O Livro de Vidro Ensaio

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Livro de Vidro

A bola que lancei quando brincava no parque


Ainda não tocou o chão.

Dylan Thomas

Sei que vou morrer não sei o dia. Levarei saudade da orgia. Sei que vou morrer não
sei a hora. Levarei saudade da aurora. Pensava que Aurora e Orgia eram as namoradas
do cara, quando ouvia minha mãe cantarolar, revirando os olhos e empostando a voz
como uma vedete de teatro de revista.

Mas da voz que cantava agora, a do vizinho no chuveiro, eu não conhecia o rosto nem
a expressão, apesar da intimidade construída em anos de troca de ruídos graças à
fabulosa acústica do pátio interno do prédio, que me impedia de saber sequer se
morava no apartamento ao lado, ou no de baixo. Ao ouvi-lo, porém, era certo que
queria morrer – eu também – numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba.

Durante muitos anos achei que um dia viria assim, de repente, um jeito de escrever
que seria meu – uma voz – e a partir daí eu seria escritor. Voilà. Para dizer enfim sei
lá o quê, isso que precisava transmitir. Por necessidade. Sempre detestei o que é es-
crito por vaidade. Queria pegar os outros de surpresa, como o cantor de chuveiro.
Ou o funcionário de terno que um dia vi jogar papel cortado, lá no alto – era 31 de
dezembro – fazendo céu e chão se reverterem quando os pontinhos brancos
rebrilharam e puseram-se a subir, desafiando a gravidade.

Tem coisas assim, incríveis, mas que não dão história. Como aquela profusão de pon-
tos brilhantes rasgando o céu azul qual minúsculas naves sem rumo ou diminutos frag-
mentos de sol. Eu não tentaria, como Maiakovski, vencer o astro-rei – então simples-
mente entrego-me a seu abraço quente e úmido. Como quem se rende. Basta a von-

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tade de morrer com cadência, de morrer naquela luz, no meio de todas aquelas pes-
soas olhando para cima e girando, girando no Largo da Carioca.

Negociar com o sol só podia mesmo ser o sonho de um russo, coitado, que jamais
pôde encontrá-lo totalmente. Que não faz ideia do que seja o verão no Rio de Janeiro:
tudo branco de luz estourada, o sol habitando cada pedaço da cidade e das pessoas.
Aquela vida toda espalmada em morro e céu, gente e mar, entreabrindo tudo a suor
e sal. Como entrar na baía de Guanabara na década de 30 e se deixar lamber por sua
boca desdentada. Como subitamente abrir os braços em gesto de conquistador – mas
também da vítima ao levar o tiro no peito.

Nesta cidade extrema eu exercia meu nomadismo e minha tristeza, meu desdém por
Rosa. Rosa que, bem sei, fiz de tudo para que me deixasse. Como se isso que chamam
felicidade devesse escoar pelo ralo, para ser vivida até o fim, como se cada frase de
amor devesse ser decomposta em letras que já não digam nada. Como se, em vez de
acenar e entrar no ônibus que enfim surgiu na rua, fosse necessário pegá-lo com as
mãos, soerguê-lo, revirá-lo com todos os passageiros. Como se a máquina do mundo,
quando de repente se apresenta à gente, num clarão, tivesse que ser desmantelada
peça a peça, amassada, pisada. Mordida e, enfim, cuspida como chiclete.

Na última conferência que dei, ainda interpretando meu papel de professor de litera-
tura, havia uma moça me olhando como se fosse eu a tal máquina do mundo, a ela de
repente se abrindo. Era um olhar grave. Não achei que fosse uma paquera. Fiquei
desconcertado. Era Drummond o responsável, com certeza, não eu. Sabia que era eu
mesmo uma mentira: estava ali como um títere, um boneco de ventríloquo. O que
não sabia é que o boneco muda a voz do dono. (Rosa tinha saído de casa na véspera,
e eu ainda não havia sentido nada). Por isso talvez a máquina fosse diferente, na minha
voz. Ela não permitia que simplesmente, graças à poesia e à minha lassidão, tudo se
refizesse e eu prosseguisse de mãos pensas pelas calmas estradas de Minas.

Ela era terrível – e por isso tudo talvez se refizesse, sim, graças à poesia, mas tornando-
se totalmente diferente. Tudo destrocado como por catástrofe, naufrágio, grande en-
xurrada. A literatura transformando tudo (inclusive e sobretudo: eu) – mesmo que
ninguém pudesse vê-lo.

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A moça me esperava – e esse era meu medo – quando saí do auditório, extenuado,
respondendo banalidades aos comentários imbecis que vinham me acompanhar, gen-
tis. Bastava seu olhar para revirar aquela cena ridícula e me botar no meio do temporal,
do terremoto, da vida real. Tive medo.

Esperava daquela boca a pergunta definitiva, o chamado impossível. Qualquer coisa.


Ela calava num olhar tão cheio de palavras que o chão ameaçava romper-se sob o peso
de Drummond e de todos os livros, toda história da literatura mundial repetindo uma
mesma frase insensata que tentamos contornar com tanta letra, tanta tinta, tanto
desenho no papel. Me doía o centro do tronco, cavando um ponto de anatomia incerta
que me obrigava, subitamente, a curvar-me um pouco para frente. Todas as de-
formações, toda a feiúra da humanidade eram minhas, e eu era um outro, um outro
deplorável, digno de toda a compaixão do mundo.

Ela nada disse. Apenas estendeu o braço, mirou-me com seus grandes olhos negros e
cerrou a boca fina, enquanto entregava-me algo. Era um livro. Ou melhor, um maço
de papel atado por uma fita, à maneira antiga. Eu, que sempre fugira com mal-humor
e altivez de escritores iniciantes em busca de algum reconhecimento, era agora, eu, o
iniciante, querendo e temendo pegar a moça pelo braço. Deixei que partisse.

Rosa olhou para o canto da sala e disse até as baratas estão morrendo, nessa casa.
Antes que ela passasse da barata para o meu pau, retruquei que as baratas só aparecem
quando já estão quase morrendo, querem vir do underground para a luz só para
mostrar-nos a podridão, a sujeira definitiva. Missão final: trazer aos homens o asco
absoluto, passear em seus pratos, talheres e biscoitos antes de, como baratas-bomba,
se oferecerem a nosso chinelo.

Pode parar com seus papos-cabeça ridículos, não tô interessada na sua filosofia barata,
eu quero é sair dessa vida de merda, disparou Rosa. Eu é que era o homem-bomba –
calei – explodindo tudo junto comigo, só que sem nenhuma causa a defender. (ou
talvez eu fosse a barata, simplesmente, como bem sabia Kafka).

O que Rosa não podia imaginar é que o homem-bomba ama a sua bomba mais do que

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a si mesmo.

Minha cabeça doía muito, acho que não tinha conseguido dormir aquela noite. A pior
insônia é aquela que ignora a si mesma. O cara não pode nem curtir sua falta de sono,
aproveitando para enfim ler Crime e Castigo ou tomar whisky e ver mulher pelada na
internet. Ele acha que dormiu, mas alguém roubou seu sono. (e isso, pensando bem,
deve ser como a morte).

Dindon ele vai atender e é a gostosona do 603, de toalha, não, aí é muita esculham-
bação, de shortinho, perguntando se ele não teria uma xícara de açúcar. Bom, eu era
pequeno, não tinha talco e mamãe…

Ou: é o preto americano do seriado de tv, com uma estranha arma na mão: serviço
de extermínio de baratas. (por que escrever assim, sempre esse narrador meio fodido,
meio gostosão, Heminguay ou aquele garanhão cubano, tanto faz, escrevendo como
se não tivessem nem aí para nada será que o cara para ser bom escritor tem que ser
babaca e não conseguir nem ficar de verdade com uma mulher?)

Tinha uma história fantástica, que ela não sabia mais onde tinha lido ou ouvido, de uma
velhinha que cochilava várias vezes ao longo do dia, enquanto rezava, via tv ou mesmo
conversava com Maria, a empregada, ou alguma visita ocasional. Ela adormecia e a casa
ia ficando em silêncio, até que nada mais se ouvia. O barulho dos carros e das crianças
na escola próxima, a conversa no boteco da esquina provavelmente prosseguiam, na
rua. Mas a empregada achava que o sono da dona Zulmira sugava todo som ao redor,
e tinha medo que a idosa bela adormecida prendesse para sempre a cidade em seu
feitiço.

Um ano depois de começarem os episódios de silêncio, uma questão começou a


atormentar Maria, noite e dia: haveria som nos sonhos da velha? Várias vezes lhe fez
a pergunta e sempre obteve respostas evasivas. Será que todo som do mundo ia para
o sonho de Zulmira – algazarra total, todas as línguas e ruídos, todas as declarações
de amor e os xingamentos, todas as falas soltas que as crianças emitem quando
dormem? (Maria adorava as palavras que sua filha, quando pequena, dizia dormindo,

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elas saíam pela metade e assim era melhor, pois a mãe ia com elas completando as
frases de seus próprios sonhos).

Na primeira vez em que o silêncio aconteceu, Maria, assustada, acordou a senhora,


que não entendeu (estaria variando? ou apenas surda?) do que se tratava. A moça
passou então a vigiar todo cochilo e logo cada piscar de olhos da patroa. Quando os
barulhos iam sumindo e ela estava na cozinha ou arrumando um dos quartos do antigo
casarão, corria para perto da poltrona da sala e ficava imóvel, sempre a dois passos de
Zulmira. Quase nem respirava, concentrada em mirar fixamente a velha, para que ela
acordasse e o feitiço não se completasse.

Um dia, chegou à cidade uma compania de circo. Atravessavam as ruas e todas as


paredes o grito solene do diretor, o bumbo, a corneta estridente e o burburinho
alegre das crianças pobres do bairro, quando a velha subitamente caiu no sono. Maria
veio e fixou o olhar nas pálpebras fechadas, repetindo aflita, em silêncio, abra abra abra
abra. Abra: a velha arregalou os olhos. Estava morta.

Quando Tatiana entrou, Paulo ficou inquieto. Ela irradiava uma estranha força, em sua
extrema fragilidade.

Ausente dela mesma, sem saber de si – ele pensou. Ela aceitou uma bebida, e começou
a falar, devagar. Que gostou muito da palestra. Também queria ser escritora, era esse
seu enorme constrangimento. Pôs-se a rir e logo a gargalhar, num súbito desembaraço
que surpreendeu o homem. Como se bastasse querer... No início, ainda adolescente,
começou a pôr no papel seus sonhos. Toda noite.

Depois da morte de Zulmira, o silêncio ficou morando dentro de Maria, cavando


brechas entre as falas dos seus sonhos. Não que estes se transformassem em cinema
mudo. Aos poucos, cada sonho seu foi se tornando silêncio, um silêncio espesso onde
mostravam-se, mortas, todas as letras. Maria acordava suada, gritando. Ou dormia
apenas, pesada, enterrada em silêncio durante 15, 16 horas. (Paulo lembrou-se então
de Maurice Blanchot: o silêncio é impossível).

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Não era ele quem escrevia bem. Era seu irmão Maurício, o intelectual designado pela
mãe desde os três anos, quando teria “lido” letreiros na rua como quem decifra uma
escrita milenar, reinventando palavra e língua aos olhos da mulher boquiaberta. (ou
como quem lê por outro, no lugar de outro, em uma espécie de leitura psicografada,
ele pensa agora). Paulo tinha 9 anos quando brincava com o irmão no rio da fazenda
e o barranco a enxurrada o redemunho o horror o levou diante de seus olhos arre-
galados.

Talvez dessa culpa venha a tarefa de escrever. Em lugar do morto. Cada palavra sua
chora até hoje, página sobre página, toda a escrita que o menino tinha encapsulada em
si aos 9 anos de idade. Seu ideograma.

Tatiana subiu uma, voltou outra. O elevador e a portaria eram as mesmas, mas havia
chovido forte dentro de seu peito. (nos olhos também). Um pássaro soltou de repente
um grito de criança. A rua era aparentemente a mesma, mas na verdade os carros
tinham mudado de cor e as calçadas haviam se tornado mais largas e vazias. A suave
ladeira parecia mais íngreme, e talvez o relevo se refizesse, e se revoltasse ainda, sob
seus pés. Cada passo muda o mundo.

O sonho era cinza, não, não, era rosa, cor de rosa, tudo meio lavado como uma aq-
uarela, ou então como se tivesse um véu na frente, na frente da tela, quer dizer, da
câmera, sei lá – qual será a câmera do sonho rá rá rá. Não era meu olho, esse da
câmera, eu estava lá dentro e falava, falava sem parar, como se tentasse me explicar
para alguém, estava aflita como se a pessoa não me entendesse, ou melhor: nem me
visse. E a cena se repetia e repetia, eu ali, e percebi de repente: eu não conseguia parar
de falar. Como um vômito, sabe, eram jorros e jorros de palavras, frases que ninguém
entendia, tudo ali saindo pela boca e meus olhos – mas meus olhos, eles estavam
mortos. (Rosa quando contava seus sonhos fechava os olhos. Era meio ridículo, seu
semitranse. Às vezes dava um pouco de medo, mas Paulo achava que nem eram sonhos
que ela contava, eram coisas inventadas. Ela precisava inventar. Vai ver que só sonhava

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coisas banais, cenas cotidianas que repetiam eventos da véspera, e da antevéspera, e
do dia anterior, e do mês que passou – refazendo, no sonho, a vida boba, a vida sem
sentido – mas ao revés.)

Isso ele lembrou ao fechar a porta (e os olhos também, lentamente), à saída de Tatiana.
Ouviu de novo sua voz dizendo baixinho – quero você. Seus membros amoleceram
como se todo seu corpo tivesse que voltar à terra e tornar-se mineral. A saliva dela
estava na sua boca, no seu pau, nos seus peitos, e ficaria ali depois da ducha, e mesmo
depois de muitas duchas.

Campainha. Ele abre a porta e um preto alto e forte pergunta com voz empostada –
a Tatiana se encontra? Tatiana? Paulo hesita, deve estar apaixonado – o cara diz
Efigênia e você ouve Maria, sua amada. Mas o sujeito tinha mesmo dito o nome e sabia
bem de quem falava – estou procurando aquela mulher magra de vestido azul que vi
entrar no apartamento, a escritora. Ahn... Para quê? Bem, gostaria apenas de lhe pedir
um autógrafo, sou o Vizinho do 603. Ele tira então do enorme bolso do sobretudo
superfashion um livro, um livro pequeno e estranho, com um título discreto, no canto
direito superior: o livro de vidro.

Custa a Paulo botar uma roupa minimamente apresentável e sair, depois de fazer a
barba e escovar os dentes. A rua, monótona em seu burburinho perpétuo. A cidade
não acaba nunca, e se ele se dignasse a atravessá-la seria o mundo todo que percor-
reria, sempre igual a sua esquina. Compra o livro, depois senta-se no banco ao lado
da estação de metrô.

Um menino azul, ou transparente, um menino feito de água – devia ser assim, um filho,
inundando tudo na vida da gente. E então perder um filho o que seria? Uma espécie
de enxurrada, a vida virando barranco, cerrado, grota. Veias abertas no chão. Todas
as palavras dele se desdizendo, se escrevendo pelo avesso, as letras se desmontando
e empilhando como troncos, como folhas, cadáveres.

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O canto sugando o pássaro.

Tatiana ouviu e soube, no instante em que os dedos de Paulo tocaram seus lábios, que
para sempre estaria ali, levemente ofegante, na espera daquele beijo. Ele introduziu a
língua devagar e os dois pareceram rolar um no outro como água na pedra, num rio-
rio sem fim.

Os pombos-ratos revoavam, o trânsito arfava adiante. Paulo levantou-se do banco, o


livro pendia aberto em uma das mãos. O mundo como o livro, virado, por um triz.
Um fusca azul-celeste parou no sinal, um menino lançou uma primeira bolinha no ar e
malabarizou-se junto com as demais. Um malabar não tem lugar, pensou. (e isso quem
disse foi Cildo Meireles). Seu lugar é um rápido instante.

Tatiana não podia saber daquilo tudo. De seu irmão, de seus sonhos grudados de calor
e mosquitos, vagando como barco no grande rio, dos livros todos e sobretudo
daqueles que eram grotas sob as águas, de suas braçadas em volta deles, brincando de
quase se afogar. O livro de Tatiana era ele – e não teria sempre sido este seu sonho,
essa sua busca?

Paulo perguntou porque você não disse que já tinha livros publicados e até "admira-
dores" e coisa e tal. Ela contraiu os lábios e disse coisas dispersas. Aprendeu com a
mãe a falar sem dizer nada, mas sempre se surpreendia e irritava diante da fala cotidi-
ana que sustenta tanta gente nesse não-diálogo. O que se troca, quando nada se diz?
Pura fala, voz? (talvez a poesia fosse isso, palavra qualquer recortada do cotidiano, da
vida. Pequenos fragmentos do grande malabarismo humano, suspensos no ar como
em súbita fotografia.)

A bola que lancei no ar, menino brincando, e que ainda hoje não tocou o chão – como
escrevia Dylan Thomas. Devia ser isso, um livro: aquilo que vira letra no papel-ar, e
sai papelando no céu azul.

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Atravessando a rua do catete, pensava como os mendigos loucos são diferentes dos
outros mendigos. Eles não buscam sobreviver, ganhar algum dinheiro graças à com-
paixão cheia de culpa dos passantes. Os insanos que habitam as ruas são a dobra da
cidade, eles marcam o ponto no qual a civilização, a ordem, a evolução – sempre a se
nomear na voz empostada de um diretor de circo – reencontram sua essência medi-
eval e explodem nos quadros de Bosch, nas caretas, no disforme, em ficção-carniça a
céu aberto. Os loucos andarilhos curvam a barra de ferro do tempo até quebrá-la,
para então mostrar a História como fratura exposta. (sob o sol ardido do meio-dia, o
cara passa surrado e rápido, repetindo sempre no mesmo tom a frase que ninguém
parece ouvir, e no entanto resume toda a história da civilização: o brinquedo assassino
ele não sai da minha mente.)

Era um homem no labirinto, tá? Aquele labirinto imenso, sem entrada ou saída, um
labirinto que talvez fosse o próprio mundo. Só que não tinha paredes, tinha letras.
Andar por ele ia formando palavras e frases, textos inteiros ou meras saladas de
fonemas – não importa, pois não havia mesmo ninguém para lê-las. Eram como as
linhas de Nazca, entende? Os indígenas ali, removendo por quilômetros a camada su-
perficial do solo para deixar à mostra outra coloração da terra e com ela formar
enormes desenhos que ninguém podia ver inteiramente. Se você for lá hoje e pegar
um aviãozinho, você estará ocupando o ponto de vista da divindade, percebe?

Ele odiava este “percebe” e resolveu ignorar a pergunta que, de resto, não aguardava
resposta. Mas arriscou: podia ser um labirinto de livros. Não, não. Muito borgeano,
quase clichê... No entanto era isso, sua vida, percebeu naquele instante: curtos trajetos
em todas as direções, tomando inutilmente palavras de um e outro livro, traçando em
ato frases que nunca ninguém lerá.

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O livro de Tatiana era simples porém múltiplo. Como uma só frase que se enrolava
em outras, dizendo a mesma coisa, sempre diferente.

Ela vivia em um prédio antigo, de portão muito alto e elevadores com marcador em
meia-lua. Havia livros por toda parte. Sobre mesas e cadeiras, nos cantos das paredes,
no chão. O quarto era amplo e vermelho e uma estrutura de madeira apoiava um
tecido finíssimo sobre a cama, formando o dossel com o qual Paulo sonhara desde
menino, cochilando sobre livros de contos árabes. Tudo estranhamente silencioso,
como que apartado por séculos da rua ruidosa, da urbe congelada no vidro das janelas.
Ela também, silenciosa. Beijou-o e sorriu, virando-se em seguida para a cozinha, buscar
um chá, e ele rapidamente colou numa estante, verificando os títulos com a urgência
de quem vasculha uma carteira. Quem seria aquela mulher foi a pergunta que o invadiu.
Mirou a geometria exata do parquet antigo e achou graça do clichê de romance poli-
cial.

Sonho sempre com minha mãe. Ela jovem ou velha, doente ou morrendo ou correndo
pelas areias escuras da minha infância. Ela se transforma sem parar, cadeira, mar, bolsa,
menina, todas as imagens do sonho são ela. Mesmo eu, que nunca sei onde estou em
cada sonho mas ali estou do modo mais belo e terrível, como uma cicatriz na pele.
Talvez no sonho eu seja minha mãe, tendo-a novamente, enfim – e pela primeira vez.
Feito tatuagem.

O portarretrato sobre a mesa detinha a própria imagem de Tatiana, só que um tanto


esmaecida, segurando no colo uma menina de olhos grandes e tristes. Mas o homem
ao lado denunciava a idade da cena, por seu bigode démodé ou sua camisa muito justa,
deve ser de jérsei. Ele destoava da gravidade tocante da dupla mãe-filha como um mal
ator interpretando Shakespeare.

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Não me lembro bem. Aliás, me recordo bem demais, esse é o ponto, descobri que
aquela lembrança tão vívida é, na verdade, uma fotografia. Nela tenho três anos (sem-
pre três anos) e estou sentada no chão, ao lado da poltrona na qual meu pai estava
sempre lendo. Eu, quieta, comia papel.

– E ele? Via? Dizia algo?

Ele estático, mergulhado num livro grosso, capa vermelha. Qualquer um dos milhares
de livros de sua biblioteca, sobre qualquer tema astrologia heminguay física revolução
russa poesia, qualquer livro da vasta biblioteca que é o mundo, ou um livro de Borges
que contém todos os outros, todos os livros jamais escritos – é isso: todos aqueles
que não chegaram a ser escritos. Especialmente aquele de Mallarmé, o do mundo que
só existe para caber num livro.

Não importa. O fundamental é saber quem estava do outro lado. Do lado de fora da
fotografia.

Quem tirou a bendita fotografia, de quem era esse olho que não podia ser meu. É isso
que não me deixa esquecer. Esse olho fora da cena é o dono disso. De quem é essa
porra de memória?

Outro lugar-comum: parecia-me conhecer aquela mulher há muito tempo, desde sem-
pre talvez. Podia ser o amor, claro, sempre refazendo a vida de trás para frente. Mil
dias antes de nos conhecermos, Tatiana certamente entreabriu a porta do banheiro
enquanto eu fazia a barba sonolento e solene, num desses momentos em que damos
um passo para trás e saimos, por um átimo, da cena cotidiana. Sem dúvida cruzei com
ela na saída do cinema, ou quem sabe até sentamos lado a lado, sem sabermos, no
escuro da sala, e vivemos à distância de poucos centímetros a cena de sexo mais to-
cante de nossas vidas.

Eu era o personagem de Hitchcock vasculhando a história da heroína enigmática para


salvá-la – sei lá de quê. Tudo nela era literatura, mas – diferente do homem do filme

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– eu sabia que não havia realidade escondida, e sim camadas e mais camadas de ficção
fragmentada, como na vida. Os grandes lances, as reviravoltas e peripécias não se
apresentam no ponto certo da narrativa, não há trilha sonora a nos preparar para a
grande revelação. O suspense está em cada dobra ínfima do que há de mais comum.

Não era a vida dela que eu buscava tornar real. Era a minha própria.

Acompanhou a longa estante como quem sobe uma escada, até chegar a sua borda,
que dava para a sacada. Tirou do bolso um cigarro e olhou para baixo como chamado
pelos carros e pelos passos apressados de uma moça que parecia saída de uma festa
dos anos 50, saia godê a esperar pela súbita lufada vertical do metrô para transformá-
la em Marilyn dos trópicos. A saia vermelha bateu excessiva na lateral da banca de
jornal e quase envolveu o homem grande, o preto bem vestido do seu corredor, o fã
de Tatiana ou seja lá quem for esse filho da puta. Paulo escapou instintivamente para
dentro da sala.

Você tem lido muito romance policial, zombou Tatiana quando ele falou do homem
na calçada. Vem tomar o chá.

Em algum lugar, Freud fala de uma tribo na qual o nome do morto torna-se tabu. O
chefe reúne a todos e anuncia o novo nome, e como esse nome em geral é também
um substantivo comum, muda-se ao mesmo tempo o nome do homem e o nome da
coisa. Todos saem empregando a nova palavra como se a tivessem aprendido aos dois
anos de idade. E a língua vai mudando ao sabor das mortes, transformando coisas e
gente.

Diz-se que em outras tribos as palavras-tabu não são substituídas por outras, mas
simplesmente deixam de existir, e o mundo vai encolhendo, junto com os homens.

A colcha era carmim e o vestido azul-ultramarino de Tatiana formava nela uma bela
mancha móvel, esparramando e contendo sua cor em uma dança sutil e primitiva. Ela
um pouco rouca, sorrindo: vem. Entrei ali como quem mergulha no oceano e o vestido

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tornou-se barco, e o vento batia em meu rosto com gosto de sal, as ondas faziam um
marulho espesso em todas as línguas do mundo e eu entendia enfim o mito da sereia.

Mais uma vez cruzava o Largo do Machado naquele sol ardido e na gente que não
acaba, o chão de pedra portuguesa encardida refazendo, com raízes de árvores, o
relevo que a cidade em vão tenta aplainar, e pensava no rio que escorre, raquítico,
escondido sob as buzinas da rua das Laranjeiras. Há chuvas capazes de refazer o corpo
do rio e vingar a natureza amordaçada, tornando a vida caudalosa e arrastando
homens-barcos para a Baía de Guanabara. Tatiana o esperava e isso também o ar-
rastava. Quem nos navega é o mar, dizem.

Ela, taciturna, outra e mesma. O apartamento, sombrio, tinha outro cheiro. Pela
primeira vez em minha vida, como quem abre um novo livro – porém já empoeirado
– li a dor alheia. Tatiana chorava ainda uma morte próxima.

Todas as coisas passaram a existir de uma forma diferente com aquela morte. Foi
preciso que tudo recebesse um novo nome, mesmo eu. Principalmente eu. Os outros
não percebem quando me chamam, mas meu nome agora é outro. Suas letras se tor-
ceram num espasmo para depois se espalharem serenas, grama do cerrado depois da
chuva. Quanto ao mundo: tirei as palavras de dentro de mim, dolorosamente, uma a
uma, parindo cada coisa que então se erguia lenta, pesada, definitiva. Desde que minha
mãe morreu, tornei-me árvore.

Posso dar alguns passos – lembrei-me de Éluard – sem cair (venho de longe). Mas
jamais tive minha vida em mãos. Afinal, ao fio dos dias, a vida não é mais que um luto
demorado. A dura necessidade de durar. A dura necessidade de durar.

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A dor daquela mulher era um monumento sem porta, uma pedra. Eu tentava dizer
algo, mas a dor grande e cega me encolhia como água de banho demorado. Eu tinha
que sair pela janela: a pelada de sábado, o livro de ontem, as chuvas e sua destruição
neste verão e a destruição nos verões anteriores, a vida é um verão que não para de
chover e levar o que estiver pela frente (alguma promessa no meu coração?). Talvez
não possa entender sua dor, nem toda literatura do mundo serviria para compreendê-
la, qualquer escrita é pó diante dessa letra magnânime e terrível. Passo os dedos nos
ombros da mulher estirada na cama, sua barriga poderia estar cheia de rosas, como a
projeção de um vídeo em sua pele morena, divirto-me em imaginar. Eu poderia enchê-
la de rosas com meu pau.

Ficou duro de novo, então me levantei. Tatiana parecia dormir, exausta de tanto cho-
rar. Eu via uma nesga de céu azul, alguns livros sobre uma tv antiga, caixinhas coloridas
sobre a mesa. No escritório, o computador estava ligado e, num toque, mostrou sobre
um fundo negro: escolha seu sonho. Uma curta narrativa surgiu em uma janela, seguida,
poucos segundos depois, de outro suposto sonho postado por alguém há poucos se-
gundos.

O sonho era tão real que parecia um filme. Eu estava numa lanchonete do centro e
você também estava lá. Eu tinha muito medo e não sabia de quê. De repente, com-
preendi. Havia um homem atrás da loja e sua mão espalmada como a segurar o prédio
e a remela nos olhos e alguma baba na boca e os pés nus eram o próprio chão e ele
nos olhava fixo e imóvel através da parede.

Ouvi um ruído e estremeci, talvez Tatiana tivesse acordado, minha pulsação disparou
como se tivesse sido pego olhando pelo buraco da fechadura. Pior: era como olhar
pela fechadura, é claro, e entrever algo muito importante e no entanto pequeno, sutil.
Algo está lá, e você o procura entre os elementos corriqueiros que compõem a cena,
em busca febril. É então, de repente, que surge na fechadura, do outro lado da porta,
um grande olho.

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Mas Tatiana dormia. Uma mão sobre a púbis, como sempre fazia, involuntariamente,
num gesto ao mesmo tempo pudico, infantil e extremamente erótico.

Volto rápido ao computador, e outra pequena janela já se projetava:

É festa em nossa casa. Uma de minhas pacientes está lá, e não parece nada bem. Levo-
a para perto da janela para examiná-la. Impressiona-me sua palidez contrastando com
o vestido negro e os olhos demasiado brilhantes. Quando ela abre a boca, sua garganta
mostra-se coberta de nojentas crostas brancas nas quais eu quase mergulho, tomado
de súbita vertigem. Seu pescoço alonga-se num túnel escuro onde bem sei que eu
mergulharia, se não despertasse rápido, o quanto antes.

Então aparece uma palavra e em uma de suas letras tento me segurar, aflito. Uma
palavra em grossas maiúsculas: assassino.

Saindo do prédio passei por um senhor branco de bermudas deitado sobre um grande
papelão estirado na calçada. Olhava para cima. Diferente dos belos adormecidos co-
muns no Largo do Machado, apagados quase mortos de tanta cola, crack ou cachaça,
tinha o cabelo bem cortado e as roupas não muito surradas, sandálias simples porém
novas e uma enorme barriga. Suas pernas estavam dobradas, um dos pés apoiado no
outro joelho, e ele olhava para o alto, imóvel, vendo pensamentos que se adivinhavam
graves, quem sabe poéticos. O Buda da rua, iluminado em seus olhos infantis, in-
diferente aos passantes e ao barulho que o cercava. Os moradores forneciam-lhe água
e comida como em sacrifício a um deus. A filosofia ou a poesia – quem sabe a mera
indiferença – o protegeriam do suor, da poeira e do frio. Ou talvez, como cheguei a

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cogitar uma noite, talvez ele saísse lá do subúrbio todas as manhãs e pegasse trem e
metrô, para voltar no final do dia, cansado de tanta labuta.

Na tarde seguinte, eu chegava na casa de Tatiana quando ele subitamente olhou para
mim – estava de pé, inesperadamente – e abriu um riso de imenso escárnio.

Tatiana, não é banal alguém seguir você durante dias. Pode ser corriqueiro em seus
escritos ou sonhos, mas não aqui, nesta cidade, hoje. Ontem cheguei em casa e chequei
com os porteiros: não há nenhum negro alto no meu andar. O cara quer alguma coisa.
Ok, pode ser que seja apenas um louco, um fã apaixonado, mas pode ser perigoso.
Um maníaco especialista em matar escritoras.

Era preto, o carro, claro. Com jeito de ter sido um carrão, uns 10 anos atrás. Primeiro
saiu o magrelo, paletó preto, óculos escuros. O barrigudo estava no volante e
demorou mais a sair. A roupa era a mesma e os óculos, parecidos. Saiu do carro e
demorou-se no meio da rua vestindo o paletó, naquela rua que parecia abandonada
ao lado do edifício com inusitado formato de barco (teria pulado em brusca revolta
do mar verde e escolhido plantar-se no chão, na terra, no asfalto?). A transversal era
movimentada e um carro podia virar a toda velocidade e pegá-lo de frente, num in-
stante. Acho que foi este detalhe, se não o próprio gestual um tanto clichê, sem falar
nas roupas pretas, que me fez pensar que aquilo era uma paródia de filme de Tarantino.
A paródia da paródia, a paródia-periferia, beat-holliúde.

A rua se abria para mostrar um filme de poucos segundos. A vida, esse filme mal feito,
sempre tentando se disfarçar. Dali a pouco ia aparecer uma grua ao lado de minha
janela de hotel, e Deus ou o Diretor, circundado de assistentes, ia gritar mal-hu-
morado algum comando no seu alto-falante. O próprio hotel se revelaria então um

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cenário de má qualidade, assim como o prédio-barco improvável diante do mar verde
maciço e tão vivo.

Contaram-me que décadas antes um hotel elegante ocupava a porção central da con-
strução e convivia com os pequenos apartamentos que formavam suas laterais. Seus
corredores eram confusos, múltiplos, pareciam maiores que todo o prédio, maiores
que o espaço por ele ocupado. Num virtuosismo surpreendente para a época e a
cidade, o arquiteto havia assim conseguido ocultar à percepção de muitos a enorme
sala – pulsante e vermelho coração daquela massa de cimento, tijolo, buracos, pombos
e ervas invasoras – onde funcionava um cassino clandestino.

Os homens de preto logo encontraram o armário certo, o da porta secreta, e sumiram


na escuridão.

A dor é uma gosma que vai encobrindo tudo, é pior que o pó negro que vem da rua,
dos carros, da gente, e de noite se cristaliza sobre os móveis, as roupas, o chão de
tábuas velhas. Ela vai endurecendo, virando crosta, e aí já é parte de você. Eu me
seguro na minha como posso, gosto dela tanto quanto de mim mesma. A dor é minha.

Começou quando meu pai foi embora. Dele, nem me lembro. Lembro mais da sua
ausência. Vai ver que ele só se materializou para mim ao faltar. Meu pai é uma falta-
de-pai. Minha mãe quase pirou. Tirou uma licença no trabalho e alugou uma casinha
perdida não sei bem onde, no interior de Minas. Chorava todas as noites, a noite
inteira. No início, era um choro de leoa, choro para lavar o mundo, desfazer paisagens,
inundação, enxurrada. Depois virou um choro miúdo que durava a noite inteira, todas
as noites, acho que o choro substituía seu sono e impedia que ela sonhasse.

Então eu achei de sonhar. Por ela e por mim. Ou então os sonhos dela, barrados pelas
grossas lágrimas, trepavam no teto sem forro como maus malabaristas, e acabavam
caindo sobre os meus, na cama. Nossos sonhos se misturavam então, se acavalavam,
dobravam-se uns sobre os outros, brincavam. Neles voávamos, e aquele campo e a
longínqua cidade passavam a ocupar o mesmo lugar, sobrepondo-se, e tudo ainda es-
tava lá. (inclusive meu pai e seus livros.)

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Ela se se aninha, puxando o travesseiro num abraço.

Desde então tenho sonhos dos outros.

Já fiz alguns textos, livros acadêmicos de vagas teorias. Mas sempre quis fazer um livro
que virasse outra coisa. Existe livro pedra – você bem sabe – no qual se educar, existe
livro água que passa pelo corpo e rola pelo chão em súbito riacho. Mas eu queria livro
virando coisa, vibrando na mão de cada um. Concha, folha, chiclete, bilhete, pinça,
binóculo, bolinha de papel. Bala de hortelã ou de revólver, sei lá, lanterna, bilhete, anel.
Fotografia.

Ou então fazer com as mãos um livro vistoso e plural, cheio de meandros, caminhos
que não levam a parte alguma, corredores serpenteando à volta da sala impossível de
encontrar, enorme espaço aberto dentro.

Lembro de um mau sonho com meninos – os meninos, rapazotes que vinham nos
vigiar, havia fazendas em volta, e um grosso rio daqueles rio-rio-rio correndo de não
se acabar, de pau e pique e chuva. Cada menino vinha para o rio e para minha mãe,
que me pedia para ir lá para trás, para cima da mangueira, enquanto ele não saísse.
Vinham em dois ou três, e os que naquele dia não iam entrar na casa ficavam no rio,
agitados, pulando e quase deixando a correnteza levá-los para o redemoinho, para no
último instante treparem no pneu grande que pendia, por uma corda, do galho da
mangueira, a árvore de tronco retorcido que parecia querer – ela também – mergulhar
no sumidouro.

Acho que riam de mim, apesar de não fazerem barulho. Era como se algo de sagrado
exigisse, naquele momento, todo silêncio do mundo. Mas olhavam para mim, muito, e
esse olhar me atacava sem que eu pudesse saber a razão. Odiava-os.

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Um súbito mal-estar invade Paulo e ele precisa sair, ir para casa como quem fura uma
onda espessa e ganha a praia para sentir a areia quente sob seus pés.

A porta pela qual ele entra é a do seu apartamento, a mesma que Rosa tinha tantas
vezes atravessado, e talvez a sala e o quarto, a cama também fossem as mesmas, e
talvez todas essas cenas estivessem ali, uma sobre a outra, pulsando em um palimp-
sesto que era, provavelmente, sua própria vida. Tatiana já estava lá desde sempre, de
alguma estranha maneira, ela surgia atônita num breve passado, num canto de lem-
brança, numa dobra entre duas paredes, abrindo aqui e ali um cômodo insuspeitado.
Ela vasculhava seu labirinto e punha ao avesso passagens, entreabria portas inex-
istentes, virava paisagens de ponta-cabeça.

Mas quem estava lá agora, placidamente, sentada no sofá, era Rosa. O impacto dessa
presença o sobressaltou e mediu a distância que poucos dias haviam cavado. O que
você está fazendo aqui? Como conseguiu entrar? A porta estava aberta, meu bem.
Achei estranho, pensei que você podia estar ahnn... bebendo muito, sei lá... A porta?
Aberta como, escancarada ou encostada? Encostada, ou melhor, semiaberta, não sei
bem, percebi que estava aberta quando bati. Falta algo? O quê? No apartamento, você
deu falta de algo? As coisas estão em seu lugar? Sim, acho que sim, apesar da bagunça.
Vi que você mudou algumas coisas. Irritou-se: E daí? Daí, nada. Não precisa gritar. Fez
um muxoxo, ia talvez chorar.

Um dia terei recebido dele um postal de um museu mexicano de antropologia, onde


estará escrito que toda luna, todo año, todo día, todo viento, camina e pasa tambien.
También toda sangre llega al lugar de su quietud. Então saberei que ele já vivia sua própria
morte pouco a pouco, como todos. (Seria isso, a tal pulsão de morte de que fala

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Freud?). Verei-me precariamente instalada em um pico muito fino e mau e farei dele
uma agulha e farei dela uma escrita.

Tatiana estava enfim aflita, atrás dos óculos semiescuros, cabelos presos num rabo
perfeito, capa da cor daquela tarde chuvosa. Ele está mesmo me seguindo, vi no metrô,
percebi sua aproximação na outra ponta do vagão, tudo muito cheio de gente e eu
não conseguia alcançar o corrimão ou seja lá como se chame aquela merda onde a
gente se segura, ele era muito alto e eu não sabia se ficava lá ou descia na estação,
capturada por aquele olhar, ouvi o barulho dos freios nos trilhos, li Cinelândia e me
agarrei nessa palavra enquanto saltava bem bem no momento em que a porta se
fechava. Corri sem olhar para trás, subi as escadas rolantes tentando me esgueirar
pela multidão. Estou com medo, Paulo.

Ela quis ficar na minha casa, e eu tive durante toda a noite medo de que Rosa
aparecesse. Não sei se foi a presença do medo ou de Rosa que me deixou sem von-
tade. Tatiana enroscada no cobertor, na ponta da cama, talvez sonhasse aqueles son-
hos que eu lera na tela do computador.

Uma coisa, uma coisa única não saía da minha mente: por que o negro alto quis me
mostrar o livro de Tatiana?

Um estrondo arromba a porta da casa, estou em minha cama – mas para sempre
perdeu-se sua maciez, se foi a própria cama, perdi-me eu mesmo. O apartamento
torna-se um labirinto, estou em seu centro, é inevitável que ele chegue, tudo é tempo,
o pior é não ouvir seus passos, a surpresa que me tomará quando ele aparecer, mesmo
eu o esperando, agora. Agora.

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Acordei suado. Na frente do computador, esperei a máquina se ligar como quem
aguarda a janela se abrir. (eles têm razão de chamar isso de windows. O problema é
se o cara quiser se atirar por ela).

Havia um novo sonho.

Não podia dormir então vagava por toda a cidade, esbarrando em moradores de rua
e boêmios. Tropecei em uma criança e quase caí – foi quando percebi que não dormia,
porque não sonhava. Na esquina passou um caminhão barulhento como o de lixo e eu
compreendi, em uma revelação, que ele parava em cada vulto estendido no chão para
lhe sugar o sonho. Corri atrás dele em desespero, gritando “devolva meu sonho”, e
então a motorista se virou e pude ver o rosto de Tatiana, numa gargalhada.

Multiplicam-se à noite, como coelhos, os livros. Essa brincadeira fazia rir algum visi-
tante eventual e servia de desculpa para a desordem que as estantes não conseguiam
conter. As alunas, tomando-a como uma insinuação de paquera, costumavam soltar
uma gargalhada nervosa. Eu sabia, porém, que os livros não copulam entre si, mas
conosco. Ou melhor, nos fazem copular e parir livros, em linhagens cruzadas que
desmentem qualquer autoria. Cada livro convida a outro, ainda não escrito. Cada livro
pega no ar a bola lançada por um ou dois ou vários livros. Tatiana e eu copulávamos
assim, entre livros, misturando nossas vozes e nossos dedos, nossas vidas e suas
ficções.

E então, de repente, a bola caiu.

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Ela soltou um risinho nervoso e zombou: seu delegado há um homem me seguindo,
ele pensa que eu roubei seus sonhos. Não repare, é tudo um terrível mal-entendido:
Então o senhor não sabe que todo escritor rouba sonhos dos outros?

Ele deveria ficar feliz de eu lhe devolver algum sonho antigo, em um livro. Isso se ele
foi mesmo capaz de sonhá-lo, quem sabe seu sonho não tinha sido abortado in statu
nascendi, ele ainda criança?

Tatiana, o blog. Ele deve ter mandado algum dos sonhos que você usou em seu livro.
Ela pareceu estarrecida, como se não acreditasse que aquelas narrativas pudessem
existir fora de sua tela ou de suas páginas.

Tem a história de uma amiga que fez análise durante vários anos em um país es-
trangeiro e depois perdeu contato com seu analista. Alguns anos mais tarde ela volta
àquele país e quer vê-lo. Liga, mas ninguém atende. Entra em uma livraria e compra o
último livro do gajo mas, estranhamente, só se decide a folheá-lo cerca de um ano
mais tarde. Chama sua atenção um dos ensaios ali reunidos, que ela começa a ler com
um mal-estar indefinível. Era uma espécie de estudo de caso. De repente tropeça em
uma frase sua, disso ela tem certeza, pela estranheza que é ao mesmo tempo um
reconhecimento. O resto parece flutuante, incerto. Então aparece o relato de um
sonho, um sonho central, segundo o analista, para aquele tratamento. Trata-se de um
barco, de um pai, de uma fuga.

Ela não se lembra de nada.

Abre-se uma janela: Era um jardim de verão e sonhos voavam como borboletas, entre
nós. Eu tinha uma rede nas mãos, mas não me ocorria capturá-los. Percebia que um

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sonho só existe para ser dado a um outro. Um homem: aquilo que representa um
sonho para outro sonho.

Tatiana postou o pequeno texto com dedos trêmulos. Era uma espécie de armadilha,
ou a resposta positiva para o duelo. Os dois olharam para a porta do apartamento,
como instintivamente, ao mesmo tempo. Esperavam o homem.

Entāo tocou meu telefone e era Rosa, voz abafada. Um homem está aqui, ele me
amarrou na cadeira. Diz que só me liberta se você trouxer uma tal de Tatiana.

Tatiana subitamente séria, mãos crispadas, voz baixa: o que ela está fazendo em sua
casa? Como se o único perigo de morte – e a única possibilidade de salvação diante
dela – fosse o amor. Convenço-a com dificuldade a pegar uma muda de roupa e ir para
o hotelzinho barato da minha rua. Precisava ao menos acreditar que ela estivesse em
segurança para me ocupar de Rosa. Dirijo-me à porta (aviso o porteiro? a polícia?
estava convencido de que o homem era louco), mas um baque me detém. Tatiana
caída desmaiada no banheiro.

Quando ela caiu (hipoglicemia, disseram no pronto socorro) Paulo a viu como morta.
Seu rosto ganhou muitos anos e toda a história dos homens. De súbito entregavam-
se naquele semblante todos os sonhos, todos eles frustrados, todas as paixões, todos
os pensamentos vãos. Ali estavam as horas dormidas por todos os homens, até hoje.
O passo na lua, o primeiro beijo, o instante de loucura que basta ao assassino.

Já ela tinha visto outra coisa, justo enquanto caía, mas jurava que não havia relação
entre a queda e a coisa escrita, que era frase escrita por alguém que ela não conhecia,
provavelmente o último hóspede deste hotel chinfrim. Só o vapor da ducha revelou a
inscrição invisível, feita com outro vapor, do dedo de outra gente: escolha seu sonho.

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Nada nos é objeto, tudo nos é sujeito – Paulo citou Breton. É o sonho que te escolhe,
minha cara, não se aflija. Escolhe, usa, abandona. Ou aceita acompanhar-te durante o
dia, a semana, a vida.

E a escrita, você sabe agora mais do que nunca, é sempre alheia.

Sabendo que minha mãe detestava fotografias, tios e primos preocuparam-se, quando
ela morreu, em me mandar imagens dela e de mim quando criança. Como se as fotos
fossem necessárias para mantê-la viva – ou, pelo contrário, para que pudesse morrer.
Deixei-as no celular e agradeci cada envio, mas só fui olhá-las meses depois. Ela na
praia, com pernas e pose de miss. Sorrindo entre as colegas de escola, de uniforme.
Em um baile, talvez de formatura, girando com meu pai entre outros casais. Todas as
imagens diziam algo que cabia a mim agora decifrar, entre o burburinho de suas
personagens. Traziam mensagens cifradas como as de sonhos, a pedir minha fala,
minhas palavras de felicidade, assombro ou tristeza.

Uma delas calava. Seu silêncio me paralisava e pedia tempo, muito tempo. Memória.
Ela me segurava no colo, pequena, ainda bebê. Havia uma pequena multidão a nosso
redor, ou melhor, à nossa frente, formando uma espécie de pirâmide a nos sustentar
em seu topo, madonna e bambina profanas, ainda que de branco, sob a luz amarela de
um outono qualquer.

Fiz zoom e assim eliminei metade da pirâmide de gente. E então outro zoom:
estávamos a sós. Ela não posava mais. De mundano, seu sorriso tornou-se plácido e
forte. Definitivo. Abaixo dele, o topo de minha cabeça escondia seu queixo. Meus
olhos miravam fixa e aflitamente a câmera, que escondia não sei quem (teria meu pai
tirado esta foto?). Eu tinha as duas mãos sobre a boca, e a imagem ocultava se era algo
de comer (ou alguma palavra?) que assim segurava. Atrás de nós, uma cortina branca
esvoaçava, deixando entrever o vidro opaco de uma janela.

Um novo zoom enquadra o sorriso de minha mãe e meus olhos, apenas, e revela uma
linha branca descendo pela lateral até cortar minha pupila esquerda – uma dobra na
foto original, sem dúvida, partindo meu olhar como a navalha de um filme famoso – e
partindo-o novamente, agora e desde sempre.

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Mas resta seu sorriso, a sustentá-lo inteiro.

Falar era a única esperança. Salve-nos: a palavra. Com ela a gente cresce sempre, sem
saber para onde, como dizia Guimarães Rosa. A porta do apartamento estava apenas
encostada e tudo parecia silencioso. Entrei e fechei a porta atrás de mim, num gesto

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que depois me pareceu incompreensível. Rosa arregalou os olhos, uma mordaça im-
provisada roubou-lhe o grito. Todo seu corpo sacudiu-se indicando a cozinha. Agarrei
o vaso de vidro da estante e volteei o corpo com precisão de bailarino. Por sorte ele
estava de costas, grande vulto cansado suspenso apenas pelo copo de whisky na mão
direita (que bom – ou que pena? – que aquela garrafa eu não havia enxugado). Caiu
mais por obediência a uma coreografia alheia do que ao peso do meu golpe.

O homem oscilando caindo como nau sem rumo, naufragando nas paragens do vago
onde a realidade toda se dissolve – ou quase. E meu gesto, uma vez realizado,
tornando-se ato vazio diante de Rosa (que eu nem tinha vontade de libertar). E o
silêncio que se espalhou como de uma torneira, por toda parte, inundando o desenho
sinuoso e vermelho de um lugar impossível.

Um dia vieram três meninos, no rio, um deles, o maior, olhava fixo para minha mãe e
estava bem sério, num olhar de coisa grave, de grande acontecimento ou tragédia.
(tinha talvez um pressentimento?). Entrou, e os outros brincando nervosos no rio, eu
trepada na árvore. O menino não saía nunca da casa, os outros do rio. Escondiam-se
entre as pedras, jogavam água um no outro, faziam-se mutuamente submergir, bufavam
como bestas. Alcancei sem pressa o galho que mais se aproximava do espelho d’água
e desatei o nó de marinheiro que mantinha a corda do grande pneu. Lembro-me de
vê-lo ainda suspenso no ar, como marionete que se sustentasse sem cordéis. Corri
para detrás da casa, o coração disparado e uma estranha calma nas pernas.

O silêncio fez-se ainda maior e uma porta rangeu de dentro. (da casa? de mim?). Veio
então, de súbito, o grito, o rumor do rio, o horror do menino só nas águas. E um grito
maior e surdo entrando e sufocando na boca, o do menino afogado, esburacando o
dia.

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Então compreendi. As páginas eram de vidro. Na superfície transparente, cada palavra


misturava-se ao mundo à sua volta e se sobrepunha a outras letras e frases de outras
páginas, em jogo com a luz do sol e o ângulo do olhar. Ao ser folheado, o livro parecia
fluir como água, tornando-se um livro-rio como aquele onde tudo acontecera – para
mim e para ela, para todos e para ninguém. Letras, céu, pau e folhas iam trocando de
lugar e eu também, ali refletido. E o livro indo, a cada instante, tal caleidoscópio

– a própria vida.

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