Bariani Ortencio - Sertao O Rio e A Terra

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SERTÃO: O RIO E A TERRA
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SERTÃO: O RIO E A TERRA

CONTOS GOIANOS

(t) TRAMPOLIM BARIANI ORTENC O


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ia Edição: Livraria São José


Rio de Janeiro — 1959
by Waldomiro Bariani Ortencio - 2017

FICHA TÉCNICA

Editor:
Victor Tagore

Revisão de texto:
Maurício Apolinário

Capa e Diagramação:
Eward S. Bonasser Jr.

Coordenação Editorial:
Izabel Signoreli

Produção:
Laila Santoro

077s Ortencio, Waldomiro Bariani


Sertão: o rio e a terra / Bariani Ortencio.-- Brasília,
DF : Trampolim, 2017.
136 p. ; (Coleção ciclo do sertão)

Inclui vocabulário regional goiano


ISBN: 978-85-5325-006-6

1. Literatura brasileira. 2. Conto. I. Coletânea


Bariani Ortencio. II. Série. III. Título.

CDU 821.134.3-34(81)
CDD B869.34

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação do autor. Qualquer semelhança com acontecimentos reais é mera coincidência.

Contatos:
Bariani Ortêncio - [email protected]
Tagore Editora - [email protected]

TRAMPOLIM é uma marca da TAGORE EDITORA.

Todos os direitos reservados de acordo com a lei.


Composto e impresso no Brasil. Printed in Brazil.

TAGORE EDITORA
SRTVS Quadra 701, Bloco O, Edifício Novo Centro Multiempresarial, sala 203,
CEP: 70.340-000, Brasília, DF.
Ao meu avô Fioravante Bariani que, em vida, foi a ale-
gria de todos e cuja morte nos deixou a saudade e sua
falta, a nós, imperecíveis. Sim, a ele, que era goiano de
coração, pois o seu desejo era, se morresse um dia lon-
ge de Goiás, que fosse sepultado aqui.
E quando, repentinamente, sucumbiu, achando-se a
passeio em São Paulo, no dia 23 de abril de 1945, cum-
primos-lhe o desejo, fazendo com que o transportas-
sem até aqui, em carro fúnebre.
Aniversariou no dia 25 do mesmo mês, mesmo morto,
mas percorrendo sobre a terra, pelas cidades paulistas e
mineiras, onde viu nascer seus filhos e netos.
Ao cabo de cinco dias chegava ao seio da terra que en-
contrara a sua família, como Moisés encontrou Canaã,
a terra prometida por Deus a seu povo.

W BARIANI ORTENCIO
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SUMÁRIO

O ESPANTALHO MILAGROSO 9

O ENCONTRO 17

A VANTAGEM DE SER ANALFABETO 23

TROPEIRO 29

PACIÊNCIA, SR. JUIZ 39

O BOTO 43

RECURSO MACABRO 47

A MULA SEM CABEÇA 57

A INOCÊNCIA DO TEOD ORO 63

UMA BRIGA 67

O EXTRAVIADO 75

A TOCAIA 81

INICIAÇÃO 85

O CARRO DO GOVERNADOR 95

DINHEIRO NA MÃO DE POBRE 99

O FANTASMA DO SOBRADO 109

CAPRICHO DO DESTINO 117

O CONTAGIOSO 123

A EXPEDIÇÃO 131
O ESPANTALHO
MILAGROSO

B
elarmino havia conseguido cinco litros de planta de arroz
para uma rocinha, na vargem do rio. Seria mantimento
para o gasto. Com mais a mandioquinha de oito litros de
terra e o tiquinho de feijão que plantava no quintal de milho, lá ia
o Belarmino mais a família furando o ano. Carne, ele conseguia
de peixe, ali pertinho, no rio; carne vermelha a sua "pica-pau" e
sua astúcia garantiam mesmo dentro da roça, que era uma minia-
tura. A pequena lavoura era a ceva das pacas, das capivaras e dos
caititus. Os grandes pés de algodão da porta da cozinha davam
capuchos suficientes para a mulher cardar, fiar e tecer as roupas
do uso. Ao lado, pés de mamonas, verdadeiras árvores, com folhas
de diâmetro de guarda-chuva aberto, forneciam cachos, cujas ma-
monas pareciam maxixes redondos. Depois das sementes secas e
socadas no pilão, davam o óleo para a candeia alumiar as noites
do ano inteiro.
Belarmino era pai de oito filhos e os tinha todos em casa, ainda
pequenos. O Neca, o mais taludinho, ajudava o pai a escorar a vida,
apesar dos seus apenas doze anos. Mas acontece que filho de roceiro
é homem, por força das circunstâncias, não importando a idade nem
o tamanho.
Cachorros, afora os que as onças comeram, eram oito, tam-
bém. Passavam a carne de bicho; crua, e, variando, cozida na pura
água, sem sal. Sal era o maior problema do homem.
Tudo podia ser, mas comer sem sal, ele não gostava.
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Como cavalo dali é a canoa, Belarmino pegava a sua ubá e su-


bia doze léguas, até Araguaiana, onde barganhava couros de bichos,
ainda fedendo, por um tico de sal. Como era homem de responsa-
bilidade, deixava para adquirir fumo pixuá e um gole de pinga en-
garrafada, depois. Primeiro, o sal. Aí, sim, ia feliz. O Nequinha na
popa dirigindo, pois a canoa corria de água abaixo, e o pai deitado,
confiante. Tinha aos pés, o Trovão, seu cão predileto; numa mão,
a garrafa e, no bico, o pito grosso. Raras vezes chegava acordado;
Neca providenciava tudo. Quando o pai era acordado, o garoto já
havia levado os trens para casa e a canoa estava ancorada, ou me-
lhor, amarrada no jenipapeiro, debaixo do qual, e com as frutas do
mesmo, ferravam sempre tantas caranhas e matrinxãs.
A mandioca, o milho e o feijão, Belarmino, mais os meni-
nos, vigiavam bem dos bichos, pois estes, em vez de se alimenta-
rem na roça, matavam, com os próprios corpos, a fome daquela
família. "Bicho evém comer, sai comido.. .", dizia rindo para os
filhos. Mas o problema era vigiar a roça de arroz dos pássaros-
-pretos e maritacas; gastar tiro com eles não era compensador;
ficar lá vigiando, não pagava a pena; e os malvados davam nos
cachos e limpavam de fiada. "Eta bicho excomungado, esses pás-
saros-pretos não vão deixar arroz pra gente comer... do jeito que
arroz com pequi é bom... arroz com suã de caititu, também...",
clamava o homem.
Foi aí que resolveu fazer um espantalho. Disseram-lhe que era
para fazer um bem parecido com gente, pois nas roças das beiras
das cidades, aquilo já estava desmoralizado, porque os passarinhos
pousavam em cima dele e, ainda, sujavam nele. Belarmino pegou um
toco de piUna, queimado, e pôs-se a esculpi-lo.
— Vou fazer uma cara nele, bem ajeitadinha que vai parecer
com a cara do Bastião do vapor.
— Depois nóis veste roupa nele, né, pai? Nóis põe chapéu nele...
Mestre Belarmino, rodeado pelos filhos, parecia o santeiro Vei-
ga Vale de Pirenópolis, esculpindo alguma imagem na madeira. C)
matuto tinha queda para aquilo.
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Depois de feito, a cara bem feitinha, lá foi o espantalho para


a margem do rio, levado pelo pai, acompanhado da filharada, ca-
chorrada e a mulher. Enfiaram o estafermo, braços abertos, corpo
enrolado de trapos e, na cabeça, um chapeuzinho tipo cuia, de um
dos filhos. Ninguém diria que não fosse um homem que lá estava.
Os autores do negócio riam de contentamento ao verem nuvens de
pássaros-pretos cortando voltas, passando bem longe da armadilha.
A roça foi colhida, com proveito. O espantalho ficou esquecido,
no meio do mato.
O sol era tão quente naqueles dias de março que chegava a tre-
mer em cima do rancho do Belarmino. Urubus pintavam o céu aqui e
acolá. Bandos de patos cruzavam o rio, ora de um lado, ora de outro,
mas sempre descendo.
Belarmino sabia que a enchente de São José estava por ali, mas
desconhecia o calendário.
Certo dia, levantou-se cedo e foi assuntar o rio: as águas subi-
ram bem um palmo. Garrancheira, troncos e pequenas ilhas começa-
ram a desfilar, logo depois. A água estava turva. O sertanejo viu que
havia chovido ou estava chovendo nas cabeceiras. Preparou lenha,
pôs farinha pra secar e recolheu as mantas de carne do varal. O rio
subiu mais um palmo, até aí. O sol continuava rachando, estalando
as mamonas. A água foi invadindo as soqueiras do pequeno arrozal.
Trovões, longínquos, ribombavam, surdamente. O dia foi-se escure-
cendo e não era, ainda, a hora do crepúsculo. O tempo fechou e os
relâmpagos riscavam o céu, clareando-o, alternadamente, como se
fossem uma solda elétrica. Belarmino pegou da meia dúzia de paus
roliços e fechou a porta. Os oito cachorros couberam debaixo do ji-
rau; e caberiam outros oito a cada estrondo do trovão. A mulher ul-
timava a lida doméstica e Belarmino assuntava a invasão das águas,
pelos vãos da parede de pau a pique. A filharada parecia outro bolo
de cães, em cima do jirau.
A enchente naquele dezenove de março de 1919 foi uma das
maiores, não só no Araguaia, mas em todo o centro do país, princi-
palmente no São Francisco.
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Belarmino teve que dependurar os badulaques no telhado do


rancho, telhado de sapé, para não se molharem. Os cachorros equili-
bravam-se nos trens mais altos e os pés do jirau estavam cobertos de
água. O casal, empoleirado na fornalha, queria fazer alguma coisa,
mas não tinha iniciativa. Ficava com os olhos miúdos e piscando. Se
fosse gente de outras bandas, estaria rezando para Santa Bárbara e
queimando folhas bentas.
O espantalho foi arrancado roça abaixo, ora sumindo, ora
aparecendo, entremeado de galhadas, enroscando-se, às vezes, nos
cipós das árvores que riscavam as águas. De vez em quando o es-
pantalho metia a cabeça num barranco alto ou era trombado por
uma ilha rolante.
Com três dias as águas baixaram consideravelmente. Com oito
o boneco da roça de Belarmino sossegou, engarranchando-se numa
coivara, umas cem léguas de Araguaiana.
Pescadores dali, de São José do Bandeirante, deram com o es-
pantalho. Eram homens de boa-fé, que se persignavam a qualquer
perigo, miseráveis e doentes, que viviam da caridade do rio. Os ho-
mens ficaram estupefatos. Fizeram o "pelo-sinal" com o polegar des-
lizante pelo peito:
— São Benedito!... É São Benedito!...
— São Benedito da Aparição!...
O tronco de piúna, queimado, conservava-se ainda preto e com
os dois galhos opostos, que serviam de braços ao espantalho, ainda
enrolados com os trapos podres. Belarmino escolhera bem aquele
tronco exótico, mas nunca pensara em fazer um São Benedito. Era
homem muito devoto, pelo menos nas horas de perigo, quando se
lembrava de gritar pelo "meu Divino Pai Eterno". As suas intenções
não foram de fazer um santo.
Um dos pescadores seguiu sozinho numa ubá e foi dar a no-
tícia. Quando a outra canoa ganhava barranco, a praia estava com
todos os habitantes de São José do Bandeirante. Pegaram o espan-
talho com respeito e levaram-no ao Palácio de Couto de Magalhães
(casa de esteios, adobes e coberta de telhas comuns), para que "São
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SERTÃO: O RIO E A TERRA

Benedito" fosse reconhecido. Todos queriam carregar, ao mesmo


tempo, a imagem. Os moradores do palácio, gente também humil-
de, simples, projetaram, naquela hora mesma, a construção pro-
visória de uma capela para o Santo. Em poucos dias tudo estava
arrumado. O arraial foi visitado por todos da redondeza, que de-
mandavam o santuário.
A tarde foi-se metendo pela noite a dentro, quando o marido
da Totonha ainda estava no rio, coisa que nunca havia acontecido. A
mulher, desesperada, correu à capela e fez votos para São Benedito,
que, se o marido voltasse são e salvo, ficaria muito tempo sem botar
um golinho de pinga na boca. Voltou esperançosa, pois pareceu-lhe
ver o santo sorrir. Chegando lá encontrou o esposo brabo por não ter
encontrado a mulher em casa. Totonha esparramou pelo casario de
palha acima, a notícia do milagre.
O Tião prometeu não comer sal uma porção de dias, para que
São Benedito lhe devolvesse a vaca perdida, desaparecida dias atrás.
No outro dia deram a notícia dela.
Chuva brava, São Benedito acalmava. Brigas de família, São
Benedito ajeitava. Trem perdido, São Benedito devolvia.
Objeto roubado, São Benedito arrecadava.
A fama do Santo se embrenhou mata a dentro. No dia vinte e
sete de março fizeram a primeira romaria de São Benedito. São Bene-
dito da Aparição havia despertado a fé naquele povo.
O maior milagre do santo foi este: o espantalho milagroso fazia
os sertanejos rezarem. Quem não sabia aprendia logo, com muita
força de vontade.
O nono filho da mulher de Belarmino havia atravessado e ele,
o parteiro, não havia jeito de desvirar a criança. Dona Maria sofria
muito, dando gemidos profundos, como boto em noite de lua. O
marido ficou desesperado. Perder o filho não lhe importava muito,
pois tinha oito, mas a mulher era só aquela; quem iria cozinhar,
lavar roupa, socar mamona, tecer na roda? Foi aí que se lembrou
do São Benedito da Aparição de São José do Bandeirante. Ficou
radiante e falou no duro mesmo, com o santo: "Olha aqui, São Bene-
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CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

dito: vancê faz o trem dar certo, que eu saio lá c'a minha ubá carrega-
dinha de couro de bicho, e despejo na igreja".
Não prometeu mais nada, porque a mulher lhe gritou: "Acode
aqui, Belarmino!... O nenê evém vindo!... O pobre pai nem se lem-
brou de ver se era homem ou mulher: pegou. a "pica-pau" e, saindo
ao terreiro, disparou pra cima, dando vivas a São Benedito, o parteiro
do céu.
Mal Dona Maria cumpriu o resguardo, intervalo resumido,
mas exigido pela natureza, o marido encheu a canoa de couros de
caititus, antas, veados, capivaras, lontras e desceu as cem léguas para
cumprir a promessa.
Queria levar o caçulinha para o santo ver, mas a mulher lhe
dissera que o santo tinha o poder de ver lá do céu e, então, levou o
Nequinha. Também, quem iria ajudá-lo a remar e varejar na volta?
Ao chegar foi à capela, ajoelhou-se e disse alto: "Tá tudo aí,
São Benedito; a ubá `tá cheinhazinha... E logo eu trago pra van-
cê... Vim só avisar que cheguei". Meteu-se a descarregar a carga,
muito contente, pois havia chegado feliz, dando conta do recado.
Depois ficou encabulado, dizendo ao filho que aquele santo não
lhe era estranho.

ELUCIDÁRIO
PICA-PAU: Espingarda de carregar pela boca. Fulminante.
Chumbeira. O mesmo que a lazarina do norte, porém, mais
curta.
UBÁ: Canoa dos índios; é feita de um pau só, como um cocho.
PIXUÁ: Fumo bom em camadas de folhas prensadas e não en-
roladas e torcidas como no fumo de rolo ou de corda.
MATRINXÃ: Peixe de água doce, da família dos characídios.
ESPANTALHO: Boneco do tamanho de uma pessoa que se
põe nas roças para afugentar os passarinhos.
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SERTÃO: O RIO E A TERRA

PEQUI: Planta da família das sapindáceas, que dá uma fruta


amarela e extremamente cheirosa, contendo, além da polpa
carnuda, grande quantidade de espinhos muito finos e peri-
gosos e a semente dita, que, também é gostosa. O pequi vem
quase sempre geminado em forma de rins, cujo invólucro é
redondo, de cor verde e do tamanho de uma laranja. Arroz
com pequi é prato tradicional e muito apreciado em Goiás. O
licor pequi, de Mato Grosso, é até exportado.
CAITITU: Porco do mato, menor que o queixada e que eriça o
pelo quando enraivecido.
VEIGA VALE: José Joaquim da Veiga Vale, nascido em
09/09/1806, em Meia Ponte, hoje Pirenópolis. Foi vereador
municipal e deputado provincial. Esculpiu em madeira a ima-
gem da Santíssima Trindade para os devotos de Barro Preto,
hoje Trindade, por ordem de Constantino Xavier, em 1855.
Constantino levou um medalhão de barro encontrado no local
onde está hoje o Santuário e Veiga Vale copiou-o. Neste me-
dalhão estavam gravadas as imagens da Santíssima Trindade
coroando a Santíssima Virgem Maria. Os romeiros dizem que
esta é a imagem "verdadeira" do Divino Padre Eterno. Veiga
Vale transferiu-se para Vila Boa, hoje Goiás-Velha ( antiga ca-
pital), e lá está o maior número da sua fecunda imaginação e
arte. Um bispo de Goiás enviou ao Papa Pio IX uma imagem
do Menino Jesus, esculpida pelo artista goiano e até hoje é ela
conservada no Vaticano. Faleceu em 29/01/1874.
BADULAQUES: Utensílios pobres de casa.
TREM: Coisa. Qualquer objeto concreto ou abstrato. Este ter-
mo é largamente empregado em Goiás: "Estou com vontade
de comer um trem". "Eu vi um trem ali". "Eu estou sentindo
um trem ruim na cabeça".
CO/ VARA: Garrancheira. Calharia amontoada.
ESTAFERMO: Bobo. Sujeito maltrapilho.
VAREJAR: Usar o varejão, ou vara comprida que vai ao fundo
do rio, impulsionando a canoa.

1 15 1
O ENCONTRO

E
ra dia de audiência. Na sala da Prefeitura os interessados es-
tavam sentados em todo o redor, todos aguardando sua hora.
De vez em quando um homem baixo, calvo, roupa surrada,
com os traços de servidor público crente, cantava o número de uma
ficha. Estava no número três, agora. O número trinta e quatro era do
Amâncio, o mais humilde deles todos. Amâncio estava inquieto, cru-
zando as pernas, ora num sentido, ora noutro; amassava o chapéu,
alisava os cabelos e ajeitava-se, incessantemente, na cadeira.
Algum tempo depois, o homem pôs-se calmo e os seus olhos,
penetrantes, hipnotizavam a mesa de centro, cheia de revistas.
Amâncio pensava. Como pensamento não paga passagem, voou até
ao colégio em Uberaba, onde estudou havia algum tempo, já muito
passado, junto com o Prefeito, que estava lá dentro.
Tinha uma necessidade extrema de falar com ele, mas temia-o.
Quando eram estudantes, eram amigos, carne e unha, mas agora o
Arquimedes era o Prefeito, o dono daquela cidade e poderia nem
ao menos conhecê-lo. Quando gente fica rica sempre se esquece dos
pobres. Isso fazia o Amâncio tremer.
Mas, animava-se um pouquinho ao lembrar que o Arquimedes
sempre dependeu dele nos exames.
Quando o porteiro anunciava uma outra ficha, Amâncio saía
daquela paralisação e entrava, novamente, no seu estado de agita-
ção. Entregava-se, logo depois, aos pensamentos. Não achava nada
bom passar por aquilo, que estava passando. Se não fosse pela sua
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

precária situação não estaria ali. Continuava pensando: quando


criança, ainda, despertou nele a curiosidade em aprender as coisas.
Aprendia tudo tão facilmente e tinha um jeitinho tão bom para
tudo, que o pobre pai se empenhou de cabo a rabo na sua educação.
Arranjou-lhe professor, comprou-lhe livros, mas em pouco tempo
o professor não tinha mais nada para ensinar ao aluno:
— Esse menino não é de se deixar perder - dizia sempre o pai.
A mãe, esfregando as mãos no vestido grosso de algodão, ape-
nas sorria satisfeita, orgulhosa do filho. Palpite que interessasse não,
podia dar, pois mulher no sertão não tem voz ativa e vive quase sem-
pre enclausurada.
O professor martelava na cabeça do velho:
— Não pode esperdiçar a ideia do menino; é preciso mandar
ele lá pra-baixo.
O pai possuía uma pequena casa de comércio, no povoado, e
conhecia um fornecedor em Uberaba, com o qual se entendeu. Ar-
rumaram a fim de que o menino fosse para o colégio. O comerciante
iria, dali em diante, espernear-se todo, pois manter um filho num
colégio de fora era aventura para rico.
Um belo dia Amâncio, com os olhos rasos dágua, despediu-se
dos seus, levou a bênção dos pais e montou a cavalo (cavalo é modo
de dizer: burro é que aguenta essas viagens). Um peso enorme com-
primia o seu coração, apertando mais e mais, quanto mais e mais se
afastava de casa. Olhar para trás era um martírio. O homem de Ube-
raba ia levando dinheiro do pai para providenciar a sua matrícula nc
colégio dos padres. O animal pisava seco, lerdo, e Amâncio fechava
os olhos para não ver passar e ficar, talvez para sempre, aqueles tre-
chos tão queridos.
— Onze! - anunciava o porteiro.
Amâncio deu um pulo na cadeira. Aquele número anuncia& ,
tão seco, veio tirar-lhe o sossego. Um cordão de frio calou-lhe funcic,
na espinha. Onze já era bem perto do trinta e quatro. O sistema ner-
voso pôs-se em funcionamento e constrangia-o de um modo notório.

I 18
SERTÃO: O RIO E A TERRA

O Prefeito, lá dentro, dava a bronca: nada estava direito; o seu


secretário não punha nada em ordem. Havia muitas daquelas visitas
que ali já estavam pela terceira e até quarta vez, reclamando a mesma
coisa. O secretário não havia providenciado nada e a culpa, a respon-
sabilidade, cai sempre é em cima do Prefeito.
Arquimedes passava o tempo demitindo e admitindo secretá-
rios. Precisava de um que resolvesse tudo, que até escrevesse seus
discursos. Ali mesmo, na sala de espera, bem sabia que havia várias
candidatos a este posto. Mandá-los-ia às favas. Trazia alimentada a
esperança de um dia feliz encontrar o Amâncio, o seu colega de estu-
dos, o homem mais inteligente de quem já teve notícias. O seu pen-
samento também voava para Uberaba.
A visita, em audiência, sentava-se frente a ele, expunha os
seus motivos e Arquimedes, sem olhar na cara do freguês, respon-
dia e dispensava, ou despachava, maquinalmente. Estava pensando
no amigo, lá de Uberaba. Se soubesse que ele estaria ali, na sala, tão
perto, mandaria suspender a audiência e abraçaria, até não ter mais
fim, o Amâncio, o bom colega, nas costas do qual, se dependurava
nos dias dos exames. Isto ele nunca esqueceu. O seu secretário já
estaria, indubitavelmente, escolhido. E que escolhal...
Nunca se esquecera daquele dia em que o Amâncio arrumou a
mala para regressar. O ano ainda não havia terminado, mas as posses
do amigo haviam-se esgotado. Aí, ele não deixou, não. Tirou parte
de sua mesada e juntou com a minguada do colega. Seus pais eram
abastados ali, no sul de Minas, onde hoje era o Prefeito, e passavam,
assim, os dois, muito bem.
Nas aulas nunca prestava bem atenção, pois preferia aprender
depois, no quarto, com o Amâncio. Aquilo sim que era jeito de en-
sinar, de passar os seus conhecimentos. E o danado que não havia
estudado nada de pedagogia, nada de didática!
Arquimedes olhou, demorado, para o crucifixo entronizado na
parede e pensou, quase alto: "Um dia ainda encontro ele..."
— Vinte e um!...

1 19 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Amâncio sentiu uma pontada bem lá dentro do peito. Seu nú-


mero se aproximava, vertiginosamente. O suor banhava-lhe a camisa,
empapava-lhe os cabelos na testa. Começou a criar casos na cabeça:
fez que ouviu o trinta e quatro, seu número, e foi entrando, devagari-
nho, chapéu na mão, pela porta infame (isto só no pensamento, pois
ele mesmo lá estava plantado na cadeira). Ficou a uns dez passos do
birô do Prefeito. Este, nem lhe olhava no rosto:
— Eu sou o Amâncio Pereira, lá do colégio de Uberaba...
— Não me lembro. O tempo é curto. Logo nos fatos.
— Desejava um lugarzinho qualquer, um empregozinho, hu-
milde que fosse...
— Não há vagas. O senhor não é do Partido.
— Mas fui colega do senhor no colégio, lá, em Uberaba...
— São coisas da infância: já ficaram para trás. O que interessa
é o presente. O senhor colaborou na Campanha?
— Quando soube o amigo já era Prefeito... não sabia antes...
mas... devia considerar o nosso tempo, no colégio...
— Águas passadas não movem moinho.
— Vinte e oito!
Amâncio deu outro salto na cadeira. Não era o Prefeito que
mandava entrar outro e, sim, o servente. Um nó impedia-lhe a res-
piração, no pescoço. O seu estado de agitação piorava cada vez mais.
Uma mulher, com uma mocinha ao lado, exaltava as suas qua-
lidades como professora, aos vizinhos de fila. Um careca de óculos
grossos de tartaruga, examinava, desenfreadamente, uns papéis que
tirava e punha na pasta. Lá, no canto, um homem de mais de meia
idade, casimira preta, consultava o relógio de minuto em minuto,
pondo-o e tirando-o do bolso do colete. Dois, do lado oposto, exa-
minavam uma planta de um loteamento e conversavam em milhões:
tudo dependia do Prefeito aprovar.
O nosso amigo Amâncio, nestas horas, já pensava na casa co-
mercial que o pai lhe deixara, ao morrer.
Havia recebido, no colégio, a comunicação da morte do pai
e o seu comparecimento para continuar o negócio, pois sua mãe
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SERTÃO: O RIO E A TERRA

não dava para aquilo. Os irmãos eram pequenos. O jeito foi aban-
donar os estudos, sob pesar de Arquimedes, e rumar, novamente,
para o sertão.
A loja estava muito mais desfalcada do que quando a deixou.
Abriram um comércio perto daquele e levou todo o movimento para
lá: influência do cristal. O lugar já era bananeira que já havia dado
cacho. O pior foi quando um danado dum turco abriu uma casa dos
mesmos artigos, bem em frente à dele e começou a vender fiado para
todo mundo.
A loja do turco durou pouco, pois transferiu-se para lugares
melhores, mas até aí o nosso Amâncio já estava quebrado.
A mãe, com o decorrer dos anos, morreu. As duas irmãs, tam-
bém, não eram pra sementes e casaram-se.
Amâncio resolveu sair por este mundo afora, embora sem co-
nhecimentos e traquejo para andar sem dinheiro.
Estava maquinando a cabeça, com estes pensamentos, quando
o servente anunciou:
— Trinta e um!
As pernas gelaram-lhe. O peito pulava, como se tivesse corrido.
Bobagem, pois o trinta e um não era o dele.
O Prefeito encarou bem o novo candidato a secretário (um ra-
paz cheio de corpo, claro, óculos, bem limpo, aparentando grande
inteligência). Esteve para mandá-lo aos testes, quando, repentina-
mente, despediu-o. Havia resolvido: mandaria um emissário buscar
o Amâncio lá no sertão de Goiás. O emprego era de cinco mil cruzei-
ros, mas para o Amâncio pagaria seis.
O Amâncio, lá fora, longe do Prefeito apenas dez metros, re-
moia-se todo de desespero. Estava arrependido mil e muitas vezes de
ter vindo. Quando trabalhava de caixeiro, num armazém, em Anápo-
lis, não sabe qual foi a mão maldita que lhe havia posto aquele jornal
nas suas, por meio do qual teve conhecimento do paradeiro e posição
do amigo Arquimedes. Deveria saber muito bem que gente rica não
conhece pobre. Nem sabia explicar porque cargas-d'água havia pegado
a sua parca economia e comprado passagens até ali, no sul de Minas.
21
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Uma distância daquelas...


Deveria lembrar que o homem poderia não mais reconhecê-lo,
pois a última vez que o viu foi há mais de vinte anos. Ainda bem que
comprou passagens de ida e volta.
Os poucos cruzeiros que trazia nos bolsos davam mal e mal
para comer sanduíches na estrada de ferro.
— Trinta e dois!
Amâncio transtornava-se. Aquele servente era o diabo! Não era
possível... Esses números amargavam a sua vida. Nem de leve nunca
sonhara que dali a poucos minutos ele, o humilde Amâncio, poderia
ser o Secretário da Prefeitura, braço direito do Prefeito Arquimedes,
como nos bons tempos do colégio. Seis mil cruzeiros de ordenado; e
isso se fosse honesto, pois o cargo tem pano para muita manga.
— Trinta e três!!!
Amâncio põe-se de pé, impulsionado por uma força inexplicá-
vel. A senhora gorda, com a filha professora, avança para a porta do
gabinete do Prefeito, julgando que Amâncio ia passar-lhe à frente.
Amâncio, equilibrando-se para não escorregar no piso encera-
do, dirige-se à porta de fora e ganha a rua. Vai trôpego, mal impor-
tando que um automóvel lhe colha a vida.
Segue todo escaxelado pela rua da estação.
Troca a passagem de segunda-classe e senta-se num dos bancos
de espera, dentre os muitos passageiros que aguardam a saída do trem.
— Trinta e quatro! Trinta e quatro! Onde está o trinta e quatro?!
Trinta e cinco!...

ELUCIDÁRIO

LÁ EM-BAIXO: Centro Civilizado: São Paulo e Rio de Janeiro


(naquela época).
ESCAXELADO: Relaxado, desmontado; que se alquebrou ou
abateu; avelhantado.

1 22 1
A VANTAGEM DE
SER ANALFABETO

izem que o corumbaibense bebe água é em Araguari. Uma

D simples dor de barriga: remédio em Araguari. Uma compra


mais ou menos: Araguari.
Mas isto foi naquele tempo do "Cel." João Anastácio. O título
de coronel lhe foi dado pelo povo, espontaneamente, porque ele nun-
ca havia pensado nisso. Afinal de contas, gente rica ou proprietária
de fazenda, em tempos idos, era "Coronel", mesmo por força das cir-
cunstâncias. Um homem montado em uma besta boa e bem arreada,
roupa cáqui, com botas e chapéu de abas largas, guaiaca cheia de
dinheiro e o chicote na mão, recebia, instintivamente, ao apear-se, no
comércio, o título de "Coronel":
— O Coronel deseja algum trem?
Este olha para ver se é com ele e entra em ação:
— Umas comprinhas.
Está feito um "coronel".
Os homens simples do comércio e da roça se dirigem a um fu-
lano nestas condições, chamando-o de "coronel", ainda mais quando
desejam receber algum favor.
Passamos a ver a história do "Cel." João Anastácio:
O macho caminhava horas e horas percorrendo as divisas da
fazenda, montado por um peão, pois o patrão queria saber quanto de
arame farpado iria precisar para cercar as invernadas. Quando esteve
em Araguari, da última vez, ofereceram-lhe o tal arame farpado e ele
desejava ser o primeiro a usá-lo.

1 23 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Vários carros de boi gemeram subindo e descendo serras, car-


regados daquilo. Coronel João Anastácio gostava do progresso e
sentia-se orgulhoso em relatar as últimas chegadas no Triângulo
Mineiro.
Certo dia, apareceu um rapaz de boa aparência, pouca idade
e se ofereceu para lecionar na fazenda. Fez o proprietário ver a ne-
cessidade duma escola ali e a vantagem de educar os filhos dos seus
agregados, e, acima disso tudo, ser o primeiro a possuir uma escola
na fazenda. Por esta última razão o moço foi aceito.
— Mas tu não vai viver só de escola, não: precisa trabalhar também.
— Eu tocarei um pedaço de roça; pegarei, também, algum eito
pra limpar. O Coronel não vai se arrepender, não; sou homem de
muitas coisas.
As aulas tiveram início na sala grande da casa da fazenda. O
professor lá ia animado, tendo, porém, mais trabalho em ajuntar e
levar os alunos para a classe do que meter-lhes as primeiras letras e
números, nas cacholas. Os meninos pareciam cabritos brabos, para
entrar no curral. Mas o professor Porfirio dava sempre um jeito e
o progresso se verificava naquelas pequenas criaturas que tiveram a
felicidade de ter uma escola, naquele ermo de sertão.
O Joaquim Porfirio, ou melhor, Quincas Porfirio, disse ser de
Uberabinha e o seu ideal sempre fora o de ter uma "aula" na roça,
mas nunca havia encontrado um fazendeiro que desejasse ajudar os
filhos dos outros e cooperar com o progresso intelectual do Brasil.
Mas como Deus é grande e tudo compreende, guiou-o até o Cel. João
Anastácio, amante do progresso e sempre o primeiro nas novidades.
O Cel. era analfabeto. Ficava encabulado em ver aquela garran-
cheira danada ser decifrada pelo professor. "Coisa importante, aquilo".
Seu Quincas lia os jornais que trazia na sua mala, como peças
de museu, tal o atraso dos mesmos.
— Mas isso que tu tá falando tá nesse papel?
— Tudinho.
— Que que falam essas letronas pretas aí, em riba?
— "Um brasileiro conquista o ar, em Paris".
1 24 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

— E que que vem a ser isso?


— Um homem do Brasil, chamado Santos Dumont, inventou
um aparelho de voar que se chama aeroplano.
— E será que voa mesmo?...
— Diz aqui que voa.
— Quá, (tou pra ver: ninguém tem tanto poder: quem voa é
anjo e passarinho inocente: os homens 'tão cheios de pecado.
— Mas as Sagradas Escrituras já diziam dos pássaros motoriza-
dos, guiados pelo homem.
— Tu conhece também de negócio de padre?
— Eu leio sempre a Bíblia.
O Cel. ficou no ar, sem saber o que fosse a tal de Bíblia.
O professor abriu a mala e mostrou-lha, lendo algumas passagens.
— Quá, não acredito qu'essas letrinhas 'tão falando isso tudo,
não!... Isso é besteira ... Os homens não tem tanto poder...
— E que tal se o senhor aprendesse a ler e escrever também?
— Quá, nem pensar nesses trens... Isso não é trem de velho... É
pra menino novo, c'a cabeça ainda vazia; não é pra homem igual
eu, c'a cabeça cheia de amolança...
— Pelo menos assinar o nome o Coronel vai aprender. O se-
nhor é homem de negócio e todo homem de negócio deve saber fir-
mar o seu próprio nome.
O fazendeiro fez ver ao professor que ele já era homem de ida-
de e tinha vivido até ali sem precisar daquilo e que depois de velho
não adiantava; que tinha certeza também de não dar conta de apren-
der. Mas o professor Quincas tanto insistiu, tanto fez que o Coronel
resolveu a começar, só para ver.
No começo ficou animado; depois desacoroçoou. O mestre apli-
cava-lhe uma psicologia cerrada a fim de fazê-lo voltar. Era o bode
mais arisco do redil. Com semanas e até meses, ele sempre voltava.
Chegou um dia em que ele riu muito. Foi quando iniciou a
escrever o próprio nome, decifrável. O professor animava-o mui-
to. O aluno já, pouco depois, desenhava bem (desenho futurista)
a sua firma.
1 25 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Certa manhã o Quincas Porfirio arreou duas bestas: uma para


ele e a outra para o Coronel:
— Que qu'é isso, seu Porfirio?
— Nós vamos à cidade. O senhor vai ser o primeiro fazendeiro
a ter firma reconhecida no cartório.
Aquilo de ser o primeiro, fez com que nada mais perguntasse.
Montaram e rumaram para Corumbaíba.
No cartório, o professor disse, soberbo: O Coronel veio regis-
trar a sua firma.
O escrivão ficou meio indeciso, sem compreender direito do
que se tratava, quanto Quincas Porfirio explicou:
— O Coronel é homem de negócios e quer ter o nome registra-
do aqui, no cartório do senhor. Há muito que desejava fazer isto, mas
somente agora resolveu.
Imediatamente, com todas as reverências, muito prestativo,
desculpando-se, ininterruptamente, o escrivão, remexendo o cigarro
de palha, por toda a boca, abriu o livro e fez uma cruz marcando o
lugar da assinatura. O Coronel pegou a caneta, fez uma observação
com os olhos aos presentes e, metendo a pena na boca, começou o
trabalho, morosamente. O professor estava tão aflito, quanto um jo-
vem pai pela primeira vez. Finalmente, tudo saiu satisfeito.
O escrivão, puxando conversa, perguntou:
— O meu Coronel foi o primeiro a ter o nome aqui, registrado;
escreve há muito tempo?
O professor respondeu por ele:
— Ele ajuda muito na escola; tanto escreve como lê; segue a
evolução do mundo, pelos jornais lá de baixo.
E o Coronel, dono da situação:
— Tem brasileiro que `tá voando em aparelho na estranja.
Achei isso muito importante, quando li...
O professor era o maior amigo do fazendeiro. Foi nessa altura
que o dedicado seu Quincas mostrou um papel amarelado, cercado
de verde e marrom, quase do tamanho dum almaço e disse:

I 26
SERTÃO: O RIO E A TERRA

— Meu Coronel, o senhor ainda não experimentou firmar o


nome num papel sem linha: será que dá conta?
O homem, vaidoso, animado, sentou-se à mesa e disse:
— Vamos ver. Mas eu almocei meio avultado... Não vai atrapalhar?
— Penso que não, Coronel.
Com um ar de importância, o Coronel firmou a sua assinatura,
meio diagonal, embaixo do papel. O professor acudiu:
— Um pouco torto, mas com mais uma vez, acerta bem; vamos
ver do outro lado.
O Coronel, agora um pouco melhor, assinou atrás.
O professor Porfirio teve o cuidado de guardar bem aquele
papel (um gosto de professor, como lembrança do melhor aluno), e
continuou as suas aulas.
Um dia amanheceu doente e pediu para ir a Araguari fazer
uma consulta, pois sempre sentia alguma pontada nas costas e via
que aquilo não iria dar em boa coisa, caso não se tratasse. O Coronel
prontificou-se a ajudá-lo, emprestando-lhe a sua própria besta e dan-
do-lhe cinquenta mil réis para todas as despesas.
Assim partiu o professor. Chegando em Corumbaíba, foi
ao cartório e reconheceu a firma do Coronel na nota promissória
("Devo e Pagarei") que ele havia assinado, como prática de assinatu-
ra, na escola. Antes, porém, teve o devido cuidado de enchê-la com
o valor, ao portador, de dez contos de réis, para o prazo de noventa
dias. Averbou-a, proporcionalmente.
Em Araguari, não teve a menor dificuldade em descontá-la no
fornecedor do Coronel, onde adquiriu muitas mercadorias, no valor de
três contos de réis. Comprou sal, ferramentas, arame farpado, e mandou
que se remetesse ao Coronel João Anastácio, urgente, em Corumbaíba.
Os sete contos disse que tinha ordem de ir a São Paulo comprar um au-
tomóvel para o patrão, o que acreditaram piamente, pois o homem tinha
a mania de ser sempre o primeiro em tudo e, ainda, em Corumbalba não
havia um automóvel. Aconselharam-no para comprar um Ford, que era
um automóvel que iria dar em cheio com o gosto do Coronel. Quincas
Porfirio anotou a marca do carro, pedindo mais detalhes.
1 27 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Com sete contos de réis, caiu no mundo e foi desforrar o tempo


perdido.
Quando o Coronel recebeu as mercadorias, em vez do profes-
sor, do qual já estava cheio de saudades, ficou encabulado: não havia
encomendado nada...
— O professor me avexou... Tenho que sair nas carreiras... É
bem perigoso de eu ir hoje.
Montou a besta com dois peões e foi ter até a ponta da estrada de
ferro, a cidade de Araguari. Lá chegando, soube do ocorrido e viu o papel
que, ingenuamente, havia assinado, cheio de carimbos, de selos, do diabo!...
Ficou louco de raiva. Explicaram-lhe o golpe do professor.
— Mas não é possível, gente!... O Quincas não era homem des-
ses trens...
Mas a nota promissória estava tão clara: "Devo e Pagarei" -
"Dez contos de Réis - 10000.000" - "Cel. João Anastácio".
Ficou envergonhado. Ficou todo raiva, doido da vida:
— Ei homem desgraçado!... Ainda falava em Sagrada Escritura,
o desgraçado!... Bíblia... Tava cuidando que o desgraçado era gente.
Deram-lhe água, tendo, o comerciante, principalmente, muito cui-
dado com ele, pois ali estava o Coronel João Anastácio, de quem estava
em seu poder uma letra promissória de dez contos de réis para receber.
O Coronel andava, de cá para lá, dando murros na cabeça para
misturar os miolos e ver se conseguia, assim, esquecer o que havia apren-
dido: sentiu-se com uma vontade tremenda de voltar a ser analfabeto.

ELUCIDÁRIO

GUAIACA: Cinta larga de couro, com diversas divisões para


dinheiro e documentos; capa do revólver e baleira. A cor pre-
ferida pelos boiadeiros era sempre a amarela.
PEÃO: Empregado que lida com o gado a cavalo. Os ajustados
para trabalharem na roça também são chamados peões.
AULA: Escola.

1 28 1
TROPEIRO

N
ecão havia saído de Pouso Alto, rumo a Cuiabá. A tropa não
era dele, mas, como sempre foi de muita confiança, lhe fora
confiado pelo patrão, aquela jornada.
Na capital de Mato Grosso havia grande falta de muares e não
precisava lugar melhor pra se venderem tropas.
Nicodemus Murtinho, o maior criador de muares de Formo-
sa, estava pronto para seguir viagem, também, para Cuiabá. Ficou
muito aborrecido em saber da partida de Necão, pois quem chega
primeiro sempre bebe água limpa. Como tudo já estava preparado,
não teve outra alternativa: seguiu. Também chegara a época de ele fa-
zer aquela viagem, costume desde há muitos anos. Homem de muita
fibra, muito credenciado, respeitado, de muito crédito, e, afinal, era o
Nicodemus Murtinho, de Formosa.
A jornada prometia ser dura; o caminho muito ruim, perigoso;
lugares despojados de alimentação para os animais: areia por demais
e a distância sem fim. A viagem dividia-se em duas etapas. A primei-
ra, até a capital do estado: Goiás. A segunda, até Cuiabá. Até Goiás
tudo ia bem, pois passava em muitas povoações como SantAna das
Antas, Campininha, Goiabeira, Catingueiro Grande, Curralinho e,
finalmente, Goiás. Ali tudo era restabelecido e tinha-se que preparar
quase tudo de novo. Para frente o caminho seguia a linha telegráfica,
construída pelo General Rondon, passando por Itapirapuan (estação
telegráfica), cruzando o Rio Claro em Marechal Floriano, também
estação telegráfica, e seguindo até Registro do Araguaia, à margem
1 29 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

esquerda do grandioso rio. Ali a tropa era atirada n'água, saindo em


Registro, já em Mato Grosso. Prosseguia por Barbeiro, Taxus (cate-
quese de índios bororos), Capim Branco, até Cuiabá.
Cortar este centro de Brasil era obra para gigantes. Muitos fo-
ram os que palmilharam esta rota e nunca mais abraçaram as esposas
e beijaram os filhos.
O Necão lá ia com duzentas e cinquenta cabeças por esses lu-
gares; viajava despreocupado. O mesmo não acontecia com o seu
Nicodemus, pois temia não encontrar bom preço, ainda mais com
aquela tropa que era a maior de todas que já havia trafegado: monta-
va em mais de quatrocentos bichos danados de bons, criados por ele
mesmo, com todo o jeito. A raça era forjada, também, por ele. Onde
sabia que havia um bom jegue, umas bonitas éguas, lá ia o homem
buscar. Não criava éguas como os outros, para engordar carrapatos,
nem jumentos para acordar caboclo na cama. Todos os reprodutores
eram animais de grande linha e que sabiam trabalhar no "negócio".
Doze peões, escolhidos a dedo, acompanhavam o patrão. Pre-
cisava ser gente de confiança, porque o dinheiro apurado na venda
vinha na nota e não em cheque, coisa desconhecida, até então. A ves-
timenta, um pouco pobre, embora tivesse calça de couro, botina-tes-
ta-de-touro, boa espora e chapéu de loja. Ninguém andava destituído
de garrucha 380, faca, punhal, facão e a carabina. Um peão sem um
desses trens estava o mesmo que nu. Quando no povoado um solda-
do desarma um peão, ele prefere que lhe tire as calças.
O velho Manuel, acompanhado do filho de doze anos e mais
meia dúzia de peões, partia, também, nesse tempo, de Campininha.
Era o grande tropeiro da Campininha. Pela sua terra é que trafega-
vam os carros de boi vindos de Minas, carregados de sal, afundan-
do-se, ainda mais, pelo sertão. Orgulhava-se da sua terra. Mal sabia
ele que, nessas mesmas campinas, bem mais tarde, levantar-se-ia a
cidade mais moderna do Brasil: Goiânia.
Homem de muitos recursos, levava o menino para que este lhe
sucedesse e com sucesso, pois para o Manuel não havia outro negócio
no mundo a não ser vender tropas.
1 30 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Não se importou quando viu os dois colegas passarem; sabia


que, naquela época, o mais que chegasse de tropas em Cuiabá, era
sempre pouco. Ideia de homem prático. Os seus animais compu-
nham um menor número e a sua viagem sempre foi segura e rápida.
O garoto chamava-se Licardino, hoje coronel, respeitado rico e
que não mexe mais com tropas.
A viagem, como de costume, corria normalmente. Em Mato
Grosso, devido ao sol abrasador, o areião e o calor infernal, condu-
zia-se carne de charque, bem aberta, por debaixo dos arreios, entre
o baixeiro e o suador. O animal era montado e, em poucas horas,
a carne estava cozida e saboreada com sofreguidão, porque apetite
nunca falta nessas ocasiões. Também uma manta de carne de char-
que cozida em lombo de animal é trem pra muito luxo.
A última comitiva havia passado já por Registro e, depois de
atravessar o ribeirão das Areias, pouco adiante, seu Manuel notou
uma gigantesca pegada de canguçu; monologou:
— Onça na estrada nunca vi... É a primeira.
Adiantou-se com o filho e foi seguindo; antes de chegar na la-
goa Formosa o rasto sumiu, para aparecer bem adiante:
— A bicha assustou aqui e saltou pra acolá... Aqui tem trem,
menino!...
Seu Manuel notou a terra mexida e continuou:
— É uma cova de defunto! Quem matou não é tão malvado...
Até enterrou o desgraçado...Vancê viu, filho, como é que a danada
da onça veio no faro? Depois, dando com a cova assustou e saltou na
moita! Bicho danado... bem interessante.
Seguiram para a lagoa Formosa, ponto de pouso. Ali chegan-
do, encontraram o Nicodemus e a sua comitiva. Foi uma alegria
imensa, aquele encontro: todo mundo tem causo pra contar e gos-
tam de trocar cachaça e fumo. A palestra acimada se meteu noite
adentro. As notícias eram contadas com todo o exagero possível: as
moças bonitas haviam-se casado, cansadas de esperá-los. As feias,
estas sim, continuavam esperando-os, aflitas, prometendo tudo a
Santo Antônio.
1 31 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Era uma pândega, um deboche cerrado. Causo entrava, causo


▪ diversos e impossíveis.
saía, causos os mais
Emendando conversa, Licardino contou da cova de defunto
que vira. Houve um silêncio absoluto, na beira do fogo. Seu Nicode-
mus enrolou uma varinha na mão e encostou-se no esteio da barraca,
como que se estivesse muito cansado:
— É o diabo do Necão.
— O Necão do Coronel Firmino? - arguiu o seu Manuel.
— Ele mesmo... Nunca pensei que ia acontecer.
— Suicidou?
— Eu suicidei ele.
— Com as suas mãos, Nicodemus?...
— Com as minhas mãos, não, mas foi empregado meu: a mes-
ma coisa que ser eu. Tive mas foi muita sorte de vancê ter chegado,
amigo Manuel. Vou te contar o caso, testemunhado, pra modo "van-
cê" me servir depois:
"Essa viagem foi bem apertada, pois eu tinha o Necão pela
frente e achei que ia ser difícil colocar a tropa, no que me enga-
nei: não há nada que chegue na Capital. Você vai fazer um bom
negócio; não precisa se afobar que alcança o preço quase que qui-
ser. Quando cheguei o Necão já havia vendido e não sei lá por que
cargas d'água, ele se meteu no jogo com o dinheiro e do patrão.
Estranhei, pois o Necão nunca foi disso. Fiz as minhas vendas e
apurei sessenta contos de réis, limpinhos. Fiquei incomodado com
o dinheiro e batemos em retirada, logo em seguida. O Necão, antes,
veio ter comigo e me disse:
— Seu Nicodemus, eu preciso falar em particular com o se-
nhor.
Mandei que soltasse a língua, logo:
— Me aconteceu uma desgraça danada de grande: perdi todo o
dinheiro do patrão... Mais de trinta contos!...
Censurei-o por isso. Pedi-lhe explicações.
— Perdi tudo, seu Nicodemus. Me enfeitiçaram; eu nunca fui
com essas coisas... Bebi uma talagada meia avultada de pinga e umas
1 32
SERTÃO: O RIO E A TERRA

mulheres me levaram pro jogo; quando saí `tava limpo, puro. Fui
fazer queixa de polícia, mas fiquei sabendo que o delegado era um
dos que `tava jogando. Agora eu te peço, seu Nicodemus, pelo amor
dos seus filhos, pelo santo amor que tem em Deus, que me leve com
o meu pessoal. O senhor é católico, seu Nicodemus; já vi o senhor
muitas vezes na missa... Acode um necessitado, seu Nicodemus... O
patrão vai saber me perdoar. Nunca aconteceu nada comigo; essa é a
primeira vez... Ele paga o senhor, seu Nicodemus; eu também pago
Ele... Vancê bem sabe disso...
Disse-lhe que não se afligisse, que tudo estava direito, que onde
comem cinco comem seis... e procurei consolá-lo.
Um homem nessas circunstâncias fica muito melindroso e é
preciso agir com prudência, senão o danado faz qualquer outra bes-
teira. Partimos, as duas comitivas. Em Registro ficamos de pouso. O
telegrafista de lá se engraçou com a minha cartucheira, aquela ca-
libre 12, que o senhor muito bem conhece. Pois bem; entabulamos
negócio. Fui à barraca buscar os cartuchos e abri a bruaca. Aproveitei
para ver o bolo de notas, da mala. Qual não foi o meu espanto ao ver
que ele havia desaparecido da bruaca, todo enrolado em uns panos,
muito bem dissimulado, no fundo?! Tirei os trens pra fora e nada de
encontrar. A bruaca não estava arrombada e a chave sempre depen-
durada, como agora, no meu pescoço. Na barraca só dormiu eu e o
Necão. Ele foi o que mais sentiu o roubo.
Na mesma hora arregimentou todo mundo e deu busca. Quis
dar em peão, o que me opus, pois não queria violência. Também não
se tinha certeza de nada. Necão insistiu:
— Seu Nicodemus, o senhor não guardou noutro lugar?
— Não guardei, não; tenho certeza que pus aí dentro, enrolado
no pano.
— Mas como é que não 'lá arrombada! A chave saiu do seu
pescoço?
— Também não saiu.
— ( Tá danado, então... Fizeram foi feitiço, então... Tiraram a
chave sem vancê vê.

1 33 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

— Qual, eu não acredito nisso, não!...


— Pois feitiço existe sim: Como é que o senhor tem certeza que
pôs o dinheiro na bruaca e não tirou; que ninguém mexeu na fecha-
dura; que a chave o senhor não soltou? Só pode é ser feitiço...
O tal telegrafista propôs a enviar um telegrama urgente cha-
mando a autoridade em Goiás. Achei melhor. Com pouco veio a res-
posta: "O dono do dinheiro não tem carabina?".
Veja lá se isso é resposta...
Fiquei dois dias ali, sem saber o que fazer. Necão estava mais
interessado em descobrir o ladrão, do que eu próprio, se bem que eu
queria muito, também. Era muito dinheiro, é verdade, mas não dese-
java apelar por violência, sem ter certeza. Foi assim que falei ao Ne-
cão. Em vista disso, ele disse que ia embora, pois não podia esperar
mais. Arranjei-lhe sortimento de boca e desejei-lhe uma boa viagem.
O telegrafista me abordou:
— O senhor confia demais nesse homem; não foi ele quem
dormiu com o senhor? Não disse que não tinha dinheiro para seguir?
Como é que vai agora? Ainda mais com a comitiva? Os mantimentos
dão para ir longe?
— De fato, isso tudo é verdade. O sortimento também não dá
pra mais de dois dias... Mas eu prefiro perder tudo que culpar o Ne-
cão. Ele é pessoa de confiança do Cel. Firmino: duvidar dele é ofen-
der o coronel.
— Qual, patrão, vamos dar uma busca nele... Nós vamos ata-
lhar ele no caminho e dar uma busca; se a gente não encontrar nada,
a gente pede desculpa; pronto.
— Não, eu não tenho coragem, Luziano; prefiro perder.
— Vancê querendo eu vou só mais o Izé e o mano... Digo que
fui por minha conta, escondido do patrão.
— Sei lá...
Dei de ombros e os três homens partiram. Foi alcançado, já en-
tardecendo, hora esta que já havia tomado pouso na lagoa. Os meus
peões esconderam-se no mato. Não quiseram "trabalhar" à noite.
Pela manhã emboscaram-no com os cinco companheiros. Os três
34 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

saíram do mato e cercaram o "trieiro", onde eles estavam montados.


Luziano deu ordem de alto:
— Tu 'ta preso, Necão!
— Preso o diabo, seus merdal...
`Tacou a besta no mato e fez fogo. Os cinco companheiros "des-
guaritaram" e vieram bater aqui, dizendo do que estava acontecendo
e de não terem nada com aquilo e que, também, não sabiam de nada.
Afirmaram que o Necão era inocente. De cima da besta o homem
dava fogo contra os três.
Foi aí que ele atravessou a perna do irmão do Luziano.
Está aí o coitado sofrendo. Luziano, enfurecido, mais fera do
que homem, caminhou com a garrucha arregaçada dos dois canos,
em cima do cavaleiro. Antes que Necão pudesse apontar, recebeu
duas descargas, de um só vez, bem debaixo do sovaco, que foi aquele
rombo... A besta, espantada, arribou, arrastando o morto, soltando-
-o, logo, ali adiante.
Foi dada a busca no Necão e o dinheiro não foi encontrado.
Procuraram o animal e revistaram tudo: nada nos alforjes,
nada no pala, nada na bolsa. Desarreou e nada, também. Busca de
cabo a rabo nos seus homens, e nada. Fiquei magoado demais com a
vida e só ontem foi que lembramos de enterrar o coitado do Necão.
Devido ao estrago feito pela garrucha, o pobre já estava se putrefa-
zendo. Os homens arrastaram ele com uns ganchos, para não tocá-lo,
até a sepultura".
— Foi devido à carniça que a canguçu veio na estrada, hein, me-
nino? Isso mesmo: quando ela deu com o enterro, assustou-se - seu
Manuel murmurou estas palavras, meio longe de si. Depois se ofereceu:
— Bom, seu Nicodemus... Eu não trago dinheiro suficiente pra
vancê voltar, mas vancê fica aí vendo se descobre até eu voltar: aí nós
vamos s'embora arreunidos. Vai pondo olho em todo peão que co-
meçar a esbanjar dinheiro à toa. Assim vai ser fácil de pegar o ladrão;
aí vancê dá uma lição e cobra a morte do Necão. Morrer inocente é
duro, seu Nicodemus.
— Duro demais da conta... Coisa danada de ruim...
i 35 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Deitaram-se na mesma barraca e conversaram muito. Nicode-


mus quis fazer um cigarro de fumo goiano, do de Bela Vista. Seu Ma-
nuel passou-lhe o pedaço de fumo. O homem cheirou-o e suspirou,
profundamente:
— Depois de tudo, ao menos um cigarrinho bom... Eu não per-
co, Manuel; vou soltar os peões pra todos os lados e te garanto que
arrecado o dinheiro.
— Não pode perder não: o que deve fazer é isso mesmo.
Ficou preparando a palha, cortando-lhe as pontas e lamben-
do-a com capricho; depois pôs-se a cortar o fumo com a faca, na
palma da mão e foi desfiando-o, a gosto. Assim fazendo pôs-se a pen-
sar e lembrou-se de que o Necão, nas mesmas circunstâncias, havia
lhe dado um cigarro, daqueles bem grossos, bem prontinho, bem
amarradinho; lembrou-se da oferta: "Não é dos bom não mas serve
pra matar as muriçocas". Recordou, também, que dormiu logo após
umas baforadas; no outro dia, o cigarro não estava no chão, nem no
chapéu, nem atrás da orelha; não havia toco, nada.
Veio-lhe à memória, somente agora, um meio gosto esquisito,
na boca. Continuou pensando... Era gosto de timbó.
Depois, o sonho... Alguém lhe tirou a chave do pescoço. Qual
nada; dinheiro dá sonho besta, mesmo. Culpar defunto é pecado.
Mas... e o gosto de timbó? O cipó não tonteia peixe? Quá... Pei-
xe é de sangue frio... É outra natureza...
Mas pode muito bem ter sido...
Levantou-se de um salto:
—Ó - seu Manuel.
— Que que foi?
— 'liou matutando uns trens; vou te contar pra ver o que vancê
acha.
E contou-lhe a dúvida.
— Ora, pois foi o danado do Necão mesmo, homem de Deus!
Foi um alvoroço no pouso. Um peão de meia idade, o Jeremias,
pouco dado a conversas, sempre encabulado, dirigia-se, ora e outra,

36
SERTÃO: O RIO E A TERRA

a Nicodemus para confessar alguma coisa, mas tinha receios. Dada a


agitação reinante, chamou-o e disse:
— Eu vi ele levantar-se de noite e ir no cerrado, bem até naque-
le pau-terra...
— E por que não falou isto antes?
— Uai, não cuidei porque tanta gente faz isso...
Isto bastou para que uma procissão corresse até lá. De fato, em
redor do tronco havia vários ramos já secos e cortados de poucos dias.
Seu Manuel lembrou de como havia guardado dinheiro, quando em
transporte, e procurou pelo suador da besta que o Necão montava:
— `Tá jogado no meio dos arreios; vou buscar ele.
Seu Manuel, homem prático do sertão, cercado dos curiosos,
esticou o baixeiro no chão e rasgou-o com a faca. Quase uma centena
de notas de quinhentos mil reis dormiam, despreocupadas, ocupan-
do toda a extensão do suador, para não fazer volume.

ELUCIDÁRIO

BOTINA-TESTA-DE-TOURO: Botina rangedeira, mateira; de


elástico e sempre amarela.
BRUACA: Mala de couro, retangular, muito usada, uma de
cada lado do animal, para transporte.
TRABALHAR: Palavra de cangaço que significa matar ou sa-
crificar alguém.
TRIEIRO: Trilheiro; trilho onde se anda a pé, principalmente
por onde caminha o gado, para a aguada.
DESGUARITAR: Desgarrar; arribar; fugir.
CANGUÇU: A maior onça brasileira. Onça-pintada.
MURIÇOCA: Mosquito zumbidor, noturno, sanguessuga;
pernilongo.
TIMBÓ: Cipó cuja infusão aplicada no pelo dos animais, ex-
termina as parasitas. Batido na água do rio intoxica os peixes,
aturdindo-os: pesca indígena.

1 37 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

SUADOR: Pequeno acolchoado que fica entre o baixeiro e o


arreio do animal.
BAIXEIRO: Saco de aniagem que vai no lombo do animal, ao
arreá-lo.
PACIÊNCIA, SR. JUIZ

sto foi naquele tempo em que Anápolis era o arraial de Santana

I das Antas. Havia, ali, um juiz meio ou quase maluco; jogador


inveterado de cartas e amante da boa pinga. Quando estava na
mesa de jogo, ninguém conseguia arrancá-lo, sem bastante insistên-
cia. Executava o serviço de magistrado de muito má vontade e, rapi-
damente, retornava ao jogo. Ali sim, a sua paciência se fazia sentir
em prolongadas análises, verdadeiro mártir do raciocínio, pois exci-
tava os parceiros quando chegava a sua vez. Acicatavam-no. Só aí é
que saía a sua jogada.
Certa vez, pediu licença, quase às duas horas da madrugada e
ordenou que ninguém ocupasse o seu lugar, pois iria ali, e voltaria
logo. Apenas iria fazer uma coisa que lhe dera desejo, mas algo sem
importância. Com quinze minutos já estava de volta e recomeçou o
truque, bem mais calmo, porque, ao sair, estava perdendo. Alguém
até supôs que o sr. Juiz, o meritíssimo, fora tomar um calmante em
casa, umas duzentas braças de onde se achavam, tal o estado de cal-
ma, quando regressou.
As partidas prolongaram-se até às seis horas da manhã, quan-
do ele, o Juiz, convidou-os para que fossem até a sua casa. Tomariam
um vinho, daqueles de missa, que trazia guardado somente para as
grandes comemorações: daí o resultado de o vinho ser muito bom
por ser muito velho, pois as grandes comemorações no arraial eram
raríssimas. Os convidados lá foram, olhos inchados, sonolentos. O
bom vinho foi servido. Um dos presentes caçoou:

1 39 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

— O Doutor pediu licença para vir tomar um traguinho?


— Não, isso não! - respondeu o meritíssimo, calmamente. - Eu
vim cá para isto...
Abriu a porta do quarto, não menos calmo, e mostrou a esposa
com cinco tiros no peito, dados por ele, friamente, sem motivo ne-
nhum, a não ser o de saciar um impulso da sua loucura.
Foi aquela bomba, no lugar. Mas... tudo ficou por isto mesmo,
pois ele era a mais alta autoridade de Santana das Antas. Pouco tem-
po, depois, casou-se novamente.
***

Sábado, antes do almoço, sol quente, um risco de poeira mar-


cou o céu, pras bandas de cima. Mais de cinquenta cavaleiros co-
briram toda a frente da casa do Juiz. Era um casamento. Homens e
mulheres, todos com as suas melhores vestes, montados nos animais
de que dispunham, alguns engarupados, pipocaram o arraial com o
lept-lept dos cascos e muita poeira.
Foram chamar o senhor Juiz, na mesa de jogo. Este mandou
dizer que esperassem um pouco, pois a partida estava interessante.
Noivos, parentes e convidados ficaram queimando os miolos no sol
abrasador, por mais de duas horas. Foram lá, novamente. Disse que
se quisessem casar que esperassem; que casamento era uma vez só
na vida e que não se apressassem tanto. Disse mais ainda, que ca-
samento não era lá essa coisa tão boa nada. Iria já, que esperassem.
Os biscoitos de goma e de queijo, nos botecos, esgotaram-se; as
garrafas das prateleiras também abaixaram e muito. Roceiro vem à
rua quase sempre para isso: os motivos são vários, mas o alvo é beber
cachaça, e comer quitanda e rosca. Depois de muito mais, lá foi o
Juiz, cercado de muitos interessados.
A joaninha ia casar com o Manezinho, por insistência do pai.
Ela gostava do Lico que cantava bonito e tocava viola muito bem.
Mas, como é o pai quem manda, casar-se-ia mesmo com o Manezi-
nho. Disseram-lhe que casamento tanto fazia ser com um como com
outro; o que precisava era casar, pois onde é que se viu moça de mais
de treze anos comendo e vestindo nas costas do pai?
1 40 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Moça pegou corpo já é mulher, e mulher tem que ter marido. O


casamento tinha que ser com o melhor, de mais recursos, e este era o
Manezinho, filho de gente que tem muito de seu.
O Juiz, apressadamente, ordenou ao escrivão que iniciasse logo
a cerimônia, no que foi atendido. Depois, sem diminuir a pressa, per-
guntou ao noivo se recebia a noiva, para a sua legítima esposa, no
que este respondeu que "SIM". A mesma pergunta fez à moça que,
compreendendo que o juiz apenas lhe perguntou, a fim de saber se
ela gostava de casar com o Manezinho, respondeu que "NÃO". Foi
aquele estouro!... O rapaz quis dar tiros, pois ficou por demais enver-
gonhado por ser rejeitado no meio de todo mundo. Os convidados
de responsabilidades procuraram acalmá-lo. Os parentes da noiva
ficaram de cima, fazendo-a compreender o seu grande erro.
Lá pelas três horas da tarde, tudo ficou resolvido. Foram
atrás do Juiz, novamente. Este xingou, esperneou, bradou vários
impropérios, que ninguém ligou, pois o meritíssimo era quem
mandava. As quatro horas conseguiram levá-lo. Manezinho, por
sua vez jurou vingar-se.
O Doutor recomeçou onde havia deixado e perguntou ao noi-
vo se aceitava a noiva por sua legítima mulher, no que este respondeu
que "NÃO':
O homem ficou louco, aliás, mais louco ainda. Outro pega pra
capar dos diabos. O Juiz saiu empurrando gente, abrindo caminho e
lá foi, bufando, rumo ao salão de jogo.
Depois de acalmada a confusão, Manezinho disse que havia
dito aquele "NÃO" para vingar-se de Joaninha, mas que estava dis-
posto a se casar. Adiantou-lhes que se houvesse mais algum rolo, a
sua rabo-de-égua entraria em ação. Lá foram os cristos dos homens,
pela terceira vez, atrás do Juiz.
Este quis explodir, mas quedou-se pensativo e saiu, inconti-
nente, acompanhado pela turma encarregada de buscá-lo, que lá ia
toda contente por ter conseguido levar o homem tão facilmente.
Chegando, tomou atitude cerimonial. Colocou os óculos e dis-
se, pacientemente, ao noivo:
1 41 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

— O sr. Manuel José de Oliveira aceita a sr.ta Joana Conceição


de Jesus como sua legítima esposa?
Deram umas cutucadas no rapaz, e ele respondeu:
— Aceito, sim, senhor...
— A sr.ta Joana Conceição de Jesus recebe o sr. Manuel José de
Oliveira para seu legítimo marido?
Olhos fulminantes devoraram a noiva.
— Quero, sim, senhor...
E o Juiz, tirando os óculos e metendo os dois punhos cerrados
em cima da mesa, bradou, transtornado:
— Pois agora quem não quer sou eu! Vão casar no meio dos
infernos, cambada dos diabos!...
E, como ameaçasse de abrir a gaveta, tremendo, sôfrego, num
segundo ninguém estava mais na sala.

ELUCIDÁRIO

BRAÇA: Medida de 2,20 m.


DAR CONTA: Cumprir a missão.
BISCOITO DE GOMA: É o biscoito de polvilho paulista ou a
pipoca mineira.

1 42 1
O BOTO

Raimundo é um caboclo forte, bem tostado pelo sol, chapéu

O de palha, calça de algodão, pés e busto constantemente nus;


bebe muita pinga e fuma cigarro de corda. Vive de remar
para os pescadores que vêm de fora. Seu lar é o barco e seu mundo, o
Araguaia. Tendo pinga suficiente e tempo para enrolar o "macaia", o
preço é fácil de combinar, mas nunca menos de dez cruzeiros diários.
Certa vez, ao chegar a Conceição do Araguaia, foi procurado por
um grupo de entusiastas da pesca, vindo de São Paulo. Ajustaram-no,
não como remador, mas sim como orientador, pois era grande conhe-
cedor da região. O barco era grande, motorizado e estava prevenido
para a subida até a ilha do Bananal. Os paulistas sentiram falta de cer-
tos confortos, como um bom hotel onde pudessem tomar banho:
— Toma banho aí, no rio, (tá bom!... - ponderou o Raimundo.
— Nós não viemos para ser comida de piranhas - retrucaram
os outros.
— Quá, não tendo sangue não tem perigo de piranha...
— Então por que é que você não toma banho aí?
— Não adianta... A gente torna a se sujar outra vez.., se cada
vez que a gente suja tem de tomar banho, não sai de dentro d'água;
aí vai indo até o couro afinar e dar no sangue: aí as piranhas ajunta
mesmo!...
O barco descia rápido. Os viajantes iam de pé, espingardas nas
mãos, ativos para os patos que passavam voando. Faziam um bom-
bardeio tremendo, mas pato mesmo não caía nenhum. O Raimundo
1 43 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

seguia sentado, atirando, de vez em quando, um pedaço de toucinho


para os botos, que deixavam os tripulantes encantados.
— Eu tenho um poder danado de grande com esses monstros;
oceis vão querer espiar como que eu pulo lá dentro d'água e os dana-
dos me botam pra fora?
— Não, não, pelo amor de Deus, homem; nós precisamos do
senhor!...
O Raimundo nada ouviu e atirou-se n'água fingindo afogar-se.
Nisso um boto deu-lhe cabeçadas até pô-lo à margem do rio,
pois acompanhavam, em quantidade, a embarcação. Então, sorriden-
te, exclamou aos navegantes, que foram atrás dele:
— Viu só, caboclada? Isso acontece com qualquer um: qué ex-
perimentar? O peixe que me tirou é fêmea; se fosse mulher que tives-
se caído, era peixe macho quem tirava. Sendo "curumim", qualquer
um tira. Esse peixe é melhor que muita gente, se é...
— Então o boto é protetor dos náufragos?
— "Seio" disso lá, nada... Eu "seio" é que eles protegem os afo-
gados... Se não fossem os botos, as piranhas era só passar bem... Gen-
te `tá sempre caindo n'água. Os tal têm ideia de gente. Conta por aí,
pra beirada desse rio afora, que boto já foi gente... Qué dizer, gente
não, já foi índio.
— índio?!
— índio. Pra modo de que não foram índios, pois se os antigos
contam?...
— O senhor sabe da história?
— "Seio" demais da conta... Os antigos contam muito!...
Os pescadores resolveram acampar ali mesmo, pois já estava
na hora de fazer o jantar e estavam, também, ansiosos para ouvirem
a tal lenda dos botos.
Raimundo arranjou vários ovos de tartaruga, que os paulistas
comeram e gostaram muito, achando-os parecidos com bolas de
pingue-pongue.
— Depois nós vamos matar algum jacaré no rio. Um palmo arriba
do rabo dá carne melhor que peixe. A sopa de catana hoje eu garanto.
1 44 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

— E a história?
— Mais depois; bem na hora da gente dormir vou contar esse
trem "p'roceis".
Fizeram uma boa caçada de jacarés, abatendo-se alguns de ta-
manhos monstruosos.
— Chegou, enfim, a hora de se recolherem às barracas. Todos
tomaram café e mandaram que ele começasse logo a contar o "causo".
Raimundo acomodou-se em cima de umas folhas de buritis; tirou a
cabeça de palha, "quicé", o "macaia" e pôs-se a fabricar o "fedorento":
muriçoca não aprumaria. O sertanejo, quando está sendo útil, ocu-
pado por alguém, torna-se importante e enjoado, como se fosse um
tocador de violão, desses que, quando vai atender a um pedido, fica
toda vida a afinar o instrumento. Finalmente, começou:
— Antigamente, nesta zona de Conceição, tinha a tribo dos ín-
dios Secos. Eram bugres só da terra, pois nem para banho usavam o
rio; daí o nome de Secos. A tribo era pacífica e cuidava da agricultura
e não se exercitava para a guerra. A esse tempo os Caiapós saíram do
sul do Estado, aonde haviam chegado, há muitos e muitos anos, de
São Paulo e Minas, e seguiram para o Araguaia, passando e ficando
por muito tempo por onde hoje é Iporá. Ao chegarem ao rio cobi-
çaram a lavoura dos Secos, já em hora de colheita e fácil foi subju-
gá-los. O cacique caiapó, sabendo do medo tremendo que possuíam
da água, mandou que levassem todos de canoa e os despejassem no
meio do rio. Antes, porém, chamou o cacique Seco e disse-lhe: "Este
território, de agora em diante, me pertencerá; em troca lhe darei o
rio. Expulse do seu império quem for lá, como expulso daqui."
E, assim, toda a tribo foi mergulhada no Araguaia. Justamente
nessa época foi que surgiram os botos, esses imensos peixes, feios
como briga de foice ou mãe de sarampo; orelhas de porco, mamífe-
ros, bico de passarinho, mansos como carneiros e benfeitores como
gente de bem. Quando alguém cai n'água, os botos expulsam para
fora e, ao cair da noite, choram como crianças, talvez de saudades da
terra. Dormem nas rasouras, com as costas para fora, e, muitas vezes,
são pegos aí, por onça'
1 45 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Raimundo fez uma pausa e pediu atenção com um dedo em


frente à boca. Os paulistas se arrepiaram ao ouvirem o choro incon-
solável dos botos.
— Não é que é verdade mesmo?!. - exclamou um
— Verdade mesmo, seu moço - afirmou o narrador. - Boto é
índio Seco. Tanto é verdade que ninguém come carne desse peixe, do
mesmo modo que ninguém come carne de índio e de gente, não é
mesmo? - Raimundo olhou em volta procurando alguém. - An, não
tem aqui ninguém que conhece.
— Então é proibido pescar ...
— Matar boto tem processo de polícia...
Ao romper da madrugada, os sertanistas aprumaram pelo rio e
quase atiraram toda a comida, num só dia, aos botos.

ELUCIDÁRIO

MACAIA: Fumo de péssima qualidade.


PIRANHA: Peixe redondo, de escamas, mal encarado, carnívo-
ro. A piranha branca não é ofensiva, mas a preta é temida, pois
anda em cardumes enormes e, ao primeiro sinal de sangue, ati-
ram-se sobre a presa, deixando-a nos ossos branquinhos.
BOTO: Peixe mamífero, como o golfinho. Tem bico como pas-
sarinho. É benéfico, lendariamente. Nada quase que na flor
d'água, afundando e emergindo sempre.
CURUMIM: Menino índio.
CATANA: Parte do jacaré que fica entre o rabo e o corpo; é a
melhor porção para se comer.
QUICÉ: Faca vagabunda, gasta, sem ponta.

1 46 1
RECURSO MACABRO

á muita gente que afirma haver cabras que têm necessida-

H
Morrinhos.
de de apanhar e, em muitos casos, serem liquidados. Vou
narrar um acontecido naquele tempo, lá pelos lados de

A única coisa que ainda existe na roça, desde os tempos idos,


satisfazendo ao roceiro, é o pagode. Ali ele dança, joga baralho, bebe
pinga, come roscas e biscoitos, aprecia os foguetes e ouve sanfona e
viola. Três ou quatro horas assim são o consolo de muitos dias de
trabalho exaustivo.
Quando um está com a roça no mato ou com a colheita aper-
tada, faz o célebre mutirão. Chega gente de todos os lados com as
suas ferramentas e uma muda de roupa limpa no embornal. Pegam
eitos, uns apostando, outros teimando para ver quem chega pri-
meiro ao fim do corredor. Essas apostas são sempre referentes ao
baile: quem ganha dança primeiro com a Rosinha ou com outra
"zinha" qualquer, conquanto que seja a moça disputada da festa.
Para os últimos é reservada uma vaia tremenda e eles passam por
uma humilhação esmagadora. Depois do serviço pronto, então vem
comezaina. Muita cachaça e muita comida. Em seguida, os fogos
espantando cachorro e pondo a molecada a correr pelo pasto atrás
das varas dos foguetes. No final, o baile. Ali, no terreiro bem varri-
do debaixo da tolda, dançam todos.
A sanfona toca o batido "mané-por-hora" e o trem vai bom até
o dia amanhecer ou ainda mais.
1 4' 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Foi num desses pagodes que o Sebastião, o humilde Bastião,


passou o pior pedaço de sua vida.
Lá pelas tantas, entrou o Raimundo, o negro mais preto da re-
dondeza, com toda a sua arrogância e fama de "desmancha-bailes".
Foi logo em cima da mulher do Bastião para um arrasta-pé. A coita-
dinha escusou-se, dizendo que não sabia dançar e que, demais, era
casada e não ficava bem sair com estranhos. O Raimundo ficou bran-
co de raiva e encostou-se na lata de quentão. Depois da coisa passada,
ele deu com a Belmira e o marido numa polca enfezada, dançando
muito bem. Pensou: "É assim?". Com pouco prazo, também desapa-
receu dali. Foi admiração e alívio para todos, pois o Raimundo nunca
havia deixado um baile terminar normalmente; sempre proporciona-
va uma arruaça.
Tudo correu muito bem.
O sol já ia alto quando o Bastião e a Belmira demandaram a
casa. Ao atravessarem o capão de mato, deram com o Raimundo de
carabina na mão:
— Gostaram do "bál", cambada? Isso é lá jeito de gente fazer os
outros esperar?
O pobre Sebastião não respondeu nada, pois nem que quisesse
falar alguma coisa, a voz não passaria por cima do bruto nó da gar-
ganta. Limitou-se a engolir em seco. Os quatro pés do casal também
não reagiam bem ao mínimo, pois não se moveram. O Raimundo
pôs-se a despir, mediante os olhos esbugalhados dos dois. Comple-
tamente nu, mais parecia com um enorme toco depois da queimada.
— Agora "vancê", eguinha enjeitadeira, tira os mulambos e fica
pelada feito bicho nascido de novo!...
O Sebastião quis opor-se, mas desistiu, porque dois tiros de
carabina 44 mexeram com a terra por baixo dos seus pés. Tudo foi
obedecido. Raimundo, com a carabina numa mão, puxou a Belmira
com a outra e ordenou ao marido que assobiasse uma polca bem
boa. O pobre não conseguia fazer bico de assobio, mas fê-lo auto-
maticamente, depois de uma canada da arma no pescoço. Raimun-
do dançou fartamente com a mulher do "músico" até este ficar com
48 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA

os beiços duros de tanto assobiar e a pobre esbandalhada de tanto


requebrar.
— Agora tu vai embora e deixa ela; depois ela vai, mais logo.
Não precisa voltar não, miserável... Com'é que Deus põe gente tão à
toa assim, no mundo?...
Como um cachorro que se vê livre da corrente o Bastião ga-
nhou estrada.
Duas horas de espera para ele foram séculos. Uma mágoa tre-
menda corroeu-o todo. A sua honestidade não concebia uma tal coi-
sa. A surpresa fora tamanha que o deixara desarmado até da cabeça.
Não conseguia nem pensar mais nada.
Quando a Belmira chegou, fraca, trêmula, extremamente
humilhada, o marido não pode falar-lhe: o nó permanecia na
garganta. Um remorso infiltrador fazia-o sentir-se culpado de
tudo aquilo. Seguiu os gestos da mulher que, também, sem di-
zer palavra, juntava as poucas roupas e os pequenos utensílios.
Sebastião compreendeu tudo e pôs-se a ajuntar os parcos móveis
do rancho. Conhecia a mulher de sobra, bem sabia que ela era de
pouca conversa, e, quando enveredava para uma coisa, tinha que
ser aquilo mesmo.
Depois de tudo arrumado num só monte, do lado de fora, foi
ter-se com o Coronel Ernestino, dono da fazenda.
Este já o esperava, pois alguém já havia avisado da mudança,
porém, desconhecendo os motivos.
— "Bá tarde", seu Coronel...
— Boas. Vamos chegando.
— Sim, senhor...
— Senta aí. Algum negócio? - o homem era seco.
— Vim pra modo fazer com o senhor u'a berganha.
— Sendo uma coisa razoável, estou de acordo - disse o Coro-
nel, interessado.
O roceiro ladeou-se de gestos, amarrotando sempre o chapéu.
Se o Coronel não o arguisse, ficaria ali um dia inteiro e não diria o
seu intento. Depois soltou-se:
1 49 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

— O causo é qu'eu queria deixar a roça que tá plantada em tro-


ca do senhor mandar levar os meus trens no carro pra fazenda do seu
Horácio, acolá, na cabeceira do corgo das Pedras...
— Mudança?! Por que é que o senhor vai mudar?
— É qu'eu mais a mulher não 'imos se dando bem aqui. Nós
sempre carece de `tá mudando...
— Não é possível, o senhor ia tão bem... Estava tão satisfeito!...
— A gente parece que vai, depois o trem zanga... dana tudo.
O Bastião, vendo-se obrigado, contou tudo direitinho, ao seu
jeito, com muitos rodeios, muita dificuldade de expressão e muita
humilhação.
— Ora, não é possível — irado, bradou o Coronel. - Isto não
pode ficar assim, não! Não pode! É um absurdo. Aqui, dentro da mi-
nha fazenda, mando eu (ele mandava fora, também)! Não admito!
Isto é uma infâmia!
Os peões ouviam satisfeitos, pois sabiam que logo mais iriam
ter "trabalho".
— Não consinto! Faremos justiça primeiro. Depois o senhor,
não querendo ficar, pode mudar-se para onde quiser. Vai por minha
conta; compro e pago a roça.
O Coronel Ernestino Soares andava para lá e para cá, no alpen-
dre e, depois, gritou, numa raiva que o fazia tremer todo:
— Hilário! Firmino! Roque! Largam esses trens aí e venham
já, aqui!
Nada demorou e os três caboclos apresentaram-se.
— Peguem os trens e vamos fazer um "serviço".
Numa satisfação imensa, os homens prepararam-se, num prazo
de corisco (também, andavam sempre prontos). Nem cinco minutos
para estarem cinco cavalos selados, tendo três deles carabinas nas ca-
beças dos arreios. Ernestino virou para o interior da casa e recomendou:
— Recolham os trens da casa do Bastião e tragam a mulher
dele para cá.
Sebastião queria ficar, mas o patrão o mandou montar. Parti-
ram como se fossem a um casamento, tendo as seguintes fisionomias:
1 50 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

o Coronel como se fosse o pai da noiva; o Bastião, o noivo medroso;


os três, os convidados que iriam se fartar na festa.
Indagando de todos os lados, tiveram a notícia, ao escure-
cer. Souberam que o preto costumava demorar-se, quando fazia
alguma arte, num rancho na roça de arroz do Capão, umas três
léguas dali. Chamaram nos cascos e pernoitaram no Capão, perto
do rancho.
Ao clarear o dia, abordaram o esconderijo do preto.
Este, muito desconfiado, com uma rabinha na mão, saudou-os
sem esperar para ser cumprimentado, como de praxe.
— Bom-dia pra vanceis tudo...
— Bom-dia, Raimundo - respondeu Ernestino.
— Vamos apiar... Ou vanceis 'tão com pressa?...
— Se eu andasse com pressa não estaria com a idade que estou
- retrucou o Coronel.
O preto, completamente desequilibrado, tremia muito. Mexia
muito com a boca para coordenar algumas palavras e foi mudando
de cor.
— Eu ia fazer um gole de café...
— Pois pode fazer. Pensa que já quebramos o jejum? Raimun-
do deixou os grossos beiços entreabrirem-se, mostrando apenas as
pontas dos dentes, muito alvos, num sorriso congestionado.
— Vou buscar água no rego co'essa rabinha...
— Pois pode buscar; quero ver o móca fumegar logo.
O pobre coitado tinha uma vontade louca de correr, embre-
nhar-se mato a dentro, mas sabia que não escaparia dos balaços das
44 e 45. Também as pernas não topariam uma tal parada, pois esta-
vam nas mesmas condições das do Sebastião e sua mulher, na ma-
nhã anterior. Um arrependimento profundo arcou-lhe a consciência,
porque ele bem conhecia o Coronel Ernestino Soares.
O café já estava sendo servido, em tigelinhas de louça, esbeiça-
das, quando o Coronel reprimiu:
— Café sem doce, Raimundo? Gosto muito de café, mas deste
jeito, não.
1 51 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

— Me esqueci, seu Coronel; nem "seio" adonde que Iou com


a cabeça...
— Pensando, naturalmente, no belo prazer de ontem cedo, ou
já houve outro, depois disto?
Raimundo, com estas palavras, arregalou os olhos e as suas na-
rinas tremeram:
— E...e...0 ...?!
O Coronel fixou o seu olhar penetrante, costumeiro, nessas
ocasiões. O negro, maquinalmente, temperou o café no bule enseba-
do. Um silêncio de expectativa apoderou-se do ambiente. Seguiu-se
o ruído de café servido e... só.
O Sebastião estava ansioso para que o patrão desistisse daquilo
e fossem embora; a sua honra havia sido ultrajada, mas era honra de
pobre, de gente desgraçada do mato. Mudar-se-ia e tudo seria esque-
cido. O tribunal humilde da sua consciência não condenava ninguém.
O Coronel passou uma vista dblhos em derredor, por dentro
do rancho.
— Já anda preparado, hein? Tudo no jeito, hein, Raimundo? Já
carrega a tráia. Faz a besteira, depois pode ficar o tempo que quiser
por aí, às escondidas, hein?
O negro bateu os beiços, mas só balbuciou, pois tremia tanto
que não conseguia articular uma só palavra.
O Coronel passou a mão pela cobertura do rancho, de palha de
arroz, e disse, irônico:
— Do jeito que está isto seco não aguenta dois minutos de fogo...
O Raimundo, querendo pescar alguma coisa, perguntou desa-
jeitadamente:
— Vancê, meu Coronel, veio botar fogo no rancho?
— Não, mas poderá acontecer sozinho; está muito seco e, com
esta fornalha aí...
O negro sorriu, meio satisfeito, mas cortou, repentinamente, o
riso, pois veio-lhe à memória que ali havia dente de coelho.
Alguma cousa já havia sido combinada, porque o Firmino pôs-
-se a amolar uma faca numa pedra, caprichosamente.
1 52 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA

O fogão estava a um canto do único cômodo da habitação; ao


centro, um esteio que sustinha a cobertura.
O Coronel mandou que o anfitrião enchesse a fornalha de le-
nha a fim de cozinhar, rapidamente, o feijão, para um ligeiro almoço.
O feijão estava no fogo desde o dia anterior. Quando tudo foi satis-
feito, sentenciou:
— Olha aqui, Raimundo, negro ordinário, vagabundo! Você
deveria saber em qual mato estava lenhando ao fazer aquela baixeza
com os meus agregados. Você deveria saber que eu zelo pelos meus
peões como se eles fossem os meus próprios filhos, ouviu?! Tira a
roupa como fez ontem!
O negro titubeou e uma bala de carabina atravessou-lhe a ca-
rapinha. Assim, nestas circunstâncias, não pestanejou em atender a
ordem, embora o fazendo demorado, pois os seus dedos trêmulos
dificultavam a passagem dos botões pelas casas. Ficou, novamente,
como um toco de pau queimado. Os seus olhos fitavam, luminosos,
os dos outros. Depois tomou uma atitude muito firme e protestou,
adivinhando ou supondo alguma coisa:
— Não, seu Coronel, vancê me mata, se quiser, mas não me faz
uma coisa dessa.
O Coronel riu, teatralmente. Aí acrescentou, zombeteiro:
— Não, não vai ser o que você está pensando; ninguém se re-
baixaria a tanto. Se você fosse mulher produziria asco em qualquer
um, quanto mais... homem... e fei▪ o...
Ao terminar estas palavras, olhou para Roque, que estava
com um rolo de arame. Este foi para o esteio do rancho e amarrou
uma ponta a uns setenta centímetros do chão, Ernestino ordenou
ao Sebastião:
— Este infeliz tirou a sua honra moral; agora você tira a honra
física dele: ajudem-no! - bradou.
Os três jagunços tomaram o Raimundo e levaram-no ao pe-
lourinho improvisado. O Sebastião, movido mais pelo medo que
pela coragem, enleou aquele arame muito bem ao esteio e às honras
físicas do desgraçado, que urrava como garrote na castragem. Um
1 53 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

suor vasto desceu-lhe pela testa e entraram em confluência com as


lágrimas que lhe jorravam pelas barbas esparsas, como enchente em
margens de mato ralo. Depois suplicou:
— Tem dó, meu Coronel... Meu Coronel, seu Ernestino... me
perdoa dessa vez. Eu prometo de nunca mais cair noutra. Se vancê,
meu Coronel, me soltar, eu sou seu escravo pro resto da vida. Faço o
que vancê mandar...
Ernestino consolou-o com estas palavras:
— A justiça dos homens é muito severa, Raimundo. Eu cumpri
a lei deste sertão aqui. Se a gente deixar, a vaca vai pro brejo. Eu ape-
nas estou lhe trocando uma moeda.
Seguiu-se um choro triste, entrecortado de soluços, que fazia
condoer qualquer coração humano, com exceção daqueles quatro
homens, moldados pela natureza. Sebastião não estava gostando da-
quilo, mas desejava que Belmira visse; talvez ela até gostasse.
Ficaram todos imóveis, por algum tempo. Depois o Coronel
olhou para o fogo que já levantava labaredas bem altas.
Pegou da faca muito afiada e entregou-a ao preso:
— É bem capaz deste fogo alcançar o telhado; se o rancho pe-
gar fogo, desfaça-se daquilo que o culpou.
Montaram a cavalo e afastaram-se.
— Será que dá certo, Coronel? - perguntou um dos capangas.
— Se ele não quiser ser torrado, usará a faca. Se tal acontecer,
nunca mais molestará mulher de ninguém.
De fato, como havia planejado o Coronel, o fogo atingiu as
palhas. O pobre coitado tentou, cuidadosamente, cortar as voltas de
arame, mas teria melhor sorte se lhe dessem, em vez de faca, um ali-
cate. As labaredas devoravam a cobertura e as paredes de palha. Um
calor tremendo infernava o interior.
O Raimundo tinha dois caminhos a seguir: o suicídio ou des-
fazer-se dos elementos da procriação. Para não matar-se tinha dois
motivos: o da religião e o da covardia. Do primeiro ele estava livre,
pois desconhecia isto; o da covardia, privava-o desse ato.

I 54 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Quando o fogo já lhe tostava os pelos, fechou os olhos e apar-


tou-se do amarrado, usando a faca.

Fez, ele mesmo, por muitos dias, os curativos com cinza de fo-
gão, urina e fumo de rolo. Ficou muito acabrunhado vagando pelo
mato, combatendo as moscas varejeiras.
Não se alimentava.
Perdeu, em pouco tempo, a razão e tomou as proporções de
um porco bem cevado.
O pobre eunuco ganhava dinheiro, comida, pinga e fumo,
mostrando o sinal para os outros, rindo e babando sempre.

ELUCIDÁRIO

MUTIRÃO: Reunião sertaneja para um serviço, principal-


mente para limpeza de roça ou colheita. Segue-se uma festa.
Este serviço não é remunerado.
EITO: Talhão de serviço, em roça.
MANÉ-POR-HORA: Sempre a mesma música.
QUENTÃO: Bebida das festas juninas e das portas de circos. A
base da sua fabricação é cachaça, gengibre e canela.
"SERVIÇO": O mesmo que "trabalho" em cangaço.
RABINHA: Utensílio tipo caçarola, feito de cobre ou de alu-
mínio.
FORNALHA: Fornalha é mais usado como termo industrial:
boca de forno. Aqui, comumente, se chama o fogão doméstico
de fornalha.

1 55 1
A MULA SEM CABEÇA

ustino embrenhou-se, sertão adentro. Mão firme nas rédeas,


puxando o queixo do matungo aqui, quebrando à direita, ali,
depois à esquerda, acolá, fazendo-o pisar firme nos trilheiros
J
escavados de enxurros. Ora saía numa invernada demarcada de ba-
curis, ora entrava na mata espessa, escura, ralando em gigantescos
troncos de jatobás pisando nos tapetes arroxeados, estendidos de-
baixo do ipês.
Sai da mata, beira córrego, sunga espigão, vaga cerrado, atra-
vessa vau, desce corte, sobe barranco, cruza campina, lá vai o Justino
fazendo música onomatopeica com o "lept-lept" do sendeiro, cansa-
do, mas sempre obediente às rédeas. O pingo marca a cadência com
o balançar das orelhas.
O panorama, agora, modificou bastante: Justino avistou bibo-
cas, serras, baixadas, solidão, cujo silêncio faz gelar qualquer cristão.
Até parece que chegou no fim do mundo.
Também, se a memória não lhe falha, já havia bem uns quinze
dias que saíra de casa, que já era, no dizer de alguém, quase o fim do
mundo. Andava, assim, feito besta, porque gostava de andar.
Mas aquela solidão, aquele silêncio, não estavam agradando o
nosso sertanista. Nem assim fez parada: continuava embrenhando-
-se, sempre e sempre, mais e mais..
A serra lá estava, feia, escura, encafuando, nas suas grotas, nas
suas entranhas, canguçus e suçuaranas. Aquém, e onde ele agora en-
trava, um cerrado formiguento, chão vermelho.
1 57 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Ao lado, onde ele tangia, pedaço de campo roseado de piçarra.


Além, na fralda da serra, por incrível que pareça, alguns cer-
cados de coivaras com mantimentos plantados. Buracos de tatus, era
ali. Agora Justino trabalhava nas rédeas, a fim de desviar as patas do
cavalo das casas de tatupeba, do bola, do galinha, do folha, do veado
e, não poucas vezes, das enormes locas do canastra, acima da fralda
da serra. Parece que reuniu, ali, a tatuzada do Brasil inteiro. Será que
os roçados, miniaturas de lavouras, davam para alimentar tantos ta-
tus? Não, não era possível.
Vários rastos o Justino foi encontrando. Mais adiante, uma es-
trada de carro. Trilheiros, em todas as direções, morriam nos sulcos
das rodas de carros de boi. Apertou o animal e deu logo com o Pa-
trimônio: umas vinte casas velhas, sujas, doentes, desconsoladas de
ficarem sempre ali. Nem capela, nem campo de futebol. Nem pensão,
nem ninguém na rua.
A noite já vinha chegando e nenhuma casa aberta. O cavaleiro
entrara a passo lento, rédea solta e, por isso, não fora notado. Será
que não havia vivalma? Ninguém aparecia, nada se manifestava! Lu-
gar abandonado? Não, Justino viu alguns baldes com cordas, nos po-
ços. Agora, um cãozinho magrelo deu com ele; o danado encostou-se
no canto do casebre para ter forças no latir. Outro cachorro; mais
outro, a cachorrada cercou o baio, com o Justino ainda montado. Foi
uma algazarra dos diabos.
Os ladridos dissonantes deram vida ao lugar. Nem assim al-
guém saiu. O que teria acontecido? Os revoltosos teriam passado por
ali? Cidade dos cães? Cidade fantasma? O caboclo não era medroso,
mas não se sentiu com muita coragem e uma vontade danada de ir-se
embora tomou conta dele, que não teve outro remédio.
Chamou o matungo nos cascos, apertando-lhe as esporas e
chegando-lhe a tala nas ancas. Nunca mais voltou.
***

O arraial estava assim porque era dia de sexta-feira. E todas


as sextas-feiras a desolação se repetia, logo após o escurecer que
a mula sem cabeça percorria o povoado, com um cavaleiro, o "ti-
1 58 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

nhoso", cortando em todos os sentidos, levantando e cobrindo tudo


de pó. Somente à meia-noite a coisa sossegava. Quando acontecia,
ninguém era homem para abrir uma janela; ninguém era mãe para
cobrir um filho; nenhuma criança ousava chorar. Os meninos en-
colhiam-se nos pequenos catres e dormiam à força; as mulheres
acudiam ao terço e rezavam; os homens, gelados, não conciliavam
o sono. Um suor frio, um calafrio na espinha e um tremor de peito
(batedeira) apoderavam-se daquela gente, ao aproximar-se o tro-
pel. Passada a sexta-feira, tudo voltava ao normal. Os homens cui-
davam das roças; as mulheres ocupavam-se dos serviços caseiros,
que consistiam, quase que o tempo todo, na catação de piolhos.
Assentadas nas pranchas de madeira, frente à casa, com as crianças
presas pela cabeça, entre as pernas, os dedos funcionavam como se
estivessem tocando harpa ou manejando os bilros.
As mocinhas, depois de catadas e os cabelos untados com tu-
tano de boi, passavam a fazer o mesmo serviço nas mães. O sol, ora
morno, ora como brasa, não alterava a preferência dos piolhentos,
pois lá estavam eles desde manhãzinha até a tarde, sempre "quentan-
do" sol. O lugar, também, palustre.
Se o Justino não tivesse chegado numa sexta-feira, talvez até fi-
casse muito tempo ali, pois as meninas do Zefino e do Cambão eram
roxas do tipo que ele gostava e andava à procura, naquelas viagens.
Isto justificava o seu gosto de correr rincões.
Na garganta, entre as duas serras vizinhas, ninguém ia lá. Ali
morava o Genésio, amadrinhado da mula sem cabeça. Era um baia-
no que, em tempos idos, havia furado muita gente numa noite, num
pagode, lá na Bahia. E tudo por culpa da Marcolina, que havia rejei-
tado algum cabra fedido para o coco; e, como se sabe, baiano enjei-
tado fede logo a defunto. Tocaram, os dois, as alpergatas na estrada;
depois as estradas acabaram-se e se meteram pelos caminhos e pe-
los trilheiros, até chegarem naquela garganta de serra. Foi daí, desse
tempo, que surgiu a mula sem cabeça, no Patrimônio.
Os dois, mesmo quando chegaram, não eram novos, não... O
baiano já estava pintando e a Marcolina já afinava as canelas.
1 59 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Apoderaram-se de uma égua passarinheira, baguá, que brotou


p'raqueles lados; era alguma madrinha arribada, pois o Genésio apa-
recia sempre na corrutela, montado, e nunca ninguém a reclamou.
O baiano, quando bebia pinga na venda, dizia que toda sexta-
-feira a sua Marcolina desaparecia, ao escurecer, e somente retomava
depois da meia-noite. Indaga se alguém a via neste tempo. Ora, isto
era o mesmo que confessar que a baiana era a mula sem cabeça, tão
temida daquele povo, tão simples. Ninguém respondia nada; fugiam,
até. Isto só foi nos primeiros tempos. Depois, quando o Genésio se
aproximava o vendeiro cerrava logo as portas; as casas se fechavam;
ninguém na rua. O baiano, compreendendo o desprezo que lhe ti-
nham, deixou, também, de aparecer. Ficava socado no seu rancho.
O mato entrava pelos vãos dos paus a pique. O local era desolador.
Genésio gostava de comer carne de onça que ele azagaiava nas
furnas. Mantimento ele tinha, embora não plantasse.
O casal havia se acostumado ali e nem se lembrava mais, com
saudades, da terra natal. Esperavam mesmo que os seus maus dias
terminassem ali, onde seriam consumidos, naquele pé de serra. Tam-
bém, para que melhor: comiam, bebiam e não precisavam trabalhar.
Na sexta-feira, à noite, ele pegava a égua, em pelo, e percorria o ar-
raial em disparada. Ora abria raia para a banda da serra, ora para
o lado do córrego e do brejo, ora sumia no cerrado, onde punha o
animal para descansar. Depois voltava e pendia para o outro lado,
sempre galopando. A égua tinha o rabo cotó de tantas bocadas da
cachorrada que a acompanhava, latindo, loucamente.
Na beira do córrego a mula sem cabeça bebia; os cães avan-
çavam e recuavam gritando, recebendo pauladas do Genésio, nos
lombos.
Os habitantes do lugar achavam que os seus fiéis cachorros aca-
bariam escadeirados pelos coices da mula. Alguém havia visto a mula
sem cabeça correndo com o "tinhoso" em riba, soltando fogo pelo
lugar onde deveria ter a cabeça. Não restava dúvida de que a velha
Marcolina virava mula e o encapetado Genésio a lombava, sem dó
nem piedade.
I 60 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

O reboliço saía da rua e entrada nos quintais, sempre com a ca-


chorrada em cima, ladrando, doidamente. As galinhas esvoaçavam e
não voltavam mais; os leitões se escafediam dos chiqueiros e desapare-
ciam, também. Sumia o sabão das tábuas de lavar trens. As roças, aos
sábados, amanheciam pisadas, guanxumes de cercas varados. O inte-
ressante é que isto acontecia todas as sextas-feiras e não somente na
Quaresma, período das mulas sem cabeça, segundo crendice popular.
Corria o boato de que a Marcolina, quando moça, ainda, era
enrabichada com um padre, lá, na Bahia. O Genésio calcou a pei-
xeira no dito cujo e rumaram para estas terras, que nem em cartas
de Geografia se encontram. O negócio do pagode era invencionice
deles, para descartar.
Mas... tudo tem a sua razão de ser, pois o pobre casal de baia-
nos, não gostando de trabalhar, ou não julgando necessário, havia,
mesmo assim, de comer. E o que ele conseguia numa noite, dava ape-
nas para passar uma semana, muitas vezes nem tanto, pois houve
ocasiões, fora da safra, que eles mal apenas aguentaram esperar até a
próxima sexta-feira.

ELUCIDÁRIO

MATUNGO: Cavalo velho; sendeiro.


BACURI: Palmeira da família das gutíferas; fruto oval de mais
de dez centímetros. Possui fibras que servem para a calafeta-
ção. Boa madeira. Boa cobertura de rancho, as suas folhas.
VAU: Lugar do rio onde dá passagem.
ENCAFUAR: Esconder, guardar.
SUÇUARANA: Onça vermelha, entre o canguçu e a jaguatirica.
TINHOSO: Diabo, capeta.
CATRE: Cama de tábuas, desconfortável.
BILRO: Peça para fabricar renda; consta de um coco de macaú-
ba ou tucum espetado num palito, que vem a ser a agulha. As
mulheres rendeiras manejam vários bilros, ao mesmo tempo.
1 61 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

PASSARINHAR: Mesquinhar. Espantar. Assustar. Animal que


passarinha não é bom para se viajar.
BAGUÁ: Baguá é pessoa arredia, de pouco trato. Poltro ou ou-
tro animal recém-domado, meio arisco, ainda.
ARRIBADA: Desgarrada do rebanho. Desguaritada.
PAU A PIQUE: Casa construída de paredes de paus fincados.
AZAGAIA: Arma de caçar onça, como uma forca. O caçador
entra na grota com um facho aceso de canela-de-ema que,
além de clarear, protege-o, pois onça não gosta de fogo: per-
turba-a e mete-lhe a azagaia no pescoço, espetando-a.
GUANXUME: O mesmo que coivara ou emaranhado de mato.
CANELA-DE-EMA: Tipo de coqueiro pequeno que dá uma
flor roxa semelhante à orquídea e de tronco fibroso. Este caule
sustenta o fogo aceso e é muito útil nas estivas de estradas.
Predomina nas cercanias de Brasília. Amassando o seu caule,
faz-se uma brocha para caiação de casa.
A INOCÊNCIA
DO TEODORO

gora o nome, por tantas vezes tentado lembrar, me veio lím-

A pido, cristalino, sonante: TEODORO. Sim, Teodoro era o


nome do negro plácido, serviçal, mesurador de palavras e
atos. Morava com a mulher e os nove filhos, na rua da Palha, naquele
canto da cidade. Casa e muros de taipas, cheios de fendas, ninhos de
"barbeiros", chamados por eles de "chupão", transmissores da horrí-
vel doença de Chagas.
O Teodoro era um homem estimado e nunca praticou um ato
que o desabonasse: homem pobre, de cor, porém, às direitas. Era pos-
suidor de uma opinião tenaz e media muito bem o que fazia, preven-
do sempre as consequências.
O Teodoro era negro. A dona Leontina era negra. Oito dos
seus filhos eram negros. Mas, o Benedito, garoto já de doze anos, era
branco. Possuía o cabelo grisalho, meio enroladinho, mas era bem
branco, de pele.
Nunca, nem de leve, passou pela cabeça do Teodoro, uma pe-
quena dúvida sobre aquilo. Tinha cega confiança na mulher. Mas,
todo mundo, na rua da Palha, no começo, depois toda a cidade, sa-
bia que o Benedito era filho da Leontina com o Joaquim da venda,
também da rua da Palha: coisas de vizinhos. Joaquim era um portu-
guês que fornecia gêneros e cachaça, embora esta última em pequena
quantidade, à família de negros. O raio do portuga não vendia fiado
a ninguém, mas para o Teodoro, sim. Aí já estava a coisa.
A vida rolava dura, financeiramente, mas bem, moralmente.

1 63 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Dona Leontina parece ter reparado o erro ou ter usado al-


gum processo dos casais ricos, pois já havia doze anos que nascera
o Benedito e, daí para a frente, os outros filhos vieram negros
como o pai.
Um dia um desalmado pôs na cabeça dele que o Benedito não
era seu filho. Teodoro ficou calado por muito tempo; depois investi-
gou, cuidadoso.
Pensou, traçou os planos e ficou acertado de matar a Leontina
e, se preciso fosse, o Joaquim. O Benedito também não deveria ser
poupado. Aquele filho avesso à sua cor lhe torturaria a alma pelo
resto da vida. Teodoro calculou: quando a Leontina estivesse tirando
água da cisterna, lhe daria uma porretada na cabeça e a deixaria cair
dentro do poço. Chamaria o Benedito e o empurraria também para
dentro do buraco sinistro. Se a calma o permitisse, correria a chamar
o português para que este prestasse os seus serviços de salvamento e
cortaria a corda, fazendo uma ninhada de pecadores. Vejam só como
o Teodoro ficou louco.
Tudo já estava assentado, quando resolveu tomar opinião com
o Juiz de Direito, homem muito bom, muito seu amigo, companheiro
inseparável das caçadas e pescarias.
Sim, o juiz resolveria tudo direitinho. Afinal, matar não era do
seu feitio. Se o amigo não lhe desse um bom conselho, consumaria,
então, o premeditado.
Chegando à casa do meritíssimo, conservou-se calmo, o mais
que pôde, e foi dizendo:
— Seu doutor, vim cá buscar conselhos.
— Que é que se passa? - perguntou o juiz, organizando alguns
papéis.
— Eu tenho uma dúvida cá comigo que me está deixando atre-
vido.
— Dúvida? Solta lá a língua, homem!
— A questão é de família, doutor!...
— Não diga! - atalhou o doutor Luiz, deixando os papéis e
fazendo um muxoxo.
1 64 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

— O negócio é velho, mas só agora que me contaram. O senhor


sabe... O marido é sempre o último a saber, não é assim mesmo?
O juiz, nessa altura, compreendeu e inteirou-se do que se trata-
va (ele também sabia da história).
— Mas tenha calma e conte lá o que é.
— Calma, doutor, é até demais; agora é que chegou o tempo
de deixar a calma de lado e agir, assim, no duro!.. - Teodoro engoliu
seco e continuou:
— A complicação é o danado do Benedito. Eu, homem honrado,
inocente, nunca supus nada. Mas tudo foi burrice minha. Imagina eu,
um homem dos mais negros; Leontina, negra como eu; e o danado do
Benedito, branco!... Agora que vim a saber que o malvado do portu-
guês da venda interferiu no negócio, seduziu a minha mulher.
O senhor juiz procurava infiltrar-se, psicologicamente, no po-
bre do homem. Concordar com ele, confirmando a verdade, poderia
trazer consequências funestas. O problema deveria ser mesmo solu-
cionado com psicologia.
— Mas o amigo não pode ir na conversa dos outros. O povo é
muito mau e gosta de ver a desgraça alheia. Eu conheço de sobra a
dona Leontina e o senhor Joaquim são duas criaturas incapazes de
um ato como esse.
— Mas, doutor, e o filho branco?! Ainda mais, logo nele que fui
botar o nome de Benedito!...
— Ora! Muito fácil... Esse povo daqui é muito ignorante e não
conhece etnologia e nem hereditariedade.
Teodoro, a estas palavras, franziu a testa em sinal de muita
atenção. O doutor continuou:
— É uma questão de albinismo.
— De quê?!
— Falta de coloração, muito comum em plantas e, às vezes, em
gente.
— Ah!...
— O Benedito não é aquele garoto que carrega sempre a latinha
de minhocas para nós?
65
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

— Ele mesmo.
— Ora, pois ele não tem o cabelo assim, meio enrolado?
— Pois tem.
— Pois aí é que está o negócio!...
— Que negócio, doutor?
— Pois é negro em tudo, menos na cor. Você, Teodoro, nunca
ouviu falar em negro-aço?
— Já tenho visto falar... nos tal negro-aço...
— Pois é, aí é que está o negócio: o Benedito é negro-aço.
— De vez em quando acontece isso: até é muita honra para
uma família de cor ter um negro-aço; é coisa muito rara, muito im-
portante.
Teodoro suspirou profundamente e falou alegre, agradecido:
— Quá, gente, falar com quem sabe é um descanso... E eu que
ia matar a Leontina, coitada... e o Benedito... o meu bom amigo Joa-
quim, que me vende fiado... Muito obrigado, doutor!
E lá foi o Teodoro, rindo, satisfeito da vida, monologando sem-
pre, abanando a cabeça:
— Quá, gente, falar com quem sabe é um descanso...

1 66 1
UMA BRIGA

r iver é muito perigoso. Isto sempre foi ideia do Gercino. 0

V homem, depois de passar por um desafeto na vida, conti-


nuava a afirmar isto, ainda dizendo que "pra morrer bastava
estar vivo", naquela zona. É coisa muito lógica e é refrão antigo, mas
o Gercino gostava de falar assim.
Era um homem do mato, astuto, acostumado a enfrentar tudo
o que fosse bom, sem se entusiasmar, e tudo quanto fosse ruim sem
perder uma ponta da calma que lhe era característica.
Homem do sertão, pouco ou nada ambicioso, despejava algu-
mas sementes e algumas mudinhas de fumo, para o gasto, no terreno
preparado a bico de enxada e esperava o tempo correr. Se chovesse,
estava bom. Se não chovesse, Deus sabia muito mais que ele o que
estava fazendo. Com sol era a mesma coisa. A verdade é que sem-
pre comeu e deu de comer à família com o muito ou pouco de seu.
Com muito, não se tem lembrança. Poucas vezes vendeu algumas
quartas disto ou daquilo. O muito que fez foi gambirar algum pouco
mantimento de boca. Dinheiro não lhe fazia falta, pois não lhe servia
para nada. Comprar casa na rua, não interessava, pois morava perti-
nho dela. Animais, a não ser o que tinha, não possuía lugar para pôr.
Roupa, a que cardava, fiava e tecia em casa, não podia trocar com os
panos das lojas, porque era muito melhor. Era só o sal, o doce, o "gás"
e um pouco de cachaça. Para isto, de vez em quando, trabalhava de
jornaleiro, pra aqui e pra ali, e era o bastante. No demais, tudo sem
movimento, sem a mínima parcela de ambição.
1 6]
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Mesmo com família relativamente numerosa, gostava um


tanto de pagode. Era difícil o sábado em que não havia mutirão
ali, ou no Retiro de Cima, no Retiro de Baixo, na Serrinha, ou no
Barro Amarelo, algumas vezes no Aborrecido, Mata Feia ou Jataí.
Foi num desses pagodes que ele se estrepou. Gercino era homem
dado com todo mundo e muito serviçal, nessas festas. Gostava de
dar uma mão em tudo.
Desta vez o mutirão foi no Aborrecido, fazenda que se espi-
cha como costado de camelo, pr'aqueles morros acima, quase tudo
de cultura boa demais da conta. A reunião foi para uma quebra de
milho, de dois alqueires. Cantando, caçoando, dando no duro, jaca-
zadas eram despejadas nas bandeiras.
Um carro de boi, de quarenta jacás, baldeava das bandeiras
para o paiol. O serviço foi puxado, bem até quase o sol entrar. Os que
moravam perto foram trocar a roupa para voltar para o pagode. Os
mais retirados banhavam-se mesmo ali no córrego e serviam-se das
mudas de roupas que traziam nos embornais. A rapaziada se diver-
tia, passando barro uns nos outros, na hora de pôr a roupa.
Muito trem de comer, muita pinga boa, bons catireiros e can-
tadores já estavam na barraca. Uma rês, descarnada, chiava nos es-
petos, em cima do braseiro. Moças bonitas, duas a duas em cada
animal, iam encostando. As mãos dos roceiros passavam umas nas
outras, num "ba tardi" sem fim. Ah, se alguém deixasse de cumpri-
mentar quem quer que fosse!...
Meninas, de oito a nove anos, pés nos chão, beiços pintados,
rostos com carmim, iam enchendo o interior da casa, atentas para o
primeiro toque.
Seu Bonifácio mandou que se tirasse o terço, primeiro. Foram
três terços. Foguetes, tiros de armas, e gritos, anunciavam o término
da reza que deram início aos agradecimentos e oferecimentos pelos
catireiros e dono da festa. Primeiro, antes da comezaina, um catira
que abalou tudo. Agora, comida e cachaça. Bonifácio, com os olhos
vermelhos, de fumaça de churrasco e calor de pinga, gritava, alegre:
"Come, moçada, que o resto vai jogar fora mesmo!... Não deixa nada
68 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

que os meus porcos não topam resto!...". A roceirada ria escancarada.


Todos comiam e caçoavam uns com os outros. Mais catira. As violas
pinicavam. O sapateado levantava poeira e as palmas estalavam. As
moças, agrupadas pelos cantos, riam, agarrando umas com as outras.
Cada catireiro queria sobressair-se mais e sapateava com mais força.
Depois dava uma rodada e batia palma, olhando para as damas. Ter-
minavam com um grito cafajeste. A sanfona, pé de bode, puxou um
cateretê, acompanhada por violão e viola. Cada um fez par. Para den-
tro, pela sala, pela cozinha, pelos quartos, as meninas faziam, tam-
bém, seus pares, entre elas mesmas, e dançavam, com muito saraco-
teio. Gente, sempre chegando. O baile só parava para os dançarinos
se amontoarem em redor dos violeiros para as modas de viola e os
desafios. Estes são sempre os mais apreciados. Batem palmas para o
que entope o outro e dão, a este, vaias rebaixadoras.
Nesse dia o Clemente estava desafiando. Era um grande amigo
do Gercino. Até neste pagode haviam ido juntos.
O Clemente era violeiro, mas o Gercino não era não. O Cle-
mente pegou peso, porque o seu adversário de desafio era galo de
terreiro, pois tanto cantava bem como batia, se preciso fosse. Era o
Benzinho da Dita, muito conhecido como arruaceiro.
Num dado momento, o Benzinho desafinou e a sua voz chiou,
como galo surrado. Ninguém ousou dar vaia. Clemente rebateu com
uma quadrazinha:

"Comigo galo desafina


que dirá frango de topete
no galo vou de carabina
no frango vou de canivete"

Benzinho não respondeu nem ponteou a viola. Todos com-


preenderam a situação. Gercino, para mostrar que e Clemente
não estava só, a fim de intimidar o outro e ver se não saía briga,
acrescentou: "Quá, isso é nada, não!... Isso foi cigarro de palha de
milho novo que ele pitou..." A turma caiu na gargalhada. Quando
69
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

menos se espera, Gercino soltou um berro e prancheou no chão.


Benzinho havia lhe metido a faca cipó pouco acima do umbigo,
caindo na folha.
Ninguém sabia se acudia o ferido ou se perseguia o assassino.
Socorrer o doente acharam mais prático e mais seguro. Gerci-
no não morreu, não. O farmacêutico disse que trem perfeito é Deus:
"Imagina só: as tripas são feitas dum trem forte e escorregador que
desviam de ponta de faca. Ela entrou pelos vãos e o susto fez mais
mal mesmo que a faca".
Gercino, com pouco tempo, era o mesmo homem. Mesmo ho-
mem no físico, mas nunca aquele homem alegre, prestativo. Ficou
aborrecido e com vergonha. Preparou mudança. O Benzinho, a con-
selho, caiu no mundo e nunca mais deu as caras por ali. Era de opi-
nião que a sua vida correria perigo, se ficasse, Gercino repetia sempre
que viver é muito perigoso, mas não tinha intenção de vingança. Se
caso um dia desse no jeito, está certo.
No sertão tudo é bruto e natural. O que não aconteceu, poderia
muito bem ter acontecido. Gente, pra viver, tem que ser mandinguei-
ro, saltador como gato em apuro.
Benzinho não apareceu mais, não. De vez em quando tinham-
-se notícias dele, com a viola nas costas, ou pras bandas de lá, ou mui-
to mais pra lá. Gercino, mesmo sem querer, pelo correr da natureza,
era flor que se não cheirava, não. A sua situação exigia assim. Se um
dia o Benzinho aparecesse morto, ou com um furo só ou todo estra-
çalhado, todos apontariam o Gercino como o assassino e lhe dariam
plena razão. Facada na barriga não é trem pra se esquecer assim, não.
Gercino apurou uns cobres poucos com a venda de tudo de seu
e carregou a família pra onde, não disse a ninguém. Se tivesse certe-
za do Benzinho não aparecer mais nunca, vá lá, ficava ainda. Mas o
danado nunca foi homem de responsabilidade e poderia muito bem
voltar, nem que fosse pra fazer um bonito. Quem está vivo sempre
aparece. E se tal acontecesse, o Gercino não desejava estar ali, de jeito
nenhum. Tudo tem seu limite. O homem tem que ser manso e ordei-
ro, mas tem também a sua honra pra cuidar. Se, Deus livre e guarde,
1 70 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

o tal aparecesse, logo a coisa cheirava a defunto. Isto é tão justo como
Deus está no céu.
Gercino arribou com família e uns parcos trens. Apossou-
-se dum pedaço de terra bom pra danar, na beira do Turvo. Não
sabia quanto tinha, mas sabia que ninguém era dono daquilo;
era terra devoluta e ele ia fincar pé de vida ali. A terra, trem de
primeira, se bem que ele precisava de pouca, pois, praticamen-
te, era sozinho para o serviço; mulher e filharada pequena, uma
miuçagem dos diabos. O rancho que ele fez até que era mais ou
menos: dava pra morar.
Pouco para baixo, passava uma estrada real, de pouco trânsito
e que morria na margem do rio. Ali, naquela passagem, dava vau;
qualquer criação tomava pé. De vez em quando passava um cavalei-
ro, alguma pessoa a pé, uma tropa, uma boiada. Mas isto era coisa
muito rara.
Um dia, já bem de tarde, estava uma chuva armada e danada de
feia. Gercino veio chegando, com um feixe de lenha, para precaução,
e viu um cavaleiro que conversava com a Fia, sua mulher. Arriou a
lenha, passou a mão na foice e foi-se beirando. A gente, num ermo
daquele, é preciso estar prevenido.
Gercino chegando, a mulher se retirou (em prosa de homem,
no sertão, mulher não mete o bico). Houve cumprimento, respei-
toso. Gercino reconheceu logo, no chegante, a pessoa do Benzinho
da Dita. E era o Benzinho mesmo. Trazia a viola dependurada, nas
costas, uma carabina na cabeça do arreio e o chapéu caído para trás,
como sempre usou. A faca não estava de vista, não. Gercino segurou
firme, a foice, pois até que o Benzinho tirasse a carabina, ele seria, há
muito tempo, retalho de foice. Deus há de ajudar de não acontecer
nada, pois briga de foice é coisa muita feia.
O vento, soprando forte, amassava a aba do chapéu do cavalei-
ro. A tardinha; já ia morrendo. Riscos de fogo clareavam o céu, aqui
e ali. Acolá as copas das árvores assoviavam pelo vento.
— O rio `tá dando passagem?
— De mais da conta.
71
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

— É... mas (tá chovendo muito pras cabeceiras e ele já deve 'tu
engrossado, por aqui.
— Coisa de nada.
— O melhor é amanhã, mesmo, né?
— Carece isso nada; todo mundo tem passado de noite, de dia,
qualquer hora.
— Mas hoje tem tempestade...
— Trem de nada... Passageiro...
Benzinho não havia reconhecido o Gercino e tentava conven-
cê-lo de oferecer-lhe pouso. Este, por sua vez, pensou que ele havia
descoberto a sua casa e ali querer permanecer para matá-lo.
— A gente peia a besta e dorme de qualquer jeito, em qualquer
canto. Amanhã arriba cedo, manhãzinha.
— Quá, bobagem... Comércio logo na frente. `Tá de grito.
Em antes de escurecer direito já `tá lá.
Gercino, visto a insistência do homem, já estava maquinando
a cabeça maldita: se o danado ficasse, far-se-ia de besta e pregar-lhe-
-ia a foice, muito antes de ser vítima. O corpo iria ser comida de
peixe, no rio. Benzinho, achando que o sitiante estava com ciúme da
mulher, com medo ou reinando que ele queria pousar para sacanear,
se fez claro:
— Eu me ajeito no paiolzinho, mesmo; `tou acostumado.
— Muita pulga demais da conta. É adonde dorme a cachorrama.
Visto o impossível, Benzinho pôs-se a certificar-se do caminho:
— Estrada do outro lado, boa?
— Especial demais da conta. Trem pra muito luxo.
— E o rio? Dá pra passar?
— Passa muito bem.
— O caso é que eu `tou com uns trens nos arreios que não po-
dem molhar.
— Molha nadal... Não é o primeiro que atravessa com respon-
sabilidade. A água não chega lá, nada.
Gercino, a essa altura, já estava cheio. Estava pronto para o que
desse e viesse. Pensou que o maldito ali estava a fazer tempo com ele,
1 72 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

até acertá-lo direitinho. Mas ele, o Gercino, não daria tempo para
isto, não. Por qualquer movimento estranho, o menor que fosse, a
foice comeria logo.
Até que o Benzinho pudesse sacar a carabina, já era defunto há
muito tempo. A sua mão parecia querer amassar o cabo da ferramen-
ta, de tanto que a apertava, todo prevenido.
— Ê... então só eu indo s'embora...
— Que o Divino Pai Eterno que vos guie.
— Mas... em qualquer lugar dá vau?
— De fora a fora.
— Até adonde mesmo, dá a água, mais ou menos?
Gercino, não menos precavido, puxou a camisa, desceu um
pouco o cinto e mostrando o sinal, disse:
— Até aqui assim, bem no lugar adonde que você me deu aque-
la facada.
Benzinho deu uma tremura de corpo e puxou as rédeas do ani-
mal, para trás, mantendo-se distante. Gercino caminhou um passo,
pra frente (não era homem de mijar pra trás).
O cavalei▪ ro sorriu, sem graça:
— Então dá muito bem pra passar... Muito obrigado.
— Vai com Deus.
Benzinho encurtou as rédeas e saiu esporeando a besta, com as
pernas abertas, chacoalhando os estribos. Gercino não se moveu até
que o viu entrar n'água e sumir, já no escuro, dentro do rio.
O tempo fechou e os trovões pareciam bater palmas por mãos
de gigantes.
Cá, entre nós: Benzinho nunca chegou do outro lado.

ELUCIDÁRIO

GAMBIRAR: Barganhar; fazer trocas. No sertão faz-se mais


gambiras que mesmo negócios a dinheiro.
RUA: Cidade. Moro na rua. Vou "na" rua.

1 73 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

DOCE: Açúcar.
GÁS: Querosene.
BANDEIRA: Monte de milho na roça.
PÉ DE BODE: Sanfona de oito baixos.
ESTRADA REAL: Estrada principal.

74 1
O EXTRAVIADO

uando aparecia uma cara nova em São Francisco, município,


de Jaraguá, era tido como um extraviado, pois ninguém che-

Qa gava definido para ali.


o morava, mas fazia ponto naquele lugar, o Ritão, rapagão
metido a besta, valente e indesejável. Nesses lugares nunca falta um
tipo assim; se não havia o Ritão, haveria, outro, é natural.
Em toda corrutela há sempre a venda que mais se sobressai
pela preferência da freguesia. Nela há de tudo: bebida, comida, gêne-
ros, armarinhos, tecidos, ferragens, etc. Serve de arena para brigas,
quarto para velório, clube de futebol, câmara política, e... uma infini-
dade de mais coisas.
Uma venda assim em São Francisco, era a do Flauzino.
Um dia ali pelas nove horas da manhã; chega um "extraviado",
montando uma bestinha pelo de rato, com a carabina atravessada na
sela. Era um rapazinho "clorófilo", anêmico, miúdo.
Encostou o animal à porta, desceu e pediu duzentos réis de
pinga.
O vendeiro não entendeu. Ritão explicou:
— O homem quer cinco cobres de cachaça: 'lá com conversa
das estranjas...
Um copo foi cheio, pois o costume ali era um "martelo" por
um patacão de quarenta réis. O rapaz sorveu aquilo de um fôlego só.
Ritão acercou-se e pediu pinga, também. O Flauzino colocou
o litro e o "martelo" em cima do balcão, como era de costume com
1 75 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

fregueses como ele. Este empurrou a dose pra lá e encheu o copo do


moço, emendando a ação com estas palavras:
— Bebe isso, seu "Extraviado"; gostei de ver...
— Muito agradecido; eu gosto mesmo dum golinho, mas já
bebi que chega: não carece mais, não...
— Não (tou pedindo não, seu "Extraviado"; `tou mandando beber.
Ritão, com ares de muito machão, olhando os assistentes, que
o apoiavam, com gestos, somente, e nunca com um pio, ao menos,
bradou:
— Ou bebe ou apanha!
O chegante acedeu:
— lã bom, se ocê faz empenho, não vejo outro jeito... Só que
a primeira vez tomo sempre pura, mas da segunda gosto misturado
com fumo...
— Não me desobedecendo... 'lá bom... tome do jeito que quiser.
Com gestos importantes, o mandão pediu o rolo de fumo:
— Dá o rolo aí, Flauzino.
O vendeiro abaixou-se e colocou a meia carga de fumo em
cima do balcão. Ritão puxou o punhal, desenrolou uma meia volta
e foi desfiando dentro do copo até ficar bem preto. Fazia aquilo com
um prazer imenso. Com o punhal foi mexendo o líquido para mistu-
rar-se bem e ria, antegozando o que iria presenciar. Demais a mais a
culpa não era totalmente dele, pois fora a futura vítima quem pediu,
ou melhor, exigira desse modo. Estava assim, misturando, capricho-
samente, aquela composição, que parecia mais com remédio de curar
mordida de cobra, completamente absorto; nem notara a sagacidade
do "Extraviado", indo buscar a carabina que a apontava, agora para o
seu peito. Os habituês da venda estavam empelotadinhos nos cantos,
cada um menor que o outro.
Quando o Ritão achou que a mezinha estava de acordo, olhou
para o Flauzino, a fim de que este desse a sua opinião, mas viu-o
de olhos arregalados e tremendo muito, como se fosse um cachorro
pequeno com o rabo debaixo das pernas. Ficou, também, assustadís-
simo, ao deparar com a cena que lhe havia saído às avessas.
76
SERTÃO: O RIO E A TERRA

— Agora ocê bebe - ditou o recém-chegado - antes que te


queimo até a roupa... Gosto muito de ver tombo de nego grande e
metido a bestal...
Houve silêncio. O único barulho que se ouviu foi o da manobra
dos ferros. Ritão teve ímpeto de fazer um bonitão e agarrar o bicho
com "papo-amarelo" e tudo, mas sabia lá das suas façanhas?
O que sabia era que muita gente gostaria de vê-lo morto e não quis
dar esse prazer a ninguém: tomou do copo, passou em revista os assis-
tentes, com os olhos fulminantes de raiva e, sem olhar para a mezinha de
matar ou curar cobra, ingeriu, assim, de uma só vez, como havia feito o
"Extraviado". Tremeu o rosto e fez careta em ato de repugnância.
Ficou, por alguns minutos, com cara de égua na chuva. Encos-
tou-se no balcão e foi diminuindo de tamanho até amontoar-se.
O rapaz virou-se para alguém mais que havia chegado e disse,
superior, indicando com o cano da arma:
— Sujeito covarde: eu não bebia...
Encostou-se na parede e estudou o ambiente com os seus
adeptos:
— `Tou vendo que não tem nenhum mais filho duma égua com
cara de fazer os outros de besta... então vou s'embora.
Montou a bestinha pelo de rato e sumiu.
O Ritão foi dando convulsões de vômito e soltou, pelas extre-
midades do corpo, enorme quantidade de imundices e gemia tão
sentido que metia pena em qualquer coração duro, lá que fosse. O
Flauzino nunca teve tanto trabalho com limpezas como naquele dia.
Ali, pelas quatro horas da tarde, foi que o doente melhorou e
ganhou mundo.

Somente depois de um ano o Ritão apareceu em São Francisco,


pois soubera da morte do velho pai, e veio vê-lo.
Este foi, pelo menos, o motivo que alegou; mas isto não passou
de pretexto para retornar à terra.
Passou pela venda do Flauzino e bebeu fortes marteladas de
cachaça.
1 77 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

A casa onde morava os seus pais era muito grande e fora aluga-
da uma parte a uma viúva que tinha umas filhas moças e um rapazi-
nho de quatorze anos.
O morto estava espichado num banco, no meio da sala, pronto
para o banguê. As moças e o irmão, filhos da viúva, estavam sentados
do lado de fora, junto à casa, numas pranchas de madeira, serradas à
mão. Apreciavam o movimento de entra e sai.
O Ritão desmontou a besta e amarrou o cabresto num es-
teio de aroeira, em frente à casa. Com o seu corpão cobriu toda
a porta. Passou ao lado do pai, arrastando as rosetas das esporas
nas largas tábuas do assoalho desnivelado. Foi até a porta que dá
entrada à cozinha e parou. Voltou-se numa meia volta como se
fosse soldado em comando. Olhou para os presentes e foi andan-
do, agora passando do outro lado do morto. Quase à porta da
rua, parou; deu, novamente, a meia volta e fitou o cadáver; depois
disse, com fala de bêbado:
— É assim: tempo de murici, cada um cuida de si... Saiu mole,
trôpego, tentando importância. Ao passar pelas moças soltou uma
pilhéria imoral, que o irmão, apesar de molecote, não gostou. Este
tomou uma atitude de homem e defendeu a honra das irmãs:
— Tu não é homem, desgraçado!... Se tu não respeita o velho
morto, respeita as mulheres, cachaceiro!...
Ritão deu uma cambaleada e indicando o molecote com o dedo
espichado, bradou:
— Espera aí, cachorro malcriado!... Vou é já te ensinar levantar
topete pros mais velho...
Assim dizendo, sem utilizar a reta que é o caminho mais curto
entre dois pontos, foi, com dificuldade, até ao animal buscar o rabo
de tatu. O rapazinho, usando a reta, entrou e trouxe a espingarda
chumbeira, única herança do seu falecido pai.
Ritão já lá veio empunhando o relho, mas parou e ficou nessa
posição, como se estivesse posando para retrato.
O rapazinho apontava-lhe a arma, com o cão arregaçado. Ritão
lembrou-se do "Extraviado" e teve um receiozinho de continuar o
1 78 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

começado. Como havia muita gente olhando, inclusive os que faziam


sala ao defunto, não quis ser covarde mais uma vez.
Também o menino não teria coragem de puxar o dedo. Este,
vendo que o adversário estava lhe reconhecendo o valor, avalentou-se:
— Pode vir, malvado!... Vem vindo, danado... Quero te sungar
pra riba no baque da fulminante... Entra, mané-minha-égua...
O rapazinho convidava convicto, embora o seu falar fosse
mole, moroso, macio...
Ritão avançou, furioso, sem cambalear. O moleque arrastou
o dedo. O valentão deu meia-volta e tombou, empacotado, por tre-
mendo amontoado de chumbo no peito.
A casa do velho Sousa, pai do Ritão, enformigou-se.
Os curiosos entravam na sala do velório, de soquinhos, esfre-
gando-se uns aos outros. Os defuntos, senhores da casa, estavam es-
pichados em dois bancos, lado a lado. Ninguém enalteceu as virtudes
do novo morto, como é de praxe: ele não as possuía. Deram, foi plena
razão ao menino. Pediram à autoridade para deixar o trem do mes-
mo tamanho, não abrir processo. O delegado atendeu e deu de pre-
sente a mula arreada do Ritão ao jovem assassino. A viúva, sua mãe,
nunca mais pagou aluguel de casa.

ELUCIDÁRIO

PELO DE RATO: Animal de pouco pelo e cor acinzentada.


MARTELO: Um copo grosso para dose de bebidas, principal-
mente a cachaça.
CARGA DE FUMO: Dois rolos de fumo que se conduz um
de cada lado do animal. Medem 32 metros de comprimento.
Meia carga; um rolo; 16 metros.
PAPO AMARELO: Carabina. Há também uma espécie de ja-
caré com este nome.
BANGUÊ: Defunto enrolado em um cobertor e amarrado
num pau roliço, conduzido em ombros dos acompanhantes.

1 79
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

MURICI: Pequeno arbusto que dá umas frutinhas amarelas,


bem cheirosas e boas para temperar pinga.
RABO DE TATU: Taca; relho.
SUNGAR: Levantar; erguer. Palavra muito empregada. Usa-se
mais dizer-se "erguer". "Levantar" não é tão usada como no
interior paulista.
FULMINANTE: Espingarda de carregar pela boca.
A TOCAIA

eu Antônio de Paula era um pequeno criador de gado no sítio

S da Pedra Grande, de sua propriedade. Labutava com a ajuda


do Manco, seu único filho. Era um rapazola de dezoito anos e
danado de bom pra tudo.
Seu Antônio dizia que o filho tinha muito a ver com ele, tanto a
cavalo, na luta diária, quanto na pagodeira. Era ver o filho e lembrar-
-se da sua mocidade, aquele tempinho bom que é o mesmo que água
passada, não voltando jamais.
Que bom ter um filho, espelho no presente, do seu passado.
Manco era novo mas gozava de bom conceito no comércio.
Dona Sabastiana, mãe do rapaz, lidava na casa, tratava de gali-
nhas e ajudava, ora o marido, ora o filho no tratamento dos porcos.
Era um bom trio atacante na peleja da vida.
No início das águas começavam a aparecer os primeiros comprado-
res de gado. As primeiras vendas, o dinheiro ia todo para os fornecedores,
no comércio, distante dali, uma légua e pouco. Seu Antônio fazia questão
do Manco ir levar o dinheiro, para dar mais força ao rapaz, fazendo-o res-
peitado. As encomendas Manco também era quem buscava. Saía à boca
da noite, depois de ter apartado os bezerros e jantado. Antes, tomava o seu
banho na bica e vestia o "pareio" de roupa, muito limpo, apesar de rústico,
pois as calças eram fiadas e tecidas em casa pela própria mãe.
A camisa, sempre de xadrez Tucano das Casas Pernambucanas.
Chapéu preto bom, de vaqueiro; guaiaca de couro amarelo, tor-
cida pelo peso do revólver 38, que trazia consigo, como uma peça
1 81 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

do seu corpo, assim como o patuá, dependurado no pescoço. As bo-


tas sanfoninhas traziam constantemente as esporas calçadas. A cipó,
atravessada, era vizinha permanente do "HO".
Manco gostava de sair àquela hora, pois pegava sempre os espe-
táculos de circos de touradas; de vez em quando, o cinema, mas sempre
preferindo os bailes, onde era muito querido pelas moças. As armas dei-
xava guardadas em casa do tio Afonso, mano da sua mãe, pois as brigas
que teve sempre escorou-as no braço. Briguinha de pagode não merece
fazer sangue, como lhe havia ensinado o pai. Não se deve matar quem
vai se divertir: se apanha, faz parte da diversão; se bate, muito mais.
No dia seguinte, antes do almoço, já estava sempre de volta.
Quando partia, os seus pais ficavam muitíssimo incomodados,
pois da Pedra Grande pra frente era um campo limpo, aberto, sem pe-
rigo. Mas, até chegar ali, havia a Barroca, um capão de mato e uma
passagem estreita. O rapaz saía com mil recomendações e era de trato
disparar o revólver, duas vezes, ao passar a Pedra Grande, quando en-
trava nos "gerais". As detonações eram bem ouvidas em casa, deixando
os dois velhos sossegados. Mas, até que não se faziam ouvir os estam-
pidos, os pobres pais passavam minutos de angústia, parecendo horas
e horas: ele de pé na soleira da porta; ela debruçada na janela. O velho
chupava o cigarrão de palha, sofregamente, como se o fogo fosse um
balde d'água, que vinha para um sedento, do fundo do poço. Dona
Sebastiana desfiava, tremulamente, o rosário de contas de lágrimas,
misturando orações, pois o pensamento não deixava o filho querido.
Ela parecia ver onde o animal pisava, onde se desviava, os arrancos que
dava com a cabeça para soprar, querendo livrar-se do freio, por aquele
caminho curto e que não tinha mais fim. Depois ficava toda ouvidos.
Passavam poucos segundos e, com certeza, ouvia os dois tiros. Reco-
lhiam-se satisfeitos, confiando o resto no tio do Manco.
Certo dia Dona Sebastiana ficou muito inquieta, pois aquele
dia o filho levaria o dinheiro do pagamento da Casa da Lavoura, do
Jamil Saad, firma que havia fornecido tudo durante o ano:
— Meu filho, tu não vai de noite, não... ou vai de dia ou vai
amanhã cedo.
1 82 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA

— Ora, mãe... bobagem... Depois de tanto tempo você vem


com isso? Hoje tem tourada e antes de acabar o serviço eu não saio.
Pai `tá campeando e o serviço é meu.
Seu Antônio, quando chegou, deu razão ao filho. Disse que ho-
mem é homem e deve resolver por si o que fazer. Ele, por exemplo,
sempre fora assim e se criou num ambiente mais brabo e selvagem do
que aquele. Bobagem, a cidade era mesmo ali, de grito!...
Manco estendeu a guaiaca em cima da mesa: abriu-a e colocou
os quinze contos de réis bem arrumadinhos. Montou o Baio e saiu
imponente, para impor confiança. Os pais ficaram nos seus postos. A
maldita vigília começara. Por alguns instantes ainda ouviram o tropel
do macho. Depois foi somente expectativa. Apesar de saberem que
há muitos anos nada de anormal se registrara ali e por aquelas ban-
das, ficavam incomodados. Dona Sebastiana seguia o animal, passo
por passo, lance por lance. Chegava, afinal, o momento do aviso.
E, como de costume, o vento trouxe os dois estampidos cla-
ros, que se perderam, depois de produzirem o eco na fralda da serra.
Antônio de Paula atirou o toco de cigarro, babado, fora e fechou a
janela. Dona Sebastiana recolheu o terço e benzeu-se. Agora, o resto,
era com o tio Afonso.
Mas, junto da Pedra Grande, o mascate que havia comprado
o lote de novilhas por quinze contos de réis, arrancava a guaiaca do
inditoso Manco, que estava prostrado com dois buracos no peito por
balas de 38.
O Baio, sem o peso do cavaleiro, pastava satisfeito, apenas ten-
do o freio como incômodo.

ELUCIDÁRIO

ÁGUAS: Tempo das águas: tempo das chuvas.


PATUÁ: Um costuradinho que se traz ao pescoço contendo
uma oração.
CIPÓ: Faca fina e comprida.

1 83 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

HO: Marca de revólver muito usado no sertão. O Schimidt era


mais afamado, mas poucos podiam ter um Schimidt.
PAGODE: Baile na roça. A derivação é chinesa.
GERAIS: Vegetação homogênea.
DE GRITO: Expressão usada pelos sertanejos para indicar dis-
tância perto. Eles usam espichar o beiço inferior e dizer: "é ali
mesmo; é bem ali..." (vai andar pra ver!)
INICIAÇÃO

manhecia. O rancho do Jerônimo lá estava, na fralda da ser-

A ra, meio engolido, pela fumaça da cerração. Dentro, o Ne-


quinha, garoto de treze anos, ainda bocejando e esfregando
os olhos, deu início à lida do rancho. Recolheu, de cima do jirau, uns
cotos de velas de sebo, feitas ali mesmo, e que alumiaram, durante a
noite, o corpo do pai, o caboclo Jerônimo. Recolheu, à gamela, tijeli-
nhas esbeiçadas onde o café ralo e a pinga boa sustentaram o velório.
A porta estava sem os paus, marcando a saída sem volta do mi-
serável sertanejo, picado, um dia antes, por uma das muitas cascavéis
que por ali habitam. Serras de pedras são fábricas de cascavéis.
O Chicão, preto benzedor, bateu palmas com os enormes bei-
ços, em orações fortes, e cruzou raminhos de arruda, ora para lá, ora
para cá, por cima da mordedura, mas não conseguiu nada. A Ana
do Dito fez compressas de massa de fumo escaldado, depois de ter
colocado o guizo da cobra sobre a ferida.
O próprio Jerônimo, na hora, havia se enrodilhado, como cachor-
ro pulguento, e chupado, aflitamente, a canela mordida. Depois a vista
turvou; sentiu arrepios de frio pelo corpo todo e entregou-se. Foi aí que
o Nequinha montou a Cabacinha, égua velha e lerda, e fora chamar os
benzedores. Tudo estava consumado, pois quando cascavel acerta um
dente salva-se dez por cento; as duas presas, pode-se preparar o banguê.
Na canela do inditoso Jerônimo havia dois sinais de sangue.
Quatro vizinhos, separados por questão de légua, ou pouco
mais, guardaram o corpo à noite e levaram-no, logo bem cedo, para
1 85 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

o enterro no Campão. O Campão era uma corrutela que ficava a duas


léguas dali.
A melhor peça de tecido da casa acompanhou o morto. Era
uma espécie de colcha de algodão cardado e tecido no tear de casa,
que servia, às vezes, de cobertor, outras vezes de secador de farinha,
assim, também, como manta para sair à chuva. Embrulharam o Je-
rônimo com ela e cerziram-na ao pau de pindaíba, aonde o conduzi-
ram, dois a dois, nos ombros, trilheiro afora, até ao Campão.
Antes, era assim: Jerônimo matava um porco do mato, desca-
mava-o e punha as mantas a secarem-se ao sol. Tirava algum mel de
jataí, nalgum pé de jatobá e deixava os meninos lidando no rancho.
Os meninos eram o Nequinha, do qual já lhes falei, e o Nico, que
ainda estava dormindo.
Depois ia ao rego e amolava, caprichosamente, a enxada de
apenas duas libras e meia, com um bom cabo de guatambu, nas pe-
dras meio submergidas. Torava, com o facão, tipo jacaré, uma guari-
roba e voltava pro rancho onde, bem depois, estava preparada a boia:
carne, guariroba, feijão e farinha, tudo num cozido só, que era bom
de gosto e de sustância que era um trem. Comia, sortia um caldei-
rãozinho vermelho, esmaltado, e lá ia pras roças dos outros trabalhar
por eito; nunca por dia: gostava de pegar de empreito.
Se a sua casa era de miséria, a culpa não era dele; era da região
que não ajudava. Também o de-comer lá não era ruim; por bem falar,
ninguém, por ali, comia tão bem quanto o Jerônimo e seus filhos.
O Nequinha cozinhava e o Nico lavava os trens no rego, assim
como as roupas, também.
Quando o Nequinha tinha quatro anos, o Nico veio ao mundo.
Mas, como o Jerônimo não estava em casa, a parturiente, sem assis-
tência nenhuma, sucumbiu..
A Ana do Dito foi quem cuidou do Nico até pegar uns meses
de vida. Assim, praticamente, nenhum deles conheceu a mãe nem
nunca tiveram o carinho materno e mesmo uma ajuda nos serviços
caseiros, por mão feminina. A necessidade faz o recurso e eles fize-
ram o que podiam ter feito.
1 86 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Nequinha foi ao jirau e sacodiu o irmão, de nove anos:


— Levanta, menino! D'agora em diante é só nóis dois.
O garoto deu umas reviravoltas no leito e desceu meio tonto.
Gente pobre, da roça, levantar é muito fácil, pois, não tendo que tro-
car ou pôr roupas e nem calçar sapatos, num instante está andando.
Dorme com a roupa que está e calçados não os tem.
Nico, escorado nas varas da parede do rancho, espreguiçou-se
e chegou-se em si. Lembrou-se do pai morto. Fez beiços, engoliu em
seco por duas vezes e, embora tentasse, piscando os olhinhos, não
pôde reter as lágrimas quentes que lhe escorreram pela cara.
— Cadê o pai?! Eu quero o pai!...
— Cadê o pai, o que, menino! Tu não viu que o pai morreu? Já
não falei que agora é só nóis dois?
— Eu quero o pai!...
— Deixa de ser besta, menino! Vai já fazer o nosso serviço, que
eu vou fazer o do pai. O pai agora é eu, viu?
Assim dizendo, foi para a porta do rancho, evitando conversa
e disfarçando a mágoa. Quedou-se, pensativo, correndo as vistas pelo
pé de serra, pelas brenhas, pelo cimo da serra, às altas copas dos jato-
bás, ainda mais altos por estarem lá, em cima, no cume da "Serra das
Bibocas", como era chamado aquele lugar. Era ali que as queixadas
moravam. Onde há porco do mato é, também, lugar de onças. De vez
em quando o Jerônimo saía, à noite, espantando alguma pintada que
vinha tentar aventura com a Cabacinha.
Agora o Nequinha se refez da angústia; lembrou-se de que iria
usar os trens do pai e isto muito o alegrou. Era necessário abater,
já, um queixada ou um caititu, pois o suprimento do pai Jerônimo
fora comido no velório. Na roça, casamento, mutirão e velório, tudo
é festa e nada chega para o povo comer. O menino teve raiva dos
comilões, mas depois compreendeu, que, sem eles, nada teria sido
arrumado. Também, as grotas da serra estavam mesmo ali e, ali, esta-
vam os porcos. Guariroba, naquela terra de cultura, era só escolher e
derrubar. Indo lá, pro cerrado, trazia-se chapeuzadas de pequis. Ne-
quinha ficou com vontade de roer pequi; já estava saindo do mês de
1 87 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

dezembro e, ainda, não havia ido buscar. Precisava sortir a cozinha.


Depois pegaria a enxada, beberia um gole de pinga e iria terminar o
talhão começado pelo pai, lá, na roça de milho do Zé Miguel.
— Tu vai lavar trens enquanto eu preparo a traia pra modo nóis
caçar porco.
— Nóis?! Eu também vou?
— Pois é, agora é você que faz o que eu fazia; o pai agora é eu.
A espingarda pica-pau estava enfiada na trave do rancho. Da
ponta do cano pendia o embornal de couro de porco do mato, com
o sortimento. O rapazinho levou aquilo pra fora e, "quentando" sol,
pôs-se a ajeitar tudo direitinho.
A espingarda, de carregar pela boca, era das mais baratas que
existiam. Cano fino, pouco reforço na culatra, com a coronha de ga-
rapa, feita pelo Jerônimo. A que veio era de pinho e quebrou, várias
vezes, pois ele caía de vez em quando com ela, quando vinha mama-
do, e pinho não é pra estas coisas.
A vareta original andava perdida pelo mato, mas o Jerônimo
havia arranjado uma outra de pindaíba do brejo, que era ainda me-
lhor; na ponta dela havia adaptado uma casca de bala de revólver,
para socar mais firme. A bandoleira era uma tira de couro cru, de boi,
presa ao cano por uma argola original e, na coronha, por uma aresta
de cerca, tudo muito seguro, muito direito. A pólvora e o chumbo
estavam guardados em lugares distintos, em dois picuás de pontas
de chifres; as espoletas, na caixinha, encastoada na coronha, do lado
direito. Dentro do embornal, havia, ainda, uma bucha paulista para
separar os ingredientes e dar pressão ao carregamento.
A arma, embora barata, na mão do Jerônimo, nunca lencou
fogo.
Nequinha estava pronto. Nico, por sua vez, também estava an-
sioso para fazer a estreia como ajudante.
— Agora, Nico, tu traz os cachorros.
— Bolinha... Trovão... Fiu-fiu-fiu - assoviou o menino.
O casal de cães, vira-latas, trovejou em redor, não se contendo
de alegria. Pulavam, latiam, uivavam e corriam de lá pra cá, como
1 88 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

doidos. Nico colocou a capanga atravessada no ombro. Nequinha


atrelou os cachorros. Pegou o facão que estava dependurado e enfiou
a bainha na cinta, para trás, como fazia o pai. A faca de ponta, cuja
bainha estava chuleada com tirinhas de couro, colocou-a à cinta, na
barriga. Fumo, cabeça de palha e isqueiro de chispa, na caçada, não
levava: ia com dois cigarros prontos.
Lá foram os dois, segurando os cachorros como se fossem dois
cavalos arrastando uma carroça, morro acima, tamanha a força que
faziam, puxando o Nico.
Antes de entrarem no mato, deveria carregar a arma.
Nico amarrou a corda dos cães num pau e abriu a capanga.
Nequinha levantou o cão e soprou no ouvido da espingarda,
verificando se tudo estava bem limpinho. Pediu o picuá de pólvora;
destampou-o e pôs uma porção na palma da mão, erguendo-a até
à boca do cano e despejando. Tapou o picuá e trocou-o pela bucha.
Rasgou um pedaço, empelotou-o bem e, com o indicador, introdu-
ziu-o o quanto pôde na ponta do cano.
Agora, puxando, fragmentadamente, a vareta de pindaíba, em-
purrou-a, o quanto pôde. Apoiou a coronha no chão e bateu, uma,
duas, três, quatro, cinco, oito vezes, até a vareta pular quase pra fora
do cano. O irmão serviu-lhe o picuá.
Tomou de seis caroços de chumbo meião e uma bala sousa. Despe-
jou tudo isto, cano abaixo; agora pegou um pedaço bem menor de bucha
e, com a vareta, empurrou até apenas encostar. Levantou outra vez o cão;
tomou uma pitada de pólvora, que havia deixado para fora e escorvou
o ouvido. Abriu a tampinha na coronha e tirou uma espoleta com que
cobriu o ouvido. Desceu o cão devagarinho, até encostar; depois, cal-
cou-o bem até rachar a espoleta. Antes de guardar a vareta, introduziu-a
no cano e marcou, com o dedo, na boca da espingarda; agora mediu por
fora; quatro dedos de carga. Não havia passado nem faltado, pois o pai
Jerônimo carregava, sempre, para queixada, quatro dedos. Guardou a
vareta, junto ao cano. Desamarrou os cães e entraram no mato.
Nequinha seguia atento, sempre em guarda. Foram pela fral-
da da serra, até à passagem dos bichos. Escolhido o lugar da tocaia,
1 89 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

amarrou a trela de cães e pôs o Nico no galho do pau. Tomou do em-


bornal, segurou a arma e soltou os cachorros, que, já acostumados,
foram desentocar os porcos. Subiu e ficou de escancho na forquilha
da árvore. O Nico lá estava, bem mais acima. Por baixo passava o tri-
lheiro, a única passagem dos queixadas que saíssem do grotão; tudo
estava quente, pois os cães foram para lá.
Antes do Nequinha se ajeitar, já começou a ouvir o Trovão e a
Bolinha acuando os porcos. O estalar de dentes que já se fazia sentir,
era enorme. Nequinha olhou para o irmão e sorriu, confiante, enco-
rajando-o. Isto veio bem na hora, pois o menino estava precisando
mesmo de coragem. Também, o barulho que uns cento e tantos quei-
xadas fazem com os dentes, mete medo a qualquer um que não esteja
lá bem acostumado com esta espécie arriscada de caçada.
O alarido acentuava-se cada vez mais; os porcos se aproxima-
vam. Bolinha e Trovão iam e voltavam, davam voltas, sempre empur-
rando a manada para a garganta da serra. Os porcos iam, paravam,
empelotavam e rebentavam-se novamente em destruidora corrida.
Os pelos duros, eriçados, grossos, pintados de branco e preto, au-
mentavam o tamanho dos queixadas, que espumavam pela boca e
batiam os dentes, ensurdecedoramente. Por onde a vara passava, as-
sim, acossada pelos cães, era aberto um caminho largo, com apenas
alguns paus grossos em pé. A piara continuava correndo e parando;
ora investia aos cães, mudando o rumo, ora, tentando dispersar-se,
mas os cachorros reunia-os, novamente.
Bicho danado é cachorro. Desenfurna até o diabo. Mas se al-
gum se deixa pegar por um porco selvagem, adeus carnes: é o mesmo
que rama de mandioca em boca de piranha preta.
Mas Bolinha e Trovão não se deixam pegar; avançam e recuam,
sempre empurrando a leva para a tocaia. Muitas vezes demora quase
um dia inteiro, pois os porcos ficam mais empelotados que em marcha.
— Segura bem direito que os bichos já vem vindo!.., se cair no
meio deles, vira trapo.
— Deus me livre! Vê se não erra o tiro... A espingarda do pai
não lenca?
1 90 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

— De jeito nenhum! Tu vai ver o rombo que vou fazer na ca-


beça do bicho...
Nequinha havia ouvido falar que urinando num porco os de-
mais estraçalhavam-no. Um dia ainda experimentaria fazer isso. Era
preciso muita coragem e muita calma para uma coisa dessa.
A mata, nesse momento, parecia vir abaixo, tamanho o ranger
de dentes. O pequeno caçador estava preparado. Os cães, treinados
pelo Jerônimo, deram volta e mantiveram a manada empelotada,
debaixo da árvore. Nequinha sabia que só deveria atirar no último,
pois, se os demais dessem com ele pela frente, ensanguentado, estra-
çalhá-lo-iam, inutilizando a caça. Para isto era preciso deixar correr.
Marcou bem o seu alvo e esperou a debandada.
Daí, a poucos instantes, ei-los que partem, como tudo fora pre-
visto. Nequinha puxou o pinguelo e acertou em cheio no ouvido do
último queixada. Com o disparo, os porcos redobraram a corrida. O
abatido pouco estrebuchou, pois o disparo fora fulminante.
Nequinha carregou, de novo, a pica-pau. Esperou, ainda, um
bocado, porque os tais sempre usam voltar, estourados, e ai de quem
obturar a sua passagem.
Quando notou que o barulho já estava quase que de todo sumi-
do, desceu e ordenou que o Nico descesse também. Com a trela dos
cachorros, peou o queixada pelos quatro pés e, com o facão, cortou
uma leva regular, onde amarrou, um pouco pra lá do meio, a caça.
Pegou do lado mais curto e o Nico do lado maior e lá foram os dois
distorcendo dos cipós, dos galhos, até chegarem à casa, com a estreia
coroada de êxito.
Trovão e Bolinha só voltariam pela tarde.
Tiraram o couro da caça, destrincharam-na e deram a barriga-
da, os miúdos e os ossos para os cachorros. Cachorro precisa comer
da caça para animar.
A carne foi salgada e o couro esticado, por armações de varas.
Naquele dia somente comeram carne assada. Mas cuidaram de
pôr feijão no fogo, na panela de barro, sobre a trempe, pois no outro dia
Nequinha iria para a roça e precisava comer carne com feijão e farinha.
1 91 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Antes que escurecesse, foi ao rego amolar a "Duas-Caras" para


a carpina do dia seguinte.
Assim que amanheceu, o Nequinha já estava de pé. Picou o
pixuá cheiroso, feito pelo Jerônimo, de folhas dali mesmo da beira do
rancho; escolheu uma boa palha da cabeça que trazia no bolso tra-
seiro, e lambeu-a para amaciá-la. Depois de cortada e tirados os can-
tinhos, como se fosse um cartão de visita dobrado, colocou o fumo
bem desfiado, que enrolou com muito jeito. Agora dobrou a ponta
do cigarro. Lambeu-o para conservar a forma. Tirou o isqueiro, o
fuzil, a pedra de fogo e acendeu o primeiro cigarro daquele homem;
o último cigarro do menino havia sido dia atrás.
Foi chamar o Nico. Café não podiam fazer, pois o velório ha-
via consumido tudo. Prepararam a boia, então. O caldeirãozinho de
esmalte vermelho foi cheio e a tampa amarrada com tira de couro e
travada pelo garfo. Água ia na cabaça.
O Nico encilhou, com o arreio velho e podre, a égua. Nequi-
nha, de facão, faca, enxada ao ombro, em cujo cabo levava o caldei-
rãozinho, arrancou pras bandas do Zé Miguel. Com o ciganinho na
boca lá ia ele soltando baforadas para trás. Trazia, ainda, um na ore-
lha e outro na fita rota do chapéu. No serviço de roça é sempre bom
uma fumacinha de fumo forte para espantar os mosquitos.
Nequinha estava pesaroso por ainda lhe faltar uma coisa: era
o gole de pinga que não havia tomado. Como que um homem sai de
casa sem tomar um gole de pinga?
Já não estava puxando o pai Jerônimo.
A Cabacinha, mesmo morosamente, ganhava terreno. O cava-
leiro ia pensando na vida. O pai já estava há quase uma semana na-
quele talhão de milho; hoje era pra acabar... e acabaria, se Deus qui-
sesse. Também vinte e cinco mil réis pelo serviço era muito pouco.
A outra combinação seria de trinta mil réis. Iria ser um trato duro.
Nequinha não queria que faltasse café e pinga no rancho. Tam-
bém o Nico, com uma enxada menor poderia dar ajuda. Serviço de
casa é serviço pra mulher; e ele arranjaria uma mulher. A coisa iria
melhorar. Precisava era ter mesmo uma mulher para fazer o servi-
92
SERTÃO: O RIO E A TERRA

ço do rancho... Isto tudo martelava a cabecinha do rapaz. Agora até


pensava em casar-se. Não podia compreender porque o Jerônimo ha-
via passado tanto tempo sem uma mulher em casa. Conhecia aquele
povo todo da redondeza e a única casa sem mulher era só a dele.
Nequinha estava na idade de empenujar, e na roça treze anos
já é homem.
No primeiro sábado era Santos Reis e na folia era bem perigoso
arranjar uma roxa para que, se gostasse, casar. Não, não iria à folia
de Santos Reis: o pai havia morrido de fresco e não ficava bem ir em
festas; o povo repara.
Mas, no dia 20 havia a festa de São Sebastião na casa do Nho
Tião; lá arranjaria a noiva. Iria se casar, não restava dúvida.
Quando deu por fé, já estava chegando. Peou a égua, colocou
o caldeirão na moita e, de enxada em punho, entrou na roça. Cuspiu
nas mãos e agarrou firme no guatambu. Assim Nequinha iniciou a
sua vida de homem. Tudo agora era com ele. Dos seus braços é que
iria sair o sustento do rancho, ainda mais agora que ele tinha outras
ideias... Muita coisa ainda teria que vir.

ELUCIDÁRIO

GUATAMBU: Pequeno arbusto de tronco reto, especial para


cabos de ferramentas, como enxada, enxadão, foice, etc.
GUARIROBA: Espécie de coqueiro que fornece um palmito
amargoso e muito apreciado.
QUEIXADA: Porco do mato; é o javali brasileiro. Anda em va-
ras e estala os dentes em grande alarido. É a piranha do mato,
pois se ferir um deles, os demais devoram-no ao vê-lo ensan-
guentado. Não gostam do cheiro de urina.
PINTADA: Onça canguçu, a maior da América Latina.
SORTIMENTO: Em caçada, sortimento significa munição.
QUENTAR: Termo muito usado aqui: quentando sol; quentar
fogo; quentar o de-comer.
1 93 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

PICUÁ: Recipiente feito da ponta do chifre onde os garimpei-


ros guardam diamante.
BUCHA PAULISTA: Pelota de bucha de cerca para separar a
pólvora do chumbo no carregamento da arma.
LENCAR: Negar fogo (tiro).
BALA SOUSA: Caroço de chumbo grande para carregar arma.
ESCORVAR: Pôr um tico de pólvora no ouvido da arma, junto
à espoleta.
DESENFURNAR: Pôr para fora; desentocar; tirar da furna (os
cachorros desenfurnaram a onça).
PINGUELO: Gatilho.
LEVA: Cambão ou vigota de madeira, para transportar peso.
ROXA: Morena.
4

O CARRO DO
GOVERNADOR

N
o tempo dos fordinhos, a velha cidade de Goiás, então Ca-
pital do estado, era, na ocasião, governada por Brasil Caia-
do. O governador usava espessas barbas e, apesar de ter um
nome popular entre o povo, não era conhecido pela gente do interior..
De temperamento simples, gostava de fazer-se passar por um cida-
dão comum, um homem qualquer, apreciando o sossego e afugen-
tando eventuais bajuladores.
Era de seu hábito passear no seu Dodge-27, que lhe, deram de
presente, pulando que nem cabrito pelas pedras alvas das ruas: per-
corria toda a cidade e os arredores.
Naquele tempo recuado, o transporte era quase todo feito em
lombo de burro, não havendo veículos motorizados a percorrerem
estradas, pois estas eram caminhos quase intransitáveis, além de que
tinham grandes trechos escarpados e cheios de pedras, impedindo
outro meio de locomoção, afora o de muares.
Um dia, em um desses passeios, o carrinho do governador,
barulhento e fumacento, encontrou uma tropa, composta unica-
mente de éguas, que deixava o Mercado, com as bruacas carre-
gadas de farinha de trigo. Aqueles animais não conheciam outro
barulho senão o feito pelas patas no chão duro, e nunca, nem de
longe, tinham ouvido o estouro de um motor a explosão. Estavam
saindo pelo lado da Carioca. Quando penetraram em um cami-
nho estreito, quase um corredor, com barrancos bem altos aos
lados, surge o governador em seu automóvel barulhento, mais

95
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

parecendo uma metralhadora ambulante, pois, além de tudo, es-


tava solto o cano do escapamento.
Aquela novidade foi fatal para a tropa. O tropeiro, homem ha-
bituado a enfrentar todos os percalços do sertão, fez o possível para
manter as éguas em ordem. Mas, qual o quê!
Houve um esparramar de éguas e farinha por todos os lados,
num estouro selvagem dos animais em pânico.
Duas das éguas, ao darem "de cara" com o veículo, envereda-
ram pelos barrancos acima e reviraram de costas por cima do carro,
mudando-lhe a pintura de vermelha metálica para um branco ima-
culado de novo (farinha boa aquela...).
O causador do desastre, encolhido no veículo, viu achegar-se
o tropeiro, furioso, chegando-lhe o cabo do relho ao rosto, quase a
roçar-lhe as barbas.
— Adonde vai com essa desgraça, excomungado!? Não sabe
que isso não é trem de enfiar no meio de animal?!... Tu vai me pagar
caro por essa barbaridade, e, se tu não pagar, eu taco fogo nesse trem
barulhento!... nesse trem de merda!
O governador, muito calmo, respondeu:
— Meu amigo, não lhe darei nenhum prejuízo. Aqui, agora,
não estou prevenido, mas poderá ir até à minha casa, que pagarei os
danos e lhe darei outra farinha.
— Isso de ir em casa é golpe velho; nessa eu não caio...
— Pois somente receberá desse modo, que, aliás, é o único.
O tropeiro pensou, pensou, e, por fim, perguntou:
— E adonde vai arrumar outra farinha? Pensa que é fácil?
— Eu lhe garanto que dou outra.
— Adonde que tu mora?
— No largo do jardim.
— Ah, é rico? ilá vendo!... E em qual é casa?
O governador foi minucioso:
— Ao lado da igreja da Boa Morte. É um prédio grande, bran-
co, cheio de janelas e soldados na porta. Tem o pau na parede de
hastear a bandeira...
1 96 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

O nosso amigo avaliou que era o Palácio do Governo e reco-


nheceu o governador pelas tão faladas barbas compridas. Ficou, por
segundos, mudo e tremendo. Afastou-se um pouco, como que aco-
vardado e, desculpou-se, humildemente, com o chapéu na mão:
— Imagina... Bobagem a minha... `Tá mesmo no tempo dos au-
tomóveis chegar e isso mais hoje, mais amanhã, tinha que acontecer
mesmo... Só que faz pena de ver um bicho desse tão bonito, tão bem
pintadinho, tudo "xujo" de farinha...
Depois, teatralmente, virou-se para o barranco:
— Também égua é mesmo mulher de burro! Só burro mesmo
que ia ter ideia de subir num barranco dessa altural... Quando que ia
dar conta?!...
E, assim, tratou de ajuntar o que ainda havia ficado nas bruacas
e chamou a tropa num trote apertado, pois sabia lá se o governador,
depois de lhe pagar tudo, como era homem de palavra, quisesse pa-
gar-lhe, também, os insultos?

1 97 1
DINHEIRO NA MÃO
DE POBRE

ntônio da Silva de Jesus era um modesto ferreiro na cidade de Co-


umbaíba. A profissão dura, a freguesia muito mmciba, as coisas
Ar empre aumentando de preços, com exceção dos seus serviços,
tudo isso contribuiu para que ele tentasse um outro jeito de vida.
Foi, com o filho, depois de muito pensar, para o garimpo, que
ficava na redondeza, no rio Veríssimo.
Seu Antônio achou que arrancar diamantes do leito do rio era
bem mais fácil que ferrar cavalos e rodas de carroça. Sabia que a vida nas
catas era dura, bem dura mesmo, porém, era uma vida de esperanças. De
uma hora para outra poderia bamburrar e, então, adeus misérial...
A pequena tenda, também, foi arrastada até ao garimpo. Ser-
viria para consertar as ferramentas e, se a coisa não desse certo,
voltaria à profissão. O garimpo seria umas férias forçadas, em caso
de fracasso.
João, seu filho, um rapazola pacato, agarrava, forçado pelo pai,
e a coisa lá ia animada. Desviavam braço de rio, rebentavam embur-
rados, abriam buracos enormes e lavavam imensidade de cascalhos,
porém sempre queimando catas. Na verdade, eles não conheciam
bem do assunto, pois passaram mais de uma vez por gemas de relati-
vo valor sem distingui-las dos demais calhaus. A economiazinha de
tantos anos, lá foi rodando, água abaixo.
Num certo dia deram com uma pedra esquisita, crostada, qua-
se do tamanho de um ovo de cocá, beirando quatrocentos e cinquen-
ta gramas e valendo uns trezentos e sessenta contos de réis.
1 99 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

— Pai, acho qu'esse trem é diamante...


— Quá, filho, diamante é pedra lumienta.
— Pois eu acho que é.
É e não é e a teima deu em discussão calorosa. Seu Antônio
achava que a pedra era encontrada já lapidada; dizia que se encon-
trassem ao sol quente, do meio-dia, era até perigoso cegar. Finalmen-
te, resolveram:
— Olha aqui, filho: diz que diamante é a pedra mais dura que
tem; nem ferro é igual; agora vamos resolver o caso na tenda.
— A gente vai meter o malho nela, né, pai?
— É isso mesmo; traz a marreta e tira aqueles trens de riba da
bigorna.
Enquanto preparavam para o teste, veio se aproximando um
cavaleiro. Apeou-se, encostando-se num dos pés direitos do ran-
cho. Conhecia, de sobra, diamante. Este era o José Borba, um fa-
zendeiro dali, muito rico e muito avarento. Ao reparar com a ganga,
reconheceu a legitimidade da pedra. Ficou abismado em ver o ta-
manho, mas não se manifestou.
João colocou-a no buraco da bigorna, onde se faz cabeça de pa-
rafusos, enquanto o pai, com uma marreta de dez quilos, afastou-se
um pouco e, levando-a acima da cabeça, desferiu tremenda marre-
tada que fê-la partir em pedaços, não deixando de ficar a marca da
pedra na bigorna e na marreta.
— Não "faleio", cabeçudo duma figal... Tu é bem teimoso igual
tua mãe, danado!... Adonde já viu diamante quebrar assim?
— Foi bom que a gente fez a experiência; agora já se sabe: a
pedra que aguentar marreta é diamante legítimo...
José Borba agachou-se para pegar os pedaços maiores que es-
caparam de voar como balas, no ato. Conseguiu encontrar partes de
cinquenta e oitenta quilates. Guardando os pedaços, disse:
— Quem lucrou com isso foi o meu isqueiro...
Fácil foi fazer quase cem contos de réis naquilo, com os capan-
gueiros de Carmo da Bagagem, em Minas.

1 100 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Mas, como tudo gosta de movimento, um advogado sem ser-


viço veio ter com o Antônio da Silva de Jesus. Depois da conversa
introdução, o causídico entrou no assunto:
— O homem deu o tombo no senhor: vendeu as pedras por
cem contos! A Lei reza que o direito é seu; que lhe roubou.
Vamos tocar uma demanda em cima dele. O dinheiro virá para
o seu bolso. José Borba somente terá trabalho, sem lucro algum; até
as custas ele vai morrer com elas. Ele é ladrão.
Seu Antônio coçou a barba rala e cofiou o cavanhaquinho.
Pensou no caso. Uma tremedeira danada tomou-lhe conta. Um cala-
frio aguçado percorreu-lhe todo o dorso.
Ficou matutando sem dizer nada; pensava, pensava...
— "Diacho... Cem contos davam pra comprar trem pra danar.
Era o mesmo que ter bamburrado. Estava bem na hora de largar essa
vida excomungada de garimpo. Comprar uma casinha na cidade e
ficar à toa... Isso sim que era bom... Ficar mesmo à toa um tempão;
deixar o tempo rolar sem fazer nada, deitado de barriga pra riba e
pitando pito de loja. Comprar um (pareio' de roupa pra ir 'na missa'.
Uma ringideira daquelas amarelas, bem cantadeiras, pra que todo
mundo pudesse vê-lo. Um chapéu de pelo, dos bons... Este mandaria
vir do Rio de Janeiro."
— O senhor resolve que eu pego a causa. Pego e garanto. Não é
preciso dispor de dinheiro algum: no fim, depois da causa ganha, eu
tiro a minha parte e lhe devolvo o resto.
— Ué, o senhor achando que dá mesmo certo, também estou
de acordo... Por que não?
— Ora, como não dará certo, pois se eu estou dizendo como é
tudo direitinho? Basta assinar aqui, em baixo - abrindo a procuração
- e deixa o resto comigo.
A assinatura foi por a rogo, pois seu Antônio era nu e cru
nas letras.
O tempo corria. Acontece que a tal demanda foi aprender ofí-
cio difícil nas gavetas da repartições. De vez em quando o advogado
dava uns apertos e, então, a papelada era removida para uma outra
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

gaveta, desfazendo-se, assim, dos ovos de baratas e de muito pó.


Depois de mais apertos e um pouco de "graxa", acharam que o caso
deveria ser julgado na Capital da República, por não encontrarem
fundamentos com os poucos recursos de que dispunham. Seu An-
tônio ficou desanimado ao saber da notícia. A Capital da República
estava tão longe, como procurou saber; ela bem poderia ser por
aqui mesmo, aonde ele poderia dar um pulo, até lá, a cavalo.
Passados quatro anos ainda a questão não havia sido solu-
cionada. Por esse tempo Antônio da Silva agonizava vítima de
uma terrível maleita, adquirida ainda em tentativas de garimpo.
Durante todo esse tempo só conseguiu pegar, mais o filho, uns
poucos xibios e passar muita fome e demais privações que a mi-
séria acarreta.
João, certo dia, foi à cidade buscar uns remédios que sempre
lhe davam; demorou muito e quando chegou encontrou o pai, já
morto, há tempo. Deu-lhe trabalho, muito o que fazer, para espantar
os urubus de perto do rancho.
Ficou desolado, sozinho, sem saber o que fazer, pois o pai era
tudo, até o próprio João.
Juntou os poucos utensílios que possuía, uma mísera tralha,
e retirou-se para a cidade, onde foi trabalhar na Câmara Municipal,
em serviço braçal.
O Intendente deu-lhe um rancho na beira do cerrado, recinto
onde curtia, abandonado, sem incomodar ninguém, a sua miséria.
Com pouco prazo arranjou uma companheira para o seu humilde
casebre e, também, para si. Miséria de dois é mais suave, pois um
consola o outro.
À tarde gostava de sentar-se à porta de varas do rancho e fu-
mar o seu cigarrinho de corda. Era uma pachorra danada fazer o tal
cigarro. Gostava, também, de sonhar e eterno sonho do garimpeiro:
uma bamburrada. Parecia até ouvir o tiroteio dos foguetes e ver os
colegas se esbaldando na cachaça. Depois, lembrando da dificuldade
passada, da morte do pai, aquilo se desvanecia: ia-se desvanecendo,
sumindo devagarinho, como a fumaça que baforava. Vez por outra
1 102 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

tinha vontade de ir trabalhar de "meia praça", mas se com o pai a coi-


sa não foi, com os de fora é que não ia mesmo.
Foi, por uma dessas vezes, que o fazendeiro Manoel de Sou-
za deu com ele, assim sossegado. Trazia, também, o seu compadre
Leôncio.
— Olá, Joãozinho, como vai?
— Meio lá, meio cá, seu Mané... Como é que vai a obrigação?
— Como Deus é servido... Não imagina o trabalhão que tive
em te achar.
Depois dos tradicionais apertos de mão (apertos, no modo de
falar, pois os sertanejos apenas tocam as mãos, como se estas fossem
de cascas de ovos), entrou uma conversa comprida e sem sentido,
tudo ao modo sertanejo, com fala mole.
— Que vento que te empurrou pra cá, homem?
— Negócios...
— Negócios?! Pra esses lados?
— E é com você que é o meu negócio.
— Não sei o que será... 'liando no meu alcance...
O Leôncio atalhou:
— Olha, seu João, é um negócio especial de mais da conta...
— Então vai ser o primeiro: `tou com um trem que nunca vi
tanto panema.
O visitante, fazendo ambiente, manuseando a palavra com
muitos trejeitos, foi falando, preparando a fabricação de um cigarro
de corda:
— Como você sabe, eu nunca se dei com o Zé Borba: já me
passou muitos calotes e já me deu muito trabalho; as nossas rixas
nunca vão se acabar assim à toa, sem mais nem menos, não. Aquele
merda é um ladrão! Agora eu tenho um compadre que formou um
filho de advogado e ( tá militando no Rio de Janeiro. Ele garantiu que
ganha a causa. Se caso você quiser me vender, eu compro os direitos
da questão. 'liou resolvido acabar com aquele descarado. Olha aqui,
João, o negócio são dez contos de réis para o seu bolso em troca de
você firmar o documento.
103
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

—Aral...
— Negócio sério, de homem.
— Sei não... 'liou meio aturdido...
— Você recebe esse dinheiro livre e desimpedido, sem ter gas-
to algum. Pensa bem que dez contos de réis é muito dinheiro nesta
época. Fica o mesmo que ser uma herança que o finado seu Antônio
te deixou.
Não era necessária tanta falação, pois quando surgiu a cifra dez
contos de réis a fala já havia sumido completamente da boca do João.
Aquela miséria, aquela privação de tudo, incomensurável, passou-
-lhe pela mente atordoada. Enfim o seu sonho estava sendo realiza-
do. Dez contos era dinheiro toda vida. Seria o dono de Corumbaíba.
Emprestaria dinheiro até para o Intendente.
- Vancê, seu Mané - perguntou, desconfiado - tem esse di-
nheiro aí?
— Ara, vim cá pra sair tudo realizado; até pena e tinta pra fir-
mar eu trouxe.
— Mas eu não "seio" assinar, seu Mané...
— lã tudo preparado: trouxe o compadre Leôncio de arrogo.
Você pedindo ele assina. É pra isto que tem o tal de "arrogo"; só que
é obrigado pedir.
Assim foi feito: o Manoel de Souza ficou dono da procuração
assinada e João da Silva de Jesus, dos dez contos de réis.
Aquilo para ele era um prazer, espichar as "folhas de couve" em
cima do jirau que lhe servia de cama; nunca se cansava de contá-las.
Como gostava demais de pão e nunca pôde comprar, desceu
até a cidade e comprou um saco cheio.
— Que é isso, João? Tu não sabe qu'esse pão vai ficar todo duro?
Pra que tanto pão? Carecia comprar duzentos réis cada dia e a gente
tinha sempre pão fresco...
— É mesmo, Joana, nem tinha pensado nisso; vontade de co-
mer pão era demais da conta...
A indumentária da família era tão paupérrima que, quando
chegava a época de lavar a roupa, precisava ficar-se escondido até
1 104 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

secá-la; assim mesmo não passavam de uns míseros trapos. Mas, que
foi o que João fez? Ora, desceu à cidade e comprou um belo guarda-
-roupa. Ao chegar com o móvel, todo de cedro maciço, muito refor-
çado, teve que derrubar a taipa da parede, a fim de introduzi-lo.
— Meu Divino Padre Eterno!... Mas o que qu'é isso, João?
— Guarda-roupa! `Tá vendo não?...
— Meu Divino!... - tapou a boca - carecia disso, não... pra que
guarda-roupa se a gente não tem nada pra pôr dentro?...
Com mais esta ratada João resolveu deixar o dinheiro, único
e exclusivamente, para negócios. Queria fazer aquele dinheiro ren-
der muito, pois acreditava, piamente, na sua argúcia de comerciante.
Pensava que para negociar e ser bem-sucedido era só ter dinheiro.
Mal sabia que muitas vezes muito dinheiro até atrapalha.
Mas o danado tinha uma paixão extraordinária para um par
de dentes de ouro. Achava aquilo de um luxo estupendo. Dentista
havia na cidade; dinheiro ele possuía; dois caninos bem grandes e
bons para serem encapados estavam na sua boca. A vontade era por
demais e crescia ainda muito mais quando pensava nos sorrisos que
poderia dar nas rodas dos pagodes, quando os amigos contassem os

causos" engraçados.
Por fim, acabou cedendo ao seu desejo. Meteram-lhe duas
coroas que realçavam de longe. O João nem mais fechava a boca.
Qualquer coisa que ouvia era motivo de graça: ria escancarado; ria
muito mesmo, o nosso João. A pobre Joana, coitada, possuía uma
cacaria que lhe proporcionava uma fedentina danada, quando abria
a boca, coisa que fazia sempre, pois se admirava de qualquer coisa
que via e ouvia.
A notícia de que João tinha dinheiro para negociar correu cé-
lere. Os espertalhões não faltaram com as suas ofertas milagrosas.
Empregou, depois de muitos cálculos, todo o dinheiro restan-
te numa partida de gado, que, por sinal, era muito ruim: um gado
magro e desgraçado. Para valer o que ele havia dado pela boiada era
necessário colocá-la numa pastaria muito boa e esperar. Depois te-
ria o problema de encontrar o comprador; essa compra não seria no
1 105 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

dinheiro. Pasto ele não tinha. Alugou um. O aluguel começou a se


avolumar e, então, a sua situação continuava a piorar. Achou melhor
dispor dela, o que fez pela quantia de quatro contos de réis e mais a
volta de um carro de bois, porém, sem eles.
— Agora tu enche o carro e puxa ele... Carro não carece boi...
Você não sabe disso...
— É, Joana, é isso mesmo... 'liou ficando atrapalhado...
— `Tá ficando!...
Por esta altura o Manoel de Souza recebia todo o dinheiro do
fazendeiro José Borba, inclusive as custas: cento e muitos contos de
réis. O filho do seu compadre tinha mesmo influência no Rio de Ja-
neiro. Zé Borba naufragara.
Joãozinho não tinha mais o prazer de espichar as notas de qui-
nhentos mil réis sobre o algodão de cima do jirau, pois eram apenas
oito e não dava gosto.
Depois de muito pensar dispôs de quatrocentos mil réis e com-
prou uma junta de bois. Mas com dois bois apenas não podia pôr
quase nada no carro; de mais a mais, comprou os dois no caminho do
matadouro, um par de curraleiros já cansados, sem apeiragem e que
seguiam satisfeitos para o holocausto. Era um cingel mesmo sem jei-
to para o serviço de gente pobre (e agora o nosso amigo já era pobre).
Certo dia, estava quase desesperado, quando lhe apareceu um
bom negócio: trocou o carro e os bois, mais a volta de um conto e
quinhentos mil réis por uma roça de arroz, já na hora de colher.
— Meu Divino Padre Eterno... Tu não tem jeito mesmo não...
Adonde se viu fazer um trem desse?! Cadê peão pra modo colher
roça? Tu pensa que só nós dois dá conta? Tu não gosta mais de tra-
balhar; eu `tou um caco, quase não valendo mais nada... A gente `tá
sempre perrengue... Não "seio" o que que vai ser, não...
De fato, por falta de ânimo e de gente, o pobre homem colheu
lá um tiquinho que mal apenas deu para o gasto: um punhado de
grãos no canto do rancho. E, para isto custou-lhes o sacrifício de mu-
darem-se da cidade.
A bancarrota da sua vida estava escrita.
1 106 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Começou a comprar galinhas e ovos para vender na rua. Além


de pagar nas roças mais caro do que estava na cidade, o povo também
criava nas hortas e quase ninguém comprava. Foi uma boa iniciativa
esta, do João, mas a cidade não comportava a sua capacidade de co-
merciante e este foi mais um fracasso do nosso amigo. Mais um passo
para a sua bancarrota.
Um dia verificou estarrecido, que não possuía mais nada, a não
ser a bondade de Joana. Até o guarda-roupa, que havia conservado a
custo de fome e tudo, teve que negociá-lo, agora. O remédio foi, para
não morrer a fome, ir até a Câmara e pedir, novamente, o emprego.
Então, o Intendente, sarcástico, lhe perguntou:
— Como, João, que é da herança?
E ele, abrindo a boca, coisa que há muito não fazia, mostrou os
dois caninos de ouro:
— Só isso, João?!
— O que ficou foi isso... mais nada...
— Então vai voltar ao serviço?
— É o jeito, se o doutor tornar a arranjar.
— Você aqui sempre terá guarida, João. Eu gostava muito do teu pai.
— Eu também, seu doutor...
E o senhor Intendente, voltando ao assunto:
— Quer dizer que se os dentes de ouro fossem de negócio...
Aí, entrou o humilde braçal, rindo bom e confiado:
— Aral... Já tinha ido também!...

ELUCIDÁRIO

BAMBURRAR: Quando o garimpeiro encontra o que procura:


uma gema compensadora.
TENDA: Pequena oficina de ferreiro.
COCÁ: Galinha de Angola.
CARMO DA BAGAGEM: Cidade mineira famosa pelas pe-
dras de grande valor encontradas nos seus garimpos. O seu
1 107 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

nome atual é Estrela do Sul. Foi lá que encontraram o diaman-


te Getúlio Vargas.
CRAXA: Engraxar o encarregado do negócio: soltar dinheiro
por fora.
CIGARRO DE CORDA: Cigarro de palha de milho e fumo de
rolo.
MEIA PRAÇA: Garimpeiro que trabalha a meias no que en-
contrar.
OBRIGAÇÃO: Família. Como vai a obrigação? (como vai a
família?).
PANEMA: Macaca; azar.
MILITANDO: Operando; trabalhando.
FOLHA DE COUVE: Nota de quinhentos mil réis.
TAIPA: Muro ou parede de terra socada entre táboas.
PERRENGUE: Adoentado. Esta palavra é largamente usada
aqui.
HORTA: Quintal, mesmo sem qualquer plantação.
O FANTASMA
DO SOBRADO

larimundinho era o caçula. A mamãe dedicava-lhe todo ca-

C rinho e fazia-lhe todos os gostos: "Clarimundinho, vem cá.


Clarimundinho, não vá lá. Clarimundinho, não faça isso";
mas tudo com tanta ternura que encantava.
Isto está sendo mencionado porque, na província, tantos den-
gues são raros.
Não muito longe da cidade, à beira da estrada, lá surgia, de repen-
te, o sobrado dos Sousa. Sobrado com um andar só, mas era sobrado.
Saturnino de Sousa tinha muita terra ali, e pouco a usava: re-
sultados muito poucos; mais era o trabalho de vigiar. Montara uma
venda no sobrado, desde muitos anos, e vivia dali. Antes, viajava
muito, vendendo gado, negociando muares, e, por último, traman-
do armarinho e mais mercadorias. Levava artigos manufaturados e
trazia gado e burro. O Ricardo, filho mais velho, viajava com ele e,
por fim, sucedeu-lhe em tudo, pois o Saturnino apanhou uma febre
palustre e ficou vivendo, empurrando a vida com chás e mezinhas,
sempre amuado e perrengue, no sobrado.
Tomava conta da venda. Tinha, ainda, uma filha, a Laurinda,
moça arredia com os de fora e pé de boi, em casa. O Josias também
era filho; mas andava sumido por este mundo de Deus, desde os treze
anos, época em que o pai lhe dera uma surra.
Não se tinha notícias dele; não se contava com ele.
O velho Saturnino controlava, ainda, a fazendola, onde dois ou
três peões cuidavam do gado e plantavam alguma coisa, isto de arrendo.

I 109 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

No sertão, quem estiver com uma situação igual à do Saturni-


no, é tido como rico. Rico mesmo ele não era não. Mas gostava que
o julgassem assim.
A Josefa, sua mulher, mãe do Clarimundinho, era uma beleza
de mulher: fisicamente, não digo, mas um exemplo de dona de casa,
ela era. Então, com o Clarimundinho, se desmanchava. Este não seria
como os outros. Iria estudar lá, em-baixo, custasse o que custasse.
O seu sonho dourado era ver, um dia, quando Deus todo louvado
quisesse, o seu caçula formado para doutor. Isto um dia ela veria...
Se veria!
Começaram-se a traçar os planos a fim de enviarem o filho ao
colégio de Uberaba. Com um pouco de dinheiro e com um excesso
de orgulho, mandaram o Clarimundinho para o Triângulo Mineiro.
Dois dias de lombo de burro até Roncador, depois de estrada de fer-
ro, ai por diante, mais uns três.
Se recomendações pesassem, o rapazinho não poderia mover-se.
O próprio Saturnino de Sousa, mais três peões, levaram o
Clarimundinho até Roncador. Ali, Saturnino confiou-o ao chefe de
trem, depois de muita conversa. Em Araguari esse chefe fez as mes-
mas recomendações ao da linha Mogiana.
Em Uberaba um semitrole o conduziu até ao colégio, ainda
tudo por orientação alheia, planejada pelo velho Satrnino. Clarimun-
dinho possuía, no bolso, uma carta do colégio autorizando-o a se
internar, coisa também conseguida pelo pai, com um viajante, isto
havia mais de oito meses.
Somente depois de cinco anos foi que Clarimundinho retor-
nou ao lar, para visitar os parentes. Deveria voltar, incontinente, des-
sa vez, para São Paulo, onde faria o preparatório para ingressar-se na
Faculdade de Medicina.
Como tudo ali estava mudado!... Clarimundinho achou tudo
esquisito. A verdade é que tudo estava do mesmo jeito, desde a sua
partida. A gente quando conhece cidade grande, depois, quando vol-
ta, acha tudo tão pequeno, tão baixo, que até a própria casa parece
não caber a própria pessoa. Tudo ilusionice.
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Clarimundinho seguiu para São Paulo. Desde a sua primeira


partida, processou nele, uma transformação radical. Crescera, ci-
vilizara-se, adquirindo melhores costumes, mas de uma coisa ele
não deixou, não: foi o medo. Não era covarde; é lógico que não. Na
família dos Sousa não havia motivos para que alguém saísse um
covarde. Era gente para o que desse e viesse. Mas ele tinha medo,
durante a noite.
Em casa, antes, dormia no quarto, junto com a irmã. No co-
légio o dormitório era comum. Na Capital paulista, morava numa
república, com mais oito colegas, todos num só compartimento.
E essa turma era gozada. Apostavam, uns com os outros, quem
contasse a história mais impressionante, ou a bobagem maior, ou isto
e aquilo. A verdade é que andavam sempre apostando.
Clarimundinho não gostava disso, mas era obrigado a ouvir.
Passava por diversos pesadelos. Para intimidá-lo, pois sabiam
que a sua casa era um sobrado antigo, de beira de estrada, contavam
as mais horríveis histórias, os mais hediondos casos, sobre crimes e
almas do outro mundo, nos sobrados. O nosso amigo sentia mui-
tas saudades da sua mãe. Ali ele dormia coberto ou descoberto, sem
ninguém se importar. Em casa, isto não sucederia. A sua boa mãe
tinha o cuidado de vir verificar se estava bem coberto, se o colchão
de palhas não estava duro, se isto, se aquilo. Enfim, ela era uma mãe
que amava o seu filho, acima de todas as outras coisas.
Quantas vezes não se lembrava de ter dormido descoberto de-
vido ao calor e amanhecido coberto, bem rebuçado, porque sua mãe
sabia que fazia frio pela madrugada e vinha cobri-lo, por esse tempo.
Devido à distância muito grande e às dificuldades de uma via-
gem, Clarimundinho regressou ao lar, somente depois de formado.
Os Sousa prepararam uma festa à altura de receber o Dou-
tor Clarimundo. O próprio pai e alguns vizinhos foram esperá-lo em
Vianópolis, agora a ponta da estrada de ferro.
Saturnino, ao abraçar o filho, deixou que grossas lágrimas ro-
lassem pelas costas dele. Como estava crescido e bonito o seu dou-
tor!... Durante mais de uma hora, em viagem, foram-lhe contando
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

tudo o que havia passado, o que estaria por passar e, ainda, o que
deveria ter passado. O avô havia morrido no sobrado; o Josias havia
aparecido doente e morreu sem se poder fazer alguma coisa exata,
pois gritava dia e noite com dores nos ossos.
— Não houve banha de capivara que aliviasse, meu filho...
— O coitado sofreu muito mesmo, compadre...
— Foi isso... Mas Deus é servido.
— Ainda que veio morrer em casa. Podia ser pior.
— É isso mesmo.
Clarimundinho queria saber como foi, quais as causas e tudo
mais:
— Mas como o mano apareceu?
— Trouxeram do garimpo. Foi gente de Deus...
As conversas viraram:
— A Laurinha também casou. Rapaz de lá mesmo; você não
conhece.
— Mora lá?
— Todos juntos.
— Olha aqui, doutor, hoje nós vamos fazer um arrasta-pé lá,
em sua casa: vem gente de toda banda.
Mais algum assunto e, passadas duas horas, o silêncio de vozes
foi estabelecido. Somente os sopros e o pisar dos machos se faziam
ouvir. Afora disto, a natureza regozijava-se. Era manhãzinha e o am-
biente estava alegre, com cantar de pássaros e corridas de preás. Aqui
um córrego, ali um riacho, lá uma paisagem que se descortina, sol
deitado e brilhante e tudo mais muito bonito. Chuva não vinha, não,
mas os palas, as pioneiras capas "Ideal", nas garupas.
Chegaram. josefa fez vários rodeios para vir ter ao filho.
— Como está bonitão o meu Clarimundinho!...
— A bênção, mãe...
— Deus te abençoe, meu filho... Deus te abençoe, meu Cla-
rimundinho.
Dona Josefa rodava pra lá, rodava pra cá, ia e vinha e tudo seu
rendia muito pouco, a não ser a alegria que se deixava transparecer.
112 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Ela mesma correu a arrumar-lhe um banho morno, na gamela. Ele


preferia a bica, mas não quis contrariar a mãe.
No jantar quase que o entupiu de tanto o servir. Ficava com a con-
cha cheia, suspensa, esperando uma oportunidade para que coubesse no
prato. E isto demorava, pois ele conversava muito e comia pouco.
De todas as janelas e da porta, avistavam-se cavaleiros que che-
gavam para cumprimentá-lo. O doutor regozijava-se. Estava satisfei-
tíssimo. A sala grande do sobrado foi enchendo, ocupando-se todos
os bancos laterais. Os chegantes tocavam-lhe a mão num cumpri-
mento sucinto, sem apertá-la, e encostavam-se.
Depois da família jantar, foi servida comida farta e cachaça aos
que chegaram. Era para mais de cinquenta pessoas.
Assim que a confiança foi travada iniciou-se, o programa de
estímulo: todos faziam ver ao recém-formado que ali era um campo
vasto para um médico. Havia gente doente para todas as bandas e
morria, também, muita gente por falta de recursos médicos. O seu
irmão Josias, mesmo, era um exemplo. Clarimundinho concordava,
mas a sua ideia não era de ficar. Já havia se acostumado à cidade
grande e não se privaria de certos confortos, impossíveis, ali. Iria vol-
tar, como voltou depois.
Houve dança, mas durou pouco, pois o tempo começou a prome-
ter chuva e o povo foi-se raleando. Com pouco mais, só a familia restava.
Um vento forte surgiu, apagando lamparinas e candeias, baten-
do portas e janelas. Clarimundinho foi levado ao quarto. Subiu a es-
cada velha, rangedeira e empurrou a porta que também rangeu. Um
colchão alto, em uma cama alta, todo de palha de milho, produziu
um barulhão, quando se assentou, embora engolido pelo barulho do
vento. A lamparina foi colocada sobre uma mesa tosca, ao seu lado.
Sua mãe havia puxado o pavio e uma chama grande dançava, agitada
pelo vento que soprava pelas frestas da janela. O vento uivava. Lá fora
clareava, de sempre em sempre, seguido de uma forte trovoada.
O jovem médico meteu-se debaixo da coberta grosseira, de cor
berrante e escandalosa, toda de algodão cardado e tecido pelas mãos
de dona Josefa e afundou-se no colchão de palhas.
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Até ao respirar, o danado do colchão fazia barulho. Aquilo era


novidade para ele, pois havia quanto tempo que já tinha desacostu-
mado. Também, este fora feito especial para ele.
Clarimundinho, de barriga para cima, reparava as formas di-
ferentes e aumentadas dos utensílios que a luz projetava na parede.
Veio-lhe à mente muita coisa que não deveria vir. Começou a
relembrar dos casos de sobrados, que contavam na república.
O seu sobrado passou a ser ambiente e o avô, que morrera,
personagem das histórias. O medo chegara-lhe, violento. As sombras
dos móveis projetados representavam-se fantasmas, que dançavam.
Parecia uma dança diabólica, em torno de um defunto. No caso, o
defunto era ele, que estava deitado. Esteve para levantar-se, por vá-
rias vezes, mas ali encolhido, quieto, quase sem respirar, era mais
seguro. A chama quase saía fora do bico, indo para um lado e outro.
Depois se extinguiu.
O vento dava impressão de ser gemidos de gente que sofria,
agonizante e o bater e forçar da janela parecia que alguém tentava
abrir para entrarem os supostos moribundos. Pelejou pra desviar o
pensamento, mas o pensamento, que tem a velocidade da luz, não
corria nem a dez por hora. Era mesmo que cavalo empesteado que
não saía do lugar. Quanto mais pelejava para se afastar, mais se apro-
fundava naquelas fraquezas.
Parecia reconhecer, claramente, a voz do avô, que lhe pedia mis-
sas. Mano Josias, também, apareceu, terrivelmente, todo transforma-
do, alegando culpa nele por não socorrê-lo na doença, pois morrera
sem recursos terapêuticos, embora tivesse um irmão médico.
Se ele, o Clarimundinho, estivesse normal, descansado, isso
passaria à toa, mas estava morto de cansaço; havia cavalgado uma
distância daquelas, quase que totalmente fora de prática. Estava com
os olhos pesados, mas não conciliava o sono. Entrava numa madorna
e acordava sobressaltado, pois trazia todos os nervos abalados pela
viagem. Essa fraqueza é que lhe dava corda a essas aparições.
A chuva, agora, caía grossa, e as goteiras martelavam uma lata
velha, debaixo da sua janela. Isto ajudava um pouquinho. Não fazia
114 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

frio, ainda, mas ele estava gelado, debaixo da coberta. Até dos cabelos
corriam-lhe suor. Na casa era silêncio. Só a Natureza se fazia presen-
te, com todos os ruídos.
Clarimundinho, olhos fechados, meio dormindo, ouviu pas-
so, lá em baixo. Alguém subia na escada, que rangia. Uma dor fria,
fina, veio-lhe subindo desde a barriga da perna até a espinha. O seu
corpo gelou, ainda mais. Os seus cabelos empastavam-se. A porta
do quarto rangeu e uma pequena claridade iluminou o aposento. O
angustiado, por mais que tentasse fechar os olhos, ainda notava a
pequena claridade. Passos de chinelas arrastando, aproximavam-se.
Um vulto preto tomou-lhe a frente. Agora ele queria abrir os olhos e
também muito mais a boca para ver e gritar o quanto pudesse. Sentiu
que alguém lhe tocava o corpo, na posição do dorso e vinha subindo
pelo peito. Agora duas mãos passaram-lhe pelo pescoço e foram lhe
apertando para enforcá-lo, sufocando-o. Estrebuchou-se. A luta con-
tinuava, em que só ele era atacado. Finalmente conseguiu agarrar as
mãos do fantasma, saltando do leito, por uma força misteriosa que
ele não a possuía no momento. Soltou um urro e pôs-se de frente à
aparição, olhos estatelados, ofegante e arcado:
— Meu filho!... Você sofre pesadelos?! Eu venho cobri-lo, meu
Clarimundinho!...

ELUCIDÁRIO

MEZINHA: Remédio caseiro.


PÉ DE BOI: Pessoa boa de serviço.

115
CAPRICHO DO DESTINO

hamava-se Leôncio, o rapazinho. Era um tipo meio de

C cidade, meio de fazenda. Frequentava boate, Jóquei Clu-


be e gostava de usar as cadeiras das portas dos melhores
bares. Fazia questão de que as moças o vissem, com a cabelei-
ra de topete (última moda ), terno impecável e camisa esporte,
abotoada no colarinho, sem gravata. A sua caminhoneta, Che-
vrolet 57, sempre com ele. Era um carro cômodo de cabina, ca-
bendo quatro rapazes ou seis mulheres. Leôncio gastava um bo-
cado de cobre. Quem o visse diria que o dinheiro era do pai, mas
enganava-se: o moço era criador de gado, tinha boas terras e
agia no local. Do mesmo modo que ele era um cidadão, quando
na cidade, mostrava-se, também, um perfeito vaqueiro, quando
na fazenda. Calça caqui e guaiaca; na cinta, revólver Colt-32 e
muita bala. As esporas eram de rosetas pequenas, mal apenas
aparecendo, à semelhança dos oficiais de Cavalaria do Exército.
Tanto vendia como comprava gado.
Na Capital, mantinha amizade com os rapazes da alta linha.
Na fazenda, dava a mesma consideração aos peões, sobressaindo-
-se Adolfo, um seu vizinho, embora casado, tendo uma filhinha de
dois anos, para quem tomara como padrinho, o Leôncio. Adolfo
morava no seu sitiozinho, duas léguas de distância da fazenda do
seu compadre, na estrada para a Capital. Ele sempre aproveitava
a sua caminhoneta para vir à cidade. Ficava à beira da estrada, no
seu terreno, numa reta de mais de quilômetro. Leôncio avistava-o
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

de longe e passava-lhe susto, fingindo atirar o carro para cima


dele, que dava saltos para dentro do cerrado.
— Tu ainda pega a gente, compadre!...
— Sem pegar não posso te levar pra Goiânia.
Os dois compadres riam e depois punham-se a conversar
sobre o gado, a roça, as cercas, o fogo, os aceiros, as formigas, os
porcos, o fuxico entre os empregados, o que pensavam dele na
fazenda, os preços dos trens, os aumentos absurdos de tudo: só
gado é que não subia. Conversando assim, as doze léguas eram
vencidas mais suavemente. A estrada também era boa, com exce-
ção do trecho da grota, pouco adiante da reta do Adolfo, que era
uma baixada de córrego, cujo leito da estrada tomara-se muito
aburacado e cheio de pedras. Na volta, Leôncio deixava as en-
comendas do compadre na beira da reta e nunca lhe cobrou um
tostão de passagem nem de frete. Toda a sua amizade, tanto na
cidade como na roça, não valia a do Adolfo. Não se explicava por-
que o rapazinho gostava tanto dele.
Certo dia, quando fazia justamente uma semana que havia
começado a marcação do gado e o jovem pecuarista já se prepa-
rava para vir para casa, na cidade, soube dum crime na estrada:
um sujeito havia pedido passagem na beira do caminho, a uma ca-
minhoneta igualzinha a sua. O motorista, que era um fazendeiro,
criador mais retirado, parou o carro. O suposto passageiro atirou de
revólver 38 bem na cabeça do pobre homem, matando-o na hora.
Na busca que deu no cadáver não encontrou mais que uns trezentos
cruzeiros trocados.
Leôncio ficou com a pulga atrás da orelha, pois aquele assalto
não foi pelos trezentos cruzeiros. O ladrão achou que a vítima tivesse
muito dinheiro. Muito dinheiro o pecuarista somente tem, quando
vai para a fazenda, efetuar compras de gado, depois de um financia-
mento no Banco do Brasil. Ou, de outra maneira, quando para a ci-
dade, depois de ter efetuado a venda de uma partida de gado. E quem
havia vendido gado naqueles dias era ele. Esta suposição fez-lhe ar-
repiar os cabelos. Para reforçar ainda mais o seu medo, veio-lhe, tam-
118 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

bem, à memória, a lembrança de que a caminhoneta era igual a sua.


Será que o bandido não queria não era ele?
Depois do insucesso do criminoso, dado o engano, este não
tentaria esperá-lo? O rapazinho delirou de medo. Uma friagem per-
corria-lhe toda a espinha dorsal. No outro dia teria que reformar um
título, sabendo que o Banco não espera.
Ficar com o dinheiro na fazenda era mais perigoso. O pior de
tudo é que já era quase noite. Resolveu ir. Não tinha ninguém no
jeito de acompanhá-lo, pois os de confiança foram ajudar a levar o
gado vendido. Deram-lhe conselhos para ficar. O dinheiro fez a ideia
funcionar e criar casos: será que os conselheiros não estavam plane-
jando assaltá-lo na própria sede? Não, iria mesmo. Daria o máximo
de velocidade no carro e não pararia para ninguém.
Tirou o revólver da capa e colocou-o no assento, ao seu lado;
pôs um monte de balas no coxinilho e partiu.
As árvores da beira da estrada representavam tocaias. Qual-
quer moita era um homem agachado. O motor do carro arrastava-o
valentemente, mandando-o para frente a cem e cento e dez por hora.
Era o quanto a estrada o permitisse. A sua instabilidade mental es-
tava de tal modo que qualquer cristão que lhe aparecesse pela frente
levaria bala ou seria espatifado pelo seu veículo.
Por uma ironia do destino, a filhinha do Adolfo, afilhadinha do
Leôncio, ficara mal de um momento para outro. O pai não cochilou
e foi para a margem da estrada esperar condução, a fim de trazer
algum remédio, pois não media sacrifícios em se tratando dos seus.
Estava impaciente, esperando sempre. Quando surgia algum
carro, este parecia aumentar ainda mais a velocidade que já vinha de-
senvolvendo muito. Parece que a notícia do assalto já havia chegado
ao conhecimento de todo mundo. "Deus há de ajudar do compadre
aparecer; com ele é diferente" - pensava, aflito, o pobre Adolfo.
Começava a escurecer e nada de condução. "Como estaria a
menina? Será que o compadre não ia hoje pra Goiânia? Ele nunca
havia falhado no trato e agora que mais precisava dele, tudo dava
para trás... Era hora infalível dele passar...".
119
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Adolfo teve uma ideia: "O compadre é bem capaz de já ter pas-
sado; vou pra grota, pois ali todo carro tem que diminuir a velocida-
de e não vão negar-me passagem". Assim fez. Poucos instantes depois
de lá chegar ouviu uma zoada de carro na estrada. O pobre homem
ficou radiante: "Foi Deus quem mandou...".
A zoada era da Chevrolet do Leôncio, que vinha com mais
medo ainda, pois lembrou-se da grota, onde teria que cortar quase
que toda a marcha. Reconhecia, ali, um lugar excelente para embos-
cada. Ajeitou bem o revólver no assento. Como se aproximava do
local sinistro, pegou-o e uniu-o ao volante, com o dedo no gatilho.
Até uma vaca que aparecesse era capaz de ele atirar, julgando que
fosse gente.
Quanto mais se aproximava, mais febril se tomava e mais jubi-
lante ficava Adolfo. Veja como o destino é ingrato: por que a filha do
homem foi adoecer naquela hora, ela que nunca havia ficado doente?
Por que o Adolfo, em vez de outro? Por que Leôncio, no lugar de um
outro que não soubesse do caso e viesse despreocupadamente? Em
vez de um pobre pai que busca recursos para o filho doente, por que
não estaria ali o verdadeiro ladrão, para que o Leôncio lhe furasse de
balas ou lhe passasse por cima? Mas dizem que cada um tem o seu
destino e o que Deus faz está bem feito. Isto é verdade.
O carro embicava, agora, para a grota, trepidando nas gros-
sas pedras. Leôncio avistou, lá em baixo, um vulto de homem. O
coração disparou dentro do seu peito, que também pulava. Deixou
o volante por conta da mão esquerda e segurou a arma no jeito de
atirar com a direita. Preferiu não diminuir a velocidade e impul-
sionou, ainda mais a caminhoneta, que dançava no meio das pe-
dras, engatada em primeira, pois a mão estava ocupada e não podia
passar para uma segunda. Ao deparar com Adolfo, o seu pé estava
colado no tapete e a traseira da carroceria rodopiava. As rodas ati-
ravam calhaus para os lados, pois o motor, na máxima aceleração,
mandava para as pontas de eixos toda a sua potência. Leôncio não
podia atirar, pois a direção desgovernara e ele não sabia se olhava
para a estrada ou para o "assaltante". Ele também estava, ora de um
I 120 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

lado, ora de outro do carro, que mais se assemelhava a um frango


de pescoço torcido, estrebuchando.
Adolfo, reconhecendo o carro e vendo que este ia por cima
dele, gritou, alegre:
— Ei compadre! Leva a gente!...
O rapaz ouviu-o, mas não raciocinou na hora. A Chevrolet já
havia vencido o tope, quando viu que aquela voz era do seu amigo e
querido compadre Adolfo. Parou, pôs a cabeça para fora com o re-
vólver na mão e gritou:
— Quem vem lá?!
— Ora, quem vem lá!... Eu sabia que o compadre não negava...
Foi Deus quem mandou - dizia, quase chorando de alegria, respiran-
do forte, devido à subida que escalava correndo.
Leôncio, agora, estava mais trêmulo que qualquer outra hora,
pois por pouco, pouco que não matara o compadre.

ELUCIDÁRIO

LÉGUA: Seis quilômetros.


CERRADO: Vegetação entre mato e campo; constituído de ar-
bustos.
O terreno não é bom: é de segunda e terceira água.
PRIMEIRA ÁGUA: Terreno de primeira água é terreno de le-
gítima cultura.
ACEIRO: Ato de carpir em redor dos postes de cerca a fim de
evitar-se que o fogo os queime.
COXINILHO: Tecido peludo de lã ou algodão que se coloca
sobre o arreio do animal ou nas boleias dos carros.
CALHAU: Pedregulho grande.
O CONTAGIOSO

oão de Nenzinha era o negro mais feio da corrutela. Diziam que


era ladrão e "empreiteiro".
Não se deixando negar a fama, certo dia, espreitara, astutamente,
J
um capangueiro, lá de-baixo. O homem, montado em um burro mui-
to bem arreado, beirava o grotão no fundo da rocinha do Custódio
Alves, que era homem reservado, não devido a compostura, e sim ao
medo de dar com a língua nos dentes.
O animal deu uma refugada e sapateou. Lá, em baixo, es-
tava o grotão. O cavaleiro rolou, barranco abaixo, por uma pau-
lada na cabeça. João Preto acompanhou a vítima, segura aqui,
agarra ali, até o fundo. Lá chegando, tratou logo de surrupiar-lhe
o picuá.
Ao sair, dera com a presença do Custódio, que o contemplava
apalermado, sem a devida coragem de correr. O negro ficou fula e
prometeu-lhe:
— Olha aqui, seu Custódio enxerido: vou te passar o porrete
pra não ter o que contar.
— Meu Divino Padre Eterno - bradou o pobre homem, ga-
nhando forças para se debandar.
O assassino não o alcançou, mas gritou-lhe:
— Se tu contar, podem me prender trezentas vezes, que tu não
me escapa!
O ladrão ficou possesso de raiva por não poder eliminar a
testemunha. Custódio ouviu e guardou muito bem essa ameaça.
1 123 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Apossava-lhe uma cócega tremenda na língua, uma vontade louca


de denunciar o bandido do preto, mas, e o medo?
Alguém, no mesmo dia, encontrou o burro. Seguiram-lhe o
rasto e viram que o animal havia mesquinhado, pois na beira do gro-
tão as marcas de cascos formavam um malhador. Lá, em baixo, divi-
saram o morto.
— É - exclamou o delegado -, o burro viu algum trem e pinoteou
aqui, jogando o homem no chão, que foi parar despenhadeiro abaixo.
Era sabido que o defunto trazia pouco dinheiro por ter alguém
contado que lhe vendera várias pedras, deixando-o somente com o
suficiente para voltar.
Procuraram o picuá das gemas e não encontraram. Escarafun-
charam ao derredor. Na queda era muito provável ter-se desprendido
e amoitado por ali. Tudo em vão, pois o picuá das gemas estava em
poder do João de Nenzinha.
Passaram a autoridade e os curiosos a duvidar um do outro.
Por muitos anos, não se viam com bons olhos e achavam que os dia-
mantes estavam ainda com alguém, pois ninguém ousaria vendê-los.
Fazer vendas no Garça não era possível, pois viria a dar nas vistas.
Viajar para vendê-los, impossível, porque qualquer retirada era alvo
de suspeitas. O verdadeiro ladrão ficou no mato sem cachorro tam-
bém: ele era o único que poderia sair, mas o seu mundo era aquele
povoado, embora ouvisse sempre gente falar de outras plagas.
Ele não acreditava que houvesse outros lugares no mundo, a
não ser aquela zona de garimpo. Quem chegava, vinha do garimpo
tal. Quem partia ia para o garimpo tal. Garimpo, por garimpo, ficava
no Garça mesmo, que era muito bom. Vivia de soldos dos garim-
peiros, ora como batedor, ora lavando cascalho, sempre picaretando
catas, quebrando emburrados, em busca da ganga que trazia a gema
embolsada. Quando a coisa estava muito no jeito, então, roubava ou
matava um capangueiro, embora sabedor do perigo que corria ao
executar um desses crimes, porque, no garimpo, entre garimpeiros,
não perdoam um crime desta natureza. Fazem justiça com as pró-
-
prias maos.
1 124 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

Quando acontecia, davam de cima do João Preto, mas este era


escovado e não ficava feito besta gastando o dinheiro de qualquer
jeito, dando o que falar. Por fim desistiam de culpar-lhe.
Quando ele se encontrava com Custódio, mesmo depois de
muitos anos, fulminava-o com os mortos olhos amarelos, embaça-
dos, ictericiados. Este tremia de medo e não dizia com palavras, mas
sim com movimentos de cabeça, que não havia perigo de denúncia.
Ele queria viver para cultivar a roça, dar de comer aos filhos; não
desejava deixar viúva e órfãos para sofrerem no mundo. Mas remoia-
-lhe, no peito, uma vontade louca de contar, ao delegado, tudo o que
vira. Sabia da desconfiança que nutriam uns pelos outros. Desejava
pôr tudo em prato limpo, mas cadê a coragem? Também nunca dera
para contar nada a ninguém, pela falta de expressão.
Sabia que nem que o negro estivesse morto, ainda, devido à
presença da autoridade, ficaria enrolado, sem chegar nunca no que
interessasse. Possuía o sestro de dizer "faz muito tempo" e não havia
frase dita por aquela boca, que não saia o "faz muito tempo", moroso,
chavão de recursos, numa absoluta falta de expressão. Qualquer caso
para ele era embaraço e dificilmente chegava a terminar um deles.
Agora, nunca o Custódio teve alguma narrativa importante mesmo
para fazer. Havia essa, mas... e o medo do João de Nenzinha?
O tempo passava. Tudo calmo no garimpo. Tudo calmo no
Barra do Garça.

Certo dia, um enterro passava, apressado pela rua, rumo ao ce-


mitério. Era o João Preto de Nenzinha. Na véspera encetou uma bri-
ga com um baiano, na venda, e, como baiano em garimpo não é flor
que se cheire, este lhe fez a barriga de bainha de faca. A briga foi feia
e fedeu logo a defunto. Dessa vez não foi roubo: foi cachaça mesmo.
Custódio seguiu o féretro e ajudou no sepultamento; queria ter a
certeza de que o danado estivesse bem morto. Foi o que verificou. Todos
já haviam saído e ele permanecia, ainda, ali, vendo se a terra solta da
cova não se mexia. Depois viu que aquilo era besteira e foi-se embora.
Houve uma luta íntima com seu Custódio.
1 125 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Aquilo não podia se protelar mais. Esteve na porta da delegacia


por várias vezes e não teve a devida coragem de entrar. O João Preto,
bem morto, bem chuchado lá no fundo do chão, estava ameaçando
as vontades do Custódio, bem cá fora, vivinho da silva. O delegado
conheceu-lhe as intenções e o mandou entrar.
— Alguma coisa a dizer?
Custódio foi até à janela, tirou um mapa para fora e sentou-se
no tamborete. Olhou para o delegado e riu, sem mostrar os dentes.
Tirou os apetrechos de fazer cigarro e ofereceu à autoridade..
— Fumei há pouco, obrigado. Prefiro que entre no que interessa.
Seu Custódio foi novamente à janela e voltou, picando fumo:
— Negócio engraçado, esse...
— Qual é?
— Faz muito tempo que não morre ninguém...
— Pois é, e hoje lá foi o João Preto. E por falar em João Preto,
me parece que vocês não se davam, né?
— Sempre tive u'a desconfiança com o negro, seu delegado...
— O senhor parece que está com medo, está incerto!...
Custódio foi, outra vez, à janela, e disfarçou, olhando para o
céu:
— 'liou desassossegado com esse tempo; se não chover, `tou c'a
colheita perdida. Se ir tudo bom ainda não dá pra pagar o que deve...
Faz muito tempo que não chove.
— Mas o senhor, Custódio, não veio aqui para me dizer isto.
— É... O caso é que faz muito tempo que (tou pra modo contar
um trem pro senhor, mas a falta de coragem não deixa.
— Ora, com a autoridade não se deve ter rodeios: vai-se logo
nos fatos. O que queria contar?
Custódio fez menção de ir à janela, mas o delegado adiantou-se
e fechou-a. Puxou a binga e fez fogo, escandalosamente. Chupou o
cigarro e acertou o fogo com o fundo do isqueiro. Cuspiu comprido
no chão. Disse, sem olhar na cara do homem:
— Trem besta é "arreceio": `tou que faz muito tempo pra modo
contar um sucedido e vai só dilatando.
I 126 I
SERTÃO: O RIO E A TERRA

— Por que não contou antes, ou é coisa sem importância?


— De muita importância, seu delegado... De muita importância...
— Coisa de muita importância não se deixa pra depois, conta-
-se logo.
— Não podia, não, senhor!... É trem de muito tempo mesmo,
mas agora é que deu no jeito... Assim mesmo não ( tou dando jeito.
— Então, o que é?
— Não posso contar tão depressa, seu delegado: trem de muito
tempo é preciso calma pra modo ir se lembrando...
— Pois lembre-se.
— Se o senhor não me avexar... Faz muito tempo que `tou que-
rendo contar pro senhor.
— Quando se deu?
— Faz muito tempo...
— Faz tempo, mas quando? - bradou a autoridade, irada.
— Muito tempo, sim senhor - repetia, encabulado e até arre-
pendido de estar ali, a testemunha.
— Ora, pelo santo amor que tem em Deus... O que foi que
aconteceu?
— Um assassinato que vi, mas faz muito tempo...
— Assassinato? Onde? Quando? Quem?
— No grotão...
O delegado não havia se esquecido do picuá de pedras, mas
não sabia de nenhum assassinato no grotão, pois encerrara o caso do
capangueiro como acidente.
— Quando foi isto?
—Faz muito tempo... Espera assuntar... - olhava o teto, com a
mão a alisar-lhe o queixo, onde tinha uma moitinha de barba.
— Quando, mais ou menos?
— Ah... Faz muito tempo!... Bem antes d'eu casar c'a Maria.
— E quando o senhor se casou?
— 'liou reinando... Faz bem tempo, já: um lote de tempo. A
Maria já (tá com três filhos... O caçulinha já `tá com muito tempo que
(tá andando ...
I 127 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

O delegado deu um pontapé na cadeira e dirigiu-se à porta, bra-


bo, nervoso até não ter mais onde. Ia sair, talvez até correndo, mas,
depois, arrependido, e com um pouquinho mais de paciência, voltou.
— Faça-me o favor de dizer quem morreu no grotão, quem
matou e quando foi!...
O pobre homem estava altamente aturdido e só não chorava
porque sempre condenou homem que chora. Um arrependimento
profundo queria tirá-lo dali e que fosse para o inferno aquela confis-
são. Nunca tinha confessado nem com um padre, coisa que se sentia
culpado, pois ocasiões para isto, não lhe faltaram, nas desobrigas.
Agora estava ele ali, humilhado como qualquer preso, na cadeia, por
um delegado que nem lá essas coisas era. Delegado besta, bruto, cha-
to, sem um pingo de paciência...
— Quem morreu e quem matou eu falo, mas quando não sou
capaz, porque faz muito tempo e não me lembro.
— Deixa o tempo de lado e diz o resto: quem matou? quem
morreu?
— Se não fizesse muito tempo, eu contava tudo direitinho,
mesmo.
— Homem de Deus! Deixa o tempo! Se não fosse pela minha
obrigação em ouvi-lo, eu cá não estaria! Resolva de uma vez, antes
que eu saia correndo daqui!...
— Não carece, não senhor; se o senhor sair eu também aqui
não fico, não senhor...
— Conta, homem! Por Jesus! Conta!
— `Tá bom, o tanto de tempo o senhor não quer saber, né?
— Não, somente o assassino e o morto. Quem matou?
— An! 'liava cuidando que o senhor fazia questão de saber o
tempo que faz.
— Não.
— O João Preto de Nenzinha... Foi ele, sim, senhor...
— Ora, sim, senhor! Tanta coisa para confessar um crime do
João Preto... Aquele já morreu, já foi pros inferno; acha que vou pren-
der um defunto? Por que não contou quando ele estava vivo?
I 128 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

— Faz muito tempo que (tou pra contar, mas...


— Olha aqui! Este "muito tempo" do senhor não me é mais
tolerável: vai embora antes que eu fico louco! Faz muito tempo que já
estou cheio! E o senhor fica muito tempo sem vir aqui, ouviu?
Pegou o homem pelo braço e levou-o porta a fora, pondo-o na
rua. Depois, fechando-a bem, pensou, consigo, limpando as mãos,
uma na outra, como quem termina uma tarefa: "Faz muito tempo
que eu não vejo um tipo tão bobo e chato...".
Custódio foi até o casebre do João Preto e, vasculhando tudo,
encontrou, numa fresta da parede de barro batido, o picuá valioso.
O João não havia vendido nada. Disse ter descombinado com o de-
legado e que não ficaria mais ali. Não era homem para ter inimigos.
Gostava de andar no povoado de cabeça erguida. Iria embora mes-
mo, não tinha jeito. Ninguém duvidou.
Vendeu o que tinha e foi para Uberaba, onde dispôs das pe-
dras, como capangueiro.
Hoje cria zebus.

ELUCIDÁRIO

"EMPREITEIRO": Palavra de cangaço que significa aquele


que pega um "serviço" ou um "trabalho" para fazer. Dizem
que, certa vez um fazendeiro se indispôs com um seu vizi-
nho que lhe havia soltado o gado na roça. Este, no auge da
raiva, procurou um "empreiteiro" para matar o tal vizinho.
Ofereceu-lhe quatro contos de réis, mais uma mula muito
boa e ainda uma carabina, não menos boa. Este assassino
profissional residia na cidade. Ficou assentado o "serviço"
para o dia tal. Na noite, véspera do crime, o fazendeiro fez
um exame de consciência e não pôde dormir. Arrependeu-
-se do negócio, pois ele não era disso. Madrugou na casa
do "empreiteiro". A mulher disse que ele estava na igreja.
O fazendeiro alegrou-se com aquilo e dirigiu-se para lá.
129
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Entrou. O homem lá estava ajoelhado. O fazendeiro acer-


cou-se, cauteloso:
— Ainda bem que lhe encontrei. Vim lhe dizer que pode ficar
com os quatro contos, com a besta e carabina, conquanto que
não conte a ninguém, mas o "serviço" não quero mais não.
Que fica para outra ocasião. Matar um homem por tão pouco
não convém, não assenta em mim.
— Tarde demais, meu coronel: um "trabalhador" como eu, faz
o "serviço" é bem cedo: já estou aqui de velho, rezando pela
alma do finado...
CAPANGUEIRO: Comprador de diamantes, nos garimpos.
DIVINO PAI ETERNO: Interjeição em Goiás. É o "meu Deus"
dos goianos.
MALHADOR: Amassado no pasto ou no mato, por animais.
As antas e as capivaras também fazem malhador no barro das
margens dos rios.
PINOTEOU: Deu pinote: ficou de pé (animal). Saltar; em-
pinar.
ESCARAFUNCHAR: Procurar com reboliço remexer os obje-
tos; não deixar lugar algum sem busca.
CATA: Abertura no solo para se garimpar.
EMBURRADO: Calhau enorme: bloco de pedra que contém
minério.
GANGA: Invólucro onde se encontra a gema preciosa ou o
minério procurado,
SESTRO: Costume; vício.
TAMBORETE: Assento tradicional no sertão, de três ou qua-
tro pernas, com forro de couro cru.
AVEXAR: Apertar. Estou avexado pra ir embora.
REINAR: Pensar. Eu já reinava que isto acontecia.

1 130 1
A EXPEDIÇÃO

ito jovens cariocas, estudantes inteligentes e aventureiros,

0 tiveram interesse em estudar o nosso Estado, in loco, e em


todas as suas minúcias.
Quiseram ser os primeiros a levantar uma carta oficial sobre
os acontecimentos históricos da era das "bandeiras" e do Império.
Nenhum deles era formado: todos estudantes, mas estudantes esfor-
çados e peitudos, que, em vez de passarem as férias em lugares civili-
zados, destinaram-se para Pilar.
Não vieram com armas para enfrentar índios, onças e sucuris,
mas, sim, com instrumentos de prisão para os devidos reconheci-
mentos e estudos.
O preparo para a viagem durou seis meses. Os componentes
foram escolhidos a ponta de dedo, com testes e tudo. De cada matéria
se escolheu o melhor aluno. Foi por isso que veio moço novo e velho,
forte e fraco, feio e bonito. Não interessava o tipo e sim a capacidade
intelectual. Houve petição ao governo federal, para auxílio. As facul-
dades emprestaram tratados. A Aeronáutica cedeu-lhes um avião.
As casas do ramo de instrumentos cederam-lhes os aparelhos
necessários, com a condição de serem devolvidos para uma exposição
permanente, com os dizeres: "Serviu na expedição que explorou Goiás".
Além dos oito, veio um talentoso estudante do quinto ano de
medicina, para prestar os seus serviços à expedição.
Luiz Carlos de Andrade, o da "ETIMOLOGIA' trouxe lentes e
um líquido para clarear inscrições e ver a origem das palavras. Carlos
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Bourdelaine, EPIGRAFO, carregava enorme tratado sobre esta arte


de decifrar as inscrições. João de Deus, o mais compenetrado de-
les, conhecia grego muito bem e estava apto para se aprofundar nos
mistérios de Pilar: era, mesmo sendo estudante, a maior autoridade
em MITOLOGIA, da Capital da República. Frederico, cujo segundo
nome é muito comprido, muito difícil de escrever e, também, muito
pior para entender, conhecia os terrenos palmo a palmo, classifican-
do-os de primários, secundários e terciários.
Como paleontologista diferenciava, nessas funduras do terre-
no, um osso de uma galinha de um de mamute; uma canela dum
defunto ou esqueleto qualquer, da de um fémur do mais remoto ban-
deirante. Qualquer objeto encontrado era trazido para o João Grant,
para que ele determinasse a idade, pelo seu grande conhecimento de
ARQUEOLOGIA. Caetano Belini, o mais prosa de todos, paleogra-
fista, decifrava as palavras. Wellington Grawford, estudante de Lon-
dres, em férias no Brasil, estava sob a bandeira da CRONOLOGIA e
consultava a João Grant sobre o tempo. Bernardo de Sousa, filologis-
ta, desejava estudar as línguas e as literaturas encontradas. Juvenal
Machado fazia o boletim meteorológico três vezes ao dia.
Chegaram a Pilar num carro do governo do Estado. A Prefeitu-
ra e os cartórios foram-lhes cedidos para verificação de documentos.
Instalaram-se no grupo escolar. Dormiam e cozinhavam lá. Trouxe-
ram tudo para que não fossem privados de qualquer conforto. Ti-
nham máquinas para filmar e fotografar.
Vasculharam toda a papelada. Fizeram montes de cadernos
anotados. Visitaram todas as imediações. Estudaram os restos da an-
tiga fundição. As escavações, os desvios d'água, os cortes, os muros
de pedras feitos pelas mãos dos escravos. Correram aparelho de pro-
curar ouro pelas paredes da igreja, dos casarões, em tudo. Fizeram
levantamento de tudo. Copiaram farta documentação desde o tempo
do Império.
Houve muita gente do lugar, que se entusiasmou com a causa
e com os rapazes, dedicando-lhes tudo que fosse possível. O Ana-
cleto, estudante do Liceu de Goiânia, que também estava passando
1 132 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

as férias na sua terra, acompanhou-os muito. Fez-se íntimo deles.


Enfiou-lhes conversa: "Goiás se projeta. Hoje dá gosto ser goiano.
De primeiro a gente quando viajava para o Rio, precisava de andar
mentindo, dizendo que era de São Paulo ou de Minas. Se caísse na
asneira de dizer que fosse de Goiás, Deus nos livre. Era um tal de
perguntar se aqui havia gente, se havia muita onça, se sucuri não
enrolava na gente, no meio da rua; se os índios pegavam e mais
uma infinidade de humilhações.
Depois que surgiu Goiânia a coisa mudou. Com a mudança da
Capital Federal, então, até dá gosto ir ao Rio de Janeiro.
Só agora é que sabem que Goiás foi o berço e o sonho dos ban-
deirantes. Que em Goiás se fundiram cachos de bananas de ouro para
se remeterem a Portugal. Que o maior sino do Brasil foi fundido em
Pilar. Que o ouro e as gemas faiscavam ao sabor do sol. Que a maior
ilha fluvial' do mundo é formada pelo Araguaia, o rio mais piscoso
da Terra. Os maiores feiticeiros são ou foram de Crixás. No tempo
do Império, quando em cada cinco cidades de São Paulo havia um
advogado, aqui, em Pilar, já tinha= quarenta, sendo que dezesseis
deles eram formados em Coimbra."
Ouviram-no, educadamente. Houve quem tomasse notas.
Acompanhou-os, em tudo, o João Clemente (Quelemente), sem so-
licitação, sem remuneração, sem condição nenhuma. O Clemente é
um desse tipos que existem em qualquer cidade do interior. Se não
tivesse, era preciso arranjar um.
Foi com eles que fumou, fartamente, cigarros de papel e to-
mou, pela primeira vez, uma dose de uísque.
Ele demorou muitos dias para pescar alguma coisa sobre a pre-
tensão dos rapazes. Vendo que eles se interessavam muito por letras
feitas nas pedras, nas árvores e nas paredes, se ofereceu:
— Eu sei adonde tem u'a pedra com uma "letraiada velha", des-
botada, muito antiga.
Fizeram roda.
1 Nessa época, ainda não existia o estado de Tocantins, e a ilha do Bananal pertencia ao
estado de Goiás.

1 133 1
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

— Onde?
— Acolá, pra banda do Gorino...
— É muito longe?
— Nada; é ali mesmo... É de grito.
— Em um dia se vai lá?
— Vai não. Quer dizer: ia, mas caiu ponte, enxurradão acabou
com estrada. A gente tem de ir montado, dando volta por de trás.
— Estamos perdendo tempo, pessoal; uma coisa, uma oportu-
nidade desta não se perde.
— O senhor, seu Clemente, poderia nos arranjar os animais?
— Demais da conta... "Vanceis" paga o dono, paga eu também...
— Ora, não queremos nada de graça. Vai ver se pode arranjar isto.
Clemente arrumou a burrada. Os "cientistas" carregaram uma
bagagem enorme, com todos os instrumentos, com todo o conforto,
em exagero.
— O que está escrito na pedra, seu Clemente?
— Sei não. Não conheço o significado das letras: sou um analfabeto.
— Coitado...
— Coitado nada; nunca usei...
— Interessante.
— Muito. Eu levo "vanceis" lá, uai! Aí «vanceis» lê.

Fizeram madrugada. João Clemente ia na frente, montando


um burrão. Três bestas carregavam os utensílios e os mantimentos.
Os "cientistas" vinham, no meio, cada um em um burro. Os macha-
deiros, foiceiros e demais candangos iam a pé, empunhando as ferra-
mentas. Em espaços muito curtos, paravam, coavam café, tomavam
uísque, e comiam latarias. O Clemente estava tirando a barriga da
miséria. Ele puxava a expedição, mas sempre virado para trás, a fim
de não perder um nada de tudo. Não é difícil de se conceber que
vagaram mais de três dias pelo mato, pelas serras, pelos brejos, pelos
campos. Falta de orientação do guia e excesso de acampamentos.
A turma já havia perdido cantil, garrafa térmica, bomba de
chimarrão, rasgado a roupa, tudo. Decifrar aquela inscrição estava
I 134 1
SERTÃO: O RIO E A TERRA

custando muito caro e levando muito tempo. Afinal de contas, valia


a pena por tal preciosidade. Seria este, talvez, o mais precioso docu-
mento da expedição.
O topógrafo fazia a carta geográfica. O meteorólogo anotava o
clima. Conferiram os pontos cardeais e analisaram a História, a fim
de saberem quem andou por ali, naquele tempo, e qual o itinerário
tomado. Aquela inscrição seria um marco ou uma posse de mina. O
segredo de um tesouro. Poderia ser, também, confissão importante
do bandeirante moribundo. Ainda, alguma advertência sobre os ín-
dios, ou um guia indicando o caminho de uma grande descoberta.
Os rapazes estavam ansiosos.
João Clemente, numa manhã, antes que levantassem acampa-
mento, saiu para um reconhecimento do terreno. Voltou, depois, di-
zendo estarem bem perto da pedra. Foi o mesmo que tacar pólvora
no fogo. Todos se movimentaram. Clemente foi dando explicações,
com ares importantes:
— Essa pedra é muito grande; é enorme. Nós vamos chegar por
de trás dela. Se fosse pela estrada avistava de frente, mas a gente rodeia.
Andaram duas horas, quando Clemente levantou a mão em si-
nal de parada.
— A bicha lá! As letras estão do outro lado. Vai ser danado de
ruim da gente chegar, mas a gente rodeia. Tem umas descidas bra-
bas pra descer. Tem também um brejo danado de grande pra passar.
Assim mesmo a gente avista a pedra de longe, mesmo de frente. Pra
chegar, outro sacrifício danado.
Comemoraram com uma rodada de uísque, o deparamen-
to com a pedra, mesmo vista por trás. Deram início ao sacrifício,
descendo uma escarpa íngreme. Quebraram as pernas de duas mu-
las. Clemente desarreou-as e deu-lhes um tiro na cabeça, de mise-
ricórdia. Ainda bem que foram as pernas das mulas e não as deles.
Quando caíram no brejo, então, foi que a coisa esteve dura. Mais três
animais atolaram e não houve força nem reza que os arrancasse de
lá. Clemente deixar os animais vivos para os urubus comerem, era ju-
diação. Meteu uma bala na cabeça de cada e prosseguiram a viagem.
135
CICLO DO SERTÃO DE BARIANI ORTÊNCIO

Quando saíram do pântano, os animais restantes estavam en-


garupados, rumo à frente da pedra. Os "cientistas" pagariam os ani-
mais. O que interessava era a inscrição.
Quando já exaustos, sujos, rasgados, quase famintos, depara-
ram com a pedra, a pouco mais de duzentos metros, houve um aglo-
meramento lento, de respeito. Tudo era silêncio.
Os homens não piscavam, não falavam. A jornada estava finda
e com proveito. As peripécias anteriores vieram valorizar em tudo,
aquela missão.
Caetano Belini puxou o binóculo do estojo e, com grande re-
verência, regulou as lentes. O silêncio, em torno, era completo. So-
mente a Natureza falava. O homem do binóculo deu passos rápidos,
à frente e calcou o aparelho aos olhos. Carlos Bourdelaine arrancou-
-lhe o binóculo e levou-o aos olhos, com fúria. João de Deus fez o
mesmo. Outros, imitaram-no, sem que o silêncio tivesse alteração. O
secretário da expedição, que vinha fazendo atas e ditados, ofereceu-
-se para ser o escriba da nova inscrição:
— Tomo notas, chefe?
— Pode tomar. Escreva bem claro, esta grande descoberta:
"CONTRA DORES? CAFIASPIRINA BAYER". E acrescenta,
se quiser: "SE O PRODUTO é BAYER, é BOM".
João Clemente, inocente, contrito, aguardava as ordens.

ELUCIDÁRIO

GORINO: Lugarejo de romaria.


CANDANGO: Trabalhador deslocado. Em Brasília, a expres-
são era essa a todos os assalariados. Antigamente os africanos
designavam assim os portugueses.

I 136 I
A
Coleção Sertão é uma edição de preservação, cult
conhecimento da trajetória literária do escritor Wa
Bariani Ortencio. Paulista mas goiano de coração
traz nesta coleção a sua obra-prima sobre o sertão
tanto viveu e até mesmo contribuiu a consolidar.
O sertão de Bariani descreve uma vida que já virou fie
muitos de nós. Ao republicar suas três grandes obras, reabr
cussões sobre o que foi para o homem e para o Brasil ir para
do planalto brasileiro. Hoje para alguns um Eldorado e pa
um inferno. Essa dicotomia nos personagens e nas imagens
terra nova são as imagens que se enraízam nas memórias d
lê Bariani Ortencio.
Éfácil para quem percorre as páginas de Bariani, um Anh
moderno que observa e reinterpreta o mundo que o cerca
brando os leitores com tão vasta obra.
A sua vida foi uma aventura na mesma intensidade de
mances que trazem um apelo ao pensamento, ao sonho e ao

VICTOR

t
A
Coleção Sertão é uma edição de preservação, cultura e re-
conhecimento da trajetória literária do escritor Waldomiro
Bariani Ortencio. Paulista mas goiano de coração e alma,
traz nesta coleção a sua obra-prima sobre o sertão que ele
tanto viveu e até mesmo contribuiu a consolidar.
o sertão de Bariani descreve uma vida que já virou ficção para
muitos de nós. Ao republicar suas três grandes obras, reabre as dis-
cussões sobre o que foi para o homem e para o Brasil ir para o centro
do planalto brasileiro. Hoje para alguns um Eldorado e para outros
um inferno. Essa dicotomia nos personagens e nas imagens de uma
terra nova são as imagens que se enraízam nas memórias de quem
lê Bariani Ortencio.
Éfácil para quem percorre as páginas de Bariani, um Anhanguera
moderno que observa e reinterpreta o mundo que o cerca assom-
brando os leitores com tão vasta obra.
A sua vida foi uma aventura na mesma intensidade de seus ro-
mances que trazem um apelo ao pensamento, ao sonho e ao tempo.

VICTOR TAGORE

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