Bariani Ortencio - Sertao O Rio e A Terra
Bariani Ortencio - Sertao O Rio e A Terra
Bariani Ortencio - Sertao O Rio e A Terra
CICLO Do
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SERTÃO: O RIO E A TERRA
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BARIANI ORTEN CIO
CICLO,P()
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CONTOS GOIANOS
FICHA TÉCNICA
Editor:
Victor Tagore
Revisão de texto:
Maurício Apolinário
Capa e Diagramação:
Eward S. Bonasser Jr.
Coordenação Editorial:
Izabel Signoreli
Produção:
Laila Santoro
CDU 821.134.3-34(81)
CDD B869.34
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação do autor. Qualquer semelhança com acontecimentos reais é mera coincidência.
Contatos:
Bariani Ortêncio - [email protected]
Tagore Editora - [email protected]
TAGORE EDITORA
SRTVS Quadra 701, Bloco O, Edifício Novo Centro Multiempresarial, sala 203,
CEP: 70.340-000, Brasília, DF.
Ao meu avô Fioravante Bariani que, em vida, foi a ale-
gria de todos e cuja morte nos deixou a saudade e sua
falta, a nós, imperecíveis. Sim, a ele, que era goiano de
coração, pois o seu desejo era, se morresse um dia lon-
ge de Goiás, que fosse sepultado aqui.
E quando, repentinamente, sucumbiu, achando-se a
passeio em São Paulo, no dia 23 de abril de 1945, cum-
primos-lhe o desejo, fazendo com que o transportas-
sem até aqui, em carro fúnebre.
Aniversariou no dia 25 do mesmo mês, mesmo morto,
mas percorrendo sobre a terra, pelas cidades paulistas e
mineiras, onde viu nascer seus filhos e netos.
Ao cabo de cinco dias chegava ao seio da terra que en-
contrara a sua família, como Moisés encontrou Canaã,
a terra prometida por Deus a seu povo.
W BARIANI ORTENCIO
E T
SUMÁRIO
O ESPANTALHO MILAGROSO 9
O ENCONTRO 17
TROPEIRO 29
O BOTO 43
RECURSO MACABRO 47
UMA BRIGA 67
O EXTRAVIADO 75
A TOCAIA 81
INICIAÇÃO 85
O CARRO DO GOVERNADOR 95
O CONTAGIOSO 123
A EXPEDIÇÃO 131
O ESPANTALHO
MILAGROSO
B
elarmino havia conseguido cinco litros de planta de arroz
para uma rocinha, na vargem do rio. Seria mantimento
para o gasto. Com mais a mandioquinha de oito litros de
terra e o tiquinho de feijão que plantava no quintal de milho, lá ia
o Belarmino mais a família furando o ano. Carne, ele conseguia
de peixe, ali pertinho, no rio; carne vermelha a sua "pica-pau" e
sua astúcia garantiam mesmo dentro da roça, que era uma minia-
tura. A pequena lavoura era a ceva das pacas, das capivaras e dos
caititus. Os grandes pés de algodão da porta da cozinha davam
capuchos suficientes para a mulher cardar, fiar e tecer as roupas
do uso. Ao lado, pés de mamonas, verdadeiras árvores, com folhas
de diâmetro de guarda-chuva aberto, forneciam cachos, cujas ma-
monas pareciam maxixes redondos. Depois das sementes secas e
socadas no pilão, davam o óleo para a candeia alumiar as noites
do ano inteiro.
Belarmino era pai de oito filhos e os tinha todos em casa, ainda
pequenos. O Neca, o mais taludinho, ajudava o pai a escorar a vida,
apesar dos seus apenas doze anos. Mas acontece que filho de roceiro
é homem, por força das circunstâncias, não importando a idade nem
o tamanho.
Cachorros, afora os que as onças comeram, eram oito, tam-
bém. Passavam a carne de bicho; crua, e, variando, cozida na pura
água, sem sal. Sal era o maior problema do homem.
Tudo podia ser, mas comer sem sal, ele não gostava.
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
dito: vancê faz o trem dar certo, que eu saio lá c'a minha ubá carrega-
dinha de couro de bicho, e despejo na igreja".
Não prometeu mais nada, porque a mulher lhe gritou: "Acode
aqui, Belarmino!... O nenê evém vindo!... O pobre pai nem se lem-
brou de ver se era homem ou mulher: pegou. a "pica-pau" e, saindo
ao terreiro, disparou pra cima, dando vivas a São Benedito, o parteiro
do céu.
Mal Dona Maria cumpriu o resguardo, intervalo resumido,
mas exigido pela natureza, o marido encheu a canoa de couros de
caititus, antas, veados, capivaras, lontras e desceu as cem léguas para
cumprir a promessa.
Queria levar o caçulinha para o santo ver, mas a mulher lhe
dissera que o santo tinha o poder de ver lá do céu e, então, levou o
Nequinha. Também, quem iria ajudá-lo a remar e varejar na volta?
Ao chegar foi à capela, ajoelhou-se e disse alto: "Tá tudo aí,
São Benedito; a ubá `tá cheinhazinha... E logo eu trago pra van-
cê... Vim só avisar que cheguei". Meteu-se a descarregar a carga,
muito contente, pois havia chegado feliz, dando conta do recado.
Depois ficou encabulado, dizendo ao filho que aquele santo não
lhe era estranho.
ELUCIDÁRIO
PICA-PAU: Espingarda de carregar pela boca. Fulminante.
Chumbeira. O mesmo que a lazarina do norte, porém, mais
curta.
UBÁ: Canoa dos índios; é feita de um pau só, como um cocho.
PIXUÁ: Fumo bom em camadas de folhas prensadas e não en-
roladas e torcidas como no fumo de rolo ou de corda.
MATRINXÃ: Peixe de água doce, da família dos characídios.
ESPANTALHO: Boneco do tamanho de uma pessoa que se
põe nas roças para afugentar os passarinhos.
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O ENCONTRO
E
ra dia de audiência. Na sala da Prefeitura os interessados es-
tavam sentados em todo o redor, todos aguardando sua hora.
De vez em quando um homem baixo, calvo, roupa surrada,
com os traços de servidor público crente, cantava o número de uma
ficha. Estava no número três, agora. O número trinta e quatro era do
Amâncio, o mais humilde deles todos. Amâncio estava inquieto, cru-
zando as pernas, ora num sentido, ora noutro; amassava o chapéu,
alisava os cabelos e ajeitava-se, incessantemente, na cadeira.
Algum tempo depois, o homem pôs-se calmo e os seus olhos,
penetrantes, hipnotizavam a mesa de centro, cheia de revistas.
Amâncio pensava. Como pensamento não paga passagem, voou até
ao colégio em Uberaba, onde estudou havia algum tempo, já muito
passado, junto com o Prefeito, que estava lá dentro.
Tinha uma necessidade extrema de falar com ele, mas temia-o.
Quando eram estudantes, eram amigos, carne e unha, mas agora o
Arquimedes era o Prefeito, o dono daquela cidade e poderia nem
ao menos conhecê-lo. Quando gente fica rica sempre se esquece dos
pobres. Isso fazia o Amâncio tremer.
Mas, animava-se um pouquinho ao lembrar que o Arquimedes
sempre dependeu dele nos exames.
Quando o porteiro anunciava uma outra ficha, Amâncio saía
daquela paralisação e entrava, novamente, no seu estado de agita-
ção. Entregava-se, logo depois, aos pensamentos. Não achava nada
bom passar por aquilo, que estava passando. Se não fosse pela sua
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SERTÃO: O RIO E A TERRA
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CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
não dava para aquilo. Os irmãos eram pequenos. O jeito foi aban-
donar os estudos, sob pesar de Arquimedes, e rumar, novamente,
para o sertão.
A loja estava muito mais desfalcada do que quando a deixou.
Abriram um comércio perto daquele e levou todo o movimento para
lá: influência do cristal. O lugar já era bananeira que já havia dado
cacho. O pior foi quando um danado dum turco abriu uma casa dos
mesmos artigos, bem em frente à dele e começou a vender fiado para
todo mundo.
A loja do turco durou pouco, pois transferiu-se para lugares
melhores, mas até aí o nosso Amâncio já estava quebrado.
A mãe, com o decorrer dos anos, morreu. As duas irmãs, tam-
bém, não eram pra sementes e casaram-se.
Amâncio resolveu sair por este mundo afora, embora sem co-
nhecimentos e traquejo para andar sem dinheiro.
Estava maquinando a cabeça, com estes pensamentos, quando
o servente anunciou:
— Trinta e um!
As pernas gelaram-lhe. O peito pulava, como se tivesse corrido.
Bobagem, pois o trinta e um não era o dele.
O Prefeito encarou bem o novo candidato a secretário (um ra-
paz cheio de corpo, claro, óculos, bem limpo, aparentando grande
inteligência). Esteve para mandá-lo aos testes, quando, repentina-
mente, despediu-o. Havia resolvido: mandaria um emissário buscar
o Amâncio lá no sertão de Goiás. O emprego era de cinco mil cruzei-
ros, mas para o Amâncio pagaria seis.
O Amâncio, lá fora, longe do Prefeito apenas dez metros, re-
moia-se todo de desespero. Estava arrependido mil e muitas vezes de
ter vindo. Quando trabalhava de caixeiro, num armazém, em Anápo-
lis, não sabe qual foi a mão maldita que lhe havia posto aquele jornal
nas suas, por meio do qual teve conhecimento do paradeiro e posição
do amigo Arquimedes. Deveria saber muito bem que gente rica não
conhece pobre. Nem sabia explicar porque cargas-d'água havia pegado
a sua parca economia e comprado passagens até ali, no sul de Minas.
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ELUCIDÁRIO
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A VANTAGEM DE
SER ANALFABETO
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ELUCIDÁRIO
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TROPEIRO
N
ecão havia saído de Pouso Alto, rumo a Cuiabá. A tropa não
era dele, mas, como sempre foi de muita confiança, lhe fora
confiado pelo patrão, aquela jornada.
Na capital de Mato Grosso havia grande falta de muares e não
precisava lugar melhor pra se venderem tropas.
Nicodemus Murtinho, o maior criador de muares de Formo-
sa, estava pronto para seguir viagem, também, para Cuiabá. Ficou
muito aborrecido em saber da partida de Necão, pois quem chega
primeiro sempre bebe água limpa. Como tudo já estava preparado,
não teve outra alternativa: seguiu. Também chegara a época de ele fa-
zer aquela viagem, costume desde há muitos anos. Homem de muita
fibra, muito credenciado, respeitado, de muito crédito, e, afinal, era o
Nicodemus Murtinho, de Formosa.
A jornada prometia ser dura; o caminho muito ruim, perigoso;
lugares despojados de alimentação para os animais: areia por demais
e a distância sem fim. A viagem dividia-se em duas etapas. A primei-
ra, até a capital do estado: Goiás. A segunda, até Cuiabá. Até Goiás
tudo ia bem, pois passava em muitas povoações como SantAna das
Antas, Campininha, Goiabeira, Catingueiro Grande, Curralinho e,
finalmente, Goiás. Ali tudo era restabelecido e tinha-se que preparar
quase tudo de novo. Para frente o caminho seguia a linha telegráfica,
construída pelo General Rondon, passando por Itapirapuan (estação
telegráfica), cruzando o Rio Claro em Marechal Floriano, também
estação telegráfica, e seguindo até Registro do Araguaia, à margem
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mulheres me levaram pro jogo; quando saí `tava limpo, puro. Fui
fazer queixa de polícia, mas fiquei sabendo que o delegado era um
dos que `tava jogando. Agora eu te peço, seu Nicodemus, pelo amor
dos seus filhos, pelo santo amor que tem em Deus, que me leve com
o meu pessoal. O senhor é católico, seu Nicodemus; já vi o senhor
muitas vezes na missa... Acode um necessitado, seu Nicodemus... O
patrão vai saber me perdoar. Nunca aconteceu nada comigo; essa é a
primeira vez... Ele paga o senhor, seu Nicodemus; eu também pago
Ele... Vancê bem sabe disso...
Disse-lhe que não se afligisse, que tudo estava direito, que onde
comem cinco comem seis... e procurei consolá-lo.
Um homem nessas circunstâncias fica muito melindroso e é
preciso agir com prudência, senão o danado faz qualquer outra bes-
teira. Partimos, as duas comitivas. Em Registro ficamos de pouso. O
telegrafista de lá se engraçou com a minha cartucheira, aquela ca-
libre 12, que o senhor muito bem conhece. Pois bem; entabulamos
negócio. Fui à barraca buscar os cartuchos e abri a bruaca. Aproveitei
para ver o bolo de notas, da mala. Qual não foi o meu espanto ao ver
que ele havia desaparecido da bruaca, todo enrolado em uns panos,
muito bem dissimulado, no fundo?! Tirei os trens pra fora e nada de
encontrar. A bruaca não estava arrombada e a chave sempre depen-
durada, como agora, no meu pescoço. Na barraca só dormiu eu e o
Necão. Ele foi o que mais sentiu o roubo.
Na mesma hora arregimentou todo mundo e deu busca. Quis
dar em peão, o que me opus, pois não queria violência. Também não
se tinha certeza de nada. Necão insistiu:
— Seu Nicodemus, o senhor não guardou noutro lugar?
— Não guardei, não; tenho certeza que pus aí dentro, enrolado
no pano.
— Mas como é que não 'lá arrombada! A chave saiu do seu
pescoço?
— Também não saiu.
— ( Tá danado, então... Fizeram foi feitiço, então... Tiraram a
chave sem vancê vê.
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ELUCIDÁRIO
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ELUCIDÁRIO
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O BOTO
— E a história?
— Mais depois; bem na hora da gente dormir vou contar esse
trem "p'roceis".
Fizeram uma boa caçada de jacarés, abatendo-se alguns de ta-
manhos monstruosos.
— Chegou, enfim, a hora de se recolherem às barracas. Todos
tomaram café e mandaram que ele começasse logo a contar o "causo".
Raimundo acomodou-se em cima de umas folhas de buritis; tirou a
cabeça de palha, "quicé", o "macaia" e pôs-se a fabricar o "fedorento":
muriçoca não aprumaria. O sertanejo, quando está sendo útil, ocu-
pado por alguém, torna-se importante e enjoado, como se fosse um
tocador de violão, desses que, quando vai atender a um pedido, fica
toda vida a afinar o instrumento. Finalmente, começou:
— Antigamente, nesta zona de Conceição, tinha a tribo dos ín-
dios Secos. Eram bugres só da terra, pois nem para banho usavam o
rio; daí o nome de Secos. A tribo era pacífica e cuidava da agricultura
e não se exercitava para a guerra. A esse tempo os Caiapós saíram do
sul do Estado, aonde haviam chegado, há muitos e muitos anos, de
São Paulo e Minas, e seguiram para o Araguaia, passando e ficando
por muito tempo por onde hoje é Iporá. Ao chegarem ao rio cobi-
çaram a lavoura dos Secos, já em hora de colheita e fácil foi subju-
gá-los. O cacique caiapó, sabendo do medo tremendo que possuíam
da água, mandou que levassem todos de canoa e os despejassem no
meio do rio. Antes, porém, chamou o cacique Seco e disse-lhe: "Este
território, de agora em diante, me pertencerá; em troca lhe darei o
rio. Expulse do seu império quem for lá, como expulso daqui."
E, assim, toda a tribo foi mergulhada no Araguaia. Justamente
nessa época foi que surgiram os botos, esses imensos peixes, feios
como briga de foice ou mãe de sarampo; orelhas de porco, mamífe-
ros, bico de passarinho, mansos como carneiros e benfeitores como
gente de bem. Quando alguém cai n'água, os botos expulsam para
fora e, ao cair da noite, choram como crianças, talvez de saudades da
terra. Dormem nas rasouras, com as costas para fora, e, muitas vezes,
são pegos aí, por onça'
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CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
ELUCIDÁRIO
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RECURSO MACABRO
H
Morrinhos.
de de apanhar e, em muitos casos, serem liquidados. Vou
narrar um acontecido naquele tempo, lá pelos lados de
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SERTÃO: O RIO E A TERRA
Fez, ele mesmo, por muitos dias, os curativos com cinza de fo-
gão, urina e fumo de rolo. Ficou muito acabrunhado vagando pelo
mato, combatendo as moscas varejeiras.
Não se alimentava.
Perdeu, em pouco tempo, a razão e tomou as proporções de
um porco bem cevado.
O pobre eunuco ganhava dinheiro, comida, pinga e fumo,
mostrando o sinal para os outros, rindo e babando sempre.
ELUCIDÁRIO
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A MULA SEM CABEÇA
ELUCIDÁRIO
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CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
— Ele mesmo.
— Ora, pois ele não tem o cabelo assim, meio enrolado?
— Pois tem.
— Pois aí é que está o negócio!...
— Que negócio, doutor?
— Pois é negro em tudo, menos na cor. Você, Teodoro, nunca
ouviu falar em negro-aço?
— Já tenho visto falar... nos tal negro-aço...
— Pois é, aí é que está o negócio: o Benedito é negro-aço.
— De vez em quando acontece isso: até é muita honra para
uma família de cor ter um negro-aço; é coisa muito rara, muito im-
portante.
Teodoro suspirou profundamente e falou alegre, agradecido:
— Quá, gente, falar com quem sabe é um descanso... E eu que
ia matar a Leontina, coitada... e o Benedito... o meu bom amigo Joa-
quim, que me vende fiado... Muito obrigado, doutor!
E lá foi o Teodoro, rindo, satisfeito da vida, monologando sem-
pre, abanando a cabeça:
— Quá, gente, falar com quem sabe é um descanso...
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UMA BRIGA
o tal aparecesse, logo a coisa cheirava a defunto. Isto é tão justo como
Deus está no céu.
Gercino arribou com família e uns parcos trens. Apossou-
-se dum pedaço de terra bom pra danar, na beira do Turvo. Não
sabia quanto tinha, mas sabia que ninguém era dono daquilo;
era terra devoluta e ele ia fincar pé de vida ali. A terra, trem de
primeira, se bem que ele precisava de pouca, pois, praticamen-
te, era sozinho para o serviço; mulher e filharada pequena, uma
miuçagem dos diabos. O rancho que ele fez até que era mais ou
menos: dava pra morar.
Pouco para baixo, passava uma estrada real, de pouco trânsito
e que morria na margem do rio. Ali, naquela passagem, dava vau;
qualquer criação tomava pé. De vez em quando passava um cavalei-
ro, alguma pessoa a pé, uma tropa, uma boiada. Mas isto era coisa
muito rara.
Um dia, já bem de tarde, estava uma chuva armada e danada de
feia. Gercino veio chegando, com um feixe de lenha, para precaução,
e viu um cavaleiro que conversava com a Fia, sua mulher. Arriou a
lenha, passou a mão na foice e foi-se beirando. A gente, num ermo
daquele, é preciso estar prevenido.
Gercino chegando, a mulher se retirou (em prosa de homem,
no sertão, mulher não mete o bico). Houve cumprimento, respei-
toso. Gercino reconheceu logo, no chegante, a pessoa do Benzinho
da Dita. E era o Benzinho mesmo. Trazia a viola dependurada, nas
costas, uma carabina na cabeça do arreio e o chapéu caído para trás,
como sempre usou. A faca não estava de vista, não. Gercino segurou
firme, a foice, pois até que o Benzinho tirasse a carabina, ele seria, há
muito tempo, retalho de foice. Deus há de ajudar de não acontecer
nada, pois briga de foice é coisa muita feia.
O vento, soprando forte, amassava a aba do chapéu do cavalei-
ro. A tardinha; já ia morrendo. Riscos de fogo clareavam o céu, aqui
e ali. Acolá as copas das árvores assoviavam pelo vento.
— O rio `tá dando passagem?
— De mais da conta.
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CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
— É... mas (tá chovendo muito pras cabeceiras e ele já deve 'tu
engrossado, por aqui.
— Coisa de nada.
— O melhor é amanhã, mesmo, né?
— Carece isso nada; todo mundo tem passado de noite, de dia,
qualquer hora.
— Mas hoje tem tempestade...
— Trem de nada... Passageiro...
Benzinho não havia reconhecido o Gercino e tentava conven-
cê-lo de oferecer-lhe pouso. Este, por sua vez, pensou que ele havia
descoberto a sua casa e ali querer permanecer para matá-lo.
— A gente peia a besta e dorme de qualquer jeito, em qualquer
canto. Amanhã arriba cedo, manhãzinha.
— Quá, bobagem... Comércio logo na frente. `Tá de grito.
Em antes de escurecer direito já `tá lá.
Gercino, visto a insistência do homem, já estava maquinando
a cabeça maldita: se o danado ficasse, far-se-ia de besta e pregar-lhe-
-ia a foice, muito antes de ser vítima. O corpo iria ser comida de
peixe, no rio. Benzinho, achando que o sitiante estava com ciúme da
mulher, com medo ou reinando que ele queria pousar para sacanear,
se fez claro:
— Eu me ajeito no paiolzinho, mesmo; `tou acostumado.
— Muita pulga demais da conta. É adonde dorme a cachorrama.
Visto o impossível, Benzinho pôs-se a certificar-se do caminho:
— Estrada do outro lado, boa?
— Especial demais da conta. Trem pra muito luxo.
— E o rio? Dá pra passar?
— Passa muito bem.
— O caso é que eu `tou com uns trens nos arreios que não po-
dem molhar.
— Molha nadal... Não é o primeiro que atravessa com respon-
sabilidade. A água não chega lá, nada.
Gercino, a essa altura, já estava cheio. Estava pronto para o que
desse e viesse. Pensou que o maldito ali estava a fazer tempo com ele,
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SERTÃO: O RIO E A TERRA
até acertá-lo direitinho. Mas ele, o Gercino, não daria tempo para
isto, não. Por qualquer movimento estranho, o menor que fosse, a
foice comeria logo.
Até que o Benzinho pudesse sacar a carabina, já era defunto há
muito tempo. A sua mão parecia querer amassar o cabo da ferramen-
ta, de tanto que a apertava, todo prevenido.
— Ê... então só eu indo s'embora...
— Que o Divino Pai Eterno que vos guie.
— Mas... em qualquer lugar dá vau?
— De fora a fora.
— Até adonde mesmo, dá a água, mais ou menos?
Gercino, não menos precavido, puxou a camisa, desceu um
pouco o cinto e mostrando o sinal, disse:
— Até aqui assim, bem no lugar adonde que você me deu aque-
la facada.
Benzinho deu uma tremura de corpo e puxou as rédeas do ani-
mal, para trás, mantendo-se distante. Gercino caminhou um passo,
pra frente (não era homem de mijar pra trás).
O cavalei▪ ro sorriu, sem graça:
— Então dá muito bem pra passar... Muito obrigado.
— Vai com Deus.
Benzinho encurtou as rédeas e saiu esporeando a besta, com as
pernas abertas, chacoalhando os estribos. Gercino não se moveu até
que o viu entrar n'água e sumir, já no escuro, dentro do rio.
O tempo fechou e os trovões pareciam bater palmas por mãos
de gigantes.
Cá, entre nós: Benzinho nunca chegou do outro lado.
ELUCIDÁRIO
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DOCE: Açúcar.
GÁS: Querosene.
BANDEIRA: Monte de milho na roça.
PÉ DE BODE: Sanfona de oito baixos.
ESTRADA REAL: Estrada principal.
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O EXTRAVIADO
A casa onde morava os seus pais era muito grande e fora aluga-
da uma parte a uma viúva que tinha umas filhas moças e um rapazi-
nho de quatorze anos.
O morto estava espichado num banco, no meio da sala, pronto
para o banguê. As moças e o irmão, filhos da viúva, estavam sentados
do lado de fora, junto à casa, numas pranchas de madeira, serradas à
mão. Apreciavam o movimento de entra e sai.
O Ritão desmontou a besta e amarrou o cabresto num es-
teio de aroeira, em frente à casa. Com o seu corpão cobriu toda
a porta. Passou ao lado do pai, arrastando as rosetas das esporas
nas largas tábuas do assoalho desnivelado. Foi até a porta que dá
entrada à cozinha e parou. Voltou-se numa meia volta como se
fosse soldado em comando. Olhou para os presentes e foi andan-
do, agora passando do outro lado do morto. Quase à porta da
rua, parou; deu, novamente, a meia volta e fitou o cadáver; depois
disse, com fala de bêbado:
— É assim: tempo de murici, cada um cuida de si... Saiu mole,
trôpego, tentando importância. Ao passar pelas moças soltou uma
pilhéria imoral, que o irmão, apesar de molecote, não gostou. Este
tomou uma atitude de homem e defendeu a honra das irmãs:
— Tu não é homem, desgraçado!... Se tu não respeita o velho
morto, respeita as mulheres, cachaceiro!...
Ritão deu uma cambaleada e indicando o molecote com o dedo
espichado, bradou:
— Espera aí, cachorro malcriado!... Vou é já te ensinar levantar
topete pros mais velho...
Assim dizendo, sem utilizar a reta que é o caminho mais curto
entre dois pontos, foi, com dificuldade, até ao animal buscar o rabo
de tatu. O rapazinho, usando a reta, entrou e trouxe a espingarda
chumbeira, única herança do seu falecido pai.
Ritão já lá veio empunhando o relho, mas parou e ficou nessa
posição, como se estivesse posando para retrato.
O rapazinho apontava-lhe a arma, com o cão arregaçado. Ritão
lembrou-se do "Extraviado" e teve um receiozinho de continuar o
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SERTÃO: O RIO E A TERRA
ELUCIDÁRIO
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CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
ELUCIDÁRIO
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CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
ELUCIDÁRIO
O CARRO DO
GOVERNADOR
N
o tempo dos fordinhos, a velha cidade de Goiás, então Ca-
pital do estado, era, na ocasião, governada por Brasil Caia-
do. O governador usava espessas barbas e, apesar de ter um
nome popular entre o povo, não era conhecido pela gente do interior..
De temperamento simples, gostava de fazer-se passar por um cida-
dão comum, um homem qualquer, apreciando o sossego e afugen-
tando eventuais bajuladores.
Era de seu hábito passear no seu Dodge-27, que lhe, deram de
presente, pulando que nem cabrito pelas pedras alvas das ruas: per-
corria toda a cidade e os arredores.
Naquele tempo recuado, o transporte era quase todo feito em
lombo de burro, não havendo veículos motorizados a percorrerem
estradas, pois estas eram caminhos quase intransitáveis, além de que
tinham grandes trechos escarpados e cheios de pedras, impedindo
outro meio de locomoção, afora o de muares.
Um dia, em um desses passeios, o carrinho do governador,
barulhento e fumacento, encontrou uma tropa, composta unica-
mente de éguas, que deixava o Mercado, com as bruacas carre-
gadas de farinha de trigo. Aqueles animais não conheciam outro
barulho senão o feito pelas patas no chão duro, e nunca, nem de
longe, tinham ouvido o estouro de um motor a explosão. Estavam
saindo pelo lado da Carioca. Quando penetraram em um cami-
nho estreito, quase um corredor, com barrancos bem altos aos
lados, surge o governador em seu automóvel barulhento, mais
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CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
1 97 1
DINHEIRO NA MÃO
DE POBRE
1 100 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA
—Aral...
— Negócio sério, de homem.
— Sei não... 'liou meio aturdido...
— Você recebe esse dinheiro livre e desimpedido, sem ter gas-
to algum. Pensa bem que dez contos de réis é muito dinheiro nesta
época. Fica o mesmo que ser uma herança que o finado seu Antônio
te deixou.
Não era necessária tanta falação, pois quando surgiu a cifra dez
contos de réis a fala já havia sumido completamente da boca do João.
Aquela miséria, aquela privação de tudo, incomensurável, passou-
-lhe pela mente atordoada. Enfim o seu sonho estava sendo realiza-
do. Dez contos era dinheiro toda vida. Seria o dono de Corumbaíba.
Emprestaria dinheiro até para o Intendente.
- Vancê, seu Mané - perguntou, desconfiado - tem esse di-
nheiro aí?
— Ara, vim cá pra sair tudo realizado; até pena e tinta pra fir-
mar eu trouxe.
— Mas eu não "seio" assinar, seu Mané...
— lã tudo preparado: trouxe o compadre Leôncio de arrogo.
Você pedindo ele assina. É pra isto que tem o tal de "arrogo"; só que
é obrigado pedir.
Assim foi feito: o Manoel de Souza ficou dono da procuração
assinada e João da Silva de Jesus, dos dez contos de réis.
Aquilo para ele era um prazer, espichar as "folhas de couve" em
cima do jirau que lhe servia de cama; nunca se cansava de contá-las.
Como gostava demais de pão e nunca pôde comprar, desceu
até a cidade e comprou um saco cheio.
— Que é isso, João? Tu não sabe qu'esse pão vai ficar todo duro?
Pra que tanto pão? Carecia comprar duzentos réis cada dia e a gente
tinha sempre pão fresco...
— É mesmo, Joana, nem tinha pensado nisso; vontade de co-
mer pão era demais da conta...
A indumentária da família era tão paupérrima que, quando
chegava a época de lavar a roupa, precisava ficar-se escondido até
1 104 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA
secá-la; assim mesmo não passavam de uns míseros trapos. Mas, que
foi o que João fez? Ora, desceu à cidade e comprou um belo guarda-
-roupa. Ao chegar com o móvel, todo de cedro maciço, muito refor-
çado, teve que derrubar a taipa da parede, a fim de introduzi-lo.
— Meu Divino Padre Eterno!... Mas o que qu'é isso, João?
— Guarda-roupa! `Tá vendo não?...
— Meu Divino!... - tapou a boca - carecia disso, não... pra que
guarda-roupa se a gente não tem nada pra pôr dentro?...
Com mais esta ratada João resolveu deixar o dinheiro, único
e exclusivamente, para negócios. Queria fazer aquele dinheiro ren-
der muito, pois acreditava, piamente, na sua argúcia de comerciante.
Pensava que para negociar e ser bem-sucedido era só ter dinheiro.
Mal sabia que muitas vezes muito dinheiro até atrapalha.
Mas o danado tinha uma paixão extraordinária para um par
de dentes de ouro. Achava aquilo de um luxo estupendo. Dentista
havia na cidade; dinheiro ele possuía; dois caninos bem grandes e
bons para serem encapados estavam na sua boca. A vontade era por
demais e crescia ainda muito mais quando pensava nos sorrisos que
poderia dar nas rodas dos pagodes, quando os amigos contassem os
„
causos" engraçados.
Por fim, acabou cedendo ao seu desejo. Meteram-lhe duas
coroas que realçavam de longe. O João nem mais fechava a boca.
Qualquer coisa que ouvia era motivo de graça: ria escancarado; ria
muito mesmo, o nosso João. A pobre Joana, coitada, possuía uma
cacaria que lhe proporcionava uma fedentina danada, quando abria
a boca, coisa que fazia sempre, pois se admirava de qualquer coisa
que via e ouvia.
A notícia de que João tinha dinheiro para negociar correu cé-
lere. Os espertalhões não faltaram com as suas ofertas milagrosas.
Empregou, depois de muitos cálculos, todo o dinheiro restan-
te numa partida de gado, que, por sinal, era muito ruim: um gado
magro e desgraçado. Para valer o que ele havia dado pela boiada era
necessário colocá-la numa pastaria muito boa e esperar. Depois te-
ria o problema de encontrar o comprador; essa compra não seria no
1 105 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
ELUCIDÁRIO
I 109 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
tudo o que havia passado, o que estaria por passar e, ainda, o que
deveria ter passado. O avô havia morrido no sobrado; o Josias havia
aparecido doente e morreu sem se poder fazer alguma coisa exata,
pois gritava dia e noite com dores nos ossos.
— Não houve banha de capivara que aliviasse, meu filho...
— O coitado sofreu muito mesmo, compadre...
— Foi isso... Mas Deus é servido.
— Ainda que veio morrer em casa. Podia ser pior.
— É isso mesmo.
Clarimundinho queria saber como foi, quais as causas e tudo
mais:
— Mas como o mano apareceu?
— Trouxeram do garimpo. Foi gente de Deus...
As conversas viraram:
— A Laurinha também casou. Rapaz de lá mesmo; você não
conhece.
— Mora lá?
— Todos juntos.
— Olha aqui, doutor, hoje nós vamos fazer um arrasta-pé lá,
em sua casa: vem gente de toda banda.
Mais algum assunto e, passadas duas horas, o silêncio de vozes
foi estabelecido. Somente os sopros e o pisar dos machos se faziam
ouvir. Afora disto, a natureza regozijava-se. Era manhãzinha e o am-
biente estava alegre, com cantar de pássaros e corridas de preás. Aqui
um córrego, ali um riacho, lá uma paisagem que se descortina, sol
deitado e brilhante e tudo mais muito bonito. Chuva não vinha, não,
mas os palas, as pioneiras capas "Ideal", nas garupas.
Chegaram. josefa fez vários rodeios para vir ter ao filho.
— Como está bonitão o meu Clarimundinho!...
— A bênção, mãe...
— Deus te abençoe, meu filho... Deus te abençoe, meu Cla-
rimundinho.
Dona Josefa rodava pra lá, rodava pra cá, ia e vinha e tudo seu
rendia muito pouco, a não ser a alegria que se deixava transparecer.
112 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA
frio, ainda, mas ele estava gelado, debaixo da coberta. Até dos cabelos
corriam-lhe suor. Na casa era silêncio. Só a Natureza se fazia presen-
te, com todos os ruídos.
Clarimundinho, olhos fechados, meio dormindo, ouviu pas-
so, lá em baixo. Alguém subia na escada, que rangia. Uma dor fria,
fina, veio-lhe subindo desde a barriga da perna até a espinha. O seu
corpo gelou, ainda mais. Os seus cabelos empastavam-se. A porta
do quarto rangeu e uma pequena claridade iluminou o aposento. O
angustiado, por mais que tentasse fechar os olhos, ainda notava a
pequena claridade. Passos de chinelas arrastando, aproximavam-se.
Um vulto preto tomou-lhe a frente. Agora ele queria abrir os olhos e
também muito mais a boca para ver e gritar o quanto pudesse. Sentiu
que alguém lhe tocava o corpo, na posição do dorso e vinha subindo
pelo peito. Agora duas mãos passaram-lhe pelo pescoço e foram lhe
apertando para enforcá-lo, sufocando-o. Estrebuchou-se. A luta con-
tinuava, em que só ele era atacado. Finalmente conseguiu agarrar as
mãos do fantasma, saltando do leito, por uma força misteriosa que
ele não a possuía no momento. Soltou um urro e pôs-se de frente à
aparição, olhos estatelados, ofegante e arcado:
— Meu filho!... Você sofre pesadelos?! Eu venho cobri-lo, meu
Clarimundinho!...
ELUCIDÁRIO
115
CAPRICHO DO DESTINO
Adolfo teve uma ideia: "O compadre é bem capaz de já ter pas-
sado; vou pra grota, pois ali todo carro tem que diminuir a velocida-
de e não vão negar-me passagem". Assim fez. Poucos instantes depois
de lá chegar ouviu uma zoada de carro na estrada. O pobre homem
ficou radiante: "Foi Deus quem mandou...".
A zoada era da Chevrolet do Leôncio, que vinha com mais
medo ainda, pois lembrou-se da grota, onde teria que cortar quase
que toda a marcha. Reconhecia, ali, um lugar excelente para embos-
cada. Ajeitou bem o revólver no assento. Como se aproximava do
local sinistro, pegou-o e uniu-o ao volante, com o dedo no gatilho.
Até uma vaca que aparecesse era capaz de ele atirar, julgando que
fosse gente.
Quanto mais se aproximava, mais febril se tomava e mais jubi-
lante ficava Adolfo. Veja como o destino é ingrato: por que a filha do
homem foi adoecer naquela hora, ela que nunca havia ficado doente?
Por que o Adolfo, em vez de outro? Por que Leôncio, no lugar de um
outro que não soubesse do caso e viesse despreocupadamente? Em
vez de um pobre pai que busca recursos para o filho doente, por que
não estaria ali o verdadeiro ladrão, para que o Leôncio lhe furasse de
balas ou lhe passasse por cima? Mas dizem que cada um tem o seu
destino e o que Deus faz está bem feito. Isto é verdade.
O carro embicava, agora, para a grota, trepidando nas gros-
sas pedras. Leôncio avistou, lá em baixo, um vulto de homem. O
coração disparou dentro do seu peito, que também pulava. Deixou
o volante por conta da mão esquerda e segurou a arma no jeito de
atirar com a direita. Preferiu não diminuir a velocidade e impul-
sionou, ainda mais a caminhoneta, que dançava no meio das pe-
dras, engatada em primeira, pois a mão estava ocupada e não podia
passar para uma segunda. Ao deparar com Adolfo, o seu pé estava
colado no tapete e a traseira da carroceria rodopiava. As rodas ati-
ravam calhaus para os lados, pois o motor, na máxima aceleração,
mandava para as pontas de eixos toda a sua potência. Leôncio não
podia atirar, pois a direção desgovernara e ele não sabia se olhava
para a estrada ou para o "assaltante". Ele também estava, ora de um
I 120 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA
ELUCIDÁRIO
ELUCIDÁRIO
1 130 1
A EXPEDIÇÃO
1 133 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO
— Onde?
— Acolá, pra banda do Gorino...
— É muito longe?
— Nada; é ali mesmo... É de grito.
— Em um dia se vai lá?
— Vai não. Quer dizer: ia, mas caiu ponte, enxurradão acabou
com estrada. A gente tem de ir montado, dando volta por de trás.
— Estamos perdendo tempo, pessoal; uma coisa, uma oportu-
nidade desta não se perde.
— O senhor, seu Clemente, poderia nos arranjar os animais?
— Demais da conta... "Vanceis" paga o dono, paga eu também...
— Ora, não queremos nada de graça. Vai ver se pode arranjar isto.
Clemente arrumou a burrada. Os "cientistas" carregaram uma
bagagem enorme, com todos os instrumentos, com todo o conforto,
em exagero.
— O que está escrito na pedra, seu Clemente?
— Sei não. Não conheço o significado das letras: sou um analfabeto.
— Coitado...
— Coitado nada; nunca usei...
— Interessante.
— Muito. Eu levo "vanceis" lá, uai! Aí «vanceis» lê.
ELUCIDÁRIO
I 136 I
A
Coleção Sertão é uma edição de preservação, cult
conhecimento da trajetória literária do escritor Wa
Bariani Ortencio. Paulista mas goiano de coração
traz nesta coleção a sua obra-prima sobre o sertão
tanto viveu e até mesmo contribuiu a consolidar.
O sertão de Bariani descreve uma vida que já virou fie
muitos de nós. Ao republicar suas três grandes obras, reabr
cussões sobre o que foi para o homem e para o Brasil ir para
do planalto brasileiro. Hoje para alguns um Eldorado e pa
um inferno. Essa dicotomia nos personagens e nas imagens
terra nova são as imagens que se enraízam nas memórias d
lê Bariani Ortencio.
Éfácil para quem percorre as páginas de Bariani, um Anh
moderno que observa e reinterpreta o mundo que o cerca
brando os leitores com tão vasta obra.
A sua vida foi uma aventura na mesma intensidade de
mances que trazem um apelo ao pensamento, ao sonho e ao
VICTOR
t
A
Coleção Sertão é uma edição de preservação, cultura e re-
conhecimento da trajetória literária do escritor Waldomiro
Bariani Ortencio. Paulista mas goiano de coração e alma,
traz nesta coleção a sua obra-prima sobre o sertão que ele
tanto viveu e até mesmo contribuiu a consolidar.
o sertão de Bariani descreve uma vida que já virou ficção para
muitos de nós. Ao republicar suas três grandes obras, reabre as dis-
cussões sobre o que foi para o homem e para o Brasil ir para o centro
do planalto brasileiro. Hoje para alguns um Eldorado e para outros
um inferno. Essa dicotomia nos personagens e nas imagens de uma
terra nova são as imagens que se enraízam nas memórias de quem
lê Bariani Ortencio.
Éfácil para quem percorre as páginas de Bariani, um Anhanguera
moderno que observa e reinterpreta o mundo que o cerca assom-
brando os leitores com tão vasta obra.
A sua vida foi uma aventura na mesma intensidade de seus ro-
mances que trazem um apelo ao pensamento, ao sonho e ao tempo.
VICTOR TAGORE