomes pondera que o esforço dos historiadores em prover uma
utilidade social à história estava ligado à necessidade de se efetivar uma cultura cívico-
patriótica no país, responsável por oferecer condições de possibilidade para o agente da história
republicana emergisse: o cidadão.557 A República trouxe consigo a demanda pelo
estabelecimento de discursos de identificação coletiva, patrióticos e que disseminariam
sentimentos, valores e simbologias adequadas ao momento político em questão. E nessa direção
que a história pátria passou a ocupar um lugar estratégico. Em virtude desse quadro político-
social a educação nacional, e toda a sua carga cívico-patriótica subjacente, apresenta-se
imperativa, ainda mais quando carregada de perspectivas histórico-identitárias.
Castro Gomes é assertiva com relação a esse ponto:
(...) a educação era vista como a mais segura das estratégias para se
transformarem os comportamentos e valores das sociedades rurais, patriarcais
e tradicionais, criando uma nova mentalidade, mas conforme aos valores das
consideradas modernas sociedades urbano-industriais.558
557
GOMES, A república... op. cit., p. 85.
558
Idem, p. 95.
185
sem os horrores desencadeados em outras nações, quase como uma transição natural do regime
liberalíssimo, que nos felicitara por cerca de meio século”559
Mas a noção de que a República se realizava como desdobramento do eixo da formação
da experiência histórica nacional, tendo os cidadãos a missão patriótica de acompanhar esse
direcionamento temporal, trazia consigo, para não poucos letrados, a sensação de incompletude
e de que as coisas ainda estavam por fazer; deixando certa impressão de que existiria um
descompasso entre o tempo social e o tempo histórico; entre “o lento e descontínuo
desenvolvimento social e o progresso do tempo”. O tempo da nação parece, nesse sentido,
“desorientado”.560 A utilidade social da história, a pragmática social, a busca por orientação e
por sentido a partir do entendimento e da difusão da história, levava esses sujeitos a enfrentarem
essa situação cuja direção é o ordenamento do tempo e a nacionalização do passado. A
dimensão pragmática da história, a história em si e para si, conforme a teorização clássica de
Reinhart Koselleck561, aparece como uma das maneiras possíveis para o tempo da nação poder
ter um encontro consigo mesmo. De qualquer forma, o que está em pauta entre os sócios do
Instituto Histórico para enfrentar essa situação envolve a reescrita da história, como episteme e
mais profundamente como processo, além da disponibilização de dispositivos de
inteligibilidade aptos a reordenar a temporalidade. Movimento intelectivo que operava uma
verdadeira negociação com o pecúlio historiográfico já disponibilizado pelas gerações que
fundaram o Império, readequando-o para as demandas esperadas por aquele auditório.562
A sensação de aceleração do tempo, de que tudo pode desaparecer através da sua
velocidade, implica em um retorno à história, particularmente a da pátria, “para retemperar a
alma combalida pela superexcitacão da vida moderna nas tradições do nosso passado, que
nenhum outro conheço em mais ricos em rasgos de abnegação e de civismo”.563 Para Viveiros
de Castro, o aspecto mais importante relacionado ao caráter de uma nacionalidade é o da
consciência do seu valor próprio, e isso o faz pensar a situação brasileira, porque, em seu
entender, os cidadãos vivem demasiadamente voltados para questões do presente, sem que se
ocupem com projetos de futuro: fantasmas do perigo germânico e o problema da tutela política
559
GALVÃO, Ramiz. Parecer da comissão de história para a admissão do sócio João Ribeiro. RIHGB, tomo 78,
parte II, 1915, p. 630.
560
Cf. NICOLAZZI, Um estilo de história... op. cit., 2008.
561
Cf. KOSELLECK, Futuro passado... op. cit., 2006.
562
Sobre o processo de reescrita da história na passagem para o século XX a partir da obra de João Capistrano de
Abreu cf. OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu. Rio
de Janeiro: FGV, 2013. Para a autora, a reescrita é uma dimensão própria da historiografia moderna.
563
CASTRO, Discurso... op., p. 710.
186
dos EUA são as grandes questões que o sócio aponta como as maiores preocupações dos nossos
intelectuais. Citando Castro:
em vez de nos considerarmos um povo que tem confiança na sua força, e que
se sente capaz de alcançar os mais gloriosos destinos, porquanto não pesa
sobre nós a maldição divina que o único obstáculo que o esforço humano não
pode superar, vivemos exclusivamente preocupados com o presente (...)”.564
Pedro Lessa aponta em seu discurso de posse para outra missão consagrada ao trabalho
do historiador em sua dimensão pragmática. Em seu entender, o Brasil ainda é um país novo,
que diferentemente, por exemplo, da Europa não comporta tradições e tendências
conservadoras tão arraigadas.565 Isso pode ser constatado, afirma o jurista, a partir das “bruscas
transformações de ordem política e jurídicas” a que o Brasil assiste, “não facilmente realizáveis
em outro ambiente”.566 Interessante destacar que essa expressão, país novo, é frequentemente
mobilizada no período: uma história enquanto processo que ainda está por ser concretizada, a
qual se movimenta para realizações em um futuro em aberto. Com o auxílio das ciências sociais
ela é virtualmente prefigurada no sentido de evocar a materialização de benefícios sociais para
a esfera pública republicana. A seguinte exemplificação de Lessa nos oferece algum
entendimento acerca da pragmática da história demandada por alguns sócios: as ciências
sociais, ao utilizarem a base empírica oferecida pela história, cuja correção na apuração das
circunstâncias que propiciam a emergência dos fatos sociais a identifica como domínio de saber,
estão aptas a efetivarem processos comparativos entre regimes políticos, como no caso entre
parlamentarismo e presidencialismo, quer em relação ao outro quer em caso de alternância entre
eles em diversas partes do globo.
Tais propostas permitem a compreensão do que entendiam os sócios da atuação da
história para as necessidades do novo regime, pois ela, em conjunto com as ciências sociais,
poderia oferecer segurança racional para analisar a conjuntura política que melhor se adequaria
a determinados países, levando em consideração fatores étnicos e do meio social.
Em outra interpretação pragmática da história, Viveiros de Castro coloca em suspeita,
visto que considera um equívoco que impede o progresso político, a comparação entre Estado
e “organismo humano”. Em seu entender, o equívoco do esquema organicista de Estado reside
na atribuição de idades progressivas e estanques para situar o seu desenvolvimento: infância,
564
Idem, 710.
565
Sobre esse tema ver HANSEN, Patrícia. Sobre o conceito de ‘país novo’ e a formação de brasileiros nas
primeiras décadas da República. Iberoamericana, vol. 24, n. 45, 2012, pp. 7-22. Disponível em:
https://cutt.ly/8cLKZ3i Acesso: 08 abr. 2021.
566
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXX, parte II, 1907, p. 719.
187
virilidade e velhice, com crises próprias nas respectivas idades. Afirma que é uma concepção
escolástica que é tomada como dogma científico. O Brasil vive, nesse sentido, no descompasso
das idades, o que impede o seu progresso devido à crise de consciência que se instaura dentro
desse esquema teórico. “Vã teoria! Erro funesto!!” Para ele, não é a idade mais avançada que
leva a sua extinção e a sua ruína, mas, sim, a “corrupção dos cidadãos” - e a história brasileira
evidencia essa afirmação. Tal situação só pode ser sanada através da instrução pública e do
conhecimento integral da pátria, pois implica no engrandecimento da ideia de respeito com
relação ao domínio público e um sentimento de dever para com o desenvolvimento da ordem
democrática: “O futuro da Pátria, senhores, está exclusivamente nas nossas mãos: somos nós
os obreiros do seu progresso, os sustentáculos da sua honra e do seu prestígio internacional”.567
O conhecimento do passado é o lugar seguro para se superar “injustificados desânimos”. A
evocação dos antepassados revigora a energia social, pois esse movimento leva ao adágio latino:
impavidi progrediamur, quer dizer, corajosamente progrediremos.
Para José Bernardino Bornan, a utilidade social da história, a sua racionalização
instrutiva, se confunde com a sua função magisterial, na medida em que pode servir
especialmente aos negócios públicos atuais:
Parece que há em nosso país certa aversão pela História, a mestra da vida,
como definiu um grande orador da antiguidade; entretanto, o seu cultivo
especialmente por aqueles que dirigem ou aspiram dirigir os negócios
públicos, é uma grande necessidade, porque em suas páginas eles encontrarão
ensinamentos, erros e mesmo desastres. O homem público que lembrar-se de
que a História, como disse Lamartine, é Panteão dos nomes ilustres, mas
também o pelourinho dos nomes infames, há de pautar os atos pelos preceitos
da moral e da justiça, para que a memória não acorrentada ao pelourinho, a
essa coluna, emblema da ignominia, que História ergue em suas páginas para
o castigo dos maus.568
567
CASTRO, Discurso... op. cit., p. 712.
568
BORNAN, Discurso... op. cit., p. 766.
188
essa liberdade é justamente através do desenvolvimento da inteligência e da ilustração.569 Uma
instituição como o IHGB não poderia deixar de ter como uma das suas preocupações e diretrizes
justamente a instrução, que era vista, então, como verdadeiro bem do aperfeiçoamento moral e
civilizador.570 Cabendo assinalar o forte pendor ideológico desse modo de educação.
A questão da utilidade social da história reforçava as preocupações quanto à instrução.
A educação pela via da consciência histórica deixava à disposição dos futuros cidadãos da
República, segundo algumas posições dos sócios da instituição, a possibilidade de se
reconhecerem como coparticipes de um todo coletivo diferencial.571 Além do mais, a educação
vista como instrução pragmática, ou seja, capaz de prestar serviços ao progresso e ao
melhoramento social nacional faz da história não apenas uma disciplina que oferece um
conhecimento sensível acerca do passado, mas, igualmente, uma instância de intervenção no
devir histórico: ao sujeito é possível ser senhor do destino da nação.572
Herculano prescreve, “sem embaraços que dificultam a marcha dos tempos”, que caso
se quisesse ver o rápido e o franco adiantamento e progresso da vida social não se poderia
prescindir da instrução ilustrada. Estava, pois, na consciência dos principais intelectuais573 do
569
GOMES, Angela de Castro. A escola republicana: entre luzes e sombra”. In: _____; PANDOLFI, Dulce Chaves
e ALBERTI, Verena (orgs.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira / FGV-CPDOC, 2002.
570
CASTRO, Olegário Herculano D’Aquino e. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901, p. 323.
571
Nesse sentido, os “historiadores, então, passaram a definir com maior precisão que a ‘história é a nação: a
história é a civilização’, exatamente quando se ampliava o direito à cidadania a uma parcela maior da população.
Nesta perspectiva, a História tornou-se imprescindível para a formação da cidadania, integrando-se no currículo
escolar que buscava direcionar a pedagogia, ou seja, a escola tinha como função criar e aperfeiçoar ‘uma pedagogia
do cidadão’”. BITTENCOURT, Circe. Pátria, civilização e trabalho. O ensino de história nas escolas paulistas
(1917-1939). São Paulo: Edições Loyola, 1990, p. 18. Maria Helena Câmara Bastos sugere que o “fortalecimento
do sentimento nacional exigia, também, a educação do caráter, entendida como educação moral, preceitos, regras,
exemplos, conselhos, comentários morais de fatos da vida escolar e da história”. BASTOS, Maria Helena C.
Amada Pátria idolatrada. Um estudo da obra Porque me ufano de meu país, de Affonso Celso (1900). Educar em
Revista, Curitiba, n. 20, 2002, p. 4. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/educar/article/view/2109 Acesso: 08 abr.
2021.
572
José Veríssimo enfatiza, em A Educação nacional, a premência de um programa de educação nacional em que
o ensino de história aparece como tarefa fundamental: "A educação nacional não se pode fazer senão pelo estudo
da Pátria e, no estudo da Pátria, a sua história é, quase poderia dizer, a parte principal". VERÍSSIMO, José. A
educação nacional. Rio de Janeiro; São Paulo; Belo Horizonte: Livraria Francisco Alves, 1906, p. 97. Lucia Maria
Paschoal Guimarães assinala que na “ótica dos letrados que frequentavam o IHGB, conhecer a realidade do país e
seus problemas, apenas não bastava. Era preciso modificá-la. Neste sentido, entendiam que a escolarização, em
todos os níveis, se constituía num instrumento poderoso de correção do processo evolutivo e capaz de impulsionar
o progresso da sociedade brasileira”. GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. A presença do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro no campo da educação superior: O projeto da Academia de Altos Estudos – Faculdade de
Filosofia e Letras: (1916-1921). Revista de História, n. 141, 1999, p. 94. Disponível em: https://cutt.ly/scLJz0v
Acesso: 08 abr. 2021.
573
Sobre as relações entre propaganda educacional, civismo e história pátria ver: GOMES, Angela de Castro. José
Veríssimo e ‘A educação nacional’. História pátria e cultura política republicana. In: JUNIOR, Raimundo Barroso
Cordeiro; CURY, Cláudia Engler; FLORES, Elio Chaves (orgs.). Cultura histórica e historiografia: legados e
contribuições do século XX. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2010, esp. 148. Para Angela de Castro
Gomes, naquele contexto vários intelectuais partilham da ideia “de construção de uma narrativa da história do
Brasil ‘acessível a’ e ‘compreensível por’ um grande público de cidadãos ou de futuros cidadãos republicanos,
189
país a compreensão das “vantagens reais” e dos “incalculáveis benefícios” que resultavam da
boa organização e do aperfeiçoamento do ensino das classes populares.
Os monumentos simbólicos erguidos por toda a parte em homenagem às letras e às
ciências, às artes, à piedade, à indústria, às instituições de ensino prático, aos estabelecimentos
de doutrina e de instrução moral e religiosa, às associações pias, aos liceus, aos institutos
profissionais e tantas escolas de educação, prendem homens e mulheres republicanos à “ciência
da vida”, em proveito de si mesmos e da sociedade da qual fazem parte.574
Utilizando-se de um vocabulário corrente à época, de matriz organicista, Alfredo
Nascimento e Silva argumentava que a educação leva à “higiene social”, apontando que os
cidadãos republicanos têm a oportunidade de desenvolvimento tendo como base o
conhecimento da história por intermédio da instrução, da moralidade e do civismo; elementos
que conjugados suspendem os atavismos formativos projetados junto ao país. Essa higiene
social seria um fator de civilização, desde que a população se submetesse aos ditames da razão
médica, marcada pelo cientificismo da época.
Nascimento e Silva assinala que a instrução pública só se concretiza satisfatoriamente
por meio do implemento de escolas em todo o território brasileiro: “a cada escola que se abre
corresponde uma masmorra que se fecha”.575 O universo escolar livraria os cidadãos
republicanos do cativeiro da ignorância sobre si, sobre os outros, sobre o passado e sobre o
futuro. Se desejava a educação como uma esfera libertadora, nos moldes iluministas, ainda mais
quando provida de sensibilidade histórica: promotora de esclarecimento e de autoconhecimento
coletivo, bem como fomentadora de expectativas quanto aos projetos políticos de nação. Ele
escreve, dessa maneira, a história da Associação Amante da Instrução Pública, instituição
“benemérita” inspiradora para o país - um verdadeiro átomo de história pátria. Conhecer “um
átomo da história é levar, portanto, um contingente ao seu todo, fornecer um substrato à sua
apreciação e colocar uma pedra nos seus alicerces”.576
A referida Associação foi fundada no Primeiro Reinado. Em seus primeiros anos de
funcionamento era denominada de Sociedade Jovial e Instrutiva. Ela tinha função
assistencialista: favorecer as parcelas da população que sofriam com as mazelas sociais do país.
Seu objetivo era, além disso, o de buscar a instrução pela educação primária. Essa iniciativa é
um futuro-passado que deve realizar-se na República sob a forma de política pública: “a Amante
As meninas que são atendidas por essa instituição são tratadas pensando na
sua posterior entrada na vida de casada, no exercício do papel de esposa,
conforme as características da época, exercendo um papel de mulher, que tem
na função progenitora do lar, um dos seus locais de ação por excelência.578
577
Ibidem, p. 127.
578
SILVA, A escrita da história no IHGB... op. cit., p. 60.
579
VERÍSSIMO, A educação... op. cit., p. 60.
580
GUARCH, Discurso... op. cit., p. 231.
191
interessados na causa maior da educação, da instrução primária ao ensino superior. Esse modelo
educacional, encontrado em países europeus, sana problemáticas verificadas no desequilíbrio
da instrução no país e fomenta a necessidade de vulgarizá-lo amplamente. Assim, ele descreve
o modelo educacional das universidades populares:
Ela foi instituída para as classes obreiras no sentido mais amplo da palavra,
para todos aqueles cidadãos que, por diversas razões de arte, de ofício, de
emprego, de negócio, não dispõe para instruir-se senão das horas da noite e
dos dias festivos; porém isto não significa que as Universidades Populares
sejam somente para os operários, senão para as pessoas que tem necessidade
de completar uma parte ao menos do ensino científico, posto estejam
obrigados a consagrar a maior parte do seu tempo em ocupações comerciais e
industriais.581
Com esse tipo de ensino, amparado no saber histórico lato sensu, especialmente na
esfera do devir, se tem em mente a consecução de uma sociedade de igualdade e de
confraternização, que também cultiva o sentimento mais nobre, isto é, o do amor pátrio.
A utilidade das atividades do Instituto Histórico está em sua missão educadora,
capacitada no esclarecimento dos povos e das nações não só na América como de todo o mundo.
Para o sócio argentino Garcia Merou, não é só a riqueza material e o desenvolvimento
econômico dos povos que formam o índice ou o coeficiente do progresso. A ilustração, o
esclarecimento, a educação são caminhos contundentes para que as nações se desenvolvam
plenamente. Nisso repousa a utilidade social das pesquisas do Instituto. 582
Tudo isso não deixa de ser, como frisado acima, um processo civilizador-ideológico.
Para o sócio Jonathas Serrano está entre os artistas, os intelectuais e os mestres
professores o direcionamento dos caminhos do devir histórico nacional: missão nobre,
patriótica e a mais veneranda a causa da educação entre os brasileiros e as brasileiras da
República, e o IHGB deve abraçá-la e orientá-la. Os sócios do Instituto Histórico ilustram e
educam a juventude, transmitindo o vivo fogo patriótico. O professor é o grande agenciador da
civilização e das glórias nacionais: essa obra se mantém no transcurso do tempo, propaga-se
por gerações sucessivas que recolhem “tesouros” e erguem admiráveis monumentos do saber
humano. Ensinar é fecundar, é desenvolver, é aviventar, é promover as faculdades intelectuais
superiores, sobretudo, aquelas de ordem moral e ética.583 A educação serve à pátria, na mais
alta acepção do termo: o reconhecimento do brasileiro enquanto tal, despido de uma visão
581
Idem, p. 231.
582
MEROU, Discurso... op. cit., p. 337.
583
SERRANO, Discurso... op. cit., p. 518-19.
192
deturpada, estereotipada ou alienada sobre si mesmo. Evita-se, nesse caso, a instauração do não
lugar, ou seja, do desterro.
No início da década de 1920 saem prescrições dos salões do Instituto sobre a utilidade
da história em termos de “profilaxia rural” e de instrução pública primária. Para Manuel Porfírio
de Oliveira Santos o que se impõe é a elevação “da instrução primária antes de tudo, visto que,
no meu entender deve ser, mesmo com sacrifício, profundamente disseminada por todo o
país”.584 A instrução pública caminha, assim, ao lado da história enquanto processo, posto que
sem ela não é possível assimilar a instituição de um povo organizado, no sentido de almejar o
desenvolvimento, o “adiantar-se no tempo”, e o progresso civilizatório. Sem a instrução pública
“se anulam as legítimas aspirações de um povo no tocante ao polimento dos seus costumes, a
soberania das suas leis, a cultura de sua inteligência, ao possível aperfeiçoamento, em última
análise, do seu estado social”.585 Um povo sem instrução é cativo da história; uma situação que
o aprisiona em um eterno vir a ser que não se concretiza. Não dirige o curso da história, mas é
dirigido por ele. Segundo suas palavras: “um povo sem instrução é cego, a quem falta a luz do
entendimento para guiá-lo no caminho da vida: é uma coletividade, que, pela obstrução das
suas faculdades intelectuais, irremissivelmente se afunda no obscurantismo de suas ideias”.586
É a educação que orienta o caminhar da história ao progresso e ao estabelecimento dos
melhoramentos sociais necessários. O desenvolvimento da consciência histórica é motivo
suficiente para uma campanha pela educação pública.
A difusão da educação pública, principalmente de seu ensino primário, é o caminho para
o que é chamado, como dito, de higiene social, condição para que as regiões menos favorecidas
do país, especialmente nos sertões, suspendam o estado de “descuido”: “Amolentadas no ócio,
sem aspirações nem estímulos, nota-se, naquelas populações, a ausência de toda ação de
aperfeiçoamento, de independência, de gozo e bem-estar”.587 Devemos lembrar que o projeto
apresentado era higienista e tinha forte marcador ideológico, prevendo a domesticação dos
corpos, embora aparentemente preocupado com a saúde e educação das suas populações.
A história em perspectiva pública tornaria possível a essas populações conhecerem os
princípios da sua existência, podendo se precaverem das “moléstias do corpo”, se formando via
educação. É a forma que elas passariam a saber “quais os deveres que a natureza e a sociedade
lhe impõem, a se utilizar dos meios posto à sua disposição pela ciência, para combater as
584
SANTOS, Discurso... op. cit., p. 802.
585
Idem, p. 802.
586
Ibidem, p. 802.
587
Ibidem, p. 803.
193
doenças das inóspitas regiões que habitam”.588 Não! Enfatiza o sócio: o sertanejo não é um
doente. O seu problema está relacionado com a pouca educação que tem à disposição.589
Existe, pois, um represamento de “energia viva” entre essas camadas sociais, que são
consideradas antes de tudo fortes - “Esta é a doutrina de Euclides da Cunha”.590
E para a solução desse problema público, no qual a história como instrução direciona o
destino das nações, os sócios indicavam a educação primária como o ponto de partida.
Aos olhos dos sócios da agremiação no período, a história tem a utilidade de ser
formadora integral dos seres humanos. A história é o diagnóstico, em termos de processo, para
os problemas sociais brasileiros, assim como é o destino das suas ações - individuais ou
públicas. É pela história que se diagnostica nossos males de origem, inclusive de origem
biológica, sendo a educação em sentido lato sensu a fórmula eficaz para se quebrar com os
supostos atavismos impostos por nossa formação histórico-social. Assim, “desconhecer a
existência desses males e a necessidade de combatê-lo, sustento que, atualmente, é a maior
necessidade a atender é derramar a fluxo à instrução primária por todos os recantos do país”.591
Salientamos, de forma breve, que em 1916 o Instituto inaugurou uma Academia de Altos
Estudos, transformada em Faculdade de Filosofia e Letras que funcionou até o ano de 1921.592
Entre os seus professores encontravam-se intelectuais respeitados à época, tais como Ramiz
Galvão, Afonso Celso, Max Fleiuss, Clóvis Bevilaqua, Roquette-Pinto, Afrânio Peixoto,
Alfredo Gomes, Laudelino Freire e Ramalho Ortigão.
Quer Academia ou Faculdade, o que depreendemos das iniciativas institucionais do
IHGB é que elas representavam uma decisão de intervir e de participar ativamente nos debates
e nas contendas inscritas no âmbito do ensino e da educação lato sensu daqueles contextos. Elas
foram o resultado de longos anos de debates, apontamentos, sugestões, discussões e
enfrentamentos que os sócios da agremiação promoveram na Primeira República.
588
Ibidem, p. 803.
589
Pode-se encontrar no seguinte texto um histórico do chamado sanitarismo rural na Primeira República:
SANTOS, Luiz Antonio de Castro. O pensamento sanitarista na Primeira República: Uma ideologia de construção
da nacionalidade. Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 28, n.2, 1985, p. 193-210 – conferir a p.
4. Disponível em: https://cutt.ly/OcZhVlp Acesso: 08 abr. 2021. Segundo o autor: “Era o resgate dos sertões e do
sertanejo que se impunha como tarefa de construção da nação. É nesse sentido – da busca, no sertão, das raízes da
nacionalidade– que o passado não nos condenava, mas antes nos redimia”.
590
SANTOS, Discurso... op. cit., p. 803.
591
Idem, p. 803.
592
Cf. MELO, Thais. Da Historiografia à Academia: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro na educação e
na política educacional do início do século XX (1900 – 1920). História e cultura, Franca, vol. 7, n. 2, 2018, pp.
203-225. Disponível em: https://cutt.ly/BcL3p5L Acesso: 08 abr. 2021. GUIMARÃES, A presença do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro... op. cit., pp. 91-100.
194
Uma temática historiográfica de utilidade pragmática, provavelmente advinda do
ideário positivista circulante relacionava-se ao estabelecimento da paz entre os povos.593
Evitava-se uma visão conflitiva do devir histórico, sendo o caminho pacifista o mais adequado
para o progresso das nações em termos de orientação moral e democrática. O moderno
historiador deveria distanciar-se da importância dada pelos antigos aos eventos belicosos ou às
narrativas heroicas de guerra. A reescrita da história na República e a sua difusão, que passava
por novos ângulos temáticos e de análise, celebrava os grandes heróis da paz e os momentos de
congraçamento entre as nações e os povos, aqueles que traziam consigo a melhoria da esfera
pública e a concórdia entre os sujeitos.
Joaquim Nabuco pregava, por exemplo, a deposição das armas e dos conflitos na história
brasileira, celebrando os acordos diplomáticos que traziam benfeitorias às nações. A guerra, e
toda a sua destruição, era objeto de interesse dos antigos, e possuía como palco o “velho
mundo”. Já a paz era o destino manifesto dos povos americanos, mesmo após os sangrentos
episódios da colonização e das guerras de independência, acontecimentos que não deixavam de
manchar a história do continente.
Mas não devemos esquecer que no Instituto Histórico parte dos seus sócios silenciavam
os conflitos inseridos nos movimentos, chamados nativistas à época, que contestavam o status
quo da Colônia, fazendo o caminho para o Império e, posteriormente, para a República
parecerem um “processo natural, caracterizado pela ausência de traumas e rupturas”.594
O conhecimento social da história, a sua utilidade e a sua pregnância junto ao mundo da
vida, caminhava em direção dos horizontes pacifistas. Tomado isoladamente, segundo Alberto
Torres, o sujeito é, em toda a parte, um inimigo da guerra. Esteja onde estiver, no terreno natal
ou no estrangeiro, o sentimento, a razão e o interesse comum pela ordem acompanham os
agentes históricos. Seja qual for o seu estado, para onde se dirija a sua intenção e a sua sorte, a
sua fortuna ou a sua predestinação, a sua história de modo amplo, ele está ligado ao pacifismo.
A história é, como devir, a diretora do curso da paz.595
593
A sociologia de Comte oferece um esquema de entendimento da experiência da história pautado em três fase
sucessivas. A fase teológica-militar implica a explicação dos fenômenos sociais através de seres ou forças. Já a
segunda etapa é a metafísica, a qual invoca entidades abstratas para a compreensão humana. Enquanto isso a
terceira etapa é a fase positiva, onde espírito humano de forma autorreflexiva observa criticamente o devir humano.
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Nesse terceiro nível
surgem as sociedades industriais, as quais Comte acredita ser o Estado de civilização mais desenvolvido. Nelas
prevalece o pensamento positivo científico, aglutinador do espírito humano, desassociado da violência e das
guerras, voltado para a assistência humana e para a adoração da humanidade, seu objeto de culto. CARVALHO,
José Murilo de. A humanidade como deusa: o movimento positivista brasileiro defendeu os direitos dos negros,
das mulheres e dos operários. Revista de História da Biblioteca Nacional, 21 set. 2007, pp. 1.
594
GUIMARÃES, Debaixo da imediata... op. cit., p. 523.
595
Cf. TORRES, Discurso... op. cit., 1911.
195
Então, uma das utilidades sociais mais admiradas da história, a ponto de ser concebida
como um dos mais significativos avanços da civilização ocidental, uma conquista da
humanidade, estava vinculada à confraternização dos povos. Mesmo que haja, por vezes,
instabilidade na unificação das sociedades políticas, a história é útil no sentido de promover a
aproximação entre todas as nações do globo. Havendo incidentes efêmeros que desatam os laços
da civilização fraternal dos povos existe o ensino da história como fórmula e como remédio
para se precaver de algo que é considerado um retrocesso. A paz, a união entre as diversas
nacionalidades, o armistício político, são sintomas de engrandecimento humano só possíveis de
serem alcançados pelo magistério da história.
A partir de uma interpretação organicista, Alfredo do Nascimento e Silva nos explica os
caminhos necessários para essa utilidade social, ou esse valor pragmático, da história,
José Veríssimo não era adepto do adágio antropológico das raças puras, ou arianismo.
O Brasil é, conforme pensa, o local privilegiado para se verificar tal asserção. O autor propõe
que no país, mais do que em outra parte do mundo, tende a emergir uma sociedade mesclada,
distanciada dos seculares preconceitos europeus, das disposições sociais das antigas
civilizações asiáticas, bem como da contornável “barbárie” dos africanos, considerações que
596
NASCIMENTO E SILVA, Alfredo. Discurso em razão da recepção dos sócios Garcia Merou e Tomaz Ribeiro.
RIHGB, tomo LVIII, parte II, 1895, p. 340-341.
597
VERISSIMO, José. As populações indígenas e mestiças da Amazônia. Sua linguagem, suas crenças e seus
costumes. RIHGB, tomo L, parte I, 1897, p. 295.
196
ainda denotam preconceito. Ele pondera que o português, diferentemente dos ingleses, não se
constrange em se miscigenar com os indígenas e com os africanos e que a partir desse contato
ele civiliza as demais etnias, mas também as absorve para transformar-se física e moralmente.598
O estudioso paraense apresentava uma concepção de mestiçagem bastante particular,
baseada na hereditariedade psicológica, teoria provavelmente de matriz haeckelista (Ernst
Haeckel (1834- 1919), a qual preconizava que os sofrimentos e os traumas são transmitidos dos
pais para os filhos, com impactos geracionais. Argumentava que no âmago mais íntimo dos
chamados mestiços, em suas psiques, localizavam-se todos os sofrimentos das gerações que os
antecederam, sobretudo, as que passaram pelo martírio da escravidão. Essas aflições, que no
passado se corporificavam dolorosamente, nas gerações atuais se manifestariam sob a forma de
abatimento, de tristeza e de apatia. Essa postura teórica de Veríssimo confrontava aquelas
teorias cientificas sobre o nacional, especialmente as inspiradas em Agassiz, que classificam os
brasileiros e as brasileiras como indolentes devido a mestiçagem em termos morais.
Enquanto isso, o entendimento da mestiçagem estava, para Tristão de Alencar Araripe,
relacionado intrinsecamente com o meio, pois esse interfere na moldagem da fusão étnica entre
as raças. A consciência sobre a mestiçagem importava pelo fato de apontar para a identidade
do ser nacional, e por oferecer uma forma de acompanhamento racional, dando margem para a
prevenção de possíveis atavismos, dos seus caminhos - que ainda estavam em processamento,
sobretudo em razão da imigração.
O que o Araripe propunha não deixava de ser um exame sobre o que é ser brasileiro(a).
E esse exercício iniciava-se pelo conhecimento da colonização, momento que as raças
observadas em nossa formação iniciaram um processo de mutação que chegava até aquele
momento. Ter consciência desse processo impediria que seguíssemos o caso europeu: o do
conhecimento incompleto da sua etnicidade, posto que negligenciavam a presença ancestral dos
asiáticos em sua formação. Era necessário conhecer todas as determinantes étnicas nacionais,
para a verificação do grau formativo do brasileiro(a), com todas as temporalidades subjacentes
a esse movimento, permitindo a coevos a possibilidade de racionalizar esse processo e propor
políticas públicas.599 Há, no texto de Araripe, a possibilidade de manipulação do
desenvolvimento étnico da nação para a concretização de uma raça brasileira.
598
VERISSIMO, As populações indígenas... op. cit., p. 296-297
599
Cf. ARARIPE, Indicações... op. cit., 1894. Sobre o fenômeno da mestiçagem no Brasil da passagem do século
XIX para o XX ver VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870 -
1919. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. De acordo com Rodrigo Turin, Romero também assume que o
objetivo da análise da mistura étnica é “estabelecer um sentido histórico que rege o contato”, “propondo modos de
lidar conscientemente com esse processo de mestiçagem. A mistura tem um sentido; ela deve ter um sentido que
coincida com o sentido da viabilidade de uma ordem social”. TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, projetar o
197
Alberto Torres salientava que o problema das raças humanas, como questão de seleção
social, já era matéria julgada pela experiência. No seu entender, porque já verificado, em quatro
séculos de miscigenação as diversas “variedades humanas” do Brasil foram capazes de atingir
o grau mais elevado de aperfeiçoamento moral e intelectual alcançado por qualquer outra raça
alheia. Em sua compreensão, o mestiço, o representante étnico nacional, é possuidor de uma
vitalidade e de uma média de longevidade, de fecundidade e de inteligência acima da alcançada
pelas raças ditas superiores. E afirma categoricamente que o negro e o índio são suscetíveis de
elevados padrões morais e intelectuais.600
Outra das funções públicas da história foi, com a sua respectiva utilidade social,
fomentar os estudos indigenistas. Não apenas os de gabinete, na acepção de Couto de
Magalhães, mas os públicos, no sentido de trazer o indígena, sobretudo, os da região norte, para
o seio da civilização. Segundo Couto de Magalhães:
futuro. Sílvio Romero e a experiência historiográfica oitocentista. Dissertação (Mestrado em História) – Programa
de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, p. 169. Disponível em:
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/10266 Acesso: 03 dez. 2020.
600
TORRES, Discurso... op. cit., p. 591-92.
601
MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXVII, parte II, 1904, p. 458.
602
O indigenismo triunfante na Primeira República é o de natureza positivista, que sob a égide da chamada
proteção fraternal visa a aculturação das comunidades indígenas. Cf. RODRIGUES, Cíntia Régia. A construção
da política indigenista na República brasileira a partir das ideias de modernidade. Tellus, ano 11, n. 21, 2011, pp.
203-223. Disponível em: https://www.tellus.ucdb.br/tellus/article/view/248 Acesso: 08 abr. 2021.
198
indigenista de Couto de Magalhães verificamos, ali, também as dinâmicas do processo
civilizador-ideológico.
Diferentemente do negro, mormente analisado sob uma perspectiva negativa, o indígena
não era considerado apenas como um agente social “bárbaro” e inapto à civilização, porém, era
representado, não poucas vezes, como um elemento que poderia alcançar a redenção, bastando,
a realização de ações efetivas da esfera pública nacional para promover esse ideal - atitudes
elaboradas, por exemplo, pela catequização.603 Esse movimento imprimia uma atualização de
uma longa tradição de abordagem indigenista presente no próprio IHGB.
Outra postura quanto ao mesmo problema encontramos no opúsculo O selvagem perante
o direito, publicado na RIHGB em 1901, por Souza Pitanga, em que há uma clara defesa dos
povos indígenas diante do tipo de sociedade estruturada na República. Ele iniciou sua análise a
partir da revelação da acentuada diminuição da população indígena desde a colonização,
tornando público que em um horizonte não muito longe poderia haver a “extinção da raça”.
O autor continuou a sua argumentação, após deixar o leitor ciente do genocídio indígena
no Brasil, salientando os usos retóricos da teoria da inferioridade racial como pretexto para a
escravidão e para a usurpação das riquezas dessas populações. E salienta, como Alberto Torres,
que não há inferioridade étnica. Além disso, ele argumentava que os indígenas compartilham
um tipo específico de civilização, o que não os impede de fazer parte “comunhão brasileira”.604
Havia um propósito indigenista no artigo de Pitanga ao colocar em evidência a grade de
leis elaboradas no Brasil referente ao problema indígena. O sócio do Instituto salientava que os
índios brasileiros se organizam socialmente a partir do que chamava de “estado de natureza”, e
que deveria ser preservada tal condição social, política e cultural. Além disso, essa situação
fazia com que as leis da sociedade juridicamente organizada não se adequassem ao modo de
vida indígena, necessitando esses agentes de leis específicas.
Essas preocupações de história pública foram levantadas pelos sócios do Instituto
Histórico relacionando-as com o estabelecimento de eventos, de situações e de temáticas
históricas que deveriam despertar nos cidadãos e nas cidadãs o sentimento de amor patriótico.
No entanto, tal disposição junto ao passado não ocorria de maneira apaziguada, natural ou sem
seletividade, posto que o novo simbolismo historiográfico republicano estava em aberto e em
disputa, sendo objeto de divergência tanto no que dizia respeito aos personagens, eventos e
temáticas em si quanto no que se referia à forma de moralidade prática que eles difundiam.
603
SCHWARCZ, O Espetáculo das Raças... op. cit., p. 111–113.
604
PITANGA, A. F. de Souza. O Selvagem perante o direito. RIHGB, tomo LXII, parte, 1901, p. 24.
199
Seguindo a linha argumentativa construída por Tristão de Alencar Araripe, observamos
o privilégio na escolha de abordagens que identificam o sentido da colonização e os
desdobramentos da mestiçagem e da imigração corrente no país.
Essas temáticas diante do olhar do historiador proporcionam uma atitude compreensiva
mais sofisticada acerca da história brasileira, mesmo que elas já estivessem em circulação no
Oitocentos entre os intelectuais e em diferentes espaços de saber. A reescrita da história em sua
dimensão pública demandava sensibilidade sobre os momentos originários da nação. Havia
uma demanda pública colocada à história relacionada com a promoção de interpretações que
facultassem aos cidadãos a partilharem um passado comum na República, em que os(as)
brasileiros(as) pudessem se reconhecer, bem como se almejava
uma definição étnica possível para o povo, resultado do congraçamento de diferentes elementos,
com temporalidades igualmente distintas, que levam ao chamado “molde do brasileiro”.605
605
Cf. ARARIPE, Indicações... op. cit., p. 1894.
606
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 320.
607
Cf. VIANNA, Discurso... op. cit., 1924.
200
A história extrapolava virtudes epistêmicas chegando à problemas de ordem pública,
quer dizer, o estudo do passado, enquanto vocação e como análise, ia além da dimensão
historiográfica ou artística, na medida em que ela tinha por intenção última a exaltação e o culto
de natureza ufânica, incutindo, em tese, nos brasileiros e nas brasileiras os mais nobres
sentimentos de pátria e de civismo. Em suma, ela estava além do deleite artístico e da
curiosidade. E estava além da dimensão especulativa, posto que o seu fim último era
pragmático, quer dizer, de intervenção e de operação na própria realidade social.608 Esse era o
fim, de qualquer maneira, de toda obra que se queria, então, de ciência social. O sentimento de
amor desmedido pela pátria não retirava da história a virtude epistêmica da objetividade. Antes:
era a objetividade das ciências sociais, incluindo a história, a responsável por cultivar o
sentimento de ufanismo entre os brasileiros e as brasileiras. Nesse sentido, para além de todas
as habilidades, desejos e virtudes epistêmicas constituía-se a história a partir da valoração
pública, de atuação ética visando o melhoramento da sociedade. Essa postura pública da história
era a requerida pela “consciência nacional” demandada pela esfera pública republicana em
busca da legitimação política (não partidária) e dos seus principais símbolos estruturantes.
O engrandecimento da pátria era, para Vianna, um processo cumulativo, ou seja, ao
longo dos séculos, pela meditação sobre a experiência da história, os sujeitos nacionais
adquiriram, do século I ao V, uma entusiasmada “consciência nacional”:
Nossa História não é, como a do pequeno Portugal, uma história que terminou;
é, ao contrário, uma História em começo, uma História em marcha, que
acentua cada vez mais o seu interesse. Nela não vamos buscar uma lição de
resignação, para repetir a frase de Sealey, mas uma lição de entusiasmo e de
fé, um maior sentimento de nós mesmos e do nosso próprio presente, uma
consciência mais iluminada e mais robusta do nosso próprio futuro.609
608
A historiadora Tania Regina de Luca, ao comparar os registros epistêmicos da geografia e da história, salienta
o seguinte: “À visão grandiosa fornecida pela geografia contrapunha-se uma história sem ou cor ou brilho -
circunstância que causava uma sensação de profundo desconforto, tornada ainda mais incômoda na medida em
que a essas disciplinas atribuía-se nobre função de ensinar aos cidadãos a cartilha do patriotismo”. LUCA, A
Revista do Brasil... op. cit., p. 86.
609
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 449.
201
pública de dilatar, inflar, intensificar, esclarecer, entusiasmar, amar desmedidamente um país
que passava, ao menos nos círculos letrados, por uma espécie de sentimento de descompasso
na ordem do tempo. A consciência nacional levava, enquanto formação discursiva, ao
entendimento que se deve respeitar, por exemplo, os heróis e os mártires da história brasileira,
sobretudo, no que diz respeito aos aspectos morais herdados dos mesmos.
Em suma, o conhecimento e o estudo do passado possuíam para aqueles sujeitos valor
inestimável, pois iam além da dimensão interpretativa ordinária; atingindo a dimensão
pragmática. Ela tem valor de história pública, de utilidade social.
O que estava em jogo era, para Oliveira Vianna, que o estudo do passado desse margem
para investigações que deveriam ter por mote a operação ou intervenção no presente no sentido
de melhoramento social, a partir da valorização do passado e por meio da consciência
nacional.610 A história, no limite, era um caminho cívico-patriótico que se deveria trilhar.
Na pena de Basílio de Magalhães encontramos a constatação da utilidade do trabalho
do historiador: fortalecimento da consciência nacional, amor pela pátria e busca do progresso
enquanto fundamentos para a sociedade republicana. Essas percepções podem ser visualizadas
a partir da recepção negativa que dá a obra de Francisco Adolfo de Varnhagen:
Essa volta às origens, recorrente entre os nossos letrados, haja vista a proliferação de
ensaios de síntese histórica, como forma de encontrar os males de origem nacionais, exigia a
apreensão do invisível da nação: algo substancial na experiência da história, materializada em
moralidade, em ação social, em atitudes, em valores ou em sentimentos. Muitas vezes tal desejo
não era alcançado por meio da história disciplinada. Por isso demandava-se o seu estudo
pragmático, que por sua vez não deixava de movimentar usos políticos do passado612, como é
o caso da ufania – versão demasiadamente otimista da nação. Entendemos, neste estudo, o
610
Cf. Idem, 1924.
611
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 590.
612
HARTOG, François; REVEL, Jacques. “Note de conjoncture historiographique”. In: _____. Les usages
politiques du passé. Paris: Éditions de L’école des Hautes Études en Sciences Sociales, 2001, p. 14.
202
ufanismo enquanto uma mutação do conceito antigo de história na República, mais
especificamente do seu topos exemplar historia magistra vitae.613
Por fim, a utilidade social da história estava presente nos horizontes interpretativos de
Aurelino Leal. Para ele, o cuidado com que certos legisladores, publicistas, professores e toda
sorte de intelectuais da época assimilavam a história pensada e produzida no IHGB, por meio
de uma perspectiva lato sensu de formação, mostrava-se como um indicativo importante e
consistente de que se tornava necessário incutir “na alma do adolescente o conhecimento dos
tempos já vividos”.614 Para complementar a asserção, o estudioso cita o filósofo francês Alfred
Fouillée: “O ser que não tem nenhuma noção de História é um novo mundo como uma criança
ou mesmo como um órfão que jamais tivesse conhecido seus país”.615 A ausência de história,
como episteme e como ontologia, provoca a indiferença do homem para com tudo aquilo que o
cerca. O passado é em todos os tempos um estimulante do presente e um provocador de
imitações públicas. Condição para o estabelecimento de uma consciência nacional, isto é, para
a elaboração de um conhecimento sobre si, que significa, também, autorreflexão.
613
Para Juliana Bastos Marques, a capacidade de fornecer exemplos de conduta e de valores cívicos, própria da
historiografia antiga, permanece atuante na modernidade, avançando pelo século XX adentro. MARQUES, Juliana
Bastos. A historia magistra vitae e o pós-modernismo. História da historiografia, n. 12, 2013, pp. 63-78.
Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/618 Acesso: 08 abr. 2021.
614
LEAL, Discurso... op. cit., p. 706.
615
Idem, p. 706.
203
Parte III
O peso do cientificismo
204
Capítulo 6 - Os desafios da (não) cientificidade da história
A história é um contínuo devir, um fueri perpétuo:
e, pois, pela sua própria natureza escapa à
determinação de um princípio diretor.616
Pedro Lessa
Oliveira Vianna
616
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 258.
617
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 444.
618
Thiago Lima Nicodemo, Pedro Afonso Cristovão dos Santos e Mateus Henrique de Faria Pereira fazem uma
descrição acerca da voga científica entre os historiadores da passagem para o século XX: “(...) os historiadores
formados no contexto da crise da Monarquia e nos primeiros anos republicanos procuravam se distanciar das
205
possível ou estava ligada ao âmbito da arte? Seria um ramo da retórica? Enfim: como fazer a
história ser uma ciência social?
Fazer história para Raul Tavares é conferir foros científicos a uma prática onde a
produção da verdade histórica é desvelada pelo olhar cognoscente, ou seja, capaz de assimilar,
pelo historiador, o conhecimento de forma objetiva. Para tanto, se requer a autoridade do
cientista: um intelectual público que também fala para os cidadãos.619 Ele estava inserido em
uma comunidade dita científica620, qual seja, a comunidade do IHGB, a qual partilhava das
tradições do método crítico e dos trabalhos com as fontes documentais, investindo na
assimilação das ciências sociais como dimensão explicativa. Isso quer dizer que no Instituto se
produzia uma ciência com alto grau de base empírica, não se configurando em uma abstração
metafisica em suas funções e em seus fundamentos analíticos. A história oferece esse suporte
analítico estruturante dos seus padrões explicativos ditos científicos. Conforme Tavares:
A postura de Raul Tavares como historiador era historicista, pois não havia nenhum
elemento de origem transcendente ou metafísico em sua visão sobre o conhecimento histórico.
Tudo se passava neste mundo – no tempo e no espaço.622 Para o autor, o historiador deve ser
um cientista, porque historiar significa “compreender as belezas naturais que os fatos encerram,
(...) desvendar como eles foram, como eles são”. Há, aqui, uma clara intenção de situá-los no
tempo percebida quando ele usa a metáfora do “pintar”, ou seja, a antiga cor local romântica.
gerações anteriores, mostrando-se atualizados nas discussões científicas típicas da Belle Époque. As diferenças de
fato, técnicas, vão se colocando em um tempo mais lento, mas geram efeitos importantes na experiência da
história”. PEREIRA, Mateus H. F.; SANTOS, Pedro Afonso C.; NICODEMO, Thiago Lima. Uma introdução à
história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2018, p. 41.
619
Ivan Domingues traça um panorama das relações entre o ethos científico, a ética republicana e os horizontes do
intelectual público na modernidade. Cf. DOMINGUES, Ivan. O intelectual público, a ética republicana e a fratura
do ethos da ciência. Revista Scientiae Studia, v. 9, n. 3, 2011, pp. 463-485. Disponível em: https://cutt.ly/kcLPX2z
Acesso: 08 abr. 2021.
620
Thomas Kuhn ao elaborar a noção de “comunidade científica” tem como objetivo, em nosso entender, pensar
a ciência como uma prática coletiva, e para que essa atividade possa, de fato, ser constituída torna-se necessário a
observância de um espaço epistêmico único, próprio, adequado para que ela, enfim, se desenvolva com certa
legitimidade. Cf. KUNH, A estrutura das revoluções... Op. cit., 1975.
621
TAVARES, Discurso... op. cit., p. 495.
622
Entre as possíveis atribuições do historicismo podemos encontrar esta, definida por Gunter Scholtz: “A
transposição do modo histórico e genético de percepção para todos os fenômenos da cultura, isto é, uma percepção
histórica universal do mundo humano, que, assim, aparece como histórico, como mundo historicamente
determinado”. SCHOLTZ, Gunter. O problema do historicismo e as ciências do espírito no século XX. História
da historiografia, n. 6, 2011, p. 44. Disponível em: https://cutt.ly/pcZj9bZ Acesso: 08 abr. 2021.
206
Trata-se de um recurso adaptado ao contexto cientificista que tinha como ambição tornar a
história situacional, circunscrevendo as qualidades da experiência, dos sujeitos e das suas
instituições. De todo modo, “História é uma ciência, como queria Alexandre de Humboldt, e o
historiador deve ser um cientista”.623
Nesse sentido, vários fatores foram observados por Olegário Herculano, presidente do
IHGB, para a realização de uma ciência da história: a absorção da tradição, a abordagem da
sucessão dos fatos, a análise destes, a apreciação do caráter dos homens e das mulheres a partir
da historicização da vida social ou da experiência. Isso exerceria, então, influência sobre o
desenvolvimento, o progresso e o tipo de civilização de um povo.624
Para os sócios da Primeira República, a contribuição do Instituto à ciência era
reconhecida, na medida que em seus salões o dissenso tomava parte naquela comunidade de
historiadores.625 As suas contribuições científicas, que possuíam apelo público, estavam
contidas nos artigos da Revista e na reprodução das atas das sessões veiculadas desde 1838, e
suas atividades configuravam-se, na visão de Belisário Pernambuco, como “um repositório” a
ser emulado, o que dava a ideia de comunidade ou campo “útil e instrutivo nos conhecimentos
humanos”.626 Tratava-se, portanto, de uma Revista que era o veículo da ciência ali produzida:
Não há, até hoje, na língua portuguesa uma outra publicação que, na espécie,
a exceda em valor histórico-científico; e daí procede o afã com que a mesma
revista é procurada pelas Academias e pelos homens que consagram a melhor
de suas atividades ao cultivo da inteligência."627
623
TAVARES, Discurso... op. cit., p. 495.
624
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXI, parte II, 1898, p. 730.
625
Nos inspiramos nas reflexões de filosofia política de Jacques Rancière para pensar o dissenso no interior de
uma comunidade científica. A escolha dessa noção visa a valorização da diferença e do conflito. Essa comunidade
comum é, pois, instituída pela própria divisão. Cf. RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES Adauto (org.)
A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
626
PERNAMBUCO, Discurso... op. cit., p. 269.
627
Idem, p. 269.
628
Júlio Bentivoglio aponta o lugar do periódico de história junto à matriz disciplinar. As suas colocações cabem
para a Revista do IHGB na Primeira República: “Estratégia, dispositivo e agência ao mesmo tempo, as revistas
acabaram por capturar para si a fama e a autoria, singularizando-se ao lado de autores ou de obras clássicas.
Tornaram-se espaços desejados de publicação e objetos privilegiados de leitura.” BENTIVOGLIO, Júlio. Revistas
de história: objeto privilegiado para se estudar a história da historiografia? In: ARRAIS, Cristiano Alencar; _____
(orgs.). As revistas de história e as dinâmicas do campo historiográfico. Serra: Editora Milfontes, 2017, p. 10.
207
Através dos seus volumes, vários regimes de saber podiam ser acionados, desde o clássico até
o mais contemporâneo. Na biblioteca do IHGB estavam presentes todas as ferramentas para o
funcionamento de um verdadeiro “laboratório científico”. Tanto que por meio do estudo das
revistas e dos livros que compunham a seu acervo, encontramos a prescrição da virtude
epistêmica da abnegação, no sentido de que para se fazer ciência seria necessário a erudição,
que só se conseguiria com o passar do tempo e com a recusa de aspectos do mundo social.
Souza Pitanga, orador na recepção de Belisário Pernambuco, chegou a evocar a metáfora
epistêmica do “departamento científico” para figurar as atividades e as ações dos seus sócios.629
Estaríamos, portanto, diante de uma comunidade científica.
A abrangência de temas e de propostas de ciência abarcada pela “pacifica scientiae
occupatio” tornava o Instituto, no parecer de Pernambuco, uma “oficina de trabalho”, um lugar
aberto para o esclarecimento da consciência nacional, bem como um auditório apto a receber
“cultores da ciência” que traziam alento aos estudos históricos, geográficos e etnográficos. Na
agremiação estariam os “verdadeiros apóstolos do intemerato patriotismo”, que, no seu
entender, “sacrificam o necessário repouso da afanosa existência, empenham-se na pugna
científica, na reinvindicação moral da nossa pátria, pela investigação dos pergaminhos” e pela
apuração das “nossas preciosidades históricas”.630 Uma série de virtudes epistêmicas, de
habilidades e de desejos eram acionados para o cumprimento dessa persona acadêmica. Entre
elas: a da diligência, própria do regime historiográfico metódico, como também a da função
social da história como fim último do conhecimento da pátria, que era o remetente dessas
asserções, além da salientada ascética abnegação. Também estava presente, como podemos
perceber, o caráter desinteressado e universal das suas atividades, próprio das comunidades
científicas, tornando os sócios do grêmio “evangelizadores do saber”.631 A procura incessante
pela verdade, para além dos seus códigos internos, afluía no sentido da “perfectibilidade
humana” em perspectiva historicizada; esteio para o progressivo “cultivo humano”.632
Havia uma noção de comunidade científica, ou epistêmica, na fala dos sócios, em que
se mantinha e se reforçava tradições de pensamento em uma espécie de “apostolado científico
que se impõe à respeitosa admiração do mundo civilizado”. Isso quer dizer que o fazer
629
PITANGA, Antônio Ferreira de Souza. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXIII, parte II, 1900, p. 273.
630
PERNAMBUCO, Discurso... op. cit., p. 266.
631
Para Robert Merton, o desinteresse é um dos quatro pilares que conformam a ética científica: a “tradução da
norma do desinteresse na prática é efetivamente apoiada pela responsabilidade última dos cientistas em relação a
seus pares competidores. Os ditames do sentimento socializado e da conveniência coincidem amplamente, uma
situação que contribui para a estabilidade institucional”. MERTON, A ciência e a estrutura social democrática...
op. cit., p. 195.
632
PERNAMBUCO, Discurso... op. cit., p. 266.
208
historiográfico na agremiação era visto como uma contínua cadeia de progressos, ou seja, as
ações e os estudos do passado no grêmio serviam de estímulo para as gerações presentes, assim
como as futuras. O estudo diligente da passagem do tempo era preservado, assim como o desejo
pela ordem cívica.633 Nesse sentido, os trabalhos do Instituto Histórico, reforçados pelo
exemplo da sua Revista que informava os fazeres ali cultivados, apresentam-se enquanto um
“monumento construído por nossos maiores”.634 Eis a uma performance possível da
aristocrática persona “pacifica scientiae occupatio”:
Nesse sentido, não era o credo político ou a seita religiosa partidária, nem a
proeminência do social ou os desígnios da fortuna que orientam, exclusivamente, as atividades
ali executadas. O IHGB, por meio da sua persona, era representado como uma comunidade em
que prevalecia o sentimento do dissenso. Era uma noção de comunidade bastante desenvolvida
em que se balizavam, mas não se eliminavam as diferenças – se vistas, claro, em perspectiva
historicizada e da pela ótica da colonialidade do saber. Os regimes historiográficos, as virtudes
epistêmicas, os paradigmas ou as formações discursivas existiam de maneira correlata, lado a
lado, no IHGB. Tem-se, então, a instauração de uma matriz disciplinar.636 Temos outra
caracterização da persona “pacifica scientiae occupatio”:
633
No Brasil, assim como na França do mesmo período, o “aggiornamento científico e a reivindicação de um
magistério cívico são inseparáveis e se exprimem, em particular, na produção e na difusão de uma história
nacional”. DELACROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA; Patrick. Correntes históricas na França:
séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p 106.
634
PERNAMBUCO, Discurso... op. cit., p. 266.
635
Idem, p. 267.
636
Cf. KUNH, A estrutura das revoluções... op. cit., 1975.
637
PERNAMBUCO, Discurso… op. cit., p. 267.
209
O Instituto movimentava, para o agremiado Aristides Milton, alguns horizontes
epistêmicos considerados indispensáveis para a escrita da história do Brasil. Além da relevância
para a elucidação dos fatos nacionais, estavam em jogo virtudes como a da justiça e do
estabelecimento da verdade, componentes fundamentais para a elevação da história à categoria
de ciência. O grêmio congregava, nessa direção, “operários do saber”, posto que o trabalho era
coletivo; e esses mesmos sócios trabalhavam “humildemente” para o progresso da sociedade e
da ciência. Os historiadores da instituição possuíam visão de justiça para com o passado ao
colocá-lo em seus devidos termos pelo trabalho de historicização. Outras virtudes eram
acionadas juntas com a do trabalho honesto, paciente e metódico, responsável por livrar a
experiência histórica do “esquecimento doloroso”, do “erro funesto”, da “inequidade atroz”.638
Todo esse movimento epistemológico resultava nesta constatação:
Como se pode perceber era a moderna história mestra da vida sendo acionada mais
uma vez. Recorda Olegário Herculano de Aquino e Castro, em sua alocução presidencial do
ano de 1901, que nem o passar dos tempos, nem a evolução das ideias ou até mesmo a
contrariedade entre as gerações desloca ou esmorece a perseverança e a energia daqueles que
congregam em nome da ciência histórica. Nesse métier não se leva em consideração, alerta
Herculano, “prazeres do espírito”, que são rápidos e inconstantes como os sentidos humanos,
mas, sim, aqueles que têm utilidade prática e que servem à vida dos cidadãos e das cidadãs,
sendo, então, eternizados pelo tempo. Através do estudo científico e da apreciação dos fatos se
estabelece uma epistemologia prática para o acesso à verdade histórica640, certamente como se
visa o bem geral da pátria, livrando-a dos erros e das incertezas que a rodeiam.641
638
MILTON, Aristides. Discurso de posse. RIHGB, tomo LVIII, parte II, 1895, p. 370.
639
MILTON, Discurso... op. cit., p. 370.
640
Segundo José Carlos Reis, os historiadores do século XX, e aí incluímos os sócios do IHGB, elaboram uma
epistemologia da história “prática”: os historiadores “observam o que a comunidade faz e o conhecimento e
verdade passíveis são definidos pela própria prática histórica. Não há que prescrever ou normatizar; há que se
praticar segundo os critérios estabelecidos pela comunidade de historiadores. O critério a ser observado é o da
‘intersubjetividade praticada’ pela comunidade dos historiadores, que é o único filtro competente e autocontrolável
para decidir entre o relevante e o irrelevante, o rigoroso e o fabuloso em história. E se esta muda, é normal e
desejável que se mudem os critérios e a prática. O conhecimento histórico encontraria sua validade na operação
concreta de historiadores concretos e não em uma definição ideal e apriorística, atemporal, do que ‘deveria ser’”.
REIS, José Carlos. História e verdade. Síntese – Revista de Filosofia, vol. 27, n. 89, 2000, p. 322-323. Disponível
em: https://cutt.ly/OcZaVgR Acesso: 08 abr. 2021.
641
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901, p. 320.
210
Jonatas Serrano observa, valendo-se dos escritos de Gabriel Monod, que nos meandros
da elaboração de toda e qualquer forma de saber há certa parte inevitavelmente incerta. É
precisamente o objetivo do método histórico perquirir os meios que circunscrevem uma
situação histórica específica, para que dessa forma logre a verdade mais perfeita possível.642
Porém, essa “inevitável parte de subjetividade e de hesitação tem azo a que muitos pensadores
neguem o caráter de ciência à nossa disciplina”. O certo é que a história não é uma infalível
geometria, afirma Serrano, nem tampouco se mostra como uma simples sucessão de acidentes
fortuitos coligidos ao acaso. É uma ciência sui generis. O domínio da história corresponde aos
fatos passados que, por conseguinte, não podem ser observados diretamente. Porém, ser passado
ou ser presente não demonstra um suposto caráter intrínseco e inerente próprio da natureza do
fato, porém, invoca as diferenças de posição relativas a um dado observador.643
É a história uma ciência?, texto publicado na Revista do ano de 1906, abriu as portas
da agremiação ao jurista Pedro Lessa. Na RIHGB, como forma de atenuar as vozes dissonantes
ali existentes, pois a questão da cientificidade da história não era algo totalmente resolvido entre
os sócios, o trabalho estampou outro título: Reflexões sobre o conceito da história. A intenção
de Lessa é a de apresentar o conceito de história entre antigos e modernos, bem como verificar
as possibilidades de a história realizar-se como ciência social. Como referido, o estatuto de
cientificidade da história era algo premente no contexto, confirmando a posição de Gomes:
642
Clayton Ferreira Borges elucida o contexto historiográfico no qual Monod estava inserido e suas maiores
preocupações: “a época histórica em que Monod e seus colaboradores se inseriam exigia cada vez mais dos
historiadores estudos baseados em fundamentos confiáveis, onde o exercício da generalização – pressuposto do
saber científico – fosse executado com maior prudência do que fora realizada pela geração anterior. Uma vez
admitida, a imaginação deveria servir ao historiador somente se apoiasse em textos, em vestígios do passado”.
BORGES, Clayton Ferreira e Ferreira. A historiografia francesa do século XIX nas páginas da Revue Historique
(1876 - 1914). Revista trilhas da história, vol. 8, n. 16, 2019, p. 123. Disponível em: https://cutt.ly/EcLQb34
Acesso: 08 abr. 2021.
643
SERRANO, Discurso... op. cit., p. 521.
644
GOMES, A República... op. cit., p. 25.
211
meditação acerca das suas dimensões entre os antigos até os seus mais notáveis contemporâneos
– não se estruturava como uma disciplina passível das performances de uma ciência social.645
Lessa afirma, a partir da obra de Henry Thomas Buckle (1821-1862), que “a história
provavelmente nunca se elevará às vastas generalizações, que debalde tentaram os seus
filósofos. A ciência que o gênio arrojado de Buckle supôs ter constituído, ainda hoje não é
ciência”.646 Acredita em suas elaborações prescritivas, apesar dos avanços da disciplina em
várias dimensões quando vista pela ótica da sua própria historicização, que a história é um
modelo intelectivo que não alcança o objetivo, por si só, de ser uma ciência social.
A noção de cientificidade historicizada por Pedro Lessa estava ligada ao
estabelecimento de leis que podiam se generalizar em situações diferentes ou em contextos
histórico-sociais distintos. Dito de outra forma, o cientista social devia ser capaz de rastrear
constantes e regularidades que pudessem ser válidas em uma dimensão universalizante.
Lembramos que ele não era um evolucionista ingênuo. No entanto, no que toca a história,
enquanto conhecimento e disciplina, ela não alcançava esse patamar exigido. O produto do
historiador era válido apenas para situações específicas, mostrava-se em constante mutação,
variava conforme o olhar do observador, não apresentava padrões de continuidade estáveis ou
regularidades passíveis de acompanhamento metódico, seguro e seriado.
Mesmo nessas condições o métier do historiador seria, em sua concepção,
imprescindível: “não conheço missão mais proveitosa, nem mais augusta”. O seu minucioso
conhecimento da especificidade e do singular, capaz de ver o fato histórico por diferentes
prismas e de situá-lo como produto do(s) tempo(s) por intermédio de um rigoroso controle
metodológico, faz dos obreiros de Clio coparticipes indispensáveis para que outras disciplinas,
também em processo de criação de identidade, tenham condições de existência e de
performatividade: “Esse mesmo método e esse mesmo princípio, aplicados ao estudo dos fatos
históricos, têm sido fecundos em resultados, mas para o domínio de outras ciências”.647
645
Aline Michelini Menoncello confirma: “A História enquanto método de observação para a Ciência Social tinha
essa nobre missão de ‘colaborar com a formação das várias ciências’, mas, para isso, Lessa negou qualquer
possibilidade de ela, a História, ser uma ciência ou ter uma filosofia”. MENOCELLO, Aline Michelini. Pedro
Lessa, um juiz-historiador: nação, patriotismo e raça. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
graduação em História, Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, 2016, p. 40. Disponível em:
https://repositorio.unesp.br/handle/11449/144441 Acesso: 03 dez. 2020.
646
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 121.
647
Idem, p. 262. Angela de Castro Gomes coloca em seus termos a dimensão “moderna” da história no entender
de Pedro Lessa: “Numa certa perspectiva, pode-se imaginar que Pedro Lessa desejava identificar e delimitar o
objeto da história segundo os ‘modernos parâmetros’ de seu tempo, que eram os da escola metódica, que ele
conhecia e citava. Na perspectiva cientificista da época, tal opção implicava um grau de ‘inferioridade’ e de
‘limitação’ para a história, mas tal ‘posição’ estava sendo enunciada como uma ‘condição’ para a disciplina
demarcar sua própria especificidade.” Por conseguinte, era por meio dessa “limitação/ delimitação’ que a história,
de um lado, tornava-se fundamental para o trabalho das novas ciências sociais; e, de outro, tornava-se uma
212
Em suma, a história, com os seus métodos próprios e o seu alcance devidamente
delimitado, tinha como tarefa primeira subsidiar outras esferas de saber, sobretudo, àquelas de
matriz nomológica como a sociologia. O trabalho do historiador consiste em “(...) coligir e
classificar metodicamente os fatos, para ministrar, os materiais que servem de base as induções
da ciência social fundamental e das ciências sociais especiais”.648
A preocupação de Lessa era epistemológica. As suas Reflexões se constituem como o
exemplo mais significativo da caracterização teórica da história no Brasil no contexto da
Primeira República. Nelas se localizam estes eixos norteadores: colocar à prova as leis da
história até então estabelecidas e refletir sobre a natureza científica projetada ao trabalho
intelectivo dos historiadores. Quem mais se aproxima desse intento entre os historiadores
modernos, no entender do autor, é Buckle, que mesmo com todos os seus esforços teóricos não
alcançara tal objetivo: “Buckle não constituiu a filosofia da história. As suas generalizações não
traduzem leis históricas”.649 Assim, depois de todo percurso através da historiografia ocidental,
feito de forma crítica e com ajuizamentos que surpreendem pela consciência teórica, ele
argumenta que a ciência da história é algo impossível, posto que os acontecimentos histórico-
sociais não se submetem às leis estáveis e aplicáveis em situações variadas.650 Nesse momento
entra em cena uma categoria importante para se entender o seu pensamento: “os fatos históricos
estão sujeitos ao acaso”. Isso colocava em suspensão a escrita da história antiga, porque a
natureza humana não era uma constante que se replicava do passado no presente de forma
exemplar; as filosofias da história, porque não era possível acompanhar regularmente no tempo
os costumes dos povos; e a própria história moderna que buscava a cientificidade, porque o
mapeamento de regularidades traduzidas em leis condicionais era algo que fugia à própria
dimensão do humano. O acaso era a própria antítese da lei. E sobre o questionamento primeiro
das suas Reflexões o autor é contundente: “indiscutivelmente não temos aqui uma teoria que
disciplina capaz de compreender os fatos do passado, que, por serem singulares e complexos, não eram previsíveis,
nem passíveis de enunciação por qualquer tipo de lei”. GOMES, Angela de Castro. Apresentação. Reflexões sobre
o conceito da história, de Pedro Lessa. In: NICOLAZZI, Fernando (org.). História e historiadores no Brasil: do
fim do Império ao alvorecer da República. c. 1870 - 1940. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015, p. 77.
648
LESSA, Reflexões... op. cit., p.280.
649
Idem, p.262.
650
Antes de Pedro Lessa, em 1895, Fausto Cardoso, munido da teoria monista de Haeckel, também colocou em
suspensão o caráter científico da história após a verificação das suas três matrizes: o empirismo, a filosofia da
história e o naturalismo. Mauro Franco Neto argumenta que é a própria natureza do discurso histórico que o torna
incompatível com a noção de ciência em voga. Essa mesma constatação serve para o caso das Reflexões de Pedro
Lessa. Segundo Neto, “em última instância, é o próprio discurso histórico, prenhe de incertezas, incoerências e
incapaz de prever, que possibilita a Cardoso avistar os limites de uma ciência e os paradoxos que ela deveria ora
ou outra enfrentar”. NETO, Mauro Franco. Ciência, evolução e experiência do tempo no fin de siècle: estudos e
revisões sobre letrados brasileiros e argentinos. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação
em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica/RJ, 2015, p. 169. Disponível em:
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/25170/25170.PDF Acesso: 03 dez. 2020.
213
possa pretender os foros da ciência”.651 E prossegue em seus argumentos: “Os fenômenos
históricos não se repetem, como os dos corpos inorgânicos, os dos organismos individuais, e os
dos próprios organismos sociais”.652
Todavia, encontrar uma orientação de sentido ao acaso na história, que para ele
desestrutura epistêmicamente as propostas historiográficas até então válidas, pode fazê-la
próxima das explicações ligadas ao âmbito da providência divina, pois torna irracional o devir
humano. A fundamentação epistêmica da história, abordada a partir do prisma da cientificidade
corrente, está ao lado da inexatidão estruturante; uma inexatidão que não se confunde com a
análise correta e rigorosa dos acontecimentos, mas que é diagnóstico de que a disciplina não
possui condições de alcançar os mesmos resultados dos campos das ciências da natureza. Essa
era uma constatação do regime historiográfico metódico. Temos uma inexatidão que se
mostrava estruturante da sua própria episteme, porque era a partir dessa dimensão que o
historiador podia fazer do métier algo com um quê de constante recomeço, um ofício
dependente de versões cada vez mais bem elaboradas, sempre com o apoio do método crítico –
que em linguagem simples significava ter um bom domínio de objetividade por meio da crítica
interna e externa das fontes.
Retomando o saber e o legado dos historiadores clássicos, Lessa advoga no sentido de
que a forma como eles encaram o conhecimento produzido está circunscrito por parâmetros que
não condizem com as demandas projetadas às novas figurações modernas da história,
sobretudo, por mobilizarem dispositivos do plano subjetivo, tais como a emoção: “a antiguidade
clássica não fez da história uma ciência”.653 O fluxo das formas antigas de conceber a escrita
da história encontra o seu mais contundente adversário em Buckle, não sem lembrar da
importância dos filósofos da história setecentistas e do positivismo de Auguste Comte (1798-
1857). A História da Civilização na Inglaterra é, nessa direção, “(...) um dos ensaios mais
admiráveis no sentido de determinar as leis da história, de alçar a história à dignidade de ciência,
ou de constituir a ciência da história”.654
651
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 205.
652
Idem, p. 268.
653
Ibidem, p. 209.
654
Ibidem, p. 233. Leandro Couto Carreira Ricon circunscreve a proposta científica de Buckle: “Assim como
Comte, Buckle acreditou na História enquanto uma ciência pura, responsável por apresentar leis gerais do
progresso do ‘espírito humano’ a partir da percepção e análise das possíveis regularidades históricas
cronologicamente dispostas. Ou seja, procurou configurar a metodologia e a teoria da História em conformidade
com aquelas propostas pelas Ciências da Natureza, criticando aqueles que se afastavam desta premissa”. RICON,
Leandro Couto Carreira. Das filosofias positivas da história à educação histórica conservadora: Comte, Buckle e
Durkheim. Revista encontros com a filosofia, ano 8, n. 11, 2020, p. 85. Disponível em:
https://periodicos.uff.br/enfil/article/view/40618 Acesso: 08 abr. 2021.
214
A arquitetura conceitual construída por Buckle em sua History para dar conta do
desvelamento dos acontecimentos históricos a que se propunha investigar enfrentou, em
primeiro lugar, o seguinte desafio: eles eram decorrentes de constantes historicamente
determináveis ou eram frutos do livre arbítrio? No interior desse questionamento se colocava
outra proposição: a da ação de reciprocidade do homem frente ao meio, ou frente à natureza. O
autor inglês erige, em sua proposta teórica de investigação, quatro grandes leis fundamentais
da história: a) o progresso humano correlacionado ao meio no qual o sujeito está inserido; b) a
existência do espírito da dúvida; c) o valor das descobertas científicas; d) o protecionismo
(estatal e da Igreja) tomado de maneira negativa. O deslocamento dessas leis históricas em
direção aos fatos históricos, sendo elas consideradas verdades com valoração universal devido
a sua regularidade, levava a conclusão de que o livre arbítrio não era possível ao gênero
humano. Essa era a grande máxima determinista mobilizada pelo pensador inglês no
entendimento de Pedro Lessa.
As leis fundamentais elaboradas pelo autor citado, no entender do jurista, não resistem
a uma análise que situe os fatos históricos em suas singularidades espaço-temporais, muito
menos aos recursos metódicos de apuração da verdade das coisas passadas. Justificando, Lessa
coloca à prova a lei do avanço científico enquanto sintoma de progresso dos povos: se “a lei de
Buckle somente compreende o progresso intelectual, o desenvolvimento das ciências,
começava pelo defeito de não ser uma lei universal, e muito menos fundamental, da história da
humanidade”.655 Portanto, a história da humanidade não pode ser medida pelos fatores ligados
ao avanço científico da técnica sobre a natureza, posto que muitos são os vetores que
proporcionam essa disposição. Inclusive essa lei não se aplica em situações específicas de igual
modo, como ocorre nas ciências experimentais. O plano multiforme dos acontecimentos impede
a retirada de extratos de regularidades aplicáveis em tempos e em espaços. Lessa esclarece:
“reduzir a civilização ao progresso das ciências que se ocupam com o mundo físico é mutilar
essa ideia complexa”.656 O que Buckle oferece em sua History não é ciência da história, e não
se enquadra na categoria filosofia da história, que para Lessa é uma forma historiográfica
“enganosa” em suas tentativas de apanhar racionalmente o devir. As suas generalizações não
se traduzem em leis, argumento capital – porque a própria episteme conformadora da disciplina
impede esse acesso.657
655
LESSA, Reflexões op. cit., p. 250.
656
Idem, p. 261.
657
Jacques Revel assevera que durante a passagem para o XX, em uma escala transnacional, verifica-se uma
discussão sobre os parâmetros científicos, as suas regras e a sua aplicabilidade face ao campo historiográfico. Isso
se deve, em partes, aos diálogos e às trocas conceituais com as ciências sociais, especialmente a sociologia. Duas
215
Para Pedro Lessa, a ideia de progresso, de continuidade positivada entre passado-
presente-futuro e do gênero humano, estrutura-se em predicados que não podem ser abarcados
pela noção de previsibilidade. Existem linhas de progresso destoantes, incertas, sincrônicas e
impossíveis de serem observadas pelo filtro da regularidade estática; aliás, não é descartada a
ideia de regresso e de decadência. Se o fim está no começo, o passado prenhe de futuro, nas
filosofias da história658 e nas propostas de historiografia evolucionista, para o juiz o futuro
embaralha todo o ordenamento da experiência.
A possibilidade de racionalização do tempo histórico estava em pauta nas agendas
teóricas dos sócios do Instituto. Para parte dos agremiados a perspectiva do devir histórico era
de natureza moderna, o passado explicava o presente e esse servia de esteio ao porvir. Já a visão
de Pedro Lessa diferencia-se: a história, com os seus dispositivos de inteligibilidade, acessa um
conhecimento maximizado da sociedade, porém a expectativa de futuro como algo que advém
de um desdobramento racional das demais instâncias temporais é incongruente, o que, também,
leva os obreiros de Clio a não tornarem a disciplina uma esfera de saber dotada de cientificidade
nos moldes esperados e julgados adequados na época. Essa constatação enquadra Lessa em um
paradigma pós-evolucionista. Acompanhemos os predicados das Reflexões: “não podemos
conhecer os conjuntos de fatos que formam o todo da história da humanidade, nem induzir, ou
generalizar, para prever o futuro, tomando por base todos os fatos do passado e do presente”.659
A história como saber, além de ser uma disciplina apta a fornecer os dados corretos para as
generalizações das demais ciências sociais, ambicionaria, em seu entender, a indagação
exaustiva do complexo, das determinantes gerais que dão condições de possibilidade para a
emergência dos acontecimentos e das situações históricas. Já a história como experiência é
identificada pela mobilidade e pela instabilidade estruturante como se pode notar a seguir:
situações deixam os historiadores em alerta. Primeiro: “a síntese prematura, cujo momento ainda não chegou”.
Rejeitava-se, assim, a “tentação das obras estrepitosas”, exemplificadas através das filosofias da história e das suas
leis gerais do funcionamento social. O historiador, pelo contrário, assume uma posição “segundo regras rigorosas
e compartilhadas”. Cf. REVEL, Jacques. Proposições: ensaios de história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora
da UERJ, 2009, p. 28.
658
François Hartog localiza a crise das filosofias da história no começo do século XX, pouco mais de um século
depois da sua emergência. As críticas de Lessa às filosofias da história, símbolos do regime moderno de
historicidade, estão em consonância com as principais posições historiográficas e filosóficas europeias. Argumenta
o historiador francês: “contudo, apenas um século mais tarde, contrariando o desmentido que lhe impingiu a
história real, essas filosofias da história perderam sua evidência conquistadora e otimista, fissuraram-se e acabaram
por se decompor, mesmo que, na Alemanha, teólogos e historiadores não tenham abandonado a questão? A
Primeira Guerra Mundial abalara em seus fundamentos esses edifícios, que desmoronariam como a estátua de pés
de argila do sonho de Nabucodonosor no livro de Daniel”. HARTOG, François. Experiências do tempo: da história
universal à história global. História, histórias, vol. 1, n. 1, 2013, p. 171. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/hh/article/view/10714 Acesso: 08 abr. 2021.
659
LESSA, Reflexões... op. cit., 265-66.
216
A história é um contínuo devir, um fueri perpétuo: e pois, pela sua própria
natureza escapa à determinação de um princípio diretor. Os fenômenos
históricos não se repetem, como os dos corpos orgânicos, os dos organismos
individuais, e dos próprios organismos sociais.660
660
Idem, p. 258.
661
Ibidem, p. 238.
662
Ibidem, p. 245. O determinismo mesológico de Buckle é sintetizado por Luciana Murari: “Estudar uma
sociedade dependeria, portanto, de compreender as condições físicas de seu desenvolvimento, de acordo com as
leis históricas então determinadas. Estudando as leis que regeriam os fenômenos internos e externos, Buckle
defende a existência de quatro diferentes classes de fatores físicos que exercem considerável influência sobre o
homem: o clima, o alimento, o solo e o aspecto geral da natureza”. MURARI, Luciana. Brasil, ficção geográfica:
ciência e nacionalidade no país d’Os Sertões. São Paulo: Annablume editora, 2007, p. 69.
663
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 256.
217
Com toda razão diz Littré que o acerto de Buckle longe de ministrar a base da
filosofia da história é um erro. (...) Foi na extremidade da Ásia, nessa Grécia
meio europeia, meio asiática, que surgiu a civilização europeia, destinada a se
tornar visível.664
664
Idem, p. 255.
665
João Coelho Gomes Ribeiro, prefaciador da edição brasileira da History de Buckle, argumenta o seguinte: “Para
nós, brasileiros, tem a obra um interesse particular, porque se ocupa especialmente, em certo ponto, de nossa
natureza exuberante, e conquanto não sejam isentas de erro ou exagero, suas observações revelam conhecer ele
bastante aquela e ter pressentido algumas das causas perturbadoras do nosso movimento progressista”. Apud
MURARI, op. cit., p. 67.
666
CASTRO, Discurso... op. cit., p. 710-711.
667
Idem., 711.
668
A mitologia bandeirante foi inventada na passagem para o século XX. Na Primeira República esse personagem
era considerado “como o lídimo representante das mais puras raízes sociais brasileiras, conquistador de todo o
218
Lucas Ayarragaray é um dos participantes da contenda que, assim como Lessa e Castro,
não acreditava na cientificidade da história como enquadramento da realidade a partir de leis,
ou da percepção da realidade a partir da ideia de adequação de regularidades passíveis de serem
rastreadas realisticamente pelo olhar conhecedor do historiador. Segundo as suas palavras:
vasto sertão interior do país, pai fundador da raça e da civilização brasileira”. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu
extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras,
1992, p. 138.
669
AYARRAGARAY, Discurso...op. cit., p. 532.
670
Idem, p. 532.
219
complexidade crescente dos fenômenos, cujas leis, regidas por um dado
método, só delas peculiar, constituem o sistema particular a que se chama
ciência671.
.
De acordo com as suas prescrições, é um erro epistêmico falar em “leis históricas”,
dado que a história não está no horizonte das disciplinas que se ocupam com o estudo de
regularidades empírico-conceituais. Mas, esse quadro se reverte no momento em que se
considere a história como uma ciência social. Daí ao invés de “leis históricas” se falará em “leis
sociológicas”, o que oferece um grau de definição condizente com a natureza desse tipo de
saber. Não existem leis históricas para Basílio de Magalhães. Nessa situação a história se
imbricava com a sociologia sem que existisse uma escala epistemológica entre elas:
Nesse sentido, o autor acima citado, em um jogo comparativo entre antigos e modernos,
vale-se de outra metáfora para que se possa compreender o trabalho do historiador: “alquimia
do pretérito”. O que essa metáfora epistêmica revela? Em primeiro lugar remete à ideia de
671
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 587. Como sabemos Basílio de Magalhães é um leitor de Sílvio Romero
e provavelmente a sua concepção de ciência é devedora das reflexões do intelectual sergipano. Essa colocação
pode ser percebida na classificação das ciências oferecida por Romero: a partir da “nova classificação das
ciências”, as quais se modulam na “ordem crescente da complexidade dos fenômenos e na decrescente de sua
generalidade”, parece possível verificá-las sob a perspectiva referente ao “grau atingindo de sua certeza”.
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Quinto. 3ª Edição aumentada, organizada e prefaciada
por Nelson Romero. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1943, p. 23.
672
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 587.
673
Idem, p. 587.
220
síntese: o trabalho do historiador é o de decompor analiticamente visando à interpretação, que
oferece subsídios e ares de ciência ao todo da atividade historiográfica. Segundo: como
alquimista o historiador deve conjugar empiria e reflexividade. Esse historiador fará
experimentos de análise e de interpretação, ou seja, valendo-se do saber conceitual e
nomológico (pós-determinismo) toma-se os fatos passados e a dinâmica do devir como
representação e não como lei histórica. Tal gesto proporciona o estudo das regularidades por
parte da história, na medida em que o conteúdo dessa lei deixa de ter valor realista. Esse é o
passo decisivo para a história superar as filosofias da história e tornar-se ciência social. Uma
síntese modernista?
A perspectiva a qual a história não se apresentava como uma ciência convivia com
proposições distintas no interior do IHGB. Outros intelectuais do Instituto defendiam posições
epistêmicas diametrais, ou relativamente distanciadas em certos pontos. O que vale ressaltar é
que o problema da cientificidade da história estava longe de ser fechado e definido a partir de
apenas uma perspectiva epistemológica. O IHGB era, na busca pela disciplinarização da
história, uma comunidade aberta e disponível à recepção de variadas ideias acerca do fazer
historiográfico de matriz europeia. Em meio a esse contexto intelectual, a demanda por tornar
o métier uma prática com foros científicos, dotado de dispositivos específicos de teorização
sobre os fatos e de metodização de regras para se alcançar a verdade dos mesmos, estava na
ordem do dia; o que movimentava todo um processo de disputa epistêmica, com aproximações
e com distanciamentos valorativos, pela forma legítima e autorizada de se chegar a tal intento.674
Uma das proposições epistêmicas que divergem daquelas sugeridas anteriormente por
sujeitos como Pedro Lessa, Viveiros de Castro e Basílio de Magalhães foi formulada anos antes
pelo agremiado Tristão de Alencar Araripe em suas Indicações sobre a história nacional. O
historiador cearense, em prescrições teóricas marcadas pelo ecletismo, apontou que a história
possuía, sim, a marca da cientificidade; doravante ela não deixava de mobilizar em suas
intenções os repertórios da historia magistra vitae, ou seja, da exemplaridade. Como vimos, o
par antigo/moderno se coadunava em muitos pontos nesse momento, chegando a ser
674
Essa discussão sobre a cientificidade da história e seu alcance é uma contenda que se arrasta por todo o século
XIX e início do XX. François Dosse adverte que nesse processo transnacional as “pretensões ‘cientificista’ se
multiplicam e convidam a romper com a dupla tradição das letras e da filosofia que condena a historiografia à
instabilidade e a reduz a ser somente um conhecimento de fraco embasamento científico e, portanto, contestável”.
DOSSE, François. História e historiadores no século XIX. In: MALERBA, Jurandir. Lições de história. O caminho
da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2010, p. 22.
221
indissociável para determinados sócios. Para o Conselheiro Araripe, ao mesmo tempo em que
os obreiros de Clio transformavam a história em uma ciência capacitada a rastrear as
regularidades dos fatos históricos no tempo por intermédio de uma proposta rigorosa de método
crítico, eles defendiam a sua capacidade de oferecer exemplos, de ser uma escola de moralidade,
que a todos servia enquanto guia contundente em suas ações no mundo:
Olegário Herculano articulava a história como a expositora fiel dos fatos considerados
em suas causas e em seus efeitos; a exata apreciadora dos caracteres da fisionomia moral dos
homens e da sociedade. A história seria a ciência que acompanhava racionalmente a própria
vida da humanidade em todas as suas fases e variadas manifestações. Seria a ciência social
destinada a enriquecer o futuro com as experiências do passado e abundantes conquistas do
presente. É assinalado por ele que se teria avançado nas pesquisas acadêmicas, mas esse registro
é pouco ante à grandeza incomensurável da ciência. Há, no raciocínio de Newton, “finas
conchas na praia” percorrida, mas onde se vê “inexplorado um intérmino oceano da verdade”.676
Segundo Alcibíades Furtado, a produção científica do século XIX realizou cerca de três
quatros de parte dos seus compromissos firmados. Isso porque a ciência fechava o balanço
daquele século com muitas questões ainda em aberto que deviam passar à prova no século XX.
No entanto, o que se verifica é que essa produção está absolutamente desmentida pelo ardor
com que os novos cientistas, nos mais variados ramos, continuam a obra do século passado. A
frequência de congressos, o número de teses, de revistas científicas, de artigos e de cientistas
naquele contexto é a mais eloquente prova da seguinte afirmação da “fé na ciência”. O Instituto
Histórico é, para Furtado, um lugar capaz de iniciar a sistematização das conclusões - ainda
pouco desenvolvidas - historiográficas e sintético-filosóficas do século XIX.677
Alberto Torres desejava a criação de uma narrativa de sentido que concatenasse os fatos
no tempo por meio de uma verdadeira filosofia da história evolucionista, que podia ser
prefigurada pelas lentes científicas. Para o sociólogo, deviam-se buscar novas fontes
explicativas para a história que não fossem as “sucessões de lutas”. A luta é uma forma de
atividade animal e não o objetivo moral dos homens em sociedade. É um erro intelectual
675
ARARIPE, Indicações... p. 263.
676
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 537.
677
FURTADO, Discurso... op. cit., p. 589.
222
contemporâneo submeter a civilização e as condições da vida humana ao estado de “luta física
entre as coletividades, classes e nações”. É necessário, pela via científica que racionaliza o
devir, que esse estado de coisas seja considerado antinatural, atuando no tempo e interferindo
no motor da história.678 Trata-se de uma crítica aos darwinismos de toda sorte.
Antônio Fernandes Figueira entende que a história possui a precisão de um sismógrafo
ou do cálculo matemático. Ela deixa de professar os ditames da providência e do pacto factual.
A história é, desse modo, um produto científico, explicada por meio da seguinte asserção:
A análise dos organismos sociais naquele contexto é atravessada pelo fio da ciência,
segundo Alfredo Nascimento e Silva. Estudam-se, em um sentido que é evolucionista em seu
cerne argumentativo, os povos enquanto organismos vivos,680 fazendo dos homens e das
mulheres células, de cada família um organismo próprio, de cada povo em especial uma
engrenagem de um aparelho chamado humanidade, “cuja vida resulta, não do atrito das partes,
mas da convergência harmoniosa dessas mil forças componentes”!681 Nesse movimento
cientificamente conduzido há um princípio diretor que é a fraternidade, considerada uma
dimensão inata da humanidade ou um princípio natural da civilização. Isso seria a “lei da vida”,
ou seja, que o plano moral acaba sendo uma projeção das forças orgânico-físicas do mundo.682
Entretanto, a história enquanto ciência estaria destinada a atingir diversas
temporalidades, para além do tempo histórico tradicional, como quer Artur Pinto da Rocha.
Seria uma história que possuiria profundidade e atingiria diversos extratos de tempo, passando
do plano dos homens e chegando às instâncias do universo:
678
TORRES, Discurso... op. cit., p. 550. Ou seja, a abordagem historiográfica de Alberto Torres abre margem para
a proposição de previsões. Ao identificar o cerne das transformações históricas passa a ser possível prognosticar
cenários no futuro e, então, ter uma orientação para a ação. Cf. KOSELLECK, Reinhart. O futuro passado dos
tempos modernos. In: _____. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006.
679
FIGUEIRA, Antônio Fernandes. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVIII, parte II, 1915, p. 755.
680
O organicismo é uma base epistemológica de compreensão da sociedade com grande vigor século XIX adentro.
Segundo Fernando Nicolazzi: “(...) da relação complexa e ambígua entre natureza e sociedade, bem como da
referência organicista elaborada para as ciências sociais. O biológico era, além de uma maneira de compreensão,
também uma forma de intervenção no social, e os problemas sociais demandavam cuidados médicos”.
NICOLAZZI, Fernando. Representação e distância: naturalismo, linguagem e alteridade na escrita de Os Sertões.
In: SILVA, Ana Roda Cloclet da; _____; PEREIRA, Mateus (orgs). Contribuições à história da historiografia
luso-brasileira. São Paulo: HUCITEC, 2013, p. 245.
681
NASCIMENTO, Um átomo... op. cit., p. 341-342.
682
Idem, p. 342.
223
Nem a História poderia viver sem o pensamento, quando ela desce a camadas
geológicas ou penetra meandros do cérebro para subir depois as vastidões
etéreas, onde os mundos se cruzam no labirinto maravilhoso da Polinésia
sideral: nessas peregrinações, como lâmpada eterna da legenda oriental, vai
acompanhada sempre pelo espírito humano, ou ele baixe com Cuvier e com
seus precursores às profundidades do planeta a surpreender nos despojos
siluricos dos fosseis a vida dos foraminíferos rudimentares dos espongiários;
ou ele se alevante às regiões, onde paira a fonte da vida universal, com o
engenho de Copérnico, a luneta de Galileu e o gênio do Secchi.683
Para Aníbal Veloso Rebelo, o determinismo rege o mundo por leis estáticas.684 Aplicado
à história fomenta, desde o século XVIII, às filosofias da história; modalidades discursivas que
apreendiam o real através de macronarrativas organizadoras do todo ao fragmento. Para Rebelo,
as filosofias da história e a sociologia trabalham no mesmo espaço epistêmico. A ciência da
história dependeria desse saber conjugado. “Foi com as ciências biológicas que o interesse
filosófico veio dominar a investigação no estudo do exemplar humano com apoio de uma
ciência mais, que se chamaria sociologia”.685
Nenhuma geração pode, no entender de Enéas Galvão, menosprezar as que já passaram,
porquanto há um elo entre elas que pode ser verificado nas tendências, nas continuidades e nas
regularidades extraídas pelo saber científico quando aplicado à história. O estabelecimento das
leis, de regularidades empírico-conceituais, é que oferece dinâmica científica aos artefatos
historiográficos, retirando da providência e do acaso as explicações sobre o motor da história.
Nesse caso, fala-se em leis fixas; e segundo Galvão:
Nenhuma geração tem, por isso, o direito de menoscabar ou maldizer das que
passaram, nenhuma pode orgulhar-se de haver criado, por si mesma, a obra de
civilização; esta, como observa Bagehot, estudando as leis científicas do
desenvolvimento dos povos, não é uma série de pontos destacados, mas uma
linha colorida, cuja nuança, numa progressão constante, cada vez mais vigora
e se acentua.686
683
ROCHA, Discurso... op. cit., p. 676.
684
Rodrigo Dutra Gomes tem uma definição didática sobre a noção de determinismo: “(...) de uma forma geral, o
Determinismo pode ser relacionado à ideia de regularidade, uniformidade e constância dos fenômenos da natureza,
como são os dias e as noites, os nasceres e pores do Sol, as estações climáticas, a gravidade, as chuvas no verão,
o ritmo dos relógios, os horários comerciais, de ônibus e metrôs etc. Dessa premissa deriva-se como universal as
leis da causalidade, considerando que toda Força detém, necessariamente, causas naturais e efeitos naturais”.
GOMES, Rodrigo Dutra. Aspectos do determinismo científico e a geografia. Terra livre, ano 25, vol. 1, n. 32,
2009, p. 78. Disponível em: https://cutt.ly/AcLGACf Acesso em: 08 abr. 2021.
685
REBELO, Aníbal Veloso. Discurso de posse. RIHGB, tomo 80, parte II, 1916, p. 780.
686
GALVÃO, Discurso... op. cit., p. 610.
224
progresso das instituições sociais e políticas, alargando os horizontes do espírito humano em
prol de um pensamento que é orientado pela razão científica. Esse todo complexo passa pelo
crivo das regularidades científicas, podendo ser compreendidos por balizamentos cognitivos
que os enxergam em sua singularidade evolutiva.687
A cientificidade da história desejada pelos sócios do Instituto, com os seus inevitáveis
impactos sobre as formas possíveis de dispor a temporalidade humana, não se encontra
assentada no “progresso indefinido de um Condorcet [1743-1794] ou de Pelletan [1813-1884]”,
tampouco no “pessimismo” de Schopenhauer (1788-1860) e no de Gumplowicz (1838-1909),
autores que negam o progresso; também não se encontra no “materialismo histórico” de Karl
Marx (1818-1883), por mais que as suas teorizações sobre as instituições sociais sejam de todo
excelentes, bem como no “determinismo mecânico de Taine [1828-1893]”. Nenhum desses
critérios, à luz do pensamento de João Coelho Gomes Ribeiro, apresenta-se como o mais
acertado para conferir foros de cientificidade à história. A resposta desse associado para as
dimensões próprias de uma ciência da história passa pelas teorizações do alemão Rudolf von
Ihering (1818-1892). Seguem as suas palavras para o estabelecimento da forma pela qual a
ciência da história deve se comportar:
Nesse sentido, a reflexão de Stricker, que identifica o fim como motivo do agir, na
medida em que ele impulsiona os critérios próprios da vontade e, por efeito, a representação
psíquica dos atos anteriores, também são autorizados via interpretação de Von Ihering. Mas, a
ciência da história almejada por Ribeiro é de dimensões coletivistas, colocando em suspensão
o individualismo histórico de autores como Nietzsche (1844-1900) e Carlyle (1795-1881).
Assim se teria “a marcha avassaladora da teoria coletivista, fazendo surgir da massa das
energias, das aspirações e dos progressos das sociedades”. Nessa teoria, que deveria alcançar a
categoria de científica, haveria uma força, uma energia vital, que movimentaria a humanidade,
687
É próprio do cronótopo historicista a “convicção de que analisando os fatos passados podemos identificar regras
de transformação histórica que nos ajudem a prognosticas o futuro”. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de
“Depois de aprender com a história”, o que fazer com o passado agora. In: NICOLAZZI, Fernando; MOLO, Helena
Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio
de Janeiro: Editora da FGV, 2011, p. 34.
688
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 639.
225
“a despeito dos tropeços e decepções que se lhe antepõem, orientando-a na trajetória de um
ideal de justiça e de liberdade – seu fim supremo”.689
Há, assim, regularidade no estudo da humanidade através da história, tal qual ocorre
com os movimentos de translação e de rotação dos planetas. Seguem duas passagens que
aproximam metaforicamente o movimento dos planetas ao da humanidade como um todo, e
onde João Coelho Gomes Ribeiro encontra os símbolos epistêmicos certos para demonstrar a
cientificidade da história, que em muitos sentidos se confunde com as prerrogativas das
filosofias da história, posto que o fim está no começo:
(...) daí segue-se que a própria órbita da terra sofre uma transformação
constante, no espaço, sem alteração dos seus movimentos próprios.690
689
Idem, p. 640.
690
Ibidem, p. 640.
691
Ibidem, p. 640.
692
Ibidem, p. 640
693
O que João Coelho Gomes Ribeiro prescreve enquanto cientificidade para a história, que segundo ele tem
feições coletivistas, não é nada mais do que a antiga atribuição da história como singular coletivo descrita por
Reinhart Koselleck, cujo enraizamento contextual data da passagem para o século XIX: a “ideia de coletivo
singular possibilitou outro avanço. Permitiu que se atribuísse à história aquela força que reside no interior de cada
acontecimento que afeta a humanidade, aquele poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um plano, oculto
ou manifesto, um poder frente ao qual o homem pôde acreditar-se responsável ou mesmo cujo nome pôde estar
agindo”. KOSELLECK, Historia Magistra Vitae... op. cit., p. 52.
226
em todas essas disciplinas, o fator psicológico, o fator humano, com todas as
suas incongruências e surpresas, atam preponderantemente.694
694
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 641.
695
Luiz Sérgio Duarte faz um comentário sobre a epistemologia da história de Karl Lamprecht. Para o historiador
alemão, “mais importante que a reconstrução do foi era a constituição de como veio a ser: regularidades
contextuais, desenvolvimentos sociais, econômicos e culturais são mais importantes que as descrições, os grandes
homens, as personalidades, o Estado e a política. É possível reconstituir grandes épocas culturais [kulturzeitalter]
características de estágios de desenvolvimento civilizacional”. Em Lamprecht, verifica-se “a apreensão coletivista
da história, regularidade, série de épocas, representações coletivas, evolucionismo, psicologia social, estágios do
desenvolvimento econômico”. DUARTE, Luiz Sérgio. Karl Lamprecht (1856 – 1915), Apresentação. In:
MARTINS, Estevão de Rezende (org.). A história pensada. Teoria e método na historiografia europeia do século
XIX. São Paulo: contexto, 2010, p. 124.
696
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 645.
227
No começo nota-se uma dispersão espiritual de ideias e de sentimentos, apenas
dominadas por alguns destes, isolados e sem contato aparente; pouco a pouco
produz-se a concentração, a princípio violenta relativamente, como
consequência dos movimentos isolados, mas intensivos; em seguida, o
entusiasmo cede lugar à reflexão e produz-se a concentração estável, a qual
produz a síntese de todas as aspirações isoladas, e assim se alcança o momento
culminante, na vida do fenômeno social, pela integração de todas as
diferenciações existentes; a concentração, porém, vai-se tornando mais rígida
e exclusiva, até terminar em uma quase petrificação, que assinala a última fase
da vida desse povo, dessa sociedade, do fenômeno social, em suma, do que se
trata. Eis a lei sociológica de Lamprecht, que não se confunde com a de
Spencer, a qual parte do homogêneo indefinido, como sabeis.697
Doravante, cabe dizer que, para certos associados, a ciência da história, por si só, não
apreende o todo da fenomenalidade existente no mundo da vida. A história, e Enéas Galvão
vale-se das reflexões de Gumplowicz, não alcança os estratos de experiência que formam as
nações em sua integralidade por estar impossibilitada de atingir a compreensão do social em
perspectiva de regularidades, diferentemente de Ribeiro e de Lamprecht. Para Galvão: “Quanto
ao grandioso espetáculo natural, que se desenrola no domínio social da humanidade, a ciência
da história não sente, nem tem olhos para vê-lo”.698 Antes de Gumplowicz, Buckle também
percebeu a insuficiência epistêmica por parte da prática dos historiadores, que em seu entender
restringem-se ao trabalho de recolha, de análise e de classificação dos materiais pertinentes às
generalizações das filosofias da história699. Argumenta Enéas Galvão:
697
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 645.
698
GALVÃO, Discurso... op. cit., p. 610.
699
Valdei Lopes de Araujo situa a crítica de Buckle ao empiricismo historiográfico de sua época, adiantando, de
certo modo, questões que são amplamente discutidas na passagem para o século XX: “(...) impressionam os termos
precisos nos quais Buckle critica a historiografia de sua época, isso décadas antes da polêmica entre metódicos e
durkheimianos na França de finais do século XIX. Deplora-se uma historiografia empiricista, por demais apegada
ao fato individual, incapaz de dialogar com os avanços das ciências naturais e mesmo com alguns campos de
vanguarda como a Ciência Política e a Estatística. Essa última é celebrada como a grande reveladora das leis gerais.
Podemos apenas imaginar o entusiasmo de alguns, e o assombro de outros, frente à descoberta das grandes
regularidades humanas, das curvas que prometiam novas possibilidade de controle e planejamento social. Essa
tradição de linguagem, central no discurso das ciências sociais, retornaria de tempos em tempos em ondas de
otimismo renovado, não sem deixar, nos momentos de maré vazante, importante contribuições para nossa
compreensão da história”. ARAUJO, Valdei Lopes de. Apresentação da Introdução geral à história da civilização
na Inglaterra. In: MARTINS, Estevão de Rezende. História pensada. Teoria e método na historiografia europeia
do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010, p. 219 - 220.
700
GALVÃO, Discurso... op. cit., p. 610 - 611.
228
Doravante, sem os dados da história, admite Enéas Galvão, é impossível à Buckle, visto
como um filósofo da história, vislumbrar uma estruturação científica para o saber que produz a
partir da sua History. Sem os quadros interpretativos que Buckle mobiliza a história não se
torna uma ciência. Em suma, a History de Buckle é, para Galvão, um símbolo do trabalho
científico em história, congregando a empiricidade e a percepção filosófica dos fatos:
Sem isso Buckle, não as teria referido à regularidade das ações humanas,
cogitado da influência exercida pelas leis físicas sobre a organização social e
o caráter dos indivíduos, bem como do papel das leis morais e intelectuais,
penetrando às causas da Revolução francesa, analisando o movimento
intelectual da Espanha, do século V ao século IX, e da Escócia, do século XIV
ao século XVIII.701
701
Idem, p. 611.
702
Ibidem, p. 611.
703
Ibidem, p. 612.
229
Por sua vez, o acadêmico do Recife Artur Orlando acredita na existência de uma lei
universal passível de racionalização científica: a que observa a vida ao mesmo tempo como
unidade e como multiplicidade; e que se há evolução isso apenas ocorre a partir de um jogo de
oscilação e de recombinação. A unidade da vida é constituída por uma forma de energia,
manifesta em todos os contextos histórico-geográficos, e mesmo no universo: “massas,
moléculas, plastídes, órgãos, são os diversos pontos de vista sob que a energia universal pode
ser encarada”.704 Seu evolucionismo é de natureza mesológica. É plausível investigar, em sua
concepção de história, o comportamento e a evolução de uma sociedade a partir das suas
características geográficas, mas não universalizar os seus resultados por conta do princípio da
multiplicidade. Isso fica claro na seguinte fala:
Mas, organismos animais, vegetais e sociais evoluem em direções diferentes, e isso abre
margem para a diversidade de formações evolutivas. Lembrando que a evolução do meio,
incluindo desde as formas mais básicas de geografia e de flora, se apresenta em uma
temporalidade bem cadenciada, quase imóvel. O melhor a se dizer é que existe formas de
evolução desiguais, ou melhor dizendo, multievoluções.
A característica peculiar, o aspecto identitário de uma comunidade, região ou sociedade
de forma ampla são resultantes do seu estado evolutivo em contato com o estado evolutivo do
meio em que se desenvolve. Isso é passível de abordagem científica. Nesse contato, que para
Orlando é simbiótico, o sujeito se constitui como tal a partir dos condicionamentos do meio e
através de um estado de determinação. Porém, nesses processos existem margens para a
adaptabilidade, o que faz de cada situação de interação do homem com o meio algo novo. O
Brasil, pela sua extensão, por sua variedade geográfica e populacional, abriga muitas formas de
organização social, o que dificulta o estabelecimento de uma identidade coesa para todo o país.
De todo modo, nessa multiplicidade de linhas evolutivas encontra-se um eixo norteador, uma
lei geral, qual seja, a de que o ambiente – e Orlando fala da materialidade física implicada na
expressão, que chama de energia – e o homem se imbricam; e que a partir desse movimento
temos à disposição as formas de agir e os comportamentos sociais. E para ele a ciência da
história deve se preocupar com esse processo intelectivo. Essa é a sua natureza epistêmica.
704
SILVA, Arthur Orlando da. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXX, parte II, 1907, p. 758.
705
SILVA, Discurso... op. cit., p. 758.
230
O evolucionismo de Artur Orlando possui, então, graus de complexidade e de
justaposição. Segundo ele, o que observamos é que os indivíduos organizam as suas
comunidades através do contato com o meio, dando condições para a emergência das
instituições e das formas de conduta. Essa mesma sociedade, uma vez estabelecida, tende a
individualizar-se.706 Todavia, desde os seres mais elementares, pois isso é uma lei que atravessa
todas as formas de existência, localiza-se a dinâmica da unidade e da multiplicidade, sendo a
sua evolução constituída por uma constante oscilação entre o indivíduo e a associação:
706
A unidade da natureza e o evolucionismo são os princípios teóricos mais destacados na teoria de Ernest Haeckel:
“junto ao postulado da unidade da natureza, localiza-se na base do pensamento de Haeckel o princípio geral da
evolução da natureza. A natureza encontra-se em um processo de mudança que é permanente e tem caráter
evolutivo. Essa evolução não se refere apenas aos organismos, mas é um fenômeno absolutamente geral”.
SANTOS, Guilherme Francisco. A teoria gastrea de Ernst Haeckel. Dissertação de mestrado. São Paulo: Pós-
graduação em Filosofia/FFLCH, 2011, p. 57. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-
26062012-141751/pt-br.php Acesso: 03 dez. 2020.
707
SILVA, Discurso... op. cit., p. 759.
708
Idem, p. 760.
231
do organismo universal, os fenômenos físicos, químicos, biológicos ou sociais, influem uns
sobre os outros, de modo a se estabelecer entre eles íntima solidariedade”.709
Dito isso, pode-se perceber que por meio de um olhar interdisciplinar sobre os
fenômenos históricos, amparado pelas diversas formas de fazer crítica histórica, que Oliveira
Vianna chama de “ciência das realidades mortas”, desveladas pelo testemunho dos arquivos, é
possível se chegar à síntese histórica modernista, ou a história como ciência social. A diferença
entre Vianna e Magalhães está no diagnóstico da não cientificidade da histórica, o que não
impede a síntese modernista em ambos. A sociologia e a antropologia, bem como as demais
ciências sociais, devem se fundir à análise histórica, sendo chamadas, então, de ciência das
realidades vivas, que proporciona o olhar retrospectivo. Essas ciências das realidades vivas
tornam o passado presente, como se fosse uma ressureição no sentido proposto por Michelet
(1798-1874) em França. Artur Orlando fala em reencarnação do passado. Isto é, deseja a própria
materialidade dos fatos sociais:
São essas ciências das realidades atuais, que estudam o solo, o clima e o
homem, que nos revelam cada dia novos segredos da vida orgânica e
superorgânica, são essas ciências que insuflam aos textos paleográficos o
hálito de uma vida nova e dão aos depoimentos, fixados nas páginas mortas
dos arquivos, uma tal vibração e uma sonoridade tal, que, lendo-as, é como se
estivessem a ouvir a própria voz dos nossos contemporâneos710.
Fica marcado em tais propostas de ciência da história que não havia na comunidade de
historiadores do IHGB um viés único para conceituá-las. Verificamos o dinamismo visível nas
mutações do cientificismo europeu, tornando cada perspectiva de ciência da história a única em
se tratando de tradução para o ambiente nacional.
O sócio Solidônio Leite argumenta que só há história verdadeira caso o espaço cognitivo
de trabalho armado por seus obreiros esteja distanciado das paixões, pois sem essa postura a
história se transforma em fábula. O partidarismo e as paixões impedem o analista de realizar
uma interpretação proba e imparcial. Para respaldar o seu argumento, o autor cita uma passagem
de Joseph De Maistre (1753-1821): uma conspiração da mentira contra a verdade do sucesso.
Nessa direção, os historiadores devem mirar em suas análises historiográficas as virtudes
epistêmicas da imparcialidade e da objetividade diante das paixões, do partidarismo, da
709
Ibidem, p. 760.
710
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 444.
232
subjetividade, da idolatria, da adoração, especialmente quando diz respeito ao âmbito da
política. Ele pode incorrer no vício epistemológico de quem expõe os fatos e “oculta a
verdade”.711 Assim resume o argumento: "Entre as sobreditas paixões, as que mais empenham
as forças em fomentar enganos, são indiscutivelmente as paixões políticas”.712
Os trabalhos de crítica e de análise, entendidos pelo associado como um processo que
leva à classificação de fatos histórico-sociais, devem ser aprimorados no Instituto. São eles, em
sua concepção, os eixos de pesquisa preparatórios que levam ao distanciamento das paixões.713
E afirma que mesmo tendo sido alterado o regime político do país o seu empenho continua o
mesmo, qual seja, preparar materiais metodicamente analisados à luz da sinceridade
metodológica. Isso pode ser visualizado na persona acadêmica que orienta as atividades do
grêmio: “pacifica scientiae occupatio”. Em suma, “seria não ter fim levar mais longe as provas
de que neste Instituto é a verdade, e somente ela, a que impera soberanamente”, conclui.714
A questão da objetividade e da imparcialidade da história pode ser percebida através da
metáfora epistêmica do asceta mobilizada pelo padre Belarmino. A ideia de história está
associada à retirada do juízo por parte do sujeito cognoscente, porém isso não implica em uma
ideia de ciência objetiva livre dos compromissos com o mundo:715
O homem que estuda é como o asceta que medita; aquele investiga, este ora;
um e outro, porém, são homens espirituais pela aplicação das faculdades da
alma descobrindo o verdadeiro e necessário gozo da vida; dobrados diante do
livro; ou ajoelhados diante de Deus, em segredo de felicidade, dizem:
Secretum meum milu.716
711
LEITE, Discurso... op. cit., p. 431.
712
Idem, p. 431.
713
Em História e Verdade, publicado no Brasil em 1968, Paul Ricoeur aborda a questão do trabalho de análise, de
reconstituição do passado, junto ao plano da objetividade: “Deve a objetividade ser aqui tomada em seu sentido
epistemológico estrito: é objetivo aquilo que o pensamento metódico elaborou, pôs em ordem, compreendeu, e
que por essa maneira pode fazer compreender. Isto é exato quanto às ciências físicas, quanto às ciências biológicas;
também é exato quanto à história”. RICOEUR, Paul. História e Verdade. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Forense, 1968, p. 23.
714
LEITE, Discurso... op. cit., p. 432.
715
Espera-se do historiador mais do que a subjetividade “exigida” pela objetividade, o que Paul Ricoeur chama de
“boa subjetividade”. Demanda-se, então, “que a história seja uma história dos homens e que essa história dos
homens ajude o leitor, instruído pela história dos historiadores, a edificar uma subjetividade de alta categoria, a
subjetividade não só de mim mesmo, mas do homem”. RICOEUR, História e Verdade... op. cit., p. 24.
716
BELARMINO, Padre. Discurso de posse. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1896, p. 285.
233
empírico-conceituais. Esse é o mote da sua argumentação. O trabalho da crítica é, então,
fundamental - é uma condição propedêutica. Não deseja eliminar as conjecturas de forma
radical, dado que isso implica a própria falência da crítica. Pelo contrário: deve-se trabalhar
com o aperfeiçoamento crítico, mas com o auxílio das ciências sociais, desejando a “(...)
redução progressiva do coeficiente subjetivo da conjectura, ou mais exatamente na substituição
crescente da conjuntura subjetiva por essa conjuntura objetiva, que tem para ponto de partida
os princípios e os dados da ciência.”717
Olegário Herculano pede que a linguagem historiadora seja objetiva, calma, fria e
impassível como é a justiça; certa e transparente como é a verdade; “íntegra e pura como a
consciência”. Ela não traduz os ímpetos e os fulgores das paixões e dos sentimentos. Pelo
contrário: ela somente exprime os corretos artifícios da razão.718 Para ele, a verdade histórica
se assenta nas sólidas bases da sabedoria, da prudência e da reflexão.
Alexandre José Barbosa Lima defende, em seu discurso de posse, que o conhecimento
histórico não se enquadra a partir de condições elaboradas por anterioridade, sobretudo, se são
caracterizadas por proposições deterministas ou por pressupostos pessoais. O saber histórico
varia, até então, “segundo a teoria que consciente ou inconscientemente presidia a essa
idealização”.719 Isso significa, em suma, que sem os devidos cuidados de natureza metodológica
e ética o produto interpretativo oferecido pelos historiadores pode resultar em uma disposição
subjetiva e autoritária por parte do sujeito cognoscente, o que incorre na sobrevalorização das
paixões ou na deformação dos fatos históricos pela interpretação opinativa nas análises
realizadas. Duas passagens bastante elucidativas do seu discurso podem demonstrar tal
posicionamento, que, em última medida, sinalizam para a possibilidade de usos políticos
arbitrários efetuados por um historiador que se deixa levar pela idolatria ou por uma guinada
de tipo subjetiva, retirando o caráter científico da história:
Desce assim a história a instrumento perverso nas mãos dos políticos sem
elevação moral, sem descortino mental. Escrita de talento para essa obra de
habilidade mercenária, no baralhar ou envenenar os textos e desenhar
717
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 442.
718
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 431.
719
LIMA, Discurso... op. cit., p. 572.
720
Idem, p. 572.
234
caricaturas, em vez de retratos, são a praga das democracias imperialistas,
tanto quanto comensais de césares dadivosos.721
Podemos ver que toda essa preocupação está vinculada às possíveis deformidades que
as interpretações históricas trazem quando não direcionadas pelo rigor da imparcialidade e da
objetividade científica, ou quando vista a partir de um único elemento causal. O trabalho
historiográfico de reconstrução de contextos passados quando não direcionado a partir de um
profundo espírito heurístico, de um olhar multifacetado por parte do observador, e quando está
destituído de teorias filosóficas ou sociais que embasem a sua posterior interpretação geral e
sintética, traz consigo riscos à dimensão político-social que a história engendra. Sem essa
disposição preliminar as sínteses históricas suscitam rivalidades entre os grupos sociais que
compartilham um passado comum, ocultando episódios fecundos para a construção de Estados
democráticos, republicanos e soberanos. O historiador se responsabiliza por agir
imparcialmente, perpassado pelo espírito de justiça, direcionando o seu olhar para as múltiplas
situações que envolvem a emergência de um dado fenômeno histórico.722 Um evento histórico
é resultado de diferentes causalidades que convergem ou divergem: sociais, políticas, culturais
ou econômicas. A sua tarefa está condicionada em evidenciar todos os enfoques possíveis que
oferecem condições de possibilidade para a emergência de tal evento histórico
Entretanto, essa imparcialidade, segundo Alexandre José Barbosa Lima, não está
destituída de certos atributos éticos e patrióticos relacionados à realização da escrita da história,
dentre eles, a preservação do direito, da equidade e da razão; aspectos em que reside a definitiva
solução para as deturpações causadas por aquelas possíveis interpretações de “má fé” movidas
por historiadores cujo senso de partidarismo atravessa as suas análises. Para Barbosa Lima:
721
Ibidem, p. 572.
722
A ambição de imparcialidade através da virtude da justiça pode ser compreendida por intermédio da diferença
entre o juiz e o historiador na interpretação de Paul Ricoeur: “O juiz deve julgar – é sua função. Ele deve concluir.
Ele deve decidir. Ele deve reinstaurar uma justa distância entre o culpado e a vítima, segundo uma topologia
imperiosamente binária. Tudo isso, o historiador não faz, não pode, não quer fazer”. Mesmo que se arvore como
árbitro da história, o historiador não deixa de mobilizar a crítica, seja ela presente em sua corporação ou no público
leitor. É, assim, que a obra de história se torna passível de um número ilimitado de revisões e retificações, o que
torna a escrita da história uma atividade constante de reescrita. É a dimensão inconclusa que singulariza a
historiografia ante à sentença jurídica. Como avalia Ricoeur: “mas então, seu julgamento audacioso é submetido
à crítica da corporação historiadora e à do público esclarecido, sua obra oferecida a um processo ilimitado de
revisões que faz da escrita da história uma perpétua reescrita”. RICOEUR, Paul. A condição histórica. In: _____.
A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p. 335.
235
[1818-1901], a galvanizar sob as roupagens napoleônicas do imperialismo o
anacrônico espírito de conquista.723
Em suma, o historiador busca construir a verdade.725 Ela passa, ao ver de Vianna, pela
necessidade de um aparelho crítico de análise e pela configuração de aportes explicativos
sintético-teóricos. Para tanto, os historiadores devem abandonar o que ele chama de “indução
conjectural indisciplinada”, advinda da falta de controle metódico e da insuficiência explicativa
dos quadros teóricos, que a seu ver são provenientes das ciências sociais, em especial da
sociologia. O ataque dele está direcionado aos historiadores reconstrutores de fatos e de
contextos à luz das suas condições subjetivas, das idiossincrasias dos seus temperamentos, das
inclinações das suas simpatias e antagonismos. Deve-se buscar, portanto, as induções e a crítica
em fatores objetivos, o que equivale a dizer: em um controle metódico acoplado à ideia de fato
723
LIMA, Discurso... op. cit., p. 572.
724
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 442.
725
Estevão de Resende Martins nos ensina que não há uma verdade inata na atividade historiográfica, mas ela
aparece enquanto um horizonte de compreensão. Essa abordagem ilumina as concepções de verdade histórica dos
sócios do IHGB na Primeira República. Para Martins, “(...) a verdade como referência constitui-se em um horizonte
de compreensão, a partir do qual e com vistas ao qual o historiador procede. A certeza de alcançá-la é indicativa,
pois as circunstâncias concretas de realização da pesquisa apresentam variações que permitem apenas graus
aproximativos de garantia da segurança cognitiva associada ao conteúdo firmado no argumento discursivo da
narrativa histórica. O conjunto de tais circunstâncias, todavia, não impede a convergência dos critérios de produção
de conhecimento pela prática profissional. Essa prática é orientada pela formação especializada, pela referência
teórica e pelo treino metódico. Teorias e práticas encontram-se dentro de uma espécie de horizonte de referência.
Esse horizonte articula a pretensão de verdade embutida na faculdade racional humana, as circunstâncias espaciais
e temporais da sociedade e da cultura em que está imerso o historiador, como agente individual e social, e as
questões que emergem da realidade histórica em que vivem esse agente e seus coetâneos”. MARTINS, Estevão de
Rezende. História: conhecimento, verdade, argumento. Dimensões, vol. 24, 2010, p. 7-8. Disponível em:
https://cutt.ly/TcL23H9 Acesso: 08 abr. 2021.
236
social, que historiciza constantes e regularidades compassadas com o rastreamento da empiria-
conceitual das representações objetivas no e do universo fenomênico.726 É evidente a
substituição de um tipo de testemunho indireto, as fontes documentais, para um testemunho
direto, o estudo do presente vivo. Isso demanda uma mudança nos padrões que envolvem as
virtudes epistêmicas da imparcialidade e da objetividade, bem como movimenta uma história
que se deseja escrever não mais evolutivamente, mas retrospectivamente. Atualização
consistente em vista da historiografia romântica.
Para Afonso Arinos, as paixões também devem ser evitadas pelo historiador. No interior
do seu ofício apenas uma virtude deve ser concebida, qual seja, a do culto da verdade refletida
e meditada pela crítica objetiva e imparcial. O historiador deve ser imparcial e deve se retirar
em termos de emissão de opinião; deve produzir a narrativa dupla e em forma de inquérito,
dando ao leitor, através das notas de rodapé, a possibilidade de retomar os caminhos da
pesquisa.727 Não deve demonstrar sentimentos na narrativa:
Para Arinos, por outro lado, desse modo não há história. Isso porque só existe
historiografia nesses moldes quando há uma “cultura científica verdadeira” e consolidada, o
que a seu ver inexiste no Brasil. Para que exista cultura científica é necessário um verdadeiro
patrimônio de feitos arrolados e criticados, “quando as letras e as artes já perpetuarem esse
patrimônio sob mil formas na memória e no sentimento dos homens”.729
Enquanto isso, para Leite Velho, o olhar cognoscente do historiador o torna imparcial.
Ele não se retira completamente da narrativa histórica, para esse sócio. Ele se faz presente e
julga corretamente. Não há como se manter neutro completamente, o que não significa ser
tomado pelas paixões e pelos partidarismos. É o historiador que cognitivamente seleciona a
informação, recorta o contexto, problematiza, questiona e propicia a situação epistêmica ideal
726
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 1924.
727
Esse movimento é uma herança oitocentista, momento em que se institui as habilidades e as virtudes epistêmicas
que qualificavam o sujeito do conhecimento historiador. Essa aparelhagem epistêmica está centrada, sobretudo, na
crítica documental, na imparcialidade e na objetividade, oferecendo condições de possibilidade para a emergência
de gêneros por meio dos quais a história se expressa, como o livro monográfico, os artigos historiográficos e as
resenhas. Todos eles perpassados por protocolos que traduzem aquelas habilidades e virtudes. Essa disposição
epistêmica é a condição para a narrativa dupla. Cf. GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição:
pequeno tratado sobre as notas de rodapé. Campinas: Papirus, 1998.
728
FRANCO, Discurso... op. cit., p. 216.
729
Idem, p. 216.
237
para a construção de um conhecimento de natureza objetiva.730 Assim sendo, Leite Velho elenca
as necessárias habilidades:
João da Costa Lima Drumond argumenta que há utilidade de ordem moral nas
investigações históricas imparcialmente orientadas: reverenciar a verdade no “brilho único” e
sincero da inteligência e na pureza própria do talento do investigador. Tudo isso se “submete
nobremente aos ditames da justiça, com que não transige”.732 O culto da verdade é o apostolado
do historiador: não deixam de serem nocivas as mentiras parciais por serem convencionais.
De acordo com Olegário Herculano de Aquino e Castro, a ciência apresenta-se
cosmopolita para que se cumpra o desempenho da sua função em conformidade com os destinos
humanos. Em suas palavras: “Nem os continentes, nem os oceanos; nem as altitudes, nem os
vales. Nem o equador, nem os polos, têm que opor entraves às suas conquistas: antes é sobre o
conjunto das coisas criadas que ela exerce melhormente, a sua ação civilizadora”. 733 Segundo
ele, quanto mais positiva é a ciência, mais profundo é o conhecimento das leis da civilização.
Para Herculano existem ciências físicas e morais. Mutila-se a ciência, que segundo pensa é um
todo harmônico, aquele que por um único dos seus aspectos a considera. Se essas especialidades
são necessárias para o engendramento de qualquer ramo de saber, a verdade superior, escopo
da ciência, resulta da combinação perfeita das verdades parciais, morais e físicas. Enfim, é a
verdade o objetivo da ciência, como preconiza Rousseau (1712-1778).
Herculano afirma que os principais atributos do saber científico repousam na
“serenidade”734 e na “justiça”, que não são ofuscadas pela agitação dos partidos que se
digladiam na arena pública. As controvérsias dos sábios, por outro turno, que muitas vezes
“azedam”, mostrando aí a fragilidade humana, mas não incitam prevenções, suspeitas ou
perseguições. Os sábios não conspiram. Eles dão as suas preferências para as teorias e sistemas,
730
Assim, como quer Jörn Rüsen, a categoria objetividade se refere “a um determinado tipo de conhecimento
histórico que é buscado através de procedimentos de pesquisa regulamentados, lhe garante um alto grau de validade
e o coloca acima das opiniões arbitrárias”. RÜSEN, Jörn. Narratividade e objetividade na ciência histórica. Estudos
ibero-americanos, vol. XXIV, n. 2, 1998, p. 312. Disponível em: https://cutt.ly/ycZf47X Acesso: 08 abr. 2021.
731
VELHO, Bernardo Teixeira de Moraes Leite. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXVI, parte II, 1903, p. 154.
732
DRUMOND, Discurso... op. cit., p. 330.
733
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 417.
734
Rodrigo Turin, a partir do caso Sílvio Romero, entende a sinceridade como um pacto de verdade entre autor e
leitor. Cf. TURIN, Uma nobre... op. cit., 2009.
238
mas em uma região isenta das ambições subversivas. Assim, a partir do entrechoque de saberes,
na mansidão quieta dos sábios, há o progresso da ciência.735
De todo modo, pergunta-se Herculano: em qual das categorias científicas enquadra-se a
história? Física ou moral? Segundo a sua explicação, a história é uma ciência mista em sua
estruturação epistêmica. A história não prescinde da observação, do agrupamento dos fatos que
se sucedem. O seu mérito consiste na penetração, por meio de uma operação crítico-conceitual
de pensamento, no nexo lógico que prende e governa os acontecimentos, quer dizer, o
descobrimento da marcha, do motor, evolutiva da civilização junto ao caos dos eventos “que
revoluteiam, tumultuam e se atropelam”.736 Operação de saber necessária para a retirada de um
extrato moral dos acontecimentos.
Afrânio Peixoto não se considera nem historiador nem geógrafo, porém, o que move a
sua atividade intelectiva é a busca pela verdade, ou “o amor pela verdade”. Ele argumenta,
nesse sentido, que aquilo que anima as suas investidas sobre o passado possui algo de ceticismo.
Esse amor pela verdade é acompanhando por duas disposições: a que aceita cegamente o
espírito da dúvida, por meio dos seus princípios internos, e a outra, cética até mesmo com a
ciência e com a verdade. Ele separa esses ethos em duas categorias metafóricas: a dos “ousados”
e a dos “tímidos”. E afirma:
(...) quanto mais cresce o ceticismo, de tudo – das Letras, da Ciência, da Arte,
mais me cercam as blandícias e os afagos das faculdades, escolas e academias,
dos que pontificam e se exalçam nesses templos daquelas divindades”.737
Para Afrânio Peixoto, o ceticismo é uma virtude que reforça o espírito de imparcialidade
e de objetividade. Ele era capaz de colocar em dúvida até mesmo os artefatos científicos.
A virtude epistêmica do ceticismo abrange, nessa direção, todas as áreas do pensamento.
É o mote de reflexão de Afrânio Peixoto, também assumido por Ramiz Galvão como uma das
pedras angulares das atividades da instituição. Contudo, é um ceticismo diferente. Não é
somente a “dúvida sistemática da escola de Kant [1724-1804]”. O ceticismo desejado move a
dinâmica de progresso e de falseamento das pesquisas, em que sempre se duvida, com o rigor
do regime historiográfico metódico, sobre a eficiência dos produtos científicos. Argumenta
Ramiz Galvão:
735
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 419.
736
Idem, p. 419.
737
PEIXOTO, Discurso... op. cit., p. 502.
239
Este ceticismo é adorável; é forçosamente o que impera no espírito do
primoroso artista, do sábio consciencioso e honesto, do professor insigne que
discute na sua cátedra os problemas da vida social.738
738
GALVÃO, Discurso... op. cit., p. 511.
739
Podemos compreender a postura cética de Afrânio Peixoto através da tradição do pirronismo: “Tendo submetido
a severo questionamento as doutrinas dogmáticas, tendo diagnosticado seu indecidível conflito, incapaz de optar
por alguma das pretensas verdades que elas lhe oferecem, o cético é levado, acerca de toda questão que examina,
a uma inevitável suspensão de juízo, ou epokhé. A experiência sempre renovada dessa suspensão o faz
necessariamente desconfiar da mesma possibilidade de vir a legitimar-se qualquer opção filosófica particular”.
PEREIRA, Oswaldo Porchat. Verdade, realismo, ceticismo. Discurso, vol. 25, 1995, p. 32. Disponível em:
https://cutt.ly/ccZySs7 Acesso: 08 abr. 2021.
740
ALBUQUERQUE, Conselheiro Salvador Pires de Carvalho e. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXV, parte II
1902, p. 463.
240
fazer ciência da história. Porém, para ele essa condição, em se tratando de historiografia,
diverge daquelas movidas pelos intelectuais do período. Salienta o sócio: “É um erro, senhores,
exigir-se do historiador uma imparcialidade absoluta. O simples narrador de fato, pela
tonalidade que lhes dá ou pelo método que lhe põe no relato, trai forçosamente a sua opinião”741.
A explicação pode ser da seguinte maneira: o verdadeiro historiador não é apenas aquele que
busca expor a identidade da vida nacional, que por meio do método crítico esclarece fatos
históricos e sociais, propondo dali lições para a sociedade. O verdadeiro historiador não alcança
tal nível de distanciamento. Ele “tem que encará-la necessariamente através do prisma do seu
credo político, através do prisma da sua filosofia, através do prisma da sua fé religiosa”742. Em
suma, na concepção de ciência de Magalhães encontramos combinado posicionamento e
objetividade.743 Há uma equivalência entre as duas posições para o autor:
Não posso imaginar que exista à face da terra um homem sem convicções, e,
se ele não circunvolve, não sobredoura, não estranha delas tudo o que arranca
da sua inteligência, tanto é indigno do nome de historiador, como, sobretudo,
é indigno do nome de homem744.
Magalhães, arrematando suas prescrições sobre o caráter da história em si e para si, faz
elogio aos historiadores que se fundem empaticamente com os seus objetos de estudo. Esse
movimento, uma habilidade historiadora, se realiza na forma de inquéritos que aceitam a
tomada de posição e, no limite, a convicção. Foi a forma encontrada de fazer a ciência histórica
dialogar com a sociedade de modo geral. O exemplo de homem de letras que coaduna os pares
cientificidade e engajamento vem de Portugal e o seu nome é Alexandre Herculano. Os esforços
intelectuais de Herculano, ele mesmo envolto pela realeza, traveste-se de patriotismo. Em sua
pena vemos claros posicionamentos e formas de conduta de natureza político-social.
Visualizamos a situação através de um problema colocado aos historiadores do Instituto:
o que deve prevalecer enquanto virtude epistêmica na prática do historiador está atrelado à
dimensão da probidade. Sem ela o historiador não alcança a verdade, mas isso não significa
falta de engajamento. É um dever patriótico o que estamos acompanhando: “urge que cultuemos
as nossas tradições, para que reforçamos também a nossa vida”.745 E prossegue em suas
741
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 595.
742
Idem, p. 595.
743
O posicionamento de Basílio de Magalhães é semelhante ao de Manoel Bomfim. Ambos estão em um mesmo
registro de verdade historiográfica. Esclarece Rebeca Gontijo: “A objetividade da ciência estaria, pois, na
localização dos interesses do cientista. Era a partir da identificação de tais interesses que se tornaria possível, em
primeiro lugar, situar o cientista em relação a seu objeto; e, em segundo, identificar as verdades ditas ou omitidas”.
GONTIJO, Manoel Bomfim... op. cit., p. 132-133.
744
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 595.
745
Idem, p. 596.
241
normatizações que, nesse ponto, estão próximas às de Comte: “Disse Augusto Comte que os
povos sem tradição tateiam nas trevas como cegos”.746
Olegário Herculano pondera que a história não pode ser escrita por coevos. A esses,
como pensado por Edward Gibbon (1737-1794), cabe somente o esforço de reunir
propedeuticamente com cuidado e dispor com habilidade os materiais, ficando a história, assim,
abrigada ante as incertezas dos sofistas e as diversões dos declamadores. Não pertence aos
contemporâneos o juízo definitivo sobre a história, mas o encargo de preparar judiciosamente
os elementos necessários para que ele possa ser seguro e esclarecido.747 Por mais que se esforce
o historiador para ser imparcial junto à narrativa dos fatos de que é testemunha, e por mais que
se empenhe junto à máxima da justiça histórica, sem ódio e sem favor, há ele sempre de
combater o predomínio, alega Olegário Herculano, da influência das ideias, dos preconceitos,
das opiniões que lhe envolvem.
746
Ibidem, p. 596.
747
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 429.
748
Idem, p. 429-30.
749
Hugo Hruby, ao situar a prática historiográfica do IHGB na virada do século, argumenta que há a recusa de
uma história contemporânea, ou do tempo presente, entre os sócios. Recusa essa já presente nos momentos de
fundação do Instituto. Cf. HRUBY, Obreiros diligentes... op. cit., 2007.
750
BORNAN, Discurso... op. cit., p. 765.
242
Manuel Cicero Peregrino da Silva orienta que a virtude epistêmica da imparcialidade
presente entre os sócios do Instituto Histórico é responsável por oferecer condições de
existência para a historicização das tradições nacionais, levando a reconhecer e a proclamar o
mérito dos “vultos” da história pátria. Não há discordância, portanto, entre imparcialidade e
exortação patriótica. A virtude epistêmica da imparcialidade leva à proteção daqueles que
vivem largos anos em prol da pátria, prestando “um culto em sua memória; culto isento de
fetichismo - um preito de imorredoura gratidão”.751
Argumenta Olegário Herculano, na alocução presidencial de 1902, que Alexandre
Herculano, em uma recepção diametralmente oposta à de Basílio de Magalhães, anuncia que o
patriotismo inspira o estilo, a poesia, mas é sempre um mau conselheiro do historiador. E vê
exagero na assertiva do historiador português e se contrapõe a ela, posto não ser o amor da
pátria incompatível com o da verdade que inspira o historiador em seu ofício. Antes disso:
quanto mais vivo e “brioso” for esse sentimento, “mais pura e elevada” se faz “ouvir a voz da
razão pronunciando os irrefratáveis ditames da justiça, retidão e imparcialidade”. “Nobre” e
“ponderosa” a função do historiador e da história: “tribunal de suprema autoridade”, cuja
“apreciação e severo juízo irremissível” são a todo tempo destinados os fatos que assinalam a
vida das nações e da humanidade.752 O culto à pátria não inviabiliza as virtudes epistêmicas da
imparcialidade, da objetividade, da sinceridade, nem os horizontes da justiça. Lembra que a
pátria transcende as tensões políticas, ou o subjetivismo negativo impresso nas abordagens do
tempo presente e os interesses particulares. O desejo primeiro a que se propõe o Instituto é
honrá-la, assinalando as suas glórias nas páginas da história. Missão considerada nobre e difícil,
pois a história tem por objetivo único a verdade, a qual se faz ouvir pela voz imperiosa da razão,
da justiça e, principalmente, da imparcialidade e da objetividade; pela investigação, pelo estudo,
pelo trabalho e pelo próprio esforço, “e não pelo sobrenatural e gracioso dom que, porventura,
lhe quer outorgar a providência”.753
Para Oliveira Vianna, a modalidade de “indução conjectural” orientada pela ciência tem
a capacidade de propor uma nova forma de fazer ver o passado, quer dizer, se instaura um olhar
sinóptico sobre a experiência da história que leva em consideração a pluralidade de causas que
governam uma situação ou fato histórico-social. Além disso, ela proporciona uma perspectiva
751
SILVA, Discurso... op. cit., p. 606
752
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 541.
753
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 537.
243
de história retrospectiva. É um esquema teórico-prático que leva em consideração “o
contingente das realidades, que não puderam ser fixadas pelos textos escritos ou guardados
pelos testemunhos orais”.754 Essa forma de entender o passado tem dimensões de
presentificação, ou usando a metáfora de Michelet apropriada pelo autor, de ressureição.
Ademais, essa forma de trabalhar com a experiência da história, ou tecido histórico-social das
sociedades, faz do trabalho do historiador uma verdadeira obra de arte. Em suas palavras: a
indução conjectural cientificamente controlada “permite fazer da História realmente uma
ressurreição, isto é, uma bela obra de arte que nem por ser uma bela obra de arte, deixa de ser
uma verdadeira obra de ciência”.755 É nesse sentido, indo além dos testemunhos de arquivo,
que a nova crítica, amparada pela indução conjectural, tem “conseguido desvendar o mistério
de certos enigmas, que apenas com os elementos arquivais lhe seria impossível esclarecer”.756
Dessa maneira, um lugar comum na conjuntura epistêmico-historiográfica da passagem
para o século XX relacionava-se ao estatuto da escrita da história como arte sem prejuízo das
virtudes da objetividade e da imparcialidade.757 Para muitos intelectuais em atividade, a história
era a ciência capaz de subsidiar as demais disciplinas, naquilo que chamamos de episteme
modernista. Entretanto, a história, como quer Oliveira Vianna, além de ser ciência é obra de
arte. Ela faz a síntese dos conhecimentos de “forma alquímica”, mas também é construtora
ekphrasis758, que no vocabulário dele representa o processo de presentificação literária ou
pictórica do passado tal qual uma ressurreição. De acordo com o sociólogo: “Mas a História
não é apenas uma grande ciência; é também e magnificamente, uma grande arte, - e essa
condição de grande arte ainda torna mais complexo o labor da síntese histórica”.759
Era justamente por ser obra de arte, mas que se confundia com obra de ciência, que
muitos interlocutores a consideravam capaz de transcender o mimetismo historiográfico, e fazer
da história mais que a verdade considerada como adequação a forma. A demanda por tornar a
história perspectivada fazia dela, também, a arte de narrar versões. A história era ciência por
conta, ainda, do poder artístico que a narrativa, último estágio da operação historiográfica,
754
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 442.
755
Idem, p. 442.
756
Ibidem, p. 442.
757
Ivan Norberto dos Santos assegura a existência de certa aceitação da dimensão artístico-literária por parte dos
historiadores da Primeira República: “A qualidade literária da narrativa, portanto, não era então fator de
desmerecimento para a elaboração do conhecimento histórico, sendo, para muitos, peça fundamental da sua
realização”. SANTOS, A escrita amadora... op. cit., p. 63.
758
Para João Adolfo Hansen, em texto que aborda a ekphrasis em seu contexto originário, “a matéria da ekphrasis
é apresentação ou exposição do efeito de presença de algo ausente”. HANSEN, João Adolfo. Categorias epidíticas
da ekphrasis. Revista USP, n. 71, 2006, p. 91. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13554 Acesso: 08 abr. 2021.
759
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 444.
244
provocava. Suscitava ressureição, presentificação ou ekphrasis.760 Oliveira Vianna diz, em seu
discurso prescritivo, que não encontra diferença entre ciência e arte, pois isso significa criar
uma cisão desnecessária entre verdade e beleza.
Nas explicações de Vianna, antes mesmo da história agregar os suportes das ciências
sociais, o historiador produz artefatos artísticos. A arte é, nesse sentido, uma herança clássica
entre os modernos cientistas sociais, o que inclui, claro, os historiadores. Na contemporaneidade
europeia daqueles sócios se pode perceber, mesmo com a riqueza e a positividade dos novos
métodos informados pelas ciências sociais, “a lembrança vivaz dessas belas tradições artísticas
desses períodos iniciais” em um Taine, em um Carlyle, em um Vandal ou, no exemplo máximo,
em um Michelet.761 Vianna argumenta que Thomas Seccombe (1863-1923) chega a alegar que
nenhum historiador merece essa insígnia caso não possua “a capacidade verbal e o talento
descritivo de dois ou três grandes romancistas”.762
A condição de ser paralelamente uma obra de síntese e uma obra de arte é o que
singulariza a ciência da história para Oliveira Vianna. A própria história, como um conjunto de
técnicas e de habilidades, de captura das singularidades, torna-se, no âmbito do fazer, uma arte,
para além da dimensão da beleza. A rotinização e a disciplinarização tornam o fazer uma arte,
que pode ser entendida, também, como técnica. Mas Vianna fala, não obstante, em artes da
ficção. Para o intelectual carioca: “(...) justamente por ser uma ciência da evocação, versando
matéria, a que fala o encanto das coisas vivas, não pode dispensar o auxílio das artes de
ficção”.763 Nesse sentido, são as artes de ficção que emprestam ao saber histórico certo
interesse, sedução, curiosidade para aqueles que se interessam pelas épocas passadas. Além
disso, é o recurso da ficção, a arte das musas, que provoca a aceitação da história por diversos
públicos leitores, diferentemente, argumenta, da geografia, da etnografia e da antropologia, que
possuem um círculo pequeno de leitores confinados em campos autônomos. A história, ainda
que cientificizada, não deixa de ser um estudo que incita a curiosidade e o lazer dos seus leitores.
760
A comparação entre os espaços de trabalho de Robert Southey e Francisco Adolfo de Varnhagen serve como
indício para os (des)caminhos das relações entre história e arte na historiografia brasileira: “a obra de Southey,
como boa parte da experiência historiográfica brasileira do século XIX, estava dividida entre uma história em
busca do verdadeiro e as tentações do poético. Varnhagen, cuja arte narrativa procurou afastar-se o máximo que
pôde das reflexões literárias e estéticas, manteve, mesmo à revelia, uma certa poética em seu texto, seja por meio
das metáforas provenientes da conversão dos conceitos da retórica da filosofia da história setecentista, como o
conteúdo imaginativo associado à formulação de hipóteses ou à representação histórica, às vezes francamente
poéticas, que fraturavam a oposição entre res factae e res fictae, seja através de fontes, como o poeta Robert
Southey”. CEZAR, Temístocles. O poeta e o historiador: Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no
Brasil do século XIX. História Unisinos, vol. 3, n. 11, 2007, p. 310. Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/5909 Acesso: 08 abr. 2021.
761
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 445.
762
Idem, p. 445
763
Ibidem, p. 445.
245
Lembrando que a arte literária em história, conforme pensa o estudioso, responde a uma
particular “teoria do gosto”. Vianna deixa essa questão bem clara, como se pode ver:
764
Ibidem, p. 445.
765
Ibidem, p. 450.
766
ROURE, Discurso... op. cit., p. 721
767
GALVÃO, Discurso... op. cit., p. 610.
246
Para Raul Tavares, os artifícios artísticos acompanham a narrativa histórica. Artifício e
verdade em comunhão na operação historiográfica. A presentificação do passado depende da
narrativa de sentido. Em Tavares, a arte aparece como recurso inevitável para movimentar todo
o trabalho articulado sob a forma de inquérito. Salienta o autor: “Assim, o artista escreve e o
artífice escrevinha. Arte e ciência, o que vale dizer - elegância e verdade - são elementos com
que se exercita o historiador, para investigar os fatos, colorir os aspectos, plantando a
austeridade das fisionomias ou o ridículo dos caracteres”.768 O interessante é que não deixa de
ser relevante que o estatuto artístico projetado à história se confunda com a noção de estilo.
Assim, Artur Pinto da Rocha percebe os interditos da arte na operação historiográfica:
Alfredo Valadão argumenta que a história é a mais bela de todas as artes e de todas as
ciências. Valendo-se das reflexões do francês Taine, sugestiona-se que a história é
paralelamente uma arte e uma ciência. Ela requer do escritor a inspiração, mas também lhe
exige a reflexão. Se o historiador-artista invoca a imaginação criadora, ele também deve
manejar os instrumentos da crítica prudente e da generalização circunspecta. Se convém que as
suas “pinturas”, as narrativas históricas, sejam vivas como as poesias; se requer, igualmente, o
estilo exato, as divisões e periodizações perfeitamente assinaladas, as leis bem demonstradas,
as induções precisas quanto da história natural.770
O que esse texto promove é uma reflexão sobre a variedade das concepções de
cientificidade existentes no IHGB na Primeira República. Elas existem correlatamente, lado a
lado, imprimindo dúvidas, tensões e disputas entre diferentes tradições acerca da cientificidade
da história. Esse modo de lidar com a produção intelectual do IHGB nos oferece a oportunidade
de transpormos a sequência evolutiva de problemas e de temas operacionalizados por uma
tradicional história da historiografia.
768
TAVARES, Discurso... op. cit., p. 496.
769
ROCHA, Discurso... op. cit., p. 676.
770
VALADÃO, Alfredo. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXV, parte II, 1912, p. 540-41.
247
Capítulo 7 - Uma história total? História, complexidade e construções
disciplinares
Sois, vós, historiadores que lançai os alicerces de
todas essas ciências771.
Pedro Lessa
771
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 244.
772
RODRIGUES, Discurso... op. cit., 1907, p. 727.
773
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 439.
774
“A história das ciências registra a eclosão de rupturas entre as fronteiras disciplinares, a invasão de uma
disciplina por outra, a circulação de conceitos, a formação de disciplinas híbridas que acabam se tornando
autônomas”. CAMPOS, Alzira. L. A. A produção do conhecimento: teoria e ciência dos modelos (Histórico e
conceituação de interdisciplinaridade). Tempo & Memória, São Paulo, v. 2, 2004, p. 1.
775
Peter Burke sugere uma possível função para a noção de interdisciplinaridade: “A interdisciplinaridade poderia
ser considerada como um indispensável antídoto à especialização. Tal como a divisão do trabalho em geral, a
especialização aumenta a eficiência e, assim, contribui para o crescimento do conhecimento. Ao mesmo tempo, a
costumeira definição sobre ‘saber cada vez mais sobre cada vez menos’, algumas vezes se comprovou como
obstáculo às novas descobertas e teorias. Viver em ilhas no arquipélago acadêmico incentiva a insularidade
intelectual. Daí a contínua necessidade de evitar a ‘polícia fronteiriça’ intelectual, como dizia Aby Warburg (...)”.
248
complexidade dos fenômenos históricos fazia-se necessário a mobilização de diversos tipos de
recursos intelectivos dependendo da perspectiva eleita como foco de análise. Mas tudo isso sem
deixar de demarcar os seus próprios limites epistêmicos ou a sua identidade disciplinar.
Algumas considerações levantadas por Angela de Castro Gomes em seu estudo sobre o
IHGB na República são úteis para acompanharmos esse movimento disciplinar: “(...) havia uma
clara consciência da importância do diálogo com as novas ciências sociais, entre as quais
figuravam a sociologia, a geografia e a etnografia, entre outras, com destaque para a primeira,
que se fortalecia como ‘a’ grande ciência social do momento”.776
Nessa direção, parece-nos apropriado o acompanhamento de algumas considerações
reveladas pelo discurso de José Carlos Rodrigues no ano de 1907. Para o jornalista, a história
enquanto prática e como saber demanda uma “multiplicidade de cultores”, posto que esse tipo
de conhecimento não pode, em sua concepção, ser elaborado a partir de uma única perspectiva
analítica válida. Há, pois, histórias e versões. Não há uma verdade pronta, acabada e tida como
irrefutável. Em suas palavras: a história
(...) renasce sempre nova de seus próprios estudos. Não é a grande biografia
da humanidade, mas a própria humanidade ditando conscientemente. Mais do
que nunca ela precisa do esforço combinado de muitas aptidões, em
consequência de sua delicada e complicada engrenagem com o meio social e
seus antecedentes.777
A história se constituía, então, a partir do estudo das múltiplas circunstâncias que davam
condições de possibilidade para que os acontecimentos emergissem. Diante do amplo espectro
de abertura ao real que o material social deixava à disposição daqueles que se ocupavam com
o passado fazia-se necessário deixar em relevo que para a efetivação de um saber considerado
autorizado o historiador devia considerar que as suas temáticas de investigação eram compostas
de inúmeras circunstâncias que não podiam ser resumidas através de uma única direção
analítica.778 Isso leva-nos a perceber que a história trazia consigo o que consideramos em nossos
dias como perspectivismo metodológico e conceitual, demandando, assim, a sua reescrita
BURKE, Peter. O que é história do conhecimento? São Paulo: Editora UNESP, 2016, p. 53.
776
GOMES, A República... op. cit., p .10.
777
RODRIGUES, Discurso... op. cit., p. 727.
778
Mobilizar a interdisciplinaridade como possibilidade de análise significa desvelar, a partir de um objeto de
pesquisa delimitado, no caso falamos de objetos historiográficos, as múltiplas determinações históricas que o
constitui. “Delimitar um objeto para a investigação não é fragmentá-lo, ou limitá-lo arbitrariamente. Ou seja, se o
processo de conhecimento nos impõe a delimitação de determinado problema isto não significa que tenhamos que
abandonar as múltiplas determinações que o constituem. É neste sentido que mesmo delimitado um fato teima em
não perder o tecido da totalidade de que faz parte indissociável”. FRIGOTTO, Gaudêncio. Interdisciplinaridade
como necessidade e como problema nas ciências sociais. Ideação: Revista do Centro de Educação e Letras da
Unioeste, n. 10, vol.1, 2008. p. 44. Disponível em: https://cutt.ly/ScLD7aS Acesso: 08 abr. 2021.
249
constante, a releitura atenciosa e crítica do material empírico disponível para a sua perfeita
configuração e para a abertura de diversas formas de interpretação de um mesmo acontecimento
histórico. Seria possível que a história, assim sendo, se aproximasse epistemologicamente de
outros campos de conhecimento.
O historiador, no processo de disciplinarização do seu métier e no estabelecimento de
formas de reconhecimento social para a sua prática e para o seu saber produzido, se via
impelido, via de regra, a importar recursos teórico-metodológicos, para não falarmos de temas
e de objetos, que em tese eram reconhecidos como de outros campos. Esses saberes, que
também se esforçavam para criarem as suas identidades disciplinares próprias, multiplicavam-
se: paleografia, estatística, economia política, etnografia, sociologia, geografia, arqueologia,
biologia, direito, entre outros. Não era incomum falar em “saberes auxiliares” da história, o que
podia levar, é bem verdade, a uma hierarquização das modalidades de conhecimento
disponíveis. Alguns desses saberes, em via inversa, só se estabeleciam como tais em função da
própria existência da história. Já outros almejavam a cientificização e a independência
epistêmica. Enquanto que não poucos só existiam no formato de fusionamento disciplinar,
mesmo tendo as suas identidades resguardadas.
Joaquim Xavier da Silveira Junior acredita no caráter científico da história, sendo no
seu entender “uma das mais modernas criações do espírito humano”. Para tanto, ela tem
sistematizado material empírico lentamente através de gerações de estudiosos, e seus resultados
são provenientes do consórcio com outros saberes também em formação, que para ele são: a
cosmologia, a geologia, a geografia, a paleontologia, a antropologia, a etnografia, a filologia,
a estatística e a psicologia. Através do atravessamento desses saberes os estudos sobre os
caminhos dos sujeitos no mundo da vida se complexificam, na medida em que todos esses
paradigmas em conexão abrem margem para a ampliação da noção de tempo histórico e para
uma abordagem pluricausal dos acontecimentos.779
Assim, a tarefa do historiador apresenta-se naquele momento enquanto uma das mais
complexas em termos de experiência intelectual se acompanharmos os juízos de Alfredo de
Carvalho, posto que ela exige uma “soma extraordinária de conhecimentos” que parece
“ultrapassar os limites da inteligência e da vida de um homem”. 780 Era verdade que os sócios
do Instituto intentavam diversificar o foco das suas preocupações, afastando-se de uma
perspectiva político-factual, mesmo que essa dimensão ainda fosse considerada fundamental.
779
JUNIOR, Discurso... op. cit., p. 646.
780
CARVALHO, Discurso... op. cit., p. 732.
250
O mais acertado é dizer que ocorreu uma ampliação da noção de política, e não o seu abandono.
Dentro ou fora da esfera política o que se esperava do historiador na República, e o IHGB era
a instância de saber-poder mais proeminente para se requerer tais demandas, era a abordagem
de segmentos múltiplos daquilo que formava o humano em perspectiva temporal. Isso levava,
sob o controle metódico, marca distintiva da operação historiográfica por eles alinhavada, a
história a elevar-se à complexidade781 e, paralelamente, a evitar as grandes conjecturas que
deformavam os fatos históricos, tendo como exemplo as filosofias da história. Tristão de
Alencar Araripe aponta o seguinte:
Nesse sentido, Pedro Lessa, ao falar das temáticas e dos objetos estudados pelos
historiadores clássicos, que em sua opinião possuem pouco alcance analítico, posto que muito
focados em feitos bélicos e ações de políticos, deixa claro que se deve avançar em direção da
análise das múltiplas problemáticas que cercam um dado fato ou situação:
Para Olegário Herculano de Aquino e Castro, a história não é uma “simples ciência de
datas”, ou dedução cronológica de fatos mais ou menos importantes que se desdobram no
percorrer da temporalidade. Não é a exposição da “escola descritiva de Barante e de Lingard”,
que se limita puramente à narração dos fatos, sem pretender “moralizá-los” ou “julgá-los”. Não
é a falsa concepção da “escola fatalista”, que se ocupa com a ideia de que os sujeitos pouca ou
nenhuma influência exercem sobre a direção dos fatos e das opiniões. A história é, ao contrário,
o estudo sério, profundo e refletido. A análise esclarecida feita por meio da crítica severa e
judiciosa com exata e fundamentada apreciação das suas múltiplas causas e seus respectivos
781
Julio César de Oliveira Vellozo e Paulo Teixeira Iumatti constatam haver entre os intelectuais desse contexto a
“consciência de que o conhecimento de alguma forma lida não só com simplificações, mas principalmente com
complexidades. Malgrado predominasse a noção de que a ciência vinha para simplificar o complexo, a estupefação
diante da imensidão da natureza e a dificuldade na detecção de regularidades nas relações de causalidade no âmbito
dos fatos humanos são alguns temas constantes na obra e na trajetória de Euclides da Cunha, Alfredo D’Escragnole
Taunay e Oliveira Vianna – para mencionar apenas alguns nomes”. IUMATTI, Paulo Teixeira; VELLOZO, Julio
César de Oliveira. Conhecimento... op. cit., p. 33.
782
ARARIPE, Indicações... op. cit., p. 271.
783
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 211.
251
efeitos - em sua intima relação com o passado, direta ligação com presente e imediato impacto
sobre o futuro.784 É um estudo que para elevar-se conceitualmente demanda, portanto, a
interdisciplinaridade.
Olegário Herculano acusa que junto ao desenvolvimento das ideias e dos fatos, entre
ordem intelectual e ordem real, a história necessita da luz da filosofia, do direito, da política,
da administração, das ciências e das artes. De toda atividade intelectual, de tudo que consiste
na obra de consciência e de verdade, de reparação e de justiça, a que se se tem dedicado desde
remotos tempos Heródoto, Homero, Tucídides, Xenofonte, Tito Lívio, Herder, Hume,
Macaulay, Thierry, Michelet, Thiers, Alexandre Herculano, Cantù, etc.
Um dos aspectos prescritos por Oliveira Vianna que se coaduna à sua ideia geral de
história e de historiografia diz respeito ao movimento pluricausal envolvido na emergência dos
acontecimentos históricos. Os modernos historiadores possuem cada vez mais a consciência de
que os fenômenos históricos não estão, em primeiro lugar, enredados em uma cadeia evolutiva
e de feições progressistas; e, segundo, que não são resultados de uma mecânica causal, em que
determinado elemento do passado é explicado por intermédio de um olhar que o localiza entre
um natural antes e depois, sendo que os efeitos, da mesma forma como que as causas, para
Vianna, também se modulam de maneira imprevisível. O estudioso de Saquarema estava, então,
no limar do pós-evolucionismo. Segundo as suas palavras: os fenômenos históricos são
O seu parecer era inequívoco e através da leitura das prescrições do filósofo francês
Henri Berr, que no mesmo período deparava-se com problemas epistêmicos parelhos em
França, articulava-se a seguinte normatização epistêmica: a complexidade786 fenomênica
implicava, necessariamente, a diversidade do saber. E Vianna disponibilizou uma metáfora
elucidativa que sintetizava esse percurso intelectivo prescrito: o historiador possuía, em sua
concepção, as virtudes e as habilidades epistêmicas próprias do enciclopedismo de Aristóteles.
Isso tudo trazia consequências diretas para a elaboração do saber histórico, na medida em que
784
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 428.
785
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 439.
786
A história tende a tornar-se, após a superação dos modelos evolucionistas e mecanicistas, a “ciência da
complexidade”. Cf. BURGUIÈRE, André. Da história evolucionista à história complexa. In: MORIN, Edgar. A
religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
252
as sínteses históricas, tomando como ponto de partida as resoluções teóricas elucidadas, só
podem ter condições de existência caso se efetive um espaço de trabalho coletivo, assim como
os membros do IHGB fizeram desde a sua fundação e Berr em torno do seu projeto editorial e
intelectual em França.787
Mas esse esforço intelectual não significava tão somente um olhar institucional sobre o
conhecimento histórico, porém toda uma forma específica de concebê-lo e de elaborá-lo. De
acordo com as proposições do novo sócio Oliveira Vianna, todas as ciências concorrem para a
consecução dessa tarefa intelectiva porque as determinantes que acompanham o
desenvolvimento das sociedades realizam-se a partir do prisma da multiplicidade, ou seja, há a
impossibilidade de serem classificados e compreendidos sem o suporte epistêmico de todos os
sistemas de conhecimento disponíveis. Para Oliveira Vianna, isso equivale a “dizer que o mais
simples fenômeno histórico exige para a sua exata compreensão os subsídios de todas as
ciências naturais, de todas as ciências antropológicas, de todas as ciências sociais”.788 Mas em
se tratando de abordagens históricas, salienta Vianna, preocupadas com a caracterização social
do humano no tempo, o mais adequado é a aproximação com essas ciências, na medida em que
não é possível desenvolver uma interpretação razoável acerca do passado sem o concurso dos
seus métodos, dos seus questionamentos e dos seus dados objetivos.
Encontramos até mesmo raízes antiquárias nos subsídios técnicos de análise observados
no IHGB republicano. Julio Meili, por exemplo, estudou a história do Brasil através da antiga
ciência auxiliar chamada de numismática. No entanto, essa dimensão do saber histórico não era
concebida, naquele contexto epistêmico-historiográfico, como um estudo do objeto por ele
mesmo. Ele mostrava-se como instância passível de crítica e de comprovação informacional
visando um fim específico, qual seja, o conhecimento da história do Brasil. Essa atestação pode
ser averiguada nesta passagem:
787
De acordo com Henri Berr, “existiria um fundo histórico que permearia um necessário diálogo que pudesse
fazer frente ao pecado do ‘especialismo’, no qual a prática desses saberes se dava de forma isolada, feita por
indivíduos que se recusavam a admitir possibilidades de aproximações teóricas e/ou metodológicas entre os
campos disciplinares”. BENTO, Luiz Carlos; BORGES, Clayton Ferreira e Ferreira. A Revue de synthèse
historique. Interdisciplinaridade e epistemologia nos estudos históricos franceses. In: ARRAIS, Cristiano Alencar;
BENTIVOGLIO, Julio (orgs.). As revistas de história e as dinâmicas do campo historiográfico. Serra: Editora
Milfontes, 2017, p. 279.
788
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 439.
253
são ainda representadas no medalheiro do Instituto. Cópias, impressas em
folhas, peço licença para deduzir algumas palavrar, visto nelas figurarem os
Brasões de suas províncias, assunto interessante que já por vezes foi tratado
na Revista.789
A linguística aparecia, também, como um saber auxiliar da história. Para Mario Castelo
Branco Barreto, ela deixa de ser uma arte e modernamente apresenta-se com uma roupagem
científica. É a ciência da linguagem.792 Ela não está, em uma perspectiva contemporânea, mais
à serviço do estudo das línguas mortas ou à serviço da exegese cristã. Ela investiga os “restos”,
concebidos como vestígios, indícios ou evidências, dos povos nos mais diversificados extratos
de tempo, por isso sendo de grande utilidade para a história. 793 São “restos” que nos “davam a
conhecer as variadas manifestações do engenho e da beleza de toda a humanidade, não já num
só canto da Grécia”.794
A linguística tinha a seu favor, e ela oferecia essa disposição epistêmica à pesquisa
histórica, o suporte da filologia e da gramática histórica. A partir desse movimento disciplinar
próprio da linguística, a filologia esquadrinhava a literatura e os monumentos dos povos
789
MEILI, Julio. Discurso de posse. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, p. 223.
790
Arnaldo Momigliano faz uma história do antiquariato em que se verifica os momentos de silenciamento e de
entusiasmo com essa prática entre aqueles que se dedicam ao estudo da história. Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. O
surgimento da pesquisa antiquária. In: _____. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: EDUSC,
2004.
791
MEILI, Discurso... op. cit., p. 294.
792
BARRETO, Mario Castelo Branco. Discurso de posse. RIHGB, tomo 90, parte II, 1921, p. 813.
793
José Borges Neto nomina essa perspectiva, originária do século XIX, de “opção histórica”: “como seu nome
indica, concentra sua atenção no caráter histórico dos fenômenos linguísticos. Nessa perspectiva, a questão da
variação linguística, no tempo e no espaço, passa a ser o objeto de estudos. Isso significa, entre outras coisas, que
se abandona a ideia de que a tarefa da linguística é identificar uma essência da língua, mas se reconhece que as
línguas, como todo fenômeno humano e social, mudam historicamente e que, portanto, a tarefa de quem quer que
seja no estudo objetivo da linguagem é descrever mudanças e descobrir as leis subjacentes a elas”. BORGES
NETO, José. Ensaios da filosofia da linguística. São Paulo: Parábola, 2004, p. 51.
794
BARRETO, Discurso... op. cit., p. 815.
254
passados, sendo, então, de grande valia à história. O intento do filólogo795, em consonância com
a linguística, era “fazer reviver as antigas civilizações”796. Para Barreto, os fundadores da
linguística são Leibniz, Hervás e Humboldt, que concebem a filologia e a gramática histórica
como métodos porque “acreditaram que no seu estudo achariam a solução dos mais intrincados
e interessantes problemas de psicologia, etnologia e de história”. 797 Pelo estudo da linguagem
se tem um conhecimento integral do ser humano no tempo. Aqui há a aproximação dessas
ciências, que são vistas como constituintes da esfera de atuação interpretativa da historiografia.
A ciência da linguagem, ou linguística, convém ao historiador em razão de fazer
“conhecer o espírito e a civilização dos povos, para aprender melhor a língua que lhe há de
servir de instrumento nas suas investigações próprias”.798 Mesmo com a sua base científica
assentada a linguística se mostrava como instrumento disciplinar para o historiador, sendo uma
das suas ciências auxiliares. O linguista promovia o estudo de todas as línguas. O uso da
linguística criava um circuito interdisciplinar de análise para dar conta da investigação da
complexidade do real. Sendo que nesses trânsitos epistêmicos encontrava-se, também, a
filologia, a gramática histórica, a numismática, a crítica e a arqueologia. Eram todas elas, no
limite, ciências auxiliares da história. Em suas palavras:
795
“Essa foi uma filologia que ganhou sólido prestígio tanto na universidade como fora dela e, mais importante
ainda, conseguiu que os seus princípios se convertessem numa doutrina crescentemente popular, com um impacto
que prolongou até hoje. Vou isolar só um desses princípios, provavelmente o grande responsável pela larga
recepção das abordagens filológicas oitocentistas: segundo elas, as línguas traduziam os espíritos das nações”.
MARQUILHAS, Rita. Filologia oitocentista e critica textual. In: ALVES, Fernanda Mota (et al.). Filologia,
Memória e Esquecimento. Lisboa: Húmus, 2010, p. 356.
796
BARRETO, Discurso... op. cit., p 816.
797
Idem, p. 816.
798
Ibidem, p. 816.
799
Ibidem, p. 817.
255
origem daquelas tribos e daquela civilização”.800 O estudo dos fósseis era requerido pela
história,801 que se outorgava como estudo evidencial.
Um caso interessante que podemos destacar nesses trânsitos disciplinares e nessas trocas
de subsídios técnicos de análise a que está sujeito o conhecimento do historiador é o da
oceanografia, apresentado por Antônio Coutinho Gomes Pereira em sua posse no ano de 1910.
Para o militar, os métodos da história melhoram “desde Vico, e vão se tornando mais racionais,
mais positivos. As ciências que a auxiliam progridem também”.802 Ele cita o auxílio da
geologia, da arqueologia e da etnografia, com as quais o historiador “procura penetrar nas trevas
que envolvem a pré-história”.803 A oceanografia vinha, então, suprir a deficiência das análises
históricas que não levavam em consideração a importância dos mares na formação dos povos,
ao mesmo tempo em que ela definia os seus interesses e delimitava a sua identidade disciplinar.
As suas fronteiras epistêmico-disciplinares mostravam-se porosas: desde recurso ao
conhecimento histórico, sendo método de análise para o historiador conhecer a dinâmica
marítima, tanto física quanto ecologicamente; chegando até um saber que ofertava novas fontes
e uma nova profundidade temporal à compreensão da experiência, passando, assim, ao diálogo
com a antropologia no sentido de apontar os vestígios das migrações humanas; oferecendo
novas fontes e vestígios para a paleontologia, “trazendo do fundo do mar elementos que
confirmam ou invalidam teorias dominantes”; subsidiando a geografia, “estudando essa massa
líquida que cobre cerca de três quartas partes do globo”. Isso tudo sem contar a sua contribuição
para meteorologia, para a zoologia e para a botânica.804 Duas alusões a esses trânsitos
disciplinares são exemplares:
800
BELARMINO, Discurso... op. cit., p. 288.
801
Sobre esse tema ver FARIA, Frederico Felipe de Almeida. Georges Cuvier e a instauração da paleontologia
como ciência. Tese (Doutorado em História – Programa de Pós-graduação interdisciplinar em Ciências Humanas,
UFSC, 2010. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/94047 Acesso: 03 dez. 2020.
802
PEREIRA, Discurso... op. cit., p 522-523.
803
Idem, p 522.
804
Ibidem, p 521-528. Os estudos de Maria Margaret Lopes revelam que na passagem para o século XX os oceanos
tornam-se objeto de análise de diferentes disciplinas e estudiosos: “As coleções de organismos marinhos e
amostras de águas, sedimentos e fósseis dos diferentes ambientes geológicos dos mares, dragadas por instrumentos
que se aperfeiçoavam nas expedições e pesquisas da transição do século, reuniram dados empíricos, que de
pontuais e esporádicos passaram a demandar observações coordenadas em todos os oceanos”. LOPES, Maria
Margaret. Investigar oceanos, explorar terrenos historiográficos. Revista Maracanan, n. 13, 2015, p. 17-18.
Disponível em: https://cutt.ly/ucLMQYM Acesso: 08 abr. 2021.
256
Pará; precisamente nesses dois países, mais do que nos outros, tem sido
encontrados vestígios das civilizações asiáticas.805
Enquanto isso, Tristão de Alencar Araripe argumentava sobre os usos das estatísticas na
captação de dados sociais que traziam grande ganho empírico para a escrita de história. O uso
desse recurso, caro ao positivismo, deixava a disciplina apta a perquirir diversas facetas que
compunham uma dada totalidade social, apresentando um método isento de parcialidade:
805
PEREIRA, Discurso... op. cit., p. 523.
806
Idem, p. 523-524.
807
ARARIPE, Indicações... op. cit., p. 267.
808
TAVARES, Discurso... op. cit., p. 495.
257
A geografia aparecia como uma das disciplinas que entravam em contato epistêmico
com a história. Não custa lembrar que a preocupação com a geografia chamava a atenção dos
agremiados desde o momento de fundação do Instituto, sendo estabelecido nos seus primeiros
estatutos o privilégio do seu estudo em paralelo com o da história. A sua importância estava
ligada ao estabelecimento de uma possível unificação identitária do território nacional, sem
contar que ninguém duvidava que os eventos históricos se desenvolviam no tempo e no
espaço809; daí o uso elevado de fontes de natureza cartográfica e corográfica na construção das
formas historiográficas disponíveis. Os relatos de viagem abundavam, por exemplo, nas
páginas da RIHGB. Vista como um conhecimento estratégico, inclusive para a resolução de
impasses de fronteira, a geografia abria espaço para a ação política e para a organização da vida
nacional. A historicização da experiência histórica nacional dependia inevitavelmente do
conhecimento das especificidades do território, bem como da relação, muitas das quais
simbióticas, do homem brasileiro com o meio. O saber geográfico tornava visível, ademais, aos
leitores das narrativas historiográficas dos sócios do Instituto regiões do Brasil até então
desconhecidas. Gastão Rush afirma, em seu discurso de posse proferido em 1907, que mesmo
não sendo necessário encarecer o valor da história e da geografia é urgente o “consórcio íntimo
dessas duas ciências na difícil empresa de escrever a história de um povo”. 810 É a geografia a
responsável pelo âmbito da visualidade própria da história.811
Rush, em um jogo entre antigos e modernos, recorre ao poder da autopsia, saber advindo
da visão, e da exemplaridade do passado, a partir da obra de Tucídides, com o fito de justificar
o consórcio entre história e geografia. Para ele, o estudo da história adquire uma valoração ainda
maior caso seja acompanhado da
809
José D’Assunção Barros argumenta o seguinte sobre os vetores tempo e espaço na historiografia: “Na verdade,
a História é o estudo do Homem no Tempo e no Espaço. As ações e transformações que afetam aquela vida humana
que pode ser historicamente considerada dão-se em um espaço que muitas vezes é um espaço geográfico ou
político, e que, sobretudo, sempre e necessariamente constituir-se-á em espaço social”. BARROS, José
D’Assunção. Geografia e história: uma interdisciplinaridade mediada pelo espaço. Geografia (Londrina), vol. 19,
n. 3, 2010, p. 69. Disponível em: https://cutt.ly/6cLbKpN Acesso: 08 abr. 2021.
810
RUSH, Discurso... op. cit., p. 746.
811
Antonio Carlos Robert Moraes salienta que há mais do que “geografia”, mas “geografias”: “A geografia (...)
emerge em todas as épocas históricas, pois se refere à relação inelutável dos seres humanos com o meio que os
abriga. Pode-se, portanto, dizer que em qualquer período da história e em qualquer sociedade existe uma geografia
(material e discursiva) que compõe parte da cultura de cada grupo social e de cada civilização. A variedade destas
geografias é inerente à variedade de culturas existentes na história humana”. MORAES, Antonio Carlos Robert.
Geografia, história e história da geografia. Terra Brasilis, n. 2, 2000, p. 2. Disponível em: https://cutt.ly/CcL4BYu
Acesso: 08 abr. 2021.
258
é que os sucessos históricos a que aludimos atingirão sua indispensável
clareza.812
O novo sócio almeja a abertura epistêmica entre história e geografia, que conjugadas se
expandem cientificamente – uma respaldando a outra em termos de legitimidade do saber.
Para Artur Orlando, a história também não pode ser dissociada do campo da geografia.
É a geografia que oferece, em seu entender, as condições de percepção da historicidade dos
sujeitos no tempo. Suas reflexões são devedoras do monismo de Haeckel813, levando-o a crer
que a realidade fenomênica é constituída por um fundamento único, em que a multiplicidade
dos seres se apresenta redutível, no limite, a uma unidade e essência. Daí que o homem e o
universo do natural convivem em um estado de simbiose criadora, havendo, então, o consórcio
e a interdisciplinaridade entre história e geografia:
A geografia possui, segundo Artur Orlando, tanto valor científico quanto importância
social, pois coloca em evidência para os estudiosos a relação estreita existente entre o
desenvolvimento de um país e o seu território e paisagem identitária.
Não é um estudo nominativo e laudatório de geografia, argumenta Afrânio Peixoto, que
se almeja nessa episteme específica, porém, abordagens geográficas de valoração científica.
Exemplos: é a geografia descritiva de Verenius, como também a naturalista de Humboldt, a
generalista-interpretativa de Ritter, a comparativa de Perchet, a humana de Ratzel, que
observam as interdependências entre a região e o plano do imaginário social. Elas dão valor à
combinação entre natureza do solo, clima, vegetação e às constituições histórico-sociais do
humano, em que se compara e se explica. A geografia nova é aquela de Suess, de Lapparent,
de Vidal de La Blache, de Guyot, de Wagner, de Dubois, de Brunhes e de Martonne. “O livro
d’Os Sertões, de Euclides da Cunha, é monografia, em grande estilo, dessa nova geografia”.815
812
RUSH, Discurso... op. cit., p. 747.
813
A seguir uma caracterização sobre o monismo haeckelista: “O monismo de Haeckel pretendeu ser um sistema
filosófico ‘mecanicista ou panteísta’, expressando a ‘concepção unitária da natureza inteira [e] a convicção de que
um espírito está em tudo e que todo o mundo conhecido existe e se desenvolve por uma lei fundamental comum’
e indistinta, no tocante à natureza orgânica e inorgânica”. DÓRIA, Carlos Alberto. Cadências e decadências do
Brasil (o futuro da nação à sombra de Darwin, Haeckel e Spencer). Tese (Doutorado em Sociologia) – Pós-
graduação em sociologia, UNICAMP, 2007, p. 194-195. Disponível em:
http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281054 Acesso: 03 dez. 2020.
814
SILVA, Discurso... op. cit., p. 754.
815
PEIXOTO, Discurso... op. cit., p. 508.
259
Arrojado Lisboa, Alberto Rangel e Gastão Rush são outros exemplos de estudiosos que se
valem dos estudos de uma “geografia modernista”. Rondônia, de Roquette-Pinto, é outra fonte
de análise.816 Assim como a história conservava o passado, a geografia preparava o presente da
pátria.817 Buscava-se um saber, em síntese, que fosse histórico-geográfico.818
Afrânio Peixoto assinala, por esse turno, que na geografia localizam-se os problemas e
as dúvidas humanas. É a habilidade observacional dela que sustenta as interpretações históricas.
Ela educa os sujeitos em diversos sentidos, sendo os mais destacados aqueles relacionados a
sua relatividade frente à passagem do tempo; mostrando que a sucessão dos eventos na duração
é indefinida, bem como deixando o indivíduo ciente da brevidade das suas ações existenciais
diante do todo do universo. A geografia faz os agentes sociais conhecerem a fenomenalidade
do mundo humano, a sua composição e marcha - a “origem” e a “decrepitude” daquilo que
forma o universo humano e inumano. 819
Para o General José Maria Moreira história e geografia são interdependentes. Ambas
necessitam uma da outra para a produção do saber. É necessária a interdisciplinaridade entre
esses dois polos, posto que os fatos históricos se localizam no tempo e no espaço. A
aproximação entre esses saberes é, na argumentação de Moreira, um postulado científico desde
Montesquieu, Buckle e Haeckel. “Sem essas duas coordenadas – tempo e espaço, é impossível
tracejar a curva de qualquer fenômeno histórico, ainda que essa curva seja dos grandes
acontecimentos e dos grandes homens”.820 Como se podia perceber um conjunto de imagens
que se sucediam sem um quadro ou um meio correspondente? Não havia história sem geografia,
816
Para uma caracterização da disposição epistêmica da geografia na Primeira República ver MACHADO, Lia
Osório. As ideias no lugar. O desenvolvimento do pensamento geográfico no Brasil do início do século XX. Terra
Brasilis, n. 2, pp. 1-14, 2000. Disponível em: http://redebrasilis.net/TerraBrasilis/TerraBrasilis-2-2.pdf Acesso: 08
abr. 2021.
817
Essa percepção a qual a geografia enfrenta problemas do presente é historicizada por Marcelo Werner da Silva:
“muitas comunidades acadêmicas de geografia, notadamente do Brasil, parecem ter instalado uma regra informal
de que a geografia deve tratar unicamente do presente. Todo e qualquer estudo relacionado ao passado deveria ser
relegado à história. Isto, na verdade, parece ter funcionado como uma maneira da geografia garantir um lugar só
seu, no amplo espectro das ciências sociais. SILVA, Marcelo Werner da. A geografia e o estudo do passado. Terra
Brasilis, n. 1, 2012, p. 1. Disponível em: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/246 Acesso: 08 abr. 2021.
818
O caso francês, descrito por Paul Ricoeur, pode ser útil para compreendermos essa geografia que se quer
científica: “Que a geografia constitui, na ordem das ciências humanas, o correspondente exato da história, ainda é
dizer pouco. Na França, a geografia começou por antecipar certas conversões metodológicas da história (...). Vidal
de La Blache foi, com efeito, o primeiro, antes de Martonne, a reagir contra o positivismo da história historicizante
e a valorizar as noções de ‘meio’, ‘modo de vida’, ‘cotidianidade’. Sua ciência é uma geografia no sentido de que
seu objeto é, antes de tudo ‘lugares’, ‘paisagens’, ‘efeitos visíveis, na superfície terrestre, dos diversos fenômenos
naturais e humanos’”. RICOEUR, Paul. História/epistemologia. In: _____. A memória, a história, o esquecimento.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p. 160.
819
PEIXOTO, Discurso... op. cit., p.504.
820
MOREIRA, Discurso... op. cit., p. 807.
260
assim como não havia geografia sem história. Desse movimento interdisciplinar surgia o
conhecimento acerca do homem no tempo e no espaço, ou seja, em estado de historicidade.821
Mas a geografia estava à serviço da história desde um momento anterior ao
estabelecimento do humano em sociedade. A geografia atravessou, em seu entender, todos os
estratos de tempo da humanidade, desde aquele chamado de “pré-história, momento anterior ao
surgimento do homem”. Nesse caso, sendo sempre um conhecimento que pendeu para a
interdisciplinaridade, a geografia também dialogava com a geologia. Mas tudo isso era
perpassado pela preocupação com o tempo histórico:
Argumenta Amaro Cavalcanti que na imensidade sinuosa desse labirinto chamado vida
humana história e geografia são responsáveis por fundir passado e futuro. A geografia descreve,
em última medida, o território em sua grandeza e em seus limites - em suas condições e em seus
elementos naturais que afirmam, ou negam, a propriedade atual ou possível dos seus habitantes.
Ela é humana: descreve o caráter e os costumes dos habitantes, as suas aptidões físicas e
intelectuais, além do grau da sua educação e do seu desenvolvimento. Ela descreve as
tendências características do povo, manifestadas nas suas instituições e nos ramos diversos da
atividade nacional. Ela nos oferece as estatísticas populacionais para bem conhecermos quem
somos, para daí avaliarmos com segurança o que devemos, ou que o podemos, extrair de bom
e de proveitoso do presente e do futuro.823 Ela descreve, por fim, a organização e a forma dos
governos nacionais, condição indispensável, no entender de Cavalcanti, para que as leis existam
e se façam valer; para que a ordem exista e o progresso entre os indivíduos e as classes ocorra.824
Em Amaro Cavalcanti também existe a necessidade do consórcio epistêmico, ou
interdisciplinar, entre história e geografia, na medida em que esses dois campos de saber
821
De acordo com Reinhart Koselleck, pelos “menos desde Kant e Herder, os historiadores incluem em sua
declaração de princípios o fato de trabalharem com tempo e espaço, referindo-se a um espaço histórico e um tempo
histórico no horizonte da própria historicidade”. KOSELLECK, Reinhart. Espaço e história. In: _____. Estratos
do tempo. Estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014, p. 74.
822
MOREIRA, Discurso... op. cit., p. 807.
823
Sobre as relações entre espaço e tempo como condição para a historiografia, bem como a historicidade do
espaço, cabem as seguintes palavras de Reinhart Koselleck: “(...) espaço e tempo representam, como categorias,
as condições de possibilidade da história. Mas também o ‘espaço’ tem uma história. O espaço é algo que
precisamos pressupor meta-historicamente para qualquer história possível e, ao mesmo tempo, é historicizado,
pois se modifica social, econômica e politicamente”. KOSELLECK, Espaço... op. cit., p. 77.
824
CAVALCANTI, Discurso... op. cit., p. 411.
261
constituem, pois, um saber primário: “Sem elas conjugadas nenhum cultor das letras, nenhum
homem de ciência, nenhum homem de governo, se pode reputar condigno ou com a precisa
capacidade para o completo desempenho de seus deveres e funções, quer se trate da vida
pública, quer da vida particular de cada um”.825
Contudo, a interdisciplinaridade não estava adstrita à geografia e à história. Uma ciência
auxiliar da geografia, a topografia, também mantinha contatos epistêmicos com a história. O
que fortalece a nossa intuição acerca da porosidade e dos trânsitos (inter)disciplinares na
Primeira República. Para Gentil de Assis Moura, o topógrafo não está reduzido ao vaticínio de
reproduzir as dimensões do relevo e do solo; mas ele representa os caminhos das povoações,
nota a vegetação e a área das culturas, orientando o seu trabalho junto ao estudo das condições
políticas e sociais inscritas na zona cartografada. Há, também, a necessidade de lidar com o
plano próprio da temporalidade. “Ele necessita juntar também as observações que dizem
respeito ao passado da terra e ao passado do homem. É a geologia: é a História”.826 Ou seja, um
triplo trânsito disciplinar foi acionado por esse agremiado: topografia-história-geologia, todas
elas moduladas através do substrato tempo, que fornecia o pano de fundo para a complexidade
e para a interdisciplinaridade. Se para a abordagem da terra ele tinha o auxílio do geólogo,
armando então a topografia, para o estudo do passado era necessário apegar-se à literatura
condizente ao assunto, estudá-la e verificar se existia a concordância entre o fato narrado e a
respectiva condição de solo a que ele se referia.
Já Alfredo Valadão aproxima a história e a geografia da arte, mais especificamente da
literatura. Isso ocorre pelo fato delas oferecerem o poder de revivência das coisas passadas, de
presentificação daquilo que já não é mais, quer dizer, o próprio passado em sua materialidade.
De acordo com Valadão:
Os trânsitos disciplinares entre história e geografia são flagrados por Alfredo Valadão.
Para esse sócio em específico há uma espécie de desenvolvimento simultâneo entre essas
825
Idem, p. 411.
826
MOURA, Discurso... op. cit., p. 422.
827
VALADÃO, Discurso... op. cit., 540.
262
esferas de conhecimento, sendo que elas quase que se identificam, o que abre margem,
inclusive, para a ideia de antropogeografia de Ratzel. Por um lado, a geografia apresenta a
feição mais material. Ela prefere a catalogação e a descrição ativa do em torno visível. Já a
história revela, coadunando-se aos anseios geográficos, tendências mais gerais ligadas à
passagem do tempo. É, sobretudo, filosófica e enciclopédica. A história há de exprimir a
verdade, para isso necessita da geografia para se especializar e situar as ações humanas no
tempo; e todo historiador há de ser, nesse processo, forçosamente um erudito, porque, segundo
entende Paul Lacombe, sem erudição não há história.828
828
Idem, p. 540.
829
Apesar da complexidade do tema, Rodrigo Turin é bastante claro sobre os primeiros movimentos fundacionais
da antropologia no Instituto Histórico. Segundo o pesquisador, a produção dos textos etnográficos no IHGB
direcionara-se para duas questões principais. “Primeiro, uma busca pela especificidade histórica das populações
indígenas. Interessava desvendar quais eram suas origens, seus parentescos, suas divisões, em que estado se
encontravam quando da chegada dos portugueses. Todos esses pontos tinham por fim estabelecer um juízo
definitivo sobre a questão fundamental: se esses grupos que aqui se encontravam tinham sempre permanecido num
“Estado de natureza” ou, ao contrário, eram formas decaídas de civilizações anteriores. Para além da
superficialidade do espaço, procurava-se reconstruir a profundidade do tempo. Um segundo problema que norteou
os trabalhos etnográficos, decorrente do primeiro, dizia respeito à possibilidade ou não de se “catequizar” a
população que ainda habitava o território, e qual seria o melhor método a ser adotar. TURIN, Rodrigo. Entre
“antigos” e “selvagens”: notas sobre os usos da comparação no IHGB. Revista de história, ed. especial, 2010, p.
134. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/19141 Acesso: 08 abr. 2021.
263
Revista. Toda essa movimentação trazia para a cena intelectual a necessidade de se desenvolver
um conhecimento próprio, em gestação desde a primeira metade do Oitocentos, apto a
desvendar o lugar do indígena na história brasileira. É a partir dessa demanda que encontramos
o destaque dado a antropologia. Não custa lembrar que em seu início o IHGB, além de estampar
as insígnias de histórico e de geográfico, também apresentava a nomenclatura etnográfico.
Além da questão referente ao lugar do “selvagem” na cronologia nacional, e como essa
cronologia foi estruturada a partir da sua presença, dispositivos temporais outros são acionados,
como aqueles que envolvem as noções de “barbárie”, de “decadência” e de “civilização”.830
Não só a situação do indígena no passado ancestral colocava-se como indagação, mas,
igualmente, o seu próprio estado no presente. Uma das maneiras de descrever e de compreender
esse elemento étnico era por meio da abordagem linguística. Foram abundantes na Revista os
vocabulários indígenas coletados in loco. Vê-se, aqui, o trânsito epistêmico entre história,
antropologia e linguística.831 No limite, as pesquisas antropológicas no IHGB contribuíram para
apagar uma série de erros históricos e geográficos, fazendo, ainda, com que os nossos indígenas
fossem melhor compreendidos tanto socialmente quanto etnicamente, mesmo havendo, vale
ressaltar, uma forte marca colonialista nessas análises. Como vimos, a linguística pode ser uma
das modalidades de análise antropológica. Através dos idiomas aborígines, temporalidades
outras eram acessadas, aumentando em grau de complexidade os tempos próprios da nação e o
conhecimento da sua cultura por meio das “sobrevivências”. O idioma era uma evidência social
que se tornava fonte para o historiador, mas se apresentava, também, como um motivo
suficiente para a aproximação com a antropologia, que se valia das sobrevivências para a
realização das suas análises. Através de uma fonte em comum organizavam-se trocas
epistêmicas importantes para a interpretação do Brasil. Não à toa verificamos inúmeros
vocábulos indígenas na RIHGB.
830
Rodrigo Turin novamente nos auxilia ao expor a origem, no IHGB, desses conceitos antropológicos: para “a
maioria dos sócios do IHGB, a formulação de um discurso etnográfico se dava por meio de um esquema conceitual
cuja efetividade estava centrada em sua capacidade de incluir a alteridade indígena, de forma hierarquizada, ao
corpo da nação. O par conceitual civilizado/selvagem, tal como usado por esses letrados, restaurava assim a
funcionalidade de outra oposição: cristãos/pagãos. O que estava por trás desses conceitos opostos assimétricos,
como bem salientou Koselleck, era uma experiência temporal pautada na ideia da conversão. Assim como o pagão
representava um cristão em potencial, o selvagem também poderia ser compreendido como um ainda não
civilizado”. TURIN, Rodrigo. O “selvagem” entre dois tempos: a escrita etnográfica de Couto de Magalhães. Varia
história, vol. 28, n. 48, 2012. p. 784. Disponível em: https://cutt.ly/gcZnZom Acesso: 08 abr. 2021.
831
Em 1843 Karl von Martius prescreve, e antes dele Varnhagen, o estudo da língua dos aborígines: “Como
documento mais geral e mais significativo deve ser considerada a língua dos índios. Pesquisas nesta atualmente
tão pouco cultivada esfera não podem jamais ser suficientemente recomendadas, e tanto mais que as línguas
americanas cessam de achar-se continuamente em uma certa fusão, de sorte que algumas delas estarão extintas”.
MATIUS, Karl von. Como se deve escrever a história do Brasil. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (org.).
Livro de fontes de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010, p. 68.
264
Já Silveira Junior vai mais longe que os outros associados elencados. Entre as disciplinas
que auxiliam o historiador encontram-se a linguística, a geografia e a etnografia. Pela língua
se reconhece a “estirpe de um povo”; pela ambientação geográfica a sua fisionomia social; com
a antropologia se reconhece a fixação de “características étnicas” dos homens de uma dada
sociedade. Concluindo: a partir das “aptidões” étnicas demanda-se um “intrínseco
aparelhamento para as justas de progresso e de humanidade”.832 O que implica, para esse autor
especificamente, civilizar os ameríndios através da aculturação.
A consciência interdisciplinar coadunava sem justaposição essas esferas porosas de
saber. As pesquisas dessa natureza, mais do que uma demanda indianista romântica, ou um
produto proveniente tão somente das descrições da matriz etnográfica, mostrava-se como uma
das solicitações ao trabalho heurístico do historiador, posto que elas deixavam em evidência,
davam a ver, indícios e provas acerca das origens das diferentes populações indígenas situadas
nos trópicos. História e etnografia partilhavam problemas e temas em comum, havendo por
parte de ambas a importação de recursos, de métodos e de categorias. A etnografia ampliava a
noção de temporalidade histórica, e a ela o historiador recorria para complexificar as suas
abordagens sobre a experiência nacional.
Em João Coelho Gomes Ribeiro vemos mais uma vez a demanda para que se aproxime
disciplinarmente história e antropologia. Aquela é responsável por alimentar os estudos sobre
o considerado “selvagem” por meio de analogias - pela verificação do estado cultural, dos
costumes e das suas ideias. Essa perspectiva leva em consideração, em suma, o fundo
psicológico e moral da humanidade e, portanto, a sua transformação histórica. Para o sócio, os
estudos antropológicos mostram não o símile do “indivíduo primitivo”, mas como esses
sujeitos, no correr dos tempos, se tornam decadentes de civilizações mais bem aquinhoadas do
passado por diversos processos histórico,833 tese essa já defendida pelos sócios fundadores.
O estudo da antropologia era capaz, então, de unir o mundo das temporalidades recuadas
dos indígenas ao que veio depois, isto é, a colonização cristã. De certo modo, aqui estava a
possibilidade do estudo das “permanências” e das “sobrevivências”,834 como também das
“mutações”, isso em se falando de balizas temporais de longa duração:
832
JUNIOR, Discurso. op. cit., p. 649.
833
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 644.
834
Uma fonte para a categoria “sobrevivência”, que passa a permear o estoque lexical do campo da antropologia
a partir da Primeira República, é Edward Burnett Tylor e o seu livro Primitive Culture (1871). Todavia, mesmo
que não haja evidências de uma recepção direta da obra de Tylor no Brasil, ao menos entre os sócios do IHGB das
primeiras décadas republicanas, ela traz um possível entendimento acerca da categoria “sobrevivência”. O autor
busca examinar a “evolução da cultura” através da análise das sobrevivências culturais de povos “primitivos” até
a contemporaneidade. A partir das sobrevivências Tylor acredita ter a chance de se inserir em um conjunto cultural
265
No entanto é nesse manancial que cumpri haurir, os necessários
conhecimentos para decifrar os enigmas da nossa etnografia, completar a
história do Brasil anti-cabraliano, fixar as noções de nossa geografia, e
apanhar o laço de sobrevivência que une o povo Tupã à família cristã, que
convertem o Pindorama dos Brasis em terra da Santa Cruz.835
Roquette-Pinto assevera que o sertanejo tem sido, mesmo para os mais renomados analistas,
um assunto episódico, de natureza regional, visto, por exemplo, em Alfredo Taunay e em
Euclides da Cunha. Considera-se que a observação comparativa e estatística dos seus caracteres
psíquicos, étnicos e somáticos ainda está em falta no campo de estudos antropológicos, sendo
esse um fator determinante que evidencia a que ponto se atinge a formação da “raça brasileira”
que se vê esboçada no sertão.838 A conjugação dos estudos antropológicos com os folclóricos
se faz necessária. Assim sendo, “a etnografia do Brasil, mais que a sua História, está no período
da análise trabalhosa e inglória. Amontoamos material para o futuro. Poucas generalizações
resistem a uma crítica cerrada”.839
original e reconstruí-lo. Cf. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, EDUSC, 1999.
835
AGUIAR, José Lourenço da Costa Aguiar (Bispo do Amazonas). Discurso de posse. RIHGB, tomo LXIV, parte
II, 1901, p. 287.
836
Acompanhemos o argumento de Vanderlei Sebastião de Souza: “Em sua opinião, a antropologia física e a
etnografia não poderiam mais se ater somente ao estudo dos ‘aborígines’ e da ‘questão da raça negra’, mas também
do caboclo sertanejo, que interessaria ainda mais ao Brasil. Era sobre ele que a antropologia do Brasil deveria se
debruçar com mais atenção, na medida em que nele se encontrava os “documentos de nossa nacionalidade”.
SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro.
Tese (Doutorado em História) – Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz, Rio
de Janeiro, 2011, p. 129. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/16337 Acessado em 03 de dez.
2020.
837
PINTO, Discurso... op. cit., p. 592.
838
Idem, p. 593.
839
Ibidem, p. 594.
266
“jurista deve ser também versado nos estudos históricos”.840 Em verdade era uma condição
preliminar operar o conhecimento da história disponível para que se pudesse estabelecer a
ciência do direito. Compreender o direito no mundo contemporâneo implicava o seu
conhecimento no passado, tanto no sentido da averiguação do estado atual da disciplina quanto
para entender culturas jurídicas pretéritas, mormente regidas por um ancestral direito
consuetudinário.841 Citando a Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, Viveiros de Castro, em
uma atitude historicista, demonstra que os fatos e as instituições jurídicas são culturalmente
situados. Sem justiça e sem discernimento histórico não se faz possível analisar as instituições
passadas, quer dizer, “sem nos transpormos mentalmente ao lugar e ao tempo em que vicejaram,
sem levar-se em linha de conta as condições da vida individual e do meio social de então”. 842
Estudar a história é, portanto, acompanhar a formação do direito, na medida em que somente
adentrando ao passado que as verdadeiras, e complexas, causas dos acontecimentos de natureza
jurídico-social, até então inexplicáveis devido à sua invisibilidade constituinte, vem à tona. O
que está em jogo aqui é, então, a preocupação da história com as instituições sociais, o que
demonstra que ela está distanciada da crônica.
O estudo do direito era concebido através do espectro das ciências sociais do tempo.
Ele, nesse sentido, passava a ser compreendido como a pesquisa minuciosa das instituições
jurídicas, que eram instituições sociais, no tempo. Isso acarretava, inclusive, uma tomada de
posição, moderna por excelência, ante a temporalidade: “(...) pois que com a experiência do
passado nos garante as lições legislativas para o futuro”.843 Além disso, o direito, dentro dessas
correntes modernas das ciências sociais, fugia de atribuições metafísicas, sendo, então, as
entidades jurídicas dotadas de historicidade - fatos e indicadores das sociedades de que faziam
parte.844 Nas palavras de Aníbal Veloso Rebelo: “É que o Direito, no seu valor cósmico, como
as instituições que geram e onde ele se desenvolve e modifica, está sujeito, através do tempo e
do espaço, à doutrina da evolução”.845 As escolas históricas e evolucionistas, de um Saviny ou
840
CASTRO, Discurso... op. cit., p. 709.
841
O jurista Luiz Carlos de Azevedo estabelece as relações entre história e direito em uma perspectiva moderna:
“(...) na verdade, se o direito constitui uma expressão inseparável de qualquer meio social; e este direito não se
conserva estático, mas se dinamiza e se transforma na medida em que as condições sociais assim exigem; não há
como desvincula-lo da realidade histórica, pois é preciso saber como esse direito foi, até ontem, para entendê-lo,
hoje, e melhorá-lo, amanhã”. AZEVEDO, Luiz Carlos de. História do direito, ciência e disciplina, s/d, p. 134.
842
CASTRO, Discurso... op. cit., p. 709.
843
REBELO, Discurso... op. cit., p 778.
844
“A ciência social do direito é aquela que investiga através de métodos e técnicas de pesquisa empírica (isto é,
pesquisa baseada na observação controlada dos fatos) o fenômeno social jurídico em correlação com a realidade
social”. SOUTO, Cláudio. Interdisciplinaridade: o caso das ciências jurídicas básicas. Ciência e trópico, n. 14, vol.
1, 1986, p. 62. Disponível em: https://cutt.ly/xcZc2OI Acesso: 08 abr. 2021.
845
REBELO, Discurso... op. cit., p. 778
267
de um Spencer, baseadas no método objetivo, ensinavam que o direito, sendo um fenômeno
social e um produto em transformação no tempo, reflete, de algum modo, as condições de
civilização e de desenvolvimento dos povos, atendendo-lhes as necessidades correlativas.
Alexandre Herculano é, para o sócio Aníbal Veloso Rebelo, um dos historiadores que
se vale do direito como disciplina participativa no estudo da história. Em seu entender, o
historiador português “pinta” as tradições da jurisprudência romana mais destacadas em
paralelo com as instituições políticas e civis das nações modernas. Já entre outros historiadores
contemporâneos há a interdisciplinaridade entre fatores econômicos e jurídicos. Os fatores
econômicos são decisivos nas mudanças jurídicas ou na estabilidade dessas instituições
específicas. “A História Econômica, por seu lado, nos diz quais são os fenômenos ao seu estudo
que nos indicam a razão das transformações jurídicas”.846
O IHGB abre-se, em seu percurso republicano, para as ciências sociais. No caso de
Liberato Castro Carreira para a economia, ou ciência das finanças. Ele propõe esse tipo de
estudo ao grêmio, tendo um trabalho publicado na Revista sobre a história das finanças no Brasil
da Colônia à República.847 Esse é um fator histórico que ajuda a entender o processo paulatino
de independência do país, tanto na Monarquia quanto na República. As fontes que colige e
analisa, além de aumentar o escopo do corpus comumente tratado pelos historiadores, evidencia
novos problemas. É um estudo que tem clara função pública, e que os historiadores devem se
atentar. Era uma das primeiras oportunidades em que se falava no IHGB da “ciência
econômica”, que requeria o mesmo metodismo, auxiliado por generalizações próprias dessa
esfera de saber, dos trabalhos historiográficos stricto sensu: passando da ida ao arquivo à
consequente escrita da história - não que esse movimento seja escalonado mecanicamente. A
economia sugeria a todos(as) brasileiros(as) que havia possibilidade de prosperidade no país,
com uma melhor distribuição de renda e, logo, com a melhoria dos serviços públicos básicos.
Era um tipo de história, econômica em seu funcionamento, que tinha ressonância pública.848
846
Idem, p. 779.
847
CARREIRA, Liberato Castro. Discurso de posse. RIHGB, tomo LV, parte II, 1892, p. 290.
848
CARREIRA, Discurso... op. cit., 292. O ensejo de Liberato Castro Carreira vai ao encontro das preocupações
dos economistas clássicos: “Entre os economistas clássicos, já estava presente a preocupação com a qualidade de
vida da população, logo, com o desenvolvimento e não apenas com o crescimento econômico. Na verdade tal
preocupação pode-se dizer que esteve na origem da Economia. Assim, a problemática central tratada pelos
chamados ‘economistas clássicos’ (como por exemplo, Adam Smith, Thomas Robert Malthus, David Ricardo e
John Stuart Mill) era como melhorar as condições de vida da população através de um aumento no acúmulo de
riquezas. Entre os economistas clássicos, o meio sociocultural já era considerado como uma variável importante
para explicar o crescimento econômico, principalmente em termos de sua estabilidade”. DALLAABRIDA, Valdir
Roque. Economia, cultura e desenvolvimento: uma primeira aproximação sobre as origens teóricas da abordagem
do tema. R&DR, vol. 7, n. 2, 2011, p. 285. Disponível em: https://cutt.ly/McLI6D6 Acesso: 08 abr. 2021.
268
Nesse sentido, configurava-se a interpretação econômica da sociedade, uma vertente de
análise social aplicada à história, a qual passava pelos ensinamentos de Karl Marx, Antonio
Labriola e Friedrich Engels. O problema dessa análise, no entender de João Coelhos Gomes
Ribeiro, situa-se no exclusivismo perspectivo (econômico) que ela emprega, não se
relacionando interdisciplinarmente com as demais ciências sociais em geral: “Tem ela, porém,
a falha visceral do exclusivismo, em seu critério básico de preponderância do fator econômico,
em todos os fatos históricos”.849 Se requer que a economia como disciplina dialogue com a
história e com a as ciências sociais no geral. O exclusivismo, ou a perspectiva teórica unitária
de interpretação econômica dos fatos históricos, assim é descrito por Ribeiro:
Realmente, aplicada a história pátria tal teoria, vemos que muitos dos seus
acontecimentos ela se adapta vitoriosa, como entre outros, às expedições que
asseguram o descobrimento, às lutas entre franceses e holandeses, às incursões
dos bandeirantes, ao cativeiro dos índios, às questões com o fisco da
metrópole, etc; mas, muitos outros fatos, e aliás, os mais nobres e gloriosos,
independeram do fator econômico, como móvel preponderante, e, pelo
contrário, foram influenciados por causas morais e por vezes abnegadas e
puras, como entre outros: a catequese e a defesa dos índios pelos jesuítas, nas
primeiras épocas, a nobreza espartana do proceder de Amador Bueno, em São
Paulo, a libertação do ventre escravo, a abolição real da escravidão e muitos
fatos reais.850
A análise econômica nem sempre é soberana no que diz respeito aos atos da vida social. Para o
autor, nenhuma interpretação sectária da sociedade pode ser aceita naquele contexto epistêmico.
Além “das relações sociais de caráter econômico, muitas outras existem de caráter moral,
religioso, jurídico e político, que é mister assinalar”.851
O interesse pela sociologia no Brasil remonta à década de 1870, sobretudo, através da
sua recepção entre os acadêmicos do Recife852, e através da grande recepção do positivismo no
849
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 642.
850
Idem, p. 643.
851
Ibidem, p. 643.
852
O clássico estudo de Antonio Candido sobre a sociologia no Brasil estabelece as ligações entre esse saber e os
juristas brasileiros do último quartel do século XIX, especialmente aqueles oriundos da chamada Escola de Recife:
“Coube aos juristas o papel social dominante no Brasil oitocentista, dadas as tarefas fundamentais de definir um
Estado moderno e interpretar as relações entre a vida econômica e a estrutura política. Foi a fase de elaboração das
nossas leis, aquisição das técnicas parlamentares, definição das condutas administrativas. O jurista foi o intérprete
por excelência da sociedade, que o requeria a cada passo e sobre a qual estendeu o seu prestígio e maneira de ver
as coisas. Mas como as teorias dominantes na segunda metade do século se achavam marcadas pelo surto científico
de então, notadamente a Biologia, que saiu dos laboratórios para se divulgar de maneira triunfante, os juristas
mergulharam na fraseologia científica e se aproximaram, neste terreno, dos seus pares menos aquinhoados,
médicos e engenheiros, que com eles formavam a tríade dominante da inteligência brasileira. Vemos então, na
Sociologia, os juristas inaugurarem uma orientação cientificista – como se dizia – que contou desde logo com a
cooperação de engenheiros e sobretudo médicos”. CANDIDO, Antonio. A sociologia no Brasil. Tempo social,
vol. 18, n. 1, 2006, p. 272. Disponível em: https://cutt.ly/ZcLRYMV Acesso: 08 abr. 2021.
269
Brasil. Alguns a consideravam a disciplina que substituiria as filosofias da história iluministas,
como Pedro Lessa. A sua relação com a história era bastante ambígua no ambiente intelectual
brasileiro. Havia uma disputa por territórios epistêmicos. Por vezes sendo vista como disciplina
auxiliar da história, situada no penúltimo estágio da operação historiográfica, aquele que
conferia sentido explicativo aos fatos históricos por meio das suas generalizações e das suas
leis, por outras era a história que assumia o posto de sua ciência auxiliar, subsidiando os fatos
bem averiguados; havia, ainda, uma terceira via, aquela que situava as duas disciplinas
coadunadas e indissociáveis. Como notam bem Mateus Henrique de Faria Pereira e Pedro
Afonso Cristovão dos Santos: a sociologia era o “Outro” da história em seu processo de
disciplinarização.853 Pedro Lessa em suas Reflexões sobre o conceito da história deixa algumas
indicações acerca dessa contenda: “a história contém os fatos, cuja comparação nos leva às
induções da sociologia e das ciências sociais particulares”.854
Dessa maneira, a sociologia, que passava a adquirir prestígio entre os nossos letrados e
letradas, independente da sua matriz teórica de origem, e mesmo que as suas delimitações
disciplinares apresentassem graus de variabilidade maior do que a história em sua recepção no
Brasil, estava em condições de proporcionar a etapa explicativa à operação historiográfica. Isso
demonstrava, em última instância, a consciência crescente de que os fatos históricos, mais do
que bem averiguados e vistos pelo olhar da justiça e da imparcialidade, despidos, pois, dos
elementos da imaginação e da fantasia, algo resolvido pelo método crítico, necessitavam ser
problematizados teoricamente, na medida em que não se portavam como espelhamentos
miméticos da realidade. Essa consciência tornava, além do mais, a prática historiográfica uma
instância intelectiva nunca acabada, sempre dependente do olhar analítico do observador e
aberta a teorizações que mudavam ao sabor dos problemas colocados.
Por outo lado, nesse momento de recepção da sociologia, em que havia a disputa entre
evolucionistas e, com o passar do tempo, não evolucionistas no Brasil, os seus cultores não se
preocupavam tanto em estabelecer métodos e procedimentos próprios que fornecessem a
empiria para as suas generalizações explicativas, sendo o conhecimento histórico o seu par por
excelência, aquele a quem recorria como uma espécie de momento preparatório. Oliveira Lima,
sócio de destaque do Instituto, na introdução da sua História Universal, compreende a relação
entre esses saberes como algo indissociável: “um grande trabalho de natureza
853
Cf. SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Mutações no conceito
moderno de história? Um estudo sobre a constituição da categoria Historiografia Brasileira a partir de quatro notas
de rodapé (1878 – 1951)”. In: COCLET, Ana Rosa; NICOLAZZI, Fernando; PEREIRA, Mateus (orgs.).
Contribuições à história da historiografia luso-brasileira. São Paulo: HUCITEC, 2013.
854
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 282.
270
interdisciplinar”.855 Porém, na hierarquização dos saberes, em sua perspectiva, é a sociologia a
responsável por organizar e interpretar os acontecimentos histórico-sociais, que começa lá com
o historiador no momento do arquivo. Em 1878, no Necrológio escrito por Capistrano em
memória do Visconde de Porto Seguro, a sociologia (de Comte e de Spencer) já é requerida ao
métier historiográfico, onde se lamenta que o nosso primeiro historiador moderno, Varnhagen,
grande possuidor do conhecimento dos arquivos e do método crítico que protege os fatos do
poder da fantasia, não mobilize o que ele chama de “doutrinas criadoras” vigentes no século,
com destaque justamente para sociologia. Mas em Capistrano, ao contrário do que Oliveira
Lima advoga décadas depois, o saber sociológico é uma etapa da operação historiográfica. 856
Sem o saber da sociologia e da psicologia o historiador não oferecia profundidade social
aos fatos históricos: não conseguia abstrair, no limite, camadas interpretativas ou extratos de
tempos que não fossem ao nível dos acontecimentos enquanto totalidades processuais: “(...) o
historiador sem esses conhecimentos superiores da Sociologia e, principalmente, da Psicologia
tem história sim, mas história que narra simples e puramente os fatos, sem cogitar das épocas e
dos homens que os produziram”.857
Para João Coelho Gomes Ribeiro, a história é um conhecimento subsidiário da
sociologia. Esse é o campo responsável pelas grandes interpretações da sociedade, provendo
generalizações à base empírica fomentada pelos trabalhos historiográficos. A sua perspectiva
interpretativa não é evolutiva, mas, sim, retrospectiva; partindo, então, do presente para a
realização das suas interpretações sociais. “Para nós, com a devida vênia dos competentes, a
história é a seção da sociologia que estuda a evolução retrospectiva dos povos cultos, no tempo
e no espaço, por meio de documentos autenticados”.858 Nesse sentido, para Ribeiro, os
caminhos da história passam por quatro fases. 1) Historiografia (ou história clássica); 2)
Filosofia da história; 3) História da civilização; 4) Sociologia dinâmica. A última etapa, então,
é uma fusão disciplinar entre história e sociologia.859
Já para Pedro Lessa, o estabelecimento de leis não configura padrões de cientificidade
para a história, na medida em que a complexidade inerente aos fenômenos a que se ocupa
impede, como vimos, o estabelecimento de regularidades racionalizáveis. Esse procedimento é
855
Cf. LIMA, Manuel de Oliveira. Prefácio. In: _____. História da Civilização. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1919.
856
“Para Capistrano, seria necessária, assim, uma teoria, no caso sociológica, para interpretar o passado em sua
singularidade, manifestada por meio dos fatos, ou talvez, revelar a sua ‘evolução’ orgânica e necessária”.
SANTOS; PEREIRA, Mutações... op. cit., p. 25.
857
TAVARES, Discurso... op. cit., p. 497.
858
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 641.
859
Segundo a colocação de François Dosse, “o historiador deve contentar-se em apanhar, coletar os materiais com
os quais o sociólogo fará o mel”. DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São
Paulo: Ensaio, Campinas: Unicamp, 1992, p. 26.
271
uma atribuição da sociologia e das demais ciências sociais, porque a elas é delegado o plano
teórico-experimental-interpretativo.860 Por situarem-se junto à esfera teorética elas estão aptas,
especialmente a sociologia, a formularem conjecturas interpretativas, e até mesmo
condicionantes de ampla aplicabilidade, a que o conhecimento histórico tem a função de corrigir
pela via da empiria. Sem base empírica não há ciência; mas o outro lado da equação também é
válido: sem teoria não há ciência. Então, vale ressaltar que as induções de natureza empírica,
resultantes do trabalho paciente dos historiadores, conjugadas, e sem hierarquização valorativa
de saberes, com as problemáticas, as hipóteses, formuladas pela sociologia, abre a possibilidade
do estabelecimento de protocolos científicos para ambas as disciplinas. Essa dinâmica
disciplinar é a própria síntese histórica.
Enquanto isso, Oliveira Vianna admite a possibilidade de racionalizar, derivando disso
constantes que se replicam em contextos variados, disposições identitárias comuns, a que ele
chama de “leis gerais” (não fixas) que regulam as sociedades. Essas leis não são resultantes de
uma evolução mecânica de um grau inferior, menos desenvolvido, para outro mais complexo
ou sofisticado. Existem evoluções, ou melhor, variações evolutivas que se entrecruzam;
derivando, daí, formas de desenvolvimento histórico tanto imprevisíveis quanto diversificadas
em sua estrutura organizacional. É possível, no nível das problematizações, construir quadros
gerais que, de alguma maneira, são capazes, ao menos em nível explicativo, de equacionar o
movimento pluri-evolutivo do devir.
A composição da morfologia étnica no interior da história total de Vianna se faz
importante. Aqui ele dialoga com a “escola raciológica” de Vacher de Lapouge, que trabalha
com a variabilidade das raças e a teoria da seleção de cariz disgênica.861 Nessa direção, não é
possível no estudo da sociedade “explicar cientificamente a história de qualquer povo sem levar
conta essa poderosa determinante da conduta humana”.862 O que torna o estudo
antropossociológico fundamental para racionalização da disgenia estruturante da sociedade
brasileira. A seleção social possuía uma dimensão biológica e hereditária que alcançava o
860
A querela francesa entre historiadores metódicos e durkheimianos serve de exemplificação para que
compreendamos a posição de Pedro Lessa: “Desde a fundação de L'Anné Sociologique, Durkheim passa a
comandar uma ‘guerra de movimento’, de anexação das demais disciplinas das ciências humanas. O conceito de
causalidade social deveria ser o amálgama dessas ciências, cabendo à sociologia o papel centralizador. A história
era o alvo privilegiado desta estratégia”. SILVA, Fernando Teixeira da Silva. História e ciências sociais: zonas de
fronteira. História, São Paulo, vol. 24, n. 1, 2005, p. 128. Disponível em: https://cutt.ly/TcZlEZn Acesso: 08 abr.
2021.
861
Cf. TAGUIEFF, Pierre-André. Sélectionnisme et socialisme dans une perspective aryaniste: théories, visions et
prévisions de Georges Vacher de Lapouge (1854 - 1936). Mil neuf cent, n. 18, 2000. Disponível em:
https://cutt.ly/RcZblan Acesso: 08 abr. 2021.
862
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 443.
272
registro societário de uma nação de formas sem precedentes. O autor argumenta o seguinte,
movimentando categorias da sociologia e da antropologia:
(...) não sei como será possível explicar certas particularidades da nossa
História colonial, especificamente o movimento bandeirante e o seu alto
idealismo, sem fazer interferir o fator etnológico, sem recorrer aos subsídios
da análise étnica operada sobre as massas brasileiras, da atualidade, sem apelar
para os elementos, que forçosamente hão de trazer as pesquisas sobre a
Antropologia das classes sociais no Brasil de hoje863
Para a realização de um projeto de síntese histórica, que não deixa de ser uma proposta
de história total, Oliveira Vianna fala da necessidade da realização de “induções conjecturais”,
tendo em vista as insuficiências das fontes testemunhais. Vocabulário epistêmico que o
estudioso de Saquarema se apropria do historiador francês Ernest Renan, para quem a ciência
da história constitui-se enquanto uma pequena ciência conjectural. A utilização das habilidades
conjecturais não destituí, para Vianna, o caráter científico da história, que em um primeiro
momento pode parecer prejudicado desde que visto por um viés empirista minimalista. Essa
dimensão de conjecturalidade não é privilégio da história, mas uma própria característica
científica, que incide tanto nos domínios das ciências da natureza como da vida. Cabe se ater,
no entanto, para as duas formas de conjecturas disponíveis: a conjectura arbitrária e a conjectura
disciplinada. Mas o que isso significa epistêmicamente? A primeira é própria dos velhos
historiadores, modulando-se através da imaginação e sem contato com a realidade histórico-
863
Idem, p. 443.
864
Ibidem, p. 443.
273
social objetiva. Já a conjectura disciplinada é diferente: ela se orienta através dos quadros
teóricos oferecidos pelas ciências sociais, especialmente a sociologia. Nesse sentido, ela se
orienta através das leis (não fixas e miméticas) que regulam e que ordenam, no plano teorético,
a estrutura social e a psicologia das sociedades.
Vianna preparou o seu discurso de posse visando legitimar o seu trabalho no campo dos
historiadores. Ele reivindica o olhar sinóptico para a história, que é a própria síntese histórica,
chamada por nós de modernista.865 É o conhecimento da realidade atual, do presente, da
realidade circunstante, que vem por meio de um caleidoscópio interdisciplinar, advindo tanto
das ciências naturais como da sociedade: antropologia com geografia, economia com
sociologia. Esses cruzamentos (inter)disciplinares, perpassados pela factibilidade oferecida
pela história, levam à compreensão do passado e oferecem condições para a realização da
síntese histórica modernista.
O historiador deve, para Oliveira Vianna, se identificar com o seu tempo. E isso
significa, por um lado, movimentar o presente em suas análises; e, em segundo, partir para o
desafio interdisciplinar. Requer-se a atualização do ethos do historiador historicista oitocentista,
aquele que faz da crítica e da verdade enquanto adequação das formas seu o horizonte
investigativo mais imediato. Se demanda, além do mais, novas habilidades ao historiador que
deseja tornar a história uma ciência social, ou seja, deve-se ir além da análise erudita que
circunscreve os fatos considerados totalidades processuais. O olhar sinóptico sobre a história
está armado: naquele presente o historiador “tem que estar atento a toda as revelações da
curiosidade investigadora e ao frêmito de todas as ideias, pronto a acolher as grandes e pequenas
verdades, que lhe venham dos quatro cantos do horizonte”.866 Todos os saberes são convocados:
o naturalista e o etnólogo que trabalham em seus laboratórios experimentais, ou o antropólogo
e o geógrafo em suas viagens de campo. O historiador se vale do conhecimento de todos eles,
pois somente assim pode preparar, como um alquimista, a síntese, bem como presentificar o
passado à luz do presente em um movimento próximo ao da ressureição de Michelet.
Retoricamente Oliveira Vianna argumenta que os sócios do IHGB já possuem, naquela
escala de tempo, o conhecimento amplo e integral acerca das demandas e dos desejos de tornar
865
François Hartog é quem teoriza sobre o sinoptismo historiográfico: “A sunopsis pertence também ao
vocabulário da filosofia. Assim, ela designa a ambição da apreensão da totalidade e, em particular, para os estoicos,
ela é a expressão da apreensão do universo como um sistema orgânico. A sunopsis, enfim, é o resultado: aquilo
que o historiador faz ver ao leitor, a evidência, ao produzir uma narrativa sinóptica. Ao introduzir o conceito de
sunopsis, Políbio recorre a esses diferentes sentidos e registros em bloco com a expectativa de tirar proveito de
todos os cenários possíveis”. HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p.107.
866
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 444.
274
a história uma síntese científica. Aqui vemos Vianna requerendo um olhar sinóptico sobre a
história brasileira. Isso faz do IHGB o lugar autorizado, devido às amplas temáticas trabalhadas
por seus obreiros, para o estudo “da atividade espiritual da vida brasileira, nas letras, nas artes,
nas ciências, na legislação ou na política”.867
Assim, para Afrânio Peixoto a história também é total em termos de conhecimento e de
processo. É um caleidoscópio que abrange todas as facetas da realidade social, porquanto se
investe no estudo da complexidade inerente ao mundo da vida. Uma totalidade que se deseja,
naquele momento, conceitual. Por fim: a história instaura uma grande consciência do todo
social, que incorpora, em escalas diacrônicas, “lenda, tradição, vestígio do tempo, ruínas,
monumentos, escritos desse divino instinto do homem, que além da perenidade da espécie
conseguida pela geração, como aliás toda a natureza, logrou para si, exclusivamente, a
eternidade subjetiva da memória”.868
867
Idem p. 446.
868
PEIXOTO, Discurso... op. cit., p. 500.
275
Capítulo 8 - Neotomismo à brasileira: providencialismo, ciência e história
João Camilo de Oliveira Torres destaca, em sua História das ideias religiosas no Brasil,
a transformação na percepção acerca do intelectual católico no século passado: “caberia,
praticamente, ao século XX descobrir o valor teórico do catolicismo; uma pessoa poderia ser
um intelectual em dia com as ciências e professar a religião católica”.871 Dito isso, Claudia
Callari e Hugo Hruby revelam que há no IHGB republicano a presença de fervorosos religiosos
cristãos.872 A importância deles no Instituto é visível até mesmo junto à dimensão empírica da
história enquanto saber, como nos informa Joaquim Norberto de Souza e Silva, então presidente
do grêmio: os religiosos, ao visitarem o interior e as suas vastas dioceses, devem tomar nota
sobre o que veem. Esse material é solicitado para o (re)conhecimento da Pátria. 873 Mas essa
presença de religiosos no IHGB colocava em discussão questões de teoria da história, pois
estavam relacionadas com a natureza desse saber. Como conciliar fé e razão? Qual o lugar de
Deus no devir histórico? Esses problemas possuíam importância pelo duplo aspecto que eles
invocam em nossa análise: esse contexto é propício para a aproximação entre as aspirações por
disciplinarização que a história passava naquele momento e o movimento católico, que desde o
869
ESBERARD, João (bispo de Olinda). Discurso de posse. RIHGB, tomo LIV, parte II, 1891, p. 286.
870
ARCOVERDE, Joaquim (arcebispo). Discurso de posse. RIHGB, tomo LXI, parte, 1898, p. 650.
871
TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil (A Igreja e a sociedade brasileira).
São Paulo: Editora Grijalbo, 1968.
872
CALLARI, Claudia. Os Institutos Históricos: do Patronato de Pedro II à construção do Tiradentes. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 40, pp. 59-83, 2001 Disponível em: https://cutt.ly/GcLEOzw Acesso:
08 abr. 2021.; HRUBY, Obreiros diligentes... op. cit., 2007.
873
IHGB. 18ª Sessão Ordinária em 11 de outubro de 1889. RIHGB, tomo LII, parte II, p. 485, 1889.
276
pontificado de Leão XIII874 modernizava o seu discurso fazendo-o dialogar com a racionalidade
moderna.875 Para o historiador Hugo Hruby:
O principal agente no Brasil dessa nova disposição do Vaticano talvez seja o padre Julio
Maria, que percebe a harmonia entra a fé e a razão. Na passagem para o século XX as discussões
envolvendo as relações entre essas instâncias estavam na ordem do dia, não sem a desaprovação
de parte do clero brasileiro de cariz conservador. Para Julio Maria:
O bispo do Pará, Dom Antonio de Macedo Costa, destacou, em sua posse, as novas
diretrizes da Igreja Católica, que incidiam sobre a própria ideia de história como ciência. Leão
XIII é chamado de sábio pelo prelado, posto que ele está disposto, por meio das suas encíclicas,
em desenvolver o gosto dos estudos históricos. Nesse sentido, são muito bem-vindas as
inciativas do Vaticano na organização de comissões de história espalhadas por vários países,
874
O Papa Leão XVIII, em busca de afastar a fé do obscurantismo, incentivou os cristãos, a partir da encíclica
Aeterni Patris, a estudarem a doutrina de São Tomás de Aquino, pela qual se podia conciliar razão e fé. Era,
portanto, a filosofia neotomista que subsidiava as reflexões dos sócios religiosos do IHGB no que tangia ao
possível consórcio entre fé e racionalidade, ou entre crença e ciência. Cf. LEONE XVIII. Aeterni Patris. Roma.
Presso San Pietro, il 4 de agosto de 1879. Disponível em: http://www.vatican.va/content/leo-
xiii/it/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_04081879_aeterni-patris.html Acesso: 22 mar. 2019.
875
Para a leitura de um estudo bem documentado sobre essa problemática cf. RIBEIRO, Emanuela Sousa.
Modernidade no Brasil, Igreja católica, Identidade nacional. Práticas e estratégias intelectuais: 1889 – 1930. Tese
(Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, 2009.
Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/7062 Acesso: 03 dez. 2020. “Assim, para que a
proposta da identidade católica para o Brasil fosse aceita, bastou que os intelectuais católicos conciliassem
argumentos característicos do repertório católico – o providencialismo, a orientação escatológica/linear do tempo,
a ordem celeste/terrestre, a revelação - com argumentos do repertório cientificista – progresso, ciência,
desenvolvimento, raça, educação, povo, nação, Estado – formulando, portanto, um projeto plausível para a
sociedade brasileira”. RIBEIRO, Modernidade... op. cit., p. 184.
876
HRUBY, Obreiros diligentes... op. cit., p. 131.
877
MARIA, Julio (padre). Conferências da Assunção. Aparecida: Editora Santuário, 1988, p. 276.
277
responsáveis por projetar luz à “arquivos preciosos” até então inacessíveis e,
consequentemente, por proporcionar o “progresso da mentalidade humana”. Isso é resultado,
em tese, da política intelectual da Igreja e da sua “tradição de amor à ciência, sobretudo às
ciências históricas”.878 Também não podemos deixar de perceber, entre esses sócios de batina,
o reconhecimento do Instituto Histórico como o lugar institucional autorizado para o estudo
disciplinado da história da pátria. Isso pode ser percebido na fala do bispo do Pará, representante
do clero brasileiro contemporâneo:
878
COSTA, Antonio de Almeida (bispo do Pará). Discurso de Posse. RIHGB, tomo 52, parte II, 1889, p. 487. Essas
deliberações do Vaticano, sob a pena de Leão XIII, podem ser lidas na seguinte encíclica: LEONE XIII.
Saepenumero considerantes. Roma. Presso San Pietro, il 18 de agosto de 1893. Disponível em:
http://www.vatican.va/content/leo-xiii/it/letters/documents/hf_l-xiii_let_18830818_saepenumero-
considerantes.html Acesso: 19 mar. 2019.
879
COSTA, Discurso... op. cit., p. 486.
880
Diego Castelfranco aborda as dinâmicas do neotomismo a partir da segunda metade do século XX: “Frente al
avance de una epistemología construida en torno al método hipotético-deductivo y a un fuerte predominio de la
investigación empírica, que tendía a excluir los elementos explicativos vinculados a lo religioso, la Iglesia
favoreció una epistemología centrada en el neotomismo que otorgaba un valor privilegiado al “conocimiento
certero” obtenido a partir de un sólido marco lógico-filosófico y al papel jugado por las “causas primeras” –
vinculadas a la acción divina”. CASTELFRANCO, Diego. La ciência em disputa. El vínculo entre la ciencia y
el catolicismo em la Argentina de siglo XIX (1860 – 1900). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) –
Universidad Nacional de General Sarmiento, 2015, p. 50. Disponível em: https://www.ungs.edu.ar/wp-
content/uploads/2016/05/Tesis_Castelfranco.pdf Acesso: 03 dez. 2020.
881
ALVES, José Luiz. Discurso em razão da recepção do sócio Antonio de Almeida Costa. RIHGB, tomo 52, parte
II, 1889, p. 489.
882
Cf. WEHLING, Arno. As origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RIHGB, v. 338, jan./mar., pp.
7-16, 1983.
278
ser verificadas discussões entre os membros da agremiação sobre o papel da providência divina
na história. A noção de histórica filosófica mobilizada pelos primeiros membros do Instituto
Histórico, como na Dissertação premiada de Karl von Martius, tem como intenção determinar
o sentido primeiro do devir através do uso da razão e dos seus instrumentos intelectivos, o que
resulta, pois, na interdição de histórias que possuem como eixo diretor teórico a providência. A
ideia de história filosófica tem, ainda segundo Arno Wehling, como motivação a narrativização
de constantes de regularidade junto ao mundo social, procurando, para tanto, causas que sejam
humanas ou naturais. De todo modo, seja “filosófica, científica ou filosófica científica, a
história, ao final do século XIX, no Brasil, encontrava-se em meio a debates entre fé e a razão,
buscando legitimar-se através de leis da natureza, dos homens ou de Deus”.883 Ou seja, esse
parecer indica que a história no IHGB está longe de possuir uma perspectiva teorética
homogênea e pautada por um único viés instrumental, sendo capaz de abranger,
concomitantemente, questões relativas à razão e, também, ao mistério de Deus.
Os saberes da geografia, da antropologia e da história alcançam, dessa maneira, o nível
próprio da revelação divina acerca do ser humano como existência, “a quem Deus permitiu um
jardim de delícias, ou de tormentos na Terra, segundo o uso que o seu conhecimento soube
fazer dela”. O mistério divino pode ser revelado pela ciência, onde se localiza o “enigma mesmo
da felicidade, que lhe cumpre estudar e decifrar”.884
Para o monsenhor Vicente Lustosa, ser um religioso, possuidor de uma crença
particular, é algo indissociável do ser científico, pois esse exercício também se apoia em uma
busca refletida pela verdade amparada na razão. Quais consequências afirmações como essa
tem para o conhecimento histórico? O fundo hermenêutico implicado na religião, supostamente
próximo da interpretação histórica, não deixa o bispo de Olinda cair numa “falsa ideia” de que
existe uma barreira intransponível entre fé e razão.885 Uma possível conciliação entre fé e
racionalidade é pretendida pelo religioso, na medida em que na sua perspectiva ambas
fomentam atitudes em busca da verdade das coisas ou o seu desvelamento por meio de provas
históricas. No caso cristão as provas são revividas pelos dogmas. Se para a crença cristã o
883
HRUBY, Obreiros diligentes... op. cit., p. 137.
884
PEIXOTO, Discurso... p. 505.
885
Essa forma de crença é denominada de “analogia psicológica da trindade”, que remonta à Agostinho de Hipona,
particularmente à sua obra De Trinitate. A operação de pensamento elaborada por Agostinho resume-se desta
forma: “Se Deus realmente pode ser discernido em sua criação, devemos procura-lo no ponto mais excelente dela.
Ora, o clímax da criação divina, segundo Agostinho (baseado em Gênesis 1 e 2), é a natureza humana. Com base
nos pressupostos neoplatônicos, herdados por ele de sua cultura, chega à conclusão de que o ponto mais alto da
natureza humana é a capacidade humana da razão. Portanto, conclui, podemos esperar traços de Deus (ou mais
precisamente, ‘vestígios da trindade’) no processo humano do raciocínio”. MCGRATH, Alister. Fundamentos do
diálogo entre Ciência e Religião. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
279
caminho da verdade é advindo da revelação de Deus, por meio de um desvelamento que ocorre
através de um sistema de dogmas, o cientista busca a verdade pelos instrumentos da razão,
inclusive através da história. O que se enxerga é o entrelaçamento das duas perspectivas. Daí
que o conhecimento racional é uma via possível para um melhor entendimento de Deus, de
forma a conduzir os homens através dos desígnios divinos.886 Desse modo, é assim que o bispo
de Olinda compreende a sua acolhida para membro do grêmio em 1889:
Em todo caso minha presença aqui servirá para alguma coisa, senhores; servirá
para atestar a solicitude que todos os séculos tem tido a igreja pela difusão das
luzes, pela propagação das ciências; o interesse, o empenho, o esforço
constante com que ela acompanha e anima as explorações do espírito humano
em todas as províncias do saber.887
886
Em Hebreus, 11, 1-3, localizamos o embasamento da teologia católica acerca das relações entre ciência e fé:
“Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não em vemos. Pois foi por meio dela que
os antigos receberam bom testemunho. Pela fé entendemos que o universo foi formado pela palavra de Deus, de
modo que aquilo que se vê não foi feito do que é visível”. Bíblia Sagrada. Nova versão internacional. São Paulo:
Vida, 2000.
887
HRUBY, Obreiros diligentes... op. cit., p. 131.
888
ESBERARD, Discurso... op. cit., p. 284.
889
Para uma história breve e sintética da ideia de providência até o século XIX ver DOSSE, François. “El telos:
de la Providencia al progreso de la razón”. In: _____. La historia: conceptos y escrituras. Buenos Aires: Nueva
Visión, 2003.
890
ESBERARD, Discurso... op. cit., p. 286.
280
ciência e fé é mais simples. Diz o bispo de Olinda que no Instituto Histórico há uma tradição
que aceita os religiosos em suas fileiras, e que em nenhum momento a fé, que é da esfera
particular do indivíduo, atinge o caráter científico da produção de padres e de bispos que fazem
parte do IHGB. Para Esberard, o suposto conflito entre fé e razão é impossível, porque são duas
instâncias separadas, mas que partilham de um mesmo princípio, como quer São Tomás de
Aquino.891 Esse princípio individualiza as duas instâncias tornando-as autônomas, mas com a
abertura de caminhos dialógicos.
A sua ideia epistêmica quanto às relações entre fé e ciência garante que ambas busquem
a verdade. Como bispo Esberard admite que o seu objeto de saber é a verdade revelada por
Deus. Para tanto, a hermenêutica bíblica e os dogmas religiosos da Igreja Católica. Esse é o
método de se acionar o sagrado, que se revela junto à experiência, quase em termos
antropológicos, do crente. O catolicismo também estabelece uma espécie de razão, de acordo
com o sacerdote. Já a ciência também tem como objeto a verdade desvelada por intermédio da
razão. Completando a sua escolha teórica: tanto a fé quanto a razão são provenientes de Deus.
Explora o tema desta maneira: “Em ordens diversas o objeto é o mesmo. A verdade não
contradiz a verdade. A fé e a razão procedem de Deus e eles nos devem conduzir. Como pode
haver pois antagonismo entre uma e outra”?892 Nesse sentido, há a fé lida pela Bíblia e a razão
que lê a natureza. Se concebe que tanto a Bíblia quanto a natureza são ambas “dádivas de Deus”;
não estando, pois, em desacordo. Se há uma discordância entre as duas instâncias, e aqui a
providência divina sobrevive na episteme modernista republicana, isso se deve ao erro de um
teólogo, um estudioso metódico da palavra de Deus, ou da má exegese do historiador, portador,
também, dos ditames da razão. Esses argumentos são pautados, em Esberard, na leitura da obra
do “doutor da Igreja” São Thomas de Aquino: “Demais, como poderá a religião pôr-se em
antagonismo com a ciência, quando os preâmbulos da nossa fé, os preambula fidei de Santo
Tomás de Aquino, nos são fornecidos pelas ciências racionais”?893
891
O mérito maior da obra de São Tomás de Aquino, do ponto-de-vista da história da filosofia, localiza-se no fato
dele ter constituído e elaborado a plena elucidação das relações entre razão e fé, o que contribuí, sobremaneira,
para que tenha sido escolhida como ponto de partida para aquela renovação escolástica. PAIM, Antonio. História
das ideias filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1974, p. 393.
892
ESBERARD, Discurso... op. cit., p. 286. Uma visão teológica que aborda a fé e a ciência como instâncias
provenientes de Deus encontra-se em SOUZA, Josiney. Ciência e fé. Dádivas de Deus. Revista eletrônica Espaço
teológico, São Paulo, v. 6, n. 9, pp. 18-27, 2012 Disponível em: https://cutt.ly/6cZvfgs Acesso: 08 abr. 2021.
Segundo o credo católico, a fé “é uma sublime dádiva de Deus (Ef. 2,8). Como consequência desse entendimento,
a ação criadora de Deus se torna uma cadeia infindável de mistérios. Ao mesmo tempo, Deus concede ao homem
uma enorme capacidade intelectual, que o leva a desenvolver estudos sistematizados, em busca de respostas para
estes enigmas. Nasce então a assim chamada Ciência; oriunda da fé, uma dádiva de Deus”. SOUZA, Ciência... op.
cit., p. 18.
893
ESBERARD, Discurso... op. cit., p. 287.
281
O padre Julio Maria é contrário a uma ideia de história como simples “aglomeração de
fatos sem coordenação a leis fixas, imutáveis, estranhas e superiores à liberdade humana”. Em
resumo: em história se pode determinar o sentido primeiro dos fenômenos históricos no tempo,
isto é, a própria providência divina, ou seja, não “apreender o lado divino da história é confundir
a história com a crônica ou a gazeta; é não apreender a harmonia do verdadeiro, do bem; é não
apreender Deus”.894 Providência, história e ciência são elementos de uma mesma equação. A fé
conjugada com a história é, interditando a metafísica, uma ciência dos fatos.
Para o padre Julio Maria, os fenômenos de cada existência, por menores que possam
parecer, são muitas das vezes sinais e indicações da atuação da providência junto ao plano
terreno. Quer dizer: “são preciosíssimas graças para o curso da orientação da nossa vida”. 895
Trata-se de Deus, manifesto nos desígnios da providência, a instância reguladora, criadora e
orientadora de todo o mundo sensível, onde se encontra, pois, os fatos históricos.896
Dois dicionários brasileiros publicados no século XIX nos oferecem o entendimento
adequado da noção de providência divina. No Dicionário de Língua Brasileira de Luiz Maria
da Silva Pinto o verbete providência estipula isto: “A suprema sabedoria de Deus em governar,
e dirigir tudo (...) ordem para fazer alguma coisa”.897 Já o Dicionário de Língua Portuguesa
elaborado por Antonio Moraes Silva, que tem uma influência maior que o anterior na vida
894
MARIA, Discurso... op. cit., p. 370.
895
MARIA, Discurso... op. cit., p. 369. Em Salmos, 127, 1-2, observamos um exemplo da dimensão judaico-cristã
de providência divina junto ao universo fenomênico. “Se não for o Senhor o construtor da casa, será inútil trabalhar
na construção. Se não é o Senhor que vigia a cidade, será inútil a sentinela montar guarda. Será inútil levantar cedo
e dormir tarde, trabalhando arduamente por alimento. O Senhor concede o sono àqueles a quem ele ama”. Bíblia
Sagrada, op. cit., 2000.
896
A concepção de providência dos sócios do Instituto histórico na Primeira República tem raízes na passagem do
século XVIII para o século XIX. Naquele contexto ela é uma resposta epistemológica e ontológica à nova
perspectiva de história que emerge, marcada pela erudição documental e por uma noção de temporalidade baseada
na distinção entre passado e presente, bem como pela autoreflexividade. De acordo com Virgínia Buarque, é nessa
conjuntura “(...) que se afigurou como, particularmente, difícil ao pensamento católico resguardar o lugar
hegemônico que a Igreja, até então, ocupara no imaginário social, com base em uma concepção de providência
divina que desconsiderava a mutabilidade histórica por um duplo procedimento interpretativo. Inicialmente, Deus
era situado para além do tempo e exterior a qualquer representação, por ser eterno e absoluto. Apenas os seres
criados encontravam-se inseridos na contingência e na finitude. Em seguida, a história era vista sob a perspectiva
de sua finalidade última (sua união com o Criador) e de seu ápice (o evento da encarnação). Somente tomando
como referenciais esse ponto culminante e essa meta derradeira é que se poderia reconstituir, de forma
significativa, a ‘trajetória’ da humanidade, em suas distintas sequências temporais. Assim, ainda que concebendo
a temporalidade histórica como linear-processual e irreversível, o pensamento católico considerava seu
fundamento como imutável ao longo dos séculos – afinal, tratava-se da providência (ou vontade divina operante),
que, ao orientar o curso da história, revela-se através dela”. BUARQUE, Virgínia. Uma história moral, apologética
e... moderna? A escrita católica do século XVIII ao início do século XX. História da historiografia, n. 6, 2011, p.
154–146. Disponível em: https://cutt.ly/RcLW1L2 Acesso: 08 abr. 2021.
897
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionário da Lingua Brasileira. Typographia de Silva, 1832, p. 109.
282
letrada oitocentista, assinala o seguinte conteúdo para o verbete: “A suprema sabedoria, com
que Deus rege, e dirige tudo. Direção, ordem para se fazer alguma coisa, evitar algum dano,
remediar alguma necessidade presente ou por vir”.898 O conteúdo desses verbetes vai ao
encontro da seguinte ideia: concluímos que se trata da noção de uma providência geral que
opera secundariamente, isto é, pela mediação a partir das leis naturais ou através das paixões e
dos interesses humanos como instrumentos para a realização dos seus fins superiores.899
Dito isso, acompanhamos que o conde de Afonso Celso desempenhou forte presença
nos trabalhos e nas aspirações do IHGB na República. Primeiro como o orador e, depois, como
o seu presidente por quase três décadas. Se hoje as suas reflexões sobre a história são pouco
conhecidas, excetuando as contidas em seu livro Porque me ufano do meu país, naquele
contexto as suas posições intelectuais alcançaram prestígio junto àquele auditório. Em termos
de regimes historiográficos circulantes no Instituto, Afonso Celso oferece a oportunidade de
historicizarmos a permanência da providência divina como elemento estruturante da
experiência da história.900 Algo importante, pois as discussões sobre o caráter racional da
história não impossibilitavam, para aqueles sujeitos, a existência de posições distintas, e no caso
estamos falando daquela afiançada por Deus. Certamente este raciocínio do conde de Afonso
Celso, escrito em seu livro clássico, nos proporciona uma investida nessa ideia:
898
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionário da Língua portugueza composto pelo Padre D. Rafael Bluteau,
reformado, e acrescentado por Antonio de Moraes Silva, 1755-1824, p. 260.
899
Essa é a concepção de providência em Tocqueville, e que penetra o século XIX adiante. Cf. JASMIN, Marcelo
Gantus. Tocqueville, a Providência e a História. Dados, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2, 1997, p.1. Disponível em:
https://cutt.ly/AcLXJHB Acesso: 08 abr. 2021.
900
De acordo com Philippe Ariès, é Santo Agostinho quem inaugurou e popularizou o primeiro esboço de uma
história providencial, oferecendo um sentido novo ao conceito de história. As ideias teológico-filosóficas de
Agostinho mostram-se relevantes em razão de situar as coisas humanas na duração, diferentemente do que é
preconizado pelos gregos. A perspectiva agostiniana sobre a história “abrange todo o conjunto do devir humano,
para explicar por meio de algumas concepções filosóficas gerais sobre a ação de Deus no mundo através da sua
providência”. ARIÈS, Philippe. O Tempo da História. Lisboa: Antropos, 1992.
901
CELSO, Afonso. Porque me ufano do meu país. Rio de Janeiro: Laemmert & Cia Editores, 1908.
283
lógica implícita que governa os acontecimentos históricos. Mas não se trata de um
providencialismo no qual os desígnios de Deus estão encobertos e são indecifráveis aos agentes
históricos. Lúcia Maria Paschoal Guimarães acredita que a ideia do conde acerca da presença
de Deus no desenrolar do desenvolvimento histórico é devedora de duas principais fontes
intelectuais: de um lado Bossuet, cuja perspectiva aponta que Deus vale-se do próprio agir
humano para corrigi-los; de outro, da visão da filosofia católica da história de Léon Gautier, em
que a providência vale-se da punição expiatória para poder salvar a humanidade.902 A
providência faz-se onisciente e onipresente diante do desenvolvimento dos acontecimentos
históricos no plano da temporalidade. Ela se faz presente de maneira laboriosa e diligente,
cabendo aos homens, por meio da racionalidade dos seus instrumentos cognoscentes,
desvelarem a sua verdadeira essência e quais os destinos por ela traçados. É possível para o
conde de Afonso Celso deduzir as causas primeiras e as causas finais contidas em todos os
acontecimentos, momentos e situações históricas. O método crítico é valioso para tanto.
Dito de outra maneira, ao historiador cabia investigar racionalmente a experiência
histórica, dotando-a de sentido e de inteligibilidade, coadunando razão e crença, na medida em
que esse era o caminho mais adequado para se tomar conhecimento dos planos de Deus. Deus,
a verdade, o devir, o destino dos povos, o verbo, era acessado por intermédio de um
desvelamento contínuo racionalizado por um sujeito cognoscente orientado metodicamente.
Acessando o plano da vontade divina, os fatos passados passavam a ganhar sentido e
compreensão, bem como o futuro podia ser planejado, visto que o historiador se tornava
conhecedor das necessidades e dos propósitos do Criador. Homens e mulheres se preveniam,
se orientavam, se adequavam ao fluxo determinado pelo Divino. Nesse esquema, o sentido da
experiência histórica brasileira passava a estar sujeito a um tempo linear em que se notava uma
instância universal diretora do desenvolvimento fenomênico. Fatos históricos, personagens,
situações de todas as ordens eram arregimentados por um fluxo, um motor, estabelecido pela
providência divina, sendo necessário acompanhar o seu desvelamento para que houvesse, no
limite, a possibilidade da sua tradução e da sua significação, tornando os agentes históricos
aptos a agir de forma correta no mundo social.
Na percepção de José Xavier Silveira Junior há, a partir da leitura de Claude Bernard,903
unidade no princípio da vida, sendo que a fisiologia de homens e de mulheres deve ser
902
Cf. GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal Guimarães. Por uma historiografia ultramontana: Afonso Celso.
Intellèctus, vol. 2, n. 1, pp. 1-15, 2003. Disponível em: https://cutt.ly/hcLJDxv Acesso: 08 abr. 2021.
903
O francês Claude Bernard considera “a física e a química poderosas ferramentas para a experimentação do
organismo e de suas partes,” sustentando “que os sistemas orgânicos possuíam um nível de organização que exigia
leis fisiológicas específicas. Dessa forma, Bernard trilha o sentido inverso dos reducionistas: ao reconhecer a
284
observada por intermédio de fusionamentos diferenciados com o meio. Essa observação
antecede a formação das raças e da sociedade: “fazer o estudo da fisiologia do homem e dos
animais, é indispensável fazer o das plantas e descer mesmo até o próprio reino mineral, porque
a natureza inteira subordina o homem a um regime de estreita dependência”. 904 Sob a
perspectiva científica da fisiologia e da organicidade, os sujeitos históricos são o resultado de
um fenômeno complexo que remonta a uma formação ancestral com o todo da natureza,
diferenciando-se descontinuamente.
Interessante que Silveira Junior distancia-se, em certos momentos, das teses
mecanicistas dualistas, parecendo se aproximar, em alguma medida, do monismo essencialista
de Haeckel, porém, a partir de uma leitura de fundo cristã.905 Nesse horizonte de análise, sob o
ponto de vista intelectual e moral, o homem desde temporalidades mais recuadas afirma-se
como a “força suprema entre todas as forças da natureza planetária”, mesmo que sujeito às
interferências advindas do meio. O que guia esse movimento do devir histórico é a providência,
convertida em “primalidade ativa do consciente da criação”, que é o fundo de verdade contido
na “ilusão axiomática a que se convencionou chamar o erro antropocêntrico”.906 No desenrolar
dos tempos o ser humano tende a dominar as forças da natureza, mas interagindo com ela o
mesmo se complexifica. Assim, o homem torna-se humanidade, em que a família se sobrepõe
à tribo, a nação à família, as raças à nação, a moral às raças, a civilização à moral. Nessa última
esfera surge o cristianismo como o eixo orientador das ações humanas: “assume as projeções
de uma grande luz nova que projeta a sua qualidade no seio das épocas porvindouras”.907
Existe racionalidade na perspectiva essencialista-providencial de Silveira Junior, e o
conceito moderno de história desponta em sua forma mais bem-acabada com a finalidade de
deixar em evidência o funcionamento do devir divino. Talvez o diferencial da sua posição esteja
no momento inicial da vida humana, em que não existe um ponto elementar de origem
evolucionista, mas um plasma complexo, com todos os componentes da vida, materiais e
complexidade dos sistemas orgânicos, acredita que suas leis só podem ser complexas e não simples leis físico-
químicas”. JUNIOR, Wilson Antonio Frezzatti. Haeckel e Nietzsche: aspectos da crítica ao mecanicismo no século
XIX. Scientiae studia, vol. 1, n. 4, 2003, p. 440. Disponível em: https://cutt.ly/0cLVUs9 Acesso: 08 abr. 2021.
904
JUNIOR, Discurso... op. cit., p. 646.
905
O monismo haeckelista admite que entre os organismos vivos não se observa um só elemento que não seja
derivado, de algum modo, de uma fonte inorgânica. Assim sendo, as dimensões que circunscrevem os organismos
apenas podem derivar de uma disposição particular que oferece unidade aos elementos, sobretudo, o carbono – o
elemento primordial dos compostos orgânicos. Há, assim, unidade entre as dimensões orgânica e inorgânica; todas
as duas são sujeitadas às mesmas leis da evolução: o processo evolutivo orgânico se opera através de forças físico-
químicas. Cf. CASSIRER, Ernest. El problema del conocimento. Vol. IV. Cidade do México: Fondo de Cultura
Económica, 1993, p. 215-216.
906
JUNIOR, Discurso... op. cit., p. 647.
907
Idem, p.647.
285
imateriais; uma energia vital, uma força criadora que embaralha todas as linhas evolutivas
posteriores. Isso tudo é um sinal da existência de Deus. O tempo enquanto eternidade supõe o
mistério, todavia passível de tornar-se objeto de racionalização cognitiva. Talvez esse tempo da
eternidade possa conter até mesmo um princípio cíclico, posto que volvendo ao cosmos como
matéria, os seres vivos entram igualmente na dinâmica da criação da vida, que é disforme e
errante, mas formada pela centelha divina, proporcionando evoluções diferenciadas entre os
seres vivos, ainda por conta da coexistência criadora entre natureza e estes, o que resulta na
ideia de multiplicidade situacionais de existência. O pensamento cristão de Silveira Junior ao
invés de repelir essa corrente científica a adapta visando a preservação do elemento sagrado.
A civilização que não olhasse para traz seria como a obra do acaso. E vós
sabeis que o acaso só existe na consciência daqueles que a si mesmos se
enganam, supondo ilusório o facho divino, que tudo orienta, pensamento de
Deus, renovado e sempiterno, brilhando para consolo das humanidades
efêmeras que se sucedem em terra, como as formigas humildades num recanto
deserto da selva.910
908
Ibidem, p. 647-648.
909
PACHECO, Discurso... op. cit., p. 563.
910
Idem, p. 563.
286
O que se observava era a tradução da experiência da história em eternidade, instância
que suspendia a efemeridade da vida, o acaso e que alojava em seu seio as tradições e os modos
de ser do processo histórico como sendo pré-estabelecidos por uma força exterior.
É por intermédio das dinâmicas da providência divina que vemos florescer as
civilizações, desde o nível mais básico do indivíduo até o macro das sociedades em conexão de
costumes ou modos de compartilhamento cultural. É Deus quem dirige o destino manifesto das
nações, sem o qual jazem nas “trevas do esquecimento” de si próprias. Deus é o guia convicto
da prosperidade dos povos devido a sua benevolência, estando nele prefigurado o futuro destes
através da sua imagem, que é a semelhança dos homens e das mulheres. Arcoverde assinala isto
sobre a intervenção providencial:
Carlos Vidal de Oliveira Freitas afirma que mais do que qualquer outra esfera de saber
a história eleva a “alma humana” acima de todas as regiões em que se localizam as misérias
sociais. Ela fortifica mulheres e homens para as batalhas da vida, fazendo-os reconhecer na sua
trama a “urdidura divina do criador”, dando-lhes, a partir dessa tomada de consciência, a
vidência do futuro através das “névoas do presente”.913
Já de acordo com o agremiado argentino Lucas Ayarragaray, existe naquele contexto
uma luta entre um mundo que se esvai e um nascente, que resgata valores dos antigos. O que é
almejado pelo estudioso é um verdadeiro reencantamento do mundo pela via espiritual.
Metáfora expandida para tudo que torna o mundo de homens e de mulheres habitável no sentido
911
ARCOVERDE, Discurso... op. cit., p. 650.
912
Idem, p. 650.
913
FREITAS, Discurso... op. cit., p. 512.
287
do fortalecimento dos laços de reciprocidade moral, em que o passado atua como força
orientadora diante das carências de sentido atribuídas ao mundo moderno. Em sua posição:
Vosotros, que sientes agitados por las inquietudes del pensamento y crees em
las fuerzas imponderables y sois atraidos por los misterios del mundo y da
vida haceis obra duradoura, poniendo vuestros empeño para desarrolhar los
factores espirituales de la civilización brasileira.914
Assim sendo, o conhecimento sobre a história como devir traz consigo a figura da
justiça, em referência à Volney. O historiador deve ser como aquele arguto personagem
romântico observador das ruínas e dos túmulos, sabedor da inconstância, da efemeridade ou da
caducidade do tempo histórico. Deve-se fazer, então, justiça aos passados que já não estão mais
disponíveis e/ou silenciados, havendo, assim, a possibilidade de aprender com eles.915 Há de se
considerar, ainda, o passado como produto da providência divina, ou seja, tudo aquilo que é
passado, e que pode confortar a sensação de perenidade da história, apresenta-se como obra de
Deus. Além disso, essa ideia de efemeridade, romântica por natureza, das coisas do mundo
corresponde a uma percepção mais abrandada sobre o passado, não sendo ele um atavismo,
posto que a eternidade movimenta as ações existentes e agenciadas por mulheres e homens:
A história passa a ser aquela figura augusta da justiça, de que fala Volney,
surgindo aos olhos da consciência humana, tal qual surgira aos olhos do
solitário pensador das ruinas e dos túmulos, isto é, como trazendo às mãos a
balança sagrada e incorruptível em que pesam as ações dos efêmeros às portas
da eternidade.916
Porém, mesmo sabedores da perenidade do tempo, que ele era relativizado em seus
pontos negativos diante da eternidade da criação, o historiador julgava certos eventos, situações,
momentos, personalidades, ideias, ações como relevantes para a posteridade, colocando a
história, assim, providencialmente em movimento.
914
AYARRAGARAY, Discurso... op. cit., p. 528.
915
Sobre a temática das ruínas entre os românticos, mais especificamente entre os viajantes, ver CASTRO, Maria
João. O viajante romântico e o apelo da ruína, 2006. Disponível em https://run.unl.pt/handle/10362/22145 Acesso:
25 de jan. 2020. “Uma fachada desmoronada, colunas despedaçadas, constituíam o legado de uma antiguidade
irrecuperável, mas que sonha essa mesma recuperação (...). Ela [a ruina] fazia recordar a origem e o passado, mas
também apontava para um devir que era pronuncio de uma decadência que anunciava um fim”. CASTRO, O
viajante... op. cit., p. 2.
916
JUNIOR, Discurso... op. cit., p. 648.
917
Idem, p.649.
288
Adolfo Augusto Pinto conta uma história na qual o povo israelita “perambula” pelo
deserto. De quando em quando contemplam o céu no intuito de que mesmo vivendo sem lugar
no mundo, em acampamentos, não se situam no plano do desterro, mas, sim, no conforto dos
desígnios da providência, onde fazem morada. Assim deve ser a atitude dos brasileiros e das
brasileiras republicanos, sendo o seu refúgio o amor à pátria, cuja proteção providencial a fizera
única e digna de reverência:
(...) nascemos com os olhos levantados para esse ideal sublimado, a Pátria,
grande, próspera e feliz, qual nos asseguram os altos desígnios providenciais
que as revelam em notabilíssimos fatos da existência nacional.918
918
PINTO, Discurso... op. cit., p. 359.
919
NASCIMENTO, Um átomo... op. cit., p. 339.
920
Idem, p. 339.
921
Ibidem, p. 341.
289
Porém, mesmo as atribulações sociais, e apresentando princípios morais cristãos em sua fala,
são elaboradas em um enredo constituído por acidentes efêmeros, posto que a providência
divina, existente tanto em âmbito transcendental quanto particular, mostra-se capaz de aplacar
todas as faltas humanas. A moral de fundo cristã é, portanto, um sacramento de princípios, um
alicerce vivificador de toda a humanidade, “simbolizado na fraternidade cosmopolita que esbate
as fronteiras das nações, fazendo do universo uma só pátria, e da humanidade uma família”.922
Os princípios cristãos, que se performam em uma linguagem criacionista secularizada, são úteis
para a satisfação da paz entre os povos. A história ensina, é mestra da vida, e ao mesmo tempo
movimenta uma disposição pragmática junto à realidade social. O Deus moralizante, em uma
conjuntura epistêmico-historiográfica modernista, não é metafísico, mas tangível a partir do
momento que ele prefigura as ações dos homens e das mulheres no tempo; no mesmo compasso
que racionalmente esses agentes sociais descobrem os seus mistérios a partir de elementos que
conferem racionalidade aos desígnios sagrados. Para Silva, o cristianismo é perpassado pela
racionalidade e torna-se uma postura moral.
Os princípios da fé racionalizada estavam presentes no pensamento de diversos
intelectuais tomados por esses momentos de crise sócio-existencial. A razão servia à fé
desvendando-lhe os mistérios. A divindade, o sagrado, chegava ao seu estado natural. Havia
sempre uma ordem acompanhando os fenômenos, liberando, assim, homens e mulheres para
realizarem todas as suas aptidões. Entender o presente é o mesmo que descobrir toda a
sistemática que sinteticamente organizava as coisas tangíveis do mundo e por onde se assiste o
enredo das ações humanas: “Apagam-se do mais a mais os limites entre as coisas e os fatos, e
na concepção grandiosa da síntese universal, vai-se do átomo ao astro, do nada ao infinito, do
mineral até o homem, e do movimento à razão”!923
O jesuíta Rafael Galanti não deixou de celebrar o seu ingresso para IHGB e de ressaltar
os compromissos entre a instituição católica com os estudos históricos, que em sua acepção tem
funcionalidade exemplar e movimenta o topos clássico imitatio. Assim, a Companhia tem como
objetivo, amparada pela vontade de Deus, a promoção
922
Ibidem, p. 341.
923
NASCIMENTO, Um átomo... op. cit., p. 341. Sobre as aproximações entre cristianismo e ciência Peter
Harrisson estabelece o seguinte: “O argumento de uma combinação justa entre ciência moderna e a religião cristã
perpetua o ideal iluminista de um Cristianismo racional como a religião mais apta a resistir aos ataques da razão e
da filosofia natural. O apelo à razão, deve-se recordar, não foi primariamente para defender as crenças cristãs
contra os ataques do ateísmo ou da filosofia natural, mas para estabelecer a verdade do Cristianismo, ou uma de
suas formas confessionais, contra formas de religiosidade rivais”. HARRISON, Peter. “ciência” e “religião”:
construindo os limites. Revista de Estudos da Religião, março de 2007, p. 20. Disponível em:
https://cutt.ly/ncLLPmU Acesso: 08 abr. 2021
290
(...) da boa educação da mocidade, porque a mocidade é a esperança da pátria;
deseja promover o progresso das letras e das ciências, porque delas em grande
parte depende a prosperidade da nação; deseja em particular promover o
estudo da História pátria a fim de excitar os jovens a imitar as façanhas
gloriosas de seus antepassados.924
Para aqueles que professam a fé cristã, como Aristides Milton, as dúvidas sobre os
propósitos de Deus não têm sentido de existir, pois há provas irrecusáveis vistas na própria
história do Cristo. Milton afirma que a instituição, onde parte considerável dos seus sócios
confessa ser católica, não verga diante dos comentários e das acusações de quem está de fora
sobre o cristianismo ou sobre o Cristo histórico. O cristianismo é, pois, um fato histórico. O
Cristo existiu enquanto homem e como divindade. Há o Cristo histórico e o Cristo que é o
responsável pela maior obra de divulgação da fé até hoje existente: o catolicismo.925 A
abnegação era uma prova da postura de fé dos sócios religiosos, que mesmo desafiados pela
razão mundana não deixavam de tentar, por instrumentos cognitivos e de pensamento, descobrir
as faces do Cristo histórico, aquele que veio ao mundo enquanto filho e mensageiro do Deus
vivo. Sinal vivo e parabólico da união, ou da consagração, do espiritual e do temporal.926
O arcebispo Joaquim Arcoverde tem em mente a unificação do estudo da história com
a fé, mais especificamente de cariz católica. Tudo isso em razão da providência divina ser
responsável, em seu entender, por toda a organização histórico-social existente - ela é fato e
indicador da própria existência de uma realidade sensível em que os homens e as mulheres
partilham intersubjetivamente valores que compõe o que se considera ser a sociedade ou a
civilização. A providência divina age, nessa concepção de história, sorrateiramente articulando
todos os níveis da história dos povos à luz do Evangelho. Segundo as suas palavras:
924
GALANTI, Rafael (padre). Discurso de posse. RIHGB, tomo LX, parte II, 1897, p. 316.
925
A partir do “século XIX, a corrente de pensamento chamada de historicismo (ou historismo) afirmava o caráter
histórico de tudo que existe no mundo humano. Mostrava o condicionamento histórico dos fenômenos humanos,
inclusive de verdades e doutrinas da fé cristã tidas como indiscutíveis, como os dogmas”. FISCHER, Joachim.
História dos dogmas, história da teologia, história do pensamento cristão. Estudos teológicos, v. 48, n, 1, 2008, p.
87. Disponível em: https://cutt.ly/ccLDxwW Acesso: 08 abr. 2021.
926
Cf. MILTON, Discurso... op. cit., 1895.
927
ARCOVERDE, Discurso... op. cit., p. 650. Para um estudo sobre a performance da providência divina junto à
organização dos fatos históricos ver LACERDA, Giorgio. “A Suprema Causa Motora”: o providencialismo e a
escrita da história no Brasil (1808 – 1825). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo:
USP, 2011. Disponível em: https://cutt.ly/OcLBTRm Acesso: 08 abr. 2021.
291
A fé católica combinava, nessa direção, com todas as propostas de ciência. A razão por
ela descoberta vinha confirmar os dogmas. Era nesse sentido que a ciência da história ocupava
um lugar de destaque nessa operação de saber, dado que ela confirmava todos os
acontecimentos relatados no mundo da vida, orientando, assim, o universo sagrado cristão.
“Que é a própria revelação cristã, senão um grande fato, um fato que como todos os demais se
demonstra pelas leis e processos da história”?928 A razão desde que orientada, isso em profissão
de fé, encaminhava homens e mulheres para o santuário. Ali a razão era outra: a fé. Duas razões
que se encontravam em um grande tabernáculo. Havia, então, a racionalização da crença.
Saindo do âmbito da natureza, mas que demonstrava a facticidade do cristianismo, se introduzia
os sujeitos em uma região superior, isto é, a transcendental, em que a providência divina se
encarregava de esclarecer e iluminar os sujeitos históricos. Em que medida, se indaga o
religioso, a fé deve abrir conflito com a razão? Em que isso prejudica a fé e a crença, posto que
são orientadas pela razão histórica? Arremata deste modo a sentença o bispo de Olinda:
Para o monsenhor Guedelha Mourão havia uma harmonia perfeita entre a fé e o estudo
da história, entre a Igreja e a razão. Essas esferas não são, em sua acepção, excludentes. A
Bíblia, o livro sagrado guardado pela Igreja com cuidados e precauções, traz consigo os
acontecimentos, em tese, mais notáveis da humanidade. A história está contida na própria raiz
da hermenêutica bíblica, posto que os autores hagiógrafos escrevem sob a forma de história,
bem como se fala de um Cristo histórico. Não há religião mais histórica que o cristianismo em
forma e em conteúdo. Nesse sentido,
928
ESBERARD, Discurso... op. cit., p. 297.
929
Idem, p. 297.
930
MOURÃO, Discurso... op. cit., p. 533.
292
Para o padre Julio Maria, a própria trajetória da experiência da história se confunde com
os preceitos da fé cristã. Da mesma sorte que na história geral do mundo não se encontra um
evento tão eminentemente real, sendo que na história particular do Brasil o fato mais
perfeitamente histórico é o catolicismo. Segundo o padre:
De acordo com Julio Maria, o catolicismo não deixa, através dos seus dogmas, margem
ao cientificismo cético. O sacerdote admite que a ciência do momento é a história, que ele diz
ser a ciência dos fatos. Encontramos, aqui, uma explicação que une os caminhos do discurso
histórico com o do catolicismo: em toda a história, segundo o padre, não há um fenômeno com
tantas características de fato histórico como o cristianismo. Histórico em sua forma e em seu
conteúdo. Na forma porque é uma narrativa de fatos situados no tempo/espaço. No conteúdo
em razão dos seus dogmas basearem-se em fatos históricos.932 Em sua opinião: “Não
compreendem que o cristianismo é eminentemente histórico; e isto não porque tomasse lugar
no mundo, como qualquer outro fato, mas porque seus dogmas são fatos, o seu símbolo,
narração de fatos”.933
931
MARIA, Discurso... op. cit., p. 370
932
Idem, 1889.
933
Ibidem, p. 371. João Miguel Teixeira de Godoy nos apresenta o argumento necessário para pensarmos o
cristianismo em perspectiva histórica, e para embasar historiograficamente a posição dos sócios religiosos do
Instituto Histórico: “O fato é que as relações entre cristianismo e história ocorrem de diversas formas e a dimensão
histórica desempenha um papel chave na fundamentação da doutrina, pois trata-se de uma religião que se realiza
na história. Em primeiro lugar, o cristianismo é uma religião historicamente fundada, ou seja, sua criação ocorre
num determinado momento da história a partir da ação de um determinado fundador. Mais do que isso, os
momentos decisivos da vida de Jesus, filho de Deus, (paixão, morte e ressurreição) significam para os cristãos o
evento fundamental da história humana. Tal evento possui a força de atribuir sentido ao antes e ao depois. Aquilo
que vem antes são os antecedentes, a preparação. O depois revela-se como desdobramentos, onde a humanidade
caminha em direção a salvação tal como foi definido pelo plano providencial do Pai”. GODOY, João Miguel
Teixeira de. Religião, Memória e historiografia. Revista Mosaico, v. 5, n. 2, 2012, p. 111-112. Disponível em:
https://cutt.ly/KcLFJ1J Acesso: 08 abr. 2021.
934
Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva reflete que “a história nacional oficial refletiu os interesses de uma
construção identitária católica, pacífica e unificada”. SILVA, Ana Paula B. R. da. Escrita da história e catolicismo
293
pela providência: “Quando eles, entretanto, não se comovem nem se impressionam com as
maravilhas que Deus espalhou pela nossa natureza tropical e opulenta, é que tendes direito
incontestável pela vossa obra de patriotismo e desprendimento, Senhores”?935
Estudando a história do Brasil colonial, do Brasil independente, e do recém Brasil
republicano encontra-se a fé católica. Essa é a posição do monsenhor Guedelha Mourão. A
própria constituição da nacionalidade se confunde com a fé cristã. O substrato fé é a origem da
ideia de pátria, que liga os sujeitos ao ambiente histórico. Mais: o catolicismo cria uma
verdadeira civilização nos trópicos, “colaborando em todo os cometimentos uteis”.936
A providência divina guia os caminhos da formação histórica do Brasil, segundo Adolfo
Augusto Pinto. O possível discurso da falta perante o Outro, deixando que a alteridade alheia
aliene a própria concepção do ser nacional, é ressaltado. O brasileiro e a brasileira, para esse
sócio, não possuem à disposição de si o senso estético do italiano, oriundo de seu tronco cultural
latino, não são dotados do idealismo francês, nem da cultura científica alemã, ou do gênio
industrioso do estadunidense. No entanto, em virtude da generosidade da providência divina,
da “Eterna Onipotência”, o Brasil apresenta-se como uma nação onde há um “maravilhoso
concerto de harmonias”. Mesmo levando em consideração a divergência das suas nascentes
étnicas forma um “bloco irredutível”, a mais homogênea unidade política do Ocidente. A
formação histórica brasileira abrange, em seu entender, elementos comuns fortemente
arraigados, criando um bloco inteiriço e um solo propício para o reconhecimento patriótico:
elementos de raça, de religião, de língua, de usos e de costumes, de sentimentos e de aspiração,
de legislação e de ideias. Tudo isso é, diz Adolfo Augusto Pinto, obra da providência.937
Para o bispo de Campinas, João Batista Correa Nery, apenas um motivo pode estar por
trás da sua recepção entre os sócios do IHGB, qual seja, o fato dele ser um representante da
Igreja Católica brasileira. Para o sacerdote cristão, a fé católica é um dos motores que guiam a
formação do povo e da sociedade brasileira desde tempos remotos, sendo presente e atuante
junto a integralidade do território nacional e participante na evolução social da nação. Nesse
sentido, um povo se porta como um verdadeiro organismo derivando de uma multiplicidade
viva oriunda da providência. A vida de um povo está na sua alma, no sentido de uma formação
que se materializa por meio dos instrumentos da fé. É a fé o grande esteio por onde a ideia de
na passagem do século XIX para o XX: um historiador e sua militância católica. Anais do XVI Encontro Regional
de História da Anpuh-Rio. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2014. Disponível em: https://cutt.ly/kcZkFNe Acesso: 08
abr. 2021.
935
MILTON, Discurso... op. cit., p. 379.
936
MOURÃO, Discurso... op. cit., p. 534.
937
Cf. PINTO, Discurso... op. cit., 1909.
294
nação se desenvolve em sua forma plena. De acordo com as suas palavras: “Um povo, disse
notável orador, é um perfeito organismo, vitalizado, é uma unidade viva derivando de uma
multiplicidade viva. A vida de um povo está na sua alma, e a alma desta está na ideia e na fé”.938
As vidas dos povos são, nesse sentido, alimentadas por uma ideia ou princípio gerador.
Nessa direção que o bispo de Campinas coloca a formação da nacionalidade brasileira a partir
de uma perspectiva diretora de fundo católico e cristão. É pelo desenvolvimento da providência,
do seu princípio conservador, que a experiência da história nos trópicos tem condições de
existência. Assim, o agenciamento da providência divina é solicitado no IHGB pelo bispo:
Desse modo, para que o pensamento se realize há a necessidade de uma unidade social
para o seu desenvolvimento; sendo que desse movimento localiza-se a religião produzindo uma
espécie de energia vital. É essa crença que leva Portugal a conseguir, em tese, todas as suas
“proezas colonizadoras” no Brasil, e que leva o mesmo a se desenvolver como nação. Toda a
história brasileira é, então, perpassada pela fé cristã, que se mostra como o seu grande motor
implícito na organização social do país. “Elemento principal da formação da nossa
nacionalidade, a fé soube ainda inspirar o valor necessário nos diversos períodos em que parecia
periclitar a nossa integridade territorial”.940 Percebe-se que essa concepção de história encobre
o caráter conflitivo da história no tempo e no espaço.
Era necessário naquele presente republicano, para alguns sócios do Instituto Histórico,
reconhecer a necessidade de dispor os Estados do país em forma de rede. Ramiz Galvão
argumenta que há, nesse sentido, a demanda por uma grande carta geográfica do Brasil, capaz
de tornar visual o país em seus mínimos caracteres. O topos providencial é chamado nesse ponto
exato, na medida em que a grandiosidade e a forma do território nacional são heranças dela:
938
NERY, João Batista Correa (bispo de Campinas). Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXIV, parte II, 1911, p.
649.
939
Idem, p. 649-650
940
Ibidem, p. 654.
295
recebemos da Providência, a composição da carta geográfica do Brasil,
extrema de erros e de dúvidas que nos fazem corar.941
941
GALVÃO, Ramiz. Sobre a necessidade de uma carta geográfica. RIHGB, s/d.
942
ARCOVERDE, Discurso... op. cit., p. 650.
943
Idem, p. 650-651.
944
Ibidem, p. 651.
296
vitalidade ao sentimento patriótico, infunde-lhe certa elevação e nobreza que o formam
vigoroso, enérgico e inflexível”.945
Estes dois eixos acham-se na história dos povos: patriotismo e religião. “O patriotismo
ateu é uma criação nova, absurda e monstruosa. O altar e o lar são dois polos históricos da
pátria”. A religião, ou a fé de modo geral, é “um grito secular de patriotismo”!946 O catolicismo
para esse sócio de batina é uma “escola de patriotismo”, “porque é por excelência a escola da
abnegação e do sacrifício; e patriotismo sem abnegação é um sentimento fátuo e ridículo”.947 É
nessa escola, argumenta o arcebispo Arcoverde, que se forma o valor dos mais notáveis
patriotas; todos eles manifestando, e isso pelo credo católico, as virtudes morais da abnegação,
do sacrifício e do heroísmo em nome do todo coletivo chamado Brasil. “Consorciemos,
senhores, a religião com a pátria, o lar com altar, como sempre estiveram em nosso país; desde
o seu alvorecer, se quisermos termos uma pátria forte e feliz, onde reine, a paz, a justiça e a
liberdade”.948 O Brasil que nasce da religião e do altar não pode ser concebido em sua
originalidade sem a Igreja; a pátria não pode ficar sem a religião ou a família - sem o seu mais
“íntimo oratório”. Arcoverde resume as intricadas relações entre pátria e catolicismo no Brasil:
“Sejamos brasileiros e inspirados na história e nos exemplos de nossos antepassados, saibamos
honrar esta pátria, que nascida sob a fulgurante constelação do cruzeiro e crescida à sombra do
Cruz do redentor, nunca renegará a religião da cruz, que a fez grande, livre e poderosa”. 949
Sendo o cristianismo um fato histórico, e voltando os olhos para o Brasil, o que aquela
realidade nos apresenta? O catolicismo, que não é senão o cristianismo integral na concepção
de Julio Maria, aparece como a religião histórica brasileira. É um fato histórico por excelência
na história da nossa pátria. Para ele, é a religião católica que educa o Brasil e faz dele civilizado,
com todos as suas formas de imposição de modos de ser no mundo. O primeiro símbolo da
nossa pátria é a cruz. Por ela o Brasil aprende a ser brasileiro e brasileiros e brasileiras aprendem
a se reconhecer. O catolicismo é o símbolo máximo da pátria.950 Argumenta Julio Maria:
A Cruz de Jesus Cristo foi o sinal da posse divina das terras do Brasil. Foi à
sombra da Cruz que se formaram os nossos costumes, promulgou-se o nosso
945
Ibidem, p. 651.
946
Ibidem, p. 651.
947
Ibidem, p. 651.
948
Ibidem, p. 651.
949
Ibidem, p. 651.
950
Giovane José da Silva afirma, em sua tese de doutorado, “que o ‘moderno historiador católico’ não mais deveria
fazer uma história sagrada e eclesiástica, abstraindo-se da história profana, alheia à vida dos homens e à construção
da nação”. SILVA, Giovane José da. O batismo de Clio: catolicismo, ensino de história e novas mídias em Jonathas
Serrano. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal
Fluminense, 2015. p. 49. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/1767.pdf Acesso: 03 dez. 2020.
297
direito, legislaram-se os nossos códigos, formou-se nossa nacionalidade.
Venha; venha o positivismo. Compareça perante o tribunal da história.
Exorbita seus títulos, suas pretensões. Seus títulos são falsos, suas pretensões
são impertinentes, exorbitantes. Debalde ele tenta esbulhar a Cruz de sua
posse divina. Debalde para isso explora a nossa política, que não tem feito
senão complicar. Debalde o povo o repela; o juízo imparcial da História livra-
lhe a sentença, dizendo: no Brasil os usos, os costumes, os tempos, as próprias
pedras, em cimos se elevam os Cruzeiros, tudo diz, tudo exclama, tudo brada:
o Brasil pertence a Jesus Cristo.951
Os lugares de maior renome são os que foram fecundados pelo labor daqueles
Missionários heróis, que em meio de dificuldades sem cota de perigos mortais
aqui anunciaram o Evangelho e plantaram a Cruz, merecendo este país de
maravilhosos destinos o nome de Terra de Santa Cruz, fazendo-o nascer para
verdadeira vida e verdadeira glória!952
A civilização brasileira orienta-se, então, pela Cruz, enfatiza o núncio apostólico. O passado do
Brasil é, desse modo, católico. Para o bispo de Campinas João Nery, a fé que anima os
“descobridores” é inspiradora para os patriotas inseridos no âmbito da formação nacional,
sinalizando os seus grandes ideais. Ela é quem move a esperança dos brasileiros e das
brasileiras, de ontem e de hoje, em meio a todas as crises políticas e sociais.953
No que diz respeito à ideia de pátria, ela há sempre de corresponder com a religião,
porque são elementos indispensáveis: “são duas páginas do mesmo texto, dois raios do mesmo
foco, dois regatos da mesma nascente”.954 A conclusão para todo espírito de boa-fé, argumenta
João Nery, é esta: a igreja brasileira, a devassadora dos sertões, protetora e civilizadora dos
índios, semeadora da instrução, tem sido, entre nós, esclarecida cultora das ciências, das letras
e das artes; protetora do progresso, agente de elevação intelectual e moral; instrumento de paz,
união, verdade e liberdade.955 A que custo?
951
MARIA, Discurso... op. cit., p. 372.
952
TONTI, Julio (núncio apostólico). Discurso de posse. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1906, p. 438.
953
NERY, Discurso... op. cit., p. 666.
954
Idem, p. 666.
955
Ibidem, p. 667.
298
Parte IV
Metodismo e historiografia
299
Capítulo 9 - Mutações do regime historiográfico metódico: arquivo, erudição,
crítica e síntese
Guardando piedosamente as nossas tradições,
coligindo, estudando, publicando todos os
documentos que ides pesquisando, encontrando,
conhecendo, prestas a nossa nacionalidade em
formação o maior serviço (...).956
Afrânio Peixoto
Padre Belarmino
Nas prescrições dos sócios do IHGB republicano sobre as formas possíveis de tornar a
história um conhecimento legítimo e autorizado como disciplina encontramos presente a
preocupação com a avaliação daquilo que era produzido antes do contexto da Primeira
República. Nessa conjuntura da agremiação existia grande interesse pelo estabelecimento e pelo
aperfeiçoamento do método crítico junto ao trabalho do historiador - a condição para uma
avaliação dita correta do passado.959 Suspeitava-se que esse recurso, próprio do métier dos
historiadores, estava sendo utilizado de maneira incipiente ou que nem mesmo estivesse sendo
acionado com os devidos cuidados nas narrativas históricas disponíveis na agremiação carioca
956
PEIXOTO, Discurso... op. cit., p. 504.
957
ALBUQUERQUE, Discurso... op. cit., p. 461.
958
BELARMINO, Discurso... op. cit., p. 286.
959
Em linhas gerais, o método crítico parte desta condição epistemológica: o “(...) objetivo dessa forma de
raciocínio era se afastar de todo e qualquer sistema que pressuponha a existência de verdades absolutas. Em
contrapartida, instaura-se um sistema hipotético em função do qual os raciocínios que almejam atingir a condição
de verdadeiros são obrigados a expor a validade e a verificabilidade de seus próprios parâmetros”. ARAÚJO,
André de Melo. A verdade da crítica: o método histórico-crítico de August Ludwig (von) Schlözer e o padrão
histórico dos juízos. História da Historiografia, Outo Preto, n. 18, 2015, p. 94. Disponível em:
https://cutt.ly/1cLcNIT Acesso: 08 abr. 2021.
300
e fora dela.960 Diante desse cenário, Maria da Glória de Oliveira explica a importância do
método crítico para o historiador:
Essa demanda colocada aos sócios do Instituto Histórico, vista pelo ângulo da
disciplinarização da história, apontava para a necessidade da consolidação das bases identitárias
para uma prática específica diante de outras iniciativas também preocupadas com a história do
país. Em um universo intelectual dominado pela figura do polígrafo estabelecer critérios básicos
para a prática servia para distanciá-la da imagem do amadorismo ou da cronística. Isso não
significava uma recusa total do material produzido fora daquela comunidade de historiadores,
porém a sua revisão e a sua amplificação se faziam necessárias no Instituto. Temístocles Cezar
sinaliza que a missão dos sócios desde a fundação confunde-se com a tarefa de “desconstruir a
lógica que perpetua um conhecimento incorreto do passado brasileiro, depurando esses
trabalhos de algumas de suas manchas, nem que para isso seja necessário, eventualmente,
rejeitá-los do campo histórico”.962 Mesmo que o material empírico e a prática erudita estivessem
em dúvida naquele contexto historiográfico, apontamos para a formação de uma tradição
erudita no IHGB, entendida através da ideia de regime historiográfico metódico, pautado no
“gosto pelo arquivo”, na expressão pertinente utilizada por Angela de Castro Gomes.
Em primeiro lugar deve-se perguntar, pois, pelo arquivo, condição primeira para a
operação historiográfica. Manoel Luiz Salgado Guimarães admite que a reflexão sobre os
arquivos, lugares indispensáveis para o desenvolvimento da atividade dos historiadores, pode
ser pensada a partir da sua historicidade, quer dizer, “reconhecendo o seu lugar como artefato
e construção histórica, cuja arqueologia é parte do entendimento dos processos que configuram
formas e possibilidades de escrita da história”.963 Em Evidência da História, o historiador
francês François Hartog também refletiu sobre a problemática dos arquivos, apontando que
960
É desta forma que Rebeca Gontijo assinala um revival da erudição e da crítica histórica na Primeira República,
dando possibilidade, inclusive, para uma agenda de pesquisa: “Supostamente, a busca de documentos e os esforços
para ampliar o acesso aos mesmos, ao lado das reflexões sobre a natureza e o uso das fontes no estudo histórico;
sobre os métodos de análise; os problemas da narrativa e da interpretação, constituíram uma espécie de agenda de
discussão sobre a pesquisa e a escrita da história”. GONTIJO, Historiografia e ensino... op. cit., p.4.
961
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Do testemunho à prova documentária: o momento do arquivo em Capistrano
de Abreu. In: SALGADO, Manoel (org.). Estudos sobre a Escrita da História. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p.
233.
962
CEZAR, Temístocles. Lições sobre a escrita da história: as primeiras escolhas do IHGB. In: PEREIRA DAS
NEVES, Lucia. M. B; GUIMARÃES, Lucia. M. P; GONÇALVES, Márcia; GONTIJO, Rebeca (orgs.). Estudos
de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 98.
963
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. História e erudição. In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena
Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio
de Janeiro: FGV, 2011, p. 44.
301
independente da sua natureza, podendo ser voluntários ou involuntários, imagéticos ou feitos
de transcrições e de gravações, passando por materiais institucionais e intelectuais, eles se
apresentam como objetos para uma análise historiográfica. Em suas palavras: “os arquivos, com
letra maiúscula e sem ela, podem conhecer também seu momento historiográfico e seu
movimento reflexivo (...)”.964 A importância atribuída aos arquivos está, nesse sentido, para
além deles apontarem para um conjunto de verdades reificadas ou apresentarem-se como os
repositórios empíricos provedores da prova documental inconteste, mas por iluminarem as
perspectivas do historiador a partir das formas próprias e específicas, portanto, dotadas de
historicidade, de reunião e de coleta dos indícios da passadidade do passado, o que diz muito
sobre a história que se quer, e que se pode, praticar e escrever.965 Elaborar um arquivo já é,
portanto, uma forma de evidenciar a escrita da história que se deseja.
O acesso à fonte documental, a possibilidade de adentrar ao momento do arquivo,
expressa uma preocupação que acompanhou a escrita da história disciplinada no século XIX.
Sem documentação, indícios de realidades passadas, não havia história. Pilar da ciência
histórica. Guimarães foi preciso nesse ponto, pois esse movimento instaura uma mudança na
legitimação do relato que se quer verdadeiro, passando das formas clássicas do “eu vi”, da
autopsia, para a erudição arquivística e bibliográfica do “eu li”. Para tanto os arquivos são de
suma importância como fonte de legibilidade do passado. Assim,
Apenas quando realizada essa etapa do trabalho intelectivo, ativa e interpretativa, se supõe que
certos fatos do passado possam ser creditados como verdadeiros.
Maria da Glória de Oliveira ressalta, tendo em vista o exposto, que as virtudes e as
habilidades inscritas nas tarefas de leitura, de estabelecimento e de edição de fontes,
correspondem ao gesto inaugural das formas de operação historiográfica, segundo a conhecida
proposição de Michel de Certeau. Nessa operação solicita-se o
964
HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2013, p. 238.
965
Taise Tatiana Quadros da Silva tem uma definição de arquivo próxima do nosso entendimento: “O arquivo,
assim, não é considerado como um espaço neutro, mas como um lugar de poder, onde o sentido do que merece ser
arquivado, foi anteriormente definido segundo interesses e concepções que sustentaram e legitimaram o
‘arquivável’, construindo-o”. SILVA, Taise Tatiana Quadros. Transgredir a ordem do arquivo. História da
Historiografia, n. 8, 2012, p. 198. Disponível em: https://cutt.ly/gcZxP3T Acesso: 08 abr. 2021.
966
GUIMARÃES, História... op. cit., p. 51.
302
alterava-se, enfim, o estatuto de certos textos com o objetivo de configurá-la
em uma coleção documental.967
967
OLIVEIRA, Do testemunho... op. cit., p. 217.
968
GUIMARÃES, História... op. cit., p. 45.
969
Fabiana Dias argumenta que Rodrigo de Souza da Silva Pontes “(...) possivelmente inspira-se em um texto de
autoria do Cônego Januário da Cunha Barbosa, publicado no primeiro número da Revista, com o título:
‘Lembrança do que devem procurar nas províncias os sócios do Instituto Histórico Brasileiro, para remeterem a
sociedade central do Rio de Janeiro’. O ensaio metodológico, assinado pelo Secretário Perpétuo, pretende orientar
a consecução de um exaustivo levantamento de informações que servem de suporte ao grandioso empreendimento
da História Geral”. DIAS, Fabiana. Por entre legados e demandas: um estudo sobre os programas históricos
apresentados no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-graduação em História, UERJ, 2009, p. 56. Disponível em:
http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UERJ_f6bc63a26b3bdba0faa707777e75181c Acesso: 04 dez. 2020.
970
PONTES, Rodrigo de Souza da Silva. Quais os meios de que se deve lançar mão para obter o maior número
303
O que esse parecer de fundação da moderna disciplina história no Brasil revela é a
consciência de que para se escrever história necessita-se indiscutivelmente recorrer a um
arquivo. O processo de escrita passa a estar submetido a sua existência, e a sua existência
responde a demanda por uma escrita metódica da história. Mas esse tipo de raciocínio
epistêmico não é evidente, posto que o historiador se torna, igualmente, um arquivista em
muitos dos casos devido à insuficiência de materiais organizados.971 Nessas situações, o
processo de arquivamento, que se opera a partir de uma série de procedimentos metódicos e de
virtudes epistêmicas subjacentes, já é um primeiro gesto intelectivo, até mesmo hermenêutico,
próprio da atividade do historiador. O sócio enfatiza que é uma tarefa intelectiva útil ao IHGB
compulsar, conseguindo ordem para tanto, arquivos particulares, casas religiosas e arquivos
públicos. A importância do arquivo, e das suas fontes, passa a ser patente em suas palavras;
condição mesma para o exercício de um conhecimento que almeja certificação junto ao plano
da experiência: “O primeiro passo portanto que deve dar o Instituto é solicitar o consentimento
dos que nos podem fazer patentes os cofres preciosos, onde se encerram tantos documentos da
maior importância para a História e para Geografia da nossa terra natal”. 972 Além disso, essa
primeira operação de ida ao arquivo por parte do Instituto Histórico demanda até mesmo uma
comissão própria para a realização do trabalho de higienização, de procedência, de
inventariamento, de seleção e de organização do material; de criação de tipologias de
identificação de temas, de prevenção contra cópias de documentos falsos ou fidedignos, ou seja,
todas aquelas habilidades eruditas, e até mesmo antiquárias, com as quais o historiador iniciava
o seu estudo sobre o passado. Segundo Rodrigo Pontes,
possível de documentos relativos à história e geografia do Brasil? RIHGB, tomo III, 1841, p. 149.
971
A criação do IHGB, do Arquivo Nacional e do Colégio Pedro II apresenta-se como uma maneira de enfrentar
essa problemática. Assim, a “vitória da cultura histórica oitocentista, que ao interesse erudito pelas coisas do
passado busca conferir um sentido presente ao esforço de reflexão sobre o passado, viabilizou a criação de
diferentes formas institucionais capazes de pôr em marcha o projeto de uma história, que ao mesmo tempo que
apropriando-se da tradição e dos métodos da pesquisa erudita, busca submetê-la agora às exigências de uma cultura
histórica modificada. Segundo esta, o estudo dos eventos pretéritos estaria definitivamente submetido às regras da
ciência”. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Para reescrever o passado como história o IHGB e a Sociedade
do Antiquários do Norte. In: HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antonio A. Passos (orgs.) Ciência, civilização e Império
nos trópicos. Rio de Janeiro: Access. 2001, p. 1.
972
PONTES, Quais os meios... op. cit., p. 150.
973
Idem, p. 150.
304
Manoel Luiz Salgado Guimarães diz algumas palavras sobre a preocupação daqueles
primeiros fundadores do IHGB junto ao estabelecimento de uma tradição de estudos que se
dedicava ao levantamento, ao exame e à análise das fontes possíveis para a escrita da história
do Brasil. Procedimentos que podiam ser observados através da prática historiográfica do sócio
da instituição Francisco Adolfo de Varnhagen:
No texto de fundação escrito por Rodrigo Pontes também são indicados outros tipos de
fontes que o historiadores, e aqueles interessados na geografia do Brasil, devem recorrer, o que
implica, invariavelmente, na ampliação da própria noção de arquivo, de fonte histórica e de
prova documentária, e mesmo de erudição enquanto conhecimento gerador de problemas acerca
de assuntos de ordem diversificada.975 Em primeiro lugar, as fontes cartográficas, os mapas, são
indispensáveis para situar um evento no tempo, para corrigir a sua localização, para ampliar a
visão do leitor de história acerca da espacialidade da nação. O recolhimento dos mapas, tomados
como fontes, também implica em um trabalho crítico sobre eles, identificando a sua autoria, o
material utilizado, o seu contexto de confecção e a sua autenticidade. Se como quer Ricoeur, a
escrita da história é realizada de ponta a ponta, da ida ao arquivo até o momento da transposição
investigativa para um suporte narrativo propriamente dito, o primeiro passo da operação
historiográfica, podemos dizer que esse momento analítico torna o historiador um perito,976
alguém com sensibilidade de arquivo e portador de um saber apropriado para a realização de
uma prática, sendo capaz de ser reconhecido por suas habilidades. Obviamente que essa ação
implícita na escrita da história se corresponde com o social.
O programa estabelecido por Pontes também prevê a realização de viagens filosóficas977
que servem, pois, como uma maneira de aquisição de fontes para a escrita da história do Brasil.
974
GUIMÃRES, A disputa... op. cit., p. 110.
975
Manoel Luiz Salgado Guimarães é claro quanto a este assunto: “Para lidar com uma massa de material que não
encontra sua decifração nos textos clássicos da tradição humanista ocidental é preciso o recurso a novas
metodologias de trabalho que familiarizem o pesquisador do passado com os conhecimentos de geologia, de
botânica, de paleontologia, de lidar com questões cruciais, sobretudo relativas ao problema da cronologia,
procedimento indispensável para uma reflexão sobre o passado destas sociedades humanas em questão, cuja
origem remontaria a tempos muito recuados em relação à cronologia estabelecida para dar conta da história
universal”. GUIMARÃES, Nação... op. cit., p. 6.
976
Para Paul Ricoeur, a “disparidade dos materiais que povoam os arquivos é de fato imensa. Seu domínio reclama
técnicas eruditas, ou mesmo a práticas de disciplinas auxiliares precisas e a consulta de guias diversos para reunir
os documentos necessários à investigação. O historiador profissional é aquele que tem sempre em mente a
pergunta: ‘como posso saber o que vou dizer?’. Essa disposição de espírito define a história como ‘investigação’,
segundo a etimologia grega da palavra”. RICOEUR, História/epistemologia... op. cit., p. 181.
977
Cf. FERREIRA, Ciência nômade... op. cit., 2006.
305
Além disso, os próprios relatos de viagem servem como obras de história e como fontes, haja
vista que o seu enunciante era portador do saber originado da visão, esteve em tal lugar e foi
testemunha de algo; o modelo antigo da autópsia permanecia, como vimos, como forma de dar
inteligibilidade às coisas na historiografia moderna. O testemunho da visão é fonte importante
para o historiador nesse programa de 1840, um dos primeiros colocados em discussão nos salões
do Instituto Histórico:
Pontes tem motivos para a prescrição desses cuidados por parte do historiador, pois para
ele as narrativas históricas escritas por nossos primeiros cronistas e historiadores entram em
contradição geográfica em relação ao passado brasileiro, como na localização e na
caracterização de pequenas comunidades. A presença do viajante dissipa o certame, sendo ele
uma espécie de juiz.979 O seu discurso do método se estrutura desta maneira:
Não tomo sobre mim a solução destas questões, que na verdade apenas podem
ser decididas sendo estudadas nos lugares onde os acontecimentos passaram,
estudados esses mesmos lugares, determinada a sua extensão e a sua posição
geográfica, ouvidas e averiguadas as tradições, e examinados documentos,
uma boa parte dos quais será difícil de examinar fora das mãos de seus
possuidores, pois que consistem em títulos de propriedade.980
Para que o historiador certifique o seu saber, habilidades críticas são prescritas: caso
haja dúvidas sobre os fatos é necessário estar presente nos lugares onde estes emergem; após
esse exame primeiro passa-se ao estudo do referido fato inserido em uma configuração espacial
que demanda estudo próprio; depois se recolhe o máximo possível de informações por meio
das tradições, todo o relato que pode informar algo, desde que perpassado pelo crivo crítico,
sobre o fato em questão. Somente após todas essas práticas se começa a examinar
metodicamente a documentação que corroborava os fatos.
978
PONTES, Quais os meios... op. cit., p. 151.
979
Manoel Luiz Salgado Guimarães mais uma vez é esclarecedor: “O olhar assegura então a possibilidade da
prova, em todos os sentidos fundamental para o trabalho de narrativa do passado e construção política da nação
no presente do século XIX. O deslocamento no espaço, sobretudo para regiões do Império do Brasil brasileiro,
viabilizaria também uma experiência de natureza temporal, a constatação de temos sociais diversos coexistindo
num mesmo espaço que se deseja agora unitário: o território da nação”. GUIMARÃES, A cultura histórica
oitocentista... op. cit., p. 112.
980
PONTES, Quais os meios... op. cit., p. 154.
306
Importante compreendermos, nesse sentido, a concepção de história inscrita nesse texto
fundador. Relevante por estar registrada em um dos primeiros programas discutidos pela
instituição, e por reafirmar os pressupostos previstos pelos seus primeiros estatutos. Para ele, a
história como conhecimento não pode se restringir aos fatos e aos acontecimentos políticos da
nação. Todas as realizações humanas podem ser estudadas no que ele diz ser as “variações e
alternativas porque sucessivamente passa o espírito humano”.981 Arremata dizendo que os seus
horizontes de estudos possuem a mesma amplidão das ciências e das artes, o que implica,
também, em uma profusão de fontes possíveis para o historiador. Os argumentos de Pontes
enfatizam que essa concepção de história deve ser operacionalizada por uma equipe de
pesquisadores, em um trabalho coletivo que deve ser movimentado por aqueles sócios. Esses
estudiosos conduzem a pesquisa aos arquivos munidos de inquéritos que direcionam aquilo que
deve ser investigado, bem como arquivado, como interessante à história brasileira.
Mais de setenta anos após a discussão sobre o papel das fontes, da crítica e dos arquivos
ter sido contemplada no IHGB através do programa histórico desenvolvido por Rodrigo de
Souza da Silva Pontes, o renomado historiador e diplomata pernambucano Manuel de Oliveira
Lima recolocou a questão, agora no contexto da Primeira República, a partir de uma conferência
na agremiação com o título de Atual papel do Instituto Histórico, proferida em 1913. A
discussão sobre “a guarda, conservação, e divulgação dos arquivos brasileiros” surge para
Oliveira Lima em razão do Congresso Internacional de Ciências Históricas, em Londres. Ele
foi convocado pela organização do evento para discorrer sobre esse tema tendo como foco o
Brasil.982 Assim, o estudioso reconhece a atuação do Instituto Histórico junto ao
estabelecimento dos arquivos:
Vê-se, por meio da demanda colocada à Lima e a partir da sua percepção quanto ao caso do
IHGB, que entre a comunidade de historiadores brasileiros havia a preocupação com a parte
técnica da pesquisa, aquela que transformava o material investigativo em fonte histórica. Esse
vaticínio não apagava a performance da matriz romântico-historicista. Pelo contrário: a ideia
981
Idem, p. 154.
982
LIMA, Manuel de Oliveira. Atual papel do Instituto Histórico. RIHGB, tomo LXXVI, parte II, 1913, p. 485.
983
Idem, p. 485.
307
de história moderna demandava a atualização das pesquisas visando o aprimoramento dos
relatos históricos, vistos como versões, o que implicava, logo, na sofisticação da dúvida
metódica e no aprimoramento da crítica. É em razão dessa concepção de história que se pode
falar de uma tradição erudita entre o Império e a República.984 Lima confirma o argumento:
É de esperar que o zelo do Instituto não fraqueje nesse ponto, antes se firme e
redobre. É preferível que na Revista sobrelevem os documentos aos ensaios;
nós carecemos mais de preparar o material, reunindo o muito que anda
disperso, do que urge aproveitá-lo. O Instituto prestará ainda inestimável
serviço arrecadando arquivos particulares (...), e sua atividade neste ponto
deve estender-se até além das fronteiras nacionais.985
É verdade que o nacionalismo de Oliveira Lima tornava o seu olhar enviesado sobre a
elaboração dos arquivos brasileiros. Além disso, há a pergunta: qual identidade nacional ele se
refere? De todo modo, era essa a motivação nacional-patriótica que levava aqueles sujeitos a
continuarem o trabalho da crítica-erudita na Primeira República.
984
Pedro Afonso Cristovão dos Santos admite que há uma tradição erudita no Brasil que perfaz o século XIX e
início do século XX, corroborando com a nossa análise: “Pode-se ainda afirmar que a geração do final do século
XIX, e início do século XX, foi continuadora das práticas eruditas da geração que lhe antecedeu. A edição de
documentos históricos, a produção de pesquisas voltadas à resolução de questões particulares, factuais, da história
do Brasil, ocupou-lhes consideravelmente”. SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos. A erudição histórica na
historiografia brasileira: uma análise da memória acerca da historiografia oitocentista. Anais do XXVI simpósio
nacional de história - ANPUH-SP. São Paulo: USP, 2011, p. 14. Disponível em: https://cutt.ly/rcZju1o Acesso:
08 abr. 2021.
985
LIMA, Atual... op. cit., p. 486.
986
Idem, p. 491.
308
O destino de Sísifo: a retórica das lacunas da história
Mesmo com todos os esforços metódicos e com todos os avanços da crítica histórica,
Olegário Herculano de Aquino e Castro admitiu, em 1896, que a história geral e completa do
Brasil ainda não estava feita. Muito se escreveu sobre o Brasil, mas uma obra que satisfizesse
todas as condicionantes exigidas para a perfeita história de um país, como era o nosso caso,
grande em extensão territorial e ainda maior em suas “antigas e gloriosas tradições”, só em um
futuro distante podia ser realizada.987 Era uma história única que se desejava. Essa forma de
história silenciava uma pluralidade de histórias concorrentes, como as dos indígenas e as dos
descendentes de africanos. O IHGB continuava, para Olegário Herculano, a sua tradição:
organização e preparo dos indispensáveis materiais para essa futura história geral do Brasil.
Reunia e metodizava os inúmeros e interessantes documentos que se achavam dispersos e
esquecidos: “instruída e afirmada é a bela e gloriosa história que ainda há de ser escrita em
honra da pátria”.988 Devia-se levar em consideração, através do trabalho de exposição de fatos,
de apreciação dos caracteres formativos da nação, de análise das instituições sociais
metodicamente conduzida e de tudo o que dizia respeito à vida social do país, que havia
incorreções e grandes lacunas na história brasileira que só o amadurecido e o meditado estudo
erudito e a judiciosa crítica podiam preencher. A história é, assim, uma espécie de “espelho que
fielmente reflete a imagem dos homens e das coisas”, tanto de longe como de perto; de modo
que a reprodução dos fatos, dos vultos, dos traços, a vista de conjunto, obedece, em tese, “a
rigorosa e nua verdade em quadros vivos e animados”.989 Por isso o aperfeiçoamento da crítica.
Para o sócio correspondente Martim Francisco Ribeiro de Andrada, o IHGB guarda as
mesmas feições da sua origem990, com as suas respectivas virtudes epistêmicas e proposições
987
CASTRO, Alocução do presidente... p. 348. Rebeca Gontijo e Marcelo de Souza Magalhães admitem que esse
veto à uma história do tempo presente é elaborado ainda no século XIX. Conforme a posição dos estudiosos, desde
o “século XIX, a escolha dos acontecimentos do presente a registrar podia ser vista como um ato capaz de levar à
produção de uma obra imperfeita, porque submetida ao juízo de valor daquele que seleciona e exclui os fatos da
história”. GONTIJO, Rebeca; MAGALHÃES, Marcelo de Souza. O presente como problema historiográfico na
Primeira República em dois manuais escolares. Revista história hoje, v. 2, n. 4, 2013, p. 85. Disponível em:
https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/91 Acesso: 08 abr. 2021. Já Maria da Glória de Oliveira, a partir do caso
Capistrano de Abreu, complementa o argumento: “Aqui, pode-se atribuir à consciência moderna do tempo, que se
expressa na referência ao ‘período novo’, a percepção da diferença entre o tempo vivido e o porvir, entre uma
experiência precedente e a expectativa de futuro. Paradoxalmente, a consciência desse tempo novo impõe
interdições à sua imediata elaboração historiográfica ou, como sugere Capistrano, acerca dessa época recente,
ainda em curso, só seria possível a escrita da sua história no futuro”. OLIVEIRA, Crítica... op. cit., 61.
988
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXII, parte II, 1899, p. 411.
989
Idem, p. 411-12.
990
Para uma análise das demandas epistemológicas, conceituais e políticas inscritas nas origens do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro ver GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no Brasil –
1838-1857. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2011. Se tem em mente que essa tradição reivindicada pelo IHGB na
Primeira República é eletiva: “Falar em termos de tradição eletiva ou seletiva é também falar em formas de uso
309
conceituais que são decorrentes de um trabalho de “autoridade científico-literária”. O seu
passado é a sua atualidade na opinião desse sócio. Eis algumas virtudes cultivadas no Instituto
Histórico no que diz respeito à produção de conhecimento: suposta solidez na sua índole, não
se abrindo às conveniências e às mentiras da política e do voto, e o “seu ambiente é o da
serenidade das convicções refletidas”. Com trabalho paciente e objetividade se origina, através
da sua consagrada Revista, uma “enciclopédia da história nacional”, em que qualquer brasileiro
ou brasileira pode pesquisar os interesses da pátria no duplo aspecto (in)formativo: de conhecer
algo como de se formar como sujeito histórico.991
Na alocução presidencial de 1902, Olegário Herculano reforça que para a realização de
um trabalho historiográfico da envergadura ambicionada pelo IHGB, de uma escrita da história
para o país, mal basta a vida de um só homem, uma associação ou mesmo a boa vontade de
toda uma geração. A história do Brasil é, conforme quer o presidente da agremiação carioca,
uma “obra vasta e profunda”, demanda muito estudo, muita reflexão e muita diligência, além
de largo tempo e recursos materiais que ainda, mesmo com os empenhos das gerações
antecedentes, faltavam. As coleções impressas ou o acervo de documentos originais, que todos
ou quase todos os países possuíam arquivados, ainda estavam em falta nos depósitos da
agremiação, impedindo o trabalho da crítica. Além disso, documentos avulsos e esparsos
coligidos através de obras escritas em tempos remotos também mal podiam ser tomados pelo
esteio crítico em razão da sua imperfeição ou por acharem-se confundidos com diplomas ou
títulos sem autenticidade. Eles não podiam aceitos como autoridades seguras e legítimas.992
Essas e outras dificuldades, consideradas difíceis de serem superadas, fazem com que
aquele que se propõe a escrever a história da nação tenha que se “sepultar”, “com exclusiva
aplicação de sua atividade”, nos arquivos públicos e nas bibliotecas para descobrir “entre
milhares de papeis e documentos, muitas vezes indecifráveis, aquele que possa satisfazer o seu
intento”. Assim, há de indagar, pois, os monumentos no estrangeiro, avivar inscrições,
investigar cartórios públicos e os registros das capitais, cidades, vilas, municípios, igrejas e
mosteiros; há de ser paleógrafo, antiquário, viajante, bibliografo, tudo, “enfim, quanto possa
do passado; uso público e, portanto, político da história”. NICOLAZZI, Fernando. História da historiografia e
temporalidade: notas sobre tradição e inovação na história intelectual. Almanack [online], n. 7, 2014, p. 7.
Disponível em: https://cutt.ly/Jv30Aww Acesso: 08 abr. 2021.
991
ANDRADA, Discurso... op. cit., p. 384.
992
Para a resolução desse problema se faz um apelo, político e intelectual, ao trabalho conjunto e em equipe, no
Império e na República. Entre os primeiros sócios do Instituto “a exortação ao trabalho de equipe se impõe como
a única via possível para se fazer a história. Esse grupo de pesquisa não deve se restringir aos habitantes da Corte.
A elite provincial é convocada a coletar fonte, ou, segundo a metáfora biológica de Cunha Barbosa (1839), a
fornecer ‘os membros ao corpo para uma história geral e filosófica do Brasil”. CEZAR, Lições... op. cit., p. 99.
310
fazer a luz no caos da incerteza, e descortinar a verdade entre as sombras do tempo condensadas
pela ignorância e pelo indiferentismo”.993
Norival Soares de Freitas argumenta, em 1908, que a busca por fontes ainda é o grande
desafio colocado aos sócios do IHGB, não sendo suficiente o material até então recolhido pela
Revista, que muitos julgam seguros. E a recolha desses documentos não fica circunscrita aos
arquivos nacionais e de Portugal. História, para Norival Freitas, se faz com documentos, deles
advém o caráter identitário da disciplina: “(...) pensam assim todos os que cultivam esse ramo
intelectual e as encareceram, por gosto aos cantos dos arquivos, a decifrar alfarrábios que se
esfarelam”.994 Para o verdadeiro conhecimento da formação brasileira o acesso aos documentos
e aos arquivos estrangeiros era imprescindível, dado que ela não se restringia a um movimento
somente interno. Dessa falta de lastro documental para a escrita da história brasileira surgiam
trabalhos como os de Capistrano de Abreu com as suas anotações à História Geral de
Varnhagen. Se a história do Visconde de Porto Seguro estava incompleta, mesmo com todas as
virtudes epistêmicas e habilidades que mobilizou em sua prática, com todo o seu poder de
descrição e o seu trabalho de crítica atento a originais e a cópias de documentos, o que dizer
das novas iniciativas de pesquisa que ignoravam ou estavam distanciadas dos arquivos, do
repositório empírico que ainda fazia da prática historiográfica um constante trabalho de
correção e de fechamento de lacunas?995
Assim sendo, vê-se que um dos lugares comuns nas falas dos sócios é que a fonte
histórica, ou que os documentos em si, é responsável por desvelar uma realidade qualquer, ou
dar a vida ao passado, ou ainda por tornar o passado vivo. O que não significa uma abordagem
em que o material documental torna o passado onipresente. Isso pode ser visto nesta imagem
epistêmica criada por João Mendes de Almeida Júnior: “O Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, senhores, servir-me de uma analogia de Cujacio, é o anzol de ouro para pescar nas
profundezas de nossos arquivos os monumentos e trazer à luz os exemplos de virtudes, de
993
CASTRO, Alocução do presidente... op. cit., p. 540.
994
FREITAS, Norival Soares de. Discurso de Posse. RIHGB, tomo 71, parte II, 1908, p. 566.
995
Vitor Claret Batalhone Júnior consegue circunscrever esse contexto epistêmico de reavaliação da crítica erudita
através do trabalho de Capistrano de Abreu na anotação da História geral do Brasil, de Varnhagen. Segundo o
historiador: “(...) para Capistrano, fechar as ‘lacunas’ documentais da ‘História Pátria’ seria um momento decisivo
na constituição não somente da historiografia e da disciplina da história do Brasil, mas também na constituição da
história nacional enquanto arcabouço de experiências e tradições que conformariam a identidade nacional
brasileira. Destarte, rastrear, coligir, avaliar, estabelecer processos de crítica documental e de edição de
documentos históricos eram estágios fundamentais não somente à formação e à consolidação de uma disciplina,
mas também à construção de uma identidade nacional. JÚNIOR, Vitor Claret Batalhone. Conformando o discurso
sobre a História Pátria: Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia entre notas e prefácios. Anais do XXVI Simpósio
Nacional de História – ANPUH. São Paulo: USP, 2011, p. 2. Disponível em: https://cutt.ly/acLVzpK Acesso: 08
abr. 2021.
311
patriotismo e de sabedoria dos nossos antepassados”.996 Essa realidade acessada pelas fontes
era colocada em modo de anterioridade através da limitadora e excludente da noção de pátria
brasileira, derivada do singular coletivo.
Então, temos sócios afirmando que no contexto historiográfico da Primeira República
havia ainda muita coisa por ser pesquisada. Mesmo após mais de cinco décadas desde a sua
fundação a pesquisa histórica no Brasil não era tomada de maneira definitiva através dos
estudos já realizados. Se requeria precisão e diligência nos estudos históricos e geográficos
brasileiros, além de fatos históricos como adjetivos e não como substantivos:
Há ainda no Brasil muita coisa que não se conhece, no que se conhece por
informações vagas, às vezes incompletas; fatos sobre os quais ainda não se fez
observação alguma, não submetidos ao critério dos contemporâneos, e,
todavia, quanto não lucrariam a Geografia e a História se pudéssemos guardar
na Biblioteca do Instituto as provas de visu a respeito da primeira e os
conceitos filosóficos a respeito da segunda?
O Pe. Belarmino acredita que a história, a partir da tradição de pesquisa erudita existente
na comunidade do IHGB, está relativamente organizada. No entanto, deve-se avançar e fazer
movimentar o regime historiográfico metódico. A história enquanto conhecimento deve, para
o prelado, ser constantemente corrigida. É a própria ideia de história na modernidade, em que
se deseja a atualização progressiva da pesquisa em busca da complexificação da interpretação
dos fatos históricos.997 Para ele, desde a conjuntura epistêmica historicista, o fato histórico se
distância de perspectivas unitárias, ou miméticas, de interpretação. É um refazer continuado.
Isso faz com que a pesquisa saia, na República, de um estado experimental para um permanente,
“onde tudo deve ser correção, que não se fará sem darmos à crítica das coisas públicas, e por
conseguinte da história pátria, novos métodos pelo seu lado analítico, prático e verdadeiro”.998
A tradição erudita do IHGB, destacada por meio da mobilização do regime
historiográfico metódico, tinha a sua performance assegurada na Primeira República. A tarefa
do historiador ainda necessitava do estabelecimento dos arquivos e da crítica dos fatos. Essa
preocupação é uma constante naquela matriz disciplinar: “A história do Brasil está cheia de
sucessos desordenados, escrita como se fora uma lenda sem aquele apoio dos conceitos que, na
narração dos acontecimentos, poderiam oferecer abundante cabedal de ensinamentos positivos
para uma completa reforma e segura orientação”.999 Vê-se que a tarefa crítico-metódica1000
996
JUNIOR, Discurso... op. cit., p. 221.
997
Cf. KOSELLECK, Historia Magistra Vitae... op. cit., 2006.
998
BELARMINO, Discurso... op. cit., p. 287.
999
Idem, p. 292.
1000
Assim, a crítica trata-se realmente de uma regra comum entre os historiadores, conforme abordado por Antoine
Prost. De todo modo, “(...) seja qual for seu objeto, a crítica não é um trabalho de principiante, como fica
demonstrado pelas dificuldades dos estudantes às voltas com a interpretação de um texto. É necessário ser já
312
abria margem para a instauração de uma narrativa segura, conceitual e que ensinava. A
dimensão metódica da pesquisa, atravessada pela dúvida, era o passo crucial para a realização
do fazer historiográfico como um todo.
Capistrano de Abreu foi um dos autores que, nessa conjuntura epistêmica, se faz
reconhecido enquanto historiador, dentre outras coisas, em virtude da sua sensibilidade e do seu
conhecimento face à crítica histórica, o que imprimia foros de erudição a sua prática, a ponto
de torna-se o historiador ícone de uma geração, mesmo não mantendo vínculos tão aproximados
com o IHGB. Oliveira salienta que no seu plano historiográfico e na sua prática historiadora
estão presentes, antes de qualquer atividade relativa à escrita de uma história, o “mergulho na
massa documental, o estudo e a revisão cuidadosa das fontes citadas por seu principal
predecessor”, no caso a obra do Varnhagen. “A biblioteca e o arquivo tornavam-se, assim, o
território a partir do qual Capistrano projetava descobertas enquanto perscrutava lacunas e
imprecisões da história pátria”.1001
Os trabalhos de Capistrano de Abreu são, na passagem do século XIX para o XX,
sintomáticos das demandas colocadas à prática historiográfica, sobretudo, a partir das
exigências do regime historiográfico metódico. Entre elas encontramos a diligência na busca
por fontes originais, a prática do exame e da revisão de cópias, a comparação dos testemunhos,
a transcrição das fontes, que em muitos casos exige até mesmo um processo de tradução, enfim,
de edições críticas de relatos históricos; todos componentes daquilo que Paul Ricoeur identifica
como o momento do arquivo.1002 Eis a importância desse momento para a certificação do saber
histórico que se quer enunciar:
historiador para criticar um documento porque, no essencial, trata-se de confrontá-lo com tudo o que já se sabe a
respeito de assunto abordado, do lugar e do momento em questão; em determinado sentido, a crítica é a própria
história e ela se afina à medida que a história se aprofunda e se amplia”. PROST, Antoine. “Os fatos e a crítica
histórica”. In: _____. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2008, p. 57.
1001
OLIVEIRA, Do testemunho... op. cit., p. 217.
1002
Ricardo Benzaquen de Araújo avalia que é Capistrano de Abreu quem mais se empenha na busca da “verdade
moderna” em historiografia na passagem para o século XX. O “método crítico, tal como interpretado por
Capistrano, implica a adoção de três regras, simples, claras e sempre presentes na consciência do historiador: o
privilégio da testemunha visual, daquela que assistiu pessoalmente aos eventos que reporta ; a ênfase no caráter
lógico do relato das testemunhas, como se a ambiguidade fosse sinônimo de equívoco ou falsidade, e a coerência,
um pré-requisito para se acreditar na correspondência entre texto e realidade; e (...) a utilização do número e da
quantidade para dirimir dúvidas no caso de documento que, embora satisfazendo as suas exigências anteriores,
contivessem afirmações contraditórias”. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda noturna. Narrativa, crítica e
verdade em Capistrano de Abreu. Estudos históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 38. Disponível em:
https://cutt.ly/TcLvTEA Acesso: 08 abr. 2021.
1003
OLIVEIRA, Do testemunho... op. cit., p. 222.
313
O processo de construção do arquivo, com o seu necessário exercício metódico e de
erudição, colocava em circulação, entre a comunidade daqueles que buscavam o
reconhecimento enquanto historiadores, uma cadeia de operações de validação a que as fontes
históricas - todos os tipos de traços ou vestígios do passado - deviam se submeter para que
pudessem se transformar em prova documentária ou informação averiguada. Existia uma
consciência não homogênea, nem pautada em manuais definidores de normas, das qualidades
e das virtudes com as quais se devia tratar a fonte histórica, inscritas no que denominamos como
regime historiográfico metódico. Como ressalta Maria da Glória de Oliveira: “o arquivo já
carrega em si a marca da escrita, pois, nele, o historiador exerce o seu ofício, antes de tudo,
como um leitor de testemunhos”.1004 Dessa maneira, ainda de acordo com a autora, a leitura
conforma parte mesmo do “fazer” do historiador, abrindo condições para o que François Hartog
denomina de cultura do comentário e da análise. Ou seja, a partir do momento que o historiador
se porta como um leitor, consequentemente, o “método histórico pode ser definido, em última
instância, a partir de ‘algumas regras de leitura’”.1005
Se a intenção primeira do historiador disciplinado é relatar eventos do passado de forma
correta, com as credenciais de uma corporação de ofício que julga o seu trabalho como sendo
de um perito, com os princípios e os requisitos que passam a ser aceitos como pertinentes e
confiáveis no que tange a veracidade do registro elaborado, derivando daí, inclusive, a sua
figuração social, ele deve se atentar ao seu auditório e aos horizontes de leitura a que o seu
trabalho se direciona. Era esse leitor da história, e aqui estamos em uma comunidade de pares
de ofício, os próprios sócios do IHGB, que atestava a validade, a valoração epistêmica, a
credibilidade e a utilidade da história que se queria narrada. “É na leitura que a crença na história
– crença de que ela diz a verdade e que, portanto, oferece certa utilidade – se manifesta de forma
mais cabal”.1006 Essa comunidade de leitores do IHGB validava as regras, não de maneira
autoritária e homogênea, que eram passíveis de serem mobilizadas, e a maneira particular pela
qual elas devem ser praticadas.
Joaquim Nabuco avisa, em sua posse, que as suas incursões em história se relacionam
com dois planos justapostos: escrever a biografia do pai, o senador Nabuco de Araújo, e, por
outro lado, revelar aos estudiosos o corpus documental herdado. É um discurso do método que
está por trás do seu desejo de escrever sobre a vida do pai. Diante disso, Nabuco mobiliza as
1004
Idem, p. 218.
1005
Ibidem, p. 218.
1006
NICOLAZZI, Fernando. O historiador enquanto leitor: história da historiografia e leitura da história. História
da Historiografia, n. 13, dez. 2013, p. 69. Disponível em: https://cutt.ly/bcL6GJn Acesso: 08 abr. 2021.
314
ações básicas do movimento de ida ao arquivo, onde vemos uma noção plural de fontes,
característica basilar do regime historiográfico metódico:
Ele tinha o costume, desde jovem, de guardar tudo que lhe dizia respeito,
assim como a cópia de sua correspondência, e depois para os seus trabalhos
do ministério, do Senado, do Conselho de Estado, formara o que ele chamava
de pecúlio, grandes volumes em que reunia opúsculos, artigos de jornais,
cartas, manuscritos relativos a cada assunto da administração ou da política.
Tive assim para compulsar a respeito de sua vida e sua época um vasto
material acumulado durante perto de quarenta anos, mas a sua abundância de
documentos a respeito dele não me fez se não lastimar a perda de arquivos que
desapareceram de todo.1007
1007
NABUCO, Discurso... p 309.
1008
Henry Rousso traz uma definição de arquivo que contempla o ensejo de Joaquim Nabuco, bem como
argumenta sobre a maneira como se opera os primeiros movimentos de crítica das fontes diante desta concepção.
“(...) o ‘arquivo’ no sentido comum do termo, isto é, o documento conservado e depois exumado para fins de
comprovação, para estabelecer a materialidade de um ‘fato histórico’ ou de uma ação, não passa de um elemento
de informação entre outros. A dificuldade consiste então em distinguir as fontes - os vestígios - umas das outras,
a fim de determinar aquelas que permitem uma abordagem racional do passado. Isso implica uma escolha das
fontes mais pertinentes, não por elas mesmas, mas em função das perguntas que o observador se faz previamente”.
ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. Estudos históricos, Rio de Janeiro, n. 17, 1996, p. 86.
Disponível em: https://cutt.ly/0cZfnei Acesso: 08 abr. 2021.
1009
NABUCO, Discurso... p. 310.
315
Onde há resquícios, indícios, vestígios, evidências de atividade humana encontramos o
historiador transformando dados em informação. Pelas margens se constrói o todo. Não há, para
Nabuco, outra agremiação no país que não seja o IHGB o lugar mais propício para a execução
dessas operações cognitivas. Esse é um movimento de pensamento que luta contra a indiferença
para com a história da pátria, sendo uma obra necessária ao espírito público. Isto é, o momento
do arquivo é um ato da história socialmente desejado.
Eduardo Marques Peixoto considera que a história é feita com documentos. Ela é
metódica, em última medida, e se faz com fontes. De todo modo, ela é um verdadeiro
patrimônio, no sentido lato do termo, de pertencimento e de guarda das feições de uma
coletividade. Interessante notar que para o sócio a história é de utilidade pública: “(...) a nossa
história, tesouro da mais alta valia, que deve ser conhecida de todos e servir de ensinamento
àqueles que vão seguir a vida pública, se acha em grande parte soterrada nos nossos
arquivos”.1010 É uma história que aguarda por ser escrita e conhecida, e que pra isso necessita
do primeiro passo da operação historiográfica de “ida ao arquivo” para que se possa desvelar
criticamente dada realidade histórica pré-existente enquanto intuição.
O trabalho metódico oferece condições de possiblidade para se acessar vários estratos
da realidade histórica, abrindo espaço, inclusive, para o desvelamento, segundo Eduardo
Marques Peixoto, dos caminhos da civilização nos trópicos:
Por meio dessa história documentada e criticada os erros dos antepassados podiam ser
corrigidos e lições para o futuro podiam ser retiradas. Era o moderno, e unitário, conceito de
história atuando. É por isso, sendo um exemplo para o Brasil, que “as nações civilizadas
procuram cercar os seus documentos de todas as garantias e os tratam com verdadeiro
esmero”.1012 Outra passagem mostra o lugar das fontes para os metódicos à brasileira: “Amo as
velharias do meu país, como o poeta as manhãs formosas do mês de Maria, cantadas nos seus
belos alexandrinos”.1013 O documento era a garantia para o desvelamento do real, ele era parte
do real; o todo do real estava no próprio documento. Sem documento não havia história.
1010
PEIXOTO, Eduardo Marques. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXVI, parte II, 1903, p. 272.
1011
PEIXOTO, Discurso... op. cit., p. 272.
1012
Idem, p. 273.
1013
Ibidem, op. cit., p. 274.
316
Imprimir o metodismo era ampliar o estoque de realidade; era proporcionar ao sujeito histórico
a possibilidade dele se situar no tempo de forma segura.1014 Era inventar uma realidade que
podia, sim, legitimar projetos ideológicos.
Agenor de Roure se indaga e se coloca no lugar de um poeta que visita um arquivo.
É na fase do arquivo que se inicia toda a escrita. Ali já há trabalho metódico, visão de explicação
e a prefiguração de uma persona narrativa orientada por questões investigativas. O que o sócio
argumenta é que a história não é apenas escrita ou narrativa, mas um fazer cognitivamente
orientado. Há em suas normatizações um elogio ao momento do arquivo e como se o fazer
historiográfico no interior do regime historiográfico metódico. A passagem é longa, porém,
sintetiza o momento em que historiador passa a se relacionar com o arquivo em seu métier:
Se convidarmos qualquer poeta para uma visita aos arquivos, é muito provável
que tenhamos, como resposta, um olhar de comiseração, de quem tem pena do
pobre maluco. Os arquivos são sempre atirados para os porões das repartições,
para os cantinhos sem ar e sem luz, húmidos e feios. O seu segredo é
desabonar, é triste. Passar horas mil dentro, folheando papéis velhos e
amarelecidos, corroídos pela traça ou pelo cupim, cheirando mofo, não deve
ser realmente agradável para o poeta. Reflitam eles, porém, na circunstância
de que os tesouros e as riquezas jazem ocultos no seio da terra e no fundo do
mar. Descendo ao porão dos papéis velhos, mergulhando nos arquivos,
encontrarão os bardos uma fonte inesgotável de riqueza poética, sem se
afastarem da verdade.1015
1014
Essa atitude metódica pode ser considerada um horizonte epistêmico que se deseja. “En frase mil veces
repetida, estos autores defendieram que la historia se hacía con documentos. Significaba eso idolatrar la erudición?
Em realidad, defendían algo tan simples pero tan necessario como la contención del historiador, la obligación que
se impone de documentar sus enunciados, evitando así el atajo de la fantasia. Por oposición a lo ocurrido em épocas
anteriores, tandadas a la recreación fantasiosa, o frente a las especulaciones a que tan inclinados eran los filósofos
de la historia, el modesto historiador se ocupará ahora de lo concreto, de lo que pueda fundamentarse em el archivo,
de lo que tenga respaldo en fuentes. PONS, Anaclet; SERNA, Justo. Apologia de la historia metódica. Pasajes -
Revista de Pensamiento Contemporâneo, Universidad de València, n. 16, 2005, p. 135. Disponível em:
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5130251 Acesso: 08 abr. 2021.
1015
ROURE, Discurso... op. cit., p. 722.
317
historiador enquanto material propedêutico. Esses trabalhos podem servir, pois, de fonte de
consulta, fornecendo informações que, segundo esse sócio, “dão chave a certos enigmas, que
se despertam na História muito obscuros”.1016 Através do método crítico vê-se que a história
versa, em particular, sobre um ou mais indivíduos e, em âmbito geral, sobre a coletividade,
podendo assim dizer que a disciplina, partindo dos indivíduos ou das coletividades, se distende
até abranger a humanidade: “assim parte do infinitamente pequeno – o homem – para o
infinitamente grande – a Humanidade”.1017 Esse é o resultado daquilo que é infimamente
pequeno, o indício, alcançando o máximo do todo coletivo social. Um elogio, no limite, às
escalas da reconstrução do passado.
O conde de Afonso Celso, falando aos colegas presentes no IHGB sobre o caminho do
saber histórico do momento do arquivo à sua forma narrativa, recorre a uma metáfora bastante
usada pelos sócios na definição da operação que leva à produção do conhecimento histórico: a
da arquitetura, da história enquanto construção. O conde ressalta que em geral o público só tem
conhecimento dos arquitetos, ou seja, dos executores das narrativas históricas, porém não dos
seus obreiros, isto é, daqueles que realizam o exercício da ida ao arquivo e que promovem a
crítica erudito-documental: “Ninguém menciona o obreiro que carregou as pedras e as ajustou,
cimentou, ergueu, banhando-as tantas vezes, mais que de suor, de suas lágrimas e de seu
sangue”.1018 Teotônio Freire utiliza, nessa direção, a metáfora do “ciclope mineiro”1019 para
falar dos trabalhos desenvolvidos por Francisco Augusto Pereira da Silva:
(...) metido noite e dia nas entranhas da terra para extrair-lhe do seio os metais
preciosos ou as gemas que vão servir de ornamento e aumentar a opulência de
quantos, sabendo da vida apenas o lado prático, estimam gozá-la à custa do
esforço do terceiro.1020
1016
BORNAN, Discurso... op. cit., p. 763.
1017
Idem, p. 763.
1018
CELSO, Afonso. Discurso em razão da recepção do sócio Francisco Augusto Pereira da Silva. RIHGB, tomo
71, parte II, 1908, p. 514
1019
A metáfora da construção também está presente na historiografia francesa: “Os fatos são como as pedras
utilizadas para a construção civil, para a construção das paredes do edifício chamado ‘história’”. PROST, Doze...
op. cit., p. 54.
1020
FREIRE, Teotônio. Discurso em razão da recepção do sócio Francisco Augusto Pereira da Silva. RIHGB, tomo
71, parte II, 1908, p. 514.
318
leituras diversas desde que seja respeitado o seu conteúdo originário, é considerada um índice
de realidade histórica, um vestígio evidencial e tangível de uma experiência passada – a possível
prova para a construção de uma narrativa histórica.1021
Nesse sentido, o gesto de instrumentalização de leitura que Ribeiro de Andrada faz da
Revista do Instituto indica-nos características demandadas ao saber histórico nesse contexto
epistêmico: 1) metodização de noções generalizadas; 2) Perspectivismo: “subordinando-as a
pontos de vista que me eram simpáticos”; 3) Curiosidade; 4) Acompanhamento racional da
história nacional. O investigador pode se beneficiar, adverte o sócio, da RIHGB como fonte,
posto que o seu material respeita as etapas da operação historiográfica, na medida em que são
precedidas pelo momento do arquivo e pela crítica. Essa é a marca distintiva, em tese, dos
trabalhos saídos no periódico.
A depuração dos trabalhos das primeiras gerações do IHGB, a verificação das
informações por eles publicizadas e a avaliação da qualidade da crítica realizada traziam
consigo problemas epistemológicos: 1) qual a qualidade da crítica realizada?; 2) em que medida
as informações eram verdadeiras?; 3) o documento era a verdade em si ou uma abertura ao
real?; 4) como lidar com a imaginação do sujeito cognoscente?; 5) como as fontes eram
utilizadas enquanto artificio de prova por outros historiadores?1022 Desses problemas em si,
derivados da forma como os historiadores brasileiros trabalhavam o documento em sua prática,
emergiam virtudes epistêmicas que identificavam o seu ofício.
O general Dantas Barreto acredita que o mérito do Instituto pode ser aferido através das
gerações de homens de letras e de Estado que honram a pátria com exemplos de civismo e de
coragem. Para o general, a história estuda os sujeitos e os fatos, esclarece verdades, realça feitos
valorosos, “que o silêncio das eras muitas vezes oculta”.1023 Além disso, os sócios devem dar o
exemplo de buscar a narração da experiência histórica nacional com exatidão e com sinceridade,
porque naquela agremiação a “imaginação penetra sem compreender bem as relíquias do
passado (...)”.1024 Temos aqui, pois, uma tripla qualificação para a disciplina: 1) proporciona
1021
Fustel de Coulanges insiste, por seu turno, que “o melhor historiador é o que mais se atém aos textos” e adverte
que “a história não é uma arte, é uma ciência pura, como a Física ou a Geologia [...]. Ela visa unicamente encontrar
fatos, descobrir verdades”. Essa passagem é extraída de TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores.
Bauru: EDUSC, 2000, p. 93-94.
1022
Antoine Prost coloca nos devidos termos a dinâmica própria da crítica histórica: “Todos os métodos críticos
visam responder a questões simples: de onde vem o documento? Quem é seu autor? Como foi transmitido e
conservado? O autor é sincero? Terá razões, conscientes ou não, para deformar seu testemunho? Diz a verdade?
Sua posição permitir-lhe-ia dispor de informações fidedignas? Ou implicaria o uso de algum expediente? Essas
duas séries de questões são distintas: a crítica da sinceridade incide sobre as intenções, confessas ou não, do
testemunho, enquanto a crítica da exatidão refere-se à sua situação objetiva”. PROST, Doze... op. cit., p. 59.
1023
BARRETO, General Dantas. Discurso de posse. RIHGB, tomo 71, parte II, 1908, p. 530.
1024
Idem, p. 530.
319
aos cidadãos o reconhecimento afetivo de uma coletividade de origem e de destino; 2) ela, ao
estudar os homens e os fatos, tem o compromisso com a verdade, retirando episódios e situações
do esquecimento; 3) há a necessidade da objetividade. É interessante, nesse caso, que a crítica,
por mais que admita a surpresa das fontes, reforça a ideologia cívico-patriótica.
A crítica erudita, por meio da análise compulsiva dos documentos, etapa inicial para a
concretização de uma narrativa histórica, aparece como um problema de primeira importância
para o sócio Luiz Antônio Ferreira Gualberto. A questão da erudição traz consigo o
conhecimento pericial da fonte como suporte para o trabalho do historiador: “(...) por mais que
se diga que o estudo dos arquivos é uma preocupação estéril, ao alcance da mediana vulgar que
tenha um pouco de paciência e memória, não conheço função mais nobre e elevada”.1025
Problemas são suscitados no primeiro contato com o documento; trabalho preliminar para que
o historiador responda um inquérito: 1) qual a procedência das fontes?; 2) pode-se atribuir
autoria a ela?; 3) qual o conteúdo que o seu autor transmite?; 4) há sinceridade da sua parte?;
5) as informações legadas são involuntárias? Esse gesto crítico e propedêutico é condição,
segundo Gualberto, para que alguém realize o trabalho de historiador: “ninguém ainda
conquistou os foros de historiador sem esse trabalho preliminar de erudição que só poderá ser
adquirido pelo estudo dos documentos”.1026
O Instituto é o lugar, para o sócio em questão, onde os eruditos devem se reunir, sendo
responsável por cultivar essas virtudes epistêmicas, as quais passam a apresentar-se como uma
tarefa coletiva. A função crítica caminha em três direções complementares: 1) a pesquisa em
busca das fontes e dos arquivos; 2) a organização e a sua crítica; 3) além da sua divulgação. A
RIHGB tem como missão servir de estoque de fontes para as interpretações históricas.1027
Gualberto ressalta essa premissa básica para se cultivar a tarefa historiadora, bem como o lugar
de destaque do IHGB para esse tipo de atividade:
1025
GUALBERTO, Luiz Antonio Ferreira. Discurso de posse. RIHGB, tomo 71, parte II, 1908, p. 561.
1026
Idem, p. 561.
1027
Durval Muniz De Albuquerque Júnior deixa claro que ao adentrar o século XX “a produção histórica vai estar
convencida de que a exposição histórica guardava uma relação direta com a realidade, que era capaz de, através
do uso do documento, rever e expurgar da tradição tudo que é lendário, tudo que era mítico, tudo que não tinha
sustentação sem provas”. JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. Da história detalhe à história problema: o
erudito e o intelectual na elaboração e no ensino do saber histórico. Locus – Revista de História, vol. 10, n. 2,
2004, p. 58. Disponível em: https://cutt.ly/Zv321XZ Acesso: 08 abr. 2021.
320
nas páginas dos numerosos números da sua Revista farta mesmo de
documentos que facilitam de modo eficaz o trabalho do historiador.1028
O trabalho do IHGB é considerado, em termos de crítica erudita, como uma atividade que
examina os pormenores, sendo de difícil execução. Fala-se de “trabalho de abelhas”, no sentido
da recolha minuciosa de materiais por um centro que se quer especializado e que ampara
analiticamente a execução de toda e qualquer tipo de obra histórica. “Procurando reunir, por
intermédio do Instituto, material e informações, ele [o historiador] sentira a necessidade de
remover um dos escolhos que encontram ainda hoje os que se entregam a esses estudos: a
dispersão dos dados e das notícias”.1029 Como coloca em evidência Jonatas Serrano: de que
importa a minúcia? É certo que existem e são infinitas, que pouquíssimo ou nada valem para a
apreciação do fato ou para as sínteses. Mas não raro há nelas também características altamente
significativas, exponenciais e, por isso, controvertidas, torturantes da paciência investigativa;
sendo, então, indispensáveis.1030
A tarefa crítica, para Homero Batista, mostra que o IHGB ao longo da sua história “tem
feito muito, coligindo os documentos do passado, corrigindo erros, esclarecendo dúvidas,
eliminando senões”.1031 A RIHGB é um monumento metódico, dado que é deplorável a falta de
recursos para as investigações que cruzam as fronteiras nacionais em direção de arquivos como
os de Portugal, do Vaticano, da Espanha, da Holanda, da França, da Inglaterra e das Repúblicas
do Prata para a obtenção, em todos os níveis, das fontes relativas à nossa história. Para exercer,
assim, ação ativa e direta junto à formação nacional e para o saber exato e completo da sua
geografia e da sua história. Não escapa do observador, segundo Batista, os erros existentes nos
mapas e na história do Brasil, sobretudo, nos livros didáticos; erros esses que vão sendo, com
descaso, transmitidos de geração em geração com as suas lacunas que se vão eternizando.
A pesquisa histórica, com a crítica das fontes e o saber livresco sobre o estado da arte
de um campo, com a sua obrigação de referendar premissas argumentativas a partir de
evidências e provas, era um reclame que trazia consigo habilidades que diferenciavam o
historiador de outros tipos de intelectuais, mesmo que eles também tivessem como matéria
prima de seu interesse o passado. O historiador era alçado, assim, a posição de perito.1032 O
1028
GUALBERTO, Discurso... op. cit., p. 561.
1029
PINTO, Discurso... op. cit., p. 595.
1030
SERRANO, Discurso... op. cit., 521
1031
BATISTA, Discurso... op. cit., p. 578.
1032
São os dispositivos da crítica que habilitam o intelectual no movimento de “tornar-se” um historiador, a par de
muita erudição: “Com a crítica das fontes a pesquisa histórica pisa no chão seguro da facticidade do conhecimento
histórico. Mesmo se ela não leva sempre a constatações inequívocas (o que acontece tanto mais raramente quanto
mais remotos forem os tempos) do que, quando, onde e por que o caso foi, pelo menos estabelece o que se sabe
ou o que se ignora da facticidade de Estados de coisas históricos, com base no material obtido das fontes
321
problema, aqui, é que a crítica era direcionada, mormente, para documentos (oficiais),
indicando a história que se desejava criticada, a qual dava voz aos vencedores.
A disposição dos historiadores brasileiros que com diligência compulsavam os arquivos
do exterior colocava em evidência que uma das missões do Instituto Histórico ainda estava
ligada ao trabalho da crítica, assim como era assinalado em seus estatutos de fundação. A
análise erudita das fontes, transformando-as em informação pertinente e criticada, fazia parte
da tradição de estudos da agremiação carioca. Para além das suas missões em Viena são
lembrados, por Jerônimo Melo, no ano de 1911, nomes de “sábios eruditos”, do passado e do
presente da instituição, que caminham no mesmo sentido investigativo: João Francisco Lisboa,
Gonçalves Dias, Varnhagen, Joaquim Caetano da Silva, Rio Branco, José Higino Duarte
Pereira, Eduardo Prado, Ramiz Galvão, João Lúcio de Azevedo, Afonso Taunay, Oliveira Lima,
Alberto Lamego, Norival Soares de Freitas, Alberto Rangel, Manuel Emílio Gomes de
Carvalho. A esses estudiosos a pátria deve muito do seu autoconhecimento, sendo o trabalho
deles fonte de inspiração para a consolidação do ethos que acompanha a tarefa do historiador.
Esse registro é a base do regime historiográfico metódico.
Os acervos europeus servem, ainda, para que entendamos a nossa formação ibérica e,
além disso, para concebermos o Brasil em uma história global para além das suas fronteiras
terrestres. Os arquivos de Estado e os diplomáticos são os alvos preferidos dessas missões
metódicas. As bibliotecas estrangeiras são outros desses fundos que noticiam informações úteis.
Arquivos particulares de diplomatas outra fonte. Também coleções de mapas são exploradas,
assim como cartas. Jerônimo Melo nos deixa a par de como se opera a sua pesquisa documental,
que na maioria das vezes é balizada por critérios rígidos de periodização. Por exemplo:
Examinei com vagar nossos documentos o que se refere aos anos de 1821 e
1822. Reconhecendo embora e muito sinceramente a minha impotência em
utilizar devidamente a nossa História os dados fornecidos pelo diplomata
austríaco, esforcei-me para extrair dos seus ofícios o que me afigurou digno
de nota, deixando ao autor não só a responsabilidade das suas asserções da
explicação que deu aos fatos que presenciou ou ouviu referir, como também o
sabor característico do seu frasear, da sua narrativa e pitoresco estilo.1033
A crítica dos fatos movimenta habilidades como o do trabalho paciente com as fontes que se
tornam informação. É a diligência em jogo. Se usa relatos e narrativas históricas já produzidas,
heuristicamente. A crítica das fontes é o ponto fulcral da objetividade histórica (no sentido de ‘objetividade de
fundamentação’). Ela leva a proposições históricas que, por força de sua referência à experiência metodicamente
regulada, valem empírica e intersubjetivamente”. RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Teoria da História II:
os princípios da pesquisa histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, p. 123.
1033
MELO, Discurso... op. cit., p. 469.
322
talvez sínteses, para contextualizar as informações. Há periodização precisa. O trabalho com as
fontes passa pelo filtro da crítica e da interpretação interna e externa. Oferece autoridade para
situações e episódios em que o produtor da fonte os presencia, vendo ou ouvindo. Além disso,
se mantém o estilo daquele que produz a fonte voluntaria ou involuntariamente. Coligir e
compilar também são habilidades desejadas, ainda mais se a fonte abre caminhos interpretativos
diversos. Mas, depois, ela passa pelo crivo falseável da crítica erudita. Os dados coligidos e
criticados são, em geral, de personagens políticas e momentos considerados notáveis. É uma
pequena amostra de história íntima diplomática, que pode, involuntariamente, informar
questões particulares e localizadas acerca de sujeitos importantes de nossa história,
majoritariamente políticas. São legítimos os documentos oficiais. Vê-se que uma cadeia de
habilidades norteia esse primeiro caminho junto ao arquivo, todas elas relacionadas com a
erudição crítica. Não podemos nos esquecer da autenticidade que está por traz da fonte.
Vejamos um exemplo do trabalho crítico com as fontes, expandido o seu foco político
em direção ao âmbito social, oferecido por Jerônimo Melo:
1034
Idem, p. 470.
1035
Sobre esse tema em específico vale acompanharmos a reflexão de José D’Assunção Barros: "As fontes
históricas, além de permitirem que o historiador concretize o seu acesso a determinadas realidades ou
representações que já não temos diante de nós, permitindo que se realize este “estudo do homem no Tempo” que
coincide com a própria História, também contribui para que o historiador aprenda novas maneiras de enxergar a
história e formas de expressão que poderá empregar em seu texto historiográfico. BARROS, José D’Assunção.
Fontes históricas: olhares sobre um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos. Albuquerque –
Revista de História, Campo Grande, v. 2, n. 3, 2010, p. 74. Disponível em: https://cutt.ly/ccLbRB0 Acesso: 08
abr. 2021.
323
documentos. Para que não se prive os vindouros - os historiadores futuros - das contraprovas
necessárias para a averiguação dos acontecimentos, quando a dúvida atormenta a inteligência
humana, faz-se necessário o arquivamento, em abundância, de documentos autênticos dos fatos
presentes. Está aí, em tese, uma das funções capitais do IHGB. Na verdade, não podem os
agentes sociais conhecer sempre os fatos de que são contemporâneos. Assim, o afastamento no
tempo é muitas das vezes indispensável à unidade, coordenação e explicação da história. É a
retórica da neutralidade, que não deixa de ter um pendor ideológico. De todo modo, os
historiadores, prossegue o sócio, compreendem bem os fatos contemporâneos se a “retidão de
caráter os acompanha”, ainda mais se estão em um ambiente “sereno” e “calmo” em que
predomina o horizonte epistêmico da justiça e que não corrobora, por isso, com o flagelo das
paixões, “que tudo obscurece e tudo anarquizam”, como é o caso do IHGB. Assinala Drumond:
Tal trabalho já é realizado pela agremiação através, por exemplo, da arca do sigilo, ideia
de Francisco Freire Alemão, que em 1847 reconheceu que a diversidade dos fatos e da
documentação contemporânea demandava certo distanciamento que tornava operatória a
execução do aparelhamento metódico. No futuro, com a verificação oportuna, tributária da
suposta justiça da história, com o trabalho da crítica, associado ao plano da erudição, se podia
(re)autenticar as fontes ali depositadas, arquivando-as em seguida para que, então, o historiador
reflexivo as explicasse satisfatoriamente.
1036
DRUMOND, Discurso... op. cit., p. 329.
1037
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Alocução do presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. RIHGB, tomo LXIV, parte II, 1901, p. 321.
324
entendimento da realidade do país dependem dessa operação. Aqui temos uma amostra de como
o método crítico instala um registro de poder, na medida em que ele adequa a verdade a partir
do binarismo falso ou correto, projetando-se junto ao estudo da identidade nacional.
Para Alfredo de Carvalho, há uma grave deficiência no que toca a atividade mais
primária do trabalho do historiador no Brasil: a ainda insuficiente crítica documental; sugerindo
certa “impureza das fontes” até então disponíveis. Vale ressaltar que Carvalho fala em termos
de “heurística”1038, citando a escola histórica alemã e o nome do consagrado historiador
Barthold Georg Niebuhr. O problema da cientificidade da história, e da sua necessária crítica-
erudita, está, então, colocado:
Para o autor não são raras as lacunas no lastro empírico disponível aos nossos
historiadores. Ainda é cedo para que os sócios do Instituto se tornem “arquitetos” e produzam
um material com o selo de ciência social. O que cumpre para aquele momento é, portanto, que
a agremiação trabalhe coletivamente. Os sócios são, nesse processo, “obreiros diligentes e
zelosos no preparo dos materiais para o grandioso movimento que erguerão futuras
gerações”.1040 Reafirma-se um dos papéis proeminentes da instituição: coligir, estudar,
divulgar, investigar e arquivar os documentos necessários para a história, para a geografia, para
a etnografia, para arqueologia, bem como para outros saberes subsidiários. Enfim, havia a
consciência no IHGB na Primeira República que a realização de um novo “grande livro da
pátria” podia se efetivar no futuro.
No IHGB republicano encontramos verdadeiros metódicos à brasileira, preocupados
com o rastreamento das fontes disponíveis, tanto organizando arquivos como descobrindo
outros; com a apuração heurística rigorosa das informações contidas neles, interna e
externamente, em sua forma e em seu conteúdo; com a revisão minuciosa da maneira como as
fontes eram tomadas como artifício de prova e como argumento explicativo por outros
pesquisadores; com a possibilidade de haver lacunas informativas na crítica realizada
1038
Rüsen conceitua heurística: “Heurística é a operação metódica da pesquisa, que relaciona questões históricas,
intersubjetivas controláveis, e testemunhos empíricos do passado, que reúne, examina e classifica as informações
das fontes relevantes para responder às questões, e que avalia o conteúdo informativo das fontes”. RÜSEN,
Reconstrução...op. cit., p. 118.
1039
CARVALHO, Discurso... op. cit., p. 732.
1040
Idem, p. 732.
325
anteriormente; com os efeitos da imaginação na tarefa crítica; com a anotação de informações,
fontes aproximadas e bibliografia junto aos documentos criticados; com a redação de
monografias circunstanciadas referentes aos temas tratados. Todos esses requisitos, não
necessariamente dispostos na ordem estabelecida, faziam parte das qualidades que um
historiador devia manejar, desde o momento do arquivo até a escrita da história de fato. Mas o
exercício da crítica não se configurava propriamente em uma especialidade ou em uma
disciplina em si, porém, aparecia como um procedimento epistemológico, uma propedêutica
ativa, um olhar vigilante, “uma abertura reflexiva para questões instituídas como nacionais”.1041
Esse movimento é, também, de fechamento para tudo aquilo que era considerado fora do eixo
da formação nacional. Era, pois, um exercício delimitador de fronteiras identitárias, mostrando
as relações de poder epistêmicas existentes.
O historiador, cujo labor transforma o tempo em matéria de estudo, necessita de um
procedimento que seja capaz de organizar dados e informações a ponto de tornarem-se fatos
históricos. Deve-se classificar os fatos, e aqui eles são instâncias sociais, sendo eles passíveis,
então, de serem tomados como dados concretos da realidade e como representações. A crítica
é, para o general José Maria Moreira, o caminho para se operar a prática historiográfica como
uma atividade de eruditos.1042 É na crítica, segundo ele, que está contida a sentença que no
IHGB há o “culto da história”. É no sentido, logo, de um cultivo coletivo de uma prática que
forma um ethos de pesquisador.1043 O IHGB é, nesse sentido, tomado como a instância
intelectual onde o metodismo é a chave para o desvelamento do devir nacional. De acordo com
as palavras do general Moreira: “É no agrupar desses materiais, no classificar todos eles,
distribuindo-os sob o ponto de vista cronológico, geográfico e lógico – esta é uma das inúmeras
dificuldades do historiador. Porque lhe assalta a perspicácia: a seleção dos fatos da História”.1044
1041
OLIVEIRA, Crítica op. cit., p. 23.
1042
Gabriela D’Avila Brönstrup qualifica bem o perfil do erudito da Primeira República: “‘Erudito’ foi um dos
termos utilizados entre os homens de letras brasileiros nas primeiras décadas do século XX para referir-se a um
sujeito dotado de vastas informações, que, de modo geral, circulava por diversas áreas do conhecimento, em seus
principais locais de produção e possuía formação autodidata ou em área diferente daquela a que se dedicava: as
humanidades. Pode-se considerar ainda o domínio da linguagem literária e o interesse pelo estudo da Antiguidade,
ou do que se relacionasse ao ‘antigo’, como uma de suas marcas”. BRÖNSTRUP, Gabriela D’Avila. Rodolfo
Garcia esboçado em cartas: tensões entre o erudito e o intelectual. História da historiografia, n. 24, 2017, p. 117.
Disponível em: https://cutt.ly/fcLQ7ih Acesso: 08 abr. 2021.
1043
Angela de Castro Gomes percebe que a disposição crítico-erudita é a que identifica o historiador na Primeira
República: “O que distinguiria fundamentalmente o trabalho historiográfico daquele realizado por outro
intelectuais seria essa relação da pesquisa, da crítica e da interpretação de fontes, que exigia a identificação, a
classificação e o uso dos documentos”. GOMES, História... op. cit., p. 99.
1044
MOREIRA, Discurso... op. cit., p. 809.
326
Mas ao mobilizar do regime historiográfico metódico não pode o historiador, para
Moreira, renunciar a parte interpretativa1045 da operação historiográfica, reveladora dos seus
elementos propriamente científicos. Assim procede o trabalho do historiador: “E levada a cabo
tal seleção, o historiador, que não sabe voltar as costas para as conquistas da ciência –
conhecendo assim todos os departamentos do saber humano, é, não tem dúvida, um psicólogo
a pesquisar, a inquirir, a compreender a alma desses fatos”.1046 Em suma, o trabalho operatório,
responsável por tornar dados e informações em fatos históricos, deve ser atravessado por
interpretações advindas, no caso, das ciências sociais. Sendo a história auxiliar, conjugada ou
assimilada por elas em um tipo de saber combinatório. A ordem dos valores operatórios caberá
a cada historiador colocar na mesa.
A diplomática é outro dos saberes auxiliares, ou mesmo uma habilidade, da história e
suporte para o método crítico desde a primeira modernidade. “Saber ler letras antigas e
distinguir códices da complexidade de conhecimentos para poder adivinhar o que deveria ter
existido em determinadas épocas, por mais apagados que fossem os vestígios, é, em casos tais,
preparos indispensáveis para vencer”.1047 É nesse sentido que “o morto parece maior que o
vivo” tamanha a capacidade de reconstrução do passado.
A tarefa crítica é a marca distintiva do Instituto para Félix Pacheco. A verdade dos fatos
é o que se ambiciona na agremiação por meio de instrumentos cognitivos avalizados para tanto,
que basicamente se resumem na heurística e na crítica interna e externa dos documentos. É essa
atividade que em primeiro lugar reconhece o historiador em seu ofício e garante ao IHGB um
lugar destacado entre as instituições culturais do país. Uma passagem enfatiza o papel da crítica
para Félix Pacheco: “Aqui se escrevem os fatos para a depuração serena e definitiva. Imprensa,
câmaras, classes, povo são apenas os agentes forçosos e os instrumentos transitórios de uma
obra, cuja a edificação ulterior só a vós compete”.1048 Esse trabalho é admirado por colocar à
disposição de leitores e de leitoras narrativas do Brasil com o selo competente da
verossimilhança, em que se pode observar as transformações da pátria por intermédio de
procedimentos cognitivos que realçam o que supostamente há de verdadeiro na história
brasileira. Se estabelece, de qualquer modo, os parâmetros epistêmicos de uma história única.
1045
Jörn Rüsen teoriza essa instância do conhecimento histórico: a interpretação “é a operação metódica que
articula, de modo intersubjetivamente controlável, as informações garantidas pela crítica das fontes sobre o
passado humano. Ela organiza as informações das fontes históricas. Ela as insere no contexto narrativo em que os
fatos do passado aparecem e podem ser compreendidos como história”. RÜSEN, Reconstrução... op. cit., p. 127.
1046
MOREIRA, Discurso... op. cit., p. 809.
1047
REBELO, Discurso... op. cit., p. 784.
1048
PACHECO, Discurso... op. cit., p. 565.
327
O trabalho da crítica histórica atinge o plano da realidade histórica, local em que os fatos
são conceituados a partir da sua dimensão fenomenal.1049 É pela crítica erudita que se chega às
contingências da matéria. Uma passagem do discurso de posse de Éneas Galvão nos faz
entender o papel dessas instâncias de saber para o historiador:
A história exige, para Carlos Vidal de Oliveira Freitas, de seu praticante uma série de
aptidões, de qualidades e de virtudes epistêmicas. Isso movimenta desde o estabelecimento
crítico da verdade até a parte narrativa da operação historiográfica, em que, para esse sócio em
específico, se localiza a beleza poética imposta pela palheta do historiador. Porém, o que se
deve deixar em relevo é a sinceridade - uma virtude - da verdade refletida dos fatos à luz da
crítica. A análise, decomposição em partes através da crítica, situa-se em um momento anterior
ao da síntese e da poética narrativa:
Nenhuma ciência exige tanto como a História uma tão grande cópia de nobres
qualidades nos seus cultores. O historiador para merecer o título não basta ser
douto, ele carece ser o amante extremo da verdade, indo sacrificando sem
hesitação as aras da sinceridade. O fulgor do estilo, a beleza da frase, não
bastavam para ocultar as jaças do historiador, a crítica com sagacidade de seus
processos analíticos descobre a lenda, arranca-lhe ouropéis de que esteja
revestida e deixa nua a mostrar a insanidade do seu arcabouço.1051
1049
A ênfase na empiria, oportunizada pelas fontes, “traz o conhecimento histórico para o tempo dos humanos,
mostrando, ainda que involuntariamente, que a abstração metafísica é a responsável por um olhar que dilui os
homens nas esferas do universal”. D`ALESSIO, Márcia Mansor. Práticas historiográficas: um estudo. In:
MALATIAN, Teresa; LEME, Marisa Saenz; MANOEL, Ivan Aparecido (orgs.). As múltiplas dimensões da
política e da narrativa. São Paulo: UNESP, 2003, p. 189-190.
1050
GALVÃO, Discurso... op. cit., p. 612.
1051
FREITAS, Discurso... op. cit., p. 512.
328
das expectativas da nação. Esse movimento se opera a partir da hermenêutica crítica e da
erudição historiadora. O que está em jogo nessas operações é a construção do fato histórico.1052
A crítica servia para expurgar o falso, seu princípio básico. Ela tinha, enquanto gesto
propedêutico, a funcionalidade de treinar o olhar do historiador em relação às fontes que se
dispunha a investigar tornando-as arquivo1053; podendo ser considerada um primeiro gesto
interpretativo, que não se constituía de maneira espontânea, mas, sim, por meio de um processo
de apreensão e de aprendizado gradativo, com carga de abnegação, necessário para o
desenvolvimento de uma prática específica, isto é, o estudo da história.
Francisco Augusto Pereira da Costa deixa-nos a par da importância da tarefa crítica por
parte dos sócios do IHGB em uma passagem longa, porém, lapidar:
1052
Concordamos com Antoine Prost sobre a ideia de fato: “Um fato nada mais é que o resultado de um raciocínio
a partir de vestígios segundo as regras da crítica”. PROST, Doze... op. cit., p. 67.
1053
Karina Anhezini argumenta, em seu estudo sobre o metódico Afonso de Taunay, o seguinte: "A crítica de
procedência assumiu grande importância para a história do Brasil escrita nas primeiras décadas do século XX
devido aos esforços empreendidos para fixar a autoria de textos encontrados ou de textos conhecidos, mas
anônimos ou assinados com pseudônimos”. ANHEZINI, Karina. Um metódico à brasileira: a escrita da história de
Afonso de Taunay. Revista de História, n. 160, 2009, p. 237. Disponível em: https://cutt.ly/RcLcwff Acesso: 08
abr. 2021.
1054
COSTA, Discurso... op. cit., p. 502.
1055
É interessante assinalar que mesmo não havendo no IHGB grandes referências ao famoso manual Introdução
aos estudos históricos (1898), livro que formou toda uma geração de historiadores dentro e fora da França,
mormente chamados de metódicos, havia entre brasileiros e franceses certa comunhão de princípios
329
sem o trabalho paciente de análise da materialidade do corpus recolhido em sua forma e em seu
conteúdo e sem a montagem de inquéritos por vestígios. Esse procedimento crítico não tem
outra intenção que não seja a tentativa de deixar à disposição dos consumidores de história, que
pode ir desde o cientista até o literato, um conhecimento válido e que abre ao intérprete a
possibilidade de narrar as situações históricas a partir dos princípios da plausibilidade e da
pertinência das informações. O trabalho da crítica torna o saber produzido pelo historiador,
porque perpassado pela ideia de verificabilidade, algo fundamentado, plausível, verossímil e/ou
pertinente, distante dos efeitos da imaginação. Para alguns sócios essas eram as condicionantes
epistêmicas para a realização de um trabalho científico, ou pelo menos para se distanciar de
operações não científicas e concebidas como amadoras. Era uma operação que estabelecia as
fronteiras necessárias para a individualização da história.
Nesse sentido, no evento de recepção do ministro Pedro Lessa no IHGB, ocorrido em
1907, observamos que a sua percepção sobre o métier dos historiadores era bem clara e concisa:
“apurar a exatidão dos fatos históricos”. Enquanto bacharel em direito, inserido, portanto, em
outro campo das ciências sociais, a sua relação com os fenômenos históricos era indispensável.
Lessa ressalta que passa longa parte da sua atividade intelectual com a atenção voltada para as
induções que possuem por esteio a análise desses fenômenos. Essa é a base fenomênica para
que possa produzir as suas sentenças e emitir os seus juízos. Contudo, por não ser disciplinado
em matéria de metodismo historiográfico, ele recebe essa base empírica “de segunda mão, já
transformada em leis, que frequentemente exprimem ilações precipitadas e errôneas”. 1056 São
essas conclusões apressadas acerca dos fenômenos históricos, e sobre as suas circunstâncias de
emergência, que a ciência do direito deve se prevenir, adverte o magistrado.
Cabe salientar que em algumas ocasiões Lessa falava em termos de fatos sociais, o que
pode nos levar a uma compreensão mais alargada que esse intelectual possuía acerca da ideia
de empiria, e mesmo de fonte histórica; na medida em que essa categorização pode exprimir, e
A noção de fato social correspondia a uma inovação significativa para essa ambiência
historiográfica. Primeiro: porque ela ampliava a noção de fonte histórica, não mais restrita ao
documento escrito e ao visível. Segundo: porque ela encaminhava o historiador para a
complexidade, quer dizer, para a compreensão que um determinado acontecimento era
resultado de circunstâncias múltiplas - não mais derivado de uma ideia mecânica monocausal.
Terceiro: porque o fato social congregava em si níveis distintos de temporalidade. Quarto:
porque encaminhava a história para a interdisciplinaridade. Quinto: por fazer que a história
fosse lida sociologicamente.1059 Isso tudo fica evidente na forma como Pedro Lessa afirma ter
lido algumas contribuições saídas da pena de Karl von Martius recém-traduzidas, ou seja, a sua
perspectiva que concebe fatos enquanto fatos sociais o faz reconhecer nas páginas do naturalista
1057
Idem, p. 718.
1058
Ibidem, p. 718.
1059
Essas colocações de Pedro Lessa nos fazem pensar, primeiro, se o jurista era um leitor da escola durkeimiana
de sociologia. Em segundo lugar, as proposições de Lessa eram próximas das discussões metodológicas que
animavam sociólogos e historiadores na França da passagem para o século XX. Émile Durkheim nos aponta para
as disposições da crítica na construção do fato histórico a partir de um olhar sociológico. “Assim sendo, longe de
serem antagônicas, estas duas disciplinas tendem naturalmente uma à outra, e tudo aponta para que elas sejam
chamadas a se confundirem em uma disciplina comum, onde os elementos de uma e de outra se encontrem
combinados e unificados. Parece igualmente impossível que um, cuja incumbência é descobrir os fatos, ignore em
quais comparações eles devam entrar, e que outro, cujo trabalho consiste em compara-los, ignore como eles foram
descobertos. Estimular os historiadores a verem os fatos históricos de uma perspectiva sociológica ou, o que dá no
mesmo, os sociólogos a possuírem toda a técnica da história, eis aí o objetivo a ser perseguido pelas duas partes.
Sob esta condição, as fórmulas explicativas da ciência poderão progressivamente dar conta de toda a complexidade
dos fatos sociais, ao invés de reproduzir a seu respeito apenas os contornos mais gerais. Além disto, ao mesmo
tempo, a erudição histórica ganhará um sentido, pois ela será empregada para resolver os mais graves problemas
que a humanidade se coloca. Fustel de Coulanges amava repetir que a verdadeira sociologia é a história; nada mais
inconteste, contanto que a história seja feita sociologicamente”. DURKHEIME, Émile. Prefácio. Tradução de
Rafael Faraco Benthien. Teoria e pesquisa, vol. XVI, n. 01, 2007, p. 9.
331
bávaro “tão sugestiva sinopse dos institutos jurídicos de nossos aborígines. Que opulenta e bela
contribuição para se formarem as induções da ciência do direito!”1060
Um exemplo prático dado por Pedro Lessa em seu discurso de posse pode clarificar
melhor a sua ideia de fato social, e qual o papel da história em sua performance epistêmica. A
questão é a seguinte: circula naquele momento, argumenta o juiz, uma discussão que afirma
que as melhores lições dos economistas europeus são completamente inexplicáveis a uma
jovem nação como a brasileira. As mais seguras induções da economia política e da ciência das
finanças, como a básica lei da oferta e da procura, são completamente inverificáveis em se
tratando de Brasil. Lessa, então, esclarece:
O que Lessa demostra com esse exemplo é que no âmbito da ciência econômica, que se
constituí enquanto tal a partir do plano nomológico, sua base epistêmica e condição para as suas
interpretações, são aplicadas comparações entre contextos diversificados, obtendo resultados
paralelos em que se extraem comportamentos econômicos regulares. Mas para ele não há a
possibilidade da universalidade exata dos resultados investigativos sem a correção empírica e
o auxílio da história: pela via da particularidade, ou do singular, do metodismo, coloca-se em
suspensão qualquer enfoque interpretativo que traga consigo marcas de determinação. O saber
histórico, aparelhado pela crítica, proporciona às ciências sociais a possibilidade da averiguação
da complexidade inerente aos fatos sociais. Essa disposição sofistica a leitura comparativa
empreendida por esses campos de saber, como o direito e a economia.
Lessa instiga algumas habilidades próprias do trabalho historiográfico colocando como
fator de anterioridade a paciência analítica e o contínuo refazer das pesquisas, bem como a
tarefa de colecionar tradições, biografias, memórias e crônicas. Vemos nele um sujeito que
atualiza as aptidões do métier: o seu alcance corresponde desde à análise de vetores sociais e
culturais, a tradição, até a dimensão mais episódico-factual. Oferecendo uma análise segura às
interpretações das ciências sociais, a história, em uma atitude ética, contribui para a
investigação segura da direção da sociedade, o que previne toda a sorte de estereótipos sociais
1060
LESSA, Discurso... op. cit., p. 718.
1061
Idem, p. 719.
332
e afirma que o humano é um produto historicamente construído: “Quanto é patriótica,
humanitária e fecunda a vossa missão!”.1062 A investigação dos fatos históricos colabora para a
formação de várias ciências que almejam compreender o social. A correção na análise dos
fenômenos históricos, a percepção do modo como eles se reproduzem e a sua natureza, contribui
para a formulação de regras de conduta sociais, emplacando formas de ser no mundo da vida.
Nesse sentido, uma disposição interdisciplinar dos saberes passava a ser fundamental
para um melhor aproveitamento da crítica histórica, habilidade metódica indispensável para os
historiadores averiguarem a correção das informações que formavam os inquéritos
investigativos acerca das transformações dos agentes e das sociedades no tempo. Essa
disposição ampliava a noção de fonte histórica, que para Oliveira Vianna não pode ficar adstrita
ao universo da documentação arquivística, que por si só parece insuficiente para o
esclarecimento do passado. Em um ambiente marcado pela forte mobilização do regime
historiográfico metódico, de empenho erudito na apuração e na transformação dos documentos
em fonte de saber seguro, as palavras de Vianna parecem invocar novas habilidades, ou certa
atualização das antigas, para o apuro da crítica, bem como para o suporte das problematizações
sobre os vestígios possíveis de uma realidade passada. Acompanhemos o seu parecer:
Os documentos não dizem tudo, não fixam tudo, não apanham todos os
aspectos dos acontecimentos; dizem apenas alguma coisa, fixam apenas
alguns detalhes, apanham apenas alguns aspectos – e, às vezes, esses aspectos,
que eles revelam, nem sempre são essenciais; esses detalhes que eles fixam,
nem sempre são necessários; essa coisa que eles dizem, nem sempre contém
o sentido íntimo e substancial da realidade1063
Para o autor, as fontes para a realização do trabalho de “evocação do passado” não estão
circunscritas à documentação escrita. Os problemas que Oliveira Vianna se propõe a investigar
movimentam-se em outra direção. Passam a não estar ligados à construção de um Estado
nacional, que movimenta todo um trabalho de busca e de averiguação de documentos escritos
e de caráter administrativo, haja vista as primeiras movimentações dos sócios do IHGB, mas às
dimensões próprias do mundo social; o que, por seu turno, reclama novas modalidades de
vestígios. Também cabe sinalizar o seguinte fato: Vianna não considera as fontes uma espécie
de mimeses ingênua do real. Assim como Capistrano de Abreu vem percebendo, desde a década
de 1870, através da sua crítica ao historiador-cronista. As lacunas das fontes, para o autor, são
constituintes da própria tarefa crítica, sendo necessário, então, trabalhar com o plano teórico e
1062
Ibidem, p. 719.
1063
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 440.
333
reflexivo, instância capaz de informar o invisível do passado. Porque o estudioso argumenta
que por mais que as fontes testemunhais sejam, no geral, ricas em informações que caracterizam
as dimensões no presente elas não são capacitadas a informar a totalidade do mundo
fenomênico. Essa conclusão sinaliza que as fontes escritas informam apenas uma camada
superficial de uma dada situação histórica, e que esse registro é atravessado pelo olhar do sujeito
cognoscente que as modulam. Ou seja, as fontes escritas, caso não sejam ampliadas junto ao
repertório de fontes possíveis, não captam aquilo que Georges Cuvier chama, segundo Vianna,
de “caracteres dominantes” das sociedades e dos povos. Tudo isso muda o regime da crítica.
Oliveira Vianna, que em suas prescrições se ocupa com a epistemologia do
conhecimento histórico, realiza um distanciamento alegórico entre o que ele chama de
modernos e de velhos historiadores. Os velhos historiadores, situados em um momento anterior
ao surgimento das ciências sociais, não possuem princípios teórico-científico-explicativos que
lhes ofereçam entendimento sobre a crítica documental ou dos elementos de arquivo. É
necessário, pois, uma ampliação das atribuições do regime historiográfico metódico. Esses
historiadores devem ser movidos, em suma, por um olhar objetivo1064, no sentido sociológico
de validação, capazes “de corrigir ou retificar as ilusões da sua visão crítica, ou sofrear os voos
e as ousadias da sua imaginação evocadora”. Assim, as narrativas e as elaborações
historiográficas caem no terreno da fantasia, se refugiando no “prosaísmo” e na “secura das
efemérides para asilarem-se na alta poesia e na imaginação exuberante dos animadores de
visões à maneira Michelet”.1065 O esforço teórico de Oliveira Vianna deve ser percebido, não
obstante, através da elaboração de uma memória disciplinar.
Para Bernardo Teixeira de Morais Leite Velho, a história lida com fatos sociais. Uma
inovação historiográfica naquele contexto disciplinar. É pela via dos fatos sociais que se desvela
a formação humana. Os instrumentos são imperfeitos, doravante, mesmo na interpretação dessa
nova modalidade de fato o que impera é a objetividade e a verdade. Vejamos o metodismo
desejado para essa nova modalidade de fato, em que se ressalta a dificuldade na implementação
de protocolos que identificam o ethos do historiador:
Disse alguém, que assim como a astronomia era a anotadora de astros dos
urbes, a história é a anotadora de fatos sociais, que vão devassar os segredos
da evolução da humanidade desde as eras mais remotas; mas se a astronomia
1064
Angela de Castro Gomes situa o ensejo de Oliveira Vianna: ele “(...) defende, claramente, que a disciplina só
alcançaria o estatuto de ciência moderna pela via da busca da objetividade, o que seria possível pela associação
com a sociologia, voltada para a ‘evolução geral’. O trabalho como os ‘testemunhos de arquivos’, parciais e
particulares, tinha que ser acrescido de ‘experiências complementares’ trazidas pelas ciências sociais”. GOMES,
A República... op. cit., p, 78.
1065
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 441.
334
dispõe hoje de instrumento de tal poder e precisão que obrigam - pode dizer-
se - os astros a entrarem no foco ou alcance do raio visual do observador,
quão diferentes e imperfeitos são os instrumentos que pode dispor o
perscrutador da verdade histórica através dos séculos e mesmos eras pouco
afastadas? Entre muitos, poucos sinceramente bons e honestos, uma
multidão deles infectados de mentiras, de suspeições e preconceitos de seitas
inquinadas de partidarismos, produtos de paixões e da improbidade. E
quantas e quantas vezes o que procura a verdade e só a verdade, tropeça no
caminho em uma dessas lendas provectas, que durante séculos tem
campeado no trono sustentado pela credulidade e pela estupidez, e vê-se a
braços com a brutalidade da mentira estratificada nas consciências
refratárias à evidências. Tarefa ingente – já disse o grande Herculano –
porque as cãs da mentira são tão veneráveis como causa santa que resiste aos
máximos esforços, e sempre disputando o passo à verdade.1066
Olhar retrospectivo
1066
VELHO, Discurso... op. cit., p. 154.
1067
BORNAN, Discurso... op. cit., p. 765.
1068
OLIVEIRA, Crítica... op. cit., p. 70.
335
metáfora da guerra serve para a identificação do trabalho crítico do historiador, responsável,
entre outras coisas, por colocar em suspenso a história dita oficial, dando vazão para que os
vencidos (dentro de parâmetros civilizacionais) ganhem voz na história. As suas palavras são
exemplares para acompanharmos a sua ideia de história: “feridos pela crítica, catapultados por
novas documentações, quantos ídolos se esboroam”! O olhar crítico do historiador possui as
qualidades da “labuta indagadora”. A história traz este conteúdo: “sacerdotisa da moral”,
“metrópole da filosofia”, “contribuinte inevitável de todos os acontecimentos”. Ela possui três
eixos diretores na opinião de Andrada: ela ensina, infunde nos cidadãos a percepção das regras
de conduta; ela orienta os comportamentos humanos dentro de uma dada sociedade; por fim,
ela é fato e indicador das transformações assistidas no plano da realidade histórica. O parecer é
irrevogável para o sócio: “Elimine-a, e insignificada ficará a palavra civilização”.1069
O regime historiográfico metódico na conjuntura epistêmico-historiográfica da Primeira
República ainda se mostrava bastante atuante e era mobilizado por uma gama considerável de
cultores da história, que são sócios do Instituto. Basílio de Magalhães cita, em primeiro lugar,
Capistrano e considera o seu trabalho metódico uma “pasmosa atividade” de um “douto”.1070
Temos também no elenco construído por Magalhães “o operoso barão de Studart, o erudito
Oliveira Lima, Nina Rodrigues, Alfredo de Carvalho e muitos outros ilustres nossos da região
setentrional e central do país amontoando materiais dispersos da nossa história”. No sul do país
mais metódicos à brasileira: Antônio Piza, Theodoro Sampaio, Orville Derby, Pandiá
Calógeras, José Higino, Francisco Lobo Leite Pereira, José Pedro Xavier da Veiga, Euclides da
Cunha, Jaceguai, Bornan, Belarmino Mendonça, Torres Homem, Afonso Celso, Ramiz Galvão,
Vieira Fazenda, e muitos outros. Todos partilham o regime historiográfico metódico, bem como
os desejos e as habilidades que conferem o estatuto de verdade por inquérito ao conhecimento
histórico. Uma forma de verdade histórica colonizada. Eles "esquadrinham arquivos,
reconstroem roteiros, reconvocam episódios do passado e desentranham para a luz da
publicidade os fundamentos em que se apoiava o edifício grandioso da Pátria”1071. O que falta,
no entender de Magalhães, é um “arquiteto” capaz de dar forma a esse empreendimento que se
quer científico. Que esboce, imagine e finalize o que o material analítico disponível oferece.
Além disso, uma nova síntese deve se dirigir a estes destinatários: o povo, a pátria e o civismo.
O fator erudição, a paciente crítica e a análise proba dos fatos históricos, eram virtudes
epistêmicas necessárias e fundamentais para o trabalho historiográfico, na medida em que eram
1069
ANDRADA, Discurso... op. cit., p. 383.
1070
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 594.
1071
Idem, p. 594.
336
responsáveis por deixar em evidência que o material investigativo oferecido pelo historiador
era tão somente uma versão possível daquilo que se queria compreender no passado. São
virtudes que requerem habilidades próprias do historiador, sobretudo, aquela que se situa no
âmbito da diligência e da dúvida metódica, argumenta Solidônio Leite.1072 Esses recortes e
escolhas epistêmicas diziam muito sobre o tipo de história que desejava escrever: de perspectiva
única, onde os padrões civilizacionais combinavam com o sentimento patriótico.
Para Oliveira Vianna, por mais que discordemos radicalmente da sua postura política e
do seu cientificismo eugênico, toda história é história do presente.1073 É o presente que ilumina
o passado. O que sinaliza que a cada novo olhar junto ao presente um novo passado emerge. A
localização do historiador no presente pode oferecer ganhos metodológicos, como na
mobilização do recurso das analogias. Exemplo: o “velho feudalismo guerreiro” é esclarecido
pelo “brilhante ciclo do bandeirismo”. A observação direta e no presente capacita o analista na
melhor compreensão do passado e vice-versa, indo além, pois, da crítica documental e de
arquivo. Em suas palavras:
Todavia, é ingrata a missão do historiador para Bornan, mesmo com todo o seu
aparelhamento crítico e erudito. Não há seguridade nos fatos narrados: “Mesmo os fatos de que
formos testemunhas oculares são narrados de modo inteiramente diverso e até muitas vezes
com circunstâncias que não se deram”.1075 Isso vem mostrar que a erudição e a crítica não são,
para esse sócio, soluções para uma retomada integral da história e/ou do passado. Corre a ideia
de que a história é parcial e de que não se pode reconstrui-la em sua totalidade empírica, não
sendo o documento o portal para o acesso integral ao passado “como de fato foi”. O passado
pode ser acionado apenas em partes através de vestígios.
1072
LEITE, Discurso... op. cit., p. 433.
1073
Marco Silva esclarece o que está presente no horizonte teórico de Oliveira Vianna e de outros historiadores da
Primeira República: “(...) vale lembrar que a contemporaneidade do historiador e de seus leitores sempre está
presente em qualquer tipo de conhecimento histórico, recorte de periodização ou interpretação de História que se
construa. Mesmo um historiador de radical recorte historicista, cioso dos riscos de anacronismo e desejoso de
recuperar um puro passado, como Fustel de Coulanges, só exerce essa abordagem a partir de uma
contemporaneidade do conhecimento histórico que elaborou tal fazer teórico e técnico”. SILVA, Marco. O
historiador e seu tempo. Conferência na posse como sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Norte, 25 de janeiro de 2007, p. 2. Disponível em: https://cutt.ly/acZzKjq Acesso: 08 abr. 2021.
1074
VIANNA, Discurso... op. cit., p. 443.
1075
BORNAN, Discurso... op. cit., p. 766.
337
É preciso, doravante, que se evite com o máximo de cuidado nas investigações
metódicas, propedêutica necessária para toda investigação historiográfica, os exageros do que
João da Costa Lima Drumond chama de “crítica temerária”. O que ele quer dizer é que não se
deve, de modo algum, comprometer a pesquisa na “demasia do particularismo inquiridor”, o
que resulta, em tese, na perda da perspectiva de conjunto e no prejuízo da realidade histórica.
Sem dúvida, como quer o “historiador Leclerc”, a ciência moderna, qualquer que seja o objeto
de suas pesquisas, “procura a verdade até o infinitamente pequeno”, podendo dizer, nessa
direção, que o “microscópio se tornou o instrumento universal”. Mas cumpre “neutralizar no
fanatismo científico, na lição de Taine, o defeito dominante do grande pensador alemão
Niebuhr, que corrigiu a obra de Tito Lívio”.1076
Enquanto isso, Vicente Ferrer de Barros Wanderley e Araujo argumenta que os estudos
presentes na RIHGB oferecem os alicerces para a história futura do país, que há de substituir
aquela “hoje menos certa”, posto que escrita sob ponto de vista objetivo. É interessante que essa
história endereçada ao futuro representa toda uma forma de pensar a sociedade, mesmo que a
retórica da neutralidade seja mobilizada. Isso porque as formas de objetivar a realidade do
mundo são derivadas das formas de objetivação. Com efeito, assevera o sócio, “a História está
sujeita a contínuas revisões”. Não é o critério pejorativo de uns nem o otimismo de outros que
deve dominar. “É a verdade, a imparcialidade, o que, enfim, prevalecerá”. Vicente Araujo
afirma, assim, que figuras outrora inescrupulosas são no presente, à luz da documentação e das
respostas do meio, perfeitamente humanas: “Tibério, o maior financeiro do Império romano;
Cesar Borgia, o grande campeão da unidade italiana, já nos mostram o cortejo rubro de todos
os crimes e de todo os vícios”.1077 Ou seja, a história é uma narrativa perspectivada no presente
a partir da experiência cognitiva do historiador. Dito de outro modo: há histórias e versões.
Para João Ribeiro toda história é história do presente. E essa constatação impacta
absolutamente o olhar cognoscente do historiador e toda a sua aparelhagem crítica e
metodológica. Para ele os historiadores são como os arqueólogos e os geólogos que “sabem
descobrir os horizontes antigos e sabem deles se orientar”, podendo, por meio do olhar crítico,
“desmentir todas as sínteses inábeis”. Nesse sentido, a história como conhecimento é uma
substituição contínua de ideias e de fatos: “ao grado do presente, todo o passado se
transforma”.1078 A passagem a seguir sintetiza bem as suas premissas epistêmicas: “O presente
1076
DRUMOND, Discurso... op. cit., p. 328.
1077
ARAUJO, Vicente Ferrer de Barros Wanderley e. Discurso de posse. RIHGB, tomo LXXVI, parte II, 1913, p
513-514
1078
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 617.
338
é quem governa o passado e é quem fabrica e compõe nos arquivos a genealogia que lhe
convém. A verdade, corrente hoje, sabe buscar, onde os há verossímeis, os seus fantasmas
prediletos de antanho”.1079 É assim que o presente “modela e esculpe o seu passado”. A
imparcialidade é imprescindível, mas, para Ribeiro, se tem a obrigação de se justificar o
presente, de se fundar o que o estudioso sergipano chama de “ética da atualidade”. 1080 Nesse
sentido, é passível de ressurreição, no sentido dado por Jules Michelet, tudo aquilo que interessa
e tenha pregnância do presente, sem cair, no entanto, no terreno das paixões e da subjetividade.
Basílio de Magalhães possui uma ideia precisa sobre as dimensões próprias do conceito
moderno de história, da maneira como a interpreta Arnaldo Momigliano. De acordo com o
erudito italiano, a historiografia na modernidade, de maneira descontínua e respeitando as
diferentes tradições historiográficas nacionais, pode ser caracterizada por uma tensão essencial
entre procedimentos empíricos, advindos do antiquariato, e aportes teóricos, possibilitados
pelas filosofias da história e, depois, pelas ciências sociais.1081 Essa forma de compreender a
operação historiográfica é teorizada por homens de letras e intelectuais aspirantes à
historiadores no interior do IHGB, sendo que essa demanda provoca a oportunidade intelectiva
de tornar possível a constituição da história como ciência perspectivada. Ao recobrar o seu
percurso intelectual nos domínios de Clio, Magalhães deixa-nos à disposição um testemunho
consistente acerca das dinâmicas próprias da tensão essencial percebida por Momigliano:
Nos quatro opúsculos meus, que consoante com a ritualidade aqui observada,
tiveste a árdua tarefa de analisar, já está a toda luz a projeção da trajetória do
meu pensamento. Do primeiro, escrito aos 19 anos, ao último, traçado 10 anos
depois, não fez mais que radicar-se com maior profundeza em minha alma e
esgalhar-se frondentemente com os frutos de novas e mais amadurecidas
lições de uma contínua aquisição empírica e de uma tenaz cultura teórica1082
1079
Idem, p. 617.
1080
Essa sofisticada posição de João Ribeiro vai ao encontro das formas de aquisição de experiência teorizadas
por Reinhart Koselleck: “O fato de histórias surgirem primariamente das experiências das pessoas envolvidas e
atingidas é condição de sua narratividade e, portanto, também condição da narratividade de experiências alheias,
cuja análise domina a historiografia moderna. Direta ou indiretamente, toda história trata de experiências próprias
e alheias. Por isso, podemos supor que os modos de contar histórias ou de elaborá-las com método possam ser
relacionados aos modos como adquirimos, reunimos e modificamos as experiências”. KOSELLECK, Reinhart.
Mudança de experiência e mudança de método. Um esboço histórico-antropológico. In: _____. Estratos do
tempo... op. cit., p. 33.
1081
Essa ideia é do historiador Fernando Nicolazzi: “(...) a conformação da historiografia organizada em disciplina
científica no século XIX, passa pelo estudo das relações entre antiquários e eruditos, de um lado, e filósofos-
historiadores, de outro”. NICOLAZZI, Raízes... op. cit., p. 92.
1082
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 585.
339
história. Ela aparece de maneira apurada em suas reflexões, sobretudo, no entendimento do
valor da representação histórica, em que não a observamos enquanto uma instância imutável.
Essa compreensão acerca da temporalidade é perpassada, em Magalhães, pela noção de
evolução e de progresso. É o princípio da moderna história única. Ela é operada, pois, pela ideia
de que as coisas passadas são possíveis de serem assimiladas desde que se respeite a sua
historicidade subjacente, mesmo que vista em uma escala evolutiva. Deve ser lembrado que o
magistério da história não é eliminado, mas assimilado pela perspectiva moderna da história.
De todo modo, a história é concebida pelo viés da mudança, ou seja, ela é assimilada pela
transformação. Essa constatação acerca da temporalidade impacta a epistemologia da história
entre os modernos historiadores, posto que se o devir está em constante movimento, a sua
historicização narrativa não pode ser estática. A questão é a seguinte: diferentemente de Vianna
e de Ribeiro, a história é percebida por Magalhães através do presente em formação e não em
retrospecção. De qualquer modo, assinala o articulista:
A história é metódica para Lucas Ayarragaray, mas ao mesmo tempo ela também tem o
compromisso de fomentar o esclarecimento dos sujeitos históricos, bem como propor certo grau
de “visionarismo” aos mesmos. O método histórico é um importante instrumento no movimento
de civilização das sociedades. A dúvida metódica da ciência e da filosofia deve conectar-se,
assim, à erudição de cátedra com os seus cânones, bem como passar pelo severo crivo crítico
do ceticismo; porém, não é um ceticismo que embota o coeficiente de vida ao desafiar a moral.
Ele é puramente instrumental: apresenta-se enquanto equipamento epistemológico e crítico para
o historiador em sua ânsia por apreender o verdadeiro – sua principal tarefa. Ainda se acredita
na infalibilidade da verdade, mesmo que a modernidade evoque a sua pluridimensionalidade
Cabe salientar, então, que a postura de grande parte dos sócios do IHGB na Primeira
República indicava uma concepção epistemológica de história de tipo perspectivista, moderna
por excelência, na medida em que eles assimilavam que não existiam trabalhos definitivos em
história, e porque possuíam a consciência de que as questões que surgiam durante a tarefa da
crítica eram igualmente históricas, ou seja, devotas do olhar cognoscente de um sujeito situado
no presente. No limite, e de forma simples, a prática do historiador era um contínuo (re)fazer.
1083
Idem, p. 585.
340
Em suma, enquanto alguns perspectivavam a história através do eixo da formação, outros já a
compreendiam pelo vetor retrospecção.
O historiador estrutura, para Aníbal Rebelo, a síntese. Ele está preocupado com as
transformações junto às sociedades no plano da duração.
Depurados os fatos pela heurística e pela erudição critica tem em mãos o historiador o material
necessário para a construção histórico-narrativa. Mediante a interpretação chega-se às
conclusões amparadas por modelos que não desmentem a empiria: leis gerais ou determinantes
e condicionantes do processo histórico. Assim se estrutura, portanto, a síntese histórica, um
procedimento cognitivo-historiográfico moderno.1085
Encaminham-se, para Rebelo, leis que não aparecem enquanto espelhamento da
realidade, mas enquanto aberturas empírico-conceituais junto ao tecido societário que se quer
estudar. “Imaginou-se, assim, pelo conjunto sintético de todos os elementos da civilização que
não era bastante relatar fatos sem estudar as ideias que eles encerram”.1086 Nesse sentido,
argumenta o sócio, que a narrativa histórica, repousando na análise conjugada com a síntese,
leva o historiador francês Fustel de Coulanges a afirmar que “uma vida inteira de análise
corresponde apenas uma hora de síntese”.1087 Ao mesmo tempo que as leis, ou tendências,
imprimiam um horizonte de análise, elas, invariavelmente, retiravam o elemento identitário das
comunidades fora da história única.
O grande desejo de parcela considerável de homens e de mulheres de letras daquele
período era a passagem dos padrões explicativos de uma história filosófica para uma síntese
sociológica. E isso incluía, no limite, a transformação das crônicas, daquilo que Basílio
1084
REBELO, Discurso... op. cit., p. 780
1085
A operação de síntese é teorizada por Jörn Rüsen: “A interpretação histórica é um trabalho de síntese. Ela
remete perspectivas teóricas ao passado, nas quais o passado se reveste do caráter de histórico, com o conteúdo
informativo das manifestações empíricas, mediante as quais esse passado se faz perceptivelmente presente. Com
isso, ela modifica as perspectivas teóricas ao remeter a experiência a teorias com o maior conteúdo informativo
possível. Ao mesmo tempo, ela pondera os fatos sob a ótica de seu significado para contextos históricos estudados
(determinados por critérios de sentido). O princípio metódico determinante desse trabalho de síntese deve levar
em conta essa relação entre teoria e empiria”. RÜSEN, Reconstrução... op. cit., p. 129.
1086
REBELO, Discurso... op. cit., p. 780.
1087
Idem, p. 780.
341
Magalhães considerou “erudição vã”, para a esfera interpretativa. Interpretativa no sentido de
que os fatos históricos passavam a ser circunscritos socialmente. Preocupa-se, então, com as
representações sociais. Lembrando que representações são, em suma, fatos sociais.
A historiografia brasileira, na perspectiva aberta por Basílio de Magalhães, inicia-se
através das obras de Gandavo, de Gabriel Soares, de Frei Vicente de Salvador e de Andreoni.
Elas arregimentam fatos de natureza episódica e se preocupam com a “lenta evolução da colônia
luso-americana, e tiveram que ser mais esforços corográficos do que crônicas políticas”.1088
Elas, com a ajuda da heurística e da crítica, podem ser aparelhadas enquanto resultado de
análise, o que coloca em foco a concretude dos fatos.1089
Rocha Pita, cuja obra é posterior a de Antonil, mobiliza certo sentimento patriótico,
mesmo que em um estilo considerado fora dos padrões científicos, posto que “gongórico”. Na
passagem da colônia ao Império mais nomes de “proto-historiadores” cujas obras servem como
esteio para as sínteses: Jaboatão, Claudio Manoel da Costa, Pedro Taques, Frei Gaspar da
Madre de Deus, José Joaquim da Costa, Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, Aires do Casal,
José Feliciano Fernandes Pinheiro e do Monsenhor Pizarro. “Coletâneas especiais, embora, são
elementos preciosos de que há de fatalmente servir-se o escritor, que tomar aos ombros redação
da História definitiva do Brasil”.1090 Na memória disciplinar criada por Basílio de Magalhães é
interessante notar que enquanto “cronistas” ou “colecionares de fatos” em sua dimensão
episódica esses sujeitos não são reconhecidos como escritores, uma prática que somente se
efetiva com o complemento de explicações e de uma narrativa interpretativa de sentido. Os seus
trabalhos tornam-se importantes como repositório empírico para que o escritor-historiador-
sintético realize o seu métier, sobretudo, com o auxílio das ciências sociais, que tornam os fatos
representações e não mimeses da realidade.1091 A síntese pode ser entendida, então, como uma
metavirtude capacitada a orientar todo o processo que leva, em horizontes científicos, a
1088
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 590.
1089
Maria da Glória de Oliveira salienta que Von Martius e Capistrano sugerem que os estudos históricos devem
avançar para além da crônica: “Em ambos, a depreciação do gênero justifica-se por sua incapacidade de conferir
coerência, unidade e inteligibilidade à exposição dos fatos já transcorridos. Com a emergência de uma concepção
moderna de escrita da história, passava-se a esperar dos historiadores mais do que o registro dos acontecimentos
dentro do quadro cronológico de sua ocorrência original”. OLIVEIRA, Crítica... op. cit., p. 57.
1090
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 590.
1091
Valdei Lopes de Araújo e João Paulo Garrido Pimenta historicizam essas abordagens historiográficas nos
deixando mais cientes sobre o que Basílio de Magalhães elege ou silencia em sua memória disciplinar: “Frente às
novas exigências documentais, estéticas e filosóficas, a ‘História do Brasil’ ainda não encontrara uma forma
adequada dentro da tradição historiográfica português. A realização de Southey refletia uma evolução do gênero
no mundo britânico, e não no português. Neste havia uma rica tradição cronística e, mais recente, de corografias,
mas faltava ainda uma concepção orgânica do processo histórico”. ARAUJO, Valdei Lopes de; PIMENTA, João
Paulo Pimenta. História. In: JÚNIOR, João Feres. Léxico da história dos conceitos político do Brasil. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2009, p. 131.
342
complementariedade entre erudição e reflexividade. Esse é o horizonte da síntese modernista,
consciência historiográfica que circula na República.
Nas prescrições contidas no discurso de Magalhães havia um esforço de história da
historiografia. A primeira história do Brasil em termos modernos é a History of Brazil de Robert
Southey (1806-1819). Ela é reconhecida em muitos pontos como superior a História geral do
Brasil de Varnhagen, vinda a lume em 1854. Porém, o seu descrédito está relacionado com a
falta da autópsia, de um conhecimento in loco da história que se narra, posicionamento teórico-
metodológico advindo da historiografia clássica, e com o excesso de imaginação, que é
proveniente, em tese, do fato de Southey ser um poeta. Além do mais, por ser escrita por um
estrangeiro lhe falta a sensibilidade, outra virtude epistêmica, para com a história local,
imprimindo-lhe amor pátrio. Southey também é criticado em razão de explicações de natureza
providenciais, uma “taumaturgia”, para certos episódios e situações históricas. Assim:
1092
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 591.
343
Brasil sintético, mas de cunho filosófico.1093 Para a realização dessa obra o estudioso alemão
supostamente se vale do plano filosófico de Karl von Martius, ou dele se aproxima:
Ficam em evidência as virtudes epistêmicas que o historiador deve seguir de acordo com
Magalhães, e que correspondem à conjuntura epistêmico-discursiva que enreda os historiadores
na República. A história desejada deve se referir ao povo, por mais difícil que seja a
caracterização desse conceito. Para além da dimensão política deve-se ter como referente a
sociedade (e a pátria), ou organização civil (e o patriotismo), o que implica fatos e problemas
sociais. Deve-se ir além no que tange as explicações sobre os homens no tempo, acoplando
outros fenômenos sociais. No caso de Handelmann essa premissa se realiza pela via econômica.
Esses elementos estão, é necessário ressaltar, nos horizontes da síntese modernista.
Mas é Sílvio Romero que define com maior propriedade os desafios da síntese orgânica
e sociológica, de cariz evolucionista, colocada aos homens de letras da passagem para o século
XX, mesmo que por via de uma linguagem epistêmica naturalista. Consta na sua História da
literatura (1888), aqui coligida por Basílio de Magalhães, o seguinte:
1093
Um estudo que analisa a leitura da Dissertação de von Martius por Handelmann, bem como os impactos desse
gesto na Primeira República, especialmente em João Ribeiro, encontra-se em RODRIGUES, Rogério Rosa. João
Ribeiro e Heinrich Handelmann: Diálogos subterrâneos. In: BENTIVOGLIO, Julio; NASCIMENTO, Bruno César
Nascimento (orgs.). Escrever história: historiadores e historiografia brasileira nos séculos XIX e XX. Serra:
Editora Milfontes, 2017.
1094
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 593.
1095
Idem, p. 593.
344
elementos que envolvem a formação dos sujeitos no tempo. O historiador deve primar pela
postura interdisciplinar, com especial atenção à aproximação com as ciências sociais. Romero
é o maior idealizador da síntese sociológica no Brasil, no caso orientada teoricamente pelo
evolucionismo. E Magalhães filtra as suas prescrições com o objetivo de caracterizar a síntese:
(..) deveria ser bastante etnológica, para compreender e amar as diversas raças
que levantaram nesse país as suas tendas e que agitaram a luz do sol brasileiro
seus músculos de combatentes, travando a luta da vida, a luta da civilização;
para compreender em seus cantos, em suas aspirações; deveria ser bastante
filósofo e democrata, para rir e chorar com o povo, segui-lo na sua formação
gradativa e suas transformações progressivas, assistir a geração do nosso
terceiro Estado e da nossa burguesia, acompanha-los na vida municipal, nas
agitações da vida política, nos anelos da liberdade.1096
1096
Ibidem, p. 593.
345
de cultura e dos destinos humanos, compreender a formação das pátrias
recentes, o advento dessas nações coloniais, mestiçadas, herdeiras de antigas
glórias e antigos ideais, prestes a transformar-se, urgidas por necessidades
novas; deveria ser bastante erudito, para conhecer a fundo todos os fatos, todas
as peripécias do passado colonial; deveria, finalmente, ser bastante poeta, para
construir de tudo isto uma obra artística, viva, palpitante de seiva e de
entusiasmo1097.
Vemos nas prescrições de Romero coligidas por Basílio de Magalhães o desejo por uma história
total. O vetor economia, por exemplo, é de suma importância para que se repense, nos trópicos,
a instituição social do trabalho. Há repúdio ao escravismo, o grande crime dos colonizadores
portugueses. A escravidão é geradora, na experiência histórica nacional, de privilégios e de
iniquidades. Daí a necessidade do historiador filósofo (sintético), na medida em que ele
consegue captar os “nexos” diretores dos destinos do devir histórico.1098 Além disso, o
historiador filósofo deve ser, também, erudito. Ora, não há síntese sem erudição. O que significa
que só conjugando esses pares se opera um saber moderno e científico. O historiador
republicano deve atrair as musas, quer dizer, a arte narrativa engendra nas almas dos cidadãos
o amor à pátria. Uma pátria, por sinal, mais marginalizadora do que inclusiva. Cabe anotar que
a história total, e evolucionista, prescrita por Romero é mimética. Assim, as próprias leis que
organizam a sociedade para o autor são de natureza fixa, perpetrando fortes determinismos.
Basílio de Magalhães quer atualizar as prescrições de Sílvio Romero. Por tudo isso, uma
nova história geral e sintética do Brasil ainda se faz desejada em termos de operacionalização
prática. “Mas a História Integral, a História que tanto se tem almejado, a História, que é uma
necessidade imperiosa da nossa cultura, essa nem sequer tem a sorte do ainda inacabado Código
Civil”1099. Resume Magalhães a necessidade da realização de uma síntese da história brasileira
que supere o trabalho de Varnhagen: “o código máximo das nossas tradições - consta de
projetos engoiabados e dorme ao preguiçoso mistério de marasmática incubação”.1100
Magalhães assume a demanda por uma nova síntese, chamada por nós de modernista, ao mesmo
tempo em que se porta como um crítico daquela consciência historiográfica que projeta a síntese
somente para o futuro, herança conjugada de historicistas e de evolucionistas. Para nós esse
1097
Ibidem, p. 594.
1098
Rodrigo Turin descreve o movimento teórico de Silvio Romero em direção à síntese: “Mediante o uso de
teorias europeias de que fazia uso, Romero procura imprimir um caráter nomológico à sua escrita da história. O
que garantiria a cientificidade de seu trabalho, por oposição à tradição imperial, seria a capacidade de
generalização. ‘Um conhecimento que não e generaliza, fica improfícuo e estéril, e, assim, a história pinturesca
deve levar à história filosófica e naturalista’. A partir de conceitos como os de ‘raça’, ‘meio’, ‘momento’ e
‘evolução’, munido ainda, do critério ‘popular e étnico’, ele estaria apto a identificar as leis gerais que presidiriam
o momento histórico da nação. O objetivo da sua História, como diz, é ‘encontrar as leis que presidiram e
continuam a determinar a formação do gênio, do espírito, do caráter do povo brasileiro’”. TURIN, Narrar o
passado... op. cit., p. 103.
1099
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 594.
1100
Idem, p. 595.
346
registro, presente nas prescrições dos sócios do Instituto, traduzia o desejo por uma nova
história geral do Brasil, aparentemente com parâmetros teóricos informados pelas sínteses
evolucionistas, em um momento que se demandavam outras propostas epistemológicas, e
narrativas, junto à prática historiadora. O efeito colateral percebido nesse descompasso era que
esses resíduos da síntese historicista acoplados à perspectiva teórica evolucionista monocausal,
no contexto da República, eram responsáveis por sempre adiar a realização do chamado “grande
livro da pátria”, da forma como queria importante parcela dos historiadores do IHGB.
Em 1914 há o Primeiro Congresso de História Nacional organizado pelo IHGB.
Magalhães considera proveitosos os seus resultados, dado que ali se cria uma verdadeira
polissemia de concepções historiográficas. Em sua opinião, todos os trabalhos então reunidos,
que estão na esfera monográfico-analítica, servem ao historiador que se arrisque na produção
de uma nova história geral do Brasil, ou mobilizando o vocabulário epistêmico diferente, uma
síntese modernista da formação histórica nacional. Um rico material empírico já está, portanto,
à disposição. Lembrando que a síntese modernista é a conjugação entre empiria e reflexividade
em busca da complexidade dos fenômenos históricos. A realização do congresso faz crer que
“seus consectários naturais” se movam em direção “ao surto de uma História geral do Brasil,
em que se aproveitem os cabedais agora granjeados e nos moldes que uma obra de fôlego
impõem as conquistas do progresso, as conquistas da ciência contemporânea”.1101
Em se tratando de epistemologia do saber histórico vemos Magalhães se aproximando
do ideal de síntese modernista: um estudo de carácter mais meditativo, teórico e reflexivo do
que preso e refém de minúcias explicativas ou do inglório trabalho metódico fomentador da
representação do passado. Em suas concisas palavras: “emancipei-me por completo, desde anos
muito em flor, da ociosa pesquisa das causas primeiras e finais (..)”. 1102 A síntese modernista
necessita, vale lembrar, da análise, mas o que se argumenta é que ela transforma o empirismo
em representação explicativa.
O que está em jogo para o autor é uma forma de se pensar e de se filosofar a história
que transcenda certas perspectivas que se modulam por vias empiricistas encerradas em si
mesmas, ou em um esforço de pensamento cujas elucubrações são de natureza metafisica. Seus
alvos mais imediatos são Nietzsche e Bergson. Com esta passagem a seguir temos uma
orientação mais esclarecida sobre o pensamento teórico de Magalhães, e ao mesmo tempo
ficamos sabendo o que ele entende por síntese:
1101
Ibidem, p. 595
1102
Ibidem, p. 596.
347
E, si não abracei o nietzschianismo ou o bergsonismo, este agora tão no
galarim além-atlântico, foi porque tanto a viril concepção do primeiro
como o suave monismo do segundo se nimbaram de sutilezas
metafísicas, incompatíveis com o Estado do meu espírito, em más
condições de receptividade para com o nefelibatismos quaisquer, a não
atingirem à formação de uma síntese perfeita, explicativa do cosmos e
do microcosmos, conditio sine qua non de toda verdadeira criação
filosófica destinada a conquistar e a erguer bem alto a razão humana.1103
Ramiz Galvão, orador do Instituto, concorda com Basílio de Magalhães no que tange à
necessidade da escrita de uma nova história geral do Brasil, uma história única, que atenda as
demandas da nova conjuntura discursivo-historiográfica. Mas a síntese historicista de
Varnhagen é valorizada por Galvão. Os vícios e as virtudes do Visconde de Porto Seguro são
indícios daquilo que se deve ou não fazer em termos de pesquisa. “Faltou-lhe talvez a amplitude
de vista filosófica, faltou-lhe de certo a vibração patriótica; mas seu espírito frio e analítico
deixou páginas e quadros, que não é lícito desestimar”.1104 Em todo caso, se deseja entre aqueles
homens e mulheres de letras uma história integral, isto é, uma síntese. No caso uma história
total à nível conceitual. É uma necessidade imperiosa daquela experiência historiográfica, uma
espécie de “código máximo das nossas tradições” que, até aquele momento, é suprida pelos
ensaios de interpretação histórica. Galvão sinaliza para as virtudes epistêmicas requeridas
nessa difícil tarefa: “é certo que a grande obra espera ainda o seu máximo arquiteto, ardoroso,
profundo, imparcial e probo, capaz a todos os respectivos de erigir o monumento
ambicionado”.1105 O historiador-sintético-modernista obedece aos códigos da análise.
Enquanto isso, para Manoel Cícero Peregrino da Silva a função primeva do IHGB
também não pode repousar, em uma postura próxima à de Magalhães, unicamente em
armazenar documentos e lançá-los à publicidade, mas vai ao ponto de analisá-los para deles
extrair a síntese. Isso é a moderna concepção de história para o estudioso, que permite colocar
em relevo, hermeneuticamente, os fatos culminantes da vida da humanidade através do tempo,
encandeando-os uns aos outros conforme as exigências do olhar cognoscente do pesquisador e
explicando-os por causas diversas acumuladas pelo passado ou subordinadas pelo meio. Eis,
então, os caminhos para a realização da síntese modernista.1106
1103
MAGALHÃES, Discurso... op. cit., p. 596.
1104
GALVÃO, Ramiz. Discurso em razão de recepção do sócio Basílio de Magalhães. RIHGB, tomo LXXVII,
parte II, 1914, p. 601.
1105
GALVÃO, Discurso em razão... op. cit., p. 602.
1106
SILVA, Discurso... op. cit., p. 606.
348
Capítulo 10 - Pedro Lessa e os canteiros da historiografia: os desafios da
prática do historiador no alvorecer do século XX
Pedro Lessa
O primeiro movimento interpretativo realizado por Pedro Lessa em suas Reflexões sobre
o conceito da História (1906) foi o de buscar entre os historiadores clássicos as raízes da prática
da historiografia, abrindo a possibilidade de se compreender o todo da pesquisa histórica, do
arquivo à narrativa. Essa preocupação materializou-se em uma das primeiras histórias da
historiografia cognitiva realizada no Brasil, distanciada das historicizações do métier efetuadas
pela história da literatura, como em Sílvio Romero e, anos depois, em José Veríssimo.1108
Valdei Araujo argumentou que esse tipo de estudo sobre a pesquisa histórica consolidou-se pari
passu com a própria efetivação da história como discurso autônomo em fins do século XIX.
Esse apontamento ganha sentido ao situarmos a obra de Lessa. Araujo sintetiza: “(...) uma das
suas principais funções foi traçar o progresso da pesquisa histórica desde a antiguidade até sua
forma científica moderna”.1109 O que realmente está em jogo em nossa investigação é que o
texto de Lessa se apresenta como um indício de questões que se relacionam com uma tarefa
incontornável naquele período, ainda que por vezes implícita: definir o que constitui a prática
historiográfica, e como compreendê-la, legitimando-a, a partir da sua historicidade.
O emprenho de Pedro Lessa não se limitou em elencar um conjunto de autores e de
obras. O jurista mineiro analisou, avaliou e hierarquizou os trabalhos que discutiu. Dessa
atividade encontrava-se um ideal aproximado do significado de historiografia, em que se
observava a reunião de qualidades indispensáveis, bem como de vícios a serem superados.
Lessa contribuiu teoricamente, ao narrar o significado da prática da historiografia, com um
movimento notadamente importante para a história intelectual brasileira, localizado na Primeira
República, em que verifica-se “debates e novas versões sobre o que era e o que devia ser a
História do Brasil, com desdobramentos importantes para o campo intelectual e
1107
LESSA, Pedro Augusto Carneiro. Reflexões sobre o conceito da história. RIHGB, tomo 69, parte II, 1906, p.
283.
1108
José Honório Rodrigues é quem afasta definitivamente os estudos sobre a historiografia das histórias da
literatura, pois nelas, segundo ele, “imperaria o critério formal e estilístico, em contraposição a uma abordagem
centrada nas especificidades da disciplina história”. SANTOS; PEREIRA, Mutações no conceito... op. cit., p. 19.
1109
ARAUJO, Valdei Lopes de. Sobre o lugar da história da historiografia como disciplina autônoma. In: Locus:
Revista de História, JF, v. 12, n. 1, 2006, p. 79. Disponível em: https://cutt.ly/7v3890c Acesso: 08 abr. 2021.
349
historiográfico“.1110 O texto de Pedro Lessa é, ao contextualizar o significado da atividade
historiográfica europeia, autolegitimador de uma forma específica de conceber o trabalho do
historiador. Como toda história, é uma história do presente. O preenchimento do conteúdo da
categoria historiografia estava condicionado às demandas e aos desafios colocados aos
historiadores brasileiros na Primeira República. Esse “estado da arte” oferecido pelo autor
também se apresenta propositor de ações de delimitação e de fixação interna e externa dos
conteúdos da disciplina história, estabelecendo os seus Outros. Prescrevendo, então, o que era
importante, ou não, para a atividade do historiador no presente e no futuro.
Assim, a escrita da história entre os clássicos deseja se “perpetuar” através do tempo.
Ela possui em seu cerne uma dimensão moralizante, como no caso da honra e da glória. Isso é
verificado através das temáticas dos feitos bélicos, militares e políticos.
Não há plausibilidade historiográfica nessas formas de se conceber a história, para
Lessa. As suas considerações são episódicas e de memória: “tradições” e “crônicas” que não
são avaliadas pela virtude epistêmica da fidelidade e da confiabilidade do laudo documental,
próprios da prática da historiografia. Por outro lado, há nelas virtudes literárias, relativamente
importantes para o historiador, que se localizam no último estágio da operação historiográfica.
Fala-se de “primores literários” coadunados com a habilidade da narrativa descritiva, princípio
herdado pela prática da historiografia.1111 Estamos diante de uma memória disciplinar, pois há,
aqui, uma tentativa de silenciar autores, perspectivas e obras que não são consideradas
científicas, nos moldes do século XX.1112 A historiografia, ao se autolegitimar, colocava à
margem toda uma contra-história. Nesse caso específico a historiografia apagava as pretensões
ficcionais da história, as temáticas da antiguidade, as suas fontes e a sua perspectiva de
eternização. Assim, historiografia é o resultado lexical de um processo duplo: de silenciamento
e de autolegitimação do que devia ser a prática do historiador através do tempo. De pacificação
das tensões intelectuais existentes ao eleger a forma mais adequada de se praticar o métier.
Não há, para Pedro Lessa, sistematicidade na prática histórica dos antigos. Mas nessa
dinâmica comparativa podia-se perceber as habilidades e as virtudes modernas pelo não dito,
ou por aquilo que faltava ao Outro, desqualificando-o. Indiciariamente a prática da
historiografia forma-se a partir de resíduos descontínuos. A historiografia liga-se ao regime
1110
GOMES, A República... op. cit., p, 25.
1111
LESSA, Reflexões... op. cit., p 198.
1112
Manoel Luiz Salgado Guimarães nos esclarece a dinâmica própria da memória disciplinar: “Nossa própria
disciplina tem a sua história, frutos de embates e tensões, disputas por memória, uma memória disciplinar que uma
vez instituída tende a canonizar autores e obras constituindo o panteon dos nossos clássicos. Interrogá-lo é tarefa
da historiografia, procurando deslindar as tramas que tornaram operatória e necessárias estas escolhas, dentre um
leque de outras possíveis. Reconstituir estes cenários de disputas e tensões em que ações eletivas são acionadas
ajuda-nos a compreender o trabalho de escrita da história como parte de um esforço maior de construção social da
vida humana”. GUIMARÃES, Historiografia e cultura histórica... op. cit., p. 32.
350
historiográfico metódico, modulado pelas habilidades e pelas aptidões condensadas na metáfora
epistêmica do “gosto pelo arquivo”, primeiro movimento da operação historiográfica em seu
desejo de fazer da pesquisa histórica uma cadeia de “operações de busca, seleção e ordenamento
dos ‘documentos’ - bases confiáveis para a narrativa do historiador - e acompanhada pelo
exercício da ‘crítica interna’ a tais documentos”.1113 Segundo Angela de Castro Gomes essa é
a habilidade que identifica o historiador diante de outros intelectuais coevos na Primeira
República, em um momento marcado pela poligrafia. Entre os historiadores clássicos não se
localizam as virtudes epistêmicas da confiabilidade, da diligência e do rigor analítico.
A verdade dos fatos se mostrava distinta entre as epistemes moderna e antiga-clássica.
Eram instâncias de verdade não equivalentes, dado que entre os regimes historiográficos
clássicos não havia a preocupação do estabelecimento metodicamente orientado da veracidade
por indícios e por evidências. As narrativas históricas clássicas operacionalizam virtudes
narrativo-literárias, chegando a ser adjetivadas como “atraentes ou empolgantes”. Mas Pedro
Lessa afirma que para haver historiografia faz-se necessário os métodos e os cânones da
heurística, da diplomática, bem como da crítica de informação. Sem essas habilidades “ninguém
se aventura à árdua tarefa da historiografia”.1114 Este é o seu parecer sobre a pesquisa histórica
greco-romana: a “(...) história, para os gregos e romanos, é um gênero literário. A amplificação
oratória, as ficções, o maravilhoso épico, inçam as narrativas, desfigurando os fatos, e
subtraindo-os à justa apreciação dos mais claros e seguros entendimentos”.1115
A historiografia deve corresponder às seguintes atividades e habilidades: o “escrupuloso
exame das provas (...) pelo improbo labor de cirandar meticulosamente os documentos”
entendidos como fontes de primeiro grau e/ou indícios e evidências pertinentes ao exame.1116
Mais alguns vícios epistêmicos encontrados em historiadores do porte de Tucídides (c. 460 a.C-
400 a.C),1117 de Políbio (c. 203 a.C-120 a.C) e de Tito Lívio (c. 59 a.C-17 d.C) são evidenciados:
1113
GOMES, História... op. cit., p. 43.
1114
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 196.
1115
Idem, p. 199. O regime de verdade das histórias clássicas, especialmente gregas, pode ser melhor
compreendido fora da memória disciplinar da história ciência criada por Pedro Lessa: “o gênero histórico, como
qualquer outra forma de relato que deveria atender às prerrogativas da arte de escrever, teria de buscar a beleza e
o agrado na forma e no conteúdo. Atendo-se à verossimilhança, ao possível de ter ocorrido, ao captável pela
imaginação, a história partiria do particular para o geral. Relataria casos específicos, visando modelar exempla.
Uniria de forma atávica passado, presente e futuro, numa cadeia causal que conduziria o leitor/ouvinte pelo
interessante relato do ocorrido. De igual maneira, caberia ao historiador, enquanto mestre da linguagem, escolher
um bom tema, as melhores palavras e lançar mão de seu repertório de imagens para produzir a mais adequada
narrativa”. GONÇALVES, Ana Teresa Marques. Entre gregos e romanos: história e literatura no mundo clássico.
Revista Tempo, vol. 20, 2014, p. 4. Disponível em: https://cutt.ly/BcLHqqk Acesso: 08 abr. 2021.
1116
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 197
1117
Pedro Lessa faz um parêntese sobre Tucídides. O autor da Guerra do Peloponeso, dentro dos limites da sua
época, almeja a objetividade, deixando à disposição dos leitores como se opera os critérios utilizados na economia
do seu texto. É justamente por conta dessa disposição que os escritos de Tucídides são, de algum modo, retomados
351
falta a eles a habilidade metódica da elaboração analítica dos fatos e o engenho hermenêutico
que respeita a “sistematização dos elementos preparados pelos historiadores” . Assim, “não se
pretenda tampouco descobrir nos historiadores gregos e romanos, a coordenação metódica dos
fatos, a sistematização científica dos elementos preparados pelo historiador, para as
generalizações das ciências sociais”.1118 Pedro Lessa afirma que a leitura de Hippolyte Taine
lhe fornece essa consciência epistemológica. O estudioso francês assim caracteriza as
dimensões e as dinâmicas historiográficas presentes entre os historiadores antigos: “oferecem
unicamente uma sucessão de acontecimentos, e não classes de fatos”. Essa diferenciação
apresenta uma ideia das virtudes epistêmicas solicitadas por Lessa, na medida em que fato se
diferencia de acontecimento em razão de apresentar-se no âmbito do valor, da representação;
já o acontecimento é episódico. Por isso se pode classificar os fatos. Pedro Lessa projeta em
seu texto as expectativas quanto ao ideal da prática historiográfica requerida na Primeira
República à custa do silenciamento de tradições e de formas de se fazer história, ou seja, “o
ponto de vista do historiador entra irrevogavelmente em toda observação que ele faz; a história
é atingida inúmeras vezes pela relatividade”.1119
A prática da historiografia ganhava corpo por meio do confronto entre antigos e
modernos, indicando qual podia ser a sua performance na Primeira República brasileira. Ela,
em primeiro lugar, parecia autonomizar o conhecimento histórico diante de certa competição
epistêmica com as ciências sociais no que se referia a qual disciplina melhor interpretava a
história e a sociedade. Em segundo lugar, na passagem para o século XX não são poucas, vindas
desses mesmos campos, as advertências de que a história estava presa ao nível da erudição
massiva, da crítica documental internalista e da cronística.1120 Diante dessa forte demanda a
historiografia prometeu sistematizar e atualizar a sua tradição erudita e se abrir
interdisciplinarmente. A historiografia reúne em torno de uma expertise uma longa tradição de
se conceber a prática do historiador, não só a escrita.
Assim, o que é herdado da Idade Média são, para Pedro Lessa, “toscos esboços de
história universal, modelados que estavam pelos escritos de Eusébio [c. 265-339], Osório [c
385-420] e outros historiadores católicos”.1121 Mas há habilidades que merecem ser colocadas
e aclamados século XIX adentro como modelo possível de história. Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. A tradição
Herodoteana e Tucidideana. In: _____... As raízes... op. cit., 2004.
1118
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 201.
1119
CARR, Edward. Que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 104.
1120
“Se em alguma medida as crônicas, a erudição, e longas digressões de crítica documental são reprovadas e
vistas como empecilhos por ambos os momentos, novos pressupostos teórico-metodológicos e um novo
vocabulário surgem na virada do século XIX para o XX para lidar com a problemática de narrar a história do
Brasil”. DETONI, A moderna... op. cit., p. 26.
1121
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 202. Guy Bourdé e Hervé Martin admitem que a produção intelectual
352
no plano das atividades da historiografia, onde localiza-se a prática da glosa e da descrição fiel
dos documentos, bem como a mobilização do sistema compilatório, cuja utilidade revela-se no
campo do direito e da pesquisa histórica. A glosa se faz importante por servir como elemento
de crítica das fontes. Está, aí, parte da herança historiográfica advinda do medievo. Mas o que
se observa no geral são “investigações ou a exposição do historiador a nenhum princípio,
doutrina, método, ou classificação cientifica” orientadora de sentido e de racionalidade.1122
Do Renascimento se destacaram os escritos de Maquiavel (1469-1527), que também
foram interditados epistemologicamente. Sua teoria da historicidade seria estruturada por um
“abstruso semi-fatalismo”: o movimento cíclico das esferas. Nessa teoria da historicidade “a
direção dos astros, o curso das estações, a passagem da vida para a morte, tudo é preestabelecido
e dominado pela evolução circular do universo”. A categoria historiografia não estava nesse
compasso interpretativo, posto que os seus horizontes eram realistas. O movimento
epistemológico de Maquiavel propicia a seguinte consciência de historicidade: “as continuas
mutações são resultantes do impulso comunicado pelas esferas, e os homens nunca podem
adivinhar o fim definitivo do universo”.1123 Um eixo orientador de historicidade que se
estruturava em torno da ideia de Deus, da fortuna ou do destino enquanto instâncias metafísicas
não combinava com as prescrições da categoria historiografia. As proposições de Maquiavel
foram desatualizadas por Pedro Lessa. As explicações do intelectual florentino seriam
derivadas de um momento específico da história da historiografia em que as suas diretrizes não
eram capazes de fomentar uma atividade, um fazer ou uma prática sistemática. Lessa distancia-
se do autor italiano a partir de três ângulos: da narrativa historiográfica, da teoria da
historicidade e da fundamentação epistêmica. O seu modelo historiográfico está, no limite,
desatualizado diante da “hodierna concepção da natureza da ciência”, não existindo ali, então,
uma “teoria científica da história”.1124
O princípio da teoria da historicidade dos autores medievais e renascentistas resume-se
por meio desta argumentação: “Era dado ao homem conhecer o futuro de um modo
sobrenatural”. Praticar historiografia significava, por outro lado, conceber uma teoria do
conhecimento realista. As odisseias do devir histórico não podiam amparar-se em uma
inteligência superior ou no destino, cujo exame empírico, real e vitalista desabonavam. Isso
servia tanto para Maquiavel quanto para Bossuet (1627-1704). Em Bossuet é assim descrita a
disponível na idade média está voltada aos interesses religiosos dos produtores ou daqueles que encomendam a
produção. BOURDÉ, Guy & Martin, Hervé. As Escolas históricas. Lisboa: PEA, s.d, p. 13-43.
1122
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 202.
1123
Idem, p. 202.
1124
Ibidem, p. 203.
353
sua teoria da historicidade: “Deus intervém na direção das coisas humanas, obrigando
constantemente a natureza a sair das leis por ele próprio estabelecidas; é um senhor absoluto,
despótico, cuja vontade constituí o único vínculo que mantém a ordem do universo”.1125 Na
teoria do conhecimento elaborada por Pedro Lessa a providência não era passível de
plausibilidade epistêmica, posto que escapava aos princípios racionais da investigação
historiográfica. Uma prova do seu racionalismo analítico e do seu veto à providência pode ser
verificado neste excerto: “Isso não quer dizer que as religiões sejam verdadeiras. Em todo os
tempos o dogma religioso é uma engenhosa falsidade, engendrada pelos homens em proveito
de seus interesses”.1126 Os fundamentos clássicos da ideia de providência informam, pois, algo
“superior às leis, e sem o conhecimento destas, isto é, das relações necessárias derivadas da
natureza das coisas, do que é comum, constante, permanente, na produção dos fenômenos, não
existe ciência”.1127 Esses sujeitos enunciaram teorias da historicidade com tons metafísicos em
suas explicações sobre o sentido primeiro da história, sendo que para Lessa o motor da história
era realista, desse mundo e humano, isto é, radicalmente histórico.
Torna-se essencial a localização, na passagem do século XVIII para o XIX, de
determinados tipos historiográficos que se aproximaram do vitalismo na referenciação de uma
teoria da historicidade realista. Deseja-se perquirir e teorizar a partir de “causas de caráter
puramente histórico, algo como causas psicológicas ou pragmáticas” que são capazes, ao menos
em certos ângulos, de interditar, arrefecer ou excluir a “Velha Fortuna”.1128 A época iluminista
trouxe consigo as filosofias da história. No entanto, elas guardam enquanto resíduo um fator
específico da teoria da historicidade providencialista: eram fatalistas na tentativa de ordenar e
urdir a inconstância própria dos eventos junto ao plano da temporalidade. O elenco de autores
é substantivo em termos de relevância para uma história da historiografia ocidental: Vico (1668-
1744), Hegel (1770-1831), Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755), Herder (1774-
1803) e Condorcet (1743-1794). Além disso, a história mestra da vida sofreu nessa conjuntura
epistêmico-discursiva uma mutação: agora o aprendizado era em perspectiva futurocêntrica.1129
1125
Ibidem, p. 204. Maria Izabel M. Oliveira coloca em seus termos a performance do providencialismo de
Bossuet, contribuindo para uma melhor historicização da leitura realizada por Pedro Lessa sobre o filósofo. “O
providencialismo, uma ideia muito antiga de um Deus que dirige a história dos homens, aparece com toda a sua
força no pensamento político de Bossuet. Em sua concepção é Deus quem dirige a política aqui na Terra. Aos reis
cabe somente fazer a Sua vontade; qualquer deslize acarreta em graves consequências. Deus, ao ver Suas leis
violadas, lança os piores castigos aos reis e aos seus respectivos reinos”. OLIVEIRA, Maria Izabel M. “Os
combates intelectuais de Bossuet: a unidade política por meio da unidade religiosa”. Fênix. Revista de história e
estudos culturais, vol. 3, ano II, n. 3, 2006, p. 9 -10. Disponível em: https://cutt.ly/fcZekni Acesso: 08 abr. 2021.
1126
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 203.
1127
Idem, p. 210.
1128
KOSELLECK, Reinhart. O acaso como resíduo de motivação na historiografia. In: _____... op. cit., p. 149.
1129
A filosofia da história é um gênero especulativo que emerge no século XVIII se propondo a teorizar sobre
temáticas como o sentido da história, a sua lógica imanente, o progresso e a decadência através da história. José
D’Assunção Barros é preciso ao delimitar o espaço de trabalho do filósofo da história: “Sobretudo, os filósofos da
354
A partir das aproximações e dos distanciamentos entre antigos e modernos pode-se
perceber o delineamento da prática da historiografia, que em último caso explica o significado
da pesquisa histórica em todas as suas fases de execução. Pretendemos, por meio do conteúdo
da categoria historiografia, compreender melhor as performances do fazer histórico na Primeira
República, momento esse em que ela parece, por meio dos escritos de Lessa, condensar toda a
prática do historiador: 1) a historiografia forma um arquivo; 2) há a preocupação metódica, do
arquivo à escrita; 3) a historiografia trata o fato histórico enquanto valor, conceito e
representação, instituindo, então, a análise; 4) a historiografia preocupa-se com o plano realista
e não transcendente; 5) a historiografia classifica os fatos históricos; 6) a historiografia tem a
capacidade de ensinar, acompanhando, então, as mutações da historia magistra vitae na
modernidade; 7) a historiografia mobiliza a narrativa descritiva, herança grega.
história não esgotavam seu trabalho, de modo algum, com fenômenos históricos que tinham diante de si através
dos registros e evidências que habitualmente dão suporte ao trabalho do historiador. O filósofo da história queria
ir além, e enxergar mesmo o futuro, ou ao menos um determinado padrão necessário de evolução ou de
desenvolvimento da história em direção ao futuro”. BARROS, José D’Assunção. “Teorias da história” e “filosofias
da história”: considerações sobre o contraste entre dois espaços de reflexão sobre o fazer histórico”. Anos 90, vol.
19, n. 36, 2012, p. 374. Disponível em: https://cutt.ly/ncLneAM Acesso: 08 abr. 2021.
355
abrange o curso inteiro da história da humanidade. Eles nutrem a pretensão de determinar donde
veio a humanidade, e qual a direção que há de seguir no futuro”.1130 Mas ao indicar o seu objeto,
que trazia consigo uma espécie de pedagogia civilizadora, implicitamente se averiguava os seus
limites historiográficos, porquanto não era possível conhecer o conjunto dos fatos que
organizam o todo da história da humanidade.1131 Daí uma das virtudes da historiografia residir,
então, na indicação da contingencia e da complexidade em história.
Dito isso, temos como exemplo a refutação dos escritos daquele que, em tese, primeiro
produziu uma filosofia da história: Giambattista Vico. A sua forma de compreender a sociedade
é amparada por uma lei universal da história, qual seja, aquela que admite que as nações
necessariamente passam por três idades que se repetem eternamente: a idade divina, a idade
heroica e a idade humana. Aos olhos vigilantes da historiografia essa percepção da história não
parecia adequada para tornar-se um modelo teórico válido. Aqui está o ponto chave da derrota
das filosofias da história: as leis que se dispõe a abranger todo um sistema de situações
histórico-sociais não comportam o exame do detalhe por parte da categoria historiografia, que
para tanto mobiliza toda uma prática de pesquisa metodicamente conduzida. Sobre o
mecanicismo de Vico se discorre o seguinte:
Comparemos a nossa idade com a idade média, ou estas duas entre si, e
vejamos se os três períodos repetem os mesmos fatos, e na ordem de sucessão
das três épocas – divina, heroica e humana. Seria uma tarefa ingrata, por
infantil, demonstrar que o presente difere do passado quanto aos costumes, à
religião, às instituições políticas e jurídicas, às ideias científicas, ao progresso
das artes, à indústria e à guerra.1132
Operar a categoria historiografia nesse sentido seria negar, então, a lei histórica do corsi e
recorsi, quer dizer, o principal eixo intelectual da filosofia da história de Vico.
Para alguns foi Voltaire o idealizador da história filosófica. Além disso, foi ele que
ampliou o leque de temas que um historiador devia abranger: os costumes, as letras, a filosofia,
1130
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 255.
1131
Os interditos à filosofia da história são verificados no século XIX, sobretudo na Alemanha. O historicismo de
autores como Johann Gustav Droysen (1808-1884), Leopold von Ranke (1795-1886), Jacob Burckhardt (1818-
1897) e Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) corrobora o argumento. Entre esses historiadores alemães há a
rejeição de explicações absolutas sobre os fatos, eliminando, então, qualquer forma de valor universal dos mesmos.
Segundo Herbert Schnädelbach, “o relativismo, então, vem a ser a última palavra de uma cultura que considera a
si mesma científica”. Esses sujeitos, por meio do seu historicismo, arrogavam para si a tarefa de acabar com a
subordinação do saber histórico às leis apriorísticas. O fator de entendimento “individualidade histórica”, em que
os fatos só podem ser abordados através do seu próprio desenvolvimento, suspende qualquer abordagem que os
circunscreve para além deles próprios. A história científica preconizada pelos alemães é elaborada através das
noções de observação e de compreensão dos fatos, bem como por intermédio da crítica das fontes, que vem a
determinar, enfim, a deontologia dos fatos. SCHNÄDELBACH, Herbert. La filosofia em Alemania, 1831-1933.
Madrid: Cátedra, 1991.
1132
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 208.
356
todos os elementos, enfim, que refletiam a vida humana.1133 Mesmo nessas condições o filósofo
francês não desenvolveu, para Pedro Lessa, um sistema analítico, pois movimentou em suas
explicações uma variante fatalista-teleológica. Voltaire não estruturou uma prática ou
desenvolveu uma pesquisa metodicamente orientada, como era o caso da historiografia. Por
fim, argumenta-se que o filósofo francês, apesar de toda a sua luta por tornar o campo temático
da história plural1134, ainda se orientava através da dimensão dos costumes, sendo que a
historiografia demandava uma análise das instituições, pois essa instância seria passível de
classificação. Já Montesquieu, para além de admiráveis observações sobre a política, não
projetou uma filosofia da história. Ele não prognosticou determinantes a que estão sujeitos os
fatos históricos no tempo, porém, reduziu as conclusões obtidas a um “princípio superior”. Em
Montesquieu há, além disso, “um conjunto de notas, e não um sistema”.1135
É precisamente da leitura crítica da história filosófica de Condorcet que Lessa orienta
as suas perspectivas epistêmicas, bem como a elaboração da sua teoria da historicidade. Em
suas palavras: o livro Esquisse d’un tableau historique dês progrès de l’esprit humain ocupa
“um lugar saliente entre os que pretenderam criar a filosofia da história”. A sua teoria da
historicidade assinala e expõe isto: a “perfectibilidade do homem é infinita; os progressos dessa
perfectibilidade, de hoje em diante independentes da compreensão de qualquer poder, tem como
termo único a duração do globo em que nos colocou a natureza”.1136 No entanto, a economia
nocional a qual assinalava que as histórias dos costumes dos povos podiam ser racionalizadas
1133
É Luiz Francisco Albuquerque de Miranda quem circunscreve a dimensão progressista implicada nas filosofias
da história, com especial atenção para o caso do filósofo francês Voltaire: “Para os autores do século XVIII, os
sinais mais evidentes do progresso podem ser encontrados no aperfeiçoamento dos costumes, das artes, das
ciências e da filosofia. Em Voltaire não é diferente, mas é necessário observar que, para ele, esses aperfeiçoamentos
dependem de uma rede complexa de relações sociais: a vida produtiva, por exemplo, possibilita recursos para as
belas-artes que, por sua vez, refinam o gosto da elite (as cortes, por exemplo); a partir de então, a elite passa a
exigir do mundo da produção artefatos de melhor qualidade. Sendo assim, o desenvolvimento das atividades
produtivas – chamadas por vezes de ‘artes úteis’ – sempre antecede e possibilita a prática de artes destinadas à
contemplação e à vida espiritual – as ‘belas artes’”. MIRANDA, Luiz Francisco Albuquerque. Progresso e
decadência na história filosófica de Voltaire. História da historiografia, n. 7, 2011, p. 285. Disponível em:
https://cutt.ly/EcL8H29 Acesso: 08 abr. 2021.
1134
De t,odo modo, José D’Assunção Barros faz uma importante consideração acerca da estrutura epistemológica
implicada nas obras de Voltaire, complexificando a sua recepção por parte de Pedro Lessa: na “‘história filosófica’,
apresentada em um texto intitulado “filosofia da história” e realizada parcialmente no Ensaio sobre os Costumes
(1756), Voltaire não almeja mais o leitor culto de modo geral e o ‘príncipe esclarecido’ a ser instruído”. A “história
filosófica” é escrita por um “historiador filósofo” visando um “leitor-filósofo”. É interessante perceber que é
precisamente através desse tipo de texto historiográfico que encontramos os comentários voltairianos mais
visionários sobre a história, bem como as tentativas mais “consistentes de colocá-lo em prática de modo a fazer da
História um campo de conhecimento que pode ir além do factual e estabelecer uma reflexão complexa e
diversificada sobre as diversas instâncias do social – a cultura, os hábitos, os modos de pensar e de sentir – e não
apenas sobre a instância política”. BARROS, José D’Assunção. Voltaire: considerações sobre a sua historiografia
e teoria da história. Revista de Teoria da História, ano. 3, n. 7, 2012, p. 28-29. Disponível em:
https://cutt.ly/lcLnkCk Acesso: 08 abr. 2021.
1135
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 211.
1136
Idem, p. 212.
357
em sua jornada futurocêntrica e progressista, tanto em termos epistemológicos quanto de teoria
da historicidade, que consequentemente tinha impactos nas formas narrativas, ou seja, nas
filosofias da história, era o mote exato de inflexão do pensamento de Pedro Lessa. Não havia
plausibilidade, em termos de teoria do conhecimento, na efetivação de metanarrativas
progressistas, característica marcante da produção histórica moderna. Essas metanarrativas não
possuíam princípios internos e lógicos que a caracterizavam como um produto teórico-
científico, que no caso do jurista Lessa significava sistematização, crítica, observação,
procedimentos lógicos, demonstráveis e falseáveis de indução e de dedução, além do desejo
pela narrativa dupla. As filosofias da história, diante do poder de análise implicado pela
historiografia, não podiam se performar como o seu horizonte teórico. Contudo, havia nesses
autores a consciência da necessidade da passagem da ideia de acontecimento episódico para o
fato enquanto totalidade processual. De todo modo, era a teoria do conhecimento, bem como
da historicidade, que subsidiava as filosofias da história que as tornavam incompatíveis como
modelo teórico para a prática da historiografia.
Aqui encontramos mais um acúmulo residual para a constituição da categoria
historiografia. É aberta, nesse contexto historiográfico, condições para a emergência de formas
de inteligibilidade desvinculadas em essência de uma ordo temporum, quer dizer, de uma
disposição epistêmico-narrativa fundada e enraizada em datas e em referenciais
acontecimentais.1137 Epistemologicamente essa herança residual dos iluministas informava a
concepção de historiografia, mas a problemática essencial não se localizava por meio desse
ângulo de análise, mas, sim, no plano da teoria da historicidade, que oferecia condições para o
enredamento e para a urdidura dos fatos históricos. O que se colocava em suspensão na teoria
da historicidade das filosofias da história era a ideia de progresso, o ser do tempo iluminista. A
ideia de progresso enquanto suporte para uma teoria da temporalidade diante do crivo analítico
do regime historiográfico metódico se desvanecia.1138 Não havia progresso no sentido
iluminista para Pedro Lessa. A sua teoria da historicidade era baseada na ideia de sincronia e
de diacronia em modo complementar.
Já Herder argumentou que toda a história humana era uma história natural das forças
humanas; de ações e de motivos que dependem das circunstâncias. Lessa explica a filosofia da
1137
KOSELLECK, Reinhart. historia/Historia. Madrid: Trotta, 2004.
1138
No contexto europeu coevo ao de Lessa destacaram-se as críticas ao progresso realizadas pelo filósofo
Friedrich Nietzsche. Para o autor de Assim falou Zaratustra, “(...) ao contrário do que se crê, a humanidade não
representa uma evolução para algo melhor, de mais forte ou de mais elevado. O ‘progresso’ é simplesmente uma
ideia moderna, ou seja, uma ideia falsa. O europeu de hoje vale bem menos do que o europeu do Renascimento;
desenvolvimento contínuo não é forçosamente elevar-se, aperfeiçoar-se, fortalecer-se”. NIETZSCHE, Friedrich.
O anticristo. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 14-15.
358
história de Herder nos seguintes termos: “O homem é um ser subordinado à natureza, e dela
depende”.1139 A história era essencial para o esclarecimento dos homens. Mas faltava à Herder
questões comungadas pela ciência: a precisão nos conceitos e a averiguação dos vínculos que
ligavam as partes ao todo na explicação histórica. De qualquer maneira, conhecer a história, em
Herder, implicava compreensão do gênero humano e, consequentemente, do espírito do povo.
Neste sentido, elaborar a história tornava-se relevante para o esclarecimento dos sujeitos. De
forma tal que a história expressava o particular e o singular de cada povo e de cada momento
histórico. Todavia, a proposta de filosofia da história encampada por Herder, em que era
reconhecida a pluralidade de elementos que enredavam o humano em sociedade, expunha
prescrições e orientações teleológicas de natureza providencial.1140 Seria Deus, então, o
educador da humanidade. Já Pedro Lessa trabalha com a ideia de conformidade de
circunstâncias, que abre margem para a sua concepção de investigação historiográfica, posto
que se torna possível historicizar os agentes sociais no tempo, ou seja, eles são apreendidos
simultaneamente através dos vetores realistas tempo e espaço.
O que nos parece inegável é que os modelos iluministas, travestidos de filosofias da
história, estavam desatualizados diante das demandas teóricas da prática da historiografia, que
enfocava a particularidade, o distintivo e o único. A sua disposição epistêmica, considerada
não-científica, não abrangia as performances da historiografia, com as suas habilidades de
diligência no trato com as fontes, de observação atenta dos indícios e dos vestígios, de
mobilização do crivo racional percebido tanto na crítica interna quanto na externa das fontes,
ou nas atividades lógicas de indução e de dedução. Essa teoria do saber encontrava-se em estado
de obsolescência na concepção de Lessa.
Auguste Comte foi outro pensador envolto à atmosfera do século XIX, ainda na episteme
romântico-iluminista, desejante do estabelecimento da história como ciência das leis universais.
A sociologia de Comte, ou a sua dinâmica social, que se modula em formas narrativas
aproximadas às filosofias da história, estabelece uma lei fundamental da história que eleva seu
pensamento à categoria de ciência: a lei dos três Estados. Mas nem o seu “gênio assombroso”
ou a “admirável solidez de seus conhecimentos” são suficientes para atender as demandas e os
desejos implicados pelo contexto epistêmico em que Lessa se localiza, não sendo capazes, e
1139
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 215.
1140
Bárbara Natália Gómes nos informa a disposição do agir humano em Herder entre a providência e o progresso:
“Herder acreditava também que as capacidades do indivíduo influenciavam dividindo as responsabilidades do
plano e do progresso, tanto na providência como nos sujeitos individuais. Em suma, o progresso ocorreria através
da união destes dois elementos: o divino e o individual. Dessa forma, Deus era concebido como educador da
Humanidade, e esta era conduzida por seus desígnios e aos fins desejados por ele. Deus como educador cumpria
um papel preponderante no processo de Aufklärung”. GÓMEZ, Bárbara Natália. “Conceitos fundamentais para
compreender a filosofia da história de Johann Herder”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH.
São Paulo: USP, 2011, p. 7. Disponível em: https://cutt.ly/AcLGBJJ Acesso: 08 abr. 2021.
359
essa é a tarefa fundamental do conceito de história nesse regime de saber, de solucionar a tensão
entre empiria, vista de modo historiográfico, e reflexividade, em dimensão sociológica.
Através dessa dinâmica vemos parte dos caminhos e dos descaminhos da matriz
disciplinar da história no contexto epistêmico-historiográfico do Brasil na Primeira República.
Essa abordagem sobre as filosofias da história se origina da demanda em tornar a historiografia
a matéria do historiador e a sua expertise. Se prescreve no Brasil, desde os primórdios do IHGB,
que a fase explicativa da operação historiográfica seja abordada filosoficamente. O grande
exemplo no Brasil é a dissertação publicada por Karl von Martius na Revista do IHGB na
década de 1840: Como se deve escrever a história do Brasil. Ali são prescritas orientações para
o fazer histórico no Brasil em que a especulação filosófica era o mote teórico para a atividade
do historiador. A conhecida lei da “mescla das raças” apresenta-se como um exemplo de
performance de uma lei de teor filosófico, acoplada ao âmbito da antropologia, disponível no
Brasil. De acordo com Martius, a “historiografia filosófica do Brasil” aborda tanto
(...) a história dos povos quanto a dos indivíduos”, ela “nos mostra que o gênio
da história (do mundo), que conduz o gênero humano por caminhos, cuja
sabedoria sempre devemos reconhecer, não poucas vezes lança mão de cruzar
as raças para alcançar os mais sublimes fins na origem do mundo.1141
A categoria historiografia, em Pedro Lessa, requer as ciências sociais como plano teórico para
os resultados da sua pesquisa, especialmente a sociologia.
Desde ao menos 1878, quando Capistrano de Abreu escreveu o famoso Necrológio de
Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, estava lançada a ideia a qual o
plano teórico da historiografia, a que ele deu o nome de “estudos históricos”, devia se orientar
através das ciências sociais em circulação no Brasil, e não mais pela história filosófica.
Capistrano de Abreu, ao falar das limitações da prática historiográfica de Varnhagen, assinala
o seguinte: “pena que ignorasse ou desdenhasse o corpo de doutrinas criadoras que nos últimos
anos se constituíram em ciência sob o nome de sociologia. Sem esse facho luminoso, ele não
podia ver o modo por que se elabora a vida social”.1142 Já José Oiticica, em 1910, aponta que
“os nossos melhores historiógrafos”, via de regra, “baralharam sempre os acontecimentos,
nunca os separaram uns dos outros, nem lhes deram, com precisão, a influência por eles
exercida na evolução da sociedade brasileira”1143 em razão de não possuírem um plano teórico
1141
MARTIUS, Karl von. Como se deve escrever a história do Brasil. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado
(org.). Livro... op. cit.,, p. 65.
1142
ABREU, João Capistrano. Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. In:
NICOLAZZI, Fernando (org.). História... op. cit., p. 31.
1143
OITICICA, José. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista Americana. Rio de Janeiro: Edifício do
Jornal do Commercio, ano I, n. 7, 1910, p.110.
360
com feições sociológicas, o que impossibilita a classificação e a teorização dos mesmos.
Enquanto isso Sílvio Romero não concebe nenhuma originalidade na dissertação de Martius e
a considera desatualizada em termos de ciências, como no caso da etnografia. No fundo da
crítica de Romero reside o fato do naturalista bávaro não movimentar as ciências sociais como
aporte teórico para a historiografia, se apegando a uma dimensão filosófica facilmente refutada
em termos científicos.1144 É nessa conjuntura historiográfica que compreendemos as Reflexões
de Pedro Lessa, e a desatualização das filosofias da história e das histórias filosóficas na
República. Sendo que Lessa estava no limar do pós-evolucionismo, diferentemente dos autores
brasileiros elencados. A historiografia estava à procura do seu Outro, a sociologia - em um
momento de transformação do evolucionismo. Assim podia-se efetivar a síntese. Esse desejo
era uma estrutura-estruturante da produção historiográfica na República. Lessa afirma o
seguinte sobre a substituição das filosofias da história pela sociologia:
1144
Cf. ROMERO, Silvio. Diversas manifestações na prosa-História. Capítulo I. Carlos Frederico von Martius e
suas ideias acerca da história do Brasil. In: _____. História da Literatura Brasileira. Livraria José Olympio
Editora, Rio de Janeiro, 1960.
1145
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 271.
1146
MOMIGLIANO, Arnaldo. O surgimento da pesquisa antiquaria. In: _____. As raízes... op. cit., p. 113.
361
filósofo” se tornava relativamente caduca. Havia uma variedade de ciências sociais disponíveis
à historiografia para que ela alcançasse o ideal sintético.
Theodor Mommsen foi outro exemplo, inscrito no século XIX alemão, de figura do
saber que buscava conectar, para Momigliano, as habilidades e a sistematicidade erudita junto
à análise do particular por meio de uma teoria do conhecimento que visava explicações baseadas
em leis hipotéticas-conceituais que envolviam as instituições sociais. Esses sujeitos não
tomavam a análise factual e do material empírico como mimeses do real, como era entre aqueles
que acreditavam no fato histórico como episódio. Recorria-se a uma teoria do conhecimento
que oferecia quadros conceituais-representacionais apropriados para a interpretação da empiria-
erudita, tendo em vista que a temporalidade dos fatos não era mais linear e progressista, como
nas filosofias da história, mas pluri-evolutiva e sem um telos finalístico, como no caso da
sociologia. É, portanto, a passagem da história filosofia para a síntese modernista.
Arnaldo Momigliano argumenta, e Pedro Lessa tenta resolver esse impasse próprio da
história na modernidade, que as perspectivas interpretativas chamadas de ”estruturalistas” não
conseguem, na episteme romântico-iluminista, validar objetivamente “coerência interna” e
“significado” em termos de teoria do conhecimento visando o estudo dos costumes sociais ou
humanos.1147 Essa estrutura de saber só será possível por intermédio do diálogo entre
historiografia e ciências sociais (pós-evolucionistas, ou ainda hibridas), interditando, assim, os
filósofos da história e a sociologia evolucionista de Comte, cara à Pedro Lessa cabe destacar.
Podemos retomar, assim, as interdições e os silenciamentos impostos às filosofias da
história como forma de compreendermos melhor as performances da prática da historiografia
no presente da Primeira República: 1) a prática da historiografia nega o linearismo das filosofias
da história; 2) a prática da historiografia demanda teorias explicativas sociológicas, superando
as filosofias da história; 3) a historiografia nega as leis universais da história; 4) a historiografia
acusa as filosofias da história de não contemplarem uma sistemática científica, limitando-se a
um fatalismo filosófico; 5) herda-se das filosofias da história a consciência não episódica dos
fatos, porém eles, ainda, não passam pelo plano da análise classificatória; 6) coloca-se em
dúvida o progresso como lei histórica; 7) o ideal de saber requerido é aquele que reúne
historiografia e ciências sociais, especialmente a sociologia; 8) o saber historiográfico coloca
em dúvida as pedagogias civilizadoras implicadas nas filosofias da história; 10) há relativismo
nas formas de abordagem historiográfica metodicamente conduzida.
1147
Idem, 2004.
362
Lessa chega, então, ao seu confronto intelectual mais imediato em sua história da
historiografia que é o modelo de história estruturado por Henry Thomas Buckle. Lembrando
que as Reflexões, em sua ideia original, foram concebidas como introdução para a tradução da
História da Civilização na Inglaterra, de 1900, sendo que o seu título posterior é o seguinte: É
a história uma ciência? Em um primeiro movimento a sua crítica era em termos de teoria da
historicidade, em que se abordava o progresso a partir da subordinação de homens e de mulheres
ante o domínio da natureza. O esquema bubkleano é evolucionista em termos de teoria do saber,
articulando-se através do determinismo das leis históricas colocadas mimeticamente em estado
de anterioridade, cuja virtude preponderante estava na prefiguração do progresso do devir junto
ao enredamento da rítmica das transformações dos artefatos humanos no tempo.
No âmago da teoria da historicidade do historiador inglês encontramos a metáfora
epistêmica do motor da história. Foi a partir dessa preocupação que Lessa leu Buckle.
Colocava-se o seguinte problema investigativo: o que governa a história é o livre arbítrio ou o
determinismo? Vemos que essa problemática, que tinha raízes historiográficas, ainda mais se
considerarmos as teorias deterministas do meio e da raça circulantes no Brasil, também estava
no âmbito da sua carreira como jurista. O problema dessas duas linguagens historiográficas é
que, conforme bem pontua Angela de Castro Gomes, elas “impossibilitavam o estudo científico
dos fatos sociais; logo, vetariam em tese a existência da história e das ciências sociais”.1148
Temos, aí, um quiproquó historiográfico. O problema residia no fato se o humano tinha, ou não,
capacidade limitada de atuação face aos seus desejos. Até que ponto o ser humano conseguia
ser livre diante dos desígnios deterministas da natureza que o circunda?1149
Esse é um problema que podia ser resolvido através da mobilização da categoria
historiografia. O determinismo era arrefecido pela historiografia, posto que interditava as leis
miméticas em sua elaboração epistêmica face à ordem do mundo. A concepção de historiografia
estava distante das histórias filosóficas como a de Buckle, porque essa enredava os fatos no
âmbito das formas e não e dos conteúdos que passavam pela virtude da classificação analítico-
conceitual. O determinismo, ao projetar generalizações totalizantes e universais, esbarrava na
categoria historiografia ou nas malhas do regime historiográfico metódico, já que a facticidade
1148
GOMES, A República... op. cit., p. 45.
1149
Buckle, “(...) apoiando-se no método indutivo de Bacon, desenvolve minuciosa descrição de diferentes
sociedades como fundamentos para uma extensa argumentação sobre os inescapáveis efeitos da natureza sobre as
civilizações e as diferenças sociais nelas encontradas. Não se limitando apenas ao frio ou ao calor, ele se propõe
demonstrar, com apoio em verificações objetivas dos fenômenos, e em um modelo teórico fundamentado nas
condições da reprodução humana, que quanto mais pródiga a natureza, mais apequenado torna-se o homem”.
CASTRO, Iná Elias de. Do imaginário tropical à política. A resposta da geografia brasileira à história da maldição.
Scripta Nova. Revista electrónica de geografia y ciencias sociales, vol. 10, n. 218, 2006, p. 1. Disponível em:
https://cutt.ly/2cLYrxB Acesso: 08 abr. 2021.
363
empírica do mundo humano era ali colocada como primordial. O determinismo visto pela ótica
da historiografia estava repleto de incongruências epistemológicas, esvaziando o seu conteúdo
científico. O livre arbítrio estava destituído de conteúdo científico, dado que a ação social se
localizava no plano do condicionalismo. A historiografia interditava o livre arbítrio e o
determinismo, cabendo aos agentes serem concebidos em conformidade de circunstâncias.
Pedro Lessa não foi o primeiro, cabe destacar, a colocar em suspenso as prescrições de
Buckle, que assumiu a posição determinista (mesológica) em sua teoria do conhecimento e da
historicidade. A recepção da obra entre os seus coevos já assinalava isso. Valdei Lopes de
Araujo argumenta, nesse sentido, que a cronologia do progresso civilizatório incutida em sua
teoria da historicidade informa uma crono-geografia que orienta “um mapeamento
evolucionista das sociedades contemporâneas dentro e fora da Europa”.1150 O eurocentrismo de
tipo inglês é sentido em suas primeiras recepções, sendo motivo de acaloradas discussões.
Assim, Buckle produz “intricadas explicações para esses ‘fatos’, celebrando e legitimando
como único possível o modelo civilizacional inglês”. Em resumo, o seu “crono-mapeamento,
que dava ares de ciência a um conjunto muito antigo de preconceitos”, é recebido criticamente
por diversos intelectuais do seu tempo, dentro e fora da Europa, mas, sobretudo, entre aqueles
agentes intelectuais de países que estão excluídos do seu modelo de história, considerados
menos aptos ao progresso.1151 A historiografia era um recurso diante dessa história dita
científica, pois a particularidade, o fragmento sui generis, a análise das relações sociais serviam
como contraprova ao modelo universalizante elaborado na History de Buckle. Em diversos
discursos proferidos no Instituto Histórico essa atitude da historiografia foi concebida como
patriótica, isso porque essa prática suspendia os determinismos universais.
No âmbito do “bando de ideias novas” observado por Silvio Romero a partir da
experiência intelectual da década de 1870 no Brasil, para além das ideias de Haeckel, Comte,
Spencer e Taine, encontramos entre os historiadores uma consistente recepção da obra de
Buckle. Luciana Murari salienta que “a fonte por excelência desta doutrina”, qual seja, as
teorias deterministas do meio natural, “junto à geração de 1870 foi a obra do historiador inglês
Henry Thomas Buckle”. A sua recepção movimentou-se a partir das suas prescrições sobre as
regularidades advindas do contato dos sujeitos com o mundo natural, disposição que se
apresentaria como estrutura-estruturante das sociedades. Esse modelo historiográfico começava
1150
ARAUJO, Valdei Lopes de. Apresentação da Introdução geral à História da civilização na Inglaterra. In:
MARTINS, Estevão de Rezende (org.). História pensada. Teoria e método na historiografia europeia do século
XIX. São Paulo: Contexto, 2010, p. 221.
1151
Idem, 2010.
364
a fazer parte, para o bem e para o mal, das explicações dos agentes históricos no que tange ao
domínio do social.1152
O desejo da história dita científica de Buckle é o de efetivar uma cronotopia-espacial
que localiza as regiões do globo em que há a vitória, ou não, do ser humano sobre a natureza.
Uma impossibilidade epistêmica, segundo Lessa, pois a historiografia em seu efeito espectral
fragmento/todo impede o caráter de ciência das leis desejadas por Buckle em sua investigação.
Ademais, a trama e a urdidura dos fatos são apenas acionadas no nível da forma, não
abrangendo a sistemática do ser dos eventos, em que se verifica a dimensão conceitual e
classificatória. O seu desejo é desenvolver um motor da história, uma lei fundamental, em que
a teoria da historicidade descreva a marcha progressiva e evolutiva dos episódios históricos
através de leis replicáveis em qualquer espaço-tempo. A historiografia interdita essa ambição.
Mas Luciana Murari afirma que no momento em que Lessa lê o estudioso britânico e
prepara a sua introdução para a History, em 1900, “a obra já havia sido lida, em sua versão
original ou na tradução francesa, por Tobias Barreto, Capistrano de Abreu e Araripe Jr, por
exemplo”.1153 Incluímos Sílvio Romero e Fausto Cardoso. De todo modo, Murari assevera que
no contexto historiográfico em que Pedro Lessa efetua a sua leitura é expressivo o fato, agora
que a History está vertida para o português, da obra já não mais resistir à crítica. 1154 Este é o
princípio diretor e orientador da teoria do conhecimento de Buckle: “a uniformidade da natureza
no espaço e no tempo, parte indissociável de todo esforço teórico no sentido de articular a
história do homem e o mundo natural”.1155 Se verifica que o progresso existia na medida em
que o homem conseguia converter as forças naturais à seu favor pela técnica. A prática da
historiografia não admite essa disposição epistêmica, pois ela é antiprogressista e situacional.
O esquema de Buckle tem ampla recepção dentro e fora da Europa, como vimos. Porém,
desde a década de 1850 se espalha a percepção de certo exagero por parte do historiador inglês,
sobretudo, no que tange o eixo epistemológico advindo das relações entre o homem e a
natureza: “ao mesmo tempo matéria do conhecimento e força restritiva, repressiva, dominadora
e potencialmente aniquilante”.1156 Pedro Lessa tem a seu lado a prática da historiografia. com
a sua virtude de assimilação do particular no domínio do factual-conceitual metodicamente
conduzido, que coloca em suspensão a ideia de sucessão própria do evolucionismo determinista.
Além disso, a sua consciência historiográfica punha em dúvida a noção de sequencialidade,
incidindo, portanto, também em sua teoria da historicidade. A recepção da obra de Buckle, para
1152
MURARI, Tudo o mais... op. cit., 2002, p. 96.
1153
Idem, p. 103.
1154
Ibidem., 2002.
1155
Ibidem, p. 103.
1156
Ibidem, p. 101.
365
Murari, também se atém a esses problemas, pois a sua história é acusada de “cair no pecado da
generalização excessiva, ao mesmo tempo em que a rigidez de suas leis históricas
pretensamente científicas deixava pouco espaço para o acidente, a paixão e os costumes”.1157
Vemos outra filosofia da história desatualizada a partir das performances da historiografia,
derivando daí a sua impossibilidade de tornar-se um modelo teórico para a prática.
A partir apreciação da obra de Buckle a categoria historiografia consolida o seu
conteúdo semântico-epistemológico, fazendo-nos perceber a sua performance na República: 1)
a categoria não permite a instauração de determinismos universais; 2) a categoria historiografia
analisa os homens e as mulheres no tempo em conformidade de circunstâncias; 3) a
historiografia interdita o eurocentrismo e o etnocentrismo enquanto ideologias de dominação
(simbólica); 4) a prática historiográfica é assimilada como um exercício patriótico; 5) a
sequencialidade evolutiva é posta à prova pela contingência que a historiografia evidencia.
1157
Ibidem, p. 102.
1158
Para Paul Lacombe há fatos concebidos como únicos e fatos vistos em sua similaridade. O autor chama um de
acontecimento e o outro de instituição. “Leia os historiadores – digo estes de história ordinária, narrativa, parece
que não há história senão acontecimentos; leia os sociólogos, parece que não senão instituições. Contudo, o tecido
da história apresenta por toda parte os acontecimentos e as instituições profundamente cruzados e entrelaçados,
366
Segundo o historiador francês Jacques Revel, as prescrições de Lacombe visam “ultrapassar o
estatuto da crítica e do estabelecimento dos fatos, sob a condição de renunciar a toda
legibilidade científica”.1159 Essa postura radical de Paul Lacombe é, em certo sentido, assumida
por Pedro Lessa: a verificação e a evidenciação da singularidade própria dos fatos históricos,
tarefa da historiografia, necessita da articulação explicativa revelada pelo procedimento de
síntese, por meio da extração de regularidades conceituais e representativas, forma possível de
tornar os estudos sociais cientificamente verificáveis e cognitivamente conduzidos. Cerca de
uma década após Lacombe efetuar as suas reflexões, François Simiand (1873-1935) publica o
seu Méthode historique et science sociale. Diferentemente de Lacombe, mas próximo de Lessa,
o sociólogo durkeimiano denunciava que a história não tinha nada de científica, mas apresenta-
se como uma espécie de técnica, um procedimento destinado à descrição dos fenômenos
contingentes casuais, enquanto que a sociologia podia ter acesso aos fenômenos regulares e
estáveis, deles deduzindo a existência de tendências.1160 A historiografia se portava como
conhecimento relativo, o que não lhe conferia uma disposição científica nos moldes requeridos
em que se perscrutava o recorrente e o repetitivo.
De todo modo, o duelo epistêmico de François Simiand era contra os historiadores
Charles Langlois (1863-1929) e Charles Seignobos (1854-1942), autores do famoso manual
Introduction aux études historiques. A performance epistêmica e os procedimentos de
validação interna do conhecimento agenciados por esse manual “não permitiam aos olhos de
François Simiand, qualificá-la como ciência”,1161 posto que as suas operações, e isso está ligado
diretamente com a sua noção de síntese, perfaziam aquilo que ele chamava de três ídolos: o
político, o individual e o cronológico. As reflexões de Simiand conjugavam-se com as de Lessa.
Ambas estavam em uma mesma conjuntura epistêmico-historiográfica transnacional. Vê-se,
por meio das ideias desses autores, a constituição, mesmo que não categorizada, da noção de
síntese histórica, no caso denominada por nós como modernista. Havia para esses autores,
quando pensavam a historiografia perpassada pelo âmbito explicativo da sociologia, a
somente o nosso espírito os separa”. LACOMBE, Paul. O domínio da história ciência e seus limites. In:
MALERBA, Jurandir (org.). Lições... op. cit., p. 405.
1159
Cf. REVEL, Jacques. Proposições: ensaios de história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2009.
1160
François Simiand elabora uma dinâmica epistemológica que congrega história e ciências sociais: “(...) a
preocupação dominante deve ser a de substituir uma prática empírica, mal refletida, por um método pensado com
rigor e verdadeiramente crítico. Não acredito em uma reformulação repentina, bastando, para isso, a definição e a
aceitação consensual do fim a ser atingido. Creio, entretanto, que nos trabalhos dos historiadores atuais, na escolha
e no ordenamento refinado de suas pesquisas, na sua preocupação manifesta em renovar a sua obra, aproveitando-
se dos progressos das disciplinas vizinhas, evidenciam-se as tendências de substituição progressiva da prática
tradicional pelo estudo positivo e objetivo do fenômeno humano, susceptível de explicação científica, e,
finalmente, de elaboração consciente de uma ciência social. Conduzir o bom termo estas tendência,
transformando-as em ato, será, espero, obra da nova geração”. SIMIAND, François. Método histórico e ciência
social. Bauru: EDUSC, 2003, p. 115-116.
1161
REVEL, Proposições... op. cit., p. 21.
367
possibilidade não só da análise dos indivíduos, tarefa da historiográfica, mas a realização de
uma abordagem que levasse em consideração os fatos como instâncias representacionais a partir
de um método comparativo entre as instituições, que fosse além do enredamento narrativo-
filosófico das histórias filosóficas preocupadas com os costumes civilizadores.
Cada um a seu modo, Lacombe, Simiand e Lessa, desejavam que a história cooperasse
com a síntese modernista. Essa noção necessitava epistemologicamente da prática da
historiografia, posto que a elaboração abstracional-explicativa-conceitual se conectava com a
empiricidade, o trabalho metódico e a evidenciação do particular. Assim, esse horizonte
epistemológico precisava abarcar as duas instâncias de saber envolvidas na síntese, a
historiografia e as ciências sociais, especialmente a sociologia pós-evolucionista clássica. Seria
a partir do material disponibilizado pela historiografia que se podia alcançar o plano das
regularidades sociológicas replicantes por intermédio de representações sociais.
As disposições disciplinares que envolviam a prática da historiografia e a noção de
síntese modernista instauravam, em um primeiro plano epistemológico, o seguinte: a
historiografia possuía como dimensão epistêmica a crítica, a análise e a classificação dos fatos,
que eram vistos como representações sociais e não episódios; já a síntese, tendo como disciplina
teórica por excelência a sociologia ou a psicologia, universalizava os fatos em uma dimensão
de regularidade empírico-conceituais. Esse trajeto conformava a concepção de ciência para
Pedro Lessa, identificada com a ideia de síntese modernista. Este era o esquema de pensamento
armado regressivamente por Pedro Lessa: uma teoria do conhecimento em que a historiografia
analisava e as ciências sociais sintetizavam por meio de um registro de dependência e de
autonomia entre esses saberes. Ou melhor, um movimento em que as ciências sociais se valiam
da disposição empírico-analítico oferecida pela historiografia para realização da generalização
sintética. A síntese modernista era um benefício epistemológico para ambos os lados. A prática
da historiografia não encontrava razão sem o seu Outro, ou seja, a sociologia. Assim, fechava-
se o circuito epistêmico sintético modernista. A historiografia era uma prática que implicava,
necessariamente, a interdisciplinaridade.
A partir do discurso da falta no que tange à ciência da história encontramos qual o papel
da historiografia diante dos horizontes da síntese modernista abertos por Lessa:
368
dados históricos, que conquista mais uma noção, e alarga o âmbito de sua
doutrina.1162
1162
LESSA, Reflexões... op. cit., p 277
1163
Ibidem, p. 272.
1164
BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de sociólogo:
metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis: Vozes, 2004., p. 43.
369
os caminhos e os descaminhos das sociedades ao longo do tempo, substituindo uma tarefa que
já foi das filosofias da história. A diferença é que uma mobilizava leis universais e indubitáveis
enquanto a outra buscava recorrências a partir da interação social, não incutindo em sua análise
leis miméticas colocadas em modo de anterioridade. A síntese necessitava do trabalho da
historiografia.1165 Ela era a propedêutica da síntese modernista, a condição para um circuito
epistêmico-científico possível envolvendo história e ciências sociais. Dependendo de cada autor
em específico podia haver ou a autonomia de ambas as partes ou a assimilação de uma parte
pela outra. Em Lessa a situação é a seguinte: o “que se chama a ciência da história, ou é uma
série de verdades gerais pertencentes ao domínio da sociologia, e de ciências sociais várias, ou
um conjunto de observações que não constituem leis, na acepção científica do termo”.1166
Essa divisão de trabalho entre a história e as ciências sociais, ou entre análise e síntese,
vai ao encontro da concepção de ciência mobilizada por Lessa. Para o jurista:
1165
A sociologia de matriz durkeimiana disputava espaços epistêmicos e de poder com a história. Não é um exagero
encontrar entre os seus praticantes o parecer de que a história devia ser absorvida pela sociologia: “ao comparar,
a história já não se distingue da sociologia”, afirma Durkheim. DOSSE, François. A história à prova do tempo: da
história em migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: Ed. UNESP, 2001, p. 19.
1166
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 277
1167
Idem, p. 272.
1168
Ibidem, p. 272.
1169
BURGUIÈRE, André. Da história evolucionista à história complexa. In: MORIN, Edgar. A religação dos
saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 318.
370
epistêmico, em que a historiografia cooperava com a síntese modernista, mantendo uma
autonomia relativa ante às ciências sociais, encontramos um vestígio prático das formas de se
pensar e de se praticar história na República.1170
A historiografia analisava e classificava os fatos históricos para a realização da síntese,
que destituída desse movimento cognitivo “nada mais poderia conter que especulações,
hipóteses, asserções mais ou menos aproximadas da verdade, como tem acontecido com as
diversas teorias da filosofia da história”.1171 O processo cognitivo sintético colocava em
primeiro plano os assuntos sociais, “assuntos peculiares à história”. A disposição sociológica
tinha como alvo a sociedade em suas particularidades e interações, e não a história humana vista
de um ponto de vista universal. A sociologia promovia o estudo das agremiações humanas e a
compreensão dos fatos sociais, bem como das formas de pensar e de sentir das coletividades. O
presente aparecia como o esteio da síntese, a partir do olhar retrospectivo, distante da episteme
romântico-historicista em suas pretensões de descortinar os fatos futuros da vida humana.
De todo modo, o horizonte da historiografia “consiste em coligir e classificar
metodicamente os fatos”.1172 Ela necessitava do diálogo epistêmico com as ciências sociais,
especialmente a sociologia, para que se pudesse desenvolver teorias histórico-sociais em
conjunto. Em termos epistemológicos era a passagem da análise à síntese, da colaboração entre
história e ciências sociais. Havia modelos historiográficos que se orientavam através dessas
prescrições? A resposta era positiva: Theodor Mommsen e Fustel de Coulanges. Historiadores
que epistêmicamente marcavam o seguinte desejo: descrição e classificação dos fatos e
interpretação social científica. Após arrogar-se como um leitor de Mommsen, Lessa afirmou
que em seu espaço de trabalho situavam-se os fatos históricos devidamente classificados: fatos
sociais, econômicos, políticos, jurídicos, religiosos e artísticos. Tudo o que conferia
legitimidade para o acompanhamento dos estratos de tempo que compunha o tecido histórico-
social. Quer dizer, os fatos históricos descritos e observados regressivamente; classificados,
coordenados e ajuizados de “acordo com uma certa ordem, em obediência a um certo método”.
Ademais, essas categorias de fatos estavam posicionadas nos horizontes da síntese. Ao
arquitetar a epistemologia do saber nesses termos Mommsen era reconhecido como um mestre
da historiografia. Esses mesmos argumentos foram projetados junto à obra de Fustel de
Coulanges, especialmente a partir de A cidade antiga. Talvez a diferença existente entre esses
dois modelos de historiografia e a proposta de Pedro residia no fato do jurista estar em
1170
André Burguière avalia, complementando o ensejo, que “se o encaminhamento da História já não é considerado
uma evolução necessária, homogênea e linear, o futuro já não se pode conceber como um simples prolongamento
da linha de desenvolvimento do passado reconstituído”. Idem, p. 318.
1171
LESSA, Reflexões... op. cit., p. 273.
1172
Idem, p. 270.
371
movimento de distanciamento dos paradigmas evolucionistas, ainda abarcados pelas
proposições de Mommsen e Fustel, mesmo que de uma forma não ingênua.
Finalizamos o texto com o resultado da caracterização das aproximações entre
historiografia e ciências sociais, que deriva, para Pedro Lessa, no procedimento epistemológico
da síntese modernista: 1) a síntese é o resultado da aproximação entre historiografia e ciências
sociais; 2) a historiografia critica, analisa e classifica os fatos tomados como representações; 3)
a historiografia foca o singular, movimento epistêmico fundamental para que a síntese observe
as suas regularidades a posteriori; 4) a historiografia é uma prática e não uma ciência 5) há o
diálogo entre descrição e nomologia condicionalista; 6) diferentemente das pretensões
universais das filosofias da história, a síntese quer abarcar estudos que circunscrevem variações
sistêmicas; 7) a síntese identifica complexos estratos de tempo.
372
Capítulo 11 - A apologia da Historiografia, ou a prática do historiador. Pedro
Lessa leitor de João Francisco Lisboa (1913) e de Francisco Adolfo de
Varnhagen (1916)
Antes de ferir o alvo, e de atingir a unidade dos
povos e a democracia universal, será mister
atravessar a decomposição social, tempo de
anarquia, de sangue talvez e de grandes
sofrimentos por certo. A decomposição, sim,
começou já; mas não está a reproduzir, dos
germens ainda fermentados, o mundo novo e
regenerado.1173
1173
LESSA, Pedro. João Francisco Lisboa. RIHGB, tomo LXXVI, parte I, 1913, p. 77
1174
LESSA, Pedro. Conferência no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: Francisco Adolfo de Varnhagen.
RIHGB, tomo 80, parte II, 1917, p. 632.
1175
Jussara Rodrigues da Silva propõe que nos escritos de João Francisco Lisboa são mantidos os valores da
pesquisa histórica, a ponto da sua obra ser considerada ciência segundos os protocolos da matriz romântica da
história. João Francisco Lisboa “(...) já indicava uma preocupação com a submissão de seu trabalho aos
procedimentos de crítica e pesquisa necessários para que ele fosse tomado como verdadeiramente histórico. Trata-
se em sua obra de uma concepção de história com pretensões científicas”. Reformar os costumes pela história: a
historiografia de João Francisco Lisboa no Jornal de Timon. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
graduação em História, Universidade Federal de Ouro Preto, 2017, p. 44. Disponível em:
373
da trajetória do intelectual maranhense era a de um historiador público preocupado com
problemas ético-políticos. Através, sempre, de um olhar não partidário. Uma historiografia que
tinha como modelo a obra de Lisboa estava, então, conectada às carências de orientação
republicanas, sem deixar de se atentar para preceitos cognitivo-disciplinares.
O intelectual maranhense é visto por Lessa a partir do signo da contenda, sendo que em
seu Jornal de Timon peleja por anos em favor de “ideias extraordinárias, exóticas,
inacreditáveis, em nosso meio social”.1176 Todas elas, guardadas algumas ressalvas,
absolutamente atuais para o contexto da Primeira República no entender do ministro mineiro.
Exemplo: o governo e a administração pública competiam, havendo aqui certa carga de
aristocratismo, aos mais notáveis pela inteligência, pelo caráter e pelo saber; os governantes
deviam, enquanto compromisso ético, subordinar-se às leis e respeitar todas as liberdades e
todos os direitos dos cidadãos e das cidadãs; diante das autoridades, especialmente no começo
dos seus governos, os cidadãos e as cidadãs não deviam se orientar através de lisonjas
exageradas nem deviam se humilhar para conseguir algum benefício; a autoridade ideal
representava o povo e não era certo que a população em geral somente ao final dos mandatos
exigisse os seus direitos, muitas vezes incitando a calúnia e a revolta.
Evocar Lisboa, pelo exemplo da sua personalidade e pelo caráter da sua obra, significava
realizar uma crítica ao estado de coisas do contexto da Primeira República, mais
especificamente em um momento no qual havia certo sentimento de desilusão1177, ao menos
nos ambientes mais intelectualizados, em relação ao novo regime político:
Em meio deste vasto tremedal, que é hoje a vida pública no Brasil, em que
tudo se afunda e desaparece na mais infecta lama, sobrenadando quase
unicamente a absoluta incapacidade, o cretinismo em suas mais expressivas
revelações, a suprema inconsciência e o completo e desnudado impudor, a
servirem as ambições do mais rombo, estéril e envilecido egoísmo, com a
silenciosa aquiescência dos que em imensa legião, perdidos os ideais dos
homens civilizados, só cuidam tranquila e sordidamente dos interesses
materiais, evocar a figura histórica de João Francisco Lisboa (...), fora para
me utilizar de uma imagem outrora muito ao sabor dos nossos políticos e
jornalistas, para produzir a mesma impressão que o aparecimento da sombra
de Banquo em meio do festim de Macbeth.1178
Percebe-se que essa passagem lapidar de Lisboa se acoplava à crítica social que Pedro
Lessa realizava em sua conferência na Sociedade da Cultura Artística. Há, ali, alguns topos
temáticos, lugares-comuns ético-políticos, que denunciavam o estado atual da sociedade
brasileira na década de 1910, além de percepções sobre a passagem do tempo que pareciam se
repetir, todas elas apropriadas por Lessa, e que tornavam Lisboa1180 “atualíssimo” no contexto
da República. Em termos ético-políticos os textos do Timon desmascaravam uma crise da moral
pública republicana, sendo o país devorado pelos egoísmos interesseiros e individualistas.
Ademais, havia, correlatamente, falta de padrões valorativos que sustentavam o regime político
aludido a partir de uma vida cidadã saudável. Temporalmente, no plano da historicidade, a
sensação era de morosidade e de imobilidade. Lessa efetuava um diagnóstico presentista para
aquela sociedade brasileira?
Aline Menoncello pontua que o jurista mineiro é mais um personagem da década de
1870, momento em que luta contra o sistema escravista e deseja o fim da Monarquia
1179
Idem., p. 77.
1180
Rodrigo Turin observa a formulação de uma persona narrativa por parte de João Francisco Lisboa: “Esta
persona narrativa, assumida por Lisboa, seria caracterizada pela acidez e agudeza crítica, em tom satírico, de sua
visão de história nacional”. TURIN, Rodrigo. João Francisco Lisboa (1812 – 1863), s/d, p. 68. Disponível em:
https://www.academia.edu/36987967/Jo%C3%A3o_Francisco_Lisboa Acesso: 19 dez. 2019.
375
parlamentar. Todavia, naquele “(...) momento ele não era mais um estudante, mas um juiz do
Supremo Tribunal Federal e lutava contra as imprudências do governo e as perseguições
políticas, e defendia a liberdade de expressão. Por isso, Lisboa é para Pedro Lessa um exemplo
de patriota ‘crítico’, ‘frio’ e ‘implacável’”.1181
Mais uma vez Lessa compilou o Timon fazendo da sua voz um uníssono com a sua. Os
temas são, ainda, os da corrupção de homens e de mulheres, da ética como princípio de
responsabilidade na esfera pública e do crescente egoísmo, individualismo e materialismo de
cidadãos e de cidadãs. Pedro Lessa se apropriou das ideias de João Francisco Lisboa – não era,
em todo caso, tão somente uma conferência a partir de uma leitura passiva. A cada citação
pinçada disparava um tema contemporâneo, sobretudo, da alçada ético-política. As
apropriações de Lessa serviam para clarear o universo político-social da Primeira República. E
o ministro do STF fazia, como igualmente fez Lisboa, uma crítica à política em sentido lato
sensu e não partidário. Vejamos a passagem do Timon:
Ninguém creia que atrás dos homens atuais se ocultem outros diferentes; não
é uma exceção que fere os nossos olhos, senão o estado comum dos costumes,
das ideias e das paixões; é a grande e universal enfermidade do mundo que se
dissolve. Se tudo mudasse amanhã com a proclamação de novos princípios,
nada mais havíamos de ver, além do que estamos vendo: os devaneios destes,
os furores daqueles. Todos impotentes e infecundos.1182
Mas João Francisco Lisboa e Pedro Lessa não eram sujeitos niilistas. A democracia
continuava sendo um horizonte para ambos. Diferentemente de parcela considerável dos
intelectuais que desiludidos com a República federalista passaram a movimentar interpretações
autoritárias da história e da sociedade, entre eles Sílvio Romero, Gilberto Amado, Oliveira
Vianna e Francisco Campos. Para Lisboa, e para Lessa, a democracia nasceria espontaneamente
e suplantaria o estado geral de corrupção. Ela não era, de maneira alguma, impositiva. Em
passagem de Lisboa compilada por Lessa:
1181
MENONCELLO, Aline Michelini. A escolha de Pedro Lessa: João Francisco Lisboa, o historiador patriótico.
Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História – Anpuh Santa Catarina: UFSC, 2015, p. 5. Disponível em:
https://cutt.ly/McL34n9 Acesso: 08 abr. 2021.
1182
LESSA, João... op. cit., p. 77.
1183
Idem, pp. 77-78.
376
Talvez essa dimensão democrática percebida em João Francisco Lisboa e lançada
intencionalmente ao contexto da Primeira República por Pedro Lessa pudesse ser compreendida
a partir da figuração dada ao Timon como um “reformador moralista” por José Murilo de
Carvalho. Mesmo acionando uma persona crítica Lisboa acreditava, em tese, na democracia,
algo subscrito por Pedro Lessa, a partir da “capacidade de reforma dos costumes pela ação do
próprio homem”.1184
1184
CARVALHO, José Murilo de. Lisboa e Timon: o drama dos liberais do Império. In: LISBOA, João Francisco.
Jornal de Timon. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 19.
1185
LESSA, João... op. cit., p. 70.
377
mal nos tem feito”, no dizeres de Pedro Lessa.1186 Doravante, o seu plano mais imediato era
lançar um romance histórico de propaganda contra a escravidão. Mas Lisboa demoveu essa
ideia em razão da publicação de A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, em 1852,
pois as ideias e os princípios articulados no romance estadunidense compreendiam o seu
horizonte mais imediato de ideias.
Em vista dessa postura como historiador ninguém “parece o mais digno de ser lembrado,
nesta vil atualidade”.1187 O presente de Pedro Lessa, que como vimos experimentava uma crise
da consciência histórica e social, requeria um modelo de historiador como o de Lisboa. O
historiador Lisboa se ocupava com os problemas ético-políticos referentes à nação de maneira
crítica, não deixando de lado certa dimensão metódica cara ao métier. Exemplo: o primeiro
volume do Jornal de Timon foi consagrado a uma análise das eleições e dos partidos políticos
existentes no Império; ele encerrava, em tese, um “quadro fidedigno” dos usos e dos costumes
eleitorais e da vida política do Maranhão: “(...) aí temos uma miniatura do que se passava, nesse
assunto, em todo o Brasil”.1188 Vê- se que havia particularidades na palheta historiadora de
Lisboa: a superação da crônica, a passagem da dimensão episódica para a dos costumes e uma
história do tempo presente. Lessa promoveu certos usos político-historiográficos da obra de
Lisboa, dado que o projetou como autor exemplar para o entendimento dos desmandos dos
oligarcas da República, das eleições fraudulentas e da corrupção de toda a sorte. O jurista se
apropriou dos seus escritos historiográficos como forma de clarear a sua percepção da realidade
ético-política da jovem República, que em pouco tempo já se tornava ruína: antes mesmo de se
consolidar já carrega consigo o gérmen da finitude.1189
Mas Lisboa também era, de certo modo, um historiador disciplinado, mesmo fora da
instituição reguladora e normatizadora dos estudos históricos no Brasil, ou seja, o IHGB. Entre
as preocupações historiográficas de Lisboa encontramos estas: o descobrimento da América e
do Brasil, com especial atenção para território do Maranhão; o suposto erro de Portugal na
colonização, o qual não ocupava o território adequadamente com artífices e com lavradores,
1186
Idem, p. 73.
1187
Ibidem, p. 76.
1188
Ibidem, p. 76.
1189
Esse sentimento de desilusão, sobretudo, entre os intelectuais não passa desapercebido aos estudos de José
Murilo de Carvalho: “A expectativa inicial, despertada pela República, de maior participação, foi sendo assim
sistematicamente frustrada. Desapontaram-se os intelectuais com as perseguições do governo Floriano;
desapontaram-se os operários, sobretudo sua liderança socialista, com as dificuldades de se organizarem em
partidos e de participarem do processo eleitoral; os jacobinos foram eliminados. [...] Quanto ao grosso da
população, quase nenhum meio lhe restava de fazer ouvir sua voz, exceto o veículo limitado da imprensa”
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia
das Letras, 1987, p. 37.
378
tornando, assim, o Brasil um espaço passível de constantes guerras; as invasões holandesas e
francesas; o estudo sobre os índios e sobre os jesuítas; as primeiras expedições no Maranhão; a
legislação colonial; os “nobres”, os “plebeus” e os africanos no Brasil. O estudo sobre essas
temáticas corroborava com o argumento de Lisboa como historiador. Vê-se que ele não era,
nesse sentido, um outsider da história do século XIX, mas estava inserido em um mesmo
contexto epistêmico-historiográfico em que estavam, por exemplo, o IHGB e o Visconde de
Porto Seguro. Lisboa passou por certo momento do arquivo, era um crítico social mordaz na
fase explicativa dos acontecimentos e era detentor de primor narrativo e estilístico se
comparado com os seus coevos. “O que imprime relevo ao estilo de Lisboa é a clareza, a
concisão, a elegância, a nobreza e a linguagem, e mais que tudo aquela simplicidade”,1190 ou
seja, o modo de exposição em Lisboa não é apenas forma, mas é, também, conteúdo.
Lessa colocava em evidência que o historiador devia manejar bem a linguagem escrita,
assim como Lisboa, de modo a imprimir uma exposição formal clara. Tudo isso para que ele
pudesse se expressar não apenas entre os seus pares, mas com a população como um todo, posto
que era ele que, pela crítica social através da pragmática da história, esclarecia e deixava em
relevo a dimensão histórica das mazelas sociais. Sobre o seu estilo expositivo Pedro Lessa
discorre o seguinte: “A linguagem de Lisboa é a que bem se casa com o seguro critério, o claro
entendimento, o espírito penetrante e a austeridade de princípios do historiógrafo, amigo e
admirador de Alexandre Herculano, e que tanto ilumina alguns capítulos de nossa história”.1191
Uma diferença de posicionamento de Lisboa perante a história disciplinada majoritária
do IHGB é que ele se portava como um americanista,1192 ou seja, o passado que ele fazia
presente era de reação ao jugo metropolitano e de afirmação da nacionalidade brasileira
destituída da sua herança ibérica. Uma passagem compilada por Lessa em que Lisboa retratou
os governadores desde a colônia evidencia o argumento:
1190
LESSA, João... op. cit., p. 82.
1191
Idem, p. 87.
1192
Sobre as ideias de americanismo e de iberismo conferir o clássico estudo de WERNECK VIANNA, Luiz. A
Revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan/IUPERJ, 1997.
1193
LESSA, João... op. cit., p. 87.
379
O americanismo de Lisboa era apropriado por Pedro Lessa como forma de efetivar uma
crítica não partidária à política republicana. O jurista realizou certos usos políticos do passado
(não partidários) através das lentes investigativas de Lisboa. Vejamos só:
Idem, p. 87.
1194
Ao se apropriar de João Francisco Lisboa, Lessa também manifestava, na passagem para o século XX, uma
1195
concepção de história americanista. Sobre o americanismo na Primeira República ver MARTINS, Maro Lara.
Entre americanos e ibéricos: teoria social na Primeira República. Política e sociedade, vol. 9, n. 17, pp. 231-258,
2010. Disponível em: https://cutt.ly/mcL9fU9 Acesso: 08 abr. 2021.
380
No âmbito das comemorações do centenário de nascimento de Francisco Adolfo de
Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, ocorrido em 1916, o ministro do STF Pedro Lessa
proferiu uma importante conferência abordando os contextos da obra do historiador
sorocabano. Mais do que por meio de estudos biográficos Varnhagen devia se fazer presente,
assegura o conferencista, na Primeira República por intermédio dos seus numerosos trabalhos
que davam a ele o título de iniciador da Historiografia brasileira.1196 Lembrando que a sua
obra póstuma A Independência do Brasil foi publicada pelo Instituto Histórico um ano antes.
Quer dizer, os escritos de Varnhagen promoviam, destacando-se a sua História geral do Brasil,
princípios metodológicos, disposições epistemológicas, eixos temático-narrativos que
configuravam a prática do historiador. Foi em razão dessa aparelhagem historiográfica voltada
ao estudo da história brasileira que Lessa concedeu à Varnhagen o título de iniciador. Então,
mais do que o gênero história geral, desatualizado na Primeira República, o que Varnhagen
legou foi uma prática historiográfica, na visão de Lessa, exemplar. “Historiografia”, para Pedro
Lessa, significava todo o processo que envolvia a produção do conhecimento histórico.
Ademais, o discurso de Lessa era uma peça de defesa diante de certa recepção dos
escritos do historiador sorocabano ao longo do século XIX e início do XX, bem como da forma
como ele operava a sua prática historiográfica. A interpretação do estudioso sobre Varnhagen
e a sua obra não deixava de manifestar, então, a constituição de um autor de história1197, bem
como conformava-se, através da categoria “Historiografia”, como um indício das demandas
caras à prática dos historiadores na Primeira República.
O juiz Lessa aborda, de imediato, os esforços intelectuais de Varnhagen face ao contexto
epistêmico-historiográfico internacional. É evidente, para o conferencista, que a sua formação
como historiador, em sua época e no ambiente que o circunscreve, estava fora da observância
dos preceitos modernos da “Historiografia”.1198 Mesmo no contexto da Primeira República não
existia um perfeito estudioso versado completamente nesses princípios. Praticava-se
“Historiografia”, no entender de Pedro Lessa, somente em países considerados de vanguarda
como Alemanha e França, que “adotam os rigorosos processos” de averiguação da verdade
histórica e que seguiam “fecundos preceitos de Metodologia”.1199
1196
LESSA, Conferência... op. cit., p. 615.
1197
Sobre o referido problema recomendo o estudo instigante de MENONCELLO, Aline Michelini. Julgamentos
a serviço da história. História da historiografia, vol. 9, n. 22, pp. 238-257, 2016. Disponível em:
https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1152 Acesso: 08 abr. 2021. Conferir, também, a
clássica teorização sobre a autor de FOUCAULT, Michel. O que é um Autor? Lisboa: Vega, 1992.
1198
LESSA, Conferência... op. cit., p. 616.
1199
Idem, p. 616.
381
Todavia, quem mais se aproximou da prática da “Historiografia” no Brasil foi o próprio
Varnhagen. O seu metodismo e a sua busca pela verdade histórica não eram oriundos de
manuais, mas do fazer-saber, da prática, do acúmulo de erudição. Por isso era forçoso
reconhecer a operação de conhecimento do historiador brasileiro em razão de modular-se a
partir das virtudes epistêmicas da “exatidão” e do “rigor”. Dentro dos seus limites ele observava
os cânones da ciência auxiliar heurística, “procurando penetrar o sentido dos livros e de todos
os documentos relativos ao nosso passado”, faz-se versado em idiomas, além de ser perito em
artes e conhecer “as nossas antiguidades”. Além disso,
(...) da segurança da sua crítica veremos depois a melhor das provas, uma
prova pela qual muito poucos historiadores terão passado. No interpretar as
fontes e no pesquisar as condições físicas e morais da nação, não descurou o
indispensável estudos prévio da Nossa Geografia e da nossa Etnologia.1200
1200
Ibidem, p. 617.
1201
Me aproprio da noção de “ética historiográfica” a partir do sentido proposto por Evandro Santos. Santos se
debruçou sobre a produção historiográfica de Varnhagen, sendo o seu trabalho fundamental para o aprofundamento
de questões apreciadas por nosso texto. SANTOS, Evandro. Ensaio sobre a constituição de uma ética
historiográfica no Brasil oitocentista. Francisco Adolfo de Varnhagen, o historiador no tempo. Tese (Doutorado
em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2014.
Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/114431 Acesso: 04 dez. 2020.
382
ela representava. A partir do momento em que o Visconde de Porto Seguro se iniciava
historiograficamente, pensando em sua História geral do Brasil (1854), havia ao seu dispor
apenas a prescrição (1845) de Martius e modelos de história geral escritos por estrangeiros que
podiam servir de guia orientador para a sua prática. Para Pedro Lessa, o contexto da primeira
metade do século XIX lhe oferecia um saber histórico limitado epistemologicamente, dado que
não era perpassado pelo crivo da “Historiografia”.
O que vinculava a prática de Varnhagen àquela realizada no continente europeu,
especialmente na França, era a “caça aos documentos”, potencializando os trabalhos já
realizados pelas academias históricas do século XVIII. Dessa arte foram recrutados intelectuais
que orientavam as suas investigações a partir da verdade histórica advinda da pesquisa e do
estudo das fontes. Victor Hugo chegou a dizer, por exemplo, que para se escrever a história da
França fazia-se necessário perquirir todos os livros e todas as fontes históricas que de algum
modo alimentavam informações sobre o país. Em meio a essa preocupação o ministro François
Guizot imprimiu cunho oficial à tarefa historiadora. Mas de ambos os lados do Atlântico eram
raras, em tese, as cogitações filosóficas causais (e urdiduras poéticas) sobre os fatos históricos.
Insuficientes para situá-los, e isso era uma dimensão necessária para a prática historiográfica,
no plano teórico, no caso de Lessa propiciado pelas ciências sociais. De todo modo,
Eis, aqui, o passo decisivo para a categoria “Historiografia”: ela devia ser assistida em sua
estruturação epistêmica por princípios teóricos de natureza sociológica. Isso, de fato, o
Visconde não possuía, sendo, então, o seu calcanhar de Aquiles, posto que os seus juízos, os
seus comentários e as suas colocações, mesmo afiançados pelos horizontes da verdade e da
justiça1203, estavam destituídos dos moldes teóricos exigidos. A consciência teórica de Lessa
projetada junto ao plano explicativo da “Historiografia” tornava possível a hibridação de
paradigmas sociológicos evolucionistas e pós-evolucionistas, deterministas e pós-
deterministas, podendo ser escolhidos uns ou outros dependendo da especificidade histórico-
1202
LESSA, Conferência... op. cit., p. 660.
1203
Temístocles Cezar aponta as disposições epistêmicas da verdade e da justiça em Varnhagen: “Entretanto,
encontramos sobretudo alusões aos temas da justiça e da verdade. Esquematicamente, afigura-se lícito dizer que
ser justo e verdadeiro é um efeito de sua formação erudita. São características normativas de todas suas atividades
intelectuais. Isso não significa que eu o considere justo e verdadeiro, mas, simplesmente, que ele acreditava sê-lo”
CEZAR, Temístocles. Varnhagen em movimento: breve antologia de uma existência. Topoi, vol. 8, n. 15, 2007,
p. 178. Disponível em: https://cutt.ly/GcLUvpd Acesso: 08 abr. 2021.
383
social em questão. Exemplo: Lessa acredita haver determinismo psíquico. Mas a sua
consciência epistemológica estava mais próxima do condicionalismo do que do determinismo
clássico. Essa era a disposição teórica projeta por Lessa à prática da “Historiografia”. Esse
registro epistêmico possibilitava as sínteses modernistas.
Para Pedro Lessa, Varnhagen era, em termos de prática historiográfica, o nosso Fustel
de Coulanges. Estas palavras do historiador francês poderiam muito bem ser do Visconde de
Porto Seguro: “O melhor historiador é o que mais se adstringe aos textos, que os interpreta com
mais justeza, que só pensa e escreve de acordo com eles”.1204 Fustel de Coulanges não hesitava,
assim como Varnhagen em sua ética historiográfica, em afirmar que a manipulação de um
bom procedimento epistemológico era de interesse tanto da moral quanto da ciência. O
descompasso na obra do historiador brasileiro estava na forma de exposição: “A história Geral
do Brasil bem merecia um pouco mais de cuidado na exposição”.1205 Portanto, em Pedro Lessa
o registro da prática da “Historiografia” também atingia a exposição formal, que se queria clara,
concisa e direta. Ela requeria, também, a aproximação interdisciplinar (sintética) com as teorias
sociais. Disposição ainda não apreendida pelo Visconde. Contudo, “o que atenua as faltas de
Varnhagen é a lembrança do peso imenso da tarefa de criador da nossa História”.1206
“Historiografia”, diante de todos esses argumentos, estava implicada nos horizontes da prática
do historiador. O historiador, portanto, faz “Historiografia”.
Lessa recobrou que ao iniciar os seus trabalhos para a estruturação da sua História geral
do Brasil (1854) Varnhagen se deparou com este cenário historiográfico: não havia nenhum
plano, nenhum antecessor que pudesse lhe orientar em sua prática, além da Dissertação de
Martius e das poucas histórias gerais escritas por estrangeiros. Nenhum brasileiro escrevera
um livro que pudesse enquadrar-se no gênero história geral. Antes de Varnhagen havia, na
leitura de Lessa, as crônicas do período colonial, como as de Gandavo, de Anchieta, de Nobrega
e de Gabriel Soares, que, via de regra, não podiam ser consideradas histórias stricto sensu. Os
que vinham depois ou escreveram sobre assuntos pontuais e restritos, como o Frei Jaboatão, ou
estavam informados por erros graves, como se percebia na genealogia de Pedro Taques, ou,
ainda, ofereciam memórias aos seus leitores, isto é, subsídios (não criticados a partir dos
1204
LESSA, Conferência... op. cit., p. 661.
1205
Idem, p. 662.
1206
Ibidem, p. 661.
384
preceitos da “Historiografia”) para uma história de maior envergadura, como era o caso de Frei
Gaspar da Madre de Deus, de Monsenhor Pizarro e de Luiz Gonçalves dos Santos. Para Lessa,
(...) todos esses que vieram depois dos Gandavo, dos Nobrega, dos Gabriel
Soares, apenas proporcionaram alguns subsídios, que só podiam ser
aproveitados depois de uma rigorosa seleção. Tal foi também o concurso de
Ayres do Casal, de Fernandes Pinheiro, Acioli e de alguns outros”.1207
Percebe-se, claramente, os contornos da obra de Porto Seguro na leitura alinhavada por Pedro
Lessa, a saber: o seu o plano superava a crônica, os assuntos que se propunha a investigar
estavam situados na esfera macro-analítica, ou seja, relacionavam-se com a nação e mobilizava
tecnologias historiográficas que expurgam os erros e o falso.1208
Já a obra de Rocha Pita possuía, no entender de Pedro Lessa, “colorido poético”, porém
era destituída de crítica, omissa em fatos capitais e duvidosa quanto aos objetivos de reforço do
“espírito nacional”. Alegava-se que o autor pouco recorreu às fontes históricas, sendo mais
imaginativo do que pensador, mais poeta do que crítico. Além disso, a História da América
portuguesa estruturava-se formalmente por meio do panegirico.1209 Pela crítica à Pita vê-se que
o historiador não era um artista, tampouco fazia elogios, mas situava-se como consciencioso
crítico dos fatos e das circunstâncias. Era justamente essa postura historiográfica dos seus
antecessores que encaminhava Varnhagen para o difícil trabalho de estruturação de arquivos e
de mobilização da crítica documental, que consequentemente lhe oferecia a oportunidade de
estabelecer uma ética para a moderna “Historiografia brasileira”. O metodismo do Visconde
era mais um resultado circunstancial da operacionalização de uma prática e menos a assimilação
de um manual de estudos históricos. Isso também podia ser aplicado aos trabalhos do IHGB.
Porém, antes de Varnhagen havia uma história geral que chamava a atenção, qual seja,
a escrita pelo laureado poeta inglês Robert Southey. Para Lessa, por mais que se exaltasse o
1207
Ibidem, p. 624.
1208
Varnhagen reforçou, nesse sentido, uma longa tradição ocidental que buscava a verdade pela apuração dos
fatos: “A historiografia ocidental, desde sempre, travou uma guerra obstinada contra a ficção. Foi por sua luta
contra os mitos, as lendas e fabulações da memória coletiva transmitidas pela tradição oral, que ela criou um
afastamento em relação ao discurso comum, forjando-se precisamente dentro da diferença que a creditou como
savante, ou seja, como discurso portador de conhecimento. Mais do que estabelecer a verdade, com os
procedimentos da crítica de documentos, o historiador detecta o que é o falso, equiparando-o à condição de
‘fábula’” OLIVEIRA, Escrever vidas... op. cit., p. 87.
1209
Pedro Telles da Silveira possui uma leitura mais alargada, justa e contemporânea acerca da obra de Rocha Pita,
evitando que caiamos em uma armadilha da memória disciplinar forjada por Pedro Lessa: “Pode-se dizer que toda
a História de Rocha Pita é modelada a partir do panegírico. Não é à toa, portanto, que ele tenha escolhido Timantes
como emblema para sua história, pois este, ao pintar o pouco para sugerir o muito, simboliza, de alguma forma,
como as virtudes da composição e da seleção operadas pelo panegírico acabam por salvar a história de sua própria
dispersão” SILVEIRA, Pedro Telles. O pincel de Timantes: pintura, erudição e panegírico na História da América
Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pita”. Temporalidades – Revista de História, vol. 9, n. 2, 2017, p. 320.
Disponível em: https://cutt.ly/zcZcoY6 Acesso: 08 abr. 2021.
385
poder de imaginação e de eloquência contidas nessa History, não podia Southey escrever com
“exatidão” e com “segurança” a história geral do Brasil. Na verdade, retirados os primores da
forma, a arte da exposição habilmente construída por Southey, “não conheço mais clamorosa
ofensa à verdade e à justiça do que a praticada por aqueles que querem roubar de Varnhagen,
para conferir para o poeta romântico inglês (...) o grau elevado de primeiro historiador do
país”.1210 Pedro Lessa admitia em sua memória disciplinar que Southey não podia ser
considerado o nosso primeiro historiador, visto que a sua History pecava no pouco
embasamento geográfico, bem como se atrapalhava nas “minúcias”. Ademais, ele era um
estrangeiro que desconhecia o Brasil. No limite, o poeta inglês estava destituído do poder da
autopsia. A partir da crítica à Robert Southey observamos mais elementos que circunscreveram
a prática da “Historiografia”: conhecimento da geografia, posto que os acontecimentos se
desenrolavam no tempo e no espaço, censura à imaginação e à retórica e valorização dos
intelectuais brasileiros que se queriam historiadores, pois eram conhecedores da realidade
histórico-social do país.
A fortuna crítica de Varnhagen, argumentava Lessa, continuamente colocava a seguinte
questão: por qual razão o Visconde de Porto Seguro simplesmente não seguiu a conhecida
Dissertação de Martius, ganhadora de um concurso no IHGB que tinha como horizonte o
melhor plano para se escrever a história do Brasil? Alguns apontamentos do naturalista bávaro
eram, para Lessa, incontornáveis: a mescla das raças e o seu impacto na formação histórica
brasileira, as lutas entre os portugueses e os indígenas, bem como a escravidão destes e dos
africanos. Tais pontos eram abordados por Martius, tornando-se topos temáticos na escrita da
história oitocentista. Mas parecem injustas e despropositadas as críticas à Varnhagen sobre a
sua não “filiação” ao programa de pesquisa do naturalista viajante. Primeiro: porque muitos
temas propostos pelo estudioso europeu eram abordados por Varnhagen. Segundo: pelo fato de
que nem todas as asserções saídas da sua pena eram úteis ao campo aberto pela “Historiografia”,
o qual demandava a elaboração de um arquivo, a exatidão das descrições, a busca pela
autenticidade das fontes, a segurança da crítica e uma teoria do conhecimento que dê significado
narrativo para toda a prática. Como podia, indaga-se Pedro Lessa, um botânico propor um plano
para a escrita da história de uma jovem nação em que se via a recordação de vagas leituras
1210
LESSA, Conferência... op. cit., p. 626. Temístocles Cezar argumenta que ao mesmo tempo que os primeiros
sócios do IHGB e Varnhagen buscam se distanciar da obra de Southey, eles a utilizam em suas pesquisas e
composição de suas obras: “Parece-me correto afirmar que os membros do IHGB fizeram a história da nação um
pouco contra Southey, mas muito a partir dele. Varnhagen é o melhor exemplo: ele usa e abusa do trabalho de
Southey ao mesmo tempo em que dele procura distanciar-se. Para o brasileiro a obra de Southey não era completa,
o que, por outro lado, o inglês reconhecia de bom grado, em que pese considerar que não seria superada tão cedo”.
CEZAR, O poeta... op. cit., p. 309.
386
clássicas, como de Heródoto, de Xenofonte, de Tito Lívio ou de Salústio, consideradas
obsoletas, e a prescrição para a sua elaboração a partir de um poema heroico? Porém, havia um
historiador consciencioso e verdadeiro, admitia Lessa, que desautorizava tais predicativos:
Varnhagen, o iniciador da Historiografia no Brasil. “Em 1854, não era possível a um espírito
sério e instruído conceber a História desse modo. A primeira qualidade do historiador (será
preciso repeti-lo?) é a fidelidade nas descrições, a verdade, a exatidão”.1211
Para Pedro Lessa, o plano de Martius pode incorrer na falta de verdade por parte do
historiador: “(...) a verdade, e só a verdade, no fato e na lei, particular ou geral, transitória ou
permanente, é sempre o esforço capital do historiador”.1212 O epos prescrito por Martius só é
compreensível em livros que são dedicados à instrução secundária, pois nesse contexto pode-
se exibir, como forma educativa, os fatos e os quadros históricos aptos a incitarem, nos jovens,
o amor à pátria e a aspiração de bem servi-la. Varnhagen se apresenta próximo de Von
Martius1213 ao colocar luz alta em situações que, no Brasil, manifestam o espírito de patriotismo,
mas a ele falta a estese e algumas outras qualidades do artista. Porém, o Visconde de Porto
Seguro tem consciência disso e é defendido por Lessa: “(...) a mais solicita investigação da
verdade e ao mais acurado critério na apreciação dos fatos buscou associar a maior simplicidade
na expressão, preferindo às galas do estilo a sua maior clareza e sobriedade”. 1214 Para
Varnhagen, os textos de história deviam concorrer para a promoção da formação das virtudes
cívicas e para clarear os horizontes da história nacional. Não através dos artifícios literários
ficcionais, tampouco pela oratória, ou pela disposição dramática, ou pelo épico, tal qual entre
os historiadores da Grécia e de Roma, porém, por meio do ensinamento dos fatos, quer dizer,
pela busca e pela exposição da verdade.
1211
LESSA, Conferência... op. cit., p. 631.
1212
Idem, p. 631.
1213
Arno Wehling não deixa de apontar que mesmo salientado a mescla étnica na formação da nacionalidade
brasileira Varnhagen enfatiza o elemento português. Deixa-se em relevo o seu papel no processo de colonização,
sendo ele o responsável pela garantia da “expansão territorial” e “pela unidade política” do Brasil WEHLING,
Arno. Estado, História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999, p. 187.
1214
LESSA, Conferência... op. cit., p. 633.
387
(...) que nos leva ao sentimento da mais pura gratidão diante da construção
monumental, que, examinada sob faces diversas, é um indestrutível monolito,
que constituíra para sempre o supedâneo, sobre o qual há de repousar toda a
História do Brasil, e um grande foco de luz a iluminar simultaneamente o nosso
passado e o nosso futuro.1215
1215
Idem, p. 662.
1216
Sobre a noção de historicidade vale a explicação de Paul Ricoeur: “Os homens do passado foram, como nós,
sujeitos de inciativa, de retrospecção e de prospecção. As consequências epistemológicas dessa consideração são
notáveis. Saber que os homens do passado formularam expectações, previsões, desejos, temores e projetos é
fraturar o determinismo histórico, reintroduzindo, retrospectivamente, a contingência na história” RICOEUR, A
memória... op. cit., p. 392-393.
1217
LESSA, Conferência... op. cit., p. 663.
388
sabidamente eram transitórios. Assim, vê-se que era a história enquanto formação o eixo
orientador da vida humana. E por isso a necessidade de conhecê-la sob o crivo da verdade da
“Historiografia”, que no Brasil foi inaugurada por Varnhagen.
Lessa continuou a atualização da obra de Varnhagen ante os seus detratores. Isso em
virtude de tais acusações assinalarem que os seus escritos se inscrevem no plano político e
factual. Para o jurista, esse tipo de história, “árida e seca”, era a que melhor fixava a atenção
dos leitores, proporcionando a estes a possibilidade de se extrair “um suco ideal” dos fatos em
seus contextos de origem. Lessa, leitor de Fustel de Coulanges, preferia, antes, os esforços da
descrição, o prolongando raciocínio, do que “diversões estéticas”. Por isso o pecúlio de
Varnhagen possuía pregnância comunicativa no contexto historiográfico da República. Era esse
tipo de história que devia se conectar às ciências sociais visando a síntese. Para o palestrante:
Sim, talvez por abstrair um pouco tais imperfeições, vou atém me convencer
de que essa história, verdadeira e severa, despida dos ornatos mais singelos,
que somente dos fatos expostos em toda a sua nudez faz uma eloquente e
fecunda lição moral, social política, é a História que nos convém, a que nos
ministra os mais úteis ensinamentos”.1218
Cumpre que os sócios do IHGB lessem os livros de Varnhagen. Através das suas páginas
aprendia-se que o fator raça e que o elemento mesológico não eram obstáculos para o
desenvolvimento dos(as) brasileiros(as). Tome como exemplo as suas narrativas sobre a guerra
contra os holandeses. Ali ficava patente, em meio às demonstrações de patriotismo e de
heroicidade, o valor das raças envolvidas na formação da sociedade brasileira, e mostrava-se
evidente que o meio cósmico e o cruzamento dos vários segmentos étnicos não conformavam
uma nacionalidade de somenos valor. Interessante essa percepção sobre Varnhagen. Primeiro:
porque alocava o Visconde de Porto Seguro na vanguarda do pensamento científico da década
de 1910, que começava a colocar em estado de suspensão várias ordens de determinismos
atávicos advindos da segunda metade do século XIX. Segundo: em razão da leitura de Pedro
Lessa não assinalar um elogio da colonização portuguesa no Brasil em Varnhagen.
Lessa admitiu que naquele contexto em que estava inserido havia uma crise da
consciência histórica. As grandes verdades propulsoras da modernidade eram abaladas, por
exemplo, pelos eventos da Grande Guerra. O clima histórico que Lessa e parte dos seus coevos
experienciam é de imobilidade e de morosidade. “Que é que nos falta neste momento de
prementes dificuldades, em que o desânimo e a consequente inércia avassalam tantos
1218
Idem, p. 663.
389
espíritos”?1219 O que brasileiros e brasileiras precisavam, no entender do jurista, para vencer a
presente crise era, pois, o conhecimento da história e a comparação do presente com o passado.
Interessante a dimensão retrospectiva impressa por Lessa em sua argumentação. Necessitava-
se, então, “de predicados que já tivemos, e facilmente podemos readquirir, de qualidades que
se formam com algum esforço de compreensão e um pouco de boa vontade”: trabalhar
tenazmente, viver com a coragem de sujeitos dignos, respeitar as leis e as autoridades, eleger
representantes que inspirem autoridade junto ao povo, criar disciplina e coesão, findar ambições
criminosas e corruptas, além de enaltecer o patriotismo. Assim, Pedro Lessa apresentava-se
como um “moralista reformador” em sentido ético-político. De acordo com as suas palavras:
Refletindo-se, vê-se bem claramente que o remédio para os nossos males está
na observância dos preceitos rudimentares da Moral, que, desde os tempos
mais remotos até hoje, tem sido aconselhado pelos sacerdotes, pelos apóstolos,
pelos educadores, pelos filósofos e pelos estadistas. Não é necessário fazer
nenhum milagre, nem revelar nenhum heroísmo raro, nem descobrir nenhuma
original solução, nem empreender nenhuma ação extraordinária.1220
1219
Ibidem, p. 664.
1220
Ibidem, p. 665.
1221
Ibidem, p. 665.
390
Lisboa, Varnhagen e o historiador ideal de Pedro Lessa
1222
NICOLAZZI, Fernando. O historiador enquanto leitor: história da historiografia e leitura da história. História
da historiografia, n. 13, 2013, p. 73. Disponível em: https://cutt.ly/bcL6GJn Acesso: 08 abr. 2021.
391
público. Toda aquela aparelhagem epistemológica fazia do seu praticante o informante de um
conhecimento dito verdadeiro sobre a realidade. Não foram poucos os intelectuais que
admitiram que essa disposição historiográfica possuía alto valor patriótico. De posse desse
saber podia-se, imparcialmente, realizar crítica social e manifestar-se diante das mazelas sociais
públicas. E isso de maneira precisa e distante da ilusão das sínteses destituídas de empiricidade,
muitas das quais de cariz autoritário.
Pedro Lessa se portou nessa conferência como historiador, mais do que como juiz. Um
historiador que se iniciou lá em 1900 com a monografia É a história uma ciência? e que se
tornou um assíduo frequentador das reuniões do IHGB, chegando até mesmo a tornar-se o seu
vice-presidente. Mas qual o posicionamento ético-político de Pedro Lessa após se armar
historiograficamente? Democrático reformador (plano moral em evidência). Pois ele fazia
crítica reformista com pretensão de imparcialidade das mazelas sociais e dos descaminhos das
instituições localizadas no presente, assim como Lisboa, e procurava ser, em tese, meticuloso,
objetivo e justo em suas intervenções, como Varnhagen. Em meio àquela atmosfera de
imobilidade a crítica às instituições proposta por Lisboa aparecia como uma orientação possível
para o exame e para o julgamento das instituições oligárquicas, do atraso social e dos
descaminhos do federalismo na República. Tudo isso distante do autoritarismo e dos seus usos
políticos do passado, mas por intermédio de um saber que se desejava exato, justo e verdadeiro
da história, da forma como foi supostamente elaborado por Varnhagen.
Lessa, expondo o significado da prática da “Historiografia” e admitindo a possibilidade
da crítica ao historiador, não impunha nenhuma solução para o momento de crise político-social
do Brasil a não ser o conhecimento da história vista em processo de formação, deixando isso
ao encargo da sociedade, posto que os princípios éticos, passíveis de reforma, deveriam
acompanhar as dinâmicas democráticas.
392
Capítulo 12 - Entrelaçamentos entre historiografia e história científica. Max
Fleiuss leitor de Rómulo Carbia (1925) e de Oliveira Lima (1928)
O Sr. José Veríssimo, que costuma acompanhar
com muita perspicácia e fixar com muita finura os
cambiantes do pensamento contemporâneo, decerto
refletia ao fazer aquela observação, a preferência
que muitos recentemente tem ido reconquistando
nos espíritos mais cultos a síntese sobre a análise
histórica.1223
1223
SOBRINHO, Barbosa Lima. Oliveira Lima, obra seleta. Rio de Janeiro: INL, 1976. p. 670.
393
estes três eixos. O que mais importa aqui nesta reflexão relaciona-se com o âmbito prescritivo
da pesquisa histórica possivelmente apropriado pelo intelectual brasileiro. O intelectual francês
elaborou um método histórico disposto desta forma: 1) análise (pesquisa e isolamento dos
fatos); 2) classificação dos fatos de acordo com classes (política, religião, arte filosofia); 3)
definição dos fatos, sob a forma de uma frase resumida, síntese das operações realizadas; 4)
estudo das dependências entre diferentes definições, para verificar se há a formação de um
sistema da história. Essas operações epistemológicas não tinham outro objetivo que não fosse
o de transformar a história em uma ciência legítima e autorizada para aquele momento.1224
Nos anos de 1920 não foram poucas as vezes que Max Fleiuss se aventurou como crítico
historiográfico sob a forma de pareceres ou de conferências. Acreditamos que nesse contexto,
após processos particulares de apropriação, a produção intelectual-disciplinar de Fleiuss ainda
seja devedora do método da ciência da história de Hippolyte Taine – mais das suas disposições
práticas de pesquisa e menos do seu registro teórico determinista. Era essa noção de ciência da
história que oportunizava ao primeiro-secretário a tradução para o contexto epistêmico-
historiográfico brasileiro o significado da categoria historiografia operado por Rómulo Carbia,
apresentada, igualmente, como o horizonte teórico para conceber a prática historiográfica de
Manuel de Oliveira Lima como exemplar. Oliveira Lima atravessou, à sua maneira, as quatro
fases da operação historiográfica prescritas por Taine para a realização em ciência da história.
Dito isso, vemos que Carbia, propenso aos estudos teóricos durante a sua carreira como
historiador e como professor de história, estava, para Fleiuss, praticando uma nova forma de
história, a história da historiografia, tornando evidente “um esforço pujante da sua aplicação à
matéria e profundeza de conhecimentos na especialidade a que se dedicou”.1225 A história da
historiografia de Rómulo Carbia, para além do estoque historiográfico que agencia, era um
modo de desnaturalização da atividade do historiador através da objetividade científica, isto é,
por meio do crivo da validação epistêmica. Fleiuss diz que essa modalidade analítica se parece
com um “cálculo de resistência dos materiais, próprio das engenharias”. Assim, a metáfora
epistêmica da engenharia era mobilizada para se referir ao ofício do historiador, que para
1224
GUIMARÃES, Da Escola Palatina... op. cit., p. 68. Lucia Guimarães argumenta o seguinte sobre a disposição
historiografia de Max Fleiuss: “A preocupação com o rigor científico, bem como a utilização do método
classificatório contribuíram, ainda, para que Fleiuss aprofundasse suas análises sobre determinadas classes de fatos
na época marginalizados pelo paradigma tradicional (...) periféricos aos interesses verdadeiros do historiador”.
Idem, p. 70.
1225
FLEIUSS, Max. Parecer da Comissão de Bibliografia sobre a obra Historia de la historiografia argentina, de
Rómulo Carbia. RIHGB, tomo 97, parte I, 1925, p. 321.
394
Fleiuss e Carbia tinha o sentido de historiografia.1226 A história da historiografia era, em Carbia,
uma história de fato, respeitando todo o arco de alcance da categoria historiografia enquanto
prática. Ademais, essa modalidade de estudo apresentava-se como uma propedêutica vigilante
para toda e qualquer história. Era um passo cognitivo diante de outros trabalhos, chamados de
crítica historiográfica, presentes no Brasil, por exemplo, através de Cairu1227, de Capistrano de
Abreu1228, de João Ribeiro, de Pedro Lessa1229 ou de Tristão de Athayde.
O processo de historicização das práticas do historiador realizado por Rómulo Carbia
era relativamente restritivo e disciplinador, abrangendo as suas formas de operacionalização
como produto intelectual que se enquadrava sob o selo de historiografia. Vejamos o parecer:
“Estranha o autor não hajam os que, na maior parte, se tem aventurado as explanações de temas
históricos, desde logo percebido que nem todos os depoimentos em apoio das construções
históricas merecem o mesmo grão de fé”.1230 Assim, a prática da historiografia estava distante
do “baralhar” de citações eruditas sem o critério que invocava um necessário valor diferencial.
A leitura que Fleiuss fazia da categoria historiografia operada por Carbia era atravessada pela
ideia da história como (re)construção, que implicava todo um processo de análise que sinalizava
para as operações de conhecimento que estavam por trás do trabalho de escrita da história. A
metáfora da construção foi muito acionada no IHGB republicano por seus “obreiros”.
Porém, o que se vê contemporaneamente é o uso da retórica da lógica na transformação
dos materiais primários em direção a “uma obra de descurada reconstrução do passado nacional,
engalanando-se eruditamente de preceitos e legendas e definindo-as sob a aparente figura de
uma pirâmide arquitetural”.1231 Esse tipo de história não atravessava o momento do arquivo, na
fase explicativa excedia na teorização e apresentava uma narrativa que invocava não o trabalho
árduo da construção, mas o design da arquitetura, isto é, uma história mais preocupada com a
forma conceitual generalizadora. Para Fleiuss, Carbia considera que esse
1226
A metáfora da construção é mobilizada pelos sócios do IHGB, especialmente por Capistrano de Abreu. Cf.
HRUBY, Obreiros diligentes... op. cit., 2007. Cf. GONTIJO, Rebeca. História e historiografia nas cartas de
Capistrano de Abreu. Revista de História (São Paulo), vol. 24, pp. 159-185, 2005. Disponível em:
https://cutt.ly/fv354yq Acesso: 08 abr. 2021.
1227
Cf. ARAUJO, Valdei Lopes de. Cairu e a emergência da consciência historiográfica no Brasil (1808-1830). In:
NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das (et. al). Estudos... op. cit., 2011.
1228
Cf. PEREIRA; SANTOS; NICODEMO, Uma introdução... op. cit., 2018.
1229
Cf. DETONI, Piero di Cristo Carvalho. A síntese como desafio historiográfico na Primeira República.
Pequenos estudos de caso. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal de Ouro Preto, 2013. Disponível em:
https://www.repositorio.ufop.br/handle/123456789/6124 Acesso: 04 dez. 2020.
1230
FLEIUSS, Parecer... op. cit., p. 321.
1231
Idem, p. 321.
395
(...) novo gênero de Historiografia, fruto do improviso juvenil ou da
preocupação de celebridade literária, é que, segundo o erudito mestre platino,
se tem difundido errôneos conceitos e falsos lances de vista sobre o passado
nacional da grande República do Prata, desde a conquista até Caseros.1232
Essa prática intelectual, que para Rómulo Carbia distancia-se dos preceitos da historiografia, se
compara com o “arbusto à flor da terra”, em que se observa a frase rotunda, o adjetivo lapidar
e a facilidade em atinar.
Carbia queria habilitar a historiografia como uma forma meticulosa de revisão de
valores no tempo. Quer dizer: a prática do historiador não deixava de ter uma função pública.
Está em tempo, conforme nos informa Fleiuss, que escreve esse parece com os olhos voltados
para o caso brasileiro, de reagir contra os processos da “historiografia superficial” e considerada
efêmera, que muitos têm chamado de “interpretação sociológica”, capaz de distorcer, até
mesmo com leviandades, os estudos sobre o passado. O primeiro-secretário do IHGB
evidenciou os procedimentos que Carbia se valeu para chegar a esse tipo de conclusão: “o autor
não se pontifica de iconoclasta, nem faz postulado das quantidades negativas. Mede, pesa,
analisa, isso sim, com critério clínico; e, si alguma vez amputa, faz sempre como os cirurgiões
praticam: para salvar o que ainda tem direito a vida”.1233 Nessa direção, Fleiuss concedeu à
Carbia o posto de escritor da primeira história da historiografia moderna na região do Prata,
modelo de abordagem historiográfica que ainda não se fazia presente no Brasil de modo pleno.
O que chamou a sua atenção e dos contemporâneos de Carbia foi o senso de objetividade, a
extensão dos conteúdos e a sistematicidade apreendidas naquela obra considerada inaugural.
Carbia era um leitor do historiador italiano Benedetto Croce (1866-1952). Isso fez com
que a sua concepção de historiografia respeitasse o critério do “conceito puro de história”, que
deseja investigar a consciência humana através de processos psíquicos com consequências
lógicas. Ademais, o estudioso argentino também se apropriou da “história idealmente
contemporânea”,1234 quer dizer, aquela que sentencia que toda história é uma história do
presente, o que possibilita a revivência presentificada do passado junto ao espírito do
1232
Ibidem, p. 321.
1233
Ibidem, p. 322.
1234
MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. Toda verdadeira história é histórica contemporânea: a historiografia
como passado-presente na obra de Benedetto Croce. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
graduação em História, UNICAMP, 1999. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/282018 Acesso: 04 dez. 2020. Raimundo Moreira nos
empresta a definição de história contemporânea em Croce: “(...) a contemporaneidade do conhecimento histórico
não seria característica de uma classe de histórias (como se considerava na classificação empírica), mas traço
intrínseco de toda a historiografia. A partir desse prisma, Croce pontuou que se tornava necessário pensar a relação
entre a história e a vida sob um vínculo de unidade – aqui aplicada no sentido croceano de unità sintetica,
implicando tanto a sua unidade quanto a sua distinção”. MOREIRA, Toda... op. cit., p. 124.
396
historiador. Mas a manifestação integral das épocas passadas, em seus resquícios e vestígios,
estava no âmbito da especulação logicista, elaborada pela “historiografia superficial” corrente,
isto é, a “história sociológica”. Contudo, a verdadeira historiografia revive o passado “dentro
do relativo domínio das coisas humanas” de modo dinâmico.1235 Por isso a reconstrução, única
e exclusivamente, por meio de uma disposição lógica não podia ser considerada história. Era
preciso congregar, agrupar e ligar fatores filosóficos e históricos junto ao passado materializado
por meio de vestígios por via da recomposição erudita, que tornava vivo esse conjunto de
indícios até então inertes. O objeto geral da história era a apreensão do espírito, tarefa
encampada pela historiografia: a consciência humana, a qual se apresentava por meio de três
fases (sensorial, consciência e revivência). A síntese delas era o espírito, porém este era móvel.
Da proposta teórica de Croce apropriada por Carbia derivava toda uma forma específica
de se conceber a historiografia. Desse modo, o processo do conhecimento histórico, a
historiografia, de uma época passa por três períodos distintos, que se correlacionavam com três
estados distintos do espírito. O primeiro era o “sensorial”: era a disposição “heurística” ou
montagem do “espólio”, que se assemelhava com o processo intelectivo humano de percepção
sucessiva das “sensações”. O segundo era o perceptivo: que não dependia apenas da suma dos
dados sensoriais, mas da coordenação dos estados de consciência conforme a hermenêutica
acionada, da forma como queriam Ernst Bernheim (1850-1942), Charles Langlois & Charles
Seignobos e Amedeo Crivellucci (1850-1914). O terceiro período funcional do saber histórico
através do espírito, alinhavado pela prática da historiografia, era aquele que tratava de reviver
o passado, de dar vida ao passado, de modo a “mover e dinamizar esse conjunto, - harmônico
e lógico por si mesmo, mas, apesar de tudo, inanimado”.1236 Esse registro só seria possível
através da sensibilidade do historiador com o seu presente. Ele depreendia os fatos de modo
relacional, formando a chamada série de sucessão, apontando as causas e os efeitos,
descobrindo a fisionomia do espírito em sua abordagem e visão sobre o passado. A partir de
todos esses procedimentos, uma verdadeira operação historiográfica, a “visão do histórico”
revelava, pois, o seu cunho artístico. Epistemologicamente significava, no limite, os momentos,
não necessariamente justapostos, da heurística, da crítica e da interpretação.1237
1235
FLEIUSS, Parecer... op. cit., p. 323.
1236
Idem, p. 324.
1237
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora da UNB,
2010. É necessário, para que compreendamos o significado epistêmico da história de Carbia, assimilarmos o
significado de metodologia na pesquisa historiográfica: “Trata-se da tessitura das diretrizes que conduzem o
397
A produção histórico-sociológica argentina, e as suas narrativas ensaísticas deturpadas,
ultrapassava o segundo tempo deste processo descrito acima, o momento próprio da
reconstrução, sendo, então, a sua limitação; não se modulando como verdadeiras obras de
historiografia. Os historiadores-sociólogos, na leitura que Max Fleiuss fez de Carbia, ao se
rebelarem contra as regras metódicas inscritas nas formas de conhecer a história saltavam do
tempo das imprecisas sensações (heurística periférica e rápidas) para as camadas da
generalização sintética (interpretação). De forma tal que Carbia assinalou um duplo erro na
epistemologia da história sociológica argentina: 1) em passar do vago sensorial ao expoente
dinâmico (ou da heurística à generalização); 2) em atribuir o máximo de autoridade aos
clássicos da historiografia, sendo que tais autores não eram tão confiáveis quanto pareciam
desde que vistos pelo crivo da historiografia.
Rómulo Carbia considerava que a historiografia dependia do trabalho dos “ecólogos”,
ou seja, os pacientes e laboriosos reconstrutores do passado nacional, os quais, na sua pitoresca
expressão, serviam como andaimes para as mais arrojadas obras e para os mais “portentosos
edifícios da ciência de Clio”. Após esse elogio aos “obreiros” de Clio, Rómulo Carbia elaborou
três argumentos contrários à história sociológica argentina: 1) essa produção intelectual carecia
de significado sério em sua elaboração epistêmica, oportunizando tão somente “tremulas visões
caprichosas e fantásticas”; 2) as “obras-primas” da historiografia não subsidiavam elementos
cabais para a realização das generalizações; 3) o que se necessitava, para aquele contexto
epistêmico-historiográfico, eram os dois primeiros tempos do processo do conhecimento
histórico. Em suma, a historiografia era uma forma de identificar, e de legitimar, o trabalho do
historiador do arquivo à escrita. Era uma forma de defesa ante a sociologia, principalmente
aquela que submetia a história como a sua disciplina subsidiária. Era um ataque às formas de
sínteses que hierarquizavam história e sociologia, em que a primeira se apresentava como a
responsável pela empiria e a segunda pela generalização. O que se evidenciava nesse processo
era, ainda, o pouco embasamento empírico das sínteses histórico-sociológicas, na medida em
que não se valiam do trabalho heurístico-sensorial propriamente dito, mas fita-se no terceiro
estágio do processo de construção do saber histórico, a narrativa.
Realizar uma história da historiografia, legitimando essa prática, era uma maneira da
história tornar-se, e apresentar-se, autônoma. Ela mesma podia realizar a síntese, desde que
passando pelos três momentos que estruturavam o processo do conhecimento histórico. Faltava,
pensamento histórico à pesquisa empírica, à reflexão sobre os pontos de partida e à teorização, conferindo-lhe a
dinâmica do progresso cognitivo, da ampliação das perspectivas e do reforço de identidade”. RÜSEN, Razão... op.
cit., p. 101.
398
no entanto, aos historiadores-sociólogos fazer a crítica dos estados de consciência com suportes
teóricos apropriados. Somente após esse movimento, que implicava uma radical historicização
e reconstrução da consciência humana, se podia articular generalizações. Assim sendo, vemos
a história da historiografia de Carbia projetando o seu “olhar vigilante”1238 sobre as obras de
história que não movimentavam o conteúdo da categoria historiografia por ela engendrada. Esse
movimento configurava-se como uma clara disputa epistemológica. Não é um exagero, pois,
dizer que a resposta daquela história sociológica argentina era que os historiadores stricto sensu
nacionais ainda estavam situados nos horizontes heurístico-sensorial.
Para Carbia, na leitura de Max Fleiuss, que como dissemos estava enraizada em
problemas que eram brasileiros, o momento atual devia ser o dos “ecólogos” e dos “datólogos”.
Isso em razão de não se acharem ainda devidamente reunidos os elementos sensoriais do
passado (via heurística), parecendo razoável que não se pudesse pretender a interpretação
filosófica (ou sociológica). Por exemplo: a historiografia do período colonial argentino estava,
assegurava Carbia, alinhavada, através de bases escassas e pouco confiáveis, bem como por
elementos parciais de informação. “E para não cair no absurdo da intuição empírica de Kant,
não se deve, portanto, filosofar com tal fundamento para não edificar na areia”.1239
A obra de Rómulo Carbia se estruturava epistemologicamente através de quatro
arquétipos, ou escolas, de historiadores: provincialistas, positivistas, românticos e os idealistas
da nova escola histórica. O critério era o seguinte: os historiadores que por suas obras,
volumosas ou modestas, integrais ou fragmentárias, movimentavam um estilo historiográfico
até então incomum, ou que levavam aos seus leitores a sensação de uma “nova visão de
história”. Esses dois critérios eram balizados pela prática da historiografia em seu
funcionamento pleno. Esse registro fez Carbia considerar certas obras carentes de significação,
enquanto que outras, até então direcionadas para outros fins, passavam a ter valoração
historiográfica. É importante lembrar que os procedimentos que amparavam a obra do estudioso
argentino conformavam uma memória disciplinar, estabelecendo, então, o panteão dos
clássicos da historiografia.1240 A abordagem de Carbia excluía uma rica produção histórica pelo
fato de não se enquadrar na categoria historiografia. Ou ainda: compreendia-se que as obras de
história estavam em um nível evolutivo que tinha como ponto de chegada a realização máxima
da historiografia. E, por fim, apresentava-se como empreendimento político-epistêmico em que
se diferenciava a atividade do historiador das ações de outros agentes intelectuais também
1238
HARTOG, Evidência... op. cit., 2011.
1239
FLEIUSS, Parecer... op. cit., p. 325.
1240
GUIMARÃES, Historiografia e cultura histórica... op. cit., 2005.
399
preocupados com o passado. A historiografia empreendia uma política disciplinar que visava
proteger o campo das apropriações de outras disciplinas, ao mesmo tempo em que empoderava
a história identitariamente, podendo, então, ela se socorrer de recursos próprios das demais
disciplinas que se ocupam com a ação social no tempo. A historiografia era uma prática que
indicava a especialização da história, o que não significava que ela se abstivesse de trocas
interdisciplinares. A historiografia era uma maneira, em um contexto de poligrafia, dos
intelectuais que se arrogavam como historiadores fossem reconhecidos como tais pelo público
em geral. O historiador passava a praticar uma expertise e tornava-se um perito.
Assim Max Fleiuss leu a historiografia argentina amparado nos escritos de Carbia. Cabe
ao leitor se atentar para as categorias mobilizadas por Fleiuss para a designação do tipo de
história que se pratica. 1) os primeiros: “glosadores” da crônica jesuítica; 2) cronistas menores;
3) historiadores filosóficos; 4) ensaísta da filosofia da história, sendo precursor Alejandro
Magariños Cervantes (1825-1893); 5) “guizotianos”, cujo pioneiro foi José Manuel Estrada
(1942-1894); 6) “guizotianos” filosóficos; 7) “guizotianos” eruditos; 8) românticos,
notabilizando-se Vicente Fidel López (1815-1903); 8) escola erudita crítica, cujo nome mais
representativo é o de Bartolomé Mitre (1821-1906). Eduardo Madero (1833-1894) destaca-se
no aperfeiçoamento do método historiográfico erudito e crítico; 9) nova escola histórica, com
destaque para Paul Groussac (1848-1929). É perceptível que a obra de Carbia tinha um destino
manifesto, qual seja, o aperfeiçoamento do regime historiográfico metódico indutor da síntese.
Digo mais: essas categorizações de sentido movidas para designar a prática historiográfica na
argentina indicavam, a partir da leitura de Max Fleiuss, aquele movimento próprio da
historiografia moderna, da forma como queria o historiador italiano Arnaldo Momigliano, em
progressão, qual seja, o câmbio entre procedimentos empíricos-metódicos, herança antiquária,
e os quadro explicativos, inspirados inicialmente pelas filosofias da história. Procedimento esse
que resultava na síntese. Percebe-se que havia um melhoramento do regime historiográfico
metódico época após época – esteio para a emergência da prática da historiografia. Através de
heranças residuais e de atualizações se elaborava essa forma específica de operar o
conhecimento histórico. O que se verificava era um processo de atualização das escolas
históricas cujo eixo se localizava nas formas possíveis da história passar do arquivo para as
generalizações. Esse processo era possível através das mutações da categoria historiografia no
tempo. Podemos dizer, portanto, que era um processo de atualização do rigor da análise
historiográfica o que se verifica na obra de Rómulo Carbia.
1241
FLEIUSS, Parecer... op. cit., p. 327.
1242
O historiador argentino Fernando Devoto é bastante claro quanto aos processos cognitivo-historiográficos
acionados por Mitre. “O ponto de partida de uma historiografia moderna na Argentina, se nos ativermos a dar
relevância à nova combinação entre erudição, método filológico-crítico e esquemas gerais, que se costuma admitir
como ponto departida para a operação histórica, encontra-se na Historia de Belgrano de Bartolomé Mitre, de
1857”. DEVOTO, Fernando. A história e as ciências sociais na profissionalização da historiografia argentina”.
Tempo social - Revista de Sociologia da USP, v. 21, n. 2, 2009, p. 110. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ts/v21n2/v21n2a06.pdf Acesso: 08 abr. 2021.
401
Carranza (1834-1899). Também foram abordados os “datistas”, representados por José Joaquín
de Araujo (1762-1835), Saturnino Segurola (1776-1854), frei Juan Alegre, José Antonio Pillado
(1845-1915) e Adolfo P. Carranza (1857-1914). Havia os “monografistas”: Andrés Lamas
(1817-1891), Juan María Gutiérrez (1808-1878) e Manoel Mantilha, dentre outros. La chasse
aux documents, da forma como Louis Halphen (1880-1950) a pensou, exerceu o maior impacto
estrutural junto aos eruditos metódicos argentinos.
De acordo com Rómulo Carbia, em sua História da historiografia argentina, eram
chamados de “heurísticos” todo e qualquer investigador das coisas do passado que de
preferência congregava os materiais para as construções historiográficas.1243 Tendo em vista
que a heurística, segundo o cânone metodológico em voga, apresenta-se como a disciplina que
desenvolvia o estudo metódico sobre os documentos, ministrando o conhecimento das fontes
da história. Alguns deles, argumenta Fleiuss, se arrogavam datólogos ou ecólogos. Parte da
obra de Madero, por exemplo, era um protótipo mais perfeito dessas prescrições. Caracteriza-
os “a ausência de finalidade transcendental e, pode-se dizer, de credo historiográfico”.1244
Max Fleiuss destacou que a cronística, para Carbia, performava como um gênero
historiográfico específico. Mais: o estudioso argentino faz a diferenciação entre “cronista” e
“historiógrafo”. No entanto, até aquele dado momento, Carbia avaliou não existir no país uma
crônica geral que pudesse apresentar de modo harmônico e lógico os aspectos do passado
nacional argentino não compreendidos a partir do fenômeno político. Percebe-se que a noção
de crônica, ao menos entre os intelectuais argentinos, parece possuir uma maior abrangência de
significação ante aquela vista na tradição historiográfica brasileira.
Era preciso, agora, colocar luz alta sobre a escola historiográfica dos ensaístas,
supostamente inaugurada por José Manuel Estrada (1842-1894). Como se sabe o gênero ensaio
tem larga sobrevivência no interior da cultura intelectual latino-americana. Carbia conceitua
ensaio histórico: “todo o trabalho historiográfico em que o Autor cuida de aparelhar elementos
eruditos no sentido de uma demonstração particularizada ou no de uma exibição de um
determinado sucesso do passado”.1245 Os ensaístas se destacaram dos monografistas, que
expunham apenas os resultados das suas pesquisas, dado que comparavam, explicavam e
filosofavam. Neste exato ponto estava o elemento de discórdia. Isso em razão de existir dois
tipos específicos de ensaístas. Primeiro: “os que partindo da tendência de escrever a História
1243
Uma parcela significativa dos sócios do IHGB também trabalhava metodicamente com vistas às interpretações
históricas futuras. No Brasil os heurísticos eram, em uma comparação imperfeita, os “obreiros”. Cf. HRUBY,
Obreiros diligentes... op. cit., 2007.
1244
FLEIUSS, Parecer... op. cit., p. 328.
1245
Idem, p. 329.
402
como filósofo, ingressam facilmente pela sociologia”. Segundo: “aqueles com a mesma
tendência ao partir, caminham para a ordenação genética dos fatos, seguindo a linha das suas
causas geratrizes”.1246 Os primeiros eram chamados de sociólogos declamadores, que Emílio
Ravignani (1886-1954) indicou praticar o “sofisma da generalização”; enquanto que os
segundos eram os eruditos, que orientavam as suas pesquisas pela “retilínea do espírito”. Não
era por acaso o modo de exposição do parecer de Fleiuss. A sua posição como sujeito
cognoscente estava presente em sua leitura, a qual não deixava de se ancorar na experiência
historiográfica brasileira. Esse dilema entre ensaístas declamadores e ensaístas eruditos era um
dos problemas historiográficos mais acusados no ambiente intelectual da Primeira República.
Essa discórdia abordada por Carbia, e que era sublinha por Fleiuss nesta peça discursiva, era a
própria querela da síntese verificada no Brasil, em que a sociologia e a história disputavam o
posto de quem efetuaria o balanço das experiências humanas de modo disciplinar. Interessante
assinalar que esse problema era, como percebido, transnacional, pois foi verificado em ambos
os lados do Atlântico. É importante assinalar que o ensaio era uma forma narrativa,
sinteticamente generalizada, de um procedimento mais abrangente chamado historiografia. Dito
de outro modo: quem praticava historiografia podia escrever ensaio de interpretação histórica.
O que era o recomendado ante os chamados ensaístas meramente declamadores.
De qualquer modo, estudando os verdadeiros historiadores-sociólogos, e toda uma
valiosa produção historiográfica, de Sarmiento (1811-1888), passando por Alberdi (1810-
1884), até chegar a Ingenieros (1877-1925) e Levene (1885-1959), se localiza interpretações
possíveis sobre os problemas da escravidão nas Américas, a chamada “legenda negra”, bem
como a denominada “legenda vermelha” própria da política dos criollos, culminando com a
ditadura. O que Carbia estava assinalando, com o auxílio interpretativo de Fleiuss, é que o
ensaismo, e consequentemente a historiografia, tinha a capacidade de colocar em evidência
questões de ordem, e de interesse, pública. Essa modalidade historiográfica estava preocupada
com os aspectos formativos da nação, revelando os males de origem que afetavam a região
platina. Em suma, o ensaismo possuía um valor pragmático de organização do tempo.
Era possível classificar parte dos ensaios como “cientificistas”, ou seja, ensaios
psiquiátricos e psicológicos que eram subsidiados pelo recurso da medicina geral ou da
psiquiatria, cuja matriz advinha da escola neurológica francesa. Seu maior tradutor na Argentina
1246
Ibidem, p. 329. Esses ensaios validados pela história de Carbia podem ser compreendidos por meio desta
teorização de Fernando Nicolazzi, intérprete do ensaismo no Brasil: “(...) correlato ao predomínio da síntese, nos
ensaios é perceptível o deslocamento da erudição crítica justamente em proveito da interpretação sintetizadora”.
NICOLAZZI, Raízes... op. cit., p. 91.
403
foi José Maria Ramos Mejía (1849-1914). Entre os cientificistas encontramos aqueles que, para
Carbia, aplicam os caracteres da interpretação psicológica aos fenômenos sociais, como Lucas
Ayarragaray (1861-1944) e Carlos Octavio Bunge (1875-1918) (racismo científico).
Max Fleiuss sublinha os “ensaístas genéticos”, que movem uma operação de
pensamento que visa “(...) fundamentalmente em desentranhar não a contextura anatômica ou
melhor, dir-se-á, a ossatura dos acontecimentos, mas, sim, a fisiologia normal, isto é, não
perseguem propriamente a verificação das causas, mas a própria causa, como uma espécie de
fisiólogos sociais”.1247 Os expoentes desse tipo de ensaio são Juan Ignácio de Gorriti (1776-
1842) e Esteban Echeverría (1805-1851). Nenhum deles era um historiógrafo stricto sensu, mas
a ambos coubera a ambição de revelar um sentido explicativo para fisionomia característica do
passado argentino e latino-americano. Gorriti, por exemplo, em Reflexiones sobre las causas
morales de las convulsiones interiores de los nuevos Estados americanos encarou um conjunto
amplo de fenômenos americanos “sem descer aos detalhes de suas particularidades”, sendo o
primeiro a desvendar a “visão histórica” da América vinte anos após a emancipação dos
espanhóis”. O que ficou de lição do ensaio de Gorriti foi a vista de conjunto, o olhar sinóptico,
que revelava o essencial da experiência histórica. Um passo decisivo para as sínteses. O apogeu
do ensaio histórico argentino, já se valendo dos aportes teórico-científicos das ciências sociais,
ocorreu através das obras, por exemplo, de Ernesto Quesada e Juan Téran (1880-1938).
Por fim, havia uma ensaística que se devia evitar, que era justamente aquela que não se
orientava pelos preceitos da historiografia enquanto prática. Eram obras de história sociológica
que não respeitavam as fases necessárias para a execução e para a operação do conhecimento
histórico. Eram os “expositores de teses”, os “simples literatos”, os “reivindicadores”, os
“coordenadores de fatos” e os “divagadores sem objetivo sério”. Essa constatação assinala que
não se devia banalizar, de forma alguma, a operação de síntese.
Após finalizar o seu parecer sobre a obra de Rómulo Carbia, que se mostra não apenas
descritivo mas propositivo, o primeiro-secretário do IHGB, Max Fleiuss, acredita encontrar no
“espírito do leitor brasileiro” a seguinte questão: por qual motivo não se propõe uma iniciativa
parelha, inclusive com subsídios oficiais, no Brasil? Não faltava boa vontade, não faltavam
materiais e não faltavam intelectuais para a execução desse projeto, dentre eles Ramiz Galvão,
Oliveira Lima, Afonso Celso, Capistrano de Abreu, Manuel Cícero, Afonso Taunay, Basílio de
Magalhães, Rodolfo Garcia, João Ribeiro, Clóvis Bevilaqua, Oliveira Vianna. Eram estudiosos,
acrescenta Fleiuss, cuja profunda erudição e apuro analítico sobre a matéria os lançavam como
1247
FLEIUSS, Parecer... op. cit., p. 330.
404
os mais recomendados para operar com bom êxito essa “benemérita e patriótica” obra, tomando
como exemplo a própria História da historiografia argentina de Carbia.
Fleiuss sugeriu que o ambiente historiográfico brasileiro era carente desse tipo de
abordagem histórica. E fazer história da historiografia era praticar historiografia. O parecerista
esperava que a inciativa de Carbia reverberasse entre os historiadores e os intelectuais
brasileiros. Esse tipo de produção era o passo decisivo para a fixação definitiva dos fragmentos
esparsos da crítica historiográfica local desde muito tempo desejosa de um sintetizador
vigoroso, a exemplo de Carbia, que “valha para a Historiografia da nossa pátria o mesmo que
Varnhagen foi para a sua história científica.1248
Max Fleiuss foi o responsável por proferir uma conferência, que serviu como um
necrológico, em memória de Manuel de Oliveira Lima, intelectual da mais alta envergadura no
contexto da Primeira República, principalmente como diplomata e como historiador, falecido
em 1928. Para o primeiro-secretário do IHGB a conferência em homenagem ao historiador
pernambucano é “um preito merecidíssimo”. Fleiuss se valeu da sua crítica historiográfica, da
mesma forma como fez na análise da obra de Carbia, para reconstruir todo um registro
epistêmico partindo de casos específicos. Outra estratégia de Fleiuss foi buscar os vários
contextos das obras em exame. As virtudes de Oliveira Lima como historiador foram ressaltadas
por Fleiuss tendo em vista a ambiência historiográfica das primeiras décadas republicanas. O
estudioso carioca era um “pensador da história”,1249 ou como dito antes: um crítico da
historiografia. Categoria que ele conhecia bem, dado que era leitor de Rómulo Carbia. Então
compreendemos, em um primeiro movimento, o processo de contextualização da obra Lima
com o objetivo manifesto de colhermos vestígios possíveis acerca da figuração ideal do
historiador no alvorecer republicano. Em um segundo movimento cruzamos a leitura que
Fleiuss faz da obra de Lima com as preocupações historiográficas de Carbia. Ao que parece o
diplomata-historiador é quem melhor pratica historiografia naquela conjuntura.
A importância de Oliveira Lima, símbolo intelectual de uma época, é registrada por Max
Fleiuss: “Se bastam alguns pró-homens para fazer a fortuna moral de uma nação, o falecimento
de Oliveira Lima representa, de certo, para o Brasil culto, avultada e irreparável perda
patrimonial”.1250 O primeiro-secretário constrói um lugar social para o estudioso
1248
Idem, p. 333.
1249
Sobre a ideia de “pensador da história” cf. GONTIJO, Manoel Bomfim... op. cit., 2003.
1250
FLEIUSS, Max. Conferência – Oliveira Lima. RIHGB, tomo 104, parte II, 1928, p. 822.
405
pernambucano. Falar em termos de patrimônio significava que Lima representava, no caso da
história, toda uma forma de fazer, de praticar, de narrar e de divulgar o conhecimento
historiográfico. O que Fleiuss estava tentando dizer era que Oliveira Lima era um homem-
síntese da experiência historiografia das primeiras décadas republicanas.1251 Ele era, ademais,
um patriota – condição necessária para a figuração do historiador naquela quadra temporal. Ou
seja, o autor em questão reunia todas as virtudes que subsidiavam o contexto epistêmico-
político-historiográfico da Primeira República. Mas Lima consegue extrapolar esse âmbito
descrito acima, dado que ele é mais do que um simples historiador e ministro plenipotenciário,
mas um verdadeiro “embaixador da intelectualidade brasileira no Velho e no Novo Mundo”.1252
Para Max Fleiuss, o historiador de Dom João VI no Brasil foi o último sobrevivente da
grande tríade dos maiores historiadores brasileiros, juntamente com Francisco Adolfo de
Varnhagen e Capistrano de Abreu, todos eles sócios do Instituto Histórico. Esse elenco de
historiadores não foi sublinhado por acaso, dado que eles formavam uma tradição daquilo que
Fleiuss denominou de história científica, que se comparado com o texto de Rómulo Carbia
possuía uma significação aproximada da categoria historiografia. A história científica de
Fleiuss engendrava uma disposição prática, uma atividade intelectual, que se observava no
conteúdo da categoria historiografia. Esse tipo de prática historiográfica, considerada científica,
era uma faceta do “patrimônio historiográfico Oliveira Lima”. Segundo o nosso autor,
“ninguém se ilustrou e engrandeceu tanto, engrandecendo e ilustrando o nome da pátria do que
esse extraordinário mestre da história americana”.1253
A partir de um discurso realizado em Bruxelas, proferido por Van Busschere, presidente
do Instituto de Direito Comparado belga, acompanhamos o tamanho do reconhecimento de
Oliveira Lima como intelectual (historiador) em âmbito internacional:
1251
Mitre, na Argentina, também é considerado um patrimônio historiográfico. Cf. NETO, Mitre... op. cit., 2011.
1252
FLEIUSS, Conferência... op. cit., p. 823.
1253
Idem, p. 823.
1254
Ibidem, p. 824.
406
É ressaltado, ainda, algo importante para a configuração da sua persona acadêmica, isto é, Lima
além de se portar como um patriota é alguém que “divulga o país”, sobretudo, através das suas
conferências tematizando o Brasil no exterior, cuja finalidade maior é oferecer um
conhecimento correto sobre a história brasileira, dado que circulam visões deturpadas acerca
da mesma. Esse duplo vetor torna pública a sua história científica.
O intelectual argentino Estanislao Zeballos (1854-1923) define o horizonte epistêmico
da obra de Lima: “suas obras históricas distinguem-se pela verdade comprovada dos fatos
fundamentais, e pelo comentário conceituoso. Não faz crônica; escreve filosofia da história do
seu país e da América”.1255 A recepção de Lima na Argentina estava próxima da definição de
historiografia elaborada por Carbia, garantindo este exercício comparativo. Se percebermos
bem, a sentença de Zeballos corresponde aos três tempos necessários para elaboração de uma
obra historiográfica considerada plena, segundo Carbia, e que se localiza na prática de Lima.
O “patrimônio Oliveira Lima” detinha um profundo conhecimento da história e das
questões exclusivas da América, que se ligavam aos antecedentes, às condições geográficas,
povoamento, à forma de crescimento, à cultura, ao estado social e político, etc. Percebia-se que
as preocupações de Oliveira Lima estavam em sintonia com os problemas e as temáticas
historiográficas em voga, sendo ele enredado por esse contexto, ao mesmo tempo em que
inspirava novas abordagens junto à comunidade de historiadores brasileiros, especialmente
aqueles que eram sócios do Instituto Histórico. Esse horizonte de preocupações era atravessado
por uma prática, chamada de história científica por Max Fleiuss, que se movia pelas virtudes
epistêmicas da diligência, da objetividade, da imparcialidade, da confiabilidade, bem como se
organizava praticamente entre o arquivo, a explicação e a escrita. Esses requisitos eram
fundamentais para a estruturação de uma história científica no Brasil, que acreditamos possuir
a mesma disposição epistêmica da categoria historiografia estudada pelo próprio Fleiuss por
intermédio da obra de Carbia.
Essa argumentação pode ser comprovada através da leitura do conde de Afonso Celso
sobre a obra de Oliveira Lima, em que se vislumbra os seguintes registros: 1) investigação
meticulosa, consciencioso esforço, probidade extrema; 2) conceitos engenhosos e argutos e
deleitosa didaticidade; 3) sinceridade, espírito de imparcialidade e justiça na apreciação
ponderada de homens e coisas; 4) suprema independência e desassombro; 5) inexcedível
1255
Ibidem, p. 825.
407
patriotismo.1256 A apreciação do conde sobre o trabalho historiográfico de Oliveira Lima era,
pois, uma súmula dos predicados que um historiador devia possuir naquela conjuntura para
operar a sua prática em modo de excelência. Acrescento o seu fino traço interpretativo. É
interessante pontuar que Fleiuss diz que Lima em muitos pontos se aproximava de Varnhagen,
mas especialmente em um: a paixão da investigação histórica subordinando todas as suas
manifestações do escritor. Não havia traço algum de “jingoismo” em seus escritos,
especialmente entre aqueles que abordavam a história, bem como a sociedade e a cultura de
outros países, como Japão, EUA e Argentina. O que se observava em toda a sua carreira como
historiador era, no limite, a vocação patriótica, o espírito imparcial de nacionalista, um grande
amor pela paz universal, “confraternizando como o amor patriótico as nossas tradições”.1257
Fleiuss aproximou Oliveira Lima da persona acadêmica do IHGB, qual seja, a “pacifica
scientiae occupatio”. O cargo de diplomata tornou-se o meio eficaz e o pretexto suficiente para
que ele pudesse conhecer o Brasil, estudar com profundidade a gênese e o desenvolvimento
nacional, podendo frequentar assiduamente arquivos e bibliotecas do exterior. Ademais, era
uma oportunidade ímpar para fazer o país ser amado e conhecido no mundo “culto”. Essa
questão da divulgação positiva do Brasil no estrangeiro era uma importante preocupação
historiográfica verificada no contexto da Primeira República.
Oliveira Lima se multiplica como historiador: escreveu livros de farta erudição e
documentação, foi exímio conferencista diante de plateias exigentes no exterior, publicou
artigos de generalização sobre “os homens e as coisas do Brasil”. Por meio das formas como
Oliveira Lima tornou público os seus trabalhos podemos aproximar a sua prática dos três
momentos fundamentais da historiografia conforme pensada por Rómulo Carbia (heurística
sensorial - percepção ou coordenação hermenêutica dos estados de consciência - generalização
vivificante). Ambos acreditavam que praticar história significava ir ao arquivo, montar modelos
hermenêuticos e generalizar conceitualmente os resultados da pesquisa. Ambos acreditavam na
necessidade da “fusão de horizontes”.1258 Isso perpassado pelas virtudes epistêmicas que já
arrolamos acima e da constituição de uma persona acadêmica patriótica. É possível admitir que
na Primeira República, ou por meio da noção de história científica ou através da categoria
historiografia, houvesse modos consistentes de subjetivação de formas específicas de se fazer
e de se praticar história. De ser historiador, em suma. História científica e historiografia
1256
Ibidem, p. 825.
1257
Ibidem, p. 826.
1258
De acordo com Gadamer, “a compreensão deve ser pensada menos como uma ação da subjetividade que uma
participação em um evento da tradição, um processo de transmissão no qual o passado e presente são
constantemente mediados”. GADAMER, H. G. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 385.
408
condensavam tudo aquilo que um historiador devia movimentar em suas pesquisas, sob o risco
de não terem os seus trabalhos validados por seus pares e pelo público leitor. A prática da
historiografia, a concepção de história científica, individualizava e identificava o métier diante
das outras ciências. E era Oliveira Lima, para Max Fleiuss, aquele que melhor encarnou esse
tipo de atividade intelectual nos contextos da Primeira República brasileira.
A mobilização do regime historiográfico metódico, base para a ciência da história,
podia ser encontrada em uma aproximação com os esforços investigativos realizados por
Varnhagen que o próprio Lima realizou em seu Elogio a Varnhagen:
1259
FLEIUSS, Conferência... op. cit., p. 829.
1260
Idem, p. 829.
409
de história científica, posto que além do registro erudito há “fundo filosófico” e “vivacidade de
descrição”. Esses dois componentes resolvem aquele problema, já abordado por nós, que
Arnaldo Momigliano verifica na historiografia moderna entre empiria e reflexividade. Era uma
obra de síntese modernista, como se demandava naquele contexto. Além disso, essa obra de
Lima se armava hermeneuticamente através de aparatos econômicos e sociológicos para
complexificar a explicação acerca da passagem do tempo. Pernambuco e seu desenvolvimento
histórico “molda-se na escola de História científica, fundada por Varnhagen, mas Oliveira
Lima, como historiador, dispunha de visão de crítica filosófica muito mais ampla”.1261
Para Max Fleiuss, Oliveira Lima era um historiador completo. Isso pode ser verificado,
mais uma vez, através da movimentação do regime historiográfico metódico. Em 1903 publicou
a meticulosa Relação dos manuscritos de Museu Britânico de interesse para o Brasil na
RIHGB. Esse trabalho superou o de Figanière (1827-1908), até então o mais completo. Salvador
de Mendonça chega a dizer que Oliveira Lima abastece a “oficina de trabalho dos futuros
historiadores do Brasil”. A iniciativa foi tão bem recebida por se fazer útil que os sócios do
Instituto sugeriram que Lima fizesse o mesmo trabalho nos arquivos de Portugal. Ademais,
Max Fleiuss faz alusão a toda a bibliografia de Oliveira Lima e em que situações elas se
tornaram possíveis, com especial atenção para as suas conferências e os seus estudos culturais
em universidades europeias e norte-americanas respeitadas, como a Sorbonne.
Porém, o livro de Lima considerado mais representativo diante daquele contexto
epistêmico-historiográfico era Dom João VI no Brasil. Segundo o parecer do respeitado crítico
literário José Veríssimo, não era apenas uma história circunstancial, porém, uma verdadeira
história geral, uma síntese, do país. Era história econômica, social, cultural e literária. Max
Fleiuss adjetiva o livro em questão como “monumento insuperável de erudição”. Sendo que
erudição não significava apenas crítica, mas todos os elementos que circunscreviam o regime
historiográfico metódico. Além disso, o trabalho restituía a imagem de João VI, fundador da
nacionalidade, e de seu reinado, tão vilipendiados pela fortuna historiográfica disponível. Era
um trabalho de reconstituição histórica amparada por copioso escopo documental e por demais
fontes, na maior parte das vezes originais e inéditos, de arquivos particulares e públicos,
nacionais e estrangeiros. Havia, ainda, a pesquisa com outro tipo de fonte: a correspondência
diplomática. Esse posicionamento historiográfico de Lima partia ao encontro das demandas da
historiografia, como desejava Rómulo Carbia, pois não se realizava o procedimento incompleto
da passagem direta da heurística à generalização, ou de um “vago sensorial” para um “expoente
1261
Ibidem, p. 830.
410
dinâmico”. Era preferível avançar junto às fontes a se fiar nas obras historiográficas prontas.
Oliveira Lima era um leitor de Varnhagen e de Capistrano de Abreu, e mesmo salientando os
horizontes da história política o realizou de modo novo, quer dizer, ela era articulada a partir
do vetor da complexidade, congregando aspectos sociais, culturais, econômicos e literários para
o processo de reconstrução do passado. De um modo ou de outro, Fleiuss aproximou Oliveira
Lima das inovações historiográficas verificadas após a Primeira República. A comparação com
Capistrano de Abreu é incontornável, enquanto um categorizou a prática dos historiadores
através da chancela dos “estudos históricos”,1262 o trabalho do outro era compreendido, por
Fleiuss, através da “história científica”, sendo que ambos prefiguraram a categoria
historiografia, como acionada por Carbia.
Não é por acaso que Oliveira Lima era conhecido, entre os seus pares, como o
“embaixador da verdade histórica”. E Max Fleiuss procurava realizar uma aproximação,
inclusive, entre a personalidade do historiador e o se métier. Entre as “qualidades de seu
espírito, que tinha a rigidez e o fulgor do diamante, sobressaia a de ser positivo e retilíneo. Sua
característica é a sinceridade, como acentuou Salvador de Mendonça, só diz o que acredita ser
verdade e di-lo sem rodeios na forma explicita da sua convicção”.1263 Fleiuss constrói uma
persona acadêmica. O conferencista desejava criar uma persona para Oliveira Lima em que o
intelectual passasse a ser percebido como alguém totalmente absorvido pelos estudos. Ela fica
no meio do caminho entre um scholar e um erudito. Para Max Fleiuss não existe alguém tão
“lhano”, “modesto” e simples em seus hábitos de estudioso “infatigável”, cuja vida é totalmente
absorta pelos estudos, sendo que o seu último pedido é que escrevam em sua lápide: Aqui
repousa um amigo dos livros.
1262
ABREU, Necrológio... op. cit., 2015.
1263
FLEIUSS, Conferência... op. cit., p. 835.
411
sociais, especialmente as de carga sociológica. A importância destas estava na promoção do
caráter sintético e reflexivo para o saber histórico. Mas esse registro epistêmico não caminhava
na mesma direção da história sociológica argentina, descrita por Rómulo Carbia. A história
possui, nesse sentido, uma identidade assegurada e se distingue dos estudos sociológicos, dado
que estes, em sua concepção, formam a “súmula, ou melhor dito, a síntese das ciências”.
Enquanto isso os espaços de trabalho da história inseriam-se autonomicamente nesse
movimento interdisciplinar em que a sociologia se apresentava como a coordenadora dos
saberes sociais disponíveis, inclusive o histórico, contribuindo com o balanço das experiências
humanas. Esse movimento historiográfico podia ser perfeitamente realizado pelos
historiadores. Em Oliveira Lima a história não era a simples subsidiária empírica da sociologia.
É um saber interdisciplinar o desejado pelo historiador pernambucano.
Assim, o diplomata podia, de fato, ser inserido na tradição nacional de “história
científica”, como queria Fleiuss, o que abria margem para a sua obra ser enredada pela categoria
historiografia de Carbia, situando-se, talvez, entre Mitre (erudição) e os ensaístas (sentido). A
história se performa através do formato “narrativo, isto é, o inventário dos fatos memoráveis
ocorridos no seio das sociedades civilizadas”, através da sua disposição “pragmática, isto é, que
procura dar a significação moral dos fenômenos históricos e trata de deduzir as relações que
regem o seu encadeamento”, ou, por fim, em função da sua atitude “filosófica, isto é, que busca
alcançar e definir as causas da evolução humana e tenta mesmo explicar a sua finalidade”.1264
Com esse conhecimento em mãos os historiadores podiam buscar o auxílio hermenêutico das
ciências sociais, e da sociologia, que abriam condições para o historiador realizar a síntese
modernista. Era justamente o contrário do que se verificava na Argentina de Carbia, onde
muitos estudiosos contemporâneos se enveredavam pelo caminho da história sociologizante
sem a consciência mínima da ordenação genética dos fatos. Havia apenas generalização. A
prática da historiografia podia levar à síntese, que se tornava mais completa com o contato
interdisciplinar com as ciências sociais (evolucionismos híbridos ou complexos). Não podemos
deixar de observar o conceito de civilização em Oliveira Lima, que denotava tanto uma forma
de compreender as sociedades do passado como um ideal social europeu. Ao que parece o nosso
autor mobilizava os dois lados dessa ambivalência.
Diante desse cenário, Lima novamente frisou as disposições relacionais presentes a
partir do contato da história com as ciências sociais em voga, em que a sociologia dava a última
1264
LIMA, Manuel de Oliveira. Prefácio. In: _____. História da Civilização. São Paulo: Edições Melhoramentos,
1919, p. 15.
412
forma para a síntese. Não era a história sendo absorvida pela sociologia no entender do
estudioso pernambucano, mas a sociologia, que também não era absorvida, emprestando os
seus suportes teóricos à história. Em suas próprias palavras: “a sociologia é rigorosamente uma
ciência, e a história logicamente também o é”. Ou seja, a importância da interdicisplinaridade
com a sociologia mostra-se fundamental, visto que as pesquisas dos historiadores oferecem
“(...) os elementos necessários para ela operar, projetando sobre as investigações que são
oferecidas à luz da decomposição analítica, seguida da reconstituição sintética do produto social
como expressão da civilização”.1265 É possível dizer que a expressão de civilização em Oliveira
Lima seja perpassada pela noção de engrandecimento patriótico e nacionalista.
Conforme a consciência historiográfica de Oliveira Lima, nos anos 1920 as fronteiras
entre os conhecimentos que investigavam as instituições histórico-sociais no tempo
encontravam-se relativamente assentadas, sendo que essa demanda por sínteses era capaz de
nos indicar uma conjuntura epistemológica em que esses procedimentos apareciam enquanto
indícios cognitivos que revelavam o desejo por uma disposição interdisciplinar por parte desses
estudiosos. Para Lima, a hierarquização valorativa dos saberes tendia a ser ilusória, em que a
sociologia aparecia no último estágio da produção do conhecimento sintético. Sem o registro
advindo da prática historiográfica, e de toda a aparelhagem de conhecimento mobilizada nesta
atividade, as generalizações teórico-sintéticas não possuíam condições de emergência. O que
se deve ter em mente é que as etapas da síntese eram individuais, mas não necessariamente
sequenciais, sendo que o almejado era um conhecimento interdisciplinar em que, dependendo
do ponto de vista, encontrava-se uma história social ou uma sociologia histórica como produto
intelectual. Uma ou outra subsidiada pela prática da historiografia.
Percebe-se que Oliveira Lima admitia que o historiador pudesse se valer dos recursos
da sociologia para tornar a “história científica”, como almejava Max Fleiuss. O que era muito
diferente daquela história sociológica argentina, descrita por Carbia, que precipitadamente do
material heurístico preparado pelos historiadores já realizava a generalização. O argumento vai
mais longe: essa “escola histórica”, também presente no Brasil, se valia do resultado da
heurística vertida em narrativa, e não do conhecimento metódico em si. O que tornava as suas
interpretações ceifadas por equívocos interpretativos e pela baixa empiria. O que se desejava,
no limite, era avançar do comentário à análise. De todo modo, a partir da prática da
historiografia, como ambicionou Carbia, ou da história ciência, da forma como prescrevia
Fleiuss, Oliveira Lima apareceu como alguém preparado para esses combates pela história.
1265
LIMA, Prefácio... op. cit., p. 17.
413
Parte V
414
Capítulo 13 - Entre iberismo e americanismo. O passado colonial nas páginas
da Revista do IHGB
Tudo arrasta Portugal para o Brasil e vice-
versa.1266
Elogio a Portugal
1266
DÓRIA, Luiz Gastão d’Escragnolle. Da conveniência de um acordo luso-brasileiro. RIHGB, tomo LXXVI,
parte I, 1913, p. 576.
1267
DÓRIA, Da conveniência... op. cit., p. 573
1268
Idem, p. 573.
1269
O discurso de Luiz Gastão d’Escragnolle Dória corrobora com certo sentido de lusitanidade existente na
Primeira República, fazendo eco ao famoso discurso de Joaquim Nabuco nas comemorações do tricentenário da
morte Camões. Giselle Venâncio observa o discurso através da chave interpretativa da identidade, que pode muito
bem ser redimensionada para o caso de Dória: “(...) embora parte da intelectualidade brasileira do período estivesse
mais preocupada com a constituição de um ideal de nacionalidade que se plasmava, em grande medida, por um
discurso de oposição à produção intelectual de Portugal – forjando uma identidade nacional distinta, capaz de
plasmar o consenso social –, as falas e eventos da festa do tricentenário de Camões elaboraram-se num campo
condicionado por um mito de fundação da identidade nacional brasileira que era, na opinião de seus mentores, na
origem fundamentalmente lusitano. Assim, o que se constituía como brasilidade, nesse momento, era num certo
sentido também lusitanidade”. VENÂNCIO, Giselle Martins. Comemorar a nação e repensar a nação: o discurso
de Joaquim Nabuco na festa do tricentenário de morte de Camões no Rio de Janeiro (1880). Revista brasileira de
história, vol. 33, n. 65, 2013, p. 287. Disponível em: https://cutt.ly/VcZQcUE Acesso: 08 abr. 2021.
415
algo que não ocorreu nas Repúblicas hispânicas. A preservação da unidade brasileira é vista
através desta imagem: “(...) o Brasil nas mãos de Portugal, do descobrimento à independência,
foi transportado qual vaso de alabastro, que cumpre fazer chegar ao destino sem o mínimo
toque, o mais insignificante arranhão na vestidura preciosa”.1270 Além disso, o iberismo se
materializou nos laços políticos ainda existentes mesmo após a Independência. Ainda nesse
sentido o Brasil mantém-se fiel a “alma portuguesa” e identificado com ela em uma espécie de
simbiose solidária.1271 Outra citação de Dória nos elucida a sua verve iberista: “Portugal e Brasil
são duas moléculas do mesmo corpo histórico, esperando o momento da coesão. Constituem
dois mananciais nascidos da fonte latina, minguando não por falta de cópia ou excelência das
águas, mas pelo desvio e desperdício delas em proveito de outras correntes”.1272 Dória estava
se referindo explicitamente à questões raciais. Essas outras “águas” mencionadas são as
diferentes etnias que concorrem com os portugueses na formação do povo brasileiro. O
agremiado é, em sua palestra, claramente a favor de novos contatos com os portugueses,
inclusive imigratórios, para estabelecer e fortalecer os vínculos iberistas identitários.1273
Nessa direção, Dória compilara uma passagem de Luiz Couty em que a questão étnica
envolvendo Brasil e Portugal era colocada nos termos desejados: o que o Brasil precisa é “da
energia europeia ativa e apta para o desencadeio das suas energias naturais”.1274 A imigração e
o contato com culturas e com etnias não europeias podia, no limite, descaracterizar o iberismo
(sócio racial) brasileiro, marca maior da sua identidade nacional. Há, assim, o que Euclides da
Cunha diz ser, em uma leitura particular de Dória, o conflito entre as “energias dominadoras da
vida civilizada” e a “originalidade de nossas tendências, garantidoras entre as nações”.1275
1270
DÓRIA, Da conveniência... op. cit., p. 375.
1271
Investigando as relações de aproximação entre portugueses e brasileiros na Primeira República, Lucia Maria
Paschoal Guimarães assinala a seguinte equação: “os defensores do congraçamento cultural e político com a antiga
metrópole, por seu turno, percebiam no legado lusíada o fator dominante da construção da nacionalidade, baseados
na afinidade linguística, na história e na ocupação do território”. GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. A luso-
brasilidade e o projeto da revista Atlântida. Cultura. Revista de história e teoria das ideias, vol. 26, 2009, p. 56.
Disponível em: https://journals.openedition.org/cultura/381 Acesso: 08 abr. 2021.
1272
DÓRIA, Da conveniência... op. cit., p. 577
1273
Dória não é a única voz que partilha dessa ideia. Sílvio Romero se aproxima da sua posição sobre o fator
português no interior do processo de miscigenação ocorrido na Primeira República em razão da imigração. A tese
de Romero é a seguinte: “há a conveniência de fortalecer no Brasil o elemento português”. Assim o autor da
História da literatura desenvolve o tema: “(...) como não se trata de uma tese de política local e de ocasião, não
se trata de opor o elemento português aos outros elementos que com ele colaboram na formação da nação brasileira,
senão de opô-lo com os seus auxiliares e concorrentes novos, inesperados e perigosíssimos, sob o ponto de vista
nacionalista, a proposição pode tomar esta outra forma: da conveniência de reforçar no Brasil os elementos que o
constituíram uma nação luso-americana, os elementos que falam a língua portuguesa, ou, ainda e como
consequência de tudo isso: de como de todas as novas colonizações que possam vir ao Brasil a mais conveniente
é a portuguesa”. ROMERO, Sílvio. O elemento português no Brasil. Lisboa: Tipografia da companhia nacional
editora, 1902, p. 6.
1274
DÓRIA, Da conveniência... op. cit., p. 581.
1275
Idem, p. 581.
416
Primórdios da colonização: o conflito como elemento identitário
O 4º centenário da posse da América por parte de Portugal foi marcado por festejos e
por revisões historiográficas. Um primeiro dado colocado em discussão foi a própria data da
chegada portuguesa às costas do território que veio a se chamar Brasil. O 4° centenário foi
comemorado no dia 3 de maio, gerando controvérsias entre os historiadores:
(...) com efeito, passar de 22 de abril para 3 de maio, e isto quando documentos
da época determinam quase precisamente o primeiro daqueles dias, só para
atender à reforma do calendário precedida por Gregório XIII, em 1582, é ato
que não recomenda o critério histórico de quem sugeriu e menos ainda, de
quem, sem maior exame, o aceitou.1276
Podia-se ter, segundo Max Fleiuss, como certo que o descobrimento do Brasil ocorreu
em 22 de abril de 1500, data rigorosamente histórica, prevalecendo sobre o 3 de maio. A
diferença de calendários não era argumento suficiente para a troca das datas, dado que se a
chegada dos navios portugueses à América ocorreu no primeiro calendário cristão em
circulação era ele que devia vigorar porque estabelecia as datas exatas dos acontecimentos que
envolveram essa situação histórica. Havia uma prova cabal nessa querela das datas: a carta de
Caminha assinalava a chegada lusitana em 22 de abril.
O Pe. Rafael Galanti também se empenhou na pesquisa sobre a exatidão da data correta
do “descobrimento do Brasil”. A respeito do ano, dizia o jesuíta, não havia questionamento. A
maioria dos autores concordavam, especialmente os cronistas coloniais, em situar o fato em
abril, mesmo discordando do dia, que variava de 22 a 27. A sequência cronológica realizada
por Galanti, amparada na comparação entre cronistas e historiadores antigos era a seguinte: no
dia 21 de abril, uma terça-feira de Páscoa, encontrou Cabral sinais de terra. No dia 22, quarta,
avistou-se a costa americana. No dia 23, quinta, chegaram à beira da costa e travaram as
primeiras relações com os nativos. No dia 24, sexta, fizeram as primeiras incursões no território
e prenderam dois indígenas. No sábado, dia 25, a armada toda entrou no “porto seguro”, levando
à terra dois “degredados” e os dois autóctones. No dia 26 realizou-se a primeira missa. No dia
1° de maio, sexta-feira, tomou-se posse da terra através do soerguimento de uma cruz cristã e a
celebração da segunda missa. Assim, concebe-se os episódios e as situações envolvendo a posse
das terras sul-americanas, através da crítica historiográfica, como fatos históricos.1277
1276
FLEIUSS, Max. Centenários do Brasil. RIHGB, tomo LXIV, parte I, 1901, p. 91.
1277
O exemplo da crítica histórica e sua relação com a verdade pode ser exemplificado pelo caso Capistrano de
Abreu, que também se debruça sobre os primórdios da colonização. Ver ARAÚJO, R. B. de. Roda noturna... op.
cit., 1988.
417
Desse modo, no contexto da República se tem estabilizada a ideia que nos primeiros
anos da sua existência política o Brasil permanece em um absoluto “isolamento do mundo”.
Naturalizava-se a conquista. Portugal, preocupado com as Índias, cujas riquezas lhe atestam “as
arcas do tesouro que ainda sobravam para passar pela Europa a faustuosa opulência asiática da
Corte lusitana, só de longe em longe distraidamente volvia os olhos para a remota terra de Santa
Cruz (...)”.1278 Araujo Jorge assinala que a história brasileira é, nesse período, um catálogo de
incursões estrangeiras em seu território. Pode-se resumir, em sua visão, o primeiro século
brasileiro como o da defesa da terra conquistada. Assim, essa relação com a terra, como um
território que manifesta a extensão de uma “proto-nacionalidade”, além dos vislumbres de
alteridade advindos da batalha com o estrangeiro, marca as primeiras identificações dos agentes
com o Brasil. A historiografia republicana concebeu, é bem verdade, esses momentos como
sendo, de algum modo, de ancestralidade da noção de pátria.1279
Nos momentos iniciais da colonização “especuladores” e “aventureiros” de grande parte
dos países europeus aportam em vários pontos do vasto e mal conhecido território brasileiro;
traficam, tranquilamente, com os indígenas “que, a troco de miudezas quinquilharias,
abarrotavam as suas naus de toda a sorte de produtos do país, vendidos a preços avultados nos
mercados europeus”.1280 Uma das formas de se compreender esse contexto marcado por
invasões, e pelas tentativas de defesa por parte do poder metropolitano, é através das relações
entre Portugal e França. Foi por meio das investidas francesas que Portugal, para além de buscar
a diplomacia, colonizou, como sugere Araujo Jorge, de fato o Brasil.1281
1278
JORGE, Araujo. O Brasil e a França no século XVI. RIHGB, tomo LXXVII, parte II, 1914, p. 194.
1279
Um autor emblemático inserido no contexto epistêmico-historiográfico da Primeira República que também
sugere que a resistência inaugura, no Brasil, o sentimento de amor pátrio é Manoel Bomfim: “(...) é certo que a
defesa da terra contra os franceses antecede qualquer manifestação da alma brasileira; mas, tanto dura a luta, e
tanto se estende, que valeu como a primeira lição de patriotismo às novas gentes, e deve ser citada explicitamente
porque aí, nas peripécias dessa defesa, pronunciam-se os primeiros lances de valor já propriamente brasileiro”.
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Editora Topbooks,
1997, p. 209.
1280
JORGE, O Brasil... op. cit., 194.
1281
Essa tese não é nova nos estudos históricos realizados no Brasil. As duas grandes matrizes de interpretação da
colonização do Brasil, Varnhagen e Capistrano de Abreu, concordam que as primeiras iniciativas colonizadoras do
Brasil são decorrentes do trânsito francês nessa parte da América. Para o Visconde de Porto Seguro: “Pouco antes,
o governo português, instado ainda de França pelo Dr. Diogo de Gouvêa, e receoso do demasiado desenvolvimento
que os franceses iam dando a seu comércio com o Brazil, viu-se obrigado a adoptar o plano de ceder essas terras
a uma espécie de novos senhores feudais, que, por seus próprios esforços, as guardassem e cultivassem, povoando-
as de colonos europeus, com a condição de prestarem preito e homenagem à Coroa”. VARNHAGEN, Francisco
Adolfo de. História geral do Brasil. Tomo I. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1854, p. 60. Já Capistrano de
Abreu descreve que a decisão portuguesa de ocupar e povoar as terras brasileira decorre, também, das notícias das
ações francesa na América portuguesa: “A tomada de La Pelerine, a feitoria francesa fundada em Pernambuco, as
notícias de preparativos para fundarem-se outras, espancaram finalmente a inércia real”. ABREU, Capistrano de.
Capítulos de história colonial (1500-1800). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Publifolha, 2000, p. 65.
418
Os franceses, atraídos por notícias que afirmavam existir riquezas na nova terra,
tornaram-se os mais assíduos promotores desse comércio dito clandestino. Em 1504, afirma
Jorge, já se pode verificar seus barcos na encosta baiana. Eis, então, a presença francesa no
Brasil e como ela é essencial para a configuração territorial da Colônia e para a visualização do
tipo de colonização realizada por aqui: “Aproveitando-se da desídia do Governo português e da
insignificância oferecida pelos miseráveis colonos disseminados pela vastidão das costas
brasileiras chegaram mesmo a fundar estabelecimentos e feitorias que facilitassem o escambo
com as tribos do interior”.1282 O Brasil ganhava status identitário no interior do Império colonial
português a partir do momento em que havia ameaça de perdê-lo e quando se realizava um
confronto com a alteridade do invasor. Para nascer o sentimento de pátria entre os colonos era
fundamental a expulsão dos franceses, pois eram dois projetos francamente em disputa.1283 Essa
disposição representou, na historiografia republicana, as primeiras autoidentificações do(a)
brasileiro(a) como tal. Cabia a partir daí a sua adesão, ou não, ao projeto colonial.
Os navios franceses se espalharam por todo atlântico e costa brasileira. Sucessivas
expedições foram enviadas para a Terra de Santa Cruz. Araujo Jorge assinala que as rotas
comerciais portuguesas e espanholas correm sérios riscos de saque. A continuidade do tráfico
estabeleceu desde cedo um profundo laço de reciprocidade entre os povos originários e os
franceses, a contrastar com certa ojeriza que lhe inspiravam os portugueses. É exatamente essa
cadeia que Portugal quer quebrar. Primeiro: acabar com o tráfico francês. Segundo: inserir os
indígenas em um projeto civilizador, fazendo-os crer serem parte do Império português.
Nessa situação tornaram-se incontornáveis os conflitos entre os súditos de Portugal e da
França. Eles emergiram da tomada de consciência portuguesa acerca do perigo estrangeiro que
ameaçava a integridade da sua Colônia. As medidas de ordem administrativa elaboradas, as
providências rigorosas tomadas para interromper o tráfico, os atos de força para expulsar a
pirataria das costas brasileiras, provocaram protestos, pedidos de indenização e reclamações
por parte da França, dando origem a uma série de negociações entre as duas Coroas, que se
prologa até a unificação ibérica, em 1580.
1282
JORGE, O Brasil... op. cit., p. 195.
1283
Entendemos o movimento de colonização a partir da seguinte grande conceitual operada por Fernando Novais:
“Colonização significa, no plano mais genérico, alargamento do espaço humanizado, envolvendo ocupação,
povoamento e valorização de novas áreas; mais estritamente. como processo criador de colônias, essas novas
regiões configuram entidades políticas específicas (colônias), que se definem na relação bilateral metrópole-
colônia; historicamente, na época Moderna, entre a expansão ultramarina europeia e a revolução industrial,
exploração e povoamento constituem-se nos dois sentidos básicos em que se processa o movimento de
europeização no mundo, delimitando as duas categorias fundamentais de colônias geradas nesse período”.
NOVAIS, Fernando. Colonização e sistema colonial: discussão de conceitos e perspectiva histórica. Anais do IV
Simpósio Nacional do Professores Universitários de História - ANPUH, Porto Alegre: UFRGS, 1967, p. 254.
419
Além das preocupações com os franceses, o que leva Portugal de Dom João III a buscar
a colonização efetiva do Brasil é o rápido declínio do comércio com as Índias:
Era necessário voltar os olhos para o Brasil e para o Atlântico em razão da questão financeira,
para expulsar os franceses das suas possessões e combater a pirataria. Foi nesse contexto que
Portugal nomeou Cristovão Jacques governador das terras do Brasil. Sua missão era
salvaguardar o território e rivalizar com as embarcações francesas.
Após Jacques, Martin Afonso de Sousa recebeu o comando da expedição destinada ao
Brasil. Ele partiu investido de poderes para tomar posse dos territórios e para distribuir as terras
em sesmarias conforme julgava conveniente, organizando o governo e a administração colonial.
Dom João III enfrentou seriamente o problema da colonização/conquista do Brasil e quais os
meios de ativar o povoamento e a ocupação da terra. Foi adotado o expediente de dividir a
grande extensão territorial em vários lotes, entregues à responsabilidade de diversos donatários,
autoridades soberanas na Colônia.
Mas Portugal almejava a centralização do poder na Colônia. Fechando a primeira
metade do século XVI, Dom João III transformou o sistema de colonização adotado no Brasil.
As capitanias hereditárias sozinhas não ofereciam o mesmo resultado como em Açores e em
Madeira. Tornava-se necessário instituir um Governo central, a fim de assegurar a unidade
política junto às capitanias isoladas umas das outras, estabelecendo regras uniformes de
administração, refreando os desmandos e os abusos dos donatários e, mais do que tudo,
tornando efetiva a guarda e a propriedade da terra, constantemente ameaçada pelas incursões
de normandos, de ingleses, de espanhóis e, sobretudo, de franceses. O primeiro Governador
geral do Brasil foi Tomé de Sousa, cuja investidura de cargo aconteceu no ano de 1549. Com
ele chegaram algumas autoridades civis: um ouvidor-mor, um procurador e um capitão-mor das
costas, além da primeira direção jesuíta, comandada por Manuel da Nobrega.
Mesmo com um governo estabelecido em sua Colônia Portugal precisava combater a
maior expedição colonizadora enviada ao Brasil: a de Nicolas Durand de Villegagnon, que
objetivava colonizar as terras brasileiras e fundar a chamada França Antártica. De qualquer
1284
JORGE, O Brasil... op. cit., p. 198.
420
forma, Villegagnon e os seus comandados foram expulsos do Rio de Janeiro por Mem de Sá
com o auxílio da população local. Tem-se inaugurado, na historiografia republicana, outro
momento patriótico ancestral noticiado na história brasileira. Havia, gradativamente, a
percepção da individualização identitária da Colônia no âmbito do Império português.1285
De qualquer forma, quando são lidos os cronistas Fernão Cardim e Gabriel Soares de
Sousa, e colocada em luz baixa a dimensão conflitiva da Colônia ante seus invasores, encontra-
se “entre as brumas do passado longínquo, o Brasil de outras eras, balbuciante na civilização, é
certo, mas copioso nas suas riquezas nativas, na tenacidade de seus habitantes, na opulência de
sua flora”.1286 Esse é o parecer de Max Fleiuss em seu trabalho sobre os centenários do Brasil.
O que fica gravado no primeiro centenário, em 1600, é que as instituições portuguesas ainda
não logram total êxito, mesmo com o auxílio dos jesuítas em sua missão de
civilizar/colonizar/conquistar aquelas terras. O Brasil é concebido, e Fleiuss se vale fartamente
dos relatos dos cronistas, como uma Colônia extrativista, em que o povoador, à mercê do Poder
régio, enfrenta toda a sorte de obstáculo para sobreviver. Porém, mesmo nessas condições, o
Brasil, em 1600, se comparado com o início do século, vive “franca prosperidade”. A expulsão
dos franceses fortalece o empreendimento colonial no final do século, na leitura iberista de
Fleiuss. A união entre portugueses, indígenas e jesuítas nas lutas contra os franceses é uma
miniatura das relações sociais na Colônia. Naturaliza-se a conquista lusitana mais uma vez.
O fato dos franceses não terem, assim como os holandeses, assentado domínio no seio
da pátria é considerado por Fleiuss elemento essencial para a Independência.1287 Se a França ou
a Holanda, ou qualquer outra nação, “tivesse apressado a colônia portuguesa, achar-nos-íamos
reduzidos às condições das Guianas ou das possessões desses países: a qualquer tentativa de
1285
Maria Fernanda Bicalho nos informa que atualmente a historiografia sobre a “expulsão” dos franceses do
Brasil concebe esse ato a partir de uma ascendência portuguesa: “Ao retribuir os feitos de seus vassalos, a Coroa
reafirmava o pacto político que os unia a si própria. A partir desses valores, noções e práticas do Antigo Regime
– e que tinham na justiça distributiva ou na economia das mercês sua lógica fundadora – os conquistadores do Rio
de Janeiro – assim como seus filhos e netos – disponibilizavam suas vidas e fazendas em prol de uma causa que
não era apenas sua ou dos grupos que representavam, tornando-se, enquanto vassalos do Rei de Portugal, agentes
da fundação e da coesão do Império português. Nesse sentido, a memória da conquista da terra e expulsão dos
franceses da Guanabara se constituiu em ato heroico dos portugueses em plena guerra viva. BICALHO, A França
Antártica, o corso, a conquista e a ‘peçonha luterana’. História, vol. 27, n. 1, 2008, p. 38. Disponível em:
https://cutt.ly/IcLmKw2 Acesso: 08 abr. 2021.
1286
FLEIUSS, Centenários... op. cit., p. 94.
1287
Essa narrativa da formação, em que se vislumbra um telos político no futuro, é um resíduo da historiografia da
segunda metade do século XIX. João Pacheco de Oliveira nota essa disposição historiográfica: “Uma constatação
imprescindível é a de que essa narrativa que aqui combatemos não foi de maneira alguma contemporânea aos fatos
do século XVI, mas uma produção do século XIX – não do universo renascentista ou do mundo colonial, mas do
evolucionismo científico e no Brasil sobretudo do Segundo Império. Desde então reina como absoluta entre
pensadores de direita ou de esquerda, entre historiadores, sociólogos e filósofos”. OLIVEIRA, João Pacheco. O
nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico. Anuário antropológico [online], 2015, p. 13.
Disponível em: https://journals.openedition.org/aa/758 Acesso: 08 abr. 2021.
421
separação, numerosas forças subjugariam o movimento”.1288 A grande herança deixada pelo
século XVI foi a garantia da não fragmentação do território. Essa disposição, para Fleiuss, já
corresponde a um patriotismo legítimo dos(as) brasileiros(as).
Chegamos, pois, ao século XVII. Logo se verifica que cerraram as primeiras impressões
da conquista, assim como os governadores sucederam-se regularmente e o solo pátrio acabou
de experimentar conflitos armados. Dividido em dois governos sofreu novamente o poder real
metropolitano na Colônia com a proteção do território. Agora o inimigo era a Holanda, que se
estabeleceu na região do Nordeste entre 1630 e 1654. Os primeiros séculos no Brasil foram
marcados pelos primeiros vínculos identitários com a pátria, sendo que para os autores da
Primeira República não era apenas um autorreconhecimento lusitano, mas brasileiro. As
batalhas traziam a possibilidade dos colonos se identificarem com um solo natalício, e com tudo
o que ele começava a significar simbolicamente. Além disso, o confronto com o Outro, com o
inimigo, com a alteridade, fez com que emergisse as primeiras disposições identitárias. É bem
verdade que a administração de Nassau é considerada por Fleiuss frutífera em várias áreas
públicas, porém “nas lutas que se travam, no intuito de serem expulsos os holandeses,
brasileiros inscreveram com a vida o seu nome no número dos heróis que a nossa história
assinala”.1289 Esses indivíduos envolvidos nas lutas contra os holandeses fazem, certamente,
parte do panteão dos grandes heróis nacionais na Primeira República.
Dito isso, o movimento bandeirante iniciou-se na segunda metade do século XVII,
começando com entradas de reconhecimento territorial, depois com a “caça ao índio” e, por
fim, com a corrida pelas pedras e pelos metais preciosos. Fleiuss não vê vantagem nessa forma
específica de expansão geográfica e de colonização. Não se vê nas atitudes dos bandeirantes
nenhum impulso civilizador1290, como no caso dos jesuítas, tampouco se vislumbra ações
patrióticas por parte desses sujeitos. Tudo gira em torno da “cobiça”, sentimento individual que
nada agrega ao estabelecimento de uma comunidade de valores e de sentimentos de ascendência
europeia no Brasil: “A invasão dos sertões, porém, não tinha mais o caráter humanitário da
1288
FLEIUSS, Centenários... op. cit., p. 98.
1289
Idem, p. 98.
1290
O sentido de civilização impresso por Max Fleiuss é o seguinte, devoto das transformações lexicais do século
XIX: “Por outro, civilizar e, mais tarde, civilização aparecem, sem ambiguidades ou duplos sentidos, no esforço
de educar os povos e retirá-los não só de seu poder régio rústico, mas também bárbaro e, sobretudo, selvagem”.
LIMA, Luís Filipe Silvério. Civil, civilidade, civilizar, civilização: história de usos, significados e tensões dos
conceitos no Império português. Séc. XVI-XVIII. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São
Paulo: USP, 2011, p. 23. Disponível em: https://cutt.ly/kcLNVF3 Acesso: 08 abr. 2021.
422
civilização, predominou a cobiça: o desejo de descobrir as minas e as pedras preciosas
constituía o móvel verdadeiro das bandeiras”.1291
É necessário ressaltar a dimensão insurreta visível no século XVII brasileiro, que para
além das guerras externas, passou por revoltas e por sublevações internas. A mais importante
foi a(s) revolta(s) de Palmares, terminada em 1695. A organização interna palmariana obedecia
a disposições “verdadeiramente extraordinárias”, como argumenta Fleiuss, quanto aos deveres
cívicos. Só assim se explica a tenacidade da sua resistência, capaz de surpreender cerca de “25
expedições” enviadas pelo governo. Não há caráter emancipatório nas causas quilombolas,
sendo que a luta é contra a escravidão. Palmares é um movimento espontâneo e reativo à política
colonial. “Palmares foi a nosso ver a primeira guerra civil de nossa pátria e o embrião não se
exterminou jamais: ora dominado pelas práticas humanas, ora explodindo quando a tibieza dava
a isso ensejo, ele viveu sempre a vida horrível dos parasitas maus”.1292
Das indisposições crescentes contra a administração, a justiça e o movimento jesuítico
originam-se diversos conflitos, entre os quais o mais notável é, para a historiografia republicana,
a Revolta dos irmãos Beckman, que consegue tomar o governo do Maranhão. Também há,
ainda nesse mesmo tipo de conflito, as investidas de Ferroles, chefe militar da Colônia vizinha
de Caiena, sobre os territórios próximos ao Macapá. Rapidamente o poder Real português inibe
as suas manobras militares. Após isso há a Guerra dos Emboabas e a Revolta de Filipe dos
Santos. Também não são poucas as revoltas indígenas, sobretudo, no Nordeste. Em vista disso,
É certo o seguinte: essas “revoltas nativistas” ocorridas no século XVII e início do XVIII já
possuíam, em tese, o componente nacional em sua causa para a historiografia republicana.
Antes de tudo elas são, principalmente entre os indígenas, reações ao jugo metropolitano. O
que implicava leituras anti-iberistas no contexto por nós estudado.
1291
FLEIUSS, Centenários... op. cit., p. 101.
1292
Idem, p. 102.
1293
Ibidem, p. 103.
423
Em palestra realizada nos salões do IHGB, no ano de 1918, o sócio Braz do Amaral
realizou uma incursão ao passado colonial brasileiro. O título da palestra foi este: Exposição
sobre alguns pontos especiais do período colonial. O enredo da palestra girou em torno da
tomada de consciência do Poder régio português acerca da necessidade de se estabelecer um
governo e instituições fortes e centralizadas para que se pudesse executar o projeto de conquista.
Aqui a história do Brasil colonial representava o paulatino (e progressivo) poderio iberista em
sua possessão ultramarina sob a égide do Poder régio e das suas práticas de governantabilidade.
A história brasileira é a história do domínio do Poder régio português sobre a Colônia. 1294 É
através dele que se formou um sentimento luso-brasileiro.
E o primeiro passo dado para o estabelecimento do Poder régio português na América
ocorreu após o fracasso da colonização através das capitanias hereditárias. Portugal, em um
exercício que retira o poder sobre a Colônia das mãos de iniciativas não governamentais, criou,
então, o cargo de Governador geral do Brasil. Segundo as palavras de Braz do Amaral: “Os
perigos e inconvenientes de tão vastas atribuições dadas a vassalos, tornaram-se em breve
transparentes, e a vinda de um governador geral para o Brasil demonstrou que a Coroa havia
reconhecido a necessidade de restringir aquelas demasiadas extensões da autoridade (..)”.1295
Vê-se que o ato inaugural e oficial da presença portuguesa na Colônia ocorreu a partir da
centralização do poder no intuito de impossibilitar a existência de autonomias locais com poder.
A Metrópole lançou-se em um projeto de colonização, não sem controvérsia, visando a
diminuição da autoridade local. Através do iberismo de Amaral, a instituição de um poder
centralizado por meio do governador geral tornou-se o ato inaugural do autoritarismo, aceito
socialmente na Primeira República por não poucas vozes, na história do Brasil.1296
1294
As análises sobre a questão do Poder régio colonial na Primeira República caem no anacronismo se realizadas
a partir da compreensão da razão de Estado contemporânea: “É certo que a metrópole não constituía uma entidade
monolítica, assim como também não era monolítico o extenso império luso. Ainda assim, a razão de Estado não
deve ser descartada como se fosse a aplicação anacrônica da razão de Estado contemporânea. Pelo contrário, o
fundamental é que se investigue como o objetivo de manter e ampliar domínios se deu com base nas condições
materiais, técnicas e políticas – em geral marcadas por certa fragilidade – que se encontravam à disposição nos
mais diversos contextos”. SILVEIRA, Marco Antonio. Razão de Estado e colonização: algumas questões
conceituais e historiográficas. História (São Paulo), vol. 37, 2018, p. 18. Disponível em: https://cutt.ly/xcZxN2S
Acesso: 08 abr. 2021.
1295
AMARAL, Braz do. Exposição sobre alguns pontos do período colonial. RIHGB, tomo 83, parte I, 1918, p.
499.
1296
A recente historiografia sobre a centralização política na Colônia aponta que “(...) as tendências centralizadoras
sempre coexistiram com outras forças, igualmente fortes, que apontavam no sentido da descentralização política e
da manutenção da pluralidade de polos de poder. Depois, revelam que o processo de centralização percorreu um
caminho descontínuo, com muitos avanços, mas também com inúmeros recuos, tendo sido levado a cabo por
personagens, por forças ou por grupos sociais que, em geral, tiveram pouca consciência do alcance dos seus atos.
CARDIM, Pedro. Centralização política e Estado na recente historiografia sobre o Portugal do Antigo Regime.
Nação e Defesa, n. 87, 1998, p. 132. Disponível em: https://comum.rcaap.pt/handle/10400.26/1487 Acesso: 08
abr. 2021.
424
O governo português transformou a sua visão sobre Colônia em razão, sobretudo, das
investidas de outros países nas costas brasileiras, mas também para evitar a emergência de
soberanias locais que rivalizassem com a Coroa. A autoridade dos governadores gerais é
oficialmente reconhecida no território colonial: “contra ela não se conhecem revoltas dos
donatários e seus descendentes, que, isolados uns dos outros e pela maior parte empobrecidos
e sem forças, nada fizeram de prático e seguro para se tornarem independentes”.1297 Percebe-se
que a narrativa de Braz do Amaral encaminha-se para a celebração do Poder régio português
contemplando toda a sua amplidão governamental no perímetro colonial, impedindo, assim, a
sublevação das autoridades locais e a anarquia. É iberista a sua leitura da história. O caso da
justiça é um exemplo flagrante. Ela é retirada do círculo de ação dos donatários em razão de
mostrar-se como instrumento de poder nas capitanias, favorecendo os representantes locais.
Essa ação metropolitana também tem como foco, em consequência, impedir o surgimento de
poderes paralelos ao da Coroa.
Em Braz do Amaral há um elogio das formas de colonização portuguesa. Ou seja, a
história do Brasil colonial é a implantação bem-sucedida do Poder régio português no Brasil.
Amaral concebe que a colonização do Brasil é vitoriosa, conforme este parecer: “Para isso foi
preciso tempo, habilidade e uma persistência e tenacidade no alcançar o fim, que é uma das
feições mais características da gente portuguesa na sua existência política, tanto na diplomacia,
como na administração, qualidade que ela não parece ter legado aos seus descendentes
americanos”.1298 Está claro no excerto o conteúdo da ideia de iberismo, a qual usamos para
compreendermos a positivação do passado português entre os intelectuais na República. O
governador geral Tomé de Sousa inaugura essa dimensão na política portuguesa nos trópicos,
que tende a extinguir os benefícios e as aberturas jurídicas aos donatários e aos seus círculos
locais. Há uma racionalização da colonização e da forma como o Poder régio português se faz
presente na América:
1297
AMARAL, Exposição... op. cit., p. 499
1298
Idem, p. 501.
1299
AMARAL, op. cit., p. 501.
425
A centralização do poder é necessária para o estabelecimento da unidade (trans)nacional
e para a boa governança da Colônia, que deve manter-se passiva face aos ditames
metropolitanos, que se fazem presentes através ou dos seus agentes administrativos ou da
nobreza da terra.1300 Essa é uma interpretação da história autoritária? É uma história que está
conectada ao presente político da República? De todo modo, para Amaral, “(...) vale a pena
notar como aproveitou o Governo a concentração de poderes, indispensável aos olhos de todos,
necessitada pelo desenvolvimento da guerra holandesa, na sua primeira fase, para fazer isso que
era tanto do seu interesse”.1301
O iberismo de Amaral o faz conceber e aceitar, anacronicamente, uma “ditadura” no
Brasil colonial a partir do governo dos vice-reis, os quais possuem, em tese, direito de vida e
de morte sobre os súditos. O palestrante acredita que tais poderes
O Poder régio português, que se quer cada vez mais centrípeto com o passar do tempo,
para manter a sua posição governamental e a sua representação como autoridade na Colônia,
reduz o potencial de entendimento “cívico” dos colonos. Uma das medidas arcaicas, para além
das leis centralistas e dos decretos reais, movimentadas para tal intento é a restrição ao acesso
dos colonos à educação. É Moreira de Azevedo quem nos informa o status da Colônia aos olhos
portugueses e a sua posição diante do ensino:
1300
Eis, então, o novo mundo político que se abre à Portugal nos primeiros séculos da colonização: “Se a expansão,
desde o século XV, e a conquista do Novo Mundo, a partir do XVI, abriram um variado leque de possibilidades
de prestação de serviços à monarquia, também agiram no sentido de ampliar o campo de ação da Coroa,
permitindo-lhe dispor de novas terras, ofícios e cargos; atribuir direitos e privilégios a indivíduos e grupos; auferir
rendimentos com base nos quais concedia tenças e mercês; além de criar uma nova simbologia do poder, remetendo
ao domínio ultramarino da monarquia portuguesa. BICALHO, Maria Fernanda. Conquista, Mercês e Poder Local:
a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack braziliense, n. 2, 2005,
p. 22. Disponível em: https://cutt.ly/XcLQe6S Acesso: 08 abr. 2021.
1301
AMARAL, Exposição... op. cit., p. 503.
1302
Idem, p. 507.
1303
AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira de. Instrução pública nos tempos coloniais do Brasil. RIHGB, tomo LV,
parte II, 1892, p. 141.
426
Portugal não ambicionava fomentar, para Azevedo, uma colonização em que os sujeitos ali
inseridos se reconhecessem como coparticipes de uma comunidade imaginada paralela.
Retirava-se do colono a educação, instituição capaz de esclarecê-lo ante à alienação política,
social e cultural imposta pela Metrópole. No limite, como observou o sócio, a visão da
Metrópole sobre a Colônia era puramente econômica e extrativista. Mantê-la em estado de
ignorância não deixava de ser um projeto arcaísta de poder.1304
Azevedo informa que Portugal restringiu, através de sua política colonial, o comércio,
não ofereceu subsídios para a indústria, mandou destruir os teares, proibiu o ofício de ourives,
de lapidadores, de cravadores e de fundidores em Minas Gerais, Pernambuco e Rio de Janeiro.
Senão se investia em nenhuma modalidade industriosa no país, não era a instrução púbica o
alvo da Metrópole. A saber: Portugal queria restringir qualquer forma, ou possibilidade, de
existir no Brasil uma esfera e uma opinião públicas. De forma tal que era restrito o alcance do
colono junto à indústria da época e à educação. Azevedo nos esclarece essas afirmações com o
seu americanismo: não circulam
Em pleno século XVIII não existia, informa Moreira de Azevedo, uma academia
acessível à população em geral voltada aos estudos de ciências. Não havendo outra opção para
ingressar nos estudos recorria o colono às escolas jesuítas, mesmo sabendo que a educação ali
era voltada para as artes liberais e mecânicas a partir do princípio da Ratio Studiorum. O projeto
educacional implantado pela Companhia de Jesus no Brasil durante o século XVI apresentava-
se como parte integrante da estratégia colonizadora perpetrada pela Coroa portuguesa. Mais um
parecer elucidativo de Moreira de Azevedo, agora sobre a instrução primária, é este: “Era
deplorável o Estado das escolas primárias em todas as capitanias do Brasil, poucas existiam, e
estas exercidas por homens ignorantes. Não havia sistema nem norma para escolha de
1304
Deve-se lembrar que nesse contexto havia o modelo educacional proposto pelos jesuítas que almejava formar
um tipo de sujeito baseado nos princípios escolásticos. Algo coerente com as necessidades e as aspirações daquela
sociedade em formação na primeira fase do período colonial. Sobre as relações entre os jesuítas e a Coroa
portuguesa vale este comentário: “A Ordem dos Jesuítas é produto de um interesse mútuo entre a Coroa de Portugal
e o Papado. Ela é útil à Igreja e ao Estado emergente. Os dois pretendem expandir o mundo, defender as novas
fronteiras, somar forças, integrar interesses leigos e cristãos, organizar o trabalho no Novo Mundo pela força da
unidade lei-rei-fé”. RAYMUNDO, Gislene Miotto Catolino. Os princípios da modernidade nas práticas
educativas dos jesuítas. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Estadual de Maringá, 1998, p. 43.
1305
AZEVEDO, Instrução... op. cit., p. 141.
427
professores, e o subsídio literário não bastava para pagar ao professorado”.1306 A carta régia de
1799 facultava, segundo Moreira de Azevedo, o vice-rei, os governadores e os bispos o direito
de censurar, de castigar e de vigiar a conduta e os procedimentos desses primeiros professores.
Mesmo com o ministério dito ilustrado de Pombal, ainda sim parecia minimamente suficiente,
na percepção de Azevedo, a instrução pública no Brasil. A política autoritária portuguesa não
tolerava nenhuma forma de tipografia em sua Colônia, de sorte que eram raros os livros que
circulavam – não havendo entre os colonos, no geral, o hábito da leitura.1307 As escolas eram
poucas e mal dirigidas, a frequência era baixa e havia um número diminuto de mulheres. Parece
que a Metrópole conhece a sentença: saber é poder.
A transferência da Corte para o Brasil em 1808 melhorou, de algum modo, a situação
da instrução pública no Brasil. Todavia, se há nesse contexto a abertura de escolas nas cidades
e vilas mais importantes da Colônia, não havia interesse em regularizar o ensino, em escolher
os melhores professores e quem lhes orientasse pedagogicamente. Em suma, “(...) ensinava
cada um de modo que lhe parecia mais cômodo, e não havia método nem sistema, um plano
organizado pelo governo. Os mestres eram nomeados sem concurso, e sem que fosse avaliada
a moralidade de suas ideias e costumes”.1308 Não deixava de existir, de uma forma ou de outra,
restrição sobre livros, panfletos e impressos em geral.
Outra maneira pela qual o Poder régio português se impôs sobre a Colônia, no sentido
de dominação ideológica, foi através do controle relativo sobre a fé dos habitantes do Brasil.
Para esse fim dito civilizador concorreu a Igreja católica, mais especificamente a partir da
Companhia de Jesus, ou seja, através dos jesuítas.1309 Para tanto, vejamos a figuração do
“apostolado evangelizador” de José de Anchieta realizada por Luiz Gastão d’Escragnolle Dória
na década de 1910. Mas antes relatamos, aqui, as relações entre a Igreja e o Poder régio nos
primórdios da colonização: “Enquanto Tomé de Sousa e seus auxiliares tratavam da cidade de
Salvador e do tamanho de sua circunvizinhança, o padre Manoel da Nobrega e seus
1306
Idem, p, 148.
1307
É possível perceber esta dinâmica na censura da leitura por parte da Metrópole: “Desejando manter sob
controle os pensamentos e os desejos de seus súditos, a Coroa portuguesa tentava examinar toda matéria escrita
em circulação em seus domínios, exigindo daqueles que tencionassem transportar livros o preenchimento de
pedidos de autorização submetidos à instituição de censura competente”. ABREU, Márcia. Leituras no Brasil
Colonial. Remate de Males, s/d, p. 1.
1308
AZEVEDO, Instrução... op. cit., p. 153.
1309
Não há uma instituição tão cheia de ambiguidades como é a Companhia de Jesus no Brasil colonial. A clássica
leitura de Simão de Vasconcelos vem ao caso: “nenhuma instituição humana há sido julgada com mais parcialidade
do que a dos jesuítas: para uns foram eles a idealização do poder católico, o tipo mais perfeito do ministro do
Evangelho, numa palavra verdadeiros apóstolos, como em sua aparição, os denominou o povo; para outros
simboliza o instituto de Loyola a falsificação da fé, o relaxamento das máximas da moral cristã, a corrupção da
disciplina eclesiástica, quando exigiam-no os interesses de sua egoísta política”. VASCONCELOS, Simão de.
Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis: Vozes/ INL/MEC, 1977, p. 40.
428
companheiros cuidavam de traçar o sulco da ideia divina no coração da gente da terra”.1310 Vê-
se, portanto, que é um projeto explícito de colonização. Em um primeiro momento o
estabelecimento da conquista do território. Em uma segunda ordem a “civilização” da
população com propósitos de controle. Dória é claramente iberista, e isso fica explícito na
significação dada ao trabalho missionário de Anchieta e ao elogio às autoridades reinóis: “Aí
começam os trabalhos de José de Anchieta, sob a sotaina, a farda de Deus. A esse tempo se
desenvolvera no Duarte da Costa, tão encaiporado quão venturoso fora o seu antecessor”.1311
A Companhia de Jesus age, percebemos isso nos escritos de Dória, como um segmento
civilizador do projeto colonial português. A aculturação catequista dos indígenas, por exemplo,
é fator, antes de mais nada, de dominação. Os exercícios doutrinários de Anchieta são símbolos
da aproximação de interesses entre a Coroa e a Igreja:
O iberismo de Dória faz a sua narrativa sobre o período colonial ser orientada pela
formação civilizadora do Poder régio e da Igreja sobre a Colônia, significando, então, a
paulatina expansão do território e o estabelecimento das leis, de um lado, e de outro o
aplainamento das diferenças culturais através da religião católica, havendo até mesmo um
processo de docilização dos corpos.1313 Isso é exposto nesta narrativa elaborada pelo autor:
Dória faz, como já vimos, um elogio à colonização. Para ele a herança ibérica conforma
a identidade brasileira. “Está hoje reconhecido que aos portugueses, malgrado erros e deslizes,
1310
DÓRIA, Luiz Gastão d’Escragnolle. A significação da obra de Anchieta na história do Brasil. RIHGB, tomo
LXXVI, parte I, 1913, p. 591.
1311
DÓRIA, A significação... op. cit., p. 592.
1312
Idem, p. 594.
1313
Nos socorremos nesse ponto no clássico estudo de Michel Foucault sobre a docilização dos corpos no mundo
moderno: “Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela define
como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que
operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina”. FOUCAULT, Michel.
“Corpos Dóceis”. In: _____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 164.
1314
DÓRIA, A significação... op. cit., p. 600.
429
cabe a glória de haver precedido os demais povos modernos na colonização, no sentido
moderno da palavra”.1315 Para tanto, a Campanha de Jesus é, como abordado, detentora do
elemento moral da conquista do processo de colonização.
Outra forma do Poder régio se fazer presente entre os colonos era, também, por meio da
Igreja, mais especificamente através da inquisição, ou Santo Ofício. A Igreja era, no projeto
colonial lusitano, a responsável por educar a população e por, em tese, torná-la civilizada. Seja
como for a inquisição era uma instituição que docilizava os corpos dos colonos, disciplinando,
na medida do possível, os seus comportamentos e as suas atitudes. Ela era um dispositivo do
poder ideológico metropolitano em sua ambição de vigiar, de controlar e de punir os colonos.
Através dela os súditos interiorizavam, naturalizando-as, formas de agir no mundo.
Em outra leitura, a Colônia aparece como um ambiente, inicialmente, de refúgio diante
dos tentáculos civilizadores da Igreja. Para o historiador João Lucio de Azevedo,
Porém, essa situação tende a mudar. Por exemplo: uma parcela da população que sofre com a
censura é a dos judeus, ou dos chamados “cristãos novos”. Eles são impedidos de tornar
públicos os ritos particulares do seu credo. “Milhares e milhares de processos, denúncias,
testemunhos, confissões, autos de tormento e sentenças finais, algumas de morte, são dirigidas
aos cristãos novos”.1317 De todo modo, a continuada interiorização das normas religiosas do
catolicismo é tão bem-sucedida que os colonos passam a se autovigiar.1318
Azevedo informa que são três as visitações oficiais dos inquisidores nos séculos XVI e
XVII: 1591, 1618 e 1627. Nessas visitas são criadas missões apostólicas que saem da Bahia e
dirigem-se ao sul do país. Sabe-se, todavia, que na segunda visitação muitos luso-brasileiros
pedem asilo em Buenos Aires temendo os atos dos inquisidores. Em 1626 é nomeado mais um
1315
Idem, p. 501.
1316
AZEVEDO, João Lucio. Notas sobreo judaísmo e a Inquisição no Brasil. RIHGB, tomo 91, parte I, 1922, p.
680.
1317
AZEVEDO, Notas... op. cit., p. 681.
1318
A pesquisadora Lana Lage da Gama Lima nos faz entender a prática processual do Tribunal do Santo Ofício
português. Característica marcante do processo inquisitorial é a reiterada busca da autoacusação do réu,
“expressada na pregação constante para que confessasse suas culpas e no uso da tortura como forma de extrair
confissões. Não se pode esquecer de que esse estilo de processo de origem romana, conhecido por inquisitio,
elevou a confissão à categoria de ‘rainha das provas’”. LIMA, Lana Lage da Gama. O Tribunal do Santo Ofício
da Inquisição: o suspeito é culpado. Revista de sociologia e política, n. 13, 1999, p. 17. Disponível em:
https://cutt.ly/fcLNxTi Acesso: 08 abr. 2021.
430
inquisidor geral, que cria no Rio de Janeiro o ofício de tesoureiro do fisco, indício consistente
da existência de procedimentos de sequestro dos bens dos réus. Os locais mais assolados pela
perseguição são Bahia e Rio de Janeiro. Daí o fio das denúncias leva a inquisição ao coração
das Minas em meados do século XVIII.
O historiador português discorda de Varnhagen no que se refere à primazia dos atos
inquisitoriais: se ordenados do Brasil ou da Corte portuguesa. Varnhagen acredita que seja um
dispositivo político de controle local, porém, João Lucio de Azevedo, com subsídios empíricos
mais avolumados, discorda da sentença: “Era de Lisboa, no palácio dos Estaus onde a inquisição
centralizava seus terrores, que se despendia o raio para ferir além-mar os desapercebidos
apostatas”.1319 O controle e a vigilância dos colonos partem, portanto, de Portugal, senhor das
ações e dos costumes luso-brasileiros.
Em suma, João Lucio de Azevedo argumenta que as listas dos réus do Santo Ofício são
documentos interessantes que abrem margem ao estudo da história das instituições e do
cotidiano na Colônia. Neles se pode seguir a história de famílias inteiras envolvidas com a
inquisição, tanto os réus quanto as testemunhas; se conhece as “classes” existentes na Colônia;
“se induz o Estado moral da sociedade”; se descobre laços de parentesco, residência, profissões
e particulares da vida colonial, a qual passa pelo insistente controle político, social e cultural da
Metrópole diante das tendências autonômicas locais.1320 Era uma forma de compreensão, em
última instância, de como o projeto de conquista colonizadora se entrelaçava com o projeto
ideológico civilizador.
Tal o império dos costumes, tal a fraqueza das leis de administração e de justiça na
Colônia. Eis, então, o dilema vivenciado no período colonial entre a institucionalização da
espera pública metropolitana e o poder assumido pela localidade diante da ausência do Poder
régio. Esse pêndulo movimentava os assuntos públicos entre Brasil e Portugal durante o período
colonial, conforme se vê na historiografia republicana. Exemplo desse estado de coisas pode
ser encontrado através da emergência no Brasil daquilo que o Conselheiro Tristão de Alencar
Araripe chama de pater-famílias, que em última instância são as autoridades naquele contexto.
Na antiguidade romana o pater-família, ou chefe de família, possui sobre seus escravos,
sua mulher e seus filhos não um poder ordinário, mas um direito de propriedade pleno e inteiro,
1319
AZEVEDO, Notas... op. cit., p. 682.
1320
AZEVEDO, Notas... op. cit., p. 686-87.
431
isto é, “direito de condenação sobre sua mulher e seus filhos; direito de vender estes últimos,
de explorá-los, sobretudo quando eram disformes”.1321 Por mais que o termo e a instituição
sejam mais conhecidos através do exemplo romano, o poder patriarcal se manifesta em outras
sociedades. Em resumo, na antiguidade clássica localiza-se na família o fundamento básico das
instituições políticas. Segundo Araripe: “O Estado não tinha então encargos tão complexos
como hoje; deixava pois o indivíduo sem essa tutela imediata e incessante da autoridade
pública, que é um flagelo das sociedades modernas”.1322 Percebe-se que a família não é, na
antiguidade, um simples agregado civil. Ela é concebida como uma entidade política, tendo por
essa razão as suas práticas de poder coercitivas internas. O Conselheiro Araripe nos esclarece
a natureza dos pater-famílias: “Esta instituição nasce da fraqueza das sociedades primitivas,
que ainda não têm o poder público suficientemente organizado, de sorte que possam acudir a
todas as necessidades da comunhão em seu mais amplo desenvolvimento”.1323
Tristão de Alencar de Araripe argumenta que essa organização familiar é ingênita às
sociedades nascentes, de tal forma que ela se revela nas novas formações sociais
independentemente da legislação existente, escrita ou praticada. É o que acontece com o caso
brasileiro. Os portugueses, no processo de implementação das suas leis nas novas terras, vindo
a povoar e a organizar a sua legislação, lidam com a situação de que elas nem sempre se aplicam
por meio de uma execução exata, na medida em que a sua autoridade não alcança todas as
localidades que surgem a partir da colonização, por onde vai, então, a população crescendo. De
forma tal que “fora da ação imediata do poder autoritário, surgiu a instituição forçosa dos pater-
famílias dos antigos tempos. O arremedo dessas eras primitivas realizou-se no Brasil; se a
1321
Cf. ARARIPE, Tristão de Alencar. Pater-famílias no Brasil nos tempos coloniais”. RIHGB, tomo LV, parte II,
1892.
1322
ARARIPE, Pater-famílias... op. cit., p. 16.
1323
Idem, p. 17. Tristão de Alencar Araripe não é a única voz na historiografia brasileira da Primeira República a
trabalhar com a ideia de pater-família, ou patriarcado. Oliveira Vianna, em Populações Meridionais do Brasil,
oferece uma definição bem-acabada acerca do poder patriarcal durante o período colonial. Para o intelectual
carioca, essa forma de poder tem uma presença marcante em nossos caracteres como povo: “Na alta classe rural,
o contrário. É imensa a ação educadora do pater-famílias sobre os filhos, parentes e agregados, adstritos ao seu
poder. É o pater-famílias que, por exemplo, dá noivo às filhas, escolhendo-o segundo as conveniências da posição
e da fortuna. Ele é quem consente no casamento do filho, embora já em maioridade. Ele é quem lhe determina a
profissão, ou lhe destina uma função na economia da fazenda. Ele é quem instala na sua vizinhança os domínios
dos filhos casados, e nunca deixa de exercer sobre eles a sua absoluta ascendência patriarcal. Ele é quem os
disciplina, quando menores, com um rigor que hoje parecerá bárbaro, tamanha a severidade e a rudeza. Por esse
tempo, os filhos têm pelos pais um respeito que raia pelo terror. Esse respeito é, em certas famílias, uma tradição
tão vivaz, que é comum verem-se os próprios irmãos cadetes pedirem a bênção ao primogênito. Noutras, as esposas
chamam ‘senhor’ aos maridos, e esses, ‘senhoras’ às esposas. O sentimento de respeito aos mais velhos e de
obediência à sua autoridade, tão generalizado outrora no nosso meio rural, é também uma resultante dessa
organização cesarista da antiga família fazendeira. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações Meridionais
do Brasil. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2005. p. 100.
432
instituição não estava na lei, transparecia no fato”.1324 A lei portuguesa autoriza o pai de família
a castigar e a prender os seus familiares. Eis, então, a lei coercitiva da família portuguesa, a
qual os primeiros colonos dão extensão, transformando-a em direito lato. Por meio de um olhar
retrospectivo Araripe admite essa herança ibérica no Brasil do século XIX. De fato, há na
história brasileira um poder parental, nascido lá no período colonial, que está acima da
jurisprudência em vigor: “O poder parental, que, não obstante as leis, existiu de fato no Brasil,
nas condições expostas, transparece em muitos fatos, que repetiam-se nas fazendas criadoras
dos nossos sertões, e nas fazendas agrícolas das nossas províncias fabricantes de açúcar”.1325
Um exemplo de pater-família contemporâneo é o senhor de engenho.1326
Voltando ao cenário colonial: o colono fundador de uma família só por meio da morte
perdia o seu poder sobre a sua descendência, formando ao redor de si uma crescente parentela,
a quem dirigia a sua autoridade moral. O pater-família dispensava a autoridade pública. Ele
era, enquanto instituição, um poder local paralelo ao Poder régio. Por mais que Portugal
avançasse em sua governantabilidade sobre a Colônia tornava-se impossível refrear essa
autonomia local. Digamos que o “grande Leviatã” foi gravemente ferido pelos pater-famílias
coloniais, as verdadeiras autoridades representativas na Colônia. Araripe sugestionou que essa
forma de poder político, com todos os seus danos para a vida pública, ainda estava presente no
contexto em que está inserido.
Os pater-famílias do Brasil formam a elite colonial. É uma herança ibérica que muitas
vezes se volta contra a própria Metrópole. Porém, Tristão de Alencar Araripe tem uma leitura
americanista da história do movimento colonial, mesmo que dominado pelos pater-famílias.
Para o sócio cearense, a América colonizada se afasta da Europa colonizadora em função da
distância, sendo que entre elas há um considerável intervalo social. Não parece crível, pois,
1324
ARARIPE, Pater-famílias... op. cit., p. 18
1325
Idem, 18-19.
1326
Na década de 1930 Gilberto Freyre reforçou a ideia da instauração de um poder patriarcal no Brasil colonial.
Freyre argumenta que a família é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil. A sua aristocracia
colonial é a mais poderosa de toda a América, o que revela a inoperância da ação individual dos sujeitos. A
colonização assenta-se na família patriarcal. Através dela é possível ver o resultado do sistema econômico, político,
militar e principalmente social. Segundo o intelectual pernambucano, “familismo no Brasil compreendeu não só o
patriarcado dominante — e formalmente ortodoxo do ponto de vista católico-romano — como outras formas de
família: parapatriarcais, semipatriarcais, antipatriarcais (...), extrapatriarcais, extracatólicas”. FREYRE, Gilberto.
Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p. 137.
433
a ação diretriz, e assim anima a tentativa da independência, sempre suscitada
pelo orgulho e interesses dos povos novamente formados.1327
Ou seja: a partir do momento em que havia na Colônia condições materiais e sociais para uma
possível emancipação se tomava a consciência das diferenças em relação à Metrópole. Era um
processo de autoidentificação e de afirmação do sentimento patriótico.
Parece uma consequência lógica, para Tristão de Alencar Araripe, que o continente
americano siga o destino fatal de outros países e regiões colonizados no passado. O
estabelecimento colonial pode viver, orientar-se e dirigir-se por si próprio, resultando, pois, na
emancipação. É isso o que acontece com o mundo antigo. Da Ásia à Europa, do oriente ao
ocidente: “essa é a lei de emigração dos povos do levante para o poente veio ainda a verificar-
se na América nos novos tempos”.1328 As populações da Europa ocidental colonizam a América,
enquanto que os luso-brasileiros imitam o mesmo processo com a população e os territórios
nativos. Isso é, para Araripe, uma lei histórica.
O Conselheiro Araripe oferece um caso brasileiro para explicar o movimento
independentista na América, em que se explica a forma de sublevação dos colonos diante do
poder opressor da metrópole. A passagem é lapidar para compreendermos a luta entre colonos
e colonizadores, entre Metrópole e Colônia, entre centro e periferia:
1327
ARARIPE, Tristão de Alencar. Movimento colonial da América. RIHGB, tomo LXVI, parte II, 1893, p. 94.
1328
ARARIPE, Movimento... op. cit., p. 93.
1329
Idem, p. 100.
1330
Há uma linguagem republicana unificadora dos mitos de origem pernambucanos, consequentemente
brasileiros, na Primeira República: “Expulsão dos batavos, Guerra dos Mascates, revolução de 1817 e
Confederação do Equador correspondiam a momentos diferentes de um mesmo passado solidário; exprimir uma
reserva no tocante a qualquer deles, sobretudo ao acontecimento fundador, equivalia a pôr todos em tela de juízo”.
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Nova
434
autoridade Real se reestabelece por meio da escolha de um governador simpático aos
“mascates”, mas capaz de apaziguar o seu temerário patriotismo. “Foi esta comoção popular o
primeiro brado erguido na América pelo colono contra o colonizador. Não vingou a agitação
sediciosa, e os Pernambucanos foram suplantados; porém o gérmen fecundo da libertação
colonial ficou lançado no solo americano, que o recebia com favor”.1331 Em 1714 o rei de
Portugal Dom João V anistia, em uma atitude política, os envolvidos em tal contenda libertária.
O pensamento patriótico pernambucano não era voz solitária no Brasil colonial. Em
Minas Gerais do ano de 1789 verificava-se um clima de conspiração entre letrados e pessoas
públicas da Capitania, em que se falava, no entender de Araripe, sobre a possibilidade de o
Brasil tornar-se independente sob a forma republicana. Porém, não havia tempo para tanto, nem
meios de organizar elementos para uma luta material. Os envolvidos foram presos e submetidos
ao rigor da lei. De todos os participantes do movimento, chamado de Inconfidência Mineira,
conspiratório apenas Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi condenado a uma morte
ignomínia. Porém, o seu exemplo e a sua imagem assombram os autoritarismos futuros:
“condenado e supliciado no patíbulo para reprimir a liberdade, foi depois a sua sombra um
fantasma aterrador da realeza. Os serviços póstumos das vítimas do despotismo têm valor
incomparável, e desafiam a apoteose dos povos ao despedaçarem estes o jugo opressor”.1332
Se colônias espanholas prosseguem na luta em favor da ideia separatista, no Brasil os
“patriotas” ambicionam colocar fim ao domínio português. Por diferentes frentes promove-se
a propagação das aspirações e das ideias libertadoras, alimentadas pelo “desgosto causado aos
naturais do país pela prepotência e menosprezo dos dominadores de origem europeia, em cujo
poder estavam os cargos públicos e os gozos sociais”.1333
Supostamente por meio da maçonaria as ideias liberais chegaram à Pernambuco. A
rivalidade entre os súditos americanos e os súditos europeus excitava o movimento. Em 1817
Pernambuco é palco de uma revolução com ideais republicanos. Após a tentativa frustrada do
governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro de abafar a conspiração entre os militares,
as sociedades secretas e o clero agitaram Recife e instauraram um governo republicano. 1334 As
1338
FLEIUSS, Centenários... op. cit., p. 110.
1339
Esse modelo de abordagem do espaço geográfico brasileiro torna-se conhecido através das pesquisas de
Capistrano de Abreu. No entanto, Basílio de Magalhães avança a sua descrição geográfica Brasil adentro:
“Capistrano de Abreu reproduziu em seus retratos da colônia a localização física dos cronistas coloniais, ou seja,
descreveu a paisagem como se ele, narrador, estivesse situado na costa, observando o Brasil como alguém que está
aportando. Jamais ultrapassou a linha formada pelas terras efetivamente apropriadas, dominadas e povoadas pelos
colonos. Além desse território estava o sertão, mas, embora afirme a sua importância para o entendimento da
formação do Brasil, jamais o penetra, esboça-o como se estivesse muito longe. Quando busca avançar sobre o
sertão, a sua descrição perde objetividade e o que exibe é um cenário caracterizado de forma genérica por seus
aspectos geográficos, sugerindo uma natureza virgem”. CORRÊA, Dora Shellard. Historiadores e cronistas e a
paisagem da colônia Brasil. Revista Brasileira de História, vol. 26, n. 51, 2006, p. 66. Disponível em:
https://cutt.ly/zcLIzmI Acesso 08 abr. 2021.
437
primeiro nível da narrativa, isto é, o leitor tem a possibilidade de acompanhar todo caminho de
pesquisa realizado pelo autor. Para esta sessão em especial abordamos dois artigos de
Magalhães saídos na Revista do IHGB: A conquista do Nordeste no século XVII e Bandeirismo
no Brasil. Subsídios para o estudo desse importante fenômeno da nossa evolução. O tema da
interiorização do país, desde ao menos as pesquisas de João Capistrano de Abreu, tornava-se
prioridade para aqueles que se arrogavam historiadores na Primeira República. Primeiro, por
demonstrar o enraizamento patriótico dos primeiros(as) brasileiros(as) com o território local.
Segundo, por conta das teorias do determinismo mesológico, especialmente as de Buckle e as
de Taine, com grande circulação nesse contexto, asseverarem a incapacidade dos luso-
brasileiros de progredirem materialmente. Ou seja: as entradas, as bandeiras, a expansão
geográfica eram amostras incontestáveis da inoperância dessas leis, posto que os sujeitos
situados aqui no Brasil eram capazes de submeter os elementos da natureza intrepidamente.
Terceiro, em razão dos Estados federados buscarem a sua genealogia na República, o que
implicava, necessariamente, que remontassem ao passado geográfico de cada um. No caso
paulista a epopeia bandeirante apresentava-se como a sua “ficção de fundação”.1340
A interiorização no Nordeste, região destacada nos primórdios da colonização, foi obra
das atividades particulares de alguns sujeitos históricos autônomos, obviamente bem situados
na Colônia no contexto aqui abordado, ou seja, o século XVII. Não havia um projeto por parte
da Metrópole de interiorização da Colônia. A expansão geográfica brasileira foi obra dos seus
colonos. Eles foram os responsáveis pela feição geográfica do Brasil, o que não era pouca coisa,
na medida em que o sentimento patriótico era alimentado pela disposição territorial da nação.
Sendo obra de particulares Basílio de Magalhães os chama de “heróis”. Como dito, foram esses
sujeitos históricos, que mais tarde receberiam a designação de bandeirantes, os responsáveis
por modelar o corpo geográfico nacional. Os ditos “heróis” da conquista do Nordeste foram,
entre outros, Francisco Dias d’Ávila, Domingos Afonso Sertão e Domingos Jorge Velho.
Distinguiu-se o primeiro pelo alargamento que deu aos seus domínios da Casa da Torre.
Enquanto isso o segundo era lembrado em razão do estabelecimento de inúmeras fazendas de
gado no Piauí. A pecuária é considerada por Magalhães uma das principais formas de
alargamento geográfico do país, bem como para o estabelecimento de colonos em um território
propenso a colonização. Já o terceiro era evocado pela fidelidade à Coroa, distinguindo-se pela
extensão da sua atividade no tempo e no espaço, especialmente no auxílio que emprestou ao
Faço uma referência explícita ao estudo de SOMMER, Doris. Ficções de fundação. Os romances nacionais da
1340
1341
MAGALHÃES, Basílio de. A conquista do nordeste no século XVII. RIHGB, tomo 85, parte I, 1919.
1342
A produção intelectual de Basílio de Magalhães insere-se no contexto historiográfico da passagem para o
século XX, em que há a proeminência do legado histórico paulista na elaboração das representações sobre a nação
brasileira. Destaca-se no imaginário nacional a epopeia bandeirante e a sua importância na integridade e na
expansão territorial. A figura do bandeirante paulista passa a ser totalmente identificada com a formação territorial
do Brasil. O Brasil deve aos bandeirantes a fisionomia das suas fronteiras, obra da penetração sertanista. De acordo
com Kátia Maria Abud, “os historiadores paulistas enfatizaram aspectos e deram consistência às representações
do bandeirante como símbolo paulista, a ser imposto a toda nação, como construtor da integridade territorial
brasileira”. ABUD, Katia Maria. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições: a construção de um símbolo
paulista: o bandeirante. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História Social,
Universidade de São Paulo, 1986, p. 379-388. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/000718219 Acesso:
04 dez. 2020. As ações na conquista ganham a sua dimensão representacional integral: bandeirismo e expansão de
território, apropriação das terras indígenas, tudo ancorado por uma suposta ação civilizadora desses sujeitos,
virtuais construtores da nação.
439
história do interior da nossa própria Pátria”.1343 Era o bandeirante que se lançava na missão de
conquistar e de povoar os sertões brasileiros, isto é, de triplicar a área do território nacional.1344
Dois movimentos no passado colonial brasileiro são fundamentais para a sua expansão
geográfica: a “epopeia pernambucana”, procedente das invasões holandesas, e a “epopeia
paulista das bandeiras, oriunda das impulsões indômitas da raça, das condições do habitat e de
circunstâncias políticas”.1345 O movimento bandeirante constitui-se como obra dos mamelucos,
argumenta Basílio de Magalhães. O certo é que os portugueses, menos de meio século após o
início da colonização, cogitaram e imaginaram desvendar o caminho dos metais preciosos. Mas
todas as tentativas realizadas sob esse escopo, sob o influxo metropolitano ou dos reinóis
situados no Brasil, malograram. Era preciso que surgisse nos elevados do Piratini um núcleo de
fortes mamelucos para iniciar a saga pelos sertões - aquém e além do Tratado de Tordesilhas.
Desde a entrada de Pero Lobo, no ano de 1531, até a jornada de Agostinho Barbalho
Bezerra, em 1664, já à beira do Rio Doce, a ação da Metrópole, nesse mais de um século, só
acumulou perdas e reveses. O poder Real não conseguiu, pois, estruturar uma bandeira que
descobrisse de forma totalmente acertada as rotas para os metais preciosos.1346 Todavia, os
mamelucos paulistas, nesse meio tempo, já conquistaram algumas províncias jesuíticas,
capturando e escravizando os indígenas, bem como iniciaram o povoamento das regiões do
Paraná e de Santa Catarina, tornando possível a penetração no Rio Grande do Sul.
Um dos símbolos da nacionalidade na passagem para o século XX foi o bandeirante,
porém, ele era identificado, como faz Basílio Magalhães, pelo fator raça, mais especificamente
pela mistura étnica do branco português com o indígena resultando no mameluco. Era o fator
raça que propiciava o êxito das entradas e das bandeiras. O mameluco tornou-se um símbolo
ancestral da pátria. Só ele era capaz, em razão da sua raça, de adentrar aos sertões do Brasil.
Para tanto se fez necessário a aptidão da raça, em que se positivava a miscigenação, o
conhecimento do habitat e a resposta às pressões do tempo.1347
1343
MAGALHÃES, Basílio de. O Bandeirismo no Brasil (Subsídios para o estudo desse importante fenômeno da
nossa evolução. RIHGB, tomo LXXVII, parte I, 1914, p. 71.
1344
Desse modo, o paulista de Piratininga não é outro sujeito que não seja o português que necessita se transformar,
se reinventar, para sobreviver naquela porção territorial da Colônia. É preciso que ele se distancie do principal
modelo colonizador metropolitano, qual seja, os engenhos de cana de açúcar com seus escravos africanos e com a
figura patriarcal do senhor de engenho, e se aventure no sertão dos nativos. Para se tornar sertanista ou bandeirante
os sujeitos de ascendência portuguesa precisam “nascer de novo”. ESTERCI, Neide. O mito da democracia no
país das bandeiras - análise dos discursos sobre colonização e migração no Estado Novo. Dissertação (Mestrado
m História) – Programa de pós-graduação em Antropologia Social, UFRJ, 1972, 71.
1345
MAGALHÃES, O Bandeirismo... op. cit., p. 73.
1346
Para uma abordagem acerca das vicissitudes envolvendo os caminhos que levam ao descobrimento e à
exploração dos metais e das pedras preciosas ver HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In:
_____ (org.). A época colonial. Tomo I, vol. 2. São Paulo: Difel, 1968 (História geral da Civilização Brasileira.
1347
A interpretação sobre a suposta “raça” dos bandeirantes é diametralmente oposta, por exemplo, entre Basílio
440
O movimento bandeirante passa, segundo Basílio de Magalhães, por algumas etapas.
Primeiro é o ciclo da esmeralda e da prata, já na segunda metade do século XVII, e cujos
nomes mais representativo são Fernão Dias e Manuel de Borba Gato. Essa bandeira era
fundamental por direcionar os focos de entrada para a região onde, de fato, se localizava os
metais preciosos. Embora as esmeraldas que chegavam em Portugal fossem consideras falsas,
os esforços dessas primeiras bandeiras “serviram para apontar aos seus contemporâneos por
onde haviam de chegar” para o “descobrimento dos miríficos tesouros que repletaram o Brasil,
e, mais ainda, a sua metrópole venturosa, desde o esvaecer do século XVII”. 1348 Nota-se pela
passagem que a interpretação da história do Brasil de Basílio de Magalhães é iberista. Quanto
à prata as expedições, financiadas pela Coroa ou não, não lograram êxito em encontrá-la. O raio
de ação dos bandeirantes na passagem para o século XVIII era considerável. A região sul já se
fazia conhecida. Agora as bandeiras seguiam ao norte, não antes de percorrerem o vale do
Paraíba, em busca dos metais preciosos em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. O “intrépido
bandeirante” Borba Gato, por exemplo, encontrou na passagem para o século XVIII as minas
auríferas de Sabará, direcionando os esforços bandeirantes para aquela região. De tal forma que
ia se desenhando, então, o mapa do Brasil.
Temos, então, o ciclo espontâneo do ouro. Antes de tudo, essas bandeiras valeram-se
das antigas trilhas dos indígenas e dos caminhos que costumeiramente andavam. Antes e depois
da unificação das Casas reinantes o bandeirante, segundo a referida interpretação, buscou
extinguir as reduções jesuíticas. Se com os jesuítas a população indígena sofria o processo de
aculturação, agora com o bandeirante paulista eles eram escravizados. Mais uma situação
histórica que demonstrava as ambições de poder bandeirante, inclusive sobre os corpos
daqueles que não faziam parte dos seus propósitos. Nesse ciclo não havia a intenção da
descoberta do ouro, porém, ele foi encontrado na região de Taubaté, sendo explorado.
Por fim, há o ciclo oficial do ouro. Nele se destacaram as bandeiras em direção às minas
de Taubaté, Cataguases e Sabará. Os bandeirantes, em busca das pedras e dos metais preciosos,
supostamente ignoravam os métodos científicos que permitiam conhecer os minérios,
distinguindo os verdadeiros dos falsos para explorá-los convenientemente. Toda a prática de
mineração dos primeiros bandeirantes localizava-se no âmbito do fazer-saber. É verossímil, diz
de Magalhães e Oliveira Vianna, cuja interpretação é bastante respeitada nos anos 1920, mesmo que nitidamente
eugenista. Vianna compreende, então, as “proezas assombrosas” dos bandeirantes através do impacto étnico das
invasões germânicas sobre a formação racial portuguesa, invasões essas que trazem “numerosos e abundantes
contingentes do tipo dólico-louro, homens de alta estatura e de temperamento essencialmente migrador e
aventureiro”. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro. São Paulo: Nacional, 1938, p.
131.
1348
MAGALHÃES, O Bandeirismo... op. cit., p. 76.
441
Magalhães, que uma segunda geração de bandeirantes devassadores do interior do Brasil,
responsáveis, também, por sua expansão geográfica, fossem acompanhados, mesmo em
incursões de aprisionamento de indígenas, por práticos com experiência na coleta do ouro. A
partir do momento que a Metrópole tomou conhecimento acerca da opulência do ouro
encontrado na Colônia ela enviou artífices e mineiros. Esse gesto era uma forma de controlar a
produção aurífera, que sem o devido cuidado se extraviava tomando toda sorte de destino. Não
por acaso apareceram as primeiras autoridades reinóis para cuidar da extração aurífera, como
no exemplo da fundação da Casa dos quintos, em 1695, e logo depois da Casa de fundição,
1697, tendo como provedor o homem público e bandeirante Carlos Pedroso da Silveira.
Dessa maneira, “o delírio do rápido e portentoso enriquecimento apoderou-se de todos
os cérebros, encandecendo-os numa febre continua e insopitável”.1349 De forma tal que paulistas
e forasteiros vindos de localidades variadas não se ocupavam com o plantio de mantimentos
junto às lavras e nem investiam no comércio interno de alimentos. As populações cresceram
em torno dos focos de extração de ouro. Era uma colonização desorganizada. A carestia
assolava essas regiões que sofriam com o mínimo material para se estabelecer. Para solucionar
esse problema os bandeirantes dispersavam todo o contingente humano. O efeito não esperado
dessa atitude era que essa mesma população descobria novas lavras, recapitulando todo o
processo demográfico descrito acima. De todo modo, esse movimento não deixa de ser uma
forma de expansão geográfica.
Dom João VI foi o último Imperador que manteve unido Portugal e Brasil. Ele foi
sagrado rei de Portugal em 1816, porém, encontrava-se situado no Rio de Janeiro desde a
transferência da Corte no ano de 1808. Permaneceu na América até 1821, deixando Pedro de
Alcântara, seu filho, como regente do Brasil. O seu agir político e a sua representação como
Imperador foram bastante debatidos no IHGB na Primeira República, animando contendas
entre aqueles sujeitos que se arrogavam historiadores e que se faziam representados como tais.
Isso podia ser verificado na posição de André Werneck, de 1897, em que se colocou em
evidência as divergências existentes entre os historiadores referentes ao status e a posição de
D. João VI como monarca, dado que circulavam posições estreitas e deturpadas, para não dizer
maldosas, sobre a sua figura pública no contexto político tumultuado que se inseria.1350 Para
1349
Idem, p. 92.
1350
Eduardo José Reinato reafirma a existência de uma forte representação deturpada de Dom João VI, não só na
historiografia luso-brasileira, mas na própria memória cultural brasileira: “Dom João VI tornou-se, talvez, o
442
ele, “só o passado pode julgar o valor dos grandes homens, porque só ele entra em ação com o
ânimo desprevenido, abandonando pequenos senões que são comuns da natureza humana”.1351
Segundo André Werneck, fazia-se necessário, entre os historiadores, o resgate da figura
de Dom João VI, pois ele era o “maior cooperador da nossa independência”. Além disso, a sua
“sábia legislação” proporciona os maiores “progressos” para a América portuguesa, “agitando
as atividades, abrindo fontes de riqueza, fazendo estudar o sertão do país, ainda em 1815 elevou
o Brasil a Reino Unido, fazendo-o um Estado federado e tornando-se quase que um país
livre”.1352 O que se pode assegurar, admite o novo sócio, é que a elevação do Brasil à Reino
Unido foi um ato deliberado e conscientemente articulado por Dom João VI, prefigurando a
independência política do Brasil em seus horizontes, ao contrário de muitos intelectuais que
enxergavam no ato, como Euclides da Cunha, tão somente uma fortuidade do acaso.
O visconde de Ouro Preto também foi outro sócio que buscou imortalizar Dom João VI
nos fastos da história brasileira. Para tanto, ele emite uma proposta, em 1903, acerca de um
concurso de monografias sobre o período joanino. Antes disso, o visconde assegura que o
monarca português, ainda quando príncipe, é “o fundador da nacionalidade brasileira”.1353 Após
essa constatação o prestigiado agremiado do Instituto Histórico elenca uma série de qualidades
próprias de Dom João VI: 1) realiza o antigo projeto de transferência da Corte para o Brasil,
franqueando os principais portos ao comércio das nações amigas e encerrando o regime
colonial, dando a oportunidade de mais cedo ou mais tarde ocorrer a emancipação política e
econômica do Brasil; 2) instinto popular; 3) apreço pelas coisas públicas do Brasil; 4) decreta
a liberdade da indústria brasileira, organiza as repartições públicas, os tribunais, as escolas
superiores de ciências e belas artes, a imprensa, os bancos, o primeiro jornal regular, as
personagem de nossa história mais vulnerável à caricatura fácil, à detração, fosse por sua personalidade, seus
costumes pessoais ou pelas atribulações em sua vida conjugal. O imaginário sobre o rei transita de um universo
jocoso e ficcional, para um universo dramático e melancólico”. REINATO, Eduardo José. De Rei Fujão a
Construtor do Império Luso- brasileiro: D. João VI e as Transferência(s) em Linhas, Traços e Cores. Karpa, n. 5,
vol. 2, 2012, p. 1. . Disponível em: https://cutt.ly/PcZaQhQ Acesso: 08 abr. 2021.
1351
WERNECK, Discurso... op. cit., p. 334.
1352
Idem, p. 335.
1353
OURO PRETO, Visconde de. Proposta para um concurso de monografias sobre os treze anos do governo de
Dom João VI. RIHGB, tomo LXVI, parte II, 1903, p. 275. Manuel de Oliveira Lima é um dos grandes responsáveis,
na Primeira República, pela revalorização tanto da imagem pública de Dom João VI quanto do seu governo.
Corroborando a assertiva coeva do Visconde de Ouro Preto, Oliveira Lima também entende, sendo o porta-voz
dessa interpretação no contexto assinalado, que Dom João VI é o arquiteto da fundação da nacionalidade brasileira:
“Assim, a vinda da corte tem, para Oliveira Lima, um significado de transformações políticas, econômicas e
também socioculturais que estão intimamente ligadas à uma intenção joanina de fazer do Brasil uma nação
desenvolvida (pelo investimento urbano e artístico nos principais centros citadinos) que, pela primeira vez até
então, faria com que o Brasil despontasse de universo rural à urbano, que iniciava a intelectualizar-se”. COSTA,
Roger R. D.; IRSCHLINGER, Fausto. A. A “Heroicização” de Dom João VI na obra de Oliveira Lima. Akrópolis,
v. 20, n. 4, 2002, p. 253. Disponível em: https://revistas.unipar.br/index.php/akropolis/article/view/4882 Acesso:
08 abr. 2021.
443
bibliotecas, o jardim botânico, etc.; 5) recruta brasileiros para cargos públicos; 6) promove a
exploração científica do interior do Brasil; 7) unifica o país sob uma autoridade central a que
todos obedecem; 8) valoriza as forças armadas e é vitorioso nas contendas de fronteira; 9) eleva
o Brasil à categoria de Reino Unido; 10) “ao partir para a Europa, em 1821, anunciou que o
Brasil não tardaria em desligar-se de Portugal.1354 Uma leitura liberal do reinado de Dom João.
Novamente o visconde de Ouro Preto, agora relator do parecer sobre a obra As minas
do Brasil e sua legislação, de João Pandiá Calógeras, restaura a memória de Dom João VI.
Calógeras estaria certo, para parcela significativa dos sócios do Instituto, em refazer a
representação do monarca bragantino, porquanto circulava entre muitos intelectuais da
República sentenças maldosas sobre a sua imagem pessoal, sobre a sua capacidade
administrativa e sobre as suas eternas hesitações. “É tempo de restituir-se a esse monarca o
lugar que lhe compete na evolução portuguesa e brasileira”.1355 Não era levado em consideração
a concentração do poder efetivada pelo monarca e o fator escravidão.
As comemorações do centenário da abertura dos portos era uma oportunidade para se
revisar o lugar de Dom João VI na historiografia brasileira, bem como de transmitir o seu
legado. O conde de Afonso Celso fez, naquela ocasião, um verdadeiro elogio público às
façanhas políticas e militares do referido monarca, em que se colocava em evidência as
constantes reformas na administração pública que resultaram em progressos poucas vezes vistos
na Colônia e, depois, Reino Unido. A sua estratégia política para se desvencilhar de Napoleão
Bonaparte com a consequente mudança da Corte para o Brasil 1356, bem como as suas
movimentações bélicas no norte e no sul do Brasil, comprovavam o seu tino político. Além
disso, sendo considerado um gesto democrático, o então príncipe, em 1808, tornou livre a
imprensa. Para Afonso Celso, “Dom João VI manifestou-se ainda nisso o chefe de governo
mais acertadamente iniciador que ainda conheceu a nossa terra três quadriênios de constantes
reformas e progressos, aureolados até pela glória militar (...)”.1357
Em uma biografia escrita por Antônio da Cunha Barbosa demonstrava-se a importância
do reinado de Dom João VI, além do seu impacto sobre os acontecimentos que desencadearam
1354
OURO PRETO, Proposta... op. cit., p. 275-76.
1355
OURO PRETO, Visconde. Parecer da comissão de história sobre as obras de Pandiá Calógeras. RIHGB, tomo
LXVIII, parte II, 1905, p. 602.
1356
Segundo Luís Norton, a transferência da corte para o Brasil é uma atitude política pensada e declarada: “(...)
abandonar a Europa para fundar no Brasil um grande império, fora, em Portugal, desde o século XVI, um plano
esboçado, estudado maduramente por soberanos e estadistas, quando circunstâncias políticas tornaram periclitante
a soberania continental portuguesa, ou esta foi ameaçada por estranhas tentativas de absorção fulminante”.
NORTON, Luís. A corte de Portugal no Brasil. Companhia Editora Nacional; Brasília: INL, 1979, p. 124
1357
CELSO. Afonso. Palestra comemorativa do centenário da abertura dos portos. RIHGB¸ tomo LXXI, parte II,
1908, p. 455-54.
444
a Independência. A figura do monarca como um benemérito serviria de modelo aos governantes
republicanos. Na biografia de Raimundo José da Cunha Matos Barbosa salienta, pois, que o
antigo rei é “inquestionavelmente o fundador da Nação Brasileira, e iniciador do nosso antigo
progresso e prosperidade, o legislador desta liberdade, que outrora gozamos, sem limites, sem
graves perturbações”.1358 É uma injustiça histórica que “aquele benemérito soberano” não tenha
grandes monumentos, praças ou repartições públicas em homenagem a sua pessoa pública e ao
seu governo. Justamente “ele que tanto amou este país, que não era a sua pátria, e no qual atirou
os gérmens da sua emancipação política, que não a pode realizar, repetiremos, por
circunstâncias fortuitas”.1359 O monarca torna-se, então, um prócere da República.
Logo no parágrafo inicial de A missão artística de 1916, de Afonso d’Escragnolle
Taunay, encontramos referências positivas à figura e ao agir político de Dom João VI. De forma
tal que ele desconstrói a caricatura corrente, especialmente entre a povo, sobre o imperador:
No entanto, para aqueles que possuíam critérios e estavam isentos das paixões não
restavam dúvidas acerca dos esforços realizados junto à pátria pelo rei português.
Já Euclides da Cunha oferece, em seu Da Independência à República, uma visão
negativa sobre o último imperador do período colonial, arrefecendo o iberismo dos autores
acima estudados. Desde a Europa o príncipe já demonstrava, em tese, tibieza no comando
político lusitano, como nos casos do seu posicionamento ante Napoleão Bonaparte. A solução
encontrada é, como sabemos, a transferência da Corte para o Rio de Janeiro em 1808. Eis o
retrato de Dom João VI elaborado pelo autor d’Os sertões:
1358
BARBOSA, Antônio da Cunha Barbosa. Marechal Raimundo José da Cunha Matos (Notícia bibliográfica).
RIHGB, tomo LXVI, parte II, 1903, p. 108.
1359
BARBOSA, Marechal... op. cit., p. 108.
1360
TAUNAY, Afonso de E. A missão artística de 1816. RIHGB, tomo LXXIV, parte I, 1911, p. 5.
1361
CUNHA, Euclides. Da Independência à República. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1906, p. 17-18.
445
Quanto ao retorno de Dom João VI, eminente desde a Revolução do Porto, Euclides não
concebeu nenhuma estratégia política por parte do monarca, nem mesmo que esse ato
prefigurasse a Independência. Era tão somente, como em 1808, uma simples fuga.1362
Max Fleiuss também reabilitou, em Centenários do Brasil, a figura histórica de Dom
João VI, diferentemente de Euclides da Cunha. Desde príncipe as ações de Dom João seriam
importantes para a futura Independência do Brasil: “(...) é preciso estudar a figura desse
Príncipe, que foi o primeiro a enunciar a ideia de fundar no Brasil um novo império e que, não
obstante, é desenhado por grande número de historiadores como um indivíduo da menor
valia”.1363 Nos treze anos que esteve no Brasil constituiu um governo liberal, compreendendo
os interesses do novo reino, transparecendo os desejos de engrandecê-lo em termos de
civilização. Fleiuss ficava consternado com certas figurações do monarca bragantino
disponíveis no contexto, como esta de autoria de Felisbelo Freire, presente em sua História
constitucional dos Estados Unidos do Brasil: “D. João não tinha a perpendicularidade
decorativa de um estile; tinha bochechas, pernas inchadas, e, como sua esposa Carlota, não se
lavava nunca, crescendo, como os minerais pela justaposição do cisco”.1364 Fleiuss repudiava
essa forma de tratamento dada ao monarca, pois atentava contra a sua vida privada e estava
destituída de objetividade histórica. Ele esclareceu que fez questão de manter esta passagem ao
lado da rubrica do seu autor para que em contraste se pudesse desmenti-la pela análise factual.
Assim, após elucidar os fatos concernentes ao período joanino, pôde Max Fleiuss,
enfim, responder devidamente, e como historiador, aos “insultos” de Felisbelo Freire e, ao que
parece, a posição de Euclides da Cunha sobre a figura e o governo de Dom João VI:
A figura, portanto, grotesca com que alguns escritores apresentam D. João VI,
desaparece ante a evidência de fatos. Não podia ser medíocre um homem que
tantas provas deu de alto senso administrativo, abrindo os portos, fomentando
a colonização, animando as artes e os artistas estrangeiros e nacionais (...),
fundado o Real Teatro de S. João, protegendo em suma, de modo eficaz, todos
os serviços e ideias que se ligavam à civilização e ao engrandecimento da
pátria.1365
A posição da maioria dos sócios que se dispuseram a escrever sobre Dom João VI e
sobre o seu governo, excetuando Euclides da Cunha, era de positivação da herança ibérica. Para
1362
A interpretação de Euclides da Cunha sobre Dom João VI e seu governo, de certo modo estereotipada, vai ao
encontro da abordagem de Oliveira Martins, a qual permanece no imaginário político-historiográfico-social luso-
brasileiro. Cf. MARTINS, Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Livraria de Antônio Maria Pereira, 1880.
1363
FLEIUSS, Centenários... op. cit., p. 112.
1364
Idem., p. 113.
1365
Ibidem, op. cit., p. 118.
446
além de reabitarem moralmente a figura do último imperador da era colonial, era colocado em
luz alta o liberalismo das suas políticas, bem como a sua clarividência quanto à futura
Independência brasileira, sendo ele um participante direto do processo e o seu governo um
passaporte para realização dessa realização política. Uma leitura, no limite, ibero-liberal.
447
Capítulo 14 - A historiografia da Independência do Brasil no contexto da
Primeira República
Proclamada a República se fez necessário dotar de sentido essa nova experiência que se
abria, a qual, por meio de militares, colocou um ponto final em um regime político de cerca de
meio século. Era a construção de uma história única republicana. Nesse sentido, qual o lugar da
Monarquia na República? Mais ainda: como a República acomodou a experiência monárquica,
especialmente o processo de Independência, em suas ficções de fundação? Até a Proclamação
a data cívica mais importante para a nação era o 7 de setembro. As razões não são difíceis de
serem percebidas: o grito do Ipiranga representava o momento culminante do sentimento
nacional. A partir dele o Brasil seguia o seu destino de Colônia para se tornar o herdeiro da
dinastia bragantina. Mas era esse o olhar que a historiografia republicana projetava naquele
evento? Era ele um antecedente lógico e causal da República? Ou era um movimento que
suplantava o desejo por República advindo desde o período colonial? Essas e outras questões
acompanharam a produção historiográfica sobre a Independência do Brasil no IHGB na
Primeira República. A partir da sua persona acadêmica, pacifica scientiae occupatio, o Instituto
Histórico tomou para si o vaticínio historiográfico de mover pesquisas sobre a Independência,
ao mesmo tempo em que não se posicionava politicamente diante das querelas entre
republicanos e monarquistas,1368 pois o seu intuito estava para além das paixões. Se deseja o
1366
ARARIPE, Tristão de Alencar. Patriarcas da Independência. RIHGB, tomo LVII, parte I, 1894, p. 177.
1367
PEIXOTO, José Maria P. Duas palavras sobre D. Pedro I na época da Independência. RIHGB, LVI, parte II,
1893, p. 9.
1368
As posições dos monarquistas e dos republicanos no alvorecer republicano podem assim ser resumidas: “(...)
enquanto os monarquistas consideraram a implantação do novo regime um ‘golpe de Estado’ alheio à vontade do
povo e às necessidades da nação, decorrente da indisciplina do exército, do ressentimento do clero e de fazendeiros
prejudicados pela abolição da escravidão, os republicanos retomaram velhas críticas à monarquia – sua ‘exótica’
presença na América, o apoio no ‘despotismo’ do Poder Moderador e na corrupção política – e defenderam a
república como meta histórica, longamente protelada”. MARSON, Izabel Andrade. Do Império das “revoluções”
ao Império da “escravidão”: temas, argumentos e interpretações da história do Império” (1822-1950). História:
448
sentimento pátrio. Exatamente em razão dessa postura institucional e epistêmica o IHGB pôde
acomodar versões possíveis sobre o 7 de setembro que, de algum modo, representavam a
permanência e o confronto de diferentes tradições intelectuais acerca da sua historiografia.
Nas Efemérides brasileiras do barão do Rio Branco, publicada postumamente pela
Revista do IHGB em 1917, estão situados, como crônica, os principais feitos e os principais
fatos ocorridos em toda a história brasileira. Cabe lembrar que as Efemérides passaram a ser
comemoradas nas sessões do Instituto.1369 De certo modo, elas conformavam-se como a visão
oficial acerca dos principais acontecimentos ocorridos junto à experiência histórica brasileira.
Qual, pois, o conteúdo do 7 de setembro nessa história oficial republicana?
Segundo o barão do Rio Branco, o príncipe voltava de Santos quando, junto ao ribeiro
do Ipiranga, foi encontrado pelo sargento mor de milícias Antônio Ramos Cordeiro e pelo
emissário Paulo Bregaro. Eles traziam cartas e ofícios da princesa Leopoldina e do ministro
José Bonifácio dando notícias dos últimos acontecimentos em Lisboa. Tomou conhecimento
Pedro de Alcântara que as Cortes lisboetas não aprovaram o ato adicional à Constituição,
proposto por Fernandes Pinheiro, Antônio Carlos, Vilela Barbosa, Lino Coutinho e Araujo
Lima, relativo à organização particular e autonômica do Reino do Brasil com um governo e
com um congresso especiais. Tornava-se, então, urgente responder as medidas e as provocações
das Cortes, antes que novos decretos chegassem transmitidos oficialmente. Ademais, Dom
Pedro I não concordava com as restrições impostas ao seu ministro José Bonifácio, porquanto
era ele mesmo quem sancionava as articulações e os passos do ministério.
1371
Luís Cláudio Villafañe Santos deixa em evidência que o barão do Rio Branco é um historiador conservador,
subscrevendo as teses tradicionais inscritas da historiográfica brasileira na grande maioria dos seus temas: “A
independência, por exemplo, ele descreve como uma reação à tentativa das Cortes de submeter os brasileiros outra
vez ao jugo colonial. A existência do Brasil e dos brasileiros àquela altura é, naturalmente, dada como um fato
inquestionável”. SANTOS, Luís Cláudio Villafañe. O Barão do Rio Branco como historiador. Revista Brasileira,
ano 18, fase 7, n. 69, 2011, p. 24.
1372
OTÁVIO, Rodrigo. Festas nacionais. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C., 1893, p. 126.
1373
KÄFER, Eduardo Luis Flach. Entre a memória e a história: a historiografia da independência nos cem anos
da emancipação. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação História, PUC/RS, 2016, p.
35. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/6978 Acesso: 04 dez. 2020.
450
iberismo, de Rodrigo Otávio: “De que o fermento revolucionário preparava francamente a
reação de 17, contra o príncipe poltrão e sem vontade, contra a corte dissoluta e vadia, contra o
funcionalismo prevaricador, contra a massa dos portugueses monopolizadores do comércio, a
que chamavam de marinheiros”.1374 Já com relação ao destino manifesto da República no
Brasil, Otávio faz esta contundente consideração: “As tentativas revolucionárias que até então
tinham irrompido do seio do povo, bem claramente patenteavam a índole e o espírito do governo
que o país desejava”.1375 Em suma, a Independência do Brasil aborta o ímpeto revolucionário
do “espírito republicano” na forma de governo democrático:
Porém, essa leitura do passado colonial não deixa de apresentar, como querem Wilma
Peres da Costa e Eduardo Käfer, um caráter conservador no que tange aos projetos políticos e
de nação elaborados pelas elites republicanas. Ainda que assumamos a existência de tentativas
de elaboração da nacionalidade por meio da ruptura com Portugal, e que haja, de fato, revoltas
que ambicionam tal ensejo, as “associações entre a república e o Brasil eram marcadas por um
traço de continuidade”.1377 Efetuava-se, sobretudo entre os positivistas1378, uma elaboração da
memória nacional em que se colocava em evidência futuros-passados que não se concretizaram
no regime monárquico. A Proclamação da República era, nessa perspectiva, a confirmação, o
clímax, de uma teleologia de sentido iniciada no século XVII. Em vista disso, não se percebia
uma ruptura com o passado, mas o estabelecimento lógico e ôntico da Independência.
Sabemos que a República federativa ganhou maior sustentação política, mesmo com os
poderes oligárquicos minando a democracia, com a presidência do primeiro civil, isto é,
Prudente de Morais; enquanto isso Campos Salles, com o seu pacto entre os governadores,
1374
OTÁVIO, Festas... op. cit., p. 129.
1375
Idem, p. 116.
1376
Ibidem, p. 113.
1377
Eduardo Käfer é preciso quanto à dimensão continuísta da história na República: “Esse mesmo topos
demonstra o caráter conservador de boa parte dos projetos de Estado e de nação pensados pelas elites republicanas.
Mesmo que possamos concordar que houve tentativas de construir a nacionalidade enfatizando a ruptura com
Portugal e, louvando algumas revoltas ocorridas no período colonial e imperial, as associações entre a república e
o Brasil eram marcadas por um traço de continuidade”. KÄFER, Entre a memória... op. cit., p. 35; Cf. COSTA,
Wilma Peres. A independência na historiografia brasileira. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e
historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005.
1378
Cf. CARVALHO, A formação... 1990.
451
solucionou as principais rivalidades estaduais. Contudo, mesmo com o triunfo do federalismo
o ideário positivista manteve-se atuante no plano historiográfico, direta ou residualmente. Ele
apregoava a necessidade de um governo centralizado, forte e autoritário, na medida em que
concebia as estruturas sociais corrompidas. Isso ocorreria a partir de uma purificação moral
daquilo que se fazia importante no passado e que podia apresentar-se, correlatamente,
exemplarmente no presente.1379 Historiograficamente esse movimento epistêmico-temático
impactava a forma de elaborar a memória nacional, dado que figuras como Bonifácio, Pedro I,
Diogo Feijó e Pedro II, Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant e Floriano Peixoto
apresentavam-se como líderes exemplares. Todos eles, nessa valorização do passado
monárquico e de afirmação republicana, eram percebidos como antidemocráticos e
antifederalistas, quer dizer, eram projeto políticos autoritários e conservadores que embasavam
esses usos políticos do passado imperial.
Enquanto isso, os desencantos e as desilusões com a República, que já se afloravam na
década de 1910, também tinham impactos na própria forma como determinada parcela,
especialmente entre aqueles que se arrogavam historiadores, da intelectualidade brasileira
abordava o passado. Havia, como vimos, uma revalorização do passado monárquico não só
como precursor da República, mas, também como forma de nutrir essa carência de orientação
advinda da crise da consciência histórica iniciada no Brasil da década de 1900.
Nós que vivemos em uma época sem fé e sem princípios, de puro materialismo
político, não compreendemos as aspirações que os nossos pais se nutriam
naqueles tempos memoráveis. Era o entusiasmo da juventude política; era o
despertar da nação iluminado pela liberdade que espargia o seu clarão, qual
sol brilhante da primavera, chamando à vida a natureza entorpecida por um
longo inverno.1380
1379
Cf. LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República: uma
interpretação. In: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2006; KÄFER, Entre a memória... op. cit., 2016.
1380
PEIXOTO, Duas palavras... op. cit., p. 8.
452
trabalharam”, a “luminosa lição” de um perfeito patriotismo, que urge ser aprendida e posta
“em prática pelas almas, pelos corações e pelos braços de toda a geração presente”.1381 A
presença do passado monárquico incidia sobre o próprio agir político dos cidadãos e das
cidadãs. Eis uma amostra breve das guerras de memória sobre o sentido da Independência, bem
como os usos políticos desse passado na República.1382
1381
MAGALHÃES, Basílio. Jornalistas da Independência. RIHGB, tomo 82, parte II, 1917, p. 809.
1382
Wilma Peres Costa resume esse horizonte conflitivo acerca da memória da Independência na historiografia:
“o amálgama peculiar entre continuidades e descontinuidades tornou-se um componente incontornável do debate
sobre a Independência na historiografia brasileira. COSTA, A independência... op. cit., p. 62.
1383
DÓRIA, Franklin (barão de Loreto). A Independência do Brasil, ensaio histórico. RIHGB, tomo LIX, parte II,
1896, p. 151.
453
“ditatorial”, que fez eclodir no Brasil o movimento que resultou na Independência. Assim, não
acompanhamos no desenrolar dessa narrativa uma tomada de consciência nacional por parte da
sociedade brasileira em si. Na escrita da história da Independência do barão de Loreto os
sujeitos não eram os responsáveis pelos fatos em torno da Independência - tudo era decorrido
dos acontecimentos políticos. Não havia, consequentemente, participação popular, pois tudo
ocorrera a partir de um intricado jogo de forças da alta política.1384
As Cortes de Lisboa almejavam, desde a sua instituição, “recolonizar o Brasil”,
adotando, segundo o barão de Loreto, medidas “vexatórias” e “desorganizadoras”. Criaram-se
juntas eletivas nas províncias sujeitas ao congresso e ao governo português. Além disso,
capitães generais, governadores ou comandantes de armas, magistrados e empregados da
fazenda eram submetidos à autoridade das Cortes e do monarca. Por fim, decretara-se que Pedro
de Alcântara regressasse, anulando, dessa maneira, a delegação dos poderes que a ele foram
confiados. Em 10 de dezembro de 1821 o Brasil deixou de ser Reino Unido à Portugal. O que
se verifica é que diante da intransigência das Cortes a política brasileira agiu de maneira reativa.
Os desdobramentos que levaram ao 7 de setembro não foram articulados e orquestrados por
líderes carismáticos, bem como não eram oriundos do clamor popular. Eram unicamente
decorrentes de fatos políticos ocorridos não de forma prefigurada por algum tipo de motor da
história, mas, sim, frutos do acaso e das circunstâncias do tempo. A Independência brasileira
foi, para o barão de Loreto, uma reação ao autoritarismo político português. Não deixava de
ser, então, a narração de um jogo político e uma luta por interesse de elites.
A postura geral dos deputados brasileiros nas Cortes era sintomática, para Dória, da falta
de sentimento nacional como motor emancipacionista:
O que há, por meio da escrita da história do barão de Loreto, é uma narrativa que se desenvolve
somente no plano político partidário oficial. E percebe-se que mesmo nessa instância, a da alta
política, não tem o Brasil, isso já em 1821, aspirações independentistas. No limite, na narrativa
1384
Vê-se que, de certo modo, a produção historiográfica de Franklin Dória está relativamente distanciada das
novas perspectivas que se desenvolvem entre os historiadores mundo afora, inclusive, no IHGB da Primeira
República. Essas novas abordagens confrontam, com intensidade progressiva, os pressupostos do saber histórico
consagrados no século XIX, considerados “tradicionais” e adstritos a uma perspectiva político-administrativa. Cf.
IGGERS, Georg G. Historiography in the twentieth century: from scientific objectivity to the postmodern
challenge. Hanover and London: Wesleyan University Press, 1997.
1385
DÓRIA, A independência... op. cit., p. 155.
454
do barão de Loreto o Brasil não vislumbra a sua liberdade diante da metrópole. Se observa,
apenas, certa autonomia política, porém no plano social não é desejada a perda dos vínculos,
político e afetivo, com os portugueses.1386
Somente esse movimento reativo por parte dos brasileiros e das brasileiras suscitava
certo patriotismo, mesmo que advindo de órgãos oficiais: “Entretanto, o Rio de Janeiro, a
província de São Paulo, e depois a de Minas Gerais dirigiram a D. Pedro representações,
ardentes de patriotismo, contra a execução de tais decretos”.1387 Assim, Pedro de Alcântara
tomava partido e decidia apoiar o Brasil diante das arbitrariedades das Cortes. Enquanto regente
ele reorganizava os ministérios, abrindo espaço para a atuação decisiva de José Bonifácio. Além
disso, ele decidiu permanecer no Brasil, contrariando as ordens portuguesas. Era o evento do
“Fico”. Mas as Cortes imprimiram, diante dessa decisão, uma série de sanções ao Brasil. Em
vista disso, Pedro de Alcântara começou, então, a articular os setores políticos brasileiros: “O
Príncipe já então prevenia que a opinião a eles contrária se tinha estendido e arraigado de
maneira que lhe parecia impossível cumpri-los”.1388 Havia um momento de participação da
população, mas no bojo da reação brasileira ao autoritarismo português, não como difusão de
um sentimento nacional, ou de defesa de uma comunidade imaginada autônoma, ocorrido na
Bahia: o brigadeiro Inácio Luís Madeira, governador de armas da Bahia, foi impedido de tomar
posse por partidários da causa independentista. Estamos em fevereiro de 1822. Somente como
reação que setores da sociedade brasileira se atreveram a encampar a causa política.
Conforme os acontecimentos se desdobraram mais autoritárias as Cortes se portaram.
Os decretos de 23 de junho acirraram ainda mais os ânimos políticos. Todos eles assegurando
poderes às Cortes e ao monarca diante das pressões dos(as) brasileiros(as). “Antes, porém, de
serem conhecidos entre nós os preditos decretos de 23 de julho, na cidade do Rio de Janeiro
seguiram-se outros sucessos, que muito concorreram para acelerar a marcha da nossa
independência”.1389 Foi nesse cenário, portanto, que o príncipe Pedro de Alcântara aceitou, sem
hesitação, o título de Defensor Perpétuo do Brasil.
1386
Acreditamos que essa leitura da Independência do Brasil naturaliza e oculta a violência impressa no
movimento, especialmente em suas províncias. Narrativas como a de Franklin Dória, no entender de Sonia Regina
de Mendonça, trazem consigo o “ocultamento da violência presente na história do Brasil em geral, e naquela sobre
a independência em particular, marcado pela secundarização atribuída às guerras da independência ocorridas entre
1822-1824 em inúmeras províncias. MENDONÇA, Sonia Regina. A independência do Brasil em perspectiva
historiográfica. Revista Pilquen, Ano XII, n. 12, 2010, p. 3. Disponível em: https://cutt.ly/McL3KoL Acesso: 08
abr. 2021.
1387
DÓRIA, A independência... op. cit., p. 165.
1388
Idem, p. 151.
1389
Ibidem, p. 166.
455
A narrativa de Dória chega ao clímax com o brado “Independência ou morte”, ocorrido
em São Paulo no dia 7 de setembro. “Dentro de pouco tempo, o mágico brado do Ipiranga, de
boca em boca repetido com as mais vivas demonstrações de regozijo, ecoou auspicioso por
todos os ângulos do Brasil”.1390 Não existia aspiração popular pela Independência, tampouco
eram colocados em evidencias os diversos grupos políticos presentes no movimento. A
Independência só tomava feição própria após um ato político. Somente a partir daí, das
sequências políticas lideradas por Dom Pedro I diante das medidas das Cortes lisboetas, que o
sentimento nacional, aquele “regozijo”, afloraria.
Max Fleiuss corrobora com a argumentação do barão de Loreto acerca da Independência
como um desdobramento político incontrolável. Para ele, Pedro I não só era o responsável direto
pela Independência política, como, também, estava à frente dos acordos de reconhecimento,
que terminaram em 1825, do Império brasileiro com as demais nações mundiais. ”Honremo-
los, [Pedro I e Bonifácio], porque a eles deve o Brasil duplamente a sua emancipação política,
pelo gesto do Ipiranga e pela sanção oficial que dele fez a Portugal, capitulando conosco e
sagrando cortesmente os nossos direitos de povo livre, pelo tratado de paz e aliança, cujo 1°
Centenário hoje corre”.1391 Ou seja, passado o consagrado grito do Ipiranga todos os empenhos
“cifravam em erigir as dignidades e foros de pessoa livre de Direito das gentes do novel Estado
sul-americano”.1392 Para esse concurso o imperador foi decisivo. Na narrativa de Fleiuss, assim
como na de Loreto, foram os desdobramentos políticos, portanto, que se transformaram em
vórtice do sentimento nacional.
1390
Ibidem, op. cit., p. 170,
1391
FLEIUSS, Max. Primeiro Centenário do tratado de reconhecimento da Independência. RIHGB, tomo 97, parte
I, 1925, p. 359.
1392
FLEIUSS, Primeiro... op. cit., p. 359.
456
Instituto nos anos 20, além de ser presença, indireta e não sem controvérsia, nas comemorações
do centenário do 7 de setembro em 1922.
A História da Independência do visconde de Porto Seguro logo revelou-se canônica,
colocando à margem tradicionais interpretações sobre o movimento, tais como a História dos
principais sucessos políticos do Império do Brasil (1827-1830), do visconde de Cairu, a
História da fundação do Império (1864-1868), de Pereira da Silva e a História do Brasil reino
e do Brasil império (1871-1873), de Alexandre José de Melo Morais. Ela se tornou uma
“construtora de discursividade”,1393 na medida em que oferecia suporte para a interpretação da
Independência a partir da proposta e da solução imperial.1394 O livro póstumo de Varnhagen se
coadunava às carências de orientação próprias dos anos 1910, isto é, a desilusão republicana
permitia uma nova disposição temática-epistêmica-narrativa por parte de alguns sócios que
apostavam na valorização do passado imperial.
A interpretação de Varnhagen sobre a Independência é conservadora. Ela salienta que a
formação do Estado-nação no Brasil é resultado de uma continuidade histórica do Estado
português, ilustrado e civilizador, sendo Pedro II, um Bragança, o elo que une a antiga
Metrópole ao recém independente país. Essa relação com os portugueses, em que não há um
movimento de separação até a Revolução do Porto em 1820, pode ser vislumbrada na narrativa
de Varnhagen a partir dos pedidos e dos estudos enviados ao Senado da Câmara solicitando a
permanência de Dom João VI. Varnhagen sinaliza, então, que no Brasil, até 1820, não há um
movimento organizado, muito menos clamor popular, pelo fim da união com Portugal.1395 De
acordo com a narrativa do visconde:
1393
Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, SP: Edições Loyola, 1996.
1394
KÄFER, Entre a memória... op. cit., 2016.
1395
Helena Miranda Mollo salienta que a temática da Independência do Brasil não pode ser abordada fora do
planejamento da História geral: “A independência, entretanto, não pode ser vista fora do plano da História geral
mesmo após o seu corte, e percebe-se sua presença, quando Varnhagen promove uma espécie de linearidade entre
a conquista portuguesa e os acontecimentos que culminam em 1822; e aí se expressa um primeiro critério para a
história, segundo Varnhagen: ela é vista como a sucessão natural dos acontecimentos. Assim, a história da
colonização portuguesa e a construção do Estado brasileiro se entrelaçam, não se oferecendo como oposições na
obra do historiador sorocabano.” MOLLO, Helena M. “Varnhagen e a história do Brasil”. Anais XXIII Simpósio
Nacional de História – ANPUH. Londrina: UEL, 2005, p. 1.
1396
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da Independência do Brasil. RIHGB, tomo LXXIX, parte I,
457
Também em Portugal, mesmo após as agitações da Revolução do Porto, em que a maior
consequência é o retorno de Dom João VI e o estabelecimento de uma Monarquia
constitucional, não havia uma unanimidade em rebaixar o Brasil da categoria de Reino Unido.
O estudante Antônio de Oliva de Sousa Siqueira, por exemplo, publicou dois estudos que
repercutiram no país. Ele falava de uma constituição geral para o Reino Unido, em que se
sugeria o Rio de Janeiro, ou a Bahia, como a sede da capital. Projetou um congresso no Brasil,
onde todas as possessões ultramarinas possuíam representação, sendo que o rei nomeava um
vice-rei para Portugal. Trabalhava-se com a hipótese do retorno do rei e do príncipe para o
Brasil. Elaborou uma série de projetos visando o melhoramento social do Reino. Para
Varnhagen, “Depois de provar que interessava a Portugal seguir a união com o Brasil, e aos
brasileiros a união a Portugal, deduz que a política dos portugueses da Europa, para sustentarem
essa união, devia ser a conservação da metrópole no Brasil”.1397 Havia, então, a percepção por
parte de certa intelligentsia lusa que o Brasil regeneraria Portugal.
Varnhagen é claro neste ponto: até a interferência das Cortes na política brasileira não
se verifica projetos de emancipação que arregimentem brasileiros e brasileiras, tampouco na
vida política localiza-se pretensões separatistas. Afirma Porto Seguro:
Uma inovação historiográfica praticada nessa obra tardia, pensando que ela
provavelmente foi escrita entre 1860 e 1870, de Varnhagen é a seguinte: a Independência não
era o resultado da ação de um indivíduo isolado e senhor absoluto das suas atitudes, tampouco
regido pela providência divina que conduzia tudo. O movimento de emancipação era, para o
visconde de Porto Seguro, derivado do devir histórico e estava destituído de dimensões
metafísicas, isto é, o processo histórico brasileiro não era regido por uma força sobrenatural que
acomodava todos os eventos e todas as situações no tempo. Além disso, havia a ampliação dos
sujeitos e dos grupos participantes no movimento emancipacionista, bem como uma explicação
possível e racional para se compreender a herança portuguesa do jovem país. A Independência
1916, p. 71.
1397
VARNHAGEN, História... op. cit., p. 73.
1398
Idem, p. 121.
458
era, para o visconde, resultado da atmosfera política luso-brasileira dos anos 1820-1822, mais
especificamente ela ocorreu como uma forma de antecipação das resoluções autoritárias das
Cortes de Lisboa:1399 “Eram, porém, as resoluções tomadas pelas Cortes que careciam com
urgência de ser prevenidas, antes que chegassem oficialmente”. (...). “Não lhe restava, pois,
mais que uma de duas resoluções a tomar; ou proclamar de todo a independência, para ser herói,
ou submeter-se a cumprir e fazer cumprir os novos decretos das Cortes”.1400
Além disso, a perspectiva historiográfica de Varnhagen tornava plural o movimento,
posto que havia vários sujeitos e grupos políticos com diferentes projetos de Brasil envolvidos
nessa trama. Isso implica a suspensão da memória disciplinar advinda especialmente do
posicionamento de Pereira da Silva, que posicionara individualidades específicas como as
responsáveis únicos pelo todo do processo:
1399
Martha Victor Vieira entende que Varnhagen concebe a política das Cortes como fator de agregação das
províncias brasileiras: “A política das Cortes, porém, teve uma positividade porque fez as províncias se unirem
em prol da separação, o que favoreceu a unidade. Esse aspecto da narrativa nos parece bastante pertinente, na
medida em que ele argumenta que a união do “Brasil num só Estado”, congregando, de norte a sul, províncias tão
distantes entre si, foi beneficiada pela oposição às atitudes das Cortes”. VIEIRA, Martha Victor. Varnhagen: um
intelectual monarquista. Revista Intelléctus, ano. 5, vol. III, 2006, p. 7. Disponível em: https://cutt.ly/kcZWfbD
Acesso: 08 abr. 2021.
1400
VARNHAGEN, História... op. cit., p. 185.
1401
Idem, p. 108.
1402
Esse apontamento é da lavra de Arno Wehling em WEHLING, Arno. Estado, história, memória: Varnhagen e
a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
459
espécie de regente de todas aquelas vozes, e se retraía perante as tentativas portuguesas de tirá-
lo do Brasil, crescia o número de adeptos da causa emancipacionista. Esse movimento se acirrou
ainda mais com a possibilidade do fim da regência e a consequente impossibilidade da
Independência, bem como no momento em que foi sugerido o servilismo das províncias diante
das Cortes de Lisboa. De todo modo, o processo de Independência, em Francisco Adolfo de
Varnhagen, se estabeleceu pela rearticulação dos interesses e dos desejos que levavam à
estruturação do Estado. O sentimento nacional caminhava em Porto Seguro lado a lado com a
formação do Estado, quando não era dependente do mesmo.1403 Por exemplo: por intermédio
de um manifesto
1403
Em decorrência disso, a sua narrativa histórica, mais do que estabelecer uma memória, imprime uma ação e
uma prática de ordem política entre os seus contemporâneos, a qual se coaduna com a instituição monárquica.
Assim, assinala o seguinte Nilo Odália: “A história e o historiador, nesse instante, (...) se transfiguram no
instrumento de ação no presente, com os olhos voltados para o futuro”. ODÁLIA, Nilo (org.). Varnhagen: História.
São Paulo: Ática, 1979. p. 18.
1404
VARNHAGEN, História... op. cit., p. 173-174.
1405
Essa posição já está presente na História geral do Brasil. José Carlos Reis afirma que “Varnhagen defende a
presença portuguesa no Brasil, é compreensivo com os seus erros e despotismo. A independência não foi
prejudicial porque garantiu a continuidade do Brasil colonial no nacional: um Brasil português”. REIS, José Carlos.
Anos 1850: Varnhagen. O elogio da colonização portuguesa. In: _____. As identidades do Brasil 1: de Varnhagen
a FHC. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2007, p. 47.
1406
VARNHAGEN, História... op. cit., p. 173-174
460
nacionalidade. Percebesse isso na narrativa de Varnhagen logo após a Independência, no
momento em que Pedro I conclama a população para aderir a causa: “Continuava
recomendando a todos a união, não só por dever, mas porque a pátria ‘estava ameaçada de
sofrer uma guerra’, e não hesitava em dizer que daí por diante a divisa do Brasil devia ser
independência ou morte”.1407 Em sua História da Independência, o visconde de Porto Seguro
caracterizou como eixo diretor do movimento independentista a ação de ordenamento social
orquestrada pelo jovem Estado esclarecido e civilizador. A nacionalidade era, aqui, ôntica e
logicamente posterior ao Estado.1408
Esse era, então, o fio condutor de sentido criado por Varnhagen. Era um processo
passível de racionalização, posto que arregimentava homens e mulheres através de um telos.
Porém, o fator social do político era levado em consideração na história de Varnhagen,
sobretudo, por meio do seu domínio sobre a empiria, que o deixava seguro frente às filosofias
especulativas. Essa premissa fazia com que a sua história não fosse fechada em si mesma. O
visconde habilmente historicizou as ações humanas dentro de uma ótica político-social,
explicando as suas atitudes e as suas intenções no tempo e no espaço. O caso da narrativa da
Independência era sintomático, pois havia, ali, a acusação de que o sentimento de nacionalidade
advinha da atuação estatal em prol da emancipação, como também se elucidava as
condicionantes sociais envolvidas nesse processo:
Era pela via da atuação forte e enérgica, para não dizer autoritária, do recém-criado
Estado que se garantia tanto a soberania quanto o sentimento nacional. O ordenamento social
do Estado era fundamental para a união dos brasileiros e das brasileiras à custa do apagamento
1407
Idem, p. 188.
1408
A esse respeito, da nação imaginada a partir da construção do Estado, vale a colocação de Ruth Gauer Chittó:
a “(...) historiografia brasileira tem, ao longo dos séculos XIX e XX, procurado explicar a substancialidade nacional
reatualizando o mito, a metáfora de uma identidade imaginada. O evento fundador vincula-se à necessidade de
criar um sistema de representações que permita aos cidadãos brasileiros participarem, como uma coletividade, da
noção de pertencimento. O discurso - a maneira como foi construído o sentido que influenciou e organizou a ações
e as concepções que temos de nós - inscreve-se na história da fundação do Estado”. CHITTÓ, Ruth Gauer.
Violência e medo na fundação do Estado-Nação. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 1, n. 2, 2001, p. 80.
Disponível em: https://cutt.ly/TcLItqV Acesso: 08 abr. 2021.
1409
VARNHAGEN, História... op. cit., p. 187.
461
dos diversos projetos de Brasil existentes, notadamente regionais. Só se poderia pensar uma
identidade nacional a partir das ações governamentais que aplacavam as diferenças societárias.
O Estado era, no limite, o guardião da nacionalidade que se desejava. Eis o papel, então, do
ministério de José Bonifácio nos meses subsequentes à proclamação da Independência:
Desse mesmo dia 2 de novembro foi datada uma portaria, em que José
Bonifácio ordenou ao intendente que, sem perda de tempo, houvesse de
proceder a uma rigorosa devassa sobre as pessoas já infamadas na opinião
pública como facciosas e perturbadoras da ordem, conspirando contra o
governo estabelecido, propagando contra ele através calunias, e pretendendo
excitar entre o povo a discórdia e a guerra civil, derramar sangue dos cidadão
honrados e pacíficos e cavar até aos alicerces a ruina do nascente Império.1410
1410
Idem, p. 226-227.
1411
Ibidem, p. 253.
462
patriarca da Independência caso haja um sujeito histórico “que por iniciativa antecipada e
poderosa” propague e dê impulso “por seus atos e opiniões o pensamento libertador”. 1412 Para
Araripe, não havia esse líder carismático no processo da Independência. Moreira de Azevedo
demonstrou essa tese ao narrar o dia do “Fico”, em que Pedro de Alcantara não tomou a
iniciativa a partir da sua tomada de consciência:
1412
ARARIPE, Patriarcas... op. cit., p. 168.
1413
AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira. A Independência do Brasil. RIHGB, tomo LX, parte II, 1897, p. 97.
1414
AZEVEDO, A Independência... op. cit., p. 97.
1415
ARARIPE, Patriarcas... op. cit., p. 169.
463
de emancipação das diversas regiões do Brasil.1416 Não havia, em suma, um movimento
político-social de Independência.
Doravante, para Araripe os movimentos políticos quando não partiam de ações e de
atitudes de certas comunidades ou de certos de líderes, manifestavam-se pela circulação de
ideias; um domínio eficaz e poderoso que podia decidir revoluções ou reformas sociais. É isso
que acontece no Brasil em 1822. A ideia de independência surge espontânea “no ânimo de todos
os brasileiros; ela foi simultânea em diversos pontos do país, de maneira que ao primeiro brado
ela generalizou-se, não podendo quase dizer-se com certeza onde esse brado primeiro levantou-
se”.1417 Vê-se que em Araripe é a ideia que orienta a ação, e não o contrário. Quanto maior a
disseminação da ideia de emancipação, maior os adeptos que visam realizá-la. Moreira de
Azevedo também compreende que da ideia de emancipação precede o próprio agir político,
emergindo de maneira espontânea: “Surgiu essa ideia no ânimo de todos os brasileiros, e
operou-se aceleradamente, porque era o voto popular. Não foram os homens, que guiavam os
fatos, mas fora os fatos que correram diante dos homens. A liberdade do Brasil foi obra mais
da natureza do que dos seus filhos”.1418 Em vista disso, Araripe assume que desde a partida de
Dom João VI a Independência nacional é uma opinião “assentada no ânimo dos Brasileiros”.1419
Não é difícil acompanhar que Tristão de Alencar Araripe trabalha com categorias que
agenciam o agir: as ideias dão forma a práxis, o pensamento orienta o ânimo, a opinião
movimenta os agentes. É por meio das ideias, que surgem espontaneamente, que as opiniões
em torno da causa emancipacionista se avolumam, e o povo passa a tomar parte no certame: “A
voz popular, a nascente imprensa e todos em geral sentiam a força da opinião. Era ela tão
manifesta, que o próprio rei não duvidava do seu próximo êxito”.1420
Assim, tudo no país, por intermédio de uma ideia que nascia espontânea e se difundia
pluridimensionalmente, transparecia independência, sem que, aliás, aparecesse um autor ou um
líder conhecido que pudesse ser apontado como o propagador de tal pensamento, cujo êxito
implicava na formação autônoma de um povo. A verdade histórica sobre esse movimento para
1416
Luisa Rauter Pereira demonstra que o conceito de povo emerge com vigor no Brasil a partir da Revolução
Constitucionalista de 1820, em Portugal. Segundo a pesquisadora, o “(...) conceito, que antes ganhava grande
recorrência na forma plural – povos – passou a aparecer no debate político mais frequentemente na sua forma
singular, uma vez que agora se tratava para muitos do povo como totalidade da nação”. PEREIRA, Luisa Rauter.
O conceito político de povo no período da Independência: história e tempo no debate político (1820 - 1823).
Revista Brasileira de História, vol. 33, n. 66, 2013, p. 32. Disponível em: https://cutt.ly/jcZyhpZ Acesso: 08 abr.
2021.
1417
ARARIPE, Patriarcas... op. cit., p. 169.
1418
AZEVEDO, A Independência... op. cit., p. 98.
1419
ARARIPE, Patriarcas... op. cit., p. 170.
1420
Idem, p. 170.
464
Araripe é que as formas adequam o real, como pode ser visto neste excerto: “O rei, o príncipe,
a população, todos em suma, sentiam a força e o desenvolvimento da ideia emancipadora; todos
previam e esperavam o efeito da explosão; mas ninguém via o promotor d’essa ideia, que
parecia mais uma insurreição dos espíritos do que uma combinação de vontades”.1421 Mais uma
vez as categorias mobilizadas por Araripe informavam a precedência da ideia sobre o agir, posto
que se fala em “espíritos” em “combinação de vontades”. Havia materialidade na noção de ideia
do Conselheiro, dado que ela agenciava realidades histórico-sociais.
José Maria Pinto Peixoto argumentou, nesse sentido, que o país estava dividido em duas
grandes correntes políticas: a liberal e a absolutista. De todo modo, existiam ideias circulando
de separação de Portugal, o que, para esse autor, oferecia as condições ideais para as medidas
de Pedro de Alcantara e de seus ministérios. Eis, então, o impacto das ideias nos movimentos
políticos: “Enquanto os pensamentos comuns entre os homens políticos não têm achado o
centro, onde fecundam e organizam, diz um célebre publicista, que nada se efetua, pois as
revoluções não passam de ideias, sendo esta comunhão que forma os partidos”.1422 A
Independência como ideia significava, em Peixoto, que antes mesmo dos desdobramentos
políticos mais imediatos havia uma comunhão de pensamentos razoavelmente articulada sobre
a separação entre Portugal e Brasil, havendo participação parlamentar e popular. A ideia era
uma forma, uma moldura, que orientava o agir humano.1423
1421
Ibidem, p. 162.
1422
PEIXOTO, Duas palavras... op. cit., p. 8.
1423
As abordagens de Tristão de Alencar Araripe e de Moreira de Azevedo endossam a tese de Anthony Smith
sobre o fenômeno da emergência das nacionalidades modernas. Para o autor, a “invenção da nação” é uma
recomposição inédita de elementos intersubjetivos já existentes, associada à ideia de que só se pode encetar um
sentido “nacional” a certos conjuntos elementares de natureza identitária quando os próprios contemporâneos lhes
atribuem tal condição”. SMITH, Anthony. Myths and memories of the nation. New York: Oxford University Press,
1999.
1424
PEIXOTO, Duas palavras... op. cit., p. 9.
465
desejo de tornar a ideia de emancipação factível se irradiava por todo o país. Aqui surgia o
papel de D. Pedro como o catalisador da ideia de emancipação. Em resumo:
O triunfo da causa do Brasil foi devido ao acordo dos brasileiros e aos auxílios
locais, sem ação alguma geral, partida de um centro ativo, que tudo reunisse.
O príncipe apenas constituía o alvo das esperanças, que desenvolvia as forças,
e dava-lhes energia. Sendo assim, conclui-se, que ninguém dominou os
acontecimentos, e ninguém pôde atribuir a si o êxito da luta.1425
A luta termina em favor do Brasil, pois o povo auxiliou e orientou a causa emancipatória.
Azevedo possui juízo semelhante: a ideia emancipacionista fez do povo protagonista.1426 Pedro
de Alcantara, guardadas as suas virtudes cívicas e a sua ação pragmática no desenrolar dos
eventos, foi um instrumento da vontade popular. “Irrompia o pensamento emancipadora por
todos os poros da nova sociedade, e era conhecida e evidente a vontade do povo para realizar a
sua Independência. E por si só o Brasil a faria”.1427
Se fica resolvido que a Independência não era obra de uma individualidade, que não
havia um iniciador da ideia de emancipação, que não tivemos protagonistas, a quem, então,
chamar de “patriarca da Independência”? Intenção do programa historiográfico de Tristão de
Alencar Araripe. Mesmo não aparecendo um líder carismático que arregimentasse a população
no processo de Independência, havia, naquela situação histórica, sujeitos com “caracteres
nobres e generosos”,1428 que pela causa patriótica distinguiram-se em termos de relevância. Os
personagens que batalharam na causa da Independência com destaque foram: Dom Pedro de
Alcantara, José Clemente Pereira e José Bonifácio de Andrada.
Pedro de Alcantara estando à frente do governo e dispondo, então, de força pública e
dos cofres nacionais tornou-se vital para o concurso em prol da causa da Independência. O
posicionamento do príncipe diante do desejo nacional era vantajoso. Ele apareceu como o mais
poderoso elemento de trinfo que a causa podia contar. Segundo Araripe:
No Brasil ninguém tem mais nem tamanho poder como ele; portanto ninguém
prestou maior nem igual serviço ao que ele prestou à causa emancipadora. Ele,
pois, em atenção à importância do auxílio, é também o primeiro, que deve ser
enumerado entre os propugnadores do Independência. Sem o seu concurso a
1425
ARARIPE, Patriarcas... op. cit., p. 173.
1426
Esse protagonismo do povo vai em direção às reformulações na historiografia colocadas em prática durante a
Primeira República brasileira. Não é mais o Estado-nação a personagem mais destacada nas narrativas
historiográfica, mas o povo. Ele participa de uma difícil equação que visa explicar a formação da nacionalidade
brasileira. Cf. NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro,
1870/1920. São Paulo: Anablume, 1998.
1427
AZEVEDO, A Independência... op. cit., p. 99.
1428
ARARIPE, Patriarcas... op. cit., p. 174.
466
independência do Brasil não se houvera feito nem tão cedo, nem tão isenta das
calamidades da guerra fratricida.1429
Moreira de Azevedo é da mesma posição. Pela postura que o príncipe regente ocupou no
contexto era impossível não lhe conferir certo papel de protagonismo. Através dele a ideia de
emancipação se generalizou rapidamente. A sua participação no processo da Independência foi
decisiva, na medida em que ele teve a possibilidade de batalhar ao lado dos portugueses, o que
certamente dificultaria o andar dos acontecimentos. Assim, Azevedo traça o seu perfil ao lado
das suas motivações para encampar a causa brasileira:
José Clemente também batalhou pela causa nacional, porém, em outro flanco. Os
portugueses residentes no Brasil 1822 se dividiram entre a negação da Independência e a
aceitação da liberdade brasileira. José Clemente foi o hábil articulista que encaminhou esse
grupo para a causa dos independentistas. Isso não era de somenos importância, posto que ter
como aliados os portugueses fortalecia o preito moralmente. O magistrado era bem situado e
possuía boa reputação entre os servidores públicos da capital. “Não representava ele um só
indivíduo, porém uma classe, um partido, uma nacionalidade”.1431
Enquanto isso, José Bonifácio pode ser considerado um ator histórico decisivo no
processo de Independência pelo fato de ser um hábil homem de Estado que fixou e que dirigiu
as ideias de Pedro de Alcantara no momento exato em que ele devia resolver a grande questão
nacional. Bonifácio foi importante por ter ajudado a dissipar a dúvida atormentadora do ainda
Pedro de Alcantara sobre aquele momento histórico: lutar pela manutenção dos laços entre os
“Reinos irmãos” ou se decidir pela luta dos brasileiros. Bonifácio foi, então, o mentor de Dom
Pedro no que tangeu a escolha pela nova pátria. Está aí, então, o clímax político do enredo da
Independência para Araripe: “Então o príncipe e o ministro entraram na via franca e decidida
da independência nacional, e o brado do Ipiranga ecoou de leste a oeste e do sul ao norte,
dissipando todas as dúvidas, e colocando o Brasil em frente às imprudentes cortes portuguesas,
que nos provocaram”.1432
1429
Idem, p. 175.
1430
AZEVEDO, A Independência... op. cit., p. 99.
1431
Idem, p. 101.
1432
ARARIPE, Patriarcas... op. cit., p. 176.
467
Pedro Calmon e o espírito de emancipação
1433
Fernando Catroga mobiliza uma conceituação segura para a ideia de pátria que nos faz compreender a sua
significação nas interpretações histórica na Primeira República. Assim, “é a partir da ideia e do sentimento de
pátria que comunidades e grupos narram a história que os identifica (e os constrói) como famílias alargadas e como
comunidades étnico-culturais”. CATROGA, Pátria... op. cit., 2013, p. 13.
468
um americanismo na sua história da Independência. Ela é, então, um desdobramento lógico
daquele sentimento pátrio nascido no século XVII.
Um exemplo dessa narrativa de sentido está em Hermenegildo do Amaral, que a partir
de um estudo sobre a Conjuração Baiana de 1798, segundo ele pouco conhecida no começo do
século XX, mas que é vital para os acontecimentos envolvendo o 7 de setembro, refaz a
ancestralidade da ideia emancipacionista brasileira:
Amaral salienta que não se deve desarticular logicamente esses três movimentos da causa
independentista de 22, porquanto são irmãos na luta e na reinvindicação por liberdade. Eles são
fundamentais em sua argumentação historiográfica ante as políticas da memória. Eles se
concatenam e são sintomas de um mesmo Estado de espírito político e social.
Dito isso, no momento da Revolução do Porto, em 1920, a qual leva Portugal a tornar-
se uma Monarquia Constitucional, Calmon adverte que já existe um clima emancipacionista no
Brasil. A população livre, as autoridades locais e o clero são os sujeitos que experimentam essa
atmosfera; proporcionado, sobretudo, pela Revolução Pernambucana. Há um sentimento
nacional anterior ao estabelecimento do Monarquia constitucional brasileira.1435 Porém, a sua
manifestação é, ao menos no Nordeste, duramente reprimida, imprimindo na população medo.
“O terror crescia, o terror se derramava, todos o sentiam, pressentindo, nessa agonia etérea e
imprecisável, que ozona a atmosfera agoirando revoluções”.1436 O anúncio da Independência
gera um clima que absorve não só os “pró-homens” inseridos nas tramas da alta política, mas
engloba toda a população livre. É uma espécie de sentimento compartilhado, é possível
assinalar, intersubjetivamente.
1434
AMARAL, Hermenegildo do. Conspiração republicana da Bahia. RIHGB, tomo 99, parte I, 1926, p. 345.
1435
Isso nos faz crer que o sentimento nacional é anterior ao Estado nacional. Luiz Carlos Bresser-Pereira nos
ajuda a entender esse movimento ao conceituar o Estado e as suas dinâmicas: sem “(...) dúvida, o Estado se
distingue da sociedade que regula, mas isso não o torna independente da soberania popular. Pelo contrário, essa
dependência, que originalmente era um mero pressuposto teórico, só tendeu a aumentar através do tempo. O poder
do Estado está sempre baseado na sociedade que ele regula – uma sociedade que inicialmente se subordina
inteiramente à oligarquia dominante, mas aos poucos vai dela se libertando”. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos.
Estado, Estado-nação e formas de intermediação política. Lua nova, 100, 2017, p. 162. Disponível em:
https://cutt.ly/FcLQG1O Acesso: 08 abr. 2021.
1436
CALMON, Pedro. História da Independência do Brasil. RIHGB, tomo 94, parte I, 1923, p. 128.
469
Complementando o ensejo, Basílio de Magalhães afirma que nem mesmo a elevação do
Brasil à Reino Unido, em 1815, basta para uma sociedade que majoritariamente deseja a
emancipação política. De acordo com o sócio do IHGB: essa
(...) medida não satisfez as justas aspirações de uma parte considerável do país,
ansiosa pelo total rompimento dos laços que a manietavam a Portugal, -
evidencia-o a revolução de 1817, que congregou em torno do lábaro da
independência, sob a forma republicana, os espíritos mais esclarecidos de
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará”.1437
Não parece justo entre brasileiros e brasileiras e entre os diversos países que conhecem a causa
patriótica local a permanência dos laços com Portugal: “Seria ignominioso que uma terra em
tais condições, de todo em todo verdadeiras, não conquistasse sem tardança a sua definitiva
liberdade”.1438 Estava, então, minado o esteio político português no Brasil. Propagava-se pelo
Brasil a ideia, quando mais exaltada, da emancipação e, quando mais moderada, da
permanência, desde que com autonomia, do Reino Unido:
O que Pedro Calmon assinala com essa argumentação é que, em primeiro lugar, a causa
independentista é algo que corre em paralelo às relações entre Brasil e Portugal no âmbito da
alta política, isto é, ela possui peculiaridades locais e não se configura apenas como reação às
medidas autoritárias das Cortes. Existiam projetos de Independência, algo que podia ser
percebido nos focos de revolta nas Províncias, cada qual com as suas demandas próprias.1440
Por fim, diversos setores da população estavam envolvidos nesse movimento plural: “E o povo
conspirava; conspiravam os letrados; a tropa conspirava”.1441
Não foram os atos centralistas do regente Pedro de Alcantara ante as tentativas de
sublevações das Províncias, ou o despotismo das Cortes de Lisboa, que desencadearam no
1437
MAGALHÃES, Jornalistas... op. cit., p. 772.
1438
Idem, p. 772.
1439
CALMON, História... op. cit., p. 138-139.
1440
Sobre a participação das Províncias e do poder popular no processo de Independência cf. KRAAY, Hendrik.
Muralhas da independência e liberdade do Brasil: a participação popular nas lutas políticas (Bahia, 1820 - 1825).
In: MALERBA, Jurandir (org.). A independência brasileira: novas dimensões. Rio de janeiro: Editora FGV, 2006.
1441
CALMON, História... op. cit., p 140.
470
Brasil o sentimento nacional, bem como o desejo da emancipação política. Não era o Estado,
diferentemente de Varnhagen, que dirigia os desejos, os interesses e o sentimento nacional,
sendo ele, então, o vórtice da ideia emancipação. Foi a percepção da população, em comunhão
de sentidos e de interesses, que demandou a Independência, em um movimento nacional que
completava 100 anos na República. Quando se fala em atmosfera está implícito que o
sentimento compartilhado incide, inclusive, sobre os corpos daqueles sujeitos históricos: “Pelo
Estado geral dos espíritos, de muito embriagados na prodigiosa atmosfera revolucionária que
envolvia a América inteira, não era difícil ao observador prever a impressão que de fato
causaram os acintosos decretos de Lisboa”.1442 A defesa pela causa independentista não era da
ordem da providência divina, também não era obra de um líder carismático. Ela advinha de uma
tradição de pensamento, de um sentimento que se transformava em nacional com o processo
histórico. As suas causas eram totalmente humanas, dado que vinculadas à comunidade que se
imaginava e se inventava como portadora de ideais comuns: “A Independência não podia tardar
muito. Era a opinião indistinta do país. Forjara-se em mais de um século. Os últimos
acontecimentos tinham-na de tal forma precipitado, que poucos no país ainda encaravam a
hipótese de uma demorada contemporização administrativa”.1443
Basílio de Magalhães também é da opinião que o movimento independentista não é
resultado do carisma de Pedro de Alcantara ou de qualquer outro “patriarca da independência”,
porém, realizou-se como aspiração patriótica coletiva: “(...) é perfeitamente possível inferir
deles que os patriotas se agitariam, e a Pátria nada mais fez do que conduzi-los à indefectível
causa, num movimento coletivo, num titânio afã solitário, em que quase se não pode lobrigar
quais foram os capitães e quais os soldados”.1444
O povo é o grande agente da história em Pedro Calmon, mesmo quando ele se mostra
representado por alguma autoridade política legitimada. O povo não estava passivo diante dos
acontecimentos. Ele foi coparticipe do movimento. Isso pode ser visto na narrativa de Calmon
no momento em que a população carioca presencia os embates entre brasileiros
independentistas e reinóis fiéis às Cortes de Lisboa:
1442
Idem, p. 169.
1443
Ibidem, p. 169-170.
1444
MAGALHÃES, Jornalistas... op. cit., p. 773.
1445
CALMON, História... op. cit., p. 193.
471
A História da Independência do jovem Pedro Calmon é americanista, distinguindo-se,
por exemplo, do iberismo de Francisco Adolfo de Varnhagen. A proposta do intelectual baiano
é contestatória, quer dizer, a Independência não representa um elogio à colonização portuguesa.
O passado metropolitano português é autoritário, e a identidade nacional encontra-se justamente
no poder de resistência que o brasileiro e a brasileira ostentam há três séculos. Em suma, há
uma negação do passado colonial luso-brasileiro. Já os momentos de resistência, de união e de
congraçamento de sentimentos esses, sim, fazem parte do presente que se quer construir:
Tal foi a sorte do Brasil por quase três séculos; tal a mesquinha política, que
Portugal, sempre acanhado em suas vistas, sempre faminto e tirânico,
imaginou para cimentar o seu domínio e manter o seu fictício esplendor.
Colonos e indígenas, Conquistados e Conquistadores, seus filhos, e os filhos
de seus filhos, tudo foi confundido, tudo ficou sujeito a um anátema geral. E
porquanto a ambição do poder, e a sede do outro são sempre insaciáveis e sem
freio, não esqueceu de mandar continuamente paxás desapiedados,
magistrados corruptos, e exames de agentes fiscais de toda a espécie, que no
delírio das suas paixões e avareza despedaçavam os laços da moral, assim
pública, como doméstica; devoravam os mesquinhos restos dos suores e
fadiga dos habitantes; e dilaceraram as entranhas do Brasil.1446
(...) nos mostra o maior desprezo pelos bons costumes e retrata no colorido de
sua tela o mais perigoso estado de uma civilização decadente. Era, portanto,
quase impossível pensar-se na liberdade política daquela extinta monarquia,
porque o governo estava corrompido, e nestas condições não era possível a
realização da liberdade pública”1448
1446
Idem, p. 237.
1447
TOLEDO, Francisco Eugênio de. História da Independência do Brasil. RIHGB, tomo 107, parte I, 1930, p.
165.
1448
TOLEDO, História... op. cit., p. 165.
472
Há uma narrativa de sentido, ou um eixo norteador do processo histórico, na exposição
de Pedro Calmon no que se refere ao que ele chama de espírito de emancipação. É esse o devir
da história para o historiador baiano:
Cf. BLANCKAERT, Claude. La nature de la Société. Organicisme et sciences sociales au XIXe siècle. Paris:
1450
L’Harmattan, 2004.
473
– até a consumação da índole democrática. Uma dessas efemérides é, por exemplo, a de 1826
e está relacionada com o funcionamento pleno do legislativo. Segundo Roure:
1451
ROURE, Agenor. Centenário do poder legislativo. RIHGB, tomo 99, parte I, 1926, p. 284.
474
Capítulo 15 - Considerações sobre a Abolição e o negro na Revista do IHGB
no pós-emancipação
Agenor de Roure
O IHGB e a Abolição
Abolida a escravidão no Brasil fez-se necessário criar uma narrativa de sentido, uma
tradição inventada, em que as ideias antiescravistas se faziam presentes como patrimônio
simbólico para a afirmação do Brasil como país civilizado. Mas foram poucas as falas e os
artigos sobre a escravidão e o negro no contexto historiográfico da Primeira República, o que
demonstra um silenciamento seletivo1453 sobre esses temas em específico, atrelados que
estavam ao que Pedro Lessa chama de “instituição maldita”.1454
Uma primeira menção à Abolição da escravidão no IHGB ocorreu ainda 1888, mais
especificamente no Jubileu da agremiação, isto é, nas comemorações dos seus 50 anos de
atividades.1455 Coube à Franklin Távora a abertura das discussões sobre a escravidão como
problema historiográfico na instituição. Para o sócio em questão, “a lei que extingui entre nós
o cativeiro” torna-se, a partir daquele momento, digna de ser inserida na “história da
humanidade”.1456 O fim da escravidão era, de todo modo, vislumbrado no devir formativo da
história, quer dizer, o evento em si era esperado. Mesmo assim a sua repercussão e os seus
efeitos o tornava uma novidade em termos de sociedade, na medida em que toda a nação agora
era livre e podia, enfim, preitear um lugar entre os países ditos civilizados. O historiador podia,
1452
ROURE, Agenor de. A Abolição e seus reflexos econômicos. RIHGB, tomo 83, parte I, 1918, p. 329.
1453
Nessa direção, é importante lembrar que, para Pollak, “um passado que permanece mudo é muitas vezes menos
o produto do esquecimento do que um trabalho de gestão da memória segundo as possibilidades de comunicação”.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, vol. 2, n.3, 1989, p. 13. Disponível
em: https://cutt.ly/XcZuOiQ Acesso: 08 abr. 2021.
1454
LESSA, Pedro. João Francisco Lisboa. RIHGB, tomo LXXVI, parte I, 1913, p. 77.
1455
O instigante trabalho de Renata Figueiredo Moraes informa que o problema da escravidão não se constitui
enquanto um problema historiográfico para os sócios do IHGB. Segundo a autora, os “membros do IHGB não
propuseram ao longo dos seus primeiros 50 anos nenhum trabalho Histórico mais específico a respeito da
escravidão no Brasil, talvez por esse tema não constituir ainda um problema Historiográfico. Ele só veio à tona
com a Abolição, de fato, e quando isso ocorreu o Instituto manteve sua coerência ao associar o 13 de maio como
objeto de desejo do Império”. MORAES, Renata Figueiredo. Os maios de 1888: História e Memória na escrita
da História da Abolição. O caso de Osório Duque-Estrada. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, 2007, p. 107. Disponível em:
https://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2007_MORAES_Renata_Figueiredo-S.pdf Acesso: 04 dez. 2020.
1456
TÁVORA, Franklin. A extinção da escravidão no Brasil. O Jubileu do Instituto Histórico. RIHGB, tomo LI,
parte I, 1888, p. XVIII.
475
assim, estudar o povo em sua integralidade, pois os elementos raciais não eram mais
impeditivos para o estabelecimento de populações juridicamente livres e incorporadas à nação.
Deixemos Távora nos relatar o universo que se abre para a nação e para o trabalho do historiador
a partir do evento da Abolição:
O IHGB felicita, de imediato, Dom Pedro II, a Princesa Isabel e o Conde d’Eu por meio
de telegramas. Além disso, membros do IHGB participam de uma procissão cívica organizada
pela imprensa da época. Chegando ao Paço o visconde de Taunay, em nome de uma comissão
especial do Instituto, profere um discurso. Eis a posição oficial do IHGB diante da Alteza
regente: “(...) enviou-nos o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro afim de patentearmos o
intensíssimo júbilo que o domina pelo evento da nova era iniciada a 13 de maio de 1888, que
extinguiu no Brasil a escravidão e fez cessar todas as consequências dessa nefanda
organização”.1458 Desenha-se uma primeira interpretação sobre o fim da escravidão no Brasil,
qual seja, aquela que enaltece o Imperador e a Princesa Isabel como os grandes responsáveis
pela liberdade dos cativos, sendo eles próceres da causa abolicionista.1459 Ela, ao invés de
ressaltar o longo caminho necessário para a liberdade dos negros escravizados, alça o evento
como ponto cume das ações do Império brasileiro enquanto participante da civilização
ocidental. Vejamos estas palavras:
1457
TÁVORA, A extinção... op. cit., p. XVIII.
1458
TAUNAY, Alfredo. Discurso em razão da Abolição da escravidão. RIHGB, tomo LI, parte I, 1888, p. XX.
1459
Esse posicionamento do IHGB também é percebido Fabiany Glaura Alencar e Barbosa: “(...) após a
proclamação da República, o IHGB reafirma a construção da Abolição associada à iniciativa imperial e ao ato
redentor da Princesa Isabel, contrapondo-se aos discursos republicanos que buscam silenciar tal memória,
mobilizando outros lugares, personagens e significados”. BARBOSA, Fabiany Glaura Alencar e. A Abolição da
escravidão e modos de pensar e representar a experiência passada: livros didáticos (1865 - 1918). Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade de Brasília, 2012, p. 57.
Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/11642 Acesso: 04 dez. 2020.
1460
TAUNAY, Discurso... op. cit., p. XX-XXI.
476
Outra posição acerca dos acontecimentos que envolveram a Abolição da escravidão no
Brasil relacionava-se com o esquecimento programado, intencional e deliberado desse passado.
Isso ocorrera em razão do próprio tipo de história que se produzia: de positivação dos eventos,
das situações e dos personagens que contribuíram para a constituição da pátria. Revisitar o
passado escravocrata era negativar a experiência da história brasileira, e não contribuir com a
história dos vencedores produzida no Instituto: “Vencido hoje está o tremendo empecilho e
como que atirada aos fundos abismos do esquecimento essa imensa rocha, que obstruía o
caminho, pelo qual deve a Pátria chegar aos mais altos destinos”.1461 Uma história da civilização
do Brasil, vista através da ideia de pátria, não podia comportar as suas próprias barbáries.1462
Nas atas das sessões do IHGB no ano de 1888 são constantemente discutidas questões
relativas à Abolição. A Princesa Isabel e o Imperador Pedro II são considerados os benfeitores
da causa, e por conta disso chegam ao IHGB felicitações a ambos na forma de telegrama e de
comitivas. De imediato os sócios do Instituto propõem que se cunhem medalhas comemorativas
para a nova efeméride e que se erga uma coluna de bronze no campo da “aclamação”. Perdigão
Malheiros é considerado, nessas falas, o precursor da ideia de liberdade dos escravos com o seu
livro Escravidão no Brasil. O então vice-presidente Olegário Herculano emitiu este parecer
acerca da Abolição no Brasil, que serve, então, como a fala oficial da agremiação:
1461
Idem, p. XXI.
1462
Assim, entendemos a forma como a historiografia, ao sublinhar de forma pacífica o processo de emancipação,
também oblitera e silencia as lutas e as manifestações civis e de escravos na busca pela liberdade. Como muito
bem pontuado por Lívia de Lauro Antunes: esse “(...) discurso historiográfico foi responsável pela perpetuação de
uma memória, ainda presente no seio da sociedade, na qual a luta pelo fim da escravidão partiu da vontade de uma
aristocracia intelectual, sem intervenção decisiva da massa da população. Mais importante, construiu uma memória
que limita os processos geradores de grandes transformações sociais à vontade de uma diminuta elite intelectual,
majoritariamente branca”. ANTUNES, Lívia de Lauro. Por uma memória da nação: Abolição e pós-emancipação
nos Institutos Históricos (uma abordagem comparada). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
graduação em História Comparada, UFRJ, 2014, p. 66. Disponível em: https://cutt.ly/1cLccBI Acesso: 08 abr.
2021.
1463
CASTRO, Olegário Herculano de Aquino. Parecer do Vice-presidente do IHGB sobre a abolição da escravidão
no Brasil. RIHGB, tomo LI, parte II 1888, p. 257.
477
Após essas percepções quanto ao evento da Abolição da escravidão no Brasil, o IHGB
voltou a se manifestar na celebração dos seus 20 anos, em 1908. Coube ao conde de Afonso
Celso, orador da instituição, proferir uma palestra acadêmica que desse conta de circunscrever
o tema após duas décadas. O momento era de comemoração, de fazer o passado presente, porém
era uma oportunidade, também, de se passar a limpo esse passado através do crivo crítico do
historiador. Algo que, de fato, não se efetivou. Diante desse desafio Afonso Celso desenvolveu
algumas teses em seu discurso de “celebração da Abolição do cativeiro”: 1) a primeira tese
advoga que não há nenhuma desonra por parte do Brasil em manter por tanto tempo a “maldita
instituição”, na medida em que os países mais adiantados e civilizados, como a Inglaterra e a
França, fazem a mesma coisa, e os Estados Unidos, até aquele momento, lutam contra o
“problema negro”; 2) a segunda tese abranda os impactos da escravidão brasileira, pois se
admite que em nenhum outro ponto do globo ela é tão mitigada pela “pela caridade, pela
filantropia, por belos costumes da população”;1464 3) o Brasil, segundo o conde, não “ama” e
“defende” a escravidão, mas apenas a “tolera” por circunstância do momento, não se opondo
radicalmente ao movimento abolicionista; 4) o processo gradual de extinção da escravidão é
considerado o mais acertado e inteligente, além de evitar abalos e atritos entre o governo e os
particulares; 5) proprietários, ex-escravos, poderes públicos, povo, todos concorrem para a
Abolição, que segundo Afonso Celso não deixa ódios nem prejuízos irremediáveis. Como
vemos, constrói-se uma postura conservadora, aristocrática e até mesmo condescendente com
relação a escravidão no Brasil.
Passados 4 anos da celebração dos 20 anos da Abolição no Brasil o IHGB voltou a
prestar homenagens às principais figuras do 13 de maio, aquelas que para o conde de Afonso
Celso se envolveram decisivamente com a causa do movimento social, quais sejam, a
“redentora” Princesa Isabel, Joaquim Nabuco e João Alfredo. Todavia era uma cerimônia na
qual se efetua certo silenciamento sobre a memória da luta dos ex-escravos em prol da
liberdade, destacando, apenas, os grandes vultos abolicionistas. De todo modo, a ocasião dessa
pequena “homenagem” era a inauguração dos quadros das referidas personalidades históricas
no IHGB. No discurso cerimonial do conde, relativamente diferente daquele proferido na
comemoração dos 20 da Abolição, transparecia que a agremiação, na década de 1910,
endossava uma interpretação conservadora e oficial da causa abolicionista, sendo ela vista,
politicamente, de cima para baixo.1465
CELSO, Afonso. Celebração da Abolição do cativeiro. RIHGB, tomo LXXI, parte II, 1908, p. 460.
1464
1465
Para um estudo sobre comemorações populares do 13 de maio, bem distantes da frieza oficial dos salões do
IHGB, ver ABREU, Martha; DANTAS, Carolina Vianna. É chegada “a ocasião da negrada bumbar”:
478
Afonso Celso comparou o movimento abolicionista brasileiro com a guerra contra os
holandeses. Primeiro: pelo heroísmo que subjazia os dois movimentos. Segundo: pela
longevidade da contenda. Terceiro: porque eram causas que extrapolavam o plano
simplesmente político, dado que o seu alvo era a glorificação da pátria. Percebe-se que o IHGB,
com esse ato comemorativo, articulava em uma narrativa de sentido republicana os eventos e
as situações que envolviam a Abolição, isto é, esse movimento era digno de fazer parte da
história oficial do Brasil. Argumenta o conde que a campanha abolicionista
As quatro principais datas da Abolição eram: 1831, abolição do tráfico; 1871, emancipação
dos filhos das mulheres escravas; 1885, libertação dos cativos sexagenários; e 1888, declaração
da extinção integral da escravidão. Todas elas foram alçadas pelo conde de Afonso Celso junto
aos principais eventos patrióticos registrados em nossa história, sendo que essas efemérides
deviam constar no calendário cívico republicano.
A história pensada na Primeira República requeria que se destacasse os sujeitos mais
representativos em determinadas situações e eventos que faziam parte da experiência nacional.
Não eram meras individualidades, mas supostos representantes do povo. Podiam ser os
“benfeitores” ou “patriarcas”, como desejava Tristão de Alencar Araripe, como podia ser os
“pró-homens” que Afonso Celso se apropria, entre outros, de Carlyle. Nessa cerimônia
acompanhamos o desenvolvimento desse raciocínio voltado para a temática da Abolição. Se
destacavam a Princesa Isabel, “para quem pesou mais o direito de uma raça oprimida do que a
posse do trono”; Joaquim Nabuco, “o líder e a voz mais poderosa da campanha abolicionista”;
e João Alfredo, “que triunfalmente dirigiu as forças abolicionistas em ambas as peremptórias
consagrações legais de 1871 e 1888”.1467 Eles, “pelo seus exemplos, em agitadas crises,
atuaram, de modo luminoso e orientador, sobre a alma nacional”.1468 Ao final do discurso
comemorações da Abolição, música e política na Primeira República. Varia história, vol. 27, n. 45, 2011
Disponível em: https://cutt.ly/ccLzHoH Acesso: 08 abr. 2021.; MORAES, Renata Figueiredo. As festas da
Abolição: o 13 de maio e seus significados no Rio de Janeiro (1888 – 1908). Tese (Doutorado em História) –
Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, PUC-RJ, 2012. Disponível em:
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/34952/34952.PDF Acesso: 04 dez. 2020.
1466
CELSO, Afonso. Isabel, a Redentora, Joaquim Nabuco e João Alfredo. RIHGB, tomo LXXV, parte II, 1912,
p. 309.
1467
CELSO, Isabel... op. cit., p. 310
1468
Idem, p. 312.
479
vemos claramente a moderna historia magistra vitae atuando na recepção desses personagens
na República, posto que eles são percebidos com “simpatia carinhosa”, “patriotismo
orgulhoso”, “reconhecimento” e “veneração”. Tanto essas figuras representativas quanto a
campanha e a Abolição da escravatura entravam definitivamente para os fastos da dita história
oficial republicana.
1469
DÓRIA, Franklin (barão de Loreto). A Abolição no Brasil. RIHGB, tomo LXIII, parte II, 1900, p 187.
1470
BEVILAQUA, Clovis. A lei de 28 de setembro de 1871 e o visconde do Rio Branco. RIHGB, tomo 80, parte
II, 1916, p 791. É desta forma que José Bonifácio pretende resolver, naquele contexto específico, o “problema
brasileiro”: a “(...) exata extensão das transformações dominantes que ele tinha em mira consiste no seguinte: sem
abolir a escravidão dos negros e sem civilizar os índios, não se atingiria a homogeneidade do corpo social; e sem
lhes dar acesso à propriedade da/terra, as duas castas não alcançariam o estágio da assimilação socioeconômica,
que extinguiria a marginalidade dos homens de cor”. SILVA, Raul de Andrada e. José Bonifácio, o pensador
reformista. Revista de História, vol. 45, n. 92, 1972, p. 404. Disponível em: https://cutt.ly/0cZz6AE Acesso: 08
abr. 2021.
480
faz valer o seu poderio político e diplomático em favor da causa do fim do tráfico. Por outro
lado, representa entre os portugueses e entre os brasileiros uma medida autoritária por parte dos
ingleses, o que gera, para além da procrastinação do assunto no parlamento, manobras por parte
dos civis para a preservação do tráfico de escravos. É o caso da lei de 7 de novembro de 1831,
que restitui a liberdade a todos os escravos “importados”, mas que “não bastou a impedir o
contrabando dos africanos apesar da sua sanção penal”.1471 A inoperância dessa lei é tamanha
que o tráfico de pessoas no Brasil, para o barão de Loreto, tende a aumentar.1472 Clóvis
Bevilaqua entende essa situação da seguinte maneira: “Não obstante o comércio nefando
continuou. Nem lhe serviu de estorvo a lei de 7 de novembro de 1831, proclamando livres todos
os africanos que fossem introduzidos nos portos do Brasil”.1473
Essa situação é uma das maiores motivações da lei imposta pela Inglaterra, que não
deixa de ter motivações imperialistas, Bill Aberdeen, de 1845. Ela proíbe o tráfico de escravos
africanos no Atlântico e possui a promessa do policiamento marítimo inglês para a sua perfeita
execução. Essa nova situação que o Brasil experiencia o coloca mais próximo dos países
considerados civilizados, mudando, pois, a sua imagem inicial sobre o tráfico de escravos, além
de ser, consequentemente, um grande impulso para que a causa da Abolição ganhe força no
parlamento e entre a população. De qualquer maneira, para Dória, é o Estado que dirige as ações
concernentes à lei de 1850, conhecida como “lei Eusébio de Queirós”, resultado indireto dos
impactos da Bill Aberdeen. Nesse sentido, argumenta Clovis Bevilaqua que a “lei de 4 de
setembro de 1850, afinal, extinguiu a importação de escravos e o país, desafogado da incômoda
pressão estrangeira, pode tomar consciência de si, obedecer aos movimentos espontâneos da
natural bondade da gente brasileira, e proceder segundo a equidade lhe aconselhava”.1474
Diante dessa situação emerge, como salientado acima, o Estado ilustrado que impõe à
nação o fim definitivo, em 1850, do tráfico de escravos. É, portanto, o Estado monárquico que
civiliza a sociedade com ideais filantrópicos. Obviamente que essa conclusão parte do
pressuposto que não há movimento popular pela causa dos escravos. Nas palavras do barão de
Loreto: “Após constantes protestos, formulados pelo governo Imperial, contra as violências da
1471
DÓRIA, op. cit., p 187.
1472
A cientista política Paula Beiguelman retrata a inconsistente aplicabilidade da lei de 1831: “Por esse ato eram
cominadas severas penas aos importadores de escravos, considerados como tais (artigo 3°) tanto os que os
vendessem e transportassem, como os compradores (fazendeiros). Entretanto., mantendo a forma de julgamento
por júri, a lei garantia a impunidade das infrações. Criava-se, assim, um instrumento legal que, embora não afetasse
o tráfico, podia, contudo, ser invocado como argumento para evitar-se a ampliação do tratado anglo-brasileiro”.
BEIGUELMAN, Paula. A extinção do tráfico negreiro no Brasil como problema político. Revista de Ciência
Política, n. 1, 1967, p. 16. Disponível em: https://cutt.ly/zcLn0og Acesso: 08 abr. 2021.
1473
BEVILAQUA, A lei... op. cit., p 791.
1474
Idem, p 792.
481
nação que, assim abusava da sua força, a lei de 4 de setembro de 1850 pôs termo ao contrabando,
que até então zombara dos esforços com que fora por nós repelido”.1475 É o Estado, nessa
interpretação historiográfica, o orientador prático da opinião pública. Eusébio de Queirós é
considerado o articulador político da lei que extingue o tráfico.
Extinto o tráfico dos africanos progride, em tese, a aspiração humanitária, fortalecida
pelo exemplo de outras nações que também abolem a “instituição maldita”. A partir dessa
conjuntura em diante a ideia de emancipação gradual é refletida na imprensa, inspira mais de
um projeto no legislativo, congrega associações civis de caráter filantrópico, move os
intelectuais, incita a “caridade” dos cidadãos e faz multiplicar as manifestações.1476 A
interpretação histórica da campanha abolicionista acionada por Dória passa, então, do âmbito
político, que tem o seu início lá nas Cortes constituintes de Lisboa, em 1822, com as propostas
do visconde de Pedra Branca, é tutelada pelo Estado que direciona o fim do tráfico, para, enfim,
tornar-se uma aspiração popular.
O barão de Loreto era partidário da interpretação que o fim escravidão, antes de ser
postergada pelas forças políticas do Império, era um projeto em execução paulatino durante
todo o Segundo Reinado. “A nova causa pleiteada a favor da escravidão encontrou o mais forte
sustentáculo nos magnânimos intuitos do Imperador, que, pela fala do trono de 22 de maio de
1857, recomendou a Assembleia Geral a reforma do elemento servil”.1477 Vê-se, dessa forma,
que por mais que a Corte tenha a vontade, isso em meados do século XIX, de reformar a
instituição escravocrata não há, ainda, a intenção, em nenhum momento, da sua extinção
irrestrita.1478 Essa leitura denota que o Estado era o racionalizador social, sendo ele o orientador
do agir político e da ação social do povo.
Concluída a Guerra do Paraguai, que contribui para tornar mais visível a “mancha” que
a escravidão impõe à organização social do Império, não podem mais os diretores da política
nacional cerrar os olhos para a causa abolicionista. Assim, aquela reforma proposta por Dom
Pedro II vem a se realizar no ano de 1871. Para a sua aprovação concorre decisivamente o
visconde do Rio Branco, chefe de gabinete. Rio Branco consegue unir os principais partidos da
1475
DÓRIA, A abolição... op. cit., p 188.
1476
Idem, p 188.
1477
Ibidem, p 188.
1478
Beatriz Mamigonian e Ana Paula Siqueira mostram que as sucessivas leis atenuadoras da escravidão no Brasil
não correspondem a uma abolição gradual deliberada: a “história da política imperial e das transformações da
escravidão no Brasil mostram que cada uma das medidas foi tomada para garantir a manutenção, ou dar uma
sobrevida à escravidão”. MAMIGONIAN, Beatriz G.; SIQUEIRA, A. P. P. A campanha abolicionista e a
escravidão no século XIX no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos. In: Adriana Pereira Campos; Gilvan Ventura
da Silva (orgs.). A Escravidão Atlântica: do domínio sobre a África aos movimentos abolicionistas. Vitória: GM,
2011, p. 55.
482
época para deliberar a proposta de reforma. Quem a executa é a Princesa Isabel, sancionando-
a como regente na ausência do Imperador. De acordo com Dória, ela faz valer a vontade do seu
pai, bem como demostra toda a sua humanidade no gesto que a torna a redentora. “A Princesa
Regente, pois, deu vida à lei que assegurou a liberdade dos futuros filhos das escravas, à lei
que, demais, promoveu o resgate do cativo, e lhe reconheceu a dignidade de homem,
concedendo-lhes direitos e favores preciosos”.1479 A lei de 1871 demonstra, para Bevilaqua,
A lei de 71 não tem, continua Bevilaqua, a simplicidade assertiva das grandes ideias ou
das reformas radicais, como em 1888, que abole definitivamente a escravidão. Ela é complexa,
na medida que abarca inúmeros interesses e contrariedades. Esse novo dispositivo legislativo
modifica a atmosfera moral do país – ele fomenta um despertar da consciência nacional.1481 A
partir dele se acelera o movimento emancipacionista mais do que o previsto. “Reagindo no meio
escravo se fez sentir essa influência. Reagindo sobre o ambiente, a lei foi suscitando um Estado
geral de espírito, incompatível com a permanência do cativeiro”.1482 Segundo o jurista cearense,
a lei de 13 de março de 1888 era apenas uma consagração da ação educadora da lei de 71.
A partir dessa situação histórica, na perspectiva da formação, o “espírito público”, já na
década de 1880, interessa-se de maneira decisiva pela causa da Abolição, almejando tirar todos
os escravos, o mais depressa possível, dessa condição, na medida em que não há povo, admite
o barão de Loreto, quando um dos seus segmentos não se apresenta juridicamente livre. Nesse
contexto, a última década do Segundo Reinando há no parlamento, na imprensa periódica, nas
conferências públicas, em sociedades civis uma propaganda que acelera a aspiração por uma
Abolição imediata e irrestrita.1483 Em todos os níveis da sociedade imperial o movimento
1479
DÓRIA, A abolição... op. cit., p 188.
1480
BEVILAQUA, A lei... op. cit., p 798.
1481
Teófilo de Queiroz Júnior constrói uma periodização possível para o movimento abolicionista, com especial
atenção para o marco temporal 1871, data da “lei do ventre livre”: “Aceito o início do interesse nacional pela
abolição em 1866, e o começo da campanha, em 1871, tem-se uma periodização que dá conta da ‘fase propriamente
revolucionária do abolicionismo’. O que aconteceu antes corresponde a uma fase menos inflamada, embora já
marcada por inquietações e tentativas de saída para o problema (...)”. JÚNIOR, Teófilo de Queiroz. Abolicionismo,
um processo em questão. Revista de Instituto de Estudos Brasileiros, n. 28, 1988, p. 103. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/70035 Acesso: 08 abr. 2021.
1482
BEVILAQUA, A lei... op. cit., p 791.
1483
O movimento abolicionista é anterior a essa periodização. Angela Alonso verifica, a partir de 35 jornais de
época, entre 1868 e 1888 o incrível número de 1446 eventos de protesto abolicionista. A campanha abolicionista
é, para Alonso, caracterizada como um movimento social. Para a estudiosa, a “mobilização brasileira pela abolição
da escravidão foi, pois, grande, estruturada e duradoura (...) os brasileiros construíram uma rede coordenada e
483
abolicionista ganha adesões e simpatias. A situação se afunila a partir do momento em que as
Províncias do Ceará e do Amazonas libertam os cativos espalhados pelos seus territórios, “e o
abolicionismo, embevecido nos primeiros triunfos, ostentava-se mais forte e mais resoluto”.1484
Não tarda, em meio as crises políticas entre o governo e o parlamento, a lei do sexagenário,
vinda a lume em 1885, a qual liberta os cativos com mais de 60 anos, cabendo, todavia, aos
proprietários de escravos indenização. Essa lei, avançando na argumentação, potencializa a
campanha abolicionista e a propaganda de imprensa, bem como mobiliza grandes segmentos
civis. Em meio ao otimismo pela derrocada da “instituição maldita” é proposta um projeto de
lei para a Abolição irrestrita em até 5 anos.
A força do movimento é tão grande, sobretudo na “filantropia particular”, que em 1887
a quantidade de escravos cai pela metade. A ruína final do escravismo começa com a adesão de
São Paulo à causa. Daí em diante é um efeito em cascata. Multiplicam-se as alforrias gratuitas
em outras províncias, reduzindo à cerca de 200 mil o número de escravos registrados. A
Abolição definitivamente transforma-se em um movimento social nacional: “Semelhantes
acontecimentos com clareza e segurança estavam indicando ao governo o rumo a seguir a
respeito da Abolição imediata; ela tornara-se uma reclamação nacional, podia-se reputar-se
virtualmente feita”.1485
Agora cabe a Princesa Isabel o papel de protagonista para encerrar o ato. Ela é percebida
pela historiografia republicana, sendo uma das primeiras peças interpretativas esta do barão de
Loreto, como a redentora perpétua, aquela que tem a sensibilidade de traduzir o anseio popular
da Abolição. O que leva, consequentemente, ao apagamento dos verdadeiros agentes da causa
abolicionista. Esse clima de clamor popular, aliado à decisão da Princesa, pode ser percebido
nesta narrativa sobre o dia 13 de maio de 1888:
Naquele dia, por volta de uma hora da tarde, inúmeras pessoas, ao longo das
ruas que o préstito imperial atravessou desde S. Cristovão até o paço do
Senado, e bem assim as famílias que enchiam as janelas de todas as casas, ao
passar a Princesa, dirigiam-lhe as mais calorosas saudações. Quando se apeou
o coche defronte daquele palácio, subiram ao ar girandolas de fogo, e, ao som
do hino nacional o povo apinhado em vasta massa compacta, vitoriou
freneticamente a Regente, juncando-lhe de flores o caminho. Desde a entrada
do edifício, à qual o Ministério e as comissões das duas câmaras receberam
nacional de ativistas e associações e se valeram de uma pletora de estratégias de mobilização, inclusive propaganda
de massas, recrutando grande número de adeptos. Essa mobilização de feições nacionais permite caracterizar o
abolicionismo como nosso primeiro - e grande - movimento social”. ALONSO, Angela. O abolicionismo como
movimento social. Novos estudos CEBRAP, n. 100, 2014, p. 121-122. Disponível em: https://cutt.ly/PcLxj9K
Acesso: 08 abr. 2021.
1484
DÓRIA, A abolição... op. cit., p 190.
1485
Idem, p 191.
484
Suas Altezas, uma luzida multidão, abrindo alas extensas, por sua voz
aclamava a Princesa e sobre ela espargia uma chuva de flores.1486
Se em um primeiro momento a Abolição era tratada pela alta política do Estado imperial,
sendo ele o benfeitor da causa por meio das reformas que empreende, na segunda metade do
século XIX era a sociedade que exigia o fim do cativeiro dos africanos e seus descendentes,
sendo o Estado, para Dória, um termômetro para as aspirações populares. O que se percebe é,
na realidade, o silenciamento programado dos verdadeiros agentes envolvido com os
movimentos sociais que levaram à Abolição.
Em 1918 Agenor de Roure realizou, no IHGB, uma palestra sobre a Abolição e os seus
reflexos, sobretudo, na economia. O eixo da palestra circunscreve os impactos sociais de cada
lei, ou projeto, acerca do elemento servil. Antes de qualquer coisa, o sócio avalia que a aclamação
da Abolição da escravidão em 1888 colocava o Brasil na “vanguarda” dos países considerados
civilizados, isto é, entre aqueles que formavam a “humanidade”. Assim, entre as grandes
efemérides nacionais a de 13 de maio de 88
(...) é, sem dúvida, a que mais nos deve orgulhar: embora um pouco
tardiamente, ela nos fez voltar ao seio da Humanidade, de cujos princípios
fomos afastados antes pelos erros da Metrópole do que por culpa nossa, mas
longe dos quais permanecemos ou conservávamos sem ânimo de romper com
os vícios iniciais da nossa organização política e econômica”.1487
1486
Ibidem, p 192.
1487
ROURE, A abolição... op. cit., p. 316.
1488
Idem, p 316.
485
fatores fundamentais para a “bem-sucedida” colonização americana e, portanto, para o
desenvolvimento do capitalismo.1489 “Num caso, a confiança no futuro e a certeza de que o
esforço empregado redundava em proveito próprio; no outro caso, o desânimo produzido pelo
fato do trabalho traduzir castigo ou imposição”.1490
A fundação da sociedade brasileira mostra-se mais bem-sucedida e assentada em bases
sólidas se a Coroa ao invés de doar as Capitanias e as Sesmarias para pessoas ao seu em torno
fomentasse a economia da Colônia através do trabalho livre, na fácil conquista da terra, na
facilitação da entrada de colonos estrangeiros que venham e que se instalem como nos EUA,
constituindo seus lares como núcleos de uma pátria futura. Esse “homem livre” que não habita
o Brasil, que se admite ser do tipo aventureiro, mas possuidor dos recursos da civilização
europeia, busca experimentar a abertura total do seu ser ante o mundo da vida, “ao medir tudo
quanto, por si só, poderia fazer no infinito de um mundo, onde só encontrasse como adversários
as forças naturais, logo dominadas e aproveitadas”.1491
A emancipação política em 1822 sofre muito com esse sistema econômico assentado no
trabalho escravo. É um vício de origem da organização econômica brasileira que tem como uma
das suas raízes o regime dos portos fechados que culmina com a intensificação do tráfico,
resultando na dependência absoluta da Colônia quanto ao elemento servil. O trabalho escravo
impede, no limite, o pleno desenvolvimento do capitalismo. Ele arrefece o âmbito da inciativa
autônoma e criadora, tornando-se inútil qualquer esforço individual em razão do lucro zero daí
resultante, posto que as vantagens são tão somente dos senhores, algozes dos escravos. Em
suma, o trabalho forçado executado por índios e por africanos, sem a “educação industrial”
necessária, e sem o conhecimento, mesmo que superficial, da dinâmica da economia moderna,
não pode oferecer, de fato, a independência política, tampouco a emancipação econômica,
incluindo-a no contexto do capitalismo industrial ou da economia mundo.1492
1489
Esse diagnóstico de Agenor de Roure pode ser encontrado na economia política do século XVIII, a qual tem
grande penetração no século seguinte. Seus princípios ideológicos são estes, de acordo com Henrique Espada
Lima: existe “a crença de que as relações sociais deveriam organizar-se para dar expressão ao impulso “natural”
do homem de buscar livre e individualmente seus interesses materiais. O modelo desta sociedade é o comércio, o
mercado: o lugar onde os indivíduos operam segundo uma racionalidade definida pela maximização dos ganhos”.
LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no
século XIX. Topoi, vol. 6, n. 11, 2005, p. 289. Disponível em: https://cutt.ly/ZcLNu0j Acesso: 08 abr. 2021.
1490
ROURE, A abolição... op. cit., p. 317.
1491
Idem, p. 317.
1492
De fato, as reflexões de Roure estão ancoradas no seguinte paradigma compartilhado por fisiocratas e
economistas políticos da passagem para o século XIX: “no ideário dos economistas a liberdade só se concretizaria
plenamente caso os trabalhadores fossem juridicamente proprietários da única mercadoria que o mundo lhes
reservara: a força de trabalho”. ROCHA, Antonio Penalves. A escravidão na economia política. Revista de
História, n. 120, 1989, p. 100. Disponível em: https://cutt.ly/dcZdyTk Acesso: 08 abr. 2021.
486
Voltando para as relações entre a Abolição e os seus impactos na sociedade e na
economia, Roure salientou que era de conhecimento geral que o fim do tráfico, em 1850, mesmo
permanecendo o trabalho escravo, era fator de progresso social, pois despertava a sociedade
para a causa abolicionista. Mas a lei de 13 de maio trazia consigo a opinião dos escravocratas
sobre a desorganização do trabalho. Porém, para Roure, esse argumento não passava de uma
falácia, na medida em que não se desorganizava aquilo que não tinha organização. Não havia
trabalho organizado no Brasil, porque só havia a experiência do trabalho forçado, cujos frutos
não eram aproveitados pelos trabalhadores. Argumenta o sócio do Instituto: a “Abolição forçou-
nos a cogitar o problema econômico, inteiramente entregue à imobilidade e à falta de inciativa,
que o lucro fácil do trabalho escravo favorecia e garantia. O progresso econômico do Brasil
republicano não é senão uma consequência lógica da lei de 13 de maio de 1888”.1493
A posição de Agenor de Roure era diametralmente oposta à de Manoel Francisco
Correia, que defendeu a forma de interpretação mais corrente no século XIX. Correia era
ministro dos negócios estrangeiros em 1870, e seu escrito saído na Revista do IHGB era uma
resposta à obra Memória do meu tempo, de João Manuel Pereira da Silva, onde foi acusado de
votar contra projetos em favor dos escravos. Correia afirmou, categoricamente, que não era
refratário à projetos de lei que almejavam atenuar a escravidão no Brasil. Em sua defesa o ex-
ministro aponta que era o autor de propostas para a matrícula de escravos e para o fim dos
leilões humanos. Mas a sua ideia para a emancipação dos cativos necessitava daquilo que ele
denominava de “medidas preparatórias” para que se evitasse precipitações sociais. Agenor de
Roure era contrário a essa posição, pois se travestia de uma retórica que só procrastinava o
desfecho da escravidão e mantinha o poder dos grandes fazendeiros ou, ainda, transforma a
Abolição em um projeto de longa duração. Para Correia: “O meu juízo a esse respeito estava
formado desde muito. Entrando para o parlamento, apressei-me em propor medidas
preparatórias. O que por motivos de relevância de ordem política, não desejava, era que se
procedesse de forma com precipitação”.1494
Ao advogar em prol de medidas preparatórias que levavam ao fim do elemento servil
era localizado um dos eixos argumentativos mais sustentados pelas elites oitocentistas, quer
dizer, se apontava para a gradual Abolição da instituição escravista como uma maneira de
apaziguar a possível desorganização da economia do Brasil. Essa posição era mantida por
diversos setores da sociedade no Segundo Reinado que, de alguma forma, almejavam conservar
1493
ROURE, A abolição... op. cit., p. 322.
1494
CORREIA, Manoel Francisco. Esclarecimentos históricos. RIHGB, tomo LX, parte II, 1897, p.104.
487
as relações senhoriais na esfera privada, mantendo os poderes públicos apartados desse
problema, bem como deixando a condução da Abolição nas mãos da iniciativa particular. O
esclarecimento de Manoel Francisco Correia é capaz de nos transportar para o seio de parte da
opinião pública imperial, especialmente entre os grandes senhores rurais e políticos
conservadores que ofereciam toda a sorte de obstáculos legislativos para prolongar a escravidão
indeterminadamente, evitando, pois, a propagação de decisões a favor da Abolição irrestrita.
Enquanto isso, o agremiado Agenor de Roure afirmava que foi através do sistema
escravista que brasileiros e brasileiras herdaram a desorganização econômica. A falta de
organização da economia e a ausência completa de estímulos tornaram-se realidade sem o
intermédio do trabalho livre. Para Alberto Torres, em O problema nacional brasileiro, a
escravidão era uma das poucas fórmulas com visos de organização nesse país, sendo que ela
fundava toda a produção material que vigora naquele presente de Primeira República. Fundava,
não há dúvidas, admitia Roure. No entanto, sobre bases pouco sólidas e incapazes de suportar
o progresso econômico que a nova divisão do trabalho aberta com a Abolição demandava,
sobretudo, nos centros urbanos.1495 Exigia-se, pois, uma verdadeira reconstrução econômica do
país após o evento de 88. A lei áurea vinha para, de algum modo, regenerar a economia
brasileira, bem como para ativar a incipiente indústria nacional. “Pode-se afirmar sem receio
de erro, contrariando Alberto Torres, que a escravidão organizada impediu a organização
econômica do Brasil, e que o progresso econômico dos últimos anos tem na Abolição o seu
principal fator”.1496
De todo modo, pode-se afirmar que existe uma corrente bem pronunciada da
administração pública do Império em favor da transformação do trabalho no Brasil. Essa
corrente liberal é, no entanto, contrariada pelos interesses dos senhores de escravos, muito
prestigiados à época. É preciso a passagem do tempo para o convencimento que o avivamento
econômico do país e o futuro da própria lavoura agrícola estão na Abolição. A Princesa Isabel
canalizou, para Agenor de Roure, essa forma de perceber as dinâmicas econômicas do Brasil.
Ela compreendia que as necessidades da lavoura mantinham a infeliz herança da escravidão. A
Princesa Isabel percebeu, então, que os interesses de algumas dezenas de fazendeiros não
deveriam prejudicar a imprescindível transformação do trabalho escravo em livre, como
condição para o progresso e para o desenvolvimento da nação. Roure empreendeu uma leitura
liberal acerca do posicionamento da Monarquia sobre a dinâmica do trabalho na segunda
1495
Sobre o problema da escravidão na sociologia de Alberto Torres ver CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio. A
razão governamental de Alberto Torres. Política & sociedade, vol. 17, n. 40, 2018. Disponível em:
https://cutt.ly/wcLENJq Acesso: 08 abr. 2021.
1496
ROURE, A abolição... op. cit., p. 324.
488
metade do século XIX. O receio recorrente de que a Abolição desorganizava o trabalho
dissipava-se ao passo que os dirigentes e estadistas tomavam a consciência de que apenas se
desorganizava a fortuna dos fazendeiros – não podendo a espólio público ser mantido à sorte
da fortuna particular. “Se nunca havíamos organizado o trabalho nacional, como argumentar
contra a Abolição com o receio da desorganização”.1497 Assim sendo, a aclamação da Abolição
fazia progredir a economia, sendo abraçada pela República. Agenor de Roure sugeriu dados
econômicos ao afirmar que o valor da exportação praticamente duplicou logo após a Abolição.
Esse aumento da exportação e da produção era devido, sobretudo, ao trabalho livre.
É certo que há progresso econômico após a Abolição, mas a Grande Guerra mostra que
não há a emancipação econômica quase um século após a emancipação política. A herança do
trabalho escravo impede a evolução completa da economia. O trabalho livre duplica o valor da
produção no quinquênio seguinte à sua instauração, e tal valor, em 1918, argumenta Agenor de
Roure, está quintuplicado, porém, o problema não está resolvido. “Por isso ou por aquilo, a
verdade é que éramos ainda agora, ao rebentar o tremendo conflito europeu, uma Nação sem
autonomia econômica”.1498
Impressiona Agenor de Roure o fato de repousar em um pequeno número de produtos a
força da exportação brasileira, pois que é justamente na variedade deles que se pode assentar a
prosperidade econômica de qualquer nação. As fáceis vantagens obtidas por alguns gêneros
agrícolas que servem à exportação anulam, por meio da ideia de “lei do menor esforço”, a
propaganda para o cultivo de outros produtos. A crise advinda com a Guerra evidencia os erros
do passado daqueles que se dedicam à lavoura. E esse mesmo erro de limitar a produção a um
reduzido número de artigos resulta do trabalho escravo. Com o trabalho livre e assalariado a
vida agrícola das grandes propriedades toma outra feição, e a multiplicação das pequenas
propriedades, por compra ou por arrendamento, oferece à produção brasileira o aspecto que ela
adquire somente após Abolição. “Só o trabalho livre pode vencer e dar prazer, pelo interesse
que desperta e pela certeza de que os frutos colhidos não irão aproveitar exclusivamente aos
exploradores do esforço alheio”.1499 O trabalho é, na perspectiva do associado Agenor de Roure,
praticamente uma instância anterior ao próprio homem em sociedade. Trabalhar, nesse sentido,
é próprio à natureza humana - é um dado antropológico.
1497
Idem, p. 327.
1498
Ibidem, p. 328. Esse diagnóstico de Roure vai ao encontro da conclusão a que chega Celso Furtado sobre a
transição da escravidão para o trabalho livre: “(...) à semelhança de uma reforma agrária, a abolição da escravatura
teria de acarretar modificações na forma de organização da produção e no grau de utilização dos fatores. Com
efeito, somente em condições muito especiais a abolição se limitaria a uma transformação formal dos escravos em
assalariados”. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1967, p. 145.
1499
ROURE, A abolição... op. cit., p. 329.
489
O trabalho livre potencializa o capitalismo. A transformação do trabalho escravo em
trabalho livre torna o ser humano senhor das suas ações e orgulhoso do seu esforço. Ele entrega-
se a uma luta implacável diante da miséria de nação dentro de um país rico. Ele está certo que
a vitória do seu esforço e da sua tenacidade pode compensar todos os sacrifícios realizados.
Arremata Roure:
O fetichismo dos negros do Brasil foi analisado pelo padre Étienne Brazil em um estudo
publicado na Revista do IHGB em 1911. Seu olhar sobre o fenômeno religioso de matriz
africana era atravessado por preconceitos seculares advindos do movimento civilizador
ocidental, que tinha na religião católica um dos seus principais veículos.1501 O fetichismo pode
ser explicado como a crença em espíritos bons e maus, que para além de incidirem sobre o fluxo
do devir, se encarnam e se materializam em seres vivos ou inanimados. A experiência religiosa
dos africanos era nominada por Brazil como “grotesca” e “bárbara”. “Mais ainda: é superstição
mais grosseira e hedionda que a dos africanos; todavia brotou no seio dos povos...
civilizados”.1502 O distanciamento temporal empreendido pelo prelado começava no momento
em que se reconhecia o fetichismo como uma religião, com seus dogmas, preceitos e rituais
específicos. Todavia, ele é apenas a primeira fase da vocação religiosa, sendo contemporânea
do período em que os “primitivos” conseguem libertar-se do “magismo”. Cabe ressaltar que
desde o papado de Leão XIII havia uma orientação na Igreja Católica que sustentava uma
verdadeira cientificização da fé. O encontro entre fé e ciência demandado podia ser um
horizonte de compreensão para uma perspectiva racionalizadora sobre o mundo, que
marginalizava, portanto, as formas de devoção e de crença de matriz africana. Isso é percebido
em sua fala sobre o feiticismo das etnias africanas: “É meramente um desvio, ou anomalia, uma
1500
Idem, p. 330.
1501
Norbert Elias assinala que na ancestralidade do conceito de civilização encontra-se o embate entre cristianismo
e paganismo. “E a despeito de toda a sua secularização, o lema ‘civilização’ conserva sempre um eco de
Cristandade Latina e das Cruzadas de cavaleiros e senhores feudais”. ELIAS, Norbert. O desenvolvimento do
conceito de Civilité. In: _____. O processo civilizador. Volume 1: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011, p. 65.
1502
BRAZIL, Étienne. Fetichismo dos negros do Brasil. RIHGB, tomo LXXIV, parte II, 1912, p. 199.
490
aberração das crenças religiosas. É uma exuberância abusiva da fé no mundo sobrenatural”.1503
Ao nominar o Outro era lhe atribuído, de qualquer forma, identidade.
Havia uma perspectiva de intervenção na sociedade no trabalho de Brazil observado
através da mobilização da linguagem organicista, amplamente acionada no século XIX. Ele
compara as práticas supersticiosas com sujeitos “aleijados” e “fisicamente disformes”. Esse
olhar que estabelecia relações entre o religioso e o biológico era uma forma de interferir no
social, influenciando-o. No caso em questão significava a instauração de um discurso
verdadeiro: o cristão, esteio da sociedade majoritariamente civilizada.1504 Essa interferência
seria necessária em razão da miscigenação “das três raças” no Brasil impulsionar,
“geneticamente”, a prática da superstição como um “instinto humano”.1505
O português transportava, no processo de colonização, forçadamente para o Brasil
negros de diferentes etnias, fazendo com que eles não se harmonizassem entre si, mas que
buscassem sincretizar as suas religiões, o que tornava ainda mais difícil uma taxonomia
civilizatória. Era esse horizonte religioso sincrético o único veículo que os unia. Porém, este
excerto denuncia antigos preconceitos e a tentativa de imposição do cristianismo, religião da
civilização ocidental, sobre os negros africanos. “Guardavam-lhes o fetichismo, as cabalas e as
superstições, a poligamia e a incontinência luxuriosa dos costumes. O cristianismo que os
escravizadores lhes impunham, não ganhava os corações”.1506 Primeiro de tudo: o padre Étienne
Brazil naturaliza a instituição escravidão, pois não há, em momento algum, uma tomada de
consciência, mesmo sendo um cristão, do sofrimento imposto aos africanos. Segundo: o
discurso majoritário cristão invalida e marginaliza as formas de crença dos africanos e dos seus
descendentes, docilizando os seus corpos através da noção de pecado. Terceiro: a escravidão,
para o padre, era para um caminho incontornável para o florescimento da civilização ocidental.
O fetichismo africano é considerado, então, um “parasita” do culto romano. É a
interferência de uma “crença inferior” que se “aclimata” e continua vigorando em meio cristão.
Mas isso não significa que se possa conceber esse fenômeno como a absorção da religião mais
forte pela mais fraca. Valendo-se do princípio da absorção é o catolicismo que vem diminuindo
gradativamente as forças dos valores religiosos dos africanos. “Estamos em presença de um
exemplo de aplicação da grande lei de adaptações ao meio, o da seleção natural da luta pela
1503
BRAZIL, Fetichismo... op. cit., p. 200.
1504
Sobre esse tema conferir NICOLAZZI, Fernando. Representação e distância: naturalismo, linguagem e
alteridade na escrita de Os Sertões. In: SILVA, Ana Roda Cloclet da; _____; PEREIRA, Mateus (orgs).
Contribuições à história da historiografia luso-brasileira. São Paulo: HUCITEC, 2013; BLANCKAERT, La
nature... op. cit.,
1505
BRAZIL, Fetichismo... op. cit., p. 200.
1506
Idem, p. 201.
491
vida”.1507 Ou seja, o que temos aqui é um padre defensor do discurso católico, criacionista,
valendo-se da retórica cientificista através de um difuso darwinismo social, evolucionista em
sua essência, para desautorizar um conjunto de crenças que não são consideradas civilizadas.
“E, como a plasticidade de um ser é a sua melhor defesa contra os obstáculos do ambiente, o
fetichismo brasileiro tem pedido de empréstimo ao catolicismo” os elementos basilares para a
efetivação das suas crenças.1508
O racismo científico de Étienne Brazil era contundente.1509 Podemos constatar isso, mais
uma vez, quando o padre salientou a importância do estudo do fetichismo para os africanistas,
especialmente se esses investiam em pesquisas comparativas. No entanto, existia uma extrema
dificuldade defrontada pelo observador das religiões de matriz africana: “Antes de tudo releva
recordar que o cérebro africano é, por origem biológica, tosco e inferior, vago e incoerente. Nos
domínios dessas inteligências obtusas reina, em matéria religiosa, o caos de ideias”.1510 O
racismo se configurava desde a dimensão biológica, passando pelo âmbito do pensamento,
chegando ao universo comportamental.
Essa constatação se acentuava quando Étienne Brazil tornava conveniente a prática da
escravidão. O autor assinalou que os senhores de escravo foram os responsáveis pelo
sincretismo das religiões brasileiras de matriz africana, na medida que não conseguiram o
controle total sofre aqueles sujeitos incutindo-lhes o catolicismo. Em razão disso os cultos
fetichistas, como o candomblé, são transmitidos através das gerações. Todavia, segundo as suas
palavras, os escravos africanos, ou seus descendentes,
(...) também tiveram o seu quinhão de responsabilidade com a prática dos seus
sortilégios, com que amedrontavam, posto que sem razão, os supersticiosos
portugueses. Além disso, aos batuques e candomblés, demasiadamente
frequentes, obstavam a regularidade dos trabalhos. Repetidas vezes, também,
as sessões religiosas degeneravam em verdadeiras orgias tumultuárias. razão
por que a polícia feroz e inexoravelmente perseguia então os bruxos pretos.1511
1507
Ibidem, p. 201.
1508
Ibidem, p. 201.
1509
Sobrepondo-se aos dogmas religiosos majoritários, as teorias raciais concedem status científico às
desigualdades entre os seres humanos e, através da categoria raça, classificam a humanidade, mobilizando
intrincadas taxonomias. Ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças - cientistas, instituições e questão
racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, especialmente o capítulo 2, “Uma história de ‘diferenças
e desigualdades’: as doutrinas raciais do século XIX”. Renato da Silveira diz que é preciso ao argumentar que o
racismo científico difunde formas e modos de legitimação de poder, estruturando, em escala mundial,
especialmente no século XIX e primeira década do XX, “o imaginário coletivo, a educação pública, os padrões da
credibilidade e os mecanismos de formação da opinião. O racismo científico foi, portanto, uma parte
importantíssima da estruturação, pela primeira vez na história da humanidade, de uma hegemonia abrangendo todo
o globo terrestre”. SILVEIRA, Renato da. Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da
hegemonia ocidental. Afro-Ásia, vol. 23, 1999, p. 90. Disponível em: https://cutt.ly/scZcnbt Acesso: 08 abr. 2021.
1510
BRAZIL, Fetichismo... op. cit., p. 202.
1511
Idem, p. 203.
492
Brazil repudiava, ainda nesse sentido, que em sua contemporaneidade os poderes públicos
tolerassem o fetichismo, bem como os seus correlatos, quer dizer, o “imoralíssimo” espiritismo
(kardecismo e umbanda) e a “sórdida” cartomancia. Por fim, o padre foi capaz de formular esta
sentença, baseada em uma flagrante dicotomia entre bem e mal: “Os sortilégios, aliás soem
cercar-se de mistérios e de silêncio; o arcano e as trevas emprestam-lhes o necessário prestígio
para seduzir os tristes crédulos, nossos contemporâneos”.1512
De toda forma, não havia compatibilidade entre a fé fetichista dos africanos e o
romanismo católico. Mesmo que no âmbito particular a “plebe ignorante” se mostre propensa
à superstição, a teologia oficial da Igreja repele energicamente qualquer forma de fetichismo
através da racionalidade filosófica com que analisa o fenômeno religioso; e isso deve ser o
vaticínio de cada cristão. O afastamento das duas formas de culto vem mostrar que o fetichismo
está fadado ao desaparecimento completo em razão de não pertencer ao universo simbólico
civilizado. E Étienne Brazil moveu, além de tudo isso, uma teoria do branqueamento das raças,
em que o negro era totalmente absorvido pelo “caucasiano” em um curto espaço de tempo. Em
razão disso os fetiches perderiam progressivamente a sua funcionalidade ritualística e social.
Nina Rodrigues, conhecido na vida intelectual brasileira por conta dos seus estudos de
antropologia, possui um estudo publicado na RIHGB sobre a história de Palmares. A chamada
do título do artigo, Troia negra (1912), era da pena do historiador português Oliveira Martins.
Rodrigues compreendeu a história de Palmares desde a fundação, passando pelo seu modo de
organização, até a sua derrocada em 1695. Cabe mencionar, além disso, que o estudioso
empreendeu um trabalho propriamente historiográfico: trabalhou com fontes originais, fez a
sua crítica, levantou e confrontou temas amparado por farta bibliografia, redigiu um texto em
que o leitor podia acompanhar os seus caminhos de pesquisa.1513 Contudo, mesmo com essas
precauções epistemológicas, a parte da sua operação historiográfica destinada às explicações
era perpassada por um flagrante racismo científico.
As guerras promovidas por negros nos “Impérios coloniais”, em que se tinha como mote
primeiro a luta pela liberdade, eram consideradas por Nina Rodrigues sem poder de organização
1512
Ibidem, p. 203.
1513
Mário Maestri ressalta os materiais utilizados por Nina Rodrigues em sua investigação sobre Palmares: “Para
escrever seu ensaio, Nina Rodrigues serviu-se dos cronistas e historiadores que haviam se referido à Palmares; dos
relatos sobre as duas expedições holandesas; dos documentos do século 17 editados pelas revistas dos Institutos
Históricos e Geográficos brasileiros; da tradição oral, etc”. MAESTRI, Mário. Benjamin Péret: um olhar
heterodoxo sobre Palmares. In: PÉRET, Benjamin. O quilombo de Palmares. Porto Alegre: EDUFRGS, 2002, p.
50.
493
pelo fato dos seus principais personagens, escravos e ex-escravos africanos, não estarem
situados em uma pátria, que podia conferir o sentimento de defesa de um patrimônio cultural,
ou uma sensação de coparticipação em uma comunidade de sentido e de valores. Sem o apego
à noção de pátria a causa defendida pelas insurreições dos africanos e dos seus descendentes
perde grande parte da sua força e da sua combatividade. Por estarem desterrados, fora dos seus
horizontes de origem e de destino, que se verificam poucos relatos de organização entre
escravos no sentido de emplacarem uma guerra, uma insurreição ou até mesmo uma revolução.
Para Rodrigues: “Nas insurreições dos negros escravos, anteriores às guerras dos muçulmanos,
de todo perde-se o cunho das lutas organizadas, enfraquece-se o nexo ao desígnio de um esforço
pela liberdade, não se percebe mais vibrar o sentimento nostálgico da longínqua terra natal”.1514
Ao reescrever a história de Palmares na Primeira República Nina Rodrigues colocou de
antemão o problema de se saber ao certo quais as inspirações patrióticas animavam aqueles
sujeitos. Rodrigues admitiu ser insuficiente o conhecimento que se tinha sobre esses
movimentos no contexto colonial. Fica difícil compreender, então, quais aspirações estavam
em jogo, quais os intuitos eram demandados e a que se propunham os escravos africanos.1515
Tudo isso se deve em razão de uma explicação tripartite: a colaboração “por igual do desprezo
dos senhores pelos escravos, a ignorância das leis que regem o desenvolvimento dos povos, a
imprevisão da influência histórica que sobre os vencedores exerceram sempre os povos
dominados”.1516 Rodrigues salientou que a história dos movimentos dos negros e dos seus
descendentes não era de conhecimento geral por conta da força opressora dos senhores, pela
falta de compreensão, por parte dos escravos, sobre os mecanismos que orientavam a
organização social e pelo fato de não se ter a certeza sobre quão impactantes foram essas
iniciativas diante do status quo. “Todavia, mesmo assim desconhecidas, de algumas se tem feito
grandiosas epopeias da raça negra”, como é caso da chamada “República de Palmares”. 1517
É de Rocha Pita a comparação de Palmares com uma República. Porém, essa
qualificação de República, para o articulista, apenas tornava-se coerente se fosse feita uma
analogia com o Estado de maneira lato sensu, jamais como justificação de um modelo de
1514
RODRIGUES, Nina. A Troia negra (erros e lacunas da história de Palmares). RIHGB, tomo LXXV, parte II,
1912, p. 233.
1515
Pedro Paulo Funari identifica laços de coesão comunitária em Palmares, mas ressaltando que isso não significa
uma homogeneidade do quilombo. Segundo o seu estudo, “esta evidência não nega a construção de uma identidade
específica de Palmares como comunidade, pois os habitantes tinham uma consciência de estarem em um Estado
rebelde, o que era o resultado da solidariedade resultante dos ataques coloniais por todo o século XVII”. FUNARI,
Pedro Paulo. Heterogeneidade e conflito na interpretação do quilombo dos Palmares. Revista de história regional,
vol. 6, n. 1, 2001, p. 23. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/rhr/article/view/44 Acesso: 08 abr. 2021.
1516
RODRIGUES, A Troia... op. cit., p. 233.
1517
Idem, p. 233.
494
governo por eles adotado. De forma tal que não “se pode tomar à letra a eletividade do Zambi
ou chefe, em que aquela denominação se inspirou, pois esta eletividade não era a das repúblicas
modernas, mas, como em toda África selvagem, a do chefe mais hábil ou mais sagaz”.1518 A
qualificação selvagem, vale ressaltar, implicava um corte na ordem do tempo, pois essa
categoria localizava temporalmente os africanos em um estágio anterior ao da civilização, que
no caso era capaz de impor formas de governo complexas aos, então, primitivos.1519
Nesse estado primitivo de organização política Nina Rodrigues aponta que emerge,
todavia, uma “polícia dos costumes”, que não excluí, cabe apontar, a escravidão. Essa polícia
dos costumes desenvolve e apura a defesa interna e externa do quilombo, em uma espécie de
organização da justiça e da guerra. São punidos a morte o adultero e o ladrão, bem como todo
ex-escravo que decide regressar ao jugo do seu antigo senhor. “A suprema lex na manutenção
de Palmares era a capacidade de manter a liberdade adquirida: faltar a esse dever era desertar e
trair a causa comum, e o máximo de punição devia correr em auxílio dela, a soerguer e sustentar
os ânimos dúbios”.1520
A geografia de Palmares é percebida como retalhada e descontínua, não havendo ruas
com casas em sequência, sendo estruturada, invariavelmente, por agrupamentos, posto que o
quilombo recebe africanos e ameríndios de diversas etnias. Esses agrupamentos são
constituídos por sujeitos que, de algum modo, se reconhecem culturalmente. Rodrigues explica
a cartografia de Palmares ressaltando a atomização populacional do quilombo:
1518
Ibidem, p. 238.
1519
Fernando Nicolazzi localiza o lugar do selvagem entre os modernos: “Distante no espaço mas colocado assim
numa ordem de tempo em que ocupa a posição de anterioridade, o selvagem é então considerado um primitivo”.
NICOLAZZI, Fernando. O tempo do sertão, o sertão no tempo: antigos, modernos, selvagens. Leitura de Os
Sertões. Anos 90, vol. 17, n. 31, 2010, p. 265. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/18945
Acesso: 08 abr. 2021.
1520
RODRIGUES, A Troia... op. cit., p. 238.
1521
Idem, p. 239.
495
comportamento adquirido, em um jogo de apropriação e de aculturação, empresta o modo de
agir coletivo daqueles sujeitos no quilombo. Mas o que retemos por hora é o seguinte: o governo
de Palmares importa, certamente, práticas e costumes da América portuguesa. Mas em termos
de Estado Rodrigues assegura que os negros de Palmares se organizam como na “África
inculta”. “A tendência geral dos negros é a de se constituírem em pequenos grupos, tribos ou
Estados, em que uma parcela variável de autoridade e poder cabe a cada chefe ou potentado”.1522
Aos olhos de um portador, em tese, de civilização, como é o caso de Rodrigues, não se pode
dar crédito à formas de governo e de organização estatal em pequenos núcleos que se
subordinam a um chefe, e em que a elegibilidade venha do prestígio e da felicidade na guerra.
E o olhar civilizador de Nina Rodrigues, carregado de preconceitos, é novamente
percebido em seu confronto com a historiografia que compreendia Palmares como um
movimento precursor da liberdade dos escravos, ou mesmo um ponto originário da experiência
da história republicana. Todavia, o antropólogo é categórico ao afirmar que a vitória de
Palmares significaria o fim da civilização nos trópicos. Nina Rodrigues volta-se contra aqueles
historiadores que são simpáticos à “mísera sorte dos negros escravizados”, que admiram a
bravura dos habitantes do quilombo ante às investidas holandesas e portuguesas, além da
exaltarem os seus líderes em um verdadeiro culto heroico à liberdade. Argumenta Nina
Rodrigues que essa veneração pelas origens republicanas e libertárias em Palmares pode, em
sua “cegueira sectária”, confundir coisas que são distintas: descobrir motivos liberais onde há
tão somente o instinto pela sobrevivência. O que se deve afirmar, diante desse estado de coisas,
é o suposto respeito pela cultura e pela civilização dos povos, ou seja, a civilização e os
progressos da Colônia portuguesa.1523 A efeméride republicana deve marcar a vitória das forças
luso-brasileiras sobre Palmares. Acompanhamos a posição de Rodrigues através deste excerto:
1522
Ibidem, p. 240.
1523
Thyago Ruzemberg Gonzaga de Souza assevera, tento em vista o exposto acima, que a obra de Rodrigues
também é definida pela tentativa da “garantia da ordem social”. SOUZA, Thyago Ruzemberg Gonzaga de. De
Nina Rodrigues a Arthur Ramos: a reinvenção de Palmares nos “estudos do negro”. Temporalidades, vol. 5, n. 2,
2013, p. 171. Disponível em: https://cutt.ly/CcZvYDI Acesso: 08 abr. 2021.
1524
RODRIGUES, A Troia... op. cit., p 241.
496
Nina Rodrigues explica que a derrota de Palmares ocorre durante o ano 1695, havendo,
nesse contexto, construções e reconstruções do quilombo e diante de cerca de “25 investidas”
da Coroa portuguesa. Os seus habitantes são reduzidos à escravidão e as habitações são
arrasadas. Celebra-se, como clímax da narrativa, uma missa em ação de graças em Olinda.
Realiza-se uma procissão e a capitania “entregou-se as maiores alegrias”.1525
Nina Rodrigues vale-se do “programa” desenvolvido por Rodrigo de Souza da Silva
Pontes no IHGB, em 1840, para examinar a história de Palmares: qual raça, ou qual povo negro,
predomina em Palmares? Que crença professam os seus habitantes? Qual o grau de cultura do
quilombo? Qual a sua capacidade de organização social? Vê-se que a atualização desse
programa implica, no limite, na formulação de um questionário atravessado pelo olhar do
homem branco e civilizado. Eram perguntas que se orientavam para a realização de uma
verdadeira taxonomia social do quilombo de Palmares. O trabalho historiográfico do conhecido
antropólogo está impregnado pelas mesmas noções de ser humano e de sociedade propagadas
pelas teorias raciológicas em voga no Brasil na passagem para o século XX.
As categorias povo e a raça, em Nina Rodrigues, eram análogas, havendo a hipótese que
a organização do quilombo de Palmares fosse obra de negros muçulmanos. O grau de cultura,
haja vista a complexidade da sua religião, pode ser um indício para se compreender o sucesso
organizacional do quilombo nordestino. De qualquer modo, a forma de culto e o
comportamento dos supostos escravos descendentes de muçulmanos são atravessados pela
religião católica, que os negros ali situados herdam, por aculturação ou por apropriação, da
cultura holandesa ou lusitana dos seus senhores. De tal forma que há imagens católicas e uma
capela em Palmares. Mas o que se depreende desse processo de trocas e de fusionamentos
culturais não é outra coisa que não seja a classificação, pelo olhar de um historiador juiz-
cientista, de Palmares a partir de um patamar baixo de civilização, beirando a barbárie.
Ademais, em se tratando miscigenação racial, Rodrigues era partidário daqueles intelectuais
que compreendem esse fenômeno como degeneração1526, ou seja, o autor era um racista
científico. Rodrigues concluiu que eram negros fetichistas os que se congregaram em Palmares,
ao menos entre os líderes; sendo essa forma de culto um exemplo do estado primitivo e
selvagem do quilombo. O processo de degeneração ocorria, além do mais, no plano social e
cultural, como se observara em Palmares.
1525
Idem, p. 250.
1526
Segundo Lilia Moritz Schwarcz, “toda mistura de espécies era sinônimo de degeneração”. SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Nina Rodrigues e o direito penal: mestiçagem e criminalidade. In: ALMEIDA, Adroaldo; et. al. (org.).
Religião, raça e identidade: colóquio do centenário da morte de Nina Rodrigues. São Paulo: Paulinas, 2009. p. 38.
497
Nina Rodrigues explica que é da matriz político-religiosa bantu o termo Zambi, que
significa rei, ou chefe de Palmares. Zambi é a palavra pela qual os povos bantus nomeiam a sua
principal divindade. Mas a aculturação sofrida por negros e por negras no Brasil transforma o
significado do vocábulo Zambi para designar apenas chefe de Estado. Eles possuem, pela
catequese, a noção do Deus cristão. “Os palmarinos estavam evidentemente impregnados do
ensino católico das fazendas e engenhos, e dispunham assim, na palavra portuguesa Deus, de
outra expressão para designar as suas confusas ideias religiosas”.1527 Mas o que fica evidente,
enfatiza Rodrigues, é que Zambi, no contexto de Palmares, tem as atribuições de um Deus da
guerra, com “um gênio terrível e guerreiro”.1528 O estudo da linguagem bantu realizado pelo
autor, que leva em consideração as transformações ocorridas no contexto de Palmares, o instiga
a conceber que há Ganga-Zumba e Zambi. Zambi é, ao mesmo tempo, chefe e governador do
quilombo, enquanto Ganga-Zumba figura como o rei - entidade suprema e sagrada.
De qualquer modo, o olhar classificatório de Rodrigues, como historiador e como
antropólogo, apontava que o fetichismo e o estabelecimento de uma cosmovisão amparada por
um Deus da guerra eram provas irrefutáveis que essas populações estavam em um estágio
anterior ao da civilização. A mistura étnica verificada em Palmares era combustível para que
não houvesse, entre aqueles grupos, qualquer forma de evolução.
Os traços distintivos que classificam Palmares como um ponto fora da curva do
florescimento da civilização no Brasil relacionam-se ao seu modo de conceber a sua política
governamental, a saber, tão somente organizada para a defesa interna e externa, bem como pelo
fato de não haver naquele espaço social a passagem da agricultura para o comércio. Valendo-
se dessa teoria da civilização, aplicada de antemão, Nina Rodrigues afirma que os africanos e
as africanas (e os seus descendentes) ao invés de evoluírem com o seu pequeno Estado
retrocedem ao estado de barbárie. Muito provavelmente esse parecer do antropólogo estava
relacionado com a tese que comportava a afirmação que a miscigenação levava a degeneração
das raças. “E tudo isto em nada excede a capacidade dos povos bantus. Assim se pode afirmar
que francamente voltaram eles à barbárie africana”.1529
1527
RODRIGUES, A Troia... op. cit., p. 254.
1528
Idem, p. 254.
1529
Ibidem, p. 258.
498
Capítulo 16 - Um passado para a República: reelaborando a memória
nacional, escrevendo a história pátria
Aristides Milton
1530
ARARIPE, Tristão de Alencar. Três cidadãos beneméritos da República. RIHGB, tomo LX, parte I, 1897, p.
389.
1531
MILTON, Aristides. A República e a federação no Brasil. Acontecimentos na Bahia. RIHGB, tomo LX, parte
II, 1897, p. 17.
1532
Reinhart Koselleck afirma que as histórias emergem, primeiramente, a partir da aquisição de experiência, ou
seja, elas surgem a partir do campo experiencial das pessoas em seus contextos de atuação: “Direita ou
indiretamente, toda história trata de experiências próprias ou alheias. Por isso, podemos supor que os modos de
contar histórias ou de elaborá-las com método possam ser relacionados aos modos como adquirimos, reunimos ou
modificas as experiências. Cada aquisição ou modificação de experiência se desdobra no tempo, e assim surge
uma história”. KOSELLECK, Mudança de experiência... op. cit., p. 33.
1533
O seguinte apontamento de Angela de Castro Gomes é fundamental para que compreendamos a questão em
jogo: “A abolição e a República impactaram profundamente o processo de construção da identidade nacional
brasileira, até porque apenas depois desses eventos foi possível “imaginar” a existência de uma nação constituída
por um “povo”, ou seja, integrada juridicamente por homens livres”. GOMES, A República... op. cit., p. 24.
499
Tristão de Alencar Araripe enfatizou que a República no Brasil foi prefigurada por uma
teleologia de sentido. Dessa maneira, a República ao ser proclamada estava estritamente de
acordo com a ordem do tempo, em uma espécie de motor da história que a tudo antecipava em
forma de representação, não sendo a sua eclosão considerada, então, atrasada em termos de
organização política, mais apta a conceber a pátria no presente e, tampouco, estava em
desacordo com os anseios demandados pela sociedade.1534
Diante dos argumentos dos restauracionistas monárquicos, que assinalavam que a
Proclamação da República era um incidente na cadeia da formação histórica nacional, se fez
necessário oferecer um passado para a República, para que assim ela ganhasse sentido no
presente. Tristão de Alencar Araripe, por exemplo, acredita que há um processo longevo de
democratização do Brasil que tem como ponto culminante o 15 de novembro:
A República era sinal das ideias civilizadoras nos trópicos. Os(as) brasileiros(as) eram
responsáveis pela instauração dessa instituição política no país, dado que se fizeram agentes
junto ao motor da história em questão, que a todos tocava pelos ideais de democracia (valoração
eurocêntrica).1536 A história do Brasil era vista como um caminho em que as luzes
democráticas1537 soterravam os vaticínios autoritários, como podia ser visto nos movimentos
1534
Essa narrativa de sentido criada, por exemplo, por Araripe pode ser compreendida a partir daquilo que o
historiador Jörn Rüsen denomina de “continuidade teleológica do sistema de valores da formação de identidade”,
prevista, por exemplo, nas formas de afirmação etnocêntricas. Nesse âmbito, “(...) o sistema de valor de formação
da identidade é representado na forma de uma origem arquetípica. A história está comprometida com essa origem,
e sua validade provê o passado com sentido histórico e significado. A história tem uma meta, que é a força motriz
do seu desenvolvimento desde seu princípio. Esta origem é sempre específica, é a origem de nosso próprio povo.
A alteridade está tanto relacionada com origens distintas como com um desvio do caminho regular do
desenvolvimento guiado pela validade da forma de vida original”. RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado:
questões relevantes de meta-história. História da historiografia, n. 2, 2009, p. 176. Disponível em:
https://cutt.ly/gcZfJcN Acesso: 08 abr. 2021.
1535
ARARIPE, Três... op. cit., p. 387.
1536
A partir do importante dicionário de Antonio Moraes Silva, de 1813, pode-se buscar uma ancestralidade para
os conceitos de República e de democracia. Um dos significados de República é: “Estado, que é governado por
todo o povo, ou por certas pessoas”. Enquanto isso, democracia é conceituada desta maneira: “forma de governo,
no qual o sumo império, ou os direitos majestáticos residem atualmente no povo, e são por ele exercidos”. LYNCH,
Christian Edward Cyril; STARLING, Heloisa Maria Murgel. República/republicanos. In: JÚNIOR, João Feres.
Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009, p. 225-226.
1537
Maria Tereza Chaves de Mello observa atentamente o léxico político presente na década de 1880. Para a autora,
os conceitos de República e de democracia apresentam-se como pares assimétricos, desautorizado, então, o ideário
monarquista. A sinonímia que, na década de 80, se estabelece entre República e democracia na opinião pública é
a principal conquista dos republicanos. Uma sinonímia tão fechada que torna excludente qualquer outra
500
políticos, muitas vezes chamados de “revoltas nativistas”, na Colônia e no Império. Esses
movimentos prefiguraram a democracia republicana. A instituição “republicana em nossa terra
foi inquestionavelmente assinalado progresso, que nos deve conduzir ao auge da grandeza; e
beneméritos são, portanto, os Brasileiros, que por atos importantes concorreram para essa obra
de melhoramento político e de dignidade”.1538 Lembrando que progresso estava, aqui, alinhado
com a matriz eurocêntrica civilizadora.
Em suma, a instauração da República no Brasil estava atrelada, em muitos dos casos, à
ideia de democratização patriótica. Isso em razão da ideia de democracia também assegurar os
atributos de liberdade para homens e para mulheres, sendo ela, então, oposta a Monarquia. O
princípio democrático era mobilizado para confrontar a autoridade estatal imperial, sobretudo,
no que tangia a instituição escravidão e o poder moderador. Assim, liberdade e democracia
passavam a se movimentar como antíteses da Monarquia. Novamente Tristão de Alencar
Araripe nos deixa cientes sobre a discussão em questão:
interpretação. MELLO, Maria Tereza Chaves de. República versus monarquia: a consciência histórica da década
de 1880. História Unisinos, vol. 14, n. 1, 2010, p. 19. Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/4701 Acesso: 08 abr. 2021.
1538
ARARIPE, Três... op. cit., p. 385.
1539
Idem, p. 389.
1540
MILTON, A República... op. cit., p. 5.
1541
Essa constatação evolucionista impacta, para Maria Tereza Chaves de Mello, a compreensão social do tempo
no contexto aqui abordado: “As vertentes modernas de pensamento fizeram o tempo ser sentido e também
percebido como um ator, ou melhor, como um construtor da História, encaminhando-a na perspectiva do progresso.
Essa noção de progresso deu outra qualidade ao tempo: deu a ele um conteúdo histórico”. MELLO, República...
op. cit., p. 21.
501
aproxime da justiça e da verdade”.1542 As nações democráticas procuram, para Milton,
contemporaneamente obedecer aos predicados da República federativa, sistema político
considerado mais evoluído, em que há preocupação em garantir os direitos individuais, em
horizontalizar os indivíduos perante as leis e em dividir igualmente a riqueza da nação.
O primeiro sistema político moderno nessa teleologia de sentido teorizada por Milton é
a monarquia absoluta, “que pesou sobre os Estados, qual pavoroso castigo do céu”. Ali a nação
se resume ao rei. Até existem senhores, porém esses estão expostos aos caprichos da realeza.
No mais, uma sociedade de escravos “fadados à vergonha, a ignominia e à morte”. Após a
Revolução Francesa há, adentrando todo o século XIX, o investimento nas monarquias
constitucionais. Até certo ponto aceita-se nesse sistema político a soberania popular, porém o
rei continua sendo a encarnação do poder e do princípio de autoridade, representante máximo
do ordenamento social e símbolo patente das tradições.1543 Contudo, nessa dinâmica evolutiva
das formas de organização políticas e sociais a Monarquia perde o seu significado e a sua
legitimidade perante o poder popular, destino manifesto dessa teleologia de sentido:
Era chegado, então, os tempos da República federativa e democrática. Fator, em última medida,
de civilização entre os brasileiros e as brasileiras.
Firma-se, contemporaneamente, o compromisso com a República, ou seja, se compassa
os devires formativos das organizações políticas e sociais com os anseios do presente. A ideia
republicana representa, no limite, a tomada do poder pelo povo, cujo chefe, sempre transitório,
pode advir de qualquer segmento social através da escolha da maioria da população. Em algum
sentido Aristides Milton também aproxima a República da democracia. Em resumo: a
Monarquia absoluta tem como soberano o rei; a Monarquia constitucional tem os dois - o rei e
o povo; a República tem apenas um, isto é, o povo. Assim, falta apenas um estágio nessa
teologia de sentido: a República federativa. Essa forma de organização política amplifica a
democracia, pois reúne Estados diferentes, com as suas particularidades político-sociais-
culturais regionais, sob o mesmo governo. São federações independentes dentro da República.
1542
MILTON, A República... op. cit., p. 6.
1543
Idem, p. 7.
1544
Ibidem, p. 8.
502
A queda da monarquia acontece, em tese, com a anuência do “caráter do povo” a partir
de uma predisposição a acatar o federalismo como forma de governo:
1545
MELO, Alfredo Pinto Vieira. Discurso de posse. RIHGB, tomo 85, parte I, 1919, p. 351.
1546
ARARIPE, Tristão de Alencar. Movimento colonial da América. RIHGB, tomo LXI, parte II, 1893, p. 99.
1547
Maria Tereza Chaves de Mello explica que isso não é somente uma preocupação de Tristão de Alencar Araripe,
mas “de todos os republicanos”, em que se quer “introduzir no imaginário um outro relato da história nacional,
onde a liberdade fosse a sua principal personagem”. MELLO, República... op. cit., p. 18.
1548
ARARIPE, Movimento... op. cit., p. 114.
503
Euclides da Cunha admite que o pensamento político republicano, que segundo ele
ganha força a partir da década de 1870, coloca em movimento tendências que ao longo de todo
o Império são reprimidas. Liberalismo, anti-escravismo, federalismo agitam a cena política no
último quartel do século XIX, sendo frutos de um amadurecimento progressivo dos ideais
emancipacionistas, que a todos arregimenta e convence. É um movimento que mesmo abafado
caminha sorrateiramente, na medida em que se configura como uma determinante histórica.1549
Assim, Euclides cria uma narrativa de sentido, uma história única, que evidencia o
republicanismo federativo desde a sua forma ainda pouco esclarecida, passando pelo momento
em que se institucionaliza como partido atuando no Império até chegar a sua eclosão como
demanda societária após a década de 1870:
1549
Essa é a posição de Euclides desde o seu primeiro artigo na impressa: “A pátria e a dinastia” (1888). A
República segue o destino manifesto. Segundo o futuro autor d’Os Sertões: “Desiluda-se, pois, o governo; a
evolução se opera na direção do futuro”. VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha e a República. Estudos
históricos, 10 (26), 1996, p. 277. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8928 Acesso: 08 abr.
2021.
1550
CUNHA, Euclides. Da Independência à República. RIHGB, tomo LIX, parte II, 1906, p. 63.
1551
CUNHA, Da Independência... op. cit., p. 69.
504
1831, abortícia em 1848, era-o a República, sobretudo porque se não podia inverter a série
natural da evolução humana”.1552 A sociedade não repele a República, prorroga-a. A partir da
década de 1870 ela começa a incorporá-la. Mas tudo isso de acordo com uma ordem natural.
Esses autores citados promoveram uma nova adjetivação, decorrente de políticas da memória,
junto ao singular coletivo Brasil.
Já Aristides Milton, que se pretende imparcial em suas análises, propõe um foresight da
história nacional, acessando aí o devir do seu tempo histórico em formação, bem como para
defender que a Proclamação da República no Brasil não é obra do acaso, mas, sim, “fruto de
uma evangelização anterior e fecunda, o resultado de aspirações antigas e bem acentuadas”.1553
Durante o período de domínio metropolitano, e ainda depois da Independência, há no Brasil
algumas “revoluções” de caráter francamente republicano: 1710, Revolução dos Mascates;
1889, Inconfidência Mineira; 1798, Revolução Republicana na Bahia; 1917, Revolução
Pernambucana; 1924, Confederação do Equador; 1835, República de Piratini (Revolução
Farroupilha); 1837, Sabinada; 1842, Revoluções republicanas em São Paulo e Minas Gerais;
por fim, 1848, Revolução Praieira. Conclui Milton sobre a herança que a República possui em
termos de organização federativa:
Isto ocorrerá para provar – que, pelo menos, a federação, longe de ter sido
uma solução inopinada, um recurso imprevisto, um mero expediente de
ocasião, como alhures assoalharam; preocupava, ao contrário, desde muito
tempo alguns espíritos iluminados, e sintetizava as esperanças de muitos
corações patrióticos.1554
Cabe destacar que para além dos movimentos federativos de contestação ao status quo
ou da ordem metropolitana portuguesa, ou do Império brasileiro, encontravam-se registradas
inúmeras tentativas de soerguimento da causa federativa no parlamento. É por meio das ações
patriótico-federativas do parlamento, entre outras, que a Monarquia perde a sua a força
enquanto projeto político autorizado para a nação. O caráter supostamente federativo da
1552
Idem, p. 69.
1553
MILTON, A República... op. cit., p. 9.
1554
Idem., p. 14. A fala de Julio de Castilho na Constituinte é uma amostra contundente da pregnância
comunicativa da ideia de federalismo no contexto finissecular brasileiro: "Nós estamos aqui reunidos para instituir
a República Federalista. Aqueles que, como nós, por longos anos, fizeram a propaganda da República, não a
queremos unitária, mas sim federativa, essencialmente federativa. Nós entendemos, como sempre sustentamos,
que a República Federativa é o único meio de garantir a unidade política no meio da variedade e dos costumes da
Nação. E, se a Federação não ficar instituída na Constituição, havemos de ver ressurgir, sob a República, a mesma
agitação que se avolumou sob o Império. Pedíamos a República Federativa como condição eficaz de garantir a
homogeneidade política no meio da variedade dos interesses econômicos e das circunstâncias e costumes da
população”. Apud LAFER, Celso. O significado de República. Estudos históricos, vol. 2, n. 4, 1889, p. 220.
Disponível em: https://cutt.ly/ccLBVU Acesso: 08 abr. 2021.
505
constituição imperial é o mote para que diversos estadistas argumentem, desde os primeiros
anos da Monarquia, que há uma caducidade implicada nesse regime, posto que está
descompassado com a sua própria “carta magna”, que melhor se adapta à República. Em
resumo: “Tanto era a convicção partilhada por alguns, de não ser possível por muito tempo
mais amparar o trono, se o privilégio que ele consubstanciava não fizesse novas concessões às
exigências do progresso e aos impulsos da liberdade”.1555
De qualquer maneira, independente do movimento de força orquestrado e utilizado pela
Metrópole, ou pela Monarquia brasileira, junto aos seus súditos, o que prevalecia com o passar
dos anos era o fortalecimento, mesmo que por vias marginais, do sentimento emancipatório e
da ideia de República, a qual traz consigo a liberdade e a democracia:
Não obstante o rigor do régio poder em castigar o crime político dos nossos
patrícios, a ideia emancipadora não morria, nem definhava; porque debalde a
tirania procurava destruir o patriotismo com a violência e barbaridade das
penas. A aspiração dos Brasileiros de formarem a sua nacionalidade a tudo
sobrepujava”.1556
Em vista disso, como quer o associado Jonatas Serrano, a República vem atender as
prerrogativas daquele contexto histórico: “Teoricamente, estou em que se possa demonstrar a
excelência de uma dada forma governativa. Tal é, para mim, a hipótese quanto à República.
Praticamente o melhor governo é o que mais atende as justas exigência do meio social num
dado momento de seu desenvolvimento histórico”.1558
Além da instauração de uma narrativa de sentido única, responsável por ordenar o tempo
da pátria e por rearticular a sua memória coletiva, são eleitos pelo Conselheiro Araripe os
personagens e os momentos simbólicos responsáveis por tornar factível a República. A esses
sujeitos, “benfeitores da pátria”, se presta homenagem e veneração, sendo exemplos de civismo
para a República brasileira. Na visão de Araripe entre esses sujeitos estão: Deodoro da Fonseca,
1555
MILTON, A República... op. cit., p. 16.
1556
ARARIPE, Movimento... op. cit., p. 111.
1557
Idem, p. 115.
1558
SERRANO, Jonatas. Discurso de posse. RIHGB, tomo 85, 1919, p. 527.
506
Benjamin Constant e Floriano Peixoto. Suas estátuas em bronze e em mármore, erguidas em
todo país, eram sinais da devoção dos cidadãos e das cidadãs republicanos a esses sujeitos,
sendo ainda uma marca de exemplaridade para que as gerações futuras se lembrassem dos seus
feitos cívicos. Desse modo, “O povo brasileiro começa a tributar o devido preito à memória de
três dos mais eminentes varões, que contribuíram de modo eficaz e decisivo para o
estabelecimento das instituições republicanas no Brasil”.1559
De acordo com a percepção de Tristão de Alencar Araripe, o Marechal Deodoro da
Fonseca representa a força do momento histórico, capaz, então, de colocar fim a Monarquia em
crise, consumando o evento do 15 de novembro. Ademais, o Marechal é o símbolo máximo do
exército, personagem que passa a ser considerado importante na esfera pública republicana.
Enquanto isso Benjamin Constant é considerado o doutrinador, capacitado a encucar nos
cidadãos e nas cidadãs republicanos os valores democráticos e cívicos. Já o Marechal Floriano
Peixoto é importante em razão da sua firmeza e valor, isto é, por impedir qualquer tentativa de
restauração monárquica. Deodoro proclama, Constant a doutrina e Peixoto a concretiza e a
solidifica. Esse novo panteão faz os brasileiros e as brasileiras perceberem o regime republicano
dotado de sentido próprio, em que há, inclusive, exemplos a seguir.
Esses três personagens faziam parte do presente republicano como líderes destacados.
Porém, era necessário criar um passado mais longevo e ancestral para a República.1560 Para o
entendimento das ações dos agentes que a proclamaram. Historicizando o “espírito
republicano” (o conceito moderno de história) ao longo da experiência da história nacional
encontram-se estes símbolos exemplares, momentos em que os brasileiros se insurgem contra
a Coroa e o poder dito despótico: 1710, com os Mascates; 1789, com a Inconfidência Mineira;
1817, com a Revolução Pernambucana; 1824, com a Confederação do Equador; 1835, com a
República de Piratini; 1837, com a Sabinada; por fim, 1848, com a Revolução Praieira em
Pernambuco. Se têm um novo cânone representativo que apresenta a formação da história
brasileira, posto que até aquele momento esses episódios e essas situações eram desautorizados
por uma história oficial monárquica.1561 Há, ainda, uma maior pluralidade subjacente ao
conceito de povo.
1559
ARARIPE, Três... op. cit., p. 383.
1560
Concordamos com José Murilo de Carvalho que a República institui mitos de origem. “O mito de origem é
um fenômeno comum a quase todos os sistemas políticos. (...). As próprias revoluções transformam-se em mitos
de origem de novos sistemas políticos. A universalidade do fenômeno denuncia o poder dos mitos em forjar
identidade coletivas. A República tentou criar o seu mito de origem”. CARVALHO, José Murilo de. A nova
historiografia e o imaginário da República. Anos 90, n.3, 1996, p. 16. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/6115 Acesso: 08 abr. 2021.
1561
Sobre a ampliação da memória republicana nas primeiras décadas do século XX ver o importante trabalho de
507
A ampliação da memória nacional, que corresponde ao movimento de dotar de passado
a República, tem no major José Domingues Codeceira um dos seus principais articuladores. O
major Codeceira tem o intuito de demonstrar que o passado republicano não se limita à
Conjuração Mineira e ao seu mártir, Tiradentes, comemorado com festas públicas e cívicas todo
dia 21 de abril. Era necessário alargar esse passado, e para tanto havia que se admitir a
prioridade de Pernambuco na Independência e na liberdade nacional. Faz-se necessário “(...)
que esta glória seja reivindicada à Pernambuco, a quem de direito pertence por ter sido a
primeira província que em seu solo plantou a soberba árvore da independência brasileira,
regando-a com o precioso e generoso sangue de seus filhos”.1562
Eis as novas efemérides nacionais que são articuladas em uma narrativa de sentido única
cujo destino manifesto é a tomada de consciência sucessiva sobre a importância da liberdade
no Brasil: 27 de janeiro de 1654: libertação, após 24 anos de embates, do domínio holandês; 10
de novembro de 1714: Revolta dos Mascates; 6 de março de 1817: Revolução de 17: “Essa
revolução foi completa e pela primeira vez se ouviu proclamada e tentada a realização de um
governo republicano no solo brasileiro pelos pernambucanos em sua província”;1563 24 de julho
de 1824: Confederação do Equador. Para Codeceira essas situações devem ser registradas no
grande “livro da pátria”, dado que constam em documentos autênticos. Vê-se que Pernambuco
é, portanto, a Província precursora da ideia de Independência e de liberdade em solo brasileiro:
RODRIGUES, Mara Cristina de Matos. Memórias regionais no IHGB: os centenários das revoluções
pernambucana e farroupilha – 1917 e 1935. Revista memória em Rede, vol. 4, n. 10, 2014. Disponível em:
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/107194 Acesso: 08 abr. 2021.
1562
CODECEIRA, Major José Domingues. Exposição de fatos que comprovam a prioridade de Pernambuco na
Independência e liberdade nacional. RIHGB, tomo LIII, parte I, 1890, p. 327.
1563
CODECEIRA, Exposição... op. cit., p. 336.
1564
Idem, p. 337.
1565
A história, como quer Codeceira, “possuía a ‘missão’ de mobilizar o conhecimento do ‘passado comum’ de
uma nação, cumprindo uma função pedagógica, a partir da elaboração de narrativas coerentes e de fácil
assimilação, com o intuito de conseguir despertar o amor à pátria de seus cidadãos”. CAVALCANTI, Amanda
508
possível de ser percebido em razão das comemorações dos centenários da Revolução de 1817
e da Confederação do Equador, em 1824, ocorridas no Instituto.
A comemoração da Revolução pernambucana de 1817 foi articulada pelo IHGB e pelo
IAHGP. Na sessão solene ocorrida em 6 de março o 1° secretário do Instituto Arqueológico
pernambucano, Mario Melo, envia notícias por telegrama ao presidente do IHGB, Afonso
Celso, sobre o tom da comemoração: “O Instituto Arqueológico, certo de que a Revolução de
1817 foi o movimento precursor da Independência, cujos ideais dignificam todos os brasileiros,
felicita v. ex. pela data de hoje, quando Pernambuco inteiro glorifica venerandos mártires”.1566
Melo informa, além disso, aos agremiados do IHGB o clima festivo verificado em Pernambuco
naquele ano. Há missas campais recordando os mártires do movimento; procissões cívicas com
as bandeiras do movimento e de Pernambuco; ergue-se um monumento em justa homenagem
aos “heróis de 17”; há representantes de diversos Estados da federação; também se vê diversas
paradas militares; e o Diário de Pernambuco dedica uma edição especial ao centenário.
O presidente Afonso Celso, antes de chamar o palestrante responsável por guiar as
festividades, oferece a visão oficial do IHGB sobre o movimento de 17, prócere da
independência, da liberdade e, também, da República:
Alves Miranda. Cadê Mário Melo: um historiador do IAHGP pelas ruas do Recife. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós-graduação em História, UNIRIO, 2017, p. 87. Disponível em:
http://www.unirio.br/cch/escoladehistoria/pos-graduacao/ppgh/dissertacao_amanda-cavalcanti Acesso: 04 dez.
2020.
1566
MELO, Mário. Sessão solene especial comemorativa do centenário da Revolução pernambucana de 1817.
RIHGB, tomo 82, parte II, 1917, p. 622.
1567
CELSO, Afonso. Sessão solene especial comemorativa do centenário da Revolução pernambucana de 1817.
RIHGB, tomo 82, parte II, 1917, p. 622.
1568
LIMA, Alexandre José Barbosa. Sessão solene especial comemorativa do centenário da Revolução
509
historiadores que não aderem à historiografia republicana: ”Como se compreende que
historiadores ainda hoje se manifestem horrorizados com as consequências da resistência que
os conjurados opuseram aos executores na hora da ordem de prisão?” 1569 E o historiador
pernambucano vai ainda mais longe, deslegitimando, então, qualquer resíduo da historiografia
majoritária circulante no Império: “Como se compreende tanta benignidade para a legalidade
quem fuzila, enforca, esquarteja, confisca, infama (...)”?1570 O palestrante salienta que a
reescrita da história na República possui qualquer coisa de “vingança” em seus horizontes,
dando voz, de alguma maneira, aos vencidos.
As formas de governo propostas pelos revolucionários pernambucanos de 17 seriam
preceptoras da República, na medida em que o poder emanava democraticamente do povo.
Resgatar a Revolução de 17 não deixava de ser, cabe mencionar, um uso político do passado.1571
É uma maneira de legitimar a República e, sobretudo, o federalismo:
Esse Governo, porém, não era autoritário: tinha que subordinar-se às bases
que, sob nome de Projeto de Lei Orgânica, foram enviadas às Câmaras para
serem por estas aprovadas, caso achassem apropositado o dito Projeto – o qual
teve aprovação do Governo e do Conselho, faltando para ser posto em prática,
a aprovação das municipalidades. A essa se recomendou que convocassem o
povo e todas as classes para discutir e votar o mesmo projeto, lavrando-se de
todo o preciso auto com o maior número de pessoas notáveis e que concorresse
“o povo quase todo, pois lhe interessa conhecer como hão de ser
governados”.1572
Seja qual for o critério para ajuizar do movimento revolucionário que, há cem
anos, de Pernambuco se propagou a outras então províncias do Império,
ninguém, de boa-fé, poderá contestar o ardor cívico dos revoltados, a sua
1573
Idem, p. 657.
1574
Ibidem, p. 675.
1575
Para a compreensão da Confederação do Equador, através da historicização das memórias subjacentes ao
movimento, conferir o instigante trabalho de FONSECA, Silvia Carla Pereira de Brito. História e memória: os
relatos da Confederação do Equador. Maracanan, n. 3, 2005/2007. Disponível em: https://cutt.ly/IcLDSFM
Acesso: 08 abr. 2021.
1576
Segundo Angela de Castro Gomes, os usos do passado vinculam-se às ações conscientes e ativas de elaboração
de memórias históricas, evidenciando, então, a necessidade sistemática de produção de passados que legitimem
projetos políticos no presente e para o futuro. Cf. GOMES, A República... op. cit., p. 60
511
dedicação no cumprimento do que julgavam seu dever de brasileiro o
heroísmo com que muitos sacrificaram interesses, arriscaram e perderam a
vida.1577
1577
CELSO, Afonso. Sessão solene especial, em 2 de julho de 1824, comemorativa do centenário da Confederação
do Equador. RIHGB, tomo 96, parte II, 1924, p. 373.
1578
As comemorações do centenário da Confederação do Equador não ficam adstritas à Pernambuco. Um bom
exemplo disso são as comemorações no Ceará, como pode ser acompanhado no trabalho de VALENTE, Paulo
Gionanni G. Memórias da política, políticas da memória: o centenário da Confederação do Equador no Ceará.
Dissertação (Mestrado em História) – Pós-graduação em História Social da UFC, 2014. Disponível em:
http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/9137 Acesso: 04 dez. 2020.
1579
SILVA, Manoel Cícero Peregrino da. Pernambuco e a Confederação do Equador. RIHGB, tomo 96, parte II,
1924, p. 374.
512
representantes da Corte que não seja aceitar os reclames pernambucanos. O executivo e o
legislativo provinciais são escolhidos através de eleição.
Mas não é esse o desfecho do problema. Correm os meses e disputas de poder entre a
Província e a Corte se intensificam em torno dos problemas da organização política de
Pernambuco. Nesse período, Manuel de Carvalho mantem-se presidente da Província,
assumindo o dever a ele delegado: manter as convicções republicanas e democráticas. A outorga
da Constituição é um dos pontos decisivos para o estabelecimento da Confederação do Equador.
Em Pernambuco se desautoriza os deputados escolhidos pela Corte. Em lugar deles decide-se
por representantes populares e homens notáveis da região. Manuel de Carvalho age habilmente
para implementar a República em Pernambuco e adjacências:
1580
SILVA, Pernambuco... op. cit., p. 388.
1581
É preciso, no entanto, ter em mente que nesse contexto político-social não estava em cena apenas,
especialmente em Pernambuco, um único projeto político de nação, qual seja, o revolucionário, mas uma
configuração em que havia uma disputa entre federalistas e adesistas. As palavras de Luiz Geraldo Silva revelam
essa atmosfera política: “frequentemente, põe-se ênfase demasiada nas ideias e práticas do grupo federalista,
isolando-o de uma configuração relacional da qual faziam parte os demais grupos políticos – notadamente aqueles
partidários da centralização”. SILVA, Luiz Geraldo. Um projeto para a nação. Tensões e intenções políticas nas
“províncias do norte” (1817 – 1824). Revista de História, 158, 2008, p. 205. Disponível em:
https://cutt.ly/qcZzdTE Acesso: 08 abr. 2021.
513
ficou latente para vir a se tornar arvore frondosa a 15 de novembro de 1889, vitoriosa a forma
definitiva, a forma republicana, federativa, sem distinções regionais e mantida a integridade
indestrutível do território brasileiro”.1582
Em vista disso, a história de Pernambuco tornava-se história do Brasil. O passado
republicano expandia a sua memória. Exemplos do passado davam sentido à causa republicana
no presente. Mártires foram cultuados como forma de devoção cívica. Parece que o tribunal da
posteridade finalmente estava apto a julgar os republicanos de 24:
(...) faz hoje 200 anos dia por dia, o corpo de Felipe dos Santos, depois de
enforcado, era atado à cauda de um cavalo, para Mazeppa não do amor; mas
da liberdade, que é também amor e dos mais santos, escrever nas pedras da
região mineira, as rubras letras de sague, o protesto da colônia oprimida contra
a cúpida tirania dos prepostos d’el-rei”.1585
É o modo de encarar como causa problemas nativistas diante da opressão, ou por impostos, ou
pela escravidão, ou por códigos de conduta não compatíveis com os interesses locais, que leva
Filipe dos Santos a ser considerado um precursor de Tiradentes. O que unia ambos? A causa da
1582
SILVA, Pernambuco... op. cit., p. 416.
1583
Idem, p. 416.
1584
Pode-se dizer que a República elegeu a figura de Tiradentes enquanto representante emblemático do herói
nacional. O esforço de diversos intelectuais na passagem para o século XX em positivar a figura de Tiradentes
contou, inclusive, com o apoio e o incentivo estatal. Cf. CARVALHO, A formação das almas... op. cit., 1995.
1585
SERRANO, Jonatas. O precursor de Tiradentes. RIHGB, tomo 87, parte I, 1920, p 473.
514
liberdade. Que não por acaso é o motor da história na teleologia republicana mobilizada no
Brasil pós-15 de novembro.
Em 1918 Homero Batista, no intuito de comemorar outra data cívica, também amplia a
memória pátria ao incorporar o movimento revolucionário que popularmente veio a ser
conhecido como Guerra dos Farrapos, iniciado em 1835. Batista assim caracteriza o projeto
dos revolucionários liderados, entre outros, por Bento Gonçalves: “Como os movimentos
políticos, a que tenho aludido, visceralmente republicanos, este também propugnava pela
solução federativa, governo definitivo do país”.1586
A Revolução de 1835 é organizada em bases absolutamente republicanas: designação
de um chefe para coordenar as forças políticas; eleição de uma assembleia constituinte que
elabora o estatuto fundamental do Estado; constituição de um governo regular com
discriminação, por ministérios, dos serviços públicos; instrução popular; melhoramentos de
ordem material por toda província; arrecadação de impostos; policiamento urbano e rural. Em
1845 cai a República de Piratini através do argumento, que se traduz em força militar, da coesão
e da unidade da pátria.
Daí que a federação surge na esfera pública como solução que impede a desintegração do povo
em grupos nacionais.1588 Assim, o exemplo das revoltas regionais, embriões dos
acontecimentos de 89, aparecia como esteio para a orientação do devir republicano.
Por fim, já crepúsculo do Império, encontramos mais um movimento que foi
incorporado junto à memória republicana, fazendo então parte da história pátria: a Revolta do
Vintém, ocorrida entre 1879 e 1880. Posta em prática a taxa de 20 réis por passageiro nos bondes
cariocas, a população se revolta e há agitação geral. Aponta Moreira de Azevedo: “Em verdade
era severa, desigual e incomoda semelhante taxa”.1589 José Lopes da Silva Trovão lidera os
1586
BATISTA, Homero. Revoluções de 1817 e de 1835. RIHGB, tomo 83, parte I, 1918, p. 348
1587
BATISTA, Revoluções... op. cit., p. 348.
1588
José Murilo de Carvalho entende o progressivo ganho lexical do conceito de federação desde o manifesto
republicano de 1870. A reflexão de Homero Batista é devedora desse movimento conceitual. Segundo Carvalho,
o “Manifesto defendia a federação justificando-a inicialmente com o argumento da natureza e da topografia. Mas
logo a seguir a geografia adquiria sentido político como sede de movimentos patrióticos revolucionários, como o
da Inconfidência Mineira. O passo seguinte foi vincular o federalismo à democracia”. CARVALHO, José Murilo
de. República, democracia e federalismo no Brasil: 1870 - 1891. Varia história, vol. 27, n. 45, 2011, p. 151.
Disponível em: https://cutt.ly/ncLTxEn Acesso: 08 abr. 2021.
1589
AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira. Imposto do vintém. RIHGB, tomo LVIII, parte I, 1895, p. 321.
515
revoltados. A agitação leva a multidão insurreta a atacar os bondes e a formar trincheiras pelas
ruas do centro do Rio de Janeiro como forma de manifestação do desagrado popular. Diante
desse cenário o exército é chamado para conter os ânimos. Doravante, e a narrativa ganha em
dramaticidade, “o povo resistiu tenazmente à força pública, que teve de fazer fogo, resultando,
da luta a morte de quatro cidadão e ferimento de muitos”.1590
Em 1890, decorrido 10 anos da revolta popular, alguns “patriotas” cariocas resolvem
tornar, sublinha Azevedo, o motim do Vintém um evento precursor da República, na medida
em que a luta daquela população passa a ser considerada contra o autoritarismo monárquico. A
iniciativa, que fica apenas no plano do projeto, é dividida em passeata cívica, sessão solene e
publicação de um jornal histórico-literário. “Desejava-se memorar a independência, a dignidade
e altivez do povo, e prestar culto cívico, na aurora da formação da República, aos cidadãos que
haviam reagido contra uma medida injusta e vexatória do antigo regime”.1591 Fechava-se, então,
o ciclo dos movimentos que ofereceram significado histórico, atualizando o singular coletivo
nacional, para a emergência da República federativa em solo brasileiro.
Por outro lado, o Império passou a ser visto, para um conjunto de sócios, como uma
etapa necessária para a eclosão da República em 15 de novembro. Nesse sentido, o presidente
da agremiação carioca, Joaquim Norberto de Souza Silva, declara a posição inicial do Instituto
diante dessa nova ordem político-social-representacional, quer dizer, aceita-se o presente
republicano, porém, se admite respeito, e até mesmo veneração, com relação ao passado
monárquico. Em suas palavras:
(...) sem que a queiramos antepor de modo algum a ordem das novas coisas
estabelecidas e a que nos curvamos, certos de que o governo do povo pelo
povo será uma realidade para a terra à qual Deus outorgou por símbolo a cruz
da sua redenção, e a quem imploramos, que a república seja tão livre como foi
o Império de Pedro II.1592
Joaquim Nabuco é outro sócio que almeja ampliar o cânone republicano e elaborar a sua
memória, indo além dos personagens históricos Tiradentes, José Bonifácio e Benjamin
Constant. Não se coloca em suspeita total o papel, por exemplo, de Constant, considerado um
dos fundadores da República, mas se tem o princípio epistemológico do distanciamento, ou
1590
AZEVEDO, Imposto... op. cit., p. 322
1591
Idem, p. 326.
1592
SILVA, Joaquim Norberto de Souza e. Discurso do presidente do IHGB. RIHGB, tomo LII, parte II, 1889, p.
534.
516
seja, somente com o passar do tempo, e Nabuco fala em um quarto de século, se pode julgar
com propriedade o passado. Há, aqui, uma relativa interdição de uma história imediata em razão
do próprio regime de ciência em vigor. José Bonifácio e Tiradentes são considerados, sim,
próceres da Independência e da República, porém, se quer alargar e acomodar outros indivíduos
agentes da história brasileira, como por exemplo os “heróis pernambucanos de 1817”. Bonifácio
como prócere único do movimento de independência silencia atores como Pedro I. Todos eles
são coparticipes de um mesmo fato histórico. “A ideia é que entre Tiradentes e José Bonifácio
de um lado Benjamin Constant de outro, isto é, entre a Independência e a República, estende-
se um longo deserto de quase setenta anos, a que posso dar o nome de deserto do
esquecimento”.1593 Se tem a ideia de progresso formativo entre o Primeiro e o Segundo
Reinado, chegando à República: um “progresso material, intelectual e moral do país.”1594
Desse novo Brasil, nascido com a Independência, se tem a força da ideia de nacional
que emerge na Colônia devido ao compartilhamento de elementos de “raça, religião, costumes
e sentimentos.”1595 É um “Brasil brasileiro” que oferece condições para o fato histórico da
Independência e o estabelecimento da Monarquia constitucional. O segundo Reinado, que
Nabuco luta para sair do esquecimento, é o “apogeu moral” desse movimento vivificante de
nacionalidade. Não abordar essas fases, acontecimentos, situações, personagens é o mesmo que
“escrever a história de Judá eliminando o reinando de Salomão e a história de França
eliminando o reinando de Luiz XIV”.1596
Um exemplo da grandeza do Segundo Reinado relaciona-se ao fato de que mesmo
existindo um partido republicano articulado e disciplinado se opta pela preservação, durante
quase meio século, do parlamentarismo e do respeito ao monarca até que ele se mantenha vivo
e atuante. A marca do Segundo Reinando é, para Joaquim Nabuco, a “suavidade”. Não é uma
época perdida para o desenvolvimento nacional, mas um período, mobilizando uma metáfora
epistêmica lançada por Nabuco, “orgânico”. A recepção do Segundo Reinado por parte do líder
abolicionista se opera no sentido de dar crédito ao parlamentarismo existente. É como se fosse
1593
NABUCO, Discurso... op. cit., p. 311. A preocupação de Joaquim Nabuco acusa, nesse sentido, que a narrativa
elaborada sobre o passado comporta, via de regra, uma dimensão seletiva, legando ao esquecimento certos aspectos
e sublinhando outros. As estratégias postas em prática no “processo de esquecimento” operam diretamente nessa
reconfiguração, na medida em que “pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases,
refigurando diferentemente os protagonistas da ação assim como os contornos dela”. RICOEUR, A memória... op.
cit., p. 455.
1594
NABUCO, Discurso... op. cit., p. 311.
1595
Idem, p. 311.
1596
Ibidem, p. 312.
517
uma República coroada em sua acepção.1597 Pedro II é visto como um líder político exemplar,
um amante da pátria, e mais: “as duas casas do Parlamento Brasileiro refletem o espírito de
prudência, a sisudez, a circunspecção, a nobreza e o patriotismo desinteressado de um período
de funda cultura moral”1598, mesmo com todos os males advindos da instituição escravidão e
da concentração do poder nas mãos do monarca. Diz Nabuco não conhecer mais belo epitáfio
de instituição humana do que esse que se pode escrever com duas datas: 7 de setembro de
1822/13 de maio de 1888. Nabuco pressiona o jogo das políticas da memória, dado que não
quer ver de “fora” do singular coletivo republicano o passado monárquico.
A demanda colocada por Nabuco foi, de algum modo, apropriada por uma parcela dos
sócios do IHGB. Havia, todavia, os problemas relacionados à distância histórica, ou seja, existia
certo veto à uma história do tempo presente. Mas, sobretudo, por meio da reabilitação da figura
de Pedro II, tomado como protetor do Instituto Histórico e prócere da República, se fazia
possível atrelar o passado imperial à memória republicana.
Assim sendo, em termos de história, o bispo de Olinda não folga com as injustiças
sociais, aplaudindo em sua recepção, que é de 1891, o fim da escravidão e a Princesa Isabel.
Vejamos a concepção de história de João Esberard e como ela se coaduna com a figuração que
ele faz dos trabalhos do IHGB:
A história que vós cultivais com tanto afã, é a reparadora suprema das grandes
injustiças sociais! Aqui as minhas esperanças se avigoram. Sinto-me ver a cor
simbólica com que por vossas próprias mãos cobristes aquela cadeira
duplamente augusta, augusta pela majestade e augusta pela ciência de
venerando ancião, que tão longos anos a ocupara!1599
Vemos na fala do bispo lugares comuns, interpretações conservadoras, nos discursos proferidos
no IHGB republicano. Em primeiro lugar, a ligação de Pedro II com o fim da escravidão, o que
faz dele um prócere da liberdade, e mesmo da República, em termos simbólicos. Além disso, a
permanência simbólica da sua cadeira coberta como homenagem póstuma indica que o IHGB
coaduna, a partir da sua figura, as suas tarefas com o passado que se quer acionar. É uma
1597
Ao abordar o pensamento de Joaquim Nabuco, Christian Lynch sugeriu que seria um erro localizar em sua
fase “monarquista”, momento em que discursou no IHGB, um projeto restauracionista. O horizonte de futuro de
Nabuco nunca deixou de ser republicano, o que impactava a sua forma de ver o passado monárquico, esteio dessa
nova forma política ora instaurada. Segundo Lynch, “considerações de ordem estritamente prática levavam-no a
ver, na Monarquia preexistente, um instrumento que permitiria promover mais efetivamente o civismo, o
liberalismo e a democracia, capaz de preparar a sociedade brasileira para uma República que fosse além do mero
rótulo, ou seja, sem desnível entre forma e conteúdo; entre o país legal e o país real. LYNCH, Christian Edward
Cyril. O Império é que era a República: a monarquia republicana de Joaquim Nabuco. Lua nova, n. 85, 2012, p.
284. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ln/n85/a08n85.pdf Acesso: 08 abr. 2021.
1598
NABUCO, Discurso... op. cit., p. 312.
1599
ESBERARD, Discurso... op. cit., p. 286.
518
estratégia política, posto que se desvincula a imagem do grêmio da Monarquia e a aproxima da
figura de Pedro II. As qualidades de homem de Estado de Pedro II, as suas virtudes cívicas, são
requeridas exemplarmente pelos associados do Instituto Histórico, visto que fazem parte de
todo um processo de elaboração de memória e de proposta social no presente.
Não só para satisfazer a curiosidade Pedro II se dedica aos estudos, inclusive com
viagens científicas, mas para que lhe seja possível o alargamento de todas as províncias do
saber. Pedro II é aclamado por suas viagens ao exterior em busca de conhecimento, e por deixar
o Instituto a par das novidades intelectuais que circulam em diversas regiões do globo, passando
por Egito, países do Oriente e Estados Unidos. “Adquiriu, por fim, uma espécie de
universalidade de conhecimentos, de sorte que os próprios sábios o proclamam sábio.”1600 Isso
pode ser constatado através da honraria que recebe para ser membro da Academia das Ciências
do Instituto de França. Pedro II como figura de saber compreende, enquanto exemplaridade, as
próprias convicções dos sócios de IHGB destacadas em estatuto. Isso pode ser percebido até
mesmo pelo seu incentivo à instrução primária, tornando, assim, a tarefa educacional uma das
marcas do seu reinado. “A cada estátua levantada em sua homenagem é como o levantamento
de uma escola de instrução básica”. Podemos verificar essa memória na fala do barão de Loreto:
Ao passo que, no seu reinado, por toda a parte e por todas as camadas
sociais, se espalhava a instrução primária, surgidas sob os seus
auspícios valiosas instituições de ensino secundário e superior;
reorganizaram-se algumas outras; fundaram-se biblioteca, museus,
observatórios; fizeram-se explorações científicas no interior do
Brasil.1601
Essa preocupação com o ensino foi retomada na Primeira República. Era evidente, para os
sócios do Instituto Histórico, que no Império o seu líder político preocupava-se com a formação
de cidadãos e de cidadãs aptos a participarem da esfera pública. Algo importante no contexto
republicano, em que se almejava, ao menos virtualmente, a democracia participativa.
A figuração de Pedro II também é lembrada, coadunando-se à imagens nacionalistas,
como as iniciativas da literatura romântica. “O seu amor das letras, acrisolado pela sua vasta e
profunda cultura intelectual, revelou-se eloquentemente na estima particular que ele tinha por
todos quantos se dedicavam às obras do espírito.”1602 A todos os românticos, responsáveis por
evocar a primeira fisionomia narrativa da nação, Pedro II é solicito. A imagem do monarca
ilustrado persiste na Primeira República como herança, sendo que a literatura nacionalista vista
1600
DÓRIA, A Independência... op. cit., p. 336.
1601
Idem, p. 337.
1602
Ibidem, p. 337.
519
nos primeiros anos do regime é devedora das inciativas românticas, sobretudo, no que tange a
abordagem da nação desvinculada do olhar do estrangeiro que a tudo estereotipa e pelo
fortalecimento da ideia de cultura.
No âmbito político Pedro II era percebido como o rei das liberdades, mesmo com a
prevalência da escravidão. As leis que atenuam a instituição são vistas em evolução progressiva
até a abolição definitiva em 1888. Há no Império liberdade de ensino, liberdade de consciência,
liberdade de tribuna, liberdade de imprensa e liberdade de reunião. A sua memória é, mesmo
com o dispositivo do poder moderador, associada ao constitucionalismo. Essas liberdades criam
“(...) as mais felizes condições à manifestação do pensamento, permitiram que o pensamento
nascesse e brotasse na integridade da sua força, chegando, às vezes, na sua expansão, a
censuráveis excessos.”1603
O conde de Afonso Celso, em telegrama ao Congresso nacional informando as
atividades do grêmio no centenário da Independência, resume a memória que se consolida, a
partir da ética do Instituto, sobre o monarca no decorrer da República, após passar por um longo
processo de depuração historiográfica. Segundo o Conde,
Ressalta o barão de Loreto que excetuando o período das guerras civis na Regência, o
Império apresenta-se como um projeto bem-sucedido de paz que resguarda o território nacional
em sua integridade, encobrindo todas as desigualdades sociais e as violências de Estado. Nesse
período, argumenta, moderniza-se todos os âmbitos da vida pública. Todas essas memórias do
1603
Ibidem, p. 338.
1604
Apud FAGUNDES, Luciana Pessanha. Memórias da monarquia: D. Pedro II no cenário político da década de
20. Anais do XIX Encontro Regional de História: poder, violência e exclusão - ANPUH-SP. São Paulo, 2008, p. 6
Disponível em: https://cutt.ly/YcLShTl Acesso: 08 abr. 2021. Lucia Maria Paschoal Guimarães é precisa no
tocante as representações de Pedro II na Primeira República, as quais nos servem como molde para verificarmos
o lugar da memória do monarca entre os agremiados do IHGB: “Na memória nacional, desatrelou-se a figura do
soberano dos signos da realeza para convertê-lo em uma figura atemporal e apolítica – ‘o honesto e patriótico
servidor do Brasil’. GUIMARAES, Lucia Maria Paschoal. Os funerais de d. Pedro II e o imaginário republicano.
In: SOIHET, Rachel; ALMEIDA, M. R. Celestino de; AZEVEDO, Cecilia; GONTIJO, Rebeca. (orgs.). Mitos,
projetos e práticas políticas. Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2009, p. 82.
520
Império têm como intuito evidenciar que entre a Independência e a República há um momento
de transição que são os Impérios, responsáveis diretos pela configuração política republicana:
O barão de Loreto articula a memória do Império com a imagem de Pedro II. Assim, o
imperador torna-se, também, um prócere da República. O seu reinado é concebido como o
ponto culminante do progresso moral, intelectivo e político da nação, sendo o esteio que
prefigura a Proclamação da República. Sem o Segundo Reinado ela não existe.
Na inauguração do retrato da princesa Isabel, em 1916, coube ao sócio Alfredo Valadão
proferir um discurso que circunstancia o 13 de maio de 1888 no interior da política e da vida
social imperial. De imediato Valadão constata o seguinte: “Vivíamos em um Império liberal,
no reinado de Pedro II, que era República de fato”.1606 Isso demonstra que se quer fazer da
República federativa, e isso é um uso político do passado, um verdadeiro desdobramento
daquilo que já se anuncia no Império. Várias qualidades públicas e políticas, antes mesmo do
15 de novembro, vigoram na Monarquia constitucional como predisposições políticas
republicanas: uma Constituição que faz honra à nossa cultura, ainda mais depois das reformas
de 1834 e 1840; leis verdadeiramente sábias como o código penal (que exprime o gênio de
Bernardo de Vasconcelos), o código comercial, o regulamento 737; a manutenção do Conselho
de Estado. A política partidária é verdadeira e democrática no Império, ao contrário do que se
assiste no presente republicano federativo, em que as oligarquias estaduais dominam a arena
pública.1607 “A representação nacional era, quanto possível, verdadeira; ministros sofriam
derrotas nas urnas, e republicanos tinham entrada no parlamento”.1608 Como se vê, mais do que
um uso político do passado, uma deturpação do trajeto histórico nacional.
1605
DÓRIA, A Independência... op. cit., p. 341.
1606
ALFREDO, Valadão. Discurso em razão da inauguração do retrato da princesa Isabel. RIHGB, tomo 80, parte
II, 1916, p. 686.
1607
João Camilo de Oliveira Torres elabora, anos depois, um traçado político em que a democracia toma parte no
Império. Ver. TORRES, João Camilo de Oliveira. A democracia coroada (teoria política do Império). Brasília:
Edições Câmara, 2017.
1608
VALADÃO, Discurso... op. cit., p. 687.
521
Vários “beneméritos” da futura República atuam politicamente no Império, sendo
exemplos possíveis de civismo no presente, bem como amenizam aquele “deserto do
esquecimento” a que Nabuco alude em termos de manutenção da memória histórica do século
XIX: José Bonifácio, o patriarca; Feijó, que com o seu pulso de ferro salva o Brasil da
dissolução e da “anarquia” na Regência; Evaristo da Veiga, o mentor da Regência; Bernardo
de Vasconcellos, o criador do parlamentarismo; Eusébio de Queiroz, que extingue o tráfico;
Rio Branco, habilidoso ministro; Cotegipe, o vidente; Ouro Preto, o estadista que fez a
passagem do Império para a República.
Alberto Pinto Vieira Melo também elabora uma narrativa de sentido para a história
brasileira. Para o sócio, esse movimento é uma tentativa de racionalizar a tomada de consciência
da nacionalidade. Deve-se incluir na memória da nação aqueles que
Em vista disso, Melo inventa um passado para o federalismo no Brasil, compreendido como a
forma de governo mais apta a democracia e a República. Aqui a disposição independentista,
através da sua constituinte, prefigura o federalismo republicano, que ao menos no âmbito do
discurso se quer democrático: “Monárquicos, então, outra coisa não pretendiam os ilustres
patriotas, que a 17 de junho de 1823 propunham na constituinte – a federação das Províncias
como um protesto contra a centralização da metrópole e como concepção feliz, racional e segura
para alimentar o advento da democracia”.1610 Vê-se que os não ditos da escravidão e do poder
moderador não eram, pois, empecilhos para a instauração de um Império democrático. O
federalismo está presente em 1831 no Senado do Império, em 1870 com o manifesto
republicano e em 1884 e 1885 através do tribuno Joaquim Nabuco. É um destino manifesto.
Morre um liberal, mas não morre a liberdade! Líbero Badaró, mártir da historiografia
republicana
1609
MELO, Discurso... op. cit., p. 347.
1610
Idem, p. 347.
522
“premiar o mérito dos benfeitores do gênero humano”, bem como estimular a “imitação dos
grandes modelos de patriotismo”, na medida em que esse sentimento “sublimado e generoso”,
que dignifica o sujeito diante da sua consciência, infunde “valor para as mais altas empresas
que o cidadão cometer”.1611 Havia uma atualização epistemológica na prescrição de Araripe, na
medida em que desde os antigos se venerava como modelo de imitação os grandes homens da
nação. Doravante, as demandas eram outras. Havia que se procurar modelos cívico-patrióticos
que orientassem os cidadãos e as cidadãs da República. Prover um passado único para a
República apresentava-se como um desafio para aqueles sujeitos. Nesse cenário que surgiram
os mártires da causa republicana. Cidadãos especiais que doaram a própria vida em favor da
liberdade, prerrogativa primeira para os republicanos e para as republicanas. É assim que
encontramos a figura de Líbero Badaró, mártir da historiografia republicana.1612
Em vista disso, a Revista do IHGB publica no ano seguinte à Proclamação da República
o artigo, que tem a proporção de um livreto, Alguns apontamentos biográficos de Líbero Badaró
e a crônica de seu assassinato perpetrado na cidade de São Paulo, de Argemildo da Silveira.
O trabalho narra a juventude de Badaró na Itália, contando toda a sua formação, situa
politicamente o contexto brasileiro do pós-independência, aloca Badaró nessa atmosfera e, por
fim, faz a crônica do seu assassinato. Mas qual o motivo que leva a historiografia republicana
a eleger Badaró como um dos seus mártires?1613 As palavras de Joaquim Antônio Pinto Junior,
que servem de Advertência para o texto de Argemildo da Silveira, nos deixam alguns indícios
da razão dessa escolha, que por sinal se coaduna aos anseios e às prerrogativas dos chamados
“benfeitores do gênero humano” de Araripe. Segundo Junior: “A vida de um homem ilustre por
suas virtudes e talento e sobretudo pelos relevantes serviços prestado à causa da humanidade,
tem sempre um valor real, um merecimento intrínseco, que não poderá desmerecer pela
debilidade da pena que se incumbiu de traçá-la”.1614 Para Argemildo da Silveira, narrar a sua
vida significa no contexto republicano um culto cívico1615, que traz “ao público o sentimento
1611
ARARIPE, Indicações... op. cit., p. 263.
1612
A biografia de Badaró escrita por Argemildo da Silveira obedece, relativamente, ao paradigma oitocentista de
escrita, sobretudo, por se tratar do caso de um homem de letras e de ciências. Desse modo, “entende-se assim que
o elogio biográfico destacasse não apenas as proezas literárias e científica desses sujeitos, mas também fizesse a
apologia de certas virtudes morais que conferiam exemplaridade às suas vidas”. OLIVEIRA, Escrever vidas... op.
cit., p. 161-162.
1613
Mártir é aquele que ousa desafiar as normas vigentes em razão de uma causa. Originalmente o termo martyr
significa testemunho. Ele passa a designar, a partir de meados do segundo século, especialmente para as
comunidades cristãs, aqueles sujeitos, homens ou mulheres, que morrem e sofrem em nome de sua confissão
religiosa. SIQUEIRA, Sílvia. Memórias das mulheres mártires: modelos de resistência e liberdade. Horizonte, vol.
4, n. 8, 2006, p. 61. Disponível em: https://cutt.ly/UcZkhvH Acesso: 08 abr. 2021.
1614
SILVEIRA, Argemildo da. Alguns apontamentos biográficos de Libero Badaró e a crônica do seu assassinato
perpetrado na cidade de São Paulo. RIHGB, tomo LIII, parte II, 1890, p. 309.
1615
Os rituais cívicos fúnebres, no caso por meio da escrita da biografia de um mártir, aparecem como forma de
523
de gratidão, que vive no peito de quantos têm tido notícias do nome, do martírio e da glória de
Líbero Badaró, esse venerando campeão das liberdades do povo”.1616
Estava aí a virtude cívica que Badaró deixava à posteridade: a causa da liberdade. Vê-
se, então, o movimento historiográfico realizado no IHGB que buscava uma ordem do tempo
em que as origens do sentimento de liberdade no Brasil preencheriam o passado republicano
que se queria inventar.1617 Por isso a figura de Badaró foi reivindicada.
O primeiro capítulo do artigo sobre a vida de Badaró trata das suas origens italianas e
da sua formação – desde a infância até o momento que se torna médico e cientista. Argemildo
da Silveira narra, então, que nesse momento da sua vida Badaró está confortável no seio
familiar, apresenta-se como um dedicado cientista, sendo um reputado médico em Ligúria, a
sua cidade natal. Nesse período da sua vida já são visíveis todas as virtudes cívicas do
biografado, sobretudo, o altruísmo e o desejo por instituições livres. É como se já preexistisse
em forma de gérmen a sua disposição libertária que ao longo dos tempos floresce até o seu
martírio. Isso tudo com pouco mais de vinte anos. De acordo com Silveira: “Mais imperiosos,
porém, que isso tudo eram os sentimentos exclusivamente altruístas, que haviam de fazer
daquela alma esclarecida, daquele preito generoso um herói da ciência e um mártir da
liberdade”.1618 Mais adiante novamente é invocada a causa defendida por Líbero Badaró, que o
leva a ser um mártir: “A divisa de Líbero Badaró foi então – ciência e liberdade – este duplo
pedestal inquebrantável, em que se baseiam todos os progressos da humanidade”.1619 A causa
libertária de Badaró, que o torna mártir, era concebida como origem e como destino.
O período imediato à Independência, que o autor considera importante elucidar para que
se compreenda as ações de Líbero Badaró, é de profunda incerteza e de confrontos políticos.
Há o desgaste político em razão dos embates entre “liberais” e “imperialistas”, bem como uma
imprensa crítica ao governo estabelecido. As disputas partidárias minam, segundo Silveira, o
homenagear um sacrifício individual em favor de uma causa coletiva, evidenciando que esse sujeito tem total
consciência sobre a finalidade dos seus atos. Conforme aponta Marcelo Santos Abreu, através “destes ritos, o sem
sentido da morte, que caracteriza a experiência contemporânea do morrer, é ultrapassado: o sacrifício individual é
recompensado pelo reconhecimento público do morto como agente da história”. ABREU, Marcelo Santos. Os
mártires da causa paulista: a criação do culto aos mortos da Revolução Constitucionalista de 1932 (19132 - 1937).
UNESP - FCLAs - CEDAP, vol. 7, n. 1, 2011, p. 200. Disponível em:
http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/182 Acesso: 08 abr. 2021.
1616
SILVEIRA, Alguns... op. cit., p. 310.
1617
Segundo Maria Tereza Chaves de Mello, os conceitos de liberdade e de democracia criam uma barreira
limítrofe entre Monarquia e República. Através deles os republicanos sinalizam a caducidade das ideias
monarquistas. “Se a liberdade matara o absolutismo, a democracia extinguira os privilégios. A razoabilidade dessa
visão do processo civilizacional tornou mais ineludível a distinção entre república e monarquia, distinção tanto
mais clara num país americano”. MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República e o sonho. Varia história, vol.
27, n. 45, 2011, p. 126. Disponível em: https://cutt.ly/FcL9CHO Acesso: 08 abr. 2021.
1618
SILVEIRA, Alguns... op. cit., p. 314.
1619
Idem, p. 315.
524
Primeiro Reinado. Tudo isso leva Dom Pedro I a entregar aos militares o decreto de dissolução
da assembleia constituinte, a deportar os oposicionistas e a outorgar a carta constitucional. Há,
ainda, toda instabilidade política advinda de um republicanismo federativo autoproclamado no
Brasil através da Confederação do Equador. O movimento acirra as disputas políticas na capital
federal, sobretudo, na imprensa. Entretanto, como quer Silveira, o movimento separatista é
duramente reprimido por Pedro I. Salienta Argemildo da Silveira: “(...) não podemos deixar
esquecida no norte do Brasil a tentativa da Confederação do Equador, por cujo malogro
dezesseis patriotas expiaram com seu sangue o amor da liberdade, preparando assim o caminho
da mesma dura sorte, que esperava a Líbero Badaró”.1620 Mas é esta a passagem de Silveira que
nos interessa, posto que coloca em evidência os mecanismos historiográficos de invenção de
um passado comum republicano por meio dos mártires: “Com Tiradentes e Badaró, os mártires
da Confederação do Equador estão vingados com a proclamação da República Brasileira, da
qual foram dignos precursores”.1621
Badaró chega ao Brasil em 1826. Hospedado no Rio de Janeiro passa seus primeiros
momentos no país estudando a flora carioca. Os estudos e a carreira como médico, além do
desejo de fazer parte das rodas intelectuais do país, levam-no a se transferir para São Paulo.
Assim que chega à capital paulista passa a frequentar os ambientes intelectuais dos acadêmicos
de direito. Ali o médico italiano toma contato com as doutrinas liberais nascentes e que circulam
à época, além de tornar-se uma figura ativa no que tange às discussões que envolvem a política
e a esfera pública paulistana. Eis a caracterização dada a essa nova fase da vida de Badaró:
O entusiasmo ardente dessa mocidade que ali afluía a uma escola nascente
trazendo por assim dizer a flor e o sumo das doutrinas liberais de todas as partes
do império, comunicou-se ao seu espírito e abalou seu coração, que sempre
ardera pelo amor da liberdade, debaixo de cujos auspícios nascera. Suas virtudes
e sua instrução o tinham disposto a prestar-se naturalmente para tudo o que fosse
beneficiar a espécie humana; e a esperança de lhe ser útil com seus
conhecimentos, unida aos convites de uma grande multiplicidade de vozes que
se erguiam de toda a parte contra os inimigos do sistema político estabelecido e
jurado, o determinaram a desposar a causa deste mesmo sistema e a levantar
como escritor público a espada sobre as indignidades e maquinações dos
perversos, fazendo-se para os povos interprete da razão e da lei e o órgão geral
dos sentimentos da gente livre e cordata!1622
1620
Ibidem, p. 319.
1621
Ibidem, p. 321.
1622
Ibidem, p. 323.
525
o autor, malvisto pelo poder público do Estado. Vê-se que a narrativa de Argemildo da Silveira
tem como base a ideia de formação. É ela a orientadora a vida de Badaró do nascimento à vida
adulta, em que se verifica o ápice na tomada de consciência da sua causa “proto-republicana”.
É essa mesma narrativa da formação que leva o autor a ser considerado um mártir, porquanto
as causas da democracia e da liberdade aparecem como pontos de origem e de destino no enredo
construído, o qual, nessa peça historiográfica em questão, é de total conhecimento de
Badaró.1623 Assim sendo, a antecipação do futuro de forma consciente é o esteio do significado
do seu martírio pela causa da liberdade.
É nesse cenário que Líbero Badaró torna-se redator do jornal O observador
constitucional, em 1828. O clima político do Brasil é de incertezas e de contestações ao governo
imperial, sendo que o parlamento é visto como um lugar em que não há disponível um projeto
único de país. Essa efervescência política chega à sociedade através dos jornais da época, que
se comportam em disputa política à semelhança do âmbito partidário. Nesse momento há, entre
os liberais da época, a cristalização, na leitura de Argemildo da Silveira, da imagem de Dom
Pedro I como um monarca autoritário. O Observatório constitucional prega ideias consideradas
democráticas, liberais e federalistas, quer dizer, assume uma posição diametral à ordem
estabelecida. Assim a historiografia compreende as ações de Badaró nesse jornal e nessa
conjuntura política:
Por sua atuação política, que abrange desde temas regionais à nacionais, Líbero Badaró
é assassinado a sangue frio na noite de 20 novembro de 1830. O narrador cria um clima de
tensão ao sugestionar quem são os suspeitos do crime e quem é o mandante. A suspeita é que
as autoridades locais tenham encomendado o crime. São indiciados, então, o ouvidor Japiassú
como mandante e uma “dupla de alemães” como executores do crime. Porém, logo mais são
1623
Podemos aproximar, então, a narrativa biográfica de Argemildo da Silveira aos chamados romances de
formação. Tal estrutura narrativa “poderá ser chamada de Bildungsroman, sobretudo, devido a seu conteúdo,
porque ela representa a formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de
perfectibilidade (...)”. Na biografia de Badaró e nos romances de formação é mostrado “(...) os homens e o
ambiente agindo sobre o protagonista, esclarecendo a representação de sua gradativa formação interior”. Apud
MASS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. Romance de formação (bildungsroman) no Brasil. Modos de apropriação.
Caminhos do Romance, 2005, p. 1.
1624
SILVEIRA, op. cit., 332.
526
soltos por falta de provas. Também se cogita que Pedro I tenha sido o verdadeiro mandante do
crime, pois expôs publicamente o seu desconforto com relação aos artigos de Badaró. “Ser A
ou B o autor nada influi sobre principal, que é o seguinte: Líbero Badaró foi vítima de seu amor
ao bem público, foi um mártir da liberdade”.1625
Líbero Badaró agoniza por um dia e as suas últimas palavras fecham o ciclo do seu
martírio: morre um liberal, mas não morre a liberdade!
O Dr. João Batista Badaró não era somente um entusiasta pelas ideias livres
que começam, então, a conquistar a América; ele é, além disso, um homem
bom, ilustrado, cheio de virtudes, e, sobretudo, levita do templo da caridade;
assim, compreendia como poucos os sagrados deveres de médico”.1626
Foi dessa forma que Badaró tornou-se um sujeito digno de fazer parte do passado
republicano. Ele era um exemplo aos cidadãos republicanos no presente e no futuro. O seu
martírio foi abraçado pela causa republicana, oferecendo justiça para a sua memória.
Sem sombra de dúvidas Os Sertões, de Euclides da Cunha, foi o livro que imortalizou
em nossa tradição cultural e intelectual o movimento liderado por Antônio Conselheiro no
agreste baiano no final do século XIX. Talvez essa permanência discursiva de Os Sertões junto
à memória cultural brasileira se dê, para além de todo o talento estilístico e de estruturação
narrativa da obra, pelo fato de Euclides ter verificado ali as mazelas advindas do confronto entre
as tropas militares e os habitantes de Canudos, ressaltando que os ditos civilizados agentes
públicos implantaram um verdadeiro estado de barbárie ante aquela população sertaneja, a qual,
como argumentou o engenheiro-jornalista, passava por todos os tipos de provações sociais -
“documento raro de atavismo”, segundo as suas palavras. Não por acaso que Os Sertões ostenta
a insígnia de ser um livro “vingador”.
No entanto, e percebendo a repercussão imediata do livro de Euclides entre os letrados
e as letradas do começo do século XX, naquele presente da ainda nascente República
encontramos uma “história oficial” da Campanha de Canudos, que se articulava de maneira
diametral à obra euclidiana, sustentando a legitimidade do cerco aos sertanejos e evocando que
essa operação se fez necessária para a instauração e perpetuação da ordem político-social
1625
Idem, p. 359.
1626
Ibidem, p. 352.
527
republicana. Essa obra foi encomendada e publicada pelo IHGB e o seu autor é o sócio Aristides
Milton, um republicano histórico.
O texto de Milton, saído na Revista do IHGB em 1900 com o título A campanha de
Canudos, já em seu parágrafo inicial evidencia que de algum modo o movimento messiânico
liderado por Antônio Conselheiro é um perigo à ordem republicana há pouco consolidada, bem
como os seus desdobramentos uma repercussão negativa diante da população em geral, a qual
pode tomar consciência da falta de legitimidade do governo e da ineficácia político-social das
suas instituições.1627 Para Aristides Milton:
1627
Reapropriado por setores políticos desfavoráveis à República civil, como os jacobinos e os monarquistas, e
tornado um ingrediente que dirige a opinião pública, “o discurso que transformara Canudos num foco
revolucionário e perigosamente subversivo incendiou a arena política, tornando o extermínio do arraial
conselheirista o único meio capaz de provar o compromisso do governo eleito com os princípios republicanos. Os
ataques dos jacobinos eram diretos e passaram a exigir uma imediata tomada de posição do governo”. HERMANN,
Jacqueline. Canudos destruído em nome da República. Uma reflexão sobre as causas políticas do massacre de
1897. Tempo, vol. 2, n. 3, 1996, p. 14. Disponível em: https://cutt.ly/NcLZOua Acesso: 08 abr. 2021.
1628
MILTON, Aristides. A Campanha de Canudos. RIHGB, tomo LXIII, parte II, 1900, p. 5.
1629
MILTON, A Campanha... op. cit., p. 5.
528
Milton destaca que há entre os protagonistas do movimento dois tipos específicos de
cidadãos. Primeiro há aquele que, para além das convicções políticas, são estimulados pelo
desejo de servir à pátria e respeitam as instituições republicanas. Porém, há um segundo tipo de
cidadão ali existente totalmente contrário ao republicanismo. Faz-se necessário controlar esses
sujeitos, porquanto Canudos corre o risco de tornar-se, e isso é muito difundido pela imprensa
da época, um Estado dentro de outro Estado.
Mesmo que a Campanha de Canudos não revelasse um posicionamento político unitário
por parte dos seus adeptos, ela ainda sim assinalava uma ruptura com a estabilidade do regime.
Além disso, a existência de um movimento como esse servia de pretexto para a oposição,
sobretudo, para aqueles que almejavam uma restauração monárquica, a deslegitimação do
governo, bem como das instituições republicanas. De acordo com Aristides Milton:
Idem, p 6.
1630
Essa interpretação sobre o Conselheiro torna-se mais conhecida a partir da análise de Nina Rodrigues. Para
1631
conferir o ensejo ver “A loucura epidêmica de Canudos. Antonio Conselheiro e os jagunços”, presente em
RODRIGUES, Nina. As coletividades anormais. Rio de Janeiro, 1939.
529
medida repelida por quantos não aprofundam jamais os ensinamentos de Cristo, ou não tem
forte e enraizada a sua fé”.1632
Vê-se claramente que o fio condutor da narrativa de Aristides Milton estava ao lado da
República como ilustradora, ou civilizadora, da sociedade, nem que para isso ela
marginalizasse, ou exterminasse, setores da sociedade que não se adequavam a sua ordem
política-social-cultural, como era o caso de Canudos. Milton sugestiona os sertanejos como
inimigos da República, e narra uma história épica e heroica da vitória dos militares sobre
aqueles sujeitos, que para além de “fanáticos” são considerados “bandidos”. É uma história
confessadamente dos vencedores, como se pode apreender neste excerto: “Ele [o Conselheiro]
insurgia contra a república, porque esta ousara enfrentá-lo em Maceté, dando assim o sinal que
não reconhecia aquele Estado no Estado, constituído à sombra de uma tolerância imperdoável,
em menoscabo das autoridades e da lei”.1633
Os poderes republicanos não podem aceitar o “Bom Jesus” do agreste, tampouco a
sociedade brasileira pode permitir tamanha insanidade, totalmente fora dos padrões de
civilização que circulavam na Belle Époque brasileira, especialmente em suas grandes cidades.
A descrição das migrações de sertanejos em direção à Canudos sinaliza para um olhar que
estereotipa o Outro, caracterizando-o, pela falta de senso de alteridade, a partir de uma lógica
identitária que se quer negar e colocar à margem. Vejamos um trecho do artigo de Milton: “(...)
das cercanias desse lugar, como de pontos mais afastados, até onde chega a fama do santo,
vinham troços de homens e mulheres, velhos e crianças, doentes e sãos, com o fim de ouvir e
consultar ao Bom-Jesus, nome por que era tratado o Conselheiro, o qual não passava de um
louco, de um sonhador das coisas do céu”.1634
Além disso, o olhar cientificista da época, carregado de preconceitos em razão dos seus
determinismos, também se fez presente no estudo de Aristides Milton. O movimento e o seu
líder são considerados frutos do meio, bem como das formas de pensar nordestinas; o que
implica, evidentemente, uma classificação taxonômica dessa região e dessa população, sempre
vistos a partir do olhar civilizador, racional e republicano, marcas incontestes do progresso
nacional. Como assinala o sócio do IHGB: “Alguma coisa, mais do que loucura de um homem,
era necessária para este resultado, e essa alguma coisa é a psicologia da época e do meio, em
1632
MILTON, A Campanha... op. cit., p. 6.
1633
Idem, p. 6.
1634
Ibidem, p. 8.
530
que a loucura de Antônio Conselheiro achou combustível parar atear o incêndio de uma
epidemia vesânica”.1635
Esse discurso de exclusão e de interdição daquilo que se considera fora da razão, ou
seja, o louco, não era apenas registrado pela narrativa de Milton, mas pelas próprias fontes que
utilizou, as quais mais do que informar o sujeito cognoscente historiador eram legitimadoras da
história que se queria escrever. Entre elas encontramos estudos considerados científicos, que de
antemão, por meio das suas leis deterministas, classificavam, rotulavam e excluíam quem
estava fora dos padrões estabelecidos como civilizatórios, como era o caso dos habitantes de
Canudos, fadados a toda sorte de atavismo em decorrência do meio em que viviam.1636
Verificamos isso a partir da utilização de um atestado de sanidade mental do Conselheiro
realizado por um médico da época:
Os sertanejos que migram para Canudos são narrados como descumpridores da lei e da
ordem, mesmo antes de surgir o movimento propriamente dito. A República paira onipresente
na narrativa de Aristides Milton. Os habitantes do sertão baiano são considerados bandidos,
foras da lei e desordeiros antes, durante e depois do conflito armado. A governantabilidade
republicana disciplina o espaço público e as formas de conduta, além de criar inimigos comuns
que atentam contra a ordem e o discurso dominantes.1638 Assim Milton descreve o arraial:
Foi desse modo que se formou aquela nova Vendéia, comparável à da França
pelos acidentes topográfico, que ambas ofereciam, natureza especial do solo,
devotamento cego a uma superstição e a um erro, pretexto religioso também
como justificativa de uma conduta antipatriótica, insensata e criminosa.1639
1635
Ibidem, p. 8.
1636
A busca de explicações “científicas” agencia elaborações discursivas que deixam Canudos “sitiado pela razão”.
Cf. HERMANN, Jacqueline. Canudos sitiado pela razão: o discurso intelectual sobre a ‘loucura’ sertaneja.
Questões e Debates, vol. 13, n. 24, 1996. Disponível em: https://cutt.ly/IcLZ24E Acesso: 08 abr. 2021.
1637
MILTON, A Campanha... op. cit., p. 11.
1638
Vanessa Sattamini Varão Monteiro expõe que o arraial de Canudos se torna “um território que não estava
submetido a lógica instituída pela República. Por isso mesmo, uma ameaça. A comunidade é identificada pelos
homens da República como local de desordem, de atavismo, um atraso que era preciso combater”. MONTEIRO,
Vanessa Sattamini Varão. Canudos: guerras de memória. Mosaico, vol. 1, n. 1, 2009, p. 84. Disponível em:
https://cutt.ly/1cL4Ulv Acesso: 08 abr. 2021.
1639
MILTON, A Campanha... op. cit., p. 10. Roberto Ventura faz uma aproximação entre o caso francês da
sublevação da Vendéia, em 1893, ainda nos horizontes da Revolução Francesa, e o imaginário republicano
brasileiro: “A metáfora da Vendéia incorpora Canudos a uma história, a da Revolução Francesa, vivida ao nível
imaginário pelos republicanos brasileiros, expurgando dúvidas e incertezas coletivas quanto ao futuro nacional”.
531
Nem mesmo a fé professada pelos habitantes de Canudos, de matriz cristã, é aceita pela
República e por suas instituições. Primeiro de tudo, em razão desses sujeitos seguirem um
“alucinado” que se considera o próprio Jesus de Nazaré. Algo inaceitável, como se pode
perceber, para a Igreja católica da época. Em segundo lugar Antônio Conselheiro é acusado
pela Igreja de usar o nome de Deus para “fanatizar” centenas de pessoas. Ademais, e isso é uma
nova ordem política da Igreja na República, o Conselheiro e seus seguidores não respeitam a
autoridade republicana. Por fim, o discurso católico da passagem para o século XX,
cientificizado desde as reformas de Leão XIII, desautoriza as pregações do Conselheiro por não
se pautarem por uma racionalidade litúrgica, sendo mera obra de crendice, de fanatismo e de
distorção dos princípios verdadeiramente cristãos.
Em vista disso, mais uma vez as fontes utilizadas por Aristides Milton confirmavam o
seu preconceito racionalizador diante de um episódio que estava fora tanto da ordem política
quanto dos princípios que organizavam a sociedade brasileira, majoritariamente católica. A
fonte utilizada foi um ofício do chefe de polícia da Bahia remetido ao governador, ainda no ano
de 1876, ou seja, em plena Monarquia Antônio Conselheiro já agia:
Aristides Milton narra que o fanatismo se prolifera como uma espécie de “contágio”.
Isso a partir da sua análise de “psicologia das multidões”, em que se assinala que os seres agem
por imitação. Os sertanejos, em busca de um lugar estável para estabelecer as suas moradas,
algo que só ocorre na década de 1890, entregam-se, na narrativa de Milton, aos crimes,
perturbam a ordem pública, impelem à mão armada a cobrança de impostos, invadem e
saqueiam as povoações. Ou seja, o que se inicia como um movimento religioso toma forma de
“quadrilha” e coloca, naqueles sertões baianos, em suspeita o poder republicano em atuação por
todo o território nacional. Para Milton, o Conselheiro é o líder de um Estado autônomo:
VENTURA, Roberto. A nossa Vendéia: Canudos, o mito da Revolução Francesa e a formação de identidade
cultural no Brasil (1897-1902). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 31, 1990, p. 131.
1640
MILTON, A Campanha... op. cit., p. 15.
532
jagunços, que foram praticando por aqueles arredores vários atos infringentes
da lei”.1641
A história oficial da Campanha de Canudos escrita por Milton nos revela, pois, o
enfrentamento entre República versus desordem e entre razão versus loucura ou fanatismo.
Obviamente que a República e a razão se impuseram diante daquela “seita político-religiosa”,
capaz de hostilizar o governo constituído e manipular a fé dos crentes. A derrubada de Canudos
foi o signo máximo do poder republicano em suas ambições de ordenamento social, repressão
ideológica e de legitimação política. Uma perfeita história dos vencedores, porém longe de ser
a versão que prevaleceria a longo prazo.1643
Desilusão republicana
João Riberio revela, em seu discurso do ano de 1915, uma dimensão da experiência da
história, sobretudo, em seu âmbito político, que faz parte dos horizontes histórico-sociais da
República federativa passadas cerca de duas décadas desde a proclamação até a desilusão com
o regime. Ribeiro chama essa característica da experiência nacional de “cunctatora”. Essa
disposição do “caráter nacional” evidencia uma sociedade em que todas as suas experiências
1641
Idem, p.18.
1642
Ibidem, p. 19.
1643
De acordo com Reinhart Koselleck em curto prazo a história é feita pelos vencedores, porém em longo prazo
ninguém a domina. A narrativa histórica dos vencedores “é elaborada para curto prazo, concentrando-se naquelas
sequências de eventos que, graças à sua ação, lhes propiciariam a vitória”. KOSELLECK, Mudança de
experiência... op. cit., p. 63.
533
políticas e sociais estão dessincronizadas com o tempo presente, o que torna caduco todo ganho
de experiência. Esse fato é, assim, de natureza ancestral em nossa formação identitária: “Ele é
assim, ao mesmo tempo, um fato de pré-história antes de ser da sua própria História”.1644
O elemento “cunctator” traz consigo impactos na ordem do tempo, pois instaura
“anacronismos” entre o tempo social, o tempo histórico e o tempo político. Exemplo: “Sempre
conservadores, sempre lentos, tardos e precavidos, construímos com elementos medievais os
fundamentos de uma nacionalidade, que desabrochou no renascimento”1645. Essa lentidão dos
processos caracteriza, para João Ribeiro, a própria imobilidade da vida nacional. O autor de
História do Brasil – curso superior argumenta, em mais um exemplo, que a escravidão é outra
experiência dessa ordem: longa e interminável. A ideia abolicionista vencera em todo mundo
civilizado. Doravante, no Brasil há resistência, sendo o derradeiro povo a resolver o problema.
Esse mesmo caso ocorre com a ideia de República. Ela está constantemente às portas desde o
século XVIII, sem descanso e quase sem interrupção. “Resistimos ainda, e como sempre, fomos
os últimos a adotar essa expressão da política”.1646 Há no elemento “cunctator” um largo
“conservantismo”. Os movimentos sociais no Brasil são vagarosos, tardios; “o gigante sul-
americano demora os passos, deixando ao tempo amadurecer as resoluções graves, que podem
decidir do seu futuro”.1647 O passado supera a dimensão de transformação do tempo, tornando-
a inatual antes mesmo da sua emergência. A repetição, nesse sentido, suplanta a novidade. A
continuidade do passado impede a emergência de novos registros sociais.
A disposição de país “cunctator” ganhou uma forma acabada nos anos 1910, momento
esse que houve uma crise da consciência histórica devido ao descompasso entre tempo social,
tempo político e tempo histórico.1648 A República, que até pouco tempo era considerada um
fruto próprio da evolução histórica, passava a ser considerada uma decepção. Isso justamente
pelo elemento “cunctator” do país, pois ela passou a ser concebida como anacrônica diante da
experiência social brasileira. Não existia novidade, mas repetição.
1644
RIBEIRO, Discurso... op. cit., p. 618.
1645
Idem, p 619.
1646
Ibidem, p. 619.
1647
Ibidem, p. 623.
1648
Fernando Nicolazzi argumenta que essa “desordem do tempo” é fundamentada em uma sensação, presente
entre homens e mulheres de letras da Primeira República, de descompasso “entre a sociedade e a história, entre o
lento e descontínuo desenvolvimento social e o processo acelerado do tempo”, bem como na percepção dos lapsos
e diferenças de tempo que separam a civilização (ocidental) e a cultura (brasileira). NICOLAZZI, Fernando. Orden
del tiempo y escritura de la historia: consideraciones sobre el ensayo histórico en el Brasil, 1870-1940. Prismas -
Revista de Historia Intelectual, n. 19, 2015, p 51. Disponível em: https://cutt.ly/WcZqtZi Acesso: 08 abr. 2021.
534
Em 1906, Silvio Romero publicou na RIHGB um ensaio que colocava essa situação
nos devidos termos. Em O Brasil Social Romero, autor da aclamada História da literatura,
constrói um quadro sobre a crise na ordem do tempo que afeta o país:
Romero como intérprete do Brasil busca os nossos males de origem, em que se pode
apreender as raízes do “cunctatorismo” e da desilusão com as formas públicas de governo.
Segundo o crítico, essa sensação de desilusão política não é nova em nossa experiência
histórica. Desde o final do século XVII a experienciamos em cascatas sucessivas. Assim, vem
a tão aguardada independência, e a desilusão já se inicia no momento seguinte: “Os agitadores
de profissão sonhavam com farta mesa à custa do orçamento. Grupos inteiros, verdadeiros clãs
políticos se preparavam para viver à sopa dos orçamentos municipais, provinciais ou gerais”.1650
Chegamos na Regência, e novamente a desilusão generalizada, haja vista que se verifica em
todo o país um total de “trinta e quatro” revoltas. “O atropelo causado pelas facções, o parco
prestígio dos chefes do bando mais em evidência, o desengano de todos na própria força -
levaram-nos a pedir um rei, um monarca, um ditador na pessoa dum menino de 14 anos”!1651 O
novo reinado não é feliz em nenhuma das suas fases e a desilusão fora da Corte é flagrante:
Esse processo de desilusões sucessivas que Romero historiciza é advindo da diferença entre o
tempo político e o tempo social. As instituições monárquicas não estão de acordo com a
experiência social brasileira e seu caráter mais íntimo. Isso leva ao sentimento de frustração, na
medida que essas instituições não atendem aos anseios sociais e do povo brasileiro, verdadeiro
1649
ROMERO, Sílvio. O Brasil social. RIHGB, tomo LXIX, parte II, 1906, p. 106.
1650
ROMERO, O Brasil... op. cit., p, 109.
1651
Idem, p. 110.
1652
Ibidem, p. 111.
535
protagonista da história. As medidas administrativas e públicas ficam apenas no plano das leis
protocolares e constitucionais - surgindo a linguagem do Brasil legal e do Brasil real -, não
havendo pregnância junto à experiência social.
Esse mesmo sentimento de desordem do tempo, de incongruência entre tempo político
e social, chega à República. Ela não é, em Silvio Romero, uma demanda popular. E isso pode
ser visualizado na percepção da população sobre o 15 de novembro: bestializados!1653 Aponta
o intelectual sergipano que
1653
Sobre a ausência do poder popular na Proclamação da República ver CARVALHO, Os bestializados... op. cit.,
1987.
1654
ROMERO, O Brasil... op. cit., p. 112-113.
1655
Idem, p. 113.
536
“todas estas chagas visíveis a olhos nus, que andam a afetar o corpo da República, levantaram
um tão formidável coro de imprecações, como se não tinha ainda ouvindo outro igual em toda
a existência da nação”.1656
Em vista disso, a retórica cientificista de Romero o leva a propor um estudo sério sobre
as disposições antropológicas de brasileiros e de brasileiras desde as suas origens étnicas mais
ancestrais. Busca-se os “males de origem”. Romero quer saber qual o modelo político combina
mais com o caráter “antropossociológico” da população nacional. Naquele contexto o que se
tenta são meros paliativos para um problema que é congênito, quais sejam, a restauração
monárquica ou revisão constitucional. O autor da História da literatura brasileira recomenda
o poder de cariz autoritário, sendo a monarquia mais eficiente que a República nesse sentido.
Parece à Romero que os brasileiros e as brasileiras não estão talhados para a democracia. Porém,
uma restauração monárquica, de acordo com Romero, é combustível para mais perturbações. O
que permanece? A própria República. Mas a sua existência só é possível, e isso tem a ver com
a conciliação entre tempo social e tempo histórico, caso haja uma reforma que acabe com o
federalismo e institua um poder centralizado. É esse o destino trágico da República?
Sílvio Romero assegura que a República federativa revela ao povo brasileiro o que ele
é em sua essência ou caráter, quer dizer, um povo que necessita de um guia autoritário, pode
ser até messiânico ou carismático, para tornar as instituições públicas democráticas. O regime
federativo só agrava o descompasso entre tempo político e tempo social, pois o(a) brasileiro(a),
em sua disposição antropológica, possui a tendência de formar grupos que se apoderam
totalmente dos poderes locais. O federalismo é o grande culpado pela manutenção e pela
ampliação das forças oligárquicas no Brasil. O ser nacional não está no mesmo compasso do
tempo político, ou seja, da República federativa. A solução é a dissolução do federalismo e a
criação de um poder centralizado e forte, apto a dissipar as desigualdades de poder regionais e
tornar o país mais democrático.
É o destino da nação, e aqui Romero vale-se do seu particular evolucionismo: até a
independência o Brasil é tutelado pela metrópole, “onde governos podem influir na estrutura
das massas sociais sobre que lhes cumpre velar”. Na Monarquia igual tutela é realizada pelo
poder moderador atribuído ao Imperador. Enquanto isso a República perde o poder centralizado
e apto a tomar as direções necessárias para o melhor ordenamento social possível. Tanto o
evolucionismo de Spencer quanto as pesquisas da Escola de Play assinalam que o povo
brasileiro não está pronto para ser guiado através de suas próprias escolhas e decisões. De
1656
Ibidem, p. 114.
537
acordo com o crítico nordestino: “A República manifestou o Brasil tal como é: e por isso é
governo que lhe convém, com a condição de ser vasado em moldes conservadores, num
unitarismo contido por um forte governo central”.1657
A rápida desilusão com a República cria, segundo Nicolau José Debbané, uma crise da
consciência história,1658 ou sobre a percepção do devir histórico. Isso porque a ordem
republicana de sentido é quebrada. Percebe-se naquele momento, como vimos, que o modelo
republicano federativo é o mais evoluído e progressista já instaurado no Brasil. Doravante, a
facticidade dos eventos corridos na Primeira República evidencia o contrário, isto é, a
República como eterna promessa que não se realiza. Essa crise atinge, inclusive, os corpos dos
cidadãos da República, em que se vê desânimo, individualismo e egoísmo. O tempo histórico
está, portanto, totalmente em desacordo com o tempo político e o tempo social. A consequência
desse Estado de coisas não é, para Nicolau José Debbané, outra senão a sensação de torpor:
Essa crise na ordem do tempo seria curada pelo estudo e o pelo entendimento do
passado. Paralelamente à construção simbólica e narrativa que a República movimentava, que
implicava usos políticos do passado para legitimar o Estado presente das coisas, emergia uma
nova perspectiva de sentido, que também recorria à história, para combater o regime
republicano federalista. Como? Criando uma narrativa de sentido que buscava nas origens do
Brasil o caráter antidemocrático da sua população e os êxitos de um poder centralizado e
unitário. Estava, aí, aberta a possibilidade da emergência de toda a sorte de discurso autoritário.
A República conviveu com esses dois polos de sentido. Até quando?
1657
Ibidem, p. 116.
1658
Para Jörn Rüsen a consciência histórica é “(...) a suma das operações mentais com as quais os homens
interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar,
intencionalmente, sua vida prática no tempo”. RÜSEN, Razão histórica... op. cit., p. 57.
1659
DEBBANÉ, Discurso... op. cit., p. 655.
538
Considerações finais
Embora o IHGB seja um palco importante para a prática historiográfica no Brasil na
Primeira República, estudado por diversos especialistas em história da história em várias
perspectivas, esta tese de doutoramento pretende colocar em evidência concepções de história
de sócios, que se pensavam historiadores, mas que ficaram desconhecidos, vencidos ou
silenciados pela memória disciplinar da história da historiografia brasileira - anônimos ante as
inúmeras tradições analíticas que comportam o seu campo.
O intuito de nosso trabalho é o de, em um primeiro movimento interpretativo, lançar luz
sobre os sócios do IHGB na Primeira República que não são considerados “clássicos” da
historiografia nacional. Após esse primeiro movimento, reintroduzimos as suas contribuições
intelectuais na teia de controvérsias e de desafios historiográficos que mantém a matriz
disciplinar em funcionamento epistemológico. Desse modo, dotamos de historicidade os seus
discursos sobre a história até agora esquecidos e reabilitamos historiadores pouco, ou nada,
lembrados. Alguns dos sócios abordados nesta pesquisa, e as suas respectivas contribuições
intelectuais, jamais receberam um estudo de natureza historiográfica por parte da comunidade
de leitores de história da historiografia brasileira. Não que o nosso trabalho faça uma análise
minuciosa sobre cada caso em específico, mas indica futuras pesquisas monográficas que
devem levar em consideração a produção historiográficas desses sujeitos, posto que são
fundamentais para a compreensão da escrita da história no período. Após essa abordagem,
atualizamos o discurso da história do alvorecer republicano através da polifonia de vozes até
então emudecidas por meio da fusão de horizontes. Desse modo, não apenas descrevemos essas
disposições historiográficas, mas as tornamos provocativas por tratarem de temáticas inatuais.
Toda essa movimentação epistemológica foi percebida através das performances da
comunidade científica do IHGB.
Admitimos que os estudos em história da historiografia assumem o vaticínio de propor
respostas tangíveis ao questionamento de Michel de Certeau, que uma vez realizado torna-se
incontornável: o que fabrica o historiador quando faz história? De posse dessa problemática
introduzimos a noção de operação historiográfica, definida a partir de um viés tripartite de
análise: um lugar social de produção do conhecimento histórico, uma prática e uma escrita.1660
Acreditamos ser possível que o leitor acompanhe as performances da escrita da história, da
forma como propôs Certeau, junto ao IHGB. A pergunta de fundo que acompanha a nossa
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (orgs.). História:
1660
1661
NICOLAZZI, Fernando. A narrativa da experiência em Foucault e Thompson. Anos 90, vol. 11, n. 19/20,
2004, p. 103. Disponível em: https://cutt.ly/OcL6mWt Acesso: 08 abr. 2021.
1662
Apud NICOLAZZI, op. cit., p. 103.
1663
RICOEUR, História/epistemologia... op. cit., 2007.
1664
Idem, p. 300.
540
Em razão desse horizonte de análise projetamos os nossos estudos sobre o IHGB na
Primeira República a partir de uma deontologia que aborda a experiência historiográfica em sua
dimensão tripartite, apoiando-nos em Certeau e Ricoeur. No limite, queremos deixar em
evidência a história em ação, desnaturalizando as práticas que lhe oportuniza existência. Desse
modo, verificamos diversos contextos que envolvem a experiência historiográfica presente
entre os sócios do Instituto Histórico.
A presente tese afirma que a historiografia operacionalizada sob a égide das lutas de
representação e das guerras de memória presentes no início da Primeira República foi central
para a elaboração e para a constituição daquilo que veio a se chamar “moderna historiografia
brasileira”. Foi naquela quadra temporal que diferentes fatos, personagens e situações históricas
foram revisitados, ao mesmo tempo em que novas narrativas de sentido foram produzidas, posto
que a disposição do perfil narrativo conhecido da nação necessita ser reelaborado de acordo
com as novas carências de orientação. O contexto deve ser percebido como um momento de
acomodação de novas visões sobre o que é, e o que deve ser, a escrita da história no Brasil, o
que movimentava a comunidade de historiadores visível na Primeira República. Assim, havia
a disputa, sendo o IHGB o lugar de produção do conhecimento histórico que escolhemos para
a análise, pelos parâmetros historiográficos necessários para emplacar formas narrativas
compassadas com o novo regime político vigente e com a nova experiência social, bem como
por novas demandas epistemológicas em circulação, relacionadas, sobretudo, com o valor
pedagógico da história, com o estabelecimento metódico de uma prática e com as explicações
ditas científicas, que poderiam, ou não, ser vertidas para a consecução do saber historiográfico
desejado. Esses fatores subsidiam, pois, a colonialidade entre as prescrições dos sócios.
Esse horizonte de abordagem enfoca como personagens centrais aqueles que se
arrogaram e se identificaram como historiadores, além do lugar de produção do conhecimento
histórico que os congregava através da partilha de uma experiência intelectual comum: o IHGB.
O contexto epistêmico-historiográfico da República constitui-se, então, como um momento
decisivo para a afirmação e para a conformação de uma forma atualizada de escrita da história,
no sentido dado por Ricoeur e por Certeau, do Brasil e para a fixação de um perfil do historiador
moderno, o que só pode ocorrer tendo como palco um conjunto de debates que levam em
consideração a cientificidade da história e a sua forma de ensinar, perpassada, pois, por métodos
seguros de análise.
Os historiadores que escreveram na RIHGB e que se propuseram a ser sócios da
instituição no período que estudamos, entre 1889 e 1930, se reuniram e apresentaram suas
541
contribuições sob a epígrafe do grêmio “pacifica scientiae occupatio”. Por meio dessa persona
acadêmica foi possível abordar os contextos historiográficos que motivaram a produção
intelectual da associação no contexto específico da Primeira República.
Pudemos, através da leitura sistemática e analítica dos exemplares da Revista, recuperar
os topoi que nos permitiram apresentar esta tese, considerando os autores, mesmo que
desconhecidos, que em conjunto exploraram os limites do dissenso intelectual, repercutindo os
debates historiográficos então vigentes.
Em nosso trabalho realizamos uma (re)descrição da experiência historiográfica
partilhada por aqueles agentes intelectuais, ressaltando as condições de possibilidade
envolvidas na produção desse tipo de saber ao abordar a historicidade dos princípios culturais,
das normatizações disciplinares e das estratégias discursivas que apararam certa ideia de
história no período. A partir das disputas e das tensões envolvidas nas formas de operar o
trabalho de escrita da história nos foi possível perceber as diretrizes que conferiam
cientificidade (metodização) à operação historiográfica, bem como as disposições
paradigmáticas, as quais chamamos de regimes historiográficos, disponíveis, tais como a
evolucionista, a nacionalista, a pragmática, a darwinista social, a positivista, a providencialista,
a moralista, a metódica, a nacionalista-patriótica e, as mais comuns, as híbridas. Resgatamos,
por fim, as tendências voltadas à escrita da história brasileira propriamente dita, em que se
sublinhou os temas da Colonização, da Independência, da Abolição da escravidão e da
implementação, consolidação e crise da República.
Esse conjunto de problemas e de temáticas mostra-se capaz de tornar plural e
multidirecional o nosso olhar sobre o processo de “modernização” historiográfica no Brasil,
resultando na complexificação das narrativas únicas (fundacionais) fomentadoras do cânone,
que, no limite, propõem uma estabilidade disciplinar (identidade sócio-epistêmica) para o
campo à custa do apagamento das diferenças.
542
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