Catecismo Igreja Catolica (Epub)

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PRÓLOGO

«PAI, [...] é esta a vida eterna: que Te conheçam a Ti, único Deus verdadeiro, e Aquele que en-
viaste, Jesus Cristo» (Jo 17, 3). «Deus, nosso Salvador [...], quer que todos os homens se
salvem e cheguem ao conhecimento da verdade» (1 Tm 2, 3-4). «Não existe debaixo do céu
outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos» (Act 4, 12), senão o nome de
JESUS.

I. A vida do homem – conhecer e amar a Deus

1. Deus, infinitamente perfeito e bem-aventurado em Si mesmo, num desígnio de pura


bondade, criou livremente o homem para o tornar participante da sua vida bem-aventurada.
Por isso, sempre e em toda a parte, Ele está próximo do homem. Chama-o e ajuda-o a
procurá-Lo, a conhecê-Lo e a amá-Lo com todas as suas forças. Convoca todos os homens, dis-
persos pelo pecado, para a unidade da sua família que é a Igreja. Para tal, enviou o seu Filho
como Redentor e Salvador na plenitude dos tempos. N'Ele e por Ele, chama os homens a
tornarem-se, no Espírito Santo, seus filhos adoptivos e, portanto, herdeiros da sua vida bem-
aventurada.
2. Para que este convite se fizesse ouvir por toda a Terra, Cristo enviou os Apóstolos que
escolhera, dando- lhes o mandato de anunciar o Evangelho: «Ide, pois, fazei discípulos de to-
das as nações, baptizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a
cumprirem tudo quanto vos prescrevi. E eis que Eu estou convosco todos os dias até ao fim do
mundo» (Mt 28, 19-20). Fortalecidos por esta missão, os Apóstolos «partiram a pregar por
toda a parte e o Senhor cooperava com eles confirmando a Palavra com os sinais que a acom-
panhavam» (Mc 16, 20).
3. Aqueles que, com a ajuda de Deus, aceitaram o convite de Cristo e livremente Lhe respon-
deram, foram por sua vez impelidos, pelo amor do mesmo Cristo, a anunciar por toda a parte
a Boa-Nova. Este tesouro, recebido dos Apóstolos, foi fielmente guardado pelos seus su-
cessores. Todos os fiéis de Cristo são chamados a transmiti-lo de geração em geração, anun-
ciando a fé, vivendo-a em partilha fraterna e celebrando-a na liturgia e na oração (1).

II. Transmitir a fé – a catequese

4. Bem cedo se chamou catequese ao conjunto de esforços empreendidos na Igreja para fazer
discípulos, para ajudar os homens a acreditar que Jesus é o Filho de Deus, a fim de, pela fé,
terem a vida em seu nome, e para os educar e instruir nessa vida, construindo assim o Corpo
de Cristo (2).
5. «A catequese é uma educação da fé das crianças, dos jovens e dos adultos, que compreende
especialmente o ensino da doutrina cristã, ministrado em geral dum modo orgânico e sis-
temático, em ordem à iniciação na plenitude da vida cristã» (3).
6. Sem se confundir com eles, a catequese articula-se com um certo número de elementos da
missão pastoral da Igreja que têm um aspecto catequético, preparam para a catequese ou dela
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derivam: o primeiro anúncio do Evangelho ou pregação missionária, para suscitar a fé; a


busca das razões de acreditar; a experiência da vida cristã; a celebração dos sacramentos; a in-
tegração na comunidade eclesial; o testemunho apostólico e missionário (4)
7. «A catequese está intimamente ligada a toda a vida da Igreja. Dependem essencialmente
dela não só a expansão geográfica e o crescimento numérico, mas também, e muito mais
ainda, o crescimento interior da Igreja e a sua conformidade com o desígnio de Deus» (5).
8. Os períodos de renovação da Igreja são também tempos fortes de catequese. Assim, na
grande época dos Padres da Igreja, vemos santos bispos consagrarem parte importante do seu
ministério à catequese, como por exemplo São Cirilo de Jerusalém, São João Crisóstomo,
Santo Ambrósio, Santo Agostinho e tantos outros Padres, cujas obras catequéticas continuam
a ser modelo.
9. O ministério da catequese vai buscar energias sempre novas aos concílios. O Concílio de
Trento constitui, a este respeito, um exemplo a sublinhar: nas suas constituições e decretos,
deu prioridade à catequese; está na origem do Catecismo Romano que tem o seu nome e que
constitui um trabalho de primeira ordem como compêndio da doutrina cristã; fez nascer na
Igreja uma organização notável da catequese; e, graças a santos bispos e teólogos, como São
Pedro Canísio, São Carlos Borromeo, São Toríbio de Mogrovejo e São Roberto Belarmino, le-
vou à publicação de numerosos catecismos.
10. Não admira, pois, que, na sequência do II Concílio do Vaticano (que o Papa Paulo VI con-
siderava como o grande catecismo dos tempos modernos), a catequese da Igreja tenha de
novo chamado a atenção. O Directório catequético geral, de 1971; as sessões do Sínodo dos
Bispos consagradas à evangelização (1974) e à catequese (1977): e as exortações apostólicas
correspondentes — Evangelii nuntiandi (1975) e Catechesi tradendae (1979) — são disso bom
testemunho. A assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos de 1985 pediu: «que seja redi-
gido um catecismo ou compêndio de toda a doutrina católica, tanto no tocante à fé como no
que respeita à moral» (6). O Santo Padre João Paulo II fez seu este voto do Sínodo dos Bispos.
Reconheceu que «tal desejo corresponde inteiramente a uma verdadeira necessidade da Igreja
universal e das Igrejas particulares»(7). E pôs todo o seu empenho cm que se concretizasse
este desejo dos Padres sinodais.

III. Finalidade e destinatários deste catecismo

11. A finalidade deste Catecismo é apresentar uma exposição orgânica e sintética dos conteú-
dos essenciais e fundamentais da doutrina católica, tanto sobre a fé como sobre a moral, à luz
do II Concilio do Vaticano e do conjunto da Tradição da Igreja. As suas fontes principais são a
Sagrada Escritura, os santos Padres, a liturgia e o Magistério da Igreja. E destina-se a servir
«como ponto de referência aos catecismos ou compêndios a publicar nos diversos países» (8).
12. Este Catecismo destina-se principalmente aos responsáveis pela catequese, que são em
primeiro lugar os bispos, enquanto doutores da fé e pastores da Igreja. É-lhes oferecido como
instrumento para o desempenho da sua missão de ensinar o povo de Deus. E, através dos
bispos, dirige-se aos redactores de catecismos, aos sacerdotes e aos catequistas. Será também
uma leitura útil para todos os outros fiéis cristãos.

IV. Estrutura deste catecismo


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13. O plano deste Catecismo inspira-se na grande tradição dos catecismos que articulam a
catequese cm torno de quatro «pilares»: a profissão da fé baptismal (Símbolo), os sacramen-
tos da fé, a vida da fé (Mandamentos) e a oração do crente (o Pai Nosso).

PRIMEIRA PARTE: A PROFISSÃO DA FÉ

14. Aqueles que, pela fé e pelo Baptismo, pertencem a Cristo, devem confessar a sua fé baptis-
mal diante dos homens (9). Por isso, o Catecismo começa por expor em que consiste a
Revelação, pela qual Deus Se dirige e Se dá ao homem, e a fé pela qual o homem responde a
Deus (Primeira Secção). O Símbolo da fé resume os dons que Deus faz ao homem, como
Autor de todo o bem, Redentor e Santificador, e articula-os em volta dos «três capítulos» do
nosso Baptismo – a fé num só Deus: o Pai Todo-poderoso, Criador; e o seu Filho Jesus Cristo,
nosso Senhor e Salvador: e o Espírito Santo, na Santa Igreja (Segunda Secção).

SEGUNDA PARTE: OS SACRAMENTOS DA FÉ

15. A segunda parte do Catecismo expõe como a salvação de Deus, realizada uma vez por to-
das por Jesus Cristo e pelo Espírito Santo, se toma presente nas acções sagradas da liturgia da
Igreja(Primeira Secção), e em especial nos sete sacramentos (Segunda Secção).

TERCEIRA PARTE: A VIDA DA FÉ

16. A terceira parte do Catecismo apresenta o fim último do homem, criado à imagem de Deus
– a bem- aventurança e os caminhos para a ela chegar: um comportamento recto e livre, com
a ajuda da lei de Deus e da sua graça (Primeira Secção); um comportamento que realize o du-
plo mandamento da caridade, explicitado nos dez Mandamentos de Deus (Segunda Secção).

QUARTA PARTE: A ORAÇÃO NA VIDA DA FÉ

17. A última parte do Catecismo trata do sentido e da importância da oração na vida dos
crentes(Primeira Secção), terminando com um breve comentário aos sete pedidos da Oração
do Senhor(Segunda Secção). De facto, nesses sete pedidos encontramos a suma dos bens que
devemos esperar e que o nosso Pai dos Céus nos quer dar.

V. Indicações práticas para o uso deste catecismo

18. Este Catecismo foi concebido como uma exposição orgânica de toda a fé católica. Deve,
portanto, ser lido como um todo. Numerosas notas remissivas à margem do texto (números
impressos em tipos menores remetendo para outros parágrafos que tratam do mesmo as-
sunto) e o índice analítico no fim do volume, permitem encarar cada tema na sua ligação com
o conjunto da fé.
19. Muitas vezes, os textos da Sagrada Escritura não são citados literalmente, mas com a
simples indicação da referência (por meio dum cf.) feita em nota. Para uma inteligência
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aprofundada desses passos, convém recorrer aos próprios textos. Tais referências bíblicas são
um instrumento de trabalho para a catequese.
20. Quando, cm certas passagens, se emprega a letra miúda, isso quer dizer que se trata de
anotações de tipo histórico ou apologético, ou de exposições doutrinais complementares.
21. As citações, em letra miúda, de fontes patrísticas, litúrgicas, do Magistério ou da
hagiografia, destinam-se a enriquecer a exposição doutrinal. Frequentemente, esses textos fo-
ram escolhidos a pensar num emprego directamente catequético.
22. No fim de cada unidade temática, uma série de textos breves resume, em fórmulas escol-
hidas, o essencial do ensinamento. Estes «RESUMINDO» têm por fim dar à catequese local
sugestões de fórmulas sintéticas e fáceis de decorar.

VI. Adaptações necessárias

23. A tónica deste Catecismo incide sobre a exposição doutrinal. Com efeito, a sua intenção é
ajudar a aprofundar o conhecimento da fé. Todo ele se orienta no sentido do amadurecimento
da mesma fé, do seu enraizamento na vida e da sua irradiação no testemunho (10).
24. Pela sua própria finalidade, este Catecismo não se propõe realizar as adaptações da ex-
posição e dos métodos catequéticos, exigidas pelas diferenças de culturas, idades, maturidade
espiritual, situações sociais e eclesiais daqueles a quem a catequese se dirige. Essas indis-
pensáveis adaptações pertencem aos catecismos apropriados e, sobretudo, àqueles que minis-
tram o ensino aos fiéis:
«Aquele que ensina deve "fazer-se tudo para todos" (1 Cor 9, 22) para a todos atrair a Jesus
Cristo. [...] Sobretudo, não julgue que lhe está confiada apenas uma categoria de almas e que,
portanto, lhe incumbe o trabalho de ensinar e formar de modo idêntico, na verdadeira
piedade, todos os fiéis, usando sempre um só e mesmo método! Atendendo a que, em Cristo
Jesus, uns são como crianças recém-nascidas, outros como adolescentes e outro, finalmente,
já são efectivamente adultos, é necessário que pondere com toda a diligência quais são os que
precisam de leite e quais os que carecem de um alimento mais sólido. [...] Isto mesmo
testemunhava de si próprio o Apóstolo. [...] Os que são chamados ao ministério da pregação
devem, ao transmitir o ensino dos mistérios da fé e das normas dos costumes, adaptar as suas
palavras à mentalidade e à inteligência dos seus ouvintes» (11).

ACIMA DE TUDO — A CARIDADE

25. A concluir esta apresentação, é oportuno Lembrar este princípio pastoral enunciado pelo
Catecismo
Romano:
Este é sem dúvida o caminho melhor, que o mesmo apóstolo seguia quando fundamentava a
sua doutrina e ensino na caridade que não acaba nunca. A finalidade da doutrina e do ensino
deve fixar-se toda no amor, que não acaba. Podemos expor muito bem o que se deve crer, es-
perar ou fazer; mas, sobretudo, devemos pôr sempre em evidência o amor de nosso Senhor, de
modo que cada qual compreenda que qualquer acto de virtude perfeitamente cristão, não tem
outra origem nem outro fim senão o amor (12).
PRIMEIRA PARTE - A PROFISSÃO DA

PRIMEIRA SECÇÃO

«EU CREIO» – «NÓS CREMOS»

26. Quando professamos a nossa fé, começamos por dizer: «Creio», ou «Cremos». Portanto,
antes de expor a fé da Igreja, tal como é confessada no Credo, celebrada na liturgia, vivida na
prática dos mandamentos e na oração, perguntemos a nós mesmos o que significa «crer». A fé
é a resposta do homem a Deus, que a ele Se revela e Se oferece, resposta que, ao mesmo
tempo, traz uma luz superabundante ao homem que busca o sentido último da sua vida.
Comecemos, pois, por considerar esta busca do homem (capítulo primeiro): depois, a
Revelação divina pela qual Deus vem ao encontro do homem (capítulo segundo); finalmente,
a resposta da fé (capítulo terceiro).

CAPÍTULO PRIMEIRO
O HOMEM É “CAPAZ” DE DEUS

I. O desejo de Deus

27. O desejo de Deus é um sentimento inscrito no coração do homem, porque o homem foi
criado por Deus e para Deus. Deus não cessa de atrair o homem para Si e só em Deus é que o
homem encontra a verdade e a felicidade que procura sem descanso:
«A razão mais sublime da dignidade humana consiste na sua vocação à comunhão com Deus.
Desde o começo da sua existência, o homem é convidado a dialogar com Deus: pois se existe, é
só porque, criado por Deus por amor, é por Ele, e por amor, constantemente conservado: nem
pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e não se
entregar ao seu Criador»(1).
28. De muitos modos, na sua história e até hoje, os homens exprimiram a sua busca de Deus
em crenças e comportamentos religiosos (orações, sacrifícios, cultos, meditações, etc.). Apesar
das ambiguidades de que podem enfermar, estas formas de expressão são tão universais que
bem podemos chamar ao homem um ser religioso:
Deus «criou de um só homem todo o género humano, para habitar sobre a superfície da terra,
e fixou períodos determinados e os limites da sua habitação, para que os homens procurassem
a Deus e se esforçassem realmente por O atingir e encontrar. Na verdade, Ele não está longe
de cada um de nós. É n'Ele que vivemos, nos movemos e existimos» (Act 17, 26-28).
29. Mas esta «relação íntima e vital que une o homem a Deus»(2) pode ser esquecida, descon-
hecida e até explicitamente rejeitada pelo homem. Tais atitudes podem ter origens diversas
(3) a revolta contra o mal existente no mundo, a ignorância ou a indiferença religiosas, as pre-
ocupações do mundo e das riquezas(4), o mau exemplo dos crentes, as correntes de
pensamento hostis à religião e, finalmente, a atitude do homem pecador que, por medo, se
esconde de Deus(5) e foge quando Ele o chama (6).
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30. «Exulte o coração dos que procuram o Senhor» (Sl 105, 3). Se o homem pode esquecer ou
rejeitar Deus, Deus é que nunca deixa de chamar todo o homem a que O procure, para que en-
contre a vida e a felicidade. Mas esta busca exige do homem todo o esforço da sua inteligência,
a rectidão da sua vontade, «um coração recto», e também o testemunho de outros que o ensi-
nam a procurar Deus.
És grande, Senhor, e altamente louvável; grande é o teu poder e a tua sabedoria é sem medida.
E o homem, pequena parcela da tua criação, pretende louvar-Te – precisamente ele que,
revestido da sua condição mortal, traz em si o testemunho do seu pecado, o testemunho de
que Tu resistes aos soberbos. Apesar de tudo, o homem, pequena parcela da tua criação, quer
louvar-Te. Tu próprio a isso o incitas, fazendo com que ele encontre as suas delícias no teu
louvor, porque nos fizeste para Ti e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em
Ti (7).

II. Os caminhos de acesso ao conhecimento de Deus

31. Criado à imagem de Deus, chamado a conhecer e a amar a Deus, c homem que procura
Deus descobre certos «caminhos» de acesso ao conhecimento de Deus. Também se lhes
chama «provas da existência de Deus» – não no sentido das provas que as ciências naturais
indagam mas no de «argumentos convergentes e convincentes» que permitem chegar a ver-
dadeiras certezas.
Estes «caminhos» para atingir Deus têm como ponto de partida criação: o mundo material e a
pessoa humana.
32. O mundo: A partir do movimento e do devir, da contingência, da ordem e da beleza do
mundo, pode chegar-se ao conhecimento de Deu: como origem e fim do universo.
São Paulo afirma a respeito dos pagãos: «O que se pode conhecer de Deus manifesto para eles,
porque Deus lho manifestou. Desde a criação do mundo, a perfeições invisíveis de Deus, o seu
poder eterno e a sua divindade tornam-se pelas suas obras, visíveis à inteligência» (Rm 1, 19-
20) (8).
E Santo Agostinho: «Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar interroga a beleza
do ar que se dilata e difunde, interroga a beleza do céu [...] interroga todas estas realidades.
Todas te respondem: Estás a ver como somo belas. A beleza delas é o seu testemunho de
louvor [«confessio»]. Essas belezas sujeitas à mudança, quem as fez senão o Belo [«Ptdcher»],
que não está sujeite à mudança?» (9).
33. O homem: Com a sua abertura à verdade e à beleza, com o seu sentido do bem moral, com
a sua liberdade e a voz da sua consciência, com a sua ânsia de infinito e de felicidade, o
homem interroga-se sobre a existência de Deus. Nestas aberturas, ele detecta sinais da sua
alma espiritual. «Gérmen de eternidade que traz em si mesmo, irredutível à simples matéria»
(10), a sua alma só em Deus pode ter origem.
34. O mundo e o homem atestam que não têm em si mesmos, nem o seu primeiro princípio,
nem o seu fim último, mas que participam do Ser-em-si, sem princípio nem fim. Assim, por
estes diversos «caminhos», o homem pode ter acesso ao conhecimento da existência duma
realidade que é a causa primeira e o fim último de tudo, «e a que todos chamam Deus» (11).
35. As faculdades do homem tornam-no capaz de conhecer a existência de um Deus pessoal.
Mas, para que o homem possa entrar na sua intimidade, Deus quis revelar-Se ao homem e
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dar- lhe a graça de poder receber com fé esta revelação. Todavia, as provas da existência de
Deus podem dispor para a fé e ajudar a perceber que a fé não se opõe à razão humana.

III. O conhecimento de Deus segundo a Igreja

36. «A Santa Igreja, nossa Mãe, atesta e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas,
pode ser conhecido, com certeza, pela luz natural da razão humana, a partir das coisas cria-
das» (12). Sem esta capacidade, o homem não poderia acolher a revelação de Deus. O homem
tem esta capacidade porque foi criado «à imagem de Deus» (Gn 1, 27).
37. Nas condições históricas em que se encontra, o homem experimenta, no entanto, muitas
dificuldades para chegar ao conhecimento de Deus só com as luzes da razão:
«Com efeito, para falar com simplicidade, apesar de a razão humana poder verdadeiramente,
pelas suas forças e luz naturais, chegar a um conhecimento verdadeiro e certo de um Deus
pessoal, que protege e governa o mundo pela sua providência, bem como de uma lei natural
inscrita pelo Criador nas nossas almas, há, contudo, bastantes obstáculos que impedem esta
mesma razão de usar eficazmente e com fruto o seu poder natural, porque as verdades que
dizem respeito a Deus e aos homens ultrapassam absolutamente a ordem das coisas sensíveis;
e quando devem traduzir-se em actos e informar a vida, exigem que nos dêmos e renunciemos
a nós próprios. O espírito humano, para adquirir semelhantes verdades, sofre dificuldade da
parte dos sentidos e da imaginação, bem como dos maus desejos nascidos do pecado original.
Daí deriva que, em tais matérias, os homens se persuadem facilmente da falsidade ou, pelo
menos, da incerteza das coisas que não desejariam fossem verdadeiras» (13).
38. É por isso que o homem tem necessidade de ser esclarecido pela Revelação de Deus, não
somente no que diz respeito ao que excede o seu entendimento, mas também sobre «as ver-
dades religiosas e morais que, de si, não são inacessíveis à razão, para que possam ser, no es-
tado actual do género humano, conhecidas por todos sem dificuldade, com uma certeza firme
e sem mistura de erro» (14).

IV. Como falar de Deus?

39. Ao defender a capacidade da razão humana para conhecer Deus, a Igreja exprime a sua
confiança na possibilidade de falar de Deus a todos os homens e com todos os homens. Esta
convicção está na base do seu diálogo com as outras religiões, com a filosofia e as ciências, e
também com os descrentes e os ateus.
40. Mas dado que o nosso conhecimento de Deus é limitado, a nossa linguagem, ao falar de
Deus, também o é. Não podemos falar de Deus senão a partir das criaturas e segundo o nosso
modo humano limitado de conhecer e de pensar.
41. Todas as criaturas são portadoras duma certa semelhança de Deus, muito especialmente o
homem, criado à imagem e semelhança de Deus. As múltiplas perfeições das criaturas (a sua
verdade, a sua bondade, a sua beleza) reflectem, pois, a perfeição infinita de Deus. Daí que
possamos falar de Deus a partir das perfeições das suas criaturas: «porque a grandeza e a
beleza das criaturas conduzem, por analogia, à contemplação do seu Autor» (Sb 13, 5).
42. Deus transcende toda a criatura. Devemos, portanto, purificar incessantemente a nossa
linguagem no que ela tem de limitado, de ilusório, de imperfeito, para não confundir o Deus
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«inefável, incompreensível, invisível, impalpável» (15) com as nossas representações human-


as. As nossas palavras humanas ficam sempre aquém do mistério de Deus.
43. Ao falar assim de Deus, a nossa linguagem exprime-se, evidentemente, de modo humano.
Mas atinge realmente o próprio Deus, sem todavia poder exprimi-Lo na sua infinita simplicid-
ade. Devemos lembrar-nos de que, «entre o Criador e a criatura, não é possível notar uma
semelhança sem que a dissemelhança seja ainda maior» (16), e de que «não nos é possível
apreender de Deus o que Ele é, senão apenas o que Ele não é, e como se situam os outros seres
em relação a Ele»(17).

Resumindo:

44. O homem é, por natureza e vocação, um ser religioso. Vindo de Deus e caminhando para
Deus, o homem não vive uma vida plenamente humana senão na medida em que livremente
viver a sua relação com Deus.
45. O homem foi feito para viver em comunhão com Deus, em quem encontra a sua felicid-
ade: «Quando eu estiver todo em Ti, não mais haverá tristeza nem angústia; inteiramente
repleta de Ti, a minha vida será vida plena»(18).
46. Quando escuta a mensagem das criaturas e a voz da sua consciência, o homem pode al-
cançar a certeza da existência de Deus, causa e fim de tudo.
47. A Igreja ensina que o Deus único e verdadeiro, nosso Criador e Senhor; pode ser con-
hecido com certeza pelas suas obras, graças à luz natural da razão humana (19).
48. Nós podemos realmente falar de Deus partindo das múltiplas perfeições das criaturas,
semelhanças de Deus infinitamente perfeito, ainda que a nossa linguagem limitada não con-
siga esgotar o mistério.
49. «A criatura sem o Criador esvai-se» (20). Por isso, os crentes sentem-se pressionados
pelo amor de Cristo a levar a luz do Deus vivo aos que O ignoram ou rejeitam.

CAPÍTULO SEGUNDO
DEUS AO ENCONTRO DO HOMEM

50. Pela razão natural, o homem pode conhecer Deus com certeza, a partir das suas obras.
Mas existe outra ordem de conhecimento, que o homem de modo nenhum pode atingir por
suas próprias forças: a da Revelação divina (1). Por uma vontade absolutamente livre, Deus
revela- Se e dá-Se ao homem. E fá-lo revelando o seu mistério, o desígnio benevolente que,
desde toda a eternidade, estabeleceu em Cristo, em favor de todos os homens. Revela plena-
mente o seu desígnio, enviando o seu Filho bem-amado, nosso Senhor Jesus Cristo, e o
Espírito Santo.

ARTIGO 1
A REVELAÇÃO DE DEUS

I. Deus revela o seu «desígnio benevolente»


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51. «Aprouve a Deus, na sua sabedoria e bondade, revelar-Se a Si mesmo e dar a conhecer o
mistério da sua vontade, segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado,
têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tomam participantes da natureza divina»(2).
52. Deus, que «habita numa luz inacessível» (1 Tm 6, 16), quer comunicar a sua própria vida
divina aos homens que livremente criou, para fazer deles, no seu Filho único, filhos adoptivos
(3). Revelando-Se a Si mesmo, Deus quer tornar os homens capazes de Lhe responderem, de
O conhecerem e de O amarem, muito para além de tudo o que seriam capazes por si próprios.
53. O desígnio divino da Revelação realiza-se, ao mesmo tempo, «por meio de acções e palav-
ras, intrinsecamente relacionadas entre si» (4) e esclarecendo-se mutuamente. Comporta uma
particular «pedagogia divina»: Deus comunica-Se gradualmente ao homem e prepara-o, por
etapas, para receber a Revelação sobrenatural que faz de Si próprio e que vai culminar na
Pessoa e missão do Verbo encarnado, Jesus Cristo.
Santo Ireneu de Lião fala várias vezes desta pedagogia divina, sob a imagem da familiaridade
mútua entre Deus e o homem: «O Verbo de Deus [...] habitou no homem e fez-Se Filho do
Homem, para acostumar o homem a apreender Deus e Deus a habitar no homem, segundo o
beneplácito do Pai» (5).

II. As etapas da Revelação

DESDE A ORIGEM, DEUS DÁ-SE A CONHECER

54. «Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo, oferece aos homens um
testemunho perene de Si mesmo nas coisas criadas, e, além disso, decidindo abrir o caminho
da salvação sobrenatural, manifestou-se a Si mesmo, desde o princípio, aos nossos primeiros
pais» (6). Convidou-os a uma comunhão íntima consigo, revestindo-os de uma graça e justiça
resplandecentes.
55. Esta Revelação não foi interrompida pelo pecado dos nossos primeiros pais. Com efeito,
Deus, «depois da sua queda, com a promessa de redenção, deu-lhes a esperança da salvação, e
cuidou continuamente do género humano, para dar a vida eterna a todos aqueles que, per-
severando na prática das boas obras, procuram a salvação»(7).
«E quando, por desobediência, perdeu a vossa amizade, não o abandonastes ao poder da
morte [...] Repetidas vezes fizestes aliança com os homens (8)».

A ALIANÇA COM NOÉ

56. Desfeita a unidade do género humano pelo pecado, Deus procurou imediatamente, salvar
a humanidade intervindo com cada uma das suas partes. A aliança com Noé, a seguir ao dilú-
vio (9), exprime o princípio da economia divina em relação às «nações», quer dizer, em re-
lação aos homens reagrupados «por países e línguas, por famílias e nações» (Gn 10, 5) (10).
57. Esta ordem, ao mesmo tempo cósmica, social e religiosa da pluralidade das nações (11),
destinava-se a limitar o orgulho duma humanidade decaída, que, unânime na sua perversid-
ade (12), pretendia refazer por si mesma a própria unidade, à maneira de Babel (13). Mas, por
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causa do pecado (14), quer o politeísmo quer a idolatria da nação e do seu chefe são uma con-
tínua ameaça de perversão pagã a esta economia provisória.
58. A aliança com Noé permanece em vigor enquanto durar o tempo das nações (15), até à
proclamação universal do Evangelho. A Bíblia venera algumas grandes figuras das «nações»,
como «o justo Abel», o rei e sacerdote Melquisedec (16), figura de Cristo (17), ou os justos
«Noé, Danel e Job» (Ez 14, 14). Deste modo, a Escritura exprime o alto grau de santidade que
podem atingir os que vivem segundo a aliança de Noé, na expectativa de que Cristo «reúna, na
unidade, todos os filhos de Deus dispersos» (Jo 11, 52).

DEUS ELEGE ABRAÃO

59. Para reunir a humanidade dispersa, Deus escolhe Abrão, chamando-o para «deixar a sua
terra, a sua família e a casa de seu pai» (Gn 12, 1), para o fazer Abraão, quer dizer, «pai de um
grande número de nações» (Gn 17, 5): «Em ti serão abençoadas todas as nações da Terra» (Gn
12, 3) (18).
60. O povo descendente de Abraão será o depositário da promessa feita aos patriarcas, o povo
eleito (19), chamado a preparar a reunião, um dia, de todos os filhos de Deus na unidade da
Igreja (20). Será o tronco em que serão enxertados os pagãos tornados crentes (21).
61. Os patriarcas, os profetas e outras personagens do Antigo Testamento foram, e serão
sempre, venerados como santos em todas as tradições litúrgicas da Igreja.

DEUS FORMA O SEU POVO ISRAEL

62. Depois dos patriarcas, Deus formou Israel como seu povo, salvando-o da escravidão do
Egipto. Concluiu com ele a aliança do Sinai e deu-lhe, por Moisés, a sua Lei, para que Israel O
reconhecesse e O servisse como único Deus vivo e verdadeiro, Pai providente e justo Juiz, e
vivesse na expectativa do Salvador prometido (22).
63. Israel é o povo sacerdotal de Deus (23), sobre o qual «foi invocado o Nome do Senhor»
(Dt 28, 10). É o povo daqueles «a quem Deus falou em primeiro lugar»(24), o povo dos
«irmãos mais velhos» na fé de Abraão (25).
64. Pelos profetas, Deus forma o seu povo na esperança da salvação, na expectativa duma ali-
ança nova e eterna, destinada a todos os homens (26), e que será gravada nos corações (27).
Os profetas anunciam uma redenção radical do povo de Deus, a purificação de todas as suas
infidelidades (28), uma salvação que abrangerá todas as nações (29). Serão sobretudo os
pobres e os humildes do Senhor (30) os portadores desta esperança. As mulheres santas como
Sara, Rebeca, Raquel, Míriam, Débora, Ana, Judite e Ester conservaram viva a esperança da
salvação de Israel. Maria é a imagem puríssima desta esperança (31).

III. Jesus Cristo – «Mediador e plenitude de toda a Revelação» (32)

NO SEU VERBO, DEUS DISSE TUDO


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65. «Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas.
Nestes dias, que são os últimos, falou-nos pelo seu Filho» (Heb 1, 1-2). Cristo, Filho de Deus
feito homem, é a Palavra única, perfeita e insuperável do Pai.
N'Ele, o Pai disse tudo. Não haverá outra palavra além dessa. São João da Cruz, após tantos
outros, exprime-o de modo luminoso, ao comentar Heb 1, 1-2:
«Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra – e não tem outra – (Deus) disse-
nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única e já nada mais tem para dizer.
[...] Porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o
Todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma
visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os ol-
hos totalmente em Cristo e buscar fora d'Ele outra realidade ou novidade» (33).

JÁ NÃO HAVERÁ OUTRA REVELAÇÃO

66. «Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e já não se
há-de esperar nenhuma nova revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Sen-
hor Jesus Cristo»(34). No entanto, apesar de a Revelação já estar completa, ainda não está
plenamente explicitada. E está reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu al-
cance, no decorrer dos séculos.
67. No decurso dos séculos tem havido revelações ditas «privadas», algumas das quais foram
reconhecidas pela autoridade da Igreja. Todavia, não pertencem ao depósito da fé. O seu papel
não é «aperfeiçoar» ou «completar» a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la
mais plenamente, numa determinada época da história. Guiado pelo Magistério da Igreja, o
sentir dos fiéis sabe discernir e guardar o que nestas revelações constitui um apelo autêntico
de Cristo ou dos seus santos à Igreja.
A fé cristã não pode aceitar «revelações» que pretendam ultrapassar ou corrigir a Revelação
de que Cristo é a plenitude. É o caso de certas religiões não-cristãs, e também de certas seitas
recentes. fundadas sobre tais «revelações».

Resumindo:

68. Por amor, Deus revelou-Se e deu-Se ao homem. Dá assim uma resposta definitiva e su-
perabundante às questões que o homem se põe a si próprio sobre o sentido e o fim da sua
vida.
69. Deus revelou-Se ao homem, comunicando-lhe gradualmente o seu próprio mistério, por
acções e por palavras.
70. Além do testemunho que dá de Si mesmo através das coisas criadas, Deus manifestou-Se
a Si próprio aos nossos primeiros pais. Falou-lhes e, depois da queda, prometeu-lhes a sal-
vação (35) e ofereceu-lhes a sua aliança.
71. Deus concluiu com Noé uma aliança eterna entre Si e todos os seres vivos (36). Essa ali-
ança durará enquanto durar o mundo.
72. Deus escolheu Abraão e concluiu uma aliança com ele e os seus descendentes. Fez deles o
seu povo, ao qual revelou a sua Lei por meio de Moisés. E preparou-o, pelos profetas, a acol-
her a salvação destinada a toda a humanidade.
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73. Deus revelou-Se plenamente enviando o seu próprio Filho, no qual estabeleceu a sua ali-
ança para sempre. O Filho é a Palavra definitiva do Pai, de modo que, depois d'Ele, não
haverá outra Revelação.
ARTIGO 2
A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO DIVINA

74. Deus «quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade» (1
Tm 2, 4), quer dizer, de Cristo Jesus (37). Por isso, é preciso que Cristo seja anunciado a todos
os povos e a todos os homens, e que, assim a Revelação chegue aos confins do mundo:
Deus dispôs amorosamente que permanecesse íntegro e fosse transmitido a todas as gerações
tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos (38).

I. A Tradição apostólica

75. «Cristo Senhor, em quem toda a revelação do Deus altíssimo se consuma, tendo cumprido
e promulgado pessoalmente o Evangelho antes prometido pelos profetas, mandou aos Apósto-
los que o pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de
costumes, comunicando-lhes assim os dons divinos» (39).

A PREGAÇÃO APOSTÓLICA ...

76. A transmissão do Evangelho, segundo a ordem do Senhor, fez-se de duas maneiras:


– oralmente, «pelos Apóstolos, que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, trans-
mitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham apren-
dido por inspiração do Espírito Santo»;
– por escrito, «por aqueles apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo
Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação» (40).

... CONTINUADA NA SUCESSÃO APOSTÓLICA

77. «Para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os Apósto-
los deixaram os bispos como seus sucessores, "entregando-lhes o seu próprio ofício de ma-
gistério"» (41). Com efeito, «a pregação apostólica, que se exprime de modo especial nos livros
inspirados, devia conservar-se, por uma sucessão ininterrupta, até à consumação dos tempos»
(42).
78. Esta transmissão viva, realizada no Espírito Santo, denomina-se Tradição, enquanto dis-
tinta da Sagrada Escritura, embora estreitamente a ela ligada. Pela Tradição, «a Igreja, na sua
doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo
em que acredita» (43). «Afirmações dos santos Padres testemunham a presença vivificadora
desta Tradição, cujas riquezas entram na prática e na vida da Igreja crente e orante» (44).
79. Assim, a comunicação que o Pai fez de Si próprio, pelo seu Verbo, no Espírito Santo, con-
tinua presente e activa na Igreja: «Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a es-
posa do seu amado Filho; e o Espírito Santo – por quem ressoa a voz do Evangelho na Igreja,
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e, pela Igreja, no mundo – introduz os crentes na verdade plena e faz com que a palavra de
Cristo neles habite em toda a sua riqueza» (45).

II. A relação entre a Tradição e a Sagrada Escritura

UMA FONTE COMUM...

80. «A Tradição sagrada e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas


entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e
tendem ao mesmo fim» 16. Uma e outra tornam presente e fecundo na Igreja o mistério de
Cristo, que prometeu estar com os seus, «sempre, até ao fim do mundo» (Mt 28, 20).

... DUAS FORMAS DE TRANSMISSÃO DISTINTAS

81. «A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito
divino».
«A sagrada Tradição, por sua vez, conserva a Palavra de Deus, confiada por Cristo Senhor e
pelo Espírito Santo aos Apóstolos, e transmite-a integralmente aos seus sucessores, para que
eles, com a luz do Espírito da verdade, fielmente a conservem, exponham e difundam na sua
pregação» (47).
82. Daí resulta que a Igreja, a quem está confiada a transmissão e interpretação da Revelação,
«não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por
isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência» (48).

TRADIÇÃO APOSTÓLICA E TRADIÇÕES ECLESIAIS

83. A Tradição de que falamos aqui é a que vem dos Apóstolos. Ela transmite o que estes rece-
beram do ensino e do exemplo de Jesus e aprenderam pelo Espírito Santo. De facto, a
primeira geração de cristãos não tinha ainda um Novo Testamento escrito, e o próprio Novo
Testamento testemunha o processo da Tradição viva.
É preciso distinguir, desta Tradição, as «tradições» teológicas, disciplinares, litúrgicas ou de-
vocionais, nascidas no decorrer do tempo nas Igrejas locais. Elas constituem formas particu-
lares, sob as quais a grande Tradição recebe expressões adaptadas aos diversos lugares e às
diferentes épocas. É à sua luz que estas podem ser mantidas, modificadas e até abandonadas,
sob a direcção do Magistério da Igreja.

III. A interpretação da herança da fé

A HERANÇA DA FÉ CONFIADA À TOTALIDADE DA IGREJA

84. O depósito da fé (49) («depositum fidei»), contido na Tradição sagrada e na Sagrada


Escritura, foi confiado pelos Apóstolos ao conjunto da Igreja. «Apoiando-se nele, todo o povo
santo persevera unido aos seus pastores na doutrina dos Apóstolos e na comunhão, na fracção
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do pão e na oração, de tal modo que, na conservação, actuação e profissão da fé transmitida,


haja uma especial concordância dos pastores e dos fiéis» (50).

O MAGISTÉRIO DA IGREJA

85. «O encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou contida na


Tradição, foi confiado só ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de
Jesus Cristo (51), isto é, aos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, o bispo de Roma.
86. «Todavia, este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, en-
sinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do
Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste
depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado» (52).
87. Os fiéis, lembrando-se da palavra de Cristo aos Apóstolos: «Quem vos escuta escuta-me a
Mim» (Lc 10, 16) (53), recebem com docilidade os ensinamentos e as directrizes que os seus
pastores lhes dão, sob diferentes formas.

OS DOGMAS DA FÉ

88. O Magistério da Igreja faz pleno uso da autoridade que recebeu de Cristo quando define
dogmas, isto é, quando propõe, dum modo que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável
de fé, verdades contidas na Revelação divina ou quando propõe, de modo definitivo, verdades
que tenham com elas um nexo necessário.
89. Existe uma ligação orgânica entre a nossa vida espiritual e os dogmas. Os dogmas são
luzes no caminho da nossa fé: iluminam-no e tornam-no seguro. Por outro lado, se a nossa
vida for recta, a nossa inteligência e nosso coração estarão abertos para acolher a luz dos dog-
mas da fé (54).
90. A interligação e a coerência dos dogmas podem encontrar-se no conjunto da revelação do
mistério de Cristo (55). Convém lembrar que «existe uma ordem ou "hierarquia" das verdades
da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente» (56). O

SENTIDO SOBRENATURAL DA FÉ

91. Todos os fiéis participam na compreensão e na transmissão da verdade revelada. Todos


receberam a unção do Espírito Santo que os instrui (57) e os conduz «à verdade total» (Jo 16,
13).
92. «A totalidade dos fiéis [...] não pode enganar-se na fé e manifesta esta sua propriedade
peculiar por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando, "desde os bispos até ao
último dos fiéis leigos", exprime consenso universal em matéria de fé e costumes» (58).
93. «Com este sentido da fé, que se desperta e sustenta pela acção do Espírito de verdade, o
povo de Deus, sob a direcção do sagrado Magistério [...] adere indefectivelmente à fé, uma vez
por todas confiada aos santos; penetra-a mais profundamente com juízo acertado e aplica- a
mais totalmente na vida» (59).

O CRESCIMENTO NA INTELIGÊNCIA DA FÉ
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94. Graças à assistência do Espírito Santo, a inteligência das realidades e das palavras do de-
pósito da fé pode crescer na vida da Igreja:
– «Pela contemplação e pelo estudo dos crentes, que as meditam no seu coração» (60); e par-
ticularmente pela «investigação teológica, que aprofunda o conhecimento da verdade reve-
lada» (61).
– «Pela inteligência interior das coisas espirituais que os crentes experimentam» (62); «Div-
ina eloquia cum legente crescunt» – «As palavras divinas crescem com quem as lê» (63).
– «Pela pregação daqueles que receberam, com a sucessão episcopal, um carisma certo da ver-
dade» (64).
95. «É claro, portanto, que a sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja,
segundo um sapientíssimo desígnio de Deus, estão de tal maneira ligados e conjuntos, que
nenhum pode subsistir sem os outros e, todos juntos, cada um a seu modo, sob a acção do
mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas» (65).

Resumindo:

96. O que Cristo confiou aos Apóstolos, estes o transmitiram, pela sua pregação e por
escrito,
sob a inspiração do Espírito Santo, a todas as gerações, até à vinda gloriosa de Cristo.
97. «A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um único depósito sagrado da
Palavra de Deus» (66), no qual, como num espelho, a Igreja peregrina contempla Deus,
fonte de todas as suas riquezas.
98. «Na sua doutrina, vida e culto, a Igreja perpetua e transmite a todas as gerações tudo
aquilo que ela é, tudo aquilo em que acredita» (67).
99. Graças ao sentido sobrenatural da fé, o povo de Deus, no seu todo, não cessa de acolher
o dom da Revelação divina, de nele penetrar mais profundamente e de viver dele mais
plenamente.
100. O encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus foi confiado unicamente
ao Magistério da Igreja, ao Papa e aos bispos em comunhão com ele.

ARTIGO 3
A SAGRADA ESCRITURA

I. Cristo – Palavra única da Escritura santa

101. Na sua bondade condescendente, para Se revelar aos homens. Deus fala-lhes em palavras
humanas: «As palavras de Deus, com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se
semelhantes à linguagem humana, tal como outrora o Verbo do eterno Pai se assemelhou aos
homens assumindo a carne da debilidade humana» (68).
102. Através de todas as palavras da Sagrada Escritura. Deus não diz mais que uma só Palav-
ra, o seu Verbo único, em quem totalmente Se diz (69):
«Lembrai-vos de que o discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só e
um só é o Verbo que Se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados, o qual, sendo no
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princípio Deus junto de Deus, não tem necessidade de sílabas, pois não está sujeito ao tempo»
(70).
103. Por esta razão, a Igreja sempre venerou as divinas Escrituras tal como venera o Corpo do
Senhor. Nunca cessa de distribuir aos fiéis o Pão da vida, tornado à mesa quer da Palavra de
Deus, quer do Corpo de Cristo (71).
104. Na Sagrada Escritura, a Igreja encontra continuamente o seu alimento e a sua força (72),
porque nela não recebe apenas uma palavra humana, mas o que ela é na realidade: a Palavra
de Deus (73). «Nos livros sagrados, com efeito, o Pai que está nos Céus vem amorosamente ao
encontro dos seus filhos, a conversar com eles» (74).

II. Inspiração e verdade da Sagrada Escritura

105. Deus é o autor da Sagrada Escritura. «A verdade divinamente revelada, que os livros da
Sagrada Escritura contêm e apresentam, foi registrada neles sob a inspiração do Espírito
Santo».
«Com efeito, a santa Mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como sagrados e canóni-
cos os livros completos do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, es-
critos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor, e como tais foram confiados à
própria Igreja» (75).
106. Deus inspirou os autores humanos dos livros sagrados. «Para escrever os livros sagra-
dos, Deus escolheu e serviu-se de homens, na posse das suas faculdades e capacidades, para
que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo
e só aquilo que Ele queria» (76).
107. Os livros inspirados ensinam a verdade. «E assim como tudo o que os autores inspirados
ou hagiógrafos afirmam, deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se
deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade
que Deus quis que fosse consignada nas sagradas Letras em ordem à nossa salvação» (77).
108. No entanto, a fé cristã não é uma «religião do Livro». O Cristianismo é a religião da «Pa-
lavra» de Deus, «não duma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo» (78).
Para que não sejam letra morta, é preciso que Cristo, Palavra eterna do Deus vivo, pelo
Espírito Santo, nos abra o espírito à inteligência das Escrituras (79).

III. O Espírito Santo, intérprete da Escritura

109. Na Sagrada Escritura, Deus fala ao homem à maneira dos homens. Portanto, para bem
interpretar a Escritura, é necessário prestar atenção ao que os autores humanos realmente
quiseram dizer, e àquilo que aprouve a Deus manifestar-nos pelas palavras deles (80).
110. Para descobrir a intenção dos autores sagrados, é preciso ter em conta as condições do
seu tempo e da sua cultura, os «géneros literários» em uso na respectiva época, os modos de
sentir, falar e narrar correntes naquele tempo. «Porque a verdade é proposta e expressa de
modos diversos, em textos históricos de vária índole, ou proféticos, ou poéticos ou de outros
géneros de expressão»(81).
111. Mas, uma vez que a Sagrada Escritura é inspirada, existe outro princípio de interpretação
recta, não menos importante que o anterior, e sem o qual a Escritura seria letra morta: «A
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Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita»
(82).
O II Concílio do Vaticano indica três critérios para uma interpretação da Escritura conforme
ao Espírito que a inspirou (83):
112. 1. Prestar grande atenção «ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura». Com efeito,
por muito diferentes que sejam os livros que a compõem, a Escritura é una, em razão da unid-
ade do desígnio de Deus, de que Jesus Cristo é o centro e o coração, aberto desde a sua Páscoa
(84).
«Por coração (85) de Cristo entende-se a Sagrada Escritura que nos dá a conhecer o coração
de Cristo. Este coração estava fechado antes da Paixão, porque a Escritura estava cheia de ob-
scuridades. Mas a Escritura ficou aberta depois da Paixão e assim, aqueles que desde então a
consideram com inteligência, discernem o modo como as profecias devem ser interpretadas»
(86).
113. 2. Ler a Escritura na «tradição viva de toda a Igreja». Segundo uma sentença dos
Padres, «Sacra Scriptura principalius est in corde Ecclesiae quam in materialibus instru-
mentis scripta» – «A Sagrada Escritura está escrita no coração da Igreja, mais do que em in-
strumentos materiais» (87). Com efeito, a Igreja conserva na sua Tradição a memória viva da
Palavra de Deus, e é o Espírito Santo que lhe dá a interpretação espiritual da Escritura («...
secundum spiritualem sensum quem Spiritus donat Ecclesiae» «segundo o sentido espiritual
que o Espírito Santo dá à Igreja») (88).
114. 3. Estar atento «à analogia da fé» (89). Por «analogia da fé» entendemos a coesão das
verdades da fé entre si e no projecto total da Revelação.

OS SENTIDOS DA ESCRITURA

115. Segundo uma antiga tradição, podemos distinguir dois sentidos da Escritura: o sentido
literal e o sentido espiritual, subdividindo-se este último em sentido alegórico, moral e anagó-
gico. A concordância profunda dos quatro sentidos assegura a sua riqueza à leitura viva da
Escritura na Igreja:
116. O sentido literal. É o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese se-
gundo as regras da recta interpretação. «Omnes sensus (sc. Sacrae Scripturae) fundentur su-
per litteralem» – «Todos os sentidos (da Sagrada Escritura) se fundamentam no literal» (90).
117. O sentido espiritual. Graças à unidade do desígnio de Deus, não só o texto da Escritura,
mas também as realidades e acontecimentos de que fala, podem ser sinais.
1. O sentido alegórico. Podemos adquirir uma compreensão mais profunda dos acontecimen-
tos, reconhecendo o seu significado em Cristo: por exemplo, a travessia do Mar Vermelho é
um sinal da vitória de Cristo e, assim, do Baptismo (91).
2. O sentido moral. Os acontecimentos referidos na Escritura podem conduzir-nos a um com-
portamento justo. Foram escritos «para nossa instrução» (1 Cor 10, 11) (92).
3. O sentido anagógico. Podemos ver realidades e acontecimentos no seu significado eterno, o
qual nos conduz (em grego: «anagoge») em direcção à nossa Pátria. Assim, a Igreja terrestre é
sinal da Jerusalém celeste (93).
118. Um dístico medieval resume a significação dos quatro sentidos:
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«Littera gesta docet, quid credas allegoria. Moralis quid agas, quo tendas anagogia». «A letra
ensina-te os factos (passados), a alegoria o que deves crer,
a moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender» (94).
119. «Cabe aos exegetas trabalhar, de harmonia com estas regras, por entender e expor mais
profundamente o sentido da Sagrada Escritura, para que, mercê deste estudo, de algum modo
preparatório, amadureça o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz respeito à inter-
pretação da Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e o
ministério de guardar e interpretar a Palavra de Deus» (95):
«Ego vero Evangelio non crederem, nisi me catholicae Ecclesiae commoveret auctoritas» –
«Quanto a mim, não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da
Igreja católica» (96).

IV. O Cânon das Escrituras

120. Foi a Tradição Apostólica que levou a Igreja a discernir quais os escritos que deviam ser
contados na lista dos livros sagrados (97). Esta lista integral é chamada «Cânon» das Escritur-
as. Comporta, para o Antigo Testamento, 46 (45, se se contar Jeremias e as Lamentações
como um só) escritos, e, para o Novo, 27 (95):
Para o Antigo Testamento: Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio, Josué, Juízes,
Rute, os dois livros de Samuel, os dois livros dos Reis, os dois livros das Crónicas, Esdras e
Neemias, Tobias, Judite, Ester, os dois livros dos Macabeus, Job, os Salmos, os Provérbios, o
Eclesiastes (ou Coelet), o Cântico dos Cânticos, a Sabedoria, o livro de Ben-Sirá (ou
Eclesiástico), Isaías, Jeremias, as Lamentações, Baruc, Ezequiel, Daniel, Oseias, Joel, Amós,
Abdias, Jonas, Miqueias, Nahum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias;
Para o Novo Testamento: Os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; os Actos dos
Apóstolos; as epístolas de São Paulo: aos Romanos, primeira e segunda aos Coríntios, aos
Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, primeira e segunda aos Tessalonicenses,
primeira e segunda a Timóteo, a Tito, a Filémon: a Epístola aos Hebreus; a Epístola de Tiago,
a primeira e segunda de Pedro, as três epístolas de João, a Epístola de Judas e o Apocalipse.

O ANTIGO TESTAMENTO

121. O Antigo Testamento é uma parte da Sagrada Escritura de que não se pode prescindir. Os
seus livros são divinamente inspirados e conservam um valor permanente (99), porque a An-
tiga Aliança nunca foi revogada.
122. Efectivamente, «a "economia"do Antigo Testamento destinava-se, sobretudo, a preparar
[...] o advento de Cristo, redentor universal».
Os livros do Antigo Testamento, «apesar de conterem também coisas imperfeitas e transitóri-
as», dão testemunho de toda a divina pedagogia do amor salvífico de Deus: neles «encontram-
se sublimes doutrinas a respeito de Deus, uma sabedoria salutar a respeito da vida humana,
bem como admiráveis tesouros de preces»; neles, em suma, está latente o mistério da nossa
salvação» (100).
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123. Os cristãos veneram o Antigo Testamento como verdadeira Palavra de Deus. A Igreja
combateu sempre vigorosamente a ideia de rejeitar o Antigo Testamento, sob o pretexto de
que o Novo o teria feito caducar (Marcionismo).

O NOVO TESTAMENTO

124. «A Palavra de Deus, que é força de Deus para salvação de quem acredita, apresenta-se e
manifesta o seu poder dum modo eminente nos escritos do Novo Testamento»(101). Estes
escritos transmitem-nos a verdade definitiva da Revelação divina. O seu objecto central é Je-
sus Cristo, o Filho de Deus encarnado, os seus actos, os seus ensinamentos, a sua Paixão e
glorificação, bem como os primórdios da sua Igreja sob a acção do Espírito Santo (102).
125. Os evangelhos são o coração de todas as Escrituras, «enquanto são o principal
testemunho da vida e da doutrina do Verbo encarnado, nosso Salvador» (103).
126. Na formação dos evangelhos podemos distinguir três etapas:
1. A vida e os ensinamentos de Jesus. A Igreja sustenta firmemente que os quatro evangelhos,
«cuja historicidade afirma sem hesitações, transmitem fielmente as coisas que Jesus, Filho de
Deus, realmente operou e ensinou para salvação eterna dos homens, durante a sua vida ter-
rena, até ao dia em que subiu ao Céu».
2. A tradição oral. «Na verdade, após a Ascensão do Senhor, os Apóstolos transmitiram aos
seus ouvintes (com aquela compreensão mais plena de que gozavam, uma vez instruídos pelos
acontecimentos gloriosos de Cristo e iluminados pelo Espírito de verdade) as coisas que Ele
tinha dito e feito».
3. Os evangelhos escritos. «Os autores sagrados, porém, escreveram os quatro evangelhos,
escolhendo algumas coisas, entre as muitas transmitidas por palavra ou por escrito, sintetiz-
ando umas, desenvolvendo outras, segundo o estado das Igrejas, conservando, finalmente, o
carácter de pregação, mas sempre de maneira a comunicar-nos coisas verdadeiras e sinceras
acerca de Jesus» (104).
127. O Evangelho quadriforme ocupa na Igreja um lugar único, de que são testemunhas a
veneração de que a Liturgia o rodeia e o atractivo incomparável que em todos os tempos exer-
ceu sobre os santos:
«Não há doutrina melhor, mais preciosa e esplêndida do que o texto do Evangelho. Vede e re-
tende o que nosso Senhor e Mestre, Cristo, ensinou pelas suas palavras e realizou pelos seus
actos» (105).
«É sobretudo o Evangelho que me ocupa durante as minhas orações. Nele encontro tudo o
que é necessário à minha pobre alma. Nele descubro sempre novas luzes, sentidos escondidos
e misteriosos» (106).

A UNIDADE DO ANTIGO E DO NOVO TESTAMENTO

128. A Igreja, já nos tempos apostólicos (107), e depois constantemente na sua Tradição, pôs
em evidência a unidade, do plano divino nos dois Testamentos, graças à tipologia. Esta
descobre nas obras de Deus, na Antiga Aliança, prefigurações do que o mesmo Deus realizou
na plenitude dos tempos, na pessoa do seu Filho encarnado.
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129. Os cristãos lêem, pois, o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. Esta
leitura tipológica manifesta o conteúdo inesgotável do Antigo Testamento. Mas não deve
fazer-nos esquecer de que ele mantém o seu valor próprio de Revelação, reafirmado pelo
próprio Jesus, nosso Senhor (108). Aliás, também o Novo Testamento requer ser lido à luz do
Antigo. A catequese cristã primitiva recorreu constantemente a este método (109). Segundo
um velho adágio, o Novo Testamento está oculto no Antigo, enquanto o Antigo é desvendado
no Novo: « Novum in Vetere latet et in Novo Vetus patet» – «O Novo está oculto no Antigo, e
o Antigo está patente no Novo» (110).
130. A tipologia significa o dinamismo em ordem ao cumprimento do plano divino, quando
«Deus for tudo em todos» (1 Cor 15, 28). Assim, a vocação dos patriarcas e o êxodo do Egipto,
por exemplo, não perdem o seu valor próprio no plano de Deus pelo facto de, ao mesmo
tempo, serem etapas intermédias desse mesmo plano.

V. A Sagrada Escritura na vida da Igreja

131. «É tão grande a força e a virtude da Palavra de Deus, que ela se torna para a Igreja apoio
e vigor e, para os filhos da Igreja, solidez da fé, alimento da alma, fonte pura e perene de vida
espiritual» (111). É necessário que «os fiéis tenham largo acesso à Sagrada Escritura» (112).
132. «O estudo das Páginas sagradas deve ser como que a "alma" da sagrada teologia. Tam-
bém o ministério da Palavra, isto é, a pregação pastoral, a catequese, e toda a espécie de in-
strução cristã, na qual a homilia litúrgica deve ter um lugar principal, com proveito se ali-
menta e santamente se revigora com a palavra da Escritura» (113).
133. A Igreja «exorta com ardor e insistência todos os fiéis [...] a que aprendam "a sublime
ciência de Jesus Cristo" (Fl. 3, 8) na leitura frequente da Sagrada Escritura. Porque "a ig-
norância das Escrituras é ignorância de Cristo"» (114).

Resumindo:

134. Omnis Scriptura divina unus liber est, et ille unus liber Christus est, «quia omnis Scrip-
tura divina de Christo loquitur; et omnis Scriptura divina in Christo impletur» – Toda a
Escritura divina é um só livro, e esse livro único é Cristo, «porque toda a Escritura divina
fala de Cristo e toda a Escritura divina se cumpre em Cristo» (115).
135. «As Sagradas Escrituras contêm a Palavra de Deus; e, pelo facto de serem inspiradas,
são verdadeiramente a Palavra de Deus» (116).
136. Deus é o autor da Sagrada Escritura, ao inspirar os seus autores humanos: age neles e
por eles. E assim nos dá a garantia de que os seus escritos ensinam, sem erro, a verdade da
salvação (117).
137. A interpretação das Escrituras inspiradas deve, antes de mais nada, estar atenta ao
que Deus quer revelar, por meio dos autores sagrados, para nossa salvação. O que vem do
Espírito não é plenamente entendido senão pela acção do Espírito (118).
138. A Igreja recebe e venera, como inspirados, os 46 livros do Antigo e os 27 do Novo
Testamento.
139. Os quatro evangelhos ocupam um lugar central, dado que Jesus Cristo é o seu centro.
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140. A unidade dos dois Testamentos deriva da unidade do plano de Deus e da sua
Revelação. O Antigo Testamento prepara o Novo, ao passo que o Novo dá cumprimento ao
Antigo. Os dois esclarecem-se mutuamente; ambos são verdadeira Palavra de Deus.
141. «A Igreja sempre venerou as Divinas Escrituras, tal como o próprio Corpo do Senhor»
ambos alimentam e regem toda a vida cristã. «A vossa Palavra é farol para os meus passos
e luz para os meus caminhos» (Sl 119, 105)(120).

CAPÍTULO TERCEIRO
A RESPOSTA DO HOMEM A DEUS

142. Pela sua revelação, «Deus invisível, na riqueza do seu amor, fala aos homens como ami-
gos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele» (1). A resposta ad-
equada a este convite é a fé.
143. Pela fé, o homem submete completamente a Deus a inteligência e a vontade; com todo o
seu ser, o homem dá assentimento a Deus revelador (2). A Sagrada Escritura chama «obed-
iência da fé» a esta resposta do homem a Deus revelador (3).

ARTIGO 1 EU CREIO

I. A «obediência da fé»

144. Obedecer (ob-audire) na fé é submeter-se livremente à palavra escutada, por a sua ver-
dade ser garantida por Deus, que é a própria verdade. Desta obediência, o modelo que a
Sagrada Escritura nos propõe é Abraão. A sua realização mais perfeita é a da Virgem Maria.

ABRAÃO – «O PAI DE TODOS OS CRENTES»

145. A Epístola aos Hebreus, no grande elogio que faz da fé dos antepassados, insiste particu-
larmente na fé de Abraão: «Pela fé, Abraão obedeceu ao chamamento de Deus, e partiu para
uma terra que viria a receber como herança: partiu, sem saber para onde ia» (Heb 11, 8) (4).
Pela fé, viveu como estrangeiro e peregrino na terra prometida (5). Pela fé, Sara recebeu a
graça de conceber o filho da promessa. Pela fé, finalmente, Abraão ofereceu em sacrifício o seu
filho único (6).
146. Abraão realiza assim a definição da fé dada pela Epístola aos Hebreus: «A fé constitui a
garantia dos bens que se esperam, e a prova de que existem as coisas que não se vêem» (Heb
11, 1). «Abraão acreditou em Deus, e isto foi-lhe atribuído como justiça» (Rm 4, 3) (7). «Forta-
lecido» por esta fé (Rm 4, 20), Abraão tornou-se «o pai de todos os crentes» (Rm 4, 11. 18)
(8).
147. O Antigo Testamento é rico em testemunhos desta fé. A Epístola aos Hebreus faz o elogio
da fé exemplar dos antigos, «que lhes valeu um bom testemunho» (Heb 11, 2. 39). No entanto,
para nós, «Deus previra destino melhor»: a graça de crer no seu Filho Jesus, «guia da nossa
fé, que Ele leva à perfeição» (Heb 11, 40; 12, 2).
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MARIA – «FELIZ AQUELA QUE ACREDITOU»

148. A Virgem Maria realiza, do modo mais perfeito, a «obediência da fé». Na fé, Maria acol-
heu o anúncio e a promessa trazidos pelo anjo Gabriel, acreditando que «a Deus nada é im-
possível» (Lc 1, 37) (9) e dando o seu assentimento: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim
segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). Isabel saudou-a: «Feliz aquela que acreditou no
cumprimento de quanto lhe foi dito da parte do Senhor» (Lc 1, 45). É em virtude desta fé que
todas as gerações a hão-de proclamar bem-aventurada (10).
149. Durante toda a sua vida e até à última provação (11), quando Jesus, seu filho, morreu na
cruz, a sua fé jamais vacilou. Maria nunca deixou de crer «no cumprimento» da Palavra de
Deus. Por isso, a Igreja venera em Maria a mais pura realização da fé.

II. «Eu sei em quem pus a minha fé» (2 Tm 1, 12)

CRER SÓ EM DEUS

150. Antes de mais, a fé é uma adesão pessoal do homem a Deus. Ao mesmo tempo, e insep-
aravelmente, é o assentimento livre a toda a verdade revelada por Deus. Enquanto adesão
pessoal a Deus e assentimento à verdade por Ele revelada, a fé cristã difere da fé numa pessoa
humana. É justo e bom confiar totalmente em Deus e crer absolutamente no que Ele diz. Seria
vão e falso ter semelhante fé numa criatura (12).

CRER EM JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS

151. Para o cristão, crer em Deus é crer inseparavelmente n'Aquele que Deus enviou – «no seu
Filho muito amado» em quem Ele pôs todas as suas complacências (13): Deus mandou-nos
que O escutássemos (14). O próprio Senhor disse aos seus discípulos: «Acreditais em Deus,
acreditai também em Mim» (Jo 14, 1). Podemos crer em Jesus Cristo, porque Ele próprio é
Deus, o Verbo feito carne: «A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio
do Pai, é que O deu a conhecer» (Jo 1, 18). Porque «viu o Pai» (Jo 6, 46), Ele é o único que O
conhece e O pode revelar (15).

CRER NO ESPÍRITO SANTO

152. Não é possível acreditar em Jesus Cristo sem ter parte no seu Espírito. É o Espírito Santo
que revela aos homens quem é Jesus. Porque «ninguém é capaz de dizer: "Jesus é Senhor", a
não ser pela acção do Espírito Santo» (1 Cor 12, 3). «O Espírito penetra todas as coisas, até o
que há de mais profundo em Deus [...]. Ninguém conhece o que há em Deus senão o Espírito
de Deus» (1 Cor 2, 10-11). Só Deus conhece inteiramente Deus. Nós cremos no Espírito Santo,
porque Ele é Deus.

A Igreja não cessa de confessar a sua fé num só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo.
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III. As características da fé

A FÉ É UMA GRAÇA

153. Quando Pedro confessa que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, Jesus declara-lhe que
esta revelação não lhe veio «da carne nem do sangue, mas do seu Pai que está nos Céus» (Mt
16, 17) (16). A fé é um dom de Deus, uma virtude sobrenatural infundida por Ele. «Para pre-
star esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os in-
teriores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte o coração para Deus, abre os olhos
do entendimento, e dá "a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade"» (17).

A FÉ É UM ACTO HUMANO

154. O acto de fé só é possível pela graça e pelos auxílios interiores do Espírito Santo. Mas não
é menos verdade que crer é um acto autenticamente humano. Não é contrário nem à liberdade
nem à inteligência do homem confiar em Deus e aderir às verdades por Ele reveladas. Mesmo
nas relações humanas, não é contrário à nossa própria dignidade acreditar no que outras pess-
oas nos dizem acerca de si próprias e das suas intenções, e confiar nas suas promessas (como,
por exemplo, quando um homem e uma mulher se casam), para assim entrarem em mútua
comunhão. Por isso, é ainda menos contrário à nossa dignidade «prestar, pela fé, submissão
plena da nossa inteligência e da nossa vontade a Deus revelador» (18) e entrar assim em
comunhão intima com Ele.
155. Na fé, a inteligência e a vontade humanas cooperam com a graça divina: «Credere est
actas intellectus assentientis veritati divinae ex imperio voluntatis, a Deo motae per gra-
tiam» — «Crer é o acto da inteligência que presta o seu assentimento à verdade divina, por de-
terminação da vontade, movida pela graça de Deus» (19).

A FÉ E A INTELIGÊNCIA

156. O motivo de crer não é o facto de as verdades reveladas aparecerem como verdadeiras e
inteligíveis à luz da nossa razão natural. Nós cremos «por causa da autoridade do próprio
Deus revelador, que não pode enganar-se nem enganar-nos» (20). «Contudo, para que a hom-
enagem da nossa fé fosse conforme à razão, Deus quis que os auxílios interiores do Espírito
Santo fossem acompanhados de provas exteriores da sua Revelação» (21). Assim, os milagres
de Cristo e dos santos (22), as profecias, a propagação e a santidade da Igreja, a sua fecundid-
ade e estabilidade «são sinais certos da Revelação, adaptados à inteligência de todos» (23),
«motivos de credibilidade», mostrando que o assentimento da fé não é, «de modo algum, um
movimento cego do espírito» (24).
157. A fé é certa, mais certa que qualquer conhecimento humano, porque se funda na própria
Palavra de Deus, que não pode mentir. Sem dúvida, as verdades reveladas podem parecer
obscuras à razão e à experiência humanas; mas «a certeza dada pela luz divina é maior do que
a dada pela luz da razão natural» (25). «Dez mil dificuldades não fazem uma só dúvida» (26).
158. «A fé procura compreender» (27): é inerente à fé o desejo do crente de conhecer melhor
Aquele em quem acreditou, e de compreender melhor o que Ele revelou; um conhecimento
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mais profundo exigirá, por sua vez, uma fé maior e cada vez mais abrasada em amor. A graça
da fé abre «os olhos do coração» (Ef 1, 18) para uma inteligência viva dos conteúdos da
Revelação, isto é, do conjunto do desígnio de Deus e dos mistérios da fé, da íntima conexão
que os Liga entre si e com Cristo, centro do mistério revelado. Ora, para «que a compreensão
da Revelação seja cada vez mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé,
mediante os seus dons» (28). Assim, conforme o dito de Santo Agostinho, «eu creio para com-
preender e compreendo para crer melhor» (29).
159. Fé e ciência. «Muito embora a fé esteja acima da razão, nunca pode haver verdadeiro de-
sacordo entre ambas: o mesmo Deus, que revela os mistérios e comunica a fé, também
acendeu no espírito humano a luz da razão. E Deus não pode negar-Se a Si próprio, nem a ver-
dade pode jamais contradizer a verdade» (30). «É por isso que a busca metódica, em todos os
domínios do saber, se for conduzida de modo verdadeiramente científico e segundo as normas
da moral, jamais estará em oposição à fé: as realidades profanas e as da fé encontram a sua
origem num só e mesmo Deus. Mais ainda: aquele que se esforça, com perseverança e hu-
mildade, por penetrar no segredo das coisas, é como que conduzido pela mão de Deus, que
sustenta todos os seres e faz que eles sejam o que são, mesmo que não tenha consciência
disso» (31).

A LIBERDADE DA FÉ

160. Para ser humana, «a resposta da fé, dada pelo homem a Deus, deve ser voluntária. Por
conseguinte, ninguém deve ser constrangido a abraçara fé contra vontade. Efectivamente, o
acto de fé é voluntário por sua própria natureza» (32). «E certo que Deus chama o homem a
servi-Lo em espírito e verdade; mas, se é verdade que este apelo obriga o homem em con-
sciência, isso não quer dizer que o constranja [...]. Isto foi evidente, no mais alto grau, em Je-
sus Cristo» (33). De facto, Cristo convidou à fé e à conversão, mas de modo nenhum con-
strangeu alguém. «Deu testemunho da verdade, mas não a impôs pela força aos seus contrad-
itores. O seu Reino [...] dilata-se graças ao amor, pelo qual, levantado na cruz, Cristo atrai a Si
todos os homens (34)».

A NECESSIDADE DA FÉ

161. Para obter a salvação é necessário acreditar em Jesus Cristo e n'Aquele que O enviou
para nos salvar (35). «Porque "sem a fé não é possível agradar a Deus" (Heb 11, 6) e chegar a
partilhar a condição de filhos seus; ninguém jamais pode justificar-se sem ela e ninguém que
não "persevere nela até ao fim" (Mt 10, 22; 24, 13) poderá alcançar a vida eterna» (36).

A PERSEVERANÇA NA FÉ

162. A fé á um dom gratuito de Deus ao homem. Mas nós podemos perder este dom ines-
timável. Paulo adverte Timóteo a respeito dessa possibilidade: «Combate o bom combate,
guardando a fé e a boa consciência; por se afastarem desse princípio é que muitos naufrag-
aram na fé» (1 Tm 1, 18-19). Para viver, crescer e perseverar até ao fim na fé, temos de a ali-
mentar com a Palavra de Deus; temos de pedir ao Senhor que no-la aumente (37); ela deve
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«agir pela caridade» (Gl 5, 6) (38), ser sustentada pela esperança (39) e permanecer enraizada
na fé da Igreja.

A FÉ – VIDA ETERNA INICIADA

163. A fé faz que saboreemos, como que de antemão, a alegria e a luz da visão beatifica, termo
da nossa caminhada nesta Terra. Então veremos Deus «face a face» (1 Cor 13, 12), «tal como
Ele é» (1 Jo 3, 2). A fé, portanto, é já o princípio da vida eterna:
«Enquanto, desde já, contemplamos os benefícios da fé, como reflexo num espelho, é como se
possuíssemos já as maravilhas que a nossa fé nos garante havermos de gozar um dia» (40).
164. Por enquanto porém, «caminhamos pela fé e não vemos claramente» (2 Cor 5, 7), e con-
hecemos Deus «como num espelho, de maneira confusa, [...] imperfeita» (1 Cor, 13, 12). Lu-
minosa por parte d'Aquele em quem ela crê, a fé é muitas vezes vivida na obscuridade, e pode
ser posta à prova. O mundo em que vivemos parece muitas vezes bem afastado daquilo que a
,fé nos diz: as experiências do mal e do sofrimento, das injustiças e da morte parecem contrad-
izer a Boa-Nova, podem abalar a fé e tornarem-se, em relação a ela, uma tentação.
165. É então que nos devemos voltar para as testemunhas da fé: Abraão, que acreditou, «es-
perando contra toda a esperança» (Rm 4, 18); a Virgem Maria que, na «peregrinação da fé»
(41), foi até à «noite da fé» (42), comungando no sofrimento do seu Filho e na noite do seu
sepulcro (43); e tantas outras testemunhas da fé: «envoltos em tamanha nuvem de testemun-
has, devemos desembaraçar-nos de todo o fardo e do pecado que nos cerca, e correr com con-
stância o risco que nos é proposto, fixando os olhos no guia da nossa fé, o qual a leva à per-
feição» (Heb 12, 1-2).

ARTIGO 2
NÓS CREMOS

166. A fé é um acto pessoal, uma resposta livre do homem à proposta de Deus que Se revela.
Mas não é um acto isolado. Ninguém pode acreditar sozinho, tal como ninguém pode viver só.
Ninguém se deu a fé a si mesmo, como ninguém a si mesmo se deu a vida. Foi de outrem que
o crente recebeu a fé; a outrem a deve transmitir. O nosso amor a Jesus e aos homens impele-
nos a falar aos outros da nossa fé. Cada crente é, assim, um elo na grande cadeia dos crentes.
Não posso crer sem ser amparado pela fé dos outros, e pela minha fé contribuo também para
amparar os outros na fé.
167. «Eu creio» (44): é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principal-
mente por ocasião do Baptismo. «Nós cremos» (45): é a fé da Igreja, confessada pelos bispos
reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. «Eu
creio»: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer:
«Eu creio», «Nós cremos».

I. «Olhai, Senhor, para a fé da vossa Igreja»

168. É, antes de mais, a Igreja que crê, e que assim suporta, nutre e sustenta a minha fé. É
primeiro a Igreja que, por toda a parte, confessa o Senhor («Te per orbem terrarum sancta
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confitetur Ecclesia» – «A Santa Igreja anuncia por toda a terra a glória do vosso nome» –
como cantamos no «Te Deum»). Com ela e nela, também nós somos atraídos e levados a con-
fessar: «Eu creio», «Nós cremos». É da Igreja que recebemos a fé e a vida nova em Cristo,
pelo Baptismo. No Ritual Romano, o ministro do Baptismo pergunta ao catecúmeno: «Que
vens pedir à Igreja de Deus?» E ele responde: – «A fé». – «Para que te serve a fé?» – «Para al-
cançar a vida eterna» (46).
169. A salvação vem só de Deus. Mas porque é através da Igreja que recebemos a vida da fé, a
Igreja é nossa Mãe. «Cremos que a Igreja é como que a mãe do nosso novo nascimento, mas
não cremos na Igreja como se ela fosse a autora da nossa salvação»(47). É porque é nossa
Mãe, é também a educadora da nossa fé.

II. A linguagem da fe

170. Não acreditamos em fórmulas, mas sim nas realidades que as fórmulas exprimem e que
a fé nos permite «tocar». «O acto [de fé] do crente não se detém no enunciado, mas na realid-
ade [enunciada]» (48). No entanto, é através das fórmulas da fé que nos aproximamos dessas
realidades. As fórmulas permitem-nos exprimir e transmitir a fé, celebrá-la em comunidade,
assimilá-la e dela viver cada vez mais.
171. A Igreja, que é «coluna e apoio da verdade» (1 Tm 3, 15), guarda fielmente a fé trans-
mitida aos santos de uma vez por todas (49). É ela que guarda a memória das palavras de
Cristo. É ela que transmite, de geração em geração, a confissão de fé dos Apóstolos. Tal como
uma mãe ensina os seus filhos a falar e, dessa forma, a compreender e a comunicar, a Igreja,
nossa Mãe, ensina-nos a linguagem da fé, para nos introduzir na inteligência e na vida da fé.

III. Uma só fé

172. Desde há séculos, através de tantas línguas, culturas, povos e nações, a Igreja não cessa
de confessar a sua fé única, recebida de um só Senhor, transmitida por um só Baptismo, enra-
izada na convicção de que todos os homens têm apenas um só Deus e Pai (50). Santo Ireneu
de Lião, testemunha desta fé, declara:
173. «A Igreja, embora dispersa por todo o mundo até aos confins da Terra, tendo recebido
dos Apóstolos e dos seus discípulos a fé, [...] guarda [esta pregação e esta fé] com tanto cuid-
ado como se habitasse numa só casa; nela crê de modo idêntico, como tendo um só coração e
uma só alma; prega-a e ensina-a e transmite-a com voz unânime, como se tivesse uma só
boca» (51).
174. «Através do mundo, as línguas diferem: mas o conteúdo da Tradição é um só e o mesmo.
Nem as Igrejas estabelecidas na Germania têm outra fé ou outra tradição, nem as que se es-
tabeleceram entre os Iberos ou entre os Celtas, as do Oriente, do Egipto ou da Líbia, nem as
que se fundaram no centro do mundo» (52). «A mensagem da Igreja é verídica e sólida,
porque nela aparece um só e o mesmo caminho de salvação, em todo o mundo» (53).
175. Esta fé, «que recebemos da Igreja, guardamo-la nós cuidadosamente, porque sem cessar,
sob a acção do Espírito de Deus, tal como um depósito de grande valor encerrado num vaso
excelente, ela rejuvenesce e faz rejuvenescer o próprio vaso que a contém» (54).
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Resumindo:

176. A fé é uma adesão pessoal, do homem todo, a Deus que Se revela. Comporta uma ad-
esão da inteligência e da vontade à Revelação que Deus fez de Si mesmo, pelas suas acções e
palavras.
177. «Crer» tem, pois, uma dupla referência: à pessoa e à verdade; à verdade, pela confi-
ança na pessoa que a atesta.
178. Não devermos crer em mais ninguém senão em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. 179.
A fé é um dom sobrenatural de Deus. Para crer, o homem tem necessidade dos auxílios in-
teriores do Espírito Santo.
180. «Crer» é um acto humano, consciente e livre, que está de acordo com a dignidade da
pessoa humana.
181. «Crer» é um acto eclesial. A fé da Igreja precede, gera, suporta e nutre a nossa fé. A
Igreja é a Mãe de todos os crentes. «Ninguém pode ter a Deus por Pai, se não tiver a Igreja
por Mãe» (55).
182. «Nós cremos em tudo quanto está contido na Palavra de Deus, escrita ou transmitida,
e que a Igreja propõe à nossa fé como divinamente revelado» (56).
183. A fé é necessária para a salvação. O próprio Senhor o afirma: «Quem acreditar e for
baptizado salvar-se-á, mas quem não acreditar será condenado» (Mc 16, 16).
184. «A fé é um antegozo do conhecimento que nos tornará felizes na vida futura» (57).
SEGUNDA SECÇÃO

A PROFISSÃO DA FÉ CRISTÃ

OS SÍMBOLOS DA FÉ

185. Quem diz «Creio» afirma: «dou a minha adesão àquilo em que nós cremos». A comun-
hão na fé tem necessidade duma linguagem comum da fé, normativa para todos e a todos un-
indo na mesma confissão de fé.
186. Desde a origem, a Igreja apostólica exprimiu e transmitiu a sua própria fé em fórmulas
breves e normativas para todos (1). Mas bem cedo a Igreja quis também recolher o essencial
da sua fé em resumos orgânicos e articulados, destinados sobretudo aos candidatos ao
Baptismo.
«Esta síntese da fé não foi feita segundo as opiniões humanas: mas recolheu-se de toda a
Escritura o que nela há de mais importante, para apresentar na integra aquilo e só aquilo que
a fé ensina. E, tal como a semente de mostarda contém, num pequeno grão, numerosos
ramos, do mesmo modo este resumo da fé encerra em algumas palavras todo o conhecimento
da verdadeira piedade contido no Antigo e no Novo Testamento» (2).
187. A estas sínteses da fé chamamos-lhes «profissões de fé», porque resumem a fé profes-
sada pelos cristãos. Chamamos-lhes «Credo», pelo facto de elas normalmente começarem
pela palavra: «Creio». Igualmente lhes chamamos «símbolos da fé».
188. A palavra grega «symbolon» significava a metade dum objecto partido (por exemplo, um
selo), que se apresentava como um sinal de identificação. As duas partes eram justapostas
para verificar a identidade do portador. O «símbolo da fé» é, pois, um sinal de identificação e
de comunhão entre os crentes. «Symbolon» também significa resumo, colectânea ou sumário.
O «símbolo da fé» é o sumário das principais verdades da fé. Por isso, serve de ponto de refer-
ência primário e fundamental da catequese.
189. A primeira «profissão de fé» faz-se por ocasião do Baptismo. O «símbolo da fé» é, antes
de mais nada, o símbolo baptismal. E uma vez que o Baptismo é conferido «em nome do Pai e
do Filho e do Espírito Santo»(Mt 28, 19), as verdades da fé professadas por ocasião do
Baptismo articulam-se segundo a sua referência às três pessoas da Santíssima Trindade.
190. O Símbolo divide-se, portanto, em três partes: «na primeira, trata da Primeira Pessoa
divina e da obra admirável da criação: na segunda, da Segunda Pessoa divina e do mistério da
Redenção dos homens; na terceira, da Terceira Pessoa divina, fonte e princípio da nossa santi-
ficação» (3). São estes «os três capítulos do nosso selo [baptismal]» (4).
191. O Símbolo «está estruturado em três partes [...] subdivididas em fórmulas variadas e
muito adequadas. Segundo uma comparação frequentemente empregada pelos Padres,
chamamos-lhes artigos. De facto, assim como nos nossos membros há certas articulações que
os distinguem e separam, do mesmo modo, nesta profissão de fé, foi com razão e propriedade
que se deu o nome de artigos às verdades que devemos crer em particular e de modo distinto»
(5). Segundo uma antiga tradição, já atestada por Santo Ambrósio, é costume enumerar doze
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artigos do Credo, simbolizando, com o número dos doze Apóstolos, o conjunto da fé apostólica
(6).
192. Foram numerosas, ao longo dos séculos, e correspondendo sempre às necessidades das
diferentes épocas, as profissões ou símbolos da fé: os símbolos das diferentes Igrejas
apostólicas e antigas (7), o símbolo «Quicumque», chamado de Santo Atanásio (8), as profis-
sões de fé de certos concílios (Toledo (9); Latrão (10): Lião (11) Trento (12)) ou de certos
papas, como a «Fides Damasi» (13) ou o «Credo do Povo de Deus», de Paulo VI (1968) (14).
193. Nenhum dos símbolos dos diferentes períodos da vida da Igreja pode ser considerado ul-
trapassado ou inútil. Todos nos ajudam a abraçar e a aprofundar hoje a fé de sempre, através
dos diversos resumos que dela se fizeram.
Entre todos os símbolos da fé, há dois que têm um lugar muito especial na vida da Igreja:
194. O Símbolo dos Apóstolos, assim chamado porque se considera, com justa razão, o re-
sumo fiel da fé dos Apóstolos. É o antigo símbolo baptismal da Igreja de Roma. A sua grande
autoridade vem-lhe deste facto: «É o símbolo adoptado pela Igreja romana, aquela em que
Pedro, o primeiro dos Apóstolos, teve a sua cátedra, e para a qual ele trouxe a expressão da fé
comum» (15).
195. O Símbolo dito de Niceia-Constantinopla deve a sua grande autoridade ao facto de ser
proveniente desses dois primeiros concílios ecuménicos (dos anos de 325 e 381). Ainda hoje
continua a ser comum a todas as grandes Igrejas do Oriente e do Ocidente.
196. A exposição da fé, que vamos fazer, seguirá o Símbolo dos Apóstolos, que constitui, por
assim dizer, «o mais antigo catecismo romano». Entretanto, a nossa exposição será com-
pletada por constantes referências ao Símbolo Niceno-Constantinopolitano, muitas vezes
mais explícito e pormenorizado.
197. Como no dia do nosso Baptismo, quando toda a nossa vida foi confiada «a esta regra de
doutrina» (Rm 6, 17), acolhemos o Símbolo da nossa fé que dá a vida. Recitar com fé o Credo é
entrar em comunhão com Deus Pai, Filho e Espírito Santo. E é também entrar em comunhão
com toda a Igreja, que nos transmite a fé e em cujo seio nós acreditamos:
«Este Símbolo é o selo espiritual [...], é a meditação do nosso coração e a sentinela sempre
presente; é, sem dúvida, o tesouro da nossa alma» (16).
CAPÍTULO PRIMEIRO
CREIO EM DEUS PAI

198. A nossa profissão de fé começa por Deus, porque Deus é «o Primeiro e o Último» (Is 44,
6), o Princípio e o Fim de tudo. O Credo começa por Deus Pai, porque o Pai é a Primeira
Pessoa divina da Santíssima Trindade; o nosso Símbolo começa pela criação do céu e da terra,
porque a criação é o princípio e o fundamento de todas as obras de Deus.

ARTIGO 1

«CREIO EM DEUS PAI TODO-PODEROSO CRIADOR DO CÉU E DA TERRA»

PARÁGRAFO 1
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CREIO EM DEUS

199. «Creio em Deus»: é esta a primeira afirmação da profissão de fé e também a mais funda-
mental. Todo o Símbolo fala de Deus; ao falar também do homem e do mundo, fá-lo em re-
lação a Deus. Os artigos do Credo dependem todos do primeiro, do mesmo modo que todos os
mandamentos são uma explicitação do primeiro. Os outros artigos fazem-nos conhecer mel-
hor a Deus, tal como Ele progressivamente Se revelou aos homens. «Os fiéis professam, antes
de mais nada, crer em Deus»(1).

I. «Creio em um só Deus»

200. É com estas palavras que começa o Símbolo Niceno-Constantinopolitano. A confissão da


unicidade de Deus, que radica na Revelação divina da Antiga Aliança, é inseparável da confis-
são da existência de Deus e tão fundamental como ela. Deus é único; não há senão um só
Deus: «A fé cristã crê e professa que há um só Deus, por natureza, por substância e por essên-
cia» (2).
201. A Israel, seu povo eleito, Deus revelou-Se como sendo único: «Escuta, Israel! O Senhor,
nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a
tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6, 4-5). Por meio dos profetas, Deus faz apelo a Israel
e a todas as nações para que se voltem para Ele, o Único: «Voltai-vos para Mim, e sereis sal-
vos, todos os confins da terra, porque Eu sou Deus e não há outro [...] Diante de Mim se hão-
de dobrar todos os joelhos, em Meu nome hão-de jurar todas as línguas. E dirão: "Só no Sen-
hor existem a justiça e o poder"» (Is 45, 22-24) (3).
202. O próprio Jesus confirma que Deus é «o único Senhor», e que é necessário amá-Lo
«com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com todas as forças» (4).
Ao mesmo tempo, dá a entender que Ele próprio é «o Senhor» (5). Confessar que «Jesus é o
Senhor» é próprio da fé cristã. Isso não vai contra a fé num Deus Único. Do mesmo modo,
crer no Espírito Santo, «que é Senhor e dá a Vida», não introduz qualquer espécie de divisão
no Deus único:
«Nós acreditamos com firmeza e afirmamos simplesmente que há um só Deus verdadeiro,
imenso e imutável, incompreensível, todo-poderoso e inefável. Pai e Filho e Espírito Santo:
três Pessoas, mas uma só essência, uma só substância ou natureza absolutamente
simples»(6).

II. Deus revela o seu nome

203. Deus revelou-Se ao seu povo Israel, dando-lhe a conhecer o seu nome. O nome exprime
a essência, a identidade da pessoa e o sentido da sua vida. Deus tem um nome. Não é uma
força anónima. Dizer o seu nome é dar-Se a conhecer aos outros; é, de certo modo, entregar-
Se a Si próprio, tornando-Se acessível, capaz de ser conhecido mais intimamente e de ser in-
vocado pessoalmente.
204. Deus revelou-Se progressivamente e sob diversos nomes ao seu povo; mas foi a rev-
elação do nome divino feita a Moisés na teofania da sarça ardente, no limiar do êxodo e da
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Aliança do Sinai, que se impôs como sendo a revelação fundamental, tanto para a Antiga como
para a Nova Aliança.

O DEUS VIVO

205. Do meio duma sarça que arde sem se consumir, Deus chama por Moisés. E diz-lhe: «Eu
sou o Deus de teu pai, o Deus deAbraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob» (Ex 3, 6). Deus é
o Deus dos antepassados, Aquele que tinha chamado e guiado os patriarcas nas suas peregrin-
ações. É o Deus fiel e compassivo, que se lembra deles e das promessas que lhes fez. Ele vem
para libertar da escravidão os seus descendentes. É o Deus que, para além do espaço e do
tempo, pode e quer fazê-lo, e empenhará a Sua omnipotência na concretização deste desígnio.

«EU SOU AQUELE QUE SOU»

Moisés disse a Deus: «Vou então procurar os filhos de Israel e dizer-lhes: " O Deus de vossos
pais enviou-me a vós". Mas se me perguntarem qual é o seu nome, que hei-de responder-lhes?
Deus disse a Moisés: «Eu sou Aquele que sou». E prosseguiu: «Assim falarás aos filhos de Is-
rael: Aquele que tem por nome "Eu sou" é que me enviou a vós [...] ... Será este o meu nome
para sempre, nome que ficará de memória para todas as gerações» (Ex 3, 13-15).
206. Ao revelar o seu nome misterioso de YHWH, «Eu sou Aquele que É», ou «Eu sou Aquele
que Sou», ou ainda «Eu sou quem Eu sou», Deus diz Quem é e com que nome deve ser cha-
mado. Este nome divino é misterioso, tal como Deus é mistério. E, ao mesmo tempo, um
nome revelado e como que a recusa dum nome. É assim que Deus exprime melhor o que Ele é,
infinitamente acima de tudo o que podemos compreender ou dizer: Ele é o «Deus escondido»
(Is 45, 15), o seu nome é inefável (7), e é o Deus que Se faz próximo dos homens.
207. Ao revelar o seu nome, Deus revela ao mesmo tempo a sua fidelidade, que é de sempre e
para sempre, válida tanto para o passado («Eu sou o Deus de teu pai» – Ex 3, 6), como para o
futuro («Eu estarei contigo» – Ex 3, 12). Deus, que revela o seu nome como sendo «Eu sou»,
revela-Se como o Deus que está sempre presente junto do seu povo para o salvar.
208. Perante a presença atraente e misteriosa de Deus, o homem descobre a sua pequenez.
Diante da sarça ardente, Moisés descalça as sandálias e cobre o rosto face à santidade divina
(8). Ante a glória do Deus três vezes santo, Isaías exclama: «Ai de mim, que estou perdido,
pois sou um homem de lábios impuros» (Is 6, 5). Perante os sinais divinos realizados por Je-
sus. Pedro exclama: «Afasta-Te de mim, Senhor, porque eu sou um pecador» (Lc 5, 8). Mas
porque Deus é santo, pode perdoar ao homem que se descobre pecador diante d'Ele: «Não
deixarei arder a minha indignação [...]. É que Eu sou Deus, e não homem, o Santo que está no
meio de vós» (Os 11, 9). E o apóstolo João dirá também: «Tranquilizaremos diante d'Ele, o
nosso coração, se o nosso coração vier a acusar-nos. Pois Deus é maior do que o nosso coração
e conhece todas as coisas» (1 Jo 3, 19-20).
209. Por respeito pela santidade de Deus, o povo de Israel não pronuncia o seu nome. Na
leitura da Sagrada Escritura, o nome revelado é substituído pelo título divino de «Senhor»
(«Adonai», em grego «Kyrios»). É sob este título que será aclamada a divindade de Jesus:
«Jesus é o Senhor».
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«DEUS DE TERNURA E DE PIEDADE»

210. Depois do pecado de Israel, que se afastou de Deus para adorar o bezerro de ouro (9),
Deus atende a intercessão de Moisés e aceita caminhar no meio dum povo infiel, manifest-
ando deste modo o seu amor (10). A Moisés, que Lhe pede a graça de ver a sua glória. Deus re-
sponde: «Farei passar diante de ti toda a minha bondade (beleza) e proclamarei diante de ti o
nome de YHWH» (Ex 33, 18-19). E o Senhor passa diante de Moisés e proclama: «O Senhor, o
Senhor [YHWH, YHWH] é um Deus clemente e compassivo, sem pressa para se indignar e
cheio de misericórdia e fidelidade» (Ex 34, 6). Moisés confessa, então, que o Senhor é um
Deus de perdão» (11).
211. O nome divino «Eu sou» ou «Ele é» exprime a fidelidade de Deus, que, apesar da infidel-
idade do pecado dos homens e do castigo que merece, «conserva a sua benevolência em favor
de milhares de pessoas» (Ex 34, 7). Deus revela que é «rico de misericórdia» (Ef 2, 4), ao
ponto de entregar o seu próprio Filho. Dando a vida para nos libertar do pecado, Jesus rev-
elará que Ele mesmo é portador do nome divino: «Quando elevardes o Filho do Homem, en-
tão sabereis que Eu sou» (Jo 8, 28).

SÓ DEUS É

212. No decorrer dos séculos, a fé de Israel pôde desenvolver e aprofundar as riquezas conti-
das na revelação do nome divino. Deus é único, fora d'Ele não há deuses (12). Ele transcende o
mundo e a história. Foi Ele que fez o céu e a terra; «eles hão-de passar, mas Vós permaneceis;
tal como um vestido, eles se vão gastando [...] Vós, porém, sois sempre o mesmo e os vossos
anos não têm fim» (Sl 102, 27-28). N'Ele «não há variação nem sombra de mudança» (Tg 1,
17). Ele é «Aquele que é», desde sempre e para sempre; e assim, permanece sempre fiel a Si
mesmo e às suas promessas.
213. A revelação do nome inefável «Eu sou Aquele que sou» encerra, portanto, a verdade que
só Deus «É». Foi nesse sentido que já a tradução dos Setenta e, na sua sequência, a Tradição
da Igreja. compreenderam o nome divino: Deus é a plenitude do Ser e de toda a perfeição, sem
princípio nem fim. Enquanto todas as criaturas d'Ele receberam todo o ser e o ter, só Ele é o
seu próprio Ser, e Ele é por Si mesmo tudo o que Ele é.

III. Deus, «Aquele que é», é verdade e amor

214. Deus, «Aquele que É», revelou-Se a Israel como Aquele que é «cheio de misericórdia e fi-
delidade» (Ex 34, 6). Estas duas palavras exprimem, de modo sintético, as riquezas do nome
divino. Em todas as suas obras, Deus mostra a sua benevolência, a sua bondade, a sua graça, o
seu amor; mas também a sua credibilidade, a sua constância, a sua fidelidade, a sua verdade.
«Hei-de louvar o vosso nome pela vossa bondade e fidelidade» (Sl 138, 2) (13). Ele é a ver-
dade, porque «Deus é luz, e n'Ele não há trevas nenhumas» (1 Jo 1, 5); Ele é «Amor», como
ensina o apóstolo João (1 Jo 4, 8).

DEUS É A VERDADE
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215. «A verdade é princípio da vossa palavra, é eterna toda a sentença da vossa justiça» (Sl
119, 160). «Decerto, Senhor Deus, Vós é que sois Deus e dizeis palavras de verdade» (2 Sm 7,
28); é por isso que as promessas de Deus se cumprem sempre (14). Deus é a própria verdade;
as suas palavras não podem enganar. É por isso que nos podemos entregar com toda a confi-
ança e em todas as coisas à verdade e à fidelidade da sua palavra. O princípio do pecado e da
queda do homem foi uma mentira do tentador, que o levou a duvidar da palavra de Deus, da
sua benevolência e da sua fidelidade.
216. A verdade de Deus é a sua sabedoria, que comanda toda a ordem da criação e governo do
mundo (15). Só Deus que, sozinho, criou o céu e a terra (16) pode dar o conhecimento ver-
dadeiro de todas as coisas criadas na sua relação com Ele (17).
217. Deus é igualmente verdadeiro quando Se revela: todo o ensinamento que vem de Deus é
«doutrina de verdade» (Ml 2, 6). Quando Ele enviar o seu Filho ao mundo, será «para dar
testemunho da verdade» (Jo 18, 37): «Sabemos [...] que veio o Filho de Deus e nos deu en-
tendimento para conhecermos o Verdadeiro» (1 Jo 5, 20) (18).

DEUS É AMOR

218. No decorrer da sua história, Israel pôde descobrir que Deus só tinha uma razão para Se
lhe ter revelado e o ter escolhido, de entre todos os povos, para ser o seu povo: o seu amor gra-
tuito (19). E Israel compreendeu, graças aos seus profetas, que foi também por amor que Deus
não deixou de o salvar (20) e de lhe perdoar a sua infidelidade e os seus pecados (21).
219. O amor de Deus para com Israel é comparado ao amor dum pai para com o seu filho(22).
Este amor é mais forte que o de uma mãe para com os seus filhos (23). Deus ama o seu povo,
mais que um esposo a sua bem-amada (24); este amor vencerá mesmo as piores infidelidades
(25); e chegará ao mais precioso de todos os dons: «Deus amou de tal maneira o mundo, que
lhe entregou o seu Filho Único» (Jo 3, 16).
220. O amor de Deus é «eterno» (Is 54, 8): «Ainda que as montanhas se desloquem e vacilem
as colinas, o meu amor não te abandonará» (Is 54, 10). «Amei-te com amor eterno: por isso,
guardei o meu favor para contigo» (Jr 31, 3).
221. São João irá ainda mais longe, ao afirmar: «Deus é Amor» (1 Jo 4, 8, 16): a própria es-
sência de Deus é Amor. Ao enviar, na plenitude dos tempos, o seu Filho único e o Espírito de
Amor, Deus revela o seu segredo mais íntimo ": Ele próprio é eternamente permuta de amor:
Pai, Filho e Espírito Santo; e destinou-nos a tomar parte nessa comunhão.

IV. Consequências da fé no Deus Único

222. Crer em Deus, o Único, e amá-Lo com todo o nosso ser, tem consequências imensas para
toda a nossa vida:
223. É conhecer a grandeza e a majestade de Deus: «Deus é grande demais para que O pos-
samos conhecer» (Job 36, 26). É por isso que Deus deve ser «o primeiro a ser servido» (27).
224. É viver em acção de graças: Se Deus é o Único, tudo o que nós somos e tudo quanto
possuímos vem d'Ele: «Que possuis que não tenhas recebido?» (1 Cor 4, 7). «Como agrade-
cerei ao Senhor tudo quanto Ele me deu?» (Sl 116, 12).
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225. É conhecer a unidade e a verdadeira dignidade de todos os homens: todos eles foram
feitos «à imagem e semelhança de Deus» (Gn 1, 26).
226. É fazer bom uso das coisas criadas: A fé no Deus único leva-nos a usar de tudo quanto
não for Ele, na medida em que nos aproximar d'Ele, e a desprender-nos de tudo, na medida
em que d'Ele nos afastar (28):
«Meu Senhor e meu Deus, tira-me tudo o que me afasta de Ti. Meu Senhor e meu Deus, dá-
me tudo o que me aproxima de Ti. Meu Senhor e meu Deus, desapega-me de mim mesmo,
para que eu me dê todo a Ti» (29).
227. É ter confiança em Deus, em todas as circunstâncias, mesmo na adversidade. Uma or-
ação de Santa Teresa de Jesus exprime admiravelmente tal atitude:
«Nada te perturbe / Nada te espante Tudo passa / Deus não muda A paciência tudo alcança /
Quem a Deus tem nada lhe falta / Só Deus basta» (30).

Resumindo:

228. «Escuta, Israel! O Senhor; nosso Deus, é o único Senhor...» (Dt 6, 4; Mc 12, 29). «O ser
supremo tem necessariamente de ser único, isto é, sem igual. [...] Se Deus não for único, não
é Deus» (31).
229. A fé em Deus leva-nos a voltarmo-nos só para Ele, como a nossa primeira origem e o
nosso último fim, e a nada Lhe preferir ou por nada O substituir:
230. Deus, ao revelar-Se, continua mistério inefável: «Se O compreendesses, não seria
Deus» (32).
231. O Deus da nossa fé revelou-Se como Aquele que é: deu-Se a conhecer como «cheio de
misericórdia e fidelidade» (Ex 34, 6). O seu próprio Ser é verdade e amor.

PARÁGRAFO 2

O PAI

I. «Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo»

232. Os cristãos são baptizados «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» (Mt 28, 19).
Antes disso, eles respondem «Creio» à tríplice pergunta com que são interpelados a confessar
a sua fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo: «Fides omnium christianorum in Trinitate con-
sistit – A fé de todos os cristãos assenta na Trindade») (33).
233. Os cristãos são baptizados «em nome» do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e não «nos
nomes» deles porque não há senão um só Deus – o Pai Omnipotente, o Seu Filho Unigénito e
o Espírito Santo: a Santíssima Trindade.
234. O mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. É o mis-
tério de Deus em si mesmo. E, portanto, a fonte de todos os outros mistérios da fé e a luz que
os ilumina. É o ensinamento mais fundamental e essencial na «hierarquia das verdades da fé»
(35). «Toda a história da salvação não é senão a história do caminho e dos meios pelos quais o
Deus verdadeiro e único, Pai, Filho e Espírito Santo, Se revela, reconcilia consigo e Se une aos
homens que se afastam do pecado»(36).
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235. Neste parágrafo se exporá brevemente de que maneira foi revelado o mistério da
Santíssima Trindade (I), como é que a Igreja formulou a doutrina da fé sobre este mistério (II)
e, por fim, como é que, pelas missões divinas do Filho e do Espírito Santo, Deus Pai realiza o
seu «desígnio de benevolência» de criação, redenção e santificação (III).
236. Os Padres da Igreja distinguem entre «Theologia» e «Oikonomia», designando pelo
primeiro termo o mistério da vida íntima de Deus-Trindade e, pelo segundo, todas as obras de
Deus pelas quais Ele Se revela e comunica a sua vida. É pela «Oikonomia» que nos é revelada
a «Theologia»; mas, inversamente, é a «Theologia» que esclarece toda a «Oikonomia». As
obras de Deus revelam quem Ele é em Si mesmo: e, inversamente, o mistério do seu Ser ín-
timo ilumina o entendimento de todas as suas obras. Analogicamente, é o que se passa com as
pessoas humanas. A pessoa revela-se no que faz, e, quanto mais conhecemos uma pessoa,
tanto melhor compreendemos o seu agir.
237. A Trindade é um mistério de fé em sentido estrito, um dos «mistérios ocultos em Deus,
que não podem ser conhecidos se não forem revelados lá do alto» (37) É verdade que Deus
deixou traços do seu Ser trinitário na obra da criação e na sua revelação ao longo do Antigo
Testamento. Mas a intimidade do seu Ser como Trindade Santíssima constitui um mistério in-
acessível à razão sozinha e, mesmo, à fé de Israel antes da Encarnação do Filho de Deus e da
missão do Espírito Santo.

II. A revelação de Deus como Trindade

O PAI REVELADO PELO FILHO

238. A invocação de Deus como «Pai» é conhecida em muitas religiões. A divindade é muitas
vezes considerada como «pai dos deuses e dos homens». Em Israel, Deus é chamado Pai en-
quanto criador do mundo (38). Mais ainda, Deus é Pai em razão da Aliança e do dom da Lei a
Israel, seu «filho primogénito» (Ex 4, 22). Também é chamado Pai do rei de Israel (39). E é
muito especialmente «o Pai dos pobres», do órfão e da viúva, entregues à sua protecção
amorosa (40).
239. Ao designar Deus com o nome de «Pai», a linguagem da fé indica principalmente dois
aspectos: que Deus é a origem primeira de tudo e a autoridade transcendente, e, ao mesmo
tempo, que é bondade e solicitude amorosa para com todos os seus filhos. Esta ternura pa-
ternal de Deus também pode ser expressa pela imagem da maternidade (41), que indica mel-
hor a imanência de Deus, a intimidade entre Deus e a sua criatura A linguagem da fé vai,
assim, alimentar-se na experiência humana dos progenitores, que são, de certo modo, os
primeiros representantes de Deus para o homem. Mas esta experiência diz também que os
progenitores humanos são falíveis e podem desfigurar a face da paternidade e da maternid-
ade. Convém, então, lembrar que Deus transcende a distinção humana dos sexos. Não é
homem nem mulher: é Deus. Transcende também a paternidade e a maternidade humanas
(42), sem deixar de ser de ambas a origem e a medida (43): ninguém é pai como Deus.
240. Jesus revelou que Deus é «Pai» num sentido inédito: não o é somente enquanto Cri-
ador: é Pai eternamente em relação ao seu Filho único, o qual, eternamente, só é Filho em re-
lação ao Pai: «Ninguém conhece o Filho senão o Pai, nem ninguém conhece o Pai senão o
Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar» (Mt 11, 27).
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241. É por isso que os Apóstolos confessam que Jesus é «o Verbo [que] estava [no princípio]
junto de Deus» e que é Deus (Jo 1, 1), «a imagem do Deus invisível» (Cl 1, 15), «o resplendor
da sua glória e a imagem da sua substância» (Heb 1, 3).
242. Na esteira deles, seguindo a tradição apostólica, no primeiro concílio ecuménico de
Niceia, em 325, a Igreja confessou que o Filho é «consubstancial» ao Pai (44), quer dizer, um
só Deus com Ele. O segundo concilio ecuménico, reunido em Constantinopla em 381, guardou
esta expressão na sua formulação do Credo de Niceia e confessou «o Filho unigénito de Deus,
nascido do Pai antes de todos os séculos, luz da luz. Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado, não criado, consubstancial ao Pai» (45).

O PAI E O FILHO REVELADOS PELO ESPÍRITO

243. Antes da sua Páscoa, Jesus anuncia o envio de um «outro Paráclito»(Defensor), o


Espírito Santo. Agindo desde a criação (46) e tendo outrora «falado pelos profetas» (47), o
Espírito Santo estará agora junto dos discípulos, e neles (48), para os ensinar (49) e os guiar
«para a verdade total» (Jo 16, 13). E, assim, o Espírito Santo é revelado como uma outra pess-
oa divina, em relação a Jesus e ao Pai.
244. A origem eterna do Espírito revela-se na sua missão temporal. O Espírito Santo é envi-
ado aos Apóstolos e à Igreja, tanto pelo Pai, em nome do Filho, como pessoalmente pelo Filho,
depois do seu regresso ao Pai (50). O envio da pessoa do Espírito, após a glorificação de Jesus
(51) revela em plenitude o mistério da Santíssima Trindade.
245. A fé apostólica relativamente ao Espírito foi confessada pelo segundo concilio
ecuménico, reunido em Constantinopla em 381:«Nós acreditamos no Espírito Santo, Senhor
que dá a vida, e procede do Pai» (52). A Igreja reconhece assim o Pai como «a fonte e a origem
de toda a Divindade» (53). Mas a origem eterna do Espírito Santo não está desligada da do
Filho: «O Espírito Santo, que é a terceira pessoa da Trindade, é Deus, uno e igual ao Pai e ao
Filho, da mesma substância e também da mesma natureza... Contudo, não dizemos que Ele é
somente o Espírito do Pai, mas, ao mesmo tempo, o Espírito do Pai e do Filho»(54). O Credo
do Concílio de Constantinopla da Igreja confessa que Ele, «com o Pai e o Filho, é adorado e
glorificado» (55).
246. A tradição latina do Credo confessa que o Espírito «procede do Pai e do Filho
(Filioque)». O Concílio de Florença, em 1438, explicita: «O Espírito Santo [...] recebe a sua es-
sência e o seu ser ao mesmo tempo do Pai e do Filho, e procede eternamente de um e do outro
como dum só Princípio e por uma só espiração [...] E porque tudo o que é do Pai, o próprio Pai
o deu ao seu Filho Unigénito, gerando-O, com excepção do seu ser Pai, esta mesma procedên-
cia do Espírito Santo, a partir do Filho, Ele a tem eternamente do seu Pai, que eternamente O
gerou» (56).
247. A afirmação do Filioque não figurava no Símbolo de Constantinopla de 381. Mas, com
base numa antiga tradição latina e alexandrina, o Papa São Leão já a tinha confessado dog-
maticamente em 447 (57), mesmo antes de Roma ter conhecido e recebido o Símbolo de 381
no Concílio de Calcedónia, em 451). O uso desta fórmula no Credo foi sendo, pouco a pouco,
admitido na liturgia latina (entre os séculos VIII e XI). A introdução do Filioque no Símbolo
Niceno-Constantinopolitano pela liturgia latina constitui, ainda hoje, no entanto, um difer-
endo com as igrejas ortodoxas.
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248. A tradição oriental exprime, antes de mais, o carácter de origem primeira do Pai em re-
lação ao Espírito. Ao confessar o Espírito como «saído do Pai» (Jo 15, 26), afirma que Ele pro-
cede do Pai pelo Filho (58). A tradição ocidental exprime, sobretudo, a comunhão consubstan-
cial entre o Pai e o Filho, ao dizer que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (Filioque). E
di-lo «de maneira legítima e razoável» (59), «porque a ordem eterna das pessoas divinas na
sua comunhão consubstancial implica que o Pai seja a origem primeira do Espírito, enquanto
«princípio sem princípio» (60), mas também que, enquanto Pai do Filho Único, seja com Ele
«o princípio único de que procede o Espírito Santo» (61). Esta legítima complementaridade,
se não for exagerada, não afecta a identidade da fé na realidade do mesmo mistério
confessado.

III. A Santíssima Trindade na doutrina da fé

A FORMAÇÃO DO DOGMA TRINITÁRIO

249. A verdade revelada da Santíssima Trindade esteve, desde a origem, na raiz da fé viva da
Igreja. principalmente por meio do Baptismo. Encontra a sua expressão na regra da fé baptis-
mal, formulada na pregação, na catequese e na oração da Igreja. Tais formulações encontram-
se já nos escritos apostólicos, como o comprova esta saudação retomada na liturgia eu-
carística: «A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo
estejam com todos vós» (2 Cor 13, 13)(62).
250. No decurso dos primeiros séculos, a Igreja preocupou-se com formular mais explicita-
mente a sua fé trinitária, tanto para aprofundar a sua própria inteligência da fé, como para a
defender contra os erros que a deformavam. Foi esse o trabalho dos primeiros concílios,
ajudados pelo trabalho teológico dos Padres da Igreja e sustentados pelo sentido da fé do povo
cristão.
251. Para a formulação do dogma da Trindade, a Igreja teve de elaborar uma terminologia
própria, com a ajuda de noções de origem filosófica: «substância», «pessoa» ou «hipóstase»,
«relação», etc. Ao fazer isto, a Igreja não sujeitou a fé a uma sabedoria humana, mas deu um
sentido novo, inédito, a estes termos, chamados a exprimir também, desde então, um mistério
inefável, «transcendendo infinitamente tudo quanto podemos conceber a nível humano» (63).
252. A Igreja utiliza o termo «substância» (às vezes também traduzido por «essência» ou
«natureza») para designar o ser divino na sua unidade; o termo «pessoa» ou «hipóstase» para
designar o Pai, o Filho e o Espírito Santo na distinção real entre Si; e o termo «relação» para
designar o facto de que a sua distinção reside na referência recíproca de uns aos outros. O

DOGMA DA SANTÍSSIMA TRINDADE

253. A Trindade é una. Nós não confessamos três deuses, mas um só Deus em três pessoas:
«a Trindade consubstancial» (64). As pessoas divinas não dividem entre Si a divindade única:
cada uma delas é Deus por inteiro: «O Pai é aquilo mesmo que o Filho, o Filho aquilo mesmo
que o Pai, o Pai e o Filho aquilo mesmo que o Espírito Santo, ou seja, um único Deus por
natureza» (65). «Cada uma das três pessoas é esta realidade, quer dizer, a substância, a essên-
cia ou a natureza divina» (66).
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254. As pessoas divinas são realmente distintas entre Si. «Deus é um só, mas não solitário»
(67). «Pai», «Filho», «Espírito Santo» não são meros nomes que designam modalidades do
ser divino, porque são realmente distintos entre Si. «Aquele que é o Filho não é o Pai e Aquele
que é o Pai não é o Filho, nem o Espírito Santo é Aquele que é o Pai ou o Filho» (68). São dis-
tintos entre Si pelas suas relações de origem: «O Pai gera, o Filho é gerado, o Espírito Santo
procede»(69). A unidade divina é trina.
255. As pessoas divinas são relativas umas às outras. Uma vez que não divide a unidade
divina, a distinção real das pessoas entre Si reside unicamente nas relações que as referenciam
umas às outras: «Nos nomes relativos das pessoas, o Pai é referido ao Filho, o Filho ao Pai, o
Espírito Santo a ambos. Quando falamos destas três pessoas, considerando as relações re-
spectivas, cremos, todavia, numa só natureza ou substância» (70). Com efeito, «n'Eles tudo é
um, onde não há a oposição da relação» (71). «Por causa desta unidade, o Pai está todo no
Filho e todo no Espírito Santo: o Filho está todo no Pai e todo no Espírito Santo: o Espírito
Santo está todo no Pai e todo no Filho»(72).
256. São Gregório de Nazianzo, também chamado «o Teólogo», confia aos catecúmenos de
Constantinopla o seguinte resumo da fé trinitária:
«Antes de mais nada, guardai-me este bom depósito, pelo qual vivo e combato, com o qual
quero morrer, que me dá coragem para suportar todos os males e desprezar todos os prazeres:
refiro-me à profissão de fé no Pai e no Filho e no Espírito Santo. Eu vo-la confio hoje. É por
ela que, daqui a instantes, eu vou mergulhar-vos na água e dela fazer-vos sair. Eu vo-la dou
por companheira e protectora de toda a vossa vida. Dou-vos uma só Divindade e Potência,
uma nos Três e abrangendo os Três de maneira distinta. Divindade sem diferença de substân-
cia ou natureza, sem grau superior que eleve nem grau inferior que abaixe [...] É de três infini-
tos a infinita conaturalidade. Deus integralmente, cada um considerado em Si mesmo [...]
Deus, os Três considerados juntamente [...] Assim que comecei a pensar na Unidade logo me
encontrei envolvido no esplendor da Trindade. Mal começo a pensar na Trindade, logo à Un-
idade sou reconduzido» (73).

IV. As obras divinas e as missões trinitárias

257. «O lux beata Trinitas et principalis Unitas! – Ó Trindade. Luz ditosa, ó primordial Unid-
ade!» (74). Deus é eterna bem-aventurança, vida imortal, luz sem ocaso. Deus é amor: Pai,
Filho e Espírito Santo. Livremente. Deus quer comunicar a glória da sua vida bem- aven-
turada. Tal é o «mistério da sua vontade» (Ef 1, 9) que Ele concebeu antes da criação do
mundo em seu Filho muito-amado, uma vez que nos «destinou de antemão a que nos
tornássemos seus filhos adoptivos por Jesus Cristo» (Ef 1, 5), quer dizer, a sermos «conformes
à imagem do seu Filho» (Rm 8, 29), graças ao «Espírito que faz de vós filhos adoptivos» (Rm
8, 15). Este desígnio é uma «graça que nos foi dada [...] desde toda a eternidade»(2 Tm 1, 9), a
qual procede imediatamente do amor trinitário. E este amor manifesta-se na obra da criação,
em toda a história da salvação depois da queda, e nas missões do Filho e do Espírito, continu-
adas pela missão da Igreja (75).
258. Toda a economia divina é obra comum das três pessoas divinas. Assim como não tem
senão uma e a mesma natureza, a Trindade não tem senão uma e a mesma operação (76). «O
Pai, o Filho e o Espírito Santo não são três princípios das criaturas, mas um só princípio» (77).
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No entanto, cada pessoa divina realiza a obra comum segundo a sua propriedade pessoal. É
assim que a Igreja confessa, na sequência do Novo Testamento (78), «um só Deus e Pai, de
Quem são todas as coisas; um só Senhor Jesus Cristo, para Quem são todas as coisas; e um só
Espírito Santo, em Quem são todas as coisas» (79). São sobretudo as missões divinas da En-
carnação do Filho e do dom do Espírito Santo que manifestam as propriedades das pessoas
divinas.
259. Obra ao mesmo tempo comum e pessoal, toda a economia divina faz conhecer não só a
propriedade das pessoas divinas, mas também a sua única natureza. Por isso, toda a vida
cristã é comunhão com cada uma das pessoas divinas, sem de modo algum as separar. Todo
aquele que dá glória ao Pai, fá-lo pelo Filho no Espírito Santo: todo aquele que segue Cristo,
fá-lo porque o Pai o atrai (80) e o Espírito o move (81).
260. O fim último de toda a economia divina é o acesso das criaturas à unidade perfeita da
bem-aventurada Trindade (82). Mas já desde agora nós somos chamados a ser habitados pela
Santíssima Trindade: «Quem me tem amor, diz o Senhor, porá em prática as minhas palavras.
Meu Pai amá-lo-á; Nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada» (Jo 14, 23):
«Ó meu Deus, Trindade que eu adoro, ajudai-me a esquecer-me inteiramente de mim, para
me estabelecer em Vós, imóvel e pacifica como se já a minha alma estivesse na eternidade.
Que nada possa perturbar a minha paz, nem fazer-me sair de Vós, ó meu Imutável, mas que
cada minuto me leve mais longe na profundeza do vosso mistério! Pacificai a minha alma,
fazei dela o vosso céu, vossa morada querida e o lugar do vosso repouso. Que nunca ai eu Vos
deixe só, mas que esteja lá inteiramente, toda desperta na minha fé, toda em adoração, toda
entregue à vossa acção criadora» (83).

Resumindo:

261. O mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. Só Deus


pode dar-nos o seu conhecimento, revelando-Se como Pai, Filho e Espírito Santo.
262. A Encarnação do Filho de Deus revela que Deus é o Pai eterno, e que o Filho é consub-
stancial ao Pai, quer dizer que n'Ele e com Ele é o mesmo e único Deus.
263. A missão do Espírito Santo, enviado pelo Pai em nome do Filho (84) e pelo Filho «de
junto do Pai» (Jo 15, 26), revela que Ele é, com Eles, o mesmo e único Deus. «Com o Pai e o
Filho é adorado e glorificado» (85).
264. «O Espírito Santo procede do Pai enquanto fonte primeira; e, pelo dom eterno do Pai
ao Filho, procede do Pai e do Filho em comunhão» (86).
265. Pela graça do Baptismo «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», (Mt 28, 19),
somos chamados a participar na vida da Trindade bem-aventurada; para já, na obscurid-
ade da fé, e depois da morte na luz eterna (87).
266. «Fides autem catholica haec est, ut unum Deum in Trinitate, et Trinitatem in unitate
veneremur, neque confundentes personas, neque substantiam sepa-raptes; alia enim est per-
sona Patris, alia Filii, alia Spiritus Sancti: sed Patris et Filii et Spiritus Sancti una est divinitas,
aequalis gloria, coaeterna majestas (88) – A fé católica é esta: venerarmos um só Deus na
Trindade e a Trindade na unidade, sem confudir as Pessoas nem dividir a substância:
porque uma é a Pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas do Pai e do
Filho e do Espírito Santo é só uma a divindade, igual a glória e coeterna a majestade».
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267. Inseparáveis no que são, as pessoas divinas são também inseparáveis no que fazem.
Mas, na operação divina única, cada uma manifesta o que Lhe é próprio na Trindade,
sobretudo nas missões divinas da Encarnação do Filho e do dom do Espírito Santo.

PARÁGRAFO 3

O TODO-PODEROSO

268. De todos os atributos divinos, só a omnipotência é nomeada no Símbolo: confessá-la é


de grande alcance para a nossa vida. Nós acreditamos que ela é universal, porque Deus, que
tudo criou (89), tudo governa e tudo pode; amorosa, porque Deus é nosso Pai (90); misteri-
osa, porque só a fé a pode descobrir, quando «ela actua plenamente na fraqueza» (2 Cor 12, 9)
(91).

«FAZ TUDO QUANTO LHE APRAZ» (Sl 115, 3)

269. As Sagradas Escrituras confessam, a cada passo, o poder universal de Deus. Ele é cha-
mado «o Poderoso de Jacob» (Gn 49, 24; Is 1, 24: etc.) «o Senhor dos Exércitos», «o Forte, o
Poderoso» (SI 24, 8-10). Se Deus é omnipotente «no céu e na terra» (Sl 135, 6), é porque foi
Ele quem os fez. Portanto, nada Lhe é impossível (92) e Ele dispõe à vontade da sua obra (93);
Ele é o Senhor do Universo, cuja ordem foi por Ele estabelecida e Lhe permanece inteiramente
submissa e disponível; Ele é o Senhor da história; governa os corações e os acontecimentos se-
gundo a sua vontade (94): «O vosso poder imenso sempre vos assiste – e quem poderá resistir
à força do Vosso braço?» (Sb 11, 21).

«PORQUE PODEIS TUDO, DE TODOS VOS COMPADECEIS» (Sb 11, 23)

270. Deus é o Pai todo-poderoso. A sua paternidade e o seu poder esclarecem-se mutua-
mente. Com efeito, Ele mostra a sua omnipotência paterna pelo modo como cuida das nossas
necessidades (95) pela adopção filial que nos concede («serei para vós um Pai e vós sereis para
Mim filhos e filhas, diz o Senhor todo poderoso»: 2 Cor 6, 18); enfim, pela sua infinita miser-
icórdia, pois mostra o seu poder no mais alto grau, perdoando livremente os pecados.
271. A omnipotência divina não é, de modo algum, arbitrária: «Em Deus, o poder e a essên-
cia, a vontade e a inteligência, a sabedoria e a justiça, são uma só e a mesma coisa, de modo
que nada pode estar no poder divino que não possa estar na justa vontade de Deus ou na sua
sábia inteligência» (96).

O MISTÉRIO DA APARENTE IMPOTÊNCIA DE DEUS

272. A fé em Deus Pai todo-poderoso pode ser posta à prova pela experiência do mal e do so-
frimento. Por vezes, Deus pode parecer ausente e incapaz de impedir o mal. Ora, Deus Pai rev-
elou a sua omnipotência do modo mais misterioso, na humilhação voluntária e na ressur-
reição de seu Filho, pelas quais venceu o mal. Por isso, Cristo crucificado é «força de Deus e
sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é
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fraqueza de Deus é mais forte do que os homens» (1 Cor 1, 25). Foi na ressurreição e na ex-
altação de Cristo que o Pai «exerceu a eficácia da [sua] poderosa força» e mostrou a «in-
comensurável grandeza que representa o seu poder para nós, os crentes» (Ef 1, 19-22).
273. Só a fé pode aderir aos caminhos misteriosos da omnipotência de Deus. Esta fé gloria-se
nas suas fraquezas, para atrair a si o poder de Cristo (97). Desta fé é modelo supremo a
Virgem Maria, pois acreditou que «a Deus nada é impossível» (Lc 1, 37) e pôde proclamar a
grandeza do Senhor: «O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas; 'Santo' – é o seu nome» (Lc
1, 49).
274. «Portanto, nada é mais próprio para firmar a nossa fé e a nossa esperança do que a con-
vicção, profundamente arraigada nas nossas almas, de que nada é impossível a Deus. Tudo o
que [o Credo] seguidamente nos propõe para crer, as coisas maiores, as mais incompreensí-
veis, bem como as mais sublimes e mais acima das leis ordinárias da Natureza, basta que a
nossa razão tenha a ideia da omnipotência divina para as admitir facilmente e sem hesitação
alguma» (98).

Resumindo:

275. Confessamos com o justo Job: «Eu sei que podeis tudo e que, para Vós, nenhum
projecto
é impossível» (Job 42, 2).
276. Fiel ao testemunho da Escritura, a Igreja dirige muitas vezes a sua oração ao «Deus
todo-poderoso e eterno» (omnipotens sempiterne Deus), crendo firmemente que «a Deus
nada é impossível» (Lc 1, 37) (99).
277. Deus manifesta a sua omnipotência convertendo-nos dos nossos pecados e
restabelecendo-nos na sua amizade pela graça («Deus qui omnipotentiam tuam parcendo
maxime et miserando manifestas» – «Senhor; que dais a maior prova do vosso poder
quando perdoais e Vos compadeceis») (100).
278. Se não crermos que o amor de Deus é omnipotente, como poderemos crer que o Pai
pôde criar-nos, o Filho remir-nos e o Espírito Santo santificar-nos?

PARÁGRAFO 4

O CRIADOR

279. «No princípio, Deus criou o céu e a terra» (Gn 1, 1). É com estas palavras solenes que
começa a Sagrada Escritura. E o Símbolo da fé retoma-as, confessando a Deus, Pai todo- po-
deroso, como «Criador do céu e da terra» (101), «de todas as coisas, visíveis e invisíveis»
(102). Vamos, portanto, falar primeiro do Criador, depois da sua criação, e, finalmente, da
queda do pecado, de que Jesus, Filho de Deus, nos veio Libertar.
280. A criação é o fundamento de «todos os desígnios salvíficos de Deus», «o princípio da
história da salvação» (103), que culmina em Cristo. Por seu lado, o mistério de Cristo derrama
sobre o mistério da criação a luz decisiva; revela o fim, em vista do qual «no princípio Deus
criou o céu e a terra» (Gn 1, 1): desde o princípio, Deus tinha em vista a glória da nova criação
em Cristo (104).
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281. É por isso que as leituras da Vigília Pascal, celebração da nova criação em Cristo,
começam pela narrativa da criação. Do mesmo modo, na liturgia bizantina, a narrativa da cri-
ação constitui sempre a primeira leitura das vigílias das grandes festas do Senhor. Segundo o
testemunho dos antigos, a instrução dos catecúmenos para o Baptismo segue o mesmo cam-
inho (105).

I. A catequese sobre a criação

282. A catequese sobre a criação reveste-se duma importância capital. Diz respeito aos
próprios fundamentos da vida humana e cristã, porque torna explícita a resposta da fé cristã à
questão elementar que os homens de todos os tempos têm vindo a pôr-se: «De onde vimos?»
«Para onde vamos?» «Qual a nossa origem?» «Qual o nosso fim?» «Donde vem e para onde
vai tudo quanto existe?» As duas questões, da origem e, do fim, são inseparáveis. E são deci-
sivas para o sentido e para a orientação da nossa vida e do nosso proceder.
283. A questão das origens do mundo e do homem tem sido objecto de numerosas invest-
igações científicas, que enriqueceram magnificamente os nossos conhecimentos sobre a idade
e a dimensão do cosmos, a evolução dos seres vivos, o aparecimento do homem. Tais
descobertas convidam-nos, cada vez mais, a admirar a grandeza do Criador e a dar-Lhe graças
por todas as suas obras, e pela inteligência e saber que dá aos sábios e investigadores. Estes
podem dizer com Salomão: «Foi Ele quem me deu a verdadeira ciência de todas as coisas, a
fim de conhecer a constituição do Universo e a força dos elementos [...], porque a Sabedoria,
que tudo criou, mo ensinou» (Sb 7, 17-21).
284. O grande interesse atribuído a estas pesquisas é fortemente estimulado por uma questão
de outra ordem, que ultrapassa o domínio próprio das ciências naturais. Porque não se trata
apenas de saber quando e como surgiu materialmente o cosmos, nem quando é que apareceu
o homem; mas, sobretudo, de descobrir qual o sentido de tal origem: se foi determinada pelo
acaso, por um destino cego ou uma fatalidade anónima, ou, antes, por um Ser transcendente,
inteligente e bom, chamado Deus. E se o mundo provém da sabedoria e da bondade de Deus,
qual a razão do mal? De onde vem ele? Quem é por ele responsável? E será que existe uma
libertação do mesmo?
285. Desde os princípios que a fé cristã teve de defrontar-se com respostas, diferentes da sua,
sobre a questão das origens. De facto, nas religiões e nas culturas antigas encontram-se mui-
tos mitos relativos às origens. Certos filósofos disseram que tudo é Deus, que o mundo é Deus,
ou que a evolução do mundo é a evolução de Deus (panteísmo): outros disseram que o mundo
é uma emanação necessária de Deus, brotando de Deus como duma fonte e a Ele voltando;
outros, ainda, afirmaram a existência de dois princípios eternos, o bem e o mal, a luz e as tre-
vas, em luta permanente (dualismo, maniqueísmo). Segundo algumas destas concepções, o
mundo (pelo menos o mundo material) seria mau, produto duma decadência e, portanto, ob-
jecto de repúdio ou de superação (gnose); outras admitem que o mundo tenha sido feito por
Deus, mas à maneira dum relojoeiro que, depois de o ter feito, o abandonou a si mesmo
(deísmo); outras, finalmente, rejeitam qualquer origem transcendente do mundo e vêem nele
o puro jogo duma matéria que teria existido sempre (materialismo). Todas estas tentativas
dão testemunho da permanência e universalidade do problema das origens. É uma busca pró-
pria do homem.
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286. Não há dúvida de que a inteligência humana é capaz de encontrar uma resposta para a
questão das origens. Com efeito, a existência de Deus Criador pode ser conhecida com certeza
pelas suas obras, graças à luz da razão humana (106), mesmo que tal conhecimento muitas
vezes seja obscurecido e desfigurado pelo erro. E é por isso que a fé vem confirmar e esclare-
cer a razão na compreensão exacta desta verdade: «Pela fé, sabemos que o mundo foi organiz-
ado pela palavra de Deus, de modo que o que se vê provém de coisas invisíveis» (Heb 11, 3).
287. A verdade da criação é tão importante para toda a vida humana que Deus, na sua
bondade, quis revelar ao seu povo tudo quanto é salutar conhecer-se a esse propósito. Para
além do conhecimento natural, que todo o homem pode ter do Criador (107), Deus revelou
progressivamente a Israel o mistério da criação. Deus, que escolheu os patriarcas, que fez sair
Israel do Egipto e que, escolhendo Israel, o criou e formou (108) revela-Se como Aquele a
quem pertencem todos os povos da terra e toda a terra, como sendo o único que «fez o céu e a
terra» (Sl 115, 15; 124, 8; 134, 3).
288. Assim, a revelação da criação é inseparável da revelação e da realização da Aliança de
Deus, o Deus Único, com o seu povo. A criação é revelada como o primeiro passo para esta
Aliança, como o primeiro e universal testemunho do amor omnipotente de Deus (109). Por
isso, a verdade da criação é expressa com vigor crescente na mensagem dos profetas (110), na
oração dos salmos (111) e da liturgia, na reflexão da sabedoria (112) do Povo eleito.
289. Entre tudo quanto a Sagrada Escritura nos diz sobre a criação, os três primeiros capítu-
los do Génesis ocupam um lugar único. Do ponto de vista literário, estes textos podem ter di-
versas fontes. Os autores inspirados puseram-nos no princípio da Escritura, de maneira a
exprimirem, na sua linguagem solene, as verdades da criação, da sua origem e do seu fim em
Deus, da sua ordem e da sua bondade, da vocação do homem, e enfim, do drama do pecado e
da esperança da salvação. Lidas à luz de Cristo, na unidade da Sagrada Escritura e na Tradição
viva da Igreja, estas palavras continuam a ser a fonte principal para a catequese dos mistérios
do «princípio»: criação, queda, promessa da salvação.

II. A criação – obra da Santíssima Trindade

290. «No princípio, Deus criou o céu e a terra». Três coisas são afirmadas nestas primeiras
palavras da Escritura: Deus eterno deu um princípio a tudo quanto existe fora d'Ele. Só Ele é
criador (o verbo «criar» – em hebraico «bara» – tem sempre Deus por sujeito). E tudo
quanto existe (expresso pela fórmula «o céu e a terra») depende d' Aquele que lhe deu o ser.
291. «No princípio era o Verbo [...] e o Verbo era Deus [...] Tudo se fez por meio d'Ele e, sem
Ele, nada se fez» (Jo 1, 1-3). O Novo Testamento revela que Deus tudo criou por meio do
Verbo eterno, seu Filho muito-amado. Foi n'Ele «que foram criados todos os seres que há nos
céus e na terra [...]. Tudo foi criado por seu intermédio e para Ele. Ele é anterior a todas as
coisas, e todas se mantêm por Ele» (Cl 1, 16-17). A fé da Igreja afirma igualmente a acção cri-
adora do Espírito Santo: Ele é Aquele «que dá a vida» (113), «o Espírito Criador» (Veni,
Creator Spiritus), a «Fonte de todo o bem» (114).
292. Insinuada no Antigo Testamento (115) revelada na Nova Aliança, a acção criadora do
Filho e do Espírito Santo, inseparavelmente unida à do Pai, é claramente afirmada pela regra
de fé da Igreja: «Existe um só Deus. Ele é o Pai, é Deus, é o Criador, o Autor, o Ordenador. Fez
todas as coisas por Si mesmo, quer dizer, pelo Seu Verbo e pela sua Sabedoria» (116) «pelo
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Filho e pelo Espírito» que são como «as suas mãos» (117). A criação é obra comum da
Santíssima Trindade.

III. «O mundo foi criado para glória de Deus»

293. É uma verdade fundamental, que a Escritura e a Tradição não cessam de ensinar e de
celebrar: «O mundo foi criado para glória de Deus» (118). Deus criou todas as coisas, explica
São Boaventura, «non propter gloriam augendam, sed propter gloriam manifestandam et
propter gloriam suam communicandam – Não para aumentar a Sua glória, mas para a mani-
festar e para a comunicar » (119). Para criar, Deus não tem outra razão senão o seu amor e a
sua bondade: «Aperta manu clave amoris creaturae prodierunt – As criaturas saíram da mão
(de Deus) aberta pela chave do amor» (120). E o I Concílio do Vaticano explica:
«Na sua bondade e pela sua força omnipotente, não para aumentar a sua felicidade nem para
adquirir a sua perfeição, mas para a manifestar pelos bens que concede às suas criaturas,
Deus, no seu libérrimo desígnio, criou do nada simultaneamente e desde o princípio do tempo
uma e outra criatura — a espiritual e a corporal» (121).
294. A glória de Deus está em que se realize esta manifestação e esta comunicação da sua
bondade, em ordem às quais o mundo foi criado. Fazer de nós «filhos adoptivos por Jesus
Cristo. Assim aprouve à sua vontade, para que fosse enaltecida a glória da sua graça» (Ef 1,
5-6): «Porque a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus: se a rev-
elação de Deus pela criação já proporcionou a vida a todos os seres que vivem na terra, quanto
mais a manifestação do Pai pelo Verbo proporciona a vida aos que vêem a Deus!» (122). O fim
último da criação é que Deus Pai, «criador de todos os seres, venha finalmente a ser 'tudo em
todos' (1 Cor 15, 28), provendo, ao mesmo tempo, à sua glória e à nossa felicidade» (123).

IV. O mistério da criação

DEUS CRIA COM SABEDORIA E POR AMOR

295 Acreditamos que Deus criou o mundo segundo a sua sabedoria (124). O mundo não é
fruto duma qualquer necessidade, dum destino cego ou do acaso. Acreditamos que ele procede
da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participantes do seu Ser, da sua sabedoria
e da sua bondade: «porque Vós criastes todas as coisas e, pela vossa vontade, elas receberam a
existência e foram criadas» (Ap 4, 11). «Como são grandes, Senhor, as vossas obras! Tudo
fizestes com sabedoria» (Sl 104, 24). «O Senhor é bom para com todos e a sua misericórdia
estende-se a todas as criaturas» (Sl 145, 9).

DEUS CRIA «DO NADA»

296. Acreditamos que Deus não precisa de nada preexistente, nem de qualquer ajuda, para
criar (124). A criação tão pouco é uma emanação necessária da substância divina (126). Deus
cria livremente «do nada» (127):
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«Que haveria de extraordinário, se Deus tivesse tirado o mundo duma matéria preexistente?
Um artista humano, quando se lhe dá um material, faz dele o que quer. O poder de Deus,
porém, mostra-se precisamente quando parte do nada para fazer tudo o que quer» (128).
297. A fé na criação a partir «do nada» é testemunhada na Escritura como uma verdade cheia
de promessa e de esperança. É assim que a mãe dos sete filhos os anima ao martírio:
«Não sei como aparecestes no meu seio; não fui eu que vos dei a respiração e a vida, nem fui
eu que dispus os membros que compõem cada um de vós. Por isso, o Criador do mundo, que
formou o homem à nascença e concebeu todas as coisas na sua origem, vos dará novamente,
na sua misericórdia, a respiração e a vida, uma vez que vos desprezais agora a vós próprios,
por amor às suas leis [...] Peço-te, meu filho, que olhes para o céu e para a terra. Vê todas as
coisas que neles se encontram, para saberes que Deus não as fez do que já existia, e que o
mesmo sucede com o género humano» (2 Mac 7, 22-23.28).
298. Uma vez que Deus pode criar «do nada», também pode, pelo Espírito Santo, dar a vida
da alma aos pecadores, criando neles um coração puro e a vida do corpo aos defuntos, pela
ressurreição. Ele que «dá a vida aos mortos e chama o que não existe como se já existisse»
(Rm 4, 17). E como, pela sua palavra, pôde fazer que das trevas brilhasse a luz (130), pode
também dar a luz da fé aos que a ignoram (131).

DEUS CRIA UM MUNDO ORDENADO E BOM

299. Uma vez que Deus cria com sabedoria, a criação possui ordem. «Dispusestes tudo com
medida, número e peso» (Sb 11, 20). Criada no Verbo e pelo Verbo eterno, «que é a imagem
do Deus invisível» (Cl 1, 15), a criação destina-se e orienta-se para o homem, imagem de Deus
(132), chamado ele próprio a uma relação pessoal com Deus. A nossa inteligência, participante
da luz do intelecto divino, pode entender o que Deus nos diz pela sua criação (133), sem
dúvida com grande esforço e num espírito de humildade e de respeito perante o Criador e a
sua obra (134). Saída da bondade divina, a criação partilha dessa bondade («E Deus viu que
isto era bom [...] muito bom»: Gn 1, 4. 10. 12. 18. 21. 31). Porque a criação é querida por Deus
como um dom orientado para o homem, como herança que lhe é destinada e confiada. A
Igreja, em diversas ocasiões, viu-se na necessidade de defender a bondade da criação, mesmo
a do mundo material (135).

DEUS TRANSCENDE A CRIAÇÃO E ESTÁ PRESENTE NELA

300. Deus é infinitamente maior do que todas as suas obras (136): «A vossa majestade está
acima dos céus» (Sl 8, 2), «insondável é a sua grandeza» (Sl 145, 3). Mas, porque Ele é o Cri-
ador soberano e livre, causa primeira de tudo quanto existe, está presente no mais íntimo das
suas criaturas: «É n'Ele que vivemos, nos movemos e existimos» (Act 17, 28). Segundo as pa-
lavras de Santo Agostinho, Ele é «superior summo meo et interior intimo meo — Deus está
acima do que em mim há de mais elevado e é mais interior do que aquilo que eu tenho de mais
íntimo» (137).

DEUS SUSTENTA E CONDUZ A CRIAÇÃO


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301. Depois da criação, Deus não abandona a criatura a si mesma. Não só lhe dá o ser e o exi-
stir, mas a cada instante a mantém no ser, lhe dá o agir e a conduz ao seu termo. Reconhecer
esta dependência total do Criador é fonte de sabedoria e de liberdade, de alegria e de
confiança:
«Vós amais tudo quanto existe e não tendes aversão a coisa alguma que fizestes: se tivésseis
detestado alguma criatura, não a teríeis formado. Como poderia manter-se qualquer coisa, se
Vós não quisésseis? Como é que ela poderia durar, se não a tivésseis chamado à existência?
Poupais tudo, porque tudo é vosso, ó Senhor, que amais a vida» (Sb 11, 24-26).

V. Deus realiza o seu desígnio: a divina Providência

302. A criação tem a sua bondade e a sua perfeição próprias, mas não saiu totalmente
acabada das mãos do Criador. Foi criada «em estado de caminho» («in statu viae») para uma
perfeição última ainda a atingir e a que Deus a destinou. Chamamos divina Providência às dis-
posições pelas quais Deus conduz a sua criação em ordem a essa perfeição: «Deus guarda e
governa, pela sua Providência, tudo quanto criou, "atingindo com força dum extremo ao outro
e dispondo tudo suavemente" (Sb 8, 1). Porque "tudo está nu e patente a seus olhos" (Heb 4,
13), mesmo aquilo que depende da futura acção livre das criaturas» (138).
303. É unânime, a este respeito, o testemunho da Escritura: a solicitude da divina Providên-
cia é concreta e imediata, cuida de tudo, desde os mais insignificantes pormenores até aos
grandes acontecimentos do mundo e da história. Os livros santos afirmam, com veemência, a
soberania absoluta de Deus no decurso dos acontecimentos: «Tudo quanto Lhe aprouve, o
nosso Deus o fez, no céu e na terra» (Sl 115, 3); e de Cristo se diz: «que abre e ninguém fecha,
e fecha e ninguém abre» (Ap 3, 7); «há muitos projectos no coração do homem, mas é a vont-
ade do Senhor que prevalece» (Pr 19, 21).
304. É assim que, muitas vezes, vemos o Espírito Santo, autor principal da Sagrada Escritura,
atribuir a Deus certas acções, sem mencionar causas-segundas. Isso não é «uma maneira de
dizer» primitiva, mas sim um modo profundo de afirmar o primado de Deus e o seu senhorio
absoluto sobre a história e sobre o mundo (139) e de ensinar a ter confiança n'Ele. A oração
dos Salmos é, aliás, a grande escola desta confiança (140).
305. Jesus reclama um abandono filial à Providência do Pai celeste, que cuida das mais
pequenas necessidades dos seus filhos: «Não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer?
Que havemos de beber? [...] Bem sabe o vosso Pai celeste que precisais de tudo isso. Procurai
primeiro o Reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo» (Mt 6,
31-33) (141).

A PROVIDÊNCIA E AS CAUSAS SEGUNDAS

306. Deus é o Senhor soberano dos seus planos. Mas, para a realização dos mesmos, serve-Se
também do concurso das criaturas. Isto não é um sinal de fraqueza, mas da grandeza e
bondade de Deus omnipotente. É que Ele não só permite às suas criaturas que existam, mas
confere-lhes a dignidade de agirem por si mesmas, de serem causa e princípio umas das out-
ras e de cooperarem, assim, na realização do seu desígnio.
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307. Aos homens, Deus concede mesmo poderem participar livremente na sua Providência,
confiando-lhes a responsabilidade de «submeter» a terra e dominá-la (142). Assim lhes con-
cede que sejam causas inteligentes e livres, para completar a obra da criação, aperfeiçoar a sua
harmonia, para o seu bem e o dos seus semelhantes. Cooperadores muitas vezes inconscientes
da vontade divina, os homens podem entrar deliberadamente no plano divino, pelos seus ac-
tos e as suas orações, como também pelos seus sofrimentos (143). Tornam-se, então, plena-
mente «colaboradores de Deus» (1 Cor 3, 9)(144) e do seu Reino(145).
308. Esta é uma verdade inseparável da fé em Deus Criador: Deus age em toda a acção das
suas criaturas. É Ele a causa-primeira, que opera nas e pelas causas-segundas: «É Deus que
produz em nós o querer e o operar, segundo o seu beneplácito» (Fl 2, 13)(146). Longe de di-
minuir a dignidade da criatura, esta verdade realça-a. Tirada «do nada» pelo poder, sabedoria
e bondade de Deus, a criatura separada da sua origem, nada pode, porque «a criatura sem o
Criador esvai-se» (147). Muito menos pode atingir o seu fim último, sem a ajuda da graça
(148).

A PROVIDÊNCIA E O ESCÂNDALO DO MAL

309. Se Deus Pai todo-poderoso, Criador do mundo ordenado e bom, tem cuidado com todas
as suas criaturas, porque é que o mal existe? A esta questão, tão premente como inevitável, tão
dolorosa como misteriosa, não é possível dar uma resposta rápida e satisfatória. É o conjunto
da fé cristã que constitui a resposta a esta questão: a bondade da criação, o drama do pecado,
o amor paciente de Deus que vem ao encontro do homem pelas suas alianças, pela Encarnação
redentora de seu Filho, pelo dom do Espírito, pela agregação à Igreja, pela força dos sacra-
mentos, pelo chamamento à vida bem-aventurada, à qual as criaturas livres são de antemão
convidadas a consentir, mas à qual podem, também de antemão, negar-se, por um mistério
terrível. Não há nenhum pormenor da mensagem cristã que não seja, em parte, resposta ao
problema do mal.
310. Mas, porque é que Deus não criou um mundo tão perfeito que nenhum mal pudesse exi-
stir nele? No seu poder infinito, Deus podia sempre ter criado um mundo melhor (149). No
entanto, na sua sabedoria e bondade infinitas, Deus quis livremente criar um mundo «em es-
tado de caminho» para a perfeição última. Este devir implica, no desígnio de Deus, junta-
mente com o aparecimento de certos seres, o desaparecimento de outros; o mais perfeito, com
o menos perfeito; as construções da natureza, com as suas destruições. Com o bem físico tam-
bém existe, pois, o mal físico, enquanto a criação não tiver atingido a perfeição (150).
311. Os anjos e os homens, criaturas inteligentes e livres, devem caminhar para o seu último
destino por livre escolha e amor preferencial. Podem, por conseguinte, desviar-se. De facto,
pecaram. Foi assim que entrou no mundo o mal moral, incomensuravelmente mais grave que
o mal físico. Deus não é, de modo algum, nem directa nem indirectamente, causa do mal mor-
al (151). No entanto, permite-o por respeito pela liberdade da sua criatura e misteriosamente
sabe tirar dele o bem:
«Deus todo-poderoso [...] sendo soberanamente bom, nunca permitiria que qualquer mal ex-
istisse nas suas obras se não fosse suficientemente poderoso e bom para do próprio mal, fazer
surgir o bem» (152).
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312. Assim, com o tempo, é possível descobrir que Deus, na sua omnipotente Providência,
pode tirar um bem das consequências dum mal (mesmo moral), causado pelas criaturas:
«Não, não fostes vós – diz José a seus irmãos – que me fizestes vir para aqui. Foi Deus. [...]
Premeditastes contra mim o mal: o desígnio de Deus aproveitou-o para o bem [...] e um povo
numeroso foi salvo» (Gn, 45, 8; 50, 20) (153). Do maior mal moral jamais praticado, como foi
o repúdio e a morte do Filho de Deus, causado pelos pecados de todos os homens, Deus, pela
superabundância da sua graça (154), tirou o maior dos bens: a glorificação de Cristo e a nossa
redenção. Mas nem por isso o mal se transforma em bem.
313. «Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus» (Rm 8, 28). O testemunho dos
santos não cessa de confirmar esta verdade:
Assim, Santa Catarina de Sena diz aos «que se escandalizam e se revoltam contra o que lhes
acontece»: «Tudo procede do amor, tudo está ordenado para a salvação do homem, e não com
nenhum outro fim» (155).
E S. Tomás Moro, pouco antes do seu martírio, consola a filha com estas palavras: «Nada
pode acontecer-me que Deus não queira. E tudo o que Ele quer, por muito mau que nos
pareça, é, na verdade, muito bom»(156).
E Juliana de Norwich: «Compreendi, pois, pela graça de Deus, que era necessário ater-me
firmemente à fé [...] e crer, com não menos firmeza, que todas as coisas serão para bem [...]».
«Thou shalt see thyself that all manner of thing shall be well» (157).
314. Nós cremos firmemente que Deus é o Senhor do mundo e da história. Muitas vezes,
porém, os caminhos da sua Providência são-nos desconhecidos. Só no fim, quando acabar o
nosso conhecimento parcial e virmos Deus «face a face» (1 Cor 13, 12), é que nos serão plena-
mente conhecidos os caminhos pelos quais, mesmo através do mal e do pecado, Deus terá
conduzido a criação ao repouso desse Sábado (158) definitivo, em vista do qual criou o céu e a
terra.

Resumindo:

315. Na criação do mundo e do homem, Deus deu o primeiro e universal testemunho do seu
amor omnipotente e da sua sabedoria e fez o primeiro anúncio do seu «desígnio amoroso», o
qual tem como finalidade a nova criação em Cristo.
316. Embora a obra da criação seja particularmente atribuída ao Pai, é igualmente verdade
de fé que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são o único e indivisível princípio da criação.
317. Só Deus criou o Universo, livremente, directamente, sem qualquer ajuda.
318. Nenhuma criatura possui o poder infinito necessário para «criar», no sentido próprio
da palavra: quer dizer; para produzir e dar o ser ao que de modo algum o possuía (chamar
à existência «ex nihilo» a partir do nada) (159).
319. Deus criou o mundo para manifestar e comunicar a sua glória. Que as criaturas partil-
hem da sua verdade, da sua bondade e da sua beleza – eis a glória, para a qual Deus as
criou.
320. Deus, que criou o universo, mantém-no na existência pelo seu Verbo; «o Filho tudo
sustenta com a sua palavra poderosa» (He 1, 3) e pelo seu Espírito criador que dá a vida.
321. A divina Providência consiste nas disposições pelas quais Deus conduz, com sabedoria
e amor; todas as criaturas, para o seu último fim.
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322. Cristo convida-nos a abandonarmo-nos filialmente à Providência do Pai dos céus


(160); o apóstolo São Pedro retoma o seu pensamento ao dizer: «Lançai sobre Deus toda a
vossa inquietação porque Ele vela por vós» (1 Pe 5, 7)(161).
323. A Providência divina também age pela acção das criaturas. Aos seres humanos, Deus
permite-lhes cooperar livremente com os seus desígnios.
324. A permissão divina do mal físico e do mal moral é um mistério, que Deus esclarece por
seu Filho Jesus Cristo, morto e ressuscitado para vencer o mal. A fé dá-nos a certeza de que
Deus não permitiria o mal, se do próprio mal não fizesse sair o bem, por caminhos que só na
vida eterna conheceremos plenamente.

PARÁGRAFO 5

CÉU E A TERRA

325. O Símbolo dos Apóstolos professa que Deus é «Criador do céu e da terra» (162). E o
Símbolo Niceno-Constantinopolitano explicita: «... de todas as coisas, visíveis e invisíveis»
(163).
326. Na Sagrada Escritura, a expressão «céu e terra» significa: tudo o que existe, a criação in-
teira. Indica também o laço que, no interior da criação, ao mesmo tempo une e distingue céu e
terra: «a terra» é o mundo dos homens (164); «o céu» ou «os céus» pode designar o firma-
mento (165), mas também o «lugar» próprio de Deus: «Pai nosso que estais nos céus» (Mt 5,
16)(166), e, por conseguinte, também «o céu» que é a glória escatológica. Finalmente, a palav-
ra «céu» indica o «lugar» das criaturas espirituais – os anjos – que rodeiam Deus.
327. A profissão de fé do quarto Concílio de Latrão afirma que Deus, «desde o princípio do
tempo, criou do nada ao mesmo tempo uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, isto é,
os anjos e o mundo terrestre. Depois criou a criatura humana, que participa das duas primeir-
as, formada, como é, de espírito e corpo» (167).

I. Os anjos

A EXISTÊNCIA DOS ANJOS UMA VERDADE DE FÉ

328. A existência dos seres espirituais, não-corporais, a que a Sagrada Escritura habitual-
mente chama anjos, é uma verdade de fé. O testemunho da Escritura é tão claro como a unan-
imidade da Tradição.

QUEM SÃO OS ANJOS?

329. Santo Agostinho diz a respeito deles: «Angelus [...] officii nomen est, non naturae.
Quaeris nomen naturae, spiritus est; quaeris officium, angelus est: ex eo quod est, spiritus
est: ex eo quod agit, angelus –Anjo é nome de ofício, não de natureza. Desejas saber o nome
da natureza? Espírito. Desejas saber o do ofício? Anjo. Pelo que é, é espírito: pelo que faz, é
anjo (anjo = mensageiro)» (168). Com todo o seu ser, os anjos são servos e mensageiros de
Deus. Pelo facto de contemplarem «continuamente o rosto do meu Pai que está nos céus» (Mt
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18, 10), eles são «os poderosos executores das suas ordens, sempre atentos à sua palavra» (Sl
103, 20).
330. Enquanto criaturas puramente espirituais, são dotados de inteligência e vontade: são
criaturas pessoais (169) e imortais (170). Excedem em perfeição todas as criaturas visíveis. O
esplendor da sua glória assim o atesta (171).

CRISTO «COM TODOS OS SEUS ANJOS»

331. Cristo é o centro do mundo dos anjos (angélico). Estes pertencem-Lhe: «Quando o Filho
do Homem vier na sua glória, acompanhado por todos os [seus] anjos...» (Mt 25, 31).
Pertencem-Lhe, porque criados por e para Ele: «em vista d'Ele é que foram criados todos os
seres, que há nos céus e na terra, os seres visíveis e os invisíveis, os anjos que são os tronos,
senhorias, principados e dominações. Tudo foi criado por seu intermédio e para Ele» (Cl 1,
16), E são d'Ele mais ainda porque Ele os fez mensageiros do seu plano salvador: «Não são
eles todos espíritos ao serviço de Deus, enviados a fim de exercerem um ministério a favor
daqueles que hão-de herdar a salvação?» (Heb 1, 14).
332. Ei-los, desde a criação (172) e ao longo de toda a história da salvação, anunciando de
longe ou de perto esta mesma salvação, e postos ao serviço do plano divino da sua realização:
eles fecham o paraíso terrestre (173); protegem Lot (174), salvam Agar e seu filho (175), detêm
a mão de Abraão (176) pelo seu ministério é comunicada a Lei (177), são eles que conduzem o
povo de Deus (178), anunciam nascimentos (179) e vocações (180) assistem os profetas (181) –
para não citar senão alguns exemplos. Finalmente, é o anjo Gabriel que anuncia o nascimento
do Precursor e o do próprio Jesus (182).
333. Da Encarnação à Ascensão, a vida do Verbo Encarnado é rodeada da adoração e serviço
dos anjos. Quando Deus «introduziu no mundo o seu Primogénito, disse: Adorem-n'O todos
os anjos de Deus» (Heb 1, 6). O seu cântico de louvor, na altura do nascimento de Cristo,
nunca deixou de se ouvir no louvor da Igreja: «Glória a Deus [...]» (Lc 2, 14). Eles protegem a
infância de Jesus (183), servem-n'O no deserto (184) e confortam-n'O na agonia (185) no mo-
mento em que por eles poderia ter sido salvo das mãos dos inimigos (186) como outrora Israel
(187). São ainda os anjos que «evangelizam» (188), anunciando a Boa-Nova da Encarnação
(189) e da Ressurreição (190) de Cristo. E estarão presentes aquando da segunda vinda de
Cristo, que anunciam (191), ao serviço do seu juízo (192).

OS ANJOS NA VIDA DA IGREJA

334. Daqui resulta que toda a vida da Igreja beneficia da ajuda misteriosa e poderosa dos an-
jos (193).
335. Na sua liturgia, a Igreja associa-se aos anjos para adorar a Deus três vezes santo (194);
invoca a sua assistência (como na oração "In paradisum deducant te angeli – conduzam-te os
anjos ao paraíso" da Liturgia dos Defuntos (195), ou ainda no «Hino querubínico» da Liturgia
bizantina (196), e festeja de modo mais particular a memória de certos anjos (São Miguel, São
Gabriel, São Rafael e os Anjos da Guarda).
336. Desde o seu começo (197) até à morte (198), a vida humana é acompanhada pela sua as-
sistência (199) e intercessão (200). «Cada fiel tem a seu lado um anjo como protector e pastor
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para o guiar na vida» (201). Desde este mundo, a vida cristã participa, pela fé, na sociedade
bem-aventurada dos anjos e dos homens, unidos em Deus.

II. O mundo visível

337. Foi o próprio Deus que criou o mundo visível, com toda a sua riqueza, a sua diversidade
e a sua ordem. A Sagrada Escritura apresenta a obra do Criador, simbolicamente, como uma
sequência de seis dias «de trabalho» divino, que terminam no «repouso» do sétimo dia (202).
O texto sagrado ensina, a respeito da criação, verdades reveladas por Deus para a nossa sal-
vação (203), as quais permitem «conhecer a natureza última e o valor de todas as criaturas e a
sua ordenação para a glória de Deus» (204).
338. Nada existe que não deva a sua existência a Deus Criador: O mundo começou quando
foi tirado do nada pela Palavra de Deus: todos os seres existentes, toda a Natureza, toda a
história humana radicam neste acontecimento primordial: é a própria génese, pela qual o
mundo foi constituído e o tempo começado (205).
339. Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. Acerca de cada uma das
obras dos «seis dias» está escrito: «E Deus viu que era bom». «Foi em virtude da própria cri-
ação que todas as coisas foram estabelecidas segundo a sua consistência, a sua verdade, a sua
excelência própria, com o seu ordenamento e leis específicas» (206). As diferentes criaturas,
queridas pelo seu próprio ser, reflectem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e
da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de
cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas, que despreza o Criador e traz consigo
consequências nefastas para os homens e para o seu meio ambiente.
340. A interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a florz-
inha, a águia e o pardal: o espectáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades sig-
nifica que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das
outras, para se completarem mutuamente, no serviço umas das outras.
341. A beleza do Universo: A ordem e a harmonia do mundo criado resultam da diversidade
dos seres e das relações existentes entre si. O homem descobre-as progressivamente como leis
da natureza. Elas suscitam a admiração dos sábios. A beleza da criação reflecte a beleza infin-
ita do Criador, a qual deve inspirar o respeito e a submissão da inteligência e da vontade
humanas.
342. A hierarquia das criaturas é expressa pela ordem dos «seis dias», indo do menos per-
feito para o mais perfeito. Deus ama todas as suas criaturas (207) e cuida de cada uma, até dos
passarinhos. No entanto, Jesus diz: «[Vós] valeis mais do que muitos passarinhos» (Lc 12, 7),
e ainda: «Um homem vale muito mais que uma ovelha» (Mt 12, 12).
343. O homem é o ponto culminante da obra da criação. A narrativa inspirada exprime essa
realidade, fazendo nítida distinção entre a criação do homem e a das outras criaturas (208).
344. Existe uma solidariedade entre todas as criaturas pelo facto de todas terem o mesmo
Criador e todas serem ordenadas para a sua glória:
«Louvado sejas meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o meu senhor irmão
Sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumia E ele é belo e radiante com grande esplendor: de Ti.
Altíssimo, nos dá ele a imagem [...]
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Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta [...]
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa, e
produz variados frutos, com flores coloridas, e verduras [...]
Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças e servi-o com grande humildade» (219).
345. O «Sábado» – fim da obra dos «seis dias». O texto sagrado diz que «Deus concluiu, no
sétimo dia, a obra que fizera» e que assim «se completaram o céu e a terra»; e no sétimo dia
Deus «descansou» e santificou e abençoou este dia (Gn 2, 1-3). Estas palavras inspiradas são
ricas de salutares ensinamentos:
346. Na criação, Deus estabeleceu uma base e leis que permanecem estáveis (210) sobre as
quais o crente pode apoiar-se com confiança, e que serão para ele sinal e garantia da fidelid-
ade inquebrantável da Aliança divina (211). Por seu lado, o homem deve manter-se fiel a esta
base e respeitar as leis que o Criador nela inscreveu.
347. A criação foi feita em vista do Sábado e, portanto, do culto e da adoração de Deus. O
culto está inscrito na ordem da criação (212) – «Operi Dei nihil preponatur – Nada se ante-
ponha à obra de Deus (ao culto divino)» – diz a Regra de São Bento (213) indicando assim a
justa ordem das preocupações humanas.
348. O Sábado está no coração da Lei de Israel. Guardar os Mandamentos é corresponder à
sabedoria e à vontade de Deus, expressas na sua obra da criação.
349. O oitavo dia. Mas para nós, um dia novo surgiu: o dia da Ressurreição de Cristo. O sé-
timo dia acaba a primeira criação. O oitavo dia começa a nova criação. A obra da criação cul-
mina, assim, na obra maior da Redenção. A primeira criação encontrou o seu sentido e cume
ria nova criação em Cristo, cujo esplendor ultrapassa o da primeira (214).

Resumindo:

350. Os anjos são criaturas espirituais que glorificam a Deus sem cessar e servem os seus
planos salvíficos em relação às outras criaturas: «Ad omnia bona nostra cooperantur angeli
– Os anjos prestam a sua cooperação a tudo quanto diz respeito ao nosso bem» (215).
351. Os anjos assistem a Cristo, seu Senhor. Servem-n'O de modo particular no
cumprimento da sua missão salvífica em relação aos homens.
352. A Igreja venera os anjos, que a ajudam na sua peregrinação terrestre e protegem todo
o género humano.
353. Deus quis a diversidade das suas criaturas e a sua bondade própria, a sua interde-
pendência e a sua ordem. Destinou todas as criaturas materiais para o bem do género hu-
mano. O homem, e através dele toda a criação, tem como destino a glória de Deus.
354. Respeitar as leis inscritas na criação e as relações derivantes da natureza das coisas, é
princípio de sabedoria e fundamento da moral.

PARÁGRAFO 6

O HOMEM

355. «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus. Ele o criou homem
e mulher» (Gn 1, 27). O homem ocupa um lugar único na criação: é «à imagem de Deus» (I);
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na sua própria natureza, une o mundo espiritual e o mundo material (II); foi criado «homem e
mulher» (III); Deus estabeleceu-o na sua amizade (IV).

I. «A imagem de Deus»

356. De todas as criaturas visíveis, só o homem é «capaz de conhecer e amar o seu Criador»
(216); é a «única criatura sobre a terra que Deus quis por si mesma» (217); só ele é chamado a
partilhar, pelo conhecimento e pelo amor, a vida de Deus. Com este fim foi criado, e tal é a
razão fundamental da sua dignidade:
«Qual foi a razão de terdes elevado o homem a tão alta dignidade? Foi certamente o incom-
parável amor com que Vos contemplastes a Vós mesmo na vossa criatura e Vos enamorastes
dela; porque foi por amor que a criastes, foi por amor que lhe destes um ser capaz de apreciar
o vosso bem eterno» (218).
357. Porque é «à imagem de Deus», o indivíduo humano possui a dignidade de pessoa: ele
não é somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de livre-
mente se dar e entrar em comunhão com outras pessoas. E é chamado, pela graça, a uma Ali-
ança com o seu Criador, a dar-Lhe uma resposta de fé e amor que mais ninguém pode dar em
seu lugar.
358. Deus tudo criou para o homem (219) mas o homem foi criado para servir e amar a Deus,
e para Lhe oferecer toda a criação:
«Qual é, pois, o ser que vai chegar à existência rodeado de tal consideração? É o homem,
grande e admirável figura vivente, mais precioso aos olhos de Deus que toda a criação; é o
homem, para quem existem o céu e a terra e o mar e a totalidade da criação, e a cuja salvação
Deus deu tanta importância, que, por ele, nem ao seu próprio Filho poupou. Porque Deus não
desiste de tudo realizar, para fazer subir o homem até Si e fazê-lo sentar à sua direita» (220).
359. «Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado é que verdadeiramente se esclarece o
mistério do homem» (221):
«São Paulo ensina-nos que dois homens estão na origem do género humano: Adão e Cristo.
[...] O primeiro Adão, diz ele, foi criado como um ser humano que recebeu a vida; o segundo é
um ser espiritual que dá a vida. O primeiro foi criado pelo segundo, de Quem recebeu a alma
que o faz viver. [...] O segundo Adão gravou a sua imagem no primeiro, quando o modelou.
Por isso, veio a assumir a sua função e o seu nome, para que não se perdesse aquele que fizera
à sua imagem. Primeiro e último Adão: o primeiro teve princípio; o último não terá fim. Por
isso é que o último é verdadeiramente o primeiro, como Ele mesmo diz: "Eu sou o Primeiro e
o Último"» (222).
360. Graças à comunidade de origem, o género humano forma uma unidade. Deus «fez, a
partir de um só homem todo o género humano para habitar sobre toda a face da terra» (Act
17, 26) (223):
«Maravilhosa visão, que nos faz contemplar o género humano na unidade da sua origem em
Deus [...]; na unidade da sua natureza, em todos igualmente integrada dum corpo material e
duma alma espiritual; na unidade do seu fim imediato e da sua missão no mundo; na unidade
da sua habitação, a terra, de cujos bens todos os homens, por direito natural, podem servir-se
para sustentar e desenvolver a vida; na unidade do seu fim sobrenatural. Deus, para o Qual
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todos devem tender, na unidade dos meios para atingir este fim; [...] na unidade da Redenção,
para todos levada a cabo por Cristo» (224).
361. «Esta lei de solidariedade humana e de caridade» (225), sem excluir a rica variedade das
pessoas, das culturas e dos povos, assegura-nos que todos os homens são verdadeiramente
irmãos.

II. «Corpore et anima unus» – Unidade de corpo e alma

362. A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao mesmo tempo corporal e espir-
itual. A narrativa bíblica exprime esta realidade numa linguagem simbólica, quando afirma
que «Deus formou o homem com o pó da terra, insuflou-lhe pelas narinas um sopro de vida, e
o homem tornou-se num ser vivo» (Gn 2, 7). O homem, no seu ser total, foi, portanto, querido
por Deus.
363. Muitas vezes, a palavra alma designa, nas Sagradas Escrituras, a vida humana (226), ou
a pessoa humana no seu todo (227). Mas designa também o que há de mais íntimo no homem
(228) e de maior valor na sua pessoa (229), aquilo que particularmente faz dele imagem de
Deus: «alma» significa o princípio espiritual no homem.
364. O corpo do homem participa na dignidade da «imagem de Deus»: é corpo humano pre-
cisamente por ser animado pela alma espiritual, e a pessoa humana na sua totalidade é que é
destinada a tornar-se, no Corpo (Místico) de Cristo, templo do Espírito (230):
«Corpo e alma, mas realmente uno, o homem, na sua condição corporal, reúne em si mesmo
os elementos do mundo material, que assim nele encontram a sua consumação e nele podem
louvar Livremente o seu Criador. Por isso, não é lícito ao homem menosprezar a vida do
corpo. Pelo contrário, deve estimar e respeitar o seu corpo, que foi criado por Deus e que há-
de ressuscitar no último dia» (231).
365. A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a
«forma» do corpo (232); quer dizer, é graças à alma espiritual que o corpo, constituído de
matéria, é um corpo humano e vivo. No homem, o espírito e a matéria não são duas naturezas
unidas, mas a sua união forma uma única natureza.
366. A Igreja ensina que cada alma espiritual é criada por Deus de modo imediato (233) e não
produzida pelos pais; e que é imortal (234), isto é, não morre quando, na morte, se separa do
corpo; e que se unirá de novo ao corpo na ressurreição final.
367. Encontra-se às vezes uma distinção entre alma e espírito. São Paulo, por exemplo, ora
para que «todo o nosso ser, o espírito, a alma e o corpo», seja guardado sem mancha até à
vinda do Senhor (1 Ts 5, 23). A Igreja ensina que esta distinção não introduz uma dualidade
na alma (235), «Espírito» significa que o homem é ordenado, desde a sua criação, para o seu
fim sobrenatural (236), e que a alma é capaz de ser gratuitamente sobreelevada até à comun-
hão com Deus (237).
368. A tradição espiritual da Igreja insiste também no coração,no sentido bíblico de «fundo
do ser» («nas entranhas»: Jr 31, 33) em que a pessoa se decide ou não por Deus (238).

III. «Homem e mulher os criou»

IGUALDADE E DIFERENÇA QUERIDAS POR DEUS


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369. O homem e a mulher foram criados, quer dizer, foram queridos por Deus: em perfeita
igualdade enquanto pessoas humanas, por um lado; mas, por outro, no seu respectivo ser de
homem e de mulher. «Ser homem», «ser mulher» é uma realidade boa e querida por Deus: o
homem e a mulher têm uma dignidade inamissível e que lhes vem imediatamente de Deus,
seu Criador (239). O homem e a mulher são, com uma mesma dignidade, «à imagem de
Deus». No seu «ser homem» e no seu «ser mulher», reflectem a sabedoria e a bondade do
Criador.
370. Deus não é, de modo algum; à imagem do homem. Não é nem homem nem mulher.
Deus é puro espírito, no Qual não há lugar para a diferença de sexos. Mas as «perfeições» do
homem e da mulher reflectem qualquer coisa da infinita perfeição de Deus: as duma mãe
(240) e as dum pai e esposo (241).

«UM PARA O OUTRO» – «UMA UNIDADE A DOIS»

371. Criados juntamente, o homem e a mulher são, na vontade de Deus, um para o outro. A
Palavra de Deus no-lo dá a entender em diversos passos do texto sagrado. «Não convém que o
homem esteja só: vou fazer-lhe uma ajudante que se pareça com ele» (Gn 2, 18). Nenhum dos
animais pode ser este «par» do homem (242). A mulher que Deus «molda» da costela tirada
do homem e que apresenta ao homem, provoca da parte deste, uma exclamação admirativa,
de amor e comunhão: «E osso dos meus ossos e carne da minha carne» (Ga 2, 23). O homem
descobre a mulher como um outro «eu», da mesma humanidade.
372. O homem e a mulher são feitos «um para o outro»: não é que Deus os tenha feito «a
meias» e «incompletos»; criou-os para uma comunhão de pessoas, em que cada um pode ser
«ajuda» para o outro, uma vez que são, ao mesmo tempo, iguais enquanto pessoas («osso dos
meus ossos») e complementares enquanto masculino e feminino (243). No matrimónio, Deus
une-os de modo que, formando «uma só carne» (Gn 2, 24), possam transmitir a vida humana:
«crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra» (Gn 1, 28). Transmitindo aos seus des-
cendentes a vida humana, o homem e a mulher, como esposos e pais, cooperam de modo
único na obra do Criador (244).
373. Segundo o desígnio de Deus, o homem e a mulher são vocacionados para «dominarem a
terra» (245) como «administradores» de Deus. Esta soberania não deve ser uma dominação
arbitrária e destruidora. A imagem do Criador, «que ama tudo o que existe» (Sb 11, 24), o
homem e a mulher são chamados a participar na Providência divina em relação às outras cri-
aturas. Daí a sua responsabilidade para com o mundo que Deus lhes confiou.

IV. O homem no paraíso

374. O primeiro homem não só foi criado bom, como também foi constituído num estado de
amizade com o seu Criador, e de harmonia consigo mesmo e com a criação que o rodeava;
amizade e harmonia tais, que só serão ultrapassadas pela glória da nova criação em Cristo.
375. A Igreja, interpretando de modo autêntico o simbolismo da linguagem bíblica à luz do
Novo Testamento e da Tradição, ensina que os nossos primeiros pais, Adão e Eva, foram
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constituídos num estado de santidade e de justiça originais (246). Esta graça da santidade ori-
ginal era uma participação na vida divina (247).
376. Todas as dimensões da vida do homem eram fortalecidas pela irradiação desta graça.
Enquanto permanecesse na intimidade divina, o homem não devia nem morrer (248), nem
sofrer (249). A harmonia interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher
(250), enfim, a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação, constituía o estado dito «de
justiça original».
377. O «domínio» do mundo, que Deus tinha concedido ao homem desde o princípio,
realizava-se, antes de mais, no próprio homem como domínio de si. O homem era integrado e
ordenado em todo o seu ser, porque livre da tríplice concupiscência (251), que o sujeita aos
prazeres dos sentidos, à ambição dos bens terrenos e à afirmação de si contra os imperativos
da razão.
378. Sinal da familiaridade com Deus é o facto de Deus o colocar no jardim (252). Ali vive «a
fim de o cultivar e guardar» (Gn 2, 15): o trabalho não é um castigo (253), mas a colaboração
do homem e da mulher com Deus no aperfeiçoamento da criação visível.
379. Toda esta harmonia da justiça original, prevista para o homem pelo plano de Deus, será
perdida pelo pecado dos nossos primeiros pais.

Resumindo:

380. «Formastes o homem à vossa imagem e lhe confiastes o Universo, para que, servindo-
Vos unicamente a Vós, seu Criador; exercesse domínio sobre todas as criaturas» (254).
381. O homem foi predestinado para reproduzir a imagem do Filho de Deus feito homem
–«imagem do Deus invisível» (Cl 1, 15) –, para que Cristo seja o primogénito duma multidão
de irmãos e irmãs (255).
382. O homem é «uma unidade de corpo e alma» (256). A doutrina da fé afirma que a alma
espiritual e imortal foi criada imediatamente por Deus.
383. «Deus não criou o homem solitário: desde a origem "criou-os homem e mulher" (Gn 1,
27); a sociedade dos dois realiza a primeira forma de comunhão entre pessoas» (257).
384. A Revelação dá-nos a conhecer o estado de santidade e justiça originais do homem e
da mulher, antes do pecado: da amizade de ambos com Deus derivava a felicidade da sua
existência no paraíso.

PARÁGRAFO 7

A QUEDA

385. Deus é infinitamente bom e todas as suas obras são boas. No entanto, ninguém escapa à
experiência do sofrimento, dos males da natureza – que aparecem como ligados aos limites
próprios das criaturas –, e sobretudo à questão do mal moral. Donde vem o mal? «Quaerebam
unde malum et non erat exitus – Procurava a origem do mal e não encontrava solução», diz
Santo Agostinho (258). A sua própria busca dolorosa só encontrará saída na conversão ao
Deus vivo. Porque «o mistério da iniquidade» (2 Ts 2, 7) só se esclarece à luz do «mistério da
piedade» (259). A revelação do amor divino em Cristo manifestou, ao mesmo tempo, a
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extensão do mal e a superabundância da graça (260). Devemos, portanto, abordar a questão


da origem do mal, fixando o olhar da nossa fé n'Aquele que é o seu único vencedor (261).

I. «Onde abundou o pecado, sobreabundou a graça»

A REALIDADE DO PECADO

386. O pecado está presente na história do homem. Seria vão tentar ignorá-lo ou dar outros
nomes a esta obscura realidade. Para tentar compreender o que é o pecado, temos primeiro de
reconhecer o laço profundo que une o homem a Deus, porque, fora desta relação, o mal do
pecado não é desmascarado na sua verdadeira identidade de recusa e oposição a Deus, em-
bora continue a pesar na vida do homem e na história.
387. A realidade do pecado e, dum modo particular, a do pecado das origens, só se esclarece à
luz da Revelação divina. Sem o conhecimento que esta nos dá de Deus, não se pode recon-
hecer claramente o pecado, e somos tentados a explicá-lo unicamente como falta de maturid-
ade, fraqueza psicológica, erro, consequência necessária duma estrutura social inadequada,
etc. Só no conhecimento do desígnio de Deus sobre o homem é que se compreende que o
pecado é um abuso da liberdade que Deus dá às pessoas criadas para que possam amá-Lo e
amarem-se mutuamente.

O PECADO ORIGINAL – UMA VERDADE FUNDAMENTAL DA FÉ

388. Com o progresso da Revelação, vai-se esclarecendo também a realidade do pecado.


Embora o povo de Deus do Antigo Testamento tenha abordado a dor da condição humana à
luz da história da queda narrada no Génesis, não podia atingir o significado último dessa
história, o qual só se manifesta à luz da Morte e Ressurreição de Jesus Cristo (262). É preciso
conhecer Cristo como fonte da graça para reconhecer Adão como fonte do pecado. Foi o
Espírito Paráclito, enviado por Cristo ressuscitado, que veio «confundir o mundo em matéria
de pecado» (Jo 16, 8), revelando Aquele que é o seu redentor.
389. A doutrina do pecado original é, por assim dizer, «o reverso» da Boa-Nova de que Jesus
é o Salvador de todos os homens, de que todos têm necessidade da salvação e de que a sal-
vação é oferecida a todos, graças a Cristo. A Igreja, que tem o sentido de Cristo (263), sabe
bem que não pode tocar-se na revelação do pecado original sem atentar contra o mistério de
Cristo.

PARA LER A NARRATIVA DA QUEDA

390. A narrativa da queda (Gn 3) utiliza uma linguagem feita de imagens, mas afirma um
acontecimento primordial, um facto que teve lugar no princípio da história do homem (264).
A Revelação dá-nos uma certeza de fé de que toda a história humana está marcada pela falta
original, livremente cometida pelos nossos primeiros pais (265).

II. A queda dos anjos


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391. Por detrás da opção de desobediência dos nossos primeiros pais, há uma voz sedutora,
oposta a Deus (266), a qual, por inveja, os faz cair na morte (267). A Escritura e a Tradição da
Igreja vêem neste ser um anjo decaído, chamado Satanás ou Diabo (268). Segundo o ensina-
mento da Igreja, ele foi primeiro um anjo bom, criado por Deus. «Diabolus enim et alii dae-
mones a Deo quidem natura creati sunt boni, sed ipsi per se facti sunt mali – De facto, o Di-
abo e os outros demónios foram por Deus criados naturalmente bons; mas eles, por si, é que
se fizeram maus» (269).
392. A Escritura fala dum pecado destes anjos (270). A queda consiste na livre opção destes
espíritos criados, que radical e irrevogavelmente recusaram Deus e o seu Reino. Encontramos
um reflexo desta rebelião nas palavras do tentador aos nossos primeiros pais: «Sereis como
Deus» (Gn 3, 5). O Diabo é «pecador desde o princípio» (1 Jo 3, 8), «pai da mentira» (Jo 8,
44).
393. É o carácter irrevogável da sua opção, e não uma falha da infinita misericórdia de Deus,
que faz com que o pecado dos anjos não possa ser perdoado. «Não há arrependimento para
eles depois da queda, tal como não há arrependimento para os homens depois da morte»
(271).
394. A Escritura atesta a influência nefasta daquele que Jesus chama «o assassino desde o
princípio» (Jo 8, 44), e que chegou ao ponto de tentar desviar Jesus da missão recebida do Pai
(272). «Foi para destruir as obras do Diabo que apareceu o Filho de Deus» (1 Jo 3, 8). Dessas
obras, a mais grave em consequências foi a mentirosa sedução que induziu o homem a
desobedecer a Deus.
395. No entanto, o poder de Satanás não é infinito. Satanás é uma simples criatura, poderosa
pelo facto de ser puro espírito, mas, de qualquer modo, criatura: impotente para impedir a
edificação do Reino de Deus. Embora Satanás exerça no mundo a sua acção, por ódio contra
Deus e o seu reinado em Jesus Cristo, e embora a sua acção cause graves prejuízos – de
natureza espiritual e indirectamente, também, de natureza física – a cada homem e à so-
ciedade, essa acção é permitida pela divina Providência, que com força e suavidade dirige a
história do homem e do mundo. A permissão divina da actividade diabólica é um grande mis-
tério. Mas «nós sabemos que tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus» (Rm 8,
28).

III. O pecado original

A PROVA DA LIBERDADE

396. Deus criou o homem «à sua imagem» e constituiu-o na sua amizade. Criatura espiritual,
o homem só pode viver esta amizade na modalidade da livre submissão a Deus. É isso o que
exprime a proibição feita ao homem de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal,
«pois no dia em que o comeres, morrerás» (Gn 2, 17). A «árvore de conhecer o bem e o mal»
(Gn 2, 17) evoca simbolicamente o limite intransponível que o homem, como criatura, deve
livremente reconhecer e confiadamente respeitar. O homem depende do Criador. Está sujeito
às leis da criação e às normas morais que regulam o exercício da liberdade.

O PRIMEIRO PECADO DO HOMEM


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397. Tentado pelo Diabo, o homem deixou morrer no coração a confiança no seu Criador
(273). Abusando da liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Nisso consistiu o
primeiro pecado do homem (274). Daí em diante, todo o pecado será uma desobediência a
Deus e uma falta de confiança na sua bondade.
398. Neste pecado, o homem preferiu-se a si próprio a Deus, e por isso desprezou Deus: op-
tou por si próprio contra Deus, contra as exigências da sua condição de criatura e, daí, contra
o seu próprio bem. Constituído num estado de santidade, o homem estava destinado a ser ple-
namente «divinizado» por Deus na glória. Pela sedução do Diabo, quis «ser como Deus»(275),
mas «sem Deus, em vez de Deus, e não segundo Deus» (276).
399. A Escritura refere as consequências dramáticas desta primeira desobediência: Adão e
Eva perdem imediatamente a graça da santidade original (277). Têm medo daquele Deus
(278) de quem se fizeram uma falsa imagem: a dum Deus ciumento das suas prerrogativas
(279).
400. A harmonia em que viviam, graças à justiça original, ficou destruída; o domínio das fac-
uldades espirituais da alma sobre o corpo foi quebrado (280); a união do homem e da mulher
ficou sujeita a tensões (281); as suas relações serão marcadas pela avidez e pelo domínio
(282). A harmonia com a criação desfez-se: a criação visível tornou-se, para o homem, es-
tranha e hostil (283). Por causa do homem, a criação ficou sujeita «à servidão da corrupção»
(284). Enfim, vai concretizar-se a consequência explicitamente anunciada para o caso da
desobediência (285): o homem «voltará ao pó de que foi formado» (286). A morte faz a sua
entrada na história da humanidade (287).
401. A partir deste primeiro pecado, uma verdadeira «invasão» de pecado inunda o mundo: o
fratricídio cometido por Caim na pessoa de Abel (288); a corrupção universal como con-
sequência do pecado (289). Na história de Israel, o pecado manifesta-se com frequência,
sobretudo como uma infidelidade ao Deus da Aliança e como transgressão da lei de Moisés.
Mesmo depois da redenção de Cristo, o pecado manifesta-se de muitas maneiras entre os
cristãos (290). A Sagrada Escritura e a Tradição da Igreja não se cansam de lembrar a
presença e a universalidade do pecado na história do homem.
«O que a Revelação divina nos dá a conhecer, concorda com os dados da experiência. Quando
o homem olha para dentro do seu próprio coração, descobre-se inclinado também para o mal,
e imerso em muitos males, que não podem provir do seu Criador, que é bom. Muitas vezes, re-
cusando reconhecer Deus como seu princípio, o homem perturbou, por isso mesmo, a sua or-
denação para o fim último e, ao mesmo tempo, toda a harmonia consigo próprio, com os out-
ros homens e com toda a criação» (291).

CONSEQUÊNCIAS DO PECADO DE ADÃO PARA A HUMANIDADE

402. Todos os homens estão implicados no pecado de Adão. É São Paulo quem o afirma:
«pela desobediência de um só homem, muitos [quer dizer, a totalidade dos homens] se torn-
aram pecadores» (Rm 5, 19): «Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e
pelo pecado a morte, assim também a morte atingiu todos os homens, porque todos pecaram»
(Rm 5, 12). A universalidade do pecado e da morte, o Apóstolo opõe a universalidade da sal-
vação em Cristo: «Assim como, pelo pecado de um só, veio para todos os homens a
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condenação, assim também, pela obra de justiça de um só [Cristo], virá para todos a justi-
ficação que dá a vida» (Rm 5, 18).
403. Depois de São Paulo, a Igreja sempre ensinou que a imensa miséria que oprime os ho-
mens, e a sua inclinação para o mal e para a morte não se compreendem sem a ligação com o
pecado de Adão e o facto de ele nos ter transmitido um pecado de que todos nascemos infecta-
dos e que é «morte da alma» (292). A partir desta certeza de fé, a Igreja confere o Baptismo
para a remissão dos pecados, mesmo às crianças que não cometeram qualquer pecado pessoal
(293).
404. Como é que o pecado de Adão se tornou o pecado de todos os seus descendentes? Todo o
género humano é, em Adão, «sicut unum corpus unius hominis – como um só corpo dum
único homem» (294). Em virtude desta «unidade do género humano», todos os homens estão
implicados no pecado de Adão, do mesmo modo que todos estão implicados na justificação de
Cristo. Todavia, a transmissão do pecado original é um mistério que nós não podemos com-
preender plenamente. Mas sabemos, pela Revelação, que Adão tinha recebido a santidade e a
justiça originais, não só para si, mas para toda a natureza humana; consentindo na tentação,
Adão e Eva cometeram um pecado pessoal, mas este pecado afecta a natureza humana que
eles vão transmitir num estado decaído (295). É um pecado que vai ser transmitido a toda a
humanidade por propagação, quer dizer, pela transmissão duma natureza humana privada da
santidade e justiça originais. E é por isso que o pecado original se chama «pecado» por analo-
gia: é um pecado «contraído» e não «cometido»; um estado, não um acto.
405. Embora próprio de cada um (296), o pecado original não tem, em qualquer descendente
de Adão, carácter de falta pessoal. É a privação da santidade e justiça originais, mas a natureza
humana não se encontra totalmente corrompida: está ferida nas suas próprias forças naturais,
sujeita à ignorância, ao sofrimento e ao império da morte, e inclinada ao pecado (inclinação
para o mal, que se chama concupiscência). O Baptismo, ao conferir a vida da graça de Cristo,
apaga o pecado original e reorienta o homem para Deus, mas as consequências para a
natureza, enfraquecida e inclinada para o mal, persistem no homem e convidam-no ao com-
bate espiritual.
406. A doutrina da Igreja sobre a transmissão do pecado original foi definida sobretudo no
século V, particularmente sob o impulso da reflexão de Santo Agostinho contra o pelagian-
ismo, e no século XVI, por oposição à Reforma protestante. Pelágio sustentava que o homem
podia, pela força natural da sua vontade livre, sem a ajuda necessária da graça de Deus, levar
uma vida moralmente boa; reduzia a influência do pecado de Adão à de um simples mau ex-
emplo. Os primeiros reformadores protestantes, pelo contrário, ensinavam que o homem es-
tava radicalmente pervertido e a sua liberdade anulada pelo pecado das origens: identificavam
o pecado herdado por cada homem com a tendência para o mal («concupiscência»), a qual
seria invencível. A Igreja pronunciou-se especialmente sobre o sentido do dado revelado,
quanto ao pecado original, no segundo Concílio de Orange em 529 (297) e no Concílio de
Trento em 1546 (298).

UM DURO COMBATE

407. A doutrina sobre o pecado original – ligada à da redenção por Cristo – proporciona uma
visão de lúcido discernimento sobre a situação do homem e da sua acção neste mundo. Pelo
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pecado dos primeiros pais, o Diabo adquiriu um certo domínio sobre o homem, embora este
permanecesse livre. O pecado original traz consigo «a escravidão, sob o poder daquele que
possuía o império da morte, isto é, do Diabo» (299). Ignorar que o homem tem uma natureza
ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da
acção social (300) e dos costumes.
408. As consequências do pecado original e de todos os pecados pessoais dos homens dão ao
mundo, no seu conjunto, uma condição pecadora, que pode ser designada pela expressão de
São João «o pecado do mundo» (Jo 1, 29). Esta expressão significa também a influência neg-
ativa que as situações comunitárias e as estruturas sociais, que são o fruto dos pecados dos ho-
mens, exercem sobre as pessoas (301).
409. Esta dramática situação do mundo, que «está todo sob o poder do Maligno» (1 Jo 5, 19)
(302), transforma a vida do homem num combate:
«Um duro combate contra os poderes das trevas atravessa toda a história dos homens. Tendo
começado nas origens, há-de durar – o Senhor no-lo disse – até ao último dia. Empenhado
nesta batalha, o homem vê-se na necessidade de lutar sem descanso para aderir ao bem. Só at-
ravés de grandes esforços é que, com a graça de Deus, consegue realizar a sua unidade interi-
or» (303).

IV. «Vós não o abandonastes ao poder da morte»

410. Depois da queda, o homem não foi abandonado por Deus. Pelo contrário, Deus chamou-
o (304) e anunciou-lhe, de modo misterioso, que venceria o mal e se levantaria da queda
(305). Esta passagem do Génesis tem sido chamada « Proto-Evangelho» por ser o primeiro
anúncio do Messias redentor, do combate entre a Serpente e a Mulher, e da vitória final dum
descendente desta.
411. A Tradição cristã vê nesta passagem um anúncio do «novo Adão» (306) que, pela sua
«obediência até à morte de cruz» (Fl 2, 8), repara super-abundantemente a desobediência de
Adão (307). Por outro lado, muitos santos Padres e Doutores da Igreja vêem na mulher, anun-
ciada no proto-Evangelho, a Mãe de Cristo, Maria, como «nova Eva». Ela foi a primeira a be-
neficiar, dum modo único, da vitória sobre o pecado alcançada por Cristo: foi preservada de
toda a mancha do pecado original (308) e, durante toda a sua vida terrena, por uma graça es-
pecial de Deus, não cometeu qualquer espécie de pecado (309).
412. Mas porque é que Deus não impediu o primeiro homem de pecar? São Leão Magno re-
sponde: «A graça inefável de Cristo deu-nos bens superiores aos que a inveja do demónio nos
tinha tirado» (310). E São Tomás de Aquino: «Nada se opõe a que a natureza humana tenha
sido destinada a um fim mais alto depois do pecado. Efectivamente, Deus permite que os
males aconteçam para deles tirar um bem maior. Daí a palavra de São Paulo: "onde abundou o
pecado, superabundou a graça" (Rm 5, 20). Por isso, na bênção do círio pascal canta-se: "Ó fe-
liz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor!"» (311).

Resumindo:

413. «Não foi Deus quem fez a morte, nem Ele se alegra por os vivos se perderem [...]. A
morte entrou no mundo pela inveja do Diabo» (Sb 1, 13; 2, 24).
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414. Satanás ou Diabo e os outros demónios são anjos decaídos por terem livremente recus-
ado servir a Deus e ao seu desígnio. A sua opção contra Deus é definitiva. E eles tentam as-
sociar o homem à sua revolta contra Deus.
415. «Estabelecido por Deus num estado de santidade, o homem, seduzido pelo Maligno
desde o princípio da história, abusou da sua liberdade, levantando-se contra Deus e pre-
tendendo atingir o seu fim fora de Deus» (312).
416. Pelo seu pecado, Adão, como primeiro homem, perdeu a santidade e a justiça originais
que tinha recebido de Deus, não somente para si, mas para todos os seres humanos.
417. À sua descendência, Adão e Eva transmitiram a natureza humana ferida pelo seu
primeiro pecado, portanto privada da santidade e da justiça originais. Esta privação é cha-
mada «pecado original».
418. Como consequência do pecado original, a natureza humana ficou enfraquecida nas
suas forças e sujeita à ignorância, ao sofrimento e ao domínio da morte, e inclinada para o
pecado – inclinação que se chama «concupiscência».
419. «Afirmamos, pois, com o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido com a
natureza humana, "não por imitação, mas por propagação", e que, assim, é "próprio de
cada um"»(313).
420. A vitória alcançada por Cristo sobre o pecado trouxe-nos bens superiores àqueles que
o pecado nos tinha tirado: «Onde abundou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5, 20).
421. «Segundo a fé dos cristãos, este mundo foi criado e continua a ser conservado pelo
amor do Criador; é verdade que caiu sob a escravidão do pecado, mas Cristo, pela Cruz e
Ressurreição, venceu o poder do Maligno e libertou-o...» (314).

CAPÍTULO SEGUNDO
CREIO EM JESUS CRISTO, FILHO ÚNICO DE DEUS

A BOA-NOVA: DEUS ENVIOU O SEU FILHO

422. «Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mul-
her e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei e nos tornar seus filhos ad-
optivos» (Gl 4, 4-5). Esta é a «Boa-Nova de Jesus Cristo, Filho de Deus»(1): Deus visitou o seu
povo(2) e cumpriu as promessas feitas a Abraão e à sua descendência (3) fê-lo para além de
toda a expectativa: enviou o seu «Filho muito-amado» (4).
423. Nós cremos e confessamos que Jesus de Nazaré, judeu nascido duma filha de Israel, em
Belém, no tempo do rei Herodes o Grande e do imperador César Augusto, carpinteiro de
profissão, morto crucificado em Jerusalém sob o procurador Pôncio Pilatos no reinado do im-
perador Tibério, é o Filho eterno de Deus feito homem; que Ele «saiu de Deus» (Jo 13, 3),
«desceu do céu» (Jo 3, 13; 6, 33) e «veio na carne» (5), porque «o Verbo fez-Se carne e habit-
ou entre nós. Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito, cheio
de graça e de verdade [...] Na verdade, foi da sua plenitude que todos nós recebemos, graça
sobre graça» (Jo 1, 14, 16).
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424. Movidos pela graça do Espírito Santo e atraídos pelo Pai, nós cremos e confessamos a
respeito de Jesus: «Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo» (Mt 16, 16). Foi sobre o rochedo desta
fé, confessada por Pedro, que Cristo edificou a sua Igreja (6).

«ANUNCIAR A INSONDÁVEL RIQUEZA DE CRISTO» (Ef 3, 8)

425. A transmissão da fé cristã é, antes de mais, o anúncio de Jesus Cristo, para Levar à fé
n'Ele. Desde o princípio, os primeiros discípulos arderam no desejo de anunciar Cristo: «Nós
é que não podemos deixar de dizer o que vimos e escutámos» (Act 4, 20). E convidam os ho-
mens de todos os tempos a entrar na alegria da sua comunhão com Cristo:
«O que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos to-
caram acerca do Verbo da vida, é o que nós vos anunciamos, pois a vida manifestou-Se e nós
vimo-la e dela damos testemunho: nós vos anunciamos a vida eterna que estava junto do Pai e
nos foi manifestada. Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também
em comunhão connosco. E a comunhão em que estamos é com o Pai e com o seu Filho, Jesus
Cristo. E escrevemos tudo isto para a nossa alegria ser completa» (1 Jo, 1, 1-4).

NO CORAÇÃO DA CATEQUESE: CRISTO

426. «No coração da catequese, encontramos essencialmente uma Pessoa: Jesus de Nazaré,
Filho único do Pai [...], que sofreu e morreu por nós e que agora, ressuscitado, vive connosco
para sempre [...]. Catequizar [...] é revelar, na Pessoa de Cristo, todo o desígnio eterno de Deus
[...]. É procurar compreender o significado dos gestos e das palavras de Cristo e dos sinais por
Ele realizados» (7). O fim da catequese é «pôr em comunhão com Jesus Cristo: somente Ele
pode levar ao amor do Pai, no Espírito, e fazer-nos participar na vida da Santíssima Trindade»
(8).
427. «Na catequese, é Cristo, Verbo Encarnado e Filho de Deus, que é ensinado; tudo o mais
é-o em referência a Ele. E só Cristo ensina. Todo e qualquer outro o faz apenas na medida em
que é seu porta-voz, consentindo em que Cristo ensine pela sua boca [...]. Todo o catequista
deveria poder aplicar a si próprio a misteriosa palavra de Jesus: "A minha doutrina não é
minha, mas d'Aquele que Me enviou" (Jo 7, 16)» (9).
428. Aquele que é chamado a «ensinar Cristo» deve, portanto, antes de mais nada, procurar
«esse lucro sobreeminente que é o conhecimento de Jesus Cristo». Tem de «aceitar perder
tudo [...] para ganhar Cristo e encontrar-se n'Ele» e «conhecê-Lo, a Ele, na força da sua res-
surreição e na comunhão com os seus sofrimentos, conformar-se com Ele na morte, na esper-
ança de chegar a ressuscitar dos mortos» (Fl 3, 8-11).
429. Deste conhecimento amoroso de Cristo brota o desejo de O anunciar, de «evangelizar» e
levar os outros ao «sim» da fé em Jesus Cristo. Mas, ao mesmo tempo, faz-se sentir a ne-
cessidade de conhecer sempre melhor esta fé. Com esse objectivo, seguindo a ordem do Sím-
bolo da fé, primeiro serão apresentados os principais títulos de Jesus: Cristo, Filho de Deus,
Senhor (Artigo 2). O Símbolo confessa, em seguida, os principais mistérios da vida de Cristo:
da sua Encarnação (Artigo 3), da sua Páscoa (Artigos 4 e 5) e, por fim, da sua Glorificação
(Artigos 6 e 7).
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ARTIGO 2

«E EM JESUS CRISTO, SEU ÚNICO FILHO, NOSSO SENHOR»

430. Em hebraico, Jesus quer dizer «Deus salva». Quando da Anunciação, o anjo Gabriel dá-
Lhe como nome próprio o nome de Jesus, o qual exprime, ao mesmo tempo, a sua identidade
e a sua missão (10). Uma vez que «só Deus pode perdoar os pecados» (Mc 2, 7), será Ele
quem, em Jesus, seu Filho eterno feito homem, «salvará o seu povo dos seus pecados»(Mt 1,
21). Em Jesus, Deus recapitula, assim, toda a sua história de salvação em favor dos homens.
431. Nesta história da salvação, Deus não Se contenta com libertar Israel «da casa da es-
cravidão» (Dt 5, 6), fazendo-o sair do Egipto. Salvou-o também do seus pecados. Porque o
pecado é sempre uma ofensa feita a Deus (11), só Ele é que pode absolvê-lo (12). É por isso que
Israel, tomando cada vez mais consciência da universalidade do pecado, só podera procurar a
salvação na invocação do nome do Deus Redentor (13).
432. O nome de Jesus significa que o próprio nome de Deus está presente na pessoa do seu
Filho (14) feito homem para a redenção universal e definitiva dos pecados. Ele é o único nome
divino que traz a salvação (15) e pode desde agora ser invocado por todos, pois a todos os ho-
mens Se uniu pela Encarnação (16), de tal modo que «não existe debaixo do céu outro nome,
dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos» (Act 4, l2) (17).
433. O nome de Deus salvador era invocado apenas uma vez por ano, pelo sumo sacerdote,
para expiação dos pecados de Israel, depois de ter aspergido o propiciatório do «santo dos
santos» com o sangue do sacrifício (18). O propiciatório era o lugar da presença de Deus (19).
Quando São Paulo diz de Jesus que Deus O «ofereceu para, n'Ele, pelo seu sangue, se realizar
a expiação» (Rm 3, 25), quer dizer que, na sua humanidade, «era Deus que em Cristo recon-
ciliava o mundo consigo» (2 Cor 5, 19).
434. A ressurreição de Jesus glorifica o nome de Deus salvador (20) porque, a partir daí, é o
nome de Jesus que manifesta em plenitude o poder supremo do nome que está acima de todos
os nomes» (Fl 2, 9-10). Os espíritos maus temem o seu nome (21) e é em seu nome que os dis-
cípulos de Jesus fazem milagres (22), porque tudo o que pedem ao Pai, em seu nome, Ele lho
concede (23).
435. O nome de Jesus está no centro da oração cristã. Todas as orações litúrgicas se concluem
com a fórmula «per Dominum nostrum Jesum Christum – por nosso Senhor Jesus Cristo». A
Ave-Maria culmina nas palavras «e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus». A oração-do-
coração dos Orientais, chamada «oração a Jesus», diz: «Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor,
tem piedade de mim, pecador». E muitos cristãos morrem, como Santa Joana d'Arc, tendo
nos lábios apenas uma palavra: «Jesus» (24).

II. Cristo

436. Cristo vem da tradução grega do termo hebraico «Messias», que quer dizer «ungido».
Só se torna nome próprio de Jesus porque Ele cumpre perfeitamente a missão divina que tal
nome significa. Com efeito, em Israel eram ungidos, em nome de Deus, aqueles que Lhe eram
consagrados para uma missão d'Ele dimanada. Era o caso dos reis (25), dos sacerdotes (26) e,
em raros casos, dos profetas (27). Este devia ser, por excelência, o caso do Messias, que Deus
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enviaria para estabelecer definitivamente o seu Reino (28). O Messias devia ser ungido pelo
Espírito do Senhor (29), ao mesmo tempo como rei e sacerdote (30) mas também como pro-
feta (31). Jesus realizou a expectativa messiânica de Israel na sua tríplice função de sacerdote,
profeta e rei.
437. O anjo anunciou aos pastores o nascimento de Jesus como sendo o do Messias pro-
metido a Israel: «nasceu-vos hoje, na cidade de David, um salvador que é Cristo, Senhor» (Lc
2, 11). Desde a origem, Ele é «Aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo» (Jo 10, 36),
concebido como «santo» no seio virginal de Maria (32). José foi convidado por Deus a «levar
para sua casa Maria, sua esposa», grávida d'«Aquele que nela foi gerado pelo poder do
Espírito Santo» (Mt 1, 20), para que Jesus, «chamado Cristo», nascesse da esposa de José, na
descendência messiânica de David (Mt 1, 16) (33).
438. A consagração messiânica de Jesus manifesta a sua missão divina. «Aliás, é o que indica
o seu próprio nome; porque no nome de Cristo está subentendido Aquele que ungiu. Aquele
que foi ungido e a própria Unção com que foi ungido. Aquele que ungiu é o Pai, Aquele que foi
ungido é o Filho, e foi-o no Espírito que é a Unção» (34). A sua eterna consagração messiânica
revelou-se no tempo da sua vida terrena, quando do seu baptismo por João, altura em que
«Deus O ungiu com o Espírito Santo e poder» (Act 10, 38), «para que se manifestasse a Is-
rael» (Jo 1, 31) como seu Messias. As suas obras e palavras dá-lo-ão a conhecer como «o santo
de Deus» (35).
439. Numerosos judeus, e mesmo alguns pagãos que partilhavam da sua esperança, reconhe-
ceram em Jesus os traços fundamentais do messiânico «filho de David», prometido por Deus
a Israel (36). Jesus aceitou o título de Messias a que tinha direito (37), mas não sem reservas,
uma vez que esse título era compreendido, por numerosos dos seus contemporâneos, segundo
um conceito demasiado humano (38), essencialmente político (39).
440. Jesus aceitou a profissão de fé de Pedro, que O reconhecia como o Messias, anunciando
a paixão próxima do Filho do Homem (40). Revelou o conteúdo autêntico da sua realeza
messiânica, ao mesmo tempo na identidade transcendente do Filho do Homem «que desceu
do céu» (Jo 3, 13)(41) e na sua missão redentora como Servo sofredor: «O Filho do Homem
[...] não veio para ser servido, veio para servir e dar a vida como resgate pela multidão» (Mt
20, 28) (42). Foi por isso que o verdadeiro sentido da sua realeza só se manifestou do cimo da
cruz (43). E só depois da ressurreição, a sua realeza messiânica poderá ser proclamada por
Pedro perante o Povo de Deus: «Saiba, com absoluta certeza, toda a casa de Israel, que Deus
fez Senhor e Messias esse Jesus que vós crucificastes» (Act 2, 36).

III. Filho único de Deus

441. Filho de Deus, no Antigo Testamento, é um título dado aos anjos (44), ao povo eleito
(45) aos filhos de Israel (46) e aos seus reis (47). Nestes casos, significa uma filiação adoptiva,
que estabelece entre Deus e a sua criatura relações de particular intimidade. Quando o Rei-
Messias prometido é chamado «filho de Deus» (48), isso não implica necessariamente, se-
gundo o sentido literal de tais textos, que Ele seja mais que um simples ser humano. Os que
assim designaram Jesus, enquanto Messias de Israel (49), talvez não tenham querido dizer
mais (50).
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442. Mas não é este o caso de Pedro, quando confessa Jesus como «Cristo, o Filho de Deus
vivo» (51), porque Jesus responde-lhe solenemente: «não foram a carne nem o sangue que to
revelaram, mas sim o meu Pai que está nos céus» (Mt 16, 17). De igual modo, Paulo dirá, a
propósito da sua conversão no caminho de Damasco: «Quando aprouve a Deus – que me
escolheu desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça – revelar o seu Filho em
mim, para que O anuncie como Evangelho aos gentios...» (Gl 1, 15-16). «E logo começou a
proclamar nas sinagogas que Jesus era o Filho de Deus» (Act 9, 20). Será este, desde o princí-
pio (52),o núcleo da fé apostólica (53), primeiramente professada por Pedro como funda-
mento da Igreja (54).
443. Se Pedro pôde reconhecer o carácter transcendente da filiação divina de Jesus-Messias,
foi porque Este lha deixou perceber nitidamente. Diante do Sinédrio, à pergunta dos seus acu-
sadores: «Então, tu és o Filho de Deus?» Jesus respondeu: «É como dizeis, sou» (Lc 22, 70)
(55). Já muito antes, Ele Se designara como «o Filho» que conhece o Pai (56), diferente dos
«servos» que Deus anteriormente enviara ao seu povo (57), superior aos próprios anjos (58).
Ele distinguiu a sua filiação da dos Seus discípulos, nunca dizendo «Pai nosso» (59), a não ser
para lhes ordenar: «vós, quando rezardes, dizei assim: Pai nosso» (Mt 6,9); e sublinhou esta
distinção: «o meu Pai e vosso Pai» (Jo 20, 17).
444. Os evangelhos referem, em dois momentos solenes, no baptismo e na transfiguração de
Cristo, a voz do Pai, que O designa como seu «filho muito-amado» (60). Jesus designa-Se a Si
próprio como «o Filho único de Deus» (Jo 3, 16), afirmando por este título a sua preexistência
eterna (61). E exige a fé «no nome do Filho único de Deus» (Jo 3, 18). Esta profissão de fé
cristã aparece já na exclamação do centurião diante de Jesus crucificado: «Verdadeiramente,
este homem era o Filho de Deus!» (Mc 15, 39); porque somente no Mistério Pascal o crente
pode dar pleno significado ao título de «Filho de Deus».
445. É depois da ressurreição que a filiação divina de Jesus aparece no poder da sua human-
idade glorificada: «Segundo o Espírito santificante, pela sua ressurreição de entre os mortos,
Ele foi estabelecido como Filho de Deus em poder» (Rm 1, 4) (62). E os Apóstolos poderão
confessar: «Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai como a Filho único, cheio de
graça e de verdade» (Jo 1, 14).

IV. Senhor

446. Na tradução grega dos Livros do Antigo Testamento, o nome inefável sob o qual Deus Se
revelou a Moisés (63), YHWH, é traduzido por « Kyrios» («Senhor»). Senhor torna-se, desde
então, o nome mais habitual para designar a própria divindade do Deus de Israel. É neste sen-
tido forte que o Novo Testamento utiliza o título de «Senhor», tanto para o Pai como também
– e aí é que está a novidade – para Jesus, assim reconhecido como sendo Ele próprio Deus
(64).
447. O próprio Jesus veladamente atribui a Si mesmo este título, quando discute com os
fariseus sobre o sentido do Salmo 110 (65), e também, de modo explícito, ao dirigir-Se aos
Apóstolos (66). Ao longo de toda a vida pública, os seus gestos de domínio sobre a natureza,
sobre as doenças, sobre os demónios, sobre a morte e o pecado, demonstravam a sua sobera-
nia divina.
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448. Muitíssimas vezes, nos evangelhos, aparecem pessoas que se dirigem a Jesus chamando-
lhe «Senhor». Este título exprime o respeito e a confiança dos que se aproximam de Jesus e
d'Ele esperam socorro e cura (67). Pronunciado sob a moção do Espírito Santo, exprime o re-
conhecimento do Mistério divino de Jesus (68). No encontro com Jesus ressuscitado,
transforma-se em adoração: «Meu Senhor e meu Deus» (Jo 20, 28). Assume então uma co-
notação de amor e afeição, que vai ficar como típica da tradição cristã: «E o Senhor!» (Jo 21,
7).
449. Ao atribuir a Jesus o título divino de Senhor, as primeiras confissões de fé da Igreja
afirmam, desde o princípio (69), que o poder, a honra e a glória, devidos a Deus Pai, também
são devidos a Jesus (70), porque Ele é «de condição divina» (Fl 2, 6) e o Pai manifestou esta
soberania de Jesus ressuscitando-O de entre os mortos e exaltando-O na sua glória (71).
450. Desde o princípio da história cristã, a afirmação do senhorio de Jesus sobre o mundo e
sobre a história (72) significa também o reconhecimento de que o homem não deve submeter
a sua liberdade pessoal, de modo absoluto, a nenhum poder terreno, mas somente a Deus Pai
e ao Senhor Jesus Cristo: César não é o «Senhor»(73). «A Igreja crê... que a chave, o centro e o
fim de toda a história humana se encontra no seu Senhor e Mestre» (74).
451. A oração cristã é marcada pelo título de «Senhor», quer no convite à oração: «O Senhor
esteja convosco», quer na conclusão da mesma: «Por nosso Senhor Jesus Cristo», quer ainda
pelo grito cheio de confiança e de esperança: «Maran atha» («O Senhor vem!») ou «Marana
tha» («Vem, Senhor!») (1 Cor 16, 22): «Amen, vem, Senhor Jesus!» (Ap 22, 20).

Resumindo:

452. O nome de Jesus significa «Deus salva». O menino nascido da Virgem Maria é cha-
mado «Jesus», «porque salvará o seu povo dos seus pecados» (Mt 1, 21); «não existe debaixo
do céu outro nome dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos» (Act 4, 12).
453. O nome de Cristo significa «Ungido», «Messias». Jesus é Cristo, porque «Deus O ungiu
com o Espírito Santo e o poder» (Act 10, 38). Ele era «Aquele que estava para vir» (Lc 7, 19),
o objecto da «esperança de Israel» (75).
454. O nome de Filho de Deus significa a relação única e eterna de Jesus Cristo com Deus
seu Pai: Ele é o Filho único do Pai (76) e, Ele próprio, Deus (77). Crer que Jesus Cristo é o
Filho de Deus é condição necessária para ser cristão (78).
455. O nome de Senhor significa a soberania divina. Confessar ou invocar Jesus como Sen-
hor é crer na sua divindade. «Ninguém pode dizer "Jesus é Senhor", a não ser pela acção do
Espírito Santo» (1 Co 12, 3).

ARTIGO 3

«JESUS CRISTO FOI CONCEBIDO PELO PODER DO ESPÍRITO SANTO E


NASCEU DA VIRGEM MARIA»

PARÁGRAFO 1

O FILHO DE DEUS FEZ-SE HOMEM


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I. Porque é que o Verbo encarnou?

456. Com o Credo Niceno-Constantinopolitano, respondemos confessando: «Por nós, ho-


mens, e para nossa salvação, desceu dos céus; e encarnou pelo Espírito Santo no seio da
Virgem Maria e Se fez homem» (79).
457. O Verbo fez-Se carne para nos salvar, reconciliando-nos com Deus: «Foi Deus que nos
amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados» (1 Jo 4, 10). «O Pai
enviou o Filho como salvador do mundo» (1 Jo 4, 14). «E Ele veio para tirar os pecados» (1 Jo
3, 5):
«Enferma, a nossa natureza precisava de ser curada; decaída, precisava de ser elevada; morta,
precisava de ser ressuscitada. Tínhamos perdido a posse do bem; era preciso que nos fosse
restituído. Encerrados nas trevas, precisávamos de quem nos trouxesse a luz; cativos, esper-
ávamos um salvador: prisioneiros, esperávamos um auxílio; escravos, precisávamos dum
libertador. Seriam razões sem importância? Não seriam suficientes para comover a Deus, a
ponto de O fazer descer até à nossa natureza humana para a visitar, já que a humanidade se
encontrava em estado tão miserável e infeliz?» (80).
458. O Verbo fez-Se carne, para que assim conhecêssemos o amor de Deus: «Assim se mani-
festou o amor de Deus para connosco: Deus enviou ao mundo o seu Filho Unigénito, para que
vivamos por Ele» (I Jo 4, 9). «Porque Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho
Unigénito, para que todo o homem que acredita n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna»
(Jo 3, 16).
459. O Verbo fez-Se carne, para ser o nosso modelo de santidade: «Tomai sobre vós o meu
jugo e aprendei de Mim [...]» (Mt 11, 29). «Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai
ao Pai senão por Mim» (Jo 14, 6). E o Pai, na montanha da Transfiguração, ordena: «Escutai-
o» (Mc 9, 7) (81). De facto, Ele é o modelo das bem-aventuranças e a norma da Lei nova:
«Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). Este amor implica a oferta efectiva
de nós mesmos, no seu seguimento (82).
460. O Verbo fez-Se carne, para nos tornar «participantes da natureza divina» (2 Pe 1, 4):
«Pois foi por essa razão que o Verbo Se fez homem, e o Filho de Deus Se fez Filho do Homem:
foi para que o homem, entrando em comunhão com o Verbo e recebendo assim a adopção
divina, se tornasse filho de Deus» (83). «Porque o Filho de Deus fez-Se homem, para nos fazer
deuses» (84). «Unigenitus [...] Dei Filias, suae divinitatis volens nos esse participes, nat-
uram nostram assumpsit, ut homines deos faceret factos homo – O Filho Unigénito de Deus,
querendo que fôssemos participantes da sua divindade, assumiu a nossa natureza para que,
feito homem, fizesse os homens deuses» (84).

II. A Encarnação

461. Retomando a expressão de São João («o Verbo fez-Se carne»: Jo 1, 14), a Igreja chama
«Encarnação» ao facto de o Filho de Deus ter assumido uma natureza humana, para nela
levar a efeito a nossa salvação. Num hino que nos foi conservado por São Paulo, a Igreja canta
este mistério:
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«Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus. Ele, que era de condição
divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio, assumindo a
condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-
Se ainda mais, obedecendo até à morte, e morte de Cruz» (Fl 2, 5-8) (86).
462. A Epístola aos Hebreus fala do mesmo mistério:
«É por isso que, ao entrar neste mundo, Cristo diz: "Não quiseste sacrifícios e oferendas, mas
formaste-Me um corpo. Holocaustos e imolações pelo pecado não Te foram agradáveis. Então
Eu disse: Eis-Me aqui [...] para fazer a tua vontade"» (Heb 10, 5-7, citando o Sl 40. 7-9, se-
gundo os LXX).
463. A fé na verdadeira Encarnação do Filho de Deus é o sinal distintivo da fé cristã: «Nisto
haveis de reconhecer o Espírito de Deus: todo o espírito que confessa a Jesus Cristo encar-
nado é de Deus» (1 Jo 4, 2). É esta a alegre convicção da Igreja desde o seu princípio, ao can-
tar «o grande mistério da piedade»: «Ele manifestou-Se na carne» (1 Tm 3, 16).

III. Verdadeiro Deus e verdadeiro homem

464. O acontecimento único e absolutamente singular da Encarnação do Filho de Deus não


significa que Jesus Cristo seja em parte Deus e em parte homem, nem que seja o resultado de
uma mistura confusa do divino com o humano. Ele fez-Se verdadeiro homem, permanecendo
verdadeiro Deus. Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Esta verdade da fé, teve
a Igreja de a defender e clarificar no decurso dos primeiros séculos, perante heresias que a
falsificavam.
465. As primeiras heresias negaram menos a divindade de Cristo que a sua verdadeira hu-
manidade (docetismo gnóstico). Desde os tempos apostólicos que a fé cristã insistiu sobre a
verdadeira Encarnação do Filho de Deus «vindo na carne» (87). Mas, a partir do século III, a
Igreja teve de afirmar, contra Paulo de Samossata, num concilio reunido em Antioquia, que
Jesus Cristo é Filho de Deus por natureza e não por adopção. O primeiro Concílio ecuménico
de Niceia, em 325, confessou no seu Credo que o Filho de Deus é «gerado, não criado, consub-
stancial ('homoúsios') ao Pai» (88); e condenou Ario, o qual afirmava que «o Filho de Deus
saiu do nada» (89) e devia ser «duma substância diferente da do Pai» (90).
466. A heresia nestoriana via em Cristo uma pessoa humana unida à pessoa divina do Filho
de Deus. Perante esta heresia, São Cirilo de Alexandria e o terceiro Concilio ecuménico, re-
unido em Éfeso em 431,confessaram que «o Verbo, unindo na sua pessoa uma carne animada
por uma alma racional, Se fez homem» (91). A humanidade de Cristo não tem outro sujeito
senão a pessoa divina do Filho de Deus, que a assumiu e a fez sua desde que foi concebida. Por
isso, o Concílio de Éfeso proclamou, cm 431, que Maria se tornou, com toda a verdade. Mãe de
Deus, por ter concebido humanamente o Filho de Deus em seu seio: «Mãe de Deus, não
porque o Verbo de Deus dela tenha recebido a natureza divina, mas porque dela recebeu o
corpo sagrado, dotado duma alma racional, unido ao qual, na sua pessoa, se diz que o Verbo
nasceu segundo a carne» (92).
467. Os monofisitas afirmavam que a natureza humana tinha deixado de existir, como tal, em
Cristo, sendo assumida pela sua pessoa divina de Filho de Deus. Confrontando-se com esta
heresia, o quarto Concílio ecuménico, em Calcedónia, no ano de 451, confessou:
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«Na sequência dos santos Padres, ensinamos unanimemente que se confesse um só e mesmo
Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, igualmente perfeito na divindade e perfeito na humanidade,
sendo o mesmo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, composto duma alma ra-
cional e dum corpo, consubstancial ao Pai pela sua divindade, consubstancial a nós pela sua
humanidade, «semelhante a nós em tudo, menos no pecado» (93): gerado do Pai antes de to-
dos os séculos segundo a divindade, e nestes últimos dias, por nós e pela nossa salvação, nas-
cido da Virgem Mãe de Deus segundo a humanidade.
Um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho Único, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem
confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação. A diferença das naturezas não é abolida
pela sua união; antes, as propriedades de cada uma são salvaguardadas e reunidas numa só
pessoa e numa só hipóstase» (94).
468. Depois do Concílio de Calcedónia, alguns fizeram da natureza humana de Cristo uma es-
pécie de sujeito pessoal. Contra eles, o quinto Concílio ecuménico, reunido em Constantinopla
em 553, confessou a propósito de Cristo: «não há n'Ele senão uma só hipóstase (ou pessoa),
que é nosso Senhor Jesus Cristo, um da santa Trindade» (95). Tudo na humanidade de Cristo
deve, portanto, ser atribuído à sua pessoa divina como seu sujeito próprio (96); não só os mil-
agres, mas também os sofrimentos (97) e a própria morte: «Aquele que foi crucificado na
carne, nosso Senhor Jesus Cristo, é verdadeiro Deus, Senhor da glória e um da Santíssima
Trindade» (98).
469. Assim, a Igreja confessa que Jesus é inseparavelmente verdadeiro Deus e verdadeiro
homem. É verdadeiramente o Filho de Deus feito homem, nosso irmão, e isso sem deixar de
ser Deus, nosso Senhor:
«Id quod fuit remansit, et quod non fuit assumpsit» – «Continuou a ser o que era e assumiu o
que não era», como canta a Liturgia Romana (90). E a Liturgia de São João Crisóstomo pro-
clama e canta: «Ó Filho único e Verbo de Deus, sendo imortal. Vos dignastes, para nossa sal-
vação, encarnar no seio da Santa Mãe de Deus e sempre Virgem Maria, e sem mudança Vos
fizestes homem e fostes crucificado! Ó Cristo Deus, que por Vossa morte esmagastes a morte,
que sois um da Santíssima Trindade, glorificado com o Pai e o Espírito Santo, salvai-nos!»
(100).

IV. Como é que o Filho de Deus é homem

470. Uma vez que, na união misteriosa da Encarnação, «a natureza humana foi assumida,
não absorvida» (101), a Igreja, no decorrer dos séculos, foi levada a confessar a plena realid-
ade da alma humana, com as suas operações de inteligência e vontade, e do corpo humano de
Cristo. Mas, paralelamente, a mesma Igreja teve de lembrar repetidamente que a natureza hu-
mana de Cristo pertence, como própria, à pessoa divina do Filho de Deus que a assumiu. Tudo
o que Ele fez e faz nela, depende de «um da Trindade». Portanto, o Filho de Deus comunica à
sua humanidade o seu próprio modo de existir pessoal na Santíssima Trindade. E assim, tanto
na sua alma como no seu corpo, Cristo exprime humanamente os costumes divinos da
Trindade (102):
«O Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu
com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria,
tornou- Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado» (103).
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A ALMA E O CONHECIMENTO HUMANO DE CRISTO

471. Apolinário de Laodiceia afirmava que, em Cristo, o Verbo tinha ocupado o lugar da alma
ou do espírito. Contra este erro, a Igreja confessou que o Filho eterno assumiu também uma
alma racional humana (104).
472. Esta alma humana, que o Filho de Deus assumiu, é dotada de um verdadeiro conheci-
mento humano. Como tal, este não podia ser por si mesmo ilimitado. Exercia-se nas condições
históricas da sua existência no espaço e no tempo. Foi por isso que o Filho de Deus, fazendo-
Se homem, pôde aceitar «crescer em sabedoria, estatura e graça» (Lc 2, 52) e também teve de
Se informar sobre o que, na condição humana, deve aprender-se de modo experimental (105).
Isso correspondia à realidade do seu abatimento voluntário na «condição de servo» (106).
473. Mas, ao mesmo tempo, este conhecimento verdadeiramente humano do Filho de Deus
exprimia a vida divina da sua pessoa (107). «A natureza humana do Filho de Deus, não por si
mesma, mas pela sua união com o Verbo, conhecia e manifestava em si tudo o que é próprio
de Deus» (108). É o caso, em primeiro lugar, do conhecimento íntimo e imediato que o Filho
de Deus feito homem tem do seu Pai (109). O Filho também mostrava, no seu conhecimento
humano, a clarividência divina que tinha dos pensamentos secretos do coração dos homens
(110).
474. Pela sua união com a Sabedoria divina na pessoa do Verbo Encarnado, o conhecimento
humano de Cristo gozava, em plenitude, da ciência dos desígnios eternos que tinha vindo rev-
elar (111). O que neste domínio Ele reconhece ignorar (112) declara, noutro ponto, não ter a
missão de o revelar (113).

A VONTADE HUMANA DE CRISTO

475. De igual modo, a Igreja confessou, no sexto Concilio ecuménico, que Cristo possui duas
vontades e duas operações naturais, divinas e humanas, não opostas mas cooperantes, de
maneira que o Verbo feito carne quis humanamente, em obediência ao Pai, tudo quanto de-
cidiu divinamente com o Pai e o Espírito Santo para a nossa salvação (114). A vontade humana
de Cristo «segue a sua vontade divina, sem fazer resistência nem oposição em relação a ela,
antes estando subordinada a essa vontade omnipotente» (115).

O VERDADEIRO CORPO DE CRISTO

476. Uma vez que o Verbo Se fez carne, assumindo uma verdadeira natureza humana, o corpo
de Cristo era circunscrito (116). Portanto, o rosto humano de Jesus pode ser «pintado» (117).
No VII Concílio ecuménico (118), a Igreja reconheceu como legítimo que ele fosse repres-
entado em santas imagens.
477. Ao mesmo tempo, a Igreja sempre reconheceu que, no corpo de Jesus, «Deus que, por
sua natureza, era invisível, tornou-Se visível aos nossos olhos» (119). Com efeito, as particu-
laridades individuais do corpo de Cristo exprimem a pessoa divina do Filho de Deus. Este fez
seus os traços do seu corpo humano, de tal modo que, pintados numa imagem sagrada, podem
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ser venerados porque o crente que venera a sua imagem, «venera nela a pessoa nela repres-
entada» (120).

O CORAÇÃO DO VERBO ENCARNADO

478. Jesus conheceu-nos e amou-nos, a todos e a cada um, durante a sua vida, a sua agonia e
a sua paixão, entregando-Se por cada um de nós: «O Filho de Deus amou-me e entregou-Se
por mim» (Gl 2, 20). Amou-nos a todos com um coração humano. Por esse motivo, o Sagrado
Coração de Jesus, trespassado pelos nossos pecados e para nossa salvação (121), «praecipuus
consideratur index et symbolus... illius amoris, quo divinus Redemptor aeternum Patrem
hominesque universos continenter adamat é considerado sinal e símbolo por excelência...
daquele amor com que o divino Redentor ama sem cessar o eterno Pai e todos os homens»
(122).

Resumindo:

479. No tempo estabelecido por Deus, o Filho Unigénito do Pai, a Palavra eterna, isto é, o
Verbo e imagem substancial do Pai, encarnou. Sem perder a natureza divina, assumiu a
natureza humana.
480. Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, na unidade da sua Pessoa divina;
por essa razão, Ele é o único mediador entre Deus e os homens.
481. Jesus Cristo tem duas naturezas, a divina e a humana, não confundidas, mas unidas
na única Pessoa do Filho de Deus.
482. Verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Cristo tem uma inteligência e uma vontade hu-
manas em perfeito acordo e submissão à inteligência e vontade divinas, que Ele tem em
comum com o Pai e o Espírito Santo.
483. A encarnação é, pois, o mistério da união admirável da natureza divina e da natureza
humana, na única Pessoa do Verbo.

PARÁGRAFO 2

«... CONCEBIDO PELO PODER DO ESPÍRITO SANTO, NASCIDO DA VIRGEM


MARIA»

I. Concebido pelo poder do Espírito Santo...

484. A Anunciação a Maria inaugura a «plenitude dos tempos» (Gl 4, 4), isto é, o
cumprimento das promessas e dos preparativos. Maria é convidada a conceber Aquele em
quem habitará «corporalmente toda a plenitude da Divindade» (Cl 2, 9). A resposta divina ao
seu «como será isto, se Eu não conheço homem?» (Lc 1, 34) é dada pelo poder do Espírito: «O
Espírito Santo virá sobre ti» (Lc 1, 35).
485. A missão do Espírito Santo está sempre unida e ordenada à do Filho (123). O Espírito
Santo, que é «o Senhor que dá a Vida», é enviado para santificar o seio da Virgem Maria e
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para a fecundar pelo poder divino, fazendo-a conceber o Filho eterno do Pai, numa humanid-
ade originada da sua.
486. Tendo sido concebido como homem no seio da Virgem Maria, o Filho único do Pai é
«Cristo», isto é, ungido pelo Espírito Santo (124), desde o princípio da sua existência humana,
embora a sua manifestação só se venha a fazer progressivamente: aos pastores (125), aos ma-
gos 126), a João Baptista (127), aos discípulos (128). Toda a vida de Jesus Cristo manifestará,
portanto, «como Deus O ungiu com o Espírito Santo e o poder» (Act 10, 38).

II. ...nascido da Virgem Maria

487. O que a fé católica crê, a respeito de Maria, funda-se no que crê a respeito de Cristo. Mas
o que a mesma fé ensina sobre Maria esclarece, por sua vez, a sua fé em Cristo.

A PREDESTINAÇÃO DE MARIA

488. «Deus enviou o seu Filho» (GI 4, 4). Mas, para Lhe «formar um corpo» (129), quis a
livre cooperação duma criatura. Para isso, desde toda a eternidade, Deus escolheu, para ser a
Mãe do seu Filho, uma filha de Israel, uma jovem judia de Nazaré, na Galileia, «virgem que
era noiva de um homem da casa de David, chamado José. O nome da virgem era Maria» (Lc 1,
26-27):
«O Pai das misericórdias quis que a aceitação, por parte da que Ele predestinara para Mãe,
precedesse a Encarnação, para que, assim como uma mulher contribuiu para a morte, tam-
bém outra mulher contribuísse para a vida (130).
489. Ao longo da Antiga Aliança, a missão de Maria foi preparada pela missão de santas
mulheres. Logo no princípio, temos Eva; apesar da sua desobediência, ela recebe a promessa
duma descendência que sairá vitoriosa do Maligno(131) e de vir a ser a mãe de todos os vivos
(132). Em virtude desta promessa, Sara concebe um filho, apesar da sua idade avançada (133).
Contra toda a esperança humana, Deus escolheu o que era tido por incapaz e fraco (134) para
mostrar a sua fidelidade à promessa feita: Ana, a mãe de Samuel (135), Débora, Rute, Judite e
Ester e muitas outras mulheres. Maria «é a primeira entre os humildes e pobres do Senhor,
que confiadamente esperam e recebem a salvação de Deus. Com ela, enfim, excelsa filha de
Sião, passada a longa espera da promessa, cumprem-se os tempos e inaugura-se a nova eco-
nomia da salvação» (136).

A IMACULADA CONCEIÇÃO

490. Para vir a ser Mãe do Salvador, Maria «foi adornada por Deus com dons dignos de uma
tão grande missão» (137). O anjo Gabriel, no momento da Anunciação, saúda-a como «cheia
de graça»(138). Efectivamente, para poder dar o assentimento livre da sua fé ao anúncio da
sua vocação, era necessário que Ela fosse totalmente movida pela graça de Deus.
491. Ao longo dos séculos, a Igreja tomou consciência de que Maria, «cumulada de graça» por
Deus (139), tinha sido redimida desde a sua conceição. É o que confessa o dogma da Imacu-
lada Conceição, proclamado em 1854 pelo Papa Pio IX:
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«Por uma graça e favor singular de Deus omnipotente e em previsão dos méritos de Jesus
Cristo, Salvador do género humano, a bem-aventurada Virgem Maria foi preservada intacta de
toda a mancha do pecado original no primeiro instante da sua conceição» (140).
492. Este esplendor de uma «santidade de todo singular», com que foi «enriquecida desde o
primeiro instante da sua conceição» (141), vem-lhe totalmente de Cristo: foi «remida dum
modo mais sublime, em atenção aos méritos de seu Filho» (142). Mais que toda e qualquer
outra pessoa criada, o Pai a «encheu de toda a espécie de bênçãos espirituais, nos céus, em
Cristo» (Ef 1, 3). «N'Ele a escolheu antes da criação do mundo, para ser, na caridade, santa e
irrepreensível na sua presença» (Ef 1, 4).
493. Os Padres da tradição oriental chamam ã Mãe de Deus «a toda santa» («Panaghia»),
celebram-na como «imune de toda a mancha de pecado, visto que o próprio Espírito Santo a
modelou e dela fez uma nova criatura» (143). Pela graça de Deus, Maria manteve-se pura de
todo o pecado pessoal ao longo de toda a vida.

«FAÇA-SE EM MIM SEGUNDO A TUA PALAVRA...»

494. Ao anúncio de que dará à luz «o Filho do Altíssimo», sem conhecer homem, pela virtude
do Espírito Santo (144), Maria respondeu pela «obediência da fé» (145), certa de que «a Deus
nada é impossível»: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,
38). Assim, dando o seu consentimento à palavra de Deus, Maria tornou-se Mãe de Jesus. E
aceitando de todo o coração, sem que nenhum pecado a retivesse, a vontade divina da
salvação, entregou-se totalmente à pessoa e à obra do seu Filho para servir, na dependência
d'Ele e com Ele, pela graça de Deus, o mistério da redenção (146).
«Como diz Santo Ireneu, "obedecendo, Ela tornou-se causa de salvação, para si e para todo o
género humano" (147). Eis porque não poucos Padres afirmam, tal como ele, nas suas
pregações, que "o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e aquilo
que a virgem Eva atou, com a sua incredulidade, desatou-o a Virgem Maria com a sua fé"
(148); e, por comparação com Eva, chamam Maria a "Mãe dos vivos" e afirmam muitas vezes:
"a morte veio por Eva, a vida veio por Maria"» (149).

A MATERNIDADE DIVINA DE MARIA

495. Chamada nos evangelhos «a Mãe de Jesus» (Jo 2, 1; 19, 25)(150), Maria é aclamada, sob
o impulso do Espírito Santo e desde antes do nascimento do seu Filho, como «a Mãe do meu
Senhor» (Lc 1, 43). Com efeito, Aquele que Ela concebeu como homem por obra do Espírito
Santo, e que Se tornou verdadeiramente seu Filho segundo a carne, não é outro senão o Filho
eterno do Pai, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. A Igreja confessa que Maria é, ver-
dadeiramente, Mãe de Deus («Theotokos») (151).

A VIRGINDADE DE MARIA

496. Desde as primeiras formulações da fé (152), a Igreja confessou que Jesus foi concebido
unicamente pelo poder do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, afirmando igualmente o
aspecto corporal deste acontecimento: Jesus foi concebido « absque semine, [...] ex Spiritu
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Sancto – do Espírito Santo, sem sémen [de homem]» (153). Os Santos Padres vêem, na con-
ceição virginal, o sinal de que foi verdadeiramente o Filho de Deus que veio ao mundo numa
humanidade como a nossa:
Diz, por exemplo, Santo Inácio de Antioquia (princípio do século II): «Vós estais firmemente
convencidos, a respeito de nosso Senhor, que Ele é verdadeiramente da raça de David segundo
a carne (154). Filho de Deus segundo a vontade e o poder de Deus (155); verdadeiramente nas-
cido duma virgem [...], foi verdadeiramente crucificado por nós, na sua carne, sob Pôncio Pila-
tos [...] e verdadeiramente sofreu, como também verdadeiramente ressuscitou» (156).
497. As narrativas evangélicas (157) entendem a conceição virginal como uma obra divina que
ultrapassa toda a compreensão e possibilidade humanas (158): «O que foi gerado nela vem do
Espírito Santo», diz o anjo a José, a respeito de Maria, sua esposa (Mt 1, 20). A Igreja vê nisto
o cumprimento da promessa divina feita através do profeta Isaías: «Eis que a virgem conce-
berá e dará à luz um filho» (Is 7, 14), segundo a tradução grega de Mt 1, 23.
498. Tem, por vezes, causado impressão o silêncio do Evangelho de São Marcos e das
epístolas do Novo Testamento sobre a conceição virginal de Maria Também foi questionado,
se não se trataria aqui de lendas ou construções teológicas fora do âmbito da historicidade. A
isto há que responder: a fé na conceição virginal de Jesus encontrou viva oposição, troça ou
incompreensão por parte dos não-crentes, judeus e pagãos (159); mas não tinha origem na
mitologia pagã, nem era motivada por qualquer adaptação às ideias do tempo. O sentido deste
acontecimento só é acessível à fé. que o vê no «nexo que liga os mistérios entre si» (160), no
conjunto dos mistérios de Cristo, da Encarnação até à Páscoa. Já Santo Inácio de Antioquia
fala deste nexo: «O príncipe deste mundo não teve conhecimento da virgindade de Maria e do
seu parto, tal como da morte do Senhor: três mistérios extraordinários, que se efectuaram no
silêncio de Deus» (161).

MARIA – «SEMPRE VIRGEM»

499. O aprofundamento da fé na maternidade virginal levou a Igreja a confessar a virgindade


real e perpétua de Maria (162), mesmo no parto do Filho de Deus feito homem (163). Com
efeito, o nascimento de Cristo «não diminuiu, antes consagrou a integridade virginal» da sua
Mãe (164).
A Liturgia da Igreja celebra Maria “Aeiparthenos” como a «sempre Virgem»(165)
500. A isso objecta-se, por vezes, que a Escritura menciona irmãos e irmãs de Jesus (166). A
Igreja entendeu sempre estas passagens como não designando outros filhos da Virgem Maria.
Com efeito, Tiago e José, «irmãos de Jesus» (Mt 13, 55), são filhos duma Maria discípula de
Cristo (167) designada significativamente como «a outra Maria» (Mt 28, 1). Trata-se de par-
entes próximos de Jesus, segundo uma expressão conhecida do Antigo Testamento (168).
501. Jesus é o filho único de Maria. Mas a maternidade espiritual de Maria (169) estende-se a
todos os homens que Ele veio salvar: «Ela deu à luz um Filho que Deus estabeleceu como "pri-
mogénito de muitos irmãos" (Rm 8, 29), isto é, dos fiéis para cuja geração e educação Ela co-
opera com amor de mãe» (170).

A MATERNIDADE VIRGINAL DE MARIA NO PLANO DE DEUS


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502. O olhar da fé pode descobrir, em ligação com o conjunto da Revelação, as razões misteri-
osas pelas quais Deus, no seu desígnio salvífico, quis que o seu Filho nascesse duma virgem.
Tais razões dizem respeito tanto à pessoa e missão redentora de Cristo como ao acolhimento
dessa missão por Maria, para bem de todos os homens:
503. A virgindade de Maria manifesta a iniciativa absoluta de Deus na Encarnação. Jesus só
tem Deus por Pai (171). «A natureza humana, que Ele assumiu, nunca O afastou do Pai [...].
Naturalmente Filho do seu Pai segundo a divindade, naturalmente Filho da sua Mãe segundo
a humanidade, mas propriamente Filho de Deus nas suas duas naturezas» (172).
504. Jesus é concebido pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, porque Ele é o Novo
Adão (173), que inaugura a criação nova: «O primeiro homem veio da terra e do pó: o segundo
homem veio do céu» (1 Cor 15, 47). A humanidade de Cristo é, desde a sua conceição, cheia do
Espírito Santo, porque Deus «não dá o Espírito por medida» (Jo 3, 34). É da «sua plenitude»,
que Lhe é própria enquanto cabeça da humanidade resgatada que «nós recebemos graça sobre
graça» (Jo 1, 16).
505. Jesus, o novo Adão, inaugura, pela sua conceição virginal, o novo nascimento dos filhos
de adopção, no Espírito Santo, pela fé, «Como será isso?» (Lc 1, 34) (175). A participação na
vida divina não procede «do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem,
mas de Deus» (Jo 1, 13). A recepção desta vida é virginal, porque inteiramente dada ao
homem pelo Espírito. O sentido esponsal da vocação humana, em relação a Deus (176), foi
perfeitamente realizado na maternidade virginal de Maria.
506. Maria é virgem, porque a virgindade é nela o sinal da sua fé, «sem a mais leve sombra
de dúvida» (177) e da sua entrega sem reservas à vontade de Deus (178). É graças à sua fé que
ela vem a ser a Mãe do Salvador: «Beatior est Maria percipiendo fïdem Christi quam concip-
iendo carnem Christi – Maria é mais feliz por receber a fé de Cristo do que por conceber a
carne de Cristo» (179).
507. Maria é, ao mesmo tempo, virgem e mãe, porque é a figura e a mais perfeita realização
da Igreja (180): «Por sua vez, a Igreja, que contempla a sua santidade misteriosa e imita a sua
caridade, cumprindo fielmente a vontade do Pai, torna-se também, ela própria, mãe, pela fiel
recepção da Palavra de Deus: efectivamente, pela pregação e pelo Baptismo, gera, para uma
vida nova e imortal, os filhos concebidos por acção do Espírito Santo e nascidos de Deus. E
também ela é virgem, pois guarda fidelidade total e pura ao seu esposo» (181).

Resumindo:

508. Na descendência de Eva, Deus escolheu a Virgem Maria para ser a Mãe do seu Filho.
«Cheia de graça», ela é «o mais excelso fruto da Redenção» (182). Desde o primeiro instante
da sua conceição, ela foi totalmente preservada imune da mancha do pecado original, e per-
maneceu pura de todo o pecado pessoal ao longo da vida.
509. Maria é verdadeiramente «Mãe de Deus», pois é a Mãe do Filho eterno de Deus feito
homem que, Ele próprio, é Deus.
510. Maria permaneceu «Virgem ao conceber o seu Filho, Virgem ao dá-Lo à luz, Virgem
grávida, Virgem fecunda, Virgem perpétua» (183); com todo o seu ser; ela é a «serva do
Senhor» (Lc 1, 38).
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511. A Virgem Maria «cooperou livremente, pela sua fé e obediência, na salvação dos ho-
mens» (184). Pronunciou o seu «fiat» – faça-se – «loco totius humanae naturae – em vez de
toda a humanidade» (185): pela sua obediência, tornou-se a nova Eva, mãe dos vivos.

PARÁGRAFO 3

OS MISTÉRIOS DA VIDA DE CRISTO

512. Relativamente à vida de Cristo, o Símbolo da Fé apenas fala dos mistérios da Encarnação
(conceição e nascimento) e da Páscoa (paixão, crucifixão, morte, sepultura, descida à mansão
dos mortos, ressurreição, ascensão). Nada diz explicitamente dos mistérios da vida oculta e
pública de Jesus. Mas os artigos que dizem respeito à Encarnação e à Páscoa de Jesus esclare-
cem toda a vida terrena de Cristo. «Tudo o que Jesus fez e ensinou desde o princípio até ao
dia em que foi elevado ao céu» (Act 1, 1-2) deve ser visto á luz dos mistérios do Natal e da
Páscoa.
513. A catequese, segundo as circunstâncias, explanará toda a riqueza dos mistérios de Jesus.
Aqui, basta indicar alguns elementos comuns a todos os mistérios da vida de Cristo (I), para
depois esboçar os principais mistérios da vida oculta (II) e pública (III) de Jesus.

I. Toda a vida de Cristo é mistério

514. Muitas coisas que interessam à curiosidade humana, a respeito de Jesus, não figuram
nos evangelhos. Quase nada se diz da sua vida em Nazaré e mesmo grande parte da sua vida
pública não é relatada (186). O que foi escrito nos evangelhos, foi-o «para acreditardes que Je-
sus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome» (Jo 20,
31).
515. Os evangelhos foram escritos por homens que foram dos primeiros a receber a fé (187) e
que quiseram partilhá-la com outros. Tendo conhecido, pela fé, quem é Jesus, puderam ver e
fazer ver os traços do seu mistério em toda a sua vida terrena. Desde os panos do nascimento
(188) até ao vinagre da paixão (189) e ao sudário da ressurreição (190), tudo, na vida de Jesus,
é sinal do seu mistério. Através dos seus gestos, milagres e palavras, foi revelado que «n'Ele
habita corporalmente toda a plenitude da Divindade» (Cl 2, 9). A sua humanidade aparece,
assim, como «sacramento», isto é, sinal e instrumento da sua divindade e da salvação que Ele
veio trazer. O que havia de visível na sua vida terrena conduz ao mistério invisível da sua fili-
ação divina e da
sua missão redentora.

OS TRAÇOS COMUNS DOS MISTÉRIOS DE JESUS

516. Toda a vida de Cristo é revelação do Pai: as suas palavras e actos, os seus silêncios e so-
frimentos, a maneira de ser e de falar. Jesus pode dizer: «Quem Me vê, vê o Pai» (Jo 14, 9); e o
Pai: «Este é o meu Filho predilecto: escutai-O» (Lc 9, 35). Tendo-Se nosso Senhor feito
homem para cumprir a vontade do Pai (191), os mais pequenos pormenores dos seus mistérios
manifestam «o amor de Deus para connosco» (192).
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517. Toda a vida de Cristo é mistério de redenção. A redenção vem-nos, antes de mais, pelo
sangue da cruz (193). Mas este mistério está actuante em toda a vida de Cristo: já na sua En-
carnação, pela qual, fazendo-Se pobre, nos enriquece com a sua pobreza (194); na vida oculta
que, pela sua obediência (195), repara a nossa insubmissão; na palavra que purifica os seus
ouvintes (196): nas curas e expulsões dos demónios, pelas quais «toma sobre Si as nossas en-
fermidades e carrega com as nossas doenças» (Mt 8, 17)(197); na ressurreição, pela qual nos
justifica (198).
518. Toda a vida de Cristo é mistério de recapitulação. Tudo o que Jesus fez, disse e sofreu
tinha por fim restabelecer o homem decaído na sua vocação originária:
«Quando Ele encarnou e Se fez homem, recapitulou em Si a longa história dos homens e
proporcionou-nos, em síntese, a salvação, de tal forma que aquilo que havíamos perdido em
Adão – isto é, sermos imagem e semelhança de Deus – o recuperássemos em Cristo Jesus»
(199). «Aliás, foi por isso que Cristo passou por todas as idades da vida, restituindo assim a to-
dos os homens a comunhão com Deus» (200).

A NOSSA COMUNHÃO NOS MISTÉRIOS DE JESUS

519. Toda a riqueza de Cristo «se destina a todos os homens e constitui o bem de cada um»
(201). Cristo não viveu para Si mesmo, mas para nós, desde a Encarnação «por nós homens e
para nossa salvação» (202) até á sua morte «por causa dos nossos pecados» (1 Cor 15, 3) e à
sua ressurreição «para nossa justificação» (Rm 4, 25). Ainda agora, Ele é «o nosso advogado
junto do Pai» (1 Jo 2, 1), «sempre vivo para interceder por nós» (Heb 7, 25). Com tudo o que
viveu e sofreu por nós, uma vez por todas, Ele está para sempre presente «em nosso favor, na
presença de Deus» (Heb 9, 24).
520. Em toda a sua vida, Jesus mostra-Se como nosso modelo (203): é «o homem perfeito»
(204), que nos convida a tornarmo-nos seus discípulos e a segui-Lo; com a sua humilhação,
deu-nos um exemplo a imitar (205); com a sua oração, convida-nos à oração (206); com a sua
pobreza, incita--nos a aceitar livremente o despojamento e as perseguições (207).
521. Tudo o que Cristo viveu, Ele próprio faz com que o possamos viver n'Ele e Ele vivê-lo em
nós. «Pela sua Encarnação, o Filho de Deus uniu-Se, de certo modo, a cada homem» (208).
Nós somos chamados a ser um só com Ele; Ele faz-nos comungar, enquanto membros do seu
corpo, em tudo o que Ele próprio viveu na sua carne por nós, e como nosso modelo:
«Devemos continuar a completar em nós os estados e mistérios da vida de Jesus e pedir-Lhe
continuamente que Se digne consumá-los perfeitamente em nós e em toda a sua Igreja [...].
Na verdade, o Filho de Deus deseja comunicar e prolongar, de certo modo, os seus mistérios
em nós e em toda a sua Igreja, [...] quer pelas graças que decidiu conceder-nos, quer pelos
efeitos que deseja produzir em nós, por meio destes mistérios. É neste sentido que Ele quer
completá- los em nós» (209).

II. Os mistérios da infância e da vida oculta de Jesus

OS PREPARATIVOS
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522. A vinda do Filho de Deus à terra é um acontecimento tão grandioso, que Deus quis
prepará-lo durante séculos. Ritos e sacrifícios, figuras e símbolos da «primeira Aliança» (210),
tudo Deus faz convergir para Cristo. Anuncia-O pela boca dos profetas que se sucedem em Is-
rael. E, por outro lado, desperta no coração dos pagãos a obscura expectativa desta vinda.
523. São João Baptista é o precursor imediato do Senhor (211), enviado para Lhe preparar o
caminho (212). «Profeta do Altíssimo» (Lc 1, 76), supera todos os profetas (213), é o último
deles (214) inaugura o Evangelho (215); saúda a vinda de Cristo desde o seio da sua Mãe (216)
e põe a sua alegria em ser «o amigo do esposo» (Jo 3, 29) que ele designa como «Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1, 29). Precedendo Jesus «com o espírito e o poder de
Elias» (Lc 1, 17), dá testemunho d'Ele pela sua pregação, pelo seu baptismo de conversão e, fi-
nalmente, pelo seu martírio (217).
524. Ao celebrar em cada ano a Liturgia do Advento, a Igreja actualiza esta expectativa do
Messias. Comungando na longa preparação da primeira vinda do Salvador, os fiéis renovam o
ardente desejo da sua segunda vinda (218). Pela celebração do nascimento e martírio do Pre-
cursor, a Igreja une-se ao seu desejo: «Ele deve crescer e eu diminuir» (Jo 3, 30).

O MISTÉRIO DO NATAL

525. Jesus nasceu na humildade dum estábulo, no seio duma família pobre (219). As primeir-
as testemunhas deste acontecimento são simples pastores. E é nesta pobreza que se manifesta
a glória do céu (220). A Igreja não se cansa de cantar a glória desta noite:
«Hoje a Virgem dá à luz o Eterno e a terra oferece uma gruta ao Inacessível. Cantam-n'O os
anjos e os pastores, e com a estrela os magos põem-se a caminho, porque Tu nasceste para
nós, pequeno Infante. Deus eterno!» (221)
526. «Tornar-se criança» diante de Deus é a condição para entrar no Reino (222), e para isso,
é preciso abaixar-se (223) tornar-se pequeno. Mais ainda: é preciso «nascer do Alto» (Jo 3, 7),
«nascer de Deus» (224) para se «tornar filho de Deus» (225). O mistério do Natal cumpre-se
em nós quando Cristo «Se forma» em nós (226). O Natal é o mistério desta «admirável
permuta»:
«O admirabile commercium! Creator generis humani, animatum corpus sumens de Virgine
nasci dignatus est; et, procedens homo sine semine, largitus est nobis suam deitatem». –
«Oh admirável permuta! O Criador do género humano, tomando corpo e alma, dignou-Se
nascer duma Virgem; e, feito homem sem progenitor humano, tornou-nos participantes da
sua divindade!» (227).

OS MISTÉRIOS DA INFÂNCIA DE JESUS

527. A circuncisão de Jesus, oito dias depois do seu nascimento (228), sinal da sua inserção
na descendência de Abraão, no povo da Aliança, da sua submissão à Lei (229) e da sua
deputação para o culto de Israel, no qual participará durante toda a sua vida. Este sinal pre-
figura «a circuncisão de Cristo», que é o Baptismo (230).
528. A Epifania é a manifestação de Jesus como Messias de Israel, Filho de Deus e salvador
do mundo. Juntamente com o baptismo de Jesus no Jordão e as bodas de Caná (231), a Epi-
fania celebra a adoração de Jesus pelos «magos» vindos do Oriente (232). Nestes «magos»,
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representantes das religiões pagãs circunvizinhas, o Evangelho vê as primícias das nações, que
acolhem a Boa-Nova da salvação pela Encarnação. A vinda dos magos a Jerusalém, para «ad-
orar o rei dos judeus» (233), mostra que eles procuram em Israel, à luz messiânica da estrela
de David (234), Aquele que será o rei das nações (235). A sua vinda significa que os pagãos
não podem descobrir Jesus e adorá-Lo como Filho de Deus e Salvador do mundo, senão
voltando-se para os Judeus (236) e recebendo deles a sua promessa messiânica, tal como está
contida no Antigo Testamento (237). A Epifania manifesta que «todos os povos entram na
família dos patriarcas» (238) e adquire a « israelitica dignitas» – a dignidade própria do
povo eleito (239).
529. A apresentação de Jesus no templo (240) mostra-O como Primogénito que pertence ao
Senhor (241). Com Simeão e Ana, é toda a expectativa de Israel que vem ao encontro do seu
Salvador (a tradição bizantina designa por encontro este acontecimento). Jesus é reconhecido
como o Messias tão longamente esperado, «luz das nações» e «glória de Israel», mas também
como «sinal de contradição». A espada de dor, predita a Maria, anuncia essa outra oblação,
perfeita e única, da cruz, que trará a salvação que Deus «preparou diante de todos os povos».
530. A fuga para o Egipto e o massacre dos Inocentes (242) manifestam a oposição das tre-
vas à luz: «Ele veio para o que era seu e os seus não O receberam» (Jo 1, 11). Toda a vida de
Cristo decorrerá sob o signo da perseguição. Os seus partilham-na com Ele (243). O seu re-
gresso do Egipto (244) lembra o Êxodo (245) e apresenta Jesus como o libertador definitivo.

OS MISTÉRIOS DA VIDA OCULTA DE JESUS

531. Durante a maior parte da sua vida, Jesus partilhou a condição da imensa maioria dos ho-
mens: uma vida quotidiana sem grandeza aparente, vida de trabalho manual, vida religiosa
judaica sujeita à Lei de Deus (246), vida na comunidade. De todo este período, é-nos revelado
que Jesus era «submisso» a seus pais (247) e que «ia crescendo em sabedoria, em estatura e
em graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2, 52).
532. A submissão de Jesus à sua Mãe e ao seu pai legal foi o cumprimento perfeito do quarto
mandamento. É a imagem temporal da sua obediência filial ao Pai celeste. A submissão diária
de Jesus a José e a Maria anunciava e antecipava a submissão de Quinta-Feira Santa: «Não se
faça a minha vontade [...]» (Lc 22, 42). A obediência de Cristo, no quotidiano da vida oculta,
inaugurava já a recuperação daquilo que a desobediência de Adão tinha destruído (248).
533. A vida oculta de Nazaré permite a todos os homens entrar em comunhão com Jesus,
pelos diversos caminhos da vida quotidiana:
«Nazaré é a escola em que se começa a compreender a vida de Jesus, é a escola em que se ini-
cia o conhecimento do Evangelho [...] Em primeiro lugar, uma lição de silêncio. Oh! se renas-
cesse em nós o amor do silêncio, esse admirável e indispensável hábito do espírito [...]! Uma
lição de vida familiar Que Nazaré nos ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a
sua austera e simples beleza, o seu carácter sagrado e inviolável [...]. Uma lição de trabalho,
Nazaré, a casa do "Filho do carpinteiro"! Aqui desejaríamos compreender e celebrar a lei, sev-
era mas redentora, do trabalho humano [...] Daqui, finalmente, queremos saudar os trabal-
hadores de todo o mundo e mostrar-lhes o seu grande modelo, o seu Irmão divino» (249)
534. O reencontro de Jesus no templo (250) é o único acontecimento que quebra o silêncio
dos evangelhos sobre os anos ocultos de Jesus. Nele, Jesus deixa entrever o mistério da sua
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consagração total à missão decorrente da sua filiação divina: «Não sabíeis que Eu tenho de es-
tar na casa do meu Pai?». Maria e José «não compreenderam» esta palavra, mas acolheram-
na na fé, e Maria «guardava no coração todas estas recordações», ao longo dos anos em que
Jesus permaneceu oculto no silêncio duma vida normal.

III. Os mistérios da vida pública de Jesus

O BAPTISMO DE JESUS

535 O início (251) da vida pública de Jesus é o seu baptismo por João, no rio Jordão (252).
João pregava «um baptismo de penitência, em ordem à remissão dos pecados» (Lc 3, 3). Uma
multidão de pecadores, publicanos e soldados (253), fariseus e saduceus (254) e prostitutas
vinha ter com ele, para que os baptizasse. «Então aparece Jesus». O Baptista hesita, Jesus in-
siste: e recebe o baptismo. Então o Espírito Santo, sob a forma de pomba, desce sobre Jesus e
uma voz do céu proclama: «Este é o meu Filho muito amado» (Mt 3,13-17). Tal foi a manifest-
ação («epifania») de Jesus como Messias de Israel e Filho de Deus.
536. Da parte de Jesus, o seu baptismo é a aceitação e a inauguração da sua missão de Servo
sofredor. Deixa-se contar entre o número dos pecadores (256). É já «o Cordeiro de Deus que
tira o pecado do mundo» (Jo 1, 29), e antecipa já o «baptismo» da sua morte sangrenta (257).
Vem, desde já, para «cumprir toda a justiça» (Mt 3,15). Quer dizer que Se submete inteira-
mente à vontade do Pai e aceita por amor o baptismo da morte para a remissão dos nossos
pecados (258). A esta aceitação responde a voz do Pai, que põe toda a sua complacência no
Filho (259). O Espírito que Jesus possui em plenitude, desde a sua conceição, vem «repousar»
sobre Ele (Jo 1, 32-33) (260) e Jesus será a fonte do mesmo Espírito para toda a humanidade.
No baptismo de Cristo, «abriram-se os céus» (Mt 3, 16) que o pecado de Adão tinha fechado, e
as águas são santificadas pela descida de Jesus e do Espírito, prelúdio da nova criação.
537. Pelo Baptismo, o cristão é sacramentalmente assimilado a Jesus que, no seu baptismo,
antecipa a sua morte e ressurreição. Deve entrar neste mistério de humilde abatimento e de
penitência, descer à água com Jesus, para de lá subir com Ele, renascer da água e do Espírito
para se tornar, no Filho, filho-amado do Pai e «viver numa vida nova» (Rm 6, 4):
«Sepultemo-nos com Cristo pelo Baptismo, para com Ele ressuscitarmos; desçamos com Ele,
para com Ele sermos elevados; tornemos a subir com Ele, para n'Ele sermos glorificados»
(261). «Tudo o que se passou com Cristo dá-nos a conhecer que, depois do banho de água, o
Espírito Santo desce sobre nós do alto dos céus e, adoptados pela voz do Pai, tornamo-nos fil-
hos de Deus» (262).

A TENTAÇÃO DE JESUS

538. Os evangelhos falam dum tempo de solidão que Jesus passou no deserto, imediatamente
depois de ter sido baptizado por João: «Impelido»pelo Espírito para o deserto, Jesus ali per-
manece sem comer durante quarenta dias. Vive com os animais selvagens e os anjos servem-
n'O (263).
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No fim desse tempo, Satanás tenta-O por três vezes, procurando pôr em causa a sua atitude fi-
lial para com Deus; Jesus repele esses ataques, que recapitulam as tentações de Adão no
paraíso e de Israel no deserto; e o Diabo afasta-se d'Ele «até determinada altura» (Lc 4, 13).
539. Os evangelistas indicam o sentido salvífico deste acontecimento misterioso, Jesus é o
Novo Adão, que Se mantém fiel naquilo em que o primeiro sucumbiu à tentação. Jesus
cumpre perfeitamente a vocação de Israel: contrariamente aos que outrora, durante quarenta
anos, provocaram a Deus no deserto (264), Cristo revela-Se o Servo de Deus totalmente obedi-
ente à vontade divina. Nisto, Jesus vence o Diabo: «amarrou o homem forte», para lhe tirar os
despojos (265). A vitória de Jesus sobre o tentador, no deserto, antecipa a vitória da paixão,
suprema obediência do seu amor filial ao Pai.
540. A tentação de Jesus manifesta a maneira própria de o Filho de Deus ser Messias, ao con-
trário da que Lhe propõe Satanás e que os homens (266) desejam atribuir-Lhe. Foi por isso
que Cristo venceu o Tentador, por nós: «Nós não temos um sumo-sacerdote incapaz de se
compadecer das nossas fraquezas; temos um, que possui a experiência de todas as provações,
tal como nós, com excepção do pecado» (Heb 4, 15). Todos os anos, pelos quarenta dias da
Grande Quaresma, a Igreja une-se ao mistério de Jesus no deserto.

«O REINO DE DEUS ESTÁ PRÓXIMO»

541. «Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia. Aí proclamava a Boa-Nova
da vinda de Deus, nestes termos: "Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo:
convertei-vos e acreditai na Boa-Nova!"» (Mc 1, 14-15). «Por isso, Cristo, a fim de cumprir a
vontade do Pai, deu começo na terra ao Reino dos céus» (267). Ora a vontade do Pai é «elevar
os homens à participação da vida divina» (268). E fá-lo reunindo os homens em torno do seu
Filho, Jesus Cristo. Esta reunião é a Igreja, a qual é na terra «o germe e o princípio» do Reino
de Deus» (269).
542. Cristo está no centro desta reunião dos homens na «família de Deus». Reúne-os à sua
volta pela sua palavra, pelos seus sinais que manifestam o Reino de Deus, pelo envio dos dis-
cípulos. E realizará a vinda do seu Reino sobretudo pelo grande mistério da sua Páscoa: a sua
morte de cruz e a sua ressurreição. «E Eu, uma vez elevado da Terra, atrairei todos a Mim»
(Jo 12, 32). Todos os homens são chamados a esta união com Cristo (270).

O ANÚNCIO DO REINO DE DEUS

543. Todos os homens são chamados a entrar no Reino. Anunciado primeiro aos filhos de Is-
rael (271), este Reino messiânico é destinado a acolher os homens de todas as nações (272).
Para ter acesso a ele, é preciso acolher a Palavra de Jesus:
«A Palavra do Senhor compara-se à semente lançada ao campo: aqueles que a ouvem com fé e
entram a fazer parte do pequeno rebanho de Cristo, já receberam o Reino; depois, por força
própria, a semente germina e cresce até ao tempo da messe» (273).
544. O Reino é dos pobres e pequenos, quer dizer, dos que o acolheram com um coração hu-
milde. Jesus foi enviado para «trazer a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18) (274). Declara-os
bem-aventurados, porque «é deles o Reino dos céus» (Mt 5, 3). Foi aos «pequenos» que o Pai
se dignou revelar o que continua oculto aos sábios e inteligentes (275). Jesus partilha a vida
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dos pobres, desde o presépio até à cruz: sabe o que é sofrer a fome (276), a sede (277) e a in-
digência (278). Mais ainda: identifica-se com os pobres de toda a espécie, e faz do amor activo
para com eles a condição da entrada no seu Reino (279).
545. Jesus convida os pecadores para a mesa do Reino: «Eu não vim chamar os justos, mas
os pecadores» (Mc 2, 17) (280). Convida-os à conversão sem a qual não se pode entrar no
Reino, mas por palavras e actos, mostra-lhes a misericórdia sem limites do Seu Pai para com
eles e a imensa «alegria que haverá no céu, por um só pecador que se arrependa» (Lc 15, 7). A
prova suprema deste amor será o sacrifício da sua própria vida, «pela remissão dos pecados»
(Mt 26, 28).
546. Jesus chama para entrar no Reino, por meio de parábolas, traço característico do seu
ensino (282). Por meio delas, convida para o banquete do Reino (283), mas exige também
uma opção radical: para adquirir o Reino é preciso dar tudo (284). As palavras não bastam,
exigem-se actos (285). As parábolas são, para o homem, uma espécie de espelho: como é que
ele recebe a Palavra? Como chão duro, ou como terra boa? (286) Que faz ele dos talentos rece-
bidos? (287) Jesus e a presença do Reino neste mundo estão secretamente no coração das
parábolas. É preciso entrar no Reino, quer dizer, tornar-se discípulo de Cristo, para «conhecer
os mistérios do Reino dos céus» (Mt 13, 11). Para os que ficam «fora» (Mc 4, 11), tudo per-
manece enigmático (288).

OS SINAIS DO REINO DE DEUS

547. Jesus acompanha as suas palavras com numerosos «milagres, prodígios e sinais» (Act
2,22), os quais manifestam que o Reino está presente n'Ele. Comprovam que Ele é o Messias
anunciado (289).
548. Os sinais realizados por Jesus testemunham que o Pai O enviou (290). Convidam a crer
n'Ele (291). Aos que se Lhe dirigem com fé, concede-lhes o que pedem (292). Assim, os mil-
agres fortificam a fé n'Aquele que faz as obras do seu Pai: testemunham que Ele é o Filho de
Deus (293). Mas também podem ser «ocasião de queda» (294). Eles não pretendem satisfazer
a curiosidade nem desejos mágicos. Apesar de os seus milagres serem tão evidentes, Jesus é
rejeitado por alguns (295); chega mesmo a ser acusado de agir pelo poder dos demónios
(296).
549. Ao libertar certos homens dos males terrenos da fome (297), da injustiça (298) da
doença e da morte (299) – Jesus realizou sinais messiânicos; no entanto, Ele não veio para ab-
olir todos os males deste mundo (300), mas para libertar os homens da mais grave das es-
cravidões, a do pecado (301), que os impede de realizar a sua vocação de filhos de Deus e é
causa de todas as servidões humanas.
550. A vinda do Reino de Deus é a derrota do reino de Satanás (302): «Se é pelo Espírito de
Deus que Eu expulso os demónios, então é porque o Reino de Deus chegou até vós» (Mt 12,
28). Os exorcismos de Jesus libertam os homens do poder dos demónios (303). E antecipam a
grande vitória de Jesus sobre «o príncipe deste mundo» (304). É pela cruz de Cristo que o
Reino de Deus vai ser definitivamente estabelecido: «Regnavit a ligno Deus – Deus reinou
desde o madeiro» (305).

«AS CHAVES DO REINO»


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551. Desde o princípio da sua vida pública, Jesus escolheu alguns homens, em número de
doze, para andarem com Ele e participarem na sua missão (306). Deu-lhes parte na sua autor-
idade «e enviou-os a pregar o Reino de Deus e a fazer curas» (Lc 9, 2). Estes homens ficam
para sempre associados ao Reino de Cristo, porque, por meio deles, Jesus Cristo dirige a
Igreja:
«Eu disponho, a vosso favor, do Reino, como meu Pai dispõe dele a meu favor, a fim de que
comais e bebais à minha mesa, no meu Reino. E sentar-vos-eis em tronos, a julgar as doze tri-
bos de Israel» (Lc 22, 29-30).
552. No colégio dos Doze, Simão Pedro ocupa o primeiro lugar (307). Jesus confiou-lhe uma
missão única. Graças a uma revelação vinda do Pai, Pedro confessara: «Tu és o Cristo, o Filho
de Deus vivo» (Mt 16, 16). E nosso Senhor declarou-lhe então: «Tu és Pedro: sobre esta pedra
edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela» (Mt 16, 18).
Cristo, «pedra viva» (308), garante à sua Igreja, edificada sobre Pedro, a vitória sobre os
poderes da morte. Pedro, graças à fé que confessou, permanecerá o rochedo inabalável da
Igreja. Terá a missão de defender esta fé para que nunca desfaleça e de nela confirmar os seus
irmãos (309).
553. Jesus confiou a Pedro uma autoridade específica: «Dar-te-ei as chaves do Reino dos
céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desli-
gado nos céus» (Mt 16, 19). O «poder das chaves» designa a autoridade para governar a Casa
de Deus, que é a Igreja. Jesus, o «bom Pastor» (Jo 10, 11), confirmou este cargo depois da sua
ressurreição: «Apascenta as minhas ovelhas» (Jo 21, 15-17). O poder de «ligar e desligar» sig-
nifica a autoridade para absolver os pecados, pronunciar juízos doutrinais e tomar decisões
disciplinares na Igreja. Jesus confiou esta autoridade à Igreja pelo ministério dos Apóstolos e
particularmente pelo de Pedro, o único a quem confiou explicitamente as chaves do Reino.

UM ANTEGOZO DO REINO: A TRANSFIGURAÇÃO

554. A partir do dia em que Pedro confessou que Jesus era o Cristo, Filho do Deus vivo, o
Mestre «começou a explicar aos seus discípulos que tinha de ir a Jerusalém e lá sofrer [...],
que tinha de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia» (Mt 16, 21). Pedro rejeita este anúncio e
os outros também não o entendem (312). É neste contexto que se situa o episódio misterioso
da transfiguração de Jesus (313), no cimo duma alta montanha, perante três testemunhas por
Ele escolhidas: Pedro, Tiago e João. O rosto e as vestes de Jesus tornaram-se fulgurantes de
luz, Moisés e Elias aparecem, «e falam da sua morte, que ia consumar-se em Jerusalém» (Lc
9, 31). Uma nuvem envolve-os e uma voz do céu diz: «Este é o meu Filho predilecto: escutai-
O» (Lc 9, 35).
555. Por um momento, Jesus mostra a sua glória divina, confirmando assim a confissão de
Pedro. Mostra também que, para «entrar na sua glória» (Lc 24, 26), tem de passar pela cruz
em Jerusalém. Moisés e Elias tinham visto a glória de Deus sobre a montanha; a Lei e os Pro-
fetas tinham anunciado os sofrimentos do Messias (314). A paixão de Jesus é da vontade do
Pai: o Filho age como Servo de Deus (315). A nuvem indica a presença do Espírito Santo:
«Tota Trinitas apparuit: Pater in voce; Filius in homine; Spiritus in nube clara – Apareceu
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toda a Trindade: o Pai na voz; o Filho na humanidade; o Espírito Santo na nuvem luminosa»
(316):
«Transfiguraste-Te sobre a montanha e, na medida em que disso eram capazes, os teus dis-
cípulos contemplaram a tua glória, ó Cristo Deus; para que, quando Te vissem crucificado,
compreendessem que a tua paixão era voluntária, e anunciassem ao mundo que Tu és ver-
dadeiramente a irradiação do Pai» (317).
556. No limiar da vida pública, o baptismo; no limiar da Páscoa, a transfiguração. Pelo bap-
tismo de Jesus «declaratum fuit mysterium primae regenerationis – foi declarado o mistério
da (nossa) primeira regeneração» – o nosso Baptismo; e a transfiguração «est sacramentum
secundae regenerationis – é o sacramento da (nossa) segunda regeneração» – a nossa própria
ressurreição (318). Desde agora, nós participamos na ressurreição do Senhor pelo Espírito
Santo que actua nos sacramentos do Corpo de Cristo. A transfiguração dá-nos um antegozo da
vinda gloriosa de Cristo, «que transfigurará o nosso corpo miserável para o conformar com o
seu corpo glorioso» (Fl 3, 21). Mas lembra-nos também que temos de passar por muitas tribu-
lações para entrar no Reino de Deus» (Act 14, 22):
«Era isso que Pedro ainda não tinha compreendido, quando manifestava o desejo de ficar com
Cristo no cimo da montanha (319). – Isso, Ele to reservou, Pedro, para depois da morte. Mas
agora, Ele próprio te diz: Desce para sofrer na Terra, para servir na Terra, para ser desprezado
e crucificado na Terra. A Vida desce para se fazer matar: o Pão desce para passar fome; o
Caminho
desce para se cansar de andar; a Fonte desce para ter sede; – e tu recusas-te a sofrer?» (320).

A SUBIDA DE JESUS PARA JERUSALÉM

557. «Ora, como se aproximavam os dias de Jesus ser levado deste mundo, Ele tomou a firme
resolução de Se dirigir a Jerusalém» (Lc 9, 51) (321). Por esta decisão, indicava que subia para
Jerusalém pronto para lá morrer. Já por três vezes tinha anunciado a sua paixão e a sua res-
surreição (322). E ao dirigir-Se para Jerusalém, declara: «não se admite que um profeta
morra fora de Jerusalém» (Lc 13, 33).
558. Jesus recorda o martírio dos profetas que tinham sido entregues à morte em Jerusalém
(323). No entanto, continua a convidar Jerusalém a reunir-se à sua volta: «Quantas vezes Eu
quis agrupar os teus filhos como a galinha junta os seus pintainhos sob as asas!... Mas vós não
quisestes» (Mt 23, 37b). Quando já avista Jerusalém, chora sobre ela (324) e exprime, uma
vez mais, o desejo do seu coração: «Se neste dia também tu tivesses conhecido o que te pode
trazer a paz! Mas agora isto está oculto aos teus olhos» (Lc 19, 42).

A ENTRADA MESSIÂNICA DE JESUS EM JERUSALÉM

559. Como vai Jerusalém acolher o seu Messias? Embora tenha sempre evitado as tentativas
populares de O fazerem rei (325), Jesus escolheu o momento e preparou os pormenores da
sua entrada messiânica na cidade de «David, seu pai» (Lc 1, 32) (326). E é aclamado como
filho de David e como aquele que traz a salvação («Hosanna» quer dizer «então salva!», «dá a
salvação»). Ora, o «rei da glória» (Sl 24, 7-10) entra na «sua cidade», «montado num ju-
mento» (Zc 9, 9). Não conquista a filha de Sião, figura da sua Igreja, nem pela astúcia nem
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pela violência, mas pela humildade que dá testemunho da verdade (327). Por isso é que,
naquele dia, os súbditos do seu Reino, são as crianças (328) e os «pobres de Deus», que O
aclamam, tal como os anjos O tinham anunciado aos pastores (329). A aclamação deles:
«Bendito o que vem em nome do Senhor» (Sl 118, 26) é retomada pela Igreja no «Sanctus» da
Liturgia Eucarística, a abrir o memorial da Páscoa do Senhor.
560. A entrada de Jesus em Jerusalém manifesta a vinda do Reino que o Rei-Messias vai
realizar pela Páscoa da sua morte e da sua ressurreição. É com a sua celebração, no Domingo
de Ramos, que a Liturgia da Igreja começa a Semana Santa.

Resumindo:

561. «Toda a vida de Cristo foi um contínuo ensinamento: os seus silêncios, os seus mil-
agres, os seus gestos, a sua oração, o seu amor pelo homem, a sua predilecção pelos
pequenos e pelos pobres, a aceitação do sacrifício total na cruz pela redenção do mundo, a
sua ressurreição tudo é actuação da sua palavra e cumprimento da Revelação» (330).
562. Os discípulos de Cristo devem conformar-se com Ele até que Ele Se forme neles (331),
«Por isso, somos assumidos nos mistérios da sua vida, configurados com Ele, com Ele mor-
tos e ressuscitados, até que reinemos com Ele» (332).
563. Pastor ou mago, ninguém pode atingir a Deus neste mundo senão ajoelhando diante
do presépio de Belém e adorando-O oculto na fraqueza duma criança.
564. Pela sua submissão a Maria e a José, assim como pelo seu trabalho humilde em Nazaré
durante longos anos, Jesus dá-nos o exemplo da santidade na vida quotidiana da família e
do trabalho.
565. Desde o princípio da sua vida pública, desde o seu baptismo, Jesus é o «Servo» inteira-
mente consagrado à obra redentora, que consumará pelo «baptismo» da sua paixão.
566. A tentação no deserto mostra Jesus como Messias humilde, que triunfa de Satanás pela
total adesão ao desígnio de salvação querido pelo Pai.
567. O Reino dos céus foi inaugurado na terra por Cristo, e resplandece para os homens na
palavra, nas obras e na presença de Cristo» (333). A Igreja é o gérmen e o princípio deste
Reino. As suas chaves são confiadas a Pedro.
568. A transfiguração de Cristo tem por fim fortalecer a fé dos Apóstolos em vista da
paixão: a subida à «alta montanha» prepara a subida ao Calvário. Cristo, cabeça da Igreja,
manifesta o que o seu Corpo contém e irradia nos sacramentos: «a esperança da Glória» (Cl
1, 27) (334).
569. Jesus subiu voluntariamente a Jerusalém, sabendo perfeitamente que ali ia morrer de
morte violenta, por causa da oposição dos pecadores (335).
570. A entrada de Jesus em Jerusalém manifesta a vinda do Reino, que o Rei-Messias, acol-
hido na cidade pelas crianças e pelos humildes de corarão, vai realizar pela Páscoa da sua
morte e ressurreição.

ARTIGO 4

«JESUS CRISTO PADECEU SOB PÔNCIO PILATOS FOI CRUCIFICADO, MORTO


E SEPULTADO»
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571. O mistério pascal da cruz e ressurreição de Cristo está no centro da Boa-Nova que os
Apóstolos, e depois deles a Igreja, devem anunciar ao mundo. O desígnio salvífico de Deus
cumpriu-se de «una vez por todas» (Heb 9, 26) pela morte redentora do seu Filho Jesus
Cristo.
572. A Igreja permanece fiel à «interpretação de todas as Escrituras» dada pelo próprio Je-
sus, tanto antes como depois da sua Páscoa (336) «Não tinha o Messias de sofrer tudo isto,
para entrar na sua glória?» (Lc 24, 26). Os sofrimentos de Jesus tomaram a sua forma
histórica concreta, pelo facto de Ele ter sido «rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes
e pelos escribas» (Mc 8, 31), que «O entregaram aos pagãos para ser escarnecido, flagelado e
crucificado» (Mt 20, 19).
573. A fé pode, portanto, esforçar-se por investigar as circunstâncias da morte de Jesus,
fielmente transmitidas pelos evangelhos (337) e esclarecidas por outras fontes históricas, para
melhor compreender o sentido da redenção.

PARÁGRAFO 1

JESUS E ISRAEL

574. Desde o princípio do ministério público de Jesus, fariseus e partidários de Herodes, com
sacerdotes e escribas, puseram-se de acordo para lhe dar a morte (338). Por alguns dos seus
actos (expulsões de demónios (339); perdão dos pecados (340) curas em dia de sábado (341);
interpretação original dos preceitos de pureza legal (342): trato familiar com publicanos e
pecadores públicos (343), Jesus pareceu a alguns, mal intencionados, suspeito de possessão
diabólica (344). Foi acusado de blasfémia (345) e de falso profetismo (346), crimes religiosos
que a Lei castigava com a pena de morte por apedrejamento (347).
575. Muitas atitudes e palavras de Jesus foram, portanto, «sinal de contradição» (348) para
as autoridades religiosas de Jerusalém, a quem o Evangelho de São João muitas vezes chama
simplesmente «os Judeus» (349), mais ainda do que para o comum do Povo de Deus (350).
Sem dúvida que as suas relações com os fariseus não foram unicamente polémicas: são
fariseus que O previnem do perigo que corre (351). Jesus louva alguns de entre eles, como o
escriba de Mc 12, 34, e em várias ocasiões come em casa de fariseus (352). Jesus confirma
doutrinas partilhadas por esta elite religiosa do povo de Deus: a ressurreição dos mortos (353)
formas de piedade (esmola, jejum e oração (354)) e o hábito de se dirigir a Deus como Pai, o
carácter central do mandamento do amor de Deus e do próximo (355).
576. Aos olhos de muitos em Israel, parece que Jesus procede contra as instituições essenciais
do Povo eleito:
– a submissão à Lei, na totalidade dos seus preceitos escritos e, para os fariseus, na inter-
pretação da tradição oral;
– a centralidade do templo de Jerusalém, como lugar santo em que Deus habita de maneira
privilegiada;
– a fé no Deus único, cuja glória nenhum homem pode partilhar.

I. Jesus e a Lei
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577. Jesus fez uma solene advertência no início do sermão da montanha, ao apresentar a Lei
dada por Deus no Sinai, quando da primeira Aliança, à luz da graça da Nova Aliança:
«Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogá-los, mas levá-los à per-
feição. Em verdade vos digo: Antes que passem o céu e a Terra, não passará da Lei a mais
pequena letra ou o mais pequeno sinal, sem que tudo se cumpra. Portanto, se alguém trans-
gredir um só destes mandamentos, por mais pequeno que seja, e ensinar assim aos homens,
será o menor no Reino dos céus. Mas aquele que os praticar e ensinar, será grande no Reino
dos céus» (Mt 5, 17-19).
578. Jesus, o Messias de Israel e, portanto, o maior no Reino dos céus, fazia questão de
cumprir a Lei, executando-a integralmente até nos mais pequenos preceitos, segundo as suas
próprias palavras. Foi, mesmo, o único a poder fazê-lo perfeitamente (356). Os Judeus, se-
gundo a sua própria confissão, não puderam nunca cumprir integralmente a Lei sem violação
do mínimo preceito (357). Por isso é que, em cada festa anual da Expiação, os filhos de Israel
pediam a Deus perdão pelas suas transgressões da Lei. Com efeito, a Lei constitui um todo e,
como lembra São Tiago, «quem observa toda a Lei, mas falta num só mandamento, torna-se
réu de todos os outros» (Tg 2, 10) (358).
579. Este princípio da integralidade da observância da Lei, não só na letra mas também no es-
pírito, era caro aos fariseus. Tomando-o extensivo a Israel, conduziram muitos judeus do
tempo de Jesus a um zelo religioso extremo (359). E um tal zelo, se não se ficasse por uma
casuística «hipócrita» (360), com certeza que prepararia o povo para esta inaudita inter-
venção de Deus, que será o cumprimento perfeito da Lei pelo único justo representante de to-
dos os pecadores (361).
580. O cumprimento perfeito da Lei só podia ser obra do divino Legislador, nascido sujeito à
Lei na pessoa do Filho (362). Em Jesus, a Lei já não aparece gravada em tábuas de pedra, mas
«no íntimo do coração» (Jr 31, 33) do Servo, o qual, proclamando «fielmente o direito» (Is 42,
3), se tornou «a aliança do povo» (Is 42, 6). Jesus cumpriu a Lei até ao ponto de tomar sobre
Si «a maldição da Lei» (363) em que incorrem aqueles que não «praticam todos os preceitos
da Lei» (364); porque «a morte de Cristo foi para remir as faltas cometidas durante a primeira
Aliança» (Heb 9, 15).
581. Jesus apareceu aos olhos dos Judeus e dos seus chefes espirituais como um «rabbi»
(365). Muitas vezes argumentou, no quadro da interpretação rabínica da Lei (366). Mas, ao
mesmo tempo, Jesus tinha forçosamente de Se confrontar com os doutores da Lei porque não
Se contentava com propor a sua interpretação a par das deles: «ensinava como quem tem
autoridade e não como os escribas» (Mt 7, 28-29). N'Ele, era a própria Palavra de Deus, que
Se fizera ouvir no Sinai, para dar a Moisés a Lei escrita, que de novo Se fazia ouvir sobre a
montanha das bem-aventuranças (367). Esta Palavra de Deus não aboliu a Lei, mas cumpriu-
a, ao fornecer, de modo divino, a sua interpretação última: «Ouvistes que foi dito aos antigos
[...] Eu, porém, digo-vos» (Mt 5, 33-34). Com esta mesma autoridade divina, desaprova certas
«tradições humanas» (368) dos fariseus, que «anulam a Palavra de Deus» (369).
582. Indo mais longe, Jesus cumpriu a lei sobre a pureza dos alimentos, tão importante na
vida quotidiana judaica, explicando o seu sentido «pedagógico» (370) por uma interpretação
divina: «Não há nada fora do homem que, ao entrar nele, o possa tornar impuro [...] – e assim
declarava puros todos os alimentos – [...]. O que sai do homem é que o toma impuro. Pois, do
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interior do coração dos homens é que saem os pensamentos perversos» (Mc 7, 18-21). Propor-
cionando, com autoridade divina, a interpretação definitiva da Lei, Jesus colocou-Se numa
situação de confronto com certos doutores da Lei, que não aceitavam a sua interpretação,
muito embora garantida pelos sinais divinos que a acompanhavam (371). Isto vale sobretudo
para a questão do sábado: Jesus lembra, e muitas vezes com argumentos rabínicos (372), que
o repouso sabático não é violado pelo serviço de Deus (373) ou do próximo (374) que as suas
curas realizam.

II. Jesus e o templo

583. Jesus, como antes d'Ele os profetas, professou pelo templo de Jerusalém o mais pro-
fundo respeito. Ali foi apresentado por José e Maria, quarenta dias depois do seu nascimento
(375). Na idade de doze anos, decidiu ficar no templo para lembrar aos seus pais que tinha de
Se ocupar das coisas de seu Pai (376). Ao templo subiu todos os anos, ao menos pela Páscoa,
durante a vida oculta (377). O seu próprio ministério público foi ritmado pelas peregrinações a
Jerusalém nas grandes festas judaicas (378).
584. Jesus subiu ao templo como quem sobe ao lugar privilegiado de encontro com Deus. O
templo é para Ele a casa do seu Pai, uma casa de oração, e indigna-Se com o facto de o átrio
exterior se ter tornado lugar de negócio (379). Se expulsa os vendilhões do templo é pelo amor
zeloso a seu Pai: «Não façais da casa do meu Pai casa de comércio». «Os discípulos
recordaram-se de que estava escrito: "O zelo pela tua casa devorar-me-á" (Sl 69, 10)» (Jo 2,
16-17). Depois da ressurreição, os Apóstolos guardaram para com o templo um respeito reli-
gioso (380).
585. No entanto, nas vésperas da sua paixão, Jesus anunciou a ruína deste esplêndido edifí-
cio, do qual não ficaria pedra sobre pedra (381). Há aqui o anúncio dum sinal dos últimos
tempos, que vão iniciar-se com a sua própria Páscoa (382). Mas esta profecia pôde ser referida
de modo deturpado por falsas testemunhas, quando do interrogatório a que Jesus foi sujeito
em casa do sumo-sacerdote (383) e ser-Lhe lançada em rosto, como injúria, quando agon-
izava, pregado na cruz (384).
586. Longe de ter sido contra o templo (385) onde proclamou o essencial da sua doutrina
(386), Jesus quis pagar o imposto do templo, associando a Si Pedro (387), que Ele acabara de
estabelecer como pedra basilar da sua Igreja futura (388). Mais ainda: identificou-Se com o
templo, apresentando-Se como a morada definitiva de Deus entre os homens (389). Por isso é
que a sua entrega à morte corporal (390) prenuncia a destruição do templo, a qual vai assin-
alar a entrada numa nova idade da história da salvação: «Vai chegar a hora em que nem neste
monte nem em Jerusalém adorareis o Pai» (Jo 4, 21) (391).

III. Jesus e a fé de Israel no Deus único e salvador

587. Se a Lei e o templo de Jerusalém puderam ser ocasião de «contradição» (392) entre Je-
sus e as autoridades religiosas de Israel, o seu papel na redenção dos pecados, obra divina por
excelência, foi, para essas autoridades, a verdadeira pedra de escândalo (393).
588. Jesus escandalizou os fariseus por comer com os publicanos e os pecadores (394) tão fa-
miliarmente como com eles (395). Contra aqueles «que se consideravam justos e desprezavam
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os demais» (Lc 18, 9) (396) Jesus afirmou: «Eu não vim chamar os justos, vim chamar os
pecadores, para que se arrependam» (Lc 5, 32). E foi mais longe, afirmando, diante dos
fariseus, que, sendo o pecado universal (397), cegam-se a si próprios (398) aqueles que pre-
tendem não precisar de salvação.
589. Jesus escandalizou, sobretudo, por ter identificado a sua conduta misericordiosa para
com os pecadores com a atitude do próprio Deus a respeito dos mesmos (399). Chegou, até, a
dar a entender que, sentando-Se à mesa dos pecadores (400), os admitia no banquete
messiânico (401). Mas foi muito particularmente ao perdoar os pecados que Jesus colocou as
autoridades religiosas de Israel perante um dilema. É que, como essas autoridades justamente
dizem, apavoradas, «só Deus pode perdoar os pecados» (Mc 2, 7). Jesus ao perdoar os peca-
dos, ou blasfema por ser um homem que se faz igual a Deus (402), ou diz a verdade e a Sua
pessoa torna então presente e revela o nome de Deus (403).
590. Só a identidade divina da pessoa de Jesus é que pode justificar uma exigência tão abso-
luta como esta: «Quem não está comigo, está contra Mim» (Mt 12, 30); o mesmo se diga de
quando afirma ser «mais que Jonas,... mais que Salomão» (Mt 12, 41-42), «mais que o tem-
plo» (404); de quando lembra, a respeito de si próprio, que David chamou ao Messias o seu
Senhor (405); de quando afirma: «Antes de Abraão existir, "Eu sou"» (Jo 8, 58); e ainda mais:
«Eu e o Pai somos um» (Jo 10, 30).
591. Jesus pediu às autoridades religiosas de Jerusalém que acreditassem n'Ele, por causa das
obras do seu Pai que Ele fazia (406). Mas tal acto de fé tinha de passar por uma misteriosa
morte para si mesmo, a qual desse lugar a um novo «nascimento do Alto» (407), por atracção
da graça divina (408). Tal exigência de conversão, face a um tão surpreendente cumprimento
das promessas (409), permite compreender o trágico desdém do Sinédrio, ao sentenciar que
Jesus merecia a morte como blasfemo (410). Os membros do Sinédrio agiam assim, ao mesmo
tempo por «ignorância» (411) e pelo «endurecimento» (412) da sua «incredulidade» (413).

Resumindo:

592. Jesus não aboliu a Lei do Sinai, mas cumpriu-a (414) com tal perfeição (415) que rev-
elou o sentido último dela (416) e resgatou as transgressões contra ela cometidas (417).
593. Jesus venerou o templo, subindo a ele nas festas judaicas de peregrinação e amou com
amor zeloso esta morada de Deus entre os homens. O templo prefigura o seu mistério.
Quando anuncia a sua destruição, fá-lo como revelação da sua própria morte e da entrada
numa nova idade da história da salvação, em que o seu Corpo será o templo definitivo.
594. Jesus praticou actos, como o perdão dos pecados, que O manifestaram como sendo o
próprio Deus salvador (418). Alguns judeus, que, não reconhecendo o Deus feito homem
(419) viam n'Ele «um homem que se faz Deus» (420), julgaram-n'O como blasfemo.

PARÁGRAFO 2

JESUS MORREU CRUCIFICADO

I. O processo de Jesus
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DIVISÕES ENTRE AS AUTORIDADES JUDAICAS A RESPEITO DE JESUS

595. Entre as autoridades religiosas de Jerusalém, não somente se encontravam o fariseu


Nicodemos (421) e o notável José de Arimateia, discípulos ocultos de Jesus (422), mas tam-
bém, durante muito tempo, houve dissensões a respeito d'Ele (423) ao ponto de, na própria
véspera da paixão. João poder dizer deles que «um bom número acreditou n' Ele», embora de
modo assaz imperfeito (Jo 12, 42); o que não é nada de admirar, tendo-se presente que, no dia
seguinte ao de Pentecostes, «um grande número de sacerdotes se submetia à fé» (Act 6, 7) e
«alguns homens do partido dos fariseus tinham abraçado a fé» (Act 15, 5), de tal modo que
São Tiago podia dizer a São Paulo que «muitos milhares entre os judeus abraçaram a fé e to-
dos têm zelo pela Lei» (Act 21, 20).
596. As autoridades religiosas de Jerusalém não foram unânimes na atitude a adoptar a re-
speito de Jesus (424). Os fariseus ameaçaram de excomunhão aqueles que O seguissem (425).
Aos que temiam que «todos acreditassem n'Ele e os romanos viessem destruir o templo e a
nação» (Jo 11, 48), o sumo sacerdote Caifás propôs, profetizando: «E do vosso interesse que
morra um só homem pelo povo e não pereça a nação inteira» (Jo 11, 50). O Sinédrio, tendo
declarado Jesus «réu de morte» (426) como blasfemo, mas tendo perdido o direito de conden-
ar à morte fosse quem fosse (427), entregou Jesus aos romanos, acusando-O de revolta polít-
ica (428) — o que O colocava em pé de igualdade com que Barrabás, acusado de «sedição» (Lc
23, 19). São também de carácter político as ameaças que os sumos-sacerdotes fazem a Pilatos,
pressionando-o a condenar Jesus à morte (429).

OS JUDEUS NÃO SÃO COLECTIVAMENTE RESPONSÁVEIS PELA MORTE DE JESUS

597. Tendo em conta a complexidade histórica do processo de Jesus, manifestada nas nar-
rativas evangélicas, e qualquer que tenha sido o pecado pessoal dos intervenientes no pro-
cesso (Judas, o Sinédrio, Pilatos), que só Deus conhece, não se pode atribuir a responsabilid-
ade do mesmo ao conjunto dos judeus de Jerusalém, apesar da gritaria duma multidão ma-
nipulada (430) e das censuras globais contidas nos apelos à conversão, depois do Pentecostes
(431). O próprio Jesus, perdoando na cruz (432) e Pedro a seu exemplo, apelaram para «a ig-
norância» (433) dos judeus de Jerusalém e mesmo dos seus chefes. Menos ainda é possível es-
tender a responsabilidade ao conjunto dos judeus no espaço e no tempo, a partir do grito do
povo: «Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos» (Mt 27, 25), que é uma fór-
mula de ratificação (434):
Por isso, a Igreja declarou no II Concílio do Vaticano: «Não se pode, todavia, imputar indis-
tintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na sua
paixão se perpetrou. [...] Nem por isso os judeus devem ser apresentados como reprovados
por Deus e malditos, como se tal coisa se concluísse da Sagrada Escritura» (435).

TODOS OS PECADORES FORAM AUTORES DA PAIXÃO DE CRISTO

598. A Igreja, no magistério da sua fé e no testemunho dos seus santos, nunca esqueceu que
«os pecadores é que foram os autores, e como que os instrumentos, de todos os sofrimentos
que o divino Redentor suportou» (436). Partindo do princípio de que os nossos pecados
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atingem Cristo em pessoa (437), a Igreja não hesita em imputar aos cristãos a mais grave re-
sponsabilidade no suplício de Jesus, responsabilidade que eles muitas vezes imputaram uni-
camente aos judeus:
«Devemos ter como culpados deste horrível crime os que continuam a recair nos seus peca-
dos. Porque foram os nossos crimes que fizeram nosso Senhor Jesus Cristo suportar o suplício
da cruz, é evidente que aqueles que mergulham na desordem e no mal crucificam de novo em
seu coração, tanto quanto deles depende, o Filho de Deus, pelos seus pecados, expondo-O à
ignomínia. E temos de reconhecer: o nosso crime, neste caso, é maior que o dos judeus.
Porque eles, como afirma o Apóstolo, «se tivessem conhecido a Sabedoria de Deus, não leri-
am crucificado o Senhor da glória» (1 Cor 2, 8); ao passo que nós, pelo contrário, fazemos
profissão de O conhecer: e, quando O renegamos pelos nossos actos, de certo modo levan-
tamos contra Ele as nossas mãos assassinas» (438).
«Não foram os demónios que O pregaram na cruz, mas tu com eles O crucificaste, e ainda
agora O crucificas quando te deleitas nos vícios e pecados» (439).

II. A morte redentora de Cristo no desígnio divino de salvação

«JESUS ENTREGUE, SEGUNDO O DESÍGNIO DETERMINADO DE DEUS»

599. A morte violenta de Jesus não foi fruto do acaso, nem coincidência infeliz de circunstân-
cias várias. Faz parte do mistério do desígnio de Deus, como Pedro explica aos judeus de Jer-
usalém, logo no seu primeiro discurso no dia de Pentecostes: «Depois de entregue, segundo o
desígnio determinado e a previsão de Deus» (Act 2, 23). Esta linguagem bíblica não significa
que os que «entregaram Jesus» (440) foram simples actores passivos dum drama previa-
mente escrito por Deus.
600. A Deus, todos os momentos do tempo estão presentes na sua actualidade. Por isso, Ele
estabelece o seu desígnio eterno de «predestinação», incluindo nele a resposta livre de cada
homem à sua graça: «Na verdade, Herodes e Pôncio Pilatos uniram-se nesta cidade, com as
nações pagãs e os povos de Israel, contra o vosso santo Servo Jesus, a quem ungistes (441).
Cumpriram assim tudo o que o vosso poder e os vossos desígnios tinham de antemão decidido
que se realizasse» (Act 4, 27-28). Deus permitiu os actos resultantes da sua cegueira (442),
como fim de levar a cabo o seu plano de salvação (443).

«MORTO PELOS NOSSOS PECADOS, SEGUNDO AS ESCRITURAS»

601. Este plano divino de salvação, pela entrega à morte do «Servo, o Justo» (444), tinha sido
de antemão anunciado na Escritura como um mistério de redenção universal, quer dizer, de
resgate que liberta os homens da escravidão do pecado (445) São Paulo professa, numa con-
fissão de fé que diz ter «recebido» (446), que «Cristo morreu pelos nossos pecados segundo
as Escrituras» (1 Cor 15, 3) (447). A morte redentora de Jesus deu cumprimento sobretudo à
profecia do Servo sofredor (448). O próprio Jesus apresentou o sentido da sua vida e da sua
morte à luz do Servo sofredor (449). Após a sua ressurreição, deu esta interpretação das
Escrituras aos discípulos de Emaús (450) e depois aos próprios Apóstolos (451).
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«POR NÓS, DEUS FÊ-LO PECADO»

602. Consequentemente, Pedro pôde formular assim a fé apostólica no plano divino da sal-
vação: «fostes resgatados da vã maneira de viver herdada dos vossos pais, pelo sangue pre-
cioso de Cristo, como de um cordeiro sem defeito nem mancha, predestinado antes da criação
do mundo e manifestado nos últimos tempos por nossa causa» (1 Pe1, 18-20). Os pecados dos
homens, que se seguiram ao pecado original, foram castigados com a morte (452). Enviando o
seu próprio Filho na condição de escravo (453), que era a de uma humanidade decaída e
votada à morte por causa do pecado (454), «a Cristo, que não conhecera o pecado, Deus fê-lo
pecado por amor de nós, para que, em Cristo, nos tornássemos justos aos olhos de Deus» (2
Cor 5, 21).
603. Jesus não conheceu a reprovação como se tivesse pecado pessoalmente (455). Mas, no
amor redentor que constantemente O unia ao Pai (456), assumiu-nos no afastamento do
nosso pecado em relação a Deus a ponto de, na cruz, poder dizer em nosso nome: «Meu Deus,
meu Deus, por que Me abandonaste?» (Mc 15, 34) (457). Tendo-O feito solidário connosco,
pecadores, «Deus não poupou o seu próprio Filho, mas entregou-O para morrer por nós to-
dos» (Rm 8, 32), para que fôssemos «reconciliados com Ele pela morte do seu Filho» (Rm 5,
10).

DEUS TOMA A INICIATIVA DO AMOR REDENTOR UNIVERSAL

604. Entregando o seu Filho pelos nossos pecados, Deus manifesta que o seu plano sobre nós
é um desígnio de amor benevolente, independente de qualquer mérito da nossa parte: «Nisto
consiste o amor: não fomos nós que amámos a Deus, foi Deus que nos amou a nós e enviou o
seu Filho como vítima de propiciação pelos nossos pecados» (1 Jo 4, 10) (458). «Deus prova
assim o seu amor para connosco: Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores»
(Rm 5, 8).
605. Este amor é sem exclusão. Jesus lembrou-o ao terminar a parábola da ovelha perdida:
«Assim, não é da vontade do meu Pai, que está nos céus, que se perca um só destes pequeni-
nos» (Mt 18, 14). E afirma «dar a Sua vida em resgate pela multidão» (Mt 20, 28). Esta última
expressão não é restritiva: simplesmente contrapõe o conjunto da humanidade à pessoa única
do redentor, que Se entrega para a salvar (459). No seguimento dos Apóstolos (460), a Igreja
ensina que Cristo morreu por todos os homens, sem excepção: «Não há, não houve, nem
haverá nenhum homem pelo qual Cristo não tenha sofrido» (461).

III. Cristo ofereceu-Se a Si mesmo ao Pai pelos nossos pecados

TODA A VIDA DE CRISTO É OBLAÇÃO AO PAI

606. O Filho de Deus, «descido do céu, não para fazer a sua vontade mas a do seu Pai, que O
enviou» (462), «diz, ao entrar no mundo: [...] Eis-me aqui, [...] ó Deus, para fazer a tua vont-
ade. [...] E em virtude dessa mesma vontade, é que nós fomos santificados, pela oferenda do
corpo de Jesus Cristo, feita de uma vez para sempre» (Heb 10, 5-10). Desde o primeiro in-
stante da sua Encarnação, o Filho faz seu o plano divino de salvação, no desempenho da sua
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missão redentora: «O meu alimento é fazer a vontade d'Aquele que Me enviou e realizar a sua
obra» (Jo 4, 34). O sacrifício de Jesus «pelos pecados do mundo inteiro» (1 Jo 2, 2) é a ex-
pressão da sua comunhão amorosa com o Pai: «O Pai ama-Me, porque Eu dou a minha vida»
(Jo 10, 17). «O mundo tem de saber que amo o Pai e procedo como o Pai Me ordenou» (Jo 14,
31).
607. Este desejo de fazer seu o plano do amor de redenção do seu Pai, anima toda a vida de
Jesus (463). A sua paixão redentora é a razão de ser da Encarnação: «Pai, salva-Me desta
hora! Mas por causa disto, é que Eu cheguei a esta hora» (Jo 12, 27). «O cálice que o Pai Me
deu, não havia de bebê-lo?» (Jo 18, 11). E ainda na cruz, antes de «tudo estar consumado» (Jo
19, 30), diz: «Tenho sede» (Jo 19, 28).

«O CORDEIRO QUE TIRA O PECADO DO MUNDO»

608. Depois de ter aceitado dar-Lhe o baptismo como aos pecadores (464), João Baptista viu
e mostrou em Jesus o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (465). Manifestou
deste modo que Jesus é, ao mesmo tempo, o Servo sofredor, que Se deixa levar ao matadouro
sem abrir a boca (466), carregando os pecados das multidões (467), e o cordeiro pascal, sím-
bolo da redenção de Israel na primeira Páscoa (468), Toda a vida de Cristo manifesta a sua
missão: «servir e dar a vida como resgate pela multidão» (469).

JESUS PARTILHA LIVREMENTE O AMOR REDENTOR DO PAI

609. Ao partilhar, no seu coração humano, o amor do Pai para com os homens, Jesus «amou-
os até ao fim» (Jo 13, 1), «pois não há maior amor do que dar a vida por aqueles que se ama»
(Jo 15, 13). Assim, no sofrimento e na morte, a sua humanidade tornou-se instrumento livre e
perfeito do seu amor divino, que quer a salvação dos homens (470). Com efeito, Ele aceitou
livremente a sua paixão e morte por amor do Pai e dos homens a quem o Pai quer salvar:
«Ninguém Me tira a vida. Sou Eu que a dou espontaneamente» (Jo 10, 18). Daí, a liberdade
soberana do Filho de Deus, quando Ele próprio vai ao encontro da morte (471).

NA CEIA, JESUS ANTECIPOU A OBLAÇÃO LIVRE DA SUA VIDA

610. Jesus exprimiu de modo supremo a oblação livre de Si mesmo na refeição que tornou
com os doze Apóstolos (472), na «noite em que foi entregue» (1 Cor 11, 23). Na véspera da sua
paixão, quando ainda era livre, Jesus fez desta última Ceia com os Apóstolos o memorial da
sua oblação voluntária ao Pai (473) para a salvação dos homens: «Isto é o meu Corpo, que vai
ser entregue por vós» (Lc 22, 19). «Isto é o meu "Sangue da Aliança", que vai ser derramado
por uma multidão, para remissão dos pecados» (Mt 26, 28).
611. A Eucaristia, que neste momento instituiu, será o «memorial» (474) do seu sacrifício. Je-
sus incluiu os Apóstolos na sua própria oferenda e pediu-lhes que a perpetuassem (475).
Desse modo, instituiu os Apóstolos como sacerdotes da Nova Aliança: «Eu consagro-me por
eles, para que também eles sejam consagrados na verdade» (Jo 17, 19) (476).

A AGONIA NO GETSÉMANI
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612. O cálice da Nova Aliança, que Jesus antecipou na Ceia, oferecendo-Se a Si mesmo (477),
é aceite seguidamente por Jesus das mãos do Pai, na agonia no Getsémani (478), fazendo-Se
«obediente até á morte» (Fl 2, 8) (479). Na sua oração, Jesus diz: «Meu Pai, se é possível, que
se afaste de Mim este cálice [...]» (Mt 26, 39). Exprime desse modo o horror que a morte rep-
resenta para a sua natureza humana. Com efeito, esta, como a nossa, está destinada à vida
eterna. Mas, diferentemente da nossa, é perfeitamente isenta do pecado (480) que causa a
morte (481). E, sobretudo, é assumida pela pessoa divina do «Príncipe da Vida» (482), do
«Vivente» (483). Aceitando, com a sua vontade humana, que se faça a vontade do Pai (484)
aceita a sua morte enquanto redentora, para «suportar os nossos pecados no seu corpo, no
madeiro da cruz» (1 Pe 2, 24).

A MORTE DE CRISTO É O SACRIFÍCIO ÚNICO E DEFINITIVO

613. A morte de Cristo é, ao mesmo tempo, o sacrifício pascal que realiza a redenção definit-
iva dos homens (485) por meio do «Cordeiro que tira o pecado do mundo» (486), e o sacrifí-
cio da Nova Aliança (487)que restabelece a comunhão entre o homem e Deus (488),
reconciliando-o com Ele pelo «sangue derramado pela multidão, para a remissão dos peca-
dos» (489).
614. Este sacrifício de Cristo é único, leva à perfeição e ultrapassa todos os sacrifícios (490).
Antes de mais, é um dom do próprio Deus Pai: é o Pai que entrega o seu Filho para nos recon-
ciliar consigo (491). Ao mesmo tempo, é oblação do Filho de Deus feito homem, que livre-
mente e por amor (492) oferece a sua vida (493) ao Pai pelo Espírito Santo (494) para reparar
a nossa desobediência.

JESUS SUBSTITUI A NOSSA DESOBEDIÊNCIA PELA SUA OBEDIÊNCIA

615. «Como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim tam-
bém, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos» (Rm 5, 19). Pela sua obediência até
à morte, Jesus realizou a acção substitutiva do Servo sofredor, que oferece a sua vida como
sacrifício de expiação, ao carregar com o pecado das multidões, que justifica carregando Ele
próprio com as suas faltas (495). Jesus reparou as nossas faltas e satisfez ao Pai pelos nossos
pecados (496).

NA CRUZ, JESUS CONSUMA O SEU SACRIFÍCIO

616. É o «amor até ao fim» (497) que confere ao sacrifício de Cristo o valor de redenção e re-
paração, de expiação e satisfação. Ele conheceu-nos e amou-nos a todos no oferecimento da
sua vida (498). «O amor de Cristo nos pressiona, ao pensarmos que um só morreu por todos e
que todos, portanto, morreram» (2 Cor 5, 14). Nenhum homem, ainda que fosse o mais santo,
estava em condições de tornar sobre si os pecados de todos os homens e de se oferecer em sac-
rifício por todos. A existência, em Cristo, da pessoa divina do Filho, que ultrapassa e ao
mesmo tempo abrange todas as pessoas humanas e O constitui cabeça de toda a humanidade,
é que torna possível o seu sacrifício redentor por todos.
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617. «Sua sanctissima passione in ligno crucis nobis justificationem meruit – Pela sua
santíssima paixão no madeiro da cruz, Ele mereceu-nos a justificação» – ensina o Concílio de
Trento (499), sublinhando o carácter único do sacrifício de Cristo como fonte de salvação
eterna (500). E a Igreja venera a Cruz cantando: «O crux, ave, spes unica! – Avé, ó cruz, es-
perança única!» (501).

A NOSSA PARTICIPAÇÃO NO SACRIFÍCIO DE CRISTO

618. A cruz é o único sacrifício de Cristo, mediador único entre Deus e os homens (502). Mas
porque, na sua pessoa divina encarnada. «Ele Se uniu, de certo modo, a cada homem» (503),
«a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal, por um modo só de Deus
conhecido» (504). Convida os discípulos a tomarem a sua cruz e a segui-Lo(505) porque so-
freu por nós, deixando-nos o exemplo, para que sigamos os seus passos (506). De facto, quer
associar ao seu sacrifício redentor aqueles mesmos que são os primeiros beneficiários (507).
Isto realiza-se, em sumo grau, em sua Mãe, associada, mais intimamente do que ninguém, ao
mistério do seu sofrimento redentor (508):
Há uma só escada verdadeira fora do paraíso; fora da cruz, não há outra escada por onde se
suba ao céu» (509).

Resumindo:

619. «Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras» (1 Cor 15, 3).
620. A nossa salvação procede da iniciativa amorosa de Deus em nosso favor, pois «foi Ele
que nos amou a nós e enviou o seu Filho como vítima de propiciação pelos nossos pecados»
(1 Jo 4, 10). «Foi Deus que, em Cristo, reconciliou consigo o mundo» (2 Cor 5, 19).
621. Jesus ofereceu-Se livremente para nossa salvação. Este dom, significa-o e realiza-o Ele,
de antemão, durante a Ultimo Ceia: «Isto é o meu Corpo, que vai ser entregue por vós» (Lc
22, 19).
622. Nisto consiste a redenção de Cristo: Ele «veio dar a sua vida em resgate pela mul-
tidão»(Mt 20, 28), quer dizer; veio «amuar os seus até ao fim» (Jo 13, 1), para que fossem
libertos da má conduta herdada dos seus pais (510).
623. Pela sua obediência amorosa ao Pai, «até d morte de cruz» (Fl 2, 8), Jesus cumpriu a
missão expiatória (511) do Servo sofredor, que justifica as multidões, tomando sobre Si o
peso das suas faltas (Is 53, 11) (512).

PARÁGRAFO 3

JESUS CRISTO FOI SEPULTADO

624. «Pela graça de Deus, ele experimentou a morte, para proveito de todos» (Heb 2, 9). No
seu plano de salvação, Deus dispôs que o seu Filho, não só «morresse pelos nossos pecados»
(1 Cor 15, 3), mas também «saboreasse a morte», isto é, conhecesse o estado de morte, o es-
tado de separação entre a sua alma e o seu corpo, durante o tempo compreendido entre o mo-
mento em que expirou na cruz e o momento em que ressuscitou. Este estado de Cristo morto é
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o mistério do sepulcro e da descida à mansão dos mortos. É o mistério do Sábado Santo, em


que Cristo, depositado no túmulo (513), manifesta o repouso sabático de Deus (514) depois da
realização (515) da salvação dos homens, que pacifica todo o universo (516).

O CORPO DE CRISTO NO SEPULCRO

625. A permanência do corpo de Cristo no túmulo constitui o laço real entre o estado passível
de Cristo antes da Páscoa e o seu estado glorioso actual de ressuscitado. É a mesma pessoa do
«Vivente» que pode dizer: «Estive morto e eis-Me vivo pelos séculos dos séculos» (Ap 1, 18):
«É este o mistério do desígnio de Deus àcerca da morte e da ressurreição dos mortos: se Ele
não impediu que a morte separasse a alma do corpo, segundo a ordem necessária da natureza:
mas juntou-os de novo um ao outro pela ressurreição, a fim de ser Ele próprio na sua pessoa
o ponto de encontro da morte e da vida, suspendendo em Si a decomposição da natureza
produzida pela morte e tornando-Se, Ele próprio, princípio de reunião para as partes separa-
das» (517).
626. Uma vez que o «Príncipe da Vida», a quem deram a morte (518), é precisamente o
mesmo «Vivente que ressuscitou» (519), é forçoso que a pessoa divina do Filho de Deus tenha
continuado a assumir a alma e o corpo, separados um do outro pela morte:
«Embora Cristo, enquanto homem tenha sofrido a morte e a sua santa alma tenha sido sep-
arada do seu corpo imaculado, nem por isso a divindade se separou, de nenhum modo, nem
da alma nem do corpo: e nem por isso a Pessoa única foi dividida em duas. Tanto o corpo
como a alma tiveram existência simultânea, desde o início, na Pessoa do Verbo; e, apesar de
na morte terem sido separados, nenhum dos dois deixou de subsistir na Pessoa única do
Verbo» (520).

«NÃO DEIXAREIS O VOSSO SANTO SOFRER A CORRUPÇÃO»

627. A morte de Cristo foi uma verdadeira morte, na medida em que pôs fim à sua existência
humana terrena. Mas por causa da união que a Pessoa do Filho manteve com o seu corpo, este
não se tornou um despojo mortal como os outros, porque «não era possível que Ele ficasse sob
o domínio» da morte (Act 2, 24) e, por isso, «o poder divino preservou o corpo de Cristo da
corrupção» (521). De Cristo pode dizer-se ao mesmo tempo: «Foi cortado da terra dos vivos»
(Is 53, 8) e: «A minha carne repousará na esperança, porque Tu não abandonarás a minha
alma na mansão dos mortos, nem deixarás que o teu santo conheça a corrupção» (Act 2,
26-27) (522). A ressurreição de Jesus «ao terceiro dia» (1 Cor 15, 4; Lc 24, 46) (523) era disso
sinal, até porque se julgava que a corrupção começava a manifestar-se a partir do quarto dia
(524).

«SEPULTADOS COM CRISTO...»

628. O Baptismo, cujo sinal original e pleno é a imersão, significa eficazmente a descida ao
túmulo, por parte do cristão que morre para o pecado com Cristo, com vista a uma vida nova.
«Fomos sepultados com Ele, pelo Baptismo, na sua morte, para que, assim como Cristo res-
suscitou dos mortos, pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova» (Rm 6, 4) (525).
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Resumindo:

629. Para benefício de todos os homens, Jesus experimentou a morte (526). Foi, de verdade,
o Filho de Deus feito homem que morreu e foi sepultado.
630. Durante a permanência de Cristo no túmulo, a sua pessoa divina continuou a assumir
tanto a alma como o corpo, apesar de separados entre si pela morte. Por isso, o corpo de
Cristo morto «não sofreu a corrupção» (Act 13,37).

ARTIGO 5

«JESUS CRISTO DESCEU À MANSÃO DOS MORTOS, AO TERCEIRO DIA


RESSUSCITOU DOS MORTOS»

631. «Jesus desceu às regiões inferiores da Terra. Aquele que desceu é precisamente o mesmo
que subiu» (Ef 4, 9-10). O Símbolo dos Apóstolos confessa, num mesmo artigo da fé, a descida
de Cristo a mansão dos mortos e a sua ressurreição dos mortos ao terceiro dia, porque, na sua
Páscoa, é da profundidade da morte que Ele faz jorrar a vida:
«Christus, Filius tuus, qui, regressos ab inferis, humano generi serenus illuxit, et vivit et reg-
nat in saecula saeculorum. Amen».
«Jesus Cristo, vosso Filho, que, ressuscitando de entre os mortos, iluminou o género humano
com a sua luz e a sua paz e vive glorioso pelos séculos dos séculos. Ámen» (527).

PARÁGRAFO 1

CRISTO DESCEU À MANSÃO DOS MORTOS

632. As frequentes afirmações do Novo Testamento, segundo as quais Jesus «ressuscitou de


entre os mortos» (1 Cor 15, 20) (528), pressupõem que, anteriormente à ressurreição, Ele
tenha estado na mansão dos mortos (529) este o sentido primeiro dado pela pregação
apostólica à descida de Jesus à mansão dos mortos: Jesus conheceu a morte, como todos os
homens, e foi ter com eles à morada dos mortos. Porém, desceu lá como salvador proclaman-
do a Boa-Nova aos espíritos que ali estavam prisioneiros (530).
633. A morada dos mortos, a que Cristo morto desceu, é chamada pela Escritura os infernos,
Sheol ou Hades (531), porque aqueles que aí se encontravam estavam privados da visão de
Deus (532). Tal era o caso de todos os mortos, maus ou justos, enquanto esperavam o
Redentor (533), o que não quer dizer que a sua sorte fosse idêntica, como Jesus mostra na
parábola do pobre Lázaro, recebido no «seio de Abraão» (534). «Foram precisamente essas
almas santas, que esperavam o seu libertador no seio de Abraão, que Jesus Cristo libertou
quando desceu à mansão dos mortos» (535). Jesus não desceu à mansão dos mortos para de
lá libertar os condenados (536), nem para abolir o inferno da condenação (537), mas para
libertar os justos que O tinham precedido (538).
634. «A Boa-Nova foi igualmente anunciada aos mortos...» (1 Pe 4, 6). A descida à mansão
dos mortos é o cumprimento, até à plenitude, do anúncio evangélico da salvação. É a última
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fase da missão messiânica de Jesus, fase condensada no tempo, mas imensamente vasta no
seu significado real de extensão da obra redentora a todos os homens de todos os tempos e de
todos os lugares, porque todos aqueles que se salvaram se tornaram participantes da
redenção.
635. Cristo, portanto, desceu aos abismos da morte (539), para que «os mortos ouvissem a
voz do Filho do Homem e os que a ouvissem, vivessem» (Jo 5, 25). Jesus, «o Príncipe da
Vida» (540), «pela sua morte, reduziu à impotência aquele que tem o poder da morte, isto é, o
Diabo, e libertou quantos, por meio da morte, se encontravam sujeitos à servidão durante a
vida inteira» (Heb 2, 14-15). Desde agora, Cristo ressuscitado «detém as chaves da morte e do
Hades» (Ap 1, 18) e «ao nome de Jesus todos se ajoelhem, no céu, na terra e nos abismos» (Fl
2, 10).
«Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um
grande silêncio, porque o rei dorme. A terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus ad-
ormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há séculos [...]. Vai à procura de Adão,
nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Quer visitar os que jazem nas trevas e nas sombras da
morte. Vai libertar Adão do cativeiro da morte. Ele que é ao mesmo tempo seu Deus e seu
filho [...] "Eu sou o teu Deus, que por ti me fiz teu filho [...] Desperta tu que dormes, porque
Eu não te criei para que permaneças cativo no reino dos mortos: levanta-te de entre os mor-
tos; Eu sou a vida dos mortos"» (541).

Resumindo:

636. Na expressão «Jesus desceu à mansão dos mortos», o Símbolo confessa que Jesus mor-
reu realmente, e que, por ter morrido por nós, venceu a morte e o Diabo «que tem o poder da
morte» (Heb 2, 14).
637. Cristo morto, na sua alma unida à pessoa divina, desceu à morada dos mortos. E abriu
aos justos, que O tinham precedido, as portas do céu.

PARÁGRAFO 2

AO TERCEIRO DIA, RESSUSCITOU DOS MORTOS

638. «Nós vos anunciamos a Boa-Nova de que a promessa feita aos nossos pais, a cumpriu
Deus para nós, seus filhos, ao ressuscitar Jesus» (Act 13, 32-33). A ressurreição de Jesus é a
verdade culminante da nossa fé em Cristo, acreditada e vivida como verdade central pela
primeira comunidade cristã, transmitida como fundamental pela Tradição, estabelecida pelos
documentos do Novo Testamento, pregada como parte essencial do mistério pascal, ao mesmo
tempo que a cruz:
«Cristo ressuscitou dos mortos. Pela Sua morte venceu a morte, e aos mortos deu a vida»
(542).

I. Acontecimento histórico e transcendente


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639. O mistério da ressurreição de Cristo é um acontecimento real, com manifestações histor-


icamente verificadas, como atesta o Novo Testamento. Já São Paulo, por volta do ano 56, pôde
escrever aos Coríntios: «Transmiti-vos, em primeiro lugar, o mesmo que havia recebido:
Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e foi sepultado e ressuscitou ao
terceiro dia, segundo as Escrituras: a seguir, apareceu a Pedro, depois aos Doze» (1 Cor 15, 3-
4). O Apóstolo fala aqui da tradição viva da ressurreição, de que tinha tomado conhecimento
após a sua conversão, às portas de Damasco (543).

O TÚMULO VAZIO

640. «Por que motivo procurais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui, ressus-
citou» (Lc 24, 5-6). No quadro dos acontecimentos da Páscoa, o primeiro elemento que se nos
oferece é o sepulcro vazio. Isso não é, em si, uma prova directa. A ausência do corpo de Cristo
do sepulcro poderia explicar-se doutro modo (544). Apesar disso, o sepulcro vazio constitui,
para todos, um sinal essencial. A descoberta do facto pelos discípulos foi o primeiro passo
para o reconhecimento do facto da ressurreição. Foi, primeiro, o caso das santas mulheres
(545), depois o de Pedro (546). «O discípulo que Jesus amava» (Jo 20, 2) afirma que, ao en-
trar no sepulcro vazio e ao descobrir «os lençóis no chão» (Jo 20, 6), «viu e acreditou» (547);
o que supõe que ele terá verificado, pelo estado em que ficou o sepulcro vazio "', que a ausên-
cia do corpo de Jesus não podia ter sido obra humana e que Jesus não tinha simplesmente re-
gressado a uma vida terrena, como fora o caso de Lázaro (549).

AS APARIÇÕES DO RESSUSCITADO

641. Maria Madalena e as santas mulheres, que vinham para acabar de embalsamar o corpo
de Jesus (550), sepultado à pressa por causa do início do «Sábado», no fim da tarde de Sexta-
feira Santa (551), foram as primeiras pessoas a encontra-se com o Ressuscitado (552). Assim,
as mulheres foram as primeiras mensageiras da ressurreição de Cristo para os próprios
Apóstolos (553). Em seguida, foi a eles que Jesus apareceu: primeiro a Pedro, depois aos Doze
(554). Pedro, incumbido de consolidar a fé dos seus irmãos (555), vê, portanto, o Ressuscitado
antes deles e é com base no seu testemunho que a comunidade exclama: «Realmente, o Sen-
hor ressuscitou e apareceu a Simão» (Lc 24, 34.36).
642. Tudo quanto aconteceu nestes dias pascais empenha cada um dos Apóstolos – e muito
particularmente Pedro – na construção da era nova, que começa na manhã do dia de Páscoa.
Como testemunhas do Ressuscitado, eles são as pedras do alicerce da sua Igreja. A fé da
primeira comunidade dos crentes está fundada no testemunho de homens concretos, con-
hecidos dos cristãos e, a maior parte, vivendo ainda entre eles. Estas «testemunhas da ressur-
reição de Cristo» (556) são, em primeiro lugar, Pedro e os Doze. Mas há outros: Paulo fala
claramente de mais de quinhentas pessoas às quais Jesus apareceu em conjunto, além de Ti-
ago e de todos os Apóstolos (557).
643. Perante estes testemunhos, é impossível interpretar a ressurreição de Cristo fora da or-
dem física e não a reconhecer como um facto histórico. Resulta, dos factos, que a fé dos dis-
cípulos foi submetida à prova radical da paixão e morte de cruz do seu Mestre, por este de
antemão anunciada (558). O abalo provocado pela paixão foi tão forte que os discípulos (pelo
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menos alguns) não acreditaram imediatamente na notícia da ressurreição. Longe de nos ap-
resentar uma comunidade tomada de exaltação mística, os evangelhos apresentam-nos os dis-
cípulos abatidos (de «rosto sombrio»: Lc 24, 17) e apavorados (559). Foi por isso que não
acreditaram nas santas mulheres, regressadas da sua visita ao túmulo, e «as suas narrativas
pareceram-lhe um desvario» (Lc 24, 11) (560). Quando Jesus apareceu aos onze, na tarde do
dia de Páscoa, «censurou-lhes a falta de fé e a teimosia em não quererem acreditar naqueles
que O tinham visto ressuscitado» (Mc 16, 14).
644. Mesmo confrontados com a realidade de Jesus Ressuscitado, os discípulos ainda
duvidam (561) de tal modo isso lhes parecia impossível: julgavam ver um fantasma (562).
«Por causa da alegria, estavam ainda sem querer acreditar e cheios de assombro» (Lc 24, 41).
Tomé experimentará a mesma provação da dúvida (563), e quando da última aparição na Ga-
lileia, referida por Mateus, «alguns ainda duvidavam» (Mt 28, 17).É por isso que a hipótese,
segundo a qual a ressurreição teria sido um «produto» da fé (ou da credulidade) dos Apósto-
los, é inconsistente. Pelo contrário, a sua fé na ressurreição nasceu — sob a acção da graça
divina da experiência directa da realidade de Jesus Ressuscitado.

O ESTADO DA HUMANIDADE RESSUSCITADA DE CRISTO

645. Jesus Ressuscitado estabeleceu com os seus discípulos relações directas, através do con-
tacto físico (564) e da participação na refeição (565). Desse modo, convida-os a reconhecer
que não é um espírito (566), e sobretudo a verificar que o corpo ressuscitado, com o qual se
lhes apresenta, é o mesmo que foi torturado e crucificado, pois traz ainda os vestígios da
paixão (567). No entanto, este corpo autêntico e real possui, ao mesmo tempo, as pro-
priedades novas dum corpo glorioso: não está situado no espaço e no tempo, mas pode,
livremente, tornar-se presente onde e quando quer (568), porque a sua humanidade já não
pode ser retida sobre a terra e já pertence exclusivamente ao domínio divino do Pai (569).
Também por este motivo, Jesus Ressuscitado é soberanamente livre de aparecer como quer:
sob a aparência dum jardineiro (570) ou «com um aspecto diferente» (Mc 16, 12) daquele que
era familiar aos discípulos; e isso, precisamente, para lhes despertar a fé (571).
646. A ressurreição de Cristo não foi um regresso à vida terrena, como no caso das ressur-
reições que Ele tinha realizado antes da Páscoa: a filha de Jairo, o jovem de Naim e Lázaro.
Esses factos eram acontecimentos milagrosos, mas as pessoas miraculadas reencontravam,
pelo poder de Jesus, uma vida terrena «normal»: em dado momento, voltariam a morrer. A
ressurreição de Cristo é essencialmente diferente. No seu corpo ressuscitado, Ele passa do es-
tado de morte a uma outra vida, para além do tempo e do espaço. O corpo de Cristo é, na res-
surreição, cheio do poder do Espírito Santo; participa da vida divina no estado da sua glória,
de tal modo que São Paulo pode dizer de Cristo que Ele é o «homem celeste» (572).

A RESSURREIÇÃO COMO ACONTECIMENTO TRANSCENDENTE

647. «Oh noite bendita! – canta o «Exultet» pascal – única a ter conhecimento do tempo e da
hora em que Cristo ressuscitou do sepulcro» (573). Com efeito, ninguém foi testemunha ocu-
lar do acontecimento da ressurreição propriamente dita e nenhum evangelista o descreve.
Ninguém pôde dizer como ela se deu, fisicamente. Ainda menos a sua essência mais íntima, a
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passagem a uma outra vida, foi perceptível aos sentidos. Acontecimento histórico comprovado
pelo sinal do túmulo vazio e pela realidade dos encontros dos Apóstolos com Cristo Ressuscit-
ado, nem por isso a ressurreição deixa de estar, naquilo em que transcende e ultrapassa a
história, no próprio centro do mistério da fé. Foi por isso que Cristo Ressuscitado não Se
manifestou ao mundo (574), mas aos discípulos, «aos que com Ele tinham subido da Galileia a
Jerusalém» e que «são agora testemunhas de Jesus junto do povo» (Act 13, 31).

II. A ressurreição – obra da Santíssima Trindade

648. A ressurreição de Cristo é objecto de fé, na medida em que é uma intervenção tran-
scendente do próprio Deus na criação e na história. Nela, as três pessoas divinas agem em
conjunto e manifestam a sua originalidade própria: realizou-se pelo poder do Pai, que «res-
suscitou» (Act 2, 24) Cristo seu Filho, e assim introduziu de modo perfeito a sua humanidade
– com o seu corpo – na Trindade. Jesus foi divinamente revelado «Filho de Deus em todo o
seu poder, pela sua ressurreição de entre os mortos» (Rm 1, 4). São Paulo insiste na manifest-
ação do poder de Deus (575) por obra do Espírito, que vivificou a humanidade morta de Jesus
e a chamou ao estado glorioso de Senhor.
649. Quanto ao Filho, Ele opera a sua própria ressurreição em virtude do seu poder divino.
Jesus anuncia que o Filho do Homem deverá sofrer muito, e depois ressuscitar (no sentido
activo da palavra (576)). Aliás, é d'Ele esta afirmação explícita: «Eu dou a minha vida para
retomá-la [...] Tenho o poder de a dar e o poder de a retomar» (Jo 10, 17-18). «Nós cremos
que Jesus morreu e depois ressuscitou» (1 Ts 4, 14).
650. Os Santos Padres contemplam a ressurreição a partir da pessoa divina de Cristo, que
ficou unida à sua alma e ao seu corpo, separados entre si pela morte: «Pela unidade da
natureza divina, que continua presente em cada uma das duas partes do homem, estas unem-
se de novo. Assim, a morte é produzida pela separação do composto humano e a ressurreição
pela união das duas partes separadas» (577).

III. Sentido e alcance salvífico da ressurreição

651. «Se Cristo não ressuscitou, então a nossa pregação é vã e também é vã a vossa fé» (1 Cor
15, 14). A ressurreição constitui, antes de mais, a confirmação de tudo quanto Cristo em pess-
oa fez e ensinou. Todas as verdades, mesmo as mais inacessíveis ao espírito humano, encon-
tram a sua justificação se, ressuscitando, Cristo deu a prova definitiva, que tinha prometido,
da sua autoridade divina.
652. A ressurreição de Cristo é o cumprimento das promessas do Antigo Testamento (578) e
do próprio Jesus, durante a sua vida terrena (579). A expressão «segundo as Escrituras» (580)
indica que a ressurreição de Cristo cumpriu essas predições.
653. A verdade da divindade de Jesus é confirmada pela ressurreição. Ele tinha dito:
«Quando elevardes o Filho do Homem, então sabereis que "Eu Sou"» (Jo 8, 28). A ressur-
reição do Crucificado demonstrou que Ele era verdadeiramente «Eu Sou», o Filho de Deus e
Ele próprio Deus. São Paulo pôde declarar aos judeus: «E nós vos anunciamos a Boa-Nova de
que a promessa feita aos nossos pais, cumpriu-a Deus para os filhos deles ao ressuscitar Jesus,
como justamente está escrito no Salmo segundo: "Tu és meu Filho, Eu gerei-Te hoje"» (Act 13,
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32- 33) (581). O mistério da ressurreição de Cristo está estreitamente ligado ao mistério da
Encarnação do Filho de Deus. É dele o cumprimento, segundo o desígnio eterno de Deus.
654. Existe um duplo aspecto no mistério pascal: pela sua morte, Cristo liberta-nos do
pecado; pela sua ressurreição, abre-nos o acesso a uma nova vida. Esta é, antes de mais, a jus-
tificação, que nos repõe na graça de Deus (582), «para que, assim como Cristo ressuscitou dos
mortos [...], também nós vivamos uma vida nova» (Rm 6, 4). Esta consiste na vitória sobre a
morte do pecado e na nova participação na graça (583); realiza a adopção filial, porque os
homens tornam-se irmãos de Cristo, como o próprio Jesus chama aos discípulos depois da
ressurreição: «Ide anunciar aos meus irmãos» (Mt 28, 10) (584). Irmãos, não por natureza,
mas por dom da graça, porque esta filiação adoptiva proporciona uma participação real na
vida do Filho, plenamente revelada na sua ressurreição.
655. Finalmente, a ressurreição de Cristo – e o próprio Cristo Ressuscitado – é princípio e
fonte da nossa ressurreição futura: «Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que
morreram [...]. Do mesmo modo que em Adão todos morreram, assim também em Cristo ser-
ão todos restituídos à vida» (1 Cor 15, 20-22). Na expectativa de que isto se realize, Cristo Res-
suscitado vive no coração dos seus fiéis. N'Ele, os cristãos «saboreiam as maravilhas do
mundo vindouro» (Heb 6, 5) e a sua vida é atraída por Cristo para o seio da vida divina (585),
«para que os vivos deixem de viver para si próprios, mas vivam para Aquele que morreu e res-
suscitou por eles» (2 Cor 5, 15).

Resumindo:

656. A fé na ressurreição tem por objecto um acontecimento, ao mesmo tempo historica-


mente testemunhado pelos discípulos (que realmente encontraram o Ressuscitado) e misteri-
osamente transcendente, enquanto entrada da humanidade de Cristo na glória de Deus.
657. O sepulcro vazio e os lençóis deixados no chão significam, por si mesmos, que o corpo
de Cristo escapou aos laços da morte e da corrupção, pelo poder de Deus. E preparam os
discípulos para o encontro com o Ressuscitado.
658. Cristo, «primogénito de entre os mortos» (Cl 1, 18), é o princípio da nossa própria res-
surreição, desde agora pela justificação da nossa alma (586), mais tarde pela vivificação do
nosso corpo (587).

ARTIGO 6

«JESUS SUBIU AOS CÉUS E ESTÁ SENTADO À DIREITA DE DEUS, PAI


TODO-PODEROSO»

659. «Então, o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado, foi elevado ao céu e sentou-se à direita
de Deus» (Mc 16, 19). O corpo de Cristo foi glorificado desde o momento da sua ressurreição,
como o provam as propriedades novas e sobrenaturais de que, a partir de então, ele goza per-
manentemente (588). Mas, durante os quarenta dias em que vai comer e beber familiarmente
com os discípulos (589) e instruí-los sobre o Reino (590), a sua glória fica ainda velada sob as
aparências duma humanidade normal (591). A última aparição de Jesus termina com a en-
trada irreversível da sua humanidade na glória divina, simbolizada pela nuvem (592) e pelo
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céu (593). onde a partir de então, está sentado à direita de Deus (594). Só de modo absoluta-
mente excepcional e único é que Se mostrará a Paulo, «como a um aborto» (1 Cor 15, 8),
numa última aparição que o constitui Apóstolo (595).
660. O carácter velado da glória do Ressuscitado, durante este tempo, transparece na sua
misteriosa palavra a Maria Madalena: « [...] ainda não subi para o Pai. Vai ter com os meus
irmãos e diz-lhes que vou subir para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus»
(Jo 20, 17). Isto indica uma diferença entre a manifestação da glória de Cristo Ressuscitado e a
de Cristo exaltado à direita do Pai. O acontecimento da ascensão, ao mesmo tempo histórico e
transcendente, marca a transição duma para a outra.
661. Esta última etapa continua intimamente unida à primeira, isto é, à descida do céu realiz-
ada na Encarnação. Só Aquele que «saiu do Pai» pode «voltar para o Pai»: Cristo (596). «Nin-
guém subiu ao céu senão Aquele que desceu do céu: o Filho do Homem» (Jo 3, 13) (597).
Abandonada às suas forças naturais, a humanidade não tem acesso à «Casa do Pai» (598), à
vida e à felicidade de Deus. Só Cristo Ode abrir ao homem este acesso: «subindo aos céus,
como nossa cabeça e primogénito, deu-nos a esperança de irmos um dia ao seu encontro,
como membros do seu corpo» (599).
662. «E Eu, uma vez elevado da terra, atrairei todos a Mim» (Jo 12, 32). A elevação na cruz
significa e anuncia a elevação da ascensão aos céus. É o princípio dela, Jesus Cristo, o único
sacerdote da nova e eterna Aliança, «não entrou num santuário feito por homens [...]. Entrou
no próprio céu, a fim de agora se apresentar diante de Deus em nosso favor» (Heb 9, 24). Nos
céus, Cristo exerce permanentemente o seu sacerdócio, «sempre vivo para interceder a favor
daqueles que, por seu intermédio, se aproximam de Deus» (Heb 7, 25). Como «sumo sacer-
dote dos bens futuros» (Heb 9, 11), Ele é o centro e o actor principal da liturgia que honra o
Pai que está nos céus (600).
663. Doravante, Cristo está sentado à direita do Pai: «Por direita do Pai entendemos a glória
e a honra da divindade, em cujo seio Aquele que, antes de todos os séculos, existia como Filho
de Deus, como Deus e consubstancial ao Pai, tomou assento corporalmente desde que en-
carnou e o seu corpo foi glorificado» (601).
664. Sentar-se à direita do Pai significa a inauguração do Reino messiânico, cumprimento da
visão do profeta Daniel a respeito do Filho do Homem: «Foi-Lhe entregue o domínio, a
majestade e a realeza, e todos os povos, nações e línguas O serviram. O seu domínio é um
domínio eterno, que não passará jamais, e a sua realeza não será destruída» (Dn 7, 14). A
partir deste momento, os Apóstolos tornaram-se as testemunhas do «Reino que não terá fim»
(602).

Resumindo:

665. A ascensão de Cristo marca a entrada definitiva da humanidade de Jesus no domínio


celeste de Deus, de onde há-de voltar (603) mas que, entretanto, O oculta aos olhos dos ho-
mens (604).
666. Jesus Cristo, cabeça da Igreja, precede-nos no Reino glorioso do Pai, para que nós,
membros do seu corpo, vivamos na esperança de estarmos um dia eternamente com Ele.
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667. Jesus Cristo, tendo entrado, uma vez por todas, no santuário dos céus, intercede incess-
antemente por nós, como mediador que nos garante permanentemente a efusão do Espírito
Santo.

ARTIGO 7

«DE ONDE HÁ-DE VIR A JULGAR OS VIVOS E OS MORTOS»

I. «Voltará na sua glória»

CRISTO REINA, DESDE JÁ, PELA IGREJA...

668. «Cristo morreu e voltou à vida para ser Senhor dos mortos e dos vivos» (Rm 14, 9). A as-
censão de Cristo aos céus significa a sua participação, na sua humanidade, no poder e autorid-
ade do próprio Deus. Jesus Cristo é Senhor: Ele possui todo o poder nos céus e na Terra. Está
«acima de todo o principado, poder, virtude e soberania», porque o Pai «tudo submeteu a
seus pés»(Ef 1, 20-22). Cristo é o Senhor do cosmos (605) e da história, N'Ele, a história do
homem, e até a criação inteira, encontram a sua «recapitulação» (606), o seu acabamento
transcendente.
669. Como Senhor, Cristo é também a cabeça da Igreja, que é o seu corpo (607). Elevado ao
céu e glorificado, tendo assim cumprido plenamente a sua missão, continua na terra por meio
da Igreja. A redenção é a fonte da autoridade que Cristo, em virtude do Espírito Santo, exerce
sobre a Igreja (608). «O Reino de Cristo já está misteriosamente presente na Igreja» (609),
«gérmen e princípio deste mesmo Reino na Terra» (610).
670. Depois da ascensão, o desígnio de Deus entrou na sua consumação. Estamos já na «úl-
tima hora» (1 Jo 2, 18) (611). «Já chegou pois, a nós, a plenitude dos tempos, a renovação do
mundo já está irrevogavelmente adquirida e, de certo modo, encontra-se já realmente ante-
cipada neste tempo: com efeito, ainda aqui na Terra, a Igreja está aureolada de uma ver-
dadeira, embora imperfeita, santidade» (612). O Reino de Cristo manifesta já a sua presença
pelos sinais miraculosos (613) que acompanham o seu anúncio pela Igreja (614).

... À ESPERA DE QUE TUDO LHE SEJA SUBMETIDO

671. Já presente na sua Igreja, o Reino de Cristo, contudo, ainda não está acabado «em poder
e glória» (Lc 21, 27) (615) pela vinda do Rei à terra. Este Reino ainda é atacado pelos poderes
do mal (616), embora estes já tenham sido radicalmente vencidos pela Páscoa de Cristo. Até
que tudo Lhe tenha sido submetido (617), «enquanto não se estabelecem os novos céus e a
nova terra, em que habita a justiça, a Igreja peregrina, nos seus sacramentos e nas suas in-
stituições, que pertencem à presente ordem temporal, leva a imagem passageira deste mundo
e vive no meio das criaturas que gemem e sofrem as dores do parto, esperando a manifestação
dos filhos de Deus» (618). Por este motivo, os cristãos oram, sobretudo na Eucaristia (619),
para que se apresse o regresso de Cristo (620), dizendo-Lhe: «Vem, Senhor» (Ap 22, 20)
(621).
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672. Cristo afirmou, antes da sua ascensão, que ainda não era a hora do estabelecimento glor-
ioso do Reino messiânico esperado por Israel (622), o qual devia trazer a todos os homens, se-
gundo os profetas (623), a ordem definitiva da justiça, do amor e da paz. O tempo presente é,
segundo o Senhor, o tempo do Espírito e do testemunho (624) mas é também um tempo ainda
marcado pela «desolação» (625) e pela provação do mal (626), que não poupa a Igreja (627) e
inaugura os combates dos últimos dias (628). É um tempo de espera e de vigília (629).

A VINDA GLORIOSA DE CRISTO, ESPERANÇA DE ISRAEL

673. A partir da ascensão, a vinda de Cristo na glória está iminente (630) mesmo que não nos
«pertença saber os tempos ou os momentos que o Pai determinou com a sua autoridade» (Act
1, 7) (631). Este advento escatológico pode realizar-se a qualquer momento (632), ainda que
esteja «retido», ele e a provação final que o há-de preceder (633).
674. A vinda do Messias glorioso está pendente, a todo o momento da história (634), do seu
reconhecimento por «todo o Israel» (635), do qual «uma parte se endureceu» (636) na «in-
credulidade» (Rm 11, 20) em relação a Jesus. E Pedro quem diz aos judeus de Jerusalém, após
o Pentecostes: «Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que os pecados vos sejam perdoa-
dos. Assim, o Senhor fará que venham os tempos de alívio e vos mandará o Messias Jesus, que
de antemão vos foi destinado. O céu tem de O conservar até à altura da restauração universal,
que Deus anunciou pela boca dos seus santos profetas de outrora» (Act 3, 19-21). E Paulo faz-
se eco destas palavras: «Se da sua rejeição resultou a reconciliação do mundo, o que será a sua
reintegração senão uma ressurreição de entre os mortos?» (Rm 11, 15). A entrada da totalid-
ade dos judeus (637) na salvação messiânica, a seguir à «conversão total dos pagãos» (638),
dará ao povo de Deus ocasião de «realizar a plenitude de Cristo» (Ef 4, 13), na qual «Deus será
tudo em todos» (1 Cor 15, 2).

A ÚLTIMA PROVA DA IGREJA

675. Antes da vinda de Cristo, a Igreja deverá passar por uma prova final, que abalará a fé de
numerosos crentes (639). A perseguição, que acompanha a sua peregrinação na Terra (640),
porá a descoberto o «mistério da iniquidade», sob a forma duma impostura religiosa, que
trará aos homens uma solução aparente para os seus problemas, à custa da apostasia da ver-
dade. A suprema impostura religiosa é a do Anticristo, isto é, dum pseudo-messianismo em
que o homem se glorifica a si mesmo, substituindo-se a Deus e ao Messias Encarnado (641).
676. Esta impostura anticrística já se esboça no mundo, sempre que se pretende realizar na
história a esperança messiânica, que não pode consumar-se senão para além dela, através do
juízo escatológico. A Igreja rejeitou esta falsificação do Reino futuro, mesmo na sua forma
mitigada, sob o nome de milenarismo (642), e principalmente sob a forma política dum mes-
sianismo secularizado, «intrinsecamente perverso» (643).
677. A Igreja não entrará na glória do Reino senão através dessa última Páscoa, em que
seguirá o Senhor na sua morte e ressurreição (644). O Reino não se consumará, pois, por um
triunfo histórico da Igreja (645) segundo um progresso ascendente, mas por uma vitória de
Deus sobre o último desencadear do mal (646), que fará descer do céu a sua Esposa (647). O
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triunfo de Deus sobre a revolta do mal tomará a forma de Juízo final (648), após o último
abalo cósmico deste mundo passageiro (649).

II. «Para julgar os vivos e os mortos»

678. Na sequência dos profetas (650) e de João Baptista (651), Jesus anunciou, na sua
pregação, o Juízo do último dia. Então será revelado o procedimento de cada um (652) e o se-
gredo dos corações (653). Então, será condenada a incredulidade culpável, que não teve em
conta a graça oferecida por Deus (654). A atitude tomada para com o próximo revelará a aceit-
ação ou a recusa da graça e do amor divino (655). No último dia, Jesus dirá: «Sempre que o
fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes» (Mt 25, 40).
679. Cristo é Senhor da vida eterna. O pleno direito de julgar definitivamente as obras e os
corações dos homens pertence-Lhe a Ele, enquanto redentor do mundo. Ele «adquiriu» este
direito pela sua cruz. Por isso, o Pai entregou «ao Filho todo o poder de julgar» (Jo 5, 22)
(656). Ora, o Filho não veio para julgar, mas para salvar (657) e dar a vida que tem em Si
(658). É pela recusa da graça nesta vida que cada qual se julga já a si próprio (659), recebe se-
gundo as suas obras (660) e pode, mesmo, condenar-se para a eternidade, recusando o
Espírito de amor (661).

Resumindo:

680. Cristo Senhor reina já pela Igreja, mas ainda não Lhe estão submetidas todas as
coisas deste mundo. O triunfo do Reino de Cristo só será um facto, depois dum último assalto
das forças do mal.
681. No dia do Juízo, no fim do mundo, Cristo virá na sua glória para completar o triunfo
definitivo do bem sobre o mal, os quais, como o trigo e o joio, terão crescido juntos no de-
curso da história.
682. Quando vier; no fim dos tempos, para julgar os vivos e os mortos, Cristo glorioso há-
de revelar a disposição secreta dos corações, e dará a cada um segundo as suas obras e se-
gundo tiver aceite ou recusado a graça.

CAPÍTULO TERCEIRO
CREIO NO ESPÍRITO SANTO

683. «Ninguém pode dizer "Jesus é o Senhor" a não ser pela acção do Espírito Santo» (1Cor
12, 3). «Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: "Abbá! Pai!'» (Gl
4, 6). Este conhecimento da fé só é possível no Espírito Santo. Para estar em contacto com
Cristo, é preciso primeiro ter sido tocado pelo Espírito Santo. É Ele que nos precede e suscita
em nós a fé. Em virtude do nosso Baptismo, primeiro sacramento da fé, a Vida, que tem a sua
fonte no Pai e nos é oferecida no Filho, é-nos comunicada, íntima e pessoalmente, pelo
Espírito Santo na Igreja:
O Baptismo «dá-nos a graça do novo nascimento em Deus Pai, por meio do Filho no Espírito
Santo. Porque aqueles que têm o Espírito de Deus são conduzidos ao Verbo, isto é, ao Filho:
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mas o Filho apresenta-os ao Pai, e o Pai dá-lhes a incorruptibilidade. Portanto, sem o Espírito
não é possível ver o Filho de Deus, e sem o Filho ninguém tem acesso ao Pai, porque o conhe-
cimento do Pai é o Filho, e o conhecimento do Filho de Deus faz-se pelo Espírito Santo»(1).
684. O Espírito Santo, pela sua graça, é o primeiro no despertar da nossa fé e na vida nova
que consiste em conhecer o Pai e Aquele que Ele enviou, Jesus Cristo (2). No entanto, Ele é o
último na revelação das Pessoas da Santíssima Trindade. São Gregário de Nazianzo, «o Teó-
logo», explica esta progressão pela pedagogia da «condescendência» divina:
«O Antigo Testamento proclamava manifestamente o Pai e mais obscuramente o Filho. O
Novo manifestou o Filho e fez entrever a divindade do Espírito. Agora, porém, o próprio
Espírito vive connosco e manifesta-se a nós mais abertamente. Com efeito, quando ainda não
se confessava a divindade do Pai, não era prudente proclamar abertamente o Filho: e quando
a divindade do Filho ainda não era admitida, não era prudente acrescentar o Espírito Santo
como um fardo suplementar, para empregar uma expressão um tanto ousada [...] É por
avanços e progressões "de glória em glória " que a luz da Trindade brilhará em mais esplen-
dorosas claridades» (3).
685. Crer no Espírito é, portanto, professar que o Espírito Santo é uma das Pessoas da
Santíssima Trindade, consubstancial ao Pai e ao Filho, «adorado e glorificado com o Pai e o
Filho» (4). É por isso que tratamos do mistério divino do Espírito Santo na «teologia» trin-
itária. Portanto, aqui só trataremos do Espírito Santo no âmbito da «economia» divina.
686. O Espírito Santo age juntamente com o Pai e o Filho, desde o princípio até à con-
sumação do desígnio da nossa salvação. Mas é nestes «últimos tempos», inaugurados com a
Encarnação redentora do Filho, que Ele é revelado e dado, reconhecido e acolhido como
Pessoa. Então, esse desígnio divino, consumado em Cristo, «Primogénito» e Cabeça da nova
criação, poderá tomar corpo na humanidade pelo Espírito derramado: a Igreja, a comunhão
dos santos, a remissão dos pecados, a ressurreição da carne, a vida eterna.

ARTIGO 8

«CREIO NO ESPÍRITO SANTO»

687. «Ninguém conhece o que há em Deus, senão o Espírito de Deus» (1 Cor 2, 11). Ora, o seu
Espírito, que O revela, faz-nos conhecer Cristo, seu Verbo, sua Palavra viva; mas não Se diz a
Si próprio. Aquele que «falou pelos profetas» (5) faz-nos ouvir a Palavra do Pai. Mas a Ele,
nós não O ouvimos. Não O conhecemos senão no movimento em que Ele nos revela o Verbo e
nos dispõe a acolhê-Lo na fé. O Espírito de verdade, que nos «revela» Cristo, «não fala de Si
próprio» (6). Tal escondimento, propriamente divino, explica porque é que «o mundo não O
pode receber, porque não O vê nem O conhece», enquanto aqueles que crêem em Cristo O
conhecem, porque habita com eles e está neles (Jo 14, 17).
688. A Igreja, comunhão viva na fé dos Apóstolos que ela transmite, é o lugar do nosso con-
hecimento do Espírito Santo:
— Nas Escrituras, que Ele inspirou: — na Tradição, de que os Padres da Igreja são testemun-
has sempre actuais; — no Magistério da Igreja, que Ele assiste; — na liturgia sacramental, at-
ravés das suas palavras e dos seus símbolos, em que o Espírito Santo nos põe em comunhão
com Cristo; — na oração, em que Ele intercede por nós; — nos carismas e ministérios, pelos
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quais a Igreja é edificada; — nos sinais de vida apostólica e missionária; — no testemunho dos
santos, nos quais Ele manifesta a sua santidade e continua a obra da salvação.

I. A missão conjunta do Filho e do Espírito

689. Aquele que o Pai enviou aos nossos corações, o Espírito do seu Filho (7), é realmente
Deus. Consubstancial ao Pai e ao Filho, é d'Eles inseparável, tanto na vida íntima da Trindade
como no seu dom de amor pelo mundo. Mas ao adorar a Santíssima Trindade, vivificante,
consubstancial e indivisível, a fé da Igreja professa também a distinção das Pessoas. Quando o
Pai envia o seu Verbo, envia sempre o seu Espírito: missão conjunta na qual o Filho e o
Espírito Santo são distintos mas inseparáveis. Sem dúvida, é Cristo quem aparece, Ele que é a
Imagem visível de Deus invisível; mas é o Espírito Santo quem O revela.
690. Jesus é Cristo, «ungido», porque o Espírito é d'Ele a Unção; e tudo quanto acontece a
partir da Encarnação, decorre desta plenitude (8). Finalmente, quando Cristo é glorificado
(9), pode, por sua vez, enviar de junto do Pai, o Espírito, aos que crêem n'Ele: comunica-lhes a
sua glória (10), quer dizer, o Espírito Santo que O glorifica (11). A missão conjunta
desenvolver- se-á, a partir desse momento, nos filhos adoptados pelo Pai no Corpo do seu
Filho: a missão do Espírito de adopção consistirá em uni-los a Cristo e fazê-los viver n' Ele:
«A unção sugere... que não há nenhuma distância entre o Filho e o Espírito. Com efeito, do
mesmo modo que entre a superfície do corpo e a unção do óleo, nem a razão nem os sentidos
encontram qualquer entremeio, assim é imediato o contacto do Filho com o Espírito, de tal
modo que aquele que vai tomar contacto com o Filho pela fé, tem que contactar primeiro com
o óleo. Com efeito, não há pane alguma que esteja despida do Espírito Santo. É por isso que a
confissão do Senhorio do Filho se faz no Espírito Santo para aqueles que a recebem, pois o
Espírito vem, de todos os lados, ao encontro daqueles que se aproximam pela fé» (12).

II. O nome, as designações e os símbolos do Espírito Santo

O NOME PRÓPRIO DO ESPÍRITO SANTO

691. «Espírito Santo», tal á o nome próprio d'Aquele que adoramos e glorificamos com o Pai
e o Filho. A Igreja recebeu este nome do Senhor e professa-o no Baptismo dos seus novos fil-
hos (13).
O termo «Espírito» traduz o termo hebraico « Ruah» que, na sua primeira acepção, significa
sopro, ar, vento. Jesus utiliza precisamente a imagem sensível do vento para sugerir a
Nicodemos a novidade transcendente d'Aquele que é pessoalmente o Sopro de Deus, o
Espírito divino (14). Por outro lado, Espírito e Santo são atributos divinos comuns às três
Pessoas divinas. Mas, juntando os dois termos, a Escritura, a Liturgia e a linguagem teológica
designam a Pessoa inefável do Espírito Santo, sem equívoco possível com os outros empregos
dos termos «espírito» e «santo».

AS DESIGNAÇÕES DO ESPÍRITO SANTO


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692. Jesus, ao anunciar e prometer a vinda do Espírito Santo, chama-Lhe o «Paráclito», que,
à letra, quer dizer: «aquele que é chamado para junto», ad vocatus (Jo 14, 16. 26; 15, 26; 16,
7). «Paráclito» traduz-se habitualmente por «Consolador», sendo Jesus o primeiro consol-
ador (15). O próprio Senhor chama ao Espírito Santo «o Espírito da verdade» (16).
693. Além do seu nome próprio, que é o mais empregado nos Actos dos Apóstolos e nas
epístolas, encontramos em S. Paulo as designações: Espírito da promessa (Gl 3, 14; Ef 1, 13),
Espírito de adopção (Rm 8, 15: Gl 4, 6), Espírito de Cristo (Rm 8, 9), Espírito do Senhor (2
Cor 3, 17). Espírito de Deus (Rm 8, 9. 14; 15, 19; 1 Cor 6, 11; 7, 40), e em S. Pedro, Espírito de
glória (1 Pe 4, 14).

OS SÍMBOLOS DO ESPÍRITO SANTO

694. A água. O simbolismo da água é significativo da acção do Espírito Santo no Baptismo,


pois que, após a invocação do Espírito Santo, ela torna-se o sinal sacramental eficaz do novo
nascimento. Do mesmo modo que a gestação do nosso primeiro nascimento se operou na
água, assim a água baptismal significa realmente que o nosso nascimento para a vida divina
nos é dado no Espírito Santo. Mas, «baptizados num só Espírito», «a todos nos foi dado beber
de um único Espírito» (1 Cor 12, 13): portanto, o Espírito é também pessoalmente a Agua viva
que brota de Cristo crucificado (17) como da sua fonte, e jorra em nós para a vida eterna (18).
695. A unção. O simbolismo da unção com óleo é também significativo do Espírito Santo, a
ponto de se tomar o seu sinónimo (19). Na iniciação cristã, ela é o sinal sacramental da Con-
firmação, que justamente nas Igrejas Orientais se chama «Crismação». Mas, para lhe
apreender toda a força, temos de voltar à primeira unção realizada pelo Espírito Santo: a de
Jesus. Cristo («Messias» em hebraico) significa «ungido» pelo Espírito de Deus. Houve «un-
gidos» do Senhor na antiga Aliança (20), sobretudo o rei David (21). Mas Jesus é o ungido de
Deus de maneira única: a humanidade que o Filho assume é totalmente «ungida pelo Espírito
Santo». Jesus é constituído «Cristo» pelo Espírito Santo (22). A Virgem Maria concebe Cristo
do Espírito Santo, que pelo anjo O anuncia como Cristo aquando do seu nascimento (23) e
leva Simeão a ir ao templo ver o Cristo do Senhor (24). É Ele que enche Cristo (25) e cujo
poder emana de Cristo nos seus actos de cura e salvamento (26). Finalmente, é Ele que ressus-
cita Jesus de entre os mortos (27). Então, plenamente constituído «Cristo» na sua humanid-
ade vencedora da morte (28), Jesus difunde em profusão o Espírito Santo, até que «os santos»
constituam, na sua união à humanidade do Filho de Deus, o «homem adulto à medida com-
pleta da plenitude de Cristo» (Ef 4, 13), «o Cristo total», para empregar a expressão de Santo
Agostinho (29).
696. O fogo. Enquanto a água significava o nascimento e a fecundidade da vida dada no
Espírito Santo, o fogo simboliza a energia transformadora dos actos do Espírito Santo. O pro-
feta Elias, que «apareceu como um fogo e cuja palavra queimava como um facho ardente» (Sir
48, 1), pela sua oração faz descer o fogo do céu sobre o sacrifício do monte Carmelo (30),
figura do fogo do Espírito Santo, que transforma aquilo em que toca. João Baptista, que «irá à
frente do Senhor com o espírito e a força de Elias» (Lc 1, 17), anuncia Cristo como Aquele que
«há-de baptizar no Espírito Santo e no fogo» (Lc 3, 16), aquele Espírito do qual Jesus dirá:
«Eu vim lançar fogo sobre a terra e só quero que ele se tenha ateado!» (Lc 12, 49). É sob a
forma de línguas, «uma espécie de línguas de fogo», que o Espírito Santo repousa sobre os
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discípulos na manhã de Pentecostes e os enche de Si (31). A tradição espiritual reterá este sim-
bolismo do fogo como um dos mais expressivos da acção do Espírito Santo (32). «Não
apagueis o Espírito!» (1 Ts 5, 19).
697. A nuvem e a luz. Estes dois símbolos são inseparáveis nas manifestações do Espírito
Santo. Desde as teofanias do Antigo Testamento, a nuvem, umas vezes escura, outras lu-
minosa, revela o Deus vivo e salvador, velando a transcendência da sua glória: a Moisés no
monte Sinai (33), na tenda da reunião (34) e durante a marcha pelo deserto (35); a Salomão,
aquando da dedicação do templo (36). Ora estas figuras são realizadas por Cristo no Espírito
Santo. É Ele que desce sobre a Virgem Maria e a cobre «com a sua sombra», para que conceba
e dê à luz Jesus (37). No monte da transfiguração, é Ele que «sobrevém na nuvem que cobriu
da sua sombra» Jesus, Moisés e Elias, Pedro, Tiago e João, nuvem da qual se fez ouvir uma
voz que dizia: "Este é o meu Filho, o meu Eleito, escutai-O!"» (Lc 9, 35). E, enfim, a mesma
nuvem que «esconde Jesus aos olhos» dos discípulos no dia da Ascensão (38) e que O revelará
como Filho do Homem na sua glória, no dia da sua vinda (39).
698. O selo é um símbolo próximo do da unção. Com efeito, foi a Cristo que «Deus marcou
com o seu selo» (Jo 6, 27) e é n'Ele que o Pai nos marca também com o seu selo» (40). Porque
indica o efeito indelével da unção do Espírito Santo nos sacramentos do Baptismo, da Con-
firmação e da Ordem, a imagem do selo («sphragis») foi utilizada em certas tradições teoló-
gicas para exprimir o «carácter» indelével, impresso por estes três sacramentos, que não po-
dem ser repetidos.
699. A mão. É pela imposição das mãos que Jesus cura os doentes (41) e abençoa as crianças
(42). O mesmo farão os Apóstolos, em seu nome (43). Ainda mais: é pela imposição das mãos
dos Apóstolos que o Espírito Santo é dado (44). A Epístola aos Hebreus coloca a imposição
das mãos no número dos «artigos fundamentais» do seu ensino (45). Este sinal da efusão om-
nipotente do Espírito Santo, guarda-o a Igreja nas suas epicleses sacramentais.
700. O dedo. «É pelo dedo de Deus que Jesus expulsa os demónios» (46). Se a Lei de Deus foi
escrita em tábuas de pedra «pelo dedo de Deus» (Ex 31, 18), a «carta de Cristo», entregue ao
cuidado dos Apóstolos, «é escrita com o Espírito de Deus vivo: não em placas de pedra, mas
em placas que são corações de carne» (2 Cor 3, 3). O hino «Veni Creator Spiritus» invoca o
Espírito Santo como «digitus paternae dexterae» — «Dedo da mão direita do Pai» (47).
701. A pomba. No final do dilúvio (cujo simbolismo tem a ver com o Baptismo), a pomba
solta por Noé regressa com um ramo verde de oliveira no bico, sinal de que a terra é outra vez
habitável /48). Quando Cristo sobe das águas do seu baptismo, o Espírito Santo, sob a forma
duma pomba, desce e paira sobre Ele (49). O Espírito desce e repousa no coração purificado
dos baptizados. Em certas igrejas, a sagrada Reserva eucarística é conservada num relicário
metálico em forma de pomba (o columbarium) suspenso sobre o altar. O símbolo da pomba
para significar o Espírito Santo é tradicional na iconografia cristã.

III. O Espírito e a Palavra de Deus, no tempo das promessas

702. Desde o princípio até à «plenitude do tempo» (50), a missão conjunta do Verbo e do
Espírito do Pai permanece oculta, mas está actuante. O Espírito de Deus prepara o tempo do
Messias: e um e outro, ainda não plenamente revelados, já são prometidos com o fim de serem
esperados e acolhidos quando da sua manifestação. É por isso que, quando a Igreja lê o Antigo
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Testamento (51) perscruta nele (52) o que o Espírito, «que falou pelos profetas» (53), nos quer
dizer acerca de Cristo.
Por «profetas», a fé da Igreja entende aqui todos aqueles que o Espírito Santo inspirou no an-
úncio vivo e na redacção dos Livros santos, tanto do Antigo como do Novo Testamento. A
tradição judaica distingue a Lei (os cinco primeiros livros ou Pentateuco), os Profetas (os liv-
ros ditos históricos e proféticos) e os Escritos (sobretudo sapienciais, em particular os Salmos)
(54).

NA CRIAÇÃO

703. A Palavra de Deus e o seu Espírito estão na origem do ser e da vida de todas as criaturas
(55).
É próprio do Espírito Santo reinar, santificar e animar a criação, porque Ele é Deus consub-
stancial ao Pai e ao Filho [...]. Pertence-Lhe o poder sobre a vida, porque, sendo Deus, guarda
a criação no Pai pelo Filho (56).
704. «Quanto ao homem, foi com as suas próprias mãos (quer dizer, com o Filho e o Espírito
Santo) que Deus o moldou [...] e sobre a carne moldada desenhou a sua própria forma, de
modo que, mesmo o que havia de ser visível, tivesse a forma divina» (57) .

O ESPÍRITO DA PROMESSA

705. Desfigurado pelo pecado e pela morte, o homem permanece «à imagem de Deus», à im-
agem do Filho, mas está «privado da glória de Deus» (58) , privado da «semelhança». A
promessa feita a Abraão inaugura a «economia da salvação», no termo da qual o próprio Filho
assumirá «a imagem»(59) e restaurá-la-á na «semelhança» com o Pai, voltando a dar-lhe a
glória, o Espírito «que dá a vida».
706. Contra toda a esperança humana, Deus promete a Abraão uma descendência, como
fruto da fé e do poder do Espírito Santo (60). Nessa descendência serão abençoadas todas as
nações da terra (61). Essa descendência será o Cristo (62) no qual a efusão do Espírito Santo
fará «a unidade dos filhos de Deus dispersos» (63). Comprometendo-Se por juramento (64),
Deus obriga-Se, desde logo, ao dom do seu Filho muito-amado (65) e ao dom do «Espírito
Santo prometido, que constitui o título de garantia da nossa herança para a redenção do povo
que Deus adquiriu para Si mesmo» (66).

NAS TEOFANIAS E NA LEI

707. As teofanias (manifestações de Deus) iluminam o caminho da promessa, dos patriarcas a


Moisés e de Josué até às visões que inauguram a missão dos grandes profetas. A Tradição
cristã sempre reconheceu que, nestas teofanias, o Verbo de Deus Se deixava ver e ouvir, ao
mesmo tempo revelado e «velado», na nuvem do Espírito Santo.
708. Esta pedagogia de Deus manifesta-se especialmente no dom da Lei (67). A Lei foi dada
como um «pedagogo» para conduzir o povo a Cristo (68). Mas a sua impotência para salvar o
homem, privado da «semelhança» divina e o conhecimento acrescido que ela dá do pecado
(69) suscitam o desejo do Espírito Santo. Os gemidos dos Salmos são disso testemunho.
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NO REINO E NO EXÍLIO

709. A Lei, sinal da promessa e da Aliança, deveria reger o coração e as instituições do povo
nascido da fé de Abraão. «Se ouvirdes realmente a minha voz, se guardardes a minha Aliança
[...], sereis para Mim um reino de sacerdotes, uma nação consagrada» (Ex 19, 5-6) (70) . Mas
depois de David, Israel sucumbe à tentação de se tornar um reino como as outras nações. Ora
o Reino, objecto da promessa feita a David (71) , será obra do Espírito Santo: pertencerá aos
que são pobres segundo o Espírito.
710. O esquecimento da Lei e a infidelidade à Aliança levam à morte: é o Exílio, aparente-
mente o fracasso das promessas, mas, na realidade, fidelidade misteriosa do Deus salvador e o
princípio duma restauração prometida, mas segundo o Espírito. Era preciso que o povo de
Deus sofresse esta purificação (72). O exílio traz já a sombra da cruz no desígnio de Deus; e o
«resto» dos pobres que regressa do Exílio é uma das figuras mais transparentes da Igreja.

A EXPECTATIVA DO MESSIAS E DO SEU ESPÍRITO

711. «Eis que vou fazer algo de novo» (Is 43, 19): duas linhas proféticas vão ser traçadas, in-
cidindo uma sobre a expectativa do Messias e outra sobre o anúncio dum Espírito novo, con-
vergindo ambas no pequeno «resto», o povo dos pobres (73), que aguarda na esperança a
«consolação de Israel» e «a libertação de Jerusalém» (Lc 2, 25.38).
Vimos mais atrás como Jesus cumpriu as profecias que Lhe diziam respeito. Limitamo-nos
agora àquelas em que aparece mais clara a relação entre o Messias e o seu Espírito.
712. Os traços do rosto do Messias esperado começam a aparecer no Livro do Emanuel (74)
(quando Isaías [...] teve a visão da glória» de Cristo: Jo 12, 41), particularmente em Is 11, 1-2:
«Naquele dia, sairá um ramo do tronco de Jessé e um rebento brotará das suas raízes. Sobre
ele repousará o Espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de con-
selho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor do Senhor».
713. Os traços do Messias são revelados sobretudo nos cânticos do Servo (75). Estes cânticos
anunciam o sentido da paixão de Jesus, indicando assim a maneira como Ele derramará o
Espírito Santo para dar vida à multidão: não a partir do exterior, mas assumindo a nossa
«condição de servo» (Fl 2, 7). Tomando sobre Si a nossa morte, Ele pode comunicar-nos o seu
próprio Espírito de vida.
714. É por isso que Cristo inaugura o anúncio da Boa-Nova, apropriando-Se desse passo de
Isaías (Lc 4, 18-19) (76) :
«O Espírito do Senhor Deus está sobre Mim, porque o Senhor Me ungiu. Enviou-Me a anun-
ciar a Boa-Nova aos que sofrem, para curar os desesperados,
para anunciar a libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros, para proclamar o ano da
graça do Senhor».
715. Os textos proféticos, respeitantes directamente ao envio do Espírito Santo, são oráculos
em que Deus fala ao coração do seu povo na linguagem da promessa, com os acentos do
«amor e da fidelidade» (77), cujo cumprimento São Pedro proclamará na manhã do Pente-
costes (78)». Segundo estas promessas, nos «últimos tempos» o Espírito do Senhor há-de ren-
ovar o coração dos homens, gravando neles uma lei nova; reunirá e reconciliará os povos
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dispersos e divididos; transformará a primeira criação e Deus habitará nela com os homens,
na paz.
716. O povo dos «pobres» (79) , dos humildes e dos mansos, totalmente entregues aos
desígnios misteriosos do seu Deus, o povo dos que esperam a justiça, não dos homens mas do
Messias, tal é, afinal, a grande obra da missão oculta do Espírito Santo, durante o tempo das
promessas, para preparar a vinda de Cristo. É a qualidade do seu coração, purificado e ilu-
minado pelo Espírito, que se exprime nos salmos. Nestes pobres, o Espírito prepara para o
Senhor «um povo bem disposto» (80).

IV. O Espírito de Cristo na plenitude do tempo

JOÃO, PRECURSOR, PROFETA E BAPTISTA

717. «Apareceu um homem, enviado por Deus, que tinha o nome de João» (Jo 1, 6). João é
«cheio do Espírito Santo já desde o seio materno» (Lc 1, 15) (81), pelo próprio Cristo que a
Virgem acabava de conceber por obra e graça do Espírito Santo. A « visitação» de Maria a
Isabel tornou-se, assim, «visita de Deus ao seu povo» (82).
718. João é «Elias que devia vir» (83). O fogo do Espírito habita nele e fá-lo «correr à frente»
(como «precursor») do Senhor que chega. Em João o Precursor, o Espírito Santo acaba de
«preparar para o Senhor um povo bem disposto» (Lc 1, 17).
719. João é «mais do que um profeta» (84). Nele, o Espírito Santo consuma o «falar pelos
profetas». João termina o ciclo dos profetas inaugurado por Elias (85). Anuncia como imin-
ente a consolação de Israel; é ele a «voz» do Consolador que vai chegar (86). Tal como fará o
Espírito da verdade, «ele vem como testemunha, para dar testemunho da Luz» (Jo 1, 7) (87).
A respeito de João, o Espírito cumpre assim as «indagações dos profetas» e o «desejo» dos
anjos (88): «Aquele sobre Quem vires o Espírito Santo descer e permanecer, é Ele que baptiza
no Espírito Santo. Ora, eu vi e dou testemunho de que Ele é o Filho de Deus [...] Eis o
Cordeiro de Deus!» (Jo 1, 33-36).

720. Finalmente, com João Baptista, o Espírito Santo inaugura, em prefiguração, aquilo que
vai realizar com e em Cristo: restituir ao homem «a semelhança» divina. O baptismo de João
era para o arrependimento: o Baptismo na água e no Espírito será um novo nascimento (89).

«ALEGRA-TE, Ó CHEIA DE GRAÇA»

721. Maria, a santíssima Mãe de Deus, sempre virgem, é a obra-prima da missão do Filho e do
Espírito na plenitude do tempo. Pela primeira vez no desígnio da salvação e porque o seu
Espírito a preparou, o Pai encontra a morada na qual o seu Filho e o seu Espírito podem hab-
itar entre os homens. É neste sentido que a Tradição da Igreja muitas vezes lê, em relação a
Maria, os mais belos textos sobre a Sabedoria (90): Maria é cantada e apresentada na Liturgia
como «o Trono da Sabedoria». Nela começam a manifestar-se as «maravilhas de Deus», que o
Espírito vai realizar em Cristo e na Igreja:
722. O Espírito Santo preparou Maria pela sua graça. Convinha que fosse «cheia de graça» a
Mãe d'Aquele em Quem «habita corporalmente a plenitude da divindade» (Cl 2, 9). Ela foi,
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por pura graça, concebida sem pecado, como a mais humilde das criaturas, a mais capaz de
acolher o dom inefável do Omnipotente. É a justo título que o anjo Gabriel a saúda como
«Filha de Sião»: «Ave» (= «Alegra-te») (91). É a acção de graças de todo o povo de Deus, e
portanto da Igreja, que ela faz subir até ao Pai, no Espírito Santo, com o seu cântico (92) ,
quando já portadora, em si, do Filho eterno.
723. Em Maria, o Espírito Santo realiza o desígnio benevolente do Pai. É pelo Espírito Santo
que a Virgem concebe e dá à luz o Filho de Deus. A sua virgindade torna-se fecundidade única,
pelo poder do Espírito e da fé (93).
724. Em Maria, o Espírito Santo manifesta o Filho do Pai feito Filho da Virgem. Ela é a sarça
ardente da teofania definitiva: cheia do Espírito Santo, mostra o Verbo na humildade da sua
carne; e é aos pobres (94) e às primícias das nações (95) que Ela O dá a conhecer.
725. Finalmente, por Maria, o Espírito começa a pôr em comunhão com Cristo os homens
que são «objecto do amor benevolente de Deus» (96); e os humildes são sempre os primeiros
a recebé-Lo: os pastores, os magos, Simeão e Ana, os esposos de Caná e os primeiros
discípulos.
726. No termo desta missão do Espírito, Maria torna-se a «Mulher», a nova Eva «mãe dos
vivos», Mãe do «Cristo total» (97). É como tal que Ela está presente com os Doze, «num só
coração, assíduos na oração» (Act 1, 14), no alvorecer dos «últimos tempos», que o Espírito
vai inaugurar na manhã do Pentecostes, com a manifestação da Igreja.

JESUS CRISTO

727. Toda a missão do Filho e do Espírito Santo, na plenitude do tempo, está contida no facto
de o Filho ser o ungido do Espírito do Pai, desde a sua Encarnação: Jesus é o Cristo, o
Messias.
Todo o segundo capítulo do Símbolo da Fé deve ser lido a esta luz. Toda a obra de Cristo é
missão conjunta do Filho e do Espírito Santo. Aqui mencionaremos somente o que se refere à
promessa do Espírito Santo feita por Jesus, e à sua doação pelo Senhor glorificado.
728. Jesus não revela plenamente o Espírito Santo enquanto Ele próprio não for glorificado
pela sua morte e ressurreição. No entanto, sugere-O pouco a pouco, mesmo no seu ensino às
multidões, quando revela que a sua carne será alimento para a vida do mundo (89). Insinua-O
também a Nicodemos (99) , à samaritana (100) e aos que tomam parte na festa dos
Tabernáculos (101). Aos seus discípulos, fala d'Ele abertamente a propósito da oração (102) e
do testemunho que devem dar (103).
729. Só quando chega a Hora em que vai ser glorificado, é que Jesus promete a vinda do
Espírito Santo, pois a sua morte e ressurreição serão o cumprimento da promessa feita aos
antepassados (104). O Espírito da verdade, o outro Paráclito, será dado pelo Pai a pedido de
Jesus; será enviado pelo Pai em nome de Jesus; Jesus O enviará de junto do Pai, porque do
Pai procede. O Espírito Santo virá, nós O conheceremos, Ele ficará connosco para sempre,
habitará connosco; há-de ensinar-nos tudo, há-de lembrar-nos tudo o que Cristo nos disse e
dará testemunho d'Ele; conduzir-nos-á à verdade total e glorificará a Cristo. Quanto ao
mundo, confundi-lo-á em matéria de pecado, de justiça e de julgamento.
730. Chega, por fim, a «Hora de Jesus» (105) : Jesus entrega o seu espírito nas mãos do Pai
(106) , no momento em que pela sua morte vence a morte, de tal modo que, «ressuscitado dos
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mortos pela glória do Pai» (Rm 6, 4), logo dá o Espírito Santo «soprando» sobre os discípulos
(107). A partir dessa «Hora», a missão de Cristo e do Espírito torna-se a missão da Igreja:
«Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós» (Jo 20, 21) (108).

V. O Espírito e a Igreja nos últimos tempos

O PENTECOSTES

731. No dia de Pentecostes (no termo das sete semanas pascais), a Páscoa de Cristo
completou-se com a efusão do Espírito Santo que Se manifestou, Se deu e Se comunicou como
Pessoa divina: da sua plenitude, Cristo Senhor derrama em profusão o Espírito (109).
732. Neste dia, revelou-Se plenamente a Santíssima Trindade. A partir deste dia, o Reino
anunciado por Cristo abre-se aos que n'Ele crêem. Na humildade da carne e na fé, eles parti-
cipam já na comunhão da Santíssima Trindade. Pela sua vinda, que não cessará jamais, o
Espírito Santo faz entrar no mundo nos «últimos tempos», no tempo da Igreja, no Reino já
herdado mas ainda não consumado:
«Nós vimos a verdadeira Luz, recebemos o Espírito celeste, encontrámos a verdadeira fé: ad-
oramos a Trindade indivisível, porque foi Ela que nos salvou» (110).

O ESPÍRITO SANTO – DOM DE DEUS

733. «Deus é Amor» (1 Jo 4, 8.16) e o Amor é o primeiro dom, que contém todos os outros.
Este amor «derramou-o Deus nos nossos corações, pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Rm
5, 5).
734. Uma vez que estamos mortos, ou pelo menos feridos pelo pecado, o primeiro efeito do
dom do Amor é a remissão dos nossos pecados. E é a comunhão do Espírito Santo (2 Cor 13,
13) que, na Igreja, restitui aos baptizados a semelhança divina perdida pelo pecado.
735. Ele dá-nos então as «arras» ou as «primícias» da nossa herança (111): a própria vida da
Santíssima Trindade, que consiste em amar «como Ele nos amou» (112). Este amor (a carid-
ade de que se fala em 1 Cor 13) é o princípio da vida nova em Cristo, tornada possível graças
ao facto de termos «recebido uma força vinda do alto, a do Espírito Santo»(Act 1, 8).
736. É graças a esta força do Espírito que os filhos de Deus podem dar fruto. Aquele que nos
enxertou na verdadeira Vide far-nos-á dar «os frutos do Espírito: caridade, alegria, paz, pa-
ciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio» (Gl 5, 22-23). «O
Espírito é a nossa vida»: quanto mais renunciarmos a nós próprios (113), mais «caminhare-
mos segundo o Espírito» (114):
«Pela comunhão com Ele, o Espírito Santo torna-nos espirituais, recoloca-nos no paraíso,
reconduz-nos ao Reino dos céus e à adopção filial, dá-nos a confiança de chamar Pai a Deus e
de participar na graça de Cristo, de ser chamados filhos da luz e de tomar parte na glória
eterna» (115).

O ESPÍRITO SANTO E A IGREJA


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737. A missão de Cristo e do Espírito Santo completa-se na Igreja, corpo de Cristo e templo do
Espírito Santo. Esta missão conjunta associa, doravante, os fiéis de Cristo à sua comunhão
com o Pai no Espírito Santo: o Espírito prepara os homens e adianta-se-lhes com a sua graça
para os atrair a Cristo. Manifesta-lhes o Senhor ressuscitado, lembra-lhes a sua Palavra e ab-
re- lhes o espírito à inteligência da sua morte e da sua ressurreição. Torna-lhes presente o
mistério de Cristo, principalmente na Eucaristia, com o fim de os reconciliar, de os pôr em
comunhão com Deus, para os fazer dar «muito fruto» (116).
738. Assim, a missão da Igreja não se acrescenta à de Cristo e do Espírito Santo, mas é o sac-
ramento dela: por todo o seu ser e em todos os seus membros, é enviada para anunciar e
testemunhar, actualizar e derramar o mistério da comunhão da Santíssima Trindade (será
este o objecto do próximo artigo):
«Nós todos, que recebemos o único e mesmo Espírito, quer dizer, o Espírito Santo, fundimo-
nos entre nós e com Deus. Porque, embora sejamos numerosos separadamente, e Cristo faça
com que o Espírito do Pai e seu habite em cada um de nós, este Espírito único e indivisível re-
conduz pessoalmente à unidade os que são distintos entre si [...] e faz com que todos
apareçam n'Ele como sendo um só. E assim como o poder da santa humanidade de Cristo faz
com que todos aqueles em quem ela se encontra formem um só corpo, penso que, do mesmo
modo, o Espírito de Deus, que habita em todos, único e indivisível, os leva todos à unidade es-
piritual» (117).
739. Uma vez que o Espírito Santo é a unção de Cristo, é Cristo, a Cabeça do corpo, quem O
derrama nos seus membros para os alimentar, os curar, os organizar nas suas mútuas funções,
os vivificar, os enviar a dar testemunho, os associar à sua oferta ao Pai e à sua intercessão pelo
mundo inteiro. É pelos sacramentos da Igreja que Cristo comunica aos membros do seu corpo
o seu Espírito Santo e santificador (será este o objecto da segunda parte do Catecismo).
740. Estas «maravilhas de Deus», oferecidas aos crentes nos sacramentos da Igreja, dão os
seus frutos na vida nova em Cristo, segundo o Espírito (será este o objecto da terceira parte do
Catecismo).
741. «Também o Espírito Santo vem em auxílio da nossa fraqueza, porque não sabemos o que
pedir nas nossas orações; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis»
(Rm 8, 26). O Espírito Santo, artífice das obras de Deus, é o Mestre da oração (será este o ob-
jecto da quarta parte do Catecismo).

Resumindo

742. «E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que
clama: "Abbá!" Pai!» (Gl 4, 6).
743. Desde o princípio até à consumação do tempo, quando Deus envia o seu Filho, envia
sempre o seu Espírito: a missão dos dois é conjunta e inseparável.
744. Na plenitude dos tempos, o Espírito Santo realiza em Maria todas as preparações para
a vinda de Cristo ao povo de Deus. Pela acção do Espírito Santo n 'Ela, o Pai dá ao mundo o
Emanuel, «Deus connosco» (Mt 1, 23).
745. O Filho de Deus é consagrado Cristo (Messias) pela unção do Espírito Santo, na sua
Encarnação (118).
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746. Pela sua morte e ressurreição, Jesus foi constituído Senhor e Cristo na glória (119). Da
sua plenitude, Ele derrama o Espírito Santo sobre os Apóstolos e sobre a Igreja.
747. O Espírito Santo, que Cristo-cabeça derrama sobre os seus membros, constrói, anima e
santifica a Igreja. Ela é o sacramento da comunhão da Santíssima Trindade com os homens.

ARTIGO 9

«CREIO NA SANTA IGREJA CATÓLICA»

748. «A luz dos povos é Cristo: por isso, este sagrado Concílio, reunido no Espírito Santo,
deseja ardentemente iluminar todos os homens com a sua luz que resplandece no rosto da
Igreja, anunciando o Evangelho a toda a criatura» (120). É com estas palavras que começa a
«Constituição Dogmática sobre a Igreja» do II Concilio do Vaticano. Desse modo, o Concílio
mostra que o artigo de fé sobre a Igreja depende inteiramente dos artigos relativos a Jesus
Cristo. A Igreja não tem outra luz senão a de Cristo. Ela é, segundo uma imagem cara aos
Padres da Igreja, comparável à lua, cuja luz é toda reflexo da do sol.
749. O artigo sobre a Igreja depende também inteiramente do artigo sobre o Espírito Santo,
que o precede. «Com efeito, depois de ter mostrado que o Espírito Santo é a fonte e o dador de
toda a santidade, nós confessamos agora que foi Ele quem dotou de santidade a Igreja» (121).
A Igreja é, segundo a expressão dos Padres, o lugar «onde floresce o Espírito» (122).
750. Crer que a Igreja é «santa» e «católica», e que é «una» e «apostólica» (como acrescenta
o Símbolo Niceno-Constantinopolitano), é inseparável da fé em Deus Pai, Filho e Espírito
Santo. No Símbolo dos Apóstolos fazemos profissão de crer a Igreja santa («Credo... Eccle-
siam»), e não na Igreja, para não confundir Deus com as suas obras e para atribuir clara-
mente à bondade de Deus todos os dons que Ele próprio pôs na sua Igreja (123).

PARÁGRAFO 1

A IGREJA NO DESÍGNIO DE DEUS

I. Os nomes e as imagens da Igreja

751. A palavra «Igreja» («ekklesía», do verbo grego «ek-kalein» = «chamar fora») significa
«convocação». Designa as assembleias do povo em geral de carácter religioso. É o termo fre-
quentemente utilizado no Antigo Testamento grego para a assembleia do povo eleito diante de
Deus, sobretudo para a assembleia do Sinai, onde Israel recebeu a Lei e foi constituído por
Deus como seu povo santo (125). Ao chamar-se «Igreja», a primeira comunidade dos que
acreditaram em Cristo reconhece-se herdeira dessa assembleia. Nela, Deus «convoca» o seu
povo de todos os confins da terra. O termo « Kyriakê», de onde derivaram «church»,
«Kirche», significa «aquela que pertence ao Senhor».
752. Na linguagem cristã, a palavra «Igreja» designa a assembleia litúrgica (126), mas tam-
bém a comunidade local (127) ou toda a comunidade universal dos crentes (128). Estes três
significados são, de facto, inseparáveis. «A Igreja» é o povo que Deus reúne no mundo inteiro.
Ela existe nas comunidades locais e realiza-se como assembleia litúrgica, sobretudo
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eucarística. Vive da Palavra e do Corpo de Cristo, e é assim que ela própria se torna Corpo de
Cristo.

OS SÍMBOLOS DA IGREJA

753. Na Sagrada Escritura, encontramos grande quantidade de imagens e figuras ligadas


entre si, mediante as quais a Revelação fala do mistério inesgotável da Igreja. As imagens
tomadas do Antigo Testamento constituem variantes duma ideia de fundo, que é a de «povo
de Deus». No Novo Testamento (129), todas estas imagens encontram um novo centro, pelo
facto de Cristo Se tomar «a Cabeça» deste povo (130) que é, desde então, o seu corpo. A volta
deste centro, agrupam-se imagens «tiradas quer da vida pastoril ou agrícola, quer da con-
strução ou também da família e matrimónio» (131).
754. «Assim a Igreja é o redil, cuja única e necessária porta é Cristo (132). E também o re-
banho, do qual o próprio Deus predisse que seria o pastor (133) e cujas ovelhas, ainda que
governadas por pastores humanos, são contudo guiadas e alimentadas sem cessar pelo
próprio Cristo, bom Pastor e Príncipe dos pastores (134), o qual deu a vida pelas suas ovelhas
(135)» (136) .
755 «A Igreja é a agricultura ou o campo de Deus (137). Nesse campo cresce a oliveira antiga,
de que os patriarcas foram a raiz santa e na qual se realizou e realizará a reconciliação de
judeus e gentios (138). Ela foi plantada pelo celeste Agricultor como uma vinha eleita (139). A
verdadeira Videira é Cristo: é Ele que dá vida e fecundidade aos sarmentos, isto é, a nós que,
pela Igreja, permanecemos n'Ele, e sem o Qual nada podemos fazer (140)» (141).
756. «A Igreja é também muitas vezes chamada construção de Deus (142). O próprio Senhor
se comparou à pedra que os construtores rejeitaram e que se tornou pedra angular (Mt 21, 42
par.: Act 4, 11; 1 Pe 2, 7; Sl 118, 22). Sobre esse fundamento é a Igreja construída pelos Apósto-
los (143), e dele recebe firmeza e coesão. Esta construção recebe vários nomes: casa de Deus
(144), na qual habita a sua família; habitação de Deus no Espírito (145); tabernáculo de Deus
com os homens (146); e, sobretudo, templo santo, o qual, representado pelos santuários de
pedra e louvado pelos santos Padres, é com razão comparado, na Liturgia, à cidade santa, a
nova Jerusalém. Nela, com efeito, somos edificados cá na terra como pedras vivas (147). Esta
cidade, S. João contemplou-a "descendo do céu, da presença de Deus, na renovação do
mundo, como esposa adornada para ir ao encontro do esposo" (Ap 21, 1-2)» (148).
757. «A Igreja é também chamada "Jerusalém do Alto" e "nossa mãe" (Gl 4, 26) (149); é tam-
bém descrita como a Esposa imaculada do Cordeiro sem mancha (150), a qual Cristo "amou,
pela qual Se entregou para a santificar" (Ef 5, 25-26), que uniu a Si por um vínculo indis-
solúvel, e à qual, sem cessar, "alimenta e presta cuidados" (Ef 5, 29)» (151).

II. Origem, fundação e missão da Igreja

758. Para perscrutar o mistério da Igreja, é conveniente meditar primeiro sobre a sua origem
no desígnio da Santíssima Trindade e sobre a sua progressiva realização na história.

UM DESÍGNIO NASCIDO NO CORAÇÃO DO PAI


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759. «O eterno Pai, que pelo libérrimo e insondável desígnio da sua sabedoria e bondade, cri-
ou o universo, decidiu elevar os homens participação da vida divina», para a qual a todos con-
vida em seu Filho: «E, aos que crêem em Cristo, decidiu convocá-los na santa Igreja». Esta
«família de Deus» constituiu-se e realizou-se gradualmente ao longo das etapas da história
humana, segundo as disposições do Pai: de facto, a Igreja «prefigurada já desde o princípio do
mundo e admiravelmente preparada na história do povo de Israel e na antiga Aliança, foi con-
stituída no fim dos tempos, e manifestada pela efusão do Espírito Santo, e será gloriosamente
consumada no fim dos séculos» (152).

A IGREJA – PREFIGURADA DESDE A ORIGEM DO MUNDO

760. «O mundo foi criado em ordem à Igreja», diziam os cristãos dos primeiros tempos (153).
Deus criou o mundo em ordem à comunhão na sua vida divina, comunhão que se realiza pela
"convocação" dos homens em Cristo, e esta "convocação" é a Igreja. A Igreja é o fim de todas
as coisas (154). Até as próprias vicissitudes dolorosas, como a queda dos anjos e o pecado do
homem, não foram permitidas por Deus senão como ocasião e meio de pôr em acção toda a
força do seu braço, toda a medida do amor que queria dar ao mundo:
«Assim como a vontade de Deus é um acto e se chama mundo, do mesmo modo a sua in-
tenção é a salvação dos homens e chama-se Igreja» (155).

A IGREJA – PREPARADA NA ANTIGA ALIANÇA

761. A reunião do povo de Deus começa no instante em que o pecado destrói a comunhão dos
homens com Deus e entre si. A reunião da Igreja é, por assim dizer, a reacção de Deus ao caos
provocado pelo pecado. Esta reunificação realiza-se secretamente no seio de todos os povos:
«Em qualquer nação, quem O teme e pratica a justiça, é aceite por Ele» (Act 10, 35) (156).
762. A preparação remota da reunião do povo de Deus começa com a vocação de Abraão, a
quem Deus promete que há-de vir a ser o pai de um grande povo (157). A preparação imediata
começa com a eleição de Israel como povo de Deus (158). Pela sua eleição, Israel deve ser o
sinal da reunião futura de todas as nações (159). Mas já os profetas acusam Israel de ter
quebrado a aliança, comportando-se como uma prostituta (160). Eles anunciam uma Aliança
nova e eterna (161). «Esta Aliança nova, instituiu-a Cristo» (162).

A IGREJA – INSTITUÍDA POR JESUS CRISTO

763. Pertence ao Filho realizar, na plenitude dos tempos, o plano de salvação do seu Pai; tal é
o motivo da sua «missão» (163). «O Senhor Jesus deu início à sua Igreja, pregando a boa-
nova do advento do Reino de Deus prometido desde há séculos nas Escrituras» (164). Para
cumprir a vontade do Pai, Cristo inaugurou na terra o Reino dos céus. A Igreja «é o Reino de
Cristo já presente em mistério» (165).
764. «Este Reino manifesta-se aos homens na palavra, nas obras e na presença de Cristo»
(166), Acolher a palavra de Jesus é «acolher o próprio Reino» (167). O germe e começo do
Reino é o «pequeno rebanho» (Lc 12, 32) daqueles que Jesus veio congregar ao seu redor e
dos quais Ele próprio é o Pastor (168). Eles constituem a verdadeira família de Jesus (169).
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Aqueles que assim juntou em redor de si, ensinou uma nova «maneira de agir», mas também
uma oração própria (170).
765. O Senhor Jesus dotou a sua comunidade duma estrutura que permanecerá até ao pleno
acabamento do Reino. Temos, antes de mais, a escolha dos Doze, com Pedro como chefe (171).
Representando as doze tribos de Israel (172), são as pedras do alicerce da nova Jerusalém
(173). Os Doze (174) e os outros discípulos (175) participam da missão de Cristo, do seu poder,
mas também da sua sorte (176). Com todos estes actos, Cristo prepara e constrói a sua Igreja.
766. Mas a Igreja nasceu principalmente do dom total de Cristo pela nossa salvação, ante-
cipado na instituição da Eucaristia e realizado na cruz. «Tal começo e crescimento da Igreja
exprimem-nos o sangue e a água que manaram do lado aberto de Jesus crucificado» (177).
Porque «foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda
a Igreja» (178). Assim como Eva foi formada do costado de Adão adormecido, assim a Igreja
nasceu do coração trespassado de Cristo, morto na cruz (179).

A IGREJA – MANIFESTADA PELO ESPÍRITO SANTO

767. «Consumada a obra que o Pai confiou ao Filho para cumprir na terra, no dia de Pente-
costes foi enviado o Espírito Santo para que santificasse continuamente a Igreja» (180). Foi
então que «a Igreja foi publicamente manifestada diante duma grande multidão» e «teve o
seu início a difusão do Evangelho entre os gentios, por meio da pregação» (181). Porque é
«convocação» de todos os homens à salvação, a Igreja é, por sua própria natureza, mis-
sionária, enviada por Cristo a todas as nações, para de todas fazer discípulos (182).
768. Para que a Igreja possa realizar a sua missão, o Espírito Santo «enriquece-a e guia-a com
diversos dons hierárquicos e carismáticos» (183). Pelo que a Igreja, enriquecida com os dons
do seu fundador e guardando fielmente os seus preceitos de caridade, de humildade e de ab-
negação, recebe a missão de anunciar e instaurar o Reino de Cristo e de Deus em todos os pov-
os, e constitui o germe e o princípio deste mesmo Reino na terra» (184).

A IGREJA – CONSUMADA NA GLÓRIA

769. «A Igreja [...] só na glória celeste alcançará a sua realização acabada» (185), aquando do
regresso glorioso de Cristo. Até esse dia, «a Igreja avança na sua peregrinação por entre as
perseguições do mundo e das consolações de Deus» (186). Vivendo na terra, ela tem consciên-
cia de viver no exílio, longe do Senhor (187) e suspira pelo advento do Reino em plenitude,
pela hora em que «espera e deseja juntar-se ao seu Rei na glória» (188). A consumação da
Igreja – e através dela, do mundo – na glória, não se fará sem grandes provações. Só então é
que «todos os justos, desde Adão, "desde o justo Abel até ao último eleito", se encontrarão re-
unidos na Igreja
universal junto do Pai» (189).

III. O mistério da Igreja


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770. A Igreja está na história, mas, ao mesmo tempo, transcende-a. Só «com os olhos da fé»
(190) é que se pode ver na sua realidade visível, ao mesmo tempo, uma realidade espiritual,
portadora de vida divina.

A IGREJA – AO MESMO TEMPO VISÍVEL E ESPIRITUAL

771. «Cristo, mediador único, constitui e continuamente sustenta sobre a terra, como um todo
visível, a sua Igreja santa, comunidade de fé, esperança e amor, por meio da qual difunde em
todos a verdade e a graça». A Igreja é, simultaneamente:
– «sociedade dotada de órgãos hierárquicos e corpo místico de Cristo»; – «agrupamento
visível e comunidade espiritual»; – «Igreja terrestre e Igreja ornada com os bens celestes».
Estas dimensões constituem, em conjunto, «uma única realidade complexa, formada pelo du-
plo elemento humano e divino» (191).
É próprio da Igreja ser «simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos in-
visíveis, empenhada na acção e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, pereg-
rina; mas de tal forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o
visível ao invisível, a acção à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos» (192).
«Humildade! Sublimidade! Tenda de Cedar e santuário de Deus; habitação terrena e palácio
celeste; casa de barro e corte real; corpo mortal e templo de luz; enfim, objecto de desprezo
para os orgulhosos e esposa de Cristo! Ela é morena mas bela, ó filhas de Jerusalém; ela que,
empalidecida pela fadiga e sofrimento dum longo exílio, tem, no entanto, por ornamento a
beleza celeste» (193).

A IGREJA – MISTÉRIO DA UNIÃO DOS HOMENS COM DEUS

772. É na Igreja que Cristo realiza e revela o seu próprio mistério, como a meta do desígnio de
Deus: «recapitular tudo n'Ele» (Ef 1, 10). São Paulo chama «grande mistério» (Ef 5, 32) à
união esponsal de Cristo e da Igreja. Porque está unida a Cristo como a seu esposo (194), a
própria Igreja, por seu turno, se torna mistério (195). E é contemplando nela este mistério,
que S. Paulo exclama: «Cristo em vós — eis a esperança da glória!» (Cl 1, 27).
773. Na Igreja, esta comunhão dos homens com Deus pela «caridade, que não passa jamais»
(1 Cor 13, 8), é o fim que comanda tudo quanto nela é meio sacramental, ligado a este mundo
que passa (196). «A sua estrutura está completamente ordenada à santidade dos membros de
Cristo. E a santidade aprecia-se em função do "grande mistério", em que a esposa responde
com a dádiva do seu amor ao dom do Esposo» (197). Nesta santidade que é o mistério da
Igreja, Maria precede-nos todos como «a Esposa sem mancha nem ruga» (198). E é por isso
que «a dimensão mariana da Igreja precede a sua dimensão petrina» (199).

A IGREJA – SACRAMENTO UNIVERSAL DA SALVAÇÃO

774. A palavra grega mysterion foi traduzida em latim por dois termos: mysterium e sacra-
mentum. Na segunda interpretação, o termo sacramentum exprime prevalentemente o sinal
visível da realidade oculta da salvação, indicada pelo termo mysterium. Neste sentido, o
próprio Cristo é o mistério da salvação: «Nem há outro mistério senão Cristo (200). A obra
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salvífica da sua humanidade santa e santificadora é o sacramento da salvação, que se mani-


festa e actua nos sacramentos da Igreja (que as Igrejas do Oriente chamam também «os san-
tos mistérios»). Os sete sacramentos são os sinais e os instrumentos pelos quais o Espírito
Santo derrama a graça de Cristo, que é a Cabeça, na Igreja que é o seu Corpo. A Igreja possui,
pois, e comunica a graça invisível que significa: e é neste sentido analógico que é chamada
«sacramento».
775 «A Igreja em Cristo é como que o sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com
Deus e da unidade de todo o género humano» (201). Ser sacramento da união íntima do
homem com Deus, eis a primeira finalidade da Igreja. E porque a comunhão dos homens entre
si radica na união com Deus, a Igreja é, também, o sacramento da unidade do género hu-
mano. Nela, esta unidade já começou, pois reúne homens «de toda a nação, raça, povo e lín-
gua» (Ap 7, 9). A Igreja é, ao mesmo tempo, «sinal e instrumento» da plena realização desta
unidade, que ainda há-de vir.
776. Como sacramento, a Igreja é instrumento de Cristo. «É assumida por Ele como instru-
mento da redenção universal»(202), «o sacramento universal da salvação»(203), pelo qual o
mesmo Cristo «manifesta e simultaneamente actualiza o mistério do amor de Deus pelos ho-
mens»(204). É o «projecto visível do amor de Deus para com a humanidade»(205), segundo o
qual Deus quer «que todo o género humano forme um só povo de Deus, se una num só Corpo
de Cristo e se edifique num só templo do Espírito Santo»(206).

Resumindo:

777. A palavra «Igreja» significa «convocação». Designa a assembleia daqueles que a Pa-
lavra de Deus convoca para formar o seu povo, e que, alimentados pelo Corpo de Cristo, se
tornam, eles próprios, Corpo de Cristo.
778. A Igreja é, ao mesmo tempo, caminho e meta do desígnio de Deus: prefigurada na cri-
ação, preparada na antiga Aliança, fundada pelas palavras e actos de Jesus Cristo, realiz-
ada pela sua Cruz redentora e pela sua ressurreição, manifesta-se como mistério de sal-
vação pela efusão do Espírito Santo. Será consumada na glória do céu como assembleia de
todos os resgatados da terra (207).
779. A Igreja é, ao mesmo tempo, visível e espiritual, sociedade hierárquica e Corpo Místico
de Cristo. É una, mas formada por um duplo elemento: humano e divino. Aí reside o seu
mistério, que só a fé pode acolher.
780. A Igreja é, neste mundo, o sacramento da salvação, o sinal e o instrumento da comun-
hão de Deus e dos homens.

PARÁGRAFO 2

A IGREJA – POVO DE DEUS, CORPO DE CRISTO, TEMPLO DO ESPÍRITO


SANTO

I. A Igreja – Povo de Deus


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781. «Em todos os tempos e em todas as nações foi agradável a Deus aquele que O teme e
pratica a justiça. No entanto, aprouve a Deus salvar e santificar os homens não individual-
mente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse
na verdade e O servisse na santidade. Foi por isso que escolheu Israel para ser o seu povo, es-
tabeleceu com ele uma aliança e instruiu-o progressivamente manifestando-se a Si mesmo e
os desígnios da Sua vontade na história desse povo, e santificando-o para Si. Mas tudo isso
aconteceu como preparação da Aliança nova e perfeita, que seria concluída em Cristo [...].
Esta nova Aliança instituiu-a Cristo no seu Sangue, chamando um povo, proveniente de
judeus e pagãos, a juntar-se na unidade, não segundo a carne, mas no Espírito»(208).

AS CARACTERÍSTICAS DO POVO DE DEUS

782. O povo de Deus possui características que o distinguem nitidamente de todos os agrupa-
mentos religiosos, étnicos, políticos ou culturais da história:
– é o povo de Deus: Deus não é propriedade de nenhum povo; mas adquiriu para Si um povo
constituído por aqueles que outrora não eram um povo: «raça eleita, sacerdócio real, nação
santa» (1 Pe 2, 9);
– vem-se a ser membro deste povo, não pelo nascimento físico, mas pelo «nascimento do
Alto», «da água e do Espírito» (Jo 3, 3-5), isto é, pela fé em Cristo e pelo Baptismo;
– este povo tem por Cabeça Jesus Cristo (o Ungido, o Messias): porque a mesma unção, o
Espírito Santo, flui da Cabeça por todo o Corpo, este é o «povo messiânico»;
– «a condição deste povo é a dignidade da liberdade dos filhos de Deus: nos seus corações,
como num templo, reside o Espírito Santo» (209);
– «a sua lei é o mandamento novo, de amar como o próprio Cristo nos amou (210)»; é a lei
«nova» do Espírito Santo (211);
– a sua missão é ser o sal da terra e a luz do mundo (212). «Constitui para todo o género hu-
mano o mais forte gérmen de unidade, esperança e salvação» (213);
– o seu destino, finalmente, é «o Reino de Deus, o qual, começado na terra pelo próprio Deus,
se deve dilatar cada vez mais, até ser também por Ele consumado no fim dos séculos» (214).

UM POVO SACERDOTAL, PROFÉTICO E REAL

783. Jesus Cristo é Aquele que o Pai ungiu com o Espírito Santo e constituiu «sacerdote, pro-
feta e rei». Todo o povo de Deus participa destas três funções de Cristo, com as responsabilid-
ades de missão e de serviço que delas resultam (215).
784. Ao entrar no povo de Deus pela fé e pelo Baptismo, participa-se na vocação única deste
povo: na sua vocação sacerdotal – «Cristo Senhor, sumo-sacerdote escolhido de entre os ho-
mens, fez do povo novo «um reino de sacerdotes para o seu Deus e Pai». Na verdade, pela re-
generação e pela unção do Espírito Santo, os baptizados são consagrados para serem uma
casa espiritual, um sacerdócio santo (216).
785. «O povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo», sobretudo pelo
sentido sobrenatural da fé, que é o de todo o povo, leigos e hierarquia, quando «adere inde-
fectivelmente à fé transmitida aos santos de uma vez por todas» (217),aprofunda o conheci-
mento da mesma, e se torna testemunha de Cristo no meio deste mundo.
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786. Finalmente, o povo de Deus participa na função real de Cristo. Cristo exerce a sua
realeza atraindo a Si todos os homens pela sua morte e ressurreição (218). Cristo, Rei e Sen-
hor do universo, fez-Se o servo de todos, pois «não veio para ser servido, mas para servir e dar
a vida como resgate pela multidão» (Mt 20, 28). Para o cristão, «reinar é servi-Lo» (219), em
especial «nos pobres e nos que sofrem, nos quais a Igreja reconhece a imagem do seu
Fundador pobre e sofredor (220). O povo de Deus realiza a sua «dignidade real» na medida
em que viver de acordo com esta vocação de servir com Cristo.
«De todos os regenerados em Cristo, o sinal da cruz faz reis, a unção do Espírito Santo con-
sagra sacerdotes, para que, independentemente do serviço particular do nosso ministério, to-
dos os cristãos espirituais no uso da razão se reconheçam membros desta estirpe real e parti-
cipantes da função sacerdotal. De facto, que há de tão real para uma alma como governar o
seu corpo na submissão a Deus? E que há de tão sacerdotal como oferecer ao Senhor uma con-
sciência pura, imolando no altar do seu coração as vítimas sem mancha da piedade?» (221).

II. A Igreja – Corpo de Cristo

A IGREJA É COMUNHÃO COM JESUS

787. Desde o princípio, Jesus associou os discípulos à sua vida (222). Revelou-lhes o mistério
do Reino (223): deu-lhes parte na sua missão, na sua alegria (224) e nos seus sofrimentos
(225). Jesus fala duma comunhão ainda mais íntima entre Ele e os que O seguem: «Permane-
cei em Mim, como Eu em vós [...]. Eu sou a cepa, vós os ramos» (Jo 15, 4-5). E anuncia uma
comunhão misteriosa e real entre o seu próprio Corpo e o nosso: «Quem come a minha Carne
e bebe o meu Sangue permanece em Mim e Eu nele» (Jo 6, 56).
788. Quando a sua presença visível lhes foi tirada, Jesus não deixou órfãos os discípulos
(226). Prometeu-lhes ficar com eles até ao fim dos tempos (227), e enviou-lhes o seu Espírito
(228). A comunhão com Jesus tornou-se, de certo modo, mais intensa: «Comunicando o seu
Espírito aos seus irmãos, por Ele reunidos de todas as nações, constituiu-os seu Corpo
Místico» (229).
789. A comparação da Igreja com um corpo lança uma luz particular sobre a ligação íntima
existente entre a Igreja e Cristo. Ela não está somente reunida à volta d'Ele: está unificada
n'Ele, no seu Corpo. Na Igreja, Corpo de Cristo, são de salientar mais especificamente três as-
pectos: a unidade de todos os membros entre si, pela união a Cristo; Cristo, Cabeça do Corpo;
a Igreja, Esposa de Cristo.

«UM SÓ CORPO»

790. Os crentes que respondem à Palavra de Deus e se tornam membros do Corpo de Cristo,
ficam estreitamente unidos a Cristo: «Neste Corpo, a vida de Cristo difunde-se nos crentes,
unidos pelos sacramentos, dum modo misterioso e real, a Cristo sofredor e glorificado» (230),
Isto verifica-se particularmente no Baptismo, que nos une à morte e ressurreição de Cristo
(231), e na Eucaristia, pela qual, «participando realmente no Corpo de Cristo», somos eleva-
dos à comunhão com Ele e entre nós (232).
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791. Mas a unidade do Corpo não anula a diversidade dos membros: «Na edificação do Corpo
de Cristo existe diversidade de membros e funções. É o mesmo Espírito que distribui os seus
vários dons, segundo a sua riqueza e as necessidades dos ministérios para utilidade da Igreja»
(233). A unidade do Corpo Místico produz e estimula a caridade entre os fiéis: «Daí que, se al-
gum membro padece, todos os membros sofrem juntamente; e se algum membro recebe hon-
ras, todos se alegram» (234). Em suma, a unidade do Corpo Místico triunfa sobre todas as di-
visões humanas: «Todos vós que fostes baptizados em Cristo, fostes revestidos de Cristo. Não
há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; porque todos vós
sois um só, em Cristo Jesus» (Gl 3, 27-28).

«A CABEÇA DESTE CORPO É CRISTO»

792. Cristo «é a Cabeça do Corpo que é a Igreja» (Cl 1, 18). Ele é o Princípio da criação e da
Redenção. Elevado à glória do Pai, «tem em tudo a primazia» (Cl 1, 18), principalmente sobre
a Igreja, por meio da qual estende o seu reinado sobre tudo quanto existe.
793. Une-nos à sua Páscoa: todos os membros se devem esforçar por se parecerem com Ele,
«até que Cristo Se forme neles» (Gl 4, 19). «É para isso que nós somos introduzidos nos mis-
térios da sua vida [...], associados aos seus sofrimentos como o corpo à cabeça, unidos à sua
paixão para ser unidos à sua glória» (235).
794. Provê ao nosso crescimento (236): a fim de crescermos em tudo para Aquele que é a
Cabeça (237), Cristo distribui no seu Corpo, a Igreja, os dons e os serviços pelos quais mutua-
mente nos ajudamos no caminho da salvação.
795. Cristo e a Igreja são, pois, o «Cristo total» (Christus totus). A Igreja é una com Cristo. Os
santos têm desta unidade uma consciência muito viva:
«Congratulemo-nos, pois, e dêmos graças pelo facto de nos termos tornado não apenas
cristãos, mas o próprio Cristo. Estais a compreender, irmãos, a graça que Deus nos fez, dando-
nos Cristo por Cabeça? Admirai e alegrai-vos: nós tornámo-nos Cristo. Com efeito, uma vez
que Ele é a Cabeça e nós os membros, o homem completo é Ele e nós [...]. A plenitude de
Cristo é, portanto, a Cabeça e os membros. Que quer dizer: a Cabeça e os membros? Cristo e a
Igreja» (238).
«Redemptor noster unam se personam cum sanctam Ecelesiam, quam assumpsit, exhibuit –
O
nosso Redentor apresentou-Se a Si próprio como uma única pessoa unida à santa Igreja, que
Ele assumiu» (239).
«Caput et membra, quasi una persona mystica – Cabeça e membros são, por assim dizer,
uma só e mesma pessoa mística» (240).
Uma palavra de Santa Joana d'Arc aos seus juízes resume a fé dos santos Doutores e exprime
o bom-senso do crente: «De Jesus Cristo e da Igreja eu penso que são um só, e não há que le-
vantar dificuldades a esse respeito» (241).

A IGREJA É A ESPOSA DE CRISTO

796. A unidade de Cristo e da Igreja, Cabeça e membros do Corpo, implica também a dis-
tinção entre ambos, numa relação pessoal. Este aspecto é, muitas vezes, expresso pela imagem
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do esposo e da esposa. O tema de Cristo Esposo da Igreja foi preparado pelos profetas e anun-
ciado por João Baptista (242). O próprio Senhor Se designou como «o Esposo» (Mc 2, 19)
(243). E o Apóstolo apresenta a Igreja e cada fiel, membro do seu Corpo, como uma esposa
«desposada» com Cristo Senhor, para formar com Ele um só Espírito (244). Ela é a Esposa
imaculada do Cordeiro imaculado (245) que Cristo amou, pela qual Se entregou «para a santi-
ficar» (Ef 5, 26), que associou a Si por uma aliança eterna, e à qual não cessa de prestar cuida-
dos como ao Seu próprio Corpo (246).
«Eis o Cristo total, Cabeça e Corpo, um só, formado de muitos [...]. Quer seja a Cabeça que
fale, quer sejam os membros, é Cristo que fala: fala desempenhando o papel de Cabeça (ex
persona capitis), ou, então, desempenhando o papel do Corpo (ex persona corporis). Con-
forme ao que está escrito: «Serão os dois uma só carne. É esse um grande mistério; digo-o em
relação a Cristo e à Igreja» (Ef 5, 31-32). E o próprio Senhor diz no Evangelho: «Já não são
dois, mas uma só carne» (Mt 19, 6). Como vedes, temos, de algum modo, duas pessoas difer-
entes; no entanto, tornam-se uma só na união esponsal [...] «Diz-se "Esposo" enquanto
Cabeça e "esposa" enquanto Corpo» (247).

III. A Igreja – Templo do Espírito Santo

797. «O que o nosso espírito, quer dizer, a nossa alma, é para os nossos membros, o Espírito
Santo é-o para os membros de Cristo, para o Corpo de Cristo, que é a Igreja» (248). «É ao
Espírito de Cristo, como a um princípio oculto, que se deve atribuir o facto de todas as partes
do Corpo estarem unidas, tanto entre si como com a Cabeça suprema, pois Ele está todo na
Cabeça, todo no Corpo, todo em cada um dos seus membros» (249). É o Espírito Santo que faz
da Igreja «o templo do Deus vivo» (2 Cor 6, 16) (250):
«De facto, foi à própria Igreja que o dom de Deus foi confiado [...]. Nela foi depositada a
comunhão com Cristo, isto é, o Espírito Santo, arras da incorruptibilidade, confirmação da
nossa fé e escada da nossa ascensão para Deus [...]. Porque onde está a Igreja, aí está também
o Espírito de Deus; e onde está o Espírito de Deus, aí está a Igreja e toda a graça» (251).
798. O Espírito Santo é «o princípio de toda a acção vital e verdadeiramente salvífica em cada
uma das diversas partes do Corpo» (252), Ele realiza, de múltiplas maneiras, a edificação de
todo o Corpo na caridade (253): pela Palavra de Deus, «que tem o poder de construir o edifí-
cio» (Act 20, 32); mediante o Baptismo, pelo qual forma o Corpo de Cristo (254); pelos sacra-
mentos, que fazem crescer e curam os membros de Cristo; pela «graça dada aos Apóstolos que
ocupa o primeiro lugar entre os seus dons» (255); pelas virtudes que fazem agir segundo o
bem; enfim, pelas múltiplas graças especiais (chamadas «carismas») pelos quais Ele torna os
fiéis «aptos e disponíveis para assumir os diferentes cargos e ofícios proveitosos para a renov-
ação e cada vez mais ampla edificação da Igreja» (256).

OS CARISMAS

799. Extraordinários ou simples e humildes, os carismas são graças do Espírito Santo que,
directa ou indirectamente, têm uma utilidade eclesial, ordenados como são para a edificação
da Igreja, o bem dos homens e as necessidades do mundo.
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800. Os carismas devem ser acolhidos com reconhecimento por aquele que os recebe, mas
também por todos os membros da Igreja. De facto, eles são uma maravilhosa riqueza de
graças para a vitalidade apostólica e para a santidade de todo o Corpo de Cristo; desde que se
trate de dons verdadeiramente procedentes do Espírito Santo e exercidos de modo plena-
mente conforme aos impulsos autênticos do mesmo Espírito, quer dizer, segundo a caridade,
verdadeira medida dos carismas (257).
801. Nesse sentido será sempre necessário o discernimento dos carismas. Nenhum carisma
dispensa a referência e a submissão aos pastores da Igreja. «A eles compete, de modo especial,
não extinguir o Espírito, mas tudo examinar para reter o que é bom» (258), de modo que to-
dos os carismas, na sua diversidade e complementaridade, cooperem para o «bem comum» (1
Cor 12, 7) (259).

Resumindo:

802. Jesus Cristo «entregou-Se por nós, a fim de nos resgatar de toda a iniquidade e de
purificar e constituir um povo de sua exclusiva posse» (Tt 2, 14).
803. «Vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido» (1 Pe 2, 9).
804. Entra-se no povo de Deus pela fé e pelo Baptismo. «Todos os homens são chamados a
fazer parte do povo de Deus» (260), para que, em Cristo, «os homens constituam uma só
família e um único povo de Deus» (261).
805. A Igreja é o Corpo de Cristo. Pelo Espírito e pela sua acção nos sacramentos, sobretudo
na Eucaristia, Cristo morto e ressuscitado constitui como seu Corpo a comunidade dos
crentes.
806. Na unidade deste Corpo, existe diversidade de membros e de funções. Mas todos os
membros estão unidos uns aos outros, particularmente àqueles que sofrem, aos pobres e aos
perseguidos.
807. A Igreja é este Corpo, cuja Cabeça é Cristo: ela vive d'Ele, n'Ele e para Ele; e Ele vive
com ela e nela.
808. A Igreja é a Esposa de Cristo: Ele amou-a e entregou-Se por ela. Purificou-a pelo seu
sangue. Fez dela a mãe fecunda de todos os filhos de Deus.
809. A Igreja é o Templo do Espírito Santo. O Espírito é como que a alma do Corpo Místico,
princípio da sua vida, da unidade na diversidade e da riqueza dos seus dons e carismas.
810. «A Igreja universal aparece, assim, como "um povo que vai buscar a sua unidade à
unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo"» (262).

PARÁGRAFO 3

A IGREJA É UNA, SANTA, CATÓLICA E APOSTÓLICA

811. «Esta é a única Igreja de Cristo, que no Credo confessamos ser una, santa, católica e
apostólica» (263). Estes quatro atributos, inseparavelmente ligados entre si (264) indicam
traços essenciais da Igreja e da sua missão. A Igreja não os confere a si mesma; é Cristo que,
pelo Espírito Santo, concede à sua Igreja que seja una, santa, católica e apostólica, e é ainda
Ele que a chama a realizar cada uma destas qualidades.
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812. Só a fé pode reconhecer que a Igreja recebe estas propriedades da sua fonte divina. Mas
as manifestações históricas das mesmas são sinais que também falam claro à razão humana.
«A Igreja, lembra o I Concílio do Vaticano, em razão da sua santidade, da sua unidade
católica, da sua invicta constância, é, por si mesma, um grande e perpétuo motivo de credibil-
idade e uma prova incontestável da sua missão divina» (265).

I. A Igreja é una

«O SAGRADO MISTÉRIO DA UNIDADE DA IGREJA» (266)

813. A Igreja é una, graças à sua fonte: «O supremo modelo e princípio deste mistério é a
unidade na Trindade das pessoas, dum só Deus, Pai e Filho no Espírito Santo» (267). A Igreja
é una graças ao seu fundador: «O próprio Filho encarnado [...] reconciliou todos os homens
com Deus pela sua Cruz, restabelecendo a unidade de todos num só povo e num só Corpo»
(268). A Igreja é una graças à sua «alma»: «O Espírito Santo que habita nos crentes e que
enche e rege toda a Igreja, realiza esta admirável comunhão dos fiéis e une-os todos tão intim-
amente em Cristo que é o princípio da unidade da Igreja» (269). Pertence, pois, à própria es-
sência da Igreja que ela seja una:
«Que admirável mistério! Há um só Pai do universo, um só Logos do universo e também um
só Espírito Santo, idêntico em toda a parte; e há também uma só mãe Virgem, à qual me apraz
chamar Igreja» (270).
814. Desde a origem, no entanto, esta Igreja apresenta-se com uma grande diversidade,
proveniente ao mesmo tempo da variedade dos dons de Deus e da multiplicidade das pessoas
que os recebem. Na unidade do povo de Deus, juntam-se as diversidades dos povos e das cul-
turas. Entre os membros da Igreja existe uma diversidade de dons, de cargos, de condições e
de modos de vida. «No seio da comunhão da Igreja existem legitimamente Igrejas particu-
lares, que gozam das suas tradições próprias» (271). A grande riqueza desta diversidade não
se opõe à unidade da Igreja. No entanto, o pecado e o peso das suas consequências ameaçam
constantemente o dom da unidade. Também o Apóstolo se viu na necessidade de exortar a
que se guardasse «a unidade do Espírito pelo vínculo da paz» (Ef 4, 3).
815. Quais são os vínculos da unidade? «Acima de tudo, a caridade, que é o vínculo da per-
feição» (Cl 3, 14). Mas a unidade da Igreja peregrina é assegurada também por laços visíveis
de comunhão:
– a profissão duma só fé, recebida dos Apóstolos; – a celebração comum do culto divino,
sobretudo dos sacramentos; – a sucessão apostólica pelo sacramento da Ordem, que mantém
a concórdia fraterna da família de Deus (272).
816. «A única Igreja de Cristo [...] é aquela que o nosso Salvador, depois da ressurreição, en-
tregou a Pedro, com o encargo de a apascentar, confiando também a ele e aos outros apóstolos
a sua difusão e governo [...]. Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma so-
ciedade, subsiste (subsistit in) na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos
bispos em comunhão com ele» (273).
O decreto do II Concílio do Vaticano sobre o Ecumenismo explicita: «Com efeito, só pela
Igreja Católica de Cristo, que é "meio geral de salvação", é que se pode obter toda a plenitude
dos meios de salvação. Na verdade, foi apenas ao colégio apostólico, de que Pedro é o chefe,
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que, segundo a nossa fé, o Senhor confiou todas as riquezas da nova Aliança, a fim de con-
stituir na terra um só Corpo de Cristo, ao qual é necessário que sejam plenamente incorpora-
dos todos os que, de certo modo, pertencem já ao povo de Deus» (274).
817. De facto, «nesta Igreja de Deus una e única, já desde os primórdios surgiram algumas
cisões, que o Apóstolo censura asperamente como condenáveis. Nos séculos posteriores,
porém, surgiram dissensões mais amplas. Importantes comunidades separaram-se da plena
comunhão da Igreja Católica, às vezes por culpa dos homens duma e doutra parte» (275). As
rupturas que ferem a unidade do Corpo de Cristo (a saber: a heresia, a apostasia e o cisma)
(276) devem-se aos pecados dos homens:
«Ubi peccata, ibi est multitudo, ibi schismata, ibi haereses, ibi discussiones. Ubi autem
virtus, ibi singularitas, ibi unio, ex quo omnium credentium erat cor unum et anima una —
Onde há pecados, aí se encontra a multiplicidade, o cisma, a heresia, o conflito. Mas onde há
virtude, aí se encontra a unicidade e aquela união que faz com que todos os crentes tenham
um só coração e uma só alma» (277).
818. Os que hoje nascem em comunidades provenientes de tais rupturas, «e que vivem a fé de
Cristo, não podem ser acusados do pecado da divisão. A Igreja Católica abraça-os com re-
speito e caridade fraterna [...]. Justificados pela fé recebida no Baptismo, incorporados em
Cristo, é a justo título que se honram com o nome de cristãos e os filhos da Igreja Católica
reconhecem-nos legitimamente como irmãos no Senhor» (278).
819. Além disso, existem fora das fronteiras visíveis da Igreja Católica, «muitos elementos de
santificação e de verdade» (279): «a Palavra de Deus escrita, a vida da graça, a fé, a esperança
e a caridade, outros dons interiores do Espírito Santo e outros elementos visíveis» (280). O
Espírito de Cristo serve-Se destas Igrejas e comunidades eclesiais como meios de salvação,
cuja força vem da plenitude da graça e da verdade que Cristo confiou à Igreja Católica. Todos
estes bens provêm de Cristo e a Ele conduzem (281) e por si mesmos reclamam «a unidade
católica» (282).

A CAMINHO DA UNIDADE

820. A unidade, «Cristo a concedeu à sua Igreja desde o princípio. Nós cremos que ela sub-
siste, sem possibilidade de ser perdida, na Igreja Católica, e esperamos que cresça de dia para
dia até à consumação dos séculos» (283). Cristo dá sempre à sua Igreja o dom da unidade.
Mas a Igreja deve orar e trabalhar constantemente para manter, reforçar e aperfeiçoar a unid-
ade que Cristo quer para ela. Foi por esta intenção que Jesus orou na hora da sua paixão e não
cessa de orar ao Pai pela unidade dos seus discípulos: «...Que todos sejam um. Como Tu, ó
Pai, és um em Mim e Eu em Ti, assim também eles sejam um em Nós, para que o mundo creia
que Tu Me enviaste» (Jo 17, 21). O desejo de recuperar a unidade de todos os cristãos é um
dom de Cristo e um apelo do Espírito Santo (284).
821. Para lhe corresponder de modo adequado, exige-se:
– uma renovação permanente da Igreja, numa maior fidelidade à sua vocação. Essa renov-
ação é a força do movimento a favor da unidade (285); – a conversão do coração, «com o fim
levar uma vida mais pura segundo o Evangelho» (286), pois o que causa as divisões é a infi-
delidade dos membros ao dom de Cristo;
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– a oração em comum, porque «a conversão do coração e a santidade de vida. unidas às or-


ações, públicas e privadas, pela unidade dos cristãos, devem ser tidas como a alma de todo o
movimento ecuménico, e com razão podem chamar-se ecumenismo espiritual» (287); – o
mútuo conhecimento fraterno (288); – a formação ecuménica dos fiéis, e especialmente dos
sacerdotes (289); – o diálogo entre os teólogos, e os encontros entre os cristãos das diferentes
Igrejas e comunidades (290); – a colaboração entre cristãos nos diversos domínios do serviço
dos homens »(291).
822. A preocupação com realizar a união «diz respeito a toda a Igreja, fiéis e pastores» (292).
Mas também se deve «ter consciência de que este projecto sagrado da reconciliação de todos
os cristãos na unidade duma só e única Igreja de Cristo, ultrapassa as forças e capacidades hu-
manas». Por isso, pomos toda a nossa esperança «na oração de Cristo pela Igreja, no amor do
Pai para connosco e no poder do Espírito Santo» (293).

II. A Igreja é santa

823. «A Igreja é [...], aos olhos da fé, indefectivelmente santa. Com efeito, Cristo, Filho de
Deus, que é proclamado «o único Santo», com o Pai e o Espírito, amou a Igreja como sua
esposa, entregou-Se por ela para a santificar, uniu-a a Si como seu Corpo e cumulou-a com o
dom do Espírito Santo para glória de Deus» (294). A Igreja é, pois, «o povo santo de Deus»
(295), e os seus membros são chamados «santos» (296).
824. A Igreja, unida a Cristo, é santificada por Ele. Por Ele e n'Ele toma-se também santific-
ante. «Todas as obras da Igreja tendem, como seu fim, (297) para a santificação dos homens
em Cristo e para a glorificação de Deus». É na Igreja que se encontra «a plenitude dos meios
de salvação» (298). É nela que «nós adquirimos a santidade pela graça de Deus» (299).
825. «Na terra, a Igreja está revestida duma verdadeira, ainda que imperfeita, santidade»
(300). Nos seus membros, a santidade perfeita é ainda algo a adquirir: «Munidos de tantos e
tão grandes meios de salvação, todos os fiéis, seja qual for a sua condição ou estado, são cha-
mados pelo Senhor à perfeição do Pai, cada um pelo seu caminho» (301).
826. A caridade é a alma da santidade à qual todos são chamados: «É ela que dirige todos os
meios de santificação, lhes dá alma e os conduz ao seu fim»(302):
«Compreendi que, se a Igreja tinha um corpo composto de diferentes membros, o mais ne-
cessário, o mais nobre de todos não lhe faltava: compreendi que a igreja tinha um coração, e
que esse coração estava ardendo de amor. Compreendi que só o Amor fazia agir os membros
da Igreja; que se o Amor se apagasse, os apóstolos já não anunciariam o Evangelho, os
mártires recusar-se-iam a derramar o seu sangue... Compreendi que o Amor encerra todas as
vocações, que o Amor é tudo, que abarca todos os tempos e lugares ... numa palavra, que ele é
Eterno» (303).
827. «Enquanto que Cristo, santo e inocente, sem mancha, não conheceu o pecado, mas veio
somente expiar os pecados do povo, a Igreja, que no seu próprio seio encerra pecadores, é
simultaneamente santa e chamada a purificar-se, prosseguindo constantemente no seu es-
forço de penitência e renovação» (304). Todos os membros da Igreja, inclusive os seus minis-
tros, devem reconhecer-se pecadores (305). Em todos eles, o joio do pecado encontra-se ainda
misturado com a boa semente do Evangelho até ao fim dos tempos (306). A Igreja reúne, pois,
em si, pecadores abrangidos pela salvação de Cristo, mas ainda a caminho da santificação:
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A Igreja «é santa, não obstante compreender no seu seio pecadores, porque ela não possui em
si outra vida senão a da graça: é vivendo da sua vida que os seus membros se santificam; e é
subtraindo-se à sua vida que eles caem em pecado e nas desordens que impedem a irradiação
da sua santidade. É por isso que ela sofre e faz penitência por estas faltas, tendo o poder de
curar delas os seus filhos, pelo Sangue de Cristo e pelo dom do Espírito Santo» (307).
828. Ao canonizar certos fiéis, isto é, ao proclamar solenemente que esses fiéis praticaram
heroicamente as virtudes e viveram na fidelidade à graça de Deus, a Igreja reconhece o poder
do Espírito de santidade que está nela, e ampara a esperança dos fiéis, propondo-lhes os san-
tos como modelos e intercessores (308). «Os santos e santas foram sempre fonte e origem de
renovação nos momentos mais difíceis da história da Igreja (309)». «A santidade é a fonte
secreta e o padrão infalível da sua actividade apostólica e do seu dinamismo missionário»
(310).
829. «Na pessoa da Santíssima Virgem, a Igreja alcançou já aquela perfeição, sem mancha
nem ruga, que lhe é própria. Mas os fiéis de Cristo têm ainda de trabalhar para crescer em
santidade, vencendo o pecado. Por isso, levantam os olhos para Maria»(311): nela, a Igreja é já
plenamente santa.

III. A Igreja é católica

QUE QUER DIZER «CATÓLICA»?

830. A palavra «católico» significa «universal» no sentido de «segundo a totalidade» ou «se-


gundo a integridade». A Igreja é católica num duplo sentido:
É católica porque Cristo está presente nela: «onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja Católica»
(312). Nela subsiste a plenitude do Corpo de Cristo unido à sua Cabeça (313), o que implica
que ela receba d'Ele a «plenitude dos meios de salvação» (314) que Ele quis: confissão de fé
recta e completa, vida sacramental integral e ministério ordenado na sucessão apostólica.
Neste sentido fundamental, a Igreja era católica no dia de Pentecostes (315) e sê-lo-á sempre
até ao dia da Parusia.
831. É católica, porque Cristo a enviou em missão à universalidade do género humano (316):
«Todos os homens são chamados a fazer parte do povo de Deus. Por isso, permanecendo uno
e único, este povo está destinado a estender-se a todo o mundo e por todos os séculos, para se
cumprir o desígnio da vontade de Deus que, no princípio, criou a natureza humana na unid-
ade e decidiu enfim reunir na unidade os seus filhos dispersos [...]. Este carácter de universal-
idade que adorna o povo de Deus é dom do próprio Senhor. Graças a tal dom, a Igreja Católica
tende a recapitular, eficaz e perpetuamente, a humanidade inteira, com todos os bens que ela
contém, sob Cristo Cabeça, na unidade do Seu Espírito (317).

CADA UMA DAS IGREJAS PARTICULARES É «CATÓLICA»

832. «A Igreja de Cristo está verdadeiramente presente em todas as legítimas comunidades


locais de fiéis que, unidas aos seus pastores, recebem, também elas, no Novo Testamento, o
nome de Igrejas [...]. Nelas, os fiéis são reunidos pela pregação do Evangelho de Cristo e é cel-
ebrado o mistério da Ceia do Senhor [...]. Nestas comunidades, ainda que muitas vezes
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pequenas e pobres ou dispersas, está presente Cristo, por cujo poder se constitui a Igreja una,
santa, católica e apostólica» (318).
833. Entende-se por Igreja particular, que é em primeiro lugar a diocese (ou «eparquia»),
uma comunidade de fiéis cristãos em comunhão de fé e de sacramentos com o seu bispo, orde-
nado na sucessão apostólica (319). Estas Igrejas particulares «são formadas à imagem da
Igreja universal; é nelas e a partir delas que existe a Igreja Católica una e única» (320).
834. As Igrejas particulares são plenamente católicas pela comunhão com uma de entre elas:
a Igreja Romana, «que preside à caridade» (321). «Com esta Igreja, mais excelente por causa
da sua origem, deve necessariamente estar de acordo toda a Igreja, isto é, os fiéis de toda a
parte» (322). «Desde que o Verbo Encarnado desceu até nós, todas as Igrejas cristãs de todo o
mundo tiveram e têm a grande Igreja que vive aqui (em Roma)como única base e funda-
mento, porque, segundo as próprias promessas do Salvador, as portas do inferno nunca pre-
valecerão sobre ela» (323).
835. «A Igreja universal não deve ser entendida como simples somatório ou, por assim dizer,
federação de Igrejas particulares [...]. Mas é antes a Igreja, universal por vocação e missão,
que lançando raiz numa variedade de terrenos culturais, sociais e humanos, toma em cada
parte do mundo aspectos e formas de expressão diversos» (324). A rica variedade de normas
disciplinares, ritos litúrgicos, patrimónios teológicos e espirituais, próprios das Igrejas locais,
«mostra da forma mais evidente, pela sua convergência na unidade, a catolicidade da Igreja
indivisa» (325).

QUEM PERTENCE À IGREJA CATÓLICA?

836. «Todos os homens são chamados [...] à unidade católica do povo de Deus; de vários
modos a ela pertencem, ou para ela estão ordenados, tanto os fiéis católicos como os outros
que também acreditam em Cristo e, finalmente, todos os homens sem excepção, que a graça
de Deus chama à salvação» (326):
837. «Estão plenamente incorporados na sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o
Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e todos os meios de salvação nela instituí-
dos, e que, além disso, pelos laços da profissão de fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico
e da comunhão, estão unidos no todo visível da Igreja, com Cristo que a dirige por meio do
Sumo Pontífice e dos bispos. Mas a incorporação não garante a salvação àquele que, por não
perseverar na caridade, está no seio da Igreja «de corpo» mas não «de coração» (327).
838. «Com aqueles que, tendo sido baptizados, têm o belo nome de cristãos, embora não pro-
fessem integralmente a fé ou não guardem a unidade de comunhão com o sucessor de Pedro, a
Igreja sabe-se unida por múltiplas razões» (328). «Aqueles que crêem em Cristo e receberam
validamente o Baptismo encontram-se numa certa comunhão, embora imperfeita, com a
Igreja Católica» (329). Quanto às Igrejas Ortodoxas, esta comunhão é tão profunda «que bem
pouco lhes falta para atingir a plenitude, que permita uma celebração comum da Eucaristia do
Senhor» (330).

A IGREJA E OS NÃO-CRISTÃOS
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839. «Aqueles que ainda não receberam o Evangelho estão também, de uma de ou outra
forma, ordenados ao povo de Deus» (331):
A relação da Igreja com o Povo Judaico. A Igreja, povo de Deus na nova Aliança, ao per-
scrutar o seu próprio mistério, descobre o laço que a une ao povo judaico (332), «a quem Deus
falou primeiro» (333). Ao invés das outras religiões não cristãs, a fé judaica é já uma resposta
à revelação de Deus na antiga Aliança. É ao povo judaico que «pertencem a adopção filial, a
glória, as alianças, a legislação, o culto, as promessas [...] e os patriarcas; desse povo Cristo
nasceu segundo a carne» (Rm 9, 4-5); porque «os dons e o chamamento de Deus são irrevogá-
veis» (Rm 11, 29).
840. Aliás, quando se considera o futuro, o povo de Deus da Antiga Aliança e o novo povo de
Deus tendem para fins análogos: a esperança da vinda (ou do regresso) do Messias. Mas a es-
perança é, dum lado, a do regresso do Messias, morto e ressuscitado, reconhecido como Sen-
hor e Filho de Deus: do outro, a da vinda no fim dos tempos do Messias, cujos traços per-
manecem velados – expectativa acompanhada pelo drama da ignorância ou do falso conheci-
mento de Cristo Jesus.
841. Relações da Igreja com os muçulmanos. «O desígnio de salvação envolve igualmente os
que reconhecem o Criador, entre os quais, em primeiro lugar, os muçulmanos que declarando
guardar a fé de Abraão, connosco adoram o Deus único e misericordioso que há-de julgar os
homens no último dia» (334).
842. A ligação da Igreja com as religiões não cristãs é, antes de mais, a da origem e do fim
comuns do género humano:
«De facto, todos os povos formam uma única comunidade; têm uma origem única, pois Deus
fez que toda a raça humana habitasse à superfície da terra; têm também um único fim último,
Deus, cuja providência, testemunhos de bondade e desígnio de salvação se estendem a todos,
até que os eleitos sejam reunidos na cidade santa» (335).
843. A Igreja reconhece nas outras religiões a busca, «ainda nas sombras e sob imagens», do
Deus desconhecido mas próximo, pois é Ele quem a todos dá vida, respiração e todas as coisas
e quer que todos os homens se salvem. Assim, a Igreja considera tudo quanto nas outras reli-
giões pode encontrar-se de bom e verdadeiro, «como uma preparação evangélica e um dom
d'Aquele que ilumina todo o homem, para que, finalmente, tenha a vida» (336).
844. Mas no seu comportamento religioso, os homens revelam também limites e erros que
desfiguram neles a imagem de Deus:
«Muitas vezes, enganados pelo Maligno, transviaram-se nos seus raciocínios, trocando a ver-
dade de Deus pela mentira. Preferindo o serviço da criatura ao do Criador, ou vivendo e mor-
rendo sem Deus neste mundo, expuseram-se ao desespero final» (337).
845. Foi para reunir de novo todos os seus filhos, desorientados e dispersos pelo pecado, que
o Pai quis reunir toda a humanidade na Igreja do seu Filho. A Igreja é o lugar onde a human-
idade deve reencontrar a sua unidade e a salvação. Ela é «o mundo reconciliado» (338); é a
nau que «navega segura neste mundo, ao sopro do Espírito Santo, sob a vela panda da Cruz do
Senhor» (339). Segundo uma outra imagem, querida aos Padres da Igreja, ela é figurada pela
arca de Noé, a única que salva do dilúvio (340).

«FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO»


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846. Como deve entender-se esta afirmação, tantas vezes repetida pelos Padres da Igreja?
Formulada de modo positivo, significa que toda a salvação vem de Cristo-Cabeça pela Igreja
que é o seu Corpo:
O santo Concílio «ensina, apoiado na Sagrada Escritura e na Tradição, que esta Igreja, pereg-
rina na terra, é necessária à salvação. De facto, só Cristo é mediador e caminho de salvação.
Ora, Ele torna-Se-nos presente no seu Corpo, que é a Igreja. Ao afirmar-nos expressamente a
necessidade da fé e do Baptismo, Cristo confirma-nos, ao mesmo tempo, a necessidade da
própria Igreja, na qual os homens entram pela porta do Baptismo. É por isso que não se po-
dem salvar aqueles que, não ignorando que Deus, por Jesus Cristo, fundou a Igreja Católica
como necessária, se recusam a entrar nela ou a nela perseverar» (341).
847. Esta afirmação não visa aqueles que, sem culpa da sua parte, ignoram Cristo e a sua
igreja:
«Com efeito, também podem conseguir a salvação eterna aqueles que, ignorando sem culpa o
Evangelho de Cristo e a sua Igreja, no entanto procuram Deus com um coração sincero e se es-
forçam, sob o influxo da graça, por cumprir a sua vontade conhecida através do que a con-
sciência lhes dita» (342).
848. «Muito embora Deus possa, por caminhos só d'Ele conhecidos, trazer à fé, «sem a qual é
impossível agradar a Deus» (343), homens que, sem culpa sua, ignoram o Evangelho, a Igreja
tem o dever e, ao mesmo tempo, o direito sagrado, de evangelizar» (344) todos os homens.

A MISSÃO – UMA EXIGÊNCIA DA CATOLICIDADE DA IGREJA

849. O mandato missionário. «Enviada por Deus às nações, para ser o sacramento universal
da salvação, a Igreja, em virtude das exigências íntimas da sua própria catolicidade e em obed-
iência ao mandamento do seu fundador, procura incansavelmente anunciar o Evangelho a to-
dos os homens» (345). «Ide, pois, fazei discípulos de todas as nações, baptizando-os em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo quanto vos mandei. E eis
que Eu estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (Mt 28, 19-20).
850. A origem e o fim da missão. O mandato missionário do Senhor tem a sua fonte primeira
no amor eterno da Santíssima Trindade: «Por sua natureza, a Igreja peregrina é missionária,
visto ter a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na missão do Filho e do Espírito
Santo» (346). E o fim último da missão consiste em fazer todos os homens participantes na
comunhão existente entre o Pai e o Filho, no Espírito de amor (347).
851. O motivo da missão. É ao amor de Deus por todos os homens que, desde sempre, a
Igreja vai buscar a obrigação e o vigor do seu ardor missionário: «Porque o amor de Cristo nos
impele...» (2 Cor 5, 14) (348). Com efeito, «Deus quer que todos os homens sejam salvos e
cheguem ao conhecimento da verdade» (1 Tm 2, 4). Deus quer a salvação de todos, mediante o
conhecimento da verdade. A salvação está na verdade. Os que obedecem à moção do Espírito
da verdade estão já no caminho da salvação. Mas a Igreja, à qual a mesma verdade foi confi-
ada, deve ir ao encontro dos que a procuram para lha levar. É por acreditar no desígnio uni-
versal da salvação que a Igreja deve ser missionária.
852. Os caminhos da missão. «O protagonista de toda a missão eclesial é o Espírito Santo»
(349). É Ele que conduz a Igreja pelos caminhos da missão. E esta «continua e prolonga, no
decorrer da história, a missão do próprio Cristo, que foi enviado para anunciar a Boa-Nova
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aos pobres. É, portanto, pelo mesmo caminho seguido por Cristo que, sob o impulso do
Espírito Santo, a Igreja deve seguir, ou seja, pelo caminho da pobreza, da obediência, do ser-
viço e da imolação de si mesma até à morte – morte da qual Ele saiu vitorioso pela ressur-
reição» (350). É assim que «o sangue dos mártires se torna semente de cristãos» (351).
853. Porém, no seu peregrinar, a Igreja também faz a experiência da «distância que separa a
mensagem de que é portadora, da fraqueza humana daqueles a quem este Evangelho é confi-
ado» (352). Só avançando pelo caminho «da penitência e da renovação» (353) e entrando
«pela porta estreita da Cruz» (354) é que o povo de Deus pode expandir o Reino de Cristo
(355). Com efeito, «assim como foi na pobreza e na perseguição que Cristo realizou a re-
denção, assim também a Igreja é chamada a seguir pelo mesmo caminho, para comunicar aos
homens os frutos da salvação» (356).
854. Pela sua própria missão, «a Igreja faz a caminhada de toda a humanidade e partilha a
sorte terrena do mundo. Ela é como que o fermento e, por assim dizer, a alma da sociedade
humana, chamada a ser renovada em Cristo e transformada em família de Deus» (357). O es-
forço missionário exige, portanto, paciência. Começa pelo anúncio do Evangelho aos povos e
grupos que ainda não acreditam em Cristo (358); prossegue no estabelecimento de comunid-
ades cristãs, que sejam «sinais da presença de Deus no mundo» (359) e na fundação de Igre-
jas locais (360); compromete-se num processo de inculturação, para incarnar o Evangelho nas
culturas dos povos (361); e também não deixará de conhecer alguns fracassos. «Pelo que diz
respeito aos homens, aos grupos humanos e aos povos, a Igreja só a pouco e pouco os atinge e
penetra, assim os assumindo na plenitude católica» (362).
855. A missão da Igreja requer um esforço em ordem à unidade dos cristãos (363). «De facto,
as divisões entre cristãos impedem a Igreja de realizar a plenitude da catolicidade que lhe é
própria, naqueles seus filhos que, sem dúvida, lhe pertencem pelo Baptismo, mas que se en-
contram separados da plenitude da comunhão com ela. Mais ainda: para a própria Igreja,
torna-se mais difícil exprimir, sob todos os seus aspectos, a plenitude da catolicidade na pró-
pria realidade da sua vida» (364).
856. A tarefa missionária implica um diálogo respeitoso com aqueles que ainda não aceitam
o Evangelho (365). Os crentes podem tirar proveito para si mesmos deste diálogo, aprendendo
a conhecer melhor «tudo quanto de verdade e graça se encontrava já entre os povos, como que
por uma secreta presença de Deus» (366). Se anunciam a Boa-Nova aos que a ignoram, é para
consolidar, completar e elevar a verdade e o bem que Deus espalhou entre os homens e os
povos, e para os purificar do erro e do mal, «para glória de Deus, confusão do demónio e feli-
cidade do homem» (367).

IV. A Igreja é apostólica

857. A Igreja é apostólica, porque está fundada sobre os Apóstolos. E isso em três sentidos:
– foi e continua a ser construída sobre o «alicerce dos Apóstolos» (Ef 2, 20 (368)), testemun-
has escolhidas e enviadas em missão pelo próprio Cristo (369);
– guarda e transmite, com a ajuda do Espírito Santo que nela habita, a doutrina (370), o bom
depósito, as sãs palavras recebidas dos Apóstolos (371);
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-continua a ser ensinada, santificada e dirigida pelos Apóstolos até ao regresso de Cristo,
graças àqueles que lhes sucedem no ofício pastoral: o colégio dos bispos, «assistido pelos pres-
bíteros, em união com o sucessor de Pedro, pastor supremo da Igreja»:
«Pastor eterno, não abandonais o vosso rebanho, mas sempre o guardais e protegeis por meio
dos santos Apóstolos, para que seja conduzido através dos tempos, pelos mesmos chefes que
pusestes à sua frente como representantes do vosso Filho, Jesus Cristo» (373).

A MISSÃO DOS APÓSTOLOS

858. Jesus é o enviado do Pai. Desde o princípio do seu ministério, «chamou para junto de Si
os que Lhe aprouve [...] e deles estabeleceu Doze, para andarem consigo e para os enviar a
pregar» (Mc 3, 13-14). A partir de então, eles serão os seus «enviados» (é o que significa a pa-
lavra grega apostoloi). Neles, Jesus continua a sua própria missão: «Tal como o Pai Me envi-
ou, assim Eu vos envio a vós» (Jo 20, 21) (374). O seu ministério é, pois, a continuação da pró-
pria missão de Jesus: «Quem vos acolhe, acolhe-Me a Mim», disse Ele aos Doze (Mt 10, 40)
(375).
859. Jesus uniu-os à missão que Ele próprio recebera do Pai: «assim como o Filho não pode
fazer nada por Si mesmo» (Jo 5, 19.30), mas tudo recebe do Pai que O enviou, assim também
aqueles que Jesus envia nada podem fazer sem Ele (376); d'Ele recebem o mandato da missão
e o poder de o cumprir. Os apóstolos de Cristo sabem, portanto, que são qualificados por Deus
como «ministros de uma Aliança nova» (2 Cor 3, 6), «ministros de Deus» (2 Cor 6, 4), «em-
baixadores de Cristo» (2 Cor 5, 20), «servidores de Cristo e administradores dos mistérios de
Deus» (1 Cor 4, 1).
860. No múnus dos Apóstolos há um aspecto intransmissível: serem as testemunhas escolhi-
das da ressurreição do Senhor e os alicerces da Igreja. Mas há também um aspecto da sua mis-
são que permanece. Cristo prometeu estar com eles até ao fim dos tempos (377). «A missão
divina confiada por Jesus aos Apóstolos é destinada a durar até ao fim dos séculos, uma vez
que o Evangelho que devem transmitir é, para a Igreja, princípio de toda a sua vida em todos
os tempos. Por isso é que os Apóstolos tiveram o cuidado de instituir [...] sucessores» (378).

OS BISPOS, SUCESSORES DOS APÓSTOLOS

861. «Para que a missão que lhes fora confiada pudesse ser continuada depois da sua morte,
os Apóstolos, como que por testamento, mandataram os seus cooperadores imediatos para
levarem a cabo a sua tarefa e consolidarem a obra por eles começada, encomendando-lhes a
guarda do rebanho em que o Espírito Santo os tinha instituído para apascentar a Igreja de
Deus. Assim, instituíram homens nestas condições e tudo dispuseram para que, após a sua
morte, outros homens provados tomassem conta do seu ministério» (379).
862. «Do mesmo modo que o encargo confiado pelo Senhor singularmente a Pedro, o
primeiro dos Apóstolos, e destinado a ser transmitido aos seus sucessores, é um múnus per-
manente, assim também é permanente o múnus confiado aos Apóstolos de serem pastores da
Igreja, múnus cuja perenidade a ordem sagrada dos bispos deve garantir». Por isso, a Igreja
ensina que, «em virtude da sua instituição divina, os bispos sucedem aos Apóstolos como
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pastores da Igreja, de modo que quem os ouve, ouve a Cristo e quem os despreza, despreza a
Cristo e Aquele que enviou Cristo» (380).

O APOSTOLADO

863. Toda a Igreja é apostólica, na medida em que, através dos sucessores de Pedro e dos
Apóstolos, permanece em comunhão de fé e de vida com a sua origem. Toda a Igreja é
apostólica, na medida em que é «enviada» a todo o mundo. Todos os membros da Igreja, em-
bora de modos diversos, participam deste envio. «A vocação cristã é também, por natureza,
vocação para o apostolado». E chamamos «apostolado» a «toda a actividade do Corpo
Místico» tendente a «alargar o Reino de Cristo à terra inteira» (381).
864. «Sendo Cristo, enviado do Pai, a fonte e a origem de todo o apostolado da Igreja», é
evidente que a fecundidade do apostolado, tanto dos ministros ordenados como dos leigos,
depende da sua união vital com Cristo (382). Segundo as vocações, as exigências dos tempos e
os vários dons do Espírito Santo, o apostolado toma as formas mais diversas. Mas é sempre a
caridade, haurida principalmente na Eucaristia, «que é como que a alma de todo o
apostolado» (383).
865. A Igreja é una, santa, católica e apostólica na sua identidade profunda e última, porque
é nela que existe desde já, e será consumado no fim dos tempos, «o Reino dos céus», «o Reino
de Deus» (384), que veio até nós na Pessoa de Cristo e que cresce misteriosamente no coração
dos que n'Ele estão incorporados, até à sua plena manifestação escatológica. Então, todos os
homens por Ele resgatados e n' Ele tornados «santos e imaculados na presença de Deus no
amor» (385), serão reunidos como o único povo de Deus, «a Esposa do Cordeiro» (386), «a
Cidade santa descida do céu, de junto de Deus, trazendo em si a glória do mesmo Deus» (387).
E «a muralha da cidade assenta sobre doze alicerces, cada um dos quais tem o nome de um
dos Doze apóstolos do Cordeiro» (Ap 21, 14).

Resumindo:

866. A Igreja é una: tem um só Senhor, professa uma só fé, nasce dum só Baptismo e forma
um só Corpo, vivificado por um só Espírito, em vista duma única esperança (388), no termo
da qual todas as divisões serão superadas.
867. A Igreja é santa: é seu autor o Deus santíssimo; Cristo, seu Esposo, por ela Se entregou
para a santificar; vivifica-a o Espírito de santidade. Embora encerra pecadores no seu seio,
ela é «a sem-pecado feita de pecadores». Nos santos brilha a sua santidade; em Maria, ela é
já totalmente santa.
868. A Igreja é católica: anuncia a totalidade da fé, tem à sua disposição e administra a
plenitude dos meios de salvação; é enviada a todos os povos; dirige-se a todos os homens;
abrange todos os tempos; «é, por sua própria natureza, missionária» (389).
869. A Igreja é apostólica: está edificada sobre alicerces duradouros, que são «os Doze
apóstolos do Cordeiro» (390); é indestrutível (391); é infalivelmente mantida na verdade:
Cristo é quem a governa por meio de Pedro e dos outros apóstolos, presentes nos seus su-
cessores, o Papa e o colégio dos bispos.
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870. «A única Igreja de Cristo, da qual professamos no Credo que é una, santa, católica e
apostólica, [...] é na Igreja Católica que subsiste, governada pelo sucessor de Pedro e pelos
bispos que estão em comunhão com ele, embora numerosos elementos de santificação e de
verdade se encontrem fora das suas estruturas» (392).

PARÁGRAFO 4

OS FIÉIS DE CRISTO: HIERARQUIA, LEIGOS, VIDA CONSAGRADA

871. «Fiéis são aqueles que, por terem sido incorporados em Cristo pelo Baptismo, foram
constituídos em povo de Deus e por este motivo se tornaram, a seu modo, participantes do
múnus sacerdotal, profético e real de Cristo e, segundo a própria condição, são chamados a
exercer a missão que Deus confiou à Igreja para esta realizar no mundo» (393).
872. «Devido à sua regeneração em Cristo, existe entre todos os fiéis verdadeira igualdade no
concernente à dignidade e à actuação, pela qual todos eles cooperam para a edificação do
Corpo de Cristo, segundo a condição e a função próprias de cada um» (394).
873. As próprias diferenças que o Senhor quis que existissem entre os membros do seu Corpo
servem a sua unidade e missão. Porque «há na Igreja diversidade de ministérios, mas unidade
de missão. Cristo confiou aos Apóstolos e aos seus sucessores o encargo de ensinar, santificar
e governar em seu nome e pelo seu poder. Mas os leigos, feitos participantes do múnus sacer-
dotal, profético e real de Cristo, assumem na Igreja e no mundo a parte que lhes toca naquilo
que é a missão de todo o povo de Deus» (395). Por fim, «de ambos estes grupos [hierarquia e
leigos] existem fiéis que, pela profissão dos conselhos evangélicos [...], se consagram a Deus
de modo peculiar, e contribuem para a missão salvífica da Igreja» (396).

I. A constituição hierárquica da Igreja

PORQUÊ O MINISTÉRIO ECLESIAL?

874. A fonte do ministério na Igreja é o próprio Cristo. Foi Ele que o instituiu e lhe deu autor-
idade e missão, orientação e finalidade.
«Cristo Senhor, para apascentar e aumentar continuamente o povo de Deus, instituía na sua
Igreja vários ministérios, para bem de todo o Corpo. Com efeito, os ministros que estão dota-
dos do poder sagrado estão ao serviço dos seus irmãos, para que todos quantos pertencem ao
povo de Deus [...] alcancem a salvação» (397).
875. «Como hão-de acreditar naquele de quem não ouviram falar? E como hão-de ouvir falar,
sem que alguém o anuncie? E como hão-de anunciar, se não forem enviados?» (Rm 10, 14-
15). Ninguém, nenhum indivíduo ou comunidade, pode anunciar a si mesmo o Evangelho. «A
fé surge da pregação» (Rm 10, 17). Por outro lado, ninguém pode dar a si próprio o mandato e
a missão de anunciar o Evangelho. O enviado do Senhor fala e actua, não por autoridade pró-
pria, mas em virtude da autoridade de Cristo; não como membro da comunidade, mas falando
à comunidade em nome de Cristo. Ninguém pode conferir a si mesmo a graça; ela deve ser-lhe
dada e oferecida. Isto supõe ministros da graça, autorizados e habilitados em nome de Cristo.
É d'Ele que os bispos e presbíteros recebem a missão e a faculdade (o «poder sagrado») de
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agir na pessoa de Cristo Cabeça e os diáconos a força de servir o povo de Deus na «diaconia»
da Liturgia, da Palavra e da caridade, em comunhão com o bispo e com o seu presbitério. A
este ministério, no qual os enviados de Cristo fazem e dão, por graça de Deus, o que por si
mesmos não podem fazer nem dar, a tradição da Igreja chama «sacramento». O ministério da
Igreja é conferido por um sacramento próprio.
876. Intrinsecamente ligado à natureza sacramental do ministério eclesial está o seu carácter
de serviço. Com efeito, inteiramente dependentes de Cristo, que lhes dá missão e autoridade,
os ministros são verdadeiramente «servos de Cristo» (398), à imagem do mesmo Cristo que
por nós livremente tomou «a forma de servo» (Fl 2, 7). E uma vez que a palavra e a graça, de
que são ministros, não são deles, mas de Cristo que lhas confiou para os outros, eles tornar-se-
ão livremente servos de todos (399).
877. Do mesmo modo, pertence à natureza sacramental do ministério eclesial que ele tenha
um carácter colegial. De facto, desde o princípio do seu ministério, o Senhor Jesus instituiu
os Doze, «gérmenes do novo Israel e ao mesmo tempo origem da hierarquia sagrada» (400).
Escolhidos juntamente, também juntamente foram enviados, e a sua unidade fraterna estará
ao serviço da comunhão fraterna de todos os fiéis. Será como um reflexo e um testemunho da
comunhão das pessoas divinas (401). Por isso, todo o bispo exerce o seu ministério no seio do
colégio episcopal e em comunhão com o bispo de Roma, sucessor de Pedro e chefe do mesmo
colégio; e todos os presbíteros exercem o seu ministério no seio do presbyterium da diocese,
sob a direcção do seu bispo.
878. Finalmente, pertence à natureza sacramental do ministério eclesial que ele tenha um
carácter pessoal. Se os ministros de Cristo actuam em comunhão, fazem-no sempre também
de modo pessoal. Cada qual é chamado pessoalmente –: «Tu, segue-Me» (Jo 21, 22)(402) –
para ser, na missão comum, uma testemunha pessoal, pessoalmente responsável perante
Aquele que lhe confere a missão, agindo «na pessoa d'Ele» e em favor das pessoas: «Eu te
baptizo em nome do Pai...»; «Eu te absolvo...».
879. O ministério sacramental na Igreja é, pois, um serviço exercido em nome de Cristo. Tem
um carácter pessoal e uma forma colegial. Isto verifica-se nos vínculos que ligam o colégio
episcopal e o seu chefe, o sucessor de Pedro, bem como na relação entre a responsabilidade
pastoral do bispo pela sua Igreja particular e a solicitude comum do colégio episcopal pela
Igreja universal.

O COLÉGIO EPISCOPAL E O SEU CHEFE, O PAPA

880. Cristo, ao instituir os Doze, «deu-lhes a forma dum corpo colegial, quer dizer, dum
grupo estável, e colocou á sua frente Pedro, escolhido de entre eles» (403). «Assim como, por
instituição do Senhor, Pedro e os outros apóstolos formam um só colégio apostólico, assim de
igual modo o pontífice romano, sucessor de Pedro, e os bispos, sucessores dos Apóstolos, es-
tão unidos entre si» (404).
881. Foi só de Simão, a quem deu o nome de Pedro, que o Senhor fez a pedra da sua Igreja.
Confiou-lhe as chaves desta (405) e instituiu-o pastor de todo o rebanho (406). «Mas o múnus
de ligar e desligar, que foi dado a Pedro, também foi dado, sem dúvida alguma, ao colégio dos
Apóstolos unidos ao seu chefe» (407). Este múnus pastoral de Pedro e dos outros apóstolos
pertence aos fundamentos da Igreja e é continuado pelos bispos sob o primado do Papa.
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882. O Papa, bispo de Roma e sucessor de S. Pedro, «é princípio perpétuo e visível, e funda-
mento da unidade que liga, entre si, tanto os bispos como a multidão dos fiéis» (408). Com
efeito, em virtude do seu cargo de vigário de Cristo e pastor de toda a Igreja, o pontífice ro-
mano tem sobre a mesma Igreja um poder pleno, supremo e universal, que pode sempre livre-
mente exercer» (409).
883. «O colégio ou corpo episcopal não tem autoridade a não ser em união com o pontífice
romano [...] como sua cabeça». Como tal, este colégio é «também sujeito do poder supremo e
pleno sobre toda a Igreja, poder que, no entanto, só pode ser exercido com o consentimento
do pontífice romano» (410).
884. «O colégio dos bispos exerce de modo solene o poder sobre toda a Igreja no concílio
ecuménico» (411). Mas «não há concilio ecuménico se não for, como tal, confirmado, ou pelo
menos aceite, pelo sucessor de Pedro» (412).
885. «Pela sua múltipla composição, este colégio exprime a variedade e a universalidade do
povo de Deus: enquanto reunido sob uma só cabeça, revela a unidade do rebanho de Cristo»
(413).
886. «Cada bispo, individualmente, é o princípio e o fundamento da unidade na sua re-
spectiva Igreja particular» (414). Como tal, «exerce a sua autoridade pastoral sobre a porção
do povo de Deus que lhe foi confiada» (415), assistido pelos presbíteros e diáconos. Mas, como
membro do colégio episcopal, cada qual participa na solicitude por todas as Igrejas (416), de-
ver que exerce, antes de mais, «governando bem a sua própria Igreja como porção da Igreja
universal», contribuindo assim «para o bem de todo o Corpo Místico, que é também o corpo
das Igrejas» (417). Esta solicitude há-de abranger, de modo particular, os pobres (418), os
perseguidos por causa da fé e ainda os missionários espalhados por toda a terra.
887. As Igrejas particulares vizinhas e de cultura homogénea formam províncias eclesiásticas
ou conjuntos mais vastos, chamados patriarcados ou regiões (419). Os bispos destes conjuntos
podem reunir-se em sínodos ou concílios provinciais. «Igualmente, hoje, as conferências epis-
copais podem prestar uma ajuda múltipla e fecunda, em ordem à realização concreta do es-
pírito colegial» (420).

O OFÍCIO DE ENSINAR

888. Os bispos, com os presbíteros seus cooperadores, «têm como primeiro dever anunciar o
Evangelho de Deus a todos os homens» (421), conforme a ordem do Senhor; (422). Eles são
«os arautos da fé», que trazem a Cristo novos discípulos, e os «doutores autênticos» da fé
apostólica, «munidos da autoridade de Cristo» (423).
889. Para manter a Igreja na pureza da fé transmitida pelos Apóstolos, Cristo quis conferir à
sua Igreja uma participação na sua própria infalibilidade, Ele que é a Verdade. Pelo «sentido
sobrenatural da fé», o povo de Deus «adere de modo indefectível à fé», sob a conduta do Ma-
gistério vivo da Igreja (424).
890. A missão do Magistério está ligada ao carácter definitivo da Aliança instaurada por Deus
em Cristo com o seu povo. Deve protegê-lo dos desvios e falhas, e garantir-lhe a possibilidade
objectiva de professar, sem erro, a fé autêntica. O múnus pastoral do Magistério está, assim,
ordenado a velar por que o povo de Deus permaneça na verdade que liberta. Para cumprir este
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serviço. Cristo dotou os pastores do carisma da infalibilidade em matéria de fé e de costumes.


O exercício de tal carisma pode revestir-se de diversas modalidades:
891. «Desta infalibilidade goza o pontífice romano, chefe do colégio episcopal, por força do
seu ofício, quando, na qualidade de pastor e doutor supremo de todos os fiéis, e encarregado
de confirmar na fé os seus irmãos, proclama, por um acto definitivo, um ponto de doutrina re-
speitante à fé ou aos costumes [...]. A infalibilidade prometida à Igreja reside também no
corpo dos bispos, quando exerce o seu Magistério supremo em união com o sucessor de
Pedro», sobretudo num concílio ecuménico (425) Quando, pelo seu Magistério supremo, a
Igreja propõe alguma coisa «para crer como sendo revelada por Deus» (426) como doutrina
de Cristo, «deve-se aderir na obediência da fé a tais definições» (427). Esta infalibilidade
abarca tudo quanto abarca o depósito da Revelação divina
892. A assistência divina é também dispensada aos sucessores dos Apóstolos, quando ensin-
am em comunhão com o sucessor de Pedro, e de modo particular ao bispo de Roma, pastor de
toda a Igreja, quando, mesmo sem chegarem a uma definição infalível e sem se pronunciar de
«modo definitivo», no exercício do seu Magistério ordinário, propõem uma doutrina que leva
a uma melhor inteligência da Revelação em matéria de fé e de costumes. A este ensinamento
ordinário devem os fiéis «prestar o assentimento religioso do seu espírito» (429), o qual, em-
bora distinto do assentimento da fé, é, no entanto, seu prolongamento.

O OFÍCIO DE SANTIFICAR

893. O bispo tem igualmente «a responsabilidade de dispensar a graça do sumo sacerdócio»


(430), em particular na Eucaristia, que oferece pessoalmente ou cuja celebração pelos pres-
bíteros seus cooperadores ele garante. É que a Eucaristia é o centro da vida da Igreja particu-
lar. O bispo e os presbíteros santificam a Igreja com a sua oração e o seu trabalho, bem como
pelo ministério da Palavra e dos sacramentos. E também a santificam com o seu exemplo, ac-
tuando «não com um poder autoritário sobre a herança do Senhor, mas como modelos do re-
banho» (1 Pe 5, 3). Assim «chegarão, com o rebanho que lhes está confiado, à vida eterna»
(431).

O OFÍCIO DE GOVERNAR

894. «Os bispos dirigem as suas Igrejas particulares, como vigários e legados de Cristo, medi-
ante os seus conselhos, incitamentos e exemplos; mas também com a sua autoridade e com o
seu poder sagrado» (432), que, no entanto, devem exercer para edificação naquele espírito de
serviço que é próprio o do seu Mestre (433).
895. «Este poder, que eles exercem pessoalmente em nome de Cristo, é um poder próprio, or-
dinário e imediato. O seu exercício, contudo, está regulado em definitivo pela autoridade su-
prema da Igreja» (434). Mas os bispos não devem ser considerados como vigários do Papa; a
autoridade ordinária e imediata deste sobre toda a Igreja, não anula, pelo contrário, confirma
e defende, a daqueles. A autoridade episcopal deve exercer-se em comunhão com toda a
Igreja, sob a direcção do Papa.
896. O Bom Pastor há-de ser o modelo e a «forma» do múnus pastoral do bispo. Consciente
das suas fraquezas, «o bispo pode mostrar-se indulgente para com os ignorantes e os
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transviados. Não se furte a atender os que de si dependem, rodeando-os de carinho, como a


verdadeiros filhos [...]. Quanto aos fiéis, devem viver unidos ao seu bispo como a Igreja a Je-
sus Cristo e Jesus Cristo ao Pai» (435).
«Segui todos o bispo, como Jesus Cristo o Pai; e o presbitério como se fossem os Apóstolos;
quanto aos diáconos, respeitai-os como à lei de Deus. Ninguém faça, à margem do bispo, nada
do que diga respeito à Igreja» (436).

II. Os fiéis leigos

897. «Por leigos entendem-se aqui todos os cristãos com excepção dos membros da ordem
sacra ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em
Cristo pelo Baptismo, constituídos em povo de Deus e feitos participantes, a seu modo, da
função sacerdotal, profética e real de Cristo, exercem, pela parte que lhes toca, na Igreja e no
mundo, a missão de todo o povo cristão» (437).

A VOCAÇÃO DOS LEIGOS

898. «A vocação própria dos leigos consiste precisamente em procurar o Reino de Deus
ocupando-se das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus [...]. Pertence-lhes, de
modo particular, iluminar e orientar todas as realidades temporais a que estão estreitamente
ligados, de tal modo que elas sejam realizadas e prosperem constantemente segundo Cristo,
para glória do Criador e Redentor» (438).
899. A iniciativa dos cristãos leigos é particularmente necessária quando se trata de
descobrir, de inventar meios para impregnar, com as exigências da doutrina e da vida cristã,
as realidades sociais, políticas e económicas. Tal iniciativa é um elemento normal da vida da
Igreja:
«Os fiéis leigos estão na linha mais avançada da vida da Igreja: por eles, a Igreja é o princípio
vital da sociedade. Por isso, eles, sobretudo, devem ter uma consciência cada vez mais clara,
não somente de que pertencem à Igreja, mas de que são Igreja, isto é, comunidade dos fiéis na
terra sob a direcção do chefe comum, o Papa, e dos bispos em comunhão com ele. Eles são
Igreja» (439).
900. Porque, como todos os fiéis, são por Deus encarregados do apostolado, em virtude do
Baptismo e da Confirmação, os leigos têm o dever e gozam do direito, individualmente ou
agrupados em associações, de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja con-
hecida e recebida por todos os homens e por toda a terra. Este dever é ainda mais urgente
quando só por eles podem os homens receber o Evangelho e conhecer Cristo. Nas comunid-
ades eclesiais, a sua acção é tão necessária que, sem ela, o apostolado dos pastores não pode, a
maior parte das vezes, alcançar pleno efeito (440).

A PARTICIPAÇÃO DOS LEIGOS NA FUNÇÃO SACERDOTAL DE CRISTO

901. «Em virtude da sua consagração a Cristo e da unção do Espírito Santo, os leigos recebem
a vocação admirável e os meios que permitem ao Espírito produzir neles frutos cada vez mais
abundantes. De facto, todas as suas actividades, orações, iniciativas apostólicas, a sua vida
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conjugal e familiar, o seu trabalho de cada dia, os seus lazeres do espírito e do corpo, se forem
vividos no Espírito de Deus, e até as provações da vida se pacientemente suportadas, tudo se
transforma em "sacrifício espiritual, agradável a Deus por Jesus Cristo" (1 Pe 2, 5). Na celeb-
ração eucarística, todas estas oblações se unem à do Corpo de Senhor, para serem
piedosamente oferecidas ao Pai. É assim que os leigos, como adoradores que em toda a parte
se comportam santamente, consagram a Deus o próprio mundo» (441).
902. Os pais participam dum modo particular no múnus da santificação, «vivendo em es-
pírito cristão a vida conjugal e cuidando da educação cristã dos filhos» (442).
903. Os leigos, se têm as qualidades requeridas, podem ser admitidos de modo estável aos
ministérios de leitor e de acólito (443). «Onde as necessidades da Igreja o aconselharem, por
falta de ministros, os leigos, mesmo que não sejam leitores nem acólitos, podem suprir alguns
ofícios destes, como os de exercer o ministério da Palavra, presidir às orações litúrgicas, con-
ferir o Baptismo e distribuir a sagrada Comunhão, segundo as prescrições do Direito» (444).

A SUA PARTICIPAÇÃO NA FUNÇÃO PROFÉTICA DE CRISTO

904. «Cristo [...] realiza a sua missão profética não só através da hierarquia [...], mas também
por meio dos leigos. Para isso os constituiu testemunhas, e lhes concedeu o sentido da fé e a
graça da Palavra» (445):
«Ensinar alguém, para o trazer à fé, [...] é dever de todo o pregador e, mesmo, de todo o
crente» (446).
905. Os leigos realizam a sua missão profética também pela evangelização, «isto é, pelo anún-
cio de Cristo, concretizado no testemunho da vida e na palavra». Para os leigos, «esta acção
evangelizadora [...] adquire um carácter específico e uma particular eficácia, por se realizar
nas condições ordinárias da vida secular» (447).
«Este apostolado não consiste só no testemunho da vida: o verdadeiro apóstolo procura todas
as ocasiões de anunciar Cristo pela palavra, tanto aos não-crentes [...] como aos fiéis» (448).
906. Aqueles de entre os fiéis leigos que disso forem capazes e que para tal se formarem, po-
dem também prestar o seu concurso à formação catequética (449), ao ensino das ciências
sagradas (450) e aos meios de comunicação social (451).
907. «Os fiéis, segundo a ciência, a competência e a proeminência de que desfrutam, têm o
direito e mesmo por vezes o dever, de manifestar aos sagrados pastores a sua opinião acerca
das coisas atinentes ao bem da Igreja e de a exporem aos restantes fiéis, salva a integridade da
fé e dos costumes, a reverência devida aos pastores, e tendo em conta a utilidade comum e a
dignidade das pessoas» (452).

A SUA PARTICIPAÇÃO NA FUNÇÃO REAL DE CRISTO

908. Fazendo-se obediente até à morte (453), Cristo comunicou aos seus discípulos o dom de
régia liberdade, para que «com abnegação de si mesmos e santidade de vida, vençam em si
próprios o reino do pecado» (454).
«Aquele que submete o corpo e governa a sua alma, sem se deixar submergir pelas paixões, é
senhor de si mesmo; pode ser chamado rei, porque é capaz de reger a sua própria pessoa: é
livre e independente e não se deixa cativar por uma escravidão culpável» (455).
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909. «Além disso, também pela união das suas forças, devem os leigos sanear as instituições
e as condições de vida no mundo, quando estas tendem a levar ao pecado, para que todas se
conformem com as regras da justiça e favoreçam a prática da virtude, em vez de a impedirem.
Agindo assim, impregnarão de valor moral a cultura e as obras humanas (456).
910. «Os leigos também podem sentir-se ou serem chamados a colaborar com os pastores no
serviço da comunidade eclesial, trabalhando pelo crescimento e vida da mesma, exercendo
ministérios muito variados, segundo a graça e os carismas que ao Senhor aprouver comuni-
car- lhes» (457).
911. Na Igreja, «os fiéis leigos podem cooperar no exercício do poder de governo, segundo as
normas do direito» (458). É o caso da sua presença nos concílios particulares (459) nos
sínodos diocesanos (460) e nos conselhos pastorais (461) do exercício da função pastoral
duma paróquia (462) da colaboração nos conselhos para os assuntos económicos (463); da
participação nos tribunais eclesiásticos (464); etc.
912. Os fiéis devem «distinguir cuidadosamente os direitos e deveres que lhes competem
como membros da Igreja, daqueles que lhes dizem respeito como membros da sociedade hu-
mana. Procurem harmonizar uns e outros, lembrando-se de que em todos os assuntos tempo-
rais se devem guiar pela sua consciência cristã, pois nenhuma actividade humana, mesmo de
ordem temporal, pode subtrair-se ao domínio de Deus» (465).
913. «Assim, todo e qualquer leigo, em virtude dos dons que lhe foram concedidos, é ao
mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da missão da própria Igreja "segundo a medida
do dom de Cristo" (Ef 4, 7)» (466).

III. A vida consagrada

914. «O estado de vida constituído pela profissão dos conselhos evangélicos, embora não per-
tença à estrutura hierárquica da Igreja, está, no entanto, incontestavelmente ligado à sua vida
e santidade» (467).

CONSELHOS EVANGÉLICOS, VIDA CONSAGRADA

915. Os conselhos evangélicos são, na sua multiplicidade, propostos a todos os discípulos de


Cristo. A perfeição da caridade, a que todos os fiéis são chamados, comporta, para aqueles que
livremente assumem o chamamento à vida consagrada, a obrigação de praticar a castidade no
celibato por amor do Reino, a pobreza e a obediência. É a profissão destes conselhos, num es-
tado de vida estável reconhecido pela Igreja, que caracteriza a «vida consagrada» a Deus
(468).
916. A partir daí, o estado de vida consagrada aparece como uma das maneiras de viver uma
consagração «mais íntima», radicada no Baptismo e totalmente dedicada a Deus (469). Na
vida consagrada, os fiéis propõem-se, sob a moção do Espírito Santo, seguir Cristo mais de
perto, entregar-se a Deus amado acima de todas as coisas e, procurando a perfeição da carid-
ade ao serviço do Reino, ser na Igreja sinal e anúncio da glória do mundo que há-de vir (470).

UMA GRANDE ÁRVORE, DE FRONDOSA RAMAGEM


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917. «Tal como uma árvore se ramifica maravilhosa e variadamente no campo do Senhor, a
partir de uma semente lançada por Deus, assim surgiram diversas formas de vida solitária ou
comum, e várias famílias religiosas que vêm aumentar a riqueza espiritual, tanto em proveito
dos seus próprios membros como no de todo o Corpo de Cristo» (471).
918. «Desde as origens da Igreja, houve homens e mulheres que se propuseram, pela prática
dos conselhos evangélicos, seguir mais livremente Cristo e imitá-Lo de modo mais fiel. Cada
qual a seu modo. Levaram uma vida consagrada a Deus. Muitos de entre eles, sob o impulso
do Espírito Santo, viveram na solidão; outros fundaram famílias religiosas que a Igreja de
bom grado acolheu e aprovou com a sua autoridade» (472).
919. Os bispos devem esforçar-se sempre por discernir os novos dons de vida consagrada,
confiados pelo Espírito Santo à sua Igreja. A aprovação de novas formas de vida consagrada é
reservada à Sé Apostólica (473).

A VIDA EREMÍTICA

920. Os eremitas nem sempre fazem profissão pública dos três conselhos evangélicos; mas,
«por meio de um mais estrito apartamento do mundo, do silêncio na solidão, da oração assí-
dua e da penitência, consagram a sua vida ao louvor de Deus e à salvação do mundo» (474).
921. Os eremitas manifestam o aspecto interior do mistério da Igreja que é a intimidade pess-
oal com Cristo. Oculta aos olhos dos homens, a vida do eremita é pregação silenciosa d'Aquele
a Quem entregou a sua vida. Cristo é tudo para ele. É uma vocação especial para encontrar no
deserto, no próprio combate espiritual, a glória do Crucificado.

AS VIRGENS E AS VIÚVAS CONSAGRADAS

922. Já desde os tempos apostólicos, apareceram virgens (475) e viúvas cristãs (476), chama-
das pelo Senhor a unirem-se a Ele sem partilha, numa maior liberdade de coração, de corpo e
de espírito, que tomaram a decisão, aprovada pela Igreja, de viver, respectivamente, no estado
de virgindade ou de castidade perpétua, «por amor do Reino dos céus» (Mt 19, 12).
923. As virgens, «emitindo o santo propósito de seguir mais de perto a Cristo, são consagra-
das a Deus pelo Bispo diocesano segundo o rito litúrgico aprovado, desposam-se misticamente
com Cristo Filho de Deus e dedicam-se ao serviço da Igreja» (477). Por este ritual solene (con-
secratio virginum – consagração das virgens), a «virgem é constituída como pessoa con-
sagrada, sinal transcendente do amor da Igreja a Cristo, imagem escatológica da Esposa
celeste e da vida futura» (478).
924. «Próxima das outras formas de vida consagrada» (479), a ordem das virgens estabelece
a mulher que vive no mundo (ou a monja) na oração, na penitência, no serviço dos seus
irmãos e no trabalho apostólico, segundo o estado e carismas respectivos concedidos a cada
uma (480). As virgens consagradas podem associar-se para observarem mais fielmente os
seus propósitos (481).

A VIDA RELIGIOSA
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925. Nascida no Oriente, nos primeiros séculos do cristianismo (482), e vivida em institutos
canonicamente erectos pela Igreja (483), a vida religiosa distingue-se das outras formas de
vida consagrada pelo aspecto cultual, pela profissão pública dos conselhos evangélicos, pela
vida fraterna em comum e pelo testemunho dado a respeito da união de Cristo e da Igreja
(484).
926. A vida religiosa faz parte do mistério da Igreja. É um dom que a Igreja recebe do seu
Senhor, e que oferece, como um estado de vida estável, ao fiel chamado por Deus à profissão
dos conselhos. Assim, a Igreja pode, ao mesmo tempo, manifestar Cristo e reconhecer-se
como Esposa do Salvador. A vida religiosa é convidada a significar, nas suas variadas formas,
a própria caridade de Deus, em linguagem do nosso tempo.
927. Todos os religiosos, isentos ou não (485), têm o seu lugar entre os cooperadores do bispo
diocesano na sua função pastoral (486). A implantação e a expansão missionária da Igreja
requerem a presença da vida religiosa em todas as suas formas, desde os começos da evangel-
ização (487). «A história confirma os grandes méritos das famílias religiosas na propagação da
fé e na formação de novas Igrejas, desde as antigas instituições monásticas e as Ordens medi-
evais, até às congregações modernas» (488).

OS INSTITUTOS SECULARES

928. «Instituto secular é o instituto de vida consagrada, em que os fiéis, vivendo no século, se
esforçam por atingir a perfeição da caridade e por contribuir, sobretudo a partir de dentro,
para a santificação do mundo» (489).
929. Os membros destes institutos, mediante uma «vida perfeita e inteiramente consagrada
[a esta] santificação» (490), tomam parte na tarefa de evangelização da Igreja, «no mundo e a
partir do mundo» (491), onde a sua presença actua «à maneira de fermento» (492). O seu
testemunho de vida cristã visa ordenar segundo Deus as realidades temporais e impregnar o
mundo com a força do Evangelho. Assumem, por vínculos sagrados, os conselhos evangélicos
e mantêm entre si a comunhão e fraternidade próprias do seu teor de vida secular (493).

AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA

930. Aproximam-se das diversas formas de vida consagrada, «as sociedades de vida
apostólica, cujos membros, sem votos religiosos, prosseguem o fim apostólico próprio da so-
ciedade e, vivendo em comum a vida fraterna, de acordo com a própria forma de vida, ten-
dem, pela observância das constituições, à perfeição da caridade. Entre elas há sociedades, cu-
jos membros [...] assumem os conselhos evangélicos» segundo as suas constituições» (494).

CONSAGRAÇÃO E MISSÃO: ANUNCIAR O REI QUE VEM

931. Entregando-se a Deus amado sobre todas as coisas, aquele que pelo Baptismo já Lhe es-
tava devotado, encontra-se, assim, mais intimamente consagrado ao serviço divino e dedicado
ao bem da Igreja. Pelo estado de consagração a Deus, a Igreja manifesta Cristo e mostra como
o Espírito Santo nela actua de modo admirável. Aqueles que professam os conselhos evangéli-
cos têm, pois, por missão, antes de mais, viver a sua consagração. «Visto estarem dedicados,
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em virtude da sua consagração, ao serviço da Igreja, têm obrigação de trabalhar, de modo es-
pecial, segundo a índole própria do instituto, na acção missionária» (495).
932. Na Igreja, que é como o sacramento, isto é, o sinal e o instrumento da vida de Deus, a
vida consagrada surge como um sinal particular do mistério da Redenção. Seguir e imitar
Cristo «mais de perto», manifestar «mais claramente» o seu aniquilamento, é entrar «mais
profundamente» presente, no coração de Cristo, aos seus contemporâneos. Quem segue este
caminho «mais estreito» estimula os seus irmãos pelo seu exemplo e «dá este esplêndido e
sublime testemunho: o mundo não pode ser transfigurado e oferecido a Deus sem o espírito
das bem-aventuranças» (496).
933. Quer este testemunho seja público, como no estado religioso, quer seja mais discreto ou
mesmo secreto, a vinda de Cristo é, para todos os consagrados, a origem e a meta das suas
vidas:
«Como o povo de Deus não tem na terra cidade permanente [...], o estado religioso [...] mani-
festa a todos os crentes a presença, já neste mundo, dos bens celestes; dá testemunho da vida
nova e eterna adquirida pela redenção de Cristo e anuncia a ressurreição futura e a glória
celeste» (497).

Resumindo:

934. «Por instituição divina, há na Igreja, entre os fiéis, ministros sagrados, também cha-
mados, em direito, clérigos, sendo os outros chamados leigos». E há fiéis que, pertencendo a
uma ou a outra destas duas categorias, se consagraram a Deus pela profissão dos conselhos
evangélicos e servem assim a missão da Igreja (498).
935. Para anunciar a fé e implantar o seu Reino, Cristo envia os Apóstolos e respectivos
sucessores. Fá-los participantes da sua missão. É d'Ele que uns e outros recebem o poder de
agir em seu nome.
936. 0 Senhor fez de Pedro o fundamento visível da sua Igreja. Deu-lhe as chaves dela. O
bispo da Igreja de Roma, sucessor de S. Pedro, é «a cabeça do colégio dos bispos, vigário de
Cristo e pastor da Igreja universal neste mundo» (499).
937. 0 Papa «está revestido, por instituição divina, do poder supremo, plenário, imediato e
universal para o governo das almas» (500).
938. Os bispos, estabelecidos pelo Espírito Santo, sucedem aos Apóstolos. São, «cada um
por sua parte, princípio visível e fundamento da unidade nas suas Igrejas particulares»
(501).
939. Ajudados pelos presbíteros seus cooperadores e pelos diáconos, os bispos têm o en-
cargo de ensinar autenticamente a fé, celebrar o culto divino, sobretudo a Eucaristia, e gov-
ernar a sua Igreja como verdadeiros pastores. Incumbe-lhes também o cuidado de todas as
Igrejas, com e sob a orientação do Papa.
940. «Sendo próprio do estado dos leigos viverem a sua vida no meio do mundo e dos as-
suntos profanos, eles são chamados por Deus a exercer o seu apostolado no mundo à
maneira de fermento, graças ao vigor do seu espírito cristão» (502).
941. Os leigos participam do sacerdócio de Cristo: cada vez mais unidos a Ele, desenvolvem
a graça do Baptismo e da Confirmação em todas as dimensões da vida pessoal, familiar, so-
cial e eclesial, e assim realizam a vocação à santidade dirigida a todos os baptizados.
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942. Graças à sua missão profética, os leigos «são também chamados a ser, em todas as cir-
cunstâncias e no próprio coração da comunidade humana, testemunhas de Cristo» (503).
943. Graças à sua missão real, os leigos têm o poder de vencer em si mesmos e no mundo o
império do pecado, mediante a abnegação e a santidade de vida (504).
944. A vida consagrada a Deus caracteriza-se pela profissão pública dos conselhos
evangélicos de pobreza, castidade e obediência, num estado de vida estável reconhecido pela
Igreja.
945. Entregue a Deus, amado sobre todas as coisas, aquele que o Baptismo já a Ele tinha
destinado, encontra-se, no estado de vida consagrada, mais intimamente votado ao serviço
divino e dedicado ao bem de toda a Igreja.

PARÁGRAFO 5

A COMUNHÃO DOS SANTOS

946. Depois de ter confessado «a santa Igreja Católica», o Símbolo dos Apóstolos acrescenta
«a comunhão dos santos». Este artigo é, em certo sentido, uma explicitação do anterior: pois
«que é a Igreja senão a assembleia de todos os santos?» (505). A comunhão dos santos é pre-
cisamente a Igreja.
947. «Uma vez que todos os crentes formam um só corpo, o bem duns é comunicado aos out-
ros [...]. E assim, deve-se acreditar que existe uma comunhão de bens na Igreja. [...] Mas o
membro mais importante é Cristo, que é a Cabeça [...]. Assim, o bem de Cristo é comunicado a
todos os membros, comunicação que se faz através dos sacramentos da Igreja» (506). «Como
a Igreja é governada por um só e mesmo Espírito, todos os bens por ela recebidos tornam-se
necessariamente um fundo comum» (507).
948. A expressão «comunhão dos santos» tem, portanto, dois significados estreitamente lig-
ados: «comunhão nas coisas santas, sancta», e «comunhão entre as pessoas santas, sancti».
«Sancta sanctis! (O que é santo, para aqueles que são santos)». Assim proclama o celebrante
na maior parte das liturgias orientais, no momento da elevação dos santos Dons antes do ser-
viço da comunhão. Os fiéis (sancti) são alimentados pelo Corpo e Sangue de Cristo (sancta),
para crescerem na comunhão do Espírito Santo (Koinônia) e a comunicarem ao mundo.

I. A comunhão dos bens espirituais

949. Na comunidade primitiva de Jerusalém, os discípulos «eram assíduos ao ensino dos


Apóstolos, à comunhão fraterna, à fracção do pão e às orações» (Act 2, 42). A comunhão na fé.
A fé dos fiéis é a fé da Igreja recebida dos Apóstolos, tesouro de vida que
se enriquece na medida em que é partilhada.
950. A comunhão nos sacramentos. «O fruto de todos os sacramentos pertence a todos. Os
sacramentos, e sobretudo o Baptismo, que é como que a porta por onde os homens entram na
Igreja, são outros tantos vínculos sagrados que os unem todos e os ligam a Jesus Cristo. A
comunhão dos santos é a comunhão dos sacramentos [...];o nome de comunhão pode aplicar-
se a cada um deles, porque cada um deles nos une a Deus [...]. Mas este nome convém mais à
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Eucaristia do que a qualquer outro, porque é principalmente ela que consuma esta comun-
hão» (508).
951. A comunhão dos carismas: na comunhão da Igreja, o Espírito Santo «distribui também
graças especiais entre os fiéis de todas as ordens» para a edificação da Igreja (509). Ora, em
cada um se manifestam os dons do Espírito, para o bem comum» (1 Cor 12, 7).
952. «Eles punham tudo em comum» (Act 4, 32): «Tudo o que o verdadeiro cristão possui,
deve olhá-lo como um bem que lhe é comum com os demais, e deve estar sempre pronto e ser
diligente para ir em socorro do pobre e da miséria do próximo» (510). O cristão é um adminis-
trador dos bens do Senhor (511).
953. A comunhão da caridade: na sanctorum communio, «nenhum de nós vive para si
mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo» (Rm 14, 7). «Se um membro sofre, todos os
membros sofrem com ele; se um membro for honrado por alguém, todos os membros se ale-
gram com ele. Vós sois Corpo de Cristo e seus membros, cada um na parte que lhe diz re-
speito» (1 Cor 12, 26-27). «A caridade não é interesseira» (1 Cor 13, 5) (512). O mais insigni-
ficante dos nossos actos, realizado na caridade, reverte em proveito de todos, numa solidar-
iedade com todos os homens, vivos ou defuntos, que se funda na comunhão dos santos. Pelo
contrário, todo o pecado prejudica esta comunhão.

II. A comunhão entre a Igreja do céu e a da terra

954. Os três estados da Igreja. «Até que o Senhor venha na sua majestade e todos os seus an-
jos com Ele e, vencida a morte, tudo Lhe seja submetido, dos seus discípulos uns peregrinam
na terra, outros, passada esta vida, são purificados, e outros, finalmente, são glorificados e
contemplam "claramente Deus trino e uno, como Ele é"» (513):
«Todos, porém, comungamos, embora de modo e grau diversos, no mesmo amor de Deus e do
próximo, e todos entoamos ao nosso Deus o mesmo hino de glória. Com efeito, todos os que
são de Cristo e têm o seu Espírito, formam uma só Igreja e n'Ele estão unidos uns aos outros»)
(514).
955. «E assim, de modo nenhum se interrompe a união dos que ainda caminham sobre a
terra com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo: mas antes, segundo a constante fé da
Igreja, essa união é reforçada pela comunicação dos bens espirituais» (515).
956. A intercessão dos santos. «Os bem-aventurados, estando mais intimamente unidos com
Cristo, consolidam mais firmemente a Igreja na santidade [...]. Eles não cessam de interceder
a nosso favor, diante do Pai, apresentando os méritos que na terra alcançaram, graças ao Me-
diador único entre Deus e os homens, Jesus Cristo [...]. A nossa fraqueza é assim grandemente
ajudada pela sua solicitude fraterna» (516):
«Não choreis, que eu vos serei mais útil depois da morte e vos ajudarei mais eficazmente que
durante a vida» (515).
«Quero passar o meu céu a fazer o bem sobre a terra» (518)
957. A comunhão com os santos. «Não é só por causa do seu exemplo que veneramos a
memória dos bem-aventurados, mas ainda mais para que a união de toda a Igreja no Espírito
aumente com o exercício da caridade fraterna. Pois, assim como a comunhão cristã entre os
cristãos ainda peregrinos nos aproxima mais de Cristo, assim também a comunhão com os
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santos nos une a Cristo, de quem procedem, como de fonte e Cabeça, toda a graça e a própria
vida do povo de Deus» (519).
«A Cristo, nós O adoramos, porque Ele é o Filho de Deus; quanto aos mártires, nós os
amamos como a discípulos e imitadores do Senhor: e isso é justo, por causa da sua devoção
incomparável para com o seu Rei e Mestre. Assim nós possamos também ser seus compan-
heiros e condiscípulos!» (520).
958. A comunhão com os defuntos. «Reconhecendo claramente esta comunicação de todo o
Corpo místico de Cristo, a Igreja dos que ainda peregrinam venerou, com muita piedade,
desde os primeiros tempos do cristianismo, a memória dos defuntos; e, "porque é um
pensamento santo e salutar rezar pelos mortos, para que sejam livres de seus pecados" (2 Mac
12, 46), por eles ofereceu também sufrágios» (521). A nossa oração por eles pode não só ajudá-
los, mas também tornar mais eficaz a sua intercessão em nosso favor.
959. Na única família de Deus. «Todos os que somos filhos de Deus e formamos em Cristo
uma família, ao comunicarmos uns com os outros na caridade mútua e no comum louvor da
Santíssima Trindade, correspondemos à íntima vocação da Igreja» (522).

Resumindo:

960. A Igreja é «comunhão dos santos»: esta expressão designa, em primeiro lugar, as
«coisas santas» (sancta) e, antes de mais, a Eucaristia, pela qual «é representada e se real-
iza a unidade dos fiéis que constituem um só Corpo em Cristo» (523).
961. Este termo também designa a comunhão das «pessoas santas» (sancti) em Cristo, que
«morreu por todos», de modo que o que cada um faz ou sofre por Cristo e em Cristo reverte
em proveito de todos.
962. «Nós cremos na comunhão de todos os fiéis de Cristo: dos que peregrinam na terra,
dos defuntos que estão levando a cabo a sua purificação e dos bem-aventurados do céu:
formam todos uma só Igreja; e cremos que, nesta comunhão, o amor misericordioso de Deus
e dos seus santos está sempre atento às nossas orações» (524).

PARÁGRAFO 6

MARIA – MÃE DE CRISTO MÃE DA IGREJA

963. Depois de termos falado do papel da Virgem Maria no mistério de Cristo e do Espírito, é
conveniente considerarmos agora o seu lugar no mistério da Igreja. «Efectivamente, a Virgem
Maria [...] é reconhecida e honrada como verdadeira Mãe de Deus e do Redentor [...]. Ao
mesmo tempo, porém, é verdadeiramente "Mãe dos membros (de Cristo) [...], porque cooper-
ou com o seu amor para que na Igreja nascessem os fiéis, membros daquela Cabeça"» (525).
«Maria, [...] Mãe de Cristo e Mãe da Igreja» (526).

I. A maternidade de Maria em relação à Igreja

INTEIRAMENTE UNIDA A SEU FILHO...


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964. O papel de Maria em relação à Igreja é inseparável da sua união com Cristo e decorre
dela directamente. «Esta associação de Maria com o Filho na obra da salvação, manifesta-se
desde a concepção virginal de Cristo até à sua morte» (527). Mas é particularmente manifesta
na hora da sua paixão:
«A Bem-aventurada Virgem avançou na peregrinação de fé, e manteve fielmente a sua união
como Filho até à Cruz, junto da qual esteve de pé, não sem um desígnio divino; padeceu
acerbamente com o seu Filho único e associou-se com coração de mãe ao seu sacrifício, con-
sentindo amorosamente na imolação da vítima que d'Ela nascera; e, por fim, foi dada por mãe
ao discípulo pelo próprio Jesus Cristo, agonizante na Cruz, com estas palavras: "Mulher, eis aí
o teu filho" (Jo 19, 26-27)» (528).
965. Depois da Ascensão do seu Filho, Maria «assistiu com suas orações aos começos da
Igreja» (529). E, reunida com os Apóstolos e algumas mulheres, vemos «Maria implorando
com as suas orações o dom daquele Espírito, que já na Anunciação a cobrira com a Sua som-
bra» (530).

... TAMBÉM NA SUA ASSUNÇÃO...

966. «Finalmente, a Virgem Imaculada, preservada imune de toda a mancha da culpa origin-
al, terminado o curso da vida terrena, foi elevada ao céu em corpo e alma e exaltada pelo Sen-
hor como rainha, para assim se conformar mais plenamente com o seu Filho, Senhor dos sen-
hores e vencedor do pecado e da morte» (529). A Assunção da santíssima Virgem é uma sin-
gular participação na ressurreição do seu Filho e uma antecipação da ressurreição dos outros
cristãos:
«No teu parto guardaste a virgindade e na tua dormição não abandonaste a mundo, ó Mãe de
Deus: alcançaste a fonte da vida. Tu que concebeste o Deus vivo e que, pelas tuas orações, hás-
de livrar as nossas almas da morte» (532).

... ELA É NOSSA MÃE NA ORDEM DA GRAÇA

967. Pela sua plena adesão à vontade do Pai, à obra redentora do Filho e a todas as moções do
Espírito Santo, a Virgem Maria é para a Igreja o modelo da fé e da caridade. Por isso, ela é
«membro eminente e inteiramente singular da Igreja» (533) e constitui mesmo «a realização
exemplar»,o typus, da Igreja (534).
968. Mas o seu papel em relação à Igreja e a toda a humanidade vai ainda mais longe. Ela
«cooperou de modo inteiramente singular, com a sua fé, a sua esperança e a sua ardente
caridade, na obra do Salvador, para restaurar nas almas a vida sobrenatural. É, por essa razão,
nossa Mãe, na ordem da graça» (535).
969. «Esta maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção, desde o
consentimento, que fielmente deu na anunciação e que manteve inabalável junto da Cruz, até
à consumação perpétua de todos os eleitos. De facto, depois de elevada ao céu, não abandonou
esta missão salvadora, mas, com a sua multiforme intercessão, continua a alcançar-nos os
dons da salvação eterna [...]. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos de ad-
vogada, auxiliadora, socorro e medianeira» (536).
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970. «Mas a função maternal de Maria para com os homens, de modo algum ofusca ou di-
minui a mediação única de Cristo, mas antes manifesta a sua eficácia. Com efeito, todo o in-
fluxo salutar da Virgem santíssima [...] deriva da abundância dos méritos de Cristo, funda-se
na sua mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia» (537).
«Efectivamente, nenhuma criatura pode ser equiparada ao Verbo Encarnado e Redentor; mas,
assim como o sacerdócio de Cristo é participado de diversos modos pelos ministros e pelo
povo fiel, e assim como a bondade de Deus, sendo uma só, se difunde variamente pelos seres
criados, assim também a mediação única do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas,
uma cooperação variada, que participa dessa fonte única» (538).

II. O culto à Santíssima Virgem

971. «Todas as gerações me hão-de proclamar ditosa» (Lc 1, 48): «a piedade da Igreja para
com a santíssima Virgem pertence à própria natureza do culto cristão» (539). A santíssima
Virgem «é com razão venerada pela Igreja com um culto especial. E, na verdade, a santíssima
Virgem é, desde os tempos mais antigos, honrada com o título de "Mãe de Deus", e sob a sua
protecção se acolhem os fiéis implorando-a em todos os perigos e necessidades [...]. Este culto
[...], embora inteiramente singular, difere essencialmente do culto de adoração que se presta
por igual ao Verbo Encarnado, ao Pai e ao Espírito Santo, e favorece-o poderosamente» (540).
Encontra a sua expressão nas festas litúrgicas dedicadas à Mãe de Deus (541) e na oração
mariana, como o santo rosário, «resumo de todo o Evangelho» (542).

III. Maria - ícone escatológico da Igreja

972. Depois de termos falado da Igreja, da sua origem, missão e destino, não poderíamos ter-
minar melhor do que voltando a olhar para Maria, a fim de contemplar nela o que a Igreja é
no seu mistério, na sua «peregrinação da fé», e o que será na pátria ao terminar a sua camin-
hada, onde a espera, na «glória da santíssima e indivisa Trindade» e «na comunhão de todos
os santos» (543), Aquela que a mesma Igreja venera como Mãe do seu Senhor e como sua pró-
pria Mãe:
«Assim como, glorificada já em corpo e alma, a Mãe de Jesus é imagem e início da igreja que
se há-de consumar no século futuro, assim também, brilha na terra como sinal de esperança
segura e de consolação, para o povo de Deus ainda peregrino» (544).

Resumindo:

973. Ao pronunciar o «Fiat» da Anunciação e dando o seu consentimento ao mistério da En-


carnação, Maria colabora desde logo com toda a obra a realizar por seu Filho. Ela é Mãe,
onde quer que Ele seja Salvador e Cabeça do Corpo Místico.
974. Terminado o curso da sua vida terrena, a santíssima Virgem Maria foi elevada em
corpo e alma para a glória do céu, onde participa já na glória da ressurreição do seu Filho,
antecipando a ressurreição de todos os membros do Seu Corpo.
975. «Nós cremos que a santíssima Mãe de Deus, a nova Eva, a Mãe da Igreja, continua a
desempenhar no céu o seu papel maternal para com os membros de Cristo» (545).
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ARTIGO 10

«CREIO NA REMISSÃO DOS PECADOS»

976. O Símbolo dos Apóstolos liga a fé no perdão dos pecados à fé no Espírito Santo, mas
também à fé na Igreja e na comunhão dos santos. Foi ao dar o Espírito Santo aos Apóstolos
que Cristo ressuscitado lhes transmitiu o seu próprio poder divino de perdoar os pecados:
«Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; e
àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos» (Jo 20, 22-23).
(A segunda parte do Catecismo tratará expressamente do perdão dos pecados por meio do Baptismo, do sacra-
mento da Penitência e dos outros sacramentos, sobretudo da Eucaristia. Por isso, basta evocar aqui brevemente
alguns dados fundamentais).

I. Um só Baptismo para a remissão dos pecados

977. Nosso Senhor ligou o perdão dos pecados à fé e ao Baptismo: «Ide por todo o mundo e
proclamai a Boa-Nova a todas as criaturas. Quem acreditar e for baptizado será salvo» (Mc 16,
15-16). O Baptismo é o primeiro e principal sacramento do perdão dos pecados, porque nos
une a Cristo, que morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação (546), a
fim de que «também nós vivamos numa vida nova» (Rm 6, 4).
978. «No momento em que fazemos a nossa primeira profissão de fé, ao receber o santo
Baptismo que nos purifica, o perdão que recebemos é tão pleno e total que não fica absoluta-
mente nada por apagar, quer da falta original, quer das faltas cometidas de própria vontade
por acção ou omissão; nem qualquer pena a suportar para as expiar [...]. Mas apesar disso, a
graça do Baptismo não isenta ninguém de nenhuma das enfermidades da natureza. Pelo
contrário, resta-nos ainda combater os movimentos da concupiscência, que não cessam de nos
arrastar para o mal» (547).
979. Neste combate contra a inclinação para o mal, quem seria suficientemente forte e vigil-
ante para evitar todas as feridas do pecado? «Portanto, se era necessário que a Igreja tivesse o
poder de perdoar os pecados, era também necessário que o Baptismo não fosse para ela o
único meio de se servir destas chaves do Reino dos céus que tinha recebido de Jesus Cristo;
era necessário que fosse capaz de perdoar as faltas a todos os penitentes que tivessem pecado,
até mesmo ao último dia da sua vida» (548).
980. É pelo sacramento da Penitência que o baptizado pode ser reconciliado com Deus e com
a Igreja:
«Os Santos Padres tiveram razão quando chamaram à Penitência um "baptismo laborioso"
(549). Este sacramento da Penitência é necessário para a salvação daqueles que caíram depois
do Baptismo, tal como o próprio Baptismo o é para os que ainda não foram regenerados»
(550).

II. O poder das chaves

981. Depois da ressurreição, Cristo enviou os seus Apóstolos «a anunciar a todos os povos o
arrependimento em seu nome, com vista à remissão dos pecados» (Lc 24, 47). Este
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«ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18), não o cumprem os Apóstolos e os seus sucessores


somente anunciando aos homens o perdão de Deus que nos foi merecido por Jesus Cristo, e
chamando- os à conversão e à fé; mas também comunicando-lhes a remissão dos pecados pelo
Baptismo e reconciliando-os com Deus e com a Igreja, graças ao poder das chaves recebido de
Cristo:
A Igreja «recebeu as chaves do Reino dos céus, para que nela se faça a remissão dos pecados
pelo Sangue de Cristo e a acção do Espírito Santo. É nesta Igreja que a alma, morta pelos
pecados, recupera a vida para viver com Cristo, cuja graça nos salvou» (551).
982. Não há nenhuma falta, por mais grave que seja, que a santa Igreja não possa perdoar.
«Nem há pessoa, por muito má e culpável que seja, a quem não deva ser proposta a esperança
certa do perdão, desde que se arrependa verdadeiramente dos seus erros» (552). Cristo, que
morreu por todos os homens, quer que na sua Igreja as portas do perdão estejam sempre
abertas a todo aquele que se afastar do pecado (553).
983. A catequese deve esforçar-se por despertar e alimentar, entre os fiéis, a fé na grandeza
incomparável do dom que Cristo ressuscitado fez à sua Igreja: a missão e o poder de ver-
dadeiramente perdoar os pecados, pelo ministério dos Apóstolos e seus sucessores:
«O Senhor quer que os seus discípulos tenham um poder imenso: Ele quer que os seus pobres
servidores façam, em seu nome, tudo quanto Ele fazia quando vivia na terra» (554).
«Os sacerdotes receberam um poder que Deus não deu nem aos anjos nem aos arcanjos. [...]
Deus sanciona lá em cima tudo o que os sacerdotes fazem cá em baixo» (555).
«Se na Igreja não houvesse a remissão dos pecados, nada havia a esperar, não existiria
qualquer esperança duma vida eterna, duma libertação eterna. Dêmos graças a Deus, que deu
à sua Igreja um tal dom» (556).

Resumindo:

984. O Credo relaciona «o perdão dos pecados» com a profissão de fé no Espírito Santo. De
facto, Cristo ressuscitado confiou aos Apóstolos o poder de perdoar os pecados, quando lhes
deu o Espírito Santo.
985. O Baptismo é o primeiro e principal sacramento para o perdão dos pecados: une-nos a
Cristo morto e ressuscitado e dá-nos o Espírito Santo.
986. Por vontade de Cristo, a Igreja possui o poder de perdoar os pecados dos baptizados e
exerce-o através dos bispos e dos presbíteros, de modo habitual no sacramento da
Penitência.
987. «Na remissão dos pecados, os sacerdotes e os sacramentos são instrumentos mediante
os quais nosso Senhor Jesus Cristo, único autor e dispensador da salvação, nos concede a re-
missão dos pecados e a graça da justificação» (557).

ARTIGO 11

«CREIO NA RESSURREIÇÃO DA CARNE»


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988. O Credo cristão — profissão da nossa fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, e na sua
acção criadora, salvadora e santificadora — culmina na proclamação da ressurreição dos mor-
tos no fim dos tempos, e na vida eterna.
989. Nós cremos e esperamos firmemente que, tal como Cristo ressuscitou verdadeiramente
dos mortos e vive para sempre, assim também os justos, depois da morte, viverão para sempre
com Cristo ressuscitado, e que Ele os ressuscitará no último dia (558). Tal como a d'Ele, tam-
bém a nossa ressurreição será obra da Santíssima Trindade:
«Se o Espírito d'Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que res-
suscitou Cristo Jesus de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, pelo
seu Espírito que habita em vós» (Rm 8, 11) (559).
990. A palavra «carne» designa o homem na sua condição de fraqueza e mortalidade (560)
«Ressurreição da carne» significa que, depois da morte, não haverá somente a vida da alma
imortal, mas também os nossos «corpos mortais» (Rm 8, 11) retomarão a vida.
991. Crer na ressurreição dos mortos foi, desde o princípio, um elemento essencial da fé
cristã. «A ressurreição dos mortos é a fé dos cristãos: é por crer nela que somos cristãos»
(561):
«Como é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos mortos? Se não há res-
surreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a
nossa pregação, e vã é também a vossa fé. [...] Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como
primícias dos que morreram» (1 Cor 15, 12-14, 20).

I. A ressurreição de Cristo e a nossa ressurreição

REVELAÇÃO PROGRESSIVA DA RESSURREIÇÃO

992. A ressurreição dos mortos foi revelada progressivamente por Deus ao seu povo. A esper-
ança na ressurreição corporal dos mortos impôs-se como consequência intrínseca da fé num
Deus criador do homem todo, alma e corpo. O Criador do céu e da terra é também Aquele que
mantém fielmente a sua aliança com Abraão e a sua descendência. É nesta dupla perspectiva
que começará a exprimir-se a fé na ressurreição. Nas suas provações, os mártires Macabeus
confessam:
«O Rei do universo ressuscitar-nos-á para uma vida eterna, a nós que morremos pelas suas
leis» (2 Mac 7, 9). «É preferível morrermos às mãos dos homens e termos a esperança em
Deus de que havemos de ser ressuscitados por Ele» (2 Mac 7, 14) (562).
993. Os fariseus (563) e muitos contemporâneos do Senhor (564) esperavam a ressurreição.
Jesus ensina-a firmemente. E aos saduceus, que a negavam, responde: «Não andareis vós en-
ganados, ignorando as Escrituras e o poder de Deus?» (Mc 12, 24). A fé na ressurreição as-
senta na fé em Deus, que «não é um Deus de mortos, mas de vivos» (Mc 12, 27).
994. Mas há mais: Jesus liga a fé na ressurreição à sua própria pessoa: «Eu sou a Ressur-
reição e a Vida» (Jo 11, 25). É o próprio Jesus que, no último dia, há-de ressuscitar os que
n'Ele tiverem acreditado (565), comido o seu Corpo e bebido o seu Sangue (566) Desde logo,
Ele dá um sinal disto mesmo e uma garantia, restituindo a vida a alguns mortos (567) e
preanunciando assim a sua própria ressurreição que, no entanto, será de ordem diferente.
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Jesus fala deste acontecimento único como do «sinal de Jonas» (568), do sinal do templo
(569); Ele anuncia a sua ressurreição ao terceiro dia depois da morte (570).
995. Ser testemunha de Cristo é ser «testemunha da sua ressurreição» (Act 1, 22) (571), é «ter
comido e bebido com Ele depois da sua ressurreição dos mortos» (Act 10, 41). A esperança
cristã na ressurreição é toda marcada pelos encontros com Cristo ressuscitado. Nós ressuscit-
aremos como Ele, com Ele e por Ele.
996. Desde o princípio, a fé cristã na ressurreição deparou com incompreensões e oposições
(572). «Não há ponto em que a fé cristã encontre mais contradição do que o da ressurreição da
carne» (573). É bastante comum a aceitação de que, depois da morte, a vida da pessoa hu-
mana continua de modo espiritual. Mas como acreditar que este corpo, tão manifestamente
mortal, possa ressuscitar para a vida eterna?

COMO É QUE OS MORTOS RESSUSCITAM?

997. O que é ressuscitar? Na morte, separação da alma e do corpo, o corpo do homem cai na
corrupção, enquanto a sua alma vai ao encontro de Deus, embora ficando à espera de se re-
unir ao seu corpo glorificado. Deus, na sua omnipotência, restituirá definitivamente a vida in-
corruptível aos nossos corpos, unindo-os às nossas almas pela virtude da ressurreição de
Jesus.
998. Quem ressuscitará? Todos os homens que tiverem morrido: «Os que tiverem praticado
o bem, para uma ressurreição de vida e os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição
de condenação» (Jo 5, 29) (574).
999. Como? Cristo ressuscitou com o seu próprio corpo: «Vede as minhas mãos e os meus
pés: sou Eu mesmo» (Lc 24, 39); mas não regressou a uma vida terrena. De igual modo, n'Ele
«todos ressuscitarão com o seu próprio corpo, com o corpo que agora têm» (575), mas esse
corpo será «transformado em corpo glorioso» (576) em «corpo espiritual» (1 Cor 15, 44):
«Alguém poderia perguntar: "Como ressuscitam os mortos? Com que espécie de corpo voltam
eles?" Insensato! O que tu semeias não volta à vida sem morrer. E o que semeias não é o corpo
que há-de vir, é um simples grão [...]. O que é semeado sujeito à corrupção ressuscita incor-
ruptível; [...] os mortos ressuscitarão incorruptíveis [...]. É, de facto, necessário que este ser
corruptível se revista de incorruptibilidade, que este ser mortal se revista de imortalidade» (1
Cor 15, 35-37. 42. 52-53).
1000. Este «como» ultrapassa a nossa imaginação e o nosso entendimento; só na fé se torna
acessível. Mas a nossa participação na Eucaristia dá-nos já um antegozo da transfiguração do
nosso corpo, operada por Cristo:
«Assim como, depois de ter recebido a invocação de Deus, o pão que vem da terra deixa de ser
pão ordinário e é Eucaristia, constituída por duas coisas, uma terrena, outra celeste, do
mesmo modo os nossos corpos, que participam na Eucaristia, já não são corruptíveis, pois têm
a esperança da ressurreição» (577).
1001. Quando? Definitivamente o no último dia» (Jo 6, 39-40.44.54; 11, 24), «no fim do
mundo» (578). Com efeito, a ressurreição dos mortos está intimamente associada à Parusia de
Cristo:
«Ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, o próprio Senhor descerá do
céu e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro» (1 Ts 4, 16).
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RESSUSCITADOS COM CRISTO

1002. Se é verdade que Cristo nos há-de ressuscitar «no último dia», também é verdade que,
de certo modo, nós já ressuscitámos com Cristo. De facto, braças ao Espírito Santo, a vida
cristã é desde já, na terra, uma participação na morte e ressurreição de Cristo:
«Pelo Baptismo fostes sepultados com Cristo e também ressuscitastes com Ele, devido à fé
que tivestes na força de Deus, que O ressuscitou dos mortos [...]. Uma vez que ressuscitastes
com Cristo, aspirai às coisas do Alto, onde Cristo Se encontra sentado à direita de Deus» (Cl 2,
12; 3, 1).
1003. Unidos a Cristo pelo Baptismo, os crentes participam já realmente na vida celeste de
Cristo ressuscitado (579). Mas esta vida continua «escondida com Cristo em Deus» (Cl 3, 3).
«Ele próprio nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus, em Cristo Jesus» (Ef 2, 6). Alimenta-
dos pelo seu Corpo na Eucaristia, nós pertencemos já ao Corpo de Cristo. Quando ressuscitar-
mos no último dia, havemos também de nos «manifestar com Ele na glória» (Cl 3, 4).
1004. À espera desse dia, o corpo e a alma do crente participam já na dignidade de ser «em
Cristo». Daí a exigência do respeito para com o próprio corpo e também para com o corpo de
outrem, particularmente quando sofre:
«O corpo [...] é para o Senhor. E o Senhor é para o corpo. E Deus, que ressuscitou o Senhor,
também nos há-de ressuscitar a nós pelo seu poder. Não sabeis que os vossos corpos são
membros de Cristo? [...] Não sabeis que não pertenceis a vós próprios? [...]. Glorificai, pois, a
Deus no vosso corpo» (1 Cor 6, 13-15. 19-20).

II. Morrer em Cristo Jesus

1005. Para ressuscitar com Cristo, temos de morrer com Cristo, temos «de nos exilar do
corpo para habitarmos junto do Senhor» (2 Cor 5, 8). Nesta «partida» (580) que é a morte, a
alma é separada do corpo. Voltará a juntar-se-lhe no dia da ressurreição dos mortos (581).

A MORTE

1006. «É em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa» (582). Num
certo sentido, a morte do corpo é natural: mas sabemos pela fé que a morte é, de facto,
«salário do pecado» (Rm 6, 23) (583). E para aqueles que morrem na graça de Cristo, é uma
participação na morte do Senhor, a fim de poder participar na sua ressurreição (584).
1007. A morte é o termo da vida terrena. As nossas vidas são medidas pelo tempo no de-
curso do qual nós mudamos e envelhecemos. E como acontece com todos os seres vivos da
terra, a morte surge como o fim normal da vida. Este aspecto da morte confere uma urgência
às nossas vidas: a lembrança da nossa condição de mortais também serve para nos lembrar de
que temos um tempo limitado para realizar a nossa vida:
«Lembra-te do teu Criador nos dias da mocidade [...], antes que o pó regresse à terra, donde
veio, e o espírito volte para Deus que o concedeu» (Ecl 12, 1.7).
1008. A morte é consequência do pecado. Intérprete autêntico das afirmações da Sagrada
Escritura (585) e da Tradição, o Magistério da Igreja ensina que a morte entrou no mundo por
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causa do pecado do homem (586). Embora o homem possuísse uma natureza mortal. Deus
destinava-o a não morrer. A morte foi, portanto, contrária aos desígnios de Deus Criador e en-
trou no mundo como consequência do pecado (587). «A morte corporal, de que o homem es-
taria isento se não tivesse pecado» (588), é, pois, «o último inimigo» (1 Cor 15, 26) do homem
a ter de ser vencido.
1009. A morte é transformada por Cristo. Jesus, Filho de Deus, também sofreu a morte, pró-
pria da condição humana. Mas apesar da repugnância que sentiu perante ela (589), assumiu-a
num acto de submissão total e livre à vontade do Pai. A obediência de Jesus transformou em
bênção a maldição da morte (590).

O SENTIDO DA MORTE CRISTÃ

1010. Graças a Cristo, a morte cristã tem um sentido positivo. «Para mim, viver é Cristo e
morrer é lucro» (Fl 1, 21). «É digna de fé esta palavra: se tivermos morrido com Cristo, tam-
bém com Ele viveremos» (2 Tm 2, 11). A novidade essencial da morte cristã está nisto: pelo
Baptismo, o cristão já «morreu com Cristo» sacramentalmente para viver uma vida nova; se
morremos na graça de Cristo, a morte física consuma este «morrer com Cristo» e completa as-
sim a nossa incorporação n'Ele, no seu acto redentor:
«É bom para mim morrer em (eis) Cristo Jesus, mais do que reinar dum extremo ao outro da
terra. É a Ele que eu procuro, Ele que morreu por nós: é a Ele que eu quero, Ele que ressuscit-
ou para nós. Estou prestes a nascer [...]. Deixai-me receber a luz pura: quando lá tiver
chegado, serei um homem» (591).
1011. Na morte, Deus chama o homem a Si. É por isso que o cristão pode experimentar, em
relação à morte, um desejo semelhante ao de S. Paulo: «Desejaria partir e estar com Cristo»
(Fl 1, 23). E pode transformar a sua própria morte num acto de obediência e amor para com o
Pai, a exemplo de Cristo (592):
«O meu desejo terreno foi crucificado: [...] há em mim uma água viva que dentro de mim
murmura e diz: "Vem para o Pai"» (593). «Ansiosa por ver-te, desejo morrer» (594). «Eu não
morro, entro na vida» (595).
1012. A visão cristã da morte (596) é expressa de modo privilegiado na liturgia da Igreja:
«Para os que crêem em Vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma: e, desfeita a
morada deste exílio terrestre, adquirimos no céu uma habitação eterna» (597).
1013. A morte é o fim da peregrinação terrena do homem, do tempo de graça e misericórdia
que Deus lhe oferece para realizar a sua vida terrena segundo o plano divino e para decidir o
seu destino último. Quando acabar «a nossa vida sobre a terra, que é só uma» (598), não vol-
taremos a outras vidas terrenas. «Os homens morrem uma só vez» (Heb 9, 27). Não existe
«reencarnação» depois da morte.
1014. A Igreja exorta-nos a prepararmo-nos para a hora da nossa morte («Duma morte re-
pentina e imprevista, livrai-nos, Senhor»: antiga Ladainha dos Santos), a pedirmos à Mãe de
Deus que rogue por nós «na hora da nossa morte» (Oração da Ave-Maria) e a confiarmo-nos a
S. José, padroeiro da boa morte:
«Em todos os teus actos em todos os teus pensamentos, havias de te comportar como se
devesses morrer hoje. Se tivesses boa consciência, não terias grande receio da morte. Mais
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vale acautelares-te do pecado do que fugir da morte. Se hoje não estás preparado, como o es-
tarás amanhã?» (599).
«Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã a morte corporal, à qual nenhum homem vivo
pode escapar. Ai daqueles que morrem em pecado mortal: Bem-aventurados os que ela encon-
trar a cumprir as tuas santíssimas vontades, porque a segunda morte não lhes fará mal»
(600).

Resumindo:

1015. «Caro salutis est cardo – A carne é o fulcro da salvação» (601). Nós cremos em Deus,
que é o Criador da carne; cremos no Verbo que Se fez carne para remir a carne; cremos na
ressurreição da carne, acabamento da criação e da redenção da carne.
1016. Pela morte, a alma é separada do corpo; mas, na ressurreição, Deus restituirá a vida
incorruptível ao nosso corpo transformado, reunindo-o à nossa alma. Tal como Cristo res-
suscitou e vive para sempre, todos nós ressuscitaremos no último dia.
1017. «Nós cremos na verdadeira ressurreição desta carne que possuímos agora» (602). No
entanto, semeia-se no túmulo um corpo corruptível e ressuscita um corpo incorruptível
(603) um «corpo espiritual» (1 Cor 15, 44).
1018. Em consequência do pecado original, o homem deve sofrer a morte corporal, «de que
estaria isento, se não tivesse pecado» (604).
1019. Jesus, Filho de Deus, sofreu livremente a morte por nós, numa submissão total e livre
à vontade de Deus seu Pai. Pela sua morte, Ele venceu a morte, abrindo assim a todos os ho-
mens a possibilidade da salvação.

ARTIGO 12

«CREIO NA VIDA ETERNA»

1020. O cristão, que une a sua própria morte à de Jesus, encara a morte como chegada até
junto d'Ele, como entrada na vida eterna. A Igreja, depois de, pela última vez, ter pronunciado
sobre o cristão moribundo as palavras de perdão da absolvição de Cristo e de, pela última vez,
o ter marcado com uma unção fortificante e lhe ter dado Cristo, no Viático, como alimento
para a viagem, fala-lhe com estas doces e confiantes palavras:
«Parte deste mundo, alma cristã, em nome de Deus Pai omnipotente, que te criou, em nome
de Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, que por ti sofreu, em nome do Espírito Santo, que sobre ti
desceu; chegues hoje ao lugar da paz e a tua morada seja no céu, junto de Deus, na companhia
da Virgem Maria. Mãe de Deus, de São José e de todos os Anjos e Santos de Deus [...]. Confio-
te ao Criador para que voltes Àquele que te formou do pó da terra. Venham ao encontro de ti,
que estás a partir desta vida, Santa Maria, os Anjos e todos os Santos [...]. Vejas o teu
Redentor face a face e gozes da contemplação de Deus pelos séculos dos séculos» (605).

I. O juízo particular
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1021. A morte põe termo à vida do homem, enquanto tempo aberto à aceitação ou à rejeição
da graça divina, manifestada em Jesus Cristo (606). O Novo Testamento fala do juízo, princip-
almente na perspectiva do encontro final com Cristo na sua segunda vinda. Mas também
afirma, reiteradamente, a retribuição imediata depois da morte de cada qual, em função das
suas obras e da sua fé. A parábola do pobre Lázaro (607) e a palavra de Cristo crucificado ao
bom ladrão (608), assim como outros textos do Novo Testamento (609), falam dum destino
final da alma (610), o qual pode ser diferente para umas e para outras.
1022. Ao morrer, cada homem recebe na sua alma imortal a retribuição eterna, num juízo
particular que põe a sua vida em referência a Cristo, quer através duma purificação (611), quer
para entrar imediatamente na felicidade do céu (612), quer para se condenar imediatamente
para sempre (613).
«Ao entardecer desta vida, examinar-te-ão no amor» (614).

II. O céu

1023. Os que morrerem na graça e na amizade de Deus e estiverem perfeitamente purifica-


dos, viverão para sempre com Cristo. Serão para sempre semelhantes a Deus, porque O verão
«tal como Ele é» (1 Jo 3, 2), «face a face» (1 Cor 13, 12) (615):
«Com a nossa autoridade apostólica, definimos que, por geral disposição divina, as almas de
todos os santos mortos antes da paixão de Cristo [...] e as de todos os outros fiéis que mor-
reram depois de terem recebido o santo Baptismo de Cristo e nas quais nada havia a purificar
no momento da morte, ou ainda daqueles que, se no momento da morte houve ou ainda há
qualquer coisa a purificar, acabaram por o fazer [...] mesmo antes de ressuscitarem em seus
corpos e do Juízo universal – e isto depois da Ascensão ao céu do nosso Senhor e Salvador Je-
sus Cristo –, estiveram, estão e estarão no céu, associadas ao Reino dos céus e no paraíso
celeste, com Cristo, na companhia dos santos anjos. E depois da paixão e morte de nosso Sen-
hor Jesus Cristo, essas almas viram e vêem a essência divina com uma visão intuitiva e face a
face, sem a mediação de qualquer criatura» (616).
1024. Esta vida perfeita com a Santíssima Trindade, esta comunhão de vida e de amor com
Ela, com a Virgem Maria, com os anjos e todos os bem-aventurados, chama-se «céu». O céu é
o fim último e a realização das aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade
suprema e definitiva.
1025. Viver no céu é «estar com Cristo» (617). Os eleitos vivem «n'Ele»; mas n'Ele conser-
vam, ou melhor, encontram a sua verdadeira identidade, o seu nome próprio (618):
«Porque a vida consiste em estar com Cristo, onde está Cristo, aí está a vida, aí está o Reino»
(619).
1026. Pela sua morte e ressurreição, Jesus Cristo «abriu-nos» o céu. A vida dos bem- aven-
turados consiste na posse em plenitude dos frutos da redenção operada por Cristo, que associa
à sua glorificação celeste aqueles que n'Ele acreditaram e permaneceram fiéis à sua vontade. O
céu é a comunidade bem-aventurada de todos os que estão perfeitamente incorporados n'Ele.
1027. Este mistério de comunhão bem-aventurada com Deus e com todos os que estão em
Cristo ultrapassa toda a compreensão e toda a representação. A Sagrada Escritura fala-nos
dele por imagens: vida, luz, paz, banquete de núpcias, vinho do Reino, casa do Pai, Jerusalém
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celeste, paraíso: aquilo que «nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem jamais pas-
sou pelo pensamento do homem, Deus o preparou para aqueles que O amam» (1 Cor 2, 9).
1028. Em virtude da sua transcendência, Deus não pode ser visto tal como é, senão quando
Ele próprio abrir o seu mistério à contemplação imediata do homem e lhe der capacidade para
O contemplar. Esta contemplação de Deus na sua glória celeste é chamada pela Igreja «visão
beatífica»:
«Qual não será a tua glória e a tua felicidade quando fores admitido a ver a Deus, a ter a honra
de participar nas alegrias da salvação e da luz eterna, na companhia de Cristo Senhor teu
Deus, [...] gozar no Reino dos céus, na companhia dos justos e dos amigos de Deus, das alegri-
as da imortalidade alcançada!» (620).
1029. Na glória do céu, os bem-aventurados continuam a cumprir com alegria a vontade de
Deus, em relação aos outros homens e a toda a criação. Eles já reinam com Cristo. Com Ele
«reinarão pelos séculos dos séculos» (Ap 22, 5) (621).

III. A purificação final ou Purgatório

1030. Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não de todo purificados, embora
seguros da sua salvação eterna, sofrem depois da morte uma purificação, a fim de obterem a
santidade necessária para entrar na alegria do céu.
1031. A Igreja chama Purgatório a esta purificação final dos eleitos, que é absolutamente dis-
tinta do castigo dos condenados. A Igreja formulou a doutrina da fé relativamente ao Pur-
gatório sobretudo nos concílios de Florença (622) e de Trento (623). A Tradição da Igreja,
referindo-se a certos textos da Escritura (624) fala dum fogo purificador:
«Pelo que diz respeito a certas faltas leves, deve crer-se que existe, antes do julgamento, um
fogo purificador, conforme afirma Aquele que é a verdade, quando diz que, se alguém proferir
uma blasfémia contra o Espírito Santo, isso não lhe será perdoado nem neste século nem no
século futuro (Mt 12, 32). Desta afirmação podemos deduzir que certas faltas podem ser per-
doadas neste mundo e outras no mundo que há-de vir» (625).
1032. Esta doutrina apoia-se também na prática da oração pelos defuntos, de que já fala a
Sagrada Escritura: «Por isso, [Judas Macabeu] pediu um sacrifício expiatório para que os
mortos fossem livres das suas faltas» (2 Mac 12, 46). Desde os primeiros tempos, a Igreja hon-
rou a memória dos defuntos, oferecendo sufrágios em seu favor, particularmente o Sacrifício
eucarístico para que, purificados, possam chegar à visão beatífica de Deus. A Igreja re-
comenda também a esmola, as indulgências e as obras de penitência a favor dos defuntos:
«Socorramo-los e façamos comemoração deles. Se os filhos de Job foram purificados pelo sac-
rifício do seu pai (627) por que duvidar de que as nossas oferendas pelos defuntos lhes levam
alguma consolação? [...] Não hesitemos em socorrer os que partiram e em oferecer por eles as
nossas orações» (628).

IV. O Inferno

1033. Não podemos estar em união com Deus se não escolhermos livremente amá-Lo. Mas
não podemos amar a Deus se pecarmos gravemente contra Ele, contra o nosso próximo ou
contra nós mesmos: «Quem não ama permanece na morte. Todo aquele que odeia o seu irmão
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é um homicida: ora vós sabeis que nenhum homicida tem em si a vida eterna» (1 Jo 3, 14-15).
Nosso Senhor adverte-nos de que seremos separados d'Ele, se descurarmos as necessidades
graves dos pobres e dos pequeninos seus irmãos (629). Morrer em pecado mortal sem arre-
pendimento e sem dar acolhimento ao amor misericordioso de Deus, significa permanecer
separado d'Ele para sempre, por nossa própria livre escolha. E é este estado de auto-exclusão
definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados que se designa pela palavra
«Inferno».
1034. Jesus fala muitas vezes da «gehena» do «fogo que não se apaga» (630) reservada aos
que recusam, até ao fim da vida, acreditar e converter-se, e na qual podem perder-se, ao
mesmo tempo, a alma e o corpo (631). Jesus anuncia, em termos muitos severos, que «enviará
os seus anjos que tirarão do seu Reino [...] todos os que praticaram a iniquidade, e hão-de
lançá-los na fornalha ardente»(Mt 13, 41-42), e sobre eles pronunciará a sentença: «afastai-
vos de Mim, malditos, para o fogo eterno» (Mt 25, 41).
1035. A doutrina da Igreja afirma a existência do Inferno e a sua eternidade. As almas dos
que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos,
onde sofrem as penas do Inferno, «o fogo eterno» (632). A principal pena do inferno consiste
na separação eterna de Deus, o único em Quem o homem pode ter a vida e a felicidade para
que foi criado e a que aspira.
1036. As afirmações da Sagrada Escritura e os ensinamentos da Igreja a respeito do Inferno
são um apelo ao sentido de responsabilidade com que o homem deve usar da sua liberdade,
tendo em vista o destino eterno. Constituem, ao mesmo tempo, um apelo urgente à conver-
são: «Entrai pela porta estreita, pois larga é a porta e espaçoso o caminho que levam à per-
dição e muitos são os que seguem por eles. Que estreita é a porta e apertado o caminho que
levam à vida e como são poucos aqueles que os encontram!» (Mt 7, 13-14):
«Como não sabemos o dia nem a hora, é preciso que, segundo a recomendação do Senhor, vi-
giemos continuamente, a fim de que, no termo da nossa vida terrena, que é só uma,
mereçamos entrar com Ele para o banquete de núpcias e ser contados entre os benditos, e não
sejamos lançados, como servos maus e preguiçosos, no fogo eterno, nas trevas exteriores,
onde "haverá choro e ranger de dentes"» (633).
1037. Deus não predestina ninguém para o Inferno (634). Para ter semelhante destino, é pre-
ciso haver uma aversão voluntária a Deus (pecado mortal) e persistir nela até ao fim. Na litur-
gia eucarística e nas orações quotidianas dos seus fiéis, a Igreja implora a misericórdia de
Deus, «que não quer que ninguém pereça, mas que todos se convertam» (2 Pe 3, 9):
«Aceitai benignamente, Senhor, a oblação que nós, vossos servos, com toda a vossa família,
Vos apresentamos. Dai a paz aos nossos dias livrai-nos da condenação eterna e contai-nos
entre os vossos eleitos» (635).

V. O Juízo final

1038. A ressurreição de todos os mortos, «justos e pecadores» (Act 24, 15), há-de preceder o
Juízo final. Será «a hora em que todos os que estão nos túmulos hão-de ouvir a sua voz e
sairão: os que tiverem praticado o bem, para uma ressurreição de vida, e os que tiverem prat-
icado o mal, para uma ressurreição de condenação» (Jo 5, 28-29). Então Cristo virá «na sua
glória, com todos os seus anjos [...]. Todas as nações se reunirão na sua presença e Ele
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separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos; e colocará as ovelhas à
sua direita e os cabritos à sua esquerda. [...] Estes irão para o suplício eterno e os justos para a
vida eterna» (Mt 25, 31-33.46).
1039. É perante Cristo, que é a Verdade, que será definitivamente posta descoberto a verdade
da relação de cada homem com Deus (636). O Juízo final revelará, até às suas últimas con-
sequências, o que cada um tiver feito ou deixado de fazer de bem durante a sua vida terrena:
«Todo o mal que os maus fazem é registado – e eles não o sabem. No dia em que "Deus virá e
não se calará" (Sl 50, 3) [...]. Então, Ele Se voltará para os da sua esquerda: "Na terra, dir-
lhes- á, Eu tinha posto para vós os meus pobrezinhos, Eu, Cabeça deles, estava no céu sentado
à direita do Pai – mas na terra os meus membros tinham fome: o que vós tivésseis dado aos
meus membros, teria chegado à Cabeça. Quando Eu coloquei os meus pobrezinhos na terra,
constituí-os vossos portadores para trazerem as vossas boas obras ao meu tesouro. Vós nada
depositastes nas mãos deles: por isso nada encontrais em Mim"» (637).
1040. O Juízo final terá lugar quando acontecer a vinda gloriosa de Cristo. Só o Pai sabe o dia
e a hora, só Ele decide sobre a sua vinda. Pelo seu Filho Jesus Cristo. Ele pronunciará então a
sua palavra definitiva sobre toda a história. Nós ficaremos a saber o sentido último de toda a
obra da criação e de toda a economia da salvação, e compreenderemos os caminhos admirá-
veis pelos quais a sua providência tudo terá conduzido para o seu fim último. O Juízo final
revelará como a justiça de Deus triunfa de todas as injustiças cometidas pelas suas criaturas e
como o seu amor é mais forte do que a morte (638).
1041. A mensagem do Juízo final é um apelo à conversão, enquanto Deus dá ainda aos ho-
mens «o tempo favorável, o tempo da salvação» (2 Cor 6, 2). Ela inspira o santo temor de
Deus, empenha na justiça do Reino de Deus e anuncia a «feliz esperança» (Tt 2, 13) do re-
gresso do Senhor, que virá «para ser glorificado nos seus santos, e admirado em todos os que
tiverem acreditado» (2 Ts 1, 10).

VI. A esperança dos novos céus e da nova terra

1042. No fim dos tempos, o Reino de Deus chegará à sua plenitude. Depois do Juízo final, os
justos reinarão para sempre com Cristo, glorificados em corpo e alma, e o próprio universo
será renovado: Então a Igreja alcançará «na glória celeste, a sua realização acabada, quando
vier o tempo da restauração de todas as coisas e, quando, juntamente com o género humano,
também o universo inteiro, que ao homem está intimamente ligado e por ele atinge o seu fim,
for perfeitamente restaurado em Cristo» (639).
1043. A esta misteriosa renovação, que há-de transformar a humanidade e o mundo, a
Sagrada Escritura chama «os novos céus e a nova terra» (2 Pe 3, 13) (640). Será a realização
definitiva do desígnio divino de «reunir sob a chefia de Cristo todas as coisas que há nos céus
e na terra» (Ef 1, 10).
1044. Neste «mundo novo» (641), a Jerusalém celeste, Deus terá a sua morada entre os
homens. «Há-de enxugar-lhes dos olhos todas as lágrimas; a morte deixará de existir, e não
mais haverá luto, nem clamor, nem fadiga. Porque o que havia anteriormente desapareceu»
(Ap 21, 4) (642).
1045. Para o homem, esta consumação será a realização final da unidade do género humano,
querida por Deus desde a criação e da qual a Igreja peregrina era «como que o sacramento»
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(643). Os que estiverem unidos a Cristo formarão a comunidade dos resgatados, a «Cidade
santa de Deus» (Ap 21, 2), a «Esposa do Cordeiro» (Ap 21, 9). Esta não mais será atingida pelo
pecado, pelas manchas (644), pelo amor próprio, que destroem e ferem a comunidade terrena
dos homens. A visão beatífica, em que Deus Se manifestará aos eleitos de modo inesgotável,
será a fonte inexaurível da felicidade, da paz e da mútua comunhão.
1046. Quanto ao cosmos, a Revelação afirma a profunda comunidade de destino entre o
mundo material e o homem:
Na verdade, as criaturas esperam ansiosamente a revelação dos filhos de Deus [...] com a es-
perança de que as mesmas criaturas sejam também libertadas da corrupção que escraviza [...].
Sabemos que toda a criatura geme ainda agora e sofre as dores da maternidade. E não só ela,
mas também nós, que possuímos as primícias do Espírito, gememos interiormente, esperando
a adopção filial e a libertação do nosso corpo» (Rm 8, 19-23).
1047. Assim, pois, também o universo visível está destinado a ser transformado, «a fim de
que o próprio mundo, restaurado no seu estado primitivo, esteja sem mais nenhum obstáculo
ao serviço dos justos» (645), participando na sua glorificação em Jesus Cristo ressuscitado.
1048. «Ignoramos o tempo em que a terra e a humanidade atingirão a sua plenitude, e
também não sabemos como é que o universo será transformado. Porque a figura deste mundo,
deformada pelo pecado, passa certamente, mas Deus ensina-nos que se prepara uma nova
habitação e uma nova terra, na qual reinará a justiça e cuja felicidade satisfará e superará to-
dos os desejos de paz que se levantam no coração dos homens» (646).
1049. «A expectativa da nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas antes activar a soli-
citude em ordem a desenvolver esta terra onde cresce o corpo da nova família humana, que já
consegue apresentar uma certa prefiguração do mundo futuro. Por conseguinte, embora o
progresso terreno se deva cuidadosamente distinguir do crescimento do Reino de Cristo, to-
davia, na medida em que pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana,
interessa muito ao Reino de Deus» (647).
1050. «Pois todos os bens da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, ou
seja, todos os frutos excelentes da natureza e do nosso esforço, depois de os termos propagado
pela terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandato, voltaremos de novo a encontrá-
los, mas então purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo
entregar ao Pai o Reino eterno e universal» (648). Então, Deus será «tudo em todos» (1 Cor
15, 28), na vida eterna:
«A vida subsistente e verdadeira é o Pai que, pelo Filho e no Espírito Santo, derrama sobre to-
dos sem excepção os dons celestes. Graças à sua misericórdia, também nós, homens, rece-
bemos a promessa indefectível da vida eterna» (649).

Resumindo:

1051. Ao morrer: cada homem recebe, na sua alma imortal, a sua retribuição eterna, num
juízo particular feito por Cristo, Juiz dos vivos e dos mortos.
1052. «Nós cremos que as almas de todos os que morrem na graça de Cristo [...] constituem
o povo de Deus no além da morte, a qual será definitivamente destinada no dia da ressur-
reição, quando estas almas forem reunidas aos seus corpos» (650).
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1053. «Nós cremos que a multidão dessas almas que estão congregadas à volta de Jesus e
de Maria, no paraíso, formam a Igreja celeste onde, na eterna bem-aventurança, vêem Deus
como Ele é onde também, certamente em graus e modos diversos, estão associadas aos san-
tos anjos no governo divino exercido por Cristo glorioso, intercedendo por nós e ajudando a
nossa fraqueza com a sua solicitude fraterna» (651).
1054. Os que morrem na graça e amizade de Deus, mas imperfeitamente purificados, em-
bora seguros da sua salvação eterna, sofrem depois da morte uma purificação, a fim de ob-
terem a santidade necessária para entrar na alegria de Deus.
1055. Em virtude da «comunhão dos santos», a Igreja encomenda os defuntos à misericór-
dia de Deus e oferece em seu favor sufrágios, em particular o santo Sacrifício eucarístico.
1056. Seguindo o exemplo de Cristo, a Igreja adverte os fiéis da «triste e lamentável realid-
ade da morte eterna» (652), também chamada «Inferno».
1057. A pena principal do Inferno consiste na separação eterna de Deus, o único em Quem o
homem pode encontrar a vida e a felicidade para que foi criado e às quais aspira.
1058. A Igreja ora para que ninguém se perca: «Senhor [...], não permitais que eu me sep-
are de Vós» (653). Sendo verdade que ninguém se pode salvar a si mesmo, também é ver-
dade que «Deus quer que todos se salvem» (1 Tm 2, 4) e que a Ele «tudo é possível» (Mt 19,
26).
1059. «A santa Igreja Romana crê e firmemente confessa que, no dia do Juízo, todos os
homens hão-de comparecer com o seu próprio corpo perante o tribunal de Cristo, para pre-
star contas dos seus próprios actos» (654).
1060. No fim dos tempos, o Reino de Deus chegará à sua plenitude. Então, os justos rein-
arão com Cristo para sempre, glorificados em corpo e alma; o próprio universo material
será transformado. Deus será, então, «tudo em todos» (1 Cor 15, 28), na vida eterna.
«AMEN»
1061. O Credo, tal como o último livro da Sagrada Escritura (655) termina com a palavra heb-
raica Ámen, palavra que se encontra com frequência no final das orações do Novo Testa-
mento. Do mesmo modo, a Igreja termina com um «Ámen» as suas orações.
1062. Em hebraico, Ámen está ligado à mesma raiz que a palavra «crer», raiz que exprime
solidez, confiança, fidelidade. Assim se compreende porque é que o «Ámen» se pode dizer
tanto da fidelidade de Deus para connosco como da nossa confiança n'Ele.
1063. No profeta Isaías encontramos a expressão «Deus de verdade», literalmente «Deus do
Ámen», quer dizer, o Deus fiel às suas promessas: «Todo aquele que desejar ser abençoado
sobre a terra deve desejar sê-lo pelo Deus fiel (do Ámen)» (Is 65, 16). Nosso Senhor emprega
frequentemente a palavra «Ámen» (656), por vezes sob forma redobrada » (657), para sublin-
har a confiança que deve inspirar a sua doutrina, a sua autoridade fundada na verdade de
Deus.
1064. O «Ámen» final do Credo retoma e confirma, portanto, a palavra com que começa:
«Creio». Crer é dizer «Ámen» às palavras, às promessas, aos mandamentos de Deus; é fiar-se
totalmente n'Aquele que é o «Ámen» de infinito amor e perfeita fidelidade. A vida cristã de
cada dia será, então, o «Ámen» ao «Creio» da profissão de fé do nosso Baptismo:
«Que o teu Símbolo seja para ti como um espelho. Revê-te nele, para ver se crês tudo quanto
dizes crer. E alegra-te todos os dias na tua fé» (658).
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1065. O próprio Jesus Cristo é o «Ámen» (Ap 3, 14). É o Ámen definitivo do amor do Pai para
connosco: assume e leva a bom termo o nosso «Ámen» ao Pai: «É que todas as promessas de
Deus encontram n'Ele um «sim»! Desse modo, por seu intermédio, nós dizemos «Ámen» a
Deus, a fim de lhe darmos glória» (2 Cor 1, 20):
«Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito
Santo, toda a honra e toda a glória
agora e para sempre. ÁMEN» (659).
SEGUNDA PARTE - A CELEBRAÇÃO
DO MISTÉRIO CRISTÃO

INTRODUÇÃO

PORQUÊ A LITURGIA?

1066. No Símbolo da Fé, a Igreja confessa o mistério da Santíssima Trindade e o seu


«desígnio admirável» (Ef 1, 9) sobre toda a criação: o Pai realiza o «mistério da sua vontade»,
dando o seu Filho muito amado e o seu Espírito Santo para a salvação do mundo e para a
glória do seu nome. Tal é o mistério de Cristo (1), revelado e realizado na história segundo um
plano, uma «disposição» sabiamente ordenada, a que São Paulo chama «a economia do mis-
tério» (Ef 3, 9) e a que a tradição patrística chamará «a economia do Verbo encarnado» ou
«economia da salvação».
1067. «Esta obra da redenção humana e da glorificação perfeita de Deus, cujo prelúdio foram
as magníficas obras divinas operadas no povo do Antigo Testamento, realizou-a Cristo Sen-
hor, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada paixão, Ressurreição dos
mortos e gloriosa ascensão, em que, "morrendo, destruiu a morte e ressuscitando restaurou a
vida". Efectivamente, foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu "o sacramento ad-
mirável de toda a Igreja"» (2). É por isso que, na liturgia, a Igreja celebra principalmente o
mistério pascal, pelo qual Cristo realizou a obra da nossa salvação.
1068. É este mistério de Cristo que a Igreja proclama e celebra na sua liturgia, para que os
fiéis dele vivam e dele dêem testemunho no mundo.
«A liturgia, com efeito, pela qual, sobretudo no sacrifício eucarístico, "se actua a obra da nossa
redenção", contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos out-
ros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da, verdadeira Igreja» (3).

QUAL O SIGNIFICADO DA PALAVRA LITURGIA?

1069. Originariamente, a palavra «liturgia» significa «obra pública», «serviço por parte dele
em favor do povo». Na tradição cristã, quer dizer que o povo de Deus toma parte na «obra de
Deus» (4). Pela liturgia, Cristo, nosso Redentor e Sumo-Sacerdote, continua na sua Igreja,
com ela e por ela, a obra da nossa redenção.
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1070. No Novo Testamento, a palavra «liturgia» é empregada para designar, não somente a
celebração do culto divino mas também o anúncio do Evangelho (6) e a caridade em acto (7).
Em todas estas situações, trata-se do serviço de Deus e dos homens. Na celebração litúrgica, a
Igreja é serva, à imagem do seu Senhor, o único « Liturgo» (8), participando no seu sacerdó-
cio (culto) profético (anúncio) e real (serviço da caridade):
«Com razão se considera a liturgia como o exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo.
Nela, mediante sinais sensíveis e no modo próprio de cada qual, significa-se e realiza-se a san-
tificação dos homens e é exercido o culto público integral pelo corpo Místico de Jesus Cristo,
isto é, pela cabeça e pelos membros. Portanto, qualquer celebração litúrgica, enquanto obra de
Cristo Sacerdote e do seu corpo que é a Igreja, é acção sagrada por excelência e nenhuma
outra acção da Igreja a iguala em eficácia com o mesmo título e no mesmo grau» (9).

A LITURGIA COMO FONTE DE VIDA

1071. Obra de Cristo, a Liturgia é também uma acção da sua Igreja. Ela realiza e manifesta a
Igreja como sinal visível da comunhão de Deus e dos homens por Cristo; empenha os fiéis na
vida nova da comunidade, e implica uma participação «consciente, activa e frutuosa» de todos
(10).
1072. «A liturgia não esgota toda a acção da Igreja» (11). Deve ser precedida pela evangeliza-
ção, pela fé e pela conversão, e só então pode produzir os seus frutos na vida dos fiéis: a vida
nova segundo o Espírito, o empenhamento na missão da Igreja e o serviço da sua unidade.

ORAÇÃO E LITURGIA

1073. A liturgia é também participação na oração de Cristo, dirigida ao Pai no Espírito Santo.
Nela, toda a oração cristã encontra a sua fonte e o seu termo. Pela liturgia, o homem interior
lança raízes e alicerça-se no «grande amor com que o Pai nos amou» (Ef 2, 4), em seu Filho
bem-amado. É a mesma «maravilha de Deus» que é vivida e interiorizada por toda a oração,
«em todo o tempo, no Espírito» (Ef 6, 18).

CATEQUESE E LITURGIA

1074. «A liturgia é simultaneamente o cume para o qual se encaminha a acção da Igreja e a


fonte de onde dimana toda a sua força» (13). É, portanto, o lugar privilegiado da catequese do
Povo de Deus. «A catequese está intrinsecamente ligada a toda a acção litúrgica e sacramental,
pois é nos sacramentos, sobretudo na Eucaristia, que Jesus Cristo age em plenitude, em or-
dem à transformação dos homens» (14).
1075. A catequese litúrgica visa introduzir no mistério de Cristo (ela é «mistagogia»),
partindo do visível para o invisível, do significante para o significado, dos «sacramentos» para
os «mistérios». Tal catequese compete aos catecismos locais e regionais; o presente catecismo,
que deseja colocar-se ao serviço de toda a Igreja na diversidade dos seus ritos e das suas cul-
turas (15) apresentará o que é fundamental e comum a toda a Igreja a respeito da liturgia, en-
quanto mistério e enquanto celebração (Primeira Secção), e depois, dos sete sacramentos e
sacramentais (Segunda Secção).
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PRIMEIRA SECÇÃO

A «EECONOMIAS» SACRAMENTAL

1076. No dia do Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo, a Igreja foi manifestada ao
mundo(1). O dom do Espírito inaugura um tempo novo na «dispensação do mistério»: o
tempo da Igreja, durante o qual Cristo manifesta, torna presente e comunica a sua obra de sal-
vação pela liturgia da sua Igreja, «até que Ele venha» (1 Cor 11, 26). Durante este tempo da
Igreja, Cristo vive e age, agora na sua Igreja e com ela, de um modo novo, próprio deste tempo
novo. Age pelos sacramentos e é a isso que a Tradição comum do Oriente e do Ocidente chama
«economia sacramental». Esta consiste na comunicação (ou «dispensação») dos frutos do
mistério pascal de Cristo na celebração da liturgia «sacramental» da Igreja.
É por isso que importa, antes de mais, pôr em relevo esta «dispensação sacramental»
(Capítulo primeiro). Assim, aparecerão mais claramente a natureza e os aspectos essenciais
da celebração litúrgica (Capítulo segundo).

CAPÍTULO PRIMEIRO
O MISTÉRIO PASCAL NO TEMPO DA IGREJA

ARTIGO 1

A LITURGIA – OBRA DA SANTÍSSIMA TRINDADE

I. O Pai, fonte e fim da liturgia

1077. «Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, nos céus, nos encheu de
toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que, n' Ele, nos escolheu antes da
criação do mundo, para sermos, na caridade, santos e irrepreensíveis na sua presença.
Destinou-nos de antemão a que nos tornássemos seus filhos adoptivos por Jesus Cristo. Assim
aprouve à sua vontade, para que fosse enaltecida a glória da sua graça, com a qual nos favore-
ceu em seu Filho muito amado» (Ef 1, 3-6).
1078. Abençoar é uma acção divina que dá a vida e de que o Pai é a fonte. A sua bênção é, ao
mesmo tempo, palavra e dom («bene-dictio», «eu-logia»). Aplicada ao homem, tal palavra
significará a adoração e a entrega ao seu Criador, em acção de graças.
1079. Desde o princípio até à consumação dos tempos, toda a obra de Deus é bênção. Desde o
poema litúrgico da primeira criação até aos cânticos da Jerusalém celeste, os autores inspira-
dos anunciam o desígnio da salvação como uma imensa bênção divina.
1080. Desde o princípio, Deus abençoa os seres vivos, especialmente o homem e a mulher. A
aliança com Noé e todos os seres animados renova esta bênção de fecundidade, apesar do
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pecado do homem, pelo qual a terra fica «maldita». Mas é a partir de Abraão que a bênção
divina penetra na história dos homens, que caminhava em direcção à morte, para a fazer re-
gressar à vida, à sua fonte: pela fé do «pai dos crentes» que acolhe a bênção, é inaugurada a
história da salvação.
1081. As bênçãos divinas manifestam-se em acontecimentos maravilhosos e salvíficos: o nas-
cimento de Isaac, a saída do Egipto (Páscoa e Êxodo), o dom da terra prometida, a eleição de
David, a presença de Deus no templo, o exílio purificador e o regresso do «pequeno resto». A
Lei, os Profetas e os Salmos, que entretecem a liturgia do povo eleito, se por um lado recor-
dam essas bênçãos divinas, por outro respondem-lhes com as bênçãos de louvor e acção de
graças.
1082. Na liturgia da Igreja, a bênção divina é plenamente revelada e comunicada: o Pai é re-
conhecido e adorado como a Fonte e o Fim de todas as bênçãos da criação e da salvação; no
seu Verbo – encarnado, morto e ressuscitado por nós –, Ele cumula-nos das suas bênçãos e,
por Ele, derrama nos nossos corações o Dom que encerra todos os dons: o Espírito Santo.
1083. Compreende-se então a dupla dimensão da liturgia cristã, como resposta de fé e de
amor às «bênçãos espirituais» com que o Pai nos gratifica. Por um lado, a Igreja, unida ao seu
Senhor e «sob a acção do Espírito Santo» (2), bendiz o Pai «pelo seu Dom inefável» (2 Cor 9,
15), mediante a adoração, o louvor e a acção de graças. Por outro lado, e até à consumação do
desígnio de Deus, a Igreja não cessa de oferecer ao Pai «a oblação dos seus próprios dons» e
de Lhe implorar que envie o Espírito Santo sobre esta oblação, sobre si própria, sobre os fiéis e
sobre o mundo inteiro, a fim de que, pela comunhão na morte e ressurreição de Cristo- Sacer-
dote e pelo poder do Espírito, estas bênçãos divinas produzam frutos de vida, «para que seja
enaltecida a glória da sua graça» (Ef 1, 6).

II. A acção de Cristo na liturgia

CRISTO GLORIFICADO...

1084. «Sentado à direita do Pai» e derramando o Espírito Santo sobre o seu corpo que é a
Igreja, Cristo age agora pelos sacramentos, que instituiu para comunicar a sua graça. Os sac-
ramentos são sinais sensíveis (palavras e acções), acessíveis à nossa humanidade actual. Real-
izam eficazmente a graça que significam, em virtude da acção de Cristo e pelo poder do
Espírito Santo.
1085. Na liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente o seu mistério pascal.
Durante a sua vida terrena, Jesus anunciava pelo seu ensino e antecipava pelos seus actos o
seu mistério pascal. Uma vez chegada a sua «Hora» (3), Jesus vive o único acontecimento da
história que não passa jamais: morre, é sepultado, ressuscita de entre os mortos e senta-Se à
direita do Pai «uma vez por todas» (Rm 6, 10; Heb 7, 27; 9, 12). É um acontecimento real,
ocorrido na nossa história, mas único; todos os outros acontecimentos da história acontecem
uma vez e passam, devorados pelo passado. Pelo contrário, o mistério pascal de Cristo não
pode ficar somente no passado, já que pela sua morte, Ele destruiu a morte; e tudo o que
Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim
transcende todos os tempos e em todos se torna presente. O acontecimento da cruz e da res-
surreição permanece e atrai tudo para a vida.
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... DESDE A IGREJA DOS APÓSTOLOS...

1086. «Assim como Cristo foi enviado pelo Pai, assim também Ele enviou os Apóstolos,
cheios do Espírito Santo, não só para que, pregando o Evangelho a toda a criatura, anun-
ciassem que o Filho de Deus, pela sua morte e ressurreição, nos libertara do poder de Satanás
e da morte e nos introduzira no Reino do Pai, mas também para que realizassem a obra da sal-
vação que anunciavam, mediante o Sacrifício e os sacramentos, à volta dos quais gira toda a
vida litúrgica» (4).
1087. Deste modo, Cristo ressuscitado, ao dar o Espírito Santo aos Apóstolos, confia-lhes o
seu poder de santificação: (5) eles tornam-se sinais sacramentais de Cristo. Pelo poder do
mesmo Espírito Santo, eles confiam este poder aos seus sucessores. Esta «sucessão
apostólica» estrutura toda a vida litúrgica da Igreja: ela própria é sacramental, transmitida
pelo sacramento da Ordem.

... ESTÁ PRESENTE NA LITURGIA TERRESTRE...

1088. «Para realizar tão grande obra» – como é a dispensação ou comunicação da sua obra
de salvação – «Cristo está sempre presente na sua igreja, sobretudo nas acções litúrgicas. Está
presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro – "o que se oferece agora pelo
ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu outrora na Cruz" – quer e sobretudo sob as
espécies eucarísticas. Está presente com a sua virtude nos sacramentos, de modo que, quando
alguém baptiza, é o próprio Cristo que baptiza. Está presente na sua Palavra, pois é Ele que
fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e can-
ta os salmos, Ele que prometeu: "Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, aí estou
Eu, no meio deles" (Mt 18, 20)» (6).
1089. «Em tão grande obra, pela qual Deus é perfeitamente glorificado e os homens santific-
ados, Cristo associa sempre a Si a Igreja, sua amadíssima esposa, a qual invoca o seu Senhor e
por meio d'Ele rende culto ao eterno Pai» (7).

... QUE PARTICIPA NA LITURGIA CELESTE

1090. «Na liturgia da terra, participamos, saboreando-a de antemão, na liturgia celeste, cel-
ebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual nos dirigimos como peregrinos e onde
Cristo está sentado à direita de Deus, como ministro do santuário e do verdadeiro
tabernáculo; com todo o exército da milícia celestial, cantamos ao Senhor um hino de glória;
venerando a memória dos santos, esperamos ter alguma parte e comunhão com eles; e aguar-
damos o Salvador, nosso Senhor Jesus Cristo, até que Ele apareça como nossa vida e também
nós apareçamos com Ele na glória» (8).

III. O Espírito Santo e a Igreja na liturgia

1091. Na liturgia, o Espírito Santo é o pedagogo da fé do povo de Deus, o artífice das «obras-
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primas de Deus» que são os sacramentos da Nova Aliança. O desejo e a obra do Espírito no
coração da Igreja é que nós vivamos da vida de Cristo ressuscitado. Quando Ele encontra em
nós a resposta da fé que suscitou, realiza-se uma verdadeira cooperação. E, por ela, a liturgia
torna-se a obra comum do Espírito Santo e da Igreja.
1092. Nesta dispensação sacramental do mistério de Cristo, o Espírito Santo age do mesmo
modo que nos outros tempos da economia da salvação: prepara a Igreja para o encontro com o
seu Senhor; lembra e manifesta Cristo à fé da assembleia; torna presente e actualiza o mistério
de Cristo pelo seu poder transformante; e finalmente, enquanto Espírito de comunhão, une a
Igreja à vida e à missão de Cristo.

O ESPÍRITO SANTO PREPARA PARA ACOLHER CRISTO

1093. O Espírito Santo realiza, na economia sacramental, as figuras da Antiga Aliança. Uma
vez que a Igreja de Cristo estava «admiravelmente preparada na história do povo de Israel e
na Antiga Aliança» (9), a liturgia da Igreja conserva, como parte integrante e insubstituível,
fazendo-os seus, elementos do culto dessa Antiga Aliança:
– principalmente a leitura do Antigo Testamento; – a oração dos Salmos; – e sobretudo, o me-
morial dos acontecimentos salvíficos e das realidades significativas, que encontraram o seu
cumprimento no mistério de Cristo (a Promessa e a Aliança, o Êxodo e a Páscoa, o Reino e o
Templo, o Exílio e o regresso).
1094. É com base nesta harmonia dos dois Testamentos (10) que se articula a catequese pas-
cal do Senhor (11) e, depois, a dos Apóstolos e dos Padres da Igreja. Esta catequese desvenda o
que estava oculto sob a letra do Antigo Testamento: o mistério de Cristo. É chamada «tipoló-
gica», porque revela a novidade de Cristo a partir das «figuras» (tipos) que a anunciavam nos
factos, palavras e símbolos da primeira Aliança. Por esta releitura no Espírito de verdade a
partir de Cristo, as figuras são desvendadas (12). Assim, o dilúvio e a arca de Noé prefig-
uravam a salvação pelo Baptismo (13), tal como a nuvem, a travessia do Mar Vermelho e a
água do rochedo eram figura dos dons espirituais de Cristo (14); e o maná do deserto prefig-
urava a Eucaristia, «o verdadeiro Pão do céu» (Jo 6, 48).
1095. É por isso que a Igreja, especialmente por ocasião dos tempos do Advento, da
Quaresma e sobretudo na noite da Páscoa, relê e revive todos estes grandes acontecimentos da
história da salvação no «hoje» da sua liturgia. Isso, porém, exige igualmente que a catequese
ajude os fiéis a abrirem-se a esta inteligência «espiritual» da economia da salvação, tal como a
liturgia da Igreja a manifesta e no-la faz viver.
1096. Liturgia judaica e liturgia cristã. Um melhor conhecimento da fé e da vida religiosa do
povo judeu, tal como ainda agora são professadas e vividas, pode ajudar a compreender mel-
hor certos aspectos da liturgia cristã. Para os judeus, tal como para os cristãos, a Sagrada
Escritura é uma parte essencial das suas liturgias: para a proclamação da Palavra de Deus, a
resposta a esta Palavra, a oração de louvor e de intercessão por vivos e mortos, o recurso à
misericórdia divina. A liturgia da Palavra, na sua estrutura própria, encontra a sua origem na
oração judaica. A Oração das Horas e outros textos e formulários litúrgicos têm nela os seus
paralelos, assim como as próprias fórmulas das nossas orações mais veneráveis, como o Pai
Nosso. As orações eucarísticas inspiram-se também em modelos de tradição judaica. A relação
entre a liturgia judaica e a liturgia cristã, como igualmente a diferença dos respectivos
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conteúdos, são particularmente visíveis nas grandes festas do ano litúrgico, como a Páscoa.
Tanto os cristãos como os judeus celebram a Páscoa: a Páscoa da história, virada para o fu-
turo, entre os judeus: a Páscoa consumada na morte e ressurreição de Cristo, entre os cristãos
– embora sempre na esperança da sua consumação definitiva.
1097. Na liturgia da Nova Aliança, toda a acção litúrgica, especialmente a celebração da Eu-
caristia e dos sacramentos, é um encontro entre Cristo e a Igreja. A assembleia litúrgica recebe
a sua unidade da «comunhão do Espírito Santo», que reúne os filhos de Deus no único corpo
de Cristo. Ultrapassa todas as afinidades humanas, raciais, culturais e sociais.
1098. A assembleia deve preparar-se para o encontro com o seu Senhor, ser «um povo bem
disposto» (15). Esta preparação dos corações é obra comum do Espírito Santo e da as-
sembleia, particularmente dos seus ministros. A graça do Espírito Santo procura despertar a
fé, a conversão do coração e a adesão à vontade do Pai. Estas disposições pressupõem-se para
receber outras graças oferecidas na própria celebração, e para os frutos de vida nova que ela é
destinada a produzir em seguida.

O ESPÍRITO SANTO RECORDA O MISTÉRIO DE CRISTO

1099. O Espírito e a Igreja cooperam para manifestar Cristo e a sua obra de salvação na litur-
gia. Principalmente na Eucaristia, e analogicamente nos outros sacramentos, a liturgia é o me-
morial do mistério da salvação. O Espírito Santo é a memória viva da Igreja (16).
1100. A Palavra de Deus. O Espírito Santo lembra à assembleia litúrgica, em primeiro lugar,
o sentido do acontecimento salvífico, dando vida à Palavra de Deus, que é anunciada para ser
recebida e vivida:
«É enorme a importância da Sagrada Escritura na celebração da liturgia. Porque é a ela que se
vão buscar as leituras que se explicam na homilia e os salmos para cantar; com o seu espírito e
da sua inspiração nasceram as preces, as orações e os hinos litúrgicos: dela tiram a sua capa-
cidade de significação as acções e os sinais» (17).
1101. É o Espírito Santo que dá aos leitores e ouvintes, segundo a disposição dos seus cor-
ações, a inteligência espiritual da Palavra de Deus. Através das palavras, acções e símbolos,
que formam a trama duma celebração, o Espírito Santo põe os fiéis e os ministros em relação
viva com Cristo, Palavra e Imagem do Pai, de modo a poderem fazer passar para a sua vida o
sentido daquilo que ouvem, vêem e fazem na celebração.
1102. «É pela Palavra da salvação [...] que a fé é alimentada no coração dos fiéis; e é mercê da
fé que tem início e se desenvolve a reunião dos fiéis» (18). O anúncio da Palavra de Deus não
se fica por um ensinamento: faz apelo à resposta da fé, enquanto assentimento e com-
promisso, em vista da aliança entre Deus e o seu povo. É ainda o Espírito Santo que dá a graça
da fé, a fortifica e a faz crescer na comunidade. A assembleia litúrgica é, antes de mais,
comunhão na fé.
1103. A anamnese. A celebração litúrgica refere-se sempre às intervenções salvíficas de Deus
na história. «A economia da revelação realiza-se por meio de acções e palavras intimamente
relacionadas entre si [...]; as palavras [...] declaram as obras e esclarecem o mistério nelas
contido» (19). Na liturgia da Palavra, o Espírito Santo «lembra» à assembleia tudo quanto
Cristo fez por nós. Segundo a natureza das acções litúrgicas e as tradições rituais das Igrejas,
uma celebração «faz memória» das maravilhas de Deus numa anamnese mais ou menos
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desenvolvida. O Espírito Santo, que assim desperta a memória da Igreja, suscita então a acção
de graças e o louvor (doxologia).

O ESPÍRITO SANTO ACTUALIZA O MISTÉRIO DE CRISTO

1104. A liturgia cristã não se limita a recordar os acontecimentos que nos salvaram: actualiza-
os, torna-os presentes. O mistério pascal de Cristo celebra-se, não se repete; as celebrações é
que se repetem. Mas em cada uma delas sobrevém a efusão do Espírito Santo, que actualiza o
único mistério.
1105. A epiclese («invocação sobre») é a intercessão mediante a qual o sacerdote suplica ao
Pai que envie o Espírito santificador para que as oferendas se tornem o corpo e o sangue de
Cristo e para que, recebendo-as, os fiéis se tornem eles próprios uma oferenda viva para Deus.
1106 Juntamente com a anamnese, a epiclese é o coração de qualquer celebração sacrament-
al, e mais particularmente da Eucaristia:
«Tu perguntas como é que o pão se torna corpo de Cristo, e o vinho [..] sangue de Cristo? Por
mim, digo-te: o Espírito Santo irrompe e realiza isso que ultrapassa toda a palavra e todo o
pensamento. [...] Baste-te ouvir que é pelo Espírito Santo, do mesmo modo que é da
Santíssima Virgem e pelo Espírito Santo que o Senhor, por Si mesmo e em Si mesmo, assumiu
a carne» (20).
1107. O poder transformante do Espírito Santo na liturgia apressa a vinda do Reino e a con-
sumação do mistério da salvação. Na expectativa e na esperança. Ele faz-nos realmente ante-
cipar a comunhão plena da Santíssima Trindade. Enviado pelo Pai, que atende a epiclese da
Igreja, o Espírito dá a vida aos que O acolhem e constitui para eles, desde já, as «arras» da sua
herança (21).

A COMUNHÃO DO ESPÍRITO SANTO

1108. A finalidade da missão do Espírito Santo em toda a acção litúrgica é pôr-nos em


comunhão com Cristo, para formarmos o seu corpo. O Espírito Santo é como que a seiva da
Videira do Pai, que dá fruto nos sarmentos (22). Na liturgia, realiza-se a mais íntima cooper-
ação do Espírito Santo com a Igreja. Ele, Espírito de comunhão, permanece indefectivelmente
na Igreja, e é por isso que a Igreja é o grande sacramento da comunhão divina que reúne os fil-
hos de Deus dispersos. O fruto do Espírito na liturgia é, inseparavelmente, comunhão com a
Santíssima Trindade e comunhão fraterna (23).
1109. A epiclese é também oração pelo pleno efeito da comunhão da assembleia no mistério
de Cristo. «A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito
Santo» (2 Cor 13, 13) devem estar sempre connosco e dar frutos, para além da celebração eu-
carística. Por isso, a Igreja pede ao Pai que envie o Espírito Santo, para que faça da vida dos
fiéis uma oferenda viva para Deus pela transformação espiritual à imagem de Cristo, pela pre-
ocupação com a unidade da Igreja e pela participação na sua missão, mediante o testemunho e
o serviço da caridade.

Resumindo:
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1110. Na liturgia da Igreja, Deus Pai é bendito e adorado como fonte de todas as bênçãos da
criação e da salvação, com que nos abençoou no seu Filho, para nos dar o Espírito da ad-
opção filial.
1111. A obra de Cristo na liturgia é sacramental, porque o seu mistério de salvação torna-se
ali presente pelo poder do seu Espírito Santo; porque o seu corpo, que é a Igreja, é como que
o sacramento (sinal e instrumento) no qual o Espírito Santo dispensa o mistério da sal-
vação; e porque, através das suas acções litúrgicas, a Igreja peregrina participa já, por
antecipação, na liturgia do céu.
1112. A missão do Espírito Santo na liturgia da Igreja é preparar a assembleia para o en-
contro com Cristo, lembrar e manifestar Cristo à fé da assembleia, tornar presente e actual-
izar a obra salvífica de Cristo pelo seu poder transformante e fazer frutificar o dom da
comunhão na Igreja.

ARTIGO 2

O MISTÉRIO PASCAL NOS SACRAMENTOS DA IGREJA

1113. Toda a vida litúrgica da Igreja gravita em torno do sacrifício eucarístico e dos sacramen-
tos (24). Há na Igreja sete sacramentos: Baptismo, Confirmação ou Crisma, Eucaristia, Pen-
itência, Unção dos enfermos, Ordem e Matrimónio (25). Neste artigo, trata-se do que é
comum aos sete sacramentos da Igreja, do ponto de vista doutrinal; o que lhes é comum sob o
aspecto da celebração será exposto no capítulo II; e o que é próprio de cada um constituirá o
objecto da secção II.

I. Os sacramentos de Cristo

1114. «Aderindo à doutrina da Sagrada Escritura, às tradições apostólicas [...] e ao sentir un-
ânime dos santos Padres» (26), nós professamos que «os sacramentos da nova Lei [...] foram
todos instituídos por nosso Senhor Jesus Cristo» (27).
1115. As palavras e as acções de Jesus durante a sua vida oculta e o seu ministério público já
eram salvíficas. Antecipavam o poder do seu mistério pascal. Anunciavam e preparavam o que
Ele ia dar à Igreja quando tudo estivesse cumprido. Os mistérios da vida de Cristo são os fun-
damentos do que, de ora em diante, pelos ministros da sua Igreja, Cristo dispensa nos sacra-
mentos, porque «o que no nosso Salvador era visível, passou para os seus mistérios» (28).
1116. «Forças que saem» do corpo de Cristo (29), sempre vivo e vivificante: acções do Espírito
Santo que opera no seu corpo que é a Igreja, os sacramentos são «as obras-primas de Deus»,
na nova e eterna Aliança.

II. Os sacramentos da Igreja

1117. Pelo Espírito que a conduz «para a verdade total» (Jo 16, 13), a Igreja reconheceu, a
pouco e pouco, este tesouro recebido de Cristo e foi-lhe precisando a « dispensação» , tal
como o fez relativamente ao cânon das Sagradas Escrituras e à doutrina da fé, enquanto fiel
despenseira dos mistérios de Deus (30). Assim, a Igreja discerniu, no decorrer dos séculos,
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que, entre as suas celebrações litúrgicas, há sete que são, no sentido próprio da palavra, sacra-
mentos instituídos pelo Senhor.
1118. Os sacramentos são «da Igreja», no duplo sentido de que são «por ela» e «para ela».
São «pela Igreja», porque ela é o sacramento da acção de Cristo que nela opera, graças à mis-
são do Espírito Santo. E são «para a Igreja», são estes «sacramentos que fazem a Igreja» (31),
porque manifestam e comunicam aos homens, sobretudo na Eucaristia, o mistério da comun-
hão do Deus-Amor, um em três pessoas.
1119. Formando com Cristo-Cabeça «como que uma única pessoa mística» (32), a Igreja age
nos sacramentos como «comunidade sacerdotal», «organicamente estruturada» (33): pelo
Baptismo e pela Confirmação, o povo sacerdotal torna-se apto a celebrar a liturgia; e por outro
lado, certos fiéis, «assinalados com a sagrada Ordem, ficam constituídos em nome de Cristo
para apascentar a Igreja com a Palavra e a graça de Deus» (34).
1120. O ministério ordenado ou sacerdócio ministerial (35) está ao serviço do sacerdócio
baptismal. Ele garante que, nos sacramentos, é de certeza Cristo que age pelo Espírito Santo
em favor da Igreja. A missão de salvação, confiada pelo Pai ao seu Filho encarnado, é confiada
aos Apóstolos e, por eles, aos seus sucessores; eles recebem o Espírito de Jesus para agirem
em seu nome e na sua pessoa (36). Assim, o ministro ordenado é o laço sacramental que une a
acção litúrgica àquilo que disseram e fizeram os Apóstolos e, por eles, ao que disse e fez o
próprio Cristo, fonte e fundamento dos sacramentos.
1121. Os três sacramentos do Baptismo, Confirmação e Ordem conferem, além da graça, um
carácter sacramental ou «selo», pelo qual o cristão participa no sacerdócio de Cristo e faz
parte da Igreja segundo estados e funções diversas. Esta configuração a Cristo e à Igreja, real-
izada pelo Espírito, é indelével (37), fica para sempre no cristão como disposição positiva para
a graça, como promessa e garantia da protecção divina e como vocação para o culto divino e
para o serviço da Igreja. Por isso, estes sacramentos nunca podem ser repetidos.

III. Os sacramentos da fé

1122. Cristo enviou os Apóstolos para que, «em seu nome, pregassem a todas as nações a con-
versão para o perdão dos pecados» (Lc 24, 47). «Fazei discípulos de todas as nações, baptizai-
os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo» (Mt 28, 19). A missão de baptizar, portanto
a missão sacramental, está implicada na missão de evangelizar; porque o sacramento é pre-
parado pela Palavra de Deus e pela fé, que é assentimento à dita Palavra:
«O povo de Deus é reunido, antes de mais, pela Palavra de Deus vivo [...]. A pregação da Pa-
lavra é necessária para o próprio ministério dos sacramentos, enquanto são sacramentos da
fé, que nasce e se alimenta da Palavra» (38).
1123. «Os sacramentos estão ordenados à santificação dos homens, à edificação do corpo de
Cristo e, por fim, a prestar culto a Deus; como sinais, têm também a função de instruir. Não só
supõem a fé, mas também a alimentam, fortificam e exprimem por meio de palavras e coisas,
razão pela qual se chamam sacramentos da fé» (39).
1124. A fé da Igreja é anterior à fé do fiel, que é chamado a aderir a ela. Quando a Igreja celeb-
ra os sacramentos, confessa a fé recebida dos Apóstolos. Daí o adágio antigo: «Lex orandi, lex
credendi – A lei da oração é a lei da fé» (Ou: «Legem credendi lex statuat supplicandi – A lei
da fé é determinada pela lei da oração», como diz Próspero de Aquitânia [século V]) (40). A lei
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da oração é a lei da fé, a Igreja crê conforme reza. A liturgia é um elemento constitutivo da
Tradição santa e viva (41).
1125. É por isso que nenhum rito sacramental pode ser modificado ou manipulado ao arbítrio
do ministro ou da comunidade. Nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a
liturgia a seu bel-prazer, mas somente na obediência da fé e no respeito religioso do mistério
da liturgia.
1126. Aliás, uma vez que os sacramentos exprimem e desenvolvem a comunhão da fé na
Igreja, a lex orandi é um dos critérios essenciais do diálogo que procura restaurar a unidade
dos cristãos (42).

IV. Os sacramentos da salvação

1127. Celebrados dignamente na fé, os sacramentos conferem a graça que significam (43).
Eles são eficazes, porque neles é o próprio Cristo que opera: é Ele que baptiza, é Ele que age
nos sacramentos para comunicar a graça que o sacramento significa. O Pai atende sempre a
oração da Igreja do seu Filho, a qual, na epiclese de cada sacramento, exprime a sua fé no
poder do Espírito. Tal como o fogo transforma em si tudo quanto atinge, assim o Espírito
Santo transforma em vida divina tudo quanto se submete ao seu poder.
1128. É esse o sentido da afirmação da Igreja (44): os sacramentos actuam ex opere operato
(à letra: «pelo próprio facto de a acção ser executada»), quer dizer, em virtude da obra
salvífica de Cristo, realizada uma vez por todas. Segue-se daí que «o sacramento não é realiz-
ado pela justiça do homem que o dá ou que o recebe, mas pelo poder de Deus» (45). Desde
que um sacramento seja celebrado conforme a intenção da Igreja, o poder de Cristo e do seu
Espírito age nele e por ele, independentemente da santidade pessoal do ministro. No entanto,
os frutos dos sacramentos dependem também das disposições de quem os recebe.
1129. A Igreja afirma que, para os crentes, os sacramentos da Nova Aliança são necessários
para a salvação (46). A «graça sacramental» é a graça do Espírito Santo dada por Cristo e
própria de cada sacramento. O Espírito cura e transforma aqueles que O recebem,
conformando-os com o Filho de Deus. O fruto da vida sacramental é que o Espírito de ad-
opção deifique " os fiéis, unindo-os vitalmente ao Filho único, o Salvador.

V. Os sacramentos da vida eterna

1130. A Igreja celebra o mistério do seu Senhor «até que Ele venha» e «Deus seja tudo em to-
dos»(1 Cor 11, 26; 15, 28). Desde a era Apostólica, a liturgia é atraída para o seu termo pelo
gemido do Espírito na Igreja: «Marana tha!» (1 Cor 16, 22). A liturgia participa, assim, no
desejo de Jesus: «Tenho ardentemente desejado comer convosco esta Páscoa [...], até que ela
se realize plenamente no Reino de Deus» (Lc 22, 15-16). Nos sacramentos de Cristo, a Igreja
recebe já as arras da sua herança e já participa na vida eterna, embora «aguardando a ditosa
esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo» (Tt 2, 13).
«O Espírito e a esposa dizem: "Vem!" [...] «Vem, Senhor Jesus!» (Ap 22, 17.20).
São Tomás de Aquino define assim as diferentes dimensões do sinal sacramental:
«Sacramentum est et signum rememorativum eius quod praecessit, scilicet passionis Christi;
et demonstrativum eius quod in nobis efficitur per Christi passionem, scilicet gratiae; et
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prognosticum, id est, praenuntiativum futurae gloriae – O sacramento é sinal rememorativo


daquilo que o precedeu, ou seja, da paixão de Cristo; e demonstrativo daquilo que em nós a
paixão de Cristo realiza, ou seja, da graça; e prognóstico, quer dizer, que anuncia de antemão a
glória futura»(48).

Resumindo:

1131. Os sacramentos são sinais eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à
Igreja, pelos quais nos é dispensada a vida divina. Os ritos visíveis, com os quais são celeb-
rados os sacramentos, significam e realizam as graças próprias de cada sacramento. Eles
dão fruto naqueles que os recebem com as disposições requeridas.
1132. A Igreja celebra os sacramentos enquanto comunidade sacerdotal estruturada pelo
sacerdócio baptismal e pelo dos ministros ordenados.
1133. O Espírito Santo prepara para os sacramentos pela Palavra de Deus e pela fé, que
acolhe a Palavra nos corações bem dispostos. Então, os sacramentos fortificam e exprimem
a fé.
1134. O fruto da vida sacramental é, ao mesmo tempo, pessoal e eclesial. Por um lado, este
fruto é, para todo o fiel, viver para Deus em Cristo Jesus; por outro, é para a Igreja cresci-
mento na caridade e na sua missão de testemunho.

CAPÍTULO SEGUNDO
A CELEBRAÇÃO SACRAMENTAL DO MISTÉRIO PASCAL

1135. A catequese da liturgia implica, primeiramente, a compreensão da economia sacrament-


al (capítulo primeiro). A esta luz revela-se a novidade da sua celebração. Tratar-se-á, pois,
neste capítulo da celebração dos sacramentos da Igreja. Ter-se-á em vista aquilo que, através
da diversidade das tradições litúrgicas, é comum à celebração dos sete sacramentos; o que é
próprio de cada um será apresentado mais adiante. Esta catequese fundamental das celeb-
rações sacramentais responderá às principais questões que os fiéis se colocam a este respeito:
– quem celebra?
– como celebrar?
– quando celebrar?
– onde celebrar?

ARTIGO 1

CELEBRAR A LITURGIA DA IGREJA

I. Quem celebra?
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1136. A liturgia é «acção» do «Cristo total» (Christus totus). Os que agora a celebram para
além dos sinais, estão já integrados na liturgia celeste, onde a celebração é totalmente comun-
hão e festa.

OS CELEBRANTES DA LITURGIA CELESTE

1137. O Apocalipse de São João, lido na liturgia da Igreja, revela-nos, primeiramente, um


trono preparado no céu, e Alguém sentado no trono (1), «o Senhor Deus» (Is 6, 1) (2). Depois,
o Cordeiro «imolado e de pé» (Ap 5, 6) (3): Cristo crucificado e ressuscitado, o único Sumo-
Sacerdote do verdadeiro santuário (4), o mesmo «que oferece e é oferecido, que dá e é
dado»(5). Enfim, «o rio da Vida [...] que corre do trono de Deus e do Cordeiro» (Ap 22, 1), um
dos mais belos símbolos do Espírito Santo (6).
1138. «Recapitulados» em Cristo, tomam parte no serviço do louvor de Deus e na realização
do seu desígnio: os Poderes celestes (7), toda a criação (os quatro viventes), os servidores da
Antiga e da Nova Aliança (os vinte e quatro anciãos), o novo povo de Deus (os cento e quar-
enta e quatro mil) (8), em particular os mártires, «degolados por causa da Palavra de Deus»
(Ap 6, 9) e a santíssima Mãe de Deus (a Mulher (9); a Esposa do Cordeiro (10) enfim, «uma
numerosa multidão que ninguém podia contar e provinda de todas as nações, tribos, povos e
línguas» (Ap 7, 9).
1139. É nesta liturgia eterna que o Espírito e a Igreja nos fazem participar, quando celeb-
ramos o mistério da salvação nos sacramentos.

OS CELEBRANTES DA LITURGIA SACRAMENTAL

1140. É toda a comunidade, o corpo de Cristo unido à sua Cabeça, que celebra. «As acções
litúrgicas não são acções privadas, mas celebrações da Igreja, que é "o sacramento da unid-
ade", isto é, povo santo reunido e ordenado sob a direcção dos bispos. Por isso, tais acções
pertencem a todo o corpo da Igreja, manifestam-no e afectam-no, atingindo, porém, cada um
dos membros de modo diverso, segundo a variedade de estados, funções e participação actu-
al» (11). Também por isso, «sempre que os ritos comportam, segundo a natureza própria de
cada qual, uma celebração comum, caracterizada pela presença e activa participação dos fiéis,
inculque-se que esta deve preferir-se, na medida do possível, à celebração individual e como
que privada» (12).
1141. A assembleia que celebra é a comunidade dos baptizados, que «pela regeneração e pela
unção do Espírito Santo, são consagrados para ser uma casa espiritual e um sacerdócio santo,
para oferecerem, mediante todas as obras do cristão, sacrifícios espirituais» (13). Este «sacer-
dócio comum» é o de Cristo, único Sacerdote, participado por todos os seus membros (14):
«É desejo ardente da Mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e activa
participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da liturgia exige e que é, por
força do Baptismo, um direito e um dever do povo cristão, "raça escolhida, sacerdócio real,
nação santa, povo adquirido"(1 Pe 2, 9) (15)»(16).
1142. Mas «nem todos os membros têm a mesma função» (Rm 12, 4). Alguns deles são cha-
mados por Deus, na Igreja e pela Igreja, a um serviço especial da comunidade. Estes ser-
vidores são escolhidos e consagrados pelo sacramento da Ordem, pelo qual o Espírito Santo os
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torna aptos para agirem na pessoa de Cristo-Cabeça ao serviço de todos os membros da Igreja
(17). O ministro ordenado é como que o «ícone» de Cristo-Sacerdote. Por ser na Eucaristia
que se manifesta plenamente o sacramento da Igreja, na presidência da Eucaristia aparece em
primeiro lugar o ministério do bispo e, em comunhão com ele, o dos presbíteros e diáconos.
1143. Para o exercício das funções do sacerdócio comum dos fiéis, existem ainda outros min-
istérios particulares, não consagrados pelo sacramento da Ordem, e cuja função é determin-
ada pelos bispos segundo as tradições litúrgicas e as necessidades pastorais. «Também os
acólitos, os leitores, os comentadores e os membros do coro desempenham um verdadeiro
ministério litúrgico» (18).
1144. Assim, na celebração dos sacramentos, toda a assembleia é « liturga», cada qual se-
gundo a sua função, mas «na unidade do Espírito» que age em todos. «Nas celebrações
litúrgicas, limite-se cada um, ministro ou simples fiel, ao exercer o seu ofício, a fazer tudo e só
o que é da sua competência, segundo a natureza do rito e as leis litúrgicas» (19).

II. Como celebrar?

SINAIS E SÍMBOLOS

1145. Uma celebração sacramental é tecida de sinais e de símbolos. Segundo a pedagogia


divina da salvação, a sua significação radica na obra da criação e na cultura humana,
determina-se nos acontecimentos da Antiga Aliança e revela-se plenamente na pessoa e na
obra de Cristo.
1146. Sinais do mundo dos homens. Os sinais e os símbolos ocupam um lugar importante na
vida humana. Sendo o homem um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual, exprime e per-
cebe as realidades espirituais através de sinais e símbolos materiais. Como ser social, o
homem tem necessidade de sinais e de símbolos para comunicar com o seu semelhante at-
ravés da linguagem. dos gestos e de acções. O mesmo acontece nas suas relações com Deus.
1147. Deus fala ao homem através da criação visível. O cosmos material apresenta-se à in-
teligência do homem para que leia nele os traços do seu Criador (20). A luz e a noite, o vento e
o fogo, a água e a terra, a árvore e os frutos, tudo fala de Deus e simboliza, ao mesmo tempo, a
sua grandeza e a sua proximidade.
1148. Enquanto criaturas, estas realidades sensíveis podem tornar-se o lugar de expressão da
acção de Deus que santifica os homens e da acção dos homens que prestam a Deus o seu culto.
O mesmo acontece com os sinais e símbolos da vida social dos homens: lavar e ungir, partir o
pão e beber do mesmo copo podem exprimir a presença santificante de Deus e a gratidão do
homem para com o seu Criador.
1149. As grandes religiões da humanidade dão testemunho, muitas vezes de modo impres-
sionante, deste sentido cósmico e simbólico dos ritos religiosos. A liturgia da Igreja pressupõe,
integra e santifica elementos da criação e da cultura humana, conferindo-lhes a dignidade de
sinais da graça, da nova criação em Cristo Jesus.
1150. Sinais da Aliança. O povo eleito recebe de Deus sinais e símbolos distintivos, que mar-
cam a sua vida litúrgica: já não são unicamente celebrações de ciclos cósmicos e práticas soci-
ais, mas sinais da Aliança, símbolos das proezas operadas por Deus em favor do seu povo.
Entre estes sinais litúrgicos da Antiga Aliança, podem citar-se a circuncisão, a unção e a
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sagração dos reis e dos sacerdotes, a imposição das mãos, os sacrifícios e sobretudo a Páscoa.
A Igreja vê nestes sinais uma prefiguração dos sacramentos da Nova Aliança.
1151. Sinais assumidos por Cristo. Na sua pregação, o Senhor Jesus serve-Se muitas vezes
dos sinais da criação para dar a conhecer os mistérios do Reino de Deus (21). Realiza as suas
curas ou sublinha a sua pregação com sinais materiais ou gestos simbólicos (22). Dá um sen-
tido novo aos factos e sinais da Antiga Aliança, sobretudo ao Êxodo e à Páscoa (23), porque
Ele próprio é o sentido de todos esses sinais.
1152. Sinais sacramentais. Depois do Pentecostes, é através dos sinais sacramentais da sua
Igreja que o Espírito Santo opera a santificação. Os sacramentos da Igreja não vêm abolir, mas
purificar e assumir, toda a riqueza dos sinais e símbolos do cosmos e da vida social. Além
disso, realizam os tipos e figuras da Antiga Aliança, significam e realizam a salvação operada
por Cristo, e prefiguram e antecipam a glória do céu.

PALAVRAS E ACÇÕES

1153. Cada celebração sacramental é um encontro dos filhos de Deus com o seu Pai, em Cristo
e no Espírito Santo. Tal encontro exprime-se como um diálogo, através de acções e de palav-
ras. Sem dúvida, as acções simbólicas são já, só por si, uma linguagem. Mas é preciso que a
Palavra de Deus e a resposta da fé acompanhem e dêem vida a estas acções, para que a se-
mente do Reino produza os seus frutos em terra boa. As acções litúrgicas significam o que a
Palavra de Deus exprime: ao mesmo tempo, a iniciativa gratuita de Deus e a resposta de fé do
seu povo.
1154. A liturgia da Palavra é parte integrante das celebrações sacramentais. Para alimentar a
fé dos fiéis, os sinais da Palavra de Deus devem ser valorizados: o livro da Palavra (leccionário
ou evangeliário), a sua veneração (procissão, incenso, luz), o lugar da sua proclamação (am-
bão), a sua leitura audível e inteligível, a homilia do ministro que prolonga a sua proclamação,
as respostas da assembleia (aclamações, salmos de meditação, litanias, confissão de fé...).
1155. Inseparáveis enquanto sinais e ensinamento, as palavras e a acção litúrgica são-no tam-
bém enquanto realizam o que significam. O Espírito Santo não se limita a dar a compreensão
da Palavra de Deus suscitando a fé nela; pelos sacramentos, realiza também as «maravilhas»
de Deus anunciadas pela Palavra: torna presente e comunica a obra do Pai, realizada pelo
Filho muito amado.

CANTO E MÚSICA

1156. «A tradição musical da Igreja universal criou um tesouro de inestimável valor, que ex-
cede todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamente
unido com o texto, constitui parte necessária ou integrante da liturgia solene» (24). A com-
posição e o canto dos salmos inspirados, muitas vezes acompanhados por instrumentos musi-
cais, estavam já estreitamente ligados às celebrações litúrgicas da Antiga Aliança. A Igreja
continua e desenvolve esta tradição: «Recitai entre vós salmos, hinos e cânticos inspirados,
cantai e louvai ao Senhor no vosso coração» (Ef 5,19) (25). Quem canta, reza duas vezes (26).
1157. O canto e a música desempenham a sua função de sinais, dum modo tanto mais signific-
ativo, quanto «mais intimamente estiverem unidos à acção litúrgica» (27),, segundo três
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critérios principais: a beleza expressiva da oração, a participação unânime da assembleia nos


momentos previstos e o carácter solene da celebração. Participam, assim, na finalidade das
palavras e das acções litúrgicas: a glória de Deus e a santificação dos fiéis (28).
«Como eu chorei ao ouvir os vossos hinos, os vossos cânticos, as suaves harmonias que eco-
avam pela vossa igreja! Que emoção me causavam! Passavam pelos meus ouvidos, derraman-
do a verdade no meu coração. Um grande impulso de piedade me elevava, e as lágrimas
rolavam-me pela face; mas faziam-me bem» (29).
1158. A harmonia dos sinais (canto, música, palavras e acções) é aqui tanto mais expressiva e
fecunda quanto mais se exprimir na riqueza cultural própria do Povo de Deus que celebra
(30). Por isso, «promova-se com empenho o canto religioso popular para que, tanto nos exer-
cícios piedosos e sagrados como nas próprias acções litúrgicas», de acordo com as normas da
Igreja, «ressoem as vozes dos fiéis» (31). Mas «os textos destinados ao canto sacro devem es-
tar de acordo com a doutrina católica e inspirar-se sobretudo na Sagrada Escritura e nas
fontes litúrgicas» (32).

AS SANTAS IMAGENS

1159. A imagem sagrada, o «ícone» litúrgico, representa principalmente Cristo. Não pode
representar o Deus invisível e incompreensível: foi a Encarnação do Filho de Deus que in-
augurou uma nova «economia» das imagens:
«Outrora Deus, que não tem nem corpo nem figura, não podia de modo algum, ser repres-
entado por uma imagem. Mas agora, que Ele se fez ver na carne e viveu no meio dos homens,
eu posso fazer uma imagem daquilo que vi de Deus [...] Contemplamos a glória do Senhor
com o rosto descoberto» (33).
1160. A iconografia cristã transpõe para a imagem a mensagem evangélica que a Sagrada
Escritura transmite pela palavra. Imagem e palavra esclarecem-se mutuamente:
«Para dizer brevemente a nossa profissão de fé, nós conservamos todas as tradições da Igreja,
escritas ou não, que nos foram transmitidas intactas. Uma delas é a representação pictórica
das imagens, que está de acordo com a pregação da história evangélica, acreditando que, de
verdade e não só de modo aparente, o Deus Verbo Se fez homem, o que é tão útil como pro-
veitoso, pois as coisas que mutuamente se esclarecem têm indubitavelmente uma significação
recíproca» (34).
1161. Todos os sinais da celebração litúrgica fazem referência a Cristo: também as imagens
sagradas da Mãe de Deus e dos santos. De facto, elas significam Cristo que nelas é glorificado;
manifestam «a nuvem de testemunhas» (Heb 12, 1) que continuam a participar na salvação do
mundo e às quais estamos unidos, sobretudo na celebração sacramental. Através dos seus
ícones, é o homem «à imagem de Deus», finalmente transfigurado «à sua semelhança» (35),
que se revela à nossa fé – como ainda os anjos, também eles recapitulados em Cristo:
«Seguindo a doutrina divinamente inspirada dos nossos santos Padres e a tradição da Igreja
Católica, que nós sabemos ser a tradição do Espírito Santo que nela habita, definimos com
toda a certeza e cuidado que as veneráveis e santas imagens, bem como as representações da
Cruz preciosa e vivificante, pintadas, representadas em mosaico ou de qualquer outra matéria
apropriada, devem ser colocadas nas santas igrejas de Deus, sobre as alfaias e vestes sagradas,
nos muros e em quadros, nas casas e nos caminhos: e tanto a imagem de nosso Senhor, Deus e
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Salvador, Jesus Cristo, como a de nossa Senhora, a puríssima e santa Mãe de Deus, a dos san-
tos anjos e de todos os santos e justos» (36).
1162. «A beleza e a cor das imagens estimulam a minha oração. É uma festa para os meus ol-
hos, e, tal como o espectáculo do campo, impele o meu coração a dar glória a Deus» (37). A
contemplação dos sagrados ícones, unida à meditação da Palavra de Deus e ao canto dos hinos
litúrgicos, entra na harmonia dos sinais da celebração, para que o mistério celebrado se im-
prima na memória do coração e se exprima depois na vida nova dos fiéis.

III. Quando celebrar?

O TEMPO LITÚRGICO

1163. «A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar com uma comemoração sagrada, em
determinados dias do ano, a obra de salvação do seu divino Esposo. Em cada semana, no dia a
que chamou Domingo, celebra a memória da ressurreição do Senhor, como a celebra também
uma vez no ano, na Páscoa, a maior das solenidades, unida à memória da sua bem-aventurada
paixão. E distribui todo o mistério de Cristo pelo decorrer do ano [...]. Comemorando assim os
mistérios da Redenção, ela abre aos fiéis as riquezas das virtudes e merecimentos do seu Sen-
hor, a ponto de os tornar de algum modo presentes a todos os tempos, para que os fiéis, em
contacto com eles, se encham da graça da salvação» (38).
1164. O povo de Deus, desde o tempo da lei mosaica, conheceu festas em datas fixadas a
partir da Páscoa, para comemorar as acções portentosas do Deus Salvador, dar-Lhe graças por
elas, perpetuar-lhes a lembrança e ensinar as novas gerações a conformarem com elas a sua
conduta. No tempo da Igreja, situado entre a Páscoa de Cristo, já realizada uma vez por todas,
e a sua consumação no Reino de Deus, a liturgia celebrada em dias fixos está toda impregnada
da novidade do mistério de Cristo.
1165. Quando a Igreja celebra o mistério de Cristo, há uma palavra que ritma a sua oração:
Hoje!, como um eco da oração que lhe ensinou o seu Senhor (39) e do chamamento do
Espírito Santo (40). Este «hoje» do Deus vivo, em que o homem é chamado a entrar, é a
«Hora» da Páscoa de Jesus, que atravessa e sustenta toda a história:
«A vida derramou-se sobre todos os seres e todos são inundados duma grande luz: o Oriente
dos orientes invade o universo e Aquele que era "antes da estrela da manhã" e antes dos as-
tros, imortal e imenso, o grande Cristo, brilha mais que o Sol sobre todos os seres. É por isso
que, para nós que n'Ele cremos, se instaura um dia de luz, longo, eterno, que não se extingue:
a Páscoa mística» (41).

O DIA DO SENHOR

1166. «Por tradição apostólica, que remonta ao próprio dia da ressurreição de Cristo, a Igreja
celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina dia do Senhor ou
Domingo» (42). O dia da ressurreição de Cristo é, ao mesmo tempo, o «primeiro dia da sem-
ana», memorial do primeiro dia da criação, e o «oitavo dia» em que Cristo, após o seu «re-
pouso» do grande sábado, inaugura o «dia que o Senhor fez», o «dia que não conhece ocaso»
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(43). A «Ceia do Senhor» é o seu centro, porque é nela que toda a comunidade dos fiéis encon-
tra o Senhor ressuscitado, que os convida para o seu banquete (44):
«O dia do Senhor, o dia da ressurreição, o dia dos cristãos é o nosso dia. Chama-se dia do Sen-
hor por isso mesmo: porque foi nesse dia que o Senhor subiu vitorioso para junto do Pai. Se os
pagãos lhe chamam dia do Sol, também nós, de bom grado o confessamos: porque hoje se er-
gueu a luz do mundo, hoje apareceu o sol da justiça, cujos raios nos trazem a salvação» (45).
1167. O Domingo é o dia por excelência da assembleia litúrgica, em que os fiéis se reúnem
«para, ouvindo a Palavra de Deus e participando na Eucaristia, fazerem memória da paixão,
ressurreição e glória do Senhor Jesus, e darem graças a Deus, que os "regenerou para uma es-
perança viva pela ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos"» (46):
«Quando meditamos, ó Cristo, nas maravilhas que tiveram lugar neste dia de domingo da tua
santa ressurreição, dizemos: Bendito o dia de Domingo, porque nele teve início a criação [...] a
salvação do mundo [...] a renovação do género humano [...]. Foi nesse dia que o céu e a terra
se congratularam e que todo o universo se encheu de luz. Bendito o dia de Domingo, porque
nele foram abertas as portas do paraíso, para que Adão e todos os deportados nele entrassem
sem temor» (47).

O ANO LITÚRGICO

1168. Partindo do Tríduo Pascal, como da sua fonte de luz, o tempo novo da ressurreição en-
che todo o ano litúrgico da sua claridade. Progressivamente, dum lado e doutro desta fonte, o
ano é transfigurado pela liturgia. Ele é realmente o ano da graça do Senhor (48). A economia
da salvação realiza-se no quadro do tempo, mas a partir do seu cumprimento na Páscoa de Je-
sus e da efusão do Espírito Santo, o fim da história é antecipado, pregustado, e o Reino de
Deus entra no nosso tempo.
1169. É por isso que a Páscoa não é simplesmente uma festa entre outras: é a «festa das fest-
as», a «solenidade das solenidades», tal como a Eucaristia é o sacramento dos sacramentos (o
grande sacramento). Santo Atanásio chama-lhe «o grande domingo» (49), tal como a Semana
Santa é chamada no Oriente «a semana maior». O mistério da ressurreição, em que Cristo
aniquilou a morte, penetra no nosso velho tempo com a sua poderosa energia, até que tudo
Lhe seja submetido.
1170. No Concílio de Niceia (em 325), todas as Igrejas acordaram em que a Páscoa cristã fosse
celebrada no domingo a seguir à lua cheia (14 de Nisan), depois do equinócio da Primavera.
Devido a diferentes métodos usados para calcular o dia 14 de Nisan, a data da Páscoa nem
sempre coincide nas Igrejas do Ocidente e do Oriente. Por isso, estas Igrejas procuram hoje
um acordo, para chegarem de novo a celebrar numa data comum o dia da ressurreição do
Senhor.
1171. O ano litúrgico é o desenrolar dos diferentes aspectos do único mistério pascal. Isto vale
particularmente para o ciclo das festas em torno do mistério da Encarnação (Anunciação,
Natal, Epifania), que comemoram o princípio da nossa salvação e nos comunicam as primícias
do mistério da Páscoa.

O SANTORAL NO ANO LITÚRGICO


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1172. «Na celebração deste ciclo anual dos mistérios de Cristo, a santa Igreja venera, com es-
pecial amor, porque indissoluvelmente unida à obra de salvação do seu Filho, a bem- aven-
turada Virgem Maria, Mãe de Deus; nela vê e exalta o mais excelso fruto da redenção e con-
templa com alegria, como numa imagem puríssima, o que ela própria deseja e espera ser in-
teiramente» (50).
1173. Quando a Igreja, no ciclo anual, faz memória dos mártires e dos outros santos, «pro-
clama o mistério pascal» realizado naqueles homens e mulheres que «sofreram com Cristo e
com Ele foram glorificados, propõe aos fiéis os seus exemplos, que a todos atraem ao Pai por
Cristo, e implora, pelos seus méritos, os benefícios de Deus» (51).

A LITURGIA DAS HORAS

1174. O mistério de Cristo, a sua Encarnação e a sua Páscoa, que celebramos na Eucaristia,
especialmente na assembleia dominical, penetra e transfigura o tempo de cada dia pela celeb-
ração da Liturgia das Horas, «o Ofício divino» (52). Esta celebração, na fidelidade às re-
comendações apostólicas de «orar sem cessar» (53) «constituiu-se de modo a consagrar, pelo
louvor a Deus, todo o curso diurno e nocturno do tempo» (54). É «a oração pública da
Igreja»(55), na qual os fiéis (clérigos, religiosos e leigos) exercem o sacerdócio real dos baptiz-
ados. Celebrada «segundo a forma aprovada» pela Igreja, a Liturgia das Horas «é verdadeira-
mente a voz da própria Esposa que fala com o Esposo; mais ainda, é a oração que Cristo,
unido ao seu corpo, eleva ao Pai» (56).
1175. A Liturgia das Horas está destinada a tornar-se a oração de todo o povo de Deus. Nela, o
próprio Cristo «continua a exercer o seu múnus sacerdotal por intermédio da sua Igreja» (57).
Cada qual participa nela segundo o seu lugar próprio na Igreja e as circunstâncias da sua vida:
os sacerdotes, enquanto dedicados ao ministério pastoral, porque são chamados a permanecer
assíduos na oração e no ministério da Palavra (58): os religiosos e religiosas, em virtude do
carisma da sua vida consagrada (59); e todos os fiéis, segundo as suas possibilidades:
«Cuidem os pastores de almas de que, nos domingos e festas mais solenes, se celebrem em
comum na Igreja as Horas principais, sobretudo as Vésperas. Recomenda-se também aos
próprios leigos que recitem o Ofício divino, quer juntamente com os sacerdotes, quer reunidos
entre si, ou mesmo sozinhos» (60).
1176. Celebrar a Liturgia das Horas exige, não somente harmonizar a voz com o coração que
ora, mas também procurar «adquirir maior instrução litúrgica e bíblica, especialmente quanto
aos salmos» (61).
1177. Os hinos e as preces litânicas da Liturgia das Horas inserem a oração dos salmos no
tempo da Igreja, exprimindo o simbolismo do momento do dia, do tempo litúrgico ou da festa
celebrada. Além disso, a leitura da Palavra de Deus em cada Hora (com os responsórios ou
tropários que a seguem) e, em certas horas, as leituras dos Padres e mestres espirituais, rev-
elam mais profundamente o sentido do mistério celebrado, ajudam a compreender os salmos
e preparam para a oração silenciosa. A lectio divina, na qual a Palavra de Deus é lida e medit-
ada para se tornar oração, é deste modo enraizada na celebração litúrgica.
1178. A Liturgia das Horas, que é como que um prolongamento da celebração eucarística, não
exclui, antes postula como complemento, as diversas devoções do povo de Deus, particular-
mente a adoração e o culto do Santíssimo Sacramento.
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IV. Onde celebrar?

1179. O culto «em espírito e verdade» (Jo 4, 24) da Nova Aliança não está ligado a nenhum
lugar exclusivo. Toda a terra é santa e está confiada aos filhos dos homens. O que tem
primazia, quando os fiéis se reúnem num mesmo lugar, sãs as «pedras vivas» que se juntam
para «a edificação dum edifício espiritual» (1 Pe 2, 4-5). O corpo de Cristo ressuscitado é o
templo espiritual donde brota a fonte de água viva. Incorporados em Cristo pelo Espírito
Santo, «nós somos o templo do Deus vivo» (2 Cor 6, 16).
1180. Quando o exercício da liberdade religiosa não é impedido (62), os cristãos constroem
edifícios destinados ao culto divino. Estas igrejas visíveis não são simples lugares de reunião,
mas significam e manifestam a Igreja que vive nesse lugar, morada de Deus com os homens
reconciliados e unidos em Cristo.
1181. «A casa de oração em que é celebrada e conservada a santíssima Eucaristia, em que os
fiéis se reúnem, e na qual a presença do Filho de Deus, nosso Salvador, oferecido por nós no
altar do sacrifício, é venerada para auxílio e consolação dos fiéis, deve ser bela e apta para a
oração e para as celebrações sagradas» (63). Nesta «casa de Deus», a verdade e a harmonia
dos sinais que a constituem devem manifestar Cristo presente e actuante neste lugar (64).
1182. O altar da Nova Aliança é a cruz do Senhor (65), de onde dimanam os sacramentos do
mistério pascal. Sobre o altar, que é o centro da igreja, é tornado presente o sacrifício da Cruz
sob os sinais sacramentais. Ele é também a mesa do Senhor, para a qual o povo de Deus é con-
vidado (66). Em certas liturgias orientais, o altar é, ainda, o símbolo do túmulo (Cristo morreu
verdadeiramente e verdadeiramente ressuscitou).
1183. O sacrário deve ser situado, «nas igrejas, num dos lugares mais dignos, com a maior
honra» (67). A nobreza, o arranjo e a segurança do tabernáculo eucarístico (68) devem favore-
cer a adoração do Senhor, realmente presente no Santíssimo Sacramento do altar.
O Santo Crisma (myron), cuja unção é o sinal sacramental do selo do dom do Espírito Santo, é
tradicionalmente conservado e venerado num lugar seguro do santuário. Pode juntar-se-lhe o
óleo dos catecúmenos e o dos enfermos.
1184. A cadeira do bispo (cátedra) ou do sacerdote «deve significar a sua função de presid-
ente da assembleia e guia da oração» (69).
O ambão: «A dignidade da Palavra de Deus requer na igreja um lugar próprio para a sua pro-
clamação. Durante a liturgia da Palavra, é para lá que deve convergir espontaneamente a
atenção dos fiéis» (70).
1185. A reunião do povo de Deus começa pelo Baptismo. Por isso, a igreja deve ter um lugar
apropriado para a celebração do Baptismo (baptistério) e favorecer a lembrança das promes-
sas do Baptismo (água benta).
A renovação da vida baptismal exige a Penitência. Por isso, a igreja deve prestar-se à ex-
pressão do arrependimento e à recepção do perdão dos pecados, o que reclama um lugar apro-
priado para acolher os penitentes.
A igreja deve ser, também, um espaço que convide ao recolhimento e à oração silenciosa, que
prolongue e interiorize a grande oração da Eucaristia.
1186. Finalmente a igreja tem uma significação escatológica. Para entrar na casa de Deus, é
preciso franquear um limiar, símbolo da passagem do mundo ferido pelo pecado para o
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mundo da vida nova, à qual todos os homens são chamados. A igreja visível simboliza a casa
paterna, para a qual o Povo de Deus está a caminho e onde o Pai «enxugará todas as lágrimas
dos seus olhos» (Ap 21, 4). É também por isso que a igreja é a casa de todos os filhos de Deus,
amplamente aberta e acolhedora.

Resumindo:

1187. A liturgia é obra do Cristo total, cabeça e corpo. O nosso Sumo-Sacerdote celebra-a
sem cessar na liturgia celeste, com a Santa Mãe de Deus, os Apóstolos, todos os santos e a
multidão dos seres humanos que já entraram no Reino.
1188. Numa celebração litúrgica, toda a assembleia é «liturga», cada qual segundo a sua
função. O sacerdócio baptismal é de todo o corpo de Cristo. Mas alguns fiéis são ordenados
pelo sacramento da Ordem para representar Cristo como Cabeça do corpo.
1189. A celebração litúrgica comporta sinais e símbolos que se referem à criação (luz, água,
fogo), à vida humana (lavar, tingir; partir o pão) e à história da salvação (ritos da Páscoa).
Inseridos no mundo da fé e assumidos pela força do Espírito Santo, estes elementos cósmi-
cos, estes ritos humanos, estes gestos memoriais de Deus, tornam-se portadores da acção
salvadora e santificadora de Cristo.
1190. A liturgia da Palavra é parte integrante da celebração. O sentido da celebração é ex-
presso pela Palavra de Deus que é anunciada e pelo compromisso da fé que lhe responde.
1191. 0 canto e a música estão em conexão estreita com a acção litúrgica. São critérios do
seu bom uso: a beleza expressiva da oração, a participação unânime da assembleia e o
carácter sagrado da celebração.
1192. As imagens sagradas, presentes nas nossas igrejas e nas nossas casas, destinam-se a
despertar e alimentar a nossa fé no mistério de Cristo. Através do ícone de Cristo e das suas
obras de salvação, é a Ele que adoramos. Através das imagens sagradas da Santa Mãe de
Deus, dos anjos e dos santos, veneramos as pessoas que nelas vemos representadas.
1193. 0 Domingo, «Dia do Senhor», é o dia principal da celebração da Eucaristia, porque é
o dia da ressurreição. É o dia por excelência da assembleia litúrgica, o dia da família cristã,
o dia da alegria e do descanso do trabalho. É «o fundamento e o núcleo de todo o ano litúrgi-
co» (71).
1194. A Igreja «desdobra todo o mistério de Cristo durante o ciclo anual, desde a En-
carnação e o Natal até à Ascensão, ao dia do Pentecostes e à expectativa da feliz esperança e
da vinda do Senhor» (72).
1195. Celebrando a memória dos santos, em primeiro lugar da Santa Mãe de Deus, depois
dos Apóstolos, dos mártires e dos outros santos, em dias fixos do ano litúrgico, a Igreja da
terra manifesta a sua união à liturgia celeste; glorifica Cristo por ter realizado a salvação
nos seus membros glorificados; o exemplo deles é para ela um estímulo no seu peregrinar
para o Pai.
1196. Os fiéis que celebram a Liturgia das Horas unem-se a Cristo, nosso Sumo-Sacerdote,
pela oração dos salmos, a meditação da Palavra de Deus, os cânticos e as bênçãos, a fim de
serem associados à sua oração contínua e universal, que dá glória ao Pai e implora o dom
do Espírito Santo sobre o mundo inteiro.
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1197. Cristo é o verdadeiro Templo de Deus, «o lugar em que reside a sua glória»; pela
graça de Deus, também os cristãos se tornam templos do Espírito Santo, pedras vivas com
que se constrói a Igreja.
1198. Na sua condição terrena, a Igreja tem necessidade de lugares onde a comunidade
possa reunir-se: as nossas igrejas visíveis, lugares sagrados, imagens da Cidade santa, da
Jerusalém celeste para a qual caminhamos como peregrinos.
1199. É nestas igrejas que a Igreja celebra o culto público para glória da Santíssima
Trindade, ouve a Palavra de Deus e canta os seus louvores, eleva a sua oração e oferece o
sacrifício de Cristo, sacramentalmente presente no meio da assembleia. Estas igrejas são
também lugares de recolhimento e de oração pessoal.

ARTIGO 2
DIVERSIDADE LITÚRGICA E UNIDADE DO MISTÉRIO

TRADIÇÕES LITÚRGICAS E CATOLICIDADE DA IGREJA

1200. Desde a primeira comunidade de Jerusalém até à Parusia, as Igrejas de Deus celebram
em toda a parte o mesmo mistério pascal, fiéis à fé apostólica. O mistério celebrado na liturgia
é um só, mas as formas da sua celebração são diversas.
1201. A riqueza insondável do mistério de Cristo é tal, que nenhuma tradição litúrgica pode
esgotar-lhe a expressão. A história da origem e desenvolvimento destes ritos testemunha uma
complementaridade admirável. Sempre que as Igrejas viveram estas tradições litúrgicas em
comunhão na fé e nos sacramentos da fé, enriqueceram-se mutuamente, crescendo na fidelid-
ade à Tradição e à missão comum de toda a Igreja (73).
1202. As diversas tradições litúrgicas nasceram em razão da própria missão da Igreja. As
Igrejas duma mesma área geográfica e cultural acabaram por celebrar o mistério de Cristo at-
ravés de expressões particulares, culturalmente diferenciadas: na tradição do «depósito da fé»
(74), no simbolismo litúrgico, na organização da comunhão fraterna, na compreensão teoló-
gica dos mistérios e nos tipos de santidade. Assim, Cristo, Luz e Salvação de todos os povos, é
manifestado pela vida litúrgica duma Igreja ao povo e à cultura a que a mesma Igreja é envi-
ada e em que se radicou. A Igreja é católica: pode integrar na sua unidade, purificando- as, to-
das as verdadeiras riquezas das culturas (75).
1203. As tradições litúrgicas ou ritos, actualmente em uso na Igreja, são: o rito latino (prin-
cipalmente o rito romano, mas também os ritos de certas igrejas locais, como o rito ambro-
siano ou o de certas ordens religiosas) e os ritos bizantino, alexandrino ou copta, siríaco,
arménio, maronita e caldeu. «Fiel à tradição, o sagrado Concílio declara que a santa Mãe
Igreja considera iguais em direito e dignidade todos os ritos legitimamente reconhecidos e
quer que no futuro se mantenham e sejam promovidos por todos os meios» (76).

LITURGIA E CULTURAS

1204. A celebração da Liturgia deve, pois, corresponder ao génio e à cultura dos diferentes
povos (77). Para que o mistério de Cristo seja «dado a conhecer a todos os gentios, para que
obedeçam à fé» (Rm 16, 26), tem de ser anunciado, celebrado e vivido em todas as culturas, de
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modo que estas não sejam abolidas mas resgatadas e plenamente realizadas por ele (78). É
com e pela sua cultura humana própria, assumida e transfigurada por Cristo, que a multidão
dos filhos de Deus tem acesso ao Pai, para O glorificar num só Espírito.
1205. «Na liturgia, sobretudo na dos sacramentos, existe uma parte imutável — por ser de in-
stituição divina — da qual a Igreja é guardiã, e partes susceptíveis de mudança que a Igreja
tem o poder e, por vezes, mesmo o dever de adaptar às culturas dos povos recentemente evan-
gelizados» (79).
1206. «A diversidade litúrgica pode ser fonte de enriquecimento, mas também pode provocar
tensões, incompreensões recíprocas e até cismas. Neste domínio, é claro que a diversidade não
deve prejudicar a unidade. Ela só pode exprimir-se na fidelidade à fé comum, aos sinais sacra-
mentais que a Igreja recebeu de Cristo e à comunhão hierárquica. A adaptação às culturas ex-
ige uma conversão do coração e, se necessário, rupturas com hábitos ancestrais incompatíveis
com a fé católica» (80).

Resumindo:

1207. Convém que a celebração da liturgia tenda a exprimir-se na cultura do povo em que a
Igreja se encontra, sem se submeter a ela. Por outro lado, a própria liturgia é geradora e
formadora de culturas.
1208. As diversas tradições litúrgicas, ou ritos, legitimamente reconhecidas, uma vez que
significam e comunicam o mesmo mistério de Cristo, manifestam a catolicidade da Igreja.
1209. O critério que garante a unidade na pluriformidade das tradições litúrgicas é a fidel-
idade à Tradição apostólica, quer dizer: a comunhão na fé e nos sacramentos recebidos dos
Apóstolos, comunhão que é significada e garantida pela sucessão apostólica.
SEGUNDA SECÇÃO

OS SACRAMENTOS DA IGREJA

1210. Os sacramentos da nova Lei foram instituídos por Cristo e são em número de sete, a
saber: o Baptismo, a Confirmação, a Eucaristia, a Penitência, a Unção dos Enfermos, a Ordem
e o Matrimónio. Os sete sacramentos tocam todas as etapas e momentos importantes da vida
do cristão: outorgam nascimento e crescimento, cura e missão à vida de fé dos cristãos. Há
aqui uma certa semelhança entre as etapas da vida natural e as da vida espiritual (1).
1211. Seguindo esta analogia, exporemos primeiro os três sacramentos da iniciação cristã
(capítulo primeiro), depois os sacramentos de cura (capítulo segundo) e finalmente os que es-
tão ao serviço da comunhão e da missão dos fiéis (capítulo terceiro). Esta ordem não é, certa-
mente, a única possível, mas permite ver que os sacramentos formam um organismo, no qual
cada sacramento particular tem o seu lugar vital. Neste organismo, a Eucaristia ocupa um
lugar único, como «sacramento dos sacramentos»: «todos os outros sacramentos estão orde-
nados para este, como para o seu fim» (2).

CAPÍTULO PRIMEIRO
OS SACRAMENTOS DA INICIAÇÃO CRISTÃ

1212. Através dos sacramentos da iniciação cristã – Baptismo, Confirmação e Eucaristia são
lançados os alicerces de toda a vida cristã. «A participação na natureza divina, dada aos ho-
mens pela graça de Cristo, comporta uma certa analogia com a origem, crescimento e sustento
da vida natural. Nascidos para uma vida nova pelo Baptismo, os fiéis são efectivamente forta-
lecidos pelo sacramento da Confirmação e recebem na Eucaristia o Pilo da vida eterna Assim.
por estes sacramentos da iniciação cristã, eles recebem cada vez mais riquezas da vida divina e
avançam para a perfeição da caridade» (3).

ARTIGO 1

O SACRAMENTO DO BATISMO

1213. O santo Baptismo é o fundamento de toda a vida cristã, o pórtico da vida no Espírito
(«vitae spiritualis ianua – porta da vida espiritual») e a porta que dá acesso aos outros sacra-
mentos. Pelo Baptismo somos libertos do pecado e regenerados como filhos de Deus:
tornamo-nos membros de Cristo e somos incorporados na Igreja e tornados participantes na
sua missão (4). «Baptismos est sacramentam regeneratiorais per aquam in Verbo – O
Baptismo pode definir-se como o sacramento da regeneração pela água e pela Palavra» (5).
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I. Como se chama este sacramento?

1214. Chama-se Baptismo, por causa do rito central com que se realiza: baptizar (baptizeis,
em grego) significa «mergulhar», «imergir». A «imersão» na água simboliza a sepultura do
catecúmeno na morte de Cristo, de onde sai pela ressurreição com Ele (6) como «nova cri-
atura» (2 Cor 5, 17; Gl 6, 15).
1215. Este sacramento é também chamado «banho da regeneração e da renovação no
Espírito Santo» (Tt 3, 5), porque significa e realiza aquele nascimento da água e do Espírito,
sem o qual «ninguém pode entrar no Reino de Deus» (Jo 3, 5).
1216. «Este banho é chamado iluminação, porque aqueles que recebem este ensinamento
[catequético] ficam com o espírito iluminado...» (7). Tendo recebido no Baptismo o Verbo,
«luz verdadeira que ilumina todo o homem» (Jo 1, 9), o baptizado, «depois de ter sido ilu-
minado» (8), tornou-se «filho da luz» (9) e ele próprio «luz» (Ef 5, 8):
«O Baptismo é o mais belo e magnífico dos dons de Deus [...] Chamamos-lhe dom, graça, un-
ção, iluminação, veste de incorruptibilidade, banho de regeneração, selo e tudo o que há de
mais precioso. Dom, porque é conferido àqueles que não trazem nada: graça, porque é dado
mesmo aos culpados: baptismo, porque o pecado é sepultado nas águas; unção, porque é
sagrado e régio (como aqueles que são ungidos); iluminação, porque é luz irradiante; veste,
porque cobre a nossa vergonha; banho, porque lava; selo, porque nos guarda e é sinal do sen-
horio de Deus» (10).

II. O Baptismo na economia da salvação

AS PREFIGURAÇÕES DO BAPTISMO NA ANTIGA ALIANÇA

1217. Na liturgia da Vigília Pascal, a quando da bênção da água baptismal, a Igreja faz sole-
nemente memória dos grandes acontecimentos da história da salvação que prefiguravam já o
mistério do Baptismo:
«Senhor nosso Deus: pelo vosso poder invisível, realizais maravilhas nos vossos sacramentos.
Ao longo dos tempos, preparastes a água para manifestar a graça do Baptismo» (11).
1218. Desde o princípio do mundo, a água, esta criatura humilde e admirável, é a fonte da
vida e da fecundidade. A Sagrada Escritura vê-a como «incubada» pelo Espírito de Deus (12):
«Logo no princípio do mundo, o vosso Espírito pairava sobre as águas, para que já desde en-
tão concebessem o poder de santificar» (13).
1219. A Igreja viu na arca de Noé uma prefiguração da salvação pelo Baptismo. Com efeito,
graças a ela, «um pequeno grupo, ao todo oito pessoas, foram salvas pela água» (1 Pe 3, 20):
«Nas águas do dilúvio, destes-nos uma imagem do Baptismo, sacramento da vida nova,
porque as águas significam ao mesmo tempo o fim do pecado e o princípio da santidade» (14).
1220. Se a água de nascente simboliza a vida, a água do maré um símbolo da morte. Por isso é
que podia prefigurar o mistério da cruz. E por este simbolismo, o Baptismo significa a comun-
hão com a morte de Cristo.
1221. É sobretudo a travessia do Mar Vermelho, verdadeira libertação de Israel da escravidão
do Egipto, que anuncia a libertação operada pelo Baptismo:
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«Aos filhos de Abraão fizestes atravessar a pé enxuto o Mar Vermelho, para que esse povo,
liberto da escravidão, fosse a imagem do povo santo dos baptizados» (15).
1222. Finalmente, o Baptismo é prefigurado na travessia do Jordão, graças à qual o povo de
Deu- recebe o dom da terra prometida à descendência de Abraão, imagem da vida eterna. A
promessa desta herança bem-aventurada cumpre-se na Nova Aliança.

O BAPTISMO DE CRISTO

1223. Todas as prefigurações da Antiga Aliança encontram a sua realização em Jesus Cristo.
Ele começa a sua vida pública depois de Se ter feito baptizar por São João Baptista no Jordão
(16). E depois da sua ressurreição, confere esta missão aos Apóstolos: «Ide, pois, fazei discípu-
los de todas as nações; baptizai-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo e ensinai-os
a cumprir tudo quanto vos mandei» (Mt 28, 19-20) (17).
1224. Nosso Senhor sujeitou-se voluntariamente ao Baptismo de São João, destinado aos
pecadores, para cumprir toda a justiça (18). Este gesto de Jesus é uma manifestação do seu
«aniquilamento» (19). O Espírito que pairava sobre as águas da primeira criação, desce então
sobre Cristo como prelúdio da nova criação e o Pai manifesta Jesus como seu «Filho muito
amado» (20).
1225. Foi na sua Páscoa que Cristo abriu a todos os homens as fontes do Baptismo. De facto,
Ele já tinha falado da sua paixão, que ia sofrer em Jerusalém, como dum «baptismo» com que
devia ser baptizado (21). O sangue e a água que manaram do lado aberto de Jesus crucificado
(22) são tipos do Baptismo e da Eucaristia, sacramentos da vida nova (23): desde então, é pos-
sível «nascer da água e do Espírito» para entrar no Reino de Deus (Jo 3, 5).
«Repara: Onde é que foste baptizado, de onde é que vem o Baptismo, senão da cruz de Cristo,
da morte de Cristo? Ali está todo o mistério: Ele sofreu por ti. Foi n'Ele que tu foste resgatado,
n'Ele que foste salvo» (24).

O BAPTISMO NA IGREJA

1226. Desde o dia de Pentecostes que a Igreja vem celebrando e administrando o santo
Baptismo. Com efeito, São Pedro declara à multidão, abalada pela sua pregação: «convertei-
vos e peça cada um de vós o Baptismo em nome de Jesus Cristo, para vos serem perdoados os
pecados. Recebereis então o dom do Espírito Santo» (Act 2, 38). Os Apóstolos e os seus col-
aboradores oferecem o Baptismo a quem quer que acredite em Jesus: judeus, pessoas
tementes a Deus, pagãos (25). O Baptismo aparece sempre ligado à fé: «Acredita no Senhor
Jesus e serás salvo juntamente com a tua família», declara São Paulo ao seu carcereiro em
Filipos. E a narrativa continua: «o carcereiro [...] logo recebeu o Baptismo, juntamente com
todos os seus» (Act 16, 31-33).
1227. Segundo o apóstolo São Paulo, pelo Baptismo o crente comunga na morte de Cristo; é
sepultado e ressuscita com Ele:
«Todos nós, que fomos baptizados em Cristo Jesus, fomos baptizados na sua morte. Fomos
sepultados com Ele pelo baptismo na morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos
mortos, pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova» (Rm 6, 3-4) (26).
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Os baptizados «revestem-se de Cristo» (27). Pelo Espírito Santo, o Baptismo é um banho que
purifica, santifica e justifica (28).
1228. O Baptismo é, pois, um banho de água, no qual «a semente incorruptível» da Palavra
de Deus produz o seu efeito vivificador (29). Santo Agostinho dirá do Baptismo: «Accedit
verbum ad elementum, et fit sacramentam – Junta-se a palavra ao elemento material e faz-se
o sacramento» (30).

III. Como se celebra o sacramento do Baptismo?

A INICIAÇÃO CRISTÃ

1229. Desde o tempo dos Apóstolos que tornar-se cristão requer um caminho e uma iniciação
com diversas etapas. Este itinerário pode ser percorrido rápida ou lentamente. Mas deverá
sempre incluir certos elementos essenciais: o anúncio da Palavra, o acolhimento do Evangelho
que implica a conversão, a profissão de fé, o Baptismo, a efusão do Espírito Santo, o acesso à
comunhão eucarística.
1230. Esta iniciação tem variado muito no decurso dos séculos e segundo as circunstâncias.
Nos primeiros séculos da Igreja, a iniciação cristã conheceu grande desenvolvimento, com um
longo período de catecumenato e uma série de ritos preparatórios que escalonavam liturgica-
mente o caminho da preparação catecumenal, desembocando na celebração dos sacramentos
da iniciação cristã.
1231. Nas regiões onde o Baptismo das crianças se tomou largamente a forma habitual da cel-
ebração deste sacramento, esta transformou-se num acto único, que integra, de um modo
muito abreviado, as etapas preliminares da iniciação cristã. Pela sua própria natureza, o
Baptismo das crianças exige um catecumenato pós-baptismal. Não se trata apenas da ne-
cessidade duma instrução posterior ao Baptismo mas do desenvolvimento necessário da graça
baptismal no crescimento da pessoa. É o espaço próprio da catequese.
1232. O II Concílio do Vaticano restaurou, para a Igreja latina, «o catecumenato dos adultos,
distribuído em várias fases» (31). O respectivo ritual encontra-se no Ordo initiationis christi-
anae adultorum (1972). Aliás, o Concílio permitiu que, «para além dos elementos de iniciação
próprios da tradição cristã», se admitam, em terras de missão, «os elementos de iniciação
usados por cada um desses povos, na medida em que puderem integrar-se no rito cristão»
(32).
1233. Hoje em dia, portanto, em todos os ritos latinos e orientais, a iniciação cristã dos adul-
tos começa com a sua entrada no catecumenato, para atingir o ponto culminante na celeb-
ração única dos três sacramentos, Baptismo, Confirmação e Eucaristia (33). Nos ritos ori-
entais, a iniciação cristã das crianças na infância começa no Baptismo, seguido imediatamente
da Confirmação e da Eucaristia, enquanto no rito romano a mesma iniciação prossegue dur-
ante os anos de catequese, para terminar, mais tarde, com a Confirmação e a Eucaristia, ponto
culminante da sua iniciação cristã (34).

A MISTAGOGIA DA CELEBRAÇÃO
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1234. O sentido e a graça do sacramento do Baptismo aparecem claramente nos ritos da sua
celebração. Seguindo, com participação atenta, os gestos e as palavras desta celebração, os
fiéis são iniciados nas riquezas que este sacramento significa e realiza em cada novo
baptizado.
1235. O sinal da cruz, no princípio da celebração, manifesta a marca de Cristo impressa
naquele que vai passar a pertencer-Lhe, e significa a graça da redenção que Cristo nos ad-
quiriu pela sua cruz.
1236. O anúncio da Palavra de Deus ilumina com a verdade revelada os candidatos e a as-
sembleia e suscita a resposta da fé, inseparável do Baptismo. Na verdade, o Baptismo é, de
modo particular, o «sacramento da fé», uma vez que é a entrada sacramental na vida da fé.
1237. E porque o Baptismo significa a libertação do pecado e do diabo, seu instigador,
pronuncia-se sobre o candidato um ou vários exorcismos. Ele é ungido com o óleo dos catecú-
menos ou, então, o celebrante impõe-lhe a mão e ele renuncia expressamente a Satanás.
Assim preparado, pode professar a fé da Igreja, à qual será «confiado» pelo Baptismo (35).
1238. A água baptismal é então consagrada por uma oração de epiclese (ou no próprio mo-
mento, ou na Vigília Pascal). A Igreja pede a Deus que, pelo seu Filho, o poder do Espírito
Santo desça a esta água, para que os que nela forem baptizados «nasçam da água e do
Espírito» (Jo 3, 5).
1239. Segue-se o rito essencial do sacramento: o baptismo propriamente dito, que significa e
realiza a morte para o pecado e a entrada na vida da Santíssima Trindade, através da configur-
ação com o mistério pascal de Cristo. O Baptismo é realizado, do modo mais significativo, pela
tríplice imersão na água baptismal; mas, desde tempos antigos, pode também ser conferido
derramando por três vezes água sobre a cabeça do candidato.
1240. Na Igreja latina, esta tríplice infusão é acompanhada pelas palavras do ministro: «N.,
eu te baptizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». Nas liturgias orientais, estando
o catecúmeno voltado para o Oriente, o sacerdote diz: «O servo de Deus N. é baptizado em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo»; e à invocação de cada pessoa da Santíssima
Trindade, mergulha-o e retira-o da água.
1241. A unção com o santo crisma, óleo perfumado que foi consagrado pelo bispo, significa o
dom do Espírito Santo ao novo baptizado. Ele tornou-se cristão, quer dizer, «ungido» pelo
Espírito Santo, incorporado em Cristo, que foi ungido sacerdote, profeta e rei (36).
1242. Na liturgia das Igrejas do Oriente, a unção pós-baptismal é o sacramento da Crismação
(Confirmação). Na liturgia romana, anuncia uma segunda unção com o santo Crisma, que será
dada pelo bispo: o sacramento da Confirmação que, por assim dizer, «confirma» e completa a
unção baptismal.
1243. A veste branca simboliza que o baptizado «se revestiu de Cristo» (37): ressuscitou com
Cristo. A vela, acesa no círio pascal, significa que Cristo iluminou o neófito. Em Cristo, os bap-
tizados são «a luz do mundo» (Mt 5, 14) (38). O recém-baptizado é agora filho de Deus no seu
Filho Único e pode dizer a oração dos filhos
de Deus: O Pai-Nosso.
1244. A primeira Comunhão eucarística. Tornado filho de Deus, revestido da veste nupcial, o
neófito é admitido «ao banquete das núpcias do Cordeiro» e recebe o alimento da vida nova, o
corpo e sangue de Cristo. As Igrejas orientais conservam uma consciência viva da unidade da
iniciação cristã, dando a sagrada Comunhão a todos os novos baptizados e confirmados,
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mesmo às criancinhas, lembrando a palavra do Senhor: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não
as estorveis» (Mc 10, 14). A Igreja latina, que reserva o acesso à sagrada Comunhão para
aqueles que atingiram o uso da razão, exprime a abertura do Baptismo em relação à Eucaristia
aproximando do altar a criança recém-baptizada para a oração do Pai Nosso.
1245. A celebração do Baptismo conclui-se com a bênção solene. Aquando do Baptismo de
recém-nascidos, a bênção da mãe ocupa um lugar especial.

IV. Quem pode receber o Baptismo?

1246. «Todo o ser humano ainda não baptizado – e só ele – é capaz de receber o Baptismo»

O BAPTISMO DOS ADULTOS

1247. Desde os princípios da Igreja, o Baptismo dos adultos é a situação mais corrente nas
terras onde o anúncio do Evangelho ainda é recente. O catecumenato (preparação para o
Baptismo) tem, nesse caso, um lugar importante; sendo iniciação na fé e na vida cristã, deve
dispor para o acolhimento do dom de Deus no Baptismo, Confirmação e Eucaristia.
1248. O catecumenato, ou formação dos catecúmenos, tem por finalidade permitir a estes, em
resposta à iniciativa divina e em união com uma comunidade eclesial, conduzir à maturidade
a sua conversão e a sua fé. Trata-se duma «formação e de uma aprendizagem de toda a vida
cristã», mediante a qual os discípulos se unem com Cristo seu mestre. Por conseguinte, sejam
os catecúmenos convenientemente iniciados no mistério da salvação, na prática dos costumes
evangélicos, e, com ritos sagrados a celebrar em tempos sucessivos, sejam introduzidos na
vida da fé, da Liturgia e da caridade do povo de Deus» (40).
1249. Os catecúmenos «estão já unidos à Igreja», já são da casa de Cristo, e, não raro, eles
levam já uma vida de fé, de esperança e de caridade» (41). «A mãe Igreja já os abraça como
seus, com amor e solicitude» (42).

O BAPTISMO DAS CRIANÇAS

1250. Nascidas com uma natureza humana decaída e manchada pelo pecado original, as cri-
anças também têm necessidade do novo nascimento no Baptismo para serem libertas do
poder das trevas e transferidas para o domínio da liberdade dos filhos de Deus (44), a que to-
dos os homens são chamados. A pura gratuidade da graça da salvação é particularmente
manifesta no Baptismo das crianças. Por isso, a Igreja e os pais privariam, a criança da graça
inestimável de se tornar filho de Deus, se não lhe conferissem o Baptismo pouco depois do seu
nascimento (45).
1251. Os pais cristãos reconhecerão que esta prática corresponde, também, ao seu papel de
sustentar a vida que Deus lhes confiou (46).
1252. A prática de baptizar as crianças é tradição imemorial da Igreja. Explicitamente atest-
ada desde o século II, é no entanto bem possível que, desde o princípio da pregação
apostólica, quando «casas» inteiras receberam o Baptismo se tenham baptizado também as
crianças (48).
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FÉ E BAPTISMO

1253. O Baptismo é o sacramento da fé (49). Mas a fé tem necessidade da comunidade dos


crentes. Só na fé da Igreja é que cada um dos fiéis pode crer. A fé que se requer para o
Baptismo não é uma fé perfeita e amadurecida, mas um princípio chamado a desenvolver-se.
Ao catecúmeno ou ao seu padrinho pergunta-se: «Que pedis à Igreja de Deus?» E ele re-
sponde: «A fé!».
1254. Em todos os baptizados, crianças ou adultos, a fé deve crescer depois do Baptismo. É
por isso que a Igreja celebra todos os anos, na Vigília Pascal, a renovação das promessas do
Baptismo. A preparação para o Baptismo conduz apenas ao umbral da vida nova. O Baptismo
é a fonte da vida nova em Cristo, donde jorra toda a vida cristã.
1255. Para que a graça baptismal possa desenvolver-se, é importante a ajuda dos pais. Esse é
também o papel do padrinho ou da madrinha, que devem ser pessoas de fé sólida, capazes e
preparados para ajudar o novo baptizado, criança ou adulto, no seu caminho de vida cristã
(50). O seu múnus é um verdadeiro ofício eclesial (51). Toda a comunidade eclesial tem uma
parte de responsabilidade no desenvolvimento e na defesa da graça recebida no Baptismo.

V. Quem pode baptizar?

1256. São ministros ordinários do Baptismo o bispo e o presbítero, e, na Igreja latina, tam-
bém o diácono (52). Em caso de necessidade, qualquer pessoa, mesmo não baptizada, desde
que tenha a intenção requerida, pode baptizar utilizando a fórmula baptismal trinitária (53). A
intenção requerida é a de querer fazer o que faz a Igreja quando baptiza. A Igreja vê a razão
desta possibilidade na vontade salvífica universal de Deus (54) e na necessidade do Baptismo
para a salvação (55).

VI. A necessidade do Baptismo

1257. O próprio Senhor afirma que o Baptismo é necessário para a salvação (56). Por isso, or-
denou aos seus discípulos que anunciassem o Evangelho e baptizassem todas as nações (57).
O Baptismo é necessário para a salvação de todos aqueles a quem o Evangelho foi anunciado e
que tiveram a possibilidade de pedir este sacramento (58). A Igreja não conhece outro meio
senão o Baptismo para garantir a entrada na bem-aventurança eterna. Por isso, tem cuidado
em não negligenciar a missão que recebeu do Senhor de fazer «renascer da água e do
Espírito» todos os que podem ser baptizados. Deus ligou a salvação ao sacramento do
Baptismo; mas Ele próprio não está prisioneiro dos seus sacramentos.
1258. Desde sempre, a Igreja tem a firme convicção de que aqueles que sofrem a morte por
causa da fé, sem terem recebido o Baptismo, são baptizados pela sua morte por Cristo e com
Cristo. Este Baptismo de sangue, tal como o desejo do Baptismo ou Baptismo de desejo,
produz os frutos do Baptismo, apesar de não ser sacramento.
1259. Para os catecúmenos que morrem antes do Baptismo, o seu desejo explícito de o rece-
ber, unido ao arrependimento dos seus pecados e à caridade, garante-lhes a salvação, que não
puderam receber pelo sacramento.
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1260. «Com efeito, já que Cristo morreu por todos e a vocação última de todos os homens é
realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possib-
ilidade de se associarem a este mistério pascal, por um modo só de Deus conhecido» (59).
Todo o homem que, na ignorância do Evangelho de Cristo e da sua Igreja, procura a verdade e
faz a vontade de Deus conforme o conhecimento que dela tem, pode salvar-se. Podemos supor
que tais pessoas teriam desejado explicitamente o Baptismo se dele tivessem conhecido a
necessidade.
1261. Quanto às crianças que morrem sem Baptismo, a Igreja não pode senão confiá-las à
misericórdia de Deus, como o faz no rito do respectivo funeral. De facto, a grande misericórdia
de Deus, «que quer que todos os homens se salvem» (1 Tm 2, 4), e a ternura de Jesus para
com as crianças, que O levou a dizer: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis» (Mc
10, 14), permitem-nos esperar que haja um caminho de salvação para as crianças que morrem
sem Baptismo. Por isso, é mais premente ainda o apelo da Igreja a que não se impeçam as cri-
ancinhas de virem a Cristo, pelo dom do santo Baptismo.

VII. A graça do Baptismo

1262. Os diferentes efeitos do Baptismo são significados pelos elementos sensíveis do rito
sacramental. A imersão na água evoca os simbolismos da morte e da purificação, mas também
da regeneração e da renovação. Os dois efeitos principais são, pois, a purificação dos pecados
e o novo nascimento no Espírito Santo (60).

PARA A REMISSÃO DOS PECADOS

1263. Pelo Baptismo todos os pecados são perdoados: o pecado original e todos os pecados
pessoais, bem como todas as penas devidas ao pecado (61). Com efeito, naqueles que foram
regenerados, nada resta que os possa impedir de entrar no Reino de Deus: nem o pecado de
Adão, nem o pecado pessoal, nem as consequências do pecado, das quais a mais grave é a sep-
aração de Deus.
1264. No baptizado permanecem, no entanto, certas consequências temporais do pecado,
como os sofrimentos, a doença, a morte, ou as fragilidades inerentes à vida, como as fraquezas
de carácter, etc., assim como uma inclinação para o pecado a que a Tradição chama concupis-
cência ou, metaforicamente, a «isca» ou «aguilhão» do pecado («fomes peccati»): «Deixada
para os nossos combates, a concupiscência não pode fazer mal àqueles que, não consentindo
nela, resistem corajosamente pela graça de Cristo. Bem pelo contrário, "aquele que tiver com-
batido segundo as regras será coroado" (2 Tm 2, 5)» (62).

«UMA NOVA CRIATURA»

1265 O Baptismo não somente purifica de todos os pecados, como faz também do neófito
«uma nova criatura» (63), um filho adoptivo de Deus (64), tornado «participante da natureza
divina» (65), membro de Cristo (66) e co-herdeiro com Ele (67), templo do Espírito Santo
(68).
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1266. A Santíssima Trindade confere ao baptizado a graça santificante, a graça da justi-


ficação, que
– o torna capaz de crer em Deus, esperar n'Ele e O amar, pelas virtudes teologais;
– lhe dá o poder de viver e agir sob a moção do Espírito Santo e pelos dons do Espírito Santo;
– lhe permite crescer no bem, pelas virtudes morais. Assim, todo o organismo da vida sobren-
atural do cristão tem a sua raiz no santo Baptismo.

INCORPORADOS NA IGREJA, CORPO DE CRISTO

1267. O Baptismo faz de nós membros do corpo de Cristo. «Desde então [...], somos nós
membros uns dos outros.» (Ef 4, 25). O Baptismo incorpora na Igreja. Das fontes baptismais
nasce o único povo de Deus da Nova Aliança, que ultrapassa todos os limites naturais ou hu-
manos das nações, das culturas, das raças e dos sexos: «Por isso é que todos nós fomos baptiz-
ados num só Espírito, para formarmos um só corpo» (1 Cor 12, 13).
1268. Os baptizados tornaram-se «pedras vivas» para «a edificação dum edifício espiritual,
para um sacerdócio santo» (1 Pe 2, 5). Pelo Baptismo, participam no sacerdócio de Cristo, na
sua missão profética e real, são «raça eleita, sacerdócio de reis, nação santa, povo que Deus
tornou seu», para anunciar os louvores d'Aquele que os «chamou das trevas à sua luz ad-
mirável» (1 Pe 2, 9). O Baptismo confere a participação no sacerdócio comum dos fiéis.
1269. Feito membro da Igreja, o baptizado já não se pertence a si próprio (69) mas Aquele
que morreu e ressuscitou por nós (70). A partir daí, é chamado a submeter-se aos outros (71),
a servi-los (72) na comunhão da Igreja, a ser «obediente e dócil» aos chefes da Igreja (73) e a
considerá-los com respeito e afeição (74). Assim como o Baptismo é fonte de responsabilidade
e deveres, assim também o baptizado goza de direitos no seio da Igreja: direito a receber os
sacramentos, a ser alimentado com a Palavra de Deus e a ser apoiado com outras ajudas espir-
ituais da Igreja (75).
1270. Os baptizados, «regenerados [pelo Baptismo] para serem filhos de Deus, devem confes-
sar diante dos homens a fé que de Deus receberam por meio da Igreja» e participar na activid-
ade apostólica e missionária do povo de Deus (77).

O VÍNCULO SACRAMENTAL DA UNIDADE DOS CRISTÃOS

1271. O Baptismo constitui o fundamento da comunhão entre todos os cristãos, mesmo com
aqueles que ainda não estão em plena comunhão com a Igreja Católica: «Pois aqueles que
crêem em Cristo e foram devidamente baptizados, estão numa certa comunhão, embora não
perfeita, com a Igreja Católica justificados no Baptismo pela fé, são incorporados em Cristo, e,
por isso, com direito se honram com o nome de cristãos e justamente são reconhecidos pelos
filhos da Igreja Católica como irmãos no Senhor» (78). «O Baptismo, pois, constitui o vínculo
sacramental da unidade vigente entre todos os que por ele foram regenerados» (79).

UMA MARCA ESPIRITUAL INDELÉVEL...

1272. Incorporado em Cristo pelo Baptismo, o baptizado é configurado com Cristo (80). O
Baptismo marca o cristão com um selo espiritual indelével («charactere») da sua pertença a
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Cristo. Esta marca não é apagada por nenhum pecado, embora o pecado impeça o Baptismo
de produzir frutos de salvação (81). Ministrado uma vez por todas, o Baptismo não pode ser
repetido.
1273. Incorporados na Igreja pelo Baptismo, os fiéis receberam o carácter sacramental que os
consagra para o culto religioso cristão (82). O selo baptismal capacita e compromete os
cristãos a servir a Deus mediante uma participação viva na santa liturgia da Igreja, e a exercer
o seu sacerdócio baptismal pelo testemunho duma vida santa e duma caridade eficaz (83).
1274. O «selo do Senhor» («dominicus character») (84) é o selo com que o Espírito Santo
nos marcou «para o dia da redenção» (Ef 4, 30) (85). «O Baptismo é, efectivamente, o selo da
vida eterna» (86). O fiel que tiver «guardado o selo» até ao fim, quer dizer, que tiver permane-
cido fiel às exigências do seu Baptismo, poderá partir «marcado pelo sinal da fé» (87), com a
fé do seu Baptismo, na expectativa da visão bem-aventurada de Deus – consumação da fé – e
na esperança da ressurreição.

Resumindo:

1275. A iniciação cristã faz-se pelo conjunto de três sacramentos: o Baptismo, que é o
princípio da vida nova; a Confirmação, que é a consolidação da mesma vida; e a Eucaristia,
que alimenta o discípulo com o corpo e sangue de Cristo, em vista da sua transformação
n'Ele.
1276. «Ide, pois, fazei discípulos de todas as nações, baptizai-os em nome do Pai e do Filho e
do Espírito Santo, e ensinai-os a cumprir tudo quanto vos mandei» (Mt 28, 19-20).
1277. O Baptismo constitui o nascimento para a vida nova em Cristo. Segundo a vontade do
Senhor; ele é necessário para a salvação, como a própria Igreja, na qual o Baptismo
introduz.
1278. O rito essencial do Baptismo consiste em mergulhar na água o candidato ou em
derramar água sobre a sua cabeça, pronunciando a invocação da Santíssima Trindade, isto
é, do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
1279. O fruto do Baptismo ou graça baptismal é uma realidade rica que inclui: a remissão
do pecado original e de todos os pecados pessoais; o renascimento para uma vida nova, pela
qual o homem se torna filho adoptivo do Pai, membro de Cristo, templo do Espírito Santo.
Por esse facto, o baptizado é incorporado na Igreja, corpo de Cristo, e tornado participante
do sacerdócio de Cristo.
1280. O Baptismo imprime na alma um sinal espiritual indelével, o carácter; que consagra
o baptizado para o culto da religião cristã. Por causa do carácter; o Baptismo não pode ser
repetido (88).
1281. Os que sofrem a morte por causa da fé, os catecúmenos e todos aqueles que, sob o im-
pulso da graça, sem conhecerem a Igreja, procuram sinceramente a Deus e se esforçam por
cumprir a sua vontade, podem salvar-se, mesmo sem terem recebido o Baptismo (89).
1282. Desde os tempos mais antigos, o Baptismo é administrado às crianças, visto ser uma
graça e um dom de Deus que não supõem méritos humanos; as crianças são baptizadas na
fé da Igreja. A entrada na vida cristã dá acesso à verdadeira liberdade.
1283. Quanto às crianças que morrem sem Baptismo, a Liturgia da Igreja convida-nos a ter
confiança na misericórdia divina e a rezar pela sua salvação.
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1284. Em caso de necessidade, qualquer pessoa pode baptizar, desde que tenha a intenção
de fazer o que a Igreja faz e derrame água sobre a cabeça do candidato, dizendo: «Eu te
baptizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo».

ARTIGO 2

O SACRAMENTO DA CONFIRMAÇÃO

1285. Com o Baptismo e a Eucaristia, o sacramento da Confirmação constitui o conjunto dos


«sacramentos da iniciação cristã», cuja unidade deve ser salvaguardada. Por isso, é preciso ex-
plicar aos fiéis que a recepção deste sacramento é necessária para a plenitude da graça baptis-
mal (90). Com efeito, os baptizados «pelo sacramento da Confirmação, são mais perfeita-
mente vinculados à Igreja, enriquecidos com uma força especial do Espírito Santo e deste
modo ficam mais estritamente obrigados a difundir e a defender a fé por palavras e obras,
como verdadeiras testemunhas de Cristo» (91).

I. A Confirmação na economia da salvação

1286. No Antigo Testamento, os profetas anunciaram que o Espírito do Senhor repousaria


sobre o Messias esperado (92), em vista da sua missão salvífica (93). A descida do Espírito
Santo sobre Jesus, aquando do seu baptismo por João, foi o sinal de que era Ele o que havia
de vir, de que era o Messias, o Filho de Deus (94). Concebido pelo poder do Espírito Santo,
toda a sua vida e toda a sua missão se realizam numa comunhão total com o mesmo Espírito
Santo, que o Pai Lhe dá «sem medida» (Jo 3, 34).
1287. Ora, esta plenitude do Espírito não devia permanecer unicamente no Messias: devia ser
comunicada a todo o povo messiânico (95). Repetidas vezes, Cristo prometeu esta efusão do
Espírito promessa que cumpriu, primeiro no dia de Páscoa (97) e depois, de modo mais
esplêndido, no dia de Pentecostes (98). Cheios do Espírito Santo, os Apóstolos começaram a
proclamar «as maravilhas de Deus» (Act 2, 11) e Pedro declarou que esta efusão do Espírito
era o sinal dos tempos messiânicos (99). Aqueles que então acreditaram na pregação
apostólica, e se fizeram baptizar, receberam, por seu turno, o dom do Espírito Santo (100).
1288. «A partir de então, os Apóstolos, para cumprirem a vontade de Cristo, comunicaram
aos neófitos, pela imposição das mãos, o dom do Espírito para completar a graça do Baptismo
(101). É por isso que, na Epístola aos Hebreus, se menciona, entre os elementos da primeira
instrução cristã, a doutrina sobre os Baptismos e também sobre a imposição das mãos (102).
A imposição das mãos é justificadamente reconhecida, pela Tradição católica, como a origem
do sacramento da Confirmação que, de certo modo, perpetua na Igreja a graça do Pente-
costes» (103).
1289. Bem cedo, para melhor significar o dom do Espírito Santo, se acrescentou à imposição
das mãos uma unção com óleo perfumado (crisma). Esta unção ilustra o nome de «cristão»,
que significa «ungido»,e que vai buscar a sua origem ao próprio nome de Cristo, aquele que
«Deus ungiu com o Espírito Santo» (Act 10, 38). E este rito da unção mantém-se até aos nos-
sos dias, tanto no Oriente como no Ocidente. É por isso que, no Oriente, este sacramento se
chama crismação (= unção do crisma), ou myron, que significa «crisma». No Ocidente, o
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nome de Confirmação sugere que este sacramento confirma o Baptismo e, ao mesmo tempo,
consolida a graça baptismal.

DUAS TRADIÇÕES: O ORIENTE E O OCIDENTE

1290. Nos primeiros séculos, a Confirmação constitui geralmente uma única celebração com
o Baptismo, formando com ele, segundo a expressão de São Cipriano, um «sacramento duplo»
(104). Entre outras razões, a multiplicação dos baptismos de crianças, e isto em qualquer
tempo do ano, e a multiplicação das paróquias (rurais), ampliando as dioceses, deixaram de
permitir a presença do bispo em todas as celebrações baptismais. No Ocidente, porque se
desejava reservar ao bispo o completar do Baptismo, instaurou-se a separação, no tempo, dos
dois sacramentos. O Oriente conservou unidos os dois sacramentos, de tal modo que a Con-
firmação é dada pelo sacerdote que baptiza. Este, no entanto, só o pode fazer com o «myron»
consagrado por um bispo (105).
1291. Um costume da Igreja de Roma facilitou a expansão da prática ocidental, graças a uma
dupla unção com o santo crisma, depois do baptismo: a unção já feita pelo sacerdote ao
neófito ao sair do banho baptismal é completada por uma segunda unção, feita pelo bispo na
fronte de cada um dos novos baptizados (106). A primeira unção com o santo crisma, feita
pelo sacerdote, ficou ligada ao rito baptismal e significa a participação do baptizado nas fun-
ções profética, sacerdotal e real de Cristo. Se o Baptismo é conferido a um adulto, há apenas
uma unção pós-baptismal: a da Confirmação.
1292. A prática das Igrejas do Oriente sublinha mais a unidade da iniciação cristã. A da Igreja
latina exprime, com maior nitidez, a comunhão do novo cristão com o seu bispo, garante e
servidor da unidade da sua Igreja, da sua catolicidade e da sua apostolicidade; e assim, a lig-
ação com as origens apostólicas da Igreja de Cristo.

II. Os sinais e o rito da Confirmação

1293. No rito deste sacramento, convém considerar o sinal da unção e o que essa unção
designa e imprime: o selo espiritual.
A unção, na simbologia bíblica e antiga, é rica de numerosas significações: o óleo é sinal de
abundância (107) e de alegria (108), purifica (unção antes e depois do banho) e torna ágil (un-
ção dos atletas e lutadores): é sinal de cura, pois suaviza as contusões e as feridas (109) e torna
radiante de beleza, saúde e força.
1294. Todos estes significados da unção com óleo se reencontram na vida sacramental. A un-
ção antes do Baptismo, com o óleo dos catecúmenos, significa purificação e fortalecimento; a
unção dos enfermos exprime cura e conforto. A unção com o santo crisma depois do
Baptismo, na Confirmação e na Ordenação, é sinal duma consagração. Pela Confirmação, os
cristãos, quer dizer, os que são ungidos, participam mais na missão de Jesus Cristo e na plen-
itude do Espírito Santo de que Ele está repleto, a fim de que toda a sua vida espalhe «o bom
odor de Cristo» (110)
1295. Por esta unção, o confirmando recebe «a marca», o selo do Espírito Santo. O selo é o
símbolo da pessoa (111), sinal da sua autoridade (112), da sua propriedade sobre um objecto
(113). Era assim que se marcavam os soldados com o selo do seu chefe e também os escravos
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com o do seu dono. O selo autentica um acto jurídico (114) ou um documento (115) e,
eventualmente, torna-o secreto (116).
1296. O próprio Cristo se declara marcado com o selo do Pai (117). O cristão também está
marcado com um selo: «Foi Deus que nos concedeu a unção, nos marcou também com o seu
selo e depôs as arras do Espírito em nossos corações» (2 Cor 1, 21-22) (118). Este selo do
Espírito Santo marca a pertença total a Cristo, a entrega para sempre ao seu serviço, mas tam-
bém a promessa da protecção divina na grande prova escatológica (119).

A CELEBRAÇÃO DA CONFIRMAÇÃO

1297. Um momento importante que precede a celebração da Confirmação, mas que, de certo
modo, faz parte dela, é a consagração do santo crisma. É o bispo que, em Quinta-Feira Santa,
no decorrer da missa crismal, consagra o santo crisma para toda a sua diocese. Nas Igrejas do
Oriente, esta consagração é mesmo reservada ao Patriarca:
A liturgia de Antioquia exprime assim a epiclese da consagração do santo crisma (myron, em
grego): «[Pai (...), envia o Teu Espírito Santo] sobre nós e sobre este óleo que está diante de
nós e consagra-o, para que seja para todos os que com ele forem ungidos e marcados, myron
santo, myron sacerdotal, myron real, unção de alegria, a veste da luz, o manto da salvação, o
dom espiritual, a santificação das almas e dos corpos, a felicidade imperecível, o selo in-
delével, o escudo da fé, o capacete invencível contra todas as obras do Adversário» (120).
1298. Quando a Confirmação é celebrada separadamente do Baptismo, como acontece no rito
romano, a Liturgia do sacramento começa pela renovação das promessas do Baptismo e pela
profissão de fé dos confirmandos. Assim se evidencia claramente que a Confirmação se situa
na continuação do Baptismo (121). No caso do Baptismo dum adulto, este recebe imediata-
mente a Confirmação e participa na Eucaristia (122).
1299. No rito romano, o bispo estende as mãos sobre o grupo dos confirmandos, gesto que,
desde o tempo dos Apóstolos, é sinal do dom do Espírito. E o bispo invoca assim a efusão do
Espírito:
«Deus todo-poderoso, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, pela água e pelo Espírito Santo,
destes uma vida nova a estes vossos servos e os libertastes do pecado, enviai sobre eles o
Espírito Santo Paráclito; dai-lhes, Senhor, o espírito de sabedoria e de inteligência, o espírito
de conselho e de fortaleza, o espírito de ciência e de piedade, e enchei-os do espírito do vosso
temor. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do
Espírito Santo» (123).
1300. Segue-se o rito essencial do sacramento. No rito latino, «o sacramento da Confirmação
é conferido pela unção do santo crisma sobre a fronte, feita com a imposição da mão, e por es-
tas palavras: «Accipe signaculum doni Spiritus Sancti – Recebe por este sinal o Espírito
Santo, o Dom de Deus» (124). Nas Igrejas orientais de rito bizantino, a unção do myron faz-se
depois duma oração de epiclese, sobre as partes mais significativas do corpo: a fronte, os ol-
hos, o nariz, os ouvidos, os lábios, o peito, as costas, as mãos e os pés, sendo cada unção acom-
panhada da fórmula: «Σφραγι?ζ δωραζ Πυευ?ματζ Α?γι?oυ» («Signaculum doni Spiritus
Sancti – Selo do dom que é o Espírito Santo» ) (125).
1301. O ósculo da paz, com que termina o rito do sacramento, significa e manifesta a comun-
hão eclesial com o bispo e com todos os fiéis (126).
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III. Os efeitos da Confirmação

1302. Ressalta desta celebração que o efeito do sacramento da Confirmação é uma efusão es-
pecial do Espírito Santo, tal como outrora foi concedida aos Apóstolos, no dia de Pentecostes.
1303. Por esse facto, a Confirmação proporciona crescimento e aprofundamento da graça
baptismal:
– enraíza-nos mais profundamente na filiação divina, que nos leva a dizer « Abba! Pai!» (Rm
8, 15);
– une-nos mais firmemente a Cristo;
– aumenta em nós os dons do Espírito Santo; – torna mais perfeito o laço que nos une à Igreja
(127); – dá-nos uma força especial do Espírito Santo para propagarmos e defendermos a fé,
pela palavra e pela acção, como verdadeiras testemunhas de Cristo, para confessarmos com
valentia o nome de Cristo, e para nunca nos envergonharmos da cruz (128):
«Lembra-te, pois, de que recebeste o sinal espiritual, o espírito de sabedoria e de entendi-
mento, o espírito de conselho e de fortaleza, o espírito de ciência e de piedade, o espírito do
santo temor, e guarda o que recebeste. Deus Pai marcou-te com o seu sinal, o Senhor Jesus
Cristo confirmou-te e pôs no teu coração o penhor do Espírito» (129).
1304. Tal como o Baptismo, de que é a consumação, a Confirmação é dada uma só vez. Com
efeito, a Confirmação imprime na alma uma marca espiritual indelével, o «carácter» (130),
que é sinal de que Jesus Cristo marcou um cristão com o selo do seu Espírito, revestindo-o da
fortaleza do Alto, para que seja sua testemunha (131).
1305. O «carácter» aperfeiçoa o sacerdócio comum dos fiéis, recebido no Baptismo, e «o con-
firmado recebe a força de confessar a fé de Cristo publicamente e como em virtude dum en-
cargo oficial (quasi ex officio)» (132).

IV. Quem pode receber este sacramento?

1306. Todo o baptizado ainda não confirmado pode e deve receber o sacramento da Confirm-
ação (133). Uma vez que Baptismo, Confirmação e Eucaristia formam uma unidade, segue-se
que «os fiéis têm obrigação de receber este sacramento no tempo devido» (134), porque, sem
a Confirmação e a Eucaristia, o sacramento do Baptismo é, sem dúvida, válido e eficaz, mas a
iniciação cristã fica incompleta.
1307. O costume latino, desde há séculos, aponta «a idade da discrição» como ponta de refer-
ência para se receber a Confirmação. Em perigo de morte, porém, devem confirmar-se as cri-
anças, mesmo que ainda não tenham atingido a idade da discrição (135).
1308. Se por vezes se fala da Confirmação como «sacramento da maturidade cristã», não de-
ve, no entanto, confundir-se a idade adulta da fé com a idade adulta do crescimento natural,
nem esquecer-se que a graça baptismal é uma graça de eleição gratuita e imerecida, que não
precisa duma «ratificação» para se tornar efectiva. São Tomás recorda isso mesmo:
«A idade do corpo não constitui um prejuízo para a alma. Por isso, mesmo na infância, o
homem pode receber a perfeição da idade espiritual de que fala a Sabedoria (4, 8): «A velhice
honrada não é a que dão os longos dias, nem se avalia pelo número dos anos». E foi assim que
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muitas crianças, graças à fortaleza do Espírito Santo que tinham recebido, lutaram cora-
josamente e até ao sangue por Cristo» (136).
1309. A preparação para a Confirmação deve ter por fim conduzir o cristão a uma união mais
íntima com Cristo e a uma familiaridade mais viva com o Espírito Santo, com a sua acção, os
seus dons e os seus apelos, para melhor assumir as responsabilidades apostólicas da vida
cristã. Desse modo, a catequese da Confirmação deve esforçar-se por despertar o sentido de
pertença à Igreja de Jesus Cristo, tanto à Igreja universal como à comunidade paroquial. Esta
última tem uma responsabilidade particular na preparação dos confirmandos (137).
1310. Para receber a Confirmação é preciso estar em estado de graça. Convém recorrer ao
sacramento da Penitência para ser purificado, em vista do dom do Espírito Santo. E uma or-
ação mais intensa deve preparar para receber com docilidade e disponibilidade a força e as
graças do Espírito Santo (138).
1311. Tanto para a Confirmação, como para o Baptismo, convém que os candidatos procurem
a ajuda espiritual dum padrinho ou de uma madrinha. É conveniente que seja o mesmo do
Baptismo, para marcar bem a unidade dos dois sacramentos (139).

V. O ministro da Confirmação

1312. O ministro originário da Confirmação é o bispo (140).


No Oriente, é ordinariamente o sacerdote que baptiza quem imediatamente confere a Con-
firmação, numa só e mesma celebração. Fá-lo, no entanto, com o santo crisma consagrado
pelo patriarca ou pelo bispo, o que exprime a unidade apostólica da Igreja, cujos laços são re-
forçados pelo sacramento da Confirmação. Na Igreja latina aplica-se a mesma disciplina nos
baptismos de adultos ou quando é admitido à plena comunhão com a Igreja um baptizado de
outra comunidade cristã, que não tenha recebido validamente o sacramento da Confirmação
(141).
1313. No rito latino, o ministro ordinário da Confirmação é o bispo (142). Mesmo que o bispo
possa, em caso de necessidade, conceder a presbíteros a faculdade de administrar a Confirm-
ação (143), é conveniente que seja ele mesmo a conferi-la, não se esquecendo de que foi por
esse motivo que a celebração da Confirmação foi separada, no tempo, da do Baptismo. Os bis-
pos são os sucessores dos Apóstolos e receberam a plenitude do sacramento da Ordem. A ad-
ministração deste sacramento feita por eles, realça que ele tem como efeito unir mais estreita-
mente aqueles que o recebem à Igreja, às suas origens apostólicas e à sua missão de dar
testemunho de Cristo.
1314. Se um cristão estiver em perigo de morte, qualquer sacerdote pode conferir-lhe a Con-
firmação (144). De facto, é vontade da Igreja que nenhum dos seus filhos, mesmo pequenino,
parta deste mundo sem ter sido levado à perfeição pelo Espírito Santo com o dom da plenit-
ude de Cristo.

Resumindo:

1315. «Quando os Apóstolos que estavam em Jerusalém ouviram dizer que a Samaria rece-
bera a Palavra de Deus, enviaram-lhe Pedro e João. Quando chegaram lá, rezaram pelos
samaritanos para que recebessem o Espírito Santo, que ainda não tinha descido sobre eles.
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Apenas tinham sido baptizados em nome do Senhor Jesus. Então impunham-lhes as mãos e
eles recebiam o Espírito Santo» (Act 8, 14-17).
1316. A Confirmação completa a graça baptismal; ela é o sacramento que dá o Espírito
Santo, para nos enraizar mais profundamente na filiação divina, incorporar-nos mais soli-
damente em Cristo, tornar mais firme o laço que nos prende à Igreja, associar-nos mais à
sua missão e ajudar-nos a dar testemunho da fé cristã pela palavra, acompanhada de obras.
1317. A Confirmação, tal como o Baptismo, imprime na alma do cristão um sinal espiritual
ou carácter indelével; é por isso que só se pode receber este sacramento uma vez na vida.
1318. No Oriente, este sacramento é administrado imediatamente a seguir ao Baptismo e é
seguido da participação na Eucaristia; esta tradição põe em relevo a unidade dos três sac-
ramentos da iniciação cristã. Na Igreja latina, este sacramento é administrado quando se
atinge a idade da razão e ordinariamente a sua celebração é reservada ao bispo, signific-
ando assim que este sacramento vem robustecer o vínculo eclesial.
1319. O candidato à Confirmação, que atingiu a idade da razão, deve professar a fé, estar
em estado de graça, ter a intenção de receber o sacramento e estar preparado para assumir
o seu papel de discípulo e testemunha de Cristo, na comunidade eclesial e nos assuntos
temporais.
1320. O rito essencial da Confirmação é a unção com o santo crisma na fronte do baptizado
(no Oriente também em outros órgãos dos sentidos), com a imposição da mão do ministro e
as palavras: «Accipe signaculum doni Spiritus Sancti – Recebe por este sinal o Espírito
Santo, o Dom de Deus» (no rito Romano) ou: «Signaculum doni Spiritus Sancti – Selo do
dom que é o Espírito Santo» (no rito Bizantino).
1321. Quando a Confirmação é celebrada separadamente do Baptismo, a sua ligação com
este sacramento é expressa, entre outras coisas, pela renovação dos compromissos baptis-
mais. A celebração da Confirmação no decorrer da Eucaristia contribui para sublinhar a
unidade dos sacramentos da iniciação cristã.

ARTIGO 3

O SACRAMENTO DA EUCARISTIA

1322. A sagrada Eucaristia completa a iniciação cristã. Aqueles que foram elevados à dignid-
ade do sacerdócio real pelo Baptismo e configurados mais profundamente com Cristo pela
Confirmação, esses, por meio da Eucaristia, participam, com toda a comunidade, no próprio
sacrifício do Senhor.
1323. «O nosso Salvador instituiu na última ceia, na noite em que foi entregue, o sacrifício
eucarístico do seu corpo e sangue, para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até voltar, o sacri-
fício da cruz, confiando à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua morte e ressurreição:
sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal em que se re-
cebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da glória futura» (145).

I. A Eucaristia – fonte e cume da vida eclesial


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1324. A Eucaristia é «fonte e cume de toda a vida cristã» (146). «Os restantes sacramentos,
assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a
sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo
o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, nossa Páscoa» (147).
1325. «A comunhão de vida com Deus e a unidade do povo de Deus, pelas quais a Igreja é o
que é, são significados e realizados pela Eucaristia. Nela se encontra o cume, ao mesmo
tempo, da acção pela qual Deus, em Cristo, santifica o mundo, e do culto que no Espírito
Santo os homens prestam a Cristo e, por Ele, ao Pai» (148).
1326. Enfim, pela celebração eucarística, unimo-nos desde já à Liturgia do céu e antecipamos
a vida eterna, quando «Deus for tudo em todos» (1 Cor 15, 18 ).
1327. Em síntese, a Eucaristia é o resumo e a súmula da nossa fé: «A nossa maneira de pensar
está de acordo com a Eucaristia: e, por sua vez, a Eucaristia confirma a nossa maneira de
pensar» (149).

II. Como se chama este sacramento?

1328. A riqueza inesgotável deste sacramento exprime-se nos diferentes nomes que lhe são
dados. Cada um destes nomes evoca alguns dos seus aspectos. Chama-se: Eucaristia, porque é
acção de graças a Deus. As palavras« eucharistein» (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24) e «eulogein» (Mt
26, 26; Mc 14, 22) lembram as bênçãos judaicas que proclamam – sobretudo durante a re-
feição – as obras de Deus: a criação, a redenção e a santificação.
1329. Ceia do Senhor (150), porque se trata da ceia que o Senhor comeu com os discípulos na
véspera da sua paixão e da antecipação do banquete nupcial do Cordeiro (151) na Jerusalém
celeste.
Fracção do Pão, porque este rito, próprio da refeição dos judeus, foi utilizado por Jesus
quando abençoava e distribuía o pão como chefe de família (152), sobretudo aquando da úl-
tima ceia (153) . É por este gesto que os discípulos O reconhecerão depois da sua ressurreição
(154) e é com esta expressão que os primeiros cristãos designarão as suas assembleias eu-
carísticas (155). Querem com isso significar que todos os que comem do único pão partido,
Cristo, entram em comunhão com Ele e formam um só corpo n'Ele (156).
Assembleia eucarística («sýnaxis»), porque a Eucaristia é celebrada em assembleia de fiéis,
expressão visível da Igreja (157).
1330. Memorial da paixão e ressurreição do Senhor.
Santo Sacrifício, porque actualiza o único sacrifício de Cristo Salvador e inclui a oferenda da
Igreja; ou ainda santo Sacrifício da Missa, «Sacrifício de louvor» (Heb 13, 15) (158), Sacrifí-
cio espiritual (159) Sacrifício puro (160) e santo, pois completa e ultrapassa todos os sacrifí-
cios da Antiga Aliança.
Santa e divina Liturgia, porque toda a liturgia da Igreja encontra o seu centro e a sua ex-
pressão mais densa na celebração deste sacramento; no mesmo sentido se lhe chama também
celebração dos Santos Mistérios. Fala-se igualmente do Santíssimo Sacramento, porque é o
sacramento dos sacramentos. E, com este nome, se designam as espécies eucarísticas guarda-
das no sacrário.
1331. Comunhão, pois é por este sacramento que nos unimos a Cristo, o qual nos torna parti-
cipantes do seu corpo e do seu sangue, para formarmos um só corpo (161); chama-se ainda as
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coisas santas («tà hágia»; «sancta») (162) – é o sentido primário da «comunhão dos santos»
de que fala o Símbolo dos Apóstolos – , pão dos anjos, pão do céu, remédio da imortalidade
(163), viático...
1332. Santa Missa, porque a liturgia em que se realiza o mistério da salvação termina com o
envio dos fiéis («missio»), para que vão cumprir a vontade de Deus na sua vida quotidiana.

III. A Eucaristia na economia da salvação

OS SINAIS DO PÃO E DO VINHO

1333. No centro da celebração da Eucaristia temos o pão e o vinho que, pelas palavras de
Cristo e pela invocação do Espírito Santo, se tornam o corpo e o sangue do mesmo Cristo. Fiel
à ordem do Senhor, a Igreja continua a fazer, em memória d'Ele e até à sua vinda gloriosa, o
que Ele fez na véspera da sua paixão: «Tomou o pão...», «Tomou o cálice com vinho...».
Tornando-se misteriosamente o corpo e o sangue de Cristo, os sinais do pão e do vinho con-
tinuam a significar também a bondade da criação. Por isso, no ofertório [apresentação das of-
erendas], nós damos graças ao Criador pelo pão e pelo vinho (164), fruto «do trabalho do
homem», mas primeiramente «fruto da terra» e «da videira», dons do Criador. A Igreja vê no
gesto de Melquisedec, rei e sacerdote, que «ofereceu pão e vinho» (Gn 14, 18), uma prefigur-
ação da sua própria oferenda (165).
1334. Na Antiga Aliança, o pão e o vinho são oferecidos em sacrifício entre as primícias da
terra, em sinal de reconhecimento ao Criador. Mas também recebem uma nova significação
no contexto do Êxodo: os pães ázimos que Israel come todos os anos na Páscoa, comemoram a
pressa da partida libertadora do Egipto; a lembrança do maná do deserto recordará sempre a
Israel que é do pão da Palavra de Deus que ele vive (166). Finalmente, o pão de cada dia é o
fruto da terra prometida, penhor da fidelidade de Deus às suas promessas. O «cálice de
bênção» (1 Cor 10, 16), no fim da ceia pascal dos judeus, acrescenta à alegria festiva do vinho
uma dimensão escatológica – a da expectativa messiânica do restabelecimento de Jerusalém.
Jesus instituiu a sua Eucaristia dando um sentido novo e definitivo à bênção do pão e do
cálice.
1335. Os milagres da multiplicação dos pães, quando o Senhor disse a bênção, partiu e dis-
tribuiu os pães pelos seus discípulos para alimentar a multidão, prefiguram a superabundân-
cia deste pão único da sua Eucaristia (167). O sinal da água transformada em vinho em Caná
(168) já anuncia a «Hora» da glorificação de Jesus. E manifesta o cumprimento do banquete
das núpcias no Reino do Pai, onde os fiéis beberão do vinho novo (169) tornado sangue de
Cristo.
1336. O primeiro anúncio da Eucaristia dividiu os discípulos, tal como o anúncio da paixão os
escandalizou: «Estas palavras são insuportáveis! Quem as pode escutar?» (Jo 6, 60). A Eucar-
istia e a cruz são pedras de tropeço. É o mesmo mistério e não cessa de ser ocasião de divisão.
«Também vos quereis ir embora?» (Jo 6, 67): esta pergunta do Senhor ecoa através dos tem-
pos, como convite do seu amor a descobrir que só Ele tem «palavras de vida eterna» (Jo 6, 68)
e que acolher na fé o dom da sua Eucaristia é acolhê-1'O a Ele próprio.

A INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
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1337. Tendo amado os seus, o Senhor amou-os até ao fim. Sabendo que era chegada a hora de
partir deste mundo para regressar ao Pai, no decorrer duma refeição, lavou-lhes os pés e deu-
lhes o mandamento do amor (170). Para lhes deixar uma garantia deste amor, para jamais se
afastar dos seus e para os tornar participantes da sua Páscoa, instituiu a Eucaristia como me-
morial da sua morte e da sua ressurreição, e ordenou aos seus Apóstolos que a celebrassem
até ao seu regresso, «constituindo-os, então, sacerdotes do Novo Testamento» (171).
1338. Os três evangelhos sinópticos e São Paulo transmitiram-nos a narração da instituição
da Eucaristia. Por seu lado, São João refere as palavras de Jesus na sinagoga de Cafarnaum,
palavras que preparam a instituição da Eucaristia: Cristo designa-se a si próprio como o pão
da vida, descido do céu (172).
1339. Jesus escolheu a altura da Páscoa para cumprir o que tinha anunciado em Cafarnaum:
dar aos seus discípulos o seu corpo e o seu sangue:
«Veio o dia dos Ázimos, em que devia imolar-se a Páscoa. [Jesus] enviou então a Pedro e a
João, dizendo: "Ide preparar-nos a Páscoa, para que a possamos comer" [...]. Partiram pois,
[...] e prepararam a Páscoa. Ao chegar a hora, Jesus tomou lugar à mesa, e os Apóstolos com
Ele. Disse-lhes então: "Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de
padecer. Pois vos digo que não voltarei a comê-la, até que ela se realize plenamente no Reino
de Deus". [...] Depois, tomou o pão e, dando graças, partiu-o, deu-lho e disse-lhes: "Isto é o
Meu corpo, que vai ser entregue por vós. Fazei isto em memória de Mim". No fim da ceia, fez o
mesmo com o cálice e disse: "Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue, que vai ser derra-
mado por vós"» (Lc 22, 7-20) (173).
1340. Celebrando a última ceia com os seus Apóstolos, no decorrer do banquete pascal, Jesus
deu o seu sentido definitivo à Páscoa judaica. Com efeito, a passagem de Jesus para o seu Pai,
pela sua morte e ressurreição – a Páscoa nova – é antecipada na ceia e celebrada na Eucaris-
tia, que dá cumprimento a Páscoa judaica e antecipa a Páscoa final da Igreja na glória do
Reino.

«FAZEI ISTO EM MEMÓRIA DE MIM»

1341. Ao ordenar que repetissem os seus gestos e palavras, «até que Ele venha» (1 Cor 11, 26),
Jesus não pede somente que se lembrem d'Ele e do que Ele fez. Tem em vista a celebração
litúrgica, pelos apóstolos e seus sucessores, do memorial de Cristo, da sua vida, morte, ressur-
reição e da sua intercessão junto do Pai.
1342. Desde o princípio, a Igreja foi fiel à ordem do Senhor. Da Igreja de Jerusalém está
escrito:
«Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações. [...]
Todos os dias frequentavam o templo, como se tivessem uma só alma, e partiam o pão em
suas casas; tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração» (Act 2, 42.46).
1343. Era sobretudo «no primeiro dia da semana», isto é, no dia de domingo, dia da ressur-
reição de Jesus, que os cristãos se reuniam «para partir o pão» (Act 20, 7). Desde esses tem-
pos até aos nossos dias, a celebração da Eucaristia perpetuou-se, de maneira que hoje a en-
contramos em toda a parte na Igreja com a mesma estrutura fundamental. Ela continua a ser
o centro da vida da Igreja.
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1344. Assim, de celebração em celebração, anunciando o mistério pascal de Jesus «até que
Ele venha» (1Cor 11, 26), o Povo de Deus em peregrinação «avança pela porta estreita da
cruz» (174) para o banquete celeste, em que todos os eleitos se sentarão à mesa do Reino.

IV. A celebração litúrgica da Eucaristia

A MISSA DE TODOS OS SÉCULOS

1345. Desde o século II, temos o testemunho de São Justino, mártir, sobre as grandes linhas
do desenrolar da celebração eucarística. Permaneceram as mesmas até aos nossos dias, em to-
das as grandes famílias litúrgicas. Eis o que ele escreve, cerca do ano 155, para explicar ao im-
perador pagão Antonino Pio (138-161) o que fazem os cristãos:
«No dia que chamam Dia do Sol, realiza-se a reunião num mesmo lugar de todos os que habit-
am a cidade ou o campo. Lêem-se as memórias dos Apóstolos e os escritos dos Profetas, tanto
quanto o tempo o permite.
Quando o leitor acabou, aquele que preside toma a palavra para incitar e exortar à imitação
dessas belas coisas. Em seguida, levantamo-nos todos juntamente e fazemos orações» (175)
«por nós mesmos [...] e por todos os outros, [...] onde quer que estejam, para que sejamos en-
contrados justos por nossa vida e acções, e fiéis aos mandamentos, e assim obtenhamos a sal-
vação eterna. Terminadas as orações, damo-nos um ósculo uns aos outros.
Depois, apresenta-se àquele que preside aos irmãos pão e uma taça de água e vinho mistura-
dos. Ele toma-os e faz subir louvor e glória ao Pai do universo, pelo nome do Filho e do
Espírito Santo, e dá graças (em grego: eucharistian) longamente, por termos sido julgados
dignos destes dons. Quando ele termina as orações e acções de graças, todo o povo presente
aclama: Ámen. [...] Depois de aquele que preside ter feito a acção de graças e de o povo ter re-
spondido, aqueles a que entre nós chamamos diáconos distribuem a todos os que estão
presentes pão, vinho e água "eucaristizados" e também os levam aos ausentes» (176).
1346. A liturgia eucarística processa-se em conformidade com uma estrutura fundamental,
que se tem conservado através dos séculos até aos nossos dias. Desdobra-se em dois grandes
momentos, que formam basicamente uma unidade:
– a reunião, a liturgia da Palavra, com as leituras, a homilia e a oração universal; – a liturgia
eucarística, com a apresentação do pão e do vinho, a acção de graças consecratória e a
comunhão.
Liturgia da Palavra e liturgia eucarística constituem juntas "um só e mesmo acto de culto"
(177). Com efeito, a mesa posta para nós na Eucaristia é, ao mesmo tempo, a da Palavra de
Deus e a do corpo do Senhor (178).
1347. Não é esse também o dinamismo da refeição pascal de Jesus Ressuscitado com os seus
discípulos? Enquanto caminhavam, Ele explicava-lhes as Escrituras; depois, pondo-Se à mesa
com eles, «tomou o pão, proferiu a bênção, partiu-o e deu-lho» (179).

O DESENROLAR DA CELEBRAÇÃO

1348. Todos se reúnem. Os cristãos acorrem a um mesmo lugar para a assembleia eucarística.
A sua cabeça está o próprio Cristo, que é o actor principal da Eucaristia. Ele é o Sumo-
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Sacerdote da Nova Aliança. É Ele próprio que preside invisivelmente a toda a celebração eu-
carística. E é em representação d'Ele (agindo «in persona Christi capitis – na pessoa de
Cristo-Cabeça»), que o bispo ou o presbítero preside à assembleia, toma a palavra depois das
leituras, recebe as oferendas e diz a oração eucarística. Todos têm a sua parte activa na celeb-
ração, cada qual a seu modo: os leitores, os que trazem as oferendas, os que distribuem a
comunhão e todo o povo cujo Ámen manifesta a participação.
1349. A liturgia da Palavra comporta «os escritos dos Profetas», quer dizer, o Antigo Testa-
mento, e «as Memórias dos Apóstolos» ou seja, as suas epístolas e os evangelhos. Depois da
homilia, que é uma exortação a acolher esta Palavra como o que ela é na realidade, Palavra de
Deus(180), e a pô-la em prática, vêm as intercessões por todos os homens, segundo a palavra
do Apóstolo: «Recomendo, antes de tudo, que se façam preces, orações, súplicas e acções de
graças, por todos os homens, pelos reis e por todos os que exercem autoridade» (1 Tm 2, 1-2).
1350. A apresentação das oferendas (ofertório): traz-se então para o altar, por vezes proces-
sionalmente, o pão e o vinho que vão ser oferecidos pelo sacerdote em nome de Cristo no sac-
rifício eucarístico, no qual se tornarão o seu corpo e o seu sangue. É precisamente o mesmo
gesto que Cristo fez na última ceia, «tomando o pão e o cálice». «Só a Igreja oferece esta ob-
lação pura ao Criador, oferecendo-Lhe em acção de graças o que provém da sua criação»
(181). A apresentação das oferendas no altar assume o gesto de Melquisedec e põe os dons do
Criador nas mãos de Cristo. É Ele que, no seu sacrifício, leva à perfeição todas as tentativas
humanas de oferecer sacrifícios.
1351. Desde o princípio, com o pão e o vinho para a Eucaristia, os cristãos trazem as suas
ofertas para a partilha com os necessitados. Este costume, sempre actual, da colecta (182)
inspira-se no exemplo de Cristo, que Se fez pobre para nos enriquecer (183):
«Os que são ricos e querem, dão, cada um conforme o que a si mesmo se impôs; o que se re-
colhe é entregue àquele que preside e ele, por seu turno, presta assistência aos órfãos, às
viúvas, àqueles que a doença ou qualquer outra causa priva de recursos, aos prisioneiros, aos
imigrantes, numa palavra, a todos os que sofrem necessidade» (184).
1352. A anáfora: Com a oração eucarística, oração de acção de graças e de consagração,
chegamos ao coração e cume da celebração:
no prefácio, a Igreja dá graças ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo, por todas as suas obras:
pela criação, redenção e santificação. Toda a comunidade une, então, as suas vozes àquele
louvor incessante que a Igreja celeste – os anjos e todos os santos – cantam ao Deus três vezes
Santo:
1353. na epiclese, pede ao Pai que envie o seu Espírito Santo (ou o poder da sua
bênção)(185)sobre o pão e o vinho, para que se tornem, pelo seu poder, o corpo e o sangue de
Jesus Cristo, e para que os que participam na Eucaristia sejam um só corpo e um só espírito.
(Algumas tradições litúrgicas colocam a epiclese depois da anamnese);
na narração da instituição, a força das palavras e da acção de Cristo e o poder do Espírito
Santo tomam sacramentalmente presentes, sob as espécies do pão e do vinho, o corpo e o
sangue do mesmo Cristo, o seu sacrifício oferecido na cruz de uma vez por todas;
1354. na anamnese que se segue, a Igreja faz memória da paixão, ressurreição e regresso
glorioso de Cristo Jesus: e apresenta ao Pai a oferenda do seu Filho, que nos reconcilia com
Ele:
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nas intercessões, a Igreja manifesta que a Eucaristia é celebrada em comunhão com toda a
Igreja do céu e da terra, dos vivos e dos defuntos, e na comunhão com os pastores da Igreja: o
Papa, o bispo da diocese, o seu presbitério e os seus diáconos, e todos os bispos do mundo in-
teiro com as suas Igrejas.
1355. Na comunhão, precedida da Oração do Senhor e da fracção do pão, os fiéis recebem «o
pão do céu» e «o cálice da salvação», o corpo e o sangue de Cristo, que Se entregou «para a
vida do mundo» (Jo 6, 51):
Porque este pão e este vinho foram, segundo a expressão antiga, «eucaristizados» (186),
«chamamos a este alimento Eucaristia; e ninguém pode tomar parte nela se não acreditar na
verdade do que entre nós se ensina, se não recebeu o banho para a remissão dos pecados e o
novo nascimento e se não viver segundo os preceitos de Cristo» (187).

V. O sacrifício sacramental: acção de graças, memorial, presença

1356. Se os cristãos celebram a Eucaristia desde as origens e sob uma forma que, na sua sub-
stância não mudou através da grande diversidade dos tempos e das liturgias, é porque sabem
que estão ligados pela ordem do Senhor, dada na véspera da sua paixão: «Fazei isto em
memória de Mim» (1 Cor 11, 24-25).
1357. Esta ordem do Senhor, cumprimo-la celebrando o memorial do seu sacrifício. E
fazendo-o, oferecemos ao Pai o que Ele próprio nos deu: os dons da sua criação, o pão e o
vinho, transformados, pelo poder do Espírito Santo e pelas palavras de Cristo, no corpo e no
sangue do mesmo Cristo: assim Cristo torna-se real e misteriosamente presente.
1358. Temos, pois, de considerar a Eucaristia
– como acção de graças e louvor ao Pai, – como memorial sacrificial de Cristo e do Seu corpo,
– como presença de Cristo pelo poder da sua Palavra e do seu Espírito.

A ACÇÃO DE GRAÇAS E O LOUVOR AO PAI

1359. A Eucaristia, sacramento da nossa salvação realizada por Cristo na cruz, é também um
sacrifício de louvor em acção de graças pela obra da criação. No sacrifício eucarístico, toda a
criação, amada por Deus, é apresentada ao Pai, através da morte e ressurreição de Cristo. Por
Cristo, a Igreja pode oferecer o sacrifício de louvor em acção de graças por tudo o que Deus fez
de bom, belo e justo, na criação e na humanidade.
1360. A Eucaristia é um sacrifício de acção de graças ao Pai, uma bênção pela qual a Igreja
exprime o seu reconhecimento a Deus por todos os seus benefícios, por tudo o que Ele fez me-
diante a criação, a redenção e a santificação. Eucaristia significa, antes de mais, «acção de
graças».
1361. A Eucaristia é também o sacrifício de louvor, pelo qual a Igreja canta a glória de Deus
em nome de toda a criação. Este sacrifício de louvor só é possível através de Cristo: Ele une os
fiéis à sua pessoa, ao seu louvor e à sua intercessão, de maneira que o sacrifício de louvor ao
Pai ë oferecido por Cristo e com Cristo, para ser aceite em Cristo.

O MEMORIAL SACRIFICIAL DE CRISTO E DO SEU CORPO, A IGREJA


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1362. A Eucaristia é o memorial da Páscoa de Cristo, a actualização e a oferenda sacramental


do seu único sacrifício, na liturgia da Igreja que é o seu corpo. Em todas as orações eucarístic-
as encontramos, depois das palavras da instituição, uma oração chamada anamnese ou
memorial.
1363. No sentido que lhe dá a Sagrada Escritura, o memorial não é somente a lembrança dos
acontecimentos do passado, mas a proclamação das maravilhas que Deus fez pelos homens
(188). Na celebração litúrgica destes acontecimentos, eles tomam-se de certo modo presentes
e actuais. É assim que Israel entende a sua libertação do Egipto: sempre que se celebrar a Pás-
coa, os acontecimentos do Êxodo tornam-se presentes à memória dos crentes, para que con-
formem com eles a sua vida.
1364. O memorial recebe um sentido novo no Novo Testamento. Quando a Igreja celebra a
Eucaristia, faz memória da Páscoa de Cristo, e esta torna-se presente: o sacrifício que Cristo
ofereceu na cruz uma vez por todas, continua sempre actual (189): «Todas as vezes que no al-
tar se celebra o sacrifício da cruz, no qual "Cristo, nossa Páscoa, foi imolado", realiza-se a obra
da nossa redenção» (190).
1365. Porque é o memorial da Páscoa de Cristo, a Eucaristia é também um sacrifício. O
carácter sacrificial da Eucaristia manifesta-se nas próprias palavras da instituição: «Isto é o
meu corpo, que vai ser entregue por vós» e «este cálice é a Nova Aliança no meu sangue, que
vai ser derramado por vós» (Lc 22, 19-20). Na Eucaristia, Cristo dá aquele mesmo corpo que
entregou por nós na cruz, aquele mesmo sangue que «derramou por muitos em remissão dos
pecados» (Mt 26, 28).
1366. A Eucaristia é, pois, um sacrifício, porque representa (torna presente) o sacrifício da
cruz, porque é dele o memorial e porque aplica o seu fruto:
Cristo «nosso Deus e Senhor [...], ofereceu-Se a Si mesmo a Deus Pai uma vez por todas, mor-
rendo como intercessor sobre o altar da cruz, para realizar em favor deles [homens] uma re-
denção eterna. No entanto, porque após a sua morte não se devia extinguir o seu sacerdócio
(Heb 7, 24-27), na última ceia, "na noite em que foi entregue" (1 Cor 11, 13). [...] Ele [quis
deixar] à Igreja, sua esposa bem-amada, um sacrifício visível (como o exige a natureza hu-
mana), em que fosse representado o sacrifício cruento que ia realizar uma vez por todas na
cruz, perpetuando a sua memória até ao fim dos séculos e aplicando a sua eficácia salvífica à
remissão dos pecados que nós cometemos cada dia» (191).
1367. O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício: «É uma só e
mesma vítima e Aquele que agora Se oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que
outrora Se ofereceu a Si mesmo na cruz; só a maneira de oferecer é que é diferente» (192). E
porque «neste divino sacrifício, que se realiza na missa, aquele mesmo Cristo, que a Si mesmo
Se ofereceu outrora de modo cruento sobre o altar da cruz, agora está contido e é imolado de
modo incruento [...], este sacrifício é verdadeiramente propiciatório» (193).
1368. A Eucaristia é igualmente o sacrifício da Igreja. A Igreja, que é o corpo de Cristo, par-
ticipa na oblação da sua Cabeça. Com Ele, ela própria é oferecida integralmente. Ela une-se à
sua intercessão junto do Pai em favor de todos os homens. Na Eucaristia, o sacrifício de Cristo
torna-se também o sacrifício dos membros do seu corpo. A vida dos fiéis, o seu louvor, o seu
sofrimento, a sua oração, o seu trabalho unem-se aos de Cristo e à sua oblação total, ad-
quirindo assim um novo valor. O sacrifício de Cristo presente sobre o altar proporciona a to-
das as gerações de cristãos a possibilidade de se unirem à sua oblação.
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Nas catacumbas, a Igreja é frequentemente representada como uma mulher em oração, de


braços estendidos em atitude orante. Como Cristo, que estendeu os braços na cruz, assim, por
Ele, com Ele e n'Ele, a Igreja oferece-se e intercede por todos os homens.
1369. Toda a Igreja está unida à oblação e intercessão de Cristo. Encarregado do ministério
de Pedro na Igreja, o Papa está associado a toda e qualquer celebração da Eucaristia, na qual é
nomeado como sinal e servidor da unidade da Igreja universal. O bispo do lugar é sempre re-
sponsável pela Eucaristia, mesmo quando presidida por um presbítero; o seu nome é citado
nela para significar a sua presidência da Igreja particular, no meio do presbitério e com a as-
sistência dos diáconos. A comunidade intercede também por todos os ministros que, por ela e
com ela, oferecem o sacrifício eucarístico:
«Seja tida como legítima somente aquela Eucaristia que é presidida pelo bispo ou por quem
ele encarregou» (194).
«É pelo ministério dos presbíteros que o sacrifício espiritual dos fiéis se consuma em união
com o sacrifício de Cristo. Mediador único, que é oferecido na Eucaristia de modo incruento e
sacramental, pelas mãos deles, em nome de toda a Igreja, até quando o mesmo Senhor voltar»
(195).
1370. À oblação de Cristo unem-se não só os membros que estão ainda neste mundo, mas
também os que já estão na glória do céu: é em comunhão com a santíssima Virgem Maria e
fazendo memória d'Ela, assim como de todos os santos e de todas as santas, que a Igreja
oferece o sacrifício eucarístico. Na Eucaristia, a Igreja, com Maria, está como que ao pé da
cruz, unida à oblação e à intercessão de Cristo.
1371. O sacrifício eucarístico é também oferecido pelos fiéis defuntos, «que morreram em
Cristo e não estão ainda de todo purificados» (196), para que possam entrar na luz e na paz de
Cristo:
«Enterrai este corpo não importa onde! Não vos dê isso qualquer cuidado! Tudo o que vos
peço é que vos lembreis de mim diante do altar do Senhor, onde quer que estejais» (197).
«Depois [na anáfora], nós rezamos pelos santos padres e bispos falecidos, e em geral por to-
dos aqueles que morreram antes de nós, certos de que isso será de grande proveito para as al-
mas em favor das quais tal súplica se faz, enquanto está presente a vítima santa e temível [...].
Apresentando a Deus as nossas súplicas pelos que morreram, tenham embora sido pecadores,
nós [...] apresentamos Cristo imolado pelos nossos pecados, tornando assim propício, para
eles e para nós, o Deus que é amigo dos homens» (198).
1372. Santo Agostinho resumiu admiravelmente esta doutrina que nos incita a uma parti-
cipação cada vez mais perfeita no sacrifício do nosso Redentor que celebramos na Eucaristia:
«Toda esta cidade resgatada, ou seja, a assembleia e sociedade dos santos, é oferecida a Deus
como um sacrifício universal pelo Sumo-Sacerdote que, sob a forma de servo, foi ao ponto de
Se oferecer por nós na sua paixão, para fazer de nós corpo duma tal Cabeça [...] Tal é o sacrifí-
cio dos cristãos: "Nós que somos muitos, formamos em Cristo um só corpo" (Rm 12, 5). E este
sacrifício, a Igreja não cessa de o renovar no sacramento do altar bem conhecido dos fiéis, em
que lhe é mostrado que ela própria é oferecida naquilo que oferece» (199).

A PRESENÇA DE CRISTO PELO PODER DA SUA PALAVRA E DO ESPÍRITO SANTO


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1373. «Jesus Cristo, que morreu, que ressuscitou, que está à direita de Deus, que intercede
por nós» (Rm 8, 34), está presente na sua Igreja de múltiplos modos (200): na sua Palavra, na
oração da sua Igreja, «onde dois ou três estão reunidos em Meu nome» (Mt 18, 20), nos
pobres, nos doentes, nos prisioneiros (201), nos seus sacramentos, dos quais é o autor, no sac-
rifício da missa e na pessoa do ministro. Mas está presente «sobretudo sob as espécies eu-
carísticas» (202).
1374. O modo da presença de Cristo sob as espécies eucarísticas é único. Ele eleva a Eucaris-
tia acima de todos os sacramentos e faz dela «como que a perfeição da vida espiritual e o fim
para que tendem todos os sacramentos» (203). No santíssimo sacramento da Eucaristia estão
«contidos, verdadeira, real e substancialmente, o corpo e o sangue, conjuntamente com a
alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte, Cristo completo» (204).
«Esta presença chama-se "real", não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem
"reais", mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo
completo, Deus e homem» (205).
1375. É pela conversão do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo que Ele Se torna
presente neste sacramento. Os Padres da Igreja proclamaram com firmeza a fé da mesma
Igreja na eficácia da Palavra de Cristo e da acção do Espírito Santo, para operar esta conver-
são. Assim, São João Crisóstomo declara:
«Não é o homem que faz com que as coisas oferecidas se tomem corpo e sangue de Cristo, mas
o próprio Cristo, que foi crucificado por nós. O sacerdote, figura de Cristo, pronuncia estas pa-
lavras, mas a sua eficácia e a graça são de Deus. Isto é o Meu corpo, diz ele. Esta palavra trans-
forma as coisas oferecidas» (206).
E Santo Ambrósio diz a respeito da mesma conversão:
Estejamos bem convencidos de que «isto não é o que a natureza formou, ruas o que a bênção
consagrou, e de que a força da bênção ultrapassa a da natureza, porque pela bênção a própria
natureza é mudada» (207). «A Palavra de Cristo, que pôde fazer do nada o que não existia,
não havia de poder mudar coisas existentes no que elas ainda não eram? Porque não é menos
dar às coisas a sua natureza original do que mudá-la» (208).
1376. O Concílio de Trento resume a fé católica declarando: «Porque Cristo, nosso Redentor,
disse que o que Ele oferecia sob a espécie do pão era verdadeiramente o seu corpo, sempre na
Igreja se teve esta convicção que o sagrado Concílio de novo declara: pela consagração do pão
e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo
nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a
Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação» (209).
1377. A presença eucarística de Cristo começa no momento da consagração e dura enquanto
as espécies eucarísticas subsistirem. Cristo está presente todo em cada uma das espécies e to-
do em cada uma das suas partes, de maneira que a fracção do pão não divide Cristo (210).
1378. O culto da Eucaristia. Na liturgia da Missa, nós exprimimos a nossa fé na presença real
de Cristo sob as espécies do pão e do vinho, entre outras maneiras, ajoelhando ou inclinando-
nos profundamente em sinal de adoração do Senhor. «A Igreja Católica sempre prestou e con-
tinua a prestar este culto de adoração que é devido ao sacramento da Eucaristia, não só dur-
ante a missa, mas também fora da sua celebração: conservando com o maior cuidado as hósti-
as consagradas, apresentando-as aos fiéis para que solenemente as venerem, e levando-as em
procissão» (211).
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1379. A sagrada Reserva (sacrário) era, ao princípio, destinada a guardar, de maneira digna, a
Eucaristia, para poder ser levada aos doentes e ausentes, fora da missa. Pelo aprofundamento
da fé na presença real de Cristo na sua Eucaristia, a Igreja tomou consciência do sentido da
adoração silenciosa do Senhor, presente sob as espécies eucarísticas, por isso que o sacrário
deve ser colocado num lugar particularmente digno da igreja; deve ser construído de tal modo
que sublinhe e manifeste a verdade da presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento.
1380. É de suma conveniência que Cristo tenha querido ficar presente à sua Igreja deste
modo único. Uma vez que estava para deixar os seus sob forma visível, Cristo quis dar-nos a
sua presença sacramental; e visto que ia sofrer na cruz para nos salvar, quis que tivéssemos o
memorial do amor com que nos amou «até ao fim» (Jo 13, 1), até ao dom da própria vida.
Com efeito, na sua presença eucarística, Ele fica misteriosamente no meio de nós, como
Aquele que nos amou e Se entregou por nós (212), e permanece sob os sinais que exprimem e
comunicam este amor:
«A Igreja e o mundo têm grande necessidade do culto eucarístico. Jesus espera-nos neste sac-
ramento do amor. Não regateemos o tempo para estar com Ele na adoração, na contemplação
cheia de fé e disposta a reparar as faltas graves e os pecados do mundo. Que a nossa adoração
não cesse jamais» (213).
1381. «A presença do verdadeiro corpo e do verdadeiro sangue de Cristo neste sacramento,
"não a apreendemos pelos sentidos, diz São Tomás, mas só pela fé, que se apoia na autoridade
de Deus". É por isso que, comentando o texto de São Lucas 22, 19 "Isto é o Meu corpo que será
entregue por vós", São Cirilo de Alexandria declara: "Não vás agora perguntar-te se isso é ver-
dade; mas acolhe com fé as palavras do Senhor, porque Ele, que é a verdade, não mente"»
(214):

«Adoro te devote, latens Deitas,


Quae sub his figuris vere latitas:
Tibi se cor meum totem subjicit, Quica,
Te contemplans, totem deficit.

Adoro-te com devoção, ó Deus que te escondes,


Que sob estas figuras de verdade te ocultas:
A ti meu coração se submete inteiramente
Porque, ao contemplar-te, desfalece por completo.

Visus, tactus, gustus in Te fallitur


Sed auditu solo tutu creditur:
Credo quidquid dixit Dei Filius:
Nil hoc Veritatis verbo verius».

Visão, tacto e paladar em ti falham,


Apenas ouvindo se crê com segurança:
Creio em tudo o que disse o Filho de Deus:
Nada mais verdadeiro que esta palavra da Verdade.
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VI. O banquete pascal

1382. A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se per-


petua o sacrifício da cruz e o banquete sagrado da comunhão do corpo e sangue do Senhor.
Mas a celebração do sacrifício eucarístico está toda orientada para a união íntima dos fiéis
com Cristo pela comunhão. Comungar é receber o próprio Cristo, que Se ofereceu por nós.
1383. O altar, à volta do qual a Igreja se reúne na celebração da Eucaristia, representa os dois
aspectos dum mesmo mistério: o altar do sacrifício e a mesa do Senhor, e isto tanto mais que o
altar cristão é o símbolo do próprio Cristo, presente no meio da assembleia dos seus fiéis, ao
mesmo tempo como vítima oferecida para a nossa reconciliação e como alimento celeste que
se nos dá. «Com efeito, o que é o altar de Cristo senão a imagem do corpo de Cristo?» – per-
gunta Santo Ambrósio (216); e noutro passo: «O altar representa o corpo [de Cristo], e o corpo
de Cristo está sobre o altar» (217). A liturgia exprime esta unidade do sacrifício e da comun-
hão em numerosas orações. Assim, a Igreja de Roma reza na sua anáfora:
«Humildemente Vos suplicamos, Deus todo-poderoso, que esta nossa oferenda seja ap-
resentada pelo vosso santo Anjo no altar celeste, diante da vossa divina majestade, para que
todos nós, participando deste altar pela comunhão do santíssimo corpo e sangue do vosso
Filho, alcancemos a plenitude das bênçãos e graças do céu»» (218)

«TOMAI TODOS E COMEI»: A COMUNHÃO

1384. O Senhor dirige-nos um convite insistente a que O recebamos no sacramento da Eucar-


istia: «Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não
beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós» (Jo 6, 53).
1385. Para responder a este convite, devemos preparar-nos para este momento tão grande e
santo. São Paulo exorta a um exame de consciência: «Quem comer o pão ou beber do cálice do
Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, cada qual a
si mesmo e então coma desse pão e beba deste cálice; pois quem come e bebe, sem discernir o
corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação» (1Cor 11, 27-29). Aquele que tiver con-
sciência dum pecado grave deve receber o sacramento da Reconciliação antes de se aproximar
da Comunhão.
1386. Perante a grandeza deste sacramento, o fiel só pode retomar humildemente e com ar-
dente fé a palavra do centurião (219) : «Domine, non sum dignus, ut intres sub tectum meum,
sed tantum dic verbum, et sanabitur anima mea – Senhor, eu não sou digno de que entreis
em minha morada, mas dizei uma [só] palavra e serei salvo» (220). E na divina liturgia de São
João Crisóstomo, os fiéis oram no mesmo Espírito:
«Faz-me comungar hoje, ó Filho de Deus, na tua ceia mística. Porque eu não revelarei o se-
gredo aos teus inimigos, nem te darei o beijo de Judas. Mas, como o ladrão, eu te suplico:
Lembra-Te de mim, Senhor, no teu Reino» (221).
1387. Para se prepararem convenientemente para receber este sacramento, os fiéis devem ob-
servar o jejum prescrito na sua Igreja (222). A atitude corporal (gestos, traje) deve traduzir o
respeito, a solenidade, a alegria deste momento em que Cristo Se torna nosso hóspede.
1388. É conforme ao próprio sentido da Eucaristia que os fiéis, se tiverem as disposições re-
queridas (223), recebam a Comunhão quando participam na missa (224): «Recomenda-se
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vivamente aquela mais perfeita participação na missa em que os fiéis, depois da comunhão do
sacerdote, recebem, do mesmo sacrifício, o corpo do Senhor» (225).
1389. A Igreja impõe aos fiéis a obrigação de «participar na divina liturgia nos domingos e di-
as de festa» (226) e de receber a Eucaristia ao menos uma vez em cada ano, se possível no
tempo pascal (227) preparados pelo sacramento da Reconciliação. Mas recomenda-lhes viva-
mente que recebam a santa Eucaristia aos domingos e dias de festa, ou ainda mais vezes,
mesmo todos os dias.
1390. Graças à presença sacramental de Cristo sob cada uma das espécies, a comunhão apen-
as sob a espécie de pão permite receber todo o fruto de graça da Eucaristia. Por razões pasto-
rais, esta maneira de comungar estabeleceu-se legitimamente como a mais habitual no rito
latino. «A sagrada Comunhão tem uma forma mais plena, enquanto sinal, quando é feita sob
as duas espécies. Com efeito, nesta forma manifesta-se mais perfeitamente o sinal do ban-
quete eucarístico» (228). É a forma habitual de comungar, nos ritos orientais.

OS FRUTOS DA COMUNHÃO

1391. A Comunhão aumenta a nossa união com Cristo. Receber a Eucaristia na comunhão
traz consigo, como fruto principal, a união íntima com Cristo Jesus. De facto, o Senhor diz:
«Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele» (Jo 6, 56). A
vida em Cristo tem o seu fundamento no banquete eucarístico: «Assim como o Pai, que vive,
Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, também o que Me come viverá por Mim» (Jo 6, 57):
«Quando, nas festas do Senhor, os fiéis recebem o corpo do Filho, proclamam uns aos outros a
boa-nova de que lhes foram dadas as arras da vida, como quando o anjo disse a Maria de Mag-
dala: "Cristo ressuscitou!". Eis que também agora a vida e a ressurreição são conferidas àquele
que recebe Cristo» (229).
1392. O que o alimento material produz na nossa vida corporal, realiza-o a Comunhão, de
modo admirável, na nossa vida espiritual. A comunhão da carne de Cristo Ressuscitado, «vivi-
ficada pelo Espírito Santo e vivificante» (230), conserva, aumenta e renova a vida da graça re-
cebida no Baptismo. Este crescimento da vida cristã precisa de ser alimentado pela Comunhão
eucarística, pão da nossa peregrinação, até à hora da morte, em que nos será dado como
viático.
1393. A Comunhão afasta-nos do pecado. O corpo de Cristo que recebemos na Comunhão é
«entregue por nós» e o sangue que nós bebemos é «derramado pela multidão, para remissão
dos pecados». É por isso que a Eucaristia não pode unir-nos a Cristo sem nos purificar, ao
mesmo tempo, dos pecados cometidos, e nos preservar dos pecados futuros:
«Sempre que O recebemos, anunciamos a morte do Senhor (231). Se nós anunciamos a morte
do Senhor, anunciamos a remissão dos pecados. Se, de cada vez que o seu sangue é derra-
mado, é derramado para remissão dos pecados, eu devo recebê-lo sempre, para que sempre
Ele perdoe os meus pecados. Eu que peco sempre, devo ter sempre um remédio» (232).
1394. Tal como o alimento corporal serve para restaurar as forças perdidas, assim também a
Eucaristia fortifica a caridade que, na vida quotidiana, tende a enfraquecer-se; e esta caridade
vivificada apaga os pecados veniais (233). Dando-Se a nós, Cristo reaviva o nosso amor e
torna-nos capazes de quebrar as ligações desordenadas às criaturas e de nos radicarmos n'Ele.
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«Uma vez que Cristo morreu por nós por amor, quando nós fazemos memória da sua morte
no momento do sacrifício, pedimos que esse amor nos seja dado pela vinda do Espírito Santo;
suplicamos humildemente que, em virtude desse amor pelo qual Cristo quis morrer por nós,
também nós, recebendo a graça do Espírito Santo, possamos considerar o mundo como cruci-
ficado para nós e sermos nós próprios crucificados para o mundo; [...] tendo recebido o dom
do amor, morramos para o pecado e vivamos para Deus» (234).
1395. Pela mesma caridade que acende em nós, a Eucaristia preserva-nos dos pecados mor-
tais futuros. Quanto mais participarmos na vida de Cristo e progredirmos na sua amizade,
mais difícil nos será romper com Ele pelo pecado mortal. A Eucaristia não está ordenada ao
perdão dos pecados mortais. Isso é próprio do sacramento da Reconciliação. O que é próprio
da Eucaristia é ser o sacramento daqueles que estão na plena comunhão da Igreja.
1396. A unidade do corpo Místico: a Eucaristia faz a Igreja. Os que recebem a Eucaristia
ficam mais estreitamente unidos a Cristo. Por isso mesmo, Cristo une todos os fiéis num só
corpo: a Igreja. A Comunhão renova, fortalece e aprofunda esta incorporação na Igreja já real-
izada pelo Baptismo. No Baptismo fomos chamados a formar um só corpo (235). A Eucaristia
realiza esta vocação: «O cálice da bênção que abençoamos, não é comunhão com o sangue de
Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? Uma vez que há um único
pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque participamos desse único pão» (1 Cor
10, 16-17):
«Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que está colocado sobre a
mesa do Senhor, é o vosso sacramento que recebeis. Vós respondeis «Ámen» [«Sim, é ver-
dade!»] àquilo que recebeis e, ao responder, o subscreveis. Tu ouves esta palavra: «O corpo de
Cristo»; e respondes: «Ámen», Então, sê um membro de Cristo, para que o teu «Ámen» seja
verdadeiro» (326).
1397. A Eucaristia compromete-nos com os pobres: Para receber, na verdade, o corpo e o
sangue de Cristo entregue por nós, temos de reconhecer Cristo nos mais pobres, seus irmãos
(237):
«Saboreaste o sangue do Senhor e não reconheces sequer o teu irmão. Desonras esta mesa, se
não julgas digno de partilhar o teu alimento aquele que foi julgado digno de tomar parte nesta
mesa. Deus libertou-te de todos os teus pecados e chamou-te para ela; e tu nem então te tor-
naste mais misericordioso» (238).
1398. A Eucaristia e a unidade dos cristãos. Perante a grandeza deste mistério, Santo
Agostinho exclama: «O sacramentum pietatis! O signum unitatis! O vinculum caritatis! – Ó
sacramento da piedade, ó sinal da unidade, ó vínculo da caridade!» Quanto mais dolorosas se
fazem sentir as divisões da Igreja que rompem a comum participação na mesa do Senhor,
tanto mais prementes são as orações que fazemos ao Senhor para que voltem os dias da unid-
ade completa de todos os que crêem n' Ele.
1399. As Igrejas orientais que não estão em comunhão plena com a Igreja Católica celebram a
Eucaristia com um grande amor. «Essas Igrejas, embora separadas, têm verdadeiros sacra-
mentos; e principalmente, em virtude da sucessão apostólica, o sacerdócio e a Eucaristia, por
meio dos quais continuam unidos a nós por vínculos estreitíssimos» (240). Portanto, «uma
certa comunhão in sacris é não só possível, mas até aconselhável em circunstâncias oportunas
e com aprovação da autoridade eclesiástica» (241).
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1400. As comunidades eclesiais saídas da Reforma, separadas da Igreja Católica, «não [con-
servaram] a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, sobretudo por causa da falta
do sacramento da Ordem» (242). É por esse motivo que a intercomunhão eucarística com es-
tas comunidades não é possível para a Igreja Católica. No entanto, estas comunidades eclesi-
ais, «quando na santa ceia fazem memória da morte e ressurreição do Senhor, professam que
a vida é significada na comunhão com Cristo e esperam a sua vinda gloriosa» (243).
1401. Se urgir uma grave necessidade, segundo o juízo do Ordinário os ministros católicos
podem ministrar os sacramentos (Eucaristia, Penitência, Unção dos Enfermos) aos outros
cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, mas que os pedem por sua
livre vontade: requer-se, nesse caso, que manifestem a fé católica em relação a estes sacra-
mentos e que se encontrem nas devidas disposições (244).

VII. A Eucaristia – «Penhor da futura glória»

1402. Numa antiga oração, a Igreja aclama assim o mistério da Eucaristia: «O sacrum con-
vivium in quo Christus sumitur: recolitur memoria passionis eius; mens impletur gratia et
futurae gloriae nobis pignus datur – Ó sagrado banquete, em que se recebe Cristo e se
comemora a sua paixão, em que a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura
glória» (245). Se a Eucaristia é o memorial da Páscoa da Senhor, se pela nossa comunhão no
altar somos cumulados da «plenitude das bênçãos se graças do céu» (246), a Eucaristia é tam-
bém a antecipação da glória celeste.
1403. Na última ceia, o próprio Senhor chamou a atenção dos seus discípulos para a con-
sumação da Páscoa no Reino de Deus: «Eu vos digo que não voltarei a beber deste fruto da
videira, até o dia em que beberei convosco o vinho novo no Reino do meu Pai» (Mt 26, 29)
(247). Sempre que a Igreja celebra a Eucaristia, lembra-se desta promessa, e o seu olhar volta-
se para «Aquele que vem» (Ap 1, 4). Na sua oração, ela clama pela sua vinda: «Marana tha»
(1Cor 16, 22), «Vem, Senhor Jesus!» (Ap 22, 20), «que a Tua graça venha e que este mundo
passe!» (248).
1404. A Igreja sabe que, desde já, o Senhor vem na sua Eucaristia e que está ali, no meio de
nós. Mas esta presença é velada. E é por isso que nós celebramos a Eucaristia «expectantes
beatam spem et adventum Salvatoris nostri Jesu Christi – enquanto aguardamos a feliz es-
perança e a vinda de Jesus Cristo nosso Salvador» (249), pedindo a graça de ser acolhidos
«com bondade no vosso Reino, onde também nós esperamos ser ser recebidos, para vivermos
[...] eternamente na vossa glória, quando enxugardes todas as lágrimas dos nossos olhos; e,
vendo-Vos tal como sois, Senhor nosso Deus, seremos para sempre semelhantes a Vós e can-
taremos sem fim os vossos louvores, por Jesus Cristo nosso Senhor» (250).
1405. Desta grande esperança – dos novos céus e da nova terra, onde habitará a justiça (251)
– não temos garantia mais segura nem sinal mais manifesto do que a Eucaristia. Com efeito,
cada vez que se celebra este mistério, «realiza-se a obra da nossa redenção» (252) e nós «par-
timos o mesmo pão, que é remédio de imortalidade, antídoto para não morrer, mas viver em
Jesus Cristo para sempre» (253).

Resumindo:
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1406. Jesus diz: «Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eterna-
mente [...] Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna [...], per-
manece em Mim, e Eu nele» (Jo 6, 51.54.56).
1407. A Eucaristia é o coração e o cume da vida da Igreja, porque nela Cristo associa a sua
Igreja e todos os seus membros ao seu sacrifício de louvor e de acção de graças, oferecido ao
Pai uma vez por todas na cruz; por este sacrifício, Ele derrama as graças da salvação sobre
o seu corpo, que é a Igreja.
1408. A celebração eucarística inclui sempre: a proclamação da Palavra de Deus, a acção
de graças a Deus Pai por todos os seus benefícios, sobretudo pelo dom do seu Filho, a con-
sagração do pão e do vinho e a participação no banquete litúrgico pela recepção do corpo e
do sangue do Senhor Estes elementos constituem um só e mesmo acto de culto.
1409. A Eucaristia é o memorial da Páscoa de Cristo, isto é, da obra do salvação realizada
pela vida, morte e ressurreição de Cristo, obra tornada presente pela acção litúrgica.
1410. É o próprio Cristo, sumo e eterno sacerdote da Nova Aliança, que, agindo pelo min-
istério dos sacerdotes, oferece o sacrifício eucarístico. E é ainda o mesmo Cristo, realmente
presente sob as espécies do pão e do vinho, que é a oferenda do sacrifício eucarístico.
1411. Só os sacerdotes validamente ordenados podem presidir à Eucaristia e consagrar o
pão e o vinho, para que se tornem o corpo e o sangue do Senhor:
1412. Os sinais essenciais do sacramento eucarístico são o pão de trigo e o vinho da videira,
sobre os quais é invocada a bênção do Espírito Santo, e o sacerdote pronuncia as palavras
da consagração ditas por Jesus durante a última ceia: «Isto é o meu corpo, que será en-
tregue por vós... Este é o cálice do meu sangue...».
1413. Pela consagração, opera-se a transubstanciação do pão e do vinho no corpo e no
sangue de Cristo. Sob as espécies consagradas do pão e do vinho, o próprio Cristo, vivo e
glorioso, está presente de modo verdadeiro, real e substancial, com o seu corpo e o seu
sangue, com a sua alma e a sua divindade (254).
1414. Enquanto sacrifício, a Eucaristia é oferecida também em reparação dos pecados dos
vivos e dos defuntos e para obter de Deus benefícios espirituais ou temporais.
1415. Aquele que quiser receber Cristo na Comunhão eucarística deve encontrar-se em es-
tado de graça. Se alguém tiver consciência de ter pecado mortalmente, não deve aproximar-
se da Eucaristia sem primeiro ter recebido a absolvição no sacramento da Penitência.
1416. A sagrada Comunhão do corpo e sangue de Cristo aumenta a união do comungante
com o Senhor perdoa-lhe os pecados veniais e preserva-o dos pecados graves. E uma vez que
os laços da caridade entre o comungante e Cristo são reforçados, a recepção deste sacra-
mento reforça a unidade da Igreja, corpo Místico de Cristo.
1417. A Igreja recomenda vivamente aos fiéis que recebam a sagrada Comunhão quando
participam na celebração da Eucaristia; e impõe-lhes a obrigação de o fazerem ao menos
uma vez por ano.
1418. Uma vez que Cristo em pessoa está presente no Sacramento do Altar; devemos honrá-
Lo com culto de adoração. «A visita ao Santíssimo Sacramento é uma prova de gratidão, um
sinal de amor e um dever de adoração para com Cristo nosso Senhor» (255).
1419. Tendo passado deste mundo para o Pai, Cristo deixou-nos na Eucaristia o penhor da
glória junto d'Ele: a participação no santo sacrifício identifica-nos com o seu coração,
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sustenta as nossas forças ao longo da peregrinação desta vida, faz-nos desejar a vida eterna
e desde já nos une à Igreja do céu, à Santíssima Virgem e a todos os santos.

CAPÍTULO SEGUNDO
OS SACRAMENTOS DE CURA

1420. Pelos sacramentos da iniciação cristã, o homem recebe a vida nova de Cristo. Ora, esta
vida, nós trazemo-la «em vasos de barro». Por enquanto, ela está ainda «oculta com Cristo em
Deus» (Cl 3, 3). Vivemos ainda na «nossa morada terrena» (1), sujeita ao sofrimento à doença
e à morte. A vida nova de filhos de Deus pode ser enfraquecida e até perdida pelo pecado.
1421. O Senhor Jesus Cristo, médico das nossas almas e dos nossos corpos, que perdoou os
pecados ao paralítico e lhe restituiu a saúde do corpo (2) quis que a sua Igreja continuasse,
com a força do Espírito Santo, a sua obra de cura e de salvação, mesmo para com os seus
próprios membros. É esta a finalidade dos dois sacramentos de cura: o sacramente da Pen-
itência e o da Unção dos enfermos.

ARTIGO 4

O SACRAMENTO DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO

1422. «Aqueles que se aproximam do sacramento da Penitência obtêm da misericórdia de


Deus o perdão da ofensa a Ele feita e, ao mesmo tempo, são reconciliados com a Igreja, que
tinham ferido com o seu pecado, a qual, pela caridade, exemplo e oração, trabalha pela sua
conversão» (3).

I. Como se chama este sacramento?

1423. É chamado sacramento da conversão, porque realiza sacramentalmente o apelo de Je-


sus à conversão (4) e o esforço de regressar à casa do Pai (5) da qual o pecador se afastou pelo
pecado.
É chamado sacramento da Penitência, porque consagra uma caminhada pessoal e eclesial de
conversão, de arrependimento e de satisfação por parte do cristão pecador.
1424. É chamado sacramento da confissão, porque o reconhecimento, a confissão dos peca-
dos perante o sacerdote é um elemento essencial deste sacramento. Num sentido profundo,
este sacramento é também uma «confissão», reconhecimento e louvor da santidade de Deus e
da sua misericórdia para com o homem pecador.
E chamado sacramento do perdão, porque, pela absolvição sacramental do sacerdote. Deus
concede ao penitente «o perdão e a paz» (6).
E chamado sacramento da Reconciliação, porque dá ao pecador o amor de Deus que
reconcilia: «Deixai-vos reconciliar com Deus» (2 Cor 5, 20). Aquele que vive do amor
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misericordioso de Deus está pronto para responder ao apelo do Senhor: «Vai primeiro
reconciliar-te com teu irmão» (Mt 5, 24).

II. Porquê, um sacramento de Reconciliação depois do Baptismo?

1425. «Vós fostes lavados, fostes santificados, fostes justificados pelo nome do Senhor Jesus
Cristo e pelo Espírito do nosso Deus» (1 Cor 6, 11). Precisamos de tomar consciência da gran-
deza do dom de Deus que nos foi concedido nos sacramentos da iniciação cristã, para nos
apercebermos de até que ponto o pecado é algo de inadmissível para aquele que foi revestido
de Cristo (7). Mas o apóstolo São João diz também: «Se dissermos que não temos pecado,
enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós» (1 Jo 1, 8). E o próprio Senhor nos
ensinou a rezar: «Perdoai-nos as nossas ofensas» (Lc 11, 4 ), relacionando o perdão mútuo das
nossas ofensas com o perdão que Deus concederá aos nossos pecados.
1426. A conversão a Cristo, o novo nascimento do Baptismo, o dom do Espírito Santo, o
corpo e sangue de Cristo recebidos em alimento, tornaram-nos «santos e imaculados na sua
presença» (Ef 1, 4), tal como a própria Igreja, esposa de Cristo, é «santa e imaculada na sua
presença» (Ef 5, 27). No entanto, a vida nova recebida na iniciação cristã não suprimiu a fra-
gilidade e a fraqueza da natureza humana, nem a inclinação para o pecado, a que a tradição
chama concupiscência, a qual persiste nos baptizados, a fim de que prestem as suas provas no
combate da vida cristã, ajudados pela graça de Cristo (8). Este combate é o da conversão, em
vista da santidade e da vida eterna, a que o Senhor não se cansa de nos chamar (9).

III. A conversão dos baptizados

1427. Jesus chama à conversão. Tal apelo é parte essencial do anúncio do Reino: «O tempo
chegou ao seu termo, o Reino de Deus está próximo: convertei-vos e acreditai na boa-nova»
(Mc 1, 15). Na pregação da Igreja, este apelo dirige-se, em primeiro lugar, àqueles que ainda
não conhecem Cristo e o seu Evangelho. Por isso, o Baptismo é o momento principal da
primeira e fundamental conversão. É pela fé na boa-nova e pelo Baptismo (10) que se renun-
cia ao mal e se adquire a salvação, isto é, a remissão de todos os pecados e o dom da vida nova.
1428. Ora, o apelo de Cristo à conversão continua a fazer-se ouvir na vida dos cristãos. Esta
segunda conversão é uma tarefa ininterrupta para toda a Igreja, que «contém pecadores no
seu seio» e que é, «ao mesmo tempo, santa e necessitada de purificação, prosseguindo con-
stantemente no seu esforço de penitência e de renovação» (11). Este esforço de conversão não
é somente obra humana. É o movimento do «coração contrito» (12) atraído e movido pela
graça (13) para responder ao amor misericordioso de Deus, que nos amou primeiro (14).
1429. Testemunho disto mesmo, é a conversão de Pedro, depois de três vezes ter negado o
seu mestre. O olhar infinitamente misericordioso de Jesus provoca-lhe lágrimas de arrependi-
mento (15) e, depois da ressurreição do Senhor, a tríplice afirmação do seu amor para com Ele
(16). A segunda conversão tem, também, uma dimensão comunitária. Isto aparece no apelo
dirigido pelo Senhor a uma Igreja inteira: «Arrepende-te!» (Ap 2, 5-16).
Santo Ambrósio diz, a respeito das duas conversões que, na Igreja, «existem a água e as lágri-
mas: a água do Baptismo e as lágrimas da Penitência»
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IV. A penitência interior

1430. Como já acontecia com os profetas, o apelo de Jesus à conversão e à penitência não visa
primariamente as obras exteriores, «o saco e a cinza», os jejuns e as mortificações, mas a con-
versão do coração, a penitência interior: Sem ela, as obras de penitência são estéreis e en-
ganadoras; pelo contrário, a conversão interior impele à expressão dessa atitude cm sinais
visíveis, gestos e obras de penitência (18).
1431. A penitência interior é uma reorientação radical de toda a vida, um regresso, uma con-
versão a Deus de todo o nosso coração, uma rotura com o pecado, uma aversão ao mal, com
repugnância pelas más acções que cometemos. Ao mesmo tempo, implica o desejo e o
propósito de mudar de vida, com a esperança da misericórdia divina e a confiança na ajuda da
sua graça. Esta conversão do coração é acompanhada por uma dor e uma tristeza salutares, a
que os Santos Padres chamaram animi cruciatus (aflição do espírito), compunctio cordis
(compunção do coração) (19).
1432. O coração do homem é pesado e endurecido. É necessário que Deus dê ao homem um
coração novo (20). A conversão é, antes de mais, obra da graça de Deus, a qual faz com que os
nossos corações se voltem para Ele: «Convertei-nos, Senhor, e seremos convertidos» (Lm 5,
21). Deus é quem nos dá a coragem de começar de novo. É ao descobrir a grandeza do amor de
Deus que o nosso coração é abalado pelo horror e pelo peso do pecado, e começa a ter receio
de ofender a Deus pelo pecado e de estar separado d'Ele. O coração humano converte- se, ao
olhar para Aquele a quem os nossos pecados trespassaram (21).
«Tenhamos os olhos fixos no sangue de Cristo e compreendamos quanto Ele é precioso para o
seu Pai, pois que, derramado para nossa salvação, proporcionou ao mundo inteiro a graça do
arrependimento» (22).
1433. Depois da Páscoa, é o Espírito Santo que «confunde o mundo no tocante ao pecado»,
isto é, faz ver ao mundo o pecado de não ter acreditado n'Aquele que o Pai enviou (23). Mas
este mesmo Espírito, que desmascara o pecado, é o Consolador (24) que dá ao coração do
homem a graça do arrependimento e da conversão (25).

V. As múltiplas formas da penitência na vida cristã

1434. A penitência interior do cristão pode ter expressões muito variadas. A Escritura e os
Padres insistem sobretudo em três formas: o jejum, a oração e a esmola que exprimem a con-
versão, em relação a si mesmo, a Deus e aos outros. A par da purificação radical operada pelo
Baptismo ou pelo martírio, citam, como meios de obter o perdão dos pecados, os esforços
realizados para se reconciliar com o próximo, as lágrimas de penitência, a preocupação com a
salvação do próximo (27), a intercessão dos santos e a prática da caridade «que cobre uma
multidão de pecados» (1 Pe 4, 8).
1435. A conversão realiza-se na vida quotidiana por gestos de reconciliação, pelo cuidado dos
pobres, o exercício e a defesa da justiça e do direito (28), pela confissão das próprias faltas aos
irmãos, pela correcção fraterna, a revisão de vida, o exame de consciência, a direcção espiritu-
al, a aceitação dos sofrimentos, a coragem de suportar a perseguição por amor da justiça. To-
mar a sua cruz todos os dias e seguir Jesus é o caminho mais seguro da penitência (29).
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1436. Eucaristia e Penitência. A conversão e a penitência quotidianas têm a sua fonte e ali-
mento na Eucaristia: porque na Eucaristia torna-se presente o sacrifício de Cristo, que nos re-
conciliou com Deus: pela Eucaristia nutrem-se e fortificam-se os que vivem a vida de Cristo:
«ela é o antídoto que nos livra das faltas quotidianas e nos preserva dos pecados mortais»
(30).
1437. A leitura da Sagrada Escritura, a oração da Liturgia das Horas e do Pai Nosso, todo o
acto sincero de culto ou de piedade reavivam em nós o espírito de conversão e de penitência e
contribuem para o perdão dos nossos pecados.
1438. Os tempos e os dias de penitência no decorrer do Ano Litúrgico (tempo da Quaresma,
cada sexta-feira em memória da morte do Senhor) são momentos fortes da prática penitencial
da Igreja (31). Estes tempos são particularmente apropriados para os exercícios espirituais, as
liturgias penitenciais, as peregrinações em sinal de penitência, as privações voluntárias como
o jejum e a esmola, a partilha fraterna (obras caritativas e missionárias).
1439 O dinamismo da conversão e da penitência foi maravilhosamente descrito por Jesus na
parábola do «filho pródigo», cujo centro é «o pai misericordioso» (32): o deslumbramento
duma liberdade ilusória e o abandono da casa paterna: a miséria extrema em que o filho se en-
contra depois de delapidada a fortuna: a humilhação profunda de se ver obrigado a guardar
porcos e, pior ainda, de desejar alimentar-se das bolotas que os porcos comiam: a reflexão
sobre os bens perdidos: o arrependimento e a decisão de se declarar culpado diante do pai: o
caminho do regresso: o acolhimento generoso por parte do pai: a alegria do pai: eis alguns dos
aspectos próprios do processo de conversão. O fato novo, o anel e o banquete festivo são sím-
bolos desta vida nova, pura, digna, cheia de alegria, que é a vida do homem que volta para
Deus e para o seio da família que é a Igreja. Só o coração de Cristo, que conhece a profundid-
ade do amor do seu Pai, pôde revelar-nos o abismo da sua misericórdia, de um modo tão cheio
de simplicidade e beleza.

VI. O sacramento da Penitência e da Reconciliação

1440. O pecado é, antes de mais, ofensa a Deus, ruptura da comunhão com Ele. Ao mesmo
tempo, é um atentado contra a comunhão com a Igreja. É por isso que a conversão traz con-
sigo, ao mesmo tempo, o perdão de Deus e a reconciliação com a Igreja, o que é expresso e
realizado liturgicamente pelo sacramento da Penitência e Reconciliação (33).

SÓ DEUS PERDOA O PECADO

1441. Só Deus perdoa os pecados (34). Jesus, porque é Filho de Deus, diz de Si próprio: «O
Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar os pecados» (Mc 2, 10) e exerce este poder
divino: «Os teus pecados são-te perdoados!» (Mc 2, 5) (35). Mais ainda: em virtude da sua
autoridade divina, concede este poder aos homens para que o exerçam em seu nome.
1442. Cristo quis que a sua Igreja fosse, toda ela, na sua oração, na sua vida e na sua activid-
ade, sinal e instrumento do perdão e da reconciliação que Ele nos adquiriu pelo preço do seu
sangue. Entretanto, confiou o exercício do poder de absolvição ao ministério apostólico. É este
que está encarregado do «ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18). O apóstolo é enviado
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«em nome de Cristo» e «é o próprio Deus» que, através dele, exorta e suplica: «Deixai-vos re-
conciliar com Deus» (2 Cor 5, 20).

RECONCILIAÇÃO COM A IGREJA

1443. Durante a sua vida pública. Jesus não somente perdoou os pecados, como também
manifestou o efeito desse perdão: reintegrou os pecadores perdoados na comunidade do povo
de Deus, da qual o pecado os tinha afastado ou mesmo excluído. Sinal bem claro disso é o
facto de Jesus admitir os pecadores à sua mesa, e mais ainda: de se sentar à mesa deles, gesto
que exprime ao mesmo tempo, de modo desconcertante, o perdão de Deus (37), e o regresso
ao seio do povo de Deus (38).
1444. Ao tornar os Apóstolos participantes do seu próprio poder de perdoar os pecados, o
Senhor dá-lhes também autoridade para reconciliar os pecadores com a Igreja. Esta dimensão
eclesial do seu ministério exprime-se, nomeadamente, na palavra solene de Cristo a Simão
Pedro: «Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus; tudo o que ligares na terra ficará ligado nos
céus, e tudo o que desligares na terra ficará desligado nos céus» (Mt 16, 19). «Este mesmo en-
cargo de ligar e desligar, conferido a Pedro, foi também atribuído ao colégio dos Apóstolos
unidos à sua cabeça (Mt 18,18; 28, 16-20)» (39).
1445. As palavras ligar e desligar significam: aquele que vós excluirdes da vossa comunhão,
ficará também excluído da comunhão com Deus; aquele que de novo receberdes na vossa
comunhão, também Deus o acolherá na sua. A reconciliação com a Igreja é inseparável da
reconciliação com Deus.

O SACRAMENTO DO PERDÃO

1446. Cristo instituiu o sacramento da Penitência para todos os membros pecadores da sua
Igreja, antes de mais para aqueles que, depois do Baptismo, caíram em pecado grave e assim
perderam a graça baptismal e feriram a comunhão eclesial. É a eles que o sacramento da Pen-
itência oferece uma nova possibilidade de se converterem e de reencontrarem a graça da justi-
ficação. Os Padres da Igreja apresentam este sacramento como «a segunda tábua (de sal-
vação), depois do naufrágio que é a perda da graça» (40).
1447. No decorrer dos séculos, a forma concreta segundo a qual a Igreja exerceu este poder
recebido do Senhor variou muito. Durante os primeiros séculos, a reconciliação dos cristãos
que tinham cometido pecados particularmente graves depois do Baptismo (por exemplo: a id-
olatria, o homicídio ou o adultério) estava ligada a uma disciplina muito rigorosa, segundo a
qual os penitentes tinham de fazer penitência pública pelos seus pecados, muitas vezes dur-
ante longos anos, antes de receberem a reconciliação. A esta «ordem dos penitentes» (que
apenas dizia respeito a certos pecados graves) só raramente se era admitido e, em certas re-
giões, apenas uma vez na vida. Durante século VII, inspirados pela tradição monástica do Ori-
ente, os missionários irlandeses trouxeram para a Europa continental a prática «privada» da
penitência que não exigia a realização pública e prolongada de obras de penitência, antes de
receber a reconciliação com a Igreja. O sacramento processa-se, a partir de então, dum modo
mais secreto, entre o penitente e o sacerdote. Esta nova prática previa a possibilidade da re-
petição e abria assim o caminho a uma frequência regular deste sacramento. Permitia
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integrar, numa só celebração sacramental, o perdão dos pecados graves e dos pecados veniais.
Nas suas grandes linhas, é esta forma de penitência que a Igreja tem praticado até aos nossos
dias.
1448. Através das mudanças que a disciplina e a celebração deste sacramento têm conhecido
no decorrer dos séculos, distingue-se a mesma estrutura fundamental. Esta inclui dois ele-
mentos igualmente essenciais: por um lado, os actos do homem que se converte sob a acção
do Espírito Santo, a saber, a contrição, a confissão e a satisfação: por outro, a acção de Deus
pela intervenção da Igreja. A Igreja que, por meio do bispo e seus presbíteros, concede, em
nome de Jesus Cristo, o perdão dos pecados e fixa o modo da satisfação, também reza pelo
pecador e faz penitência com ele. Assim, o pecador á curado e restabelecido na comunhão
eclesial.
1449. A fórmula de absolvição, em uso na Igreja latina, exprime os elementos essenciais deste
sacramento: o Pai das misericórdias é a fonte de todo o perdão. Ele realiza a reconciliação dos
pecadores pela Páscoa do seu Filho e pelo dom do seu Espírito, através da oração e do min-
istério da Igreja:
«Deus, Pai de misericórdia, que, pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo
consigo e enviou o Espírito Santo para a remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da
Igreja, o perdão e a paz. E Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, e do Filho e do
Espírito Santo» (41).

VII. Os actos do penitente

1450. «Poenitentia cogit peccatorem omnia libenter sufferre; in corde eius contritio, in ore
confessio, in opere tota humilitas vel fructifera satisfactio – A penitência leva o pecador a
tudo suportar de bom grado: no coração, a contrição; na boca, a confissão; nas obras, toda a
humildade e frutuosa satisfação» (42).

A CONTRIÇÃO

1451. Entre os actos do penitente, a contrição ocupa o primeiro lugar. Ela é «uma dor da alma
e uma detestação do pecado cometido, com o propósito de não mais pecar no futuro» (43).
1452. Quando procedente do amor de Deus, amado sobre todas as coisas, a contrição é dita
«perfeita» (contrição de caridade). Uma tal contrição perdoa as faltas veniais: obtém igual-
mente o perdão dos pecados mortais, se incluir o propósito firme de recorrer, logo que pos-
sível, à confissão sacramental (44).
1453. A contrição dita «imperfeita» (ou «atrição») é, também ela, um dom de Deus, um im-
pulso do Espírito Santo. Nasce da consideração da fealdade do pecado ou do temor da con-
denação eterna e das outras penas de que o pecador está ameaçado (contrição por temor). Um
tal abalo da consciência pode dar início a uma evolução interior, que será levada a bom termo
sob a acção da graça, pela absolvição sacramental. No entanto, por si mesma, a contrição im-
perfeita não obtém o perdão dos pecados graves, mas dispõe para obtê-lo no sacramento da
Penitência (45).
1454. É conveniente que a recepção deste sacramento seja preparada por um exame de con-
sciência, feito à luz da Palavra de Deus. Os textos mais adaptados para este efeito devem
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procurar-se no Decálogo e na catequese moral dos evangelhos e das cartas dos Apóstolos: ser-
mão da montanha e ensinamentos apostólicos (46).

A CONFISSÃO DOS PECADOS

1455. A confissão (a acusação) dos pecados, mesmo de um ponto de vista simplesmente


humano, liberta-nos e facilita a nossa reconciliação com os outros. Pela confissão, o homem
encara de frente os pecados de que se tornou culpado; assume a sua responsabilidade e, desse
modo, abre-se de novo a Deus e à comunhão da Igreja, para tornar possível um futuro
diferente.
1456. A confissão ao sacerdote constitui uma parte essencial do sacramento da Penitência:
«Os penitentes devem, na confissão, enumerar todos os pecados mortais de que têm consciên-
cia, após se terem seriamente examinado, mesmo que tais pecados sejam secretíssimos e ten-
ham sido cometidos apenas contra os dois últimos preceitos do Decálogo (47); porque, por
vezes, estes pecados ferem mais gravemente a alma e são mais perigosos que os cometidos à
vista de todos» (48):
«Quando os fiéis se esforçam por confessar todos os pecados de que se lembram, não se pode
duvidar de que os apresentam todos ao perdão da misericórdia divina. Os que procedem de
modo diverso, e conscientemente ocultam alguns, esses não apresentam à bondade divina
nada que ela possa perdoar por intermédio do sacerdote. Porque, "se o doente tem vergonha
de descobrir a sua ferida ao médico, a medicina não pode curar o que ignora"» (49).
1457. Segundo o mandamento da Igreja, «todo o fiel que tenha atingido a idade da discrição,
está obrigado a confessar fielmente os pecados graves, ao menos uma vez ao ano» (50).
Aquele que tem consciência de haver cometido um pecado mortal, não deve receber a sagrada
Comunhão, mesmo que tenha uma grande contrição, sem ter previamente recebido a ab-
solvição sacramental (51); a não ser que tenha um motivo grave para comungar e não lhe seja
possível encontrar-se com um confessor (52). As crianças devem aceder ao sacramento da
Penitência antes de receberem pela primeira vez a Sagrada Comunhão (53).
1458. Sem ser estritamente necessária, a confissão das faltas quotidianas (pecados veniais) é
contudo vivamente recomendada pela Igreja. (54) Com efeito, a confissão regular dos nossos
pecados veniais ajuda-nos a formar a nossa consciência, a lutar contra as más inclinações, a
deixarmo-nos curar por Cristo, a progredir na vida do Espírito. Recebendo com maior fre-
quência, neste sacramento, o dom da misericórdia do Pai, somos levados a ser misericordiosos
como Ele (55):
«Aquele que confessa os seus pecados e os acusa, já está de acordo com Deus. Deus acusa os
teus pecados; se tu também os acusas, juntas-te a Deus. O homem e o pecador são, por assim
dizer, duas realidades distintas. Quando ouves falar do homem, foi Deus que o criou: quando
ouves falar do pecador, foi o próprio homem quem o fez. Destrói o que fizeste, para que Deus
salve o que fez. [...] Quando começas a detestar o que fizeste, é então que começam as tuas
boas obras, porque acusas as tuas obras más. O princípio das obras boas é a confissão das
más. Praticaste a verdade e vens à luz» (56).

A SATISFAÇÃO
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1459. Muitos pecados prejudicam o próximo. Há que fazer o possível por reparar esse dano
(por exemplo: restituir as coisas roubadas, restabelecer a boa reputação daquele que foi
caluniado, indemnizar por ferimentos). A simples justiça o exige. Mas, além disso, o pecado
fere e enfraquece o próprio pecador, assim como as suas relações com Deus e com o próximo.
A absolvição tira o pecado, mas não remedeia todas as desordens causadas pelo pecado (57).
Aliviado do pecado, o pecador deve ainda recuperar a perfeita saúde espiritual. Ele deve, pois,
fazer mais alguma coisa para reparar os seus pecados: «satisfazer» de modo apropriado ou
«expiar» os seus pecados. A esta satisfação também se chama «penitência».
1460. A penitência que o confessor impõe deve ter em conta a situação pessoal do penitente e
procurar o seu bem espiritual. Deve corresponder, quanto possível, à gravidade e natureza dos
pecados cometidos. Pode consistir na oração, num donativo, nas obras de misericórdia, no
serviço do próximo, em privações voluntárias, sacrifícios e, sobretudo, na aceitação paciente
da cruz que temos de levar. Tais penitências ajudam-nos a configurar-nos com Cristo, que, por
Si só, expiou os nossos pecados (58) uma vez por todas. Tais penitências fazem que nos
tornemos co-herdeiros de Cristo Ressuscitado, «uma vez que também sofremos com Ele» (Rm
8, 17) (59):
«Mas esta satisfação, que realizamos pelos nossos pecados, não é possível senão por Jesus
Cristo: nós que, por nós próprios, nada podemos, com a ajuda "d'Aquele que nos conforta, po-
demos tudo" (60). Assim, o homem não tem nada de que se gloriar. Toda a nossa «glória» está
em Cristo [...] em quem nós satisfazemos, "produzindo dignos frutos de penitência" (61), os
quais vão haurir n'Ele toda a sua força, por Ele são oferecidos ao Pai, e graças a Ele são aceites
pelo Pai» (62).

VIII. O ministro deste sacramento

1461. Uma vez que Cristo confiou aos Apóstolos o ministério da reconciliação (63) os bispos,
seus sucessores, e os presbíteros, colaboradores dos bispos, continuam a exercer tal min-
istério. Com efeito, os bispos e os presbíteros é que têm, em virtude do sacramento da Ordem,
o poder de perdoar todos os pecados, «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo».
1462. O perdão dos pecados reconcilia com Deus mas também com a Igreja. O bispo, chefe
visível da Igreja particular, é justamente considerado, desde os tempos antigos, como o prin-
cipal detentor do poder e ministério da reconciliação: é o moderador da disciplina penitencial
(64). Os presbíteros, seus colaboradores, exercem-no na medida em que receberam o respect-
ivo encargo, quer do seu bispo (ou dum superior religioso), quer do Papa, através do direito da
Igreja (65).
1463. Certos pecados particularmente graves são punidos pela excomunhão, a pena
eclesiástica mais severa, que impede a recepção dos sacramentos e o exercício de certos actos
eclesiásticos (66) e cuja absolvição, por conseguinte, só pode ser dada, segundo o direito da
Igreja, pelo Papa, pelo bispo do lugar ou por sacerdotes por eles autorizados (67). Em caso de
perigo de morte, qualquer sacerdote, mesmo que careça da faculdade de ouvir confissões,
pode absolver de qualquer pecado e de toda a excomunhão (68).
1464. Os sacerdotes devem exortar os fiéis a aproximarem-se do sacramento da Penitência; e
devem mostrar-se disponíveis para a celebração deste sacramento, sempre que os cristãos o
peçam de modo razoável (69).
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1465. Ao celebrar o sacramento da Penitência, o sacerdote exerce o ministério do bom Pastor


que procura a ovelha perdida: do bom Samaritano que cura as feridas; do Pai que espera pelo
filho pródigo e o acolhe no seu regresso; do justo juiz que não faz acepção de pessoas e cujo
juízo é, ao mesmo tempo, justo e misericordioso. Em resumo, o sacerdote é sinal e instru-
mento do amor misericordioso de Deus para com o pecador.
1466. O confessor não é dono, mas servidor do perdão de Deus. O ministro deste sacramento
deve unir-se à intenção e à caridade de Cristo (70). Deve ter um conhecimento comprovado do
comportamento cristão, experiência das coisas humanas, respeito e delicadeza para com
aquele que caiu; deve amar a verdade, ser fiel ao Magistério da Igreja, e conduzir o penitente
com paciência para a cura e a maturidade plena. Deve rezar e fazer penitência por ele,
confiando-o à misericórdia do Senhor.
1467. Dada a delicadeza e a grandeza deste ministério e o respeito devido às pessoas, a igreja
declara que todo o sacerdote que ouve confissões está obrigado a guardar segredo absoluto
sobre os pecados que os seus penitentes lhe confessaram, sob penas severíssimas (71). Tão
pouco pode servir-se dos conhecimentos que a confissão lhe proporciona sobre a vida dos
penitentes. Este segredo, que não admite excepções, é chamado «sigilo sacramental», porque
aquilo que o penitente manifestou ao sacerdote fica «selado» pelo sacramento.

IX. Os efeitos deste sacramento

1468. «Toda a eficácia da Penitência consiste em nos restituir à graça de Deus e em unir-nos
a Ele numa amizade perfeita» (72). O fim e o efeito deste sacramento são, pois, a reconcili-
ação com Deus. Naqueles que recebem o sacramento da Penitência com coração contrito e
disposição religiosa, seguem-se-lhe «a paz e a tranquilidade da consciência, acompanhadas
duma grande consolação espiritual» (73). Com efeito, o sacramento da reconciliação com
Deus leva a uma verdadeira «ressurreição espiritual», à restituição da dignidade e dos bens
próprios da vida dos filhos de Deus, o mais precioso dos quais é a amizade do mesmo Deus
(74).
1469. Este sacramento reconcilia-nos com a Igreja. O pecado abala ou rompe a comunhão
fraterna. O sacramento da Penitência repara-a ou restaura-a. Nesse sentido, não se limita
apenas a curar aquele que é restabelecido na comunhão eclesial, mas também exerce um
efeito vivificante sobre a vida da Igreja que sofreu com o pecado de um dos seus membros
(75). Restabelecido ou confirmado na comunhão dos santos, o pecador é fortalecido pela per-
muta de bens espirituais entre todos os membros vivos do corpo de Cristo, quer vivam ainda
em estado de peregrinos, quer já tenham atingido a pátria celeste (76):
«É de lembrar que a reconciliação com Deus tem como consequência, por assim dizer, outras
reconciliações, que trarão remédio a outras rupturas produzidas pelo pecado: o penitente
perdoado reconcilia-se consigo mesmo no mais profundo do seu ser, onde recupera a própria
verdade interior: reconcilia-se com os irmãos, que de algum modo ofendeu e magoou:
reconcilia-se com a Igreja; reconcilia-se com toda a criação» (77).
1470. Neste sacramento, o pecador, remetendo-se ao juízo misericordioso de Deus, de certo
modo antecipa o julgamento a que será submetido no fim desta vida terrena. É aqui e agora,
nesta vida, que nos é oferecida a opção entre a vida e a morte. Só pelo caminho da conversão é
que podemos entrar no Reino de onde o pecado grave nos exclui? (78). Convertendo-se a
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Cristo pela penitência e pela fé, o pecador passa da morte à vida «e não é sujeito a julga-
mento» (Jo 5, 24).

X. As indulgências

1471. A doutrina e a prática das indulgências na Igreja estão estreitamente ligadas aos efeitos
do sacramento da Penitência.

O QUE É A INDULGÊNCIA?

«A indulgência é a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados cuja culpa já
foi apagada; remissão que o fiel devidamente disposto obtém em certas e determinadas con-
dições, pela acção da Igreja, a qual, enquanto dispensadora da redenção, distribui e aplica por
sua autoridade o tesouro das satisfações de Cristo e dos santos» (79). «A indulgência é parcial
ou plenária, consoante liberta parcialmente ou na totalidade da pena temporal devida ao
pecado» (80). «O fiel pode lucrar para si mesmo as indulgências [...], ou aplicá-las aos defun-
tos» (81).

AS PENAS DO PECADO

1472. Para compreender esta doutrina e esta prática da Igreja, deve ter-se presente que o
pecado tem uma dupla consequência. O pecado grave priva-nos da comunhão com Deus e,
portanto, torna-nos incapazes da vida eterna, cuja privação se chama «pena eterna» do
pecado. Por outro lado, todo o pecado, mesmo venial, traz consigo um apego desordenado às
criaturas, o qual precisa de ser purificado, quer nesta vida quer depois da morte, no estado
que se chama Purgatório. Esta purificação liberta do que se chama «pena temporal» do
pecado. Estas duas penas não devem ser consideradas como uma espécie de vingança, infli-
gida por Deus, do exterior, mas como algo decorrente da própria natureza do pecado. Uma
conversão procedente duma caridade fervorosa pode chegar à total purificação do pecador, de
modo que nenhuma pena subsista (82).
1473. O perdão do pecado e o restabelecimento da comunhão com Deus trazem consigo a ab-
olição das penas eternas do pecado. Mas subsistem as penas temporais. O cristão deve
esforçar-se por aceitar, como uma graça, estas penas temporais do pecado, suportando pa-
cientemente os sofrimentos e as provações de toda a espécie e, chegada a hora, enfrentando
serenamente a morte: deve aplicar-se, através de obras de misericórdia e de caridade, bem
como pela oração e pelas diferentes práticas da penitência, a despojar-se completamente do
«homem velho» e a revestir-se do «homem novo» (83).

NA COMUNHÃO DOS SANTOS

1474. O cristão que procura purificar-se do seu pecado e santificar-se com a ajuda da graça de
Deus, não se encontra só. «A vida de cada um dos filhos de Deus está ligada de modo ad-
mirável, em Cristo e por Cristo, à vida de todos os outros irmãos cristãos, na unidade sobren-
atural do corpo Místico de Cristo, como que numa pessoa mística» (84).
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1475. Na comunhão dos santos, «existe, portanto, entre os fiéis – os que já estão na pátria
celeste, os que foram admitidos à expiação do Purgatório, e os que vivem ainda peregrinos na
terra – um constante laço de amor e uma abundante permuta de todos os bens» (85). Nesta
admirável permuta, a santidade de um aproveita aos demais, muito para além do dano que o
pecado de um tenha podido causar aos outros. Assim, o recurso à comunhão dos santos
permite ao pecador contrito ser purificado mais depressa e mais eficazmente das penas do
pecado.
1476. A estes bens espirituais da comunhão dos santos, também lhes chamamos o tesouro da
Igreja, «que não é um somatório de bens, como quando se trata das riquezas materiais acu-
muladas no decurso dos séculos, mas sim o preço infinito e inesgotável que têm junto de Deus
as expiações e méritos de Cristo, nosso Senhor, oferecidos para que a humanidade seja liberta
do pecado e chegue à comunhão com o Pai. É em Cristo, nosso Redentor, que se encontram
em abundância as satisfações e os méritos da sua redenção (86)».
1477. «Pertencem igualmente a este tesouro o preço verdadeiramente imenso, incomen-
surável e sempre novo que têm junto de Deus as orações e boas obras da bem-aventurada
Virgem Maria e de todos os santos, que se santificaram pela graça de Cristo, seguindo as suas
pegadas, e que realizaram uma obra agradável ao Pai; de modo que, trabalhando pela sua pró-
pria salvação, igualmente cooperaram na salvação dos seus irmãos na unidade do corpo
Místico» (87).

OBTER A INDULGÊNCIA DE DEUS MEDIANTE A IGREJA

1478. A indulgência obtém-se mediante a Igreja que, em virtude do poder de ligar e desligar
que lhe foi concedido por Jesus Cristo, intervém a favor dum cristão e lhe abre o tesouro dos
méritos de Cristo e dos santos, para obter do Pai das misericórdias o perdão das penas tempo-
rais devidas pelos seus pecados. É assim que a Igreja não quer somente vir em ajuda deste
cristão, mas também incitá-lo a obras de piedade, penitência e caridade» (88).
1479. Uma vez que os fiéis defuntos, em vias de purificação, também são membros da mesma
comunhão dos santos, nós podemos ajudá-los, entre outros modos, obtendo para eles indul-
gências, de modo que sejam libertos das penas temporais devidas pelos seus pecados.

XI. A celebração do sacramento da Penitência

1480. Tal como todos os sacramentos, a Penitência é uma acção litúrgica. Ordinariamente, os
elementos da sua celebração são os seguintes: saudação e bênção do sacerdote, leitura da Pa-
lavra de Deus para iluminar a consciência e suscitar a contrição e exortação ao arrependi-
mento: a confissão que reconhece os pecados e os manifesta ao sacerdote; a imposição e aceit-
ação da penitência; a absolvição do sacerdote; o louvor de acção de graças e a despedida com a
bênção do sacerdote.
1481. A liturgia bizantina tem várias fórmulas de absolvição, em forma deprecativa, que
exprimem admiravelmente o mistério do perdão: «Deus, que pelo profeta Natan perdoou a
David, quando ele confessou os seus próprios pecados, a Pedro depois de ele ter chorado am-
argamente, à pecadora depois de ela ter derramado lágrimas a seus pés, ao publicano e ao
pródigo, este mesmo Deus vos perdoe, por intermédio de mim pecador, nesta vida e na outra,
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e vos faça comparecer, sem vos condenar no seu temível tribunal: Ele que é bendito pelos
séculos dos séculos. Ámen» (89).
1482. O sacramento da Penitência pode também ter lugar no âmbito duma celebração
comunitária, na qual se faz uma preparação conjunta para a confissão e conjuntamente se dão
graças pelo perdão recebido. Neste caso, a confissão pessoal dos pecados e a absolvição indi-
vidual são inseridas numa liturgia da Palavra de Deus, com leituras e homilia, exame de con-
sciência feito em comum, pedido comunitário de perdão, oração do Pai Nosso e acção de
graças em comum. Esta celebração comunitária exprime mais claramente o carácter eclesial
da penitência. No entanto, seja qual for a forma da sua celebração, o sacramento da Penitência
e sempre, por sua própria natureza, uma acção litúrgica, portanto eclesial e pública (90).
1483. Em casos de grave necessidade, pode-se recorrer à celebração comunitária da recon-
ciliação, com confissão geral e absolvição geral. Tal necessidade grave pode ocorrer quando
há perigo iminente de morte, sem que o sacerdote ou os sacerdotes tenham tempo suficiente
para ouvir a confissão de cada penitente. A necessidade grave pode existir também quando,
tendo em conta o número dos penitentes, não há confessores bastantes para ouvir devida-
mente as confissões individuais num tempo razoável, de modo que os penitentes, sem culpa
sua, se vejam privados, durante muito tempo, da graça sacramental ou da sagrada Comunhão.
Neste caso, para a validade da absolvição, os fiéis devem ter o propósito de confessar individu-
almente os seus pecados graves em tempo oportuno (91). Pertence ao bispo diocesano julgar
se as condições requeridas para a absolvição geral existem (92). Uma grande afluência de fiéis,
por ocasião de grandes festas ou de peregrinações, não constitui um desses casos de grave ne-
cessidade (93).
1484. «A confissão individual e íntegra e a absolvição constituem o único modo ordinário
pelo qual o fiel, consciente de pecado grave, se reconcilia com Deus e com a Igreja: somente a
impossibilidade física ou moral o escusa desta forma de confissão» (94). Há razões profundas
para que assim seja. Cristo age em cada um dos sacramentos. Ele dirige-Se pessoalmente a
cada um dos pecadores: «Meu filho, os teus pecados são-te perdoados» (Mc 2, 5); Ele é o
médico que Se inclina sobre cada um dos doentes com necessidade d'Ele (95) « para os curar:
alivia-os e reintegra-os na comunhão fraterna. A confissão pessoal é, pois, a forma mais signi-
ficativa da reconciliação com Deus e com a Igreja.

Resumindo:

1485. «Na tarde da Páscoa, o Senhor Jesus apareceu aos seus Apóstolos e disse-lhes: "Rece-
bei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e
àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos"» (Jo 20, 22-23).
1486. 0 perdão dos pecados cometidos depois do Baptismo é concedido por meio dum sac-
ramento próprio, chamado sacramento da Conversão, da Confissão, da Penitência ou da
Reconciliação.
1487. Quem peca, ofende a honra de Deus e o seu amor, a sua própria dignidade de homem
chamado a ser filho de Deus, e o bem-estar espiritual da Igreja, da qual cada fiel deve ser
pedra viva.
1488. Aos olhos da fé, não existe mal mais grave do que o pecado; nada tem piores con-
sequências para os próprios pecadores, para a Igreja e para todo o mundo.
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1489. Voltar à comunhão com Deus, depois de a ter perdido pelo pecado, é um movimento
nascido da graça do mesmo Deus misericordioso e cheio de interesse pela salvação dos ho-
mens. Deve pedir-se esta graça preciosa, tanto para si mesmo como para os outros.
1490. O movimento de regresso a Deus, pela conversão e arrependimento, implica dor e
aversão em relação aos pecados cometidos, e o propósito firme de não tornar a pecar no fu-
turo. Portanto, a conversão refere-se ao passado e ao futuro: alimenta-se da esperança na
misericórdia divina.
1491. O sacramento da Penitência é constituído pelo conjunto de três actos realizados pelo
penitente e pela absolvição do sacerdote. Os actos do penitente são: o arrependimento, a
confissão ou manifestação dos pecados ao sacerdote e o propósito de cumprir a reparação e
as obras de reparação.
1492. O arrependimento (também chamado contrição) deve inspirar-se em motivações que
brotam da fé. Se for motivado pelo amor de caridade para com Deus, diz-se «perfeito»; se
fundado em outros motivos, diz-se «imperfeito».
1493. Aquele que quer obter a reconciliação com Deus e com a Igreja, deve confessar ao sa-
cerdote todos os pecados graves que ainda não tiver confessado e de que se lembre depois de
ter examinado cuidadosamente a sua consciência. A confissão das faltas veniais, sem ser em
si necessária, é todavia vivamente recomendada pela Igreja.
1494. O confessor propõe ao penitente o cumprimento de certos actos de «satisfação» ou
«penitência», com o fim de reparar o mal causado pelo pecado e restabelecer os hábitos
próprios dum discípulo de Cristo.
1495. Só os sacerdotes que receberam da autoridade da Igreja a faculdade de absolver; po-
dem perdoar os pecados em nome de Cristo.
1496. Os efeitos espirituais do sacramento da Penitência são:
– a reconciliação com Deus, pela qual o penitente recupera a graça; – a reconciliação com a
Igreja; – a remissão da pena eterna, em que incorreu pelos pecados mortais; – a remissão,
ao menos em parte, das penas temporais, consequência do pecado; – a paz e a serenidade
da consciência e a consolação espiritual;
– o acréscimo das forças espirituais para o combate cristão.
1497. A confissão individual e integral dos pecados graves, seguida da absolvição, continua
a
ser o único meio ordinário para a reconciliação com Deus e com a Igreja.
1495. Por meio das indulgências, os fiéis podem obter para si próprios, e também para as
almas do Purgatório, a remissão das penas temporais, consequência do pecado.

ARTIGO 5

A UNÇÃO DOS ENFERMOS

1499. «Pela santa Unção dos Enfermos e pela oração dos presbíteros, toda a Igreja en-
comenda os doentes ao Senhor, sofredor e glorificado, para que os alivie e os salve: mais
ainda, exorta- os a que, associando-se livremente à paixão e morte de Cristo, concorram para
o bem do povo de Deus» (95).
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I. Os seus fundamentos na economia da salvação

A DOENÇA NA VIDA HUMANA

1500. A doença e o sofrimento estiveram sempre entre os problemas mais graves que afligem
a vida humana. Na doença, o homem experimenta a sua incapacidade, os seus limites, a sua fi-
nitude. Qualquer enfermidade pode fazer-nos entrever a morte.
1501. A doença pode levar à angústia, ao fechar-se em si mesmo e até, por vezes, ao desespero
e à revolta contra Deus. Mas também pode tornar uma pessoa mais amadurecida, ajudá-la a
discernir, na sua vida, o que não é essencial para se voltar para o que o é. Muitas vezes, a
doença leva à busca de Deus, a um regresso a Ele.

O DOENTE PERANTE DEUS

1502. O homem do Antigo Testamento vive a doença à face de Deus. É diante de Deus que de-
safoga o seu lamento pela doença que lhe sobreveio (97) e é d'Ele. Senhor da vida e da morte,
que implora a cura (98). A doença torna-se caminho de conversão (99) e o perdão de Deus dá
início à cura (100). Israel faz a experiência de que a doença está, de modo misterioso, ligada
ao pecado e ao mal, e de que a fidelidade a Deus em conformidade com a sua Lei restitui a
vida: «porque Eu, o Senhor, é que sou o teu médico» (Ex 15, 26). O profeta entrevê que o so-
frimento pode ter também um sentido redentor pelos pecados dos outros (101). Finalmente,
Isaías anuncia que Deus fará vir para Sião um tempo em que perdoará todas as faltas e curará
todas as doenças (102).

CRISTO-MÉDICO

1503. A compaixão de Cristo para com os doentes e as suas numerosas curas de enfermos de
toda a espécie (103) são um sinal claro de que «Deus visitou o seu povo» (104) e de que o
Reino de Deus está próximo. Jesus tem poder não somente para curar, mas também para per-
doar os pecados (105): veio curar o homem na sua totalidade, alma e corpo: é o médico de que
os doentes precisam (106). A sua compaixão para com todos os que sofrem vai ao ponto de
identificar-Se com eles: «Estive doente e visitastes-Me» (Mt 25, 36). O seu amor de pre-
dilecção para com os enfermos não cessou, ao longo dos séculos, de despertar a atenção par-
ticular dos cristãos para aqueles que sofrem no corpo ou na alma. Ele está na origem de in-
cansáveis esforços para os aliviar.
1504. Frequentemente, Jesus pede aos doentes que acreditem (107). Serve-se de sinais para
curar: saliva e imposição das mãos (108), lodo e lavagem (109). Por seu lado, os doentes
procuram tocar-Lhe (110), «porque saía d'Ele uma força que a todos curava» (Lc 6, 19). Por
isso, nos sacramentos, Cristo continua a «tocar-nos» para nos curar.
1505. Comovido por tanto sofrimento, Cristo não só Se deixa tocar pelos doentes, como tam-
bém faz suas as misérias deles: «Tomou sobre Si as nossas enfermidades e carregou com as
nossas doenças» (Mt 8, 17) (111). Ele não curou todos os doentes. As curas que fazia eram
sinais da vinda do Reino de Deus. Anunciavam uma cura mais radical: a vitória sobre o
pecado e sobre a morte, mediante a sua Páscoa. Na cruz, Cristo tomou sobre Si todo o peso do
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mal (112) e tirou «o pecado do mundo» (Jo 1, 29), do qual a doença não é mais que uma con-
sequência. Pela sua paixão e morte na cruz. Cristo deu novo sentido ao sofrimento: desde en-
tão este pode configurar-nos com Ele e unir-nos à sua paixão redentora.

«CURAI OS ENFERMOS...»

1506. Cristo convida os discípulos a seguirem-no, tomando a sua cruz (113). Seguindo-O, eles
adquirem uma nova visão da doença e dos doentes. Jesus associa-os à sua vida pobre e
servidora. Fá-los participar no seu ministério de compaixão e de cura: E eles «partiram e
pregaram que era preciso cada um arrepender-se. Expulsavam muitos demónios, ungiam com
óleo numerosos doentes, e curavam-nos» (Mc 6, 12-13).
1507. O Senhor ressuscitado renova esta missão («em Meu nome... hão-de impor as mãos aos
doentes, e estes ficarão curados»: Mc 16, 1 7-18) e confirma-a por meio dos sinais que a Igreja
realiza invocando o seu nome (114). Estes sinais manifestam de modo especial, que Jesus é
verdadeiramente «Deus que salva» (115).
1508. O Espírito Santo confere a alguns o carisma especial de poderem curar (116) para
manifestar a força da graça do Ressuscitado. Todavia, nem as orações mais fervorosas obtêm
sempre a cura de todas as doenças. Assim, São Paulo deve aprender do Senhor que «a minha
graça te basta: pois na fraqueza é que a minha força actua plenamente» (2 Cor 12, 9), e que os
sofrimentos a suportar podem ter como sentido que «eu complete na minha carne o que falta
à paixão de Cristo, em benefício do seu corpo, que é a Igreja» (Cl 1, 24).
1509. «Curai os enfermos!» (Mt 10, 8). A Igreja recebeu este encargo do Senhor e procura
cumpri-lo, tanto pelos cuidados que dispensa aos doentes, como pela oração de intercessão
com que os acompanha. Ela "crê na presença vivificante de Cristo, médico das almas e dos
corpos, presença que age particularmente através dos sacramentos e de modo muito especial
da Eucaristia, pão que dá a vida eterna (117) e cuja ligação com a saúde corporal é insinuada
por São Paulo (118).
1510. Entretanto, a Igreja dos Apóstolos conhece um rito próprio em favor dos enfermos,
atestado por São Tiago: «Alguém de vós está doente? Chame os presbíteros da Igreja para que
orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o doente e o
Senhor o aliviará; e, se tiver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados» (Ts; 5, 14-15). A
Tradição reconheceu neste rito um dos sete sacramentos da Igreja (119).

UM SACRAMENTO DOS ENFERMOS

1511. A Igreja crê e confessa que, entre os sete sacramentos, há um, especialmente destinado
a reconfortar os que se encontram sob a provação da doença: a Unção dos enfermos:
«Esta santa unção dos enfermos foi instituída por Cristo nosso Senhor como sacramento do
Novo Testamento, verdadeira e propriamente dito, insinuado por São Marcos (120), mas re-
comendado aos fiéis e promulgado por São Tiago, apóstolo e irmão do Senhor» (121).
1512. Na tradição litúrgica, tanto no Oriente como no Ocidente, temos, desde os tempos anti-
gos, testemunhos de unções de doentes praticadas com óleo benzido. No decorrer dos séculos,
a Unção dos enfermos começou a ser conferida cada vez mais exclusivamente aos que estavam
prestes a morrer. Por causa disso, fora-lhe dado o nome de «Extrema-Unção». Porém, apesar
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dessa evolução, a liturgia nunca deixou de pedir ao Senhor pelo doente, para que recuperasse
a saúde, se tal fosse conveniente para a sua salvação
1513. A Constituição Apostólica «Sacram Unctionem Infirmorum», de 30 de Novembro de
1972, na sequência do II Concílio do Vaticano (123), estabeleceu que, a partir de então, se ob-
servasse o seguinte no rito romano:
«O sacramento da Unção dos Enfermos é conferido aos que se encontram enfermos com a
vida em perigo, ungindo-os na fronte e nas mãos com óleo de oliveira ou, segundo as circun-
stância, com outro óleo de origem vegetal, devidamente benzido, proferindo uma só vez, as
palavras: "Por esta santa unção e pela sua infinita misericórdia o Senhor venha em teu auxílio
com a graça do Espírito Santo, para que, liberto dos teus pecados, Ele te salve e, na sua
bondade, alivie os teus sofrimentos"» (124).

II. Quem recebe e quem administra este sacramento?

EM CASO DE GRAVE ENFERMIDADE...

1514. A Unção dos Enfermos «não é sacramento só dos que estão prestes a morrer. Por isso, o
tempo oportuno para a receber é certamente quando o fiel começa, por doença ou por velhice,
a estar em perigo de morte» (125).
1515. Se um doente que recebeu a Unção recupera a saúde, pode, em caso de nova enfermid-
ade grave, receber outra vez este sacramento. No decurso da mesma doença, este sacramento
pode ser repetido se o mal se agrava. É conveniente receber a Unção dos Enfermos antes
duma operação cirúrgica importante. E o mesmo se diga a respeito das pessoas de idade, cuja
fragilidade se acentua.

«... CHAME OS PRESBÍTEROS DA IGREJA»

1516. Só os sacerdotes (bispos e presbíteros) são ministros da Unção dos Enfermos (126). É
dever dos pastores instruir os fiéis acerca dos benefícios deste sacramento. Que os fiéis
animem os enfermos chamarem o sacerdote para receberem este sacramento. E que os
doentes se preparem para o receber com boas disposições, com a ajuda do seu pastor e de toda
a comunidade eclesial, convidada a rodear, de um modo muito especial, os doentes, com as
suas orações e atenções fraternas.

III. Como se celebra este sacramento?

1517. Como todos os sacramentos, a Unção dos Enfermos é uma celebração litúrgica e
comunitária (127) quer tenha lugar no seio da família, quer no hospital ou na igreja, para um
só doente ou para um grupo deles. É muito conveniente que seja celebrada durante a Eucaris-
tia, memorial da Páscoa do Senhor. Se as circunstâncias a tal convidarem, a celebração do sac-
ramento pode ser precedida pelo sacramento da Penitência e seguida pelo da Eucaristia. En-
quanto sacramento da Páscoa de Cristo, a Eucaristia deveria ser sempre o último sacramento
da peregrinação terrestre, o «viático» da «passagem» para a vida eterna.
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1518. Palavra e sacramento formam um todo inseparável. A liturgia da Palavra, precedida


dum acto penitenciai, abre a celebração. As palavras de Cristo e o testemunho dos Apóstolos
despertam a fé do doente e da comunidade, para pedir ao Senhor a força do seu Espírito.
1519. A celebração do sacramento compreende principalmente os seguintes elementos: «Os
presbíteros da Igreja» (128) impõem em silêncio - as mãos sobre os enfermos; rezam por eles
na fé da Igreja (129); é a epiclese própria deste sacramento; então, conferem a unção com
óleo, benzido, se possível, pelo bispo.
Estes actos litúrgicos indicam a graça que este sacramento confere aos doentes.

IV. Os efeitos da celebração deste sacramento

1520. Um dom particular do Espírito Santo. A primeira graça deste sacramento é uma graça
de reconforto, de paz e de coragem para vencer as dificuldades próprias do estado de doença
grave ou da fragilidade da velhice. Esta graça é um dom do Espírito Santo, que renova a confi-
ança e a fé em Deus, e dá força contra as tentações do Maligno, especialmente a tentação do
desânimo e da angústia da morte (130). Esta assistência do Senhor pela força do seu Espírito
visa levar o doente à cura da alma, mas também à do corpo, se tal for a vontade de Deus (131).
Além disso, «se ele cometeu pecados, ser-lhe-ão perdoados» (Tg 5, 15) (132).
1521. A união à paixão de Cristo. Pela graça deste sacramento, o enfermo recebe a força e o
dom de se unir mais intimamente à paixão de Cristo: ele é, de certo modo, consagrado para
produzir frutos pela configuração com a paixão redentora do Salvador. O sofrimento, sequela
do pecado original, recebe um sentido novo: transforma-se em participação na obra salvífica
de Jesus.
1522. Uma graça eclesial. Os doentes que recebem este sacramento, «associando-se livre-
mente à paixão e morte de Cristo, concorrem para o bem do povo de Deus» (133). Ao celebrar
este sacramento, a Igreja, na comunhão dos santos, intercede pelo bem do doente. E o doente,
por seu lado, pela graça deste sacramento, contribui para a santificação da Igreja e para o bem
de todos os homens, pelos quais a Igreja sofre e se oferece, por Cristo, a Deus Pai.
1523. Uma preparação para a última passagem. Se o sacramento da Unção dos Enfermos é
concedido a todos os que sofrem de doenças e enfermidades graves, com mais forte razão o é
aos que estão prestes a deixar esta vida («in exitu vitae constituti (134)): de modo que tam-
bém foi chamado «sacramentum exeuntium – sacramento dos que partem» (135). A Unção
dos Enfermos completa a nossa conformação com a morte e ressurreição de Cristo, tal como o
Baptismo a tinha começado. Leva à perfeição as unções santas que marcam toda a vida cristã:
a do Baptismo selara em nós a vida nova: a da Confirmação robustecera-nos para o combate
desta vida; esta última unção mune o fim da nossa vida terrena como que de um sólido escudo
em vista das últimas batalhas, antes da entrada na Casa do Pai (136).

V. O Viático, último sacramento do cristão

1524. Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, além da Unção dos Enfermos, a
Eucaristia como viático. Recebida neste momento de passagem para o Pai, a comunhão do
corpo ,e sangue de Cristo tem um significado e uma importância particulares. É semente de
vida eterna e força de ressurreição, segundo as palavras do Senhor: «Quem come a minha
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carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna: e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia» (Jo 6, 54).
Sacramento de Cristo morto e ressuscitado, a Eucaristia é aqui sacramento da passagem da
morte para a vida, deste mundo para o Pai (137).
1525. Assim, do mesmo modo que os sacramentos do Baptismo, da Confirmação e da Eucar-
istia constituem uma unidade chamada «os sacramentos da iniciação cristã», também pode
dizer-se que a Penitência, a Santa Unção e a Eucaristia, como viático, constituem, quando a
vida do cristão chega ao seu termo, «os sacramentos que preparam a entrada na Pátria» ou os
sacramentos com que termina a peregrinação.

Resumindo:

1526. «Algum de vós está doente? Chame os presbíteros da Igreja, para que orem sobre ele,
ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o doente e o Senhor o alivi-
ará. E, se tiver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados» (Tg 5, 14-15).
1527. 0 sacramento da Unção dos Enfermos tem por finalidade conferir uma graça especial
ao cristão que enfrenta as dificuldades inerentes ao estado de doença grave ou de velhice.
1528. 0 tempo oportuno para receber a Santa Unção chegou certamente quando o fiel
começa a encontrar-se em perigo de morte, devido a doença ou a velhice.
1529. Todas as vezes que um cristão cai gravemente enfermo, pode receber a Santa Unção;
e também quando, mesmo depois de a ter recebido, a doença se agrava.
1530. Só os sacerdotes (presbíteros e bispos) podem ministrar o sacramento da Unção dos
Enfermos; para isso, empregarão óleo benzido pelo bispo ou, em caso de necessidade, pelo
próprio presbítero celebrante.
1531. 0 essencial da celebração deste sacramento consiste na unção na fronte e nas mãos do
doente (no rito romano) ou sobre outras partes do corpo (no Oriente), unção acompanhada
da oração litúrgica do sacerdote celebrante que pede a graça especial deste sacramento.
1532. A graça especial do sacramento da Unção dos Enfermos tem como efeitos:
– a união do doente à paixão de Cristo, para o seu bem e para o de toda a Igreja; – o con-
forto, a paz e a coragem para suportar cristãmente os sofrimentos da doença ou da velhice;
– o perdão dos pecados, se o doente não pôde obtê-lo pelo sacramento da Penitência; – o
restabelecimento da saúde, se tal for conveniente para a salvação espiritual; – a preparação
para a passagem para vida eterna.
CAPÍTULO SEGUNDO
OS SACRAMENTOS AO SERVIÇO DA COMUNHÃO

1533. O Baptismo, a Confirmação e a Eucaristia são os sacramentos da iniciação cristã. São o


fundamento da vocação comum de todos os discípulos de Cristo – vocação à santidade e à
missão de evangelizar o mundo. E conferem as graças necessárias para a vida segundo o
Espírito, nesta existência de peregrinos em marcha para a Pátria.
1534. Dois outros sacramentos, a Ordem e o Matrimónio, são ordenados para a salvação de
outrem. Se contribuem também para a salvação pessoal, é através do serviço aos outros que o
fazem. Conferem uma missão particular na Igreja, e servem a edificação do povo de Deus.
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1535. Nestes sacramentos, aqueles que já foram consagrados pelo Baptismo e pela Confirm-
ação (1) para o sacerdócio comum de todos os fiéis, podem receber consagrações particulares.
Os que recebem o sacramento da Ordem são consagrados para serem, em nome de Cristo,
«com a palavra e a graça de Deus, os pastores da igreja» (2). Por seu lado, «os esposos cristãos
são fortalecidos e como que consagrados por meio de um sacramento especial em ordem ao
digno cumprimento dos deveres do seu estado» (3).

ARTIGO 6

O SACRAMENTO DA ORDEM

1536. A Ordem é o sacramento graças ao qual a missão confiada por Cristo aos Apóstolos
continua a ser exercida na Igreja, até ao fim dos tempos: é, portanto, o sacramento do min-
istério apostólico. E compreende três graus: o episcopado, o presbiterado e o diaconado.
[Sobre a instituição e a missão do ministério apostólico por Cristo ver os números 874-896.
Aqui apenas se trata da via sacramental pela qual se transmite este ministério].

I. Porquê este nome de sacramento da Ordem?

1537. A palavra Ordem, na antiguidade romana, designava corpos constituídos no sentido


civil, sobretudo o corpo dos que governavam, Ordinatio designa a integração num ordo. Na
Igreja existem corpos constituídos, que a Tradição, não sem fundamento na Sagrada Escritura
(4), designa, desde tempos antigos, com o nome de táxeis (em grego), ordines (em latim): a
liturgia fala assim do ordo episcoporum – ordem dos bispos –,do ordo presbyterorum - or-
dem dos presbíteros – e do ordo diaconorum –ordem dos diáconos. Há outros grupos que
também recebem este nome de ordo: os catecúmenos, as virgens, os esposos, as viúvas...
1538. A integração num destes corpos da Igreja fazia-se através dum rito chamado ordinatio,
acto religioso e litúrgico que era uma consagração, uma bênção ou um sacramento. Hoje, a pa-
lavra ordinatio é reservada ao acto sacramental que integra na ordem dos bispos, dos pres-
bíteros e dos diáconos, e que ultrapassa a simples eleição, designação, delegação ou institu-
ição pela comunidade, pois confere um dom do Espírito Santo que permite o exercício dum
«poder sagrado» (sacra potestas) (5) que só pode vir do próprio Cristo, pela sua Igreja. A or-
denação também é chamada consecratio consagração –, porque é um pôr à parte e uma in-
vestidura feita pelo próprio Cristo para a sua Igreja. A imposição das mãos do bispo, com a
oração consecratória, constituem o sinal visível desta consagração.

II. O sacramento da Ordem na economia da salvação

O SACERDÓCIO DA ANTIGA ALIANÇA

1539. O povo eleito foi constituído por Deus como «um reino de sacerdotes e uma nação con-
sagrada» (Ex 19, 6) (6). Mas, dentro do povo de Israel, Deus escolheu uma das doze tribos, a
de Levi, segregada para o serviço litúrgico (7) o próprio Deus é a sua parte na herança (8). Um
rito próprio consagrou as origens do sacerdócio da Antiga Aliança (9). Nela, os sacerdotes são
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«constituídos em favor dos homens, nas coisas respeitantes a Deus, para oferecer dons e sacri-
fícios pelos pecados» (10).
1540. Instituído para anunciar a Palavra de Deus (11) e para restabelecer a comunhão com
Deus pelos sacrifícios e a oração, aquele sacerdócio é, no entanto, impotente para operar a sal-
vação, precisando de repetir sem cessar os sacrifícios, sem poder alcançar uma santificação
definitiva (12) a qual só o sacrifício de Cristo havia de conseguir.
1541. Apesar disso, no sacerdócio de Aarão e no serviço dos levitas, assim como na instituição
dos setenta «Anciãos» (13), a liturgia da Igreja vê prefigurações do ministério ordenado da
Nova Aliança. Assim, no rito latino, a Igreja pede, na oração consecratória da ordenação dos
bispos:
«Senhor Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo [...] por vossa palavra e vosso dom in-
stituístes a Igreja com as suas normas fundamentais, eternamente predestinastes a geração
dos justos que havia de nascer de Abraão, estabelecestes príncipes e sacerdotes, e não
deixastes sem ministério o vosso santuário...» (14).
1542. Na ordenação dos presbíteros, a Igreja reza:
«Senhor, Pai santo, [...] já na Antiga Aliança se desenvolveram funções sagradas que eram
sinais do sacramento novo. A Moisés e a Aarão, que pusestes à frente do povo para o conduzir-
em e santificarem, associastes como seus colaboradores outros homens também escolhidos
por Vós. No deserto, comunicastes o espírito de Moisés a setenta homens prudentes, com o
auxílio dos quais ele governou mais facilmente o vosso povo. Do mesmo modo, as graças
abundantes concedidas a Aarão. Vós as transmitistes a seus filhos, a fim de não faltarem sa-
cerdotes, segundo a Lei, para oferecer os sacrifícios do templo, sombra dos bens futuros...»
(15).
1543. E na oração consecratória para a ordenação dos diáconos, a Igreja confessa:
«Senhor, Pai santo, [...] é o novo templo que se edifica quando estabeleceis os três graus dos
ministros sagrados para servirem ao vosso nome, como já na primeira Aliança escolhestes os
filhos de Levi, para o serviço do templo antigo» (16).

O SACERDÓCIO ÚNICO DE CRISTO

1544. Todas as prefigurações do sacerdócio da Antiga Aliança encontram a sua realização em


Jesus Cristo, «único mediador entre Deus e os homens» (1 Tm 2, 5). Melquisedec, «sacerdote
do Deus Altíssimo» (Gn 14, 18), é considerado pela Tradição cristã como uma prefiguração do
sacerdócio de Cristo, único «Sumo-Sacerdote segundo a ordem de Melquisedec» (Heb 5, l0; 6,
20), «santo, inocente, sem mancha» (Heb 7, 26), que «com uma única oblação, tornou perfei-
tos para sempre os que foram santificados» (Heb 10, 14), isto é, pelo único sacrifício da sua
cruz.
1545. O sacrifício redentor de Cristo é único, realizado uma vez por todas. E no entanto, é tor-
nado presente no sacrifício eucarístico da Igreja. O mesmo se diga do sacerdócio único de
Cristo, que é tornado presente pelo sacerdócio ministerial, sem diminuição da unicidade do
sacerdócio de Cristo: «e por isso, só Cristo é verdadeiro sacerdote, sendo os outros seus minis-
tros» (17).

DUAS PARTICIPAÇÕES NO SACERDÓCIO ÚNICO DE CRISTO


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1546. Cristo, sumo sacerdote e único mediador, fez da Igreja «um reino de sacerdotes para
Deus seu Pai» (18). Toda a comunidade dos crentes, como tal, é uma comunidade sacerdotal.
Os fiéis exercem o seu sacerdócio baptismal através da participação, cada qual segundo a sua
vocação própria, na missão de Cristo, sacerdote, profeta e rei. É pelos sacramentos do
Baptismo e da Confirmação que os fiéis são «consagrados para serem [...] um sacerdócio
santo» (19).
1547. O sacerdócio ministerial ou hierárquico dos bispos e dos presbíteros e o sacerdócio
comum de todos os fiéis – embora «um e outro, cada qual segundo o seu modo próprio, parti-
cipem do único sacerdócio de Cristo» (20) – são, no entanto, essencialmente diferentes ainda
que sendo «ordenados um para o outro» (21). Em que sentido? Enquanto o sacerdócio
comum dos fiéis se realiza no desenvolvimento da vida baptismal – vida de fé, esperança e
caridade, vida segundo o Espírito – o sacerdócio ministerial está ao serviço do sacerdócio
comum, ordena-se ao desenvolvimento da graça baptismal de todos os cristãos. É um dos
meios pelos quais Cristo não cessa de construir e guiar a sua igreja. E é por isso que é trans-
mitido por um sacramento próprio, que é o sacramento da Ordem.

NA PESSOA DE CRISTO CABEÇA...

1548. No serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente à sua
Igreja, como Cabeça do seu corpo, Pastor do seu rebanho, Sumo-Sacerdote do sacrifício re-
dentor, mestre da verdade. É o que a Igreja exprime quando diz que o padre, em virtude do
sacramento da Ordem, age in persona Christi Capitis – na pessoa de Cristo Cabeça (22):
«É o mesmo Sacerdote, Jesus Cristo, de quem realmente o ministro faz as vezes. Se realmente
o ministro é assimilado ao Sumo-Sacerdote, em virtude da consagração sacerdotal que rece-
beu, goza do direito de agir pelo poder do próprio Cristo que representa 'virtute ac persona ip-
sius Christi'» (23).
«Cristo é a fonte de todo o sacerdócio: pois o sacerdócio da [antiga] lei era figura d'Ele, ao
passo que o sacerdote da nova lei age na pessoa d'Ele» (24).
1549. Pelo ministério ordenado, especialmente dos bispos e padres, a presença de Cristo
como cabeça da Igreja torna-se visível no meio da comunidade dos crentes (25). Segundo a
bela expressão de Santo Inácio de Antioquia, o bispo é týpos toû Patrós, como que a imagem
viva de Deus Pai (26).
1550. Esta presença de Cristo no seu ministro não deve ser entendida como se este estivesse
premunido contra todas as fraquezas humanas, contra o afã de domínio, contra os erros, isto
é, contra o pecado. A força do Espírito Santo não garante do mesmo modo todos os actos do
ministro. Enquanto que nos sacramentos esta garantia é dada, de maneira que nem mesmo o
pecado do ministro pode impedir o fruto da graça, há muitos outros actos em que a condição
humana do ministro deixa vestígios, que nem sempre são sinal de fidelidade ao Evangelho e
podem, por conseguinte, prejudicar a fecundidade apostólica da Igreja.
1551. Este sacerdócio é ministerial. «O encargo que o Senhor confiou aos pastores do seu
Povo é um verdadeiro serviço» (27). Refere-se inteiramente a Cristo e aos homens. Depende
inteiramente de Cristo e do seu sacerdócio único, e foi instituído em favor dos homens e da
comunidade da Igreja. O sacramento da Ordem comunica «um poder sagrado», que não é
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senão o de Cristo. O exercício desta autoridade deve, pois, regular-se pelo modelo de Cristo,
que por amor Se fez o último e servo de todos (28). «O Senhor disse claramente que o cuidado
dispensado ao seu rebanho seria uma prova de amor para com Ele» (29).

...«EM NOME DE TODA A IGREJA»

1552. O sacerdócio ministerial não tem somente o encargo de representar Cristo. cabeça da
Igreja, perante a assembleia dos fiéis; age também em nome de toda a Igreja, quando ap-
resenta a Deus a oração da mesma Igreja (30) e, sobretudo, quando oferece o sacrifício eu-
carístico (31).
1553. «Em nome de toda a Igreja» não quer dizer que os sacerdotes sejam os delegados da
comunidade. A oração e a oferenda da Igreja são inseparáveis da oração e da oferenda de
Cristo, sua cabeça. É sempre o culto de Cristo na e pela sua Igreja. É toda a Igreja, corpo de
Cristo, que ora e se oferece, «por Cristo, com Cristo, em Cristo», na unidade do Espírito Santo,
a Deus Pai. Todo o corpo, caput et memora – cabeça e membros –, ora e oferece-se; e, por
isso, aqueles que, no corpo, são de modo especial os ministros, chamam-se ministros não
apenas de Cristo, mas também da Igreja. É porque representa Cristo, que o sacerdócio minis-
terial pode representar a Igreja.

III. Os três graus do sacramento da Ordem

1554. «O ministério eclesiástico, instituído por Deus, é exercido em ordens diversas por
aqueles que, desde a antiguidade, são chamados bispos, presbíteros e diáconos» (32). A
doutrina católica, expressa na liturgia, no Magistério e na prática constante da Igreja, recon-
hece que existem dois graus de participação ministerial no sacerdócio de Cristo: o episcopado
e o presbiterado. O diaconado destina-se a ajudá-los e a servi-los. Por isso, o termo
«sacerdos» designa, no uso actual, os bispos e os presbíteros, mas não os diáconos. Todavia, a
doutrina católica ensina que os graus de participação sacerdotal (episcopado e presbiterado) e
o grau de serviço (diaconado), todos três são conferidos por um acto sacramental chamado
«ordenação», ou seja, pelo sacramento da Ordem.
«Reverenciem todos os diáconos como a Jesus Cristo e de igual modo o bispo que é a imagem
do Pai, e os presbíteros como o senado de Deus e como a assembleia dos Apóstolos: sem eles,
não se pode falar de Igreja» (33).

A ORDENAÇÃO EPISCOPAL – PLENITUDE DO SACRAMENTO DA ORDEM

1555. «Entre os vários ministérios, que na Igreja se exercem desde os primeiros tempos, con-
sta da Tradição que o principal é o daqueles que, constituídos no episcopado através de uma
sucessão que remonta às origens, são os transmissores da semente apostólica» (34).
1556. Para desempenhar a sua sublime missão, «os Apóstolos foram enriquecidos por Cristo
com uma efusão especial do Espírito Santo, que sobre eles desceu: e pela imposição das mãos
eles próprios transmitiram aos seus colaboradores este dom espiritual que foi transmitido até
aos nossos dias através da consagração episcopal» (35).
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1557. O II Concílio do Vaticano «ensina que, pela consagração episcopal, se confere a plenit-
ude do sacramento do Ordens, à qual o costume litúrgico da Igreja e a voz dos santos Padres
chamam sumo sacerdócio e vértice ["summa"] do sagrado ministério» (36).
1558. «A consagração episcopal, juntamente com a função de santificar, confere também as
funções de ensinar e governar [...] De facto, pela imposição das mãos e pelas palavras da con-
sagração, a graça do Espírito Santo é dada e é impresso o carácter sagrado, de tal modo que os
bispos fazem as vezes, de uma forma eminente e visível, do próprio Cristo, Mestre, Pastor e
Pontífice, e actuam em vez d'Ele [«in Eius persona agant»]» (37). Por isso, pelo Espírito
Santo que lhes foi dado, os bispos foram constituídos verdadeiros e autênticos mestres da fé,
pontífices e pastores» (38).
1559. «É em virtude da consagração episcopal e pela comunhão hierárquica com a cabeça e os
membros do colégio que alguém é constituído membro do corpo episcopal» (39).O carácter e
a natureza colegial da ordem episcopal manifestam-se, entre outros modos, na antiga prática
da Igreja que exige, para a consagração dum novo bispo, a participação de vários bispos (40).
Para a ordenação legítima dum bispo requer-se, hoje, uma intervenção especial do bispo de
Roma, em virtude da sua qualidade de supremo vínculo visível da comunhão das Igrejas par-
ticulares na Igreja una, e de garante da sua liberdade.
1560. Cada bispo tem, como vigário de Cristo, o encargo pastoral da Igreja particular que lhe
foi confiada. Mas, ao mesmo tempo, partilha colegialmente com todos os seus irmãos no epis-
copado a solicitude por todas as Igrejas: «Se cada bispo é pastor próprio apenas da porção do
rebanho que foi confiada aos seus cuidados, a sua qualidade de legítimo sucessor dos Apósto-
los, por instituição divina, torna-o solidariamente responsável pela missão apostólica da
Igreja» (41).
1561. Tudo o que acaba de ser dito explica porque é que a Eucaristia celebrada pelo bispo tem
uma significação muito especial como expressão da Igreja reunida em torno do altar sob a
presidência daquele que representa visivelmente Cristo, bom Pastor e Cabeça da sua Igreja
(42).

A ORDENAÇÃO DOS PRESBÍTEROS – COOPERADORES DOS BISPOS

1562. «Cristo, a Quem o Pai santificou e enviou ao mundo, por meio dos seus Apóstolos
tornou os bispos, que são sucessores deles, participantes da sua consagração e missão; e estes,
por sua vez, transmitem legitimamente o múnus do seu ministério em grau diverso e a diver-
sos sujeitos na Igreja» (43). O seu cargo ministerial foi transmitido em grau subordinado aos
presbíteros, para que, constituídos na Ordem do presbiterado, fossem cooperadores da Or-
dem episcopal para o desempenho perfeito da missão apostólica confiada por Cristo» (44).
1563. «O ofício dos presbíteros, enquanto unido à Ordem episcopal, participa da autoridade
com que o próprio Cristo edifica, santifica e governa o seu corpo. Por isso, o sacerdócio dos
presbíteros, embora pressuponha os sacramentos da iniciação cristã, é conferido mediante um
sacramento especial, em virtude do qual os presbíteros, mediante a unção do Espírito Santo,
ficam assinalados com um carácter particular e, dessa maneira, configurados a Cristo- Sacer-
dote, de tal modo que possam agir em nome e na pessoa de Cristo Cabeça» (45).
1564. «Os presbíteros, embora não possuam o pontificado supremo e dependam dos bispos
no exercício do próprio poder, todavia estão-lhes unidos na honra do sacerdócio; e, por
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virtude do sacramento da Ordem, são consagrados, à imagem de Cristo, sumo e eterno sacer-
dote (46), para pregar o Evangelho, ser pastores dos fiéis e celebrar o culto divino como ver-
dadeiros sacerdotes do Novo Testamento (47).
1565. Em virtude do sacramento da Ordem, os sacerdotes participam das dimensões univer-
sais da missão confiada por Cristo aos Apóstolos. O dom espiritual que receberam na
ordenação prepara-os, não para uma missão limitada e restrita, «mas sim para uma missão de
salvação de amplitude universal, "até aos confins da terra"» (48), «dispostos, no seu coração,
a pregar o Evangelho em toda a parte» (49).
1566. «É no culto ou sinaxe eucarística que, por excelência exercem o seu múnus sagrado:
nela, agindo na pessoa de Cristo e proclamando o seu mistério, unem as preces dos fiéis ao
sacrifício da cabeça e, no sacrifício da Missa, tornam presente e aplicam, até à vinda do Sen-
hor, o único sacrifício do Novo Testamento, o de Cristo, o qual de uma vez por todas se ofere-
ceu ao Pai, como hóstia imaculada» (50). É deste sacrifício único que todo o seu ministério sa-
cerdotal tira a própria força (51).
1567. «Cooperadores esclarecidos da Ordem episcopal, sua ajuda e instrumento, chamados
para o serviço do povo de Deus, os presbíteros constituem com o seu bispo um único presby-
terium com diversas funções. Onde quer que se encontre uma comunidade de fiéis, eles tor-
nam de certo modo, presente o bispo, ao qual estão associados, de ânimo fiel e generoso, e cu-
jos encargos e solicitude assumem, segundo a própria medida, traduzindo-os na prática do
cuidado quotidiano dos fiéis» (52). Os presbíteros só podem exercer o seu ministério na de-
pendência do bispo e em comunhão com ele. A promessa de obediência, que fazem ao bispo
no momento da ordenação, e o ósculo da paz dado pelo bispo no final da liturgia de orde-
nação, significam que o bispo os considera seus colaboradores, filhos, irmãos e amigos e que,
em contrapartida, eles lhe devem amor e obediência.
1568. «Os presbíteros, elevados pela ordenação à Ordem do presbiterado, estão unidos entre
si numa íntima fraternidade sacramental. Especialmente na diocese, a cujo serviço, sob o
bispo respectivo, estão consagrados, formam um só presbitério» (53). A unidade do pres-
bitério tem uma expressão litúrgica no costume segundo o qual, durante o rito da ordenação
presbiterial, os presbíteros impõem também eles as mãos, depois do bispo.

A ORDENAÇÃO DO DIÁCONOS – «EM VISTA DO SERVIÇO»

1569. «No grau inferior da hierarquia estão os diáconos, aos quais foram impostas as mãos,
"não em vista do sacerdócio, mas do serviço"» (54). Para a ordenação no diaconado, só o bispo
é que impõe as mãos, significando com isso que o diácono está especialmente ligado ao bispo
nos encargos próprios da sua « diaconia» (55).
1570. Os diáconos participam de modo especial na missão e na graça de Cristo (56). O sacra-
mento da Ordem marca-os com um selo («carácter») que ninguém pode fazer desaparecer e
que os configura com Cristo, que se fez «diácono», isto é, o servo de todos (57). Entre outros
serviços, pertence aos diáconos assistir o bispo e os sacerdotes na celebração dos divinos mis-
térios, sobretudo da Eucaristia, distribuí-la, assistir ao Matrimónio e abençoá-lo, proclamar o
Evangelho e pregar, presidir aos funerais e consagrar-se aos diversos serviços da caridade
(58).
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1571. A partir do II Concílio do Vaticano, a Igreja latina restabeleceu o diaconado «como grau
próprio e permanente da hierarquia» (59), enquanto as Igrejas do Oriente o tinham sempre
mantido. Este diaconado permanente, que pode ser conferido a homens casados, constitui
um enriquecimento importante para a missão da Igreja. Com efeito, é apropriado e útil que
homens, cumprindo na Igreja um ministério verdadeiramente diaconal, quer na vida litúrgica
e pastoral, quer nas obras sociais e caritativas, «sejam fortificados pela imposição das mãos,
transmitida desde os Apóstolos, e mais estreitamente ligados ao altar, para que cumpram o
seu ministério mais eficazmente por meio da graça sacramental do diaconado» (60).

IV. A celebração deste sacramento

1572. A celebração da ordenação dum bispo, de presbíteros ou de diáconos, dada a sua im-
portância na vida duma Igreja particular, requer o concurso do maior número possível de
fiéis. Terá lugar, de preferência, ao domingo e na Sé catedral, com solenidade adequada à cir-
cunstância. As três ordenações – do bispo, do presbítero e do diácono – seguem o mesmo es-
quema. O lugar próprio de sua celebração é dentro da liturgia eucarística.
1573. O rito essencial do sacramento da Ordem é constituído, para os três graus, pela im-
posição das mãos, por parte do bispo, sobre a cabeça do ordinando, bem como pela oração
consecratória específica, que pede a Deus a efusão do Espírito Santo e dos seus dons apropria-
dos ao ministério para que é ordenado o candidato (61).
1574. Como em todos os sacramentos, ritos anexos envolvem a celebração. Variando muito
nas diversas tradições litúrgicas, tem todos um traço comum: exprimem os múltiplos aspectos
da graça sacramental. Assim, os ritos iniciais, no rito latino – a apresentação e a eleição do or-
dinando, a alocução do bispo, o interrogatório do ordinando, as ladainhas dos santos – atest-
am que a escolha do candidato se fez em conformidade com o costume da Igreja e preparam o
acto solene da consagração depois da qual vários ritos vêm exprimir e completar, de modo
simbólico, o mistério realizado: para o bispo e para o sacerdote, a unção com o santo crisma,
sinal da unção especial do Espírito Santo, que torna fecundo o seu ministério; entrega do livro
dos Evangelhos do anel, da mitra e do báculo ao bispo, em sinal da sua missão apostólica de
anunciar a Palavra de Deus, da sua fidelidade à Igreja, esposa de Cristo, do seu múnus de pas-
tor do rebanho do Senhor: para o presbítero, entrega da patena e do cálice, «a oferenda do
povo santo» (62) que ele é chamado a apresentar a Deus; para o diácono, entrega do livro dos
Evangelhos, pois acaba de receber a missão de anunciar o Evangelho de Cristo.

V. Quem pode conferir este sacramento?

1575. Foi Cristo quem escolheu os Apóstolos e lhes deu parte na sua missão e autoridade. De-
pois de ter subido à direita do Pai, Cristo não abandona o seu rebanho, antes continuamente o
guarda por meio dos Apóstolos com a sua protecção e continua a dirigi-lo através destes mes-
mos pastores que hoje prosseguem a sua obra (63). É pois Cristo «quem dá», a uns serem
apóstolos, a outros serem pastores (64). E continua agindo por meio dos bispos (65).
1576. Uma vez que o sacramento da Ordem é o sacramento do ministério apostólico, pertence
aos bispos, enquanto sucessores dos Apóstolos, transmitir «o dom espiritual» (66), «a
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semente apostólica» (67). Os bispos validamente ordenados, isto é, que estão na linha da su-
cessão apostólica, conferem validamente os três graus do sacramento da Ordem (68).

VI. Quem pode receber este sacramento?

1577. «Só o varão (vir) baptizado pode receber validamente a sagrada ordenação» (69). O
Senhor Jesus escolheu homens (viri) para formar o colégio dos Doze Apóstolos (70), e o
mesmo fizeram os Apóstolos quando escolheram os seus colaboradores (71) para lhes suceder-
em no desempenho do seu ministério (72). O Colégio dos bispos, a que os presbíteros estão
unidos no sacerdócio, torna presente e actualiza, até que Cristo volte, o Colégio dos Doze. A
Igreja reconhece-se vinculada por essa escolha feita pelo Senhor em pessoa. É por isso que a
ordenação das mulheres não é possível (73).
1578. Ninguém tem direito a receber o sacramento da Ordem. Com efeito, ninguém pode
arrogar-se tal encargo. É-se chamado a ele por Deus (74). Aquele que julga reconhecer em si
sinais do chamamento divino ao ministério ordenado, deve submeter humildemente o seu
desejo à autoridade da Igreja, à qual incumbe a responsabilidade e o direito de chamar alguém
para receber as Ordens. Como toda e qualquer graça, este sacramento só pode ser recebido
como um dom imerecido.
1579. Todos os ministros ordenados da Igreja latina, à excepção dos diáconos permanentes,
são normalmente escolhidos entre homens crentes que vivem celibatários e têm vontade de
guardar o celibato «por amor do Reino dos céus» (Mt 19, 12). Chamados a consagrarem-se
totalmente ao Senhor e às «suas coisas» (75) dão-se por inteiro a Deus e aos homens. O celib-
ato é um sinal desta vida nova, para cujo serviço o ministro da Igreja é consagrado: aceite de
coração alegre, anuncia de modo radioso o Reino de Deus (76).
1580. Nas Igrejas orientais vigora, desde há séculos, uma disciplina diferente: enquanto os
bispos são escolhidos unicamente entre os celibatários, homens casados podem ser ordenados
diáconos e presbíteros. Esta prática é, desde há muito tempo, considerada legítima: estes sa-
cerdotes exercem um ministério frutuoso nas suas comunidades (77). Mas, por outro lado, o
celibato dos sacerdotes é tido em muita honra nas Igrejas orientais e são numerosos aqueles
que livremente optam por ele, por amor do Reino de Deus. Tanto no Oriente como no
Ocidente, aquele que recebeu o sacramento da Ordem já não pode casar-se.

VII. Os efeitos do sacramento da Ordem

O CARÁCTER INDELÉVEL

1581. Este sacramento configura o ordinando com Cristo por uma graça especial do Espírito
Santo, a fim de servir de instrumento de Cristo em favor da sua Igreja. Pela ordenação, rece-
be- se a capacidade de agir como representante de Cristo, cabeça da Igreja. na sua tríplice fun-
ção de sacerdote, profeta e rei.
1582. Tal como no caso do Baptismo e da Confirmação, esta participação na função de Cristo
é dada uma vez por todas. O sacramento da Ordem confere, também ele, um carácter espir-
itual indelével, e não pode ser repetido nem conferido para um tempo limitado (78).
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1583. Uma pessoa validamente ordenada pode, é certo, por graves motivos, ser dispensada
das obrigações e funções decorrentes da ordenação, ou ser proibido de as exercer (79): mas já
não pode voltar a ser leigo, no sentido estrito (80), porque o carácter impresso pela ordenação
fica para sempre. A vocação e a missão recebidas no dia da ordenação marcam-no de modo
permanente.
1584. Uma vez que é Cristo, afinal, quem age e opera a salvação através do ministro orde-
nado, a indignidade deste não impede Cristo de agir (81). Santo Agostinho di-lo numa lin-
guagem vigorosa:
«Quanto ao ministro orgulhoso, deve ser contado juntamente com o diabo. E nem por isso se
contamina o dom de Cristo: o que através de tal ministro se comunica, conserva a sua pureza:
o que passa por ele mantém-se límpido e chega até à terra fértil. [...] De facto, a virtude espir-
itual do sacramento é semelhante à luz: os que devem ser iluminados recebem-na na sua
pureza, e ela, embora atravesse seres manchados, não se suja» (82).

A GRAÇA DO ESPÍRITO SANTO

1585. A graça do Espírito Santo própria deste sacramento consiste numa configuração com
Cristo, Sacerdote, Mestre e Pastor, de quem o ordenado é constituído ministro.
1586. Para o bispo, é, em primeiro lugar, uma graça de fortaleza («Spiritum principalem –
Espírito soberano», isto é, Espírito que faz chefes, pede a oração de consagração do bispo, no
rito latino (83)): a graça de guiar e defender, com força e prudência, a sua Igreja, como pai e
pastor, com amor desinteressado para com todos e uma predilecção pelos pobres, os enfermos
e os necessitados (84). Esta graça impele-o a anunciar o Evangelho a todos, a ser o modelo do
seu rebanho, a ir adiante dele no caminho da santificação, identificando-se na Eucaristia com
Cristo sacerdote e vítima, sem recear dar a vida pelas suas ovelhas:
«Ó Pai, que conheceis os corações, concedei ao vosso servo, que escolhestes para o epis-
copado, a graça de apascentar o vosso santo rebanho e de exercer de modo irrepreensível, di-
ante de Vós, o supremo sacerdócio, servindo-Vos noite e dia: que ele torne propício o vosso
rosto e ofereça os dons da vossa santa Igreja: tenha, em virtude do Espírito do supremo sacer-
dócio, o poder de perdoar os pecados segundo o vosso mandamento, distribua os cargos se-
gundo a vossa ordem e desligue de todo o vínculo pelo poder que Vós destes aos Apóstolos:
que ele Vos agrade pela sua doçura e coração puro, oferecendo-Vos um perfume agradável,
por vosso Filho Jesus Cristo...» (85).
1587. O dom espiritual, conferido pela ordenação presbiterial, está expresso nesta oração pró-
pria do rito bizantino. O bispo, impondo as mãos, diz, entre outras coisas:
«Senhor, enchei do dom do Espírito Santo aquele que Vos dignastes elevar ao grau de pres-
bítero, para que seja digno de se manter irrepreensível diante do vosso altar, de anunciar o
Evangelho do vosso Reino, de desempenhar o ministério da vossa Palavra de verdade, de Vos
oferecer dons e sacrifícios espirituais, de renovar o vosso povo pelo banho da regeneração; de
modo que, ele próprio, vá ao encontro do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo, vosso
Unigénito, no dia da sua segunda vinda, e receba da vossa imensa bondade a recompensa dum
fiel desempenho do seu ministério» (86).
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1588. Quanto aos diáconos, «fortalecidos pela graça sacramental, servem o povo de Deus na
"diaconia" da liturgia, da palavra e da caridade, em comunhão com o bispo e o seu pres-
bitério» (87).
1589. Perante a grandeza da graça e do múnus sacerdotais, os santos doutores sentiram o
apelo urgente à conversão, a fim de corresponderem, por toda a sua vida, Àquele de Quem o
sacramento os constituiu ministros. É assim que São Gregário de Nazianzo, ainda jovem pres-
bítero. exclama:
«Temos de começar por nos purificar, antes de purificarmos os outros: temos de ser instruí-
dos, para podermos instruir: temos de nos tornar luz para alumiar, de nos aproximar de Deus
para podermos aproximar d'Ele os outros, ser santificados para santificar, conduzir pela mão
e aconselhar com inteligência» (88). «Eu sei de Quem somos ministros, a que nível nos en-
contramos e para onde nos dirigimos. Conheço as alturas de Deus e a fraqueza do homem,
mas também a sua força» (89). [Quem é, pois, o sacerdote? Ele é] «o defensor da verdade,
eleva-se com os anjos glorifica com os arcanjos, faz subir ao altar do Alto as vítimas dos sacri-
fícios, participa no sacerdócio de Cristo, remodela a criatura, restaura [nela] a imagem [de
Deus], recria-a para o mundo do Alto e, para dizer o que há de mais sublime, é divinizado e
diviniza» (90).
E diz o santo Cura d'Ars: «É o sacerdote quem continua a obra da redenção na terra»... «Se
bem se compreendesse o que o sacerdote é na terra, morrer-se-ia, não de medo, mas de
amor». [...] «O sacerdócio é o amor do Coração de Jesus» (91).

Resumindo:

1590. São Paulo ao seu discípulo Timóteo: «Exorto-te a que reavives o dom que Deus depos-
itou em ti, pela imposição das minhas mãos» (2 Tm 1, 6), e «aquele que aspira ao lugar de
bispo, aspira a uma nobre função» (1 Tm 3, 1). A Tito, o mesmo Apóstolo dizia: «Se te deixei
em Creta, foi para acabares de organizar o que faltava e estabelecer anciãos em cada cid-
ade, como te havia ordenado» (Tt 1, 5).
1591. A Igreja é, na sua totalidade, um povo sacerdotal. Graças ao Baptismo, todos os fiéis
participam no sacerdócio de Cristo. Esta participação chama-se «sacerdócio comum dos
fiéis». Na base deste sacerdócio e ao seu serviço, existe uma outra participação na missão de
Cristo: a do ministério conferido pelo sacramento da Ordem, cuja missão é servir em nome e
na pessoa de Cristo-Cabeça no meio da comunidade.
1592. O sacerdócio ministerial difere essencialmente do sacerdócio comum dos fïéis, porque
confere um poder sagrado para o serviço dos mesmos fiéis. Os ministros ordenados exercem
o seu serviço junto do povo de Deus pelo ensino (munus docendi), pelo culto divino (munus
liturgicum) e pelo governo pastoral (munus regendi).
1593. Desde as origens, o ministério ordenado fui conferido e exercido em três graus: o dos
bispos, o dos presbíteros e o dos diáconos. Os ministérios conferidos pela ordenação são in-
substituíveis na estrutura orgânica da Igreja: sem bispo, presbíteros e diáconos, não pode
falar-se de Igreja (92).
1594. O bispo recebe a plenitude do sacramento da Ordem que o insere no colégio episcopal
e faz dele o chefe visível da Igreja particular que lhe é confiada. Os bispos, enquanto
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sucessores dos Apóstolos e membros do Colégio, têm parte na responsabilidade apostólica e


na missão de toda a Igreja, sob a autoridade do Papa, sucessor de São Pedro.
1595. Os presbíteros estão unidos aos bispos na dignidade sacerdotal e, ao mesmo tempo,
dependem deles no exercício das suas funções pastorais; são chamados a ser os co-
operadores providentes dos bispos; formam, d volta do seu bispo, o presbitério, que assume
com ele a responsabilidade da Igreja particular: Os presbíteros recebem do bispo o encargo
duma comunidade paroquial ou duma função eclesial determinada.
1596. Os diáconos são ministros ordenados para as tarefas de serviço da Igreja; não rece-
bem o sacerdócio ministerial, mas a ordenação confere-lhes funções importantes no min-
istério da Palavra, culto divino, governo pastoral e serviço da caridade, encargos que eles
devem desempenhar sob a autoridade pastoral do seu bispo.
1597. O sacramento da Ordem é conferido pela imposição das mãos, seguida duma solene
oração consecratória, que pede a Deus para o ordinando as graças do Espírito Santo, re-
queridas para o seu ministério. A ordenação imprime um carácter sacramental indelével.
1598. A Igreja confere o sacramento da Ordem somente a homens (viris) baptizados, cujas
aptidões para o exercício do ministério tenham sido devidamente reconhecidas. Compete à
autoridade da Igreja a responsabilidade e o direito de chamar alguém para receber a
Ordem.
1599. Na Igreja latina, o sacramento da Ordem para o presbiterado, normalmente, apenas
é conferido a candidatos decididos a abraçar livremente o celibato e que manifestem pub-
licamente a sua vontade de o guardar por amor do Reino de Deus e do serviço dos homens.
1600. Pertence aos bispos o direito de conferir o sacramento da Ordem nos seus três graus.

ARTIGO 7

O SACRAMENTO DO MATRIMÓNIO

1601. «O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si a comunhão
íntima de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e
educação da prole, entre os baptizados foi elevado por Cristo Senhor à dignidade de sacra-
mento» (93) .

I. O matrimónio no desígnio de Deus

1602. A Sagrada Escritura começa pela criação do homem e da mulher, à imagem e semel-
hança de Deus (94), e termina com a visão das «núpcias do Cordeiro» (Ap 19, 9) (95). Do
princípio ao fim, a Escritura fala do matrimónio e do seu «mistério», da sua instituição e do
sentido que Deus lhe deu, da sua origem e da sua finalidade, das suas diversas realizações ao
longo da história da salvação, das suas dificuldades nascidas do pecado e da sua renovação
«no Senhor» (1 Cor 7, 39), na Nova Aliança de Cristo e da Igreja (96).

O MATRIMÓNIO NA ORDEM DA CRIAÇÃO


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1603. «A íntima comunidade da vida e do amor conjugal foi fundada pelo Criador e dotada de
leis próprias [...]. O próprio Deus é o autor do matrimónio» (97). A vocação para o mat-
rimónio está inscrita na própria natureza do homem e da mulher, tais como saíram das mãos
do Criador. O matrimónio não é uma instituição puramente humana, apesar das numerosas
variações a que esteve sujeito no decorrer dos séculos, nas diferentes culturas, estruturas soci-
ais e atitudes espirituais. Tais diversidades não devem fazer esquecer os traços comuns e per-
manentes. Muito embora a dignidade desta instituição nem sempre e nem por toda a parte
transpareça com a mesma clareza (98), existe, no entanto, em todas as culturas, um certo sen-
tido da grandeza da união matrimonial. Porque «a saúde da pessoa e da sociedade está estreit-
amente ligada a uma situação feliz da comunidade conjugal e familiar» (99).
1604. Deus, que criou o homem por amor, também o chamou ao amor, vocação fundamental
e inata de todo o ser humano. Porque o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus
(100) que é amor (1 Jo 4, 8.16). Tendo-os Deus criado homem e mulher, o amor mútuo dos
dois torna-se imagem do amor absoluto e indefectível com que Deus ama o homem. É bom,
muito bom, aos olhos do Criador (101). E este amor, que Deus abençoa, está destinado a ser
fecundo e a realizar-se na obra comum do cuidado da criação: «Deus abençoou-os e disse-
lhes: "Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a"» (Gn 1, 28).
1605. Que o homem e a mulher tenham sido criados um para o outro, afirma-o a Sagrada
Escritura: «Não é bom que o homem esteja só» (Gn 2, 18). A mulher, «carne da sua carne»
(102), isto é, sua igual, a criatura mais parecida com ele, é-lhe dada por Deus como uma ,aux-
iliar» (103), representando assim aquele «Deus que é o nosso auxílio» (104). «Por esse
motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher: e os dois serão uma só
carne» (Gn 2, 24). Que isto significa uma unidade indefectível das duas vidas, o próprio Sen-
hor o mostra, ao lembrar qual foi, «no princípio», o desígnio do Criador (105): «Portanto, já
não são dois, mas uma só carne» (Mt 19, 6).

O MATRIMÓNIO SOB O REGIME DO PECADO

1606. Todo o homem faz a experiência do mal, à sua volta e em si mesmo. Esta experiência
faz-se também sentir nas relações entre o homem e a mulher. Desde sempre, a união de am-
bos foi ameaçada pela discórdia, o espírito de domínio, a infidelidade, o ciúme e conflitos
capazes de ir até ao ódio e à ruptura. Esta desordem pode manifestar-se de um modo mais ou
menos agudo e ser mais ou menos ultrapassada, conforme as culturas, as épocas, os indivídu-
os. Mas parece, sem dúvida, ter um carácter universal.
1607. Segundo a fé, esta desordem, que dolorosamente comprovamos, não procede da
natureza do homem e da mulher, nem da natureza das suas relações, mas do pecado. Ruptura
com Deus, o primeiro pecado teve como primeira consequência a ruptura da comunhão ori-
ginal do homem e da mulher. As suas relações são distorcidas por acusações recíprocas (106);
a atracção mútua, dom próprio do Criador (107), converte-se em relação de domínio e de cu-
pidez (108): a esplêndida vocação do homem e da mulher para serem fecundos,
multiplicarem-se e submeterem a terra (109) fica sujeita às dores do parto e do ganha-pão
(110).
1608. No entanto, a ordem da criação subsiste, apesar de gravemente perturbada. Para curar
as feridas do pecado, o homem e a mulher precisam da ajuda da graça que Deus, na sua
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misericórdia infinita, nunca lhes recusou (111). Sem esta ajuda, o homem e a mulher não po-
dem chegar a realizar a união das suas vidas para a qual Deus os criou «no princípio».

O MATRIMÓNIO SOB A PEDAGOGIA DA LEI

1609. Na sua misericórdia, Deus não abandonou o homem pecador. As penas que se
seguiram ao pecado, «as dores do parto» (112), o trabalho «com o suor do rosto» (Gn 3, 19),
constituem também remédios que reduzem os malefícios do pecado. Depois da queda, o mat-
rimónio ajuda a superar o auto-isolamento, o egoísmo, a busca do próprio prazer, e a abrir-se
ao outro, à mútua ajuda, ao dom de si.
1610. A consciência moral relativamente à unidade e indissolubilidade do matrimónio
desenvolveu-se sob a pedagogia da antiga Lei. A poligamia dos patriarcas e dos reis ainda não
é explicitamente rejeitada. No entanto, a Lei dada a Moisés visa proteger a mulher contra um
domínio arbitrário por parte do homem, ainda que a mesma Lei comporte também, segundo a
palavra do Senhor, vestígios da «dureza do coração» do homem, em razão da qual Moisés per-
mitiu o repúdio da mulher (113).
1611. Ao verem a Aliança de Deus com Israel sob a imagem dum amor conjugal, exclusivo e
fiel (114), os profetas prepararam a consciência do povo eleito para uma inteligência apro-
fundada da unicidade e indissolubilidade do matrimónio (115). Os livros de Rute e de Tobias
dão testemunhos comoventes do elevado sentido do matrimónio, da fidelidade e da ternura
dos esposos. E a Tradição viu sempre no Cântico dos Cânticos uma expressão única do amor
humano, enquanto reflexo do amor de Deus, amor «forte como a morte», que «nem as águas
caudalosas conseguem apagar» (Ct 8, 6-7).

O MATRIMÓNIO NO SENHOR

1612. A aliança nupcial entre Deus e o seu povo Israel tinha preparado a Aliança nova e
eterna, pela qual o Filho de Deus, encarnando e dando a sua vida, uniu a Si, de certo modo,
toda a humanidade por Ele salva (116), preparando assim as «núpcias do Cordeiro» (117).
1613. No umbral da sua vida pública, Jesus realiza o seu primeiro sinal –a pedido da sua Mãe
– por ocasião duma festa de casamento (118). A Igreja atribui uma grande importância à
presença de Jesus nas bodas de Caná. Ela vê nesse facto a confirmação da bondade do mat-
rimónio e o anúncio de que, doravante, o matrimónio seria um sinal eficaz da presença de
Cristo.
1614. Na sua pregação, Jesus ensinou sem equívocos o sentido original da união do homem e
da mulher, tal como o Criador a quis no princípio: a permissão de repudiar a sua mulher, dada
por Moisés, era uma concessão à dureza do coração (119): a união matrimonial do homem e
da mulher é indissolúvel: foi o próprio Deus que a estabeleceu: «Não separe, pois, o homem o
que Deus uniu» (Mt 19, 6).
1615. Esta insistência inequívoca na indissolubilidade do vínculo matrimonial pôde criar per-
plexidade e aparecer como uma exigência impraticável (120). No entanto, Jesus não impôs
aos esposos um fardo impossível de levar e pesado demais (121), mais pesado que a Lei de
Moisés. Tendo vindo restabelecer a ordem original da criação, perturbada pelo pecado, Ele
próprio dá a força e a graça de viver o matrimónio na dimensão nova do Reino de Deus. É
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seguindo a Cristo, na renúncia a si próprios e tornando a sua cruz (122), que os esposos poder-
ão «compreender» (123) o sentido original do matrimónio e vivê-lo com a ajuda de Cristo.
Esta graça do Matrimónio cristão é fruto da cruz de Cristo, fonte de toda a vida cristã.
1616. É o que o Apóstolo Paulo nos dá a entender, quando diz: «Maridos, amai as vossas mul-
heres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela, a fim de a santificar» (Ef 5, 25- 26): e
acrescenta imediatamente: «"Por isso o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulh-
er e serão os dois uma só carne". É grande este mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja»
(Ef 5, 31-32).
1617. Toda a vida cristã tem a marca do amor esponsal entre Cristo e a Igreja. Já o Baptismo,
entrada no povo de Deus, é um mistério nupcial: é, por assim dizer, o banho de núpcias (124)
que precede o banquete das bodas, a Eucaristia. O Matrimónio cristão, por sua vez, torna-se
sinal eficaz, sacramento da aliança de Cristo com a Igreja. E uma vez que significa e comunica
a graça desta aliança, o Matrimónio entre baptizados é um verdadeiro sacramento da Nova
Aliança (125).

A VIRGINDADE POR AMOR DO REINO

1618. Cristo é o centro de toda a vida cristã. A união com Ele prevalece sobre todas as outras,
quer se trate de laços familiares, quer sociais (126). Desde o princípio da Igreja, houve homens
e mulheres que renunciaram ao grande bem do matrimónio, para seguirem o Cordeiro aonde
quer que Ele vá (127), para cuidarem das coisas do Senhor, para procurarem agradar- Lhe
para saírem ao encontro do Esposo que vem (128). O próprio Cristo convidou alguns a
seguirem-n'O neste modo de vida, de que Ele é o modelo:
«Há eunucos que nasceram assim do seio materno; há os que foram feitos eunucos pelos ho-
mens; e há os que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do Reino dos céus. Quem puder
entender, entenda!» (Mt 19, 12).
1619. A virgindade por amor do Reino dos céus é um desenvolvimento da graça baptismal,
um sinal poderoso da preeminência da união com Cristo e da espera fervorosa do seu re-
gresso, um sinal que lembra também que o matrimónio é uma realidade do tempo presente,
que é passageiro (130).
1620. Quer, o sacramento do Matrimónio, quer a virgindade por amor do Reino de Deus, vêm
do próprio Senhor. É Ele que lhes dá sentido e concede a graça indispensável para serem
vividos em conformidade com a sua vontade (131). A estima pela virgindade por amor do
Reino (132) e o sentido cristão do matrimónio são inseparáveis e favorecem-se mutuamente:
«Denegrir o Matrimónio é, ao mesmo tempo, diminuir a glória da virgindade: enaltecê-lo é
realçar a admiração devida à virgindade [...] Porque, no fim de contas, o que só em com-
paração com um mal parece bom, não pode ser um verdadeiro bem: mas o que ainda é melhor
do que bens incontestados, esse é que é o bem por excelência» (133)

II. A celebração do Matrimónio

1621. No rito latino, a celebração do Matrimónio entre dois fiéis católicos tem lugar normal-
mente no decorrer da santa Missa, em virtude da ligação de todos os sacramentos com o mis-
tério pascal de Cristo (134). Na Eucaristia realiza-se o memorial da Nova Aliança, pela qual
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Cristo se uniu para sempre à Igreja, sua esposa bem-amada, por quem se entregou (135). Por
isso, é conveniente que os esposos selem o seu consentimento à doação recíproca pela ofer-
enda das próprias vidas, unindo-a à oblação de Cristo pela sua Igreja, tornada presente no
sacrifício eucarístico, e recebendo a Eucaristia, para que, comungando o mesmo corpo e o
mesmo sangue de Cristo, «formem um só corpo» em Cristo (136).
1622. «Enquanto acção sacramental de santificação, a celebração litúrgica do Matrimónio
[...] deve ser por si mesma válida, digna e frutuosa» (137). Por isso, é conveniente que os fu-
turos esposos se preparem para a celebração do seu Matrimónio, recebendo o sacramento da
Penitência.
1623. Segundo a tradição latina, são os esposos quem, como ministros da graça de Cristo,
mutuamente se conferem o sacramento do Matrimónio, ao exprimirem, perante a Igreja, o seu
consentimento. Nas tradições das Igrejas orientais, os sacerdotes que oficiam – Bispos ou
presbíteros – são testemunhas do mútuo consentimento manifestado pelos esposos (138),
mas a sua bênção também é necessária para a validade do sacramento (139).
1624. As diversas liturgias são ricas em orações de bênção e de epiclese, pedindo a Deus a sua
graça e invocando a sua bênção sobre o novo casal, especialmente sobre a esposa. Na epiclese
deste sacramento, os esposos recebem o Espírito Santo como comunhão do amor de Cristo e
da Igreja (140). É Ele o selo da aliança de ambos, a nascente sempre oferecida do seu amor, a
força pela qual se renovará a sua fidelidade.

III. O consentimento matrimonial

1625. Os protagonistas da aliança matrimonial são um homem e uma mulher baptizados,


livres para contrair Matrimónio e que livremente exprimem o seu consentimento. «Ser livre»
quer dizer:
– não ser constrangido; – não estar impedido por nenhuma lei natural nem eclesiástica.
1626. A Igreja considera a permuta dos consentimentos entre os esposos como o elemento in-
dispensável «que constitui o Matrimónios (141). Se faltar o consentimento, não há
Matrimónio.
1627. O consentimento consiste num «acto humano pelo qual os esposos se dão e se recebem
mutuamente» (142): «Eu recebo-te por minha esposa. Eu recebo-te por meu esposo» (143).
Este consentimento, que une os esposos entre si, tem a sua consumação no facto de os dois
«se tornarem uma só carne» (144).
1628. O consentimento deve ser um acto da vontade de cada um dos contraentes, livre de vi-
olência ou de grave temor externo (145). Nenhum poder humano pode substituir-se a este
consentimento (146). Faltando esta liberdade, o matrimónio é inválido.
1629. Por este motivo (ou por outras razões, que tornem nulo ou não realizado o casamento)
(147), a Igreja pode, depois de examinada a situação pelo tribunal eclesiástico competente, de-
clarar «a nulidade do Matrimónio», ou seja, que o Matrimónio nunca existiu. Em tal caso, os
contraentes ficam livres para se casarem, salvaguardadas as obrigações naturais resultantes
da união anterior (148).
1630. O sacerdote (ou o diácono), que assiste à celebração do Matrimónio, recebe o consenti-
mento dos esposos em nome da Igreja e dá a bênção da Igreja. A presença do ministro da
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Igreja (bem como das testemunhas) exprime visivelmente que o Matrimónio é uma realidade
eclesial.
1631. É por esse motivo que, normalmente, a Igreja exige para os seus fiéis a forma
eclesiástica da celebração do Matrimónio (149). Muitas razões concorrem para explicar esta
determinação:
– o Matrimónio sacramental é um acto litúrgico. Portanto, é conveniente que seja celebrado
na liturgia pública da Igreja; – o Matrimónio introduz num ordo eclesial, cria direitos e
deveres na Igreja, entre os esposos e para com os filhos;
– uma vez que o Matrimónio é um estado de vida na Igreja, é necessário que haja a certeza a
respeito dele (daí a obrigação de haver testemunhas); – o carácter público do consentimento
protege o «sim» uma vez dado e ajuda a permanecer- lhe fiel.
1632. Para que o «sim» dos esposos seja um acto livre e responsável, e para que a aliança
matrimonial tenha bases humanas e cristãs sólidas e duradoiras, é de primordial importância
a preparação para o matrimónio:
O exemplo e o ensino dados pelos pais e pelas famílias continuam a ser o caminho privilegiado
desta preparação. O papel dos pastores e da comunidade cristã, como «família de Deus», é in-
dispensável para a transmissão dos valores humanos e cristãos do Matrimónio e da família
(150), e isto tanto mais quanto é certo que, nos nossos dias, muitos jovens conhecem a exper-
iência de lares desfeitos, que já não garantem suficientemente aquela iniciação:
«Os jovens devem ser conveniente e oportunamente instruídos, sobretudo no seio da própria
família, acerca da dignidade, missão e exercício do amor conjugal. Deste modo, educados na
estima pela castidade, poderão passar, chegada a idade conveniente, de um noivado honesto
para o matrimónio» (151).

CASAMENTOS MISTOS E DISPARIDADE DE CULTOS

1633. Em muitos países, a situação do matrimónio misto (entre um católico e um baptizado


não-católico) apresenta-sede modo bastante frequente. Tal situação pede uma atenção partic-
ular dos cônjuges e dos pastores. O caso dos casamentos com disparidade de culto (entre um
católico e um não-baptizado) exige uma atenção ainda maior.
1634. A diferença de confissão religiosa entre os cônjuges não constitui um obstáculo insu-
perável para o Matrimónio, quando eles conseguem pôr em comum o que cada um recebeu na
sua comunidade e aprender um do outro o modo como cada um vive a sua fidelidade a Cristo.
Mas as dificuldades dos matrimónios mistos nem por isso devem ser subestimadas. São devi-
das ao facto de a separação dos cristãos ainda não ter sido superada. Os esposos arriscam-se a
vir a ressentir-se do drama da desunião dos cristãos no seio do próprio lar. A disparidade de
culto pode agravar ainda mais estas dificuldades. As divergências em relação à fé, o próprio
conceito do Matrimónio e ainda as diferentes mentalidades religiosas podem constituir uma
fonte de tensões no Matrimónio, principalmente por causa da educação dos filhos. Pode então
surgir uma tentação: a indiferença religiosa.
1635. Segundo o direito em vigor na Igreja latina, um Matrimónio misto precisa da permis-
são expressa da autoridade eclesiástica (152) para a respectiva liceidade. Em caso de disparid-
ade de culto, é requerida uma dispensa expressa do impedimento para a validade do Mat-
rimónio (153). Tanto a permissão como a dispensa supõem que as duas partes conhecem e
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não rejeitam os fins e propriedades essenciais do Matrimónio: e também que a parte católica
confirma os seus compromissos, dados também a conhecer expressamente à parte não
católica, de conservar a sua fé e de assegurar o Baptismo e a educação dos filhos na Igreja
Católica (154).
1636. Em muitas regiões, graças ao diálogo ecuménico, as respectivas comunidades cristãs
puderam organizar uma pastoral comum para os casamentos mistos. O seu papel consiste
em ajudar os casais a viver a sua situação particular à luz da fé. Ela deve também ajudá-los a
superar as tensões entre as obrigações dos cônjuges um para com o outro e para com as re-
spectivas comunidades eclesiais. Deve estimular o desenvolvimento do que lhes é comum na
fé e o respeito pelo que os divide.
1637. Nos casamentos com disparidade de culto, o cônjuge católico tem uma tarefa particular
a cumprir, «porque o marido não-crente é santificado pela sua mulher e a mulher não-crente
é santificada pelo marido crente» (1 Cor 7, 14). Será uma grande alegria para o cônjuge cristão
e para a Igreja, se esta «santificação» levar à conversão livre do outro à fé cristã (155). O amor
conjugal sincero, a prática humilde e paciente das virtudes familiares e a oração perseverante,
podem preparar o cônjuge não-crente para receber a graça da conversão.

IV. Os efeitos do sacramento do Matrimónio

1638. « Do Matrimónio válido origina-se entre os cônjuges um vínculo de sua natureza per-
pétuo e exclusivo: no matrimónio cristão, além disso, são os cônjuges robustecidos e como que
consagrados por um sacramento peculiar para os deveres e dignidade do seu estado» (156).

O VÍNCULO MATRIMONIAL

1639. O consentimento, pelo qual os esposos mutuamente se dão e se recebem, é selado pelo
próprio Deus (157). Da sua aliança «nasce uma instituição, também à face da sociedade, tor-
nada firme e estável pela lei divina» (158). A aliança dos esposos é integrada na aliança de
Deus com os homens: «O autêntico amor conjugal é assumido no amor divino» (159).
1640. O vínculo matrimonial é, portanto, estabelecido pelo próprio Deus, de maneira que o
matrimónio ratificado e consumado entre baptizados não pode jamais ser dissolvido. Este vín-
culo, resultante do acto humano livre dos esposos e da consumação do matrimónio, é, a partir
de então, uma realidade irrevogável e dá origem a uma aliança garantida pela fidelidade de
Deus. A Igreja não tem poder para se pronunciar contra esta disposição da sabedoria divina
(160).

A GRAÇA DO SACRAMENTO DO MATRIMÓNIO

1641. Os esposos cristãos, «no seu estado de vida e na sua ordem, têm, no povo de Deus, os
seus dons próprios» (161). Esta graça própria do sacramento do Matrimónio destina-se a
aperfeiçoar o amor dos cônjuges e a fortalecer a sua unidade indissolúvel. Por meio desta
graça, «eles auxiliam-se mutuamente para chegarem à santidade pela vida conjugal e pela
procriação e educação dos filhos» (162).
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1632. Cristo é a fonte desta graça. «Assim como outrora Deus veio ao encontro do seu povo
com unia aliança de amor e fidelidade, assim agora o Salvador dos homens e Esposo da Igreja
vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do Matrimónio» (163). Fica com eles,
dá-lhes a coragem de O seguirem tomando sobre si a sua cruz, de se levantarem depois das
quedas, de se perdoarem mutuamente, de levarem o fardo um do outro (164), de serem «sub-
missos um ao outro no temor de Cristo» (Ef 5, 21) e de se amarem com um amor sobrenatural,
delicado e fecundo. Nas alegrias do seu amor e da sua vida familiar, Ele dá-lhes, já neste
mundo, um antegosto do festim das núpcias do Cordeiro:
«Onde irei buscar forças para descrever, de modo satisfatório, a felicidade do Matrimónio que
a Igreja une, que a oblação eucarística confirma e a bênção sela? Os anjos proclamam-no, o
Pai celeste ratifica-o [...] Que jugo o de dois cristãos, unidos por uma só esperança, um único
desejo, uma única disciplina, um mesmo serviço! Ambos filhos do mesmo Pai, servos do
mesmo Senhor; nada os separa, nem no espírito nem na carne; pelo contrário, eles são ver-
dadeiramente dois numa só carne. Ora, onde a carne á só uma, também um só é o espírito»
(165).

V. Os bens e as exigências do amor conjugal

1643. «O amor conjugal comporta um todo em que entram todas as componentes da pessoa
– apelo do corpo e do instinto, força do sentimento e da afectividade, aspiração do espírito e
da vontade –; visa uma unidade profundamente pessoal – aquela que, para além da união
numa só carne, conduz à formação dum só coração e duma só alma –; exige a indissolubilid-
ade e a fidelidade na doação recíproca definitiva; e abre-se à fecundidade. Trata-se, é claro,
das características normais de todo o amor conjugal natural, mas com um significado novo
que não só as purifica e consolida, mas as eleva ao ponto de fazer delas a expressão de valores
especificamente cristãos» (166).

A UNIDADE E A INDISSOLUBILIDADE DO MATRIMÓNIO

1644. Pela sua própria natureza, o amor dos esposos exige a unidade e a indissolubilidade da
sua comunidade de pessoas, a qual engloba toda a sua vida: «assim, já não são dois, mas uma
só carne» (Mt 19, 6) (167). «Eles são chamados a crescer sem cessar na sua comunhão, através
da fidelidade quotidiana à promessa da mútua doação total que o Matrimónio implica» (168).
Esta comunhão humana é confirmada, purificada e aperfeiçoada pela comunhão em Jesus
Cristo, conferida pelo sacramento do Matrimónio; e aprofunda-se pela vida da fé comum e
pela Eucaristia recebida em comum.
1645. «A igual dignidade pessoal, que se deve reconhecer à mulher e ao homem no amor
pleno que têm um pelo outro, manifesta claramente a unidade do Matrimónio, confirmada
pelo Senhor» (169). A poligamia é contrária a esta igual dignidade e ao amor conjugal, que é
único e exclusivo (170).

A FIDELIDADE DO AMOR CONJUGAL


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1646. Pela sua própria natureza, o amor conjugal exige dos esposos uma fidelidade inviolável.
Esta é uma consequência da doação de si mesmos que os esposos fazem um ao outro. O amor
quer ser definitivo. Não pode ser «até nova ordem». «Esta união íntima, enquanto doação
recíproca de duas pessoas, tal como o bem dos filhos, exigem a inteira fidelidade dos cônjuges
e reclamam a sua união indissolúvel» (171).
1647. O motivo mais profundo encontra-se na fidelidade de Deus à sua aliança, de Cristo à
sua Igreja. Pelo sacramento do Matrimónio, os esposos ficam habilitados a representar esta fi-
delidade e a dar testemunho dela. Pelo sacramento, a indissolubilidade do Matrimónio ad-
quire um sentido novo e mais profundo.
1648. Pode parecer difícil, e até impossível, ligar-se por toda a vida a um ser humano. Por
isso mesmo, é da maior importância anunciar a boa-nova de que Deus nos ama com um amor
definitivo e irrevogável, de que os esposos participam neste amor que os conduz e sustém e de
que, pela sua fidelidade, podem ser testemunhas do amor fiel de Deus. Os esposos que, com a
graça de Deus, dão este testemunho, muitas vezes em condições bem difíceis, merecem a
gratidão e o amparo da comunidade eclesial (172).
1649. No entanto, há situações em que a coabitação matrimonial se torna praticamente im-
possível pelas mais diversas razões. Em tais casos, a Igreja admite a separação física dos es-
posos e o fim da coabitação. Mas os esposos não deixam de ser marido e mulher perante Deus:
não são livres de contrair nova união. Nesta situação difícil, a melhor solução seria, se pos-
sível, a reconciliação. A comunidade cristã é chamada a ajudar estas pessoas a viverem cristã-
mente a sua situação, na fidelidade ao vínculo do seu Matrimónio, que continua indissolúvel
(173).
1650. Hoje em dia e em muitos países, são numerosos os católicos que recorrem ao divórcio,
em conformidade com as leis civis, e que contraem civilmente uma nova união. A Igreja
mantém, por fidelidade à palavra de Jesus Cristo («quem repudia a sua mulher e casa com
outra comete adultério em relação à primeira; e se uma mulher repudia o seu marido e casa
com outro, comete adultério»: Mc 10, 11-12), que não pode reconhecer como válida uma nova
união, se o primeiro Matrimónio foi válido. Se os divorciados se casam civilmente, ficam
numa situação objectivamente contrária à lei de Deus. Por isso, não podem aproximar-se da
comunhão eucarística, enquanto persistir tal situação. Pelo mesmo motivo, ficam impedidos
de exercer certas responsabilidades eclesiais. A reconciliação, por meio do sacramento da Pen-
itência, só pode ser dada àqueles que se arrependerem de ter violado o sinal da Aliança e da fi-
delidade a Cristo e se comprometerem a viver em continência completa.
1651. Com respeito a cristãos que vivem nesta situação e que muitas vezes conservam a fé e
desejam educar cristãmente os seus filhos, os sacerdotes e toda a comunidade devem dar
provas duma solicitude atenta, para que eles não se sintam separados da Igreja, em cuja vida
podem e devem participar como baptizados que são:
«Serão convidados a ouvir a Palavra de Deus, a assistir ao sacrifício da Missa, a perseverar na
oração, a prestar o seu contributo às obras de caridade e às iniciativas da comunidade em prol
da justiça, a educar os seus filhos na fé cristã, a cultivar o espírito de penitência e a cumprir os
actos respectivos, a fim de implorarem, dia após dia, a graça de Deus» (174).

A ABERTURA À FECUNDIDADE
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1652. «Pela sua própria natureza, a instituição matrimonial e o amor conjugal estão ordena-
dos à procriação e à educação dos filhos, que constituem o ponto alto da sua missão e a sua
coroa»
«Os filhos são, sem dúvida, o mais excelente dom do Matrimónio e contribuem muitíssimo
para o bem dos próprios pais. O mesmo Deus que disse: "não é bom que o homem esteja só"
(Gn 2, 18) e que "desde o princípio fez o homem varão e mulher" (Mt 19, 4), querendo
comunicar-lhe uma participação especial na sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher
dizendo: "Sede fecundos e multiplicai-vos" (Gn 1, 28). Por isso, o culto autêntico do amor con-
jugal e toda a vida familiar que dele nasce, sem pôr de lado os outros fins do Matrimónio, ten-
dem a que os esposos, com fortaleza de ânimo, estejam dispostos a colaborar com o amor do
Criador e do Salvador, que, por meio deles, aumenta continuamente e enriquece a sua
família» (176).
1653 A fecundidade do amor conjugal estende-se aos frutos da vida moral, espiritual e
sobrenatural que os pais transmitem aos filhos pela educação. Os pais são os principais e
primeiros educadores dos seus filhos(177). Neste sentido, a missão fundamental do Mat-
rimónio e da família é estar ao serviço da vida (178).
1654. Os esposos a quem Deus não concedeu a graça de ter filhos podem, no entanto, ter uma
vida conjugal cheia de sentido, humana e cristãmente falando. O seu Matrimónio irradiar uma
fecundidade de caridade, de acolhimento e de sacrifício.

VI. A Igreja doméstica

1655. Cristo quis nascer e crescer no seio da Sagrada Família de José e de Maria. A Igreja
outra coisa não é senão a «família de Deus». Desde as suas origens, o núcleo aglutinante da
Igreja era, muitas vezes, constituído por aqueles que, «com toda a sua casa», se tinham tor-
nado crentes» (179). Quando se convertiam, desejavam que também «toda a sua casa» fosse
salva (180). Estas famílias, que passaram a ser crentes, eram pequenas ilhas de vida cristã no
meio dum mundo descrente.
1656. Nos nossos dias, num mundo muitas vezes estranho e até hostil à fé, as famílias crentes
são de primordial importância, como focos de fé viva e irradiante. É por isso que o II Concílio
do Vaticano chama à família, segundo uma antiga expressão, «Ecclesia domestica – Igreja
doméstica» (181). É no seio da família que os pais são, «pela palavra e pelo exemplo [...], os
primeiros arautos da fé para os seus filhos, ao serviço da vocação própria de cada um e muito
especialmente da vocação consagrada» (182).
1657. É aqui que se exerce, de modo privilegiado, o sacerdócio baptismal do pai de família,
da mãe, dos filhos, de todos os membros da família, «na recepção dos sacramentos, na oração
e acção de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade efectiva»
(183). O lar é, assim, a primeira escola de vida cristã e «uma escola de enriquecimento hu-
mano» (184). É aqui que se aprende a tenacidade e a alegria no trabalho, o amor fraterno, o
perdão generoso e sempre renovado, e, sobretudo, o culto divino, pela oração e pelo ofereci-
mento da própria vida.
1658. Não podem esquecer-se, também, certas pessoas que estão, em virtude das condições
concretas em que têm de viver, muitas vezes sem assim o terem querido, particularmente
próximas do coração de Cristo, e que merecem, portanto, a estima e a solicitude atenta da
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Igreja, particularmente dos pastores: o grande número de pessoas celibatárias. Muitas delas
ficam sem família humana, frequentemente devido a condições de pobreza. Algumas vivem a
sua situação no espírito das bem-aventuranças, servindo a Deus e ao próximo de modo exem-
plar. Mas a todas é necessário abrir as portas dos lares, «igrejas domésticas», e da grande
família que é a Igreja. «Ninguém se sinta privado de família neste mundo: a Igreja é casa e
família para todos, especialmente para quantos estão "cansados e oprimidos" (Mt 11, 28)»
(185).

Resumindo:

1659. São Paulo diz: «Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja [...] É
grande este mistério, que eu refiro a Cristo e à Igreja» (Ef 5, 25.32).
1660. A aliança matrimonial, pela qual um homem e uma mulher constituem entre si uma
comunidade íntima de vida e de amor; foi fundada e dotada das suas leis próprias pelo Cri-
ador: Pela sua natureza, ordena-se ao bem dos cônjuges, bem como à procriação e educação
dos filhos. Entre os baptizados ,foi elevada por Cristo Senhor à dignidade de sacramento
(186).
1661. O sacramento do Matrimónio significa a união de Cristo com a Igreja. Confere aos es-
posos a graça de se amarem com o amor com que Cristo amou a sua Igreja; a graça do sac-
ramento aperfeiçoa assim o amor humano dos esposos, dá firmeza à sua unidade indis-
solúvel e santifica-os no caminho da vida eterna (187).
1662. O Matrimónio assenta no consentimento dos contraentes, quer dizer; na vontade de
se darem mútua e definitivamente, com o fim de viverem uma aliança de amor fiel e
fecundo.
1663. Uma vez que o Matrimónio estabelece os cônjuges num estado público de vida na
Igreja, é conveniente que a sua celebração seja pública, integrada numa celebração litúr-
gica, perante o sacerdote (ou testemunha qualificada da Igreja), as testemunhas e a as-
sembleia dos fiéis.
1664. A unidade, a indissolubilidade e a abertura à fecundidade são essenciais ao Mat-
rimónio. A poligamia é incompatível com a unidade do Matrimónio; o divórcio separa o que
Deus uniu; a recusa da fecundidade desvia a vida conjugal do seu «dom mais excelente», o
filho (188).
1665. O novo casamento dos divorciados, em vida do cônjuge legítimo, é contrário ao
desígnio e à Lei de Deus ensinados por Cristo. Eles não ficam separados da Igreja, mas não
têm acesso à comunhão eucarística. Viverão a sua vida cristã sobretudo educando os filhos
na fé.
1666. O lar cristão é o lugar onde os filhos recebem o primeiro anúncio da fé. É por isso que
a casa de família se chama, com razão, «Igreja doméstica», comunidade de graça e de or-
ação, escola de virtudes humanas e de caridade cristã.
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CAPÍTULO TERCEIRO
OS SACRAMENTOS AO SERVIÇO DA COMUNHÃO

1533. O Baptismo, a Confirmação e a Eucaristia são os sacramentos da iniciação cristã. São o


fundamento da vocação comum de todos os discípulos de Cristo – vocação à santidade e à
missão de evangelizar o mundo. E conferem as graças necessárias para a vida segundo o
Espírito, nesta existência de peregrinos em marcha para a Pátria.
1534. Dois outros sacramentos, a Ordem e o Matrimónio, são ordenados para a salvação de
outrem. Se contribuem também para a salvação pessoal, é através do serviço aos outros que o
fazem. Conferem uma missão particular na Igreja, e servem a edificação do povo de Deus.
1535. Nestes sacramentos, aqueles que já foram consagrados pelo Baptismo e pela Confirm-
ação (1) para o sacerdócio comum de todos os fiéis, podem receber consagrações particulares.
Os que recebem o sacramento da Ordem são consagrados para serem, em nome de Cristo,
«com a palavra e a graça de Deus, os pastores da igreja» (2). Por seu lado, «os esposos cristãos
são fortalecidos e como que consagrados por meio de um sacramento especial em ordem ao
digno cumprimento dos deveres do seu estado» (3).

ARTIGO 6

O SACRAMENTO DA ORDEM

1536. A Ordem é o sacramento graças ao qual a missão confiada por Cristo aos Apóstolos
continua a ser exercida na Igreja, até ao fim dos tempos: é, portanto, o sacramento do min-
istério apostólico. E compreende três graus: o episcopado, o presbiterado e o diaconado.
[Sobre a instituição e a missão do ministério apostólico por Cristo ver os números 874-896.
Aqui apenas se trata da via sacramental pela qual se transmite este ministério].

I. Porquê este nome de sacramento da Ordem?

1537. A palavra Ordem, na antiguidade romana, designava corpos constituídos no sentido


civil, sobretudo o corpo dos que governavam, Ordinatio designa a integração num ordo. Na
Igreja existem corpos constituídos, que a Tradição, não sem fundamento na Sagrada Escritura
(4), designa, desde tempos antigos, com o nome de táxeis (em grego), ordines (em latim): a
liturgia fala assim do ordo episcoporum – ordem dos bispos –,do ordo presbyterorum - or-
dem dos presbíteros – e do ordo diaconorum –ordem dos diáconos. Há outros grupos que
também recebem este nome de ordo: os catecúmenos, as virgens, os esposos, as viúvas...
1538. A integração num destes corpos da Igreja fazia-se através dum rito chamado ordinatio,
acto religioso e litúrgico que era uma consagração, uma bênção ou um sacramento. Hoje, a pa-
lavra ordinatio é reservada ao acto sacramental que integra na ordem dos bispos, dos pres-
bíteros e dos diáconos, e que ultrapassa a simples eleição, designação, delegação ou institu-
ição pela comunidade, pois confere um dom do Espírito Santo que permite o exercício dum
«poder sagrado» (sacra potestas) (5) que só pode vir do próprio Cristo, pela sua Igreja. A
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ordenação também é chamada consecratio consagração –, porque é um pôr à parte e uma in-
vestidura feita pelo próprio Cristo para a sua Igreja. A imposição das mãos do bispo, com a
oração consecratória, constituem o sinal visível desta consagração.

II. O sacramento da Ordem na economia da salvação

O SACERDÓCIO DA ANTIGA ALIANÇA

1539. O povo eleito foi constituído por Deus como «um reino de sacerdotes e uma nação con-
sagrada» (Ex 19, 6) (6). Mas, dentro do povo de Israel, Deus escolheu uma das doze tribos, a
de Levi, segregada para o serviço litúrgico (7) o próprio Deus é a sua parte na herança (8). Um
rito próprio consagrou as origens do sacerdócio da Antiga Aliança (9). Nela, os sacerdotes são
«constituídos em favor dos homens, nas coisas respeitantes a Deus, para oferecer dons e sacri-
fícios pelos pecados» (10).
1540. Instituído para anunciar a Palavra de Deus (11) e para restabelecer a comunhão com
Deus pelos sacrifícios e a oração, aquele sacerdócio é, no entanto, impotente para operar a sal-
vação, precisando de repetir sem cessar os sacrifícios, sem poder alcançar uma santificação
definitiva (12) a qual só o sacrifício de Cristo havia de conseguir.
1541. Apesar disso, no sacerdócio de Aarão e no serviço dos levitas, assim como na instituição
dos setenta «Anciãos» (13), a liturgia da Igreja vê prefigurações do ministério ordenado da
Nova Aliança. Assim, no rito latino, a Igreja pede, na oração consecratória da ordenação dos
bispos:
«Senhor Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo [...] por vossa palavra e vosso dom in-
stituístes a Igreja com as suas normas fundamentais, eternamente predestinastes a geração
dos justos que havia de nascer de Abraão, estabelecestes príncipes e sacerdotes, e não
deixastes sem ministério o vosso santuário...» (14).
1542. Na ordenação dos presbíteros, a Igreja reza:
«Senhor, Pai santo, [...] já na Antiga Aliança se desenvolveram funções sagradas que eram
sinais do sacramento novo. A Moisés e a Aarão, que pusestes à frente do povo para o conduzir-
em e santificarem, associastes como seus colaboradores outros homens também escolhidos
por Vós. No deserto, comunicastes o espírito de Moisés a setenta homens prudentes, com o
auxílio dos quais ele governou mais facilmente o vosso povo. Do mesmo modo, as graças
abundantes concedidas a Aarão. Vós as transmitistes a seus filhos, a fim de não faltarem sa-
cerdotes, segundo a Lei, para oferecer os sacrifícios do templo, sombra dos bens futuros...»
(15).
1543. E na oração consecratória para a ordenação dos diáconos, a Igreja confessa:
«Senhor, Pai santo, [...] é o novo templo que se edifica quando estabeleceis os três graus dos
ministros sagrados para servirem ao vosso nome, como já na primeira Aliança escolhestes os
filhos de Levi, para o serviço do templo antigo» (16).

O SACERDÓCIO ÚNICO DE CRISTO

1544. Todas as prefigurações do sacerdócio da Antiga Aliança encontram a sua realização em


Jesus Cristo, «único mediador entre Deus e os homens» (1 Tm 2, 5). Melquisedec, «sacerdote
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do Deus Altíssimo» (Gn 14, 18), é considerado pela Tradição cristã como uma prefiguração do
sacerdócio de Cristo, único «Sumo-Sacerdote segundo a ordem de Melquisedec» (Heb 5, l0; 6,
20), «santo, inocente, sem mancha» (Heb 7, 26), que «com uma única oblação, tornou perfei-
tos para sempre os que foram santificados» (Heb 10, 14), isto é, pelo único sacrifício da sua
cruz.
1545. O sacrifício redentor de Cristo é único, realizado uma vez por todas. E no entanto, é tor-
nado presente no sacrifício eucarístico da Igreja. O mesmo se diga do sacerdócio único de
Cristo, que é tornado presente pelo sacerdócio ministerial, sem diminuição da unicidade do
sacerdócio de Cristo: «e por isso, só Cristo é verdadeiro sacerdote, sendo os outros seus minis-
tros» (17).

DUAS PARTICIPAÇÕES NO SACERDÓCIO ÚNICO DE CRISTO

1546. Cristo, sumo sacerdote e único mediador, fez da Igreja «um reino de sacerdotes para
Deus seu Pai» (18). Toda a comunidade dos crentes, como tal, é uma comunidade sacerdotal.
Os fiéis exercem o seu sacerdócio baptismal através da participação, cada qual segundo a sua
vocação própria, na missão de Cristo, sacerdote, profeta e rei. É pelos sacramentos do
Baptismo e da Confirmação que os fiéis são «consagrados para serem [...] um sacerdócio
santo» (19).
1547. O sacerdócio ministerial ou hierárquico dos bispos e dos presbíteros e o sacerdócio
comum de todos os fiéis – embora «um e outro, cada qual segundo o seu modo próprio, parti-
cipem do único sacerdócio de Cristo» (20) – são, no entanto, essencialmente diferentes ainda
que sendo «ordenados um para o outro» (21). Em que sentido? Enquanto o sacerdócio
comum dos fiéis se realiza no desenvolvimento da vida baptismal – vida de fé, esperança e
caridade, vida segundo o Espírito – o sacerdócio ministerial está ao serviço do sacerdócio
comum, ordena-se ao desenvolvimento da graça baptismal de todos os cristãos. É um dos
meios pelos quais Cristo não cessa de construir e guiar a sua igreja. E é por isso que é trans-
mitido por um sacramento próprio, que é o sacramento da Ordem.

NA PESSOA DE CRISTO CABEÇA...

1548. No serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente à sua
Igreja, como Cabeça do seu corpo, Pastor do seu rebanho, Sumo-Sacerdote do sacrifício re-
dentor, mestre da verdade. É o que a Igreja exprime quando diz que o padre, em virtude do
sacramento da Ordem, age in persona Christi Capitis – na pessoa de Cristo Cabeça (22):
«É o mesmo Sacerdote, Jesus Cristo, de quem realmente o ministro faz as vezes. Se realmente
o ministro é assimilado ao Sumo-Sacerdote, em virtude da consagração sacerdotal que rece-
beu, goza do direito de agir pelo poder do próprio Cristo que representa 'virtute ac persona ip-
sius Christi'» (23).
«Cristo é a fonte de todo o sacerdócio: pois o sacerdócio da [antiga] lei era figura d'Ele, ao
passo que o sacerdote da nova lei age na pessoa d'Ele» (24).
1549. Pelo ministério ordenado, especialmente dos bispos e padres, a presença de Cristo
como cabeça da Igreja torna-se visível no meio da comunidade dos crentes (25). Segundo a
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bela expressão de Santo Inácio de Antioquia, o bispo é týpos toû Patrós, como que a imagem
viva de Deus Pai (26).
1550. Esta presença de Cristo no seu ministro não deve ser entendida como se este estivesse
premunido contra todas as fraquezas humanas, contra o afã de domínio, contra os erros, isto
é, contra o pecado. A força do Espírito Santo não garante do mesmo modo todos os actos do
ministro. Enquanto que nos sacramentos esta garantia é dada, de maneira que nem mesmo o
pecado do ministro pode impedir o fruto da graça, há muitos outros actos em que a condição
humana do ministro deixa vestígios, que nem sempre são sinal de fidelidade ao Evangelho e
podem, por conseguinte, prejudicar a fecundidade apostólica da Igreja.
1551. Este sacerdócio é ministerial. «O encargo que o Senhor confiou aos pastores do seu
Povo é um verdadeiro serviço» (27). Refere-se inteiramente a Cristo e aos homens. Depende
inteiramente de Cristo e do seu sacerdócio único, e foi instituído em favor dos homens e da
comunidade da Igreja. O sacramento da Ordem comunica «um poder sagrado», que não é
senão o de Cristo. O exercício desta autoridade deve, pois, regular-se pelo modelo de Cristo,
que por amor Se fez o último e servo de todos (28). «O Senhor disse claramente que o cuidado
dispensado ao seu rebanho seria uma prova de amor para com Ele» (29).

...«EM NOME DE TODA A IGREJA»

1552. O sacerdócio ministerial não tem somente o encargo de representar Cristo. cabeça da
Igreja, perante a assembleia dos fiéis; age também em nome de toda a Igreja, quando ap-
resenta a Deus a oração da mesma Igreja (30) e, sobretudo, quando oferece o sacrifício eu-
carístico (31).
1553. «Em nome de toda a Igreja» não quer dizer que os sacerdotes sejam os delegados da
comunidade. A oração e a oferenda da Igreja são inseparáveis da oração e da oferenda de
Cristo, sua cabeça. É sempre o culto de Cristo na e pela sua Igreja. É toda a Igreja, corpo de
Cristo, que ora e se oferece, «por Cristo, com Cristo, em Cristo», na unidade do Espírito Santo,
a Deus Pai. Todo o corpo, caput et memora – cabeça e membros –, ora e oferece-se; e, por
isso, aqueles que, no corpo, são de modo especial os ministros, chamam-se ministros não
apenas de Cristo, mas também da Igreja. É porque representa Cristo, que o sacerdócio minis-
terial pode representar a Igreja.

III. Os três graus do sacramento da Ordem

1554. «O ministério eclesiástico, instituído por Deus, é exercido em ordens diversas por
aqueles que, desde a antiguidade, são chamados bispos, presbíteros e diáconos» (32). A
doutrina católica, expressa na liturgia, no Magistério e na prática constante da Igreja, recon-
hece que existem dois graus de participação ministerial no sacerdócio de Cristo: o episcopado
e o presbiterado. O diaconado destina-se a ajudá-los e a servi-los. Por isso, o termo
«sacerdos» designa, no uso actual, os bispos e os presbíteros, mas não os diáconos. Todavia, a
doutrina católica ensina que os graus de participação sacerdotal (episcopado e presbiterado) e
o grau de serviço (diaconado), todos três são conferidos por um acto sacramental chamado
«ordenação», ou seja, pelo sacramento da Ordem.
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«Reverenciem todos os diáconos como a Jesus Cristo e de igual modo o bispo que é a imagem
do Pai, e os presbíteros como o senado de Deus e como a assembleia dos Apóstolos: sem eles,
não se pode falar de Igreja» (33).

A ORDENAÇÃO EPISCOPAL – PLENITUDE DO SACRAMENTO DA ORDEM

1555. «Entre os vários ministérios, que na Igreja se exercem desde os primeiros tempos, con-
sta da Tradição que o principal é o daqueles que, constituídos no episcopado através de uma
sucessão que remonta às origens, são os transmissores da semente apostólica» (34).
1556. Para desempenhar a sua sublime missão, «os Apóstolos foram enriquecidos por Cristo
com uma efusão especial do Espírito Santo, que sobre eles desceu: e pela imposição das mãos
eles próprios transmitiram aos seus colaboradores este dom espiritual que foi transmitido até
aos nossos dias através da consagração episcopal» (35).
1557. O II Concílio do Vaticano «ensina que, pela consagração episcopal, se confere a plenit-
ude do sacramento do Ordens, à qual o costume litúrgico da Igreja e a voz dos santos Padres
chamam sumo sacerdócio e vértice ["summa"] do sagrado ministério» (36).
1558. «A consagração episcopal, juntamente com a função de santificar, confere também as
funções de ensinar e governar [...] De facto, pela imposição das mãos e pelas palavras da con-
sagração, a graça do Espírito Santo é dada e é impresso o carácter sagrado, de tal modo que os
bispos fazem as vezes, de uma forma eminente e visível, do próprio Cristo, Mestre, Pastor e
Pontífice, e actuam em vez d'Ele [«in Eius persona agant»]» (37). Por isso, pelo Espírito
Santo que lhes foi dado, os bispos foram constituídos verdadeiros e autênticos mestres da fé,
pontífices e pastores» (38).
1559. «É em virtude da consagração episcopal e pela comunhão hierárquica com a cabeça e os
membros do colégio que alguém é constituído membro do corpo episcopal» (39).O carácter e
a natureza colegial da ordem episcopal manifestam-se, entre outros modos, na antiga prática
da Igreja que exige, para a consagração dum novo bispo, a participação de vários bispos (40).
Para a ordenação legítima dum bispo requer-se, hoje, uma intervenção especial do bispo de
Roma, em virtude da sua qualidade de supremo vínculo visível da comunhão das Igrejas par-
ticulares na Igreja una, e de garante da sua liberdade.
1560. Cada bispo tem, como vigário de Cristo, o encargo pastoral da Igreja particular que lhe
foi confiada. Mas, ao mesmo tempo, partilha colegialmente com todos os seus irmãos no epis-
copado a solicitude por todas as Igrejas: «Se cada bispo é pastor próprio apenas da porção do
rebanho que foi confiada aos seus cuidados, a sua qualidade de legítimo sucessor dos Apósto-
los, por instituição divina, torna-o solidariamente responsável pela missão apostólica da
Igreja» (41).
1561. Tudo o que acaba de ser dito explica porque é que a Eucaristia celebrada pelo bispo tem
uma significação muito especial como expressão da Igreja reunida em torno do altar sob a
presidência daquele que representa visivelmente Cristo, bom Pastor e Cabeça da sua Igreja
(42).

A ORDENAÇÃO DOS PRESBÍTEROS – COOPERADORES DOS BISPOS


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1562. «Cristo, a Quem o Pai santificou e enviou ao mundo, por meio dos seus Apóstolos
tornou os bispos, que são sucessores deles, participantes da sua consagração e missão; e estes,
por sua vez, transmitem legitimamente o múnus do seu ministério em grau diverso e a diver-
sos sujeitos na Igreja» (43). O seu cargo ministerial foi transmitido em grau subordinado aos
presbíteros, para que, constituídos na Ordem do presbiterado, fossem cooperadores da Or-
dem episcopal para o desempenho perfeito da missão apostólica confiada por Cristo» (44).
1563. «O ofício dos presbíteros, enquanto unido à Ordem episcopal, participa da autoridade
com que o próprio Cristo edifica, santifica e governa o seu corpo. Por isso, o sacerdócio dos
presbíteros, embora pressuponha os sacramentos da iniciação cristã, é conferido mediante um
sacramento especial, em virtude do qual os presbíteros, mediante a unção do Espírito Santo,
ficam assinalados com um carácter particular e, dessa maneira, configurados a Cristo- Sacer-
dote, de tal modo que possam agir em nome e na pessoa de Cristo Cabeça» (45).
1564. «Os presbíteros, embora não possuam o pontificado supremo e dependam dos bispos
no exercício do próprio poder, todavia estão-lhes unidos na honra do sacerdócio; e, por vir-
tude do sacramento da Ordem, são consagrados, à imagem de Cristo, sumo e eterno sacerdote
(46), para pregar o Evangelho, ser pastores dos fiéis e celebrar o culto divino como verdadeir-
os sacerdotes do Novo Testamento (47).
1565. Em virtude do sacramento da Ordem, os sacerdotes participam das dimensões univer-
sais da missão confiada por Cristo aos Apóstolos. O dom espiritual que receberam na
ordenação prepara-os, não para uma missão limitada e restrita, «mas sim para uma missão de
salvação de amplitude universal, "até aos confins da terra"» (48), «dispostos, no seu coração,
a pregar o Evangelho em toda a parte» (49).
1566. «É no culto ou sinaxe eucarística que, por excelência exercem o seu múnus sagrado:
nela, agindo na pessoa de Cristo e proclamando o seu mistério, unem as preces dos fiéis ao
sacrifício da cabeça e, no sacrifício da Missa, tornam presente e aplicam, até à vinda do Sen-
hor, o único sacrifício do Novo Testamento, o de Cristo, o qual de uma vez por todas se ofere-
ceu ao Pai, como hóstia imaculada» (50). É deste sacrifício único que todo o seu ministério sa-
cerdotal tira a própria força (51).
1567. «Cooperadores esclarecidos da Ordem episcopal, sua ajuda e instrumento, chamados
para o serviço do povo de Deus, os presbíteros constituem com o seu bispo um único presby-
terium com diversas funções. Onde quer que se encontre uma comunidade de fiéis, eles tor-
nam de certo modo, presente o bispo, ao qual estão associados, de ânimo fiel e generoso, e cu-
jos encargos e solicitude assumem, segundo a própria medida, traduzindo-os na prática do
cuidado quotidiano dos fiéis» (52). Os presbíteros só podem exercer o seu ministério na de-
pendência do bispo e em comunhão com ele. A promessa de obediência, que fazem ao bispo
no momento da ordenação, e o ósculo da paz dado pelo bispo no final da liturgia de orde-
nação, significam que o bispo os considera seus colaboradores, filhos, irmãos e amigos e que,
em contrapartida, eles lhe devem amor e obediência.
1568. «Os presbíteros, elevados pela ordenação à Ordem do presbiterado, estão unidos entre
si numa íntima fraternidade sacramental. Especialmente na diocese, a cujo serviço, sob o
bispo respectivo, estão consagrados, formam um só presbitério» (53). A unidade do pres-
bitério tem uma expressão litúrgica no costume segundo o qual, durante o rito da ordenação
presbiterial, os presbíteros impõem também eles as mãos, depois do bispo.
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A ORDENAÇÃO DO DIÁCONOS – «EM VISTA DO SERVIÇO»

1569. «No grau inferior da hierarquia estão os diáconos, aos quais foram impostas as mãos,
"não em vista do sacerdócio, mas do serviço"» (54). Para a ordenação no diaconado, só o bispo
é que impõe as mãos, significando com isso que o diácono está especialmente ligado ao bispo
nos encargos próprios da sua « diaconia» (55).
1570. Os diáconos participam de modo especial na missão e na graça de Cristo (56). O sacra-
mento da Ordem marca-os com um selo («carácter») que ninguém pode fazer desaparecer e
que os configura com Cristo, que se fez «diácono», isto é, o servo de todos (57). Entre outros
serviços, pertence aos diáconos assistir o bispo e os sacerdotes na celebração dos divinos mis-
térios, sobretudo da Eucaristia, distribuí-la, assistir ao Matrimónio e abençoá-lo, proclamar o
Evangelho e pregar, presidir aos funerais e consagrar-se aos diversos serviços da caridade
(58).
1571. A partir do II Concílio do Vaticano, a Igreja latina restabeleceu o diaconado «como grau
próprio e permanente da hierarquia» (59), enquanto as Igrejas do Oriente o tinham sempre
mantido. Este diaconado permanente, que pode ser conferido a homens casados, constitui
um enriquecimento importante para a missão da Igreja. Com efeito, é apropriado e útil que
homens, cumprindo na Igreja um ministério verdadeiramente diaconal, quer na vida litúrgica
e pastoral, quer nas obras sociais e caritativas, «sejam fortificados pela imposição das mãos,
transmitida desde os Apóstolos, e mais estreitamente ligados ao altar, para que cumpram o
seu ministério mais eficazmente por meio da graça sacramental do diaconado» (60).

IV. A celebração deste sacramento

1572. A celebração da ordenação dum bispo, de presbíteros ou de diáconos, dada a sua im-
portância na vida duma Igreja particular, requer o concurso do maior número possível de
fiéis. Terá lugar, de preferência, ao domingo e na Sé catedral, com solenidade adequada à cir-
cunstância. As três ordenações – do bispo, do presbítero e do diácono – seguem o mesmo es-
quema. O lugar próprio de sua celebração é dentro da liturgia eucarística.
1573. O rito essencial do sacramento da Ordem é constituído, para os três graus, pela im-
posição das mãos, por parte do bispo, sobre a cabeça do ordinando, bem como pela oração
consecratória específica, que pede a Deus a efusão do Espírito Santo e dos seus dons apropria-
dos ao ministério para que é ordenado o candidato (61).
1574. Como em todos os sacramentos, ritos anexos envolvem a celebração. Variando muito
nas diversas tradições litúrgicas, tem todos um traço comum: exprimem os múltiplos aspectos
da graça sacramental. Assim, os ritos iniciais, no rito latino – a apresentação e a eleição do or-
dinando, a alocução do bispo, o interrogatório do ordinando, as ladainhas dos santos – atest-
am que a escolha do candidato se fez em conformidade com o costume da Igreja e preparam o
acto solene da consagração depois da qual vários ritos vêm exprimir e completar, de modo
simbólico, o mistério realizado: para o bispo e para o sacerdote, a unção com o santo crisma,
sinal da unção especial do Espírito Santo, que torna fecundo o seu ministério; entrega do livro
dos Evangelhos do anel, da mitra e do báculo ao bispo, em sinal da sua missão apostólica de
anunciar a Palavra de Deus, da sua fidelidade à Igreja, esposa de Cristo, do seu múnus de pas-
tor do rebanho do Senhor: para o presbítero, entrega da patena e do cálice, «a oferenda do
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povo santo» (62) que ele é chamado a apresentar a Deus; para o diácono, entrega do livro dos
Evangelhos, pois acaba de receber a missão de anunciar o Evangelho de Cristo.

V. Quem pode conferir este sacramento?

1575. Foi Cristo quem escolheu os Apóstolos e lhes deu parte na sua missão e autoridade. De-
pois de ter subido à direita do Pai, Cristo não abandona o seu rebanho, antes continuamente o
guarda por meio dos Apóstolos com a sua protecção e continua a dirigi-lo através destes mes-
mos pastores que hoje prosseguem a sua obra (63). É pois Cristo «quem dá», a uns serem
apóstolos, a outros serem pastores (64). E continua agindo por meio dos bispos (65).
1576. Uma vez que o sacramento da Ordem é o sacramento do ministério apostólico, pertence
aos bispos, enquanto sucessores dos Apóstolos, transmitir «o dom espiritual» (66), «a se-
mente apostólica» (67). Os bispos validamente ordenados, isto é, que estão na linha da su-
cessão apostólica, conferem validamente os três graus do sacramento da Ordem (68).

VI. Quem pode receber este sacramento?

1577. «Só o varão (vir) baptizado pode receber validamente a sagrada ordenação» (69). O
Senhor Jesus escolheu homens (viri) para formar o colégio dos Doze Apóstolos (70), e o
mesmo fizeram os Apóstolos quando escolheram os seus colaboradores (71) para lhes suceder-
em no desempenho do seu ministério (72). O Colégio dos bispos, a que os presbíteros estão
unidos no sacerdócio, torna presente e actualiza, até que Cristo volte, o Colégio dos Doze. A
Igreja reconhece-se vinculada por essa escolha feita pelo Senhor em pessoa. É por isso que a
ordenação das mulheres não é possível (73).
1578. Ninguém tem direito a receber o sacramento da Ordem. Com efeito, ninguém pode
arrogar-se tal encargo. É-se chamado a ele por Deus (74). Aquele que julga reconhecer em si
sinais do chamamento divino ao ministério ordenado, deve submeter humildemente o seu
desejo à autoridade da Igreja, à qual incumbe a responsabilidade e o direito de chamar alguém
para receber as Ordens. Como toda e qualquer graça, este sacramento só pode ser recebido
como um dom imerecido.
1579. Todos os ministros ordenados da Igreja latina, à excepção dos diáconos permanentes,
são normalmente escolhidos entre homens crentes que vivem celibatários e têm vontade de
guardar o celibato «por amor do Reino dos céus» (Mt 19, 12). Chamados a consagrarem-se
totalmente ao Senhor e às «suas coisas» (75) dão-se por inteiro a Deus e aos homens. O celib-
ato é um sinal desta vida nova, para cujo serviço o ministro da Igreja é consagrado: aceite de
coração alegre, anuncia de modo radioso o Reino de Deus (76).
1580. Nas Igrejas orientais vigora, desde há séculos, uma disciplina diferente: enquanto os
bispos são escolhidos unicamente entre os celibatários, homens casados podem ser ordenados
diáconos e presbíteros. Esta prática é, desde há muito tempo, considerada legítima: estes sa-
cerdotes exercem um ministério frutuoso nas suas comunidades (77). Mas, por outro lado, o
celibato dos sacerdotes é tido em muita honra nas Igrejas orientais e são numerosos aqueles
que livremente optam por ele, por amor do Reino de Deus. Tanto no Oriente como no
Ocidente, aquele que recebeu o sacramento da Ordem já não pode casar-se.
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VII. Os efeitos do sacramento da Ordem

O CARÁCTER INDELÉVEL

1581. Este sacramento configura o ordinando com Cristo por uma graça especial do Espírito
Santo, a fim de servir de instrumento de Cristo em favor da sua Igreja. Pela ordenação, rece-
be- se a capacidade de agir como representante de Cristo, cabeça da Igreja. na sua tríplice fun-
ção de sacerdote, profeta e rei.
1582. Tal como no caso do Baptismo e da Confirmação, esta participação na função de Cristo
é dada uma vez por todas. O sacramento da Ordem confere, também ele, um carácter espir-
itual indelével, e não pode ser repetido nem conferido para um tempo limitado (78).
1583. Uma pessoa validamente ordenada pode, é certo, por graves motivos, ser dispensada
das obrigações e funções decorrentes da ordenação, ou ser proibido de as exercer (79): mas já
não pode voltar a ser leigo, no sentido estrito (80), porque o carácter impresso pela ordenação
fica para sempre. A vocação e a missão recebidas no dia da ordenação marcam-no de modo
permanente.
1584. Uma vez que é Cristo, afinal, quem age e opera a salvação através do ministro orde-
nado, a indignidade deste não impede Cristo de agir (81). Santo Agostinho di-lo numa lin-
guagem vigorosa:
«Quanto ao ministro orgulhoso, deve ser contado juntamente com o diabo. E nem por isso se
contamina o dom de Cristo: o que através de tal ministro se comunica, conserva a sua pureza:
o que passa por ele mantém-se límpido e chega até à terra fértil. [...] De facto, a virtude espir-
itual do sacramento é semelhante à luz: os que devem ser iluminados recebem-na na sua
pureza, e ela, embora atravesse seres manchados, não se suja» (82).

A GRAÇA DO ESPÍRITO SANTO

1585. A graça do Espírito Santo própria deste sacramento consiste numa configuração com
Cristo, Sacerdote, Mestre e Pastor, de quem o ordenado é constituído ministro.
1586. Para o bispo, é, em primeiro lugar, uma graça de fortaleza («Spiritum principalem –
Espírito soberano», isto é, Espírito que faz chefes, pede a oração de consagração do bispo, no
rito latino (83)): a graça de guiar e defender, com força e prudência, a sua Igreja, como pai e
pastor, com amor desinteressado para com todos e uma predilecção pelos pobres, os enfermos
e os necessitados (84). Esta graça impele-o a anunciar o Evangelho a todos, a ser o modelo do
seu rebanho, a ir adiante dele no caminho da santificação, identificando-se na Eucaristia com
Cristo sacerdote e vítima, sem recear dar a vida pelas suas ovelhas:
«Ó Pai, que conheceis os corações, concedei ao vosso servo, que escolhestes para o epis-
copado, a graça de apascentar o vosso santo rebanho e de exercer de modo irrepreensível, di-
ante de Vós, o supremo sacerdócio, servindo-Vos noite e dia: que ele torne propício o vosso
rosto e ofereça os dons da vossa santa Igreja: tenha, em virtude do Espírito do supremo sacer-
dócio, o poder de perdoar os pecados segundo o vosso mandamento, distribua os cargos se-
gundo a vossa ordem e desligue de todo o vínculo pelo poder que Vós destes aos Apóstolos:
que ele Vos agrade pela sua doçura e coração puro, oferecendo-Vos um perfume agradável,
por vosso Filho Jesus Cristo...» (85).
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1587. O dom espiritual, conferido pela ordenação presbiterial, está expresso nesta oração pró-
pria do rito bizantino. O bispo, impondo as mãos, diz, entre outras coisas:
«Senhor, enchei do dom do Espírito Santo aquele que Vos dignastes elevar ao grau de pres-
bítero, para que seja digno de se manter irrepreensível diante do vosso altar, de anunciar o
Evangelho do vosso Reino, de desempenhar o ministério da vossa Palavra de verdade, de Vos
oferecer dons e sacrifícios espirituais, de renovar o vosso povo pelo banho da regeneração; de
modo que, ele próprio, vá ao encontro do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo, vosso
Unigénito, no dia da sua segunda vinda, e receba da vossa imensa bondade a recompensa dum
fiel desempenho do seu ministério» (86).
1588. Quanto aos diáconos, «fortalecidos pela graça sacramental, servem o povo de Deus na
"diaconia" da liturgia, da palavra e da caridade, em comunhão com o bispo e o seu pres-
bitério» (87).
1589. Perante a grandeza da graça e do múnus sacerdotais, os santos doutores sentiram o
apelo urgente à conversão, a fim de corresponderem, por toda a sua vida, Àquele de Quem o
sacramento os constituiu ministros. É assim que São Gregário de Nazianzo, ainda jovem pres-
bítero. exclama:
«Temos de começar por nos purificar, antes de purificarmos os outros: temos de ser instruí-
dos, para podermos instruir: temos de nos tornar luz para alumiar, de nos aproximar de Deus
para podermos aproximar d'Ele os outros, ser santificados para santificar, conduzir pela mão
e aconselhar com inteligência» (88). «Eu sei de Quem somos ministros, a que nível nos en-
contramos e para onde nos dirigimos. Conheço as alturas de Deus e a fraqueza do homem,
mas também a sua força» (89). [Quem é, pois, o sacerdote? Ele é] «o defensor da verdade,
eleva-se com os anjos glorifica com os arcanjos, faz subir ao altar do Alto as vítimas dos sacri-
fícios, participa no sacerdócio de Cristo, remodela a criatura, restaura [nela] a imagem [de
Deus], recria-a para o mundo do Alto e, para dizer o que há de mais sublime, é divinizado e
diviniza» (90).
E diz o santo Cura d'Ars: «É o sacerdote quem continua a obra da redenção na terra»... «Se
bem se compreendesse o que o sacerdote é na terra, morrer-se-ia, não de medo, mas de
amor». [...] «O sacerdócio é o amor do Coração de Jesus» (91).

Resumindo:

1590. São Paulo ao seu discípulo Timóteo: «Exorto-te a que reavives o dom que Deus depos-
itou em ti, pela imposição das minhas mãos» (2 Tm 1, 6), e «aquele que aspira ao lugar de
bispo, aspira a uma nobre função» (1 Tm 3, 1). A Tito, o mesmo Apóstolo dizia: «Se te deixei
em Creta, foi para acabares de organizar o que faltava e estabelecer anciãos em cada cid-
ade, como te havia ordenado» (Tt 1, 5).
1591. A Igreja é, na sua totalidade, um povo sacerdotal. Graças ao Baptismo, todos os fiéis
participam no sacerdócio de Cristo. Esta participação chama-se «sacerdócio comum dos
fiéis». Na base deste sacerdócio e ao seu serviço, existe uma outra participação na missão de
Cristo: a do ministério conferido pelo sacramento da Ordem, cuja missão é servir em nome e
na pessoa de Cristo-Cabeça no meio da comunidade.
1592. O sacerdócio ministerial difere essencialmente do sacerdócio comum dos fïéis, porque
confere um poder sagrado para o serviço dos mesmos fiéis. Os ministros ordenados exercem
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o seu serviço junto do povo de Deus pelo ensino (munus docendi), pelo culto divino (munus
liturgicum) e pelo governo pastoral (munus regendi).
1593. Desde as origens, o ministério ordenado fui conferido e exercido em três graus: o dos
bispos, o dos presbíteros e o dos diáconos. Os ministérios conferidos pela ordenação são in-
substituíveis na estrutura orgânica da Igreja: sem bispo, presbíteros e diáconos, não pode
falar-se de Igreja (92).
1594. O bispo recebe a plenitude do sacramento da Ordem que o insere no colégio episcopal
e faz dele o chefe visível da Igreja particular que lhe é confiada. Os bispos, enquanto su-
cessores dos Apóstolos e membros do Colégio, têm parte na responsabilidade apostólica e na
missão de toda a Igreja, sob a autoridade do Papa, sucessor de São Pedro.
1595. Os presbíteros estão unidos aos bispos na dignidade sacerdotal e, ao mesmo tempo,
dependem deles no exercício das suas funções pastorais; são chamados a ser os co-
operadores providentes dos bispos; formam, d volta do seu bispo, o presbitério, que assume
com ele a responsabilidade da Igreja particular: Os presbíteros recebem do bispo o encargo
duma comunidade paroquial ou duma função eclesial determinada.
1596. Os diáconos são ministros ordenados para as tarefas de serviço da Igreja; não rece-
bem o sacerdócio ministerial, mas a ordenação confere-lhes funções importantes no min-
istério da Palavra, culto divino, governo pastoral e serviço da caridade, encargos que eles
devem desempenhar sob a autoridade pastoral do seu bispo.
1597. O sacramento da Ordem é conferido pela imposição das mãos, seguida duma solene
oração consecratória, que pede a Deus para o ordinando as graças do Espírito Santo, re-
queridas para o seu ministério. A ordenação imprime um carácter sacramental indelével.
1598. A Igreja confere o sacramento da Ordem somente a homens (viris) baptizados, cujas
aptidões para o exercício do ministério tenham sido devidamente reconhecidas. Compete à
autoridade da Igreja a responsabilidade e o direito de chamar alguém para receber a
Ordem.
1599. Na Igreja latina, o sacramento da Ordem para o presbiterado, normalmente, apenas
é conferido a candidatos decididos a abraçar livremente o celibato e que manifestem pub-
licamente a sua vontade de o guardar por amor do Reino de Deus e do serviço dos homens.
1600. Pertence aos bispos o direito de conferir o sacramento da Ordem nos seus três graus.

ARTIGO 7

O SACRAMENTO DO MATRIMÓNIO

1601. «O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si a comunhão
íntima de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e
educação da prole, entre os baptizados foi elevado por Cristo Senhor à dignidade de sacra-
mento» (93) .

I. O matrimónio no desígnio de Deus


1602. A Sagrada Escritura começa pela criação do homem e da mulher, à imagem e semel-
hança de Deus (94), e termina com a visão das «núpcias do Cordeiro» (Ap 19, 9) (95). Do
princípio ao fim, a Escritura fala do matrimónio e do seu «mistério», da sua instituição e do
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sentido que Deus lhe deu, da sua origem e da sua finalidade, das suas diversas realizações ao
longo da história da salvação, das suas dificuldades nascidas do pecado e da sua renovação
«no Senhor» (1 Cor 7, 39), na Nova Aliança de Cristo e da Igreja (96).

O MATRIMÓNIO NA ORDEM DA CRIAÇÃO

1603. «A íntima comunidade da vida e do amor conjugal foi fundada pelo Criador e dotada de
leis próprias [...]. O próprio Deus é o autor do matrimónio» (97). A vocação para o mat-
rimónio está inscrita na própria natureza do homem e da mulher, tais como saíram das mãos
do Criador. O matrimónio não é uma instituição puramente humana, apesar das numerosas
variações a que esteve sujeito no decorrer dos séculos, nas diferentes culturas, estruturas soci-
ais e atitudes espirituais. Tais diversidades não devem fazer esquecer os traços comuns e per-
manentes. Muito embora a dignidade desta instituição nem sempre e nem por toda a parte
transpareça com a mesma clareza (98), existe, no entanto, em todas as culturas, um certo sen-
tido da grandeza da união matrimonial. Porque «a saúde da pessoa e da sociedade está estreit-
amente ligada a uma situação feliz da comunidade conjugal e familiar» (99).
1604. Deus, que criou o homem por amor, também o chamou ao amor, vocação fundamental
e inata de todo o ser humano. Porque o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus
(100) que é amor (1 Jo 4, 8.16). Tendo-os Deus criado homem e mulher, o amor mútuo dos
dois torna-se imagem do amor absoluto e indefectível com que Deus ama o homem. É bom,
muito bom, aos olhos do Criador (101). E este amor, que Deus abençoa, está destinado a ser
fecundo e a realizar-se na obra comum do cuidado da criação: «Deus abençoou-os e disse-
lhes: "Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a"» (Gn 1, 28).
1605. Que o homem e a mulher tenham sido criados um para o outro, afirma-o a Sagrada
Escritura: «Não é bom que o homem esteja só» (Gn 2, 18). A mulher, «carne da sua carne»
(102), isto é, sua igual, a criatura mais parecida com ele, é-lhe dada por Deus como uma ,aux-
iliar» (103), representando assim aquele «Deus que é o nosso auxílio» (104). «Por esse
motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher: e os dois serão uma só
carne» (Gn 2, 24). Que isto significa uma unidade indefectível das duas vidas, o próprio Sen-
hor o mostra, ao lembrar qual foi, «no princípio», o desígnio do Criador (105): «Portanto, já
não são dois, mas uma só carne» (Mt 19, 6).

O MATRIMÓNIO SOB O REGIME DO PECADO

1606. Todo o homem faz a experiência do mal, à sua volta e em si mesmo. Esta experiência
faz-se também sentir nas relações entre o homem e a mulher. Desde sempre, a união de am-
bos foi ameaçada pela discórdia, o espírito de domínio, a infidelidade, o ciúme e conflitos
capazes de ir até ao ódio e à ruptura. Esta desordem pode manifestar-se de um modo mais ou
menos agudo e ser mais ou menos ultrapassada, conforme as culturas, as épocas, os indivídu-
os. Mas parece, sem dúvida, ter um carácter universal.
1607. Segundo a fé, esta desordem, que dolorosamente comprovamos, não procede da
natureza do homem e da mulher, nem da natureza das suas relações, mas do pecado. Ruptura
com Deus, o primeiro pecado teve como primeira consequência a ruptura da comunhão ori-
ginal do homem e da mulher. As suas relações são distorcidas por acusações recíprocas (106);
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a atracção mútua, dom próprio do Criador (107), converte-se em relação de domínio e de cu-
pidez (108): a esplêndida vocação do homem e da mulher para serem fecundos,
multiplicarem-se e submeterem a terra (109) fica sujeita às dores do parto e do ganha-pão
(110).
1608. No entanto, a ordem da criação subsiste, apesar de gravemente perturbada. Para curar
as feridas do pecado, o homem e a mulher precisam da ajuda da graça que Deus, na sua miser-
icórdia infinita, nunca lhes recusou (111). Sem esta ajuda, o homem e a mulher não podem
chegar a realizar a união das suas vidas para a qual Deus os criou «no princípio».

O MATRIMÓNIO SOB A PEDAGOGIA DA LEI

1609. Na sua misericórdia, Deus não abandonou o homem pecador. As penas que se
seguiram ao pecado, «as dores do parto» (112), o trabalho «com o suor do rosto» (Gn 3, 19),
constituem também remédios que reduzem os malefícios do pecado. Depois da queda, o mat-
rimónio ajuda a superar o auto-isolamento, o egoísmo, a busca do próprio prazer, e a abrir-se
ao outro, à mútua ajuda, ao dom de si.
1610. A consciência moral relativamente à unidade e indissolubilidade do matrimónio
desenvolveu-se sob a pedagogia da antiga Lei. A poligamia dos patriarcas e dos reis ainda não
é explicitamente rejeitada. No entanto, a Lei dada a Moisés visa proteger a mulher contra um
domínio arbitrário por parte do homem, ainda que a mesma Lei comporte também, segundo a
palavra do Senhor, vestígios da «dureza do coração» do homem, em razão da qual Moisés per-
mitiu o repúdio da mulher (113).
1611. Ao verem a Aliança de Deus com Israel sob a imagem dum amor conjugal, exclusivo e
fiel (114), os profetas prepararam a consciência do povo eleito para uma inteligência apro-
fundada da unicidade e indissolubilidade do matrimónio (115). Os livros de Rute e de Tobias
dão testemunhos comoventes do elevado sentido do matrimónio, da fidelidade e da ternura
dos esposos. E a Tradição viu sempre no Cântico dos Cânticos uma expressão única do amor
humano, enquanto reflexo do amor de Deus, amor «forte como a morte», que «nem as águas
caudalosas conseguem apagar» (Ct 8, 6-7).

O MATRIMÓNIO NO SENHOR

1612. A aliança nupcial entre Deus e o seu povo Israel tinha preparado a Aliança nova e
eterna, pela qual o Filho de Deus, encarnando e dando a sua vida, uniu a Si, de certo modo,
toda a humanidade por Ele salva (116), preparando assim as «núpcias do Cordeiro» (117).
1613. No umbral da sua vida pública, Jesus realiza o seu primeiro sinal –a pedido da sua Mãe
– por ocasião duma festa de casamento (118). A Igreja atribui uma grande importância à
presença de Jesus nas bodas de Caná. Ela vê nesse facto a confirmação da bondade do mat-
rimónio e o anúncio de que, doravante, o matrimónio seria um sinal eficaz da presença de
Cristo.
1614. Na sua pregação, Jesus ensinou sem equívocos o sentido original da união do homem e
da mulher, tal como o Criador a quis no princípio: a permissão de repudiar a sua mulher, dada
por Moisés, era uma concessão à dureza do coração (119): a união matrimonial do homem e
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da mulher é indissolúvel: foi o próprio Deus que a estabeleceu: «Não separe, pois, o homem o
que Deus uniu» (Mt 19, 6).
1615. Esta insistência inequívoca na indissolubilidade do vínculo matrimonial pôde criar per-
plexidade e aparecer como uma exigência impraticável (120). No entanto, Jesus não impôs
aos esposos um fardo impossível de levar e pesado demais (121), mais pesado que a Lei de
Moisés. Tendo vindo restabelecer a ordem original da criação, perturbada pelo pecado, Ele
próprio dá a força e a graça de viver o matrimónio na dimensão nova do Reino de Deus. É
seguindo a Cristo, na renúncia a si próprios e tornando a sua cruz (122), que os esposos poder-
ão «compreender» (123) o sentido original do matrimónio e vivê-lo com a ajuda de Cristo.
Esta graça do Matrimónio cristão é fruto da cruz de Cristo, fonte de toda a vida cristã.
1616. É o que o Apóstolo Paulo nos dá a entender, quando diz: «Maridos, amai as vossas mul-
heres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela, a fim de a santificar» (Ef 5, 25- 26): e
acrescenta imediatamente: «"Por isso o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulh-
er e serão os dois uma só carne". É grande este mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja»
(Ef 5, 31-32).
1617. Toda a vida cristã tem a marca do amor esponsal entre Cristo e a Igreja. Já o Baptismo,
entrada no povo de Deus, é um mistério nupcial: é, por assim dizer, o banho de núpcias (124)
que precede o banquete das bodas, a Eucaristia. O Matrimónio cristão, por sua vez, torna-se
sinal eficaz, sacramento da aliança de Cristo com a Igreja. E uma vez que significa e comunica
a graça desta aliança, o Matrimónio entre baptizados é um verdadeiro sacramento da Nova
Aliança (125).

A VIRGINDADE POR AMOR DO REINO

1618. Cristo é o centro de toda a vida cristã. A união com Ele prevalece sobre todas as outras,
quer se trate de laços familiares, quer sociais (126). Desde o princípio da Igreja, houve homens
e mulheres que renunciaram ao grande bem do matrimónio, para seguirem o Cordeiro aonde
quer que Ele vá (127), para cuidarem das coisas do Senhor, para procurarem agradar- Lhe
para saírem ao encontro do Esposo que vem (128). O próprio Cristo convidou alguns a
seguirem-n'O neste modo de vida, de que Ele é o modelo:
«Há eunucos que nasceram assim do seio materno; há os que foram feitos eunucos pelos ho-
mens; e há os que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do Reino dos céus. Quem puder
entender, entenda!» (Mt 19, 12).
1619. A virgindade por amor do Reino dos céus é um desenvolvimento da graça baptismal,
um sinal poderoso da preeminência da união com Cristo e da espera fervorosa do seu re-
gresso, um sinal que lembra também que o matrimónio é uma realidade do tempo presente,
que é passageiro (130).
1620. Quer, o sacramento do Matrimónio, quer a virgindade por amor do Reino de Deus, vêm
do próprio Senhor. É Ele que lhes dá sentido e concede a graça indispensável para serem
vividos em conformidade com a sua vontade (131). A estima pela virgindade por amor do
Reino (132) e o sentido cristão do matrimónio são inseparáveis e favorecem-se mutuamente:
«Denegrir o Matrimónio é, ao mesmo tempo, diminuir a glória da virgindade: enaltecê-lo é
realçar a admiração devida à virgindade [...] Porque, no fim de contas, o que só em
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comparação com um mal parece bom, não pode ser um verdadeiro bem: mas o que ainda é
melhor do que bens incontestados, esse é que é o bem por excelência» (133)

II. A celebração do Matrimónio

1621. No rito latino, a celebração do Matrimónio entre dois fiéis católicos tem lugar normal-
mente no decorrer da santa Missa, em virtude da ligação de todos os sacramentos com o mis-
tério pascal de Cristo (134). Na Eucaristia realiza-se o memorial da Nova Aliança, pela qual
Cristo se uniu para sempre à Igreja, sua esposa bem-amada, por quem se entregou (135). Por
isso, é conveniente que os esposos selem o seu consentimento à doação recíproca pela ofer-
enda das próprias vidas, unindo-a à oblação de Cristo pela sua Igreja, tornada presente no
sacrifício eucarístico, e recebendo a Eucaristia, para que, comungando o mesmo corpo e o
mesmo sangue de Cristo, «formem um só corpo» em Cristo (136).
1622. «Enquanto acção sacramental de santificação, a celebração litúrgica do Matrimónio
[...] deve ser por si mesma válida, digna e frutuosa» (137). Por isso, é conveniente que os fu-
turos esposos se preparem para a celebração do seu Matrimónio, recebendo o sacramento da
Penitência.
1623. Segundo a tradição latina, são os esposos quem, como ministros da graça de Cristo,
mutuamente se conferem o sacramento do Matrimónio, ao exprimirem, perante a Igreja, o seu
consentimento. Nas tradições das Igrejas orientais, os sacerdotes que oficiam – Bispos ou
presbíteros – são testemunhas do mútuo consentimento manifestado pelos esposos (138),
mas a sua bênção também é necessária para a validade do sacramento (139).
1624. As diversas liturgias são ricas em orações de bênção e de epiclese, pedindo a Deus a sua
graça e invocando a sua bênção sobre o novo casal, especialmente sobre a esposa. Na epiclese
deste sacramento, os esposos recebem o Espírito Santo como comunhão do amor de Cristo e
da Igreja (140). É Ele o selo da aliança de ambos, a nascente sempre oferecida do seu amor, a
força pela qual se renovará a sua fidelidade.

III. O consentimento matrimonial

1625. Os protagonistas da aliança matrimonial são um homem e uma mulher baptizados,


livres para contrair Matrimónio e que livremente exprimem o seu consentimento. «Ser livre»
quer dizer:
– não ser constrangido; – não estar impedido por nenhuma lei natural nem eclesiástica.
1626. A Igreja considera a permuta dos consentimentos entre os esposos como o elemento in-
dispensável «que constitui o Matrimónios (141). Se faltar o consentimento, não há
Matrimónio.
1627. O consentimento consiste num «acto humano pelo qual os esposos se dão e se recebem
mutuamente» (142): «Eu recebo-te por minha esposa. Eu recebo-te por meu esposo» (143).
Este consentimento, que une os esposos entre si, tem a sua consumação no facto de os dois
«se tornarem uma só carne» (144).
1628. O consentimento deve ser um acto da vontade de cada um dos contraentes, livre de vi-
olência ou de grave temor externo (145). Nenhum poder humano pode substituir-se a este
consentimento (146). Faltando esta liberdade, o matrimónio é inválido.
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1629. Por este motivo (ou por outras razões, que tornem nulo ou não realizado o casamento)
(147), a Igreja pode, depois de examinada a situação pelo tribunal eclesiástico competente, de-
clarar «a nulidade do Matrimónio», ou seja, que o Matrimónio nunca existiu. Em tal caso, os
contraentes ficam livres para se casarem, salvaguardadas as obrigações naturais resultantes
da união anterior (148).
1630. O sacerdote (ou o diácono), que assiste à celebração do Matrimónio, recebe o consenti-
mento dos esposos em nome da Igreja e dá a bênção da Igreja. A presença do ministro da
Igreja (bem como das testemunhas) exprime visivelmente que o Matrimónio é uma realidade
eclesial.
1631. É por esse motivo que, normalmente, a Igreja exige para os seus fiéis a forma
eclesiástica da celebração do Matrimónio (149). Muitas razões concorrem para explicar esta
determinação:
– o Matrimónio sacramental é um acto litúrgico. Portanto, é conveniente que seja celebrado
na liturgia pública da Igreja; – o Matrimónio introduz num ordo eclesial, cria direitos e
deveres na Igreja, entre os esposos e para com os filhos;
– uma vez que o Matrimónio é um estado de vida na Igreja, é necessário que haja a certeza a
respeito dele (daí a obrigação de haver testemunhas); – o carácter público do consentimento
protege o «sim» uma vez dado e ajuda a permanecer- lhe fiel.
1632. Para que o «sim» dos esposos seja um acto livre e responsável, e para que a aliança
matrimonial tenha bases humanas e cristãs sólidas e duradoiras, é de primordial importância
a preparação para o matrimónio:
O exemplo e o ensino dados pelos pais e pelas famílias continuam a ser o caminho privilegiado
desta preparação. O papel dos pastores e da comunidade cristã, como «família de Deus», é in-
dispensável para a transmissão dos valores humanos e cristãos do Matrimónio e da família
(150), e isto tanto mais quanto é certo que, nos nossos dias, muitos jovens conhecem a exper-
iência de lares desfeitos, que já não garantem suficientemente aquela iniciação:
«Os jovens devem ser conveniente e oportunamente instruídos, sobretudo no seio da própria
família, acerca da dignidade, missão e exercício do amor conjugal. Deste modo, educados na
estima pela castidade, poderão passar, chegada a idade conveniente, de um noivado honesto
para o matrimónio» (151).

CASAMENTOS MISTOS E DISPARIDADE DE CULTOS

1633. Em muitos países, a situação do matrimónio misto (entre um católico e um baptizado


não-católico) apresenta-sede modo bastante frequente. Tal situação pede uma atenção partic-
ular dos cônjuges e dos pastores. O caso dos casamentos com disparidade de culto (entre um
católico e um não-baptizado) exige uma atenção ainda maior.
1634. A diferença de confissão religiosa entre os cônjuges não constitui um obstáculo insu-
perável para o Matrimónio, quando eles conseguem pôr em comum o que cada um recebeu na
sua comunidade e aprender um do outro o modo como cada um vive a sua fidelidade a Cristo.
Mas as dificuldades dos matrimónios mistos nem por isso devem ser subestimadas. São devi-
das ao facto de a separação dos cristãos ainda não ter sido superada. Os esposos arriscam-se a
vir a ressentir-se do drama da desunião dos cristãos no seio do próprio lar. A disparidade de
culto pode agravar ainda mais estas dificuldades. As divergências em relação à fé, o próprio
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conceito do Matrimónio e ainda as diferentes mentalidades religiosas podem constituir uma


fonte de tensões no Matrimónio, principalmente por causa da educação dos filhos. Pode então
surgir uma tentação: a indiferença religiosa.
1635. Segundo o direito em vigor na Igreja latina, um Matrimónio misto precisa da permis-
são expressa da autoridade eclesiástica (152) para a respectiva liceidade. Em caso de disparid-
ade de culto, é requerida uma dispensa expressa do impedimento para a validade do Mat-
rimónio (153). Tanto a permissão como a dispensa supõem que as duas partes conhecem e
não rejeitam os fins e propriedades essenciais do Matrimónio: e também que a parte católica
confirma os seus compromissos, dados também a conhecer expressamente à parte não
católica, de conservar a sua fé e de assegurar o Baptismo e a educação dos filhos na Igreja
Católica (154).
1636. Em muitas regiões, graças ao diálogo ecuménico, as respectivas comunidades cristãs
puderam organizar uma pastoral comum para os casamentos mistos. O seu papel consiste
em ajudar os casais a viver a sua situação particular à luz da fé. Ela deve também ajudá-los a
superar as tensões entre as obrigações dos cônjuges um para com o outro e para com as re-
spectivas comunidades eclesiais. Deve estimular o desenvolvimento do que lhes é comum na
fé e o respeito pelo que os divide.
1637. Nos casamentos com disparidade de culto, o cônjuge católico tem uma tarefa particular
a cumprir, «porque o marido não-crente é santificado pela sua mulher e a mulher não-crente
é santificada pelo marido crente» (1 Cor 7, 14). Será uma grande alegria para o cônjuge cristão
e para a Igreja, se esta «santificação» levar à conversão livre do outro à fé cristã (155). O amor
conjugal sincero, a prática humilde e paciente das virtudes familiares e a oração perseverante,
podem preparar o cônjuge não-crente para receber a graça da conversão.

IV. Os efeitos do sacramento do Matrimónio

1638. « Do Matrimónio válido origina-se entre os cônjuges um vínculo de sua natureza per-
pétuo e exclusivo: no matrimónio cristão, além disso, são os cônjuges robustecidos e como que
consagrados por um sacramento peculiar para os deveres e dignidade do seu estado» (156).

O VÍNCULO MATRIMONIAL

1639. O consentimento, pelo qual os esposos mutuamente se dão e se recebem, é selado pelo
próprio Deus (157). Da sua aliança «nasce uma instituição, também à face da sociedade, tor-
nada firme e estável pela lei divina» (158). A aliança dos esposos é integrada na aliança de
Deus com os homens: «O autêntico amor conjugal é assumido no amor divino» (159).
1640. O vínculo matrimonial é, portanto, estabelecido pelo próprio Deus, de maneira que o
matrimónio ratificado e consumado entre baptizados não pode jamais ser dissolvido. Este vín-
culo, resultante do acto humano livre dos esposos e da consumação do matrimónio, é, a partir
de então, uma realidade irrevogável e dá origem a uma aliança garantida pela fidelidade de
Deus. A Igreja não tem poder para se pronunciar contra esta disposição da sabedoria divina
(160).

A GRAÇA DO SACRAMENTO DO MATRIMÓNIO


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1641. Os esposos cristãos, «no seu estado de vida e na sua ordem, têm, no povo de Deus, os
seus dons próprios» (161). Esta graça própria do sacramento do Matrimónio destina-se a
aperfeiçoar o amor dos cônjuges e a fortalecer a sua unidade indissolúvel. Por meio desta
graça, «eles auxiliam-se mutuamente para chegarem à santidade pela vida conjugal e pela
procriação e educação dos filhos» (162).
1632. Cristo é a fonte desta graça. «Assim como outrora Deus veio ao encontro do seu povo
com unia aliança de amor e fidelidade, assim agora o Salvador dos homens e Esposo da Igreja
vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do Matrimónio» (163). Fica com eles,
dá-lhes a coragem de O seguirem tomando sobre si a sua cruz, de se levantarem depois das
quedas, de se perdoarem mutuamente, de levarem o fardo um do outro (164), de serem «sub-
missos um ao outro no temor de Cristo» (Ef 5, 21) e de se amarem com um amor sobrenatural,
delicado e fecundo. Nas alegrias do seu amor e da sua vida familiar, Ele dá-lhes, já neste
mundo, um antegosto do festim das núpcias do Cordeiro:
«Onde irei buscar forças para descrever, de modo satisfatório, a felicidade do Matrimónio que
a Igreja une, que a oblação eucarística confirma e a bênção sela? Os anjos proclamam-no, o
Pai celeste ratifica-o [...] Que jugo o de dois cristãos, unidos por uma só esperança, um único
desejo, uma única disciplina, um mesmo serviço! Ambos filhos do mesmo Pai, servos do
mesmo Senhor; nada os separa, nem no espírito nem na carne; pelo contrário, eles são ver-
dadeiramente dois numa só carne. Ora, onde a carne á só uma, também um só é o espírito»
(165).

V. Os bens e as exigências do amor conjugal

1643. «O amor conjugal comporta um todo em que entram todas as componentes da pessoa
– apelo do corpo e do instinto, força do sentimento e da afectividade, aspiração do espírito e
da vontade –; visa uma unidade profundamente pessoal – aquela que, para além da união
numa só carne, conduz à formação dum só coração e duma só alma –; exige a indissolubilid-
ade e a fidelidade na doação recíproca definitiva; e abre-se à fecundidade. Trata-se, é claro,
das características normais de todo o amor conjugal natural, mas com um significado novo
que não só as purifica e consolida, mas as eleva ao ponto de fazer delas a expressão de valores
especificamente cristãos» (166).

A UNIDADE E A INDISSOLUBILIDADE DO MATRIMÓNIO

1644. Pela sua própria natureza, o amor dos esposos exige a unidade e a indissolubilidade da
sua comunidade de pessoas, a qual engloba toda a sua vida: «assim, já não são dois, mas uma
só carne» (Mt 19, 6) (167). «Eles são chamados a crescer sem cessar na sua comunhão, através
da fidelidade quotidiana à promessa da mútua doação total que o Matrimónio implica» (168).
Esta comunhão humana é confirmada, purificada e aperfeiçoada pela comunhão em Jesus
Cristo, conferida pelo sacramento do Matrimónio; e aprofunda-se pela vida da fé comum e
pela Eucaristia recebida em comum.
1645. «A igual dignidade pessoal, que se deve reconhecer à mulher e ao homem no amor
pleno que têm um pelo outro, manifesta claramente a unidade do Matrimónio, confirmada
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pelo Senhor» (169). A poligamia é contrária a esta igual dignidade e ao amor conjugal, que é
único e exclusivo (170).

A FIDELIDADE DO AMOR CONJUGAL

1646. Pela sua própria natureza, o amor conjugal exige dos esposos uma fidelidade inviolável.
Esta é uma consequência da doação de si mesmos que os esposos fazem um ao outro. O amor
quer ser definitivo. Não pode ser «até nova ordem». «Esta união íntima, enquanto doação
recíproca de duas pessoas, tal como o bem dos filhos, exigem a inteira fidelidade dos cônjuges
e reclamam a sua união indissolúvel» (171).
1647. O motivo mais profundo encontra-se na fidelidade de Deus à sua aliança, de Cristo à
sua Igreja. Pelo sacramento do Matrimónio, os esposos ficam habilitados a representar esta fi-
delidade e a dar testemunho dela. Pelo sacramento, a indissolubilidade do Matrimónio ad-
quire um sentido novo e mais profundo.
1648. Pode parecer difícil, e até impossível, ligar-se por toda a vida a um ser humano. Por
isso mesmo, é da maior importância anunciar a boa-nova de que Deus nos ama com um amor
definitivo e irrevogável, de que os esposos participam neste amor que os conduz e sustém e de
que, pela sua fidelidade, podem ser testemunhas do amor fiel de Deus. Os esposos que, com a
graça de Deus, dão este testemunho, muitas vezes em condições bem difíceis, merecem a
gratidão e o amparo da comunidade eclesial (172).
1649. No entanto, há situações em que a coabitação matrimonial se torna praticamente im-
possível pelas mais diversas razões. Em tais casos, a Igreja admite a separação física dos es-
posos e o fim da coabitação. Mas os esposos não deixam de ser marido e mulher perante Deus:
não são livres de contrair nova união. Nesta situação difícil, a melhor solução seria, se pos-
sível, a reconciliação. A comunidade cristã é chamada a ajudar estas pessoas a viverem cristã-
mente a sua situação, na fidelidade ao vínculo do seu Matrimónio, que continua indissolúvel
(173).
1650. Hoje em dia e em muitos países, são numerosos os católicos que recorrem ao divórcio,
em conformidade com as leis civis, e que contraem civilmente uma nova união. A Igreja
mantém, por fidelidade à palavra de Jesus Cristo («quem repudia a sua mulher e casa com
outra comete adultério em relação à primeira; e se uma mulher repudia o seu marido e casa
com outro, comete adultério»: Mc 10, 11-12), que não pode reconhecer como válida uma nova
união, se o primeiro Matrimónio foi válido. Se os divorciados se casam civilmente, ficam
numa situação objectivamente contrária à lei de Deus. Por isso, não podem aproximar-se da
comunhão eucarística, enquanto persistir tal situação. Pelo mesmo motivo, ficam impedidos
de exercer certas responsabilidades eclesiais. A reconciliação, por meio do sacramento da Pen-
itência, só pode ser dada àqueles que se arrependerem de ter violado o sinal da Aliança e da fi-
delidade a Cristo e se comprometerem a viver em continência completa.
1651. Com respeito a cristãos que vivem nesta situação e que muitas vezes conservam a fé e
desejam educar cristãmente os seus filhos, os sacerdotes e toda a comunidade devem dar
provas duma solicitude atenta, para que eles não se sintam separados da Igreja, em cuja vida
podem e devem participar como baptizados que são:
«Serão convidados a ouvir a Palavra de Deus, a assistir ao sacrifício da Missa, a perseverar na
oração, a prestar o seu contributo às obras de caridade e às iniciativas da comunidade em prol
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da justiça, a educar os seus filhos na fé cristã, a cultivar o espírito de penitência e a cumprir os


actos respectivos, a fim de implorarem, dia após dia, a graça de Deus» (174).

A ABERTURA À FECUNDIDADE

1652. «Pela sua própria natureza, a instituição matrimonial e o amor conjugal estão ordena-
dos à procriação e à educação dos filhos, que constituem o ponto alto da sua missão e a sua
coroa»
«Os filhos são, sem dúvida, o mais excelente dom do Matrimónio e contribuem muitíssimo
para o bem dos próprios pais. O mesmo Deus que disse: "não é bom que o homem esteja só"
(Gn 2, 18) e que "desde o princípio fez o homem varão e mulher" (Mt 19, 4), querendo
comunicar-lhe uma participação especial na sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher
dizendo: "Sede fecundos e multiplicai-vos" (Gn 1, 28). Por isso, o culto autêntico do amor con-
jugal e toda a vida familiar que dele nasce, sem pôr de lado os outros fins do Matrimónio, ten-
dem a que os esposos, com fortaleza de ânimo, estejam dispostos a colaborar com o amor do
Criador e do Salvador, que, por meio deles, aumenta continuamente e enriquece a sua
família» (176).
1653 A fecundidade do amor conjugal estende-se aos frutos da vida moral, espiritual e
sobrenatural que os pais transmitem aos filhos pela educação. Os pais são os principais e
primeiros educadores dos seus filhos(177). Neste sentido, a missão fundamental do Mat-
rimónio e da família é estar ao serviço da vida (178).
1654. Os esposos a quem Deus não concedeu a graça de ter filhos podem, no entanto, ter uma
vida conjugal cheia de sentido, humana e cristãmente falando. O seu Matrimónio irradiar uma
fecundidade de caridade, de acolhimento e de sacrifício.

VI. A Igreja doméstica

1655. Cristo quis nascer e crescer no seio da Sagrada Família de José e de Maria. A Igreja
outra coisa não é senão a «família de Deus». Desde as suas origens, o núcleo aglutinante da
Igreja era, muitas vezes, constituído por aqueles que, «com toda a sua casa», se tinham tor-
nado crentes» (179). Quando se convertiam, desejavam que também «toda a sua casa» fosse
salva (180). Estas famílias, que passaram a ser crentes, eram pequenas ilhas de vida cristã no
meio dum mundo descrente.
1656. Nos nossos dias, num mundo muitas vezes estranho e até hostil à fé, as famílias crentes
são de primordial importância, como focos de fé viva e irradiante. É por isso que o II Concílio
do Vaticano chama à família, segundo uma antiga expressão, «Ecclesia domestica – Igreja
doméstica» (181). É no seio da família que os pais são, «pela palavra e pelo exemplo [...], os
primeiros arautos da fé para os seus filhos, ao serviço da vocação própria de cada um e muito
especialmente da vocação consagrada» (182).
1657. É aqui que se exerce, de modo privilegiado, o sacerdócio baptismal do pai de família,
da mãe, dos filhos, de todos os membros da família, «na recepção dos sacramentos, na oração
e acção de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade efectiva»
(183). O lar é, assim, a primeira escola de vida cristã e «uma escola de enriquecimento hu-
mano» (184). É aqui que se aprende a tenacidade e a alegria no trabalho, o amor fraterno, o
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perdão generoso e sempre renovado, e, sobretudo, o culto divino, pela oração e pelo ofereci-
mento da própria vida.
1658. Não podem esquecer-se, também, certas pessoas que estão, em virtude das condições
concretas em que têm de viver, muitas vezes sem assim o terem querido, particularmente
próximas do coração de Cristo, e que merecem, portanto, a estima e a solicitude atenta da
Igreja, particularmente dos pastores: o grande número de pessoas celibatárias. Muitas delas
ficam sem família humana, frequentemente devido a condições de pobreza. Algumas vivem a
sua situação no espírito das bem-aventuranças, servindo a Deus e ao próximo de modo exem-
plar. Mas a todas é necessário abrir as portas dos lares, «igrejas domésticas», e da grande
família que é a Igreja. «Ninguém se sinta privado de família neste mundo: a Igreja é casa e
família para todos, especialmente para quantos estão "cansados e oprimidos" (Mt 11, 28)»
(185).

Resumindo:

1659. São Paulo diz: «Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja [...] É
grande este mistério, que eu refiro a Cristo e à Igreja» (Ef 5, 25.32).
1660. A aliança matrimonial, pela qual um homem e uma mulher constituem entre si uma
comunidade íntima de vida e de amor; foi fundada e dotada das suas leis próprias pelo Cri-
ador: Pela sua natureza, ordena-se ao bem dos cônjuges, bem como à procriação e educação
dos filhos. Entre os baptizados ,foi elevada por Cristo Senhor à dignidade de sacramento
(186).
1661. O sacramento do Matrimónio significa a união de Cristo com a Igreja. Confere aos es-
posos a graça de se amarem com o amor com que Cristo amou a sua Igreja; a graça do sac-
ramento aperfeiçoa assim o amor humano dos esposos, dá firmeza à sua unidade indis-
solúvel e santifica-os no caminho da vida eterna (187).
1662. O Matrimónio assenta no consentimento dos contraentes, quer dizer; na vontade de
se darem mútua e definitivamente, com o fim de viverem uma aliança de amor fiel e
fecundo.
1663. Uma vez que o Matrimónio estabelece os cônjuges num estado público de vida na
Igreja, é conveniente que a sua celebração seja pública, integrada numa celebração litúr-
gica, perante o sacerdote (ou testemunha qualificada da Igreja), as testemunhas e a as-
sembleia dos fiéis.
1664. A unidade, a indissolubilidade e a abertura à fecundidade são essenciais ao Mat-
rimónio. A poligamia é incompatível com a unidade do Matrimónio; o divórcio separa o que
Deus uniu; a recusa da fecundidade desvia a vida conjugal do seu «dom mais excelente», o
filho (188).
1665. O novo casamento dos divorciados, em vida do cônjuge legítimo, é contrário ao
desígnio e à Lei de Deus ensinados por Cristo. Eles não ficam separados da Igreja, mas não
têm acesso à comunhão eucarística. Viverão a sua vida cristã sobretudo educando os filhos
na fé.
1666. O lar cristão é o lugar onde os filhos recebem o primeiro anúncio da fé. É por isso que
a casa de família se chama, com razão, «Igreja doméstica», comunidade de graça e de or-
ação, escola de virtudes humanas e de caridade cristã.
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CAPÍTULO QUARTO
AS OUTRAS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS

ARTIGO 1

OS SACRAMENTAIS

1667. «A Santa Mãe Igreja instituiu também os sacramentais. Estes são sinais sagrados por
meio dos quais, imitando de algum modo os sacramentos, se significam e se obtêm, pela or-
ação da Igreja, efeitos principalmente de ordem espiritual. Por meio deles, dispõem-se os ho-
mens para a recepção do principal efeito dos sacramentos e são santificadas as várias circun-
stâncias da vida» (1).

TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DOS SACRAMENTAIS

1668. São instituídos pela Igreja com vista à santificação de certos ministérios da mesma
Igreja, de certos estados de vida, de circunstâncias muito variadas da vida cristã, bem como do
uso de coisas úteis ao homem. Segundo as decisões pastorais dos bispos, podem também cor-
responder às necessidades, à cultura e à história próprias do povo cristão duma região ou
duma época. Incluem sempre uma oração, muitas vezes acompanhada dum sinal determ-
inado, como a imposição da mão, o sinal da cruz, a aspersão com água benta (que recorda o
Baptismo).
1669. Eles decorrem do sacerdócio baptismal: todo o baptizado é chamado a ser uma
«bênção» (2) e a abençoar (3). Por isso, há certas bênçãos que podem ser presididas por leigos
(4). Porém, quanto mais uma bênção disser respeito à vida eclesial e sacramental, tanto mais a
sua presidência será reservada ao ministério ordenado (bispos, presbíteros ou diáconos) (5).
1670. Os sacramentais não conferem a graça do Espírito Santo à maneira dos sacramentos;
mas, pela oração da Igreja, preparam para receber a graça e dispõem para cooperar com ela.
«Portanto, a liturgia dos sacramentos e sacramentais oferece aos fiéis bem dispostos a possib-
ilidade de santificarem quase todos os acontecimentos da vida por meio da graça divina que
deriva do mistério pascal da paixão, morte e ressurreição de Cristo, mistério onde vão buscar
a sua eficácia todos os sacramentos e sacramentais. E assim, quase não há uso honesto das
coisas materiais que não possa reverter para este fim: a santificação dos homens e o louvor a
Deus» (6).

FORMAS VARIADAS DOS SACRAMENTAIS

1671. Entre os sacramentais figuram, em primeiro lugar, as bênçãos (de pessoas, da mesa, de
objectos e lugares). Toda a bênção é louvor de Deus e oração para obter os seus dons. Em
Cristo, os cristãos são abençoados por Deus Pai, «com toda a espécie de bênçãos espirituais»
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(Ef 1, 3). É por isso que a Igreja dá a bênção invocando o nome de Jesus e fazendo habitual-
mente o santo sinal da cruz de Cristo.
1672. Certas bênçãos têm um alcance duradoiro: são as que têm por fim consagrar pessoas a
Deus e reservar objectos e lugares para usos litúrgicos. Entre as que são destinadas a pessoas
(e que não devem confundir-se com a ordenação sacramental) figuram a bênção do abade ou
abadessa dum mosteiro, a consagração das virgens e das viúvas, o rito da profissão religiosa e
as bênçãos para certos ministérios da Igreja (leitores, acólitos, catequistas, etc.). Como exem-
plo das que dizem respeito a objectos, pode apontar-se a dedicação ou bênção de unta igreja
ou de um altar, a bênção dos santos óleos, dos vasos e paramentos sagrados, dos sinos, etc.
1673. Quando a Igreja pede publicamente e com autoridade, em nome de Jesus Cristo, que
uma pessoa ou objecto seja protegido contra a acção do Maligno e subtraído ao seu domínio,
fala-se de exorcismo. Jesus praticou-o (7) - e é d'Ele que a Igreja obtém o poder e encargo de
exorcizar (8). Sob uma forma simples, faz-se o exorcismo na celebração do Baptismo. O exor-
cismo solene, chamado «grande exorcismo», só pode ser feito por um presbítero e com licença
do bispo. Deve proceder-se a ele com prudência, observando estritamente as regras estabeleci-
das pela Igreja (9). O exorcismo tem por fim expulsar os demónios ou libertar do poder di-
abólico, e isto em virtude da autoridade espiritual que Jesus confiou à sua Igreja. Muito difer-
ente é o caso das doenças, sobretudo psíquicas, cujo tratamento depende da ciência médica.
Por isso, antes de se proceder ao exorcismo, é importante ter a certeza de que se trata duma
presença diabólica e não duma doença.

A RELIGIOSIDADE POPULAR

1674. Fora da liturgia dos sacramentos e dos sacramentais, a catequese deve ter em consider-
ação as formas de piedade dos fiéis e a religiosidade popular. O sentimento religioso do povo
cristão desde sempre encontrou a sua expressão em variadas formas de piedade, que rodeiam
a vida sacramental da Igreja, tais como a veneração das relíquias, as visitas aos santuários, as
peregrinações, as procissões, a via-sacra, as danças religiosas, o rosário, as medalhas, etc. (10).
1675. Estas manifestações são um prolongamento da vida litúrgica da Igreja, mas não a sub-
stituem. «Devem ser organizadas, tendo em conta os tempos litúrgicos e de modo a
harmonizarem-se com a liturgia, a dimanarem dela de algum modo e a nela introduzirem o
povo; porque, por sua natureza, a liturgia lhes é, de longe, superior» (11).
1676. Para manter e apoiar a religiosidade popular, é necessário um discernimento pastoral.
O mesmo se diga, se for caso disso, para purificar e corrigir o sentimento religioso subjacente
a essas devoções e para fazer progredir no conhecimento do mistério de Cristo. A sua prática
está submetida ao cuidado e às decisões dos bispos e às normas gerais da igreja (12).
«A religiosidade do povo, no seu núcleo, é um acervo de valores que responde com sabedoria
cristã às grandes incógnitas da existência. A sapiência popular católica tem uma capacidade de
síntese vital: engloba criadoramente o divino e o humano, Cristo e Maria, espírito e corpo,
comunhão e instituição, pessoa e comunidade, fé e pátria, inteligência e afecto. Esta sabedoria
é um humanismo cristão que afirma radicalmente a dignidade de toda a pessoa como filho de
Deus, estabelece uma fraternidade fundamental, ensina a encontrar a natureza e a com-
preender o trabalho e proporciona as razões para a alegria e o humor, mesmo no meio de uma
vida muito dura. Esta sabedoria é também para o povo um princípio de discernimento, um
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instinto evangélico pelo qual capta espontaneamente quando se serve na Igreja o Evangelho e
quando ele é esvaziado e asfixiado por outros interesses» (13).

Resumindo:

1677. Chamam-se sacramentais os sinais sagrados instituídos pela Igreja, cuja finalidade é
preparar os homens para receberem os frutos dos sacramentos e santificarem as diferentes
circunstâncias da vida.
1678. Entre os sacramentais, as bênçãos ocupam um lugar importante. Compreendem, ao
mesmo tempo, o louvor de Deus pelas suas obras e a intercessão da Igreja para que os ho-
mens possam fazer uso dos dons de Deus segundo o espírito do Evangelho.
1679. Além da liturgia, a vida cristã nutre-se das variadas formas da piedade popular, en-
raizadas nas diferentes culturas. Procurando esclarecê-las com a luz da fé, a Igreja favorece
as formas de religiosidade popular que exprimem um instinto evangélico e uma sabedoria
humana, e que enriquecem a vida cristã.

ARTIGO 2

AS EXÉQUIAS CRISTÃS

1680. Todos os sacramentos, principalmente os da iniciação cristã, têm por fim a última pás-
coa do cristão, que, pela morte, o faz entrar na vida do Reino. Então se cumpre o que ele con-
fessa na fé e na esperança: «Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de
vir» (14).

I. A última Páscoa do cristão

1681. O sentido cristão da morte é revelado à luz do mistério pascal da morte e ressurreição
de Cristo, em quem pomos a nossa única esperança. O cristão que morre em Cristo Jesus
«abandona este corpo para ir morar junto do Senhor» (15).
1682. O dia da morte inaugura para o cristão, no termo da sua vida sacramental, a con-
sumação do seu novo nascimento começado no Baptismo, o definitivo «assemelhar-se à im-
agem do Filho», conferido pela unção do Espírito Santo e pela participação no banquete do
Reino, antecipada na Eucaristia, ainda que algumas derradeiras purificações lhe sejam ainda
necessárias, para poder vestir o traje nupcial.
1683. A Igreja que, como mãe, trouxe sacramentalmente no seu seio o cristão durante a sua
peregrinação terrena, acompanha-o no termo da sua caminhada para o entregar «nas mãos do
Pai». E oferece ao Pai, em Cristo, o filho da sua graça, e depõe na terra, na esperança, o gér-
men do corpo que há-de ressuscitar na glória (16). Esta oblação é plenamente celebrada no
sacrifício eucarístico, e as bênçãos que o precedem e o seguem são sacramentais.

II. A celebração das exéquias


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1684. As exéquias cristãs são uma celebração litúrgica da Igreja. O ministério da Igreja tem
em vista, aqui, tanto exprimir a comunhão eficaz com o defunto, como fazer participar nela a
comunidade reunida para o funeral e anunciar-lhe a vida eterna.
1685. Os diferentes ritos das exéquias exprimem o carácter pascal da morte cristã e corres-
pondem às situações e tradições de cada região, até no que respeita à cor litúrgica (17).
1686. A Celebração das Exéquias – Ordo exsequiarum – da liturgia romana propõe três ti-
pos de celebração das exéquias, correspondentes aos três lugares em que se desenrolam (a
casa, a igreja, o cemitério), e segundo a importância que lhes dão a família, os costumes locais,
a cultura e a piedade popular. O esquema é, aliás, comum a todas as tradições litúrgicas e
compreende quatro momentos principais:
1687. O acolhimento da comunidade. Uma saudação de fé dá início à celebração. Os parentes
do defunto são acolhidos com uma palavra de «consolação» (no sentido do Novo Testamento:
a fortaleza do Espírito Santo na esperança (18). Também a comunidade orante, que se junta,
espera ouvir «as palavras da vida eterna». A morte dum membro da comunidade (ou o seu dia
aniversário, sétimo ou trigésimo) é um acontecimento que deve levar a ultrapassar as per-
spectivas «deste mundo» e projectar os fiéis para as verdadeiras perspectivas da fé em Cristo
Ressuscitado.
1688. A liturgia da Palavra, aquando das exéquias, exige uma preparação, tanto mais atenta
quanto a assembleia presente pode incluir fiéis pouco frequentadores da liturgia e até amigos
do defunto que não sejam cristãos. A homilia, de modo particular, deve «evitar o género liter-
ário do elogio fúnebre» (19) e iluminar o mistério da morte cristã com a luz de Cristo
ressuscitado.
1689. O sacrifício eucarístico. Quando a celebração tem lugar na igreja, a Eucaristia é o cor-
ação da realidade pascal da morte cristã (20). É então que a Igreja manifesta a sua comunhão
eficaz com o defunto: oferecendo ao Pai, no Espírito Santo, o sacrifício da morte e ressurreição
de Cristo, pede-Lhe que o seu filho defunto seja purificado dos pecados e respectivas con-
sequências, e admitido à plenitude pascal da mesa do Reino (21). É pela Eucaristia assim cel-
ebrada que a comunidade dos fiéis, especialmente a família do defunto, aprende a viver em
comunhão com aquele que «adormeceu no Senhor», comungando o corpo de Cristo, de que
ele é membro vivo, e depois rezando por ele e com ele.
1690. O adeus («a Deus») ao defunto é a sua «encomendação a Deus» pela Igreja. É «a úl-
tima saudação dirigida pela comunidade cristã a um dos seus membros, antes de o corpo ser
levado para a sepultura» (22). A tradição bizantina exprime-o pelo ósculo do adeus ao
defunto:
Nesta saudação final, «canta-se por ele ter partido desta vida e pela sua separação, mas tam-
bém porque há uma comunhão e uma reunião. Com efeito, mortos, nós não nos separamos
uns dos outros, porque todos percorremos o mesmo caminho e nos reencontraremos no
mesmo lugar. Nunca nos separaremos, porque vivemos para Cristo e agora estamos unidos a
Cristo, indo para Ele... estaremos todos juntos em Cristo» (23).
TERCEIRA PARTE - A VIDA EM CRISTO

INTRODUÇÃO

1691. «Reconhece, ó cristão, a tua dignidade. Uma vez constituído participante da natureza
divina, não penses em voltar às antigas misérias da tua vida passada. Lembra-te de que cabeça
e de que corpo és membro. Não te esqueças de que foste libertado do poder das trevas e trans-
ferido para a luz e para o Reino de Deus» (1).
1692. O Símbolo da fé, professou a grandeza dos dons de Deus ao homem na obra da criação
e, mais ainda, na da redenção e santificação. O que a fé confessa, os sacramentos comunicam-
no: pelos «sacramentos, que os fizeram renascer», os cristãos tornaram-se «filhos de Deus» (1
Jo 3, 1) (2), «participantes da natureza divina» (2 Pe 1, 4). Reconhecendo pela fé a sua nova
dignidade, os cristãos são chamados a levar, doravante, uma vida digna do Evangelho de
Cristo (3). Pelos sacramentos e pela oração, recebem a graça de Cristo e os dons do seu
Espírito, que dela os tornam capazes.
1693. Cristo Jesus fez sempre aquilo que era do agrado do Pai (4). Viveu sempre em perfeita
comunhão com Ele. De igual modo, os seus discípulos são convidados a viver sob o olhar do
Pai, «que vê no segredo» (Mt 6, 6), para se tornarem «perfeitos como o Pai celeste é perfeito»
(Mt 5, 47).
1694. Incorporados em Cristo pelo Baptismo (5), os cristãos «morreram para o pecado e
vivem para Deus em Cristo Jesus» (6), participando assim na vida do Ressuscitado (7).
Seguindo a Cristo e em união com Ele (8), os cristãos podem esforçar-se por ser imitadores de
Deus, como filhos bem amados, e por proceder com amor» (9), conformando os seus
pensamentos, palavras e acções com os sentimentos de Cristo Jesus (10) e seguindo os seus
exemplos (11).
1695. «Justificados pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus»
(1 Cor 6, 11), «santificados e chamados a serem santos» (12) os cristãos tornaram-se «templo
do Espírito Santo» (1 Cor 6, 19). Este, que é o «Espírito do Filho», ensina-os a orar ao Pai (13)
e, tendo-Se feito vida deles, impele-os a agir (14) para produzirem os frutos do Espírito (15)
mediante uma caridade activa. Curando as feridas do pecado, o Espírito Santo renova-nos in-
teriormente por uma transformação espiritual (16), ilumina-nos e fortalece-nos para vivermos
como «filhos da luz» (Ef 5, 8) «em toda a espécie de bondade, justiça e verdade (Ef 5, 9).
1696. O caminho de Cristo «leva à vida»; um caminho contrário «leva à perdição» (Mt 7, 13)
(17). A parábola evangélica dos dois caminhos está sempre presente na catequese da Igreja. E
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significa a importância das decisões morais para a nossa salvação. «Há dois caminhos, um da
vida, outro da morte: mas entre os dois existe uma grande diferença» (18).
1697. Na catequese, importa revelar com toda a clareza a alegria e as exigências do caminho
de Cristo(19). A catequese da «vida nova» n'Ele (Rm 6, 4), deve ser:
– uma catequese do Espírito Santo, mestre interior da vida segundo Cristo, doce hóspede e
amigo que inspira, guia, rectifica e fortalece essa vida;
– uma catequese da graça, pois é pela graça que somos salvos e é também pela graça que as
nossas obras podem ser frutuosas para a vida eterna;
– uma catequese das bem-aventuranças, porque o caminho de Cristo se resume nelas e é o
único caminho da felicidade eterna a que o coração do homem aspira;
– uma catequese do pecado e do perdão, porque, sem se reconhecer pecador, o homem não
pode conhecer a verdade sobre si mesmo, condição dum procedimento justo: e, sem a oferta
do perdão, não seria capaz de suportar aquela verdade;
– uma catequese das virtudes humanas, que faz apreender a beleza e o atractivo das rectas
disposições para o bem;
– uma catequese das virtudes cristãs da fé, esperança e caridade, que se inspira abundante-
mente no exemplo dos santos;
– uma catequese do duplo mandamento da caridade exposto no decálogo; – uma catequese
eclesial, porque é nas múltiplas permutas dos «bens espirituais», na
«comunhão dos santos», que a vida cristã pode crescer, desenvolver-se e comunicar-se.
1698. A referência, primeira e última, desta catequese será sempre o próprio Jesus Cristo,
que é «o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6). De olhos postos n'Ele com fé, os cristãos po-
dem esperar que Ele próprio realize neles as suas promessas e, amando-O com o amor com
que Ele os amou, podem fazer as obras correspondentes à sua dignidade:
«Rogo-te que penses em nosso Senhor Jesus Cristo como tua verdadeira cabeça, e em ti como
um dos seus membros. Ele é para ti como a cabeça para os membros. Tudo o que é d'Ele é teu:
o espírito, o coração, o corpo, a alma e todas as faculdades. Deves usar de todas elas como se
fossem realmente tuas, para servir, louvar, amar e glorificar a Deus. Tu és para Ele como um
membro em relação à cabeça: e, por isso, também Ele deseja ardentemente servir-Se de todas
as tuas faculdades como se fossem suas, para servir e glorificar o Pai» (20).
«Para mim, viver é Cristo» (Fl 1, 21).
PRIMEIRA SECÇÃO

A VOCAÇÃO DO HOMEM: A VIDA NO ESPÍRITO

1699. A vida no Espírito Santo realiza a vocação do homem (Capítulo primeiro). É feita de
caridade divina e de solidariedade humana (Capítulo segundo). É concedida gratuitamente
como salvação (Capítulo terceiro).

CAPÍTULO PRIMEIRO
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

1700. A dignidade da pessoa humana radica na sua criação à imagem e semelhança de Deus
(Artigo 1) e realiza-se na sua vocação à bem-aventurança divina (Artigo 2). Compete ao ser
humano chegar livremente a esta realização (Artigo 3). Pelos seus actos deliberados (Artigo
4), a pessoa humana conforma-se, ou não, com o bem prometido por Deus e atestado pela
consciência moral (Artigo 5). Os seres humanos edificam-se a si mesmos e crescem a partir do
interior: fazem de toda a sua vida sensível e espiritual objecto do próprio crescimento (Artigo
6). Com a ajuda da graça, crescem na virtude (Artigo 7), evitam o pecado e, se o cometeram,
entregam-se como o filho pródigo (1) à misericórdia do Pai dos céus (Artigo 8). Atingem, as-
sim, a perfeição da caridade.

ARTIGO 1

O HOMEM, IMAGEM DE DEUS

1701. «Cristo, [...] na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, manifesta plena-
mente o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime» (2). Foi em Cristo, «im-
agem do Deus invisível» (Cl 1, 15) (3), que o homem foi criado «à imagem e semelhança» do
Criador. Assim como foi em Cristo, redentor e salvador, que a imagem divina, deformada no
homem pelo primeiro pecado, foi restaurada na sua beleza original e enobrecida pela graça de
Deus (4).
1702. A imagem divina está presente em cada homem. Resplandece na comunhão das pess-
oas, à semelhança da unidade das Pessoas divinas entre Si (cf. Capítulo segundo).
1703. Dotada de uma alma «espiritual e imortal» (5) a pessoa humana é «a única criatura
sobre a tema querida por Deus por si mesma» (6). Desde que é concebida, é destinada para a
bem-aventurança eterna.
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1704. A pessoa humana participa da luz e da força do Espírito divino. Pela razão, é capaz de
compreender a ordem das coisas estabelecida pelo Criador. Pela vontade, é capaz de se orient-
ar a si própria para o bem verdadeiro. E encontra a perfeição na «busca e no amor da verdade
e do bem» (7).
1705. Em virtude da sua alma e das forças espirituais da inteligência e da vontade, o homem é
dotado de liberdade, «sinal privilegiado da imagem divina» (8).
1706. Mediante a sua razão, o homem conhece a voz de Deus que o impele «a fazer [...] o bem
e a evitar o mal» (9). Todos devem seguir esta lei, que ressoa na consciência e se cumpre no
amor de Deus e do próximo. O exercício da vida moral atesta a dignidade da pessoa.
1707. «Seduzido pelo Maligno desde o começo da história, o homem abusou da sua liber-
dade» (10). Sucumbiu à tentação e cometeu o mal. Conserva o desejo do bem, mas a sua
natureza está ferida pelo pecado original. O homem ficou com a inclinação para o mal e
sujeito ao erro:
O homem encontra-se, pois, dividido em si mesmo. E assim, toda a vida humana, quer singu-
lar quer colectiva, apresenta-se como uma luta, e quão dramática, entre o bem e o mal, entre a
luz e as trevas» (11).
1708. Pela sua paixão, Cristo livrou-nos de Satanás e do pecado e mereceu-nos a vida nova no
Espírito Santo. A sua graça restaura o que o pecado tinha deteriorado em nós.
1709. Quem crê em Cristo torna-se filho de Deus. Esta adopção filial transforma-o, dando-
lhe a possibilidade de seguir o exemplo de Cristo. Torna-o capaz de agir com rectidão e de
praticar o bem. Na união com o seu Salvador, o discípulo atinge a perfeição da caridade, que é
a santidade. Amadurecida na graça, a vida moral culmina na vida eterna, na glória do céu.

Resumindo:

1710. «Cristo [...] manifesta plenamente o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação
sublime» (12).
1711. Dotada de uma alma espiritual, de inteligência e de vontade, a pessoa humana é,
desde a sua concepção, ordenada para Deus e destinada à eterna bem-aventurança. E con-
tinua a aperfeiçoar-se na «busca e amor da verdade e do bem» (13).
1712. «A verdadeira liberdade é, no homem, o sinal privilegiado da imagem de Deus» (14).
1713. O homem é obrigado a seguir a lei moral, que o impele a «fazer [...] o bem e a evitar
o mal» (15). Esta lei ressoa na sua consciência. 1714. O homem, ferido na sua natureza pelo
pecado original, está sujeito ao erro e
inclinado para o mal no exercício da sua liberdade.
1715. Quem crê em Cristo possui a vida nova no Espírito Santo. A vida moral, crescida e
amadurecida na graça, deve consumar-se na glória do céu.

ARTIGO 2

A NOSSA VOCAÇÃO PARA A BEM-AVENTURANÇA

I. As bem-aventuranças
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1716. As bem-aventuranças estão no coração da pregação de Jesus. O seu anúncio retorna as


promessas feitas ao povo eleito, desde Abraão. A pregação de Jesus completa-as, ordenando-
as, não já somente à felicidade resultante da posse duma tema, mas ao Reino dos céus:
«Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus. Bem-aventurados
os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a
tema. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aven-
turados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de
coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz. porque serão cha-
mados filhos de Deus. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o Reino dos céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e,
mentindo, disserem todo o mal de vós. Alegrai-vos e exultai, pois é grande nos céus a vossa re-
compensa» (Mt 5, 3-12).
1717. As bem-aventuranças retratam o rosto de Jesus Cristo e descrevem-nos a sua caridade:
exprimem a vocação dos fiéis associados à glória da sua paixão e ressurreição; definem os ac-
tos e atitudes características da vida cristã; são as promessas paradoxais que sustentam a es-
perança no meio das tribulações; anunciam aos discípulos as bênçãos e recompensas já ob-
scuramente adquiridas; já estão inauguradas na vida da Virgem Maria e de todos os santos.

II. O desejo de felicidade

1718. As bem-aventuranças respondem ao desejo natural de felicidade. Este desejo é de ori-


gem divina; Deus pô-lo no coração do homem para o atrair a Si, o único que o pode satisfazer:
«Todos nós, sem dúvida, queremos viver felizes, e não há entre os homens quem não dê o seu
assentimento a esta afirmação, mesmo antes de ela ser plenamente enunciada» (16)
«Como é então, Senhor, que eu Te procuro? De facto, quando Te procuro, ó meu Deus, é a
vida feliz que eu procuro. Faz com que Te procure, para que a minha alma viva! Porque tal
como o meu corpo vive da minha alma, assim a minha alma vive de Ti» (17).
«Só Deus sacia» (18).
1719. As bem-aventuranças descobrem a meta da existência humana, o fim último dos actos
humanos: Deus chama-nos à sua própria felicidade. Esta vocação dirige-se a cada um, pess-
oalmente, mas também ao conjunto da Igreja, povo novo constituído por aqueles que acol-
heram a promessa e dela vivem na fé.

III. A bem-aventurança cristã

1720. O Novo Testamento emprega muitas expressões para caracterizar a bem-aventurança a


que Deus chama o homem: a chegada do Reino de Deus (19); a visão de Deus: «Bem- aven-
turados os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5, 8) (20); a entrada na alegria do
Senhor (21) a entrada no repouso de Deus (22):
«Lá, descansaremos e veremos: veremos e amaremos; amaremos e louvaremos. Eis o que
acontecerá no fim sem fim. E que outro fim temos nós, sendo chegar ao Reino que lido tem
fim ?» (23).
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1721. De facto, Deus colocou-nos no mundo para O conhecermos, servirmos e amarmos, e as-
sim chegarmos ao paraíso. A bem-aventurança faz-nos participantes da natureza divina (1 Pe
1, 4) e da vida eterna (24). Com ela, o homem entra na glória de Cristo (25) e no gozo da vida
trinitária.
1722. Uma tal bem-aventurança ultrapassa a inteligência e as simples forças humanas. Res-
ulta de um dom gratuito de Deus. Por isso se classifica de sobrenatural, tal como a graça, que
dispõe o homem para entrar no gozo de Deus.
«" Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus". É certo que "ninguém pode
ver a Deus" na sua grandeza e glória inenarrável e "continuar a viver", porque o Pai é ina-
cessível. Mas, no seu amor, na sua bondade para com os homens e na sua omnipotência, vai
ao ponto de conceder aos que O amam esta graça: ver a Deus [...] porque "o que é impossível
aos homens é possível a Deus"» (26).
1723. A bem-aventurança prometida coloca-nos perante as opções morais decisivas. Convida-
nos a purificar o nosso coração dos seus maus instintos e a procurar o amor de Deus acima de
tudo. E ensina-nos que a verdadeira felicidade não reside nem na riqueza ou no bem-estar,
nem na glória humana ou no poder, nem em qualquer obra humana, por útil que seja, como
as ciências, as técnicas e as artes, nem em qualquer criatura, mas só em Deus, fonte de todo o
bem e de todo o amor:
«A riqueza á a grande divindade deste tempo: é a ela que a multidão, toda a massa dos ho-
mens, presta instintiva homenagem. Mede-se a felicidade pela fortuna, como pela fortuna se
mede a honorabilidade [...] Tudo provém desta convicção: com a riqueza, tudo se pode. A
riqueza é, pois, um dos ídolos actuais: outro, é a notoriedade. [...] A notoriedade, o facto de se
ser conhecido e de dar brado no mundo (a que poderia chamar-se fama de imprensa), acabou
por ser considerada como um bem em si mesma, um bem soberano, objecto, até, de ver-
dadeira veneração» (27).
1724. O decálogo, o sermão da montanha e a catequese apostólica descrevem-nos os camin-
hos que conduzem ao Reino dos céus. Por eles avançamos, passo a passo, pelos actos de cada
dia, amparados pela graça do Espírito Santo. Fecundados pela Palavra de Cristo, pouco a pou-
co, damos frutos na Igreja para a glória de Deus (28).

Resumindo:

1725. As bem-aventuranças retomam e aperfeiçoam as promessas de Deus, desde Abraão,


ordenando-as para o Reino dos céus. Correspondem ao desejo de felicidade que Deus colo-
cou no coração do homem.
1726. As bem-aventuranças ensinam-nos qual o fim último a que Deus nos chama: o Reino,
a visão de Deus, a participação na natureza divina, a vida eterna, a filiação, o repouso em
Deus.
1727. A bem-aventurança da vida eterna é um dom gratuito de Deus; é sobrenatural, como
a graça que a ela conduz.
1728. As bem-aventuranças colocam-nos perante opções decisivas relativamente aos bens
terrenos; purificam o nosso coração, para nos ensinarem a amar a Deus sobre todas as
coisas.
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1729. A bem-aventurança do céu determina os critérios de discernimento no uso dos bens


terrenos, em conformidade com a Lei de Deus.

ARTIGO 3

A LIBERDADE DO HOMEM

1730. Deus criou o homem racional, conferindo-lhe a dignidade de pessoa dotada de inici-
ativa e do domínio dos seus próprios actos. «Deus quis "deixar o homem entregue à sua pró-
pria decisão" (Sir 15, 14), de tal modo que procure por si mesmo o seu Criador e, aderindo
livremente a Ele, chegue à total e beatífica perfeição» (29):
«O homem é racional e, por isso, semelhante a Deus, criado livre e senhor dos seus actos»
(30).

I. Liberdade e responsabilidade

1731. A liberdade é o poder, radicado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto
ou aquilo, praticando assim, por si mesmo, acções deliberadas. Pelo livre arbítrio, cada qual
dispõe de si. A liberdade é, no homem, uma força de crescimento e de maturação na verdade e
na bondade. E atinge a sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa bem-
aventurança.
1732. Enquanto se não fixa definitivamente no seu bem último, que é Deus, a liberdade im-
plica a possibilidade de escolher entre o bem e o mal, e portanto, de crescer na perfeição ou de
falhar e pecar. É ela que caracteriza os actos propriamente humanos. Torna-se fonte de louvor
ou de censura, de mérito ou de demérito.
1733. Quanto mais o homem fizer o bem, mais livre se torna. Não há verdadeira liberdade
senão no serviço do bem e da justiça. A opção pela desobediência e pelo mal é um abuso da
liberdade e conduz à escravidão do pecado (31).
1734. A liberdade torna o homem responsável pelos seus actos, na medida em que são volun-
tários. O progresso na virtude, o conhecimento do bem e a ascese aumentam o domínio da
vontade sobre os próprios actos.
1735. A imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas,
pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e
outros factores psíquicos ou sociais.
1736. Todo o acto directamente querido é imputável ao seu autor.
Assim, depois do pecado no paraíso, o Senhor pergunta a Adão: «Que fizeste'?» (Gn 3, 13). O
mesmo faz a Caim (32). Assim também o profeta Natan ao rei David, após o adultério com a
mulher de Urias e o assassinato deste (33).
Uma acção pode ser indirectamente voluntária, quando resulta duma negligência relativa ao
que se deveria ter conhecido ou feito, por exemplo, um acidente de trânsito, provocado por ig-
norância do código da estrada.
1737. Um efeito pode ser tolerado, sem ter sido querido pelo agente, por exemplo, o esgota-
mento duma mãe à cabeceira do seu filho doente. O efeito mau não é imputável se não tiver
sido querido nem como fim nem como meio do acto, como a morte sofrida quando se levava
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socorro a uma pessoa em perigo. Para que o efeito mau seja imputável, é necessário que seja
previsível e que aquele que age tenha a possibilidade de o evitar como, por exemplo, no caso
dum homicídio cometido por um condutor em estado de embriaguez.
1738. A liberdade exercita-se nas relações entre seres humanos. Toda a pessoa humana, cri-
ada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável.
Todos devem a todos este dever do respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigên-
cia inseparável da dignidade da pessoa humana, nomeadamente em matéria moral e religiosa
(34). Este direito deve ser civilmente reconhecido e protegido dentro dos limites do bem
comum e da ordem pública (35).

II. A liberdade humana na economia da salvação

1739. Liberdade e pecado. A liberdade do homem é finita e falível. E, de facto, o homem fal-
hou. Livremente, pecou. Rejeitando o projecto divino de amor, enganou-se a si mesmo;
tornou-se escravo do pecado. Esta primeira alienação gerou uma multidão de outras. A
história da humanidade, desde as suas origens, dá testemunho de desgraças e opressões nasci-
das do coração do homem, como consequência de um mau uso da liberdade.
1740. Ameaças à liberdade. O exercício da liberdade não implica o direito de tudo dizer e
fazer. É falso pretender que «o homem, sujeito da liberdade, se basta a si mesmo, tendo por
fim a satisfação do seu interesse próprio no gozo dos bens terrenos»(36). Por outro lado, as
condições de ordem económica e social, política e cultural, requeridas para um justo exercício
da liberdade, são com demasiada frequência desprezadas e violadas. Estas situações de ce-
gueira e de injustiça abalam a vida moral e induzem tanto os fracos como os fortes na tentação
de pecar contra a caridade. Afastando-se da lei moral, o homem atenta contra a sua própria
liberdade, agrilhoa-se a si mesmo, quebra os laços de fraternidade com os seus semelhantes e
rebela-se contra a verdade divina.
1741. Libertação e salvação. Pela sua cruz gloriosa, Cristo obteve a salvação de todos os
homens. Resgatou-os do pecado, que os retinha numa situação de escravatura. «Foi para a
liberdade que Cristo nos libertou» (Gl 5, 1). N'Ele, nós comungamos na verdade que nos
liberta (37). Foi-nos dado o Espírito Santo e, como ensina o Apóstolo, «onde está o Espírito, aí
está a liberdade» (2 Cor 3, 17). Já desde agora nos gloriamos da «liberdade dos filhos de
Deus» (38).
1742. Liberdade e graça. A graça de Cristo não faz concorrência de modo nenhum, à nossa
liberdade, quando esta corresponde ao sentido da verdade e do bem que Deus colocou no cor-
ação do homem. Pelo contrário, e como o certifica a experiência cristã sobretudo na oração,
quanto mais dóceis formos aos impulsos da graça, tanto mais crescem a nossa liberdade in-
terior e a nossa segurança nas provações, como também perante as pressões e constrangimen-
tos do mundo exterior. Pela acção da graça, o Espírito Santo educa-nos para a liberdade espir-
itual, para fazer de nós colaboradores livres da sua obra na Igreja e no mundo:
«Deus eterno e misericordioso, afastai de nós toda a adversidade, para que, sem obstáculos do
corpo ou do espírito, possamos livremente cumprir a vossa vontade» (39).
Resumindo:

1743. «Deus [...] deixou o homem entregue à sua própria decisão» (Sir 15, 14), para que ele
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possa aderir livremente ao seu Criador e chegar assim à perfeição beatífica (40).
1744. A liberdade é a capacidade de agir ou não agir e, assim, de realizar por si mesmo
acções deliberadas. Atinge a perfeição do seu acto, quando está ordenada para Deus, su-
premo Bem.
1745. A liberdade caracteriza os actos propriamente humanos. Torna o ser humano respon-
sável pelos actos de que é autor voluntário. O seu agir deliberado pertence-lhe como próprio.
1746. A imputabilidade ou responsabilidade duma acção pode ser diminuída, ou suprimida,
por ignorância, violência, medo e outros factores psíquicos ou sociais.
1747. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência inseparável da dignidade do
homem, sobretudo em matéria religiosa e moral. Mas o exercício da liberdade não implica o
suposto direito de tudo dizer ou de tudo fazer.
1748. «Foi para a liberdade que Cristo nos libertou» (Gl 5, 1).

ARTIGO 4

A MORALIDADE DOS ACTOS HUMANOS

1749. A liberdade faz do homem um sujeito moral. Quando age de maneira deliberada, o
homem é, por assim dizer, o pai dos seus actos. Os actos humanos, quer dizer, livremente
escolhidos em consequência dum juízo de consciência, são moralmente qualificáveis. São bons
ou maus.

I. As fontes da moralidade

1750. A moralidade dos actos humanos depende:


– do objecto escolhido; – do fim que se tem em vista ou da intenção: – das circunstâncias da
acção.
O objecto, a intenção e as circunstâncias são as «fontes» ou elementos constitutivos da moral-
idade dos actos humanos.
1751. O objecto escolhido é um bem para o qual a vontade tende deliberadamente. E a
matéria dum acto humano. O objecto escolhido especifica moralmente o acto da vontade, na
medida em que a razão o reconhece e o julga conforme, ou não, ao verdadeiro bem. As regras
objectivas da moralidade enunciam a ordem racional do bem e do mal, atestada pela
consciência.
1752. Em face do objecto, a intenção coloca-se do lado do sujeito que age. Porque está na
fonte voluntária da acção e a determina pelo fim em vista, a intenção é um elemento essencial
na qualificação moral da acção. O fim em vista é o primeiro dado da intenção e designa a meta
a atingir pela acção. A intenção é um movimento da vontade em direcção ao fim; diz respeito
ao termo do agir. É o alvo do bem que se espera da acção empreendida. Não se limita à dir-
ecção das nossas acções singulares, mas pode ordenar para um mesmo fim acções múltiplas:
pode orientar toda a vida para o fim último. Por exemplo, um serviço prestado tem por fim
ajudar o próximo, mas pode ser inspirado, ao mesmo tempo, pelo amor de Deus como fim úl-
timo de todas as acções. Uma mesma acção pode também ser inspirada por várias intenções,
como prestar um serviço para obter um favor ou para satisfazer a vaidade.
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1753. Uma intenção boa (por exemplo: ajudar o próximo) não torna bom nem justo um com-
portamento em si mesmo desordenado (como a mentira e a maledicência). O fim não justifica
os meios. Assim, não se pode justificar a condenação dum inocente como meio legítimo para
salvar o povo. Pelo contrário, uma intenção má acrescentada (por exemplo, a vanglória) torna
mau um acto que, em si, pode ser bom (como a esmola (41)).
1754. As circunstâncias, incluindo as consequências, são elementos secundários dum acto
moral. Contribuem para agravar ou atenuar a bondade ou malícia moral dos actos humanos
(por exemplo, o montante dum roubo). Podem também diminuir ou aumentar a responsabil-
idade do agente (por exemplo, agir por medo da morte). As circunstâncias não podem, de per
si, modificar a qualidade moral dos próprios actos; não podem tornar boa nem justa uma
acção má em si mesma.

II. Os actos bons e os actos maus

1755. O acto moralmente bom pressupõe, em simultâneo, a bondade do objecto, da finalidade


e das circunstâncias. Um fim mau corrompe a acção, mesmo que o seu objecto seja bom em si
(como orar e jejuar «para ser visto pelos homens»).
O objecto da escolha pode, por si só, viciar todo um modo de agir. Há comportamentos con-
cretos – como a fornicação – cuja escolha é sempre um erro, porque comporta uma desordem
da vontade, isto é, um mal moral.
1756. É, portanto, erróneo julgar a moralidade dos actos humanos tendo em conta apenas a
intenção que os inspira, ou as circunstâncias (meio, pressão social, constrangimento ou ne-
cessidade de agir, etc.) que os enquadram. Há actos que, por si e em si mesmos, independ-
entemente das circunstâncias e das intenções, são sempre gravemente ilícitos em razão do seu
objecto; por exemplo, a blasfémia e o jurar falso, o homicídio e o adultério. Não é permitido
fazer o mal para que dele resulte um bem.

Resumindo:

1757. O objecto, a intenção e as circunstâncias constituem as três «fontes» da moralidade


dos actos humanos.
1758. O objecto escolhido especifica moralmente o acto da vontade, conforme a razão o re-
conhece e o julga bom ou mau.
1759. «Não se pode justificar uma acção má feita com boa intenção» (42). O fim não justi-
fica os meios.
1760. O acto moralmente bom pressupõe, em simultâneo, a bondade do objecto, da finalid-
ade e das circunstâncias.
1761. Há comportamentos concretos pelos quais é sempre errado optar, porque a sua
escolha inclui uma desordem da vontade, isto é, um mal moral. Não é permitido fazer o mal
para que dele resulte um bem.

ARTIGO 5

A MORALIDADE DAS PAIXÕES


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1762. A pessoa humana ordena-se à bem-aventurança através dos seus actos deliberados: as
paixões ou sentimentos que experimenta podem dispô-la nesse sentido e contribuir para isso.

I. As paixões

1763. O termo «paixões» pertence ao património cristão. Os sentimentos ou paixões são as


emoções ou movimentos da sensibilidade. que inclinam a agir, ou a não agir, em vista do que
se sentiu ou imaginou como bom ou como mau.
1764. As paixões são componentes naturais do psiquismo humano, constituem o lugar de
passagem e garantem a ligação entre a vida sensível e a vida do espírito. Nosso Senhor designa
o coração do homem como fonte de onde brota o movimento das paixões (43).
1765. São numerosas as paixões. A mais fundamental é o amor, provocado pela atracção do
bem. O amor causa o desejo do bem ausente e a esperança de o alcançar. Este movimento tem
o seu termo no prazer e na alegria do bem possuído. A apreensão pelo mal causa o ódio, a
aversão e o receio do mal futuro; este movimento termina na tristeza pelo mal presente ou na
cólera que a ele se opõe.
1766. «Amar é querer bem a alguém» (44). Todos os outros afectos nascem neste movimento
original do coração do homem para o bem. Só o bem é amado (45). «As paixões são más se o
amor for mau, e boas se ele for bom» (46).

II. Paixões e vida moral

1767. Em si mesmas, as paixões não são nem boas nem más. Só recebem qualificação moral
na medida em que dependem efectivamente da razão e da vontade. As paixões dizem-se
voluntárias, «ou porque são comandadas pela vontade, ou porque a vontade não Lhes opõe
obstáculos» (47). Pertence à perfeição do bem moral ou humano que as paixões sejam regula-
das pela razão (48).
1768. Os grandes sentimentos não determinam nem a moralidade nem a santidade das pess-
oas; são o reservatório inesgotável das imagens e afectos com que se exprime a vida moral. As
paixões são moralmente boas quando contribuem para uma acção boa, e más, no caso con-
trário. A vontade recta ordena para o bem e para a bem-aventurança os movimentos sensíveis
que assume; a vontade má sucumbe às paixões desordenadas e exacerba-as. As emoções e os
sentimentos podem ser assumidos pelas virtudes, ou pervertidos pelos vícios.
1769. Na vida cristã, o próprio Espírito Santo realiza a sua obra mobilizando todo o ser,
mesmo as dores, temores e tristezas, como se vê claramente na agonia e paixão do Senhor. Em
Cristo, os sentimentos humanos podem alcançar a sua consumação na caridade e na bem-
aventurança divina.
1770. A perfeição moral consiste em que o homem não seja movido para o bem só pela vont-
ade, mas também pelo apetite sensível, segundo esta palavra do Salmo: «O meu coração e a
minha carne exultam no Deus vivo» (Sl 84, 3).

Resumindo:
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1771. O termo «paixões» designa afectos ou sentimentos. Através das suas emoções, o
homem pressente o bem e suspeita do mal.
1772. As principais paixões são o amor e o ódio, o desejo e o temor; a alegria, a tristeza e a
cólera.
1773. Nas paixões, enquanto movimentos da sensibilidade, não há bem, nem mal moral.
Mas, na medida em que dependem ou não da razão e da vontade, há nelas bem ou mal
moral.
1774. As emoções e os sentimentos podem ser assumidos pelas virtudes, ou pervertidos pelos
vícios.
1775. A perfeição do bem moral consiste em que o homem não seja movido para o bem só
pela vontade, mas também pelo seu «coração».

ARTIGO 6

A CONSCIÊNCIA MORAL

1776 «No mais profundo da consciência, o homem descobre uma lei que não se deu a si
mesmo, mas à qual deve obedecer e cuja voz ressoa, quando necessário, aos ouvidos do seu
coração, chamando-o sempre a amar e fazer o bem e a evitar o mal [...]. De facto, o homem
tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus [...]. A consciência é o núcleo mais secreto e
o sacrário do homem, no qual ele se encontra a sós com Deus, cuja voz ressoa na intimidade
do seu ser» (49).

I. O juízo da consciência

1777. Presente no coração da pessoa, a consciência moral (50) leva-a, no momento oportuno,
a fazer o bem e a evitar o mal. E também julga as opções concretas, aprovando as boas e de-
nunciando as más (51). Ela atesta a autoridade da verdade em relação ao Bem supremo, pelo
qual a pessoa humana se sente atraída e cujos mandamentos acolhe. Quando presta atenção à
consciência moral, o homem prudente pode ouvir Deus a falar-lhe.
1778. A consciência moral é um juízo da razão, pelo qual a pessoa humana reconhece a qual-
idade moral dum acto concreto que vai praticar, que está prestes a executar ou que já realizou.
Em tudo quanto diz e faz, o homem tem obrigação de seguir fielmente o que sabe ser justo e
recto. E pelo juízo da sua consciência que o homem tem a percepção e reconhece as pre-
scrições da lei divina:
A consciência «é uma lei do nosso espírito, mas que o ultrapassa, nos dá ordens, e significa re-
sponsabilidade e dever, temor e esperança [...]. É a mensageira d'Aquele que, tanto no mundo
da natureza como no da graça, nos fala veladamente, nos instrui e nos governa. A consciência
é o primeiro de todos os vigários de Cristo» (52).
1779. Importa que cada um esteja suficientemente presente a si mesmo para ouvir e seguir a
voz da sua consciência. Esta exigência de interioridade é tanto mais necessária quanto a vida
nos leva muitas vezes a subtrair-nos a qualquer reflexão, exame ou introspecção:
«Regressa à tua consciência, interroga-a [...] Voltai, irmãos, ao vosso interior, e, em tudo
quanto fazeis, olhai para a Testemunha que é Deus» (53).
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1780. A dignidade da pessoa humana implica e exige a rectidão da consciência moral. A con-
sciência moral compreende a percepção dos princípios da moralidade («sindérese»), a sua ap-
licação em determinadas circunstâncias por meio de um discernimento prático das razões e
dos bens e, por fim, o juízo emitido sobre os actos concretos a praticar ou já praticados. A ver-
dade sobre o bem moral, declarada na lei da razão, é reconhecida prática e concretamente
pelo prudente juízo da consciência. Classifica-se de prudente o homem que opta em confor-
midade com este juízo.
1781. A consciência permite assumir a responsabilidade dos actos praticados. Se o homem
comete o mal, o justo juízo da consciência pode ser nele a testemunha da verdade universal do
bem e, ao mesmo tempo, da maldade da sua opção concreta. O veredicto do juízo da consciên-
cia continua a ser um penhor de esperança e de misericórdia. Atestando a falta cometida, lem-
bra o perdão a pedir, o bem a praticar ainda e a virtude a cultivar incessantemente com a
graça de Deus.
«Tranquilizaremos diante d'Ele o nosso coração, se o nosso coração vier a acusar-nos. Pois
Deus é maior do que o nosso coração e conhece todas as coisas» (1 Jo 3, 19-20).
1782. O homem tem o direito de agir em consciência e em liberdade a fim de tomar pessoal-
mente decisões morais. «O homem não deve ser forçado a agir contra a própria consciência.
Nem deve também ser impedido de actuar segundo ela, sobretudo em matéria religiosa» (54).

II. A formação da consciência

1783. A consciência deve ser informada e o juízo moral esclarecido. Uma consciência bem for-
mada é recta e verídica; formula os seus juízos segundo a razão, em conformidade com o bem
verdadeiro querido pela sabedoria do Criador. A formação da consciência e indispensável aos
seres humanos, submetidos a influências negativas e tentados pelo pecado a preferir o seu
juízo próprio e a recusar os ensinamentos autorizados.
1784. A formação da consciência é tarefa para toda a vida. Desde os primeiros anos, a criança
desperta para o conhecimento e para a prática da lei interior reconhecida pela consciência
moral. Uma educação prudente ensina a virtude: preserva ou cura do medo, do egoísmo e do
orgulho, dos ressentimentos da culpabilidade e dos movimentos de complacência, nascidos da
fraqueza e das faltas humanas. A formação da consciência garante a liberdade e gera a paz do
coração.
1785. Na formação da consciência, a Palavra de Deus é a luz do nosso caminho. Devemos
assimilá-la na fé e na oração, e pô-la em prática. Devemos também examinar a nossa con-
sciência, de olhos postos na cruz do Senhor. Somos assistidos pelos dons do Espírito Santo,
ajudados pelo testemunho e pelos conselhos dos outros e guiados pelo ensino autorizado da
Igreja (55).

III. Decidir em consciência

1786. Perante a necessidade de decidir moralmente, a consciência pode emitir um juízo recto,
de acordo com a razão e a lei de Deus, ou, pelo contrário, um juízo erróneo, que se afaste
delas.
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1787. Por vezes, o homem vê-se confrontado com situações que tornam o juízo moral menos
seguro e a decisão difícil. Mas deve procurar sempre o que é justo e bom e discernir a vontade
de Deus expressa na lei divina.
1788. Para isso, o homem esforça-se por interpretar os dados da experiência e os sinais dos
tempos, graças à virtude da prudência, aos conselhos de pessoas sensatas e à ajuda do Espírito
Santo e dos seus dons.
1789. Algumas regras aplicam-se a todos os casos:
– nunca é permitido fazer mal para que daí resulte um bem; – a «regra de ouro» é: «Tudo
quanto quiserdes que os homens vos façam, fazei-lho, de igual modo, vós também» (Mt 7, 12)
(56). – a caridade passa sempre pelo respeito do próximo e da sua consciência: «Ao pecardes
assim contra os irmãos, ao ferir-lhes a consciência é contra Cristo que pecais» (1 Cor 8, 12).
«O que é bom é não [...] [fazer] nada em que o teu irmão possa tropeçar, cair ou fraquejar»
(Rm 14, 21).

IV. O juízo erróneo

1790. O ser humano deve obedecer sempre ao juízo certo da sua consciência. Agindo delib-
eradamente contra ele, condenar-se-ia a si mesmo. Mas pode acontecer que a consciência
moral esteja na ignorância e faça juízos erróneos sobre actos a praticar ou já praticados.
1791. Muitas vezes, tal ignorância pode ser imputada à responsabilidade pessoal. Assim
acontece «quando o homem pouco se importa de procurar a verdade e o bem e quando a con-
sciência se vai progressivamente cegando, com o hábito do pecado» (57). Nesses casos, a pess-
oa é culpada do mal que comete.
1792. A ignorância a respeito de Cristo e do seu Evangelho, os maus exemplos dados por out-
ros, a escravidão das paixões, a pretensão de uma mal entendida autonomia da consciência, a
rejeição da autoridade da Igreja e do seu ensino, a falta de conversão e de caridade, podem es-
tar na origem dos desvios do juízo na conduta moral.
1793. Se, pelo contrário, a ignorância é invencível, ou o juízo erróneo sem responsabilidade
do sujeito moral, o mal cometido pela pessoa não pode ser-lhe imputado. Mas nem por isso
deixa de ser um mal, uma privação, uma desordem. É preciso trabalhar, portanto, para corri-
gir dos seus erros a consciência moral.
1794. A consciência boa e pura é iluminada pela fé verdadeira. Porque a caridade procede, ao
mesmo tempo, «dum coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera» (1 Tm 1, 5)
(58).
«Quanto mais prevalecer a recta consciência, tanto mais as pessoas e os grupos estarão longe
da arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objectivas da moralidade»
(59).

Resumindo:

1795. «A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no qual ele se encontra
a sós com Deus, cuja voz ressoa na intimidade do seu ser» (60).
1796. A consciência moral é um juízo da razão, pelo qual a pessoa humana reconhece a
qualidade moral dum acto concreto.
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1797. Para o homem que procedeu mal, o veredicto da consciência é um penhor de conver-
são e de esperança.
1798. Uma consciência bem formada é recta e verídica. Formula os seus juízos segundo a
razão e em conformidade com o verdadeiro bem, querido pela sabedoria do Criador. Cada
qual deve procurar os meios para formar a sua consciência.
1799. Perante a necessidade de decidir moralmente, a consciência pode formular um juízo
recto, de acordo com a razão e a lei divina, ou, pelo contrário, um juízo erróneo, que das
mesmas se afasta.
1800. O ser humano deve obedecer sempre ao juízo certo da sua consciência.
1801. A consciência moral pode permanecer na ignorância ou fazer juízos erróneos. Tal ig-
norância e erros nem sempre são isentos de culpabilidade.
1802. A Palavra de Deus é luz para os nossos passos. Devemos assimilá-la na fé e na oração
e pô-la em prática. É assim que se forma a consciência moral.

ARTIGO 7

AS VIRTUDES

1803. «Tudo o que é verdadeiro, nobre e justo, tudo o que é puro, amável e de boa reputação,
tudo o que é virtude e digno de louvor, isto deveis ter no pensamento» (Fl 4, 8).
A virtude é uma disposição habitual e firme para praticar o bem. Permite à pessoa não
somente praticar actos bons, mas dar o melhor de si mesma. A pessoa virtuosa tende para o
bem com todas as suas forças sensíveis e espirituais; procura o bem e opta por ele em actos
concretos.
«O fim duma vida virtuosa consiste em tornar-se semelhante a Deus» (61).

I. As virtudes humanas

1804. As virtudes humanas são atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da
inteligência e da vontade, que regulam os nossos actos, ordenam as nossas paixões e guiam o
nosso procedimento segundo a razão e a fé. Conferem facilidade, domínio e alegria para se
levar uma vida moralmente boa. Homem virtuoso é aquele que livremente pratica o bem.
As virtudes morais são humanamente adquiridas. São os frutos e os germes de actos moral-
mente bons e dispõem todas as potencialidades do ser humano para comungar no amor
divino.

DISTINÇÃO DAS VIRTUDES CARDEAIS

1805. Há quatro virtudes que desempenham um papel de charneira. Por isso, se chamam
«cardeais»; todas as outras se agrupam em torno delas. São: a prudência, a justiça, a fortaleza
e a temperança. «Se alguém ama a justiça, o fruto dos seus trabalhos são as virtudes, porque
ela ensina a temperança e a prudência, a justiça e a fortaleza» (Sb 8, 7). Com estes ou outros
nomes, estas virtudes são louvadas em numerosas passagens da Sagrada Escritura.
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1806. A prudência é a virtude que dispõe a razão prática para discernir, em qualquer circun-
stância, o nosso verdadeiro bem e para escolher os justos meios de o atingir. «O homem
prudente vigia os seus passos» (Pr 14, 15). «Sede ponderados e comedidos, para poderdes or-
ar» (1 Pe 4, 7). A prudência é a «recta norma da acção», escreve São Tomás (62) seguindo
Aristóteles. Não se confunde, nem com a timidez ou o medo, nem com a duplicidade ou dis-
simulação. É chamada «auriga virtutum – condutor das virtudes», porque guia as outras
virtudes, indicando-lhes a regra e a medida. É a prudência que guia imediatamente o juízo da
consciência. O homem prudente decide e ordena a sua conduta segundo este juízo. Graças a
esta virtude, aplicamos sem erro os princípios morais aos casos particulares e ultrapassamos
as dúvidas sobre o bem a fazer e o mal a evitar.
1807. A justiça é a virtude moral que consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao
próximo o que lhes é devido. A justiça para com Deus chama-se «virtude da religião». Para
com os homens, a justiça leva a respeitar os direitos de cada qual e a estabelecer, nas relações
humanas, a harmonia que promove a equidade em relação às pessoas e ao bem comum. O
homem justo, tantas vezes evocado nos livros santos, distingue-se pela rectidão habitual dos
seus pensamentos e da sua conduta para com o próximo. «Não cometerás injustiças nos julga-
mentos. Não favorecerás o pobre, nem serás complacente para com os poderosos. Julgarás o
teu próximo com imparcialidade» (Lv 19, 15). «Senhores, dai aos vossos escravos o que é justo
e equitativo, considerando que também vós tendes um Senhor no céu» (Cl 4, 1).
1808. A fortaleza é a virtude moral que, no meio das dificuldades, assegura a firmeza e a con-
stância na prossecução do bem. Torna firme a decisão de resistir às tentações e de superar os
obstáculos na vida moral. A virtude da fortaleza dá capacidade para vencer o medo, mesmo da
morte, e enfrentar a provação e as perseguições. Dispõe a ir até à renúncia e ao sacrifício da
própria vida, na defesa duma causa justa. «O Senhor é a minha fortaleza e a minha glória» (Sl
118, 14). «No mundo haveis de sofrer tribulações: mas tende coragem! Eu venci o mundo!»
(Jo 16, 33).
1809. A temperança é a virtude moral que modera a atracção dos prazeres e proporciona o
equilíbrio no uso dos bens criados. Assegura o domínio da vontade sobre os instintos e
mantém os desejos nos limites da honestidade. A pessoa temperante orienta para o bem os
apetites sensíveis, guarda uma sã discrição e não se deixa arrastar pelas paixões do coração
(63). A temperança é muitas vezes louvada no Antigo Testamento: «Não te deixes levar pelas
tuas más inclinações e refreia os teus apetites» (Sir 18, 30). No Novo Testamento, é chamada
«moderação», ou «sobriedade». Devemos «viver com moderação, justiça e piedade no mundo
presente» (Tt 2, 12).
«Viver bem é amar a Deus de todo o coração, com toda a alma e com todo o proceder [...], de
tal modo que se lhe dedica um amor incorrupto e íntegro (pela temperança), que mal algum
poderá abalar (fortaleza), que a ninguém mais serve (justiça), que cuida de discernir todas as
coisas para não se deixar surpreender pela astúcia e pela mentira (prudência)» (64).

AS VIRTUDES E A GRAÇA

1810. As virtudes humanas, adquiridas pela educação, por actos deliberados e por uma
sempre renovada perseverança no esforço, são purificadas e elevadas pela graça divina. Com a
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ajuda de Deus, forjam o carácter e facilitam a prática do bem. O homem virtuoso sente-se feliz
ao praticá-las.
1811. Não é fácil, ao homem ferido pelo pecado, manter o equilíbrio moral. O dom da sal-
vação, que nos veio por Cristo, dá-nos a graça necessária para perseverar na busca das vir-
tudes. Cada qual deve pedir constantemente esta graça de luz e de força, recorrer aos sacra-
mentos, cooperar com o Espírito Santo e seguir os seus apelos a amar o bem e acautelar-se do
mal.

II. As virtudes teologais

1812. As virtudes humanas radicam nas virtudes teologais, que adaptam as faculdades do
homem à participação na natureza divina (65). De facto, as virtudes teologais referem-se dir-
ectamente a Deus e dispõem os cristãos para viverem em relação com a Santíssima Trindade.
Têm Deus Uno e Trino por origem, motivo e objecto.
1813. As virtudes teologais fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do cristão, In-
formam e vivificam todas as virtudes morais. São infundidas por Deus na alma dos fiéis para
os tornar capazes de proceder como filhos seus e assim merecerem a vida eterna. São o penhor
da presença e da acção do Espírito Santo nas faculdades do ser humano. São três as virtudes
teologais: fé, esperança e caridade (66).

A FÉ

1814. A fé é a virtude teologal pela qual cremos em Deus e em tudo o que Ele nos disse e rev-
elou e que a santa Igreja nos propõe para acreditarmos, porque Ele é a própria verdade. Pela
fé, «o homem entrega-se total e livremente a Deus» (67). E por isso, o crente procura con-
hecer e fazer a vontade de Deus. «O justo viverá pela fé» (Rm 1, 17). A fé viva «actua pela
caridade» (Gl 5, 6).
1815. O dom da fé permanece naquele que não pecou contra ela (68). Mas, «sem obras, a fé
está morta» (Tg 2, 26): privada da esperança e do amor, a fé não une plenamente o fiel a
Cristo, nem faz dele um membro vivo do seu corpo.
1816. O discípulo de Cristo, não somente deve guardar a fé e viver dela, como ainda professá-
la, dar firme testemunho dela e propagá-la: «Todos devem estar dispostos a confessar Cristo
diante dos homens e a segui-Lo no caminho da cruz, no meio das perseguições que nunca
faltam à Igreja» (69). O serviço e testemunho da fé são requeridos para a salvação: «A todo
aquele que me tiver reconhecido diante dos homens, também Eu o reconhecerei diante do
meu Pai que está nos céus. Mas àquele que me tiver negado diante dos homens, também Eu o
negarei diante do meu Pai que está nos céus» (Mt 10, 32-33).

A ESPERANÇA

1817. A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna
como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-
nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo. «Conservemos firm-
emente a esperança que professamos, pois Aquele que fez a promessa é fiel» (Heb 10, 23). «O
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Espírito Santo, que Ele derramou abundantemente sobre nós, por meio de Jesus Cristo nosso
Salvador, para que, justificados pela sua graça, nos tornássemos, em esperança, herdeiros da
vida eterna» (Tt 3, 6-7).
1818. A virtude da esperança corresponde ao desejo de felicidade que Deus colocou no cor-
ação de todo o homem; assume as esperanças que inspiram as actividades dos homens,
purifica-as e ordena-as para o Reino dos céus; protege contra o desânimo; sustenta no abati-
mento; dilata o coração na expectativa da bem-aventurança eterna. O ânimo que a esperança
dá preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade.
1819. A esperança cristã retorna e realiza a esperança do povo eleito, que tem a sua origem e
modelo na esperança de Abraão, o qual, em Isaac, foi cumulado das promessas de Deus e
purificado pela provação do sacrifício (70). «Contra toda a esperança humana, Abraão teve es-
perança e acreditou. Por isso, tornou-se pai de muitas nações» (Rm 4, 18).
1820. A esperança cristã manifesta-se, desde o princípio da pregação de Jesus, no anúncio
das bem-aventuranças. As bem-aventuranças elevam a nossa esperança para o céu, como
nova tema prometida e traçam-lhe o caminho através das provações que aguardam os discípu-
los de Jesus. Mas, pelos méritos do mesmo Jesus Cristo e da sua paixão, Deus guarda-nos na
«esperança que não engana» (Rm 5, 5). A esperança é «a âncora da alma, inabalável e segura»
que penetra [...]«onde entrou Jesus como nosso precursor» (Heb 6, 19- 20). É também uma
arma que nos protege no combate da salvação: «Revistamo-nos com a couraça da fé e da
caridade, com o capacete da esperança da salvação» (1 Ts 5, 8). Proporciona-nos alegria,
mesmo no meio da provação: «alegres na esperança, pacientes na tribulação» (Rm 12, 12).
Exprime-se e nutre-se na oração, particularmente na oração do Pai- Nosso, resumo de tudo o
que a esperança nos faz desejar.
1821. Podemos, portanto, esperar a glória do céu prometida por Deus àqueles que O amam
(71) e fazem a sua vontade (72). Em todas as circunstâncias, cada qual deve esperar, com a
graça de Deus, «permanecer firme até ao fim» (73) e alcançar a alegria do céu, como eterna
recompensa de Deus pelas boas obras realizadas com a graça de Cristo. É na esperança que a
Igreja pede que «todos os homens se salvem» (1 Tm 2, 4) e ela própria aspira a ficar, na glória
do céu, unida a Cristo, seu Esposo:
«Espera, espera, que não sabes quando virá o dia nem a hora. Vela com cuidado, que tudo
passa com brevidade, embora o teu desejo faça o certo duvidoso e longo o tempo breve. Olha
que quanto mais pelejares, mais mostrarás o amor que tens a teu Deus, e mais te regozijarás
com teu Amado em gozo e deleite que não pode ter fim» (74).

A CARIDADE

1822. A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas por Ele
mesmo, e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus.
1823. Jesus faz da caridade o mandamento novo (75). Amando os seus «até ao fim» (Jo 13,
1), manifesta o amor do Pai, que Ele próprio recebe. E os discípulos, amando-se uns aos out-
ros, imitam o amor de Jesus, amor que eles recebem também em si. É por isso que Jesus diz:
«Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor» (Jo 15, 9). E
ainda: «É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei» (Jo 15,
12).
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1824. Fruto do Espírito e plenitude da Lei, a caridade guarda os mandamentos de Deus e do


seu Cristo: «Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis
no meu amor» (Jo 15, 9-10) (76).
1825. Cristo morreu por amor de nós, sendo nós ainda «inimigos» (Rm 5, 10). O Senhor
pede-nos que, como Ele, amemos até os nossos inimigos (77), que nos façamos o próximo do
mais afastado (78), que amemos as crianças (79) e os pobres como a Ele próprio (80).
O apóstolo São Paulo deixou-nos um incomparável quadro da caridade: «A caridade é pa-
ciente, a caridade é benigna; não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa; não é inconveniente,
não procura o próprio interesse, não se imita, não guarda ressentimento, não se alegra com a
injustiça, mas alegra-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta»
(1Cor 13, 4-7).
1826. Sem a caridade, diz ainda o Apóstolo, «nada sou». E tudo o que for privilégio, serviço,
ou mesmo virtude..., se não tiver caridade «de nada me aproveita» (81). A caridade é superior
a todas as virtudes. É a primeira das virtudes teologais: «Agora permanecem estas três coisas:
a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade» (1 Cor 13, 13).
1827. O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade. Esta é o «vínculo
da perfeição» (Cl 3, 14) e a forma das virtudes: articula-as e ordena-as entre si; é a fonte e o
termo da sua prática cristã. A caridade assegura e purifica a nossa capacidade humana de am-
ar e eleva-a à perfeição sobrenatural do amor divino.
1828. A prática da vida moral animada pela caridade dá ao cristão a liberdade espiritual dos
filhos de Deus. O cristão já não está diante de Deus como um escravo, com temor servil, nem
como o mercenário à espera do salário, mas como um filho que corresponde ao amor
«d'Aquele que nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19):
«Nós, ou nos desviamos do mal por temor do castigo e estamos na atitude do escravo, ou vive-
mos à espera da recompensa e parecemo-nos com os mercenários; ou, finalmente, é pelo bem
em si e por amor d'Aquele que manda, que obedecemos [...], e então estamos na atitude pró-
pria dos filhos» (82).
1829 Os frutos da caridade são: a alegria, a paz e a misericórdia; exige a prática do bem e a
correcção fraterna; é benevolente; suscita a reciprocidade, é desinteressada e liberal: é amiz-
ade e comunhão:
«A consumação de todas as nossas obras é o amor. É nele que está o fim: é para a conquista
dele que corremos; corremos para lá chegar e, uma vez chegados, é nele que descansamos»
(83).

III. Os dons e os frutos do Espírito Santo

1830. A vida moral dos cristãos é sustentada pelos dons do Espírito Santo. Estes são dis-
posições permanentes que tornam o homem dócil aos impulsos do Espírito Santo.
1831. Os sete dons do Espírito Santo são: sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciên-
cia, piedade e temor de Deus. Pertencem em plenitude a Cristo, filho de David (84). Com-
pletam e levam à perfeição as virtudes de quem os recebe. Tornam os fiéis dóceis, na obediên-
cia pronta, às inspirações divinas.
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«Que o vosso espírito de bondade me conduza pelo caminho recto» (Sl 143, 10). «Todos
aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus [...]; se somos filhos,
também somos herdeiros: herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo» (Rm 8, 14.17).
1832. Os frutos do Espírito são perfeições que o Espírito Santo forma em nós, como primícias
da glória eterna. A tradição da Igreja enumera doze: «caridade, alegria, paz, paciência,
bondade, longanimidade, benignidade, mansidão, fidelidade, modéstia, continência, castid-
ade» (Gl 5, 22-23 segundo a Vulgata).

Resumindo:

1833. A virtude é uma disposição habitual e firme para praticar o bem.


1834. As virtudes humanas são disposições estáveis da inteligência e da vontade, que regu-
lam os nossos actos, ordenam as nossas paixões e guiam o nosso procedimento segundo a
razão e a fé. Podem ser agrupadas à roda das quatro virtudes cardiais: prudência, justiça,
fortaleza e temperança.
1835. A prudência dispõe a razão prática para discernir, em todas as circunstâncias, o ver-
dadeiro bem e para escolher os justos meios de o realizar.
1836. A justiça consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes
é devido.
1837. A .fortaleza assegura, no meio das dificuldades, a firmeza e a constância na
prossecução do bem.
1838. A temperança modera a atracção dos prazeres sensíveis e proporciona equilíbrio no
uso dos bens criados.
1839. As virtudes morais desenvolvem-se pela educação, por actos deliberados e pela per-
severança no esforço. A graça divina purifica-as e eleva-as.
1840. As virtudes teologais dispõem os cristãos para viverem em relação com a Santíssima
Trindade. Têm, Deus por origem, motivo e objecto – Deus conhecido pela fé, esperado e
amado por Si mesmo.
1841. São três as virtudes teologais: fé, esperança e caridade (85). Informam e vivificam to-
das as virtudes morais.
1842. Pela fé, cremos em Deus e em tudo quanto Ele nos revelou e a santa Igreja nos propõe
para acreditarmos.
1843. Pela esperança, desejamos e esperamos de Deus, com firme confiança, a vida eterna e
as graças para a merecer.
1844. Pela caridade, amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mes-
mos, por amor de Deus. A caridade é o «vínculo da perfeição» (Cl 3, 14) e a forma de todas
as virtudes.
1845. Os sete dons do Espírito Santo, concedidos aos cristãos, são: sabedoria, entendi-
mento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus.

ARTIGO 8

O PECADO
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I. A misericórdia e o pecado

1846. O Evangelho é a revelação, em Jesus Cristo, da misericórdia de Deus para com os


pecadores (86). O anjo assim o disse a José: «Pôr-Lhe-ás o nome de Jesus, porque Ele salvará
o seu povo dos seus pecados» (Mt 1, 21), o mesmo se diga da Eucaristia, sacramento da
Redenção: «Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que vai ser derramado por todos para a
remissão dos pecados» (Mt 26, 28).
1847. «Deus, que nos criou sem nós, não quis salvar-nos sem nós» (87). O acolhimento da
sua misericórdia exige de nós a confissão das nossas faltas. «Se dizemos que não temos
pecado, enganamo-nos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele
é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e para nos purificar de toda a maldade» (1 Jo 1,
8-9).
1848. Como afirma São Paulo: «Onde abundou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5, 20).
Mas para realizar a sua obra, a graça tem de pôr a descoberto o pecado, para converter o nosso
coração e nos obter «a justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor» (Rm 5, 21).
Como um médico que examina a chaga antes de lhe aplicar o penso, Deus, pela sua Palavra e
pelo seu Espírito, projecta uma luz viva sobre o pecado:
«A conversão requer o reconhecimento do pecado. Contém em si mesma o juízo interior da
consciência. Pode ver-se nela a prova da acção do Espírito de verdade no mais íntimo do
homem. Torna-se, ao mesmo tempo, o princípio dum novo dom da graça e do amor: "Recebei
o Espírito Santo". Assim, neste "convencer quanto ao pecado". descobrimos um duplo dom: o
dom da verdade da consciência e o dom da certeza da redenção. O Espírito da verdade é o
Consolador» (88).

II. Definição de pecado

1849. O pecado é uma falta contra a razão, a verdade, a recta consciência. É uma falha contra
o verdadeiro amor para com Deus e para com o próximo, por causa dum apego perverso a cer-
tos bens. Fere a natureza do homem e atenta contra a solidariedade humana. Foi definido
como «uma palavra, um acto ou um desejo contrários à Lei eterna» (89).
1850. O pecado é uma ofensa a Deus: «Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante
dos vossos olhos» (Sl 51, 6). O pecado é contrário ao amor que Deus nos tem e afasta d'Ele os
nossos corações. É, como o primeiro pecado, uma desobediência, uma revolta contra Deus,
pela vontade de os homens se tornarem «como deuses», conhecendo e determinando o que é
bem e o que é mal (Gn 3, 5). Assim, o pecado é «o amor de si próprio levado até ao desprezo
de Deus» (90). Por esta exaltação orgulhosa de si mesmo, o pecado é diametralmente oposto à
obediência de Jesus, que realizou a salvação (91).
1851. É precisamente na paixão, em que a misericórdia de Cristo o vai vencer, que o pecado
manifesta melhor a sua violência e a sua multiplicidade: incredulidade, ódio assassino, re-
jeição e escárnio por parte dos chefes e do povo, cobardia de Pilatos e crueldade dos soldados,
traição de Judas tão dura para Jesus, negação de Pedro e abandono dos discípulos. No ent-
anto, mesmo na hora das trevas e do príncipe deste mundo (92), o sacrifício de Cristo torna-se
secretamente a fonte de onde brotará, inesgotável, o perdão dos nossos pecados.
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III. A diversidade dos pecados

1852. É grande a variedade dos pecados. A Sagrada Escritura fornece-nos várias listas. A
Epístola aos Gálatas opõe as obras da carne aos frutos do Espírito: «As obras da natureza
decaída ("carne") são claras: imoralidade, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, inimiz-
ades, discórdias, ciúmes, fúrias, rivalidades, dissensões, facciosismos, invejas, excessos de be-
bida e de comida e coisas semelhantes a estas. Sobre elas vos previno, como já vos tinha pre-
venido: os que praticam acções como estas, não herdarão o Reino de Deus» (Gl 5, 19-21) (93).
1853. Os pecados podem distinguir-se segundo o seu objecto, como todo o acto humano; ou
segundo as virtudes a que se opõem; por excesso ou por defeito; ou segundo os mandamentos
que violam. Também podem agrupar-se segundo outros critérios: os que dizem respeito a
Deus, ao próximo, à própria pessoa do pecador; pecados espirituais e carnais: ou, ainda, peca-
dos por pensamentos, palavras, obras ou omissões. A raiz do pecado está no coração do
homem, na sua vontade livre, conforme o ensinamento do Senhor: «do coração é que provêm
pensamentos malévolos, assassínios, adultérios, fornicações, roubos, falsos testemunhos, mal-
edicências – coisas que tornam o homem impuro» (Mt 15, 19). Mas é também no coração que
reside a caridade, princípio das obras boas e puras, que o pecado ofende.

IV. A gravidade do pecado: pecado mortal e pecado venial

1854. Os pecados devem ser julgados segundo a sua gravidade. A distinção entre pecado mor-
tal e pecado venial, já perceptível na Escritura (94), impôs-se na Tradição da Igreja. A exper-
iência dos homens corrobora-a.
1855. O pecado mortal destrói a caridade no coração do homem por uma infracção grave à
Lei de Deus. Desvia o homem de Deus, que é o seu último fim, a sua bem-aventurança,
preferindo-Lhe um bem inferior. O pecado venial deixa subsistir a caridade, embora
ofendendo-a e ferindo-a.
1856. O pecado mortal, atacando em nós o princípio vital que é a caridade, torna necessária
uma nova iniciativa da misericórdia de Deus e uma conversão do coração que normalmente se
realiza no quadro do sacramento da Reconciliação:
«Quando [...] a vontade se deixa atrair por uma coisa de si contrária à caridade, pela qual
somos ordenados para o nosso fim último, o pecado, pelo seu próprio objecto, deve
considerar-se mortal [...], quer seja contra o amor de Deus (como a blasfémia, o perjúrio, etc.),
quer contra o amor do próximo (como o homicídio, o adultério, etc.) [...] Em contrapartida,
quando a vontade do pecador por vezes se deixa levar para uma coisa que em si é desorde-
nada, não sendo todavia contrária ao amor de Deus e do próximo (como uma palavra ociosa,
um risco supérfluo, etc.), tais pecados são veniais» (95).
1857. Para que um pecado seja mortal, requerem-se, em simultâneo, três condições: «É
pecado mortal o que tem por objecto uma matéria grave, e é cometido com plena consciência e
de propósito deliberado» (96).
1858. A matéria grave é precisada pelos dez Mandamentos, segundo a resposta que Jesus
deu ao jovem rico: «Não mates, não cometas adultério, não furtes, não levantes falsos
testemunhos, não cometas fraudes, honra pai e mãe» (Mc 10, 18). A gravidade dos pecados é
maior ou menor: um homicídio é mais grave que um roubo. A qualidade das pessoas
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lesadas também entra em linha de conta: a violência cometida contra pessoas de família é, por
sua natureza, mais grave que a exercida contra estranhos.
1859. Para que o pecado seja mortal tem de ser cometido com plena consciência e total con-
sentimento. Pressupõe o conhecimento do carácter pecaminoso do acto, da sua oposição à Lei
de Deus. E implica também um consentimento suficientemente deliberado para ser uma
opção pessoal. A ignorância simulada e o endurecimento do coração (97) não diminuem, antes
aumentam, o carácter voluntário do pecado.
1860. A ignorância involuntária pode diminuir, ou mesmo desculpar, a imputabilidade
duma falta grave. Mas parte-se do princípio de que ninguém ignora os princípios da lei moral,
inscritos na consciência de todo o homem. Os impulsos da sensibilidade e as paixões podem
também diminuir o carácter voluntário e livre da falta. O mesmo se diga de pressões externas
e de perturbações patológicas. O pecado cometido por malícia, por escolha deliberada do mal,
é o mais grave.
1861. O pecado mortal é uma possibilidade radical da liberdade humana, tal como o próprio
amor. Tem como consequência a perda da caridade e a privação da graça santificante, ou seja,
do estado de graça. E se não for resgatado pelo arrependimento e pelo perdão de Deus, origin-
ará a exclusão do Reino de Cristo e a morte eterna no Inferno, uma vez que a nossa liberdade
tem capacidade para fazer escolhas definitivas, irreversíveis. No entanto, embora nos seja pos-
sível julgar se um acto é, em si, uma falta grave, devemos confiar o juízo sobre as pessoas à
justiça e à misericórdia de Deus.
1862. Comete-se um pecado venial quando, em matéria leve, não se observa a medida pre-
scrita pela lei moral ou quando, em matéria grave, se desobedece à lei moral, mas sem pleno
conhecimento ou sem total consentimento.
1863. O pecado venial enfraquece a caridade, traduz um afecto desordenado aos bens criados,
impede o progresso da pessoa no exercício das virtudes e na prática do bem moral; e merece
penas temporais. O pecado venial deliberado e não seguido de arrependimento, dispõe, a pou-
co e pouco, para cometer o pecado mortal. No entanto, o pecado venial não quebra a aliança
com Deus e é humanamente reparável com a graça de Deus. «Não priva da graça santificante,
da amizade com Deus, da caridade, nem, portanto, da bem-aventurança eterna» (98) .
«Enquanto vive na carne, o homem não é capaz de evitar totalmente o pecado, pelo menos os
pecados leves. Mas estes pecados, que chamamos leves, não os tenhas por insignificantes. Se
os tens por insignificantes quando os pesas, treme quando os contas. Muitos objectos leves
fazem uma massa pesada; muitas gotas de água enchem um rio; muitos grãos fazem um
monte. Onde, então, está a nossa esperança? Antes de mais, na confissão...» (99).
1864. «Todo o pecado ou blasfémia será perdoado aos homens, mas a blasfémia contra o
Espírito não lhes será perdoada» (Mt 12, 31) (100). Não há limites para a misericórdia de
Deus, mas quem recusa deliberadamente receber a misericórdia de Deus, pelo arrependi-
mento, rejeita o perdão dos seus pecados e a salvação oferecida pelo Espírito Santo (101). Tal
endurecimento pode levar à impenitência final e à perdição eterna.

V. A proliferação do pecado

1865. O pecado arrasta ao pecado; gera o vício, pela repetição dos mesmos actos. Daí res-
ultam as inclinações perversas, que obscurecem a consciência e corrompem a apreciação
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concreta do bem e do mal. Assim, o pecado tende a reproduzir-se e reforçar-se, embora não
possa destruir radicalmente o sentido moral.
1866. Os vícios podem classificar-se segundo as virtudes a que se opõem, ou relacionando- os
com os pecados capitais que a experiência cristã distinguiu, na sequência de São João Cassi-
ano (102) e São Gregório Magno (103). Chamam-se capitais, porque são geradores doutros
pecados e doutros vícios. São eles: a soberba, a avareza, a inveja, a ira, a luxúria, a gula e a
preguiça ou negligência (acédia).
1867. A tradição catequética lembra também a existência de «pecados que bradam ao céu».
Bradam ao céu: o sangue de Abel (104); o pecado dos sodomitas (105); o clamor do povo
oprimido no Egipto (106); o lamento do estrangeiro, da viúva e do órfão (107); a injustiça para
com o assalariado (108).
1868. O pecado é um acto pessoal. Mas, além disso, nós temos responsabilidade nos pecados
cometidos por outros, quando neles cooperamos:
– tomando parte neles, directa e voluntariamente; – ordenando-os. aconselhando-os,
aplaudindo-os ou aprovando-os; – não os denunciando ou não os impedindo, quando a isso
obrigados; – protegendo os que praticam o mal.
1869. Assim, o pecado torna os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a con-
cupiscência, a violência e a injustiça. Os pecados provocam situações sociais e instituições
contrárias à Bondade divina; as «estruturas de pecado» são expressão e efeito dos pecados
pessoais e induzem as suas vítimas a que, por sua vez, cometam o mal. Constituem, em sen-
tido analógico, um «pecado social» (109).

Resumindo:

1870. «Deus encerrou todos na desobediência, para usar de misericórdia para com todos»
(Rm 11, 32).
1871. O pecado é «uma palavra, um acto ou um desejo contrários à lei eterna» (110). É uma
ofensa a Deus. Levanta-se contra Deus por uma desobediência contrária à obediência de
Cristo.
1872. O pecado é um acto contrário à razão. Fere a natureza do homem e atenta contra a
solidariedade humana.
1873. A raiz de todos os pecados está no coração do homem. As suas espécies e gravidade
aferem-se, principalmente, pelo seu objecto.
1874. Optar deliberadamente – isto é, sabendo e querendo – por algo gravemente contrário
à lei divina e ao fim último do homem, é cometer um pecado mortal. Este destrói em nós a
caridade, sem a qual a bem-aventurança eterna é impossível; se não houver arrependi-
mento, tem como consequência a morte eterna.
1875. O pecado venial constitui uma desordem moral, reparável pela caridade que deixa
subsistir em nós.
1876. A repetição dos pecados, mesmo veniais, gera os vícios, entre os quais se distinguem
os pecados capitais.
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CAPÍTULO SEGUNDO
A COMUNIDADE HUMANA

1877. A vocação da humanidade é manifestar a imagem de Deus e ser transformada à imagem


do Filho único do Pai. Esta vocação reveste-se de uma forma pessoal, pois cada um é chamado
a entrar na bem-aventurança divina. Mas diz também respeito ao conjunto da comunidade
humana.

ARTIGO 1

A PESSOA E A SOCIEDADE

I. O carácter comunitário da vocação humana

1878. Todos os homens são chamados ao mesmo fim, que é o próprio Deus. Existe uma certa
semelhança entre a unidade das pessoas divinas e a fraternidade que os homens devem in-
staurar entre si, na verdade e no amor (1). O amor ao próximo é inseparável do amor a Deus.
1879. A pessoa humana tem necessidade da vida social. Esta não constitui para ela algo de
acessório, mas uma exigência da sua natureza. Graças ao contacto com os demais, ao serviço
mútuo e ao diálogo com os seus irmãos, o homem desenvolve as suas capacidades, e assim re-
sponde à sua vocação (2).
1880. Sociedade é um conjunto de pessoas ligadas de modo orgânico por um princípio de
unidade que ultrapassa cada uma delas. Assembleia ao mesmo tempo visível e espiritual, uma
sociedade perdura no tempo: assume o passado e prepara o futuro. Através dela, cada homem
é constituído «herdeiro», recebe «talentos» que enriquecem a sua identidade e cujos frutos
deve desenvolver (3). Com toda a razão, cada um é devedor de dedicação às comunidades de
que faz parte e de respeito às autoridades encarregadas do bem comum.
1881. Cada comunidade define-se pelo fim a que tende e, por conseguinte, obedece a regras
específicas. Mas « pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as in-
stituições sociais» (4).
1882. Certas sociedades, como a família e a comunidade civil, correspondem de modo mais
imediato à natureza do homem. São-lhe necessárias. Para favorecer a participação do maior
número possível de pessoas na vida social, deve fomentar-se a criação de associações e institu-
ições de livre iniciativa, «com fins económicos, culturais, sociais, desportivos, recreativos,
profissionais, políticos, tanto no interior das comunidades políticas como a nível mundial»
(5). Esta «socialização» exprime também a tendência natural que leva os seres humanos a
associarem-se, com vista a atingirem objectivos que ultrapassam as capacidades individuais.
Desenvolve as qualidades da pessoa, particularmente o sentido de iniciativa e de responsabil-
idade, e contribui para garantir os seus direitos (6).
1883. Mas a socialização também oferece perigos. Uma intervenção exagerada do Estado
pode constituir uma ameaça à liberdade e às iniciativas pessoais. A doutrina da Igreja elabor-
ou o princípio dito da subsidiariedade. Segundo ele, «uma sociedade de ordem superior não
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deve interferir na vida interna duma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas com-
petências, mas deve antes apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudá-la a coordenar a sua
acção com a dos demais componentes sociais, com vista ao bem comum» (7).
1884. Deus não quis reservar só para Si o exercício de todos os poderes. Confia a cada cri-
atura as funções que ela é capaz de exercer, segundo as capacidades da sua própria natureza.
Este modo de governo deve ser imitado na vida social. O procedimento de Deus no governo do
mundo, que testemunha tão grande respeito para com a liberdade humana, deveria inspirar a
sabedoria daqueles que governam as comunidades humanas. Eles devem actuar como minis-
tros da providência divina.
1885. O princípio da subsidiariedade opõe-se a todas as formas de colectivismo e marca os
limites da intervenção do Estado. Visa harmonizar as relações entre os indivíduos e as so-
ciedades e tende a instaurar uma verdadeira ordem internacional.

II. Conversão e sociedade

1886. A sociedade é indispensável à realização da vocação humana. Para atingir esse fim, tem
de ser respeitada a justa hierarquia dos valores, que «subordina as dimensões físicas e in-
stintivas às dimensões interiores e espirituais» (8):
«A convivência humana [...] há-de considerar-se, antes de mais, como um facto de ordem
principalmente espiritual: como comunicação de conhecimentos, à luz da verdade; exercício
de direitos e cumprimento de deveres; incentivo e apelo aos bens do espírito; gozo comum do
justo prazer da beleza em todas as suas expressões; permanente disposição para partilhar com
os outros o melhor de si mesmo; aspiração a uma mútua e cada vez mais rica assimilação de
valores espirituais. Todos estes valores vivificam e, ao mesmo tempo, orientam tudo o que diz
respeito às doutrinas, às realidades económicas, à convivência cívica, aos movimentos e re-
gimes políticos, à ordem jurídica e aos demais elementos exteriores através dos quais se artic-
ula e se exprime a convivência humana no seu incessante devir» (9).
1887. A inversão dos meios e dos fins (10), que chega a dar valor de fim último ao que não
passa de meio para a ele chegar ou a considerar as pessoas como puros meios com vista a um
fim, gera estruturas injustas que «tornam árduo e praticamente impossível um procedimento
cristão, conforme com os mandamentos do divino legislador» (11).
1888. Deve-se, pois, apelar para as capacidades espirituais e morais da pessoa e para a
exigência permanente da sua conversão interior, para se conseguirem mudanças sociais que
estejam realmente ao seu serviço. A prioridade reconhecida à conversão do coração, não elim-
ina de modo algum, antes impõe, a obrigação de introduzir nas instituições e nas condições de
vida, quando introduzem ao pecado, as correcções convenientes para que elas se conformem
com as normas da justiça e favoreçam o bem, em vez de se lhe oporem (12).
1889. Sem a ajuda da graça, os homens não seriam capazes de «descobrir o caminho, muitas
vezes estreito, entre a cobardia que cede ao mal e a violência que, julgando combatê-lo, o
agrava» (13). É o caminho da caridade, ou seja, do amor de Deus e do próximo. A caridade
constitui o maior mandamento social. Ela respeita o outro e os seus direitos, exige a prática da
justiça, de que só ela nos torna capazes e inspira-nos uma vida de entrega: «Quem procurar
preservar a vida, há-de perdê-la; quem a perder, há-de salvá-la» (Lc 17, 33).
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Resumindo:

1890. Existe uma certa semelhança entre a unidade das pessoas divinas e a fraternidade
que
os homens devem instaurar entre si.
1891. Para se desenvolver em conformidade com a sua natureza, a pessoa humana tem ne-
cessidade da vida social. Certas sociedades, como a família e a comunidade civil, correspon-
dem, de modo mais imediato, à natureza do homem.
1892. «A pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições
sociais» (14).
1893. Deve promover-se uma larga participação nas associações e instituições de livre
iniciativa.
1894. Segundo o princípio da subsidiariedade, nem o Estado nem qualquer sociedade mais
abrangente devem substituir-se à iniciativa e à responsabilidade das pessoas e dos corpos
intermédios.
1895. A sociedade deve favorecer a prática das virtudes, e não impedi-la. Deve inspirar-se
numa justa hierarquia de valores.
1896. Onde quer que o pecado perverta o clima social, deve fazer-se apelo à conversão dos
corações e à graça de Deus. A caridade incentiva reformas justas. Não existe solução para a
questão social fora do Evangelho (15).

ARTIGO 2

A PARTICIPAÇÃO NA VIDA SOCIAL

1897. «A sociedade humana não estará bem constituída nem será fecunda, se a ela não
presidir uma autoridade legítima que salvaguarde as instituições e dedique o necessário tra-
balho e esforço ao bem comum» (16).
Chama-se «autoridade» àquela qualidade em virtude da qual pessoas ou instituições dão leis e
ordens a homens e esperam obediência da parte deles.
1898. Toda a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe (17).
Esta tem o seu fundamento na natureza humana. Ela é necessária para a unidade da comunid-
ade civil. O seu papel consiste em assegurar, quanto possível, o bem comum da sociedade.
1899. A autoridade exigida pela ordem moral emana de Deus: «Submeta-se cada qual às
autoridades constituídas. Pois não há autoridade que não tenha sido constituída por Deus e as
que existem foram estabelecidas por Ele. Quem resiste, pois, à autoridade, opõe-se à ordem
estabelecida por Deus, e os que lhe resistem atraem sobre si a condenação» (Rm 13, 1-2) (18).
1900. O dever de obediência impõe a todos a obrigação de tributar à autoridade as honras
que lhe são devidas e de rodear de respeito e, segundo o seu mérito, de gratidão e benevolên-
cia, as pessoas que a exercem.
Saída da pena do papa São Clemente de Roma, encontramos a mais antiga oração da Igreja
pela autoridade política (19):
«Dai-lhes, Senhor, a saúde, a paz, a concórdia, a estabilidade, para que exerçam sem obstácu-
los a soberania que lhes confiastes. Sois Vós, ó mestre, celeste rei dos séculos, quem dá aos
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filhos dos homens glória, honra e poder sobre as coisas da terra. Dirigi, Senhor, o seu conselho
segundo o que é bem, segundo o que é agradável aos vossos olhos, para que, exercendo com
piedade, na paz e na mansidão, o poder que lhes destes, Vos encontrem propício» (20).
1901. Se a autoridade remete para uma ordem fixada por Deus, já «a determinação dos re-
gimes políticos, tal como a designação dos seus dirigentes, devem ser deixados à livre vontade
dos cidadãos» (12).
A diversidade dos regimes políticos é moralmente admissível, desde que concorram para o
bem legítimo da comunidade que os adopta. Os regimes cuja natureza for contrária à lei nat-
ural, à ordem pública e aos direitos fundamentais das pessoas, não podem promover o bem
comum das nações onde se impuseram.
1902. A autoridade não recebe de si mesma a legitimidade moral. Por isso, não deve proceder
de maneira despótica, mas agir em prol do bem comum, como uma «força moral fundada na
liberdade e no sentido de responsabilidade» (22):
«A legislação humana só se reveste do carácter de lei, na medida em que se conforma com a
justa razão; daí ser evidente que ela recebe todo o seu vigor da Lei eterna. Na medida em que
se afastar da razão, deve ser declarada injusta, pois não realiza a noção de lei: será, antes, uma
forma de violência» (23).
1903. A autoridade só é exercida legitimamente na medida em que procurar o bem comum
do respectivo grupo e em que, para o atingir, empregar meios moralmente lícitos. No caso de
os dirigentes promulgarem leis injustas ou tomarem medidas contrárias à ordem moral, tais
disposições não podem obrigar as consciências. «Neste caso, a própria autoridade deixa de ex-
istir e degenera em abuso do poder» (24).
1904. «É preferível que todo o poder seja equilibrado por outros poderes e outras competên-
cias que o mantenham no seu justo limite. Este é o princípio do "Estado de direito", no qual é
soberana a Lei, e não a vontade arbitrária dos homens» (25).

II. O bem comum

1905. Em conformidade com a natureza social do homem, o bem de cada um está necessaria-
mente relacionado com o bem comum. E este não pode definir-se senão em referência à pess-
oa humana:
«Não vivais isolados, fechados em vós mesmos, como se já estivésseis justificados; mas reuni-
vos para procurar em conjunto o que é de interesse comum» (26).
1906. Por bem comum deve entender-se «o conjunto das condições sociais que permitem,
tanto aos grupos como a cada um dos seus membros, atingir a sua perfeição, do modo mais
completo e adequado» (27). O bem comum interessa à vida de todos. Exige prudência da parte
de cada um, sobretudo da parte de quem exerce a autoridade. E inclui três elementos
essenciais:
1907. Supõe, em primeiro lugar, o respeito da pessoa como tal. Em nome do bem comum, os
poderes públicos são obrigados a respeitar os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa
humana. A sociedade humana deve empenhar-se em permitir, a cada um dos seus membros,
realizar a própria vocação. De modo particular, o bem comum reside nas condições do exercí-
cio das liberdades naturais, indispensáveis à realização da vocação humana: «Por exemplo, o
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direito de agir segundo a recta norma da sua consciência, o direito à salvaguarda da vida
privada e à justa liberdade, mesmo em matéria religiosa» (28).
1908. Em segundo lugar, o bem comum exige o bem-estar social e o desenvolvimento da pró-
pria sociedade. O desenvolvimento é o resumo de todos os deveres sociais. Sem dúvida, à
autoridade compete arbitrar, em nome do bem comum, entre os diversos interesses particu-
lares; mas deve tornar acessível a cada qual aquilo de que precisa para levar uma vida ver-
dadeiramente humana: alimento, vestuário, saúde, trabalho, educação e cultura, informação
conveniente, direito de constituir família (29), etc.
1909. Finalmente, o bem comum implica a paz, quer dizer, a permanência e segurança duma
ordem justa. Supõe, portanto, que a autoridade assegure, por meios honestos, a segurança da
sociedade e dos seus membros. O bem comum está na base do direito à legítima defesa, pess-
oal e colectiva.
1910. Se cada comunidade humana possui um bem comum que lhe permite reconhecer-se
como tal, é na comunidade política que se encontra a sua realização mais completa. Compete
ao Estado defender e promover o bem comum da sociedade civil, dos cidadãos e dos corpos
intermédios.
1911. As dependências humanas intensificam-se. Estendem-se, pouco a pouco, a toda a terra.
A unidade da família humana, reunindo seres de igual dignidade natural, implica um bem
comum universal. E este requer uma organização da comunidade das nações, capaz de
«prover às diversas necessidades dos homens, tanto no domínio da vida social (alimentação,
saúde, educação...), como para fazer face a múltiplas circunstâncias particulares que podem
surgir aqui e ali (por exemplo: [...] acudir às misérias dos refugiados, dar assistência aos mi-
grantes e suas famílias...)» (30).
1912. O bem comum está sempre orientado para o progresso das pessoas: «A ordem das
coisas deve estar subordinada à ordem das pessoas, e não o inverso» (31). Esta ordem tem por
base a verdade, constrói-se na justiça e é vivificada pelo amor.

III. Responsabilidade e participação

1913. Participação é o empenhamento voluntário e generoso da pessoa nas permutas sociais.


É necessário que todos tomem parte, cada qual segundo o lugar que ocupa e o papel que
desempenha, na promoção do bem comum. Este é um dever inerente à dignidade da pessoa
humana.
1914. A participação realiza-se, primeiro, ao encarregar-se alguém dos sectores de que as-
sume a responsabilidade pessoal: pelo cuidado que põe na educação da família, pela con-
sciência com que realiza o seu trabalho, o homem participa no bem dos outros e da sociedade
(32).
1915. Os cidadãos devem, tanto quanto possível, tomar parte activa na vida pública. As mod-
alidades desta participação podem variar de país para país ou de uma cultura para outra. «É
de louvar o modo de agir das nações em que, em autêntica liberdade, o maior número possível
de cidadãos participa nos assuntos públicos» (33).
1916. A participação de todos na promoção do bem comum implica, como qualquer dever
ético, uma conversão incessantemente renovada dos parceiros sociais. A fraude e outros sub-
terfúgios, pelos quais alguns se esquivam às obrigações da lei e às prescrições do dever social,
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devem ser firmemente condenados como incompatíveis com as exigências da justiça. Importa
promover o progresso das instituições que melhorem as condições da vida humana (34).
1917. Incumbe àqueles que exercem cargos de autoridade garantir os valores que atraem a
confiança dos membros do grupo e os incitam a colocar-se ao serviço dos seus semelhantes. A
participação começa pela educação e pela cultura. «Pode-se legitimamente pensar que o fu-
turo da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às gerações de amanhã razões
de viver e de esperar» (35).

Resumindo:

1918. «Não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram por Deus es-
tabelecidas» (Rm 13, 1).
1919. Toda a comunidade humana tem necessidade duma autoridade, para se manter e
desenvolver:
1920. «A comunidade política e a autoridade pública têm o seu fundamento na natureza hu-
mana, e pertencem, por isso, à ordem estabelecida por Deus» (36). 1921. A autoridade
exerce-se de modo legítimo, se se dedicar a conseguir o bem comum da
sociedade. Para o atingir, deve empregar meios moralmente aceitáveis.
1922. A diversidade dos regimes políticos é legítima, desde que estas concorram para o bem
da comunidade.
1923. A autoridade política deve exercer-se dentro dos limites da ordem moral, e garantir
as condições necessárias para o exercício da liberdade.
1924. O bem comum abrange «o conjunto das condições sociais que permitem aos grupos e
às pessoas atingir a sua perfeição, do modo mais pleno e fácil» (37).
1925. O bem comum inclui três elementos essenciais: o respeito e a promoção dos direitos
fundamentais da pessoa; a prosperidade ou desenvolvimento dos bens espirituais e tempo-
rais da sociedade; a paz e a segurança do grupo e dos seus membros.
1926. A dignidade da pessoa humana implica a busca do bem comum. Cada qual deve
preocupar-se em suscitar e sustentar instituições que melhorem as condições da vida
humana.
1927. Compete ao Estado defender e promover o bem comum da sociedade civil. O bem
comum de toda a família humana exige uma organização da sociedade internacional.

ARTIGO

3 A JUSTIÇA SOCIAL

1928. A sociedade garante a justiça social, quando realiza as condições que permitem às asso-
ciações e aos indivíduos obterem o que lhes é devido, segundo a sua natureza e vocação. A
justiça social está ligada ao bem comum e ao exercício da autoridade.

I. O respeito pela pessoa humana

1929. A justiça social só pode alcançar-se no respeito da dignidade transcendente do homem.


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A pessoa constitui o fim último da sociedade, que está ordenada para ela:
A defesa e promoção da dignidade da pessoa humana «foram-nos confiadas pelo Criador,
tarefa a que estão rigorosa e responsavelmente obrigados os homens e as mulheres em todas
as conjunturas da história (38).
1930. O respeito pela pessoa humana implica o dos direitos que dimanam da sua dignidade
de criatura. Esses direitos são anteriores à sociedade e impõem-se-lhe. Estão na base da legit-
imidade moral de qualquer autoridade: desprezando-os ou recusando reconhecê-los na sua le-
gislação positiva, uma sociedade atenta contra a sua própria legitimidade moral (39).
Faltando esse respeito, uma sociedade não tem outra solução, senão o recurso à força e à viol-
ência, para obter a obediência dos seus súbitos. É dever da Igreja trazer à memória dos ho-
mens de boa vontade aqueles direitos, e distingui-los das reivindicações abusivas ou falsas.
1931. O respeito pela pessoa humana passa pelo respeito pelo princípio: «Que cada um con-
sidere o seu próximo, sem qualquer excepção, como «outro ele mesmo», e zele, antes de mais,
pela sua existência e pelos meios que lhe são necessários para viver dignamente» (40). Nen-
huma legislação será capaz, por si mesma, de fazer desaparecer os temores, os preconceitos,
as atitudes de orgulho e egoísmo que são obstáculo ao estabelecimento de sociedades ver-
dadeiramente fraternas. Tais atitudes só desaparecem com a caridade, que vê em cada homem
um «próximo», um irmão.
1932. O dever de nos fazermos o «próximo» do outro, e de o servirmos activamente, é tanto
mais premente quanto esse outro for mais indefeso, seja em que domínio for. «Quantas vezes
o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes» (Mt 25, 40).
1933. Este mesmo dever é extensivo a todos os que pensam ou se comportam de modo difer-
ente de nós. A doutrina de Cristo chega a exigir o perdão das ofensas. Ele estende o manda-
mento do amor, que é o da nova Lei, a todos os inimigos (41). A libertação, no espírito do
Evangelho, é incompatível com o ódio ao inimigo, enquanto pessoa; embora não o seja com o
ódio ao mal, que ele pode praticar enquanto inimigo.

II. Igualdade e diferença entre os homens

1934. Criados à imagem do Deus único, dotados duma idêntica alma racional, todos os ho-
mens têm a mesma natureza e a mesma origem. Resgatados pelo sacrifício de Cristo, todos
são chamados a participar da mesma bem-aventurança divina. Todos gozam, portanto, de
igual dignidade.
1935. A igualdade entre os homens assenta essencialmente na sua dignidade pessoal e nos
direitos que dela dimanam:
«Toda a espécie de discriminação relativamente aos direitos fundamentais da pessoa, quer
por razão do sexo, quer da raça, cor, condição social, língua ou religião, deve ser ultrapassada
e eliminada como contrária ao desígnio de Deus» (42).
1936. Ao vir ao mundo, o homem não dispõe de tudo o que é necessário para o desenvolvi-
mento da sua vida corporal e espiritual. Precisa dos outros. Há diferenças relacionadas com a
idade, as capacidades físicas, as aptidões intelectuais e morais, os intercâmbios de que cada
um pôde beneficiar, a distribuição das riquezas (43). Os «talentos» não são distribuídos por
igual (44).
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1937. Estas diferenças fazem parte do plano de Deus que quer que cada um receba de outrem
aquilo de que precisa e que os que dispõem de «talentos» particulares comuniquem os seus
benefícios aos que deles precisam. As diferenças estimulam e muitas vezes obrigam as pessoas
à magnanimidade, à benevolência e à partilha: e incitam as culturas a enriquecerem-se umas
às outras:
«Eu distribuo as virtudes tão diferentemente, que não dou tudo a todos, mas a uns uma e a
outros outra [...] A um darei principalmente a caridade, a outro a justiça, a este a humildade,
àquele uma fé viva. [...] E assim dei muitos dons e graças de virtudes, espirituais e temporais,
com tal diversidade, que não comuniquei tudo a uma só pessoa, a fim de que vós fosseis força-
dos a usar de caridade uns para com os outros; [...] Eu quis que um tivesse necessidade do
outro e todos fossem meus ministros na distribuição das graças e dons de Mim recebidos»
(45).
1938. Mas também existem desigualdades iníquas que ferem milhões de homens e de mul-
heres. Essas estão em contradição frontal com o Evangelho: «A igual dignidade pessoal pos-
tula que se chegue a condições de vida mais humanas e justas. Com efeito, as excessivas
desigualdades económicas e sociais entre os membros ou povos da única família humana pro-
vocam escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e,
finalmente, à paz social e internacional» (46).

III. A solidariedade humana

1939. O princípio da solidariedade, também enunciado sob o nome de «amizade» ou de


«caridade social», é uma exigência directa da fraternidade humana e cristã (47):
Um erro, «hoje largamente espalhado, é o que esquece esta lei da solidariedade humana e da
caridade, ditada e imposta tanto pela comunidade de origem e pela igualdade da natureza ra-
cional entre todos os homens, seja qual for o povo a que pertençam, como pelo sacrifício da
redenção oferecido por Jesus Cristo no altar da cruz ao Pai celeste, em favor da humanidade
pecadora» (48).
1940. A solidariedade manifesta-se, em primeiro lugar, na repartição dos bens e na remuner-
ação do trabalho. Implica também o esforço por uma ordem social mais justa, em que as
tensões possam ser resolvidas melhor e os conflitos encontrem mais facilmente uma saída
negociada.
1941. Os problemas sócio-económicos só podem ser resolvidos com a ajuda de todas as
formas de solidariedade: solidariedade dos pobres entre si, dos ricos com os pobres, dos tra-
balhadores entre si, dos empresários e empregados na empresa; solidariedade entre as nações
e entre os povos. A solidariedade internacional é uma exigência de ordem moral. Dela de-
pende, em parte, a paz do mundo.
1942. A virtude da solidariedade vai além dos bens materiais. Ao difundir os bens espirituais
da fé, a Igreja favoreceu, por acréscimo, o desenvolvimento dos bens temporais, a que, muitas
vezes, abriu novos caminhos. Assim se verificou, ao longo dos séculos, a Palavra do Senhor:
«Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por ac-
réscimo» (Mt 6, 33):
«Desde há dois mil anos que vive e persevera na alma da Igreja este sentimento, que levou e
ainda leva as almas até ao heroísmo caridoso dos monges agricultores, dos libertadores de
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escravos, dos que cuidam dos doentes, dos mensageiros da fé, da civilização, da ciência a todas
as gerações e a todos os povos, em vista a criar condições sociais capazes de a todos tornar
possível uma vida digna do homem e do cristão» (49).

Resumindo:

1943. A sociedade assegura a justiça social, realizando as condições que permitem às asso-
ciações e aos indivíduos obterem o que lhes é devido.
1944. O respeito pela pessoa humana considera o outro como «outro eu». Supõe o respeito
pelos direitos fundamentais, decorrentes da dignidade intrínseca da pessoa.
1945. A igualdade entre os homens assenta na sua dignidade pessoal e nos direitos que dela
dimanam.
1946. As diferenças entre as pessoas fazem parte do desígnio de Deus que quer que precise-
mos uns dos outros. Devem estimular a caridade.
1947. A igual dignidade das pessoas humanas exige esforços no sentido de reduzir
desigualdades sociais e económicas excessivas. Conduza o desaparecimento das
desigualdades iníquas.
1948. A solidariedade é uma virtude eminentemente cristã. Pratica a partilha dos bens es-
pirituais, ainda mais que a dos materiais.
SEGUNDA SECÇÃO

OS DEZ MANDAMENTOS

«MESTRE, QUE HEI-DE FAZER...?»

2052. «Mestre, que devo fazer de bom para ter a vida eterna?» Ao jovem que Lhe faz esta
pergunta, Jesus responde, primeiro, invocando a necessidade de reconhecer a Deus como «o
único Bom», o Bem por excelência e a fonte de todo o bem. Depois, declara-lhe: «Se queres
entrar na vida, observa os mandamentos». E cita ao seu interlocutor os mandamentos que
dizem respeito ao amor do próximo: «Não matarás; não cometerás adultério: não furtarás;
não levantarás falso testemunho; honra pai e mãe». Finalmente, resume estes mandamentos
de modo positivo: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Mt 19, 16-19).
2053. A esta primeira resposta vem juntar-se uma segunda: «Se queres ser perfeito, vai,
vende os teus bens e dá-os aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Vem, depois, e segue-Me»
(Mt 19, 21). Esta resposta não anula a primeira. Seguir Jesus implica cumprir os mandamen-
tos. A Lei não é abolida (1): mas o homem é convidado a reencontrá-la na Pessoa do seu
mestre, em Quem ela encontra o seu perfeito cumprimento. Nos três evangelhos sinópticos, o
apelo de Jesus ao jovem rico, para O seguir na obediência de discípulo e na observância dos
preceitos, está associado ao apelo à pobreza e à castidade (2). Os conselhos evangélicos são in-
separáveis dos mandamentos.
2054. Jesus retomou os dez mandamentos, mas manifestou a força do Espírito que actua na
letra em que eles se exprimem. Pregou a «justiça que excede a dos escribas e fariseus» (3), do
mesmo modo que a dos pagãos (4). E explicou todas as exigências dos mandamentos: «Ouv-
istes que foi dito aos antigos: Não matarás [...]; Eu, porém, digo-vos: Quem se irritar contra o
seu irmão será réu perante o tribunal» (Mt 5, 21-22).
2055. Quando Lhe perguntam: «Qual é o maior mandamento que há na Lei?» (Mt 22, 36),
Jesus responde: «Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e
com toda a tua mente: tal é o maior e primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo. A estes dois mandamentos está Ligada toda a Lei,
bem como os Profetas» (Mt 22, 37-40) (5). O Decálogo deve ser interpretado à luz deste duplo
e único mandamento da caridade, plenitude da Lei.
«De facto: ''Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás" bem como
qualquer outro mandamento, estão resumidos numa só frase: "Amarás o teu próximo como a
ti mesmo". O amor não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento
da Lei» (Rm 13, 9-10).

O DECÁLOGO NA SAGRADA ESCRITURA

2056. A palavra «Decálogo» significa literalmente «dez palavras» (Ex 34, 28: Dt 4, 13: 10, 4).
Estas dez palavras, Deus as revelou ao seu povo na montanha sagrada. Escreveu-as com o
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«seu Dedo» (6), o que não aconteceu com os outros preceitos escritos por Moisés (7). São pa-
lavras de Deus num sentido eminente e foram-nos transmitidas no Livro do Êxodo(8) e no do
Deuteronómio (9). Desde o Antigo Testamento que os livros santos fazem referência às «dez
palavras» mas é na Nova Aliança em Jesus Cristo que será revelado o seu sentido pleno.
2057. O Decálogo compreende-se, antes de mais nada, no contexto do Êxodo que é o grande
acontecimento libertador de Deus, no centro da Antiga Aliança. Quer sejam formuladas como
preceitos negativos ou interdições, quer como mandamentos positivos (por exemplo: «Honra
teu pai e tua mãe»), as «dez palavras» indicam as condições duma vida liberta da escravidão
do pecado. O Decálogo é um caminho de vida:
«Se amares o teu Deus, andares nos seus caminhos e guardares os seus mandamentos, leis e
costumes, viverás e multiplicar-te-ás» (Dt 30, 16).
Esta força libertadora do Decálogo aparece, por exemplo, no mandamento sobre o repouso do
sábado, que abrange igualmente os estrangeiros e os escravos:
«Recorda-te de que foste escravo no país do Egipto, de onde o Senhor teu Deus te fez sair com
mão forte e braço poderoso» (Dt 5, 15).
2058. As «dez palavras» resumem e proclamam a Lei de Deus: «Estas palavras dirigiu-as o
Senhor a toda a vossa assembleia sobre a montanha, do meio do fogo, da nuvem e das trevas,
com voz forte, sem acrescentar mais nada: escreveu-as em duas tábuas de pedra e entregou-
mas» (Dt 5, 22). Por isso é que estas duas tábuas são chamadas «o testemunho» (Ex 25, 16).
De facto, elas contêm as cláusulas da aliança concluída entre Deus e o seu povo. Estas «tábuas
do testemunho» (Ex 31, 18; 32, 15; 34, 29) devem ser depositadas na «arca» (Ex 25, 16: 40, 1-
2).
2059. As «dez palavras» são pronunciadas por Deus no decurso duma teofania («sobre a
montanha, no meio do fogo, o Senhor vos falou face a face»: Dt 5, 4). Fazem parte da rev-
elação que Deus fez de Si mesmo e da sua glória. O dom dos mandamentos é uma dádiva do
próprio Deus e da sua santa vontade. Dando a conhecer as suas vontades, Deus revela-Se ao
seu povo.
2060. O dom dos mandamentos e da Lei faz parte da Aliança selada por Deus com os seus.
Segundo o Livro do Êxodo, a revelação das «dez palavras» teve lugar entre a proposta da Ali-
ança (11) e a sua conclusão (12) depois de o povo se ter comprometido a «fazer» tudo o que o
Senhor tinha dito e a «obedecer» (13). O Decálogo nunca é transmitido sem primeiro se evoc-
ar a Aliança («o Senhor nosso Deus firmou connosco uma Aliança no Horeb»: Dt 5, 2).
2061. É no âmbito da Aliança que os mandamentos recebem o seu pleno significado. Segundo
a Escritura, o procedimento moral do homem atinge todo o seu sentido na e pela Aliança. A
primeira das "dez palavras" lembra o amor primeiro de Deus pelo seu povo:
«Como, em castigo do pecado, se tinha dado a passagem do paraíso da liberdade para a es-
cravidão deste mundo, por esse motivo, a primeira frase do Decálogo, primeira palavra dos
mandamentos de Deus, incide sobre a liberdade: "Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair da
terra do Egipto, de uma casa de escravidão" (Ex 20, 2: Dt 5, 6)» (14).
2062. Os mandamentos propriamente ditos vêm em segundo lugar e traduzem as im-
plicações da pertença a Deus, instituída pela Aliança. A existência moral é resposta à iniciativa
amorosa do Senhor. É reconhecimento, homenagem a Deus e culto de acção de graças. É co-
operação com o plano que Deus prossegue na história.
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2063. A Aliança e o diálogo entre Deus e o homem são ainda comprovados pelo facto de to-
das as obrigações serem enunciadas em primeira pessoa ("Eu sou o Senhor...") e dirigidas a
um outro sujeito ("tu..."). Em todos os mandamentos de Deus, é um pronome pessoal singu-
lar que designa o destinatário. Ao mesmo tempo que a todo o povo, Deus faz conhecer a sua
vontade a cada um em particular:
«O Senhor prescreveu o amor para com Deus e ensinou a justiça para com o próximo, para
que o homem não fosse nem injusto nem indigno de Deus. Assim, através do Decálogo, Deus
preparava o homem para se tornar seu amigo e ter um só coração com o seu próximo [...]. As
palavras do Decálogo continuam a ser para nós [cristãos] o que eram; longe de serem aboli-
das, elas receberam amplificação e desenvolvimento, com o facto da vinda do Senhor na
carne» (15).

O DECÁLOGO NA TRADIÇÃO DA IGREJA

2064. Na fidelidade à Sagrada Escritura e em conformidade com o exemplo de Jesus, a


Tradição da Igreja reconheceu no Decálogo uma importância e um significado primordiais.
2065. A partir de Santo Agostinho, os "Dez Mandamentos" têm um lugar preponderante na
catequese dos futuros baptizados e dos fiéis. No século XV, começou o costume de exprimir os
preceitos do Decálogo em fórmulas rimadas, fáceis de decorar, e positivas, que ainda hoje se
usam. Os catecismos da Igreja expuseram muitas vezes a moral cristã seguindo a ordem dos
«Dez Mandamentos».
2066. A divisão e a numeração dos mandamentos variou no decurso da história. O actual
catecismo segue a divisão dos mandamentos estabelecida por Santo Agostinho e que passou a
ser tradicional na Igreja Católica. É a mesma das «confissões» luteranas. Os Padres gregos
procederam a uma divisão um tanto diversa, que se encontra nas Igrejas ortodoxas e nas
comunidades reformadas.
2067. Os Dez Mandamentos enunciam as exigências do amor de Deus e do próximo. Os três
primeiros referem-se mais ao amor de Deus: os outros sete, ao amor do próximo:
«Como a caridade abrange dois preceitos, nos quais o Senhor resume toda a Lei e os Profetas,
[...] assim também os Dez Mandamentos estão divididos em duas tábuas. Três foram escritos
numa tábua e sete na outra» (16).
2068. O Concílio de Trento ensina que os Dez Mandamentos obrigam os cristãos e que o
homem justificado continua obrigado a cumpri-los (17). E o II Concilio do Vaticano também o
afirma: «Os bispos, sucessores dos Apóstolos, recebem do Senhor [...] a missão de ensinar to-
das as nações e de pregar o Evangelho a toda a criatura, para que todos os homens se salvem
pela fé, pelo Baptismo e pelo cumprimento dos mandamentos» (18).

A UNIDADE DO DECÁLOGO

2069. O Decálogo forma um todo indissociável. Cada «Palavra» remete para cada uma das
outras e para todas; elas condicionam-se reciprocamente. As duas «tábuas» esclarecem-se
mutuamente; formam uma unidade orgânica. Transgredir um mandamento é infringir todos
os outros (19). Não é possível honrar a outrem sem louvar a Deus seu criador; nem se pode
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adorar a Deus sem amar todos os homens, suas criaturas. O Decálogo unifica a vida teologal e
a vida social do homem.

O DECÁLOGO E A LEI NATURAL

2070. Os Dez Mandamentos fazem parte da revelação de Deus. Mas, ao mesmo tempo,
ensinam-nos a verdadeira humanidade do homem. Põem em relevo os deveres essenciais e,
por conseguinte, indirectamente, os direitos fundamentais inerentes à natureza da pessoa hu-
mana. O Decálogo encerra uma expressão privilegiada da «lei natural»:
No princípio, Deus admoestou os homens com os preceitos da lei natural, que tinha enraizado
nos seus corações, isto é, pelo Decálogo. Se alguém não os cumprisse, não se salvaria. E Deus
não exigiu mais nada aos homens» (20).
2071. Embora acessíveis à simples razão, os preceitos do Decálogo foram revelados. Para at-
ingir um conhecimento completo e certo das exigências da lei natural, a humanidade pecadora
precisava desta revelação:
«Uma explicação completa dos mandamentos do Decálogo tornou-se necessária no estado de
pecado, por causa do obscurecimento da lei da razão e do desvio da vontade» (21)
Nós conhecemos os mandamentos de Deus pela revelação divina que nos é proposta na Igreja
e pela voz da consciência moral.

A OBRIGAÇÃO DO DECÁLOGO

2072. Uma vez que exprimem os deveres fundamentais do homem para com Deus e para com
o próximo, os Dez Mandamentos revelam, no seu conteúdo primordial, obrigações graves.
São basicamente imutáveis e a sua obrigação impõe-se sempre e em toda a parte. Ninguém
pode dispensar-se dela. Os Dez Mandamentos foram gravados por Deus no coração do ser
humano.
2073. Mas a obediência aos mandamentos também implica obrigações cuja matéria, em si
mesma, é leve. Assim, a injúria por palavras é proibida pelo quinto mandamento, mas só
poderá ser falta grave em razão das circunstâncias ou da intenção de quem a profere.

«SEM MIM, NADA PODEIS FAZER»

2074. Jesus diz: «Eu sou a cepa, vós as varas. Quando alguém permanece em Mim, e Eu nele,
esse é que dá muito fruto, porque, sem Mim, nada podeis fazer» (Jo 15, 5). O fruto, a que se
faz referência nesta palavra, é a santidade duma vida fecundada pela união com Cristo.
Quando cremos em Jesus Cristo, comungamos nos seus mistérios e guardamos os seus man-
damentos, o Salvador vem em pessoa amar em nós o seu Pai e os seus irmãos, o nosso Pai e os
nossos irmãos. A sua pessoa toma-se, graças ao Espírito, a regra viva e interior do nosso agir.
«É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei» (Jo 15, 12).

Resumindo:
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2075. «Que devo fazer de bom para ter a vida eterna; – Se queres entrar na vida, observa
os mandamentos» (Mt 19, 16-17).
2076. Com o seu modo de agir e com a sua pregação, Jesus confirmou a perenidade do
Decálogo.
2077. A dádiva do Decálogo foi feita no âmbito da Aliança concluída por Deus com o seu
povo. É nesta e por esta Aliança que os mandamentos de Deus recebem o seu verdadeiro
significado.
2078. Por fidelidade à Escritura e em conformidade com o exemplo de Jesus, a Tradição da
Igreja reconheceu ao Decálogo uma importância e um significado primordiais.
2079. O Decálogo forma uma unidade orgânica, em que cada «palavra» ou «mandamento»
remete para todo o conjunto. Transgredir um mandamento é infringir toda a Lei (22).
2080. O Decálogo encerra uma expressão privilegiada da lei natural. É-nos dado a con-
hecer pela revelação divina e pela razão humana.
2081. Os Dez Mandamentos enunciam, no seu conteúdo fundamental, obrigações graves.
No entanto, a obediência a estes mandamentos implica também obrigações, cuja matéria,
em si mesma, é leve.
2082. Aquilo que Deus manda, Ele o torna possível pela sua grata.
CAPÍTULO PRIMEIRO
“AMARÁS O SENHOR TEU DEUS COM TODO O TEU
CORAÇÃO, COM TODA A TUA ALMA E COM TODAS AS
TUAS FORÇAS”

2083. Jesus resumiu os deveres do homem para com Deus nestas palavras: «Amarás o Sen-
hor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente» (Mt 22, 37)
(1). Elas são um eco imediato do apelo solene: «Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único»
(Dt 6, 4).
Deus foi o primeiro a amar. O amor do Deus único é lembrado na primeira das «dez palav-
ras». Em seguida, os mandamentos explicitam a resposta de amor que o homem é chamado a
dar ao seu Deus.

ARTIGO 1

O PRIMEIRO MANDAMENTO

«Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egipto, dessa casa da escravidão. Não ter-
ás outros deuses perante Mim. Não farás de ti nenhuma imagem esculpida, nem figura que ex-
iste lá no alto do céu ou cá em baixo, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás
diante delas nem lhes prestarás culto (Ex 20, 2-5) (2).
«Está escrito: "Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto"» (Mt 4, 10).

I. «Ao Senhor teu Deus adorarás, a Ele servirás»


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2084. Deus dá-Se a conhecer lembrando a sua acção omnipotente, benevolente e libertadora,
na história daquele a quem se dirige: «Sou Eu [...] que te tirei da terra do Egipto, dessa casa da
escravidão» (Dt 5, 6). A primeira palavra encerra o primeiro mandamento da Lei: «Ao Senhor,
teu Deus, adorarás, a Ele servirás [...]. Não ireis atrás de outras divindades» (Dt 6, 13-14). O
primeiro apelo e a justa exigência de Deus é que o homem O acolha e O adore.
2085. O Deus único e verdadeiro revela, antes de mais, a sua glória a Israel (3). A revelação
da vocação e da verdade do homem está ligada à revelação de Deus. O homem tem a vocação
de manifestar Deus pelo seu agir, em conformidade com a sua criação, «à imagem e semel-
hança de Deus» (Gn 1, 26).
«Não haverá jamais outro Deus, ó Trifão, e nunca houve outro, desde os séculos [...], senão
Aquele que fez e ordenou o Universo. Não pensamos que o nosso Deus seja diferente do vosso.
É o mesmo que fez sair os vossos pais do Egipto, pela sua mão poderosa e braço levantado.
Nós não pomos as nossas esperanças em qualquer outro, que não há, mas no mesmo que vós,
o Deus de Abraão, Isaac e Jacob» (4).
2086. «O primeiro dos preceitos abrange a fé, a esperança e a caridade. De facto, quem diz
Deus diz um ser constante, imutável, sempre o mesmo, fiel, perfeitamente justo. Daí se segue
que devemos necessariamente aceitar as suas palavras e ter n'Ele uma fé e confiança plenas. É
todo-poderoso, clemente, infinitamente propenso a bem-fazer. Quem poderia não pôr n'Ele
todas as suas esperanças? E quem seria capaz de não O amar, ao ver os tesouros de bondade e
ternura que derramou sobre nós? Daí a fórmula que Deus emprega na Sagrada Escritura, quer
no princípio, quer no fim dos seus preceitos: Eu sou o Senhor» (5).

A FÉ

2087. A nossa vida moral tem a sua fonte na fé em Deus, que nos revela o seu amor. São
Paulo fala da «obediência da fé» (6) como a primeira obrigação. E faz ver, no «desconheci-
mento de Deus», o princípio e a explicação de todos os desvios morais (7). O nosso dever para
com Deus é crer n'Ele e dar testemunho d'Ele.
2088. O primeiro mandamento ordena-nos que alimentemos e guardemos com prudência e
vigilância a nossa fé, rejeitando tudo quanto a ela se opõe. Pode-se pecar contra a fé de vários
modos:
A dúvida voluntária em relação à fé negligencia ou recusa ter por verdadeiro o que Deus rev-
elou e a Igreja nos propõe para crer. A dúvida involuntária é a hesitação em crer, a di-
ficuldade em superar as objecções relacionadas com a fé, ou ainda a angústia suscitada pela
sua obscuridade. Quando deliberadamente cultivada, a dúvida pode levar à cegueira do
espírito.
2089. A incredulidade é o desprezo da verdade revelada ou a recusa voluntária de lhe prestar
assentimento. A «heresia é a negação pertinaz, depois de recebido o Baptismo, de alguma ver-
dade que se deve crer com fé divina e católica, ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma;
apostasia é o repúdio total da fé cristã; cisma é a recusa da sujeição ao Sumo Pontífice ou da
comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos» (8).

A ESPERANÇA
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2090. Quando Deus Se revela e chama o homem, este não pode responder plenamente ao
amor divino pelas suas próprias forças. Deve esperar que Deus lhe dará a capacidade de, por
sua vez, O amar e de agir de acordo com os mandamentos da caridade. A esperança é a expect-
ativa confiante da bênção divina e da visão beatífica de Deus: é também o receio de ofender o
amor de Deus e de provocar o castigo.
2091. O primeiro mandamento visa igualmente os pecados contra a esperança, que são o
desespero e a presunção:
Pelo desespero, o homem deixa de esperar de Deus a sua salvação pessoal, os socorros para a
atingir, ou o perdão dos seus pecados. Opõe-se à bondade de Deus, à sua justiça (porque o
Senhor é fiel às suas promessas) e à sua misericórdia.
2092. Há duas espécies de presunção: o homem ou presume das suas capacidades (esper-
ando poder salvar-se sem a ajuda do Alto), ou presume da omnipotência ou misericórdia divi-
nas (esperando obter o perdão sem se converter, e a glória sem a merecer).

A CARIDADE

2093. A fé no amor de Deus implica o apelo e a obrigação de corresponder à caridade divina


com um amor sincero. O primeiro mandamento manda-nos amar a Deus sobre todas as coisas
(9) e a todas as criaturas por Ele e por causa d'Ele.
2094. Pode-se pecar contra o amor de Deus de diversas maneiras: a indiferença descuida ou
recusa a consideração da caridade divina; desconhece-lhe o cuidado preveniente e nega-lhe a
força. A ingratidão não reconhece, por desleixo ou recusa formal, a caridade divina, não re-
tribuindo amor com amor. A tibieza, que é hesitação ou negligência em corresponder ao amor
divino, pode implicar a recusa de se entregar ao movimento da caridade. A acédia ou preguiça
espiritual chega a recusar a alegria que vem de Deus e a aborrecer o bem divino. O ódio a
Deus nasce do orgulho: opõe-se ao amor de Deus, cuja bondade nega, e ousa amaldiçoá-lo
como Aquele que proíbe o pecado e lhe inflige o castigo.

II. «Só a Ele prestarás culto»

2095. As virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade informam e vivificam as vir-


tudes morais. Assim, a caridade leva-nos a prestar a Deus o que com toda a justiça Lhe deve-
mos, enquanto criaturas. A virtude da religião dispõe-nos para tal atitude.

A ADORAÇÃO

2096. A adoração é o primeiro acto da virtude da religião. Adorar a Deus é reconhecê-Lo


como tal, Criador e Salvador, Senhor e Dono de tudo quanto existe, Amor infinito e misericor-
dioso. «Ao Senhor teu Deus adorarás, só a Ele prestarás culto» (Lc 4, 8) – diz Jesus, citando o
Deuteronómio (Dt 6, 13).
2097. Adorar a Deus é reconhecer, com respeito e submissão absoluta, o «nada da criatura»,
que só por Deus existe. Adorar a Deus é, como Maria no Magnificat, louvá-Lo, exaltá-Lo e
humilhar-se, confessando com gratidão que Ele fez grandes coisas e que o seu Nome é santo
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(10). A adoração do Deus único liberta o homem de se fechar sobre si próprio, da escravidão
do pecado e da idolatria do mundo.

A ORAÇÃO

2098. Os actos de fé, de esperança e de caridade, exigidos pelo primeiro mandamento,


fazem- se na oração. A elevação do espírito para Deus é uma expressão da nossa adoração ao
mesmo Deus: oração de louvor e de acção de graças, de intercessão e de súplica. A oração é
condição indispensável para se poder obedecer aos mandamentos de Deus. «E preciso orar
sempre, sem desfalecer» (Lc 18, 1).

O SACRIFÍCIO

2099. É justo que se ofereçam a Deus sacrifícios, em sinal de adoração e de reconhecimento,


de súplica e de comunhão: «Verdadeiro sacrifício é todo o acto realizado para se unir a Deus
em santa comunhão e poder ser feliz» (11).
2100. Para ser autêntico, o sacrifício exterior deve ser expressão do sacrifício espiritual: «O
meu sacrifício é um espírito arrependido...» (Sl 51, 19). Os profetas da Antiga Aliança denun-
ciaram muitas vezes os sacrifícios feitos sem participação interior (12) ou sem ligação com o
amor do próximo (13). Jesus recorda a palavra do profeta Oseias: «Eu quero misericórdia e
não sacrifício» (Mt 9, 13; 12, 7) (14). O único sacrifício perfeito é o que Cristo ofereceu na cruz,
em total oblação ao amor do Pai e para nossa salvação (15). Unindo-nos ao seu sacrifício, po-
demos fazer da nossa vida um sacrifício a Deus.

PROMESSAS E VOTOS

2101. Em muitas circunstâncias, o cristão chamado a fazer promessas a Deus. O Baptismo e a


Confirmação, o Matrimónio e a Ordenação comportam sempre promessas. Por devoção pess-
oal, o cristão pode também prometer a Deus tal ou tal acto, uma oração, uma esmola, uma
peregrinação, etc. A fidelidade às promessas feitas a Deus é uma manifestação do respeito
devido à majestade divina e do amor para com o Deus fiel.
2102. «O voto, isto é, a promessa deliberada e livre feita a Deus de um bem possível e melhor,
deve cumprir-se por virtude da religião» (16). O voto é um acto de devoção, no qual o cristão
se oferece a si próprio a Deus ou Lhe promete uma obra boa. Portanto, pelo cumprimento dos
seus votos, ele dá a Deus o que Lhe foi prometido e consagrado. Os Actos dos Apóstolos
mostram-nos São Paulo cuidadoso em cumprir os votos que fez (17).
2103. A Igreja reconhece um valor exemplar aos votos de praticar os conselhos evangélicos
(18):
«A mãe Igreja alegra-se por encontrar no seu seio muitos homens e mulheres que seguem
mais de perto o abaixamento do Salvador e mais claramente o manifestam, abraçando a
pobreza na liberdade dos filhos de Deus e renunciando à própria vontade: em matéria de
perfeição, sujeitam-se ao homem, por amor de Deus, para além do que é obrigação, a fim de
mais plenamente se conformarem a Cristo obediente» (19).
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Em certos casos, a Igreja pode, por razões proporcionadas, dispensar dos votos e das promes-
sas (20).

O DEVER SOCIAL DE RELIGIÃO E O DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA

2104. «Todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a
Deus e à sua Igreja; e de uma vez conhecida, a abraçar e guardar» Este dever funda-se na
«própria natureza dos homens» (22). Não está em oposição ao «respeito sincero» pelas diver-
sas religiões, que «muitas vezes reflectem um raio da verdade que ilumina todos os homens»
(23), nem à exigência da caridade que impele os cristãos «a agir com amor, prudência e pa-
ciência para com os homens que se encontram no erro ou na ignorância da fé» (24).
2105. O dever de prestar a Deus um culto autêntico diz respeito ao homem individual e so-
cialmente. Esta é «a doutrina católica tradicional sobre o dever moral que os homens e as so-
ciedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo» (25). Ao evangelizar
incessantemente os homens, a Igreja trabalha para que eles possam «impregnar de espírito
cristão as mentalidades e os costumes, as leis e as estruturas da comunidade em que vivem»
(26). É dever social dos cristãos respeitar e despertar em cada homem o amor da verdade e do
bem. Esse dever exige que tornem conhecido o culto da única verdadeira religião que subsiste
na Igreja católica e apostólica (27). Os cristãos são chamados a ser a luz do mundo (28). A
Igreja manifesta assim a realeza de Cristo sobre toda a criação, e em particular sobre as so-
ciedades humanas (29).
2106. «Que em matéria religiosa ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência,
nem impedido de proceder dentro dos justos limites segundo a mesma, em privado e em
público, só ou associado com outros» (30). Este direito funda-se na própria natureza da pess-
oa humana, cuja dignidade a leva a aderir livremente à verdade divina, que transcende a or-
dem temporal: e por isso, «permanece mesmo naqueles que não satisfazem a obrigação de
buscar e aderir à verdade» (31).
2107. «Se, em razão das circunstâncias particulares dos diferentes povos, se atribui a determ-
inado grupo religioso um reconhecimento civil especial na ordem jurídica, é necessário que,
ao mesmo tempo, se reconheça e assegure a todos os cidadãos e comunidades religiosas o
direito à liberdade em matéria religiosa» (32).
2108. O direito à liberdade religiosa não é nem a permissão moral de aderir ao erro (33), nem
um suposto direito ao erro (34), mas um direito natural da pessoa humana à liberdade civil,
isto é, à imunidade do constrangimento exterior, dentro dos justos limites, em matéria reli-
giosa, por parte do poder político. Este direito natural deve ser reconhecido na ordem jurídica
da sociedade, de tal maneira que constitua um direito civil (35).
2109. O direito à liberdade religiosa não pode, de per si, ser ilimitado (36) nem limitado
somente por uma «ordem pública» concebida de maneira positivista ou naturalista (37). Os
«justos limites» que lhe são próprios devem ser determinados para cada situação social pela
prudência política, segundo as exigências do bem comum, e ratificadas pela autoridade civil,
segundo «regras jurídicas conformes à ordem moral objectiva» (38).

III. «Não terás outros deuses perante Mim»


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2110. O primeiro mandamento proíbe honrar outros deuses, além do único Senhor que Se
revelou ao seu povo: e proíbe a superstição e a irreligião. A superstição representa, de certo
modo, um excesso perverso de religião; a irreligião é um vício oposto por defeito à virtude da
religião.

A SUPERSTIÇÃO

2111. A superstição é um desvio do sentimento religioso e das práticas que ele impõe. Tam-
bém pode afectar o culto que prestamos ao verdadeiro Deus: por exemplo, quando atribuímos
uma importância de algum modo mágica a certas práticas, aliás legítimas ou necessárias.
Atribuir só à materialidade das orações ou aos sinais sacramentais a respectiva eficácia, inde-
pendentemente das disposições interiores que exigem, é cair na superstição (39).

A IDOLATRIA

2112. O primeiro mandamento condena o politeísmo. Exige do homem que não acredite em
outros deuses além de Deus, que não venere outras divindades além da única. A Sagrada
Escritura está constantemente a lembrar esta rejeição dos «ídolos, ouro e prata, obra das
mãos do homem, que «têm boca e não falam, têm olhos e não vêem...». Estes ídolos vãos tor-
nam vão o homem: «sejam como eles os que os fazem e quantos põem neles a sua confiança»
(Sl 115, 4-5.8) (40). Deus, pelo contrário, é o «Deus vivo» (Js 3, 10) (41), que faz viver e inter-
vém na história.
2113. A idolatria não diz respeito apenas aos falsos cultos do paganismo. Continua a ser uma
tentação constante para a fé. Ela consiste em divinizar o que não é Deus. Há idolatria desde o
momento em que o homem honra e reverencia uma criatura em lugar de Deus, quer se trate
de deuses ou de demónios (por exemplo, o satanismo), do poder, do prazer, da raça, dos ante-
passados, do Estado, do dinheiro, etc., «Vós não podereis servir a Deus e ao dinheiro», diz Je-
sus (Mt 6, 24). Muitos mártires foram mortos por não adorarem «a Besta» (42), recusando- se
mesmo a simularem-lhe o culto. A idolatria recusa o senhorio único de Deus; é, pois, incom-
patível com a comunhão divina (43).
2114. A vida humana unifica-se na adoração do Único. O mandamento de adorar o único Sen-
hor simplifica o homem e salva-o duma dispersão ilimitada. A idolatria é uma perversão do
sentido religioso inato no homem. Idólatra é aquele que «refere a sua indestrutível noção de
Deus seja ao que for, que não a Deus» (44).

ADIVINHAÇÃO E MAGIA

2115. Deus pode revelar o futuro aos seus profetas ou a outros santos. Mas a atitude certa do
cristão consiste em pôr-se com confiança nas mãos da Providência, em tudo quanto se refere
ao futuro, e em pôr de parte toda a curiosidade malsã a tal propósito. A imprevidência, no ent-
anto, pode constituir uma falta de responsabilidade.
2116. Todas as formas de adivinhação devem ser rejeitadas: recurso a Satanás ou aos de-
mónios, evocação dos mortos ou outras práticas supostamente «reveladoras» do futuro (45).
A consulta dos horóscopos, a astrologia, a quiromancia, a interpretação de presságios e de
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sortes, os fenómenos de vidência, o recurso aos "médiuns", tudo isso encerra uma vontade de
dominar o tempo, a história e, finalmente, os homens, ao mesmo tempo que é um desejo de
conluio com os poderes ocultos. Todas essas práticas estão em contradição com a honra e o re-
speito, penetrados de temor amoroso, que devemos a Deus e só a Ele.
2117. Todas as práticas de magia ou de feitiçaria, pelas quais se pretende domesticar os
poderes ocultos para os pôr ao seu serviço e obter um poder sobrenatural sobre o próximo –
ainda que seja para lhe obter a saúde – são gravemente contrárias à virtude de religião. Tais
práticas são ainda mais condenáveis quando acompanhadas da intenção de fazer mal a outr-
em ou quando recorrem à intervenção dos demónios. O uso de amuletos também é
repreensível. O espiritismo implica muitas vezes práticas divinatórias ou mágicas; por isso, a
Igreja adverte os fiéis para que se acautelem dele. O recurso às medicinas ditas tradicionais
não legitima nem a invocação dos poderes malignos, nem a exploração da credulidade alheia.

A IRRELIGIÃO

2118. O primeiro mandamento da Lei de Deus reprova os principais pecados de irreligião:


tentar a Deus por palavras ou actos, o sacrilégio, a simonia.
2119. Tentar a Deus consiste em pôr à prova, por palavras ou actos, a sua bondade e a sua
omnipotência. Foi assim que Satanás quis que Jesus se atirasse do templo abaixo, para com
isso forçar Deus a intervir (46). Jesus opôs-lhe a Palavra de Deus: «Não tentarás o Senhor teu
Deus»(Dt 6, 16). O desafio contido em semelhante tentação a Deus fere o respeito e a confi-
ança que devemos ao nosso Criador e Senhor, implicando sempre uma dúvida relativamente
ao seu amor, à sua providência e ao seu poder (47).
2120. O sacrilégio consiste em profanar ou em tratar indignamente os sacramentos e outras
acções litúrgicas, bem como as pessoas, as coisas e os lugares consagrados a Deus. O sacrilégio
é um pecado grave, sobretudo quando é cometido contra a Eucaristia, pois que, neste sacra-
mento, é o próprio corpo de Cristo que Se nos torna presente substancialmente (48).
2121. A simonia (49) define-se como a compra ou venda das realidades espirituais. A Simão,
o mago, que queria comprar o poder espiritual que via operante nos Apóstolos, Pedro re-
sponde: «Vá contigo o teu dinheiro para a perdição, porque julgaste poder adquirir por din-
heiro o dom de Deus» (Act 8, 20). O apóstolo conformava-se, assim, à Palavra de Jesus: «Re-
cebestes de graça, pois dai gratuitamente» (Mt 10, 8) (50). É impossível alguém apropriar-se
dos bens espirituais e comportar-se a respeito deles como proprietário ou dono, pois eles têm
a sua fonte em Deus, e só d'Ele se podem receber gratuitamente.
2122. «Além das ofertas determinadas pela autoridade competente, o ministro nada peça pela
administração dos sacramentos, e tenha o cuidado de que os pobres, em razão da pobreza, não
se vejam privados do auxílio dos sacramentos» (51). A autoridade competente fixa essas «ob-
lações» em virtude do princípio segundo o qual o povo cristão tem o dever de contribuir para
o sustento dos ministros da Igreja. «O trabalhador merece o seu sustento» (Mt 10, 10) (52).

O ATEÍSMO
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2123. «Muitos [...] dos nossos contemporâneos não percebem esta íntima e vital ligação a
Deus, ou até a rejeitam explicitamente; de tal maneira que o ateísmo deve ser considerado um
dos factos mais graves do tempo actual» (53).
2124. A palavra «ateísmo» abrange fenómenos muito diversos. Uma forma frequente dele é o
materialismo prático, que limita as suas necessidades e ambições ao espaço e ao tempo. O hu-
manismo ateu julga falsamente que o homem «é para si mesmo o seu próprio fim, o único
artífice e demiurgo da sua própria história» (54). Uma outra forma do ateísmo contem-
porâneo é a que espera a libertação do homem exclusivamente através duma libertação econ-
ómica e social, à qual «a religião, por sua mesma natureza, se oporia, na medida em que,
dando ao homem a esperança duma enganosa vida futura, o afasta da construção da cidade
terrena» (55).
2125. Na medida em que nega ou rejeita a existência de Deus, o ateísmo é um pecado contra a
virtude da religião (56). A imputabilidade desta falta pode ser largamente diminuída,
atendendo às intenções e às circunstâncias. Na génese e difusão do ateísmo, «os crentes po-
dem ter tido parte não pequena, na medida em que, pela negligência na educação da sua fé, ou
por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral
e social, se pode dizer que mais esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da
religião» (57).
2126. Muitas vezes, o ateísmo funda-se num falso conceito da autonomia humana, levado até
à recusa de qualquer dependência em relação a Deus (58). No entanto, «o reconhecimento de
Deus de modo nenhum se opõe à dignidade do homem, uma vez que esta se funda e se realiza
no próprio Deus» (59). A Igreja sabe que «a sua mensagem está de acordo com os desejos
mais profundos do coração humano» (60).

O AGNOSTICISMO

2127. O agnosticismo reveste muitas formas. Em certos casos, o agnóstico recusa-se a negar
Deus. Postula, pelo contrário, a existência dum ser transcendente, incapaz de Se revelar e do
qual ninguém seria capaz de dizer fosse o que fosse. Em outros casos, não se pronuncia sobre
a existência de Deus, declarando ser impossível prová-la, e até afirmá-la ou negá-la.
2128. O agnosticismo pode, por vezes, encerrar uma certa busca de Deus. Mas pode igual-
mente representar um indiferentismo, uma fuga perante a questão última da existência e uma
preguiça da consciência moral. Com muita frequência, o agnosticismo equivale a um ateísmo
prático.

IV. «Não farás para ti nenhuma imagem esculpida...»

2129. Esta imposição divina comportava a interdição de qualquer representação de Deus feita
pela mão do homem. O Deuteronómio explica: «Tomai muito cuidado convosco, pois não
vistes imagem alguma no dia em que o Senhor vos falou no Horeb do meio do fogo. Portanto,
não vos deixeis corromper, fabricando para vós imagem esculpida» do quer que seja (Dt 4, 15-
16). Quem Se revelou a Israel foi o Deus absolutamente transcendente. «Ele é tudo», mas, ao
mesmo tempo, «está acima de todas as suas obras» (Sir 43, 27-28). Ele é «a própria fonte de
toda a beleza criada» (Sb 13, 3).
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2130. No entanto, já no Antigo Testamento Deus ordenou ou permitiu a instituição de im-


agens, que conduziriam simbolicamente à salvação pelo Verbo encarnado: por exemplo, a ser-
pente de bronze (61) a arca da Aliança e os querubins (62).
2131. Com base no mistério do Verbo encarnado, o sétimo Concílio ecuménico, de Niceia (ano
de 787) justificou, contra os iconoclastas, o culto dos ícones: dos de Cristo, e também dos da
Mãe de Deus, dos anjos e de todos os santos. Encarnando, o Filho de Deus inaugurou uma
nova «economia» das imagens.
2132. O culto cristão das imagens não é contrário ao primeiro mandamento, que proíbe os
ídolos. Com efeito, «a honra prestada a uma imagem remonta (63) ao modelo original» e
«quem venera uma imagem venera nela a pessoa representada» (64). A honra prestada às
santas imagens é uma «veneração respeitosa», e não uma adoração, que só a Deus se deve:
«O culto da religião não se dirige às imagens em si mesmas como realidades, mas olha-as sob
o seu aspecto próprio de imagens que nos conduzem ao Deus encarnado. Ora, o movimento
que se dirige à imagem enquanto tal não se detém nela, mas orienta-se para a realidade de
que ela é imagem» (65).

Resumindo:

2133. «Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas
as tuas forças» (Dt 6, 5).
2134. O primeiro mandamento chama o homem a crer em Deus, a esperar n'Ele e a amá-Lo
sobre todas as coisas.
2135. «Ao Senhor teu Deus adorarás» (Mt 4, 10). Adorar a Deus, orar-Lhe, prestar-Lhe o
culto que Lhe é devido, cumprir as promessas e votos que se Lhe fizeram, são actos da vir-
tude da religião, que traduzem a obediência ao primeiro mandamento.
2136. O dever de prestar a Deus um culto autêntico diz respeito ao homem, individual e
socialmente.
2137. O homem deve poder professar livremente a religião, tanto em privado como em
público (66).
2138. A superstição é um desvio do culto que prestamos ao verdadeiro Deus. Manifesta-se
na idolatria, bem como nas diferentes formas de adivinhação e magia.
2139. O acto de tentar a Deus por palavras ou por obras, o sacrilégio e a simonia são peca-
dos de irreligião, proibidos pelo primeiro mandamento.
2140. Na medida em que rejeita ou recusa a existência de Deus, o ateísmo é um pecado con-
tra o primeiro mandamento.
2141. O culto das imagens sagradas funda-se no mistério da encarnação do Verbo de Deus.
E não é contrário ao primeiro mandamento.

ARTIGO 2

O SEGUNDO MANDAMENTO
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«Não invocarás em vão o nome do Senhor teu Deus» (Ex 20, 7) (67) «Foi dito aos antigos:
"Não faltarás ao que tiveres jurado" [...]. Pois Eu digo-vos que não jureis, em caso algum» (Mt
5, 33-34).

I. O nome do Senhor é Santo

2142. O segundo mandamento manda respeitar o nome do Senhor. Depende, como o


primeiro mandamento, da virtude da religião, e regula, dum modo mais particular, o nosso
uso da palavra nas coisas santas.
2143. Entre todas as palavras da Revelação, há uma, singular, que é a revelação do nome de
Deus. Deus confia o seu nome aos que crêem n'Ele; revela-se-lhes no seu mistério pessoal. O
dom do nome é da ordem da confidência e da intimidade. «O nome do Senhor é Santo»; por
isso, o homem não pode abusar dele. Deve guardá-lo na memória, num silêncio de adoração
amorosa (68). E não o empregará nas suas próprias palavras senão para o bendizer, louvar e
glorificar (69).
2144. A deferência para com o seu nome exprime a que é devida ao mistério do próprio Deus
e a toda a realidade sagrada que ele evoca. O sentido do sagrado deriva da virtude da religião:
«Os sentimentos de temor e de sagrado serão ou não sentimentos cristãos? [...] Ninguém pode
razoavelmente pôr isso em dúvida. São os sentimentos que nós teríamos, e num grau intenso,
se tivéssemos a visão do Deus soberano. São os sentimentos que nós teríamos, se tivéssemos
consciência da sua presença. Ora, na medida em que acreditamos que Ele está presente, deve-
mos ter tais sentimentos. Não os ter é não estar conscientes desta realidade, é não crer que Ele
está presente» (70).
2145. O fiel deve dar testemunho do nome do Senhor, confessando a sua fé sem ceder ao
medo (71). A pregação e a catequese devem estar compenetrados de adoração e respeito pelo
nome de nosso Senhor Jesus Cristo.
2146. O segundo mandamento proíbe o abuso do nome de Deus, isto é, todo o uso inconveni-
ente do nome de Deus, de Jesus Cristo, da Virgem Maria e de todos os santos.
2147. As promessas feitas a outrem, em nome de Deus, comprometem a honra, a fidelidade, a
veracidade e a autoridade divinas. Devem ser respeitadas por justiça. Ser-lhes infiel é abusar
do nome de Deus e, de certo modo, fazer de Deus um mentiroso (72)
2148. A blasfémia opõe-se directamente ao segundo mandamento. Consiste em proferir con-
tra Deus – interior ou exteriormente – palavras de ódio, de censura, de desafio; dizer mal de
Deus; faltar-Lhe ao respeito nas conversas; abusar do nome d'Ele. São Tiago reprova aqueles
«que blasfemam o bom nome [de Jesus] que sobre eles foi invocado» (Tg 2, 7). A proibição da
blasfémia estende-se às palavras contra a Igreja de Cristo, contra os santos, contra as coisas
sagradas. É também blasfematório recorrer ao nome de Deus para justificar práticas crimino-
sas, reduzir povos à escravidão, torturar ou condenar à morte. O abuso do nome de Deus para
cometer um crime provoca a rejeição da religião.
A blasfémia é contrária ao respeito devido a Deus e ao seu santo nome. É, em si mesma,
pecado grave (73).
2149. As juras, que invocam o nome de Deus sem intenção de blasfémia, são uma falta de re-
speito para com o Senhor. O segundo mandamento interdiz também o uso mágico do nome
divino.
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«O nome de Deus é grande, quando é pronunciado com o respeito devido à sua grandeza e
majestade. O nome de Deus é santo. quando se pronuncia com veneração e temor de o ofend-
er» (74).

II. O nome do Senhor invocado em vão

2150. O segundo mandamento proíbe jurar falso. Fazer um juramento, ou jurar, é tomar a
Deus como testemunha do que se afirma. É invocar a veracidade divina como garantia da pró-
pria veracidade. O juramento compromete o nome do Senhor. «Ao Senhor, teu Deus, ador-
arás, a Ele servirás e pelo seu nome jurarás» (Dt 6, 13).
2151. A reprovação do falso juramento é um dever para com Deus. Como Criador e Senhor,
Deus é a regra de toda a verdade. A palavra humana, ou está de acordo ou em oposição a
Deus, que é a própria verdade. Quando é verídico e legítimo, o juramento realça a relação da
palavra humana com a verdade de Deus. O juramento falso invoca Deus como testemunha de
uma mentira.
2152. Comete perjúrio aquele que, sob juramento, faz uma promessa que não tem a intenção
de cumprir ou que, depois de ter prometido sob juramento, de facto não cumpre. O perjúrio
constitui uma grave falta de respeito para com o Senhor de toda a palavra. Comprometer-se
sob juramento a praticar uma acção má é contrário à santidade do nome divino.
2153. Jesus expôs o segundo mandamento no sermão da montanha: «Ouvistes que foi dito
aos antigos: "Não faltarás ao que tiveres jurado, mas cumprirás os teus juramentos para com o
Senhor". Eu, porém, digo-vos que não jureis em caso algum [...]. A vossa linguagem deve ser:
"Sim, sim; Não, não". O que passa disto vem do Maligno» (Mt 5, 33-34. 37) (75). Jesus ensina
que todo o juramento implica uma referência a Deus e que a presença de Deus e da sua ver-
dade deve ser honrada em toda a palavra. A discrição no recurso a Deus, ao falar, anda a par
com a atenção respeitosa à sua presença, testemunhada ou desrespeitada em cada uma das
nossas afirmações.
2154. Seguindo o exemplo de São Paulo (76), a Tradição da Igreja entendeu a palavra de Je-
sus como não se opondo ao juramento, quando feito por uma causa grave e justa (por exem-
plo, diante do tribunal). «O juramento, isto é, a invocação do nome de Deus como testemunha
da verdade, não se pode prestar senão com verdade, discernimento e justiça» (77).
2155. A santidade do nome de Deus exige que não se recorra a ele por questões fúteis, e que
não se preste juramento em circunstâncias susceptíveis de serem interpretadas como uma
aprovação do poder que injustamente o exigisse. Quando o juramento é exigido por autorid-
ades civis ilegítimas, pode ser recusado. E deve sê-lo, se for pedido para fins contrários à dig-
nidade das pessoas ou à comunhão da Igreja.

III. O nome cristão

2156. O sacramento do Baptismo é conferido «em nome do Pai e do Filho e do Espírito


Santo»(Mt 28, 19). No Baptismo, o nome do Senhor santifica o homem, e o cristão recebe o
seu nome na Igreja. Pode ser o dum santo, isto é, dum discípulo que levou uma vida de fidelid-
ade exemplar ao seu Senhor. O patrocínio do santo oferece um modelo de caridade e assegura
a sua intercessão. O «nome de baptismo» pode também exprimir um mistério cristão ou uma
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virtude cristã. «Procurem os pais, os padrinhos e o pároco que não se imponham nomes al-
heios ao sentir cristão» (78).
2157. O cristão começa o seu dia, as suas orações, as suas actividades, pelo sinal da cruz «em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Ámen». O baptizado consagra o dia à glória de
Deus e apela para a graça do Salvador, que lhe permite agir no Espírito, como filho do Pai. O
sinal da cruz fortalece-nos nas tentações e nas dificuldades.
2158. Deus chama a cada um pelo seu nome (79). O nome de todo o homem é sagrado. O
nome é a imagem da pessoa. Exige respeito, como sinal da dignidade de quem por ele se
identifica.
2159. O nome recebido é um nome de eternidade. No Reino, o carácter misterioso e único de
cada pessoa marcada com o nome de Deus resplandecerá em plena luz. «Ao vencedor [...] dar-
lhe-ei uma pedra na qual estará escrito um novo nome, que ninguém conhece, a não ser
aquele que a recebe» (Ap 2, 17). «Olhei e vi: o Cordeiro estava sobre o monte de Sido, e com
Ele cento e quarenta e quatro mil pessoas, que tinham inscrito na fronte o nome d'Ele e o do
seu Pai» (Ap 14, 1).

Resumindo:

2160. «Senhor; nosso Deus, como é admirável o vosso nome em toda a terra! (Sl 8, 2).
2161. O segundo mandamento manda respeitar o nome do Senhor: O nome do Senhor é
santo.
2162. O segundo mandamento proíbe o uso inconveniente do nome de Deus. A blasfémia
consiste em usar o nome de Deus, de Jesus Cristo, da Virgem Maria e dos santos de modo
injurioso.
2163. O juramento falso invoca Deus como testemunha duma mentira. O perjúrio é uma
falta grave contra o Senhor; sempre fiel às suas promessas.
2164. «Não jurar nem pelo Criador, nem pela criatura, senão com verdade, por necessidade
e com reverência» (80).
2165. No Baptismo, o cristão recebe o seu nome na Igreja. Procurem os pais, os padrinhos e
o pároco que lhe seja imposto um nome cristão. O patrocínio dum santo oferece um modelo
de caridade e assegura a sua intercessão.
2166. O cristão começa as suas orações e as suas actividades pelo sinal da cruz «em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Ámen».
2167. Deus chama a cada um pelo seu nome (81).

ARTIGO 3

O TERCEIRO MANDAMENTO

«Lembra-te do dia do sábado para o santificares. Durante seis dias trabalharás e farás todos
os teus trabalhos. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Não farás nele nenhum
trabalho» (Ex 20, 8-10) (82).
«O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado: o Filho do Homem até do
sábado é Senhor» (Mc 2, 27-28).
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I. O dia do sábado

2168. O terceiro mandamento do Decálogo refere-se à santificação do sábado: «O sétimo dia


é
um sábado: um descanso completo consagrado ao Senhor» (Ex 31, 15).
2169. A Escritura faz, a este propósito, memória da criação: «Porque em seis dias o Senhor
fez o céu e a terra, o mar e tudo o que nele se encontra, mas ao sétimo dia descansou. Eis
porque o Senhor abençoou o dia do sábado e o santificou» (Ex 20, 11).
2170. A Escritura vê também, no dia do Senhor, o memorial da libertação de Israel da es-
cravidão do Egipto: «Recorda-te de que foste escravo no país do Egipto, de onde o Senhor, teu
Deus, te fez sair com mão forte e braço poderoso. É por isso que o Senhor, teu Deus, te orden-
ou que guardasses o dia de sábado» (Dt 5, 15).
2171. Deus confiou a Israel o sábado, para ele o guardar em sinal da Aliança inviolável (83).
O sábado é para o Senhor, santamente reservado ao louvor de Deus, da sua obra criadora e
das suas acções salvíficas a favor de Israel.
2172. O agir de Deus é o modelo do agir humano. Se Deus «descansou» no sétimo dia (Ex 31,
17), o homem deve também «descansar» e deixai que os outros, sobretudo os pobres, «tomem
fôlego» (84). O sábado faz cessar os trabalhos quotidianos e concede uma folga. É um dia de
protesto contra as servidões do trabalho e o culto do dinheiro
2173. O Evangelho relata numerosos incidentes em que Jesus é acusado de violar a lei do
sábado. Mas Jesus nunca viola a santidade deste dia (86). É com autoridade que Ele dá a sua
interpretação autêntica desta lei: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o
sábado» (Mc 2, 27). Cheio de compaixão, Cristo autoriza-Se, em dia de sábado, a fazer o bem
em vez do mal, a salvar uma vida antes que perdê-la (87). O sábado é o dia do Senhor das
misericórdias e da honra de Deus (88). «O Filho do Homem é Senhor do próprio sábado» (Mc
2, 28).

II. O dia do Senhor

«Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria» (Sl 118, 24).

O DIA DA RESSURREIÇÃO: A NOVA CRIAÇÃO

2174. Jesus ressuscitou de entre os mortos «no primeiro dia da semana» (Mc 16, 2) (89). En-
quanto «primeiro dia», o dia da ressurreição de Cristo lembra a primeira criação. Enquanto
«oitavo dia», a seguir ao sábado (90), significa a nova criação, inaugurada com a ressurreição
de Cristo. Este dia tornou-se para os cristãos o primeiro de todos os dias, a primeira de todas
as festas, o dia do Senhor (Hê kuriakê hêméra, dies dominica), o «Domingo»:
«Reunimo-nos todos no dia do Sol, porque foi o primeiro dia [após o Sábado judaico, mas
também o primeiro dia] em que Deus, tirando das trevas a matéria, criou o mundo, mas tam-
bém porque Jesus Cristo, nosso Salvador, nesse mesmo dia ressuscitou dos mortos» (91).

O DOMINGO – REALIZAÇÃO DO SÁBADO


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2175. O domingo distingue-se expressamente do sábado, ao qual sucede cronologicamente,


em cada semana, e cuja prescrição ritual substitui, para os cristãos. O domingo realiza plena-
mente, na Páscoa de Cristo, a verdade espiritual do sábado judaico e anuncia o descanso eter-
no do homem, em Deus. Porque o culto da Lei preparava para o mistério de Cristo e o que
nela se praticava era figura de algum aspecto relativo a Cristo (92):
«Os que viveram segundo a antiga ordem das coisas alcançaram uma nova esperança, não
guardando já o sábado mas o dia do Senhor, em que a nossa vida foi abençoada por Ele e pela
sua morte» (93).
2176. A celebração do domingo é o cumprimento da prescrição moral, naturalmente inscrita
no coração do homem, de «prestar a Deus um culto exterior, visível, público e regular, sob o
signo da sua bondade universal para com os homens» (94). O culto dominical cumpre o pre-
ceito moral da Antiga Aliança, cujo ritmo e espírito retoma, ao celebrar em cada semana o Cri-
ador e o Redentor do seu povo.

A EUCARISTIA DOMINICAL

2177. A celebração dominical do Dia e da Eucaristia do Senhor está no coração da vida da


Igreja. «O domingo, em que se celebra o mistério pascal, por tradição apostólica, deve
guardar-se em toda a Igreja como o primordial dia festivo de preceito» (95).
«Do mesmo modo devem guardar-se os dias do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, Epifania,
Ascensão e santíssimo corpo e sangue de Cristo, Santa Maria Mãe de Deus, sua Imaculada
Conceição e Assunção, São José e os Apóstolos São Pedro e São Paulo, e finalmente o de todos
os Santos» (96).
2178. Esta prática da reunião da assembleia cristã data dos princípios da idade apostólica
(97). A Epístola aos Hebreus lembra: «Sem abandonarmos a nossa assembleia, como é cos-
tume de alguns, mas exortando-nos mutuamente» (Heb 10, 25).
A Tradição guarda a lembrança duma exortação sempre actual: «Vir cedo à igreja. aproximar-
se do Senhor e confessar os próprios pecados, arrepender-se deles na oração [...], assistir à
santa e divina liturgia, acabar a sua oração e não sair antes da despedida [...]. Muitas vezes o
temos dito: este dia é-vos dado para a oração e o descanso. É o dia que o Senhor fez: nele exul-
temos e cantemos de alegria» (98).
2179. «A paróquia é uma certa comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja par-
ticular, cuja cura pastoral, sob a autoridade do bispo diocesano, está confiada ao pároco, como
a seu pastor próprio»(99). É o lugar onde todos os fiéis podem reunir-se para a celebração
dominical da Eucaristia. A paróquia inicia o povo cristão na expressão ordinária da vida litúr-
gica e reúne-o nesta celebração; ensina a doutrina salvífica de Cristo; e pratica a caridade do
Senhor em obras boas e fraternas (100):
«Podes também rezar em tua casa; mas não podes rezar aí como na igreja, onde muitos se
reúnem, onde o grito é lançado a Deus de um só coração. [...] Há lá qualquer coisa mais: a
união dos espíritos, a harmonia das almas, o laço da caridade, as orações dos sacerdotes»
(101).

A OBRIGAÇÃO DO DOMINGO
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2180. O mandamento da Igreja determina e precisa a lei do Senhor: «No domingo e nos out-
ros dias festivos de preceito, os fiéis têm obrigação de participar na missa» (102). «Cumpre o
preceito de participar na missa quem a ela assiste onde quer que se celebre em rito católico,
quer no próprio dia festivo quer na tarde do antecedente» (103).
2181. A Eucaristia dominical fundamenta e sanciona toda a prática cristã. É por isso que os
fiéis têm obrigação de participar na Eucaristia nos dias de preceito, a menos que estejam justi-
ficados, por motivo sério (por exemplo, doença, obrigação de cuidar de crianças de peito) ou
dispensados pelo seu pastor (104). Os que deliberadamente faltam a esta obrigação cometem
um pecado grave.
2182. A participação na celebração comum da Eucaristia dominical é um testemunho de per-
tença e fidelidade a Cristo e à sua Igreja. Os fiéis atestam desse modo a sua comunhão na fé e
na caridade. Juntos, dão testemunho da santidade de Deus e da sua esperança na salvação. E
reconfortam-se mutuamente, sob a acção do Espírito Santo.
2183. «Se for impossível a participação na celebração eucarística por falta de ministro
sagrado ou por outra causa grave, recomenda-se muito que os fiéis tomem parte na liturgia da
Palavra, se a houver na igreja paroquial ou noutro lugar sagrado, celebrada segundo as pre-
scrições do bispo diocesano, ou consagrem um tempo conveniente à oração pessoal ou em
família ou em grupos de famílias, conforme a oportunidade» (105).

DIA DE GRAÇA E DE CESSAÇÃO DO TRABALHO

2184. Tal como Deus «repousou no sétimo dia, depois de todo o trabalho que realizara» (Gn
2, 2), assim a vida humana é ritmada pelo trabalho e pelo repouso. A instituição do Dia do
Senhor contribui para que todos gozem do tempo de descanso e lazer suficiente, que lhes per-
mita cultivar a vida familiar, cultural, social e religiosa (106).
2185. Aos domingos e outros dias festivos de preceito, os fiéis abstenham-se de trabalhos e
negócios que impeçam o culto devido a Deus, a alegria própria do Dia do Senhor, a prática das
obras de misericórdia ou o devido repouso do espírito e do corpo (107). As necessidades famil-
iares ou uma grande utilidade social constituem justificações legítimas em relação ao preceito
do descanso dominical. Mas os fiéis estarão atentos a que legítimas desculpas não introduzam
hábitos prejudiciais à religião, à vida de família e à saúde.
«O amor da verdade procura o ócio santo: a necessidade do amor aceita o negócio justo»
(108).
2186. Os cristãos que dispõem de tempos livres lembrem-se dos seus irmãos que têm as mes-
mas necessidades e os mesmos direitos, e não podem descansar por motivos de pobreza e de
miséria. O domingo é tradicionalmente consagrado, pela piedade cristã, às boas obras e aos
serviços humildes dos doentes, enfermos e pessoas de idade. Os cristãos também santificarão
o domingo prestando à sua família e vizinhos tempo e cuidados difíceis de prestar nos outros
dias da semana. O domingo é um tempo de reflexão, de silêncio, de cultura e de meditação,
que favorecem o crescimento da vida interior e cristã.
2187. Santificar os domingos e festas de guarda exige um esforço comum. Todo o cristão deve
evitar impor a outrem, sem necessidade, o que possa impedi-lo de guardar o Dia do Senhor.
Quando os costumes (desporto, restaurantes, etc.) e as obrigações sociais (serviços públicos,
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etc.) reclamam de alguns um trabalho dominical, cada um fica com a responsabilidade de um


tempo suficiente de descanso. Os fiéis estarão atentos, com moderação e caridade, para evitar
os excessos e violências originados às vezes nas diversões de massa. Não obstante as pressões
de ordem económica, os poderes públicos preocupar-se-ão em assegurar aos cidadãos um
tempo destinado ao repouso e ao culto divino. Os patrões têm obrigação análoga para com os
seus empregados.
2188. No respeito pela liberdade religiosa e pelo bem comum de todos, os cristãos devem
esforçar-se pelo reconhecimento dos domingos e dias santos da Igreja como dias feriados le-
gais. Devem dar a todos o exemplo público de oração, respeito e alegria, e defender as suas
tradições como uma contribuição preciosa para a vida espiritual da sociedade humana. Se a
legislação do país ou outras razões obrigarem a trabalhar ao domingo, que este dia seja vivido,
no entanto, como sendo o dia da nossa libertação, que nos faz participantes da «reunião fest-
iva», da «assembleia de primogénitos inscritos nos céus» (Heb 12, 22-23).

Resumindo:

2189. «Guarda o dia do sábado para o santificar» (Dt 5, 12). «O sétimo dia será um dia de
repouso completo, consagrado ao Senhor» (Ex 31, 15).
2190. O sábado, que representava o acabamento da primeira criação, é substituído pelo
domingo, que lembra a criação nova, inaugurada na ressurreição de Cristo.
2191. A Igreja celebra o dia da ressurreição de Cristo no oitavo dia que, com razão, se
chama dia do Senhor ou domingo (109).
2192. «O domingo [...] deve guardar-se em toda a Igreja como o primordial dia festivo de
preceito» (110). «No domingo e outros dias santos de preceito, os fiéis têm obrigação de par-
ticipar na Missa» (111).
2193. «No domingo e nos outros dias festivos de preceito, os fiéis [...] abstenham-se
daqueles trabalhos e negócios que impeçam o culto a prestar a Deus, a alegria própria do
dia do Senhor ou o devido descanso do espírito e do corpo» (112).
2194. A instituição do domingo contribui para que «todos gozem do tempo suficiente de re-
pouso e lazer, que lhes permita atender vida familiar, cultural, social e religiosa» (113).
2195. Todo o cristão deve evitar impor a outrem, sem necessidade, o que o impeça de
guardar o Dia do Senhor.

CAPÍTULO SEGUNDO
“AMARÁS O TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO”

Jesus disse aos discípulos: «Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei» (Jo 13, 34).
2196. Respondendo à questão posta sobre o primeiro dos mandamentos, Jesus disse: «O
primeiro é: "Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as
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tuas forças!". O segundo é este: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo". Não há outro man-
damento maior do que estes» (Mc 12, 29-31).
E o apóstolo São Paulo lembra: «Quem ama o próximo cumpre plenamente a lei. De facto:
"Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás", bem como qualquer
outro mandamento, estão resumidos numa só frase: "Amarás ao próximo como a ti mesmo".
O amor não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei» (Rm
13, 8- 10).

ARTIGO 4

O QUARTO MANDAMENTO

«Honra pai e mãe, a fim de prolongares os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te vai
dar» (Ex 20, 12).
«Era-lhes submisso» (Lc 2, 51).
O próprio Senhor Jesus lembrou a força deste «mandamento de Deus» (1). E o Apóstolo en-
sina: «Filhos, obedecei aos vossos pais, no Senhor, pois é isso que é justo. "Honra pai e mãe" –
tal é o primeiro mandamento, com uma promessa "para que sejas feliz e gozes de longa vida
sobre a terra"» (Ef 6, 1-3) (2).
2197. O quarto mandamento é o primeiro da segunda tábua, e indica a ordem da caridade.
Deus quis que, depois de Si, honrássemos os nossos pais, a quem devemos a vida e que nos
transmitiram o conhecimento de Deus. Temos obrigação de honrar e respeitar todos aqueles
que Deus, para nosso bem, revestiu da sua autoridade.
2198. Este mandamento exprime-se sob a forma positiva de deveres a cumprir. Anuncia os
mandamentos seguintes, relativos ao respeito particular pela vida, pelo matrimónio, pelos
bens terrenos, pela palavra dada. E constitui um dos fundamentos da doutrina social da
Igreja.
2199. O quarto mandamento dirige-se expressamente aos filhos nas suas relações com o pai e
a mãe, porque esta relação é a mais universal. Mas diz respeito igualmente às relações de par-
entesco com os membros do grupo familiar. Exige que se preste honra, afeição e reconheci-
mento aos avós e antepassados. E, enfim, extensivo aos deveres dos alunos para com os pro-
fessores, dos empregados para com os patrões, dos subordinados para com os chefes e dos
cidadãos para com a pátria e para com quem os administra ou governa.
Este mandamento implica e subentende os deveres dos pais, tutores, professores, chefes, ma-
gistrados, governantes, todos aqueles que exercem alguma autoridade sobre outrem ou sobre
uma comunidade de pessoas.
2200. A observância do quarto mandamento comporta a respectiva recompensa: «Honra pai
e mãe, a fim de prolongares os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te vai dar» (Ex 20, 12)
(3). O respeito por este mandamento proporciona, com os frutos espirituais, os frutos tempo-
rais da paz e da prosperidade. Pelo contrário, a sua inobservância acarreta grandes danos às
comunidades e às pessoas humanas.

I. A família no plano de Deus


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NATUREZA DA FAMÍLIA

2201. A comunidade conjugal assenta sobre o consentimento dos esposos. O matrimónio e a


família estão ordenados para o bem dos esposos e para a procriação e educação dos filhos. O
amor dos esposos e a geração dos filhos estabelecem, entre os membros duma mesma família,
relações pessoais e responsabilidades primordiais.
2202. Um homem e uma mulher, unidos em matrimónio, formam com os seus filhos uma
família. Esta disposição precede todo e qualquer reconhecimento por parte da autoridade
pública e impõe-se a ela. Deverá ser considerada como a referência normal, em função da qual
serão apreciadas as diversas formas de parentesco.
2203. Ao criar o homem e a mulher, Deus instituiu a família humana e dotou-a da sua con-
stituição fundamental. Os seus membros são pessoas iguais em dignidade. Para o bem comum
dos seus membros e da sociedade, a família implica uma diversidade de responsabilidades, de
direitos de deveres.

A FAMÍLIA CRISTÃ

2204. «A família cristã constitui uma revelação e uma realização específica da comunhão
eclesial; por esse motivo [...], há-de ser designada como uma igreja doméstica» (4). Ela é uma
comunidade de fé, de esperança e de caridade: reveste-se duma importância singular na
Igreja, como transparece do Novo Testamento (5).
2205. A família cristã é uma comunhão de pessoas, vestígio e imagem da comunhão do Pai e
do Filho, no Espírito Santo. A sua actividade procriadora e educativa é o reflexo da obra cri-
adora do Pai. É chamada a partilhar da oração e do sacrifício de Cristo. A oração quotidiana e
a leitura da Palavra de Deus fortalecem nela a caridade. A família cristã é evangelizadora e
missionária.
2206. As relações no seio da família comportam uma afinidade de sentimentos, de afectos e
de interesses, que provêm sobretudo do mútuo respeito das pessoas. A família é uma
comunidade privilegiada, chamada a realizar a comunhão das almas, o comum acordo dos es-
posos e a dili- gente cooperação dos pais na educação dos filhos (6).

II. A família e a sociedade

2207. A família é a célula originária da vida social. É ela a sociedade natural em que o
homem e a mulher são chamados ao dom de si no amor e no dom da vida. A autoridade, a es-
tabilidade e a vida de relações no seio da família constituem os fundamentos da liberdade, da
segurança, da fraternidade no seio da sociedade. A família é a comunidade em que, desde a in-
fância, se podem aprender os valores morais, começar a honrar a Deus e a fazer bom uso da
liberdade. A vida da família é iniciação à vida em sociedade.
2208. A família deve viver de modo que os seus membros aprendam a preocupar-se e a
encarregar-se dos jovens e dos velhos, das pessoas doentes ou incapacitadas e dos pobres. São
muitas as famílias que, em certos momentos, se não encontram em condições de prestar esta
ajuda. Recai então sobre outras pessoas, outras famílias e, subsidiariamente, sobre a so-
ciedade, o dever de prover a estas necessidades: «A religião pura e sem mancha, aos olhos de
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Deus nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se
limpo do contágio do mundo» (Tg 1, 27).
2209. A família deve ser ajudada e defendida por medidas sociais apropriadas. Nos casos em
que as famílias não estiverem em condições de cumprir as suas funções, os outros corpos soci-
ais têm o dever de as ajudar e de amparar a instituição familiar. Mas, segundo o princípio da
subsidiariedade, as comunidades mais vastas abster-se-ão de lhe usurpar as suas prerrogat-
ivas ou de se imiscuir na sua vida.
2210. A importância da família na vida e no bem-estar da sociedade (7) implica uma re-
sponsabilidade particular desta no apoio e fortalecimento do matrimónio e da família. A
autoridade civil deve considerar como seu grave dever «reconhecer e proteger a verdadeira
natureza do matrimónio e da família, defender a moralidade pública e favorecer a prosperid-
ade doméstica» (8).
2211. A comunidade política tem o dever de honrar a família, de a assistir e de nomeada-
mente lhe garantir:
– a Liberdade de fundar um lar, ter filhos e educá-Los de acordo com as suas próprias con-
vicções morais e religiosas; – a protecção da estabilidade do vínculo conjugal e da instituição
familiar; – a liberdade de professar a sua fé, de a transmitir, de educar nela os seus filhos, com
os meios e as instituições necessárias;
– o direito à propriedade privada, a liberdade de iniciativa, de obter um trabalho, uma habit-
ação e o direito de emigrar; – consoante as instituições dos países, o direito aos cuidados
médicos e à assistência aos idosos, bem como ao abono de família; – a protecção da segurança
e da salubridade, sobretudo no que respeita a perigos como a droga, a pornografia, o alcool-
ismo. etc.; – a liberdade de formar associações com outras famílias e de ter assim repres-
entação junto das autoridades civis (9).
2212. O quarto mandamento esclarece as outras relações na sociedade. Nos nossos irmãos e
irmãs vemos os filhos dos nossos pais; nos nossos primos, os descendentes dos nossos avós;
nos nossos concidadãos, os filhos da nossa pátria; nos baptizados, os filhos da nossa mãe
Igreja; em toda a pessoa humana, um filho ou filha d'Aquele que quer ser chamado «nosso
Pai». Daí que as nossas relações com o próximo sejam reconhecidas como de ordem pessoal.
O próximo não é um «indivíduo» da colectividade humana; é «alguém» que, pelas suas ori-
gens conhecidas, merece uma atenção e um respeito singulares.
2213. As comunidades humanas são compostas de pessoas. O bom governo das mesmas não
se limita à garantia dos direitos e ao cumprimento dos deveres, bem como ao respeito pelos
contratos. Relações justas entre patrões e empregados, governantes e cidadãos, pressupõem a
benevolência natural, de acordo com a dignidade das pessoas humanas, solícitas pela justiça e
pela fraternidade.

III. Deveres dos membros da família

DEVERES DOS FILHOS

2214. A paternidade divina é a fonte da paternidade humana (10); nela se fundamenta a


honra devida aos pais. O respeito dos filhos, menores ou adultos, pelo seu pai e pela sua mãe
(11) nutre-se do afecto natural nascido dos laços que os unem. Exige-o o preceito divino (12).
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2215. O respeito pelos pais (piedade filial) é feito de reconhecimento àqueles que, pelo dom
da vida, pelo seu amor e seu trabalho, puseram os filhos no mundo e lhes permitiram crescer
em estatura, sabedoria e graça. «Honra o teu pai de todo o teu coração e não esqueças as dores
da tua mãe. Lembra-te de que foram eles que te geraram. Como lhes retribuirás o que por ti
fizeram?» (Sir 7, 27-28).
2216. O respeito filial revela-se na docilidade e na obediência autênticas. «Observa, meu
filho, as ordens do teu pai, e não desprezes os ensinamentos da tua mãe [...]. Servir-te-ão de
guia no caminho, velarão por ti quando dormires, e falarão contigo ao despertares» (Pr 6,
20.22). «O filho sábio é fruto da correcção paterna, mas o insolente não aceita a repreensão»
(Pr 13, 1).
2117. Enquanto viver na casa dos pais, o filho deve obedecer a tudo o que eles lhe mandarem
para seu bem ou o da família. «Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, porque isto agrada
ao Senhor» (Cl 3, 20) (13). Os filhos devem também obedecer às prescrições razoáveis dos
seus educadores e de todos aqueles a quem os pais os confiaram. Mas se o filho se persuadir,
em consciência, de que é moralmente mau obedecer a determinada ordem, não o faça.
Com o crescimento, os filhos continuarão a respeitar os pais. Adivinharão os seus desejos,
pedirão de boa vontade os seus conselhos e aceitarão as suas admoestações justificadas. A
obediência aos pais cessa com a emancipação: mas não o respeito que sempre lhes é devido. É
que este tens a sua raiz no temor de Deus, que é um dos dons do Espírito Santo.
2218. O quarto mandamento lembra aos filhos adultos as suas responsabilidades para com
os pais. Tanto quanto lhes for possível, devem prestar-lhes ajuda material e moral, nos anos
da velhice e no tempo da doença, da solidão ou do desânimo. Jesus lembra este dever de
gratidão (14).
«Deus quis honrar o pai pelos filhos e cuidadosamente firmou sobre eles a autoridade da mãe.
O que honra o pai alcança o perdão dos seus pecados e quem honra a mãe é semelhante
àquele que acumula tesouros. Quem honra o pai encontrará alegria nos seus filhos e será
ouvido no dia da sua oração. Quem honra o pai gozará de longa vida e quem lhe obedece con-
solará a sua mãe» (Sir 3, 2-6).
«Filho, ampara o teu pai na velhice, não o desgostes durante a sua vida. Mesmo se ele vier a
perder a razão, sê indulgente, não o desprezes, tu que estás na plenitude das tuas forças [...]. É
como um blasfemador o que desampara o seu pai e é amaldiçoado por Deus aquele que irrita a
sua mãe» (Sir 3, 12-16).
2219. O respeito filial favorece a harmonia de toda a vida familiar; engloba também as re-
lações entre irmãos e irmãs. O respeito pelos pais impregna todo o ambiente familiar. «A
coroa dos anciãos são os filhos dos seus filhos» (Pr 17, 6). «Suportai-vos uns aos outros na
caridade, com toda a humildade, mansidão e paciência» (Ef 4, 2).
2220. Os cristãos, têm o dever de ser especialmente gratos àqueles de quem receberam o
dom da fé, a graça do Baptismo e a vida na Igreja. Pode tratar-se dos pais, de outros membros
da família, dos avós, dos pastores, dos catequistas, dos professores ou amigos. «Conservo a
lembrança da tua fé tão sincera, que foi primeiro a da tua avó Lóide e da tua mãe Eunice, e
que, estou certo, habita também em ti» (2 Tm 1, 5).

DEVERES DOS PAIS


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2221. A fecundidade do amor conjugal não se reduz apenas à procriação dos filhos. Deve
também estender-se à sua educação moral e à sua formação espiritual. O «papel dos pais na
educação é de tal importância que é impossível substituí-los» (15). O direito e o dever da edu-
cação são primordiais e inalienáveis para os país (16).
2222. Os pais devem olhar para os seus filhos como filhos de Deus e respeitá-los como pess-
oas humanas. Educarão os seus filhos no cumprimento da lei de Deus, na medida em que eles
próprios se mostrarem obedientes à vontade do Pai dos céus.
2223. Os pais são os primeiros responsáveis pela educação dos filhos. Testemunham esta re-
sponsabilidade, primeiro pela criação dum lar onde são regra a ternura, o perdão, o respeito,
a fidelidade e o serviço desinteressado. O lar é um lugar apropriado para a educação das vir-
tudes, a qual requer a aprendizagem da abnegação, de sãos critérios, do autodomínio, con-
dições da verdadeira liberdade. Os pais ensinarão os filhos a subordinar «as dimensões físicas
e instintivas às dimensões interiores e espirituais» (17). Os pais têm a grave responsabilidade
de dar bons exemplos aos filhos. Sabendo reconhecer diante deles os próprios defeitos, serão
mais capazes de os guiar e corrigir:
«Aquele que ama o seu filho, castiga-o com frequência [...]. Aquele que dá ensinamentos ao
seu filho será louvado» (Sir 30, 1-2). «E vós, pais, não irriteis os vossos filhos: pelo contrário,
educai-os com disciplina e advertências inspiradas pelo Senhor» (Ef 6, 4).
2224. O lar constitui o âmbito natural para a iniciação da pessoa humana na solidariedade e
nas responsabilidades comunitárias. Os pais devem ensinar os filhos a acautelar-se dos peri-
gos e degradações que ameaçam as sociedades humanas.
2225. Pela graça do sacramento do matrimónio, os pais receberam a responsabilidade e o
privilégio de evangelizar os filhos. Desde tenra idade devem iniciá-los nos mistérios da fé, de
que são os «primeiros arautos» (18). Hão-de associá-los, desde a sua primeira infância, à vida
da Igreja. A maneira como se vive em família pode alimentar as disposições afectivas, que dur-
ante toda a vida permanecem como autêntico preâmbulo e esteio duma fé viva.
2226. A educação da fé por parte dos pais deve começar desde a mais tenra infância. Faz-se
já quando os membros da família se ajudam mutuamente a crescer na fé pelo testemunho
duma vida cristã, de acordo com o Evangelho. A catequese familiar precede, acompanha e en-
riquece as outras formas de ensinamento da fé. Os pais têm a missão de ensinar os filhos a
rezar e a descobrir a sua vocação de filhos de Deus (19). A paróquia é a comunidade eu-
carística e o coração da vida litúrgica das famílias cristãs: é o lugar privilegiado da catequese
dos filhos e dos pais.
2227. Por sua vez, os filhos contribuem para o crescimento dos seus pais na santidade (20).
Todos e cada um se darão, generosamente e sem se cansar, o perdão mútuo exigido pelas
ofensas, querelas, injustiças e abandonos. Assim o sugere o afecto mútuo. E assim o exige a
caridade de Cristo (21).
2228. Durante a infância, o respeito e o carinho dos pais traduzem-se, primeiro, no cuidado e
na atenção que consagram à educação dos filhos, para prover as suas necessidades, físicas e
espirituais. A medida que vão crescendo, o mesmo respeito e dedicação levam os pais a edu-
car os filhos no sentido dum uso correcto da sua razão e da sua liberdade.
2229. Como primeiros responsáveis pela educação dos seus filhos, os pais têm o direito de
escolher para eles uma escola que corresponda às suas próprias convicções. É um direito fun-
damental. Tanto quanto possível, os pais têm o dever de escolher as escolas que melhor os
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apoiem na sua tarefa de educadores cristãos (22). Os poderes públicos têm o dever de garantir
este direito dos pais e de assegurar as condições reais do seu exercício.
2230. Ao tornarem-se adultos, os filhos têm o dever e o direito de escolher a sua profissão e
o seu estado de vida. Devem assumir as novas responsabilidades numa relação de confiança
com os seus pais, a quem pedirão e de quem de boa vontade receberão opiniões e conselhos.
Os pais terão o cuidado de não constranger os filhos, nem na escolha duma profissão, nem na
escolha do cônjuge. Mas este dever de discrição não os proíbe, muito pelo contrário, de os
ajudar com opiniões ponderadas, sobretudo quando tiverem em vista a fundação dum novo
lar.
2231. Há quem não se case para cuidar dos pais ou dos irmãos e irmãs; ou para se dedicar
mais exclusivamente a uma profissão; ou ainda por outros motivos válidos. Esses podem con-
tribuir muitíssimo para o bem da família humana.

IV. A família e o Reino

2232. São importantes, mas não absolutos, os laços familiares. Quanto mais a criança cresce
para a maturidade e autonomia humanas e espirituais, tanto mais a sua vocação individual,
que vem de Deus, se afirma com nitidez e força. Os pais devem respeitar este chamamento e
apoiar a resposta dos filhos para o seguir. Hão-de convencer-se de que a primeira vocação do
cristão é seguir Jesus (23): «Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é digno de
Mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a Mim, não é digno de Mim» (Mt 10, 37).
2233. Tornar-se discípulo de Jesus é aceitar o convite para pertencer à família de Deus, para
viver em conformidade com a sua maneira de viver: «Todo aquele que fizer a vontade do meu
Pai que está nos céus, é que é meu irmão e minha irmã e minha mãe» (Mt 12, 50).
Os pais devem acolher e respeitar, com alegria e acção de graças, o chamamento que o Senhor
fizer a um dos seus filhos, para O seguir na virgindade pelo Reino, na vida consagrada ou no
ministério sacerdotal.

V. As autoridades na sociedade civil

2234. O quarto mandamento da Lei de Deus manda que honremos também todos aqueles
que, para nosso bem, receberam de Deus alguma autoridade na sociedade. E esclarece os
deveres dos que exercem essa autoridade, bem como os daqueles que dela beneficiam.

DEVERES DAS AUTORIDADES CIVIS

2235. Aqueles que exercem alguma autoridade, devem exercê-la como quem presta um ser-
viço. «Quem quiser entre vós tornar-se grande, será vosso servo» (Mt 20, 26). O exercício da
autoridade é moralmente regulado pela sua origem divina, pela sua natureza racional e pelo
seu objecto específico. Ninguém pode mandar ou instituir o que for contrário à dignidade das
pessoas e à lei natural.
2236. O exercício da autoridade visa tornar manifesta uma justa hierarquia de valores, a fim
de facilitar o exercício da liberdade e da responsabilidade de todos. Os superiores exerçam a
justiça distributiva com sabedoria, tendo em conta as necessidades e a contribuição de cada
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qual, e em vista da concórdia e da paz. Estarão atentos a que as regras e disposições que
tomam não induzam em tentação, opondo o interesse pessoal ao da comunidade (24).
2237. Os poderes políticos são obrigados a respeitar os direitos fundamentais da pessoa hu-
mana. Administrarão a justiça como humanidade, respeitando o direito de cada qual, nomea-
damente das famílias e dos deserdados.
Os direitos políticos inerentes à cidadania podem e devem ser reconhecidos conforme as
exigências do bem comum. Não podem ser suspensos pelos poderes públicos sem motivo legí-
timo e proporcionado. O exercício dos direitos políticos orienta-se para o bem comum da
nação e da comunidade humana.

DEVERES DOS CIDADÃOS

2238. Os que estão sujeitos à autoridade considerarão os seus superiores como represent-
antes de Deus, que os instituiu ministros dos seus dons «Submetei-vos, por causa do Senhor,
a toda a instituição humana [...]. Procedei como homens livres, não como aqueles que fazem
da liberdade capa da sua malícia, mas como servos de Deus» (1 Pe 2, 13.16). A sua colaboração
leal comporta o direito, e às vezes o dever, duma justa reclamação de quanto lhes parecer pre-
judicial à dignidade das pessoas e ao bem da comunidade.
2239. É dever dos cidadãos colaborar com os poderes civis para o bem da sociedade, num es-
pírito de verdade, de justiça, de solidariedade e de liberdade. O amor e o serviço da pátria de-
rivam do dever da gratidão e da ordem da caridade. A submissão às autoridades legítimas e o
serviço do bem comum exigem dos cidadãos que cumpram o seu papel na vida da comunidade
política.
2240. A submissão à autoridade e a corresponsabilidade pelo bem comum exigem moral-
mente o pagamento dos impostos, o exercício do direito de voto, a defesa do país:
«Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto, a quem se deve o imposto; a taxa, a quem se de-
ve a taxa; o respeito, a quem se deve o respeito; a honra, a quem se deve a honra» (Rm 13, 7).
Os cristãos «residem na sua própria pátria, mas vivem todos como de passagem; em tudo par-
ticipam como os outros cidadãos, mas tudo suportam como se não tivessem pátria [...]. Obe-
decem às leis estabelecidas, mas pelo seu modo de vida superam as leis [...]. Tão nobre é o
posto que Deus lhes assinalou, que não lhes é lícito desertar» (26).
O Apóstolo exorta-nos a fazer súplicas e acções de graças pelos reis e por todos aqueles que
exercem a autoridade, «a fim de que possamos ter uma vida calma e tranquila, com toda a
piedade e dignidade» (1 Tm 2, 2).
2241. As nações mais abastadas devem acolher, tanto quanto possível, o estrangeiro em
busca da segurança e dos recursos vitais que não consegue encontrar no seu país de origem.
Os poderes públicos devem velar pelo respeito do direito natural que coloca o hóspede sob a
protecção daqueles que o recebem.
As autoridades políticas podem, em vista do bem comum de que têm a responsabilidade, sub-
ordinar o exercício do direito de imigração a diversas condições jurídicas, nomeadamente no
respeitante aos deveres que os imigrantes contraem para com o país de adopção. O imigrado
tem a obrigação de respeitar com reconhecimento o património material e espiritual do país
que o acolheu, de obedecer às suas leis e de contribuir para o seu bem.
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2242. O cidadão é obrigado, em consciência, a não seguir as prescrições das autoridades civis,
quando tais prescrições forem contrárias às exigências de ordem moral, aos direitos funda-
mentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho. A recusa de obediência às autorid-
ades civis, quando as suas exigências forem contrárias às da recta consciência, tem a sua justi-
ficação na distinção entre o serviço de Deus e o serviço da comunidade política. «Dai a César o
que é de César, e a Deus o que é de Deus» (Mt 22, 21). «Deve obedecer-se antes a Deus que
aos homens» (Act 5, 29):
«Quando a autoridade pública, excedendo os limites da própria competência, oprimir os cid-
adãos, estes não se recusem às exigências objectivas do bem comum; mas é-lhes lícito, dentro
dos limites definidos pela lei natural e pelo Evangelho, defender os seus próprios direitos e os
dos seus concidadãos contra o abuso dessa autoridade» (27).
2243. A resistência à opressão do poder político não recorrerá legitimamente às armas, senão
nas seguintes condições:
1 – em caso de violações certas, graves e prolongadas dos direitos fundamentais; 2 – depois de
ter esgotado todos os outros recursos; 3 – se não provocar desordens piores; 4 – se houver es-
perança fundada de êxito;
5 – e se for impossível prever razoavelmente soluções melhores.

A COMUNIDADE POLÍTICA E A IGREJA

2244. Toda a instituição se inspira, mesmo que implicitamente, numa visão do homem e do
seu destino, visão da qual tira as suas referências de juízo, a sua hierarquia de valores, a sua
linha de procedimento. A maior parte das sociedades referiram as suas instituições a uma
certa preeminência do homem sobre as coisas. Só a religião divinamente revelada é que recon-
heceu claramente em Deus, Criador e Redentor, a origem e o destino do homem. A Igreja con-
vida os poderes políticos a referenciar os seus juízos e decisões a esta inspiração da verdade
sobre Deus e sobre o homem:
As sociedades que ignoram esta inspiração ou a recusam em nome da sua independência em
relação a Deus, são levadas a procurar em si mesmas ou a tomar de uma ideologia as suas
referências e o seu fim: e não admitindo que se defenda um critério objectivo do bem e do mal,
a si mesmas atribuem, sobre o homem e o seu destino, um poder totalitário, declarado ou
oculto, como a história tem mostrado» (31).
2245. «A Igreja que, em virtude da sua função e competência, de modo algum se confunde
com a comunidade política, [...] é, ao mesmo tempo, sinal e salvaguarda do carácter tran-
scendente da pessoa humana» (29). « A Igreja respeita e promove a liberdade política e a re-
sponsabilidade dos cidadãos» (30).
2246. Faz parte da missão da Igreja «proferir um juízo moral, mesmo acerca das realidades
que dizem respeito à ordem política, sempre que os direitos fundamentais da pessoa ou a sal-
vação das almas o exigirem utilizando todos e só os meios conformes com o Evangelho e o
bem de todos segundo a variedade dos tempos e circunstâncias» (31).

Resumindo:

2247. «Honra pai e mãe» (Dt 5, 16; Mc 7, 10).


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2248. Segundo o quarto mandamento, Deus quis que, depois d'Ele, honrássemos os nossos
pais e aqueles que, para nosso bem, Ele revestiu de autoridade.
2249. A comunidade conjugal está fundada na aliança e no consentimento dos esposos. O
matrimónio e a família estão ordenados para o bem dos cônjuges e para a procriação e edu-
cação dos filhos.
2250. «A saúde da pessoa e da sociedade humana e cristã depende estreitamente de uma
situação favorável da comunidade conjugal e familiar» (32).
2251. Os filhos devem aos pais respeito, gratidão, obediência justa e ajuda. O respeito filial
favorece a harmonia de toda a vida familiar.
2252. Os pais são os primeiros responsáveis pela educação dos seus filhos na fé, na oração,
e em todas as virtudes. Eles têm o dever de prover, na medida do possível, às necessidades
físicas e espirituais dos seus filhos.
2253. Os pais devem respeitar e favorecer a vocação dos seus filhos. Hão-de lembrar-se e
hão-de ensinar-lhes que a primeira vocação do cristão é seguir Jesus.
2254. A autoridade pública tem a obrigação de respeitar os direitos fundamentais da pess-
oa humana e as condições do exercício da sua liberdade.
2255. É dever dos cidadãos colaborar com os poderes civis na edificação da sociedade, num
espírito de verdade, justiça, solidariedade e liberdade.
2256. O cidadão está obrigado em consciência a não seguir as prescrições das autoridades
civis quando tais prescrições forem contrárias às exigências da ordem moral. «Deve
obedecer-se antes a Deus do que aos homens» (Act 5, 29).
2257. Toda a sociedade refere os seus juízos e a sua conduta a uma visão do homem e do seu
destino. Fora das luzes do Evangelho sobre Deus e sobre o homem, as sociedades facilmente
resvalam para o totalitarismo.

ARTIGO 5

O QUINTO MANDAMENTO

«Não matarás» (Ex 20, 13).


«Ouvistes o que foi dito aos antigos: "Não matarás. Aquele que matar terá de responder em
juízo". Eu, porém, digo-vos: Quem se irritar contra o seu irmão, será réu perante o tribunal»
(Mt 5, 21-22).
2258. «A vida humana é sagrada porque, desde a sua origem, postula a acção criadora de
Deus e mantém-se para sempre numa relação especial com o Criador, seu único fim. Só Deus
é senhor da vida, desde o seu começo até ao seu termo: ninguém, em circunstância alguma,
pode reivindicar o direito de dar a morte directamente a um ser humano inocente» (33).

I. O respeito pela vida humana

TESTEMUNHO DA HISTÓRIA SAGRADA

2259. A Sagrada Escritura, na narrativa da morte de Abel pelo seu irmão Caim (34), revela,
desde os primórdios da história humana, a presença no homem da cólera e da inveja,
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consequências do pecado original. O homem tornou-se inimigo do seu semelhante. Deus de-
nuncia a perversidade deste fratricídio: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da
terra por Mim. De futuro, serás maldito sobre a terra, que abriu a sua boca para beber, da tua
mão, o sangue do teu irmão» (Gn 4, 10-11).
2260. A aliança entre Deus e a humanidade é entretecida de referências ao dom divino da
vida humana e à violência assassina do homem:
«Pedirei contas do vosso sangue [...]. A quem derramar sangue humano, por mão de homem
será derramado o seu, porque Deus fez o homem à sua imagem» (Gn 9, 5-61).
O Antigo Testamento considerou sempre o sangue como um sinal sagrado da vida (35). E este
ensinamento é válido para todos os tempos.
2261. A Escritura determina a proibição contida no quinto mandamento: «Não causarás a
morte do inocente e do justo» (Ex 23, 7). O homicídio voluntário dum inocente é gravemente
contrário à dignidade do ser humano, à regra de ouro e à santidade do Criador. A lei que o
proíbe universalmente válida: obriga a todos e a cada um, sempre e em toda a parte.
2262. No sermão da montanha, o Senhor lembra o preceito: «Não matarás» (Mt 5, 21) e
acrescenta-lhe a proibição da ira, do ódio e da vingança. Mais ainda: Cristo exige do seu dis-
cípulo que ofereça a outra face (36), que ame os seus inimigos (37). Ele próprio não Se de-
fendeu e disse a Pedro que deixasse a espada na bainha (38).

A LEGÍTIMA DEFESA

2263. A defesa legítima das pessoas e das sociedades não é uma excepção à proibição de
matar o inocente que constitui o homicídio voluntário. «Do acto de defesa pode seguir-se um
duplo efeito: um, a conservação da própria vida; outro, a morte do agressor» (39). «Nada im-
pede que um acto possa ter dois efeitos, dos quais só um esteja na intenção, estando o outro
para além da intenção» (40).
2264. O amor para consigo mesmo permanece um princípio fundamental de moralidade. E,
portanto, legítimo fazer respeitar o seu próprio direito à vida. Quem defende a sua vida não é
réu de homicídio, mesmo que se veja constrangido a desferir sobre o agressor um golpe
mortal:
«Se, para nos defendermos, usarmos duma violência maior do que a necessária, isso será ilí-
cito. Mas se repelirmos a violência com moderação, isso será lícito [...]. E não é necessário à
salvação que se deixe de praticar tal acto de defesa moderada para evitar a morte do outro:
porque se está mais obrigado a velar pela própria vida do que pela alheia» (41).
2265. A legítima defesa pode ser não somente um direito, mas até um grave dever para
aquele que é responsável pela vida de outrem. Defender o bem comum implica colocar o
agressor injusto na impossibilidade de fazer mal. É por esta razão que os detentores legítimos
da autoridade têm o direito de recorrer mesmo às armas para repelir os agressores da
comunidade civil confiada à sua responsabilidade.
2266. O esforço do Estado em reprimir a difusão de comportamentos que lesam os direitos
humanos e as regras fundamentais da convivência civil, corresponde a uma exigência de pre-
servar o bem comum. É direito e dever da autoridade pública legítima infligir penas propor-
cionadas à gravidade do delito. A pena tem como primeiro objectivo reparar a desordem in-
troduzida pela culpa. Quando esta pena é voluntariamente aceite pelo culpado, adquire valor
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de expiação. A pena tem ainda como objectivo, para além da defesa da ordem pública e da
protecção da segurança das pessoas, uma finalidade medicinal, posto que deve, na medida do
possível, contribuir para a emenda do culpado.
2267. A doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da iden-
tidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a
única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor.
Contudo, se processos não sangrentos bastarem para defender e proteger do agressor a segur-
ança das pessoas, a autoridade deve servir-se somente desses processos, porquanto corres-
pondem melhor às condições concretas do bem comum e são mais consentâneos com a dig-
nidade da pessoa humana.
Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para rep-
rimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar
definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente ne-
cessário suprimir o réu «são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes» (42).

O HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO

2268. O quinto mandamento proíbe, como gravemente pecaminoso, o homicídio directo e


voluntário. O assassino e quantos voluntariamente colaboram no assassinato cometem um
pecado que brada ao céu (43).
O infanticídio (44), o fratricídio, o parricídio e o assassinato do cônjuge são crimes especial-
mente graves, em razão dos laços naturais que eles quebram. Não se podem invocar preocu-
pações de eugenismo ou de higiene pública para justificar qualquer homicídio, ainda que tal
seja imposto pelos poderes públicos
2269. O quinto mandamento proíbe fazer seja o que for com a intenção de provocar indir-
ectamente a morte duma pessoa. A lei moral proíbe expor alguém, sem razão grave, a um
perigo mortal, assim como negar assistência a uma pessoa em perigo.
A aceitação pela sociedade humana de fomes mortíferas, sem se esforçar por lhe dar remédio,
é uma escandalosa injustiça e um pecado grave. Os traficantes, cujas práticas usurárias e mer-
cantis provocam a fome e a morte dos seus irmãos em humanidade, cometem indirectamente
homicídio, que lhes é imputável (45).
O homicídio involuntário não é moralmente imputável. Mas não se é desculpado de falta
grave se, sem razões proporcionadas, se proceder de maneira a causar a morte, mesmo sem a
intenção de a provocar.

O ABORTO

2270. A vida humana deve ser respeitada e protegida, de modo absoluto, a partir do mo-
mento da concepção. Desde o primeiro momento da sua existência, devem ser reconhecidos a
todo o ser humano os direitos da pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo o ser ino-
cente à vida (46).
«Antes de te formar no ventre materno, Eu te escolhi: antes que saísses do seio da tua mãe, Eu
te consagrei» (Jr 1, 5).
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«Vós conhecíeis já a minha alma e nada do meu ser Vos era oculto, quando secretamente era
formado, modelado nas profundidades da terra» (Sl 139, 15).
2271. A Igreja afirmou, desde o século I, a malícia moral de todo o aborto provocado. E esta
doutrina não mudou. Continua invariável. O aborto directo, isto é, querido como fim ou como
meio, é gravemente contrário à lei moral:
«Não matarás o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o recém-nascido» (47).
«Deus [...], Senhor da vida, confiou aos homens, para que estes desempenhassem dum modo
digno dos mesmos homens, o nobre encargo de conservar a vida. Esta deve, pois, ser salva-
guardada, com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o in-
fanticídio são crimes abomináveis» (48).
2272. A colaboração formal num aborto constitui falta grave. A Igreja pune com a pena can-
ónica da excomunhão este delito contra a vida humana. «Quem procurar o aborto, seguindo-
se o efeito («effectu secuto») incorre em excomunhão latae sententiae (49), isto é, «pelo facto
mesmo de se cometer o delito» (50) e nas condições previstas pelo Direito (50). A Igreja não
pretende, deste modo, restringir o campo da misericórdia. Simplesmente, manifesta a gravid-
ade do crime cometido, o prejuízo irreparável causado ao inocente que foi morto, aos seus pais
e a toda a sociedade.
2273. O inalienável direito à vida, por parte de todo o indivíduo humano inocente, é um ele-
mento constitutivo da sociedade civil e da sua legislação:
«Os direitos inalienáveis da pessoa deverão ser reconhecidos e respeitados pela sociedade civil
e pela autoridade política. Os direitos do homem não dependem nem dos indivíduos, nem dos
pais, nem mesmo representam uma concessão da sociedade e do Estado. Pertencem à
natureza humana e são inerentes à pessoa, em razão do acto criador que lhe deu origem. Entre
estes direitos fundamentais deve aplicar-se o direito à vida e à integridade física de todo ser
humano, desde a concepção até à morte» (52).
«Desde o momento em que uma lei positiva priva determinada categoria de seres humanos da
protecção que a legislação civil deve conceder-lhes, o Estado acaba por negar a igualdade de
todos perante a lei. Quando o Estado não põe a sua força ao serviço dos direitos de todos os
cidadãos, em particular dos mais fracos, encontram-se ameaçados os próprios fundamentos
dum «Estado de direito» [...]. Como consequência do respeito e da protecção que devem ser
garantidos ao nascituro, desde o momento da sua concepção, a lei deve prever sanções penais
apropriadas para toda a violação deliberada dos seus direitos» (53).
2274. Uma vez que deve ser tratado como pessoa desde a concepção, o embrião terá de ser
defendido na sua integridade, tratado e curado, na medida do possível, como qualquer outro
ser humano.
O diagnóstico pré-natal é moralmente lícito, desde que «respeite a vida e a integridade do
embrião ou do feto humano, e seja orientado para a sua defesa ou cura individual [...]. Mas es-
tá gravemente em oposição com a lei moral, se previr, em função dos resultados, a eventualid-
ade de provocar um aborto. Um diagnóstico [...] não pode ser equivalente a uma sentença de
morte» (54).
2275. «Devem considerar-se lícitas as intervenções no embrião humano, sempre que re-
speitem a vida e a integridade do mesmo e não envolvam para ele riscos desproporcionados,
antes tenham em vista a sua cura, as melhoria das suas condições de saúde ou a sua sobre-
vivência individual» (55).
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«É imoral produzir embriões humanos destinados a serem explorados como material biológi-
co disponível» (56).
«Certas tentativas de intervenção no património cromossomático ou genético não são
terapêuticas, mas têm em cesta a produção de seres humanos seleccionados segundo o sexo
ou outras qualidades pré-estabelecidas. Tais manipulações são contrárias à dignidade pessoal
do ser humano, à sua integridade e à sua identidade única, irrepetível» (57).

A EUTANÁSIA

2276. Aqueles que têm uma vida deficiente ou enfraquecida reclamam um respeito especial.
As pessoas doentes ou deficientes devem ser amparadas, para que possam levar uma vida tão
normal quanto possível.
2277. Quaisquer que sejam os motivos e os meios, a eutanásia directa consiste em pôr fim à
vida de pessoas deficientes, doentes ou moribundas. É moralmente inaceitável.
Assim, uma acção ou uma omissão que, de per si ou na intenção, cause a morte com o fim de
suprimir o sofrimento, constitui um assassínio gravemente contrário à dignidade da pessoa
humana e ao respeito do Deus vivo, seu Criador. O erro de juízo, em que se pode ter caído de
boa fé, não muda a natureza do acto homicida, o qual deve sempre ser condenado e posto de
parte (58).
2278. A cessação de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou despropor-
cionados aos resultados esperados, pode ser legítima. É a rejeição do «encarniçamento
terapêutico». Não que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o facto de a não
poder impedir. As decisões devem ser tomadas pelo paciente se para isso tiver competência e
capacidade; de contrário, por quem para tal tenha direitos legais, respeitando sempre a vont-
ade razoável e os interesses legítimos do paciente.
2279. Mesmo que a morte seja considerada iminente, os cuidados habitualmente devidos a
uma pessoa doente não podem ser legitimamente interrompidos. O uso dos analgésicos para
aliviar os sofrimentos do moribundo, mesmo correndo-se o risco de abreviar os seus dias,
pode ser moralmente conforme com a dignidade humana, se a morte não for querida, nem
como fim nem como meio, mas somente prevista e tolerada como inevitável. Os cuidados pali-
ativos constituem uma forma excepcional da caridade desinteressada; a esse título, devem ser
encorajados.

O SUICÍDIO

2280. Cada qual é responsável perante Deus pela vida que Ele lhe deu, Deus é o senhor
soberano da vida; devemos recebê-la com reconhecimento e preservá-la para sua honra e sal-
vação das nossas almas. Nós somos administradores e não proprietários da vida que Deus nos
confiou; não podemos dispor dela.
2281. O suicídio contraria a inclinação natural do ser humano para conservar e perpetuar a
sua vida. É gravemente contrário ao justo amor de si mesmo. Ofende igualmente o amor do
próximo, porque quebra injustamente os laços de solidariedade com as sociedades familiar,
nacional e humana, em relação às quais temos obrigações a cumprir. O suicídio é contrário ao
amor do Deus vivo.
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2282. Se for cometido com a intenção de servir de exemplo, sobretudo para os jovens, o suicí-
dio assume ainda a gravidade do escândalo. A cooperação voluntária no suicídio é contrária à
lei moral.
Perturbações psíquicas graves, a angústia ou o temor grave duma provação, dum sofrimento,
da tortura, são circunstâncias que podem diminuir a responsabilidade do suicida.
2283. Não se deve desesperar da salvação eterna das pessoas que se suicidaram. Deus pode,
por caminhos que só Ele conhece, oferecer-lhes a ocasião de um arrependimento salutar. A
Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida.

II. O respeito pela dignidade das pessoas

O RESPEITO PELA ALMA DO PRÓXIMO: O ESCÂNDALO

2284. O escândalo é a atitude ou comportamento que leva outrem a fazer o mal. O


escandaloso transforma-se em tentador do seu próximo; atenta contra a virtude e a rectidão,
podendo arrastar o irmão para a morte espiritual. O escândalo constitui uma falta grave se,
por acção ou omissão, levar deliberadamente outra pessoa a cometer uma falta grave.
2285. O escândalo reveste-se duma gravidade particular conforme a autoridade dos que o
causam ou a fraqueza dos que dele são vítimas. Ele inspirou esta maldição a nosso Senhor:
«Mas se alguém escandalizar um destes pequeninos que crêem em Mim, seria preferível que
lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar»
(Mt 18, 6) (59). O escândalo é grave quando é causado por aqueles que, por natureza ou em
virtude da função que exercem, tem a obrigação de ensinar e de educar os outros. Jesus
censura-o nos escribas e fariseus, comparando-os a lobos disfarçados de cordeiros (60).
2286. O escândalo pode ser provocado pela lei ou pelas instituições, pela moda ou pela
opinião.
É assim que se tornam culpados de escândalo os que estabelecem leis ou estruturas sociais
conducentes à degradação dos costumes e à corrupção da vida religiosa, ou a «condições soci-
ais que, voluntária ou involuntariamente, tornam difícil e praticamente impossível uma con-
duta cristã conforme aos mandamentos» (61). O mesmo se diga dos chefes de empresa que
tomam medidas incitando à fraude, dos professores que «exasperam» os seus alunos (62), ou
daqueles que, manipulando a opinião pública, a desviam dos valores morais.
2287. Aquele que usa dos poderes de que dispõe, em condições que induzem a agir mal, tor-
na- se culpado de escândalo e responsável pelo mal que, directa ou indirectamente, favorece.
«É inevitável que haja escândalos, mas ai daquele que os causa» (Lc 17, 1).

O RESPEITO PELA SAÚDE

2288. A vida e a saúde física são bens preciosos, confiados por Deus. Temos a obrigação de
cuidar razoavelmente desses dons, tendo em conta as necessidades alheias e o bem comum.
O cuidado da saúde dos cidadãos requer a ajuda da sociedade para se conseguirem condições
de vida que permitam crescer e atingir a maturidade: alimentação e vestuário, casa, cuidados
de saúde, ensino básico, emprego, assistência social.
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2289. Se a moral apela para o respeito da vida corporal, não é que faça dela um valor abso-
luto. Pelo contrário, insurge-se contra uma concepção neo-pagã, tendente a promover o culto
do corpo, sacrificando-lhe tudo, e a idolatrar a perfeição física e o êxito desportivo. Pela
escolha selectiva que faz entre os fortes e os fracos, tal concepção pode conduzir à perversão
das relações humanas.
2290. A virtude da temperança leva a evitar toda a espécie de excessos, o abuso da comida,
da bebida, do tabaco e dos medicamentos. Aqueles que, em estado de embriaguez ou por gosto
imoderado da velocidade, põem em risco a segurança dos outros e a sua própria, nas estradas,
no mar ou no ar, tornam-se gravemente culpados.
2291. O uso de estupefacientes causa gravíssimos danos à saúde e à vida humana. A não ser
por prescrições estritamente terapêuticas, o seu uso é uma falta grave. A produção clandestina
e o tráfico de drogas são práticas escandalosas, e constituem uma cooperação directa, pois in-
citam a práticas gravemente contrárias à lei moral.

O RESPEITO PELA PESSOA E A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA

2292. As experiências científicas, médicas ou psicológicas, sobre pessoas ou grupos humanos,


podem concorrer para a cura dos doentes e para o progresso da saúde pública.
2293. A investigação científica de base, tanto como a aplicada, constituem uma expressão sig-
nificativa do domínio do homem sobre a criação. A ciência e a técnica são recursos preciosos
quando, postos ao serviço do homem, promovem o seu desenvolvimento integral em benefício
de todos. Mas, só por si, não podem indicar o sentido da existência e do progresso humano. A
ciência e a técnica estão ordenadas para o homem, a quem devem a sua origem e progressos.
Por isso, é na pessoa e nos seus valores morais que encontram a indicação da sua finalidade e
a consciência dos seus limites.
2294. É ilusório reivindicar a neutralidade moral da investigação científica e das suas ap-
licações. Por outro lado, os critérios de orientação não podem deduzir-se nem da simples
eficácia nem da utilidade que daí pode advir para uns em prejuízo de outros, nem, pior ainda,
das ideologias dominantes. A ciência e a técnica requerem, pelo seu próprio significado intrín-
seco, o respeito incondicional dos critérios fundamentais da moralidade: devem estar ao ser-
viço da pessoa humana, dos seus direitos inalienáveis, do seu bem autêntico e integral, de
acordo com o projecto e a vontade de Deus.
2295. As investigações ou experiências sobre o ser humano não podem legitimar actos em si
mesmos contrários à dignidade das pessoas e à lei moral. O eventual consentimento dos sujei-
tos não justifica tais actos. A experimentação sobre o ser humano não é moralmente legítima,
se fizer correr riscos desproporcionados, ou evitáveis, à vida ou à integridade física ou
psíquica do sujeito. A experimentação sobre seres humanos não é conforme à dignidade da
pessoa se, ainda por cima, for feita sem o consentimento esclarecido do sujeito ou de quem
sobre ele tem responsabilidades.
2296. A transplantação de órgãos é conforme à lei moral se os perigos e riscos físicos e
psíquicos, em que o doador incorre, forem proporcionados ao bem que se procura em favor do
destinatário. A doação de órgãos após a morte é um acto nobre e meritório e deve ser encora-
jado como uma manifestação de generosa solidariedade. Mas não é moralmente aceitável se o
doador ou os seus representantes lhe não tiverem dado o seu consentimento expresso. Para
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além disso, e moralmente inadmissível provocar directamente a mutilação que leve à invalidez
ou à morte dum ser humano, ainda que isso se faça para retardar a morte de outras pessoas.

O RESPEITO PELA INTEGRIDADE CORPORAL

2297. Os raptos e o sequestro de reféns espalham o terror e, pela ameaça, exercem intolerá-
veis pressões sobre as vítimas. São moralmente ilegítimos. O terrorismo ameaça, fere e mata
sem descriminação; é gravemente contrário à justiça e à caridade. A tortura, que usa a violên-
cia física ou moral para arrancar confissões, para castigar culpados, atemorizar opositores ou
satisfazer ódios, é contrária ao respeito pela pessoa e pela dignidade humana. A não ser por
indicações médicas de ordem estritamente terapêutica, as amputações, mutilações ou esteril-
izações directamente voluntárias de pessoas inocentes, são contrárias à lei moral (63).
2298. Nos tempos passados, certas práticas de crueldade foram comummente adoptadas por
governos legítimos para manter a lei e a ordem, muitas vezes sem protesto dos pastores da
Igreja, tendo eles mesmos adoptado, nos seus próprios tribunais, as prescrições do direito ro-
mano sobre a tortura. A par destes factos lastimáveis, a Igreja ensinou sempre o dever da
clemência e da misericórdia; e proibiu aos clérigos o derramamento de sangue. Nos tempos
recentes, tornou-se evidente que estas práticas cruéis não eram necessárias à ordem pública
nem conformes aos direitos legítimos da pessoa humana. Pelo contrário, tais práticas con-
duzem às piores degradações. Deve trabalhar-se pela sua abolição e orar pelas vítimas e seus
carrascos.

O RESPEITO PELOS MORTOS

2299. Aos moribundos deve dispensar-se toda a atenção e cuidado, para os ajudar a viver os
últimos momentos com dignidade e paz. Devem ser ajudados pela oração dos que lhes são
mais próximos. Estes velarão por que os doentes recebam, em tempo oportuno, os sacramen-
tos que os preparam para o encontro com o Deus vivo.
2300. Os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e esperança
da ressurreição. Enterrar os mortos é uma obra de misericórdia corporal (64) que honra os fil-
hos de Deus, templos do Espírito Santo.
2301. A autópsia dos cadáveres pode ser moralmente admitida por motivos de investigação
legal ou pesquisa científica. O dom gratuito de órgãos depois da morte é legítimo e até pode
ser meritório.
A Igreja permite a cremação a não ser que esta ponha em causa a fé na ressurreição dos cor-
pos (65).

A salvaguarda da paz

APAZ

2302. Evocando o preceito «Não matarás» (Mt 5, 21), nosso Senhor pede a paz do coração e
denuncia a imoralidade da cólera assassina e do ódio:
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A ira é um desejo de vingança. «Desejar a vingança, para mal daquele que deve ser castigado,
é ilícito»; mas impor uma reparação «para correcção do vício e para conservar o bem da
justiça», isso é louvável (66). Se a ira for até ao desejo deliberado de matar o próximo ou de o
ferir gravemente, ofende de modo grave a caridade, e é pecado mortal. O Senhor diz: «Quem
se irar contra o seu irmão, será sujeito a julgamento» (Mt 5, 22).
2303. O ódio voluntário é contra a caridade. Odiar o próximo, querendo-lhe mal deliberada-
mente é pecado. É pecado grave, quando deliberadamente se lhe deseja um mal grave. «Eu,
porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para serdes
filhos do vosso Pai que está nos céus...» (Mt 5, 44-45).
2304. O respeito e o crescimento da vida humana exigem a paz. A paz não é só ausência da
guerra, nem se limita a assegurar o equilíbrio das forças adversas. A paz não é possível na
terra sem a salvaguarda dos bens das pessoas, a livre comunicação entre os seres humanos, o
respeito pela dignidade das pessoas e dos povos e a prática assídua da fraternidade. Ela é
«tranquilidade da ordem» (67); é «obra da justiça» (Is 32, 17) e efeito da caridade (68).
2305. A paz terrena é imagem e fruto da paz de Cristo, o «Príncipe da Paz» messiânico (Is 9,
5). Pelo sangue da sua cruz, Ele, levando em Si próprio a morte à inimizade (69), reconciliou
com Deus os homens e fez da sua Igreja o sacramento da unidade do género humano e da sua
união com Deus (70). «Ele é a nossa paz» (Ef 2, 14) e declara «bem-aventurados os obreiros
da paz» (Mt 5, 9).
2306. Os que, renunciando à acção violenta e sangrenta, recorrem a meios de defesa ao al-
cance dos mais fracos para a salvaguarda dos direitos humanos, dão testemunho da caridade
evangélica, desde que o façam sem lesar os direitos e obrigações dos outros homens e das so-
ciedades. E atestam legitimamente a gravidade dos riscos físicos e morais do recurso à violên-
cia, com as suas ruínas e mortes (71).

EVITAR A GUERRA

2307. O quinto mandamento proíbe a destruição voluntária da vida humana. Por causa dos
males e injustiças que toda a guerra traz consigo, a Igreja exorta instantemente a todos para
que orem e actuem para que a Bondade divina nos livre da antiga escravidão da guerra (72).
2308. Cada cidadão e cada governante deve trabalhar no sentido de evitar as guerras.
No entanto, enquanto «subsistir o perigo de guerra e não houver uma autoridade internacion-
al competente, dotada dos convenientes meios, não se pode negar aos governos, uma vez es-
gotados todos os recursos de negociações pacíficas, o direito de legítima defesa» (73).
2309. Devem ser ponderadas com rigor as estritas condições duma legítima defesa pela
força das armas. A gravidade duma tal decisão submete-a a condições rigorosas de legitimid-
ade moral. É necessário, ao mesmo tempo:
– que o prejuízo causado pelo agressor à nação ou comunidade de nações seja duradouro,
grave e certo; – que todos os outros meios de lhe pôr fim se tenham revelado impraticáveis ou
ineficazes; – que estejam reunidas condições sérias de êxito;
– que o emprego das armas não traga consigo males e desordens mais graves do que o mal a
eliminar. O poder dos meios modernos de destruição tem um peso gravíssimo na apreciação
desta condição.
Estes são os elementos tradicionalmente apontados na doutrina da chamada «guerra justa».
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A apreciação destas condições de legitimidade moral pertence ao juízo prudencial daqueles


que têm o encargo do bem comum.
2310 Os poderes públicos têm, neste caso, o direito e o dever de impor aos cidadãos as
obrigações necessárias à defesa nacional.
Aqueles que se dedicam ao serviço da pátria na vida militar são servidores da segurança e da
liberdade dos povos. Na medida em que desempenharem como convém esta tarefa, con-
tribuem verdadeiramente para o bem comum e para a salvaguarda da paz (74).
2311. Os poderes públicos atenderão equitativamente o caso daqueles que, por motivos de
consciência, recusam o uso de armas; estes continuam obrigados a servir, de outra forma, a
comunidade humana (75).
2312. A Igreja e a razão humana declaram a validade permanente da lei moral durante os
conflitos armados. «Uma vez lamentavelmente começada a guerra, nem por isso tudo se tor-
na lícito entre as partes beligerantes» (76).
2313. Devem ser respeitados e tratados com humanidade os não-combatentes, os soldados
feridos e os prisioneiros.
As acções deliberadamente contrárias ao direito dos povos e aos seus princípios universais,
bem como as ordens que comandam tais acções, são crimes. Uma obediência cega não basta
para desculpar os que a elas se submetem. Assim, o extermínio dum povo, duma nação ou
duma minoria étnica deve ser condenado como pecado mortal. É-se moralmente obrigado a
resistir às ordens para praticar um genocídio.
2314. «Toda a acção bélica, que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras
ou vastas regiões com os seus habitantes, é um crime contra Deus e o próprio homem, que se
deve condenar com firmeza, sem hesitação» (77). Um dos perigos da guerra moderna é o de
oferecer aos detentores das armas científicas, nomeadamente atómicas, biológicas ou quím-
icas, ocasião para cometer tais crimes.
2315. A acumulação de armas é considerada por muitos como um processo paradoxal de dis-
suadir da guerra eventuais adversários. Vêem nisso o mais eficaz dos meios susceptíveis de
garantir a paz entre as nações. No entanto, esse processo de dissuasão suscita severas reservas
morais. A corrida aos armamentos não garante a paz. Longe de eliminaras causas da guerra,
corre o risco de as agravar. O dispêndio de fabulosas riquezas na preparação de armas sempre
novas impede que se auxiliem as populações indigentes (78), e trava o desenvolvimento dos
povos. O superarmamento multiplica as razões de conflito e aumenta o risco da sua
propagação.
2316. O fabrico e comércio de armas tem a ver com o bem comum das nações e da comunid-
ade internacional. Daí que as autoridades públicas tenham o direito e o dever de os regula-
mentar. A busca de interesses privados ou colectivos a curto prazo não pode legitimar empres-
as que incentivam a violência e os conflitos entre as nações e que comprometem a ordem
jurídica internacional.
2317. As injustiças, as excessivas desigualdades de ordem económica ou social, a inveja, a
desconfiança e o orgulho que grassam entre os homens e as nações, são uma constante
ameaça à paz e provocam as guerras. Tudo o que se fizer para superar estas desordens con-
tribui para edificar a paz e evitar a guerra:
«Na medida em que os homens são pecadores, o perigo da guerra ameaça-os e continuará a
ameaçá-los até à vinda de Cristo: mas, na medida em que, unidos na caridade, superam o
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pecado, superadas ficam também as violências, até que se realize aquela palavra: "Com as es-
padas forjarão arados e foices com as lanças. Não mais levantará a espada povo contra povo,
nem jamais se exercitarão para a guerra" (Is 2, 4)» (79).

Resumindo:

2318. «Deus tem nas suas mãos a vida de todo o ser vivo e o sopro de vida de todos os ho-
mens» (Job 12, 10).
2319. Toda a vida humana, desde o momento da concepção até à morte, é sagrada, porque
a pessoa humana foi querida por si mesma e criada à imagem e semelhança do Deus vivo e
santo.
2320. O assassínio de um ser humano é gravemente contrário à dignidade da pessoa e à
santidade do Criador.
2321. A proibição de matar não derroga o direito de retirar ao injusto agressor a possibilid-
ade de fazer mal. A legítima defesa é um dever grave para quem é responsável pela vida de
outrem ou pelo bem comum.
2322. Desde que foi concebida, a criança tem direito à vida. O aborto directo, isto é, querido
como fim ou como meio, é uma «prática infame» (80), gravemente contrária à lei moral. A
Igreja pune com a pena canónica da excomunhão este delito contra a vida humana.
2323. Uma vez que deve ser tratado como pessoa desde a sua concepção, o embrião deve ser
defendido na sua integridade, atendido e cuidado medicamente como qualquer outro ser
humano.
2324. A eutanásia voluntária, quaisquer que sejam as formas e os motivos, é um homicídio.
É gravemente contrária à dignidade da pessoa humana e ao respeito pelo Deus vivo, seu
Criador.
2325. O suicídio é gravemente contrário à justiça, à esperança e à caridade. É proibido pelo
quinto mandamento.
2326. O escândalo constitui uma falta grave quando, por acção ou omissão, leva delibera-
damente outrem a pecar gravemente.
2327. Devido aos males e injustiças que toda a guerra traz consigo, devemos fazer tudo o
que for humanamente possível para evitá-la. A Igreja ora: «Da fome, da peste e da guerra –
livrai-nos, Senhor!».
2328. A Igreja e a razão humana declaram a validade permanente da lei moral durante os
conflitos armados. As práticas deliberadamente contrárias ao direito das gentes e aos seus
princípios universais são crimes.
2329. A corrida aos armamentos é um terrível flagelo para a humanidade e prejudica os
pobres de uma forma intolerável (81).
2330. «Bem-aventurados os obreiros da paz, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5,
9).

ARTIGO 6

O SEXTO MANDAMENTO
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«Não cometerás adultério» (Ex 20, l4) (82).


«Ouvistes que foi dito: "Não cometerás adultério". Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que ol-
har para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5, 27-
28).

I. «Homem e mulher os criou»...

2331. «Deus é amor e vive em Si mesmo um mistério de comunhão pessoal de amor. Ao criar
a humanidade do homem e da mulher à sua imagem [...] Deus inscreveu nela a vocação para o
amor e para a comunhão e, portanto, a capacidade e a responsabilidade correspondentes»
(83).
«Deus criou o homem à sua imagem; [...] homem e mulher os criou» (Gn 1, 27); «Crescei e
multiplicai-vos» (Gn 1, 28); «Quando Deus criou o ser humano, fê-lo à semelhança de Deus.
Criou-os homem e mulher e abençoou-os; e chamou-lhes «Adão» no dia em que os criou»(Gn
5, 1-2).
2332. A sexualidade afecta todos os aspectos da pessoa humana, na unidade do seu corpo e
da sua alma. Diz respeito particularmente à afectividade, à capacidade de amar e de procriar,
e, de um modo mais geral, à aptidão para criar laços de comunhão com outrem.
2333. Compete a cada um, homem e mulher, reconhecer e aceitar a sua identidade sexual. A
diferença e a complementaridade físicas, morais e espirituais orientam-se para os bens do
matrimónio e para o progresso da vida familiar. A harmonia do casal e da sociedade depende,
em parte, da maneira como são vividos, entre os sexos, a complementaridade, a necessidade
mútua e o apoio recíproco.
2334. «Ao criar o ser humano homem e mulher, Deus conferiu a dignidade pessoal, de igual
modo ao homem e à mulher» (84). «O homem é uma pessoa; e isso na mesma medida para o
homem e para a mulher, porque ambos são criados à imagem e semelhança dum Deus pess-
oal» (85).
2335. Cada um dos dois sexos é, com igual dignidade, embora de modo diferente, imagem do
poder e da ternura de Deus. A união do homem e da mulher no matrimónio é um modo de
imitar na carne a generosidade e a fecundidade do Criador: «O homem deixará o seu pai e a
sua mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24). Desta união pro-
cedem todas as gerações humanas (86).
2336. Jesus veio restaurar a criação na pureza das suas origens. No sermão da montanha, in-
terpreta de modo rigoroso o desígnio de Deus:
«Ouvistes que foi dito: "Não cometerás adultério". Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que ol-
har para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5, 27-
28). Não separe o homem o que Deus uniu (87).
A Tradição da Igreja entendeu o sexto mandamento como englobando o conjunto da sexualid-
ade humana.

II. A vocação à castidade

2337. A castidade significa a integração conseguida da sexualidade na pessoa, e daí a unidade


interior do homem no seu ser corporal e espiritual. A sexualidade, na qual se exprime a
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pertença do homem ao mundo corporal e biológico, torna-se pessoal e verdadeiramente hu-


mana quando integrada na relação de pessoa a pessoa, no dom mútuo total e temporalmente
ilimitado, do homem e da mulher.
A virtude da castidade engloba, portanto, a integridade da pessoa e a integralidade da doação.
A

INTEGRIDADE DA PESSOA

2338. A pessoa casta mantém a integridade das forças de vida e de amor em si depositadas.
Esta integridade garante a unidade da pessoa e opõe-se a qualquer comportamento sus-
ceptível de a ofender. Não tolera nem a duplicidade da vida, nem a da linguagem (88).
2339. A castidade implica uma aprendizagem do domínio de si, que é uma pedagogia da
liberdade humana. A alternativa é clara: ou o homem comanda as suas paixões e alcança a
paz, ou se deixa dominar por elas e torna-se infeliz (89). «A dignidade do homem exige que
ele proceda segundo uma opção consciente e livre, isto é, movido e determinado por uma con-
vicção pessoal e não sob a pressão de um cego impulso interior ou da mera coacção externa. O
homem atinge esta dignidade quando, libertando-se de toda a escravidão das paixões,
prossegue o seu fim na livre escolha do bem e se procura de modo eficaz e com diligente inici-
ativa os meios adequados» (90).
2340. Aquele que quiser permanecer fiel às promessas do seu Baptismo e resistir às
tentações, terá o cuidado de procurar os meios: o conhecimento de si, a prática duma ascese
adaptada às situações em que se encontra, a obediência aos mandamentos divinos, a prática
das virtudes morais e a fidelidade à oração. «A continência, na verdade, recolhe-nos e
reconduz-nos àquela unidade que tínhamos perdido, dispersando-nos na multiplicidade»
(91).
2341. A virtude da castidade gira na órbita da virtude cardial da temperança, a qual visa im-
pregnar de razão as paixões e os apetites da sensibilidade humana.
2342. O domínio de si é uma obra de grande fôlego. Nunca poderá considerar-se total e
definitivamente adquirido. Implica um esforço constantemente retomado, em todas as idades
da vida (92); mas o esforço requerido pode ser mais intenso em certas épocas, como quando
se forma a personalidade, durante a infância e a adolescência.
2343. A castidade conhece leis de crescimento e passa por fases marcadas pela imperfeição,
muitas vezes até pelo pecado. O homem virtuoso e casto «constrói-se dia a dia com as suas
numerosas decisões livres. Por isso, conhece, ama e cumpre o bem moral segundo fases de
crescimento» (93).
2344. A castidade representa uma tarefa eminentemente pessoal; implica também um es-
forço cultural, porque existe «interdependência entre o desenvolvimento da pessoa e o da
própria sociedade» (94). A castidade pressupõe o respeito pelos direitos da pessoa, particular-
mente o de receber uma informação e educação que respeitem as dimensões morais e espir-
ituais da vida humana.
2345. A castidade é uma virtude moral. Mas é também um dom de Deus, uma graça, um
fruto do trabalho espiritual (95). O Espírito Santo concede a graça de imitar a pureza de Cristo
(96) àquele que regenerou pela água do Baptismo.
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A INTEGRALIDADE DO DOM DE SI

2346. A caridade é a forma de todas as virtudes. Sob a sua influência, a castidade aparece
como uma escola de doação da pessoa. O domínio de si ordena-se para o dom de si. A castid-
ade leva quem a pratica a tornar-se, junto do próximo, testemunha da fidelidade e da ternura
de Deus.
2347. A virtude da castidade expande-se na amizade. Indica ao discípulo o modo de seguir e
imitar Aquele que nos escolheu como seus próprios amigos (97), que Se deu totalmente a nós
e nos faz participar da sua condição divina. A castidade é promessa de imortalidade.
A castidade exprime-se especialmente na amizade para com o próximo. Desenvolvida entre
pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, a amizade representa um grande bem para to-
dos. Conduz à comunhão espiritual.

OS DIVERSOS REGIMES DA CASTIDADE

2348. Todo o baptizado é chamado à castidade. O cristão «revestiu-se de Cristo» (98), mode-
lo de toda a castidade. Todos os fiéis de Cristo são chamados a levar uma vida casta, segundo o
seu estado de vida particular. No momento do seu Baptismo, o cristão comprometeu-se a ori-
entar a sua afectividade na castidade.
2349. «A castidade deve qualificar as pessoas segundo os seus diferentes estados de vida:
uns, na virgindade ou celibato consagrado, forma eminente de se entregarem mais facilmente
a Deus com um coração indiviso: outros, do modo que a lei moral para todos determina, e
conforme são casados ou solteiros» (99). As pessoas casadas são chamadas a viver a castidade
conjugal; as outras praticam a castidade na continência:
«Existem três formas da virtude da castidade: uma, das esposas: outra, das viúvas; a terceira,
da virgindade. Não louvamos uma com exclusão das outras. [...] É nisso que a disciplina da
Igreja é rica» (100).
2350. Os noivos são chamados a viver a castidade na continência. Eles farão, neste tempo de
prova, a descoberta do respeito mútuo, a aprendizagem da fidelidade e da esperança de se re-
ceberem um ao outro de Deus. Reservarão para o tempo do matrimónio as manifestações de
ternura específicas do amor conjugal. Ajudar-se-ão mutuamente a crescer na castidade.

AS OFENSAS À CASTIDADE

2351. A luxúria é um desejo desordenado ou um gozo desregrado de prazer venéreo. O prazer


sexual é moralmente desordenado quando procurado por si mesmo, isolado das finalidades da
procriação e da união.
2352. Por masturbação entende-se a excitação voluntária dos órgão genitais, para daí retirar
um prazer venéreo. «Na linha duma tradição constante, tanto o Magistério da Igreja como o
sentido moral dos fiéis têm afirmado sem hesitação que a masturbação é um acto intrínseca e
gravemente desordenado». «Seja qual for o motivo, o uso deliberado da faculdade sexual fora
das normais relações conjugais contradiz a finalidade da mesma». O prazer sexual é ali pro-
curado fora da «relação sexual requerida pela ordem moral, que é aquela que realiza, no
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contexto dum amor verdadeiro, o sentido integral da doação mútua e da procriação humana»
(101).
Para formar um juízo justo sobre a responsabilidade moral dos sujeitos, e para orientar a
acção pastoral, deverá ter-se em conta a imaturidade afectiva, a força de hábitos contraídos, o
estado de angústia e outros factores psíquicos ou sociais que podem atenuar, ou até reduzir ao
mínimo, a culpabilidade moral.
2353. A fornicação é a união carnal fora do matrimónio entre um homem e uma mulher
livres. É gravemente contrária à dignidade das pessoas e da sexualidade humana, natural-
mente ordenada para o bem dos esposos, assim como para a geração e educação dos filhos.
Além disso, é um escândalo grave, quando há corrupção dos jovens.
2354. A pornografia consiste em retirar os actos sexuais, reais ou simulados, da intimidade
dos parceiros, para os exibir a terceiras pessoas, de modo deliberado. Ofende a castidade,
porque desnatura o acto conjugal, doação íntima dos esposos um ao outro. É um grave at-
entado contra a dignidade das pessoas intervenientes (actores, comerciantes, público), uma
vez que cada um se torna para o outro objecto dum prazer vulgar e dum lucro ilícito. E faz
mergulhar uns e outros na ilusão dum mundo fictício. É pecado grave. As autoridades civis de-
vem impedir a produção e a distribuição de material pornográfico.
2355. A prostituição é um atentado contra a dignidade da pessoa que se prostitui, reduzida
ao prazer venéreo que dela se tira. Quem paga, peca gravemente contra si mesmo: quebra a
castidade a que o obriga o seu Baptismo e mancha o seu corpo, que é templo do Espírito Santo
(102). A prostituição constitui um flagelo social. Envolve habitualmente mulheres, mas tam-
bém homens, crianças ou adolescentes (nestes dois últimos casos, o pecado duplica com o es-
cândalo). É sempre gravemente pecaminoso entregar-se à prostituição; mas a miséria, a
chantagem e a pressão social podem atenuar a imputabilidade do pecado.
2356. A violação designa a entrada na intimidade sexual duma pessoa à força, com violência.
É um atentado contra a justiça e a caridade. A violação ofende profundamente o direito de
cada um ao respeito, à liberdade e à integridade física e moral. Causa um prejuízo grave, que
pode marcar a vítima para toda a vida. É sempre um acto intrinsecamente mau. É mais grave
ainda, se cometido por parentes próximos (incesto) ou por educadores contra crianças a eles
confiadas.

CASTIDADE E HOMOSSEXUALIDADE

2357 A homossexualidade designa as relações entre homens ou mulheres, que experimentam


uma atracção sexual exclusiva ou predominante para pessoas do mesmo sexo. Tem-se
revestido de formas muito variadas, através dos séculos e das culturas. A sua génese psíquica
continua em grande parte por explicar. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta
como depravações graves (103) a Tradição sempre declarou que «os actos de homossexualid-
ade são intrinsecamente desordenados» (104). São contrários à lei natural, fecham o acto
sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afectiva sexual,
não podem, em caso algum, ser aprovados.
2358. Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homos-
sexuais profundamente radicadas. Esta propensão, objectivamente desordenada, constitui,
para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e
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delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pess-
oas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifí-
cio da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição.
2359. As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes do autodomínio,
educadoras da liberdade interior, e, às vezes, pelo apoio duma amizade desinteressada, pela
oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da
perfeição cristã.

III. O amor dos esposos

2360. A sexualidade ordena-se para o amor conjugal do homem e da mulher. No mat-


rimónio, a intimidade corporal dos esposos torna-se sinal e penhor de comunhão espiritual.
Entre os baptizados, os laços do matrimónio são santificados pelo sacramento.
2361. «A sexualidade, mediante a qual o homem e a mulher se dão um ao outro com os actos
próprios e exclusivos dos esposos, não é algo de puramente biológico, mas diz respeito à pess-
oa humana como tal, no que ela tem de mais íntimo. Esta só se realiza de maneira verdadeira-
mente humana se for parte integrante do amor com o qual homem e mulher se comprometem
totalmente um para com o outro até à morte» (105).
«Tobias ergueu-se do leito e disse [...] [a Sara]: "Irmã, levanta-te; vamos orar ao Senhor e
pedir-lhe que nos conceda a sua misericórdia e salvação". Levantaram-se ambos e puseram-se
a orar e a implorar que lhes fosse enviada a salvação, dizendo: "Bendito sejas, Deus dos nossos
pais [...]. Tu criaste Adão e deste-lhe Eva, sua esposa, como amparo valioso, e de ambos pro-
cedeu o género humano. Com efeito, disseste: 'Não é bom que o homem esteja só; façamos-lhe
uma auxiliar semelhante a ele'. Agora, Senhor, Tu bem sabes que não é por luxúria que agora
tomo por esposa esta minha irmã, mas é com intenção pura. Permite, pois, que eu e ela en-
contremos misericórdia e cheguemos juntos à velhice» (Tb 8, 4-9).
2362. «Os actos pelos quais os esposos se unem íntima e castamente são honestos e dignos;
realizados de modo autenticamente humano, exprimem e alimentam a mútua entrega pela
qual se enriquecem um ao outro com alegria e gratidão» (106). A sexualidade é fonte de
alegria e de prazer:
«Foi o próprio Criador Quem [...] estabeleceu que, nesta função [da geração], os esposos ex-
perimentassem prazer e satisfação do corpo e do espírito. Portanto, os esposos não fazem
nada de mal ao procurar este prazer e gozar dele. Aceitam o que o Criador lhes destinou. No
entanto, devem saber manter-se dentro dos limites duma justa moderação» (107).
2363. Pela união dos esposos realiza-se o duplo fim do matrimónio: o bem dos próprios es-
posos e a transmissão da vida. Não podem separar-se estes dois significados ou valores do
matrimónio sem alterar a vida espiritual do casal nem comprometer os bens do matrimónio e
o futuro da família.
O amor conjugal do homem e da mulher está, assim, colocado sob a dupla exigência da fidel-
idade e da fecundidade.

A FIDELIDADE CONJUGAL
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2364. Ambos os esposos constituem «uma íntima comunidade de vida e de amor, fundada
pelo Criador e por Ele dotada de leis próprias». Esta comunidade «é instaurada pela aliança
conjugal, ou seja, por um irrevogável consentimento pessoal» (108). Os dois entregam-se,
definitiva e totalmente, um ao outro. Doravante, já não são dois, mas uma só carne. A aliança
livremente contraída pelos esposos impõe-lhes a obrigação de a manter una e indissolúvel
(109). «O que Deus uniu, não o separe o homem»(Mc 10, 9) (110).
2365. A fidelidade exprime a constância em manter a palavra dada. Deus é fiel. O sacramento
do matrimónio introduz o homem e a mulher na fidelidade de Cristo à sua Igreja. Pela castid-
ade conjugal, eles dão testemunho deste mistério perante o mundo.
São João Crisóstomo sugere aos jovens casados que façam este discurso às suas esposas:
«Tomei-te nos meus braços, amo-te e prefiro-te à minha própria vida. Porque a vida presente
não é nada e o meu sonho mais ardente é passá-la contigo, de tal maneira que tenhamos a cer-
teza de não ser separados naquela que nos está reservada [...]. Eu ponho o teu amor acima de
tudo, e nada me seria mais penoso do que não ter os mesmos pensamentos que tu» (111).

A FECUNDIDADE DO MATRIMÓNIO

2366. A fecundidade é um dom, uma finalidade do matrimónio, porque o amor conjugal


tende naturalmente a ser fecundo. O filho não vem de fora juntar-se ao amor mútuo dos es-
posos; surge no próprio coração deste dom mútuo, do qual é fruto e complemento. Por isso, a
Igreja, que «toma partido pela vida» (112), ensina que «todo o acto matrimonial deve, por si
estar aberto à transmissão da vida» (113). «Esta doutrina, muitas vezes exposta pelo
Magistério, funda-se sobre o nexo indissolúvel estabelecido por Deus e que o homem não
pode quebrar por sua iniciativa, entre os dois significados inerentes ao acto conjugal: união e
procriação» (114).
2367. Chamados a dar a vida, os esposos participam do poder criador e da paternidade de
Deus (115). «No dever de transmitir e educar a vida humana – dever que deve ser considerado
como a sua missão própria – saibam os esposos que são cooperadores do amor de Deus e
como que os seus intérpretes. Cumprirão, pois, esta missão, com responsabilidade humana e
cristã» (116).
2368. Um aspecto particular desta responsabilidade diz respeito à regulação da procriação.
Os esposos podem querer espaçar o nascimento dos seus filhos por razões justificadas (117).
Devem, porém, verificar se tal desejo não procede do egoísmo, e se está de acordo com a justa
generosidade duma paternidade responsável. Além disso, regularão o seu comportamento se-
gundo os critérios objectivos da moralidade:
«Quando se trata de conciliar o amor conjugal com a transmissão responsável da vida, a mor-
alidade do comportamento não depende apenas da sinceridade da intenção e da apreciação
dos motivos; deve também determinar-se por critérios objectivos, tomados da natureza da
pessoa e dos seus actos; critérios que respeitem, num contexto de autêntico amor, o sentido da
mútua doação e da procriação humana. Tudo isto só é possível, se se cultivar sinceramente a
virtude da castidade conjugal» (118).
2369. «É salvaguardando estes dois aspectos essenciais, união e procriação, que o acto con-
jugal conserva integralmente o sentido de mútuo e verdadeiro amor e a sua ordenação para a
altíssima vocação do homem para a paternidade» (119).
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2370. A continência periódica, os métodos de regulação dos nascimentos baseados na auto-


observação e no recurso aos períodos infecundos (120), são conformes aos critérios objectivos
da moralidade. Estes métodos respeitam o corpo dos esposos, estimulam a ternura entre eles
e favorecem a educação duma liberdade autêntica. Em contrapartida, é intrinsecamente má
«qualquer acção que, quer em previsão do acto conjugal, quer durante a sua realização, quer
no desenrolar das suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar
impossível a procriação» (121).
«À linguagem que exprime naturalmente a doação recíproca e total dos esposos, a contra-
cepção opõe uma linguagem objectivamente contraditória, segundo a qual já não se trata de se
darem totalmente um ao outro. Daí deriva, não somente a recusa positiva da abertura à vida,
mas também uma falsificação da verdade interna do amor conjugal, chamado a ser um dom
da pessoa toda. [...] Esta diferença antropológica e moral, entre a contracepção e o recurso aos
ritmos periódicos, implica dois conceitos de pessoa e de sexualidade humana irredutíveis um
ao outro» (122).
2371. «Aliás, todos devem ter bem presente que a vida humana e a missão de a transmitir não
se limitam aos horizontes deste mundo, nem podem ser medidas ou compreendidas unica-
mente em função dele, mas estão sempre relacionadas com o destino eterno do homem»
(123).
2372. O Estado é responsável pelo bem-estar dos cidadãos. A tal título, é legítimo que inter-
venha para orientar o crescimento da população. Pode fazê-lo mediante uma informação ob-
jectiva e respeitosa, não porém com imposições autoritárias e obrigatórias. O Estado não pode
legitimamente substituir-se à iniciativa dos esposos, primeiros responsáveis pela procriação e
educação dos seus filhos (124). Neste domínio, não tem autoridade para intervir com medidas
contrárias à lei moral.

O DOM DO FILHO

2373. A Sagrada Escritura e a prática tradicional da Igreja vêem nas famílias numerosas um
sinal da bênção divina e da generosidade dos pais (125).
2374. É grande o sofrimento dos casais que descobrem que são estéreis. «Que me dareis, Sen-
hor Deus?» – pergunta Abraão a Deus. «Vou-me sem filhos...» (Gn 15, 2). – «Dá-me filhos ou
então morro!» – grita Raquel ao seu marido Jacob (Gn 30, 1).
2375. As pesquisas que se destinam a reduzir a esterilidade humana devem ser encorajadas,
com a condição de serem colocadas «ao serviço da pessoa humana, dos seus direitos inaliená-
veis e do seu bem verdadeiro e integral, em conformidade com o projecto e a vontade de
Deus» (126).
2376. As técnicas que provocam a dissociação dos progenitores pela intervenção duma pessoa
estranha ao casal (dádiva de esperma ou ovócito, empréstimo de útero) são gravemente
desonestas. Estas técnicas (inseminação e fecundação artificial heteróloga) lesam o direito do
filho a nascer dum pai e duma mãe seus conhecidos e unidos entre si pelo casamento. E at-
raiçoam «o direito exclusivo a não serem nem pai nem mãe senão um pelo outro» (127).
2377. Praticadas no seio do casal, estas técnicas (inseminação e fecundação artificial homó-
loga) são talvez menos prejudiciais, mas continuam moralmente inaceitáveis. Dissociam o
acto sexual do acto procriador. O acto fundador da existência do filho deixa de ser um acto
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pelo qual duas pessoas se dão uma à outra, e «remete a vida e a identidade do embrião para o
poder dos médicos e biólogos. Instaurando o domínio da técnica sobre a origem e destino da
pessoa humana. Tal relação de domínio é, de si, contrária à dignidade e à igualdade que de-
vem ser comuns aos pais e aos filhos» (128). «A procriação é moralmente privada da sua per-
feição própria, quando não é querida como fruto do acto conjugal, isto é, do gesto específico
da união dos esposos. [...] Só o respeito pelo laço que existe entre os significados do acto con-
jugal e o respeito pela unidade do ser humano permite uma procriação conforme à dignidade
da pessoa» (129).
2378. O filho não é uma dívida, é uma dádiva. O «dom mais excelente do matrimónio» é
uma pessoa humana. O filho não pode ser considerado como objecto de propriedade, con-
clusão a que levaria o reconhecimento dum pretenso «direito ao filho». Neste domínio, só o
filho é que possui verdadeiros direitos: o de «ser fruto do acto específico do amor conjugal dos
seus pais, e também o de ser respeitado como pessoa desde o momento da sua concepção»
(130).
2379. O Evangelho mostra que a esterilidade física não é um mal absoluto. Os esposos que,
depois de esgotados os recursos médicos legítimos, sofrem de infertilidade, associar-se-ão à
cruz do Senhor, fonte de toda a fecundidade espiritual. Podem mostrar a sua generosidade ad-
optando crianças abandonadas ou realizando serviços significativos em favor do próximo.

IV. As ofensas à dignidade do matrimónio

2380. O adultério. É o termo que designa a infidelidade conjugal. Quando dois parceiros, dos
quais pelo menos um é casado, estabelecem entre si uma relação sexual, mesmo efémera,
cometem adultério. Cristo condena o adultério, mesmo de simples desejo (131). O sexto man-
damento e o Novo Testamento proíbem absolutamente o adultério (132). Os profetas
denunciam-lhe a gravidade. E vêem no adultério a figura do pecado da idolatria (133).
2381. O adultério é uma injustiça. Aquele que o comete, falta aos seus compromissos. Viola o
sinal da Aliança, que é o vínculo matrimonial, lesa o direito do outro cônjuge e atenta contra a
instituição do matrimónio, violando o contrato em que assenta. Compromete o bem da ger-
ação humana e dos filhos que têm necessidade da união estável dos pais.

O DIVÓRCIO

2382. O Senhor Jesus insistiu na intenção original do Criador, que queria um matrimónio in-
dissolúvel (134). E abrogou as tolerâncias que se tinham infiltrado na antiga Lei (135).
Entre baptizados, «o matrimónio rato e consumado não pode ser dissolvido por nenhum
poder humano, nem por nenhuma causa, além da morte» (136).
2383. A separação dos esposos, permanecendo o vínculo matrimonial, pode ser legítima em
certos casos previstos pelo direito canónico (137).
Se o divórcio civil for a única maneira possível de garantir certos direitos legítimos, tais como
o cuidado dos filhos ou a defesa do património, pode ser tolerado sem constituir falta moral.
2384. O divórcio é uma ofensa grave à lei natural. Pretende romper o contrato livremente
aceite pelos esposos de viverem um com o outro até à morte. O divórcio é uma injúria contra a
aliança da salvação, de que o matrimónio sacramental é sinal. O facto de se contrair nova
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união, embora reconhecida pela lei civil, aumenta a gravidade da ruptura: o cônjuge casado
outra vez encontra-se numa situação de adultério público e permanente:
«Não é lícito ao homem, despedida a esposa, casar com outra; nem é legítimo que outro tome
como esposa a que foi repudiada pelo marido»(138).
2385. O carácter imoral do divórcio advém-lhe também da desordem que introduz na célula
familiar e na sociedade. Esta desordem traz consigo prejuízos graves: para o cônjuge que fica
abandonado; para os filhos, traumatizados pela separação dos pais e, muitas vezes, objecto de
contenda entre eles; e pelo seu efeito de contágio, que faz dele uma verdadeira praga social.
2386. Pode acontecer que um dos cônjuges seja a vítima inocente do divórcio declarado pela
lei civil; esse, então, não viola o preceito moral. Há uma grande diferença entre o cônjuge que
sinceramente se esforçou por ser fiel ao sacramento do matrimónio e se vê injustamente aban-
donado, e aquele que, por uma falta grave da sua parte, destrói um matrimónio canonica-
mente válido (139).

OUTRAS OFENSAS À DIGNIDADE DO MATRIMÓNIO

2387. É compreensível o drama daquele que, desejoso de se converter ao Evangelho, se vê


obrigado a repudiar uma ou mais mulheres com quem partilhou anos de vida conjugal. Con-
tudo, a poligamia não está de acordo com a lei moral. «Opõe-se radicalmente à comunhão
conjugal: porque nega, de modo directo, o desígnio de Deus, tal como nos foi revelado no
princípio e é contrária à igual dignidade pessoal da mulher e do homem, os quais, no mat-
rimónio, se dão um ao outro num amor total que, por isso mesmo, é único e exclusivo»(140).
O cristão que anteriormente foi polígamo é gravemente obrigado, por justiça, a honrar as
obrigações contraídas para com as suas antigas mulheres e respectivos filhos.
2388. O incesto designa relações íntimas entre parentes ou afins, num grau que proíbe o
matrimónio entre eles (141). São Paulo estigmatiza esta falta particularmente grave: «É voz
corrente que existe entre vós um caso de imoralidade [...] ao ponto de certo homem viver com
a mulher de seu pai! [...] Em nome do Senhor Jesus [...], que esse homem seja entregue a
Satanás [...] para ruína do seu corpo» (1 Cor 5, 1. 4-5). O incesto corrompe as relações famili-
ares e representa uma regressão à animalidade.
2389. Podem relacionar-se com o incesto os abusos sexuais cometidos por adultos em relação
a crianças ou adolescentes confiados à sua guarda. Nesse caso a culpa é dupla por se tratar
dum escandaloso atentado contra a integridade física e moral dos jovens, que assim ficarão
marcados para toda a sua vida e duma violação da responsabilidade educativa.
2390. Há união livre quando homem e mulher recusam dar forma jurídica e pública a uma
ligação que implica intimidade sexual.
A expressão é falaciosa: que pode significar uma união em que as pessoas não se compromet-
em uma para com a outra, testemunhando assim uma falta de confiança na outra, em si mes-
mas, ou no futuro?
A expressão tenta camuflar situações diferentes: concubinato, recusado matrimónio como tal,
incapacidade de se ligar por compromissos a longo prazo (142). Todas estas situações ofen-
dem a dignidade do matrimónio; destroem a própria ideia de família; enfraquecem o sentido
da fidelidade. São contrárias à lei moral: o acto sexual deve ter lugar exclusivamente no mat-
rimónio; fora dele constitui sempre um pecado grave e exclui da comunhão sacramental.
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2391. Hoje em dia, há muitos que reclamam uma espécie de «direito à experiência», quando
há intenção de contrair matrimónio. Seja qual for a firmeza do propósito daqueles que
enveredam por relações sexuais prematuras, «estas não permitem assegurar que a sinceridade
e a fidelidade da relação interpessoal dum homem e duma mulher fiquem a salvo nem, sobre-
tudo, que esta relação fique protegida de volubilidade dos desejos e dos caprichos»(143). A
união carnal só é legítima quando se tiver instaurado uma definitiva comunidade de vida
entre o homem e a mulher. O amor humano não tolera o «ensaio». Exige o dom total e definit-
ivo das pessoas entre si (144).

Resumindo:

2392. «O amor é a vocação fundamental e inata de todo o ser humano» (145).


2393. Ao criar o ser humano homem e mulher, Deus conferiu a dignidade pessoal, de igual
modo, a um e a outra. Compete a cada um, homem e mulher, reconhecer e aceitar a sua
identidade sexual.
2394. Cristo é o modelo da castidade. Todo o baptizado é chamado a levar uma vida casta,
cada um segundo o seu próprio estado de vida.
2395. A castidade significa a integração da sexualidade na pessoa. Implica a aprendizagem
do autodomínio.
2396. Entre os pecados gravemente contrários à castidade, devem citar-se: a masturbação,
a fornicação, a pornografia e as práticas homossexuais.
2397. A aliança livremente contraída pelos esposos implica um amor fiel. Ele impõe-lhes a
obrigação de guardar indissolúvel o seu matrimónio.
2398. A fecundidade é um bem, um dom, uma finalidade do matrimónio. Dando a vida, os
esposos participam da paternidade de Deus.
2399. A regulação dos nascimentos representa um dos aspectos da paternidade e da mater-
nidade responsáveis. A legitimidade das intenções dos esposos não justifica o recurso a
meios moralmente inadmissíveis (por exemplo, a esterilização directa ou a contracepção).
2400. O adultério e o divórcio, a poligamia e a união livre são ofensas graves à dignidade
do matrimónio.

ARTIGO 7

O SÉTIMO MANDAMENTO

«Não furtarás» (Ex 20, 15) (146). «Não roubarás» (Mt 19, 18).
2401. O sétimo mandamento proíbe tomar ou reter injustamente o bem do próximo e
prejudicá-lo nos seus bens, seja como for. Prescreve a justiça e a caridade na gestão dos bens
terrenos e do fruto do trabalho dos homens. Exige, em vista do bem comum, o respeito pelo
destino universal dos bens e pelo direito à propriedade privada. A vida cristã esforça-se por
ordenar para Deus e para a caridade fraterna os bens deste mundo.

I. O destino universal e a propriedade privada dos bens


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2402. No princípio, Deus confiou a terra e os seus recursos à gestão comum da humanidade,
para que dela cuidasse, a dominasse pelo seu trabalho e gozasse dos seus frutos(147).Os bens
da criação são destinados a todo o género humano. No entanto, a terra foi repartida entre os
homens para garantir a segurança da sua vida, exposta à penúria e ameaçada pela violência. A
apropriação dos bens é legítima, para garantir a liberdade e a dignidade das pessoas, e para
ajudar cada qual a ocorrer às suas necessidades fundamentais e às necessidades daqueles que
tem a seu cargo. Tal apropriação deve permitir que se manifeste a solidariedade natural entre
os homens.
2403. O direito à propriedade privada, adquirida ou recebida de maneira justa, não anula a
doação original da terra à humanidade no seu conjunto. O destino universal dos bens con-
tinua a ser primordial, embora a promoção do bem comum exija o respeito pela propriedade
privada, do direito a ela e do respectivo exercício.
2404. «Quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores, que legitimamente
possui, só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar,
não só a si, mas também aos outros»(148). A propriedade dum bem faz do seu detentor um
administrador da providência de Deus, com a obrigação de o fazer frutificar e de comunicar os
seus benefícios aos outros, a começar pelos seus próximos.
2405. Os bens de produção – materiais ou imateriais – como terras ou fábricas, competên-
cias ou artes, requerem os cuidados dos seus possuidores, para que a sua fecundidade apro-
veite ao maior número. Os detentores dos bens de uso e de consumo devem utilizá-los com
moderação, reservando a melhor parte para o hóspede, o doente, o pobre.
2406. A autoridade política tem o direito e o dever de regular, em função do bem comum, o
exercício legítimo do direito de propriedade (149)

II. O respeito pelas pessoas e seus bens

2407. Em matéria económica, o respeito pela dignidade humana exige a prática da virtude da
temperança, para moderar o apego aos bens deste mundo; da virtude da justiça, para
acautelar os direitos do próximo e dar-lhe o que lhe é devido; e da solidariedade, segundo a
regra de ouro e conforme a liberalidade do Senhor, que «sendo rico Se fez pobre, para nos en-
riquecer com a sua pobreza» (150)

O RESPEITO PELOS BENS ALHEIOS

2408. O sétimo mandamento proíbe o roubo, isto é, a usurpação do bem alheio, contra a
vontade razoável do seu proprietário. Não há roubo quando o consentimento se pode presum-
ir ou a recusa é contrária à razão e ao destino universal dos bens. É o caso da necessidade ur-
gente e evidente, em que o único meio de remediar necessidades imediatas e essenciais (ali-
mento, abrigo, vestuário...) é dispor e usar dos bens alheios (151).
2409. Todo o processo de se apoderar e de reter injustamente o bem alheio, mesmo que não
esteja em desacordo com as disposições da lei civil, é contrário ao sétimo mandamento.
Assim, reter deliberadamente bens emprestados ou objectos perdidos; cometer fraude no
comércio (152); pagar salários injustos (153); subir os preços especulando com a ignorância ou
a necessidade dos outros (154).
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São também processos moralmente ilícitos: a especulação pela qual se manobra no sentido de
fazer variar artificialmente a avaliação dos bens, com vista a daí tirar vantagem em detrimento
de outrem; a corrupção, pela qual se desvia o juízo daqueles que devem tomar decisões se-
gundo o direito; a apropriação e o uso privado de bens sociais duma empresa; os trabalhos
mal executados, a fraude fiscal, a falsificação de cheques e facturas, as despesas excessivas, o
desperdício. Causar voluntariamente um prejuízo em propriedades privadas ou públicas é
contra a lei moral e exige reparação.
2410. As promessas devem ser cumpridas e os contratos rigorosamente observados, desde
que o compromisso assumido seja moralmente justo. Grande parte da vida económica e social
depende da validade dos contratos entre pessoas físicas ou morais. Por exemplo, os contratos
comerciais de compra e venda, os contratos de arrendamento ou de trabalho. Todo o contrato
deve ser convencionado e executado de boa fé.
2411. Os contratos estão sujeitos à justiça comutativa, que regula as permutas entre as pess-
oas e entre as instituições no exacto respeito pelos seus direitos. A justiça comutativa obriga
estritamente; exige a salvaguarda dos direitos de propriedade, o pagamento das dívidas e a
prestação das obrigações livremente contraídas. Sem a justiça comutativa, nenhuma outra
forma de justiça é possível.
A justiça comutativa distingue-se da justiça legal, a qual diz respeito ao que o cidadão equit-
ativamente deve à comunidade, e da justiça distributiva, que regula o que a comunidade deve
aos cidadãos, proporcionalmente às suas contribuições e às suas necessidades.
2412. Em virtude da justiça comutativa, a reparação da injustiça cometida exige a restituição
do bem roubado ao seu proprietário:
Jesus louvou Zaqueu pelo seu compromisso: «Se causei qualquer prejuízo a alguém, restitui-
lhe-ei quatro vezes mais» (Lc 19, 8). Aqueles que, de maneira directa ou indirecta, se apoder-
aram de um bem alheio, estão obrigados a restituí-lo, ou a dar o equivalente em natureza ou
espécie, se a coisa desapareceu, assim como os frutos e vantagens que o seu dono teria legit-
imamente auferido. Estão igualmente obrigados a restituir, na proporção da sua responsabil-
idade e do seu proveito, todos aqueles que de qualquer modo participaram no roubo ou dele
se aproveitaram com conhecimento de causa; por exemplo, aqueles que o ordenaram, o
ajudaram ou o ocultaram.
2413. Os jogos de azar (jogo de cartas, etc.) e as apostas não são, em si mesmos, contrários à
justiça. Mas tornam-se moralmente inaceitáveis, quando privam a pessoa do que lhe é ne-
cessário para as suas necessidades e as de outrem. A paixão do jogo pode tornar-se uma grave
servidão. Apostar injustamente ou fazer batota nos jogos constitui matéria grave, a menos que
o prejuízo causado seja tão leve que quem o sofre não possa razoavelmente considerá-lo
significativo.
2414. O sétimo mandamento proíbe os actos ou empreendimentos que, seja por que motivo
for – egoísta ou ideológico, mercantil ou totalitário – conduzam a escravizar seres humanos,
a desconhecer a sua dignidade pessoal, a comprá-los, vendê-los e trocá-los como mercadoria.
É um pecado contra a dignidade das pessoas e seus direitos fundamentais reduzi-las, pela vi-
olência, a um valor utilitário ou a uma fonte de lucro. São Paulo ordenava a um amo cristão
que tratasse o seu escravo, também cristão, «não já como escravo mas como irmão [...], tanto
humanamente como no Senhor» (Flm 16).
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O RESPEITO PELA INTEGRIDADE DA CRIAÇÃO

2415. O sétimo mandamento exige o respeito pela integridade da criação. Os animais, tal
como as plantas e os seres inanimados, são naturalmente destinados ao bem comum da hu-
manidade, passada, presente e futura(155) O uso dos recursos minerais, vegetais e animais do
universo não pode ser desvinculado do respeito pelas exigências morais. O domínio concedido
pelo Criador ao homem sobre os seres inanimados e os outros seres vivos, não é absoluto, mas
regulado pela preocupação da qualidade de vida do próximo, inclusive das gerações futuras;
exige um respeito religioso pela integridade da criação (156).
2416. Os animais são criaturas de Deus. Deus envolve-os na sua solicitude providencial (157).
Pelo simples facto de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória (158). Por isso, os homens
devem estimá-los. É de lembrar com que delicadeza os santos, como São Francisco de Assis ou
São Filipe de Néri, tratavam os animais.
2417. Deus confiou os animais ao governo daquele que foi criado à Sua imagem (159). É, port-
anto, legítimo servimo-nos dos animais para a alimentação e para a confecção do vestuário.
Podemos domesticá-los para que sirvam o homem nos seus trabalhos e lazeres. As experiên-
cias médicas e científicas em animais são práticas moralmente admissíveis desde que não ul-
trapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas.
2418. É contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscrim-
inadamente das suas vidas. É igualmente indigno gastar com eles somas que deveriam, prior-
itariamente, aliviar a miséria dos homens. Pode-se amar os animais, mas não deveria desviar-
se para eles o afecto só devido às pessoas.

III. A doutrina social da Igreja

2419. «A Revelação cristã conduz [...] a uma inteligência mais penetrante das leis da vida so-
cial» (160). A Igreja recebe do Evangelho a revelação plena da verdade acerca do homem.
Quando cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho, a Igreja atesta ao homem, em nome
de Cristo, a sua dignidade própria e a sua vocação para a comunhão das pessoas, e ensina-lhe
as exigências da justiça e da paz, conformes à sabedoria divina.
2420. A Igreja emite um juízo moral em matéria económica e social, «quando os direitos fun-
damentais da pessoa ou a salvação das almas o exigem» (161). Na ordem da moralidade, ela
exerce uma missão diferente da que concerne às autoridades políticas: a Igreja preocupa-se
com os aspectos temporais do bem comum em razão da sua ordenação ao Bem soberano,
nosso fim último. E esforça-se por inspirar as atitudes justas, no que respeita aos bens ter-
renos e às relações sócio-económicas.
2421. A doutrina social da Igreja desenvolveu-se no século XIX aquando do confronto do
Evangelho com a sociedade industrial moderna, as suas novas estruturas para a produção de
bens de consumo, o seu novo conceito de sociedade, de Estado e de autoridade, as suas novas
formas de trabalho e de propriedade. O desenvolvimento da doutrina da Igreja em matéria
económica e social comprova o valor permanente da doutrina da mesma Igreja, ao mesmo
tempo que o verdadeiro sentido da sua Tradição, sempre viva e activa (162).
2422. O ensino social da Igreja inclui um corpo de doutrina que se vai articulando à medida
que a mesma Igreja interpreta os acontecimentos no decurso da história à luz do conjunto da
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Palavra revelada por Cristo Jesus, com a assistência do Espírito Santo (163). Este ensino
torna-se tanto mais aceitável para os homens de boa vontade, quanto mais inspira o procedi-
mento dos fiéis.
2423. A doutrina social da Igreja propõe princípios de reflexão, salienta critérios de julga-
mento e fornece orientações para a acção:
Todo o sistema, segundo o qual as relações sociais forem inteiramente determinadas pelos
factores económicos, é contrário à natureza da pessoa humana e dos seus actos (164).
2424. Uma teoria que faça do lucro a regra exclusiva e o fim último da actividade económica,
é moralmente inaceitável. O apetite desordenado do dinheiro não deixa de produzir os seus
efeitos perversos e é uma das causas dos numerosos conflitos que perturbam a ordem social
(165).
Um sistema que «sacrifique os direitos fundamentais das pessoas e dos grupos à organização
colectiva da produção», é contrário à dignidade humana (166). Toda a prática que reduza as
pessoas a não serem mais que simples meios com vista ao lucro, escraviza o homem, conduz à
idolatria do dinheiro e contribui para propagar o ateísmo. «Não podeis servir a Deus e ao din-
heiro» (Mt 6, 24; Lc 16, 13).
2425. A Igreja rejeitou as ideologias totalitárias e ateias, associadas, nos tempos modernos,
ao «comunismo» ou ao «socialismo». Por outro lado, recusou, na prática do «capitalismo», o
individualismo e o primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano (167). Regu-
lar a economia só pela planificação centralizada perverte a base dos laços sociais: regulá- la só
pela lei do mercado é faltar à justiça social, «porque há numerosas necessidades humanas que
não podem ser satisfeitas pelo mercado» (168). É necessário preconizar uma regulação racion-
al do mercado e das iniciativas económicas, segundo uma justa hierarquia dos valores e tendo
em vista o bem comum.

IV. A actividade económica e a justiça social

2426. O desenvolvimento das actividades económicas e o crescimento da produção destinam-


se a ocorrer às necessidades dos seres humanos. A vida económica não visa somente multipli-
car os bens produzidos e aumentar o lucro ou o poder; ordena-se, antes de mais, para o ser-
viço das pessoas, do homem integral e de toda a comunidade humana. Conduzida segundo
métodos próprios, a actividade económica deve exercer-se dentro dos limites da ordem moral
e segundo as normas da justiça social, a fim de corresponder ao desígnio de Deus sobre o
homem (169).
2427. O trabalho humano procede imediatamente das pessoas criadas à imagem de Deus e
chamadas a prolongar, umas com as outras, a obra da criação, dominando a terra (170). Port-
anto, o trabalho é um dever: «Se algum de vós não quer trabalhar, também não coma» (2 Ts 3,
10) (171). O trabalho honra os dons do Criador e os talentos recebidos. Também pode ser re-
dentor: suportando o que o trabalho tem de penoso (172) em união com Jesus, o artesão de
Nazaré e crucificado do Calvário, o homem colabora, de certo modo, com o Filho de Deus na
sua obra redentora. Mostra-se discípulo de Cristo, levando a cruz de cada dia na actividade
que foi chamado a exercer (173). O trabalho pode ser um meio de santificação e uma animação
das realidades terrenas no Espírito de Cristo.
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2428. No trabalho, a pessoa exerce e cumpre uma parte das capacidades inscritas na sua
natureza. O valor primordial do trabalho pertence ao próprio homem, seu autor e destin-
atário. O trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho (174).
Cada um deve poder tirar do trabalho os meios de subsistência, para si e para os seus, e a pos-
sibilidade de servir a comunidade humana.
2429. Cada um tem o direito de iniciativa económica e usará legitimamente os seus talentos,
a fim de contribuir para uma abundância proveitosa a todos e recolher os justos frutos dos
seus esforços. Mas terá o cuidado de se conformar com as regulamentações impostas pelas
legítimas autoridades em vista do bem comum (175).
2430. A vida económica põe em causa interesses diversos , muitas vezes opostos entre si.
Assim se explica a emergência dos conflitos que a caracterizam (176). Todos devem esforçar-
se por reduzir estes últimos através de uma negociação que respeite os direitos e deveres de
todos os parceiros sociais: os responsáveis das empresas, os representantes dos assalariados
(por exemplo, organizações sindicais) e, eventualmente, os poderes públicos.
2431. A responsabilidade do Estado. «A actividade económica, particularmente a da eco-
nomia de mercado, não pode desenrolar-se num vazio institucional, jurídico e político. Pres-
supõe asseguradas as garantias das liberdades individuais e da propriedade, sem falar duma
moeda estável e de serviços públicos eficientes. Mas o dever essencial do Estado é assegurar
estas garantias, de modo que, quem trabalha, possa usufruir do fruto do seu trabalho e, port-
anto, se sinta estimulado a realizá-lo com eficiência e honestidade [...]. O Estado tem o dever
de zelar e orientar a aplicação dos direitos humanos no sector económico. Todavia, neste
domínio, a primeira responsabilidade não cabe ao Estado, mas sim às instituições e diferentes
grupos e associações que compõem a sociedade» (177).
2432. Os responsáveis de empresas têm, perante a sociedade, a responsabilidade económica
e ecológica das suas operações (178). Estão obrigados a ter em consideração o bem das pess-
oas, e não somente o aumento dos lucros. Estes são necessários, pois permitem realizar inves-
timentos que assegurem o futuro das empresas e garantam o emprego.
2433. O acesso ao trabalho e ao exercício da profissão deve ser aberto a todos sem descrim-
inação injusta: homens e mulheres, sãos e deficientes, naturais e imigrados (179). Por sua vez,
a sociedade deve, nas diversas circunstâncias, ajudar os cidadãos a conseguir um trabalho e
um emprego (180).
2434. O salário justo é o fruto legítimo do trabalho. Recusá-lo ou retê-lo, pode constituir
grave injustiça (181). Para calcular a remuneração equitativa, há que ter em conta, ao mesmo
tempo, as necessidades de cada um e o contributo que presta. «Tendo em conta as funções e a
produtividade de cada um, bem como a situação da empresa e o bem comum, o trabalho deve
ser remunerado de maneira a assegurar ao homem e aos seus os recursos necessários para
uma vida digna no plano material, social, cultural e espiritual» (182). O acordo das partes não
basta para justificar moralmente o montante do salário.
2435. A greve é moralmente legítima, quando se apresenta como recurso inevitável, senão
mesmo necessário, em vista dum benefício proporcionado. Mas torna-se moralmente in-
aceitável quando acompanhada de violências, ou ainda quando por feita com objectivos não
directamente ligados às condições de trabalho ou contrários ao bem comum.
2436. É injusto não pagar aos organismos de segurança social as quotas estabelecidas pelas
autoridades legítimas.
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O desemprego devido à falta de trabalho é, quase sempre, para quem dele é vítima, um at-
entado à sua dignidade e uma ameaça ao equilíbrio da vida. Para além do prejuízo pessoal-
mente sofrido, derivam dele numerosos riscos para a respectiva família (183).

V. Justiça e solidariedade entre as nações

2437. No plano internacional, a desigualdade dos recursos e meios económicos é tal que cava
entre as nações um verdadeiro «fosso» (184) Dum lado, estão os que detêm e desenvolvem os
meios do crescimento; do outro, os que acumulam dívidas.
2438. Diversas causas, de natureza religiosa, política, económica e financeira, conferem hoje
«à questão social uma dimensão mundial» (185). A solidariedade é necessária entre nações
cujas políticas já são interdependentes. E é ainda mais indispensável quando se trata de travar
«mecanismos perversos» que contrariam o desenvolvimento dos países menos avança-
dos(186). Os sistemas financeiros abusivos, quando não usurários (187), as relações comerci-
ais iníquas entre as nações, a corrida aos armamentos, têm de ser substituídos por um esforço
comum para mobilizar os recursos em ordem a objectivos de desenvolvimento moral, cultural
e económico, predefinindo as prioridades e as escalas de valores» (188).
1439. As nações ricas têm uma grave responsabilidade moral em relação aquelas que não po-
dem, por si mesmas, assegurar os meios do seu desenvolvimento ou disso foram impedidas
por trágicos acontecimentos históricos. É um dever de solidariedade e caridade; é também
uma obrigação de justiça, se o bem-estar das nações ricas provier de recursos que não foram
equitativamente pagos.
2440. A ajuda directa constitui uma resposta apropriada a necessidades imediatas, ex-
traordinárias, causadas, por exemplo, por catástrofes naturais, epidemias, etc.. Mas não basta
para reparar os graves prejuízos resultantes de situações de indigência nem para prover, de
modo durável, às necessidades. É necessário também reformar as instituições económicas e
financeiras internacionais, para que melhor promovam relações equitativas com os países
menos avançados (189). É necessário apoiar o esforço dos países pobres, trabalhando pelo seu
crescimento e pela sua libertação (190). Esta doutrina deve ser aplicada de modo muito par-
ticular no domínio do trabalho agrícola. Os camponeses, sobretudo no terceiro mundo, form-
am a massa preponderante dos pobres.
2441. Aumentar o sentido de Deus e o conhecimento de si mesmo está na base de todo o
desenvolvimento completo da sociedade humana. Este multiplica os bens materiais e põe-nos
ao serviço da pessoa e da sua liberdade. Diminui a miséria e a exploração económicas. Faz
crescer o respeito pelas identidades culturais e a abertura à transcendência (191).
2442. Não compete aos pastores da Igreja intervir directamente na construção política e na
organização da vida social. Este papel faz parte da vocação dos fiéis leigos, agindo por sua pró-
pria iniciativa juntamente com os seus concidadãos. A acção social pode implicar uma plural-
idade de caminhos concretos; mas deverá ter sempre em vista o bem comum e conformar-se a
mensagem evangélica e o ensinamento da Igreja. Compete aos fiéis leigos «animar as realid-
ades temporais com o seu compromisso cristão, comportando-se nelas como artífices da paz e
da justiça» (192).

VI. O amor dos pobres


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2443. Deus abençoa os que ajudam os pobres e reprova os que deles se afastam: «Dá a quem
te pede; não voltes as costas a quem pretende pedir-te emprestado» (Mt 5, 42). «Recebestes
gratuitamente; pois dai também gratuitamente» (Mt 10, 8). É pelo que tiverem feito pelos
pobres, que Jesus reconhecerá os seus eleitos (193). Quando «a boa-nova é anunciada aos
pobres» (Mt 11, 5) (194), é sinal de que Cristo está presente.
2444. «O amor da Igreja pelos pobres [...] faz parte da sua constante tradição» (195). Esse
amor inspira-se no Evangelho das bem-aventuranças (196), na pobreza de Jesus (197) e na
sua atenção aos pobres (198). O amor dos pobres é mesmo um dos motivos do dever de trabal-
har: para «poder fazer o bem, socorrendo os necessitados» (199). E não se estende somente à
pobreza material, mas também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa (200).
2445. O amor dos pobres é incompatível com o amor imoderado das riquezas ou com o uso
egoísta das mesmas:
«E agora, ó ricos, chorai em altos brados por causa das desgraças que virão sobre vós. As
vossas riquezas estão podres e as vossas vestes roídas pela traça. O vosso oiro e a vossa prata
enferrujaram-se e a sua ferrugem servirá de testemunho contra vós e devorará a vossa carne
como o fogo. Entesourastes, afinal, para os vossos últimos dias! Olhai que o salário que não
pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar: e os clamores dos
ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes vivido na terra entregues ao
luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos apetites para o dia da matança! Condenastes e
destes a morte ao inocente, e Deus não vai opor-se?» (Tg 5, 1-6).
2446. São João Crisóstomo lembra com vigor: «Não fazer os pobres participar dos seus
próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrol-
hamos» (201). «Satisfaçam-se, antes de mais, as exigências da justiça e não se ofereça como
dom da caridade aquilo que é devido a título de justiça» (202):
«Quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não lhes ofertamos o que é nosso: lim-
itamos a restituir-lhes o que lhes pertence. Mais do que praticar uma obra de misericórdia,
cumprimos um dever de justiça» (203).
2447. As obras de misericórdia são as acções caridosas pelas quais vamos em ajuda do nosso
próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais (204). Instruir, aconselhar, consolar,
confortar, são obras de misericórdia espirituais, como perdoar e suportar com paciência. As
obras de misericórdia corporais consistem nomeadamente em dar de comer a quem tem fome,
albergar quem não tem tecto, vestir os nus, visitar os doentes e os presos, sepultar os mortos
(205). Entre estes gestos, a esmola dada aos pobres (206) é um dos principais testemunhos da
caridade fraterna e também uma prática de justiça que agrada a Deus (207):
«Quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e quem tem mantimentos,
faça o mesmo» (Lc 3, 11). «Dai antes de esmola do que possuis, e tudo para vós ficará limpo»
(Lc 11, 41). «Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem do alimento quotidiano, e
um de vós lhe disser: "Ide em paz; tratai de vos aquecer e de matar a fome", mas não lhes der
o que é necessário para o corpo, de que lhes aproveitará?» (Tg 2, 15-16) (208).
2448. «Sob as suas múltiplas formas: indigência material, opressão injusta, doenças físicas e
psíquicas, e finalmente a morte, a miséria humana é o sinal manifesto da condição congénita
de fraqueza em que o homem se encontra desde o primeiro pecado e da necessidade que tem
de salvação. Foi por isso que ela atraiu a compaixão de Cristo Salvador, que quis tomá-la sobre
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Si e identificar-Se com os "mais pequenos de entre os seus irmãos" (Mt 25, 40-45). É por isso,
os que se sentem acabrunhados por ela são objecto de um amor preferencial por parte da
Igreja que, desde o princípio, apesar das falhas de muitos dos seus membros, nunca deixou de
trabalhar por aliviá-los, defendê-los e libertá-los; fê-lo através de inúmeras obras de bene-
ficência, que continuam indispensáveis, sempre e em toda a parte» (209).
2449. Desde o Antigo Testamento, toda a espécie de medidas jurídicas (ano de remissão, in-
terdição de empréstimos a juros e da retenção dum penhor, obrigação do dízimo, pagamento
quotidiano da jorna, direito de apanhar os restos da vindima e da ceifa) são uma resposta à
exortação do Deuteronómio: «Nunca faltarão os pobres na terra; por isso, faço-te esta re-
comendação: abre, abre a mão para o teu irmão, para o pobre e necessitado que estiver na tua
terra» (Dt 15, 1 l ). E Jesus faz sua esta palavra: «Pobres, sempre os haveis de ter convosco; a
Mim, nem sempre Me tereis» (Jo 12, 8). Com isto não faz caducar a força dos oráculos anti-
gos: «Compraremos os necessitados por dinheiro e os pobres por um par de sandálias» (Am 8,
6), mas convida-nos a reconhecer a sua presença na pessoa dos pobres que são seus irmãos
(210):
No dia em que a sua mãe a repreendeu por manter em sua casa pobres e doentes. Santa Rosa
de Lima respondeu-lhe: «Quando servimos os pobres e os doentes, é a Jesus servimos. Não
devemos cansar-nos de ajudar o nosso próximo, porque nele servimos a Jesus» (211).

Resumindo:

2450. «Não roubarás» (Dt 5, 19). «Nem ladrões, nem gananciosos [...] nem salteadores
herdarão o Reino de Deus» (1 Cor 6, 10).
2451. O sétimo mandamento prescreve a prática da Justiça e da caridade na gestão dos
bens terrenos e dos frutos do trabalho dos homens.
2452. Os bens da criação são destinados a todo o género humano. O direito à propriedade
privada não pode abolir o destino universal dos bens.
2453. O sétimo mandamento proíbe o roubo. O roubo é a usurpação de um bem de outrem
contra a vontade razoável do proprietário.
2454. Todo o processo de tomar e usar injustamente um bem alheio é contrário ao sétimo
mandamento. A injustiça cometida exige reparação. A justiça comutativa exige a restituição
do bem roubado.
2455. A lei moral proíbe os actos que, com fins mercantis ou totalitários, conduzem a es-
cravizar seres humanos, comprá-los, vendê-los e trocá-los como mercadoria.
2456. O domínio concedido pelo Criador sobre os recursos minerais, vegetais e animais do
universo, não pode ser separado do respeito pelas obrigações morais, inclusivamente para
com as gerações futuras.
2457. Os animais são confiados ao cuidado do homem, que lhes deve benevolência. Podem
servir para a justa satisfação das necessidades do homem.
2458. A Igreja pronuncia-se em matéria económica e social, sempre que os direitos funda-
mentais da pessoa ou a salvação das almas o exigem. Ela preocupa-se com o bem comum
temporal dos homens, em razão da ordenação do mesmo ao soberano Bem, nosso último
fim.
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2459. O homem é o autor; o centro e o fim de toda a vida económica e social. O ponto decis-
ivo da questão social é que os bens criados por Deus para todos, cheguem de facto a todos,
segundo a justiça e com a ajuda da caridade.
2460. O valor primordial do trabalho diz respeito ao próprio homem, que dele é autor e
destinatário. Mediante o seu trabalho, o homem participa na obra da criação. Unido a
Cristo, o trabalho pode ser redentor.
2461. O verdadeiro desenvolvimento é o do homem integral. Trata-se de fazer crescer a ca-
pacidade de cada pessoa para responder à sua vocação e, portanto, ao apelo de Deus (212).
2462. A esmola dada aos pobres é um testemunho de caridade fraterna; é também uma
prática de justiça que agrada a Deus.
2463. Na multidão de seres humanos sem pão, sem tecto, sem residência, como não recon-
hecer Lázaro, o mendigo esfomeado da parábola (213). Como não ouvir Jesus quando diz:
«Também a Mim o deixastes de fazer» (Mt 25, 45)?

ARTIGO 8

O OITAVO MANDAMENTO

«Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo» (Ex 20, 16). «Foi dito aos antigos:
"Não faltarás ao que tiveres jurado; hás-de cumprir os teus juramentos
para com o Senhor"» (Mt 5, 33).
2464. O oitavo mandamento proíbe falsificar a verdade nas relações com outrem. Esta pre-
scrição moral decorre da vocação do povo santo para ser testemunha do seu Deus, que é e que
quer a verdade. As ofensas à verdade exprimem, por palavras ou por actos, a recusa em
empenhar-se na rectidão moral: são infidelidades graves para com Deus e, nesse sentido, min-
am os alicerces da Aliança.

I. Viver na verdade

2465. O Antigo Testamento declara: Deus é a fonte de toda a verdade. A sua Palavra é ver-
dade (214). A sua lei é verdade (215). «A sua fidelidade permanece de geração em geração» (Sl
119, 90) (216). Uma vez que Deus é o «Verdadeiro» (Rm 3, 4), os membros do seu povo são
chamados a viver na verdade (217).
2466. Em Jesus Cristo, a verdade de Deus manifestou-se na sua totalidade. Cheio de graça e
de verdade (218), Ele é a «luz do mundo» (Jo 8, 12), Ele é a verdade (219). Quem nele crê não
fica nas trevas (220). O discípulo de Jesus «permanece na sua palavra» para conhecer a ver-
dade que liberta (221) e que santifica (222). Seguir Jesus é viver do Espírito de verdade (223)
que o Pai envia em seu nome (224) e que conduz «à verdade total» (Jo 14, 17; 16, 13). Aos seus
discípulos, Jesus ensina o amor incondicional à verdade: «que a vossa linguagem seja: "sim,
sim; não, não"» (Mt 5, 37).
2467. O homem tende naturalmente para a verdade. É obrigado a honrá-la e a testemunhá-
la: «Em virtude da sua dignidade, todos os homens, porque pessoas, [...] são impelidos pela
sua própria natureza e obrigados por exigência moral a procurar a verdade, em primeiro lugar
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aquela que diz respeito à religião. São obrigados também a aderir à verdade desde que a con-
heçam e a regular toda a sua vida segundo as exigências da verdade» (225).
2468. A verdade, como rectidão da acção e da palavra humana, chama-se veracidade, sin-
ceridade ou franqueza. A verdade ou veracidade é a virtude que consiste em mostrar-se ver-
dadeiro nos actos e em dizer a verdade nas palavras, evitando a duplicidade, a simulação e a
hipocrisia.
2469. «Os homens não seriam capazes de viver juntos, se não tivessem confiança uns nos
outros, isto é, se não se dissessem a verdade» (226). A virtude da veracidade dá justamente a
outrem o que lhe é devido. A veracidade observa um justo meio-termo entre o que deve ser
dito e o segredo que deve ser guardado: implica honestidade e discrição. Por justiça, «um
homem deve honestamente ao outro a manifestação da verdade» (227).
2470. O discípulo de Cristo aceita «viver na verdade», isto é, na simplicidade duma vida con-
forme ao exemplo do Senhor e permanecendo na Sua verdade. «Se dizemos que estamos em
comunhão com Ele e andamos nas trevas, mentimos, não praticamos a verdade» (1 Jo 1, 6).

II. «Dar testemunho da verdade»

2471. Diante de Pilatos, Cristo proclama que «veio ao mundo para dar testemunho da ver-
dade» (228). O cristão não deve «envergonhar-se de dar testemunho do Senhor» (2 Tm 1, 8).
Em situações que exigem a confissão da fé, o cristão deve professá-la sem equívoco, conforme
o exemplo de São Paulo diante dos seus juízes. É preciso guardar uma consciência ir-
repreensível diante de Deus e dos homens» (Act 24, 16).
2472. O dever dos cristãos, de tomar parte na vida da Igreja, leva-os a agir como testemunhas
do Evangelho e das obrigações que dele dimanam. Este testemunho é transmissão da fé por
palavras e obras. O testemunho é um acto de justiça que estabelece ou que dá a conhecer a
verdade (229): «Todos os fiéis cristãos, onde quer que vivam, têm obrigação de manifestar,
pelo exemplo da vida e pelo testemunho da palavra, o homem novo de que se revestiram pelo
Baptismo e a virtude do Espírito Santo, com que foram robustecidos na Confirmação» (230).
2473. O martírio é o supremo testemunho dado em favor da verdade da fé; designa um
testemunho que vai até à morte. O mártir dá testemunho de Cristo, morto e ressuscitado, ao
qual está unido pela caridade. Dá testemunho da verdade da fé e da doutrina cristã. Suporta a
morte com um acto de fortaleza. «Deixai-me ser pasto das feras, pelas quais poderei chegar à
posse de Deus» (231).
2474. A Igreja recolheu com o maior cuidado as memórias daqueles que foram até ao fim na
confissão da sua fé. São as Actas dos Mártires, as quais constituem os arquivos da verdade es-
critos com letras de sangue:
«De nada me serviriam os atractivos do mundo ou os reinos deste século. Prefiro morrer em
Cristo Jesus a reinar sobre todos os confins da terra. Procuro Aquele que morreu por nós;
quero Aquele que ressuscitou por nossa causa. Estou prestes a nascer...» (232).
«Eu Te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, digno de ser contado no
número dos teus mártires (...). Tu cumpriste a tua promessa, Deus da fidelidade e da verdade.
Por esta graça e por tudo, eu Te louvo e Te bendigo; eu Te glorifico pelo eterno e celeste Sumo-
Sacerdote Jesus Cristo, Teu Filho muito-amado. Por Ele, que está contigo e com o Espírito,
glória a Ti, agora e pelos séculos sem fim. Ámen» (233).
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III. As ofensas à verdade

2475. Os discípulos de Cristo «revestiram-se do homem novo, criado segundo Deus na justiça
e na santidade verdadeiras» (Ef 4, 24). «Libertos da mentira» (Ef 4, 25), devem rejeitar «toda
a malícia, falsidade, hipocrisia, invejas e toda a espécie de maledicência» (1 Pe 2, I).
2476. Falso testemunho e perjúrio. Uma afirmação contrária à verdade feita publicamente,
reveste-se de gravidade particular: perante um tribunal, é um falso testemunho (234); quando
mantida sob juramento, é um perjúrio. Estes modos de agir contribuem quer para condenar
um inocente, quer para absolver um culpado ou aumentar a pena em que tiver incorrido o
acusado (235). E comprometem gravemente o exercício da justiça e a equidade da sentença
pronunciada pelos juízes.
2477. O respeito pela reputação das pessoas proíbe toda e qualquer atitude ou palavra sus-
ceptíveis de lhes causar um dano injusto (236). Torna-se culpado:
– de juízo temerário, aquele que, mesmo tacitamente, admite como verdadeiro, sem prova su-
ficiente, um defeito moral do próximo; – de maledicência, aquele que, sem motivo objectiva-
mente válido, revela os defeitos e as faltas de outrem a pessoas que os ignoram (237);
– de calúnia, aquele que, por afirmações contrárias à verdade, prejudica a reputação dos out-
ros e dá ocasião a falsos juízos a seu respeito.
2478. Para evitar o juízo temerário, cada um procurará interpretar em sentido favorável,
tanto quanto possível, os pensamentos, as palavras e os actos do seu próximo:
«Todo o bom cristão deve estar mais pronto a interpretar favoravelmente a opinião ou afirm-
ação obscura do próximo do que a condená-la. Se de modo nenhum a pode aprovar,
interrogue-se sobre como é que ele a compreende: se ele pensa ou compreende menos
rectamente, corrija-o com benevolência; e se isso não basta, tentem-se todos os meios opor-
tunos para que, compreendendo-a bem, ele regresse do erro são e salvo» (238).
2479. A maledicência e a calúnia destroem a reputação e a honra do próximo. Ora, a honra é
o testemunho social prestado à dignidade humana e todos gozam do direito natural à honra
do seu nome, à boa reputação e ao respeito. Por isso, a maledicência e a calúnia lesam as vir-
tudes da justiça e da caridade.
2480. Deve condenar-se toda a palavra ou atitude que, por lisonja, adulação ou complacên-
cia, estimula e confirma outrem na malícia dos seus actos e na perversidade da sua conduta. A
adulação é uma falta grave, se se tornar cúmplice de vícios ou de pecados graves. Nem o
desejo de prestar um serviço nem a amizade justificam a duplicidade de linguagem. A adu-
lação é um pecado venial quando apenas se deseja ser agradável, evitar um mal, valer a uma
necessidade ou obter vantagens legítimas.
2481. A jactância ou vanglória constitui um pecado contra a verdade. O mesmo se diga da
ironia que visa depreciar alguém, caricaturando, de modo malévolo, um ou outro aspecto do
seu comportamento.
2482. «A mentira consiste em dizer o que é falso com a intenção de enganar» (239). O Sen-
hor denuncia na mentira uma obra diabólica: «Vós tendes por pai o diabo, [... ] nele não há
verdade; quando fala mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira»
(Jo 8, 44).
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2483. A mentira é a ofensa mais directa à verdade. Mentir é falar ou agir contrariamente à
verdade, para induzir em erro. Lesando a relação do homem com a verdade e com o próximo,
a mentira ofende a relação fundamental do homem e da sua palavra com o Senhor.
2484. A gravidade da mentira mede-se pela natureza da verdade que ela deforma,
atendendo às circunstâncias, às intenções de quem a comete e aos danos causados àqueles que
são suas vítimas. Embora a mentira, em si, não constitua mais que um pecado venial, torna-se
mortal quando lesa gravemente as virtudes da justiça e da caridade.
2485. A mentira é, por sua natureza, condenável. É uma profanação da palavra, a qual tem
por fim comunicar aos outros a verdade conhecida. O propósito deliberado de induzir o próx-
imo em erro, por meio de afirmações contrárias à verdade constitui uma falta contra justiça e
contra a caridade. A culpabilidade é maior quando a intenção de enganar pode ter consequên-
cias funestas para aqueles que são desviados da verdade.
2486. A mentira (porque é uma violação da virtude da veracidade) é uma autêntica violência
feita a outrem. Este é atingido na sua capacidade de conhecer, a qual é condição de todo o
juízo e de toda a decisão. A mentira contém em gérmen a divisão dos espíritos e todos os
males que a mesma suscita. É funesta para toda a sociedade: destrói pela base a confiança
entre os homens e retalha o tecido das relações sociais.
2487. Qualquer falta cometida contra a justiça e contra a verdade implica o dever da re-
paração, mesmo que o seu autor tenha sido perdoado. Quando for impossível reparar pub-
licamente um mal, deve-se fazê-lo em segredo; se aquele que foi lesado não pode ser indem-
nizado directamente, deve dar-se-lhe uma satisfação moral, em nome da caridade. Este dever
de reparação diz respeito também às faltas cometidas contra a reputação alheia. A reparação,
moral e às vezes material, deve ser avaliada segundo a medida do prejuízo causado e obriga
em consciência.

IV. O respeito pela verdade

2488. O direito à comunicação da verdade não é absoluto. Cada um deve conformar a sua
vida com o preceito evangélico do amor fraterno, mas este requer, em situações concretas, que
avaliemos se convém ou não revelar a verdade a quem a pede.
2489. É a caridade e o respeito pela verdade que devem ditar a resposta a qualquer pedido de
informação ou de comunicação. O bem e a segurança de outrem, o respeito pela vida privada
e pelo bem comum, são razões suficientes para calar o que não deve ser conhecido ou para
usar uma linguagem discreta. Muitas vezes, o dever de evitar o escândalo impõe uma estrita
discrição. Ninguém é obrigado a revelar a verdade a quem não tem o direito de a conhecer
(240).
2490. O sigilo do sacramento da Reconciliação é sagrado e não pode ser revelado sob pre-
texto algum. «O sigilo sacramental é inviolável; pelo que o confessor não pode denunciar o
penitente, nem por palavras nem por qualquer outro modo, nem por causa alguma»(241).
2491. Os segredos profissionais – conhecidos, por exemplo, por políticos, militares, médicos,
juristas – ou as confidências feitas sob sigilo, devem ser guardados, salvo em casos excepcion-
ais em que a retenção do segredo poderia causar a quem o confiou, a quem o recebeu, ou a ter-
ceiros, danos muito graves e somente evitáveis pela revelação da verdade. Mesmo que não
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tenham sido confiadas sob sigilo, as informações particulares prejudiciais a outrem não de-
vem ser divulgadas sem uma razão grave e proporcionada.
2492. Cada qual deve observar uma justa reserva a propósito da vida privada das pessoas. Os
responsáveis pela comunicação devem guardar uma justa proporção entre as exigências do
bem comum e o respeito pelos direitos particulares. A ingerência dos órgãos de informação na
vida privada das pessoas comprometidas numa actividade política ou pública é condenável na
medida em que atenta contra a sua intimidade e a sua liberdade.

V. O uso dos meios de comunicação social

2493. Na sociedade moderna, os meios de comunicação social desempenham um papel de


grande relevo na informação, na promoção cultural e na formação. Este papel é cada vez
maior, em virtude dos progressos técnicos, do alcance e diversidade das notícias transmitidas
e da influência exercida sobre a opinião pública.
2494. A informação mediática está ao serviço do bem comum (242). A sociedade tem direito
a uma informação fundada na verdade, na liberdade, na justiça e na solidariedade.
«O uso recto deste direito requer que a comunicação seja, quanto ao objecto, sempre verídica,
e quanto ao respeito pelas exigências da justiça e da caridade, completa; quanto ao modo, que
seja honesta e conveniente, quer dizer, que na obtenção e difusão das notícias, observe abso-
lutamente as leis morais, os direitos e a dignidade do homem» (243).
2495 «Também neste domínio é necessário que todos os membros da sociedade cumpram os
seus deveres de justiça e de verdade. Devem utilizar os meios de comunicação social no sen-
tido de concorrer para a formação e difusão de um recta opinião pública» (244).
A solidariedade é consequência duma comunicação verdadeira e justa e da livre circulação das
ideias que favorecem o conhecimento e o respeito pelos outros.
2496. Os meios de comunicação social (em particular os mass-média) podem gerar uma certa
passividade nos utentes, fazendo deles consumidores pouco cautelosos de mensagens e es-
pectáculos. Os utentes devem impor a si próprios moderação e disciplina em relação aos
mass-média. Hão-de formar-se uma consciência esclarecida e recta, para resistir mais facil-
mente às influências menos honestas.
2497. Pela própria natureza da sua profissão na imprensa, os seus responsáveis têm a
obrigação, na difusão da informação, de servir a verdade sem ofender a caridade. Esforçar-se-
ão por respeitar, com igual cuidado, a natureza dos factos e os limites do juízo crítico em re-
lação às pessoas. Devem evitar ceder à difamação.
2498. «Cabem às autoridades civis deveres particulares em razão do bem comum. [...] Os
poderes públicos devem defender e proteger a verdadeira e justa liberdade de informação»
(245). Promulgando leis e velando pela sua aplicação, os poderes públicos «responsabilizar-
se-ão por que o mau uso dos média não venha a causar graves prejuízos aos costumes públicos
e aos progressos da sociedade» (246). Sancionarão a violação dos direitos de cada um ao bom
nome e à privacidade; prestarão a tempo e honestamente as informações que dizem respeito
ao bem geral ou correspondem a justas preocupações da população. Nada pode justificar o re-
curso às falsas informações para manipular a opinião pública através dos média. Essas inter-
venções não deverão atentar contra a liberdade dos indivíduos e dos grupos.
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2499. A moral denuncia a chaga dos estados totalitários, que falsificam sistematicamente a
verdade, exercem através dos «média» o domínio político da opinião, «manipulam» os acusa-
dos e as testemunhas dos processos públicos e pensam assegurar a sua tirania sufocando e
reprimindo tudo o que consideram como «delitos de opinião».

VI. Verdade, beleza e arte sacra

2500. A prática do bem é acompanhada por um prazer espiritual gratuito e pela beleza moral.
Do mesmo modo, a verdade comporta a alegria e o esplendor da beleza espiritual. A verdade é
bela por si mesma. A verdade da palavra, expressão racional do conhecimento da realidade
criada e incriada, é necessária ao homem dotado de inteligência; mas a verdade pode encon-
trar também outras formas de expressão humana, complementares, sobretudo quando se
trata de evocar o que ela comporta de indizível: as profundezas do coração humano, as elev-
ações da alma, o mistério de Deus. Antes mesmo de Se revelar ao homem em palavras de ver-
dade, Deus revela-Se-lhe pela linguagem universal da criação, obra da sua Palavra e da sua
Sabedoria: a ordem e a harmonia do cosmos – que podem ser descobertas tanto pela criança
como pelo homem de ciência – , «a grandeza e a beleza das criaturas levam, por analogia, à
contemplação do seu Autor» (Sb 13, 5), «porque foi a própria fonte da beleza que as criou»
(Sb 13, 3).
«Com efeito, a Sabedoria é um sopro do poder de Deus, efusão pura da glória do Omnipo-
tente; por isso, nenhum elemento impuro a pode atingir. Ela é o esplendor da luz eterna, límp-
ido espelho da actividade de Deus, imagem da sua bondade» (Sb 7, 25-26). «A Sabedoria é, de
facto, mais formosa do que o sol e supera todas as constelações. Comparada com a luz, revela-
se mais excelente, porque à luz sucede a noite, mas a maldade nada pode contra a Sabedoria
(Sb 7, 29-30). Amei-a [...] e enamorei-me dos seus encantos» (Sb 8, 2)
2501. «Criado à imagem de Deus» (247), o homem exprime também a verdade da sua relação
com Deus Criador pela beleza das suas obras artísticas. A arte é, com efeito, uma forma de ex-
pressão especificamente humana. Para além da busca da satisfação das necessidades vitais,
comum a todas as criaturas vivas, a arte é uma superabundância gratuita da riqueza interior
do ser humano. Fruto do talento dado pelo Criador e do esforço do próprio homem, a arte é
uma forma de sabedoria prática, unindo conhecimento e habilidade (248) para dar forma à
verdade duma realidade, em linguagem acessível à vista ou ao ouvido. A arte comporta assim
uma certa semelhança com a actividade de Deus no mundo criado, na medida em que se in-
spira na verdade e no amor dos seres. Como qualquer outra actividade humana, a arte não
tem em si mesma o seu fim absoluto; mas é ordenada e enobrecida pelo fim último do homem
(249).
2502. A arte sacra é verdadeira e bela quando corresponde, pela forma, à sua vocação pró-
pria: evocar e glorificar, na fé e na adoração, o mistério transcendente de Deus, sobre emin-
ente beleza invisível da verdade e do amor, manifestada em Cristo, «esplendor da sua glória e
imagem da sua substância» (Heb 1, 3), no Qual «habita corporalmente toda a plenitude da
divindade» (Cl 2, 9); beleza espiritual reflectida na santíssima Virgem Mãe de Deus, nos anjos
e nos santos. A verdadeira arte sacra leva o homem à adoração, à oração e ao amor de Deus,
Criador e Salvador, Santo e Santificador.
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2503. Por isso, os bispos devem, por si próprios ou por delegados, velar pela promoção da
arte sacra, antiga e nova, sob todas as suas formas e, com o mesmo religioso cuidado, afastar
da liturgia e dos lugares de culto tudo o que não for conforme com a verdade da fé e a
autêntica beleza da arte sacra (250).

Resumindo:

2504. «Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo» (Ex 20, 16). Os discípulos de
Cristo revestiram-se «do homem novo, que foi criado em conformidade com Deus, na justiça
e na santidade, próprias da verdade» (Ef 4, 24).
2505. A verdade ou veracidade é a virtude que consiste em mostrar-se verdadeiro nos actos
e em dizer a verdade nas palavras, evitando a duplicidade, a simulação e a hipocrisia.
2506. O cristão não deve «envergonhar-se de dar testemunho do Senhor» (2 Tm 1, 8) em
actos e palavras. O martírio é o supremo testemunho dado em favor da verdade da fé.
2507. O respeito pelo bom nome e pela honra das pessoas proíbe toda e qualquer atitude ou
palavra de maledicência ou calúnia.
2508. A mentira consiste em dizer o que é falso, com a intenção de enganar o próximo.
2509. Uma falta cometida contra a verdade exige reparação.
2510. Em situações concretas, a regra de ouro ajuda a discernir se convém ou não revelar a
verdade a quem a pede.
2511. «O sigilo sacramental é inviolável» (251). Os segredos profissionais devem ser
guardados. As confidências prejudiciais a outrem não devem ser divulgadas.
2512. A sociedade tem direito a uma informação fundada na verdade, na liberdade e na
justiça. É preciso impor-se moderação e disciplina no uso dos meios de comunicação social.
2513. As belas-artes, mas sobretudo a arte sacra, «estão relacionadas, por sua natureza,
com a infinita beleza de Deus, que deve ser expressa de algum modo nas obras humanas. E
tanto mais se consagram a Deus e contribuem para o seu louvor e para a sua glória, quanto
mais se afastarem de todo o propósito que não seja o de contribuir o mais eficazmente pos-
sível, através das suas obras, para dirigir o espírito dos homens, piamente, para Deus»
(252).

ARTIGO 9

O NONO MANDAMENTO

«Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a mulher do próximo, nem o seu servo,
nem a sua serva, nem o seu boi, ou o seu jumento, nem nada que lhe pertença» (Ex 20, 17).
«Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu
coração» (Mt 5, 28).
2514. São João distingue três espécies de cupidez ou concupiscência: a concupiscência da
carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida (253). Segundo a tradição catequética
católica, o nono mandamento proíbe a concupiscência carnal; e o décimo, a cobiça dos bens
alheios.
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2515. Em sentido etimológico, «concupiscência» pode designar todas as formas veementes de


desejo humano. A teologia cristã deu-lhe o sentido particular de impulso do apetite sensível,
contrário aos ditames da razão humana. O apóstolo São Paulo identifica-a com a revolta que a
«carne» instiga contra o «espírito» (254). Procede da desobediência do primeiro pecado
(255). Desregra as faculdades morais do homem e, sem ser nenhuma falta em si mesma, in-
clina o homem para cometer pecado (256).
2516. No homem, porque é um ser integrado de espírito e corpo, já existe uma certa tensão.
Trava-se nele uma certa luta de tendências entre o «espírito» e a «carne». Mas esta luta, de
facto, faz parte da herança do pecado, é uma consequência dele e, ao mesmo tempo, uma sua
confirmação. Faz parte da experiência quotidiana do combate espiritual:
«Para o Apóstolo, não se trata de desprezar e condenar o corpo que, com a alma espiritual,
constitui a natureza do homem e a sua personalidade de sujeito; pelo contrário, ele fala das
obras, ou antes, das disposições estáveis, virtudes e vícios, moralmente boas ou más, que são
o fruto da submissão (no primeiro caso) ou, pelo contrário, da resistência (no segundo caso) à
acção salvadora do Espírito Santo. É por isso que o Apóstolo escreve: "Se vivemos pelo
Espírito, caminhemos também segundo o espírito" (Gl 5, 25)» (257).

I. A purificação do coração

2517. O coração é a sede da personalidade moral: «Do coração procedem as más intenções, os
assassínios, os adultérios, as prostituições» (Mt 15, 19). A luta contra a concupiscência carnal
passa pela purificação do coração e pela prática da temperança:
«Mantém-te na simplicidade, na inocência, e serás como as criancinhas que ignoram o mal,
destruidor da vida dos homens» (258).
2518. A sexta bem-aventurança proclama: «Bem-aventurados os puros de coração, porque
verão a Deus» (Mt 5, 8). Os «puros de coração» são os que puseram a inteligência e a vontade
de acordo com as exigências da santidade de Deus, principalmente em três domínios: a carid-
ade (259); a castidade ou rectidão sexual (260); o amor da verdade e a ortodoxia da fé (261),
Existe um nexo entre a pureza do coração, do corpo e da fé:
Os fiéis devem crer nos artigos do Credo, «para que, crendo, obedeçam a Deus; obedecendo a
Deus, vivam como deve ser; vivendo como deve ser, purifiquem o seu coração; e purificando o
seu coração, compreendam aquilo em que crêem» (262).
2519. Aos «puros de coração» é prometido que verão a Deus face a face e serão semelhantes a
Ele (263). A pureza do coração é condição prévia para a visão. Já desde agora, permite-nos ver
segundo Deus, aceitar o outro como um «próximo» e compreender o corpo humano, o nosso e
o do próximo, como um templo do Espírito Santo, uma manifestação da beleza divina.

II. O combate pela pureza

2520. O Baptismo confere a quem o recebe a graça da purificação de todos os pecados. Mas o
baptizado tem de continuar a lutar contra a concupiscência da carne e os desejos desordena-
dos. Com a graça de Deus, consegui-lo-ei:
– pela virtude e pelo dom da castidade, pois a castidade permite amar com um coração recto
e sem partilha; – pela pureza de intenção, que consiste em ter em vista o verdadeiro fim do
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homem: com um olhar simples, o baptizado procura descobrir e cumprir em tudo a vontade
de Deus (264);
– pela pureza do olhar, exterior e interior; pela disciplina dos sentidos e da imaginação; pela
rejeição da complacência em pensamentos impuros que o levariam a desviar-se do caminho
dos mandamentos divinos: «a vista excita a paixão dos insensatos» (Sb 15, 5). – pela oração:
«Eu pensava que a continência dependia das minhas próprias forças, forças que em mim não
conhecia. E era suficientemente louco para não saber [...] que ninguém pode ser continente, se
Tu lho não concederes. E de certo Tu o terias concedido, se com gemido interior eu chamasse
aos teus ouvidos e se com fé sólida lançasse em Ti o meu cuidado» (265).
2521. A pureza exige o pudor. O pudor é parte integrante da temperança. O pudor preserva a
intimidade da pessoa. Designa a recusa de mostrar o que deve ficar oculto. Ordena-se à castid-
ade e comprova-lhe a delicadeza. Orienta os olhares e as atitudes em conformidade com a dig-
nidade das pessoas e com a união que existe entre elas.
2522. O pudor protege o mistério da pessoa e do seu amor. Convida à paciência e à moder-
ação na relação amorosa e exige que se cumpram as condições do dom e do compromisso
definitivo do homem e da mulher entre si. O pudor é modéstia. Inspira a escolha do vestuário,
mantém o silêncio ou o recato onde se adivinha o perigo duma curiosidade malsã. O pudor é
discrição.
2523. Existe um pudor dos sentimentos, tal como existe um pudor corporal. Ele protesta, por
exemplo, contra as explorações exibicionistas do corpo humano em certa publicidade, ou con-
tra a solicitação de certos meios de comunicação em ir longe demais na revelação de confidên-
cias íntimas. O pudor inspira um modo de viver que permite resistir às solicitações da moda e
à pressão das ideologias dominantes.
2524. As formas de que o pudor se reveste variam de cultura para cultura. No entanto, ele
continua a ser, em toda a parte, o pressentimento duma dignidade espiritual própria do
homem. Nasce com o despertar da consciência pessoal. Ensinar o pudor às crianças e adoles-
centes é despertá-los para o respeito pela pessoa humana.
2525. A pureza cristã exige uma purificação do ambiente social. Exige dos meios de comu-
nicação social uma informação preocupada com o respeito e o recato. A pureza de coração
liberta do erotismo difuso e afasta dos espectáculos que favorecem a curiosidade mórbida e a
ilusão.
2526. A chamada permissividade dos costumes assenta numa concepção errónea da liber-
dade humana; para se edificar, esta precisa de se deixar educar previamente pela lei moral.
Deve pedir-se aos responsáveis pela educação que ministrem à juventude um ensino respeita-
dor da verdade, das qualidades do coração e da dignidade moral e espiritual do homem.
2527. «A boa-nova de Cristo renova constantemente a vida e a cultura do homem decaído;
combate e repele os erros e os males provenientes da sedução sempre ameaçadora do pecado.
Purifica e eleva sem cessar a moralidade dos povos. Com as riquezas do alto, fecunda, consol-
ida, completa e restaura em Cristo, como que a partir de dentro, as qualidades espirituais e os
dotes de todos os povos e eras» (266)

Resumindo:
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2528. «Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela
no seu coração» (Mt 5, 28).
2529. O nono mandamento acautela-nos contra a cupidez ou concupiscência carnal.
2530. A luta contra a concupiscência carnal passa pela purificação do coração e pela prát-
ica da temperança.
2531. A pureza de coração permitir-nos-á ver a Deus: desde já, permite-nos ver tudo se-
gundo Deus.
2532. A purificação do coração exige a oração, a prática da castidade, a pureza de intenção
e do olhar.
2533. A pureza do coração requer o pudor que é paciência, modéstia e discrição. O pudor
preserva a intimidade da pessoa.

ARTIGO 10

O DÉCIMO MANDAMENTO

«Não cobiçarás [...] nada que pertença [ao teu próximo]» (Ex 20, 17). «Não cobiçarás a casa
[do teu próximo], nem o seu campo, nem o seu servo nem a sua serva, o seu boi, ou o seu ju-
mento, nem nada que lhe pertença» (Dt 5, 21).
«Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração» (Mt 6, 21).
2534. O décimo mandamento desdobra e completa o nono, que tem por objecto a concupis-
cência da carne. Proíbe cobiçar o bem de outrem, raiz de onde procede o roubo, a rapina e a
fraude, proibidos pelo sétimo mandamento. A «concupiscência dos olhos» (1 Jo 2, 16) conduz
à dolência e à injustiça, proibidas pelo quinto mandamento (267). A cobiça, bem como a for-
nicação, tem a sua origem na idolatria, proibida nos três primeiros mandamentos da Lei
(268). O décimo mandamento incide sobre a intenção do coração e resume, com o nono, todos
os preceitos da Lei.

I. A desordem das cobiças

2535. O apetite sensível leva-nos a desejar as coisas agradáveis que não possuímos. Exemplo
disso é desejar comer quando se tem fome ou aquecer-se quando se tem frio. Estes desejos são
bons em si mesmos; muitas vezes, porém, não respeitam os limites da razão e levam-nos a
cobiçar injustamente o que não é nosso e que pertence, ou é devido, a outrem.
2536. O décimo mandamento condena a avidez e o desejo duma apropriação desmesurada
dos bens terrenos; e proíbe a cupidez desregrada, nascida da paixão imoderada das riquezas e
do seu poder. Interdita também o desejo de cometer uma injustiça pela qual se prejudicaria o
próximo nos seus bens temporais:
«Quando a Lei nos diz: "Não cobiçarás", diz-nos, por outras palavras, que afastemos os nossos
desejos de tudo o que não nos pertence. Porque a sede da cobiça dos bens alheios é imensa,
infindável e insaciável, conforme está escrito: "O avarento nunca se fartará de dinheiro" (Sir 5,
9)» (269).
2537. Não é violar este mandamento desejar obter coisas que pertencem ao próximo, desde
que seja por meios legítimos. A catequese tradicional menciona, com realismo, «os que têm
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que lutar mais contra as suas cobiças criminosas» e que, portanto, precisam de ser «exortados
com mais insistência a observarem este preceito»:
«São [.. .] os comerciantes que desejam a falta ou carestia das coisas, que vêem com pena não
serem eles os únicos a comprar e a vender, o que lhes permitiria vender mais caro e comprar
mais barato; os que desejam ver o seu semelhante na miséria, para obterem maiores lucros,
quer vendendo quer comprando [...]. Os médicos, que desejam que haja doentes; os ad-
vogados, que reclamam causas e processos importantes e numerosos...» (270).
2538. O décimo mandamento exige que seja banida a inveja do coração humano. Quando o
profeta Natan quis estimular o arrependimento do rei David, contou-lhe a história do pobre
que só possuía uma ovelha, tratada como se fosse uma filha, e do rico que, apesar dos seus nu-
merosos rebanhos, tinha inveja dele e acabou por lhe roubar a ovelha (271). A inveja pode
levar aos piores crimes (272). «Foi pela inveja do demónio que a morte entrou no mundo» (Sb
2, 24).
«Combatemo-nos uns aos outros e é a inveja que nos arma uns contra os outros [...]. Se todos
se encarniçam assim a abalar o corpo de Cristo, onde chegaremos nós? Estamos a aniquilar o
corpo de Cristo. [...] Declaramo-nos membros dum mesmo organismo e devoramo-nos como
feras» (273).
2539. A inveja é um vício capital. Designa a tristeza que se sente perante o bem alheio e o
desejo imoderado de se apropriar dele, mesmo indevidamente. Se desejar ao próximo um mal
grave, é pecado mortal:
Santo Agostinho via na inveja «o pecado diabólico por excelência» (274). «Da inveja nascem o
ódio, a maledicência, a calúnia, a alegria causada pelo mal do próximo e o desgosto causado
pela sua prosperidade» (275).
2540. A inveja representa uma das formas da tristeza e, portanto, uma recusa da caridade; o
baptizado lutará contra ela, opondo-lhe a benevolência. Muitas vezes, a inveja nasce do or-
gulho; o baptizado exercitar-se-á a viver na humildade:
«Quereríeis ver Deus glorificado por vós? Pois bem, alegrai-vos com os progressos do vosso
irmão e, assim, será por vós que Deus é glorificado. Deus será louvado, dir-se-á, pelo facto de
o seu servo ter sabido vencer a inveja, pondo a sua alegria nos méritos dos outros» (276).

II. Os desejos do Espírito

2541. A economia da lei e da graça desvia o coração dos homens da cobiça e da inveja; inicia-
o no desejo do sumo bem; e instrui-o nos desejos do Espírito Santo que sacia o coração do
homem.
O Deus das promessas desde sempre pôs o homem de prevenção contra a sedução daquilo
que, desde as origens, aparece como «bom para comer, [...] de atraente aspecto e precioso
para esclarecer a inteligência» (Gn 3, 6).
2542. A Lei, confiada a Israel, nunca foi suficiente para justificar aqueles que lhe estavam
sujeitos; chegou até a tornar-se instrumento de «concupiscência» (277). A inadequação entre
o querer e o fazer (278) manifesta o conflito entre a Lei de Deus, que é a «lei da razão», e uma
outra lei «que me retém cativo na lei do pecado, que se encontra nos meus membros» (Rm 7,
23).
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2543. «Agora, foi sem a Lei que se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e
pelos Profetas: a justiça que vem para todos os crentes, mediante a fé em Jesus Cristo» (Rm 3,
21-22). E assim, os fiéis de Cristo «crucificaram a carne com as suas paixões e desejos» (Gl 5,
24); são conduzidos pelo Espírito (279) e seguem os desejos do Espírito (280).

III. A pobreza de coração

2544. Jesus impõe aos seus discípulos que O prefiram a tudo e a todos e propõe-lhes que re-
nunciem a todos os seus bens (281) por causa d'Ele e do Evangelho (282). Pouco antes da sua
paixão, deu-lhes o exemplo da pobre viúva de Jerusalém que, da sua penúria, deu tudo o que
tinha para viver (283). O preceito do desapego das riquezas é obrigatório para entrar no Reino
dos céus.
2545. Todos os fiéis de Cristo devem «ordenar rectamente os próprios afectos, para não ser-
em impedidos de avançar na perfeição da caridade pelo uso das coisas terrenas e pelo apego às
riquezas, em oposição ao espírito de pobreza evangélica» (284).
2546. «Bem-aventurados os pobres em espírito» (Mt 5, 3). As bem-aventuranças revelam
uma ordem de felicidade e de graça, de beleza e de paz. Jesus celebra a alegria dos pobres, aos
quais o Reino pertence desde já (285):
«O Verbo chama "pobreza em espírito" à humildade voluntária do espírito humano e à sua
renúncia; e o Apóstolo dá-nos como exemplo a pobreza de Deus, quando diz: «Ele fez-Se
pobre por nós (2 Cor 8, 9)» (286).
2547. O Senhor lamenta-Se dos ricos, porque eles encontram a sua consolação na abundância
de bens (287). «O orgulhoso procura o poder terreno, ao passo que o pobre em espírito pro-
cura o Reino dos céus» (288). O abandono à providência do Pai do céu liberta da preocupação
pelo amanhã. A confiança em Deus dispõe para a bem-aventurança dos pobres (289). Eles
verão a Deus.

IV. «Quero ver a Deus»

2548. O desejo da verdadeira felicidade liberta o homem do apego imoderado aos bens deste
mundo, e terá a sua plenitude na visão beatífica de Deus. «A promessa de ver a Deus ultra-
passa toda a bem-aventurança. [...] Na Escritura, ver é possuir. [...] Por isso aquele que vê a
Deus obteve todos os bens que se possam imaginar» (290).
2549. Resta ao povo santo lutar, com a graça do Alto, para alcançar os bens que Deus pro-
mete. Para possuir e contemplar a Deus, os fiéis de Cristo mortificam os seus maus desejos e,
com a graça do mesmo Deus, triunfam das seduções do prazer e do poder.
2550. Neste caminho da perfeição, o Espírito e a Esposa chamam quem os escuta (291) à
comunhão perfeita com Deus:
«Ali será a verdadeira glória; ninguém ali será louvado por engano ou por lisonja; as ver-
dadeiras honras não serão nem recusadas aos que as merecem, nem dadas aos indignos delas;
aliás, não haverá ali indigno que as pretenda, pois só os dignos lá serão admitidos. Ali reinará
a verdadeira paz; ninguém terá oposição, nem de si mesmo nem dos outros. O próprio Deus
será a recompensa da virtude, Ele que a deu e Se lhe prometeu como recompensa, a maior e
melhor que possa existir: [...] "Eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo" (Lv 26, 12) [...] É
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também este o sentido das palavras do Apóstolo: "Para que Deus seja tudo em todos" (I Cor
15, 28). Ele mesmo será o fim dos nossos desejos, Ele que nós havemos de contemplar sem
fim, de amar sem saciedade, de louvar sem cansaço. É este dom, este afecto, esta ocupação
serão, sem dúvida, comuns a todos como a vida eterna» (292).

Resumindo:

2551. «Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração» (Mt 6, 21).
2552. O décimo mandamento proíbe a cupidez desregrada, nascida da paixão imoderada
das riquezas e seu poder.
2553 Inveja é a tristeza que se experimenta perante o bem alheio e o desejo imoderado de se
apropriar dele. É um vício capital.
2554 O baptizado combate a inveja pela benevolência, pela humildade e pelo abandono à
providência divina.
2555. Os fiéis de Cristo «crucificaram a carne com as suas paixões e desejos» (Gl 5, 24); são
conduzidos pelo Espírito e seguem os seus desejos.
2556. O desapego das riquezas é necessário para entrar no Reino dos céus. «Bem- aven-
turados os pobres em espírito» (Mt 5, 3).
2557. O homem de desejo diz: «Quero ver a Deus», sede de Deus é saciada pela água da
vida eterna (293).
QUARTA PARTE - A ORAÇÃO CRISTÃ
PRIMEIRA SECÇÃO

A ORAÇÃO NA VIDA CRISTÃ

2558. «Mistério admirável da nossa fé!». A Igreja professa-o no Símbolo dos Apóstolos
(primeira parte) e celebra-o na liturgia sacramental (segunda parte), para que a vida dos fiéis
seja configurada com Cristo no Espírito Santo para glória de Deus Pai (terceira parte). Este
mistério exige, portanto, que os fiéis nele creiam, o celebrem e dele vivam, numa relação viva
e pessoal com o Deus vivo e verdadeiro. Esta relação é a oração.

O QUE É A ORAÇÃO?

«Para mim, a oração é um impulso do coração, é um simples olhar lançado para o céu, é um
grito de gratidão e de amor, tanto no meio da tribulação como no meio da alegria» (1).

A ORAÇÃO COMO DOM DE DEUS

2559. «A oração é a elevação da alma para Deus ou o pedido feito a Deus de bens conveni-
entes» (2). De onde é que falamos, ao orar? Das alturas do nosso orgulho e da nossa vontade
própria, ou das «profundezas» (Sl 130, 1) dum coração humilde e contrito? Aquele que se hu-
milha é que é elevado (3). A humildade é o fundamento da oração. «Não sabemos o que have-
mos de pedir para rezarmos como deve ser» (Rm 8, 26). A humildade é a disposição ne-
cessária para receber gratuitamente o dom da oração: o homem é um mendigo de Deus (4).
2560. «Se conhecesses o dom de Deus!» (Jo 4, 10). A maravilha da oração revela-se precis-
amente, à beira dos poços aonde vamos buscar a nossa água: aí é que Cristo vem ao encontro
de todo o ser humano; Ele antecipa-Se a procurar-nos e é Ele que nos pede de beber. Jesus
tem sede, e o seu pedido brota das profundezas de Deus que nos deseja. A oração, saibamo-lo
ou não, é o encontro da sede de Deus com a nossa. Deus tem sede de que nós tenhamos sede
d'Ele (5).
2561. «Tu é que Lhe terias pedido e Ele te daria água viva» (Jo 4, 10). Paradoxalmente, a
nossa oração de súplica é uma resposta. Resposta ao lamento do Deus vivo: «Abandonou-Me
a Mim, nascente de águas vivas, e foi escavar cisternas fendidas» (Jr 2, 13); resposta de fé à
promessa gratuita da salvação (6); resposta de amor à sede do Filho Único (7).

A ORAÇÃO COMO ALIANÇA

2562. De onde procede a oração do homem? Seja qual for a linguagem da oração (gestos e pa-
lavras), é o homem todo que ora. Mas para designar o lugar de onde brota a oração, as Escrit-
uras falam às vezes da alma ou do espírito ou, com mais frequência, do coração (mais de mil
vezes). É o coração que ora. Se ele estiver longe de Deus, a expressão da oração será vã.
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2563. O coração é a morada onde estou, onde habito (e segundo a expressão semítica ou
bíblica, aonde eu «desço»). É o nosso centro oculto, inapreensível, quer para a nossa razão
quer para a dos outros: só o Espírito de Deus é que o pode sondar e conhecer. E o lugar da de-
cisão, no mais profundo das nossas tendências psíquicas. É a sede da verdade, onde escol-
hemos a vida ou a morte. É o lugar do encontro, já que, à imagem de Deus, vivemos em re-
lação: é o lugar da aliança.
2564. A oração cristã é uma relação de aliança entre Deus e o homem em Cristo. É acção de
Deus e do homem; jorra do Espírito Santo e de nós, toda orientada para o Pai, em união com a
vontade humana do Filho de Deus feito homem.

A ORAÇÃO COMO COMUNHÃO

2565. Na Nova Aliança, a oração é a relação viva dos filhos de Deus com o seu Pai infinita-
mente bom, com o seu Filho Jesus Cristo e com o Espírito Santo. A graça do Reino é «a união
de toda a Santíssima Trindade com a totalidade do espírito» (8). Assim, a vida de oração con-
siste em estar habitualmente na presença do Deus três vezes santo e em comunhão com Ele.
Esta comunhão de vida é sempre possível porque, pelo Baptismo, nos tornámos um só com
Cristo (9). A oração é cristã na medida em que for comunhão com Cristo, dilatando-se na
Igreja que é o seu corpo. As suas dimensões são as do amor de Cristo (10).

CAPÍTULO PRIMEIRO
A REVELAÇÃO DA ORAÇÃO

O apelo universal à oração

2566. O homem anda à procura de Deus. Pela criação, Deus chama todos os seres do nada à
existência. Coroado de glória e esplendor (1), o homem, depois dos anjos, é capaz de recon-
hecer «que o nome do Senhor é grande em toda a terra» (2). Mesmo depois de, pelo pecado,
ter perdido a semelhança com Deus, o homem continua a ser à imagem do seu Criador. Con-
serva o desejo d'Aquele que o chama à existência. Todas as religiões testemunham esta busca
essencial do homem (3).
2567. Mas é Deus que primeiro chama o homem. Muito embora o homem se esqueça do seu
Criador ou se esconda da sua face, corra atrás dos ídolos ou acuse a divindade de o ter aban-
donado, o Deus vivo e verdadeiro chama incansavelmente cada pessoa ao misterioso encontro
da oração. Na oração, é sempre o amor do Deus fiel a dar o primeiro passo; o passo do homem
é sempre uma resposta. A medida que Deus Se revela e revela o homem a si mesmo, a oração
surge como um apelo recíproco, um drama de aliança. Através das palavras e dos actos, este
drama compromete o coração e manifesta-se ao longo de toda a história da salvação.

ARTIGO 1

NO ANTIGO TESTAMENTO
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2568. A revelação da oração no Antigo Testamento inscreve-se entre a queda e o levantar-se


do homem, entre o doloroso chamamento de Deus pelos seus primeiros filhos: «Onde estás?
[...] Porque fizeste isso?» (Gn 3, 9,13), e a resposta do Filho único, ao entrar neste mundo:
«Eis que venho, [...] ó Deus, para fazer a tua vontade» (Heb 10, 7) (4). A oração está assim lig-
ada à história dos homens; é a relação com Deus nos acontecimentos da história.

A CRIAÇÃO – FONTE DA ORAÇÃO

2569. Antes de mais, é a partir das realidades da criação que a oração se vive. Os nove
primeiros capítulos do Génesis descrevem esta relação com Deus como oferta das primeiras
crias do rebanho por Abel (5), como invocação do nome divino por Henoc (6), como «camin-
hada com Deus» (7). A oferenda de Noé é «agradável» a Deus que o abençoa e, através dele,
abençoa toda a criação (8) porque o seu coração é justo e íntegro. Também ele «anda com
Deus» (Gn 6, 9). Esta qualidade da oração é vivida por uma multidão de justos em todas as
religiões.
Na sua aliança indefectível com os seres vivos (9), Deus está sempre a chamar os homens para
lhe rezarem. Mas é sobretudo a partir do nosso pai Abraão que a oração se revela no Antigo
Testamento.

A PROMESSA E A ORAÇÃO DA FÉ

2570. Quando Deus o chama, Abraão parte «como o Senhor lhe tinha mandado» (Gn 12, 4).
O seu coração está completamente «submetido à Palavra»: ele obedece. A escuta do coração
que se decide em conformidade com Deus é essencial à oração; as palavras têm um valor relat-
ivo. Mas a oração de Abraão exprime-se, antes de mais, em actos: homem de silêncio, con-
strói, em cada etapa, um altar ao Senhor. Só mais tarde é que aparece a sua primeira oração
por palavras: uma queixa velada que lembra a Deus as suas promessas que não parecem
cumprir- se (10). Assim nos aparece, desde o princípio, um dos aspectos do drama da oração:
a prova da fé na fidelidade de Deus.
2571. Tendo acreditado em Deus (11) caminhando na sua presença e em aliança com Ele (12),
o patriarca está pronto para acolher na sua tenda o Hóspede misterioso: é a admirável hospit-
alidade de Mambré, prelúdio da Anunciação do verdadeiro Filho da promessa (13). Desde
então, tendo-lhe Deus confiado o seu desígnio, o coração de Abraão fica em sintonia com a
compaixão do seu Senhor pelos homens e ousa interceder por eles com uma confiança auda-
ciosa (14).
2572. Como última purificação da sua fé, é pedido ao «depositário das promessas» (Heb 11,
17) que sacrifique o filho que Deus lhe deu. A sua fé não vacila: «Deus proverá quanto ao
cordeiro para o holocausto» (Gn 22, 8), «porque Deus, pensava ele, é capaz até de ressuscitar
os mortos» (Heb 11, 19). E assim, o pai dos crentes conformou-se com a semelhança do Pai
que não poupará o seu próprio Filho, mas O entregará por todos nós (15). A oração restaura o
homem na semelhança com Deus e fá-lo participante no poder do amor de Deus que salva a
multidão (16).
2573. Deus renova a sua promessa a Jacob, o antepassado das doze tribos de Israel (17).
Antes de enfrentar o seu irmão Esaú, ele luta durante uma noite inteira com «alguém», um ser
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misterioso que se nega a revelar o seu nome, mas que o abençoa, antes de o deixar, ao raiar da
aurora. A tradição espiritual da Igreja divisou nesta narrativa o símbolo da oração como com-
bate da fé e vitória da perseverança (18).

MOISÉS E A ORAÇÃO DO MEDIADOR

2574. Quando começa a realizar-se a promessa (a Páscoa, o Êxodo, o dom da Lei e a con-
clusão da Aliança), a oração de Moisés é a tocante figura da oração de intercessão, que terá a
sua realização no «Mediador único entre Deus e os homens, Cristo Jesus» (1 Tm 2, 5).
2575. Também aqui, a iniciativa é de Deus. Ele chama Moisés do meio da sarça ardente (19).
Este acontecimento ficará como uma das figuras primordiais da oração na tradição espiritual
judaica e cristã. Com efeito, se «o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob» chama o seu servo
Moisés, é porque Ele é o Deus vivo, que quer a vida dos homens. Revela-Se para os salvar, mas
não sozinho nem apesar deles: chama Moisés para o enviar, para o associar à sua compaixão,
à sua obra de salvação. Há como que uma imploração divina nesta missão e Moisés, após um
longo debate, conformará a sua vontade com a de Deus salvador. Mas neste diálogo em que
Deus Se confia, Moisés também aprende a orar: esquiva-se, objecta e, sobretudo, interroga. E
é em resposta à sua pergunta que o Senhor lhe confia o seu Nome inefável, o qual se revelará
nas suas magníficas proezas.
2576. «O Senhor falava com Moisés frente a frente, como um homem fala com o seu amigo»
(Ex 33, 11). A oração de Moisés é o tipo da contemplação, graças à qual o servo de Deus se
mantém fiel à sua missão. Moisés «conversa» muitas vezes e demoradamente com o Senhor,
subindo à montanha para O ouvir e O implorar, descendo depois até junto do povo para lhe
repetir as palavras do seu Deus e o guiar. «Eu estabeleci-o sobre toda a minha casa! Falo com
ele frente a frente, à vista e não por enigmas» (Nm 12, 7-8), porque «Moisés era um homem
deveras humilde, mais que todos os homens que há sobre a face da terra (Nm 12, 3).
2577. Nesta intimidade com o Deus fiel, lento em irar-Se e cheio de amor (20), Moisés hauriu
a força e a tenacidade da sua intercessão. Ele não ora por si, mas pelo povo que Deus adquiriu
para Si. Já durante o combate com os amalecitas (21) ou para obter a cura de Miriam (22),
Moisés foi intercessor. Mas foi sobretudo após a apostasia do povo que ele «se mantém na
brecha» diante de Deus (Sl 106, 23), para salvar o mesmo povo (23). Os argumentos da sua
oração (a intercessão também é um combate misterioso) irão inspirar a audácia dos grandes
orantes, tanto do povo judaico como da Igreja: Deus é amor e, portanto, é justo e fiel; Ele não
pode contradizer-Se; há-de, por conseguinte, lembrar-Se das suas acções maravilhosas; está
em jogo a sua glória; Ele não pode abandonar o povo que tem o seu nome.

DAVID E A ORAÇÃO DO REI

2578. A oração do povo de Deus vai expandir-se à sombra da morada de Deus: a arca da ali-
ança e, mais tarde, o templo. São, em primeiro lugar os condutores do povo – os pastores e os
profetas – que o ensinarão a orar. O pequeno Samuel teve de aprender de Ana, sua mãe, o
modo como devia «comportar-se na presença do Senhor» (24), e do sacerdote Eli, como devia
escutar a sua Palavra: «Falai, Senhor, que o vosso servo escuta» (1 Sm 3, 9-10). Mais tarde,
também ele conhecerá o peso e o preço da intercessão: «Longe de mim também este pecado
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contra o Senhor: deixar de rogar por vós! Eu vos mostrarei sempre o caminho bom e recto» (1
Sm 12, 23).
2579. David é, por excelência, o rei «segundo o coração de Deus», o pastor que ora pelo seu
povo e em nome dele, aquele cuja submissão à vontade de Deus, cujo louvor e cujo arrependi-
mento serão o modelo da oração do povo. Ungido de Deus, a sua oração é adesão fiel à
promessa divina (25), confiança amorosa e alegre n'Aquele que é o único Rei e Senhor. Nos
salmos, inspirado pelo Espírito Santo, David é o primeiro profeta da oração judaica e cristã. A
oração de Cristo, verdadeiro Messias e Filho de David, há-de revelar e dar pleno sentido dessa
oração.
2580. O templo de Jerusalém, a casa de oração que David queria construir, será obra do seu
filho Salomão. A oração da Dedicação do templo (26) apoia-se na promessa de Deus e na sua
aliança, na presença activa do seu nome no meio do seu povo e na memória das magníficas
proezas do êxodo. O rei levanta então as mãos para o céu e suplica ao Senhor por si próprio,
por todo o povo, pelas gerações futuras, pelo perdão dos seus pecados e pelas suas necessid-
ades de cada dia, para que todas as nações saibam que Ele é o único Deus e o coração do seu
povo Lhe pertença inteiramente.

ELIAS, OS PROFETAS E A CONVERSÃO DO CORAÇÃO

2581. O templo devia ser, para o povo de Deus, o lugar da sua educação para a oração: as per-
egrinações, as festas, os sacrifícios, a oblação vespertina, o incenso, os «pães da proposição»,
todos esses sinais da santidade e da glória do Deus altíssimo e tão próximo, eram apelos e
caminhos de oração. Muitas vezes, porém, o ritualismo arrastava o povo para um culto de-
masiadamente exterior. Faltava-lhe a educação da fé e a conversão do coração. Foi essa a mis-
são dos profetas, antes e depois do Exílio.
2582. Elias é o pai dos profetas, da geração dos que procuram a Deus, dos que procuram a
face do Deus de Jacob (27). O seu nome – «O Senhor é o meu Deus» – é prenúncio do grito do
povo em resposta à sua oração no monte Carmelo (28). São Tiago remete para ele quando nos
incita à oração: «Muito pode a oração persistente dum justo» (Tg 5, 16) (29).
2583. Depois de ter aprendido a misericórdia no seu retiro na torrente de Querit, ensina à
viúva de Sarepta a fé na Palavra de Deus, fé que ele confirma com a sua oração insistente:
Deus faz voltar à vida o filho da viúva (30).
Aquando do sacrifício no monte Carmelo, prova decisiva para a fé do povo de Deus, é em res-
posta à sua súplica que o fogo do Senhor consome o holocausto, «à hora de oferecer o sacrifí-
cio da tarde». «Responde-me, Senhor, responde-me!» são as palavras de Elias, que as liturgi-
as orientais retomam na epiclese eucarística (31).
Finalmente, retomando o caminho do deserto em direcção ao lugar onde o Deus vivo e ver-
dadeiro Se revelou ao seu povo, Elias recolheu-se, como Moisés, «na cavidade do rochedo»,
até «passar» a presença misteriosa de Deus (32). Mas será somente no monte da transfigur-
ação que Se mostrará sem véu Aquele cuja face eles procuravam (33): o conhecimento da
glória de Deus está na face de Cristo, crucificado e ressuscitado (34).
2584. É no «a sós com Deus» que os profetas vão haurir luz e força para a sua missão. A sua
oração não é uma fuga do mundo infiel, mas uma escuta da Palavra de Deus, às vezes um
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debate ou uma queixa e sempre uma intercessão que espera e prepara a intervenção do Deus
Salvador, Senhor da história (35).

OS SALMOS, ORAÇÃO DA ASSEMBLEIA

2585. De David até à vinda do Messias, os livros sagrados contêm textos de oração que atest-
am como esta se foi tornando mais profunda, quer feita em favor de si mesmo quer pelos out-
ros (36). Os salmos foram a pouco e pouco reunidos numa colectânea de cinco livros: os Sal-
mos (ou «Louvores»), obra-prima da oração no Antigo Testamento.
2586. Os salmos nutrem e exprimem a oração do povo de Deus enquanto assembleia, por
ocasião das grandes festas em Jerusalém e em cada sábado nas sinagogas. Esta oração é insep-
aravelmente pessoal e comunitária; diz respeito aos que a fazem e a todos os homens; sobe da
Terra Santa e das comunidades da Diáspora, mas abraça toda a criação; recorda os aconteci-
mentos salvíficos do passado, mas estende-se até à consumação da história; faz memória das
promessas de Deus já realizadas, mas espera o Messias que as cumprirá definitivamente. Rez-
ados por Cristo e n'Ele realizados, os salmos continuam a ser essenciais para a oração da sua
Igreja (37).
2587. O Saltério é o livro em que a Palavra de Deus se torna oração do homem. Nos outros
livros do Antigo Testamento, «as palavras declaram as obras» (de Deus a favor dos homens)
«e esclarecem o mistério nelas contido» (38). No Saltério, as palavras do salmista exprimem,
cantando-as para Deus, as suas obras de salvação. É o mesmo Espírito que inspira, tanto a
obra de Deus, como a resposta do homem. Cristo unirá uma e outra. N'Ele, os salmos não ces-
sam de nos ensinar a orar.
2588. As expressões multiformes da oração dos salmos tomam forma, ao mesmo tempo, na
liturgia do templo e no coração do homem. Quer se trate dum hino, duma oração de aflição ou
de acção de graças, de súplica individual ou comunitária, dum cântico real ou de peregrinação,
ou ainda duma meditação sapiencial, os salmos são o espelho das maravilhas de Deus na
história do seu povo e das situações humanas vividas pelo salmista. Um salmo pode reflectir
um acontecimento do passado, mas reveste-se de tal sobriedade que pode com verdade ser
rezado pelos homens de qualquer condição e de todos os tempos.
2589. Há traços constantes e comuns a todos os salmos: a simplicidade e a espontaneidade
da oração; o desejar Deus em pessoa, através e com tudo o que é bom na sua criação; a situ-
ação desconfortável do crente que, no seu amor de preferência pelo Senhor, tem de se con-
frontar com uma multidão de inimigos e de tentações; a certeza do seu amor e a entrega à sua
vontade, enquanto espera o que o Deus fiel fará. A oração dos salmos é sempre animada pelo
louvor; e é por isso que o título desta colectânea corresponde bem ao que ela nos oferece: «Os
Louvores». Coligida para o culto da assembleia, faz-nos ouvir o apelo à oração e canta a res-
posta ao mesmo apelo: «Hallelou-Ya» (Aleluia)! «Louvai ao Senhor!».
«Haverá coisa melhor que um salmo? É por isso que David diz, e muito bem: "Louvai o Sen-
hor, porque salmodiar é bom: para o nosso Deus, louvor suave e belo!" E é verdade. Porque o
salmo é uma bênção cantada pelo povo, louvor de Deus cantado pela assembleia, aplauso de
todos, palavra universal, voz da Igreja, melodiosa profissão de fé...» (39).

Resumindo:
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2590. «A oração é a elevação da alma para Deus ou o pedido feito a Deus de bens conveni-
entes» (40).
2591. Deus não se cansa de chamar cada um, pessoalmente, para o encontro misterioso
com Ele. A oração acompanha toda a história da salvação, como um apelo recíproco entre
Deus e o homem.
2592. A oração de Abraão e de Jacob apresenta-se como um combate da fé, confiante na fi-
delidade de Deus e na certeza da vitória prometida à perseverança.
2593. A oração de Moisés responde à iniciativa do Deus vivo, com vista à salvação do seu
povo. Prefigura a oração de intercessão do único mediador, Cristo Jesus.
2594. A oração do povo de Deus expande-se à sombra da morada de Deus, a arca da ali-
ança e o templo, sob a guia dos pastores, nomeadamente do rei David e dos profetas.
2595. Os profetas convidam à conversão do coração e, procurando ardentemente a face de
Deus, como Elias, intercedem pelo povo.
2596. Os salmos constituem a obra-prima da oração no Antigo Testamento. Apresentam
duas componentes inseparáveis: a pessoal e a comunitária. Estendem-se a todas as di-
mensões da história, comemorando as promessas de Deus já cumpridas e esperando a vinda
do Messias.
2597. Rezados por Cristo e n'Ele realizados, os salmos são um elemento essencial e perman-
ente da oração da sua Igreja. Adaptam-se aos homens de qualquer condição e de todos os
tempos.

ARTIGO 2

NA PLENITUDE DO TEMPO

2598. O drama da oração é-nos plenamente revelado no Verbo que Se faz carne e habita entre
nós. Procurar compreender a sua oração através do que as suas testemunhas dela nos dizem
no Evangelho, é aproximar-nos do santo Senhor Jesus como da sarça ardente: primeiro,
contemplando-o a Ele próprio em oração; depois, escutando como Ele nos ensina a rezar,
para, finalmente, conhecermos como é que Ele atende a nossa oração.

JESUS ORA

2599. O Filho de Deus, feito Filho da Virgem, aprendeu a orar segundo o seu coração de
homem. Aprendeu as fórmulas de oração com a sua Mãe, que conservava e meditava no seu
coração todas as «maravilhas» feitas pelo Omnipotente (41). Ele ora com as palavras e nos rit-
mos da oração do seu povo, na sinagoga de Nazaré e no Templo. Mas a sua oração brotava
duma fonte muito mais secreta, como deixa pressentir quando diz, aos doze anos: «Eu devo
ocupar-me das coisas do meu Pai» (Lc 2, 49). Aqui começa a revelar-se a novidade da oração
na plenitude dos tempos: a oração filial, que o Pai esperava dos seus filhos, vai finalmente ser
vivida pelo próprio Filho Único na sua humanidade, com e para os homens.
2600. O Evangelho segundo São Lucas sublinha a acção do Espírito Santo e o sentido da or-
ação no ministério de Cristo. Jesus ora antes dos momentos decisivos da sua missão: antes de
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o Pai dar testemunho d'Ele aquando do seu baptismo (42) e da sua transfiguração (43) e antes
de cumprir, pela paixão, o desígnio de amor do Pai (44). Reza também antes dos momentos
decisivos que vão decidir a missão dos seus Apóstolos: antes de escolher e chamar os Doze
(45), antes de Pedro O confessar como o «Cristo de Deus» (46) e para que a fé do chefe dos
Apóstolos não desfaleça na tentação (47). A oração de Jesus antes dos acontecimentos da sal-
vação de que o Pai O encarrega, é uma entrega humilde e confiante da sua vontade à vontade
amorosa do Pai.
2601. «Estando um dia Jesus em oração em certo lugar, quando acabou disse-Lhe um dos
seus discípulos: Senhor, ensina-nos a orar» (Lc 11, 1). Não é, porventura, ao contemplar
primeiro o seu Mestre em oração, que o discípulo de Cristo sente o desejo de orar? Pode então
aprendê-la com o mestre da oração. É contemplando e escutando o Filho que os filhos apren-
dem a orar ao Pai.
2602. Jesus retira-Se muitas vezes sozinho para a solidão, no cimo da montanha, prefer-
entemente de noite, a fim de orar (48). Na sua oração Ele leva os homens, porquanto Ele
próprio assumiu a humanidade na sua encarnação, e oferece-os ao Pai oferecendo-Se a Si
mesmo. Ele, o Verbo que «assumiu a carne», na sua oração humana partilha tudo quanto
vivem os «seus irmãos» (49); e compadece-Se das suas fraquezas para os livrar delas (50). Foi
para isso que o Pai O enviou. As suas palavras e as suas obras aparecem então como a mani-
festação visível da sua oração «no segredo».
2603. Os evangelistas retiveram duas orações mais explícitas de Cristo durante o seu min-
istério. E ambas começam por uma acção de graças. Na primeira (51), Jesus louva o Pai,
reconhece-O e bendi-Lo por ter escondido os mistérios do Reino aos que se julgavam sábios e
os ter revelado aos «pequeninos» (os pobres das bem-aventuranças). O seu estremecimento –
«Sim Pai!» – revela o íntimo do seu coração, a sua adesão ao «beneplácito» do Pai, como um
eco do «Fiat» da sua Mãe aquando da sua concepção e como prelúdio do que Ele próprio dirá
ao Pai na sua agonia. Toda a oração de Jesus está nesta adesão amorosa do seu coração de
homem ao «mistério da vontade» do Pai (52).
2604. A segunda oração é referida por São João (53), antes da ressurreição de Lázaro. A
acção de graças precede o acontecimento: «Pai, Eu Te dou graças por Me teres escutado», o
que implica que o Pai atende sempre o que Lhe pede; e Jesus acrescenta logo: «Eu bem sabia
que Tu Me atendes sempre», o que implica, por seu turno, que Jesus pede constantemente.
Assim, apoiada na acção de graças, a oração de Jesus revela-nos como devemos pedir: Antes
de Lhe ser dado o que pede, Jesus adere Aquele que dá e Se dá nos seus dons. O Doador é
mais precioso do que dom concedido, é o «tesouro», e é n'Ele que está o coração do Filho; o
dom é dado «por acréscimo» (54).
A oração «sacerdotal» de Jesus (55) ocupa um lugar único na economia da salvação. Será
meditada no final da primeira Secção. Ela revela, de facto, a oração sempre actual do nosso
Sumo-Sacerdote e, ao mesmo tempo, contém tudo quanto Ele nos ensina na nossa oração ao
Pai, que será explicada na Segunda Secção.
2605. Quando chegou a Hora em que cumpriu o desígnio de amor do Pai, Jesus deixa entre-
ver a profundidade insondável da sua oração filial, não só antes de livremente Se entregar
(«Abbá... não se faça a minha vontade, mas a tua»: Lc 23, 42), mas até nas suas últimas pa-
lavras já na cruz, onde orar e dar-Se coincidem: «Perdoa-lhes, ó Pai, pois não sabem o que
fazem» (Lc 23, 34); «em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso» (Lc 23, 43);
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«Mulher, eis aí o teu filho» [...] «eis aí a tua mãe» (Jo 19, 26-27); «tenho sede!» (Jo 19, 28);
«meu Deus, por que Me abandonaste?» (Mc 15, 34) (56); «tudo está consumado» (Jo 19, 30);
«Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23, 46), até ao «grande brado» com que ex-
pira, entregando o espírito (57).
2606. Todas as desolações da humanidade de todos os tempos, escrava do pecado e da morte,
todas as súplicas e intercessões da história da salvação estão reunidas neste brado do Verbo
encarnado. E eis que o Pai as acolhe e as atende, para além de toda a esperança, ao ressuscitar
o seu Filho. Assim se cumpre e se consuma o drama da oração na economia da criação e da
salvação. Dele nos dá o Saltério a chave em Cristo. É no «hoje» da ressurreição que o Pai diz:
«Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei. Pede-Me, e Te darei as nações por herança e os confins da
terra para teu domínio!» (Sl 2, 7-8) (58).
A Epístola aos Hebreus exprime em termos dramáticos como é que a oração de Jesus realiza a
vitória da salvação: «Nos dias da sua vida mortal, Cristo dirigiu preces e súplicas, com um
forte brado e com lágrimas, Aquele que O podia livrar da morte e, por causa da sua piedade,
foi atendido. Apesar de ser Filho, aprendeu, de quanto sofreu, o que é obedecer. E quando at-
ingiu a sua plenitude, tornou-Se, para todos aqueles que Lhe obedecem, causa de salvação
eterna» (Heb 5, 7-9).

JESUS ENSINA A ORAR

2607. Quando ora, Jesus já nos ensina a orar. O caminho teologal da nossa oração é a sua or-
ação ao Pai. Mas o Evangelho fornece-nos um ensinamento explícito de Jesus sobre a oração.
Como bom pedagogo, toma conta de nós no ponto em que nos encontramos e,
progressivamente, conduz-nos até ao Pai. Dirigindo-Se às multidões que O seguem, Jesus
parte daquilo que elas já conhecem acerca da oração segundo a Antiga Aliança e abre-as à
novidade do Reino que chega. Depois, revela-lhes em parábolas essa novidade. E, por fim, aos
seus discípulos que hão-de ser pedagogos da oração na sua Igreja, fala abertamente do Pai e
do Espírito Santo.
2608. Jesus insiste na conversão do coração desde o sermão da montanha: a reconciliação
com o irmão antes de apresentar a oferta no altar (59); o amor dos inimigos e a oração pelos
perseguidores (60); orar ao Pai «no segredo» (Mt 6, 6); não se perder em fórmulas palavrosas
(61); perdoar do fundo do coração na oração (62); a pureza do coração e a busca do Reino (63)
Esta conversão está totalmente polarizada no Pai: é filial.
2609. O coração, assim decidido a converter-se, aprende a orar na fé. A fé é uma adesão filial
a Deus, para além de tudo quanto sentimos e compreendemos. Tornou-se possível, porque o
Filho bem-amado nos franqueia o acesso até junto do Pai. Ele pode pedir-nos que «procure-
mos» e «batamos à porta», porque Ele próprio é a porta e o caminho (64).
2610. Do mesmo modo que Jesus ora ao Pai e Lhe dá graças antes de receber os seus dons,
assim também nos ensina esta audácia filial: «tudo o que pedirdes na oração, acreditai que já
o alcançastes» (Mc 11, 24). Tal é a força da oração: «tudo é possível a quem crê» (Mc 9, 23),
com uma fé que não hesita (65). Assim como Jesus Se entristece por causa da «falta de fé» dos
seus conterrâneos (Mc 6, 6) e da «pouca fé» dos seus discípulos (66), também Se enche de ad-
miração perante a «grande fé» do centurião romano (67) e da cananeia (68).
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2611. A oração de fé não consiste somente em dizer «Senhor, Senhor!», mas em preparar o
coração para fazer a vontade do Pai (69). Jesus exorta os seus discípulos a levar para a oração
esta solicitude em cooperar com o desígnio de Deus (70).
2612. Em Jesus, «o Reino de Deus está perto». Ele apela à conversão e à fé, mas também à vi-
gilância. Na oração (Mc 1, 15), o discípulo vela, atento Aquele que é e que vem, na memória da
sua primeira vinda na humildade da carne e na esperança da sua segunda vinda na glória (71).
Em comunhão com o Mestre, a oração dos discípulos é um combate; é vigiando na oração que
não se cai na tentação (72).
2613. São Lucas transmite-nos três parábolas principais sobre a oração.
A primeira, a do «amigo importuno» (73), convida-nos a uma oração persistente: «Batei, e a
porta abrir-se-vos-á». Aquele que assim ora, o Pai celeste «dará tudo quanto necessitar» e
dará, sobretudo, o Espírito Santo, que encerra todos os dons.
A segunda, a da «viúva importuna» (74), está centrada numa das qualidades da oração: é pre-
ciso orar sem se cansar, com a paciência da fé. «Mas o Filho do Homem, quando voltar,
achará porventura fé sobre a terra?».
A terceira, a do «fariseu e do publicano» (75), diz respeito à humildade do coração orante.
«Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador». A Igreja não cessa de fazer sua esta
oração: «Kyrie, eleison!».
2614. Quando Jesus confia abertamente aos discípulos o mistério da oração ao Pai, desvenda-
lhes o que deve ser a oração deles e a nossa quando Ele tiver voltado para junto do Pai, na sua
humanidade glorificada. O que há de novo agora é o «pedir em seu nome» (76). A fé n'Ele in-
troduz os discípulos no conhecimento do Pai, porque Jesus é «o caminho, a verdade e a vida»
(Jo 14, 6). A fé dá os seus frutos no amor: guardar a sua Palavra, os seus mandamentos, per-
manecer com Ele no Pai que n'Ele nos ama ao ponto de permanecer em nós. Nesta aliança
nova, a certeza de sermos atendidos nas nossas petições baseia-se na oração de Jesus (77).
2615. Mais ainda: o que o Pai nos dá, quando a nossa oração se une à de Jesus, é «o outro
Paráclito, [...] para ficar convosco para sempre, o Espírito de verdade» (Jo14, 16-17). Esta
novidade da oração e das suas condições aparece ao longo do discurso do adeus (78). No
Espírito Santo, a oração cristã é comunhão de amor com o Pai, não somente por Cristo, mas
também n'Ele: «Até agora, não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para a vossa
alegria ser completa» (Jo 16, 24).

JESUS ATENDE A ORAÇÃO

2616. A oração a Jesus já foi sendo atendida por Ele durante o seu ministério, mediante os
sinais que antecipam o poder da sua morte e ressurreição: Jesus atende a oração da fé ex-
pressa em palavras (do leproso (79), de Jairo (80), da cananeia (81), do bom ladrão (82)) ou
feita em silêncio (dos que trouxeram o paralítico (83) , da hemorroíssa que Lhe tocou na veste
(84), as lágrimas e o perfume da pecadora (85)). A súplica premente dos cegos: «Filho de
David, tem piedade de nós!» (Mt 9, 27), ou «Jesus, filho de David, tem piedade de mim!» (Mc
10, 47), foi retomada na tradição da Oração a Jesus: «Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor,
tem piedade de mim, pecador!». Seja a cura das doenças ou o perdão dos pecados, Jesus re-
sponde sempre à oração de quem Lhe implora com fé: «Vai em paz, a tua fé te salvou».
402/438

Santo Agostinho resume admiravelmente as três dimensões da oração de Jesus: «sendo o


nosso Sacerdote, ora por nós; sendo a nossa Cabeça, ora em nós; e sendo o nosso Deus, a Ele
oramos. Reconheçamos, pois, n'Ele a nossa voz e a voz d'Ele em nós» (86) .

A ORAÇÃO DA VIRGEM MARIA

2617. A oração de Maria é-nos revelada na aurora da plenitude dos tempos. Antes da en-
carnação do Filho de Deus e da efusão do Espírito Santo, a sua oração coopera de um modo
único com o desígnio benevolente do Pai, aquando da Anunciação para a concepção de Cristo
(87) e aquando do Pentecostes para a formação da Igreja, corpo de Cristo (88). Na fé da sua
humilde serva, o Dom de Deus encontra o acolhimento que Ele esperava desde o princípio dos
tempos. Aquela que o Todo-Poderoso fez «cheia de graça» responde pelo oferecimento de to-
do o seu ser: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra». «Faça-se» é a
oração cristã: ser todo para Ele, já que Ele é todo para nós.
2618. O Evangelho revela-nos como é que Maria ora e intercede na fé: em Caná (89), a Mãe
de Jesus roga a seu Filho pelas necessidades dum banquete de bodas, sinal dum outro ban-
quete, o das bodas do Cordeiro que dá o seu corpo e o seu sangue a pedido da Igreja, sua es-
posa . E é na hora da Nova Aliança, ao pé da cruz (90), que Maria é atendida como a Mulher, a
nova Eva, a verdadeira «mãe dos vivos».
2619. É por isso que o cântico de Maria (91) o Magnificat latino, o Megalynárion bizantino –
é, ao mesmo tempo, o cântico da Mãe de Deus e o da Igreja, cântico da Filha de Sião e do novo
povo de Deus, cântico de acção de graças pela plenitude de graças derramadas na economia da
salvação, cântico dos «pobres», cuja esperança se vê satisfeita pelo cumprimento das promes-
sas feitas aos nossos pais, «em favor de Abraão e da sua descendência, para sempre».

Resumindo:

2620. No Novo Testamento, o modelo perfeito da oração é a oração filial de Jesus. Feita
muitas vezes na solidão, no segredo, a oração de Jesus comporta uma adesão amorosa à
vontade do Pai até à cruz e uma confiança absoluta em que será atendida.
2621. Na sua doutrina, Jesus ensina os discípulos a orar com um coração purificado, uma
fé viva e perseverante, uma audácia filial. Exorta-os à vigilância e convida-os a apresentar
a Deus os seus pedidos em nome d'Ele. O próprio Jesus Cristo atende as orações que Lhe são
dirigidas.
2622. A oração da Virgem Maria, no seu «Fiat» e no seu «Magnificat», caracteriza-se pelo
oferecimento generoso de todo o seu ser na fé.

ARTIGO 3

NO TEMPO DA IGREJA

2623. No dia de Pentecostes, o Espírito da promessa foi derramado sobre os discípulos, «re-
unidos no mesmo lugar» (Act 2, 1), enquanto O esperavam, «todos [...] perseveravam
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unânimes na oração» (Act 1, 14). O Espírito que ensina a Igreja e lhe recorda tudo quanto Je-
sus disse (92) vai também formá-la na vida de oração.
2624. Na primeira comunidade de Jerusalém, os crentes «eram assíduos ao ensino dos
Apóstolos, à comunhão fraterna, à fracção do pão e às orações» (Act 2, 42). Esta sequência é
típica da oração da Igreja: fundada sobre a fé apostólica e autenticada pela caridade, alimenta-
se na Eucaristia.
2625. Estas orações são, em primeiro lugar, as que os fiéis ouvem e lêem nas Escrituras; mas
eles actualizam-nas, em particular as dos salmos, a partir da sua realização em Cristo (93). O
Espírito Santo, que assim recorda Cristo à sua Igreja orante, também a conduz para a verdade
integral e suscita formulações novas que exprimirão o insondável mistério de Cristo operante
na vida, sacramentos e missão da Igreja. Estas formulações desenvolver-se-ão nas grandes
tradições litúrgicas e espirituais. As formas da oração, tais como as revelam as Escrituras
apostólicas canónicas, continuam a ser normativas da oração cristã.

I. A bênção e a adoração

2626. A bênção exprime o movimento de fundo da oração cristã: ela é o encontro de Deus
com o homem; nela se encontram e unem o dom de Deus e o acolhimento do homem. A or-
ação de bênção é a resposta do homem aos dons de Deus: uma vez que Deus abençoa, o cor-
ação do homem pode responder bendizendo Aquele que é a fonte de toda a bênção.
2627. Exprimem este movimento duas formas fundamentais: umas vezes, a bênção sobe,
levada por Cristo no Espírito Santo, para o Pai (nós O bendizemos por Ele nos ter abençoado)
(94); outras vezes, implora a graça do Espírito Santo que, por Cristo, desce de junto do Pai (é
Ele que nos abençoa) (95).
2628. A adoração é a primeira atitude do homem que se reconhece criatura diante do seu
Criador. Exalta a grandeza do Senhor que nos criou (96) e a omnipotência do Salvador que
nos liberta do mal. É a prostração do espírito perante o «Rei da glória» (97) e o silêncio re-
speitoso face ao Deus «sempre maior» (98). A adoração do Deus três vezes santo e soberana-
mente amável enche-nos de humildade e dá segurança às nossas súplicas.

II. A oração de petição

2629. O vocabulário da oração de súplica é rico de matizes no Novo Testamento: pedir, re-
clamar, chamar com insistência, invocar, bradar, gritar e, até, «lutar na oração» (99). Mas a
sua forma mais habitual, porque mais espontânea, é a petição. É pela oração de petição que
traduzimos a consciência da nossa relação com Deus: enquanto criaturas, não somos a nossa
origem, nem donos das adversidades, nem somos o nosso fim último; mas também, sendo
pecadores, sabemos, como cristãos, que nos afastamos do nosso Pai. A petição é já um re-
gresso a Ele.
2630. O Novo Testamento quase não contém orações de lamentação, frequentes no Antigo.
Doravante, em Cristo Ressuscitado, a petição da Igreja é sustentada pela esperança, embora
ainda estejamos à espera e tenhamos de nos converter em cada dia. É de outra profundidade
que brota a petição cristã, aquela a que São Paulo chama gemido: o da criação em «dores de
parto» (Rm 8, 22) e também o nosso, «aguardando a libertação do nosso corpo», porque «foi
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na esperança que fomos salvos» (Rm 8, 23-24); e, por fim, os «gemidos inefáveis» do próprio
Espírito Santo, que «vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de
pedir, para rezarmos como deve ser» (Rm 8, 26).
2631. O pedido de perdão é o primeiro movimento da oração de petição (cf. o publicano: «Ó
Deus, tem piedade de mim, que sou pecador» (Lc 18, 13). É o preliminar duma oração justa e
pura. A humildade confiante repõe-nos na luz da comunhão com o Pai e com o seu Filho Jesus
Cristo, bem como dos homens uns com os outros (100). Nestas condições, «seja o que for que
Lhe peçamos, recebê-lo-emos» (1 Jo 3, 22). O pedido de perdão é o preâmbulo da liturgia Eu-
carística, bem como da oração pessoal.
2632. A petição cristã está centrada no desejo e na busca do Reino que há-de vir, em confor-
midade com o ensinamento de Jesus (101). Há uma hierarquia nas petições: primeiro, o
Reino; depois, tudo quanto é necessário para o acolher e para cooperar com a sua vinda. Esta
cooperação com a missão de Cristo e do Espírito Santo, que agora é a da Igreja, é o objecto da
oração da comunidade apostólica (102). É a oração de Paulo, o apóstolo por excelência, que
nos revela como a solicitude divina por todas as Igrejas deve animar a oração cristã (103). Pela
oração, todo o cristão trabalha pela vinda do Reino.
2633. Quando se participa assim no amor salvífico de Deus, compreende-se que qualquer ne-
cessidade pode tornar-se objecto de pedido. Cristo, que tudo assumiu a fim de tudo resgatar, é
glorificado pelos pedidos que dirigimos ao Pai em seu nome (104). É com esta certeza que Ti-
ago (105) e Paulo nos exortam a orar em todas as ocasiões (106).

III. A oração de intercessão

2634. A intercessão é uma oração de petição que nos conforma de perto com a oração de Je-
sus. É Ele o único intercessor junto do Pai em favor de todos os homens, em particular dos
pecadores (107). Ele «pode salvar de maneira definitiva aqueles que, por seu intermédio, se
aproximam de Deus, uma vez que está sempre vivo, para interceder por eles» (Heb 7, 25). O
próprio Espírito Santo «intercede por nós [...] intercede pelos santos, em conformidade com
Deus» (Rm 8, 26-27).
2635. Interceder, pedir a favor de outrem, é próprio, desde Abraão, dum coração conforme
com a misericórdia de Deus. No tempo da Igreja, a intercessão cristã participa na de Cristo: é
a expressão da comunhão dos santos. Na intercessão, aquele que ora não «olha aos seus
próprios interesses, mas aos interesses dos outros» (Fl 2, 4), e chega até a rezar pelos que lhe
fazem mal (108).
2636. As primeiras comunidades cristãs viveram intensamente esta forma de partilha (109).
O apóstolo Paulo fá-las participar deste modo no seu ministério do Evangelho (110) mas ele
próprio também intercede por elas (111). A intercessão dos cristãos não conhece fronteiras:
«[...] por todos os homens, [...] por todos os que exercem a autoridade» (1 Tm 2, 1), pelos
perseguidores (112), pela salvação dos que rejeitam o Evangelho (113).

IV. A oração de acção de graças

2637. A acção de graças caracteriza a oração da Igreja que, ao celebrar a Eucaristia, manifesta
e cada vez mais se torna naquilo que é. De facto, pela obra da salvação, Cristo liberta a criação
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do pecado e da morte, para de novo a consagrar e fazer voltar ao Pai, para sua glória. A acção
de graças dos membros do corpo participa na da sua Cabeça.
2638. Como na oração de petição, qualquer acontecimento e qualquer necessidade podem
transformar-se em oferenda de acção de graças. As cartas de São Paulo muitas vezes começam
e acabam por uma acção de graças, e nelas o Senhor Jesus está sempre presente: «Dai graças
em todas as circunstâncias, pois é esta a vontade de Deus, em Cristo Jesus, a vosso respeito»
(1 Ts 5, 18); «perseverai na oração; sede, por meio dela, vigilantes em acções de graças» (Cl 4,
2).

V. A oração de louvor

2639. O louvor é a forma de oração que mais imediatamente reconhece que Deus é Deus!
Canta-O por Si próprio, glorifica-O, não tanto pelo que Ele faz, mas sobretudo porque ELE É.
Participa da bem-aventurança dos corações puros que O amam na fé, antes de O verem na
glória. Por ela, o Espírito junta-Se ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de
Deus (114) e dá testemunho do Filho Único no qual fomos adoptados e pelo qual glorificamos
o Pai. O louvor integra as outras formas de oração e leva-as Aquele que delas é a fonte e o
termo: «o único Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos» (1 Cor 8, 6).
2640. São Lucas registra muitas vezes no seu Evangelho a admiração e o louvor perante as
maravilhas operadas por Cristo. Sublinha também os mesmos sentimentos perante as acções
do Espírito Santo que são os Actos dos Apóstolos: a comunidade de Jerusalém (115), o entre-
vado curado por Pedro e João (116), a multidão que por tal facto dá glória a Deus (117), os
pagãos da Pisídia, que, «cheios de alegria, glorificam a Palavra do Senhor» (Act 13, 48).
2641. «Recitai entre vós salmos, hinos e cânticos inspirados; cantai e louvai ao Senhor no
vosso coração» (Ef 5, 19) (118). Tal como os escritores inspirados do Novo Testamento, as
primeiras comunidades cristãs relêem o livro dos Salmos, cantando neles o mistério de Cristo.
Na novidade do Espírito, compõem também hinos e cânticos a partir do acontecimento in-
audito que Deus realizou em seu Filho: a sua encarnação, a sua morte vitoriosa sobre a morte,
a sua ressurreição e a sua ascensão à direita do Pai (119). É desta «maravilha» de toda a eco-
nomia da salvação que sobe a doxologia, o louvor de Deus (120).
2642. A revelação «do que deve acontecer em breve», que é o Apocalipse, apoia-se nos cânti-
cos da liturgia celeste (121), mas também na intercessão das «testemunhas» (isto é, dos
mártires) (122). Os profetas e os santos, todos os que na terra foram mortos por causa do
testemunho dado por Jesus (123), a multidão imensa daqueles que, vindos da grande tribu-
lação, nos precederam no Reino, cantam o louvor da glória d'Aquele que está sentado no trono
e do Cordeiro (124). Em comunhão com eles, a Igreja da terra canta também os mesmos cânti-
cos, na fé e na provação. A fé, na súplica e na intercessão, espera contra toda a esperança e dá
graças ao Pai das luzes de Quem procede todo o dom perfeito (125). Assim, a fé é um puro
louvor.
2643. A Eucaristia contém e exprime todas as formas de oração: é «a oblação pura» de todo o
corpo de Cristo «para glória do seu nome» (126); é, segundo as tradições do Oriente e do
Ocidente, «o sacrifício de louvor».

Resumindo:
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2644. O Espírito Santo, que ensina a Igreja e lhe recorda tudo o que Jesus disse, também a
educa para a vida de oração, suscitando expressões que se renovam no âmbito de formas
permanentes: bênção, petição, intercessão, acção de graças e louvor.
2645. É porque Deus o abençoa, que o coração do homem pode, retribuindo, bendizer
Aquele que é a fonte de toda a bênção.
2646. A oração de petição tem por objecto o perdão, a busca do Reino, bem como qualquer
necessidade verdadeira.
2647. A oração de intercessão consiste numa petição em favor de outrem. Não conhece
fronteiras e estende-se até aos inimigos.
2648. Toda a alegria e todo o sofrimento, todo o acontecimento e toda a necessidade podem
ser matéria da acção de graças, a qual, participando na de Cristo, deve encher a vida toda:
«Dai graças em todas as circunstâncias» (1 Ts 5, 18).
2649. A oração de louvor, totalmente desinteressada, dirige-se a Deus: canta-O por Si
próprio, glorifica-O, não tanto pelo que Ele faz, mas sobretudo porque ELE É.

CAPÍTULO SEGUNDO
A TRADIÇÃO DA ORAÇÃO

2650. A oração não se reduz ao brotar espontâneo dum impulso interior: para orar, é preciso
querer. Tão-pouco basta saber o que a Escritura revela sobre a oração: é preciso também
aprender a rezar. Ora, é através duma transmissão viva (a Tradição sagrada), que o Espírito
Santo, na «Igreja crente e orante» (1), ensina os filhos de Deus a orar.
2651. A tradição da oração cristã é uma das formas de crescimento da Tradição da fé, particu-
larmente pela contemplação e pelo estudo dos crentes, que guardam no seu coração os aconte-
cimentos e as palavras da economia da salvação, e pela penetração profunda das realidades
espirituais que eles experimentam (2).

ARTIGO 1

NAS FONTES DA ORAÇÃO

2652. O Espírito Santo é a «água viva» que, no coração orante, «jorra para a vida eterna» (3).
É Ele quem nos ensina a recolhê-la na própria Fonte: Jesus Cristo. Ora, há na vida cristã man-
anciais onde Cristo nos espera para nos dar a beber o Espírito Santo.

A PALAVRA DE DEUS

2653. A Igreja «exorta com ardor e insistência todos os fiéis [...] a que aprendam "a sublime
ciência de Jesus Cristo" (Fl 3, 8) pela leitura frequente das divinas Escrituras [...]. Lembrem-
se, porém, de que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração, para que
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seja possível o diálogo entre Deus e o homem, porque "a Ele falamos, quando rezamos, a Ele
ouvimos, quando lemos os divinos oráculos"» (4).
2654. Os Padres espirituais, parafraseando Mt 7, 7, resumem assim as disposições do cor-
ação, alimentado pela Palavra de Deus na oração: «Procurai na leitura e achareis na medit-
ação; batei à porta na oração e ela abrir-se-vos-á na contemplação» (5).

A LITURGIA DA IGREJA

2655. A missão de Cristo e do Espírito Santo que, na liturgia sacramental da Igreja anuncia,
actualiza e comunica o mistério da salvação, prossegue no coração de quem ora. Os Padres es-
pirituais comparam, por vezes, o coração a um altar. A oração interioriza e assimila a liturgia,
durante e depois da sua celebração. Mesmo quando vivida «no segredo» (Mt 6, 6), a oração é
sempre oração da Igreja; é comunhão com a Santíssima Trindade (6).

AS VIRTUDES TEOLOGAIS

2656. Entra-se na oração como se entra na liturgia: pela porta estreita da fé. Através dos
sinais da sua presença, é a face do Senhor que nós buscamos e desejamos, é a sua Palavra que
nós queremos escutar e guardar.
2657. O Espírito Santo, que nos ensina a celebrar a liturgia na expectativa do regresso de
Cristo, educa-nos para orar na esperança. E vice-versa, a oração da Igreja e a prece pessoal
nutrem em nós a esperança. Particularmente os salmos, com a sua linguagem concreta e
variada, ensinam-nos a fixar em Deus a nossa esperança: «Esperei no Senhor com toda a con-
fiança, e Ele atendeu-me. Ouviu o meu clamor» (Sl 40, 2). «Que o Deus da esperança vos en-
cha de toda a alegria e paz na fé, para que transbordeis de esperança pela força do Espírito
Santo» (Rm 15, 13).
2658. «A esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações
pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Rm 5, 5). A oração, formada pela vida litúrgica, vai
haurir tudo no amor com que fomos amados em Cristo e que nos dá a graça de Lhe correspon-
der, amando como Ele amou. O amor é a fonte da oração; quem bebe dessa fonte atinge os
cumes da oração:
«Eu Vos amo, ó meu Deus, e o meu único desejo é amar-Vos até ao último suspiro da minha
vida. Amo-Vos, ó meu Deus infinitamente amável, e antes quero morrer a amar-Vos do que
viver sem Vos amar. Amo-Vos, Senhor, e a única graça que Vos peço é a de Vos amar eterna-
mente [...] Meu Deus: Se a minha língua não pode dizer a todo o momento que Vos amo,
quero que o meu coração o repita tantas vezes quantas eu respiro» (7).

«HOJE»

2659. Aprendemos a orar em certos momentos, escutando a Palavra do Senhor e parti-


cipando no seu mistério pascal. Mas a cada momento, nos acontecimentos de cada dia, o seu
Espírito é-nos oferecido para fazer brotar a oração. O ensinamento de Jesus sobre a oração ao
nosso Pai está na mesma linha que o ensino sobre a providência (8): o tempo está nas mãos
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do Pai; é no presente que nós O encontramos; não ontem nem amanhã, mas hoje: – «Quem
dera ouvísseis hoje a sua voz; não endureçais os vossos corações» (Sl 95, 7-8).
2660. Orar nos acontecimentos de cada dia e de cada instante é um dos segredos do Reino,
revelados aos «pequeninos», aos servos de Cristo, aos pobres das bem-aventuranças. É justo e
bom orar para que a vinda do Reino da justiça e da paz influencie a marcha da história; mas
também é importante levedar pela oração a massa das humildes situações quotidianas. Todas
as formas de oração podem ser esse fermento a que o Senhor compara o Reino (9).

Resumindo:
2661. É por meio duma transmissão viva, pela Tradição, que, na Igreja, o Espírito Santo
ensina os filhos de Deus a orar.
2662. A Palavra de Deus, a liturgia da Igreja, as virtudes da fé, da esperança e da caridade
são fontes da oração.

ARTIGO 2

O CAMINHO DA ORAÇÃO

2663. Na tradição viva da oração, cada Igreja propõe aos seus fiéis, segundo o contexto
histórico, social e cultural, a linguagem da sua oração: palavras, melodias, gestos e icono-
grafia. Compete ao Magistério(10) ajuizar sobre a fidelidade destes caminhos de oração à
Tradição da fé apostólica. E aos pastores e catequistas incumbe a tarefa de explicar o seu sen-
tido, sempre com referência a Jesus Cristo.

A ORAÇÃO AO PAI

2664. Não há outro caminho para a oração cristã senão Cristo. Seja comunitária ou pessoal,
seja vocal ou interior, a nossa oração só tem acesso ao Pai se rezarmos «em nome» de Jesus. A
santa humanidade de Jesus é, pois, o caminho pelo qual o Espírito Santo nos ensina a orar a
Deus nosso Pai.

A ORAÇÃO A JESUS

2665. A oração da Igreja, alimentada pela Palavra de Deus e pela celebração da liturgia,
ensina-nos a orar ao Senhor Jesus. Mesmo sendo dirigida sobretudo ao Pai, ela inclui, em to-
das as tradições litúrgicas, formas de oração dirigidas a Cristo. Certos salmos, segundo a sua
actualização na oração da Igreja, e o Novo Testamento, colocam nos nossos lábios e gravam
nos nossos corações as invocações desta oração a Cristo: Filho de Deus, Verbo de Deus, Sen-
hor, Salvador, Cordeiro de Deus, Rei, Filho muito amado, Filho da Virgem, Bom Pastor, nossa
Vida, nossa Luz, nossa Esperança, nossa Ressurreição, Amigo dos homens...
2666. Mas o nome que tudo encerra é o que o Filho de Deus recebe na sua encarnação:
JESUS. O nome divino é indizível para lábios humanos mas, ao assumir a nossa humanidade,
o Verbo de Deus comunica-no-lo e nós podemos invocá-lo: «Jesus», « YHWH salva» (12). O
nome de Jesus contém tudo: Deus e o homem e toda a economia da criação e da salvação.
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Rezar «Jesus» é invocá-Lo, chamá-Lo a nós. O seu nome é o único que contém a presença que
significa. Jesus é o Ressuscitado, e todo aquele que invocar o seu nome, acolhe o Filho de
Deus que o amou e por ele Se entregou (13).
2667. Esta invocação de fé tão simples foi desenvolvida na tradição da oração sob as mais
variadas formas, tanto no Oriente como no Ocidente. A formulação mais habitual, transmitida
pelos espirituais do Sinai, da Síria e de Athos, é a invocação: «Jesus, Cristo, Filho de Deus,
Senhor, tende piedade de nós, pecadores!». Ela conjuga o hino cristológico de Fl 2, 6-11 com a
invocação do publicano e dos mendigos da luz (14). Por ela, o coração sintoniza com a miséria
dos homens e com a misericórdia do seu Salvador.
2668. A invocação do santo Nome de Jesus é o caminho mais simples da oração contínua.
Muitas vezes repetida por um coração humildemente atento, não se dispersa num «mar de pa-
lavras» (Mt 6, 7), mas «guarda a Palavra e produz fruto pela constância» (15). E é possível
«em todo o tempo», porque não constitui uma ocupação a par de outra, mas é a ocupação ún-
ica, a de amar a Deus, que anima e transfigura toda a acção em Cristo Jesus.
2669. A oração da Igreja venera e honra o Coração de Jesus, tal como invoca o seu
santíssimo Nome. Adora o Verbo encarnado e o seu Coração que, por amor dos homens, Se
deixou trespassar pelos nossos pecados. A oração cristã gosta de percorrer o caminho da cruz
(Via- Sacra) no seguimento do Salvador. As estações, do Pretório ao Gólgota e ao túmulo,
assinalam o caminho de Jesus que, pela sua santa cruz, remiu o mundo.

«VINDE, ESPÍRITO SANTO»

2670. «Ninguém pode dizer "Jesus é o Senhor", a não ser pela acção do Espírito Santo» (1
Cor 12, 3). Todas as vezes que começamos a orar a Jesus, é o Espírito Santo que, pela sua
graça preveniente, nos atrai para o caminho da oração. Uma vez que Ele nos ensina a orar
lembrando-nos Cristo, como orar-Lhe a Ele próprio? A Igreja convida-nos, pois, a implorar
cada dia o Espírito Santo, especialmente no princípio e no fim de qualquer acto importante.
«Se o Espírito Santo não deve ser adorado, como é que Ele me diviniza pelo Baptismo? E se
deve ser adorado, não há-de ser objecto dum culto particular?» (16).
2671. A forma tradicional de pedir o Espírito é invocar o Pai, por Cristo, nosso Senhor, para
que nos dê o Espírito Consolador (17). Jesus insiste nesta petição em seu nome no próprio
momento em que promete o dom do Espírito de verdade (18). Mas também é tradicional a or-
ação mais simples e mais directa: «Vinde, Espírito Santo». Cada tradição litúrgica
desenvolveu-a em antífonas e hinos:
«Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos Vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso
amor» (19).
«Rei celeste, Espírito consolador, Espírito da verdade, presente em toda a parte e tudo en-
chendo, tesouro de todo o bem e fonte da vida, vem, habita em nós, purifica-nos e salva-nos,
Tu que és Bom!» (20).
2672. O Espírito Santo, cuja unção impregna todo o nosso ser, é o mestre interior da oração
cristã. É o artífice da tradição viva da oração. Há, é certo, tantos caminhos na oração como or-
antes; mas é o mesmo Espírito que age em todos e com todos. É na comunhão do Espírito
Santo que a oração cristã é oração na Igreja.
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EM COMUNHÃO COM A SANTA MÃE DE DEUS

2673. Na oração, o Espírito Santo une-nos à pessoa do Filho Único, na sua humanidade glori-
ficada. É por ela e nela que a nossa oração filial comunga, na Igreja, com a Mãe de Jesus (21).
2674. Desde o consentimento prestado na fé à Anunciação e mantido sem hesitação ao pé da
cruz, a maternidade de Maria estende-se aos irmãos e irmãs do seu Filho ainda peregrinos e
que caminham entre perigos e angústias (22). Jesus, o único mediador, é o caminho da nossa
oração; Maria, sua Mãe e nossa Mãe, é pura transparência dele: Ela «mostra o caminho»
(«Hodêghêtria»), é «o sinal» do caminho, segundo a iconografia tradicional no Oriente e no
Ocidente.
2675. Foi a partir desta singular cooperação de Maria com a acção do Espírito Santo que as
Igrejas cultivaram a oração à santa Mãe de Deus, centrando-a na pessoa de Cristo manifestada
nos seus mistérios. Nos inúmeros hinos e antífonas em que esta oração se exprime, alternam
habitualmente dois movimentos: um «magnifica» o Senhor pelas «maravilhas» que fez pela
sua humilde serva e, através d'Ela, por todos os seres humanos (23); o outro confia à Mãe de
Jesus as súplicas e louvores dos filhos de Deus, pois Ela agora conhece a humanidade que
n'Ela foi desposada pelo Filho de Deus.
2676. Este duplo movimento de oração a Maria encontrou uma expressão privilegiada na or-
ação da «Ave-Maria»:
«Ave, Maria (alegrai-vos, Maria)». A saudação do anjo Gabriel abre esta oração. É o próprio
Deus que, por intermédio do seu anjo, saúda Maria. A nossa oração ousa retomar a saudação a
Maria com o olhar que Deus pôs na sua humilde serva (24), alegrando-nos com a alegria que
Ele n'Ela encontra (25).
«Cheia de graça, o Senhor é convosco». As duas palavras da saudação do anjo esclarecem-se
mutuamente. Maria é cheia de graça, porque o Senhor está com Ela. A graça de que Ela é cu-
mulada é a presença d'Aquele que é a fonte de toda a graça. «Solta brados de alegria [...] filha
de Jerusalém [...]; o Senhor teu Deus está no meio de ti» (Sf 3, 14. 17a). Maria, em quem o
próprio Senhor vem habitar, é em pessoa a filha de Sião, a arca da aliança, o lugar onde reside
a glória do Senhor: é «a morada de Deus com os homens» (Ap 21, 3). «Cheia de graça», Ela
dá-se toda Aquele que n'Ela vem habitar e que Ela vai dar ao mundo.
«Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus». Depois da
saudação do anjo, fazemos nossa a de Isabel. «Cheia [...] do Espírito Santo» (Lc 1, 41), Isabel é
a primeira, na longa sequência das gerações, a declarar Maria bem-aventurada (26): «Feliz
d'Aquela que acreditou...» (Lc 1, 45); Maria é «bendita entre as mulheres», porque acreditou
no cumprimento da Palavra do Senhor. Abraão, pela sua fé, tornou-se uma bênção «para to-
das as nações da terra» (Gn 12, 3). Pela sua fé, Maria tornou-se a mãe dos crentes, graças a
quem todas as nações da terra recebem Aquele que é a própria bênção de Deus: Jesus, «fruto
bendito do vosso ventre».
2677. «Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós...». Com Isabel, também nós ficamos mara-
vilhados: «E de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?» (Lc 1, 43).
Porque nos dá Jesus, seu Filho, Maria é Mãe de Deus e nossa Mãe; podemos confiar-lhe todas
as nossas preocupações e pedidos: Ela ora por nós como orou por si própria: «Faça-se em
Mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). Confiando-nos à sua oração, abandonamo-nos com
Ela à vontade de Deus: «Seja feita a vossa vontade».
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«Rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte». Pedindo a Maria que rogue por
nós, reconhecemo-nos pobres pecadores e recorremos à «Mãe de misericórdia», à
«Santíssima». Confiamo-nos a Ela «agora», no hoje das nossas vidas. E a nossa confiança
alarga-se para lhe confiar, desde agora, «a hora da nossa morte». Que Ela esteja então
presente como na morte do seu Filho na cruz e que, na hora do nosso passamento, Ela nos
acolha como nossa Mãe (27), para nos levar ao seu Filho Jesus, no Paraíso.
2678. A piedade medieval do Ocidente propagou a oração do rosário como substituto popular
da Liturgia das Horas. No Oriente, a forma litânica do akáthistos e da paráclêsis ficou mais
próxima do ofício coral nas Igrejas bizantinas, ao passo que as tradições arménia, copta e
siríaca preferiram os hinos e cânticos populares à Mãe de Deus. Mas, na Ave-Maria, nas theo-
tokía, nos hinos de Santo Efrém ou de São Gregório de Narek, a tradição da oração é funda-
mentalmente a mesma.
2679. Maria é a orante perfeita, figura da Igreja. Quando Lhe oramos, aderimos com Ela ao
desígnio do Pai, que envia o seu Filho para salvar todos os homens. Como o discípulo amado,
nós acolhemos em nossa casa (28) a Mãe de Jesus que se tornou Mãe de todos os viventes. Po-
demos orar com Ela e orar-Lhe a Ela. A oração da Igreja é como que sustentada pela oração de
Maria. Está-lhe unida na esperança (29).

Resumindo:

2680. A oração é principalmente dirigida ao Pai. Igualmente se dirige a Jesus, nomeada-


mente pela invocação do seu santo Nome: «Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor, tende
piedade de nós, pecadores!».
2681. «Ninguém pode dizer: "Jesus é o Senhor", a não ser pela acção do Espírito Santo» (1
Cor 12, 3). A Igreja convida-nos a invocar o Espírito Santo como mestre interior da oração
cristã.
2682. Em virtude da sua singular cooperação com a acção do Espírito Santo, a Igreja gosta
de orar em comunhão com a Virgem Maria, para enaltecer com Ela as grandes coisas que
Deus n'Ela realizou e para Lhe confiar súplicas e louvores.

ARTIGO 3

GUIAS PARA A ORAÇÃO

UMA NUVEM DE TESTEMUNHAS

2683. As testemunhas que nos precederam no Reino (30), especialmente aquelas que a Igreja
reconhece como «santos», participam na tradição viva da oração pelo exemplo da sua vida,
pela transmissão dos seus escritos e pela sua oração actual. Elas contemplam a Deus, louvam-
n' O e não cessam de tomar a seu cuidado os que deixaram na terra. Tendo entrado «na
alegria» do seu Senhor, foram «estabelecidas à frente de muita coisa» (31). A sua intercessão é
o mais alto serviço que prestam ao desígnio de Deus. Podemos e devemos pedir-lhes que in-
tercedam por nós e por todo o mundo.
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2684. Na comunhão dos santos desenvolveram-se, ao longo da história das Igrejas diversas
espiritualidades. O carisma pessoal duma testemunha do amor de Deus pelos homens pode
ter sido transmitido, como o espírito de Elias o foi a Eliseu (32) e a João Baptista (33), para
que haja discípulos que partilhem desse espírito (34). Uma espiritualidade está também na
confluência doutras correntes, litúrgicas e teológicas, e testemunha a inculturação da fé num
determinado meio humano e na respectiva história. As espiritualidades cristãs participam na
tradição viva da oração e são guias indispensáveis para os fiéis. Reflectem, na sua rica diver-
sidade, a pura e única luz do Espírito Santo.
«O Espírito é verdadeiramente o lugar dos santos. E o santo é, para o Espírito, um lugar
próprio, pois se oferece para habitar com Deus e é chamado seu templo»(35).

SERVOS DA ORAÇÃO

2685. A família cristã é o primeiro lugar da educação para a oração. Fundada no sacramento
do Matrimónio, é «a igreja doméstica» na qual os filhos de Deus aprendem a orar «em igreja»
e a perseverar na oração. Particularmente para os filhos pequenos, a oração familiar quotidi-
ana é o primeiro testemunho da memória viva da Igreja pacientemente despertada pelo
Espírito Santo.
2686. Os ministros ordenados são também responsáveis pela formação na oração dos seus
irmãos e irmãs em Cristo. Servos do Bom Pastor, são ordenados para guiar o povo de Deus ate
às fontes vivas da oração: a Palavra de Deus, a Liturgia, a vida teologal, o «hoje» de Deus nas
situações concretas (36).
2687. Muitos religiosos têm consagrado toda a sua vida à oração. Depois dos anacoretas do
deserto do Egipto, eremitas, monges e monjas têm dedicado o seu tempo ao louvor de Deus e
à intercessão pelo seu povo. A vida consagrada não se mantém nem se propaga sem a oração;
é uma das fontes vivas da contemplação e da vida espiritual na Igreja.
2688. A catequese das crianças, dos jovens e dos adultos visa a que a Palavra de Deus seja
meditada na oração pessoal, actualizada na oração litúrgica e interiorizada em todo o tempo,
para que dê fruto numa vida nova. A catequese é também o momento em que se pode purifi-
car e educar a piedade popular (37). A memorização das orações fundamentais oferece um
suporte indispensável à vida de oração, mas é importante que se faça saborear o seu sentido
(38).
2689. Grupos de oração e até «escolas de oração» são hoje um dos sinais e um dos estímulos
da renovação da oração na Igreja, na condição de irem beber às fontes autênticas da oração
cristã. A preocupação com a comunhão é sinal da verdadeira oração na Igreja.
2690. O Espírito Santo concede a certos fiéis dons de sabedoria, de fé e de discernimento, em
vista deste bem comum que é a oração (direcção espiritual). Aqueles e aquelas que de tais
dons são dotados, são verdadeiros ministros da tradição viva da oração:
É por isso que a alma que quer progredir na perfeição deve, segundo o conselho de São João
da Cruz, «olhar em que mãos se põe, porque, qual o mestre, tal será o discípulo, e tal pai, tal
filho». E ainda: o guia, «além de sábio e discreto, é mister que seja experimentado» [...]. Se o
guia espiritual «não tem experiência do que é puro e verdadeiro espírito, não atinará a en-
caminhar nele, quando Deus lho dá, nem ainda o poderia entender» (39).
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LUGARES FAVORÁVEIS À ORAÇÃO

2691. A igreja, casa de Deus, é o lugar próprio da oração litúrgica para a comunidade paro-
quial. É também o lugar privilegiado para a adoração da presença real de Cristo no Santíssimo
Sacramento. A escolha dum lugar favorável não é indiferente para a verdade da oração:
– para a oração pessoal, pode servir um «recanto de oração», com a Sagrada Escritura e
ícones (imagens) para aí se estar «no segredo» diante do Pai (40). Numa família cristã, este
género de pequeno oratório favorece a oração em comum;
– nas regiões onde existem mosteiros, tais comunidades estão vocacionadas para favorecer a
participação dos fiéis na Liturgia das Horas e permitir a solidão necessária para uma oração
pessoal mais intensa (41);
– as peregrinações evocam a nossa marcha na terra para o céu. São tradicionalmente tempos
fortes duma oração renovada. Os santuários são, para os peregrinos à procura das suas fontes
vivas, lugares excepcionais para viver «em Igreja» as formas da oração cristã.

Resumindo:

2692. Na sua oração, a Igreja peregrina associa-se à dos santos, cuja intercessão solicita.
2693. As diferentes espiritualidades cristãs participam na tradição viva da oração e são
guias preciosos da vida espiritual.
2694. A família cristã é o primeiro lugar da educação para a oração.
2695. Os ministros ordenados, a vida consagrada, a catequese, os grupos de oração, a «dir-
ecção espiritual» prestam, na Igreja, ajuda d oração.
2696. Os lugares mais favoráveis para a oração são: o oratório pessoal ou familiar, os
mosteiros, os santuários de peregrinação e, sobretudo, a igreja, que é o lugar próprio da or-
ação litúrgica para a comunidade paroquial e o lugar privilegiado da adoração eucarística.

CAPÍTULO TERCEIRO
A VIDA DE ORAÇÃO

2697. A oração é a vida do coração novo. Deve animar-nos a todo o momento. Mas acontece
que nos esquecemos d'Aquele que é a nossa vida e o nosso tudo. É por isso que os Padres es-
pirituais, na sequência do Deuteronómio e dos profetas, insistem na oração como «lembrança
de Deus», frequente despertador da «memória do coração». «Devemos lembrar- nos de Deus
com mais frequência do que respiramos» (1). Mas não se pode orar «em todo o tempo», se
não se orar em certos momentos, voluntariamente: são os tempos fortes da oração cristã, em
intensidade e duração.
2698. A Tradição da Igreja propõe aos fiéis ritmos de oração destinados a alimentar a oração
contínua. Alguns são quotidianos: a oração da manhã e da noite, antes e depois das refeições,
a Liturgia das Horas. O Domingo, centrado na Eucaristia, é santificado principalmente pela
oração. O ciclo do ano litúrgico e as suas grandes festas constituem os ritmos fundamentais da
vida de oração dos cristãos.
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2699. O Senhor conduz cada pessoa pelos caminhos e da maneira que Lhe apraz. Por seu
turno, cada fiel responde-Lhe conforme a determinação do seu coração e as expressões pess-
oais da sua oração. No entanto, a tradição cristã conservou três expressões principais da vida
de oração: a oração vocal, a meditação e a contemplação. Têm um traço fundamental comum:
o recolhimento do coração. Esta atenção em guardar a Palavra e permanecer na presença de
Deus faz destas três expressões tempos fortes da vida de oração.

ARTIGO 1

AS EXPRESSÕES DA ORAÇÃO

I. A oração vocal

2700. Pela sua Palavra, Deus fala ao homem. É nas palavras, mentais ou vocais, que a nossa
oração toma corpo. Mas o mais importante é a presença do coração Àquele a Quem falamos
na oração. «Que a nossa oração seja atendida não depende da quantidade de palavras, mas do
fervor das nossas almas» (2).
2701. A oração vocal é um elemento indispensável da vida cristã. Aos discípulos, atraídos pela
oração silenciosa do seu mestre, este ensina-lhes uma oração vocal: o «Pai-nosso». Jesus não
rezou apenas as orações litúrgicas da sinagoga: os evangelhos mostram-no-Lo a elevar a voz
para exprimir a sua oração pessoal, desde a bênção exultante do Pai (3) até à desolação do
Getsémani (4).
2702. A necessidade de associar os sentidos à oração interior corresponde a uma exigência da
natureza humana. Nós somos corpo e espírito e experimentamos a necessidade de traduzir ex-
teriormente os nossos sentimentos. Devemos rezar com todo o nosso ser para dar à nossa
súplica a maior força possível.
2703. Esta necessidade corresponde também a uma exigência divina. Deus procura quem O
adore em espírito e verdade e, por conseguinte, uma oração que suba viva das profundezas da
alma. Mas também quer a expressão exterior que associe o corpo à oração interior, porque ela
Lhe presta a homenagem perfeita de tudo a quanto Ele tem direito.
2704. Porque exterior e tão plenamente humana, a oração vocal é, por excelência, a oração
das multidões. Mas até a oração mais interior não pode prescindir da oração vocal. A oração
torna- se interior na medida em que tomamos consciência d'Aquele «a Quem falamos» (5).
Então, a oração vocal torna-se uma primeira forma da contemplação.

II. A meditação

2705. A meditação é sobretudo uma busca. O espírito procura compreender o porquê e o


como da vida cristã, para aderir e corresponder ao que o Senhor lhe pede. Exige uma atenção
difícil de disciplinar. Habitualmente, recorre-se à ajuda dum livro e os cristãos não têm falta
deles: a Sagrada Escritura, em especial o Evangelho, os santos ícones (as imagens), os textos
litúrgicos do dia ou do tempo, os escritos dos Padres espirituais, as obras de espiritualidade, o
grande livro da criação e o da história, a página do «hoje» de Deus.
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2706. Meditar no que se lê leva a assimilá-lo, confrontando-o consigo mesmo. Abre-se aqui
um outro livro: o da vida. Passa-se dos pensamentos à realidade. Segundo a medida da hu-
mildade e da fé, descobrem-se nela os movimentos que agitam o coração e é possível discerni-
los. Trata-se de praticar a verdade para chegar à luz: «Senhor, que quereis que eu faça?».
2707. Os métodos de meditação são tão diversos como os mestres espirituais. Um cristão de-
ve querer meditar com regularidade; doutro modo, torna-se semelhante aos três primeiros
terrenos da parábola do semeador (6). Mas um método não passa de um guia; o importante é
avançar, com o Espírito Santo, no caminho único da oração: Cristo Jesus.
2708. A meditação põe em acção o pensamento, a imaginação, a emoção e o desejo. Esta mo-
bilização é necessária para aprofundar as convicções da fé, suscitar a conversão do coração e
fortalecer a vontade de seguir a Cristo. A oração cristã dedica-se, de preferência, a meditar nos
«mistérios de Cristo», como na « lectio divina» ou no rosário. Esta forma de reflexão orante é
de grande valor, mas a oração cristã deve ir mais longe: até ao conhecimento amoroso do Sen-
hor Jesus, até à união com Ele.

III. A contemplação

2709. O que é a contemplação? Responde Santa Teresa: «Outra coisa não é, a meu parecer,
oração mental, senão tratar de amizade – estando muitas vezes tratando a sós – com Quem
sabemos que nos ama» (7).
A contemplação procura «Aquele que o meu coração ama» (Ct 1, 7) (8), que é Jesus, e n'Ele o
Pai. Ele é procurado, porque desejá-Lo é sempre o princípio do amor, e é procurado na fé
pura, esta fé que nos faz nascer d'Ele e viver n'Ele. Nesta modalidade de oração pode, ainda,
meditar-se; todavia, o olhar vai todo para o Senhor.
2710. A escolha do tempo e duração da contemplação depende duma vontade determinada,
reveladora dos segredos do coração. Não se faz contemplação quando se tem tempo; ao invés,
arranja-se tempo para estar com o Senhor, com a firme determinação de não Lho retirar dur-
ante o caminho, sejam quais forem as provações e a aridez do encontro. Não se pode meditar
sempre; mas pode-se entrar sempre em contemplação, independentemente das condições de
saúde, trabalho ou afectividade. O coração é o lugar da busca e do encontro, na pobreza e na
fé.
2711. A entrada na contemplação é análoga à da liturgia eucarística: «reunir» o coração, re-
colher todo o nosso ser sob a moção do Espírito Santo, habitar na casa do Senhor que nós
somos, despertar a fé para entrar na presença d'Aquele que nos espera, fazer cair as nossas
máscaras e voltar o nosso coração para o Senhor que nos ama, de modo a entregarmo-nos a
Ele como uma oferenda a purificar e transformar.
2712. A contemplação é a oração do filho de Deus, do pecador perdoado que consente em
acolher o amor com que é amado e ao qual quer corresponder amando ainda mais (9). Mas ele
sabe que o seu amor de correspondência é o que o Espírito Santo derrama no seu coração,
porque tudo é graça da parte de Deus. A contemplação é a entrega humilde e pobre à vontade
amorosa do Pai, em união cada vez mais profunda com o seu Filho muito amado.
2713. Assim, a contemplação é a expressão mais simples do mistério da oração. É um dom,
uma graça; só pode ser acolhida na humildade e na pobreza. É uma relação de aliança
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estabelecida por Deus no fundo do nosso ser (10). A contemplação é comunhão: nela, a
Santíssima Trindade conforma o homem, imagem de Deus, «à sua semelhança».
2714. A contemplação é, também, por excelência, o tempo forte da oração. Nela, o Pai enche-
nos de força, pelo Espírito Santo, para que se fortaleça em nós o homem interior, Cristo habite
nos nossos corações pela fé e nós sejamos radicados e alicerçados no amor (11).
2715. A contemplação é o olhar da fé, fixado em Jesus. «Eu olho para Ele e Ele olha para
mim» – dizia, no tempo do seu santo Cura, um camponês d'Ars em oração diante do sacrário
(12). Esta atenção a Ele é renúncia ao «eu». O seu olhar purifica o coração. A luz do olhar de
Jesus ilumina os olhos do nosso coração; ensina-nos a ver tudo à luz da sua verdade e da sua
compaixão para com todos os homens. A contemplação dirige também o seu olhar para os
mistérios da vida de Cristo. E assim aprende «o conhecimento íntimo do Senhor» para mais O
amar e seguir (13).
2716. A contemplação é escuta da Palavra de Deus. Longe de ser passiva, esta escuta é obed-
iência da fé, acolhimento incondicional do servo e adesão amorosa do filho. Participa do
«sim» do Filho que se fez Servo e do «faça-se» da sua humilde serva.
2717. A contemplação é silêncio, este «símbolo do mundo que há-de vir» (14) ou «linguagem
calada do amor» (15). Na contemplação, as palavras não são discursos, mas acendalhas que
alimentam o fogo do amor. É neste silêncio, insuportável para o homem «exterior», que o Pai
nos diz o seu Verbo encarnado, sofredor, morto e ressuscitado e que o Espírito filial nos faz
participar da oração de Jesus.
2718. A contemplação é união à oração de Cristo na medida em que nos faz participar no seu
mistério. O mistério de Cristo é celebrado pela Igreja na Eucaristia e o Espírito Santo faz-nos
viver dele na contemplação, para que seja manifestado pela caridade em acto.
2719. A contemplação é uma comunhão de amor, portadora de vida para a multidão, na me-
dida em que é consentimento em permanecer na noite da fé. A noite pascal da ressurreição
passa pela da agonia e do sepulcro. São estes três tempos fortes da «Hora» de Jesus, que o seu
Espírito (e não a «carne», que é «fraca») nos faz viver na oração contemplativa. É preciso con-
sentir em velar uma hora com Ele (16).

Resumindo:

2720. A Igreja convida os fiéis para uma oração regular: orações quotidianas, Liturgia das
Horas, Eucaristia dominical, festas do ano litúrgico.
2721. A tradição cristã compreende três expressões principais da vida de oração: a oração
vocal, a meditação e a contemplação. Têm em comum o recolhimento do coração.
2722. A oração vocal, fundada na união do corpo e do espírito na natureza humana, asso-
cia o corpo à oração interior do coração, a exemplo de Cristo que orava ao Pai e ensinava o
«Pai- nosso» aos seus discípulos.
2723. A meditação é uma busca orante que põe em acção o pensamento, a imaginação, a
emoção, o desejo. Tem por finalidade a apropriação crente do tema considerado, con-
frontado com a realidade da nossa vida.
2724. A contemplação é a expressão simples do mistério da oração. É um olhar de fé fixo em
Jesus, uma escuta da Palavra de Deus, um amor silencioso. Realiza a união com a oração de
Cristo, na medida em que nos faz participar no seu mistério.
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ARTIGO 2

O COMBATE DA ORAÇÃO

2725. A oração é um dom da graça e uma resposta decidida da nossa parte. Pressupõe sempre
um esforço. Os grandes orantes da Antiga Aliança antes de Cristo, bem como a Mãe de Deus e
os santos com Ele no-lo ensinam: a oração é um combate. Contra quem? Contra nós mesmos e
contra as astúcias do Tentador que tudo faz para desviar o homem da oração e da união com o
seu Deus. Reza-se como se vive, porque se vive como se reza. Se não se quiser agir habitual-
mente segundo o Espírito de Cristo, também não se pode orar habitualmente em seu nome. O
«combate espiritual» da vida nova do cristão é inseparável do combate da oração.

I. As objecções à oração

2726. No combate da oração, temos de enfrentar, em nós e à nossa volta, concepções er-
róneas da oração. Alguns vêem nela uma simples operação psicológica; outros, um esforço de
concentração para chegar ao vazio mental; outros ainda, reduzem-na a atitudes e palavras
rituais. No inconsciente de muitos cristãos, rezar é uma ocupação incompatível com tudo o
que têm de fazer: não têm tempo. Os que procuram a Deus na oração desanimam depressa,
porque não sabem que a oração também vem do Espírito Santo e não somente de si próprios.
2727. Temos de enfrentar também certas mentalidades «deste mundo» que nos invadem, se
não estivermos atentos. Por exemplo: só é verdadeiro o que se pode verificar pela razão e pela
ciência (mas orar é um mistério que ultrapassa a nossa consciência e o nosso inconsciente); os
valores são a produção e o rendimento (mas a oração é improdutiva, logo inútil); o sensual-
ismo e o conforto são os critérios do verdadeiro, do bem e do belo (mas a oração, «amor da
beleza» – philocália – deixa-se encantar pela glória do Deus vivo e verdadeiro); em reacção ao
activismo, temos a oração apresentada como fuga do mundo (mas a oração cristã não é uma
saída da história nem um divórcio da vida).
2728. Finalmente, o nosso combate tem de enfrentar aquilo que sentimos como sendo os
nossos fracassos na oração: desânimo na aridez, tristeza por não dar tudo ao Senhor, porque
temos «muitos bens» decepção por não sermos atendidos segundo a nossa própria vontade, o
nosso orgulho ferido que se endurece perante a nossa indignidade de pecadores, alergia à gra-
tuitidade da oração, etc... A conclusão é sempre a mesma: de que serve orar? Para vencer tais
obstáculos, é preciso combater com humildade, confiança e perseverança.

II. A humilde vigilância do coração

PERANTE AS DIFICULDADES DA ORAÇÃO

2729. A dificuldade habitual da nossa oração é a distracção. Pode ter por objecto as palavras
e o seu sentido, na oração vocal; mais profundamente, pode incidir sobre Aquele a Quem
rezamos, na oração vocal (litúrgica ou pessoal), na meditação e na contemplação. Partir à caça
das distracções seria cair nas suas ciladas; basta regressar ao nosso coração: uma distracção
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revela-nos aquilo a que estamos apegados e esta humilde tomada de consciência diante do
Senhor deve despertar o nosso amor preferencial por Ele, oferecendo-Lhe resolutamente o
nosso coração para que Ele o purifique. É aí que se situa o combate: na escolha do Senhor a
quem servir (18).
2730. Positivamente, o combate contra o nosso eu, possessivo e dominador, consiste na vi-
gilância, a sobriedade do coração. Quando Jesus insiste na vigilância, esta refere-se sempre a
Ele, à sua vinda, no último dia e em cada dia: «hoje». O Esposo chega a meio da noite. A luz
que não se deve extinguir é a da fé: «Diz-me o coração: "Procura a sua face"» (Sl 27, 8).
2731. Outra dificuldade, especialmente para os que querem rezar com sinceridade, é a aridez.
Faz parte da oração em que o coração está seco, sem gosto pelos pensamentos, lembranças e
sentimentos, mesmo espirituais. É o momento da fé pura, que se aguenta fielmente ao lado de
Jesus na agonia e no sepulcro. «Se o grão de trigo morrer, dará muito fruto» (Jo 12, 24). Se a
aridez for devida à falta de raiz, por a Palavra ter caído em terreno pedregoso, o combate entra
no campo da conversão (19).

PERANTE AS TENTAÇÕES NA ORAÇÃO

2732. A tentação mais comum e a mais oculta é a nossa falta de fé. Exprime-se menos por
uma incredulidade declarada do que por uma preferência de facto. Quando começamos a orar,
mil trabalhos e preocupações, julgados urgentes, apresentam-se-nos como prioritários. É mais
uma vez o momento da verdade do coração e do seu amor preferencial. Umas vezes, voltamo-
nos para o Senhor como nosso último recurso: mas será que acreditamos mesmo n'Ele? Out-
ras vezes, tomamos o Senhor como aliado, mas conservamos o coração cheio de presunção.
Em todos os casos, a nossa falta de fé revela que ainda não temos as disposições de um cor-
ação humilde: «Sem Mim, nada podereis fazer» (Jo 15, 5).
2733. Outra tentação, à qual a presunção abre a porta, é a acédia. Os Padres espirituais en-
tendem por ela uma forma de depressão devida ao relaxamento da ascese, à diminuição da vi-
gilância, à negligência do coração. «O espírito está decidido, mas a carne é fraca» (Mt 26, 41).
Quanto de mais alto se cai, mais magoado se fica. O desânimo doloroso é o reverso da presun-
ção. Quem é humilde não se admira da sua miséria; ela leva-o a ter mais confiança e a manter-
se firme na constância.

III. A confiança filial

2734. A confiança filial é posta à prova – e prova-se a si mesma – na tribulação (20). A prin-
cipal dificuldade diz respeito à oração de petição, na intercessão por si ou pelos outros. Al-
guns deixam mesmo de orar porque, segundo pensam, o seu pedido não é atendido. Aqui,
duas questões se põem: Por que é que pensamos que o nosso pedido não é atendido? E como é
que a nossa oração é atendida, e «eficaz»?

PORQUE NOS LAMENTARMOS POR NÃO SERMOS ATENDIDOS?

2735. Antes de mais, uma constatação deveria surpreender-nos. É que, quando louvamos a
Deus ou Lhe damos graças pelos seus benefícios em geral, não nos importamos nada com
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saber se a nossa oração Lhe é agradável, ao passo que exigimos ver o resultado da nossa
petição. Qual é, então, a imagem de Deus que motiva a nossa oração: um meio a utilizar ou o
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo?
2736. Será que estamos convencidos de que «não sabemos o que pedir, para rezar como de-
vemos» (Rm 8, 26)? Será que pedimos a Deus «os bens convenientes»? O nosso Pai sabe
muito bem do que precisamos, antes que Lho peçamos (21), mas espera o nosso pedido,
porque a dignidade dos seus filhos está na sua liberdade. Devemos, pois, orar com o seu
Espírito de liberdade para podermos conhecer de verdade qual é o seu desejo (22).
2737. «Não tendes, porque não pedis. Pedis e não recebeis, porque pedis mal, pois o que ped-
is é para satisfazer as vossas paixões» (Tg 4, 2-3) (23). Se pedirmos com um coração dividido,
«adúltero» (24), Deus não pode atender-nos, pois quer o nosso bem, a nossa vida. «Ou pen-
sais que a Escritura diz em vão: "o Espírito que habita em nós ama-nos com ciúme"?» (Tg 4,
5). O nosso Deus é «ciumento» de nós e isso é sinal da verdade do seu amor. Entremos no
desejo do seu Espírito e seremos atendidos:
«Não te aflijas, se não recebes logo de Deus o que Lhe pedes: é que Ele quer beneficiar-te
ainda mais pela tua perseverança em permanecer com Ele na oração» (25).
Ele quer «que o nosso desejo se exercite na oração dilatando-nos, de modo a termos capacid-
ade para receber o que Ele prepara para nos dar» (26).

COMO É QUE A NOSSA ORAÇÃO SERIA EFICAZ?

2738. A revelação da oração na economia da salvação ensina-nos que a fé se apoia na acção


de Deus na história. A confiança filial é suscitada pela sua acção por excelência: a paixão e res-
surreição do seu Filho. A oração cristã é cooperação com a sua providência, com o seu
desígnio de amor para com os homens.
2739. Em São Paulo, esta confiança é audaciosa (27), apoiando-se na oração do Espírito em
nós e no amor fiel do Pai que nos deu o seu Filho Único (28). A transformação do coração que
ora é a primeira resposta ao nosso pedido.
2740. A oração de Jesus faz da oração cristã uma petição eficaz. Jesus é o modelo da oração
cristã; Ele ora em nós e connosco. Uma vez que o coração do Filho não procura senão o que
agrada ao Pai, como poderia o dos filhos adoptivos apegar-se mais aos dons que ao Doador?
2741. Jesus também ora por nós, em nosso lugar e em nosso favor. Todos os nossos pedidos
foram reunidos, de uma vez por todas, no seu brado sobre a cruz e atendidos pelo Pai na sua
ressurreição; e é por isso que Ele não cessa de interceder por nós junto do Pai (29). Se a nossa
oração estiver resolutamente unida à de Jesus na confiança e na audácia filial, obteremos tudo
o que pedirmos em seu nome e muito mais do que isto ou aquilo: o próprio Espírito Santo que
inclui todos os dons.

IV. Perseverar no amor

2742. «Orai sem cessar» (1 Ts 5, 17), «dai sempre graças por tudo a Deus Pai, em nome de
nosso Senhor Jesus Cristo» (Ef 5, 20), «servindo-vos de toda a espécie de orações e preces,
orai em todo o tempo no Espírito Santo; e, para isso, vigiai com toda a perseverança e com
preces por todos os santos» (Ef 6, 18). «Não nos foi mandado que trabalhemos, velemos e
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jejuemos constantemente, mas temos a lei de orar sem cessar» (30) Este fervor incansável só
pode vir do amor. Contra a nossa lentidão e preguiça, o combate da oração é o do amor hu-
milde, confiante e perseverante. Este amor abre os nossos corações a três evidências de fé, lu-
minosas e vivificantes:
2743. Orar é sempre possível: O tempo do cristão é o de Cristo Ressuscitado, que está «con-
nosco todos os dias» (Mt 28, 20), sejam quais forem as tempestades (31). O nosso tempo está
na mão de Deus:
«É possível, mesmo no mercado ou durante um passeio solitário, fazer oração frequente e fer-
vorosa; sentados na vossa loja, a tratar de compras e vendas, até mesmo a cozinhar» (32).
2744. Orar é uma necessidade vital. A demonstração do contrário não é menos convincente:
se não nos deixarmos conduzir pelo Espírito Santo, recairemos na escravidão do pecado (33).
Ora, como pode o Espírito Santo ser a «nossa vida» se o nosso coração estiver longe d'Ele?
«Nada iguala o valor da oração; ela torna possível o impossível, fácil o difícil. [...] É impossível
[...] que o homem que ora caia no pecado» (34). «Quem reza salva-se, de certeza; quem não
reza condena-se, de certeza»».
2745. Oração e vida cristã são inseparáveis, porque se trata do mesmo amor e da mesma
renúncia que procede do amor; da mesma conformidade filial e amorosa com o desígnio de
amor do Pai; da mesma união transformante no Espírito Santo que nos conforma sempre
mais com Cristo Jesus; do mesmo amor para com todos os homens, desse amor com que Je-
sus nos amou. «Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo concederá. O que vos
mando é que vos ameis uns aos outros» (Jo 15, 16-17).
«Ora sem cessar, aquele que une a oração às obras e as obras à oração. Só assim é que po-
demos considerar como realizável o preceito de orar incessantemente» (36).

V. A oração da Hora de Jesus

2746. Ao chegar a sua «Hora», Jesus ora ao Pai (37). A sua oração, a mais longa que nos é
transmitida pelo Evangelho, abraça toda a economia da criação e da salvação, bem como a sua
morte e ressurreição. A oração da «Hora» de Jesus continua sempre sua, tal como a sua Pás-
coa, acontecida «uma vez por todas», continua presente na liturgia da sua Igreja.
2747. A tradição cristã chama-lhe, a justo título, a oração «sacerdotal» de Jesus. Ela é, de
facto, a oração do nosso Sumo-Sacerdote, inseparável do seu sacrifício, da sua «passagem»
(páscoa) deste mundo para o Pai, em que é inteiramente «consagrado» ao Pai (38).
2748. Nesta oração pascal, sacrificial, tudo está «recapitulado» n'Ele (39): Deus e o mundo, o
Verbo e a carne, a vida eterna e o tempo, o amor que se entrega e o pecado que o atraiçoa, os
discípulos presentes e os que n'Ele hão-de crer pela palavra deles, a humilhação e a glória. É a
Oração da Unidade.
2749. Jesus cumpriu perfeitamente a obra do Pai e a sua oração, como o seu sacrifício es-
tende- se até à consumação do tempo. A oração da «Hora» preenche os últimos tempos e leva-
os à sua consumação. Jesus, o Filho a Quem o Pai tudo deu, entrega-Se todo ao Pai; e, ao
mesmo tempo, exprime-Se com uma liberdade soberana (40), segundo o poder que o Pai Lhe
deu sobre toda a carne. O Filho, que Se fez Servo, é o Senhor, o Pantocrátor. O nosso Sumo-
Sacerdote que ora por nós é também Aquele que em nós ora e o Deus que nos atende.
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2750. É entrando no santo nome do Senhor Jesus que podemos acolher, desde dentro, a or-
ação que Ele nos ensina: «Pai nosso!». A sua oração sacerdotal inspira, a partir de dentro, as
grandes petições do Pai-nosso: a preocupação com o nome do Pai (41), a paixão pelo seu
Reino (a glória) (42), o cumprimento da vontade do Pai, do seu desígnio de salvação (43) e a
libertação do mal (44).
2751. Finalmente, é nesta oração que Jesus nos revela e nos dá o «conhecimento» indisso-
ciável do Pai e do Filho (45), que é o próprio mistério da vida de oração.

Resumindo:

2752. A oração pressupõe esforço e luta contra nós mesmos e contra as ciladas do Tentador.
O combate da oração é inseparável do «combate espiritual» necessário para agir habitual-
mente segundo o Espírito de Cristo: ora-se como se vive, porque se vive como se ora.
2753. No combate da oração, devemos enfrentar concepções erróneas, diversas correntes de
mentalidades e a experiência dos nossos fracassos. A estas tentações, que lançam a dúvida
sobre a utilidade ou até mesmo a possibilidade da oração, convém responder com hu-
mildade, confiança e perseverança.
2754. As principais dificuldades no exercício da oração são a distracção e a aridez. O remé-
dio está na fé, na conversão e na vigilância do coração.
2755. Duas tentações frequentes ameaçam a oração: a falta de fé e a acédia, que é uma es-
pécie de depressão devida ao relaxamento da ascese e que leva ao desânimo.
2756. A confiança filial é posta à prova quando temos a sensação de nem sempre ser aten-
didos. O Evangelho convida-nos a interrogarmo-nos sobre a conformidade da nossa oração
com o desejo do Espírito.
2757. «Orai sem cessar» (1 Ts 5, 17). Orar é sempre possível. É, até, uma necessidade vital.
Oração e vida cristã são inseparáveis.
2758. A oração da «Hora» de Jesus, justamente chamada «oração sacerdotal» (46), re-
capitula toda a economia da criação e da salvação. É ela que inspira as grandes petições do
«Pai-nosso».
SEGUNDA SECÇÃO

A ORAÇÃO DO SENHOR: “PAI NOSSO”

2759. «Um dia, estava Jesus em oração, em certo lugar. Quando acabou, disse-lhe um dos
seus discípulos: "Senhor, ensina-nos a orar, como João Baptista também ensinou os seus dis-
cípulos"» (Lc 11, 1). Foi em resposta a este pedido que o Senhor confiou aos seus discípulos e à
sua Igreja a oração cristã fundamental. São Lucas apresenta-nos um texto breve dessa oração
(cinco petições)(1); São Mateus, uma versão mais desenvolvida (sete petições) (2). A tradição
litúrgica da Igreja reteve o texto de São Mateus (Mt 6, 9-13):
Pai Nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso Nome, venha a nós o vosso Reino, seja
feita a vossa vontade assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje,
perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não
nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do Mal.
2760. Bem cedo o uso litúrgico concluiu a oração do Senhor por uma doxologia. Na Didakê:
«Porque Vosso é o poder e a glória, pelos séculos» (3). A esta doxologia, as Constituições
Apostólicas acrescentam no princípio: «o Reino» (4), e essa é a fórmula que se usa em nossos
dias na oração ecuménica. A tradição bizantina acrescenta, depois de «a glória»: «Pai, Filho e
Espírito Santo». O Missal Romano amplia a última petição (5) na perspectiva explícita da «ex-
pectativa da bem-aventurada esperança» (6) e da vinda de Jesus Cristo nosso Senhor,
seguindo-se a aclamação da assembleia que retoma a doxologia das Constituições Apostólicas.

ARTIGO 1

«O RESUMO DE TODO O EVANGELHO»

2761. «A oração dominical é verdadeiramente o resumo de todo o Evangelho»(7). «Depois de


o Senhor nos ter legado esta fórmula de oração, acrescentou "Pedi e recebereis" (Jo 16, 24).
Cada um pode, portanto, dirigir ao céu diversas orações segundo as suas necessidades, mas
começando sempre pela oração do Senhor, que continua a ser a oração fundamental» (8).

I. No centro da Sagrada Escritura

2762. Depois de ter mostrado como os Salmos são o alimento principal da oração cristã e
convergem para as petições do Pai-nosso, Santo Agostinho conclui:
«Percorrei todas as orações que existem na Sagrada Escritura; não creio que possais encontrar
uma só que não esteja incluída e compendiada nesta oração dominical» (9).
2763. Todas as Escrituras (a Lei, os Profetas e os Salmos) se cumpriram em Cristo (10). O
Evangelho é esta «boa-nova». O seu primeiro anúncio está resumido por São Mateus no ser-
mão da montanha (11). Ora a oração do Pai-nosso está no centro deste anúncio. E é neste con-
texto que se elucida cada uma das petições da oração legada pelo Senhor:
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«A oração dominical é a mais perfeita das orações [...]. Nela, não só pedimos tudo quanto po-
demos rectamente desejar, mas também segundo a ordem em que convém desejá-lo. De modo
que esta oração, não só nos ensina a pedir, mas também plasma todos os nossos afectos» (12).
2764. O sermão da montanha é doutrina de vida e a oração dominical é prece; mas num e
noutra, o Espírito do Senhor dá uma forma nova aos nossos desejos, a esses movimentos in-
teriores que animam a nossa vida. Jesus ensina-nos a vida nova com as suas palavras e
ensina-nos a pedi-la pela oração. Da rectidão da nossa oração dependerá a da nossa vida n'
Ele.

II. «A oração do Senhor»

2765. A expressão tradicional «oração dominical» (isto é, «oração do Senhor») significa que a
prece dirigida ao nosso Pai nos foi ensinada e legada pelo Senhor Jesus. Tal oração, que nos
vem de Jesus, é verdadeiramente única: é «do Senhor». Efectivamente, por um lado, nas pa-
lavras desta oração o Filho Único dá-nos as palavras que o Pai Lhe deu (13): Ele é o mestre da
nossa oração. Por outro lado, sendo o Verbo encarnado, Ele conhece no seu coração de
homem as necessidades dos seus irmãos e irmãs humanos e revela-no-las: Ele é o modelo da
nossa oração.
2766. Mas Jesus não nos deixa uma fórmula para ser repetida maquinalmente (14). Como em
toda a oração vocal, é pela Palavra de Deus que o Espírito Santo ensina os filhos de Deus a or-
ar ao seu Pai. Jesus dá-nos, não somente as palavras da nossa oração filial, mas também, ao
mesmo tempo, o Espírito pelo qual elas se tornam em nós «espírito e vida» (Jo 6, 63). Mais
ainda: a prova e a possibilidade da nossa oração filial é que o Pai «enviou aos nossos corações
o Espírito do seu Filho que clama: "Abbá! ó Pai!"» (Gl 4, 6). Uma vez que a nossa oração
traduz os nossos desejos diante do Pai, é ainda «Aquele que sonda os corações», o Pai, que
«conhece o desejo do Espírito, porque é de acordo com Deus que o Espírito intercede pelos
santos» (Rm 8, 27). A oração ao nosso Pai insere-se na missão misteriosa do Filho e do
Espírito.

III. A oração da Igreja

2767. Esta dádiva indissociável das palavras do Senhor e do Espírito Santo que lhes dá vida
no coração dos crentes foi recebida e vivida pela Igreja desde as origens. As primeiras
comunidades rezavam a oração do Senhor «três vezes por dia» (15), em vez das «dezoito
bênçãos» usadas pela piedade judaica.
2768. Segundo a Tradição apostólica, a oração do Senhor está essencialmente radicada na or-
ação litúrgica:
O Senhor «ensina-nos a fazer a nossa oração em comum por todos os nossos irmãos. Porque
Ele não diz «meu Pai» que estás nos céus, mas sim nosso Pai, para que a nossa oração seja,
numa só alma, por todo o corpo da Igreja» (16).
Em todas as tradições litúrgicas, a oração do Senhor é parte integrante das «horas» principais
do Ofício Divino. Mas é sobretudo nos três sacramentos da iniciação cristã que o seu carácter
eclesial aparece com evidência:
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2769. No Baptismo e na Confirmação, a entrega («traditio») da oração do Senhor significa o


novo nascimento para a vida divina. Uma vez que a oração cristã consiste em falar a Deus com
a própria Palavra de Deus, aqueles que são «regenerados [...] pela palavra do Deus vivo» (1 Pe
1, 23) aprendem a invocar o seu Pai com a única palavra que Ele escuta sempre. E podem fazê-
lo a partir de então, porque o selo da unção do Espírito Santo foi gravado indelevelmente no
seu coração, nos seus ouvidos, nos seus lábios, em todo o seu ser filial. É por isso que a maior
parte dos comentários patrísticos ao Pai-nosso são dirigidos aos catecúmenos e aos neófitos.
Quando a Igreja reza a oração do Senhor, é sempre o povo dos «recém-nascidos» que ora e al-
cança misericórdia (17).
2770. Na liturgia eucarística, a oração do Senhor aparece como a oração de toda a Igreja. Ali
se revela o seu sentido pleno e a sua eficácia. Situada entre a anáfora (oração eucarística) e a
liturgia da comunhão, recapitula, por um lado, todas as petições e intercessões expressas no
movimento da epiclese; e por outro, bate à porta do festim do Reino que a Comunhão sacra-
mental vai antecipar.
2771. Na Eucaristia, a oração do Senhor manifesta também o carácter escatológico das suas
petições. É a oração própria dos «últimos tempos», dos tempos da salvação que começaram
com a efusão do Espírito Santo e terminarão com o regresso do Senhor. Os pedidos que
fazemos ao nosso Pai, diferentemente das orações da Antiga Aliança, apoiam-se no mistério
da salvação já realizada, duma vez para sempre, em Cristo crucificado e ressuscitado.
2772. Desta fé inabalável brota a esperança que suscita cada uma das sete petições. Estas
exprimem os gemidos do tempo presente, este tempo da paciência e da espera, durante o qual
«ainda não se manifestou o que havemos de ser» (1 Jo 3, 2)(18). A Eucaristia e o Pai-nosso
tendem para a vinda do Senhor, «até que Ele venha!» (1 Cor 11, 26).

Resumindo:

2773. Em resposta ao pedido dos seus discípulos («Senhor, ensina-nos a orar»: Lc 11, 1),
Jesus confia-lhes a oração cristã fundamental do «Pai-nosso».
2774. «A Oração Dominical é verdadeiramente o resumo de todo o Evangelho» (19), «a
mais
perfeita das orações» (20). Está no centro da Sagrada Escritura.
2775. É chamada «Oração Dominical», porque nos vem do Senhor Jesus, mestre e modelo
da nossa oração.
2776. A Oração Dominical é a oração da Igreja por excelência. Faz parte integrante das
«horas» principais do Ofício Divino e dos sacramentos da iniciação cristã: Baptismo, Con-
firmação e Eucaristia. Integrada na Eucaristia, manifesta o carácter «escatológico» das
suas petições, na esperança do Senhor, «até que Ele venha» (1 Cor 11, 26).

ARTIGO 2

«PAI NOSSO, QUE ESTAIS NOS CÉUS»

I. «Ousar aproximar-se com toda a confiança»


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2777. Na liturgia romana, a assembleia eucarística é convidada a orar ao nosso Pai com ousa-
dia filial. As liturgias orientais utilizam e desenvolvem expressões análogas: «Ousar com toda
a segurança», «tomai-nos dignos de». Diante da sarça ardente foi dito a Moisés: «Não te
aproximes. Descalça as sandálias» (Ex 3, 5). Este umbral da santidade divina, só Jesus o podia
franquear, Ele que, «tendo realizado a purificação dos pecados» (Heb 1, 3), nos introduz per-
ante a face do Pai: «Eis-me, a mim e aos filhos que Deus Me deu!» (Heb 2, 13):
«A consciência que temos da nossa situação de escravos far-nos-ia sumir sob o chão, a nossa
condição terrena dissolver-se-ia em pó, se a autoridade do próprio Pai e o Espírito do Seu
Filho não nos levasse a soltar este grito dizendo: "Deus mandou o Espírito do Seu Filho aos
nossos corações clamando Abba, ó Pai!" (Rm 8, 15) [...]. Quando é que a fraqueza dum mortal
se atreveria a chamar a Deus seu Pai, senão somente quando o íntimo do homem é animado
pelo poder do alto?» (21).
2778. Este poder do Espírito que nos introduz na oração do Senhor é expresso, nas liturgias
do Oriente e do Ocidente, pela bela expressão tipicamente cristã: «parrêsía», simplicidade
sem desvio, confiança filial, segurança alegre, ousadia humilde, certeza de ser amado (22).

II. «Pai!»

2779. Antes de fazermos nosso este primeiro impulso da oração do Senhor, convém purificar
humildemente o nosso coração de certas falsas imagens «deste mundo». A humildade faz-nos
reconhecer que «ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho Se dignar
revelá-Lo», quer dizer «os pequeninos» (Mt 11, 25-27). A purificação do coração refere-se às
imagens paternas ou maternas provenientes da nossa história pessoal e cultural, que influen-
ciam o nosso relacionamento com Deus. É que Deus, nosso Pai, transcende as categorias do
mundo criado. Transpor para Ele ou contra Ele, as nossas ideias neste domínio, seria fabricar
ídolos, a adorar ou a derrubar. Orar ao Pai é entrar no seu mistério, tal como Ele é e tal como
o Filho no-Lo revelou:
«A expressão Deus Pai nunca tinha sido revelada a ninguém. Quando o próprio Moisés per-
guntou a Deus quem era, ouviu um nome diferente. A nós, este nome foi revelado no Filho;
porque este nome (de Filho) implica o nome de Pai» (23).
2780. Nós podemos invocar Deus como «Pai», porque Ele nos foi revelado pelo seu Filho
feito homem e porque o seu Espírito no-Lo faz conhecer. A relação pessoal do Filho com o Pai
(24), que o homem não pode conceber nem os poderes angélicos podem entrever, eis que o
Espírito do Filho nos faz participar dela, a nós que cremos que Jesus é o Cristo e que
nascemos de Deus (25).
2781. Quando oramos ao Pai, estamos em comunhão com Ele e com o seu Filho Jesus Cristo
(26). É então que O reconhecemos num encantamento sempre novo. A primeira palavra da
oração do Senhor é uma bênção de adoração, antes de ser uma súplica. Porque a glória de
Deus é que nós O reconheçamos como «Pai», Deus verdadeiro. Damos-Lhe graças por nos ter
revelado o seu nome, por nos ter dado a graça de acreditar n'Ele, de sermos habitados pela sua
presença.
2782. Nós podemos adorar o Pai porque Ele nos fez renascer para a sua vida adoptando-nos
por seus filhos no seu Filho Único: pelo Baptismo, incorpora-nos no corpo do seu Cristo; e
pela Unção do seu Espírito, que da Cabeça se derrama pelos membros, faz de nós «cristos»:
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«Deus, que nos predestinou para a adopção de filhos, tornou-nos conformes ao corpo glorioso
de Cristo. Doravante, pois, participantes de Cristo, sois com todo o direito chamados
"cristos"» (27).
«O homem novo, que renasceu e foi restituído ao seu Deus pela graça, começa por dizer,
"Pai!", porque se tornou filho» (28).
2783. Deste modo, pela oração do Senhor, nós somos revelados a nós próprios, ao mesmo
tempo que nos é revelado o Pai (29):
«Ó homem, tu não ousavas levantar o teu rosto para o céu, baixavas os teus olhos para a terra,
e de repente recebeste a graça de Cristo: todos os pecados te foram perdoados, de mau servo
tornaste-te bom filho [...]. Portanto, ergue os olhos para o Pai que te resgatou pelo seu Filho e
diz: Pai nosso [...]. Mas não reivindiques para ti algo de especial. Só de Cristo é que Ele é Pai
de modo especial, de todos nós é Pai em comum; porque só a Ele gerou, ao passo que a nós,
criou-nos. Portanto, por graça, diz também tu "Pai nosso", para mereceres ser filho» (30).
2784. Este dom gratuito da adopção exige da nossa parte uma conversão contínua e uma vida
nova. Orar ao nosso Pai deve desenvolver em nós duas disposições fundamentais:
O desejo e a vontade de nos parecermos com Ele. Criados à sua imagem, é pela graça que a
semelhança nos é restituída e a ela devemos corresponder.
«Devemos lembrar-nos de que, quando chamamos a Deus «Pai nosso», temos de nos compor-
tar como filhos de Deus» (31). «Vós não podeis chamar vosso Pai ao Deus de toda a bondade
se conservardes um coração cruel e desumano; porque, nesse caso, já não tendes a marca da
bondade do Pai celeste» (32). «Devemos contemplar incessantemente a beleza do Pai e im-
pregnar dela a nossa alma» (33)
2785. Um coração humilde e confiante que nos faça «voltar ao estado de crianças» (Mt 18,
3): porque é aos «pequeninos» que o Pai Se revela (Mt 11, 25):
É um estado «que se forma contemplando a Deus somente, com o ardor da caridade. Nele, a
alma funde-se e abisma-se em santa dilecção e trata com Deus como com o seu próprio Pai,
muito familiarmente, numa ternura de piedade muito particular» (34).
«Pai nosso – que haverá de mais querido para os filhos do que o pai? – Este nome suscita em
nós ao mesmo tempo o amor, o afecto na oração, [...] e também a esperança de obter o que va-
mos pedir [...]. De facto, que pode Ele recusar à súplica dos seus filhos, quando já previamente
lhes permitiu que fossem filhos seus?» (35).

III. Pai «nosso»

2786. Pai «nosso» refere-se a Deus. Pela nossa parte, o adjectivo «nosso» não exprime uma
posse, mas sim uma relação totalmente nova com Deus.
2787. Quando dizemos Pai «nosso», reconhecemos, antes de mais nada, que todas as suas
promessas de amor, anunciadas pelos profetas, se cumpriram na Nova e eterna Aliança no
seu Cristo: nós tornámo-nos o «seu» povo e Ele é doravante o «nosso» Deus. Esta relação
nova e uma pertença mútua, dada gratuitamente: é por amor e fidelidade (36) que temos de
responder «à graça e à verdade» que nos foram dadas em Cristo Jesus (37).
2788. Uma vez que a oração do Senhor é a do seu povo nos «últimos tempos», este «nosso»
exprime também a certeza da nossa esperança na última promessa de Deus: na Jerusalém
nova, Ele dirá ao vencedor: «Eu serei o seu Deus e ele será o meu Filho» (Ap 21, 7).
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2789. Rezando ao «nosso» Pai, é ao Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que nós nos dirigimos
pessoalmente. Não dividimos a divindade, pois que o Pai é a sua «fonte e origem», mas con-
fessamos desse modo que o Filho é por Ele gerado eternamente e que d'Ele procede o Espírito
Santo. Também não confundimos as Pessoas, pois confessamos que a nossa comunhão é com
o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo no seu único Espírito Santo. A Santíssima Trindade é
consubstancial e indivisível. Quando rezamos ao Pai, adoramo-Lo e glorificamo-Lo com o
Filho e o Espírito Santo.
2790. Gramaticalmente, «nosso» qualifica uma realidade comum a vários. Há um só Deus,
que é reconhecido como Pai por aqueles que, pela fé no seu Filho Único, renasceram d'Ele
pela água e pelo Espírito (38). A Igreja é esta nova comunhão de Deus com os homens; unida
ao Filho Único, que se tornou o «primogénito de muitos irmãos» (Rm 8, 29), ela está em
comunhão com um só e mesmo Pai, num só e mesmo Espírito Santo (39). Ao rezar Pai
«nosso», cada baptizado reza nesta comunhão: «A multidão dos que haviam abraçado a fé
tinha um só coração e uma só alma» (Act 4, 32).
2791. É por isso que, apesar das divisões dos cristãos, a oração ao «nosso» Pai continua a ser
um bem comum e um apelo premente para todos os baptizados. Em comunhão pela fé em
Cristo e pelo Baptismo, eles devem participar na oração de Jesus pela unidade dos seus dis-
cípulos (40).
2792. Por fim, se rezamos em verdade o «Pai-nosso», saímos do individualismo, pois o Amor
que nós acolhemos dele nos liberta. O «nosso» do princípio da oração do Senhor, tal como o
«nos» das quatro últimas petições, não é exclusivo de ninguém. Para que seja dito em verdade
(41), as nossas divisões e oposições têm de ser superadas.
2793. Os baptizados não podem dizer Pai «nosso», sem levar até junto d'Ele todos aqueles
por quem Ele deu o seu Filho bem-amado. O amor de Deus é sem fronteiras; a nossa oração
deve sê-lo também (42). Rezar Pai «nosso» abre-nos às dimensões do seu amor manifestado
em Cristo: orar com e por todos os homens que ainda O não conhecem, para que sejam «re-
unidos na unidade» (43). Este cuidado divino por todos os homens e por toda a criação anim-
ou todos os grandes orantes; deve também dilatar a nossa oração num amor sem limites,
quando ousamos dizer: Pai «nosso».

IV. «Que estais nos céus»

2794. Esta expressão bíblica não significa um lugar («o espaço»), mas um modo de ser; não é
o distanciamento de Deus, mas a sua majestade. O nosso Pai não está «algures», está «para
além de tudo» o que podemos conceber da sua santidade. E é por ser três vezes santo que Ele
está mesmo junto do coração humilde e contrito:
«É com razão que estas palavras: "Pai nosso que estais nos céus" se referem ao coração dos
justos, nos quais Deus habita como em seu templo. Por isso, também aquele que ora há-de
desejar ver morar em si Aquele a quem invoca» (44). «Os "céus" também poderiam muito
bem ser aqueles que trazem em si a imagem do mundo celeste e em quem Deus mora e pas-
seia» (45).
2795. O símbolo dos céus remete-nos para o mistério da Aliança que nós vivemos, quando
rezamos ao Pai. Ele está nos céus: é a sua morada. A casa do Pai é, pois, a nossa «pátria». Foi
da terra da Aliança que o pecado nos exilou (46), e é para o Pai, para o céu, que a conversão do
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coração nos faz voltar (47). Ora, foi em Cristo que o céu e a terra se reconciliaram (48), porque
o Filho «desceu do céu», sozinho, e para lá nos faz subir juntamente consigo, pela sua cruz,
ressurreição e ascensão (49).
2796. Quando a Igreja reza «Pai nosso que estais nos céus», professa que somos o povo de
Deus já sentado nos céus em Cristo Jesus (50) escondidos com Cristo em Deus (51) e que, ao
mesmo tempo, «gememos nesta tenda, ansiando por revestir-nos da nossa habitação celeste»
(2 Cor 5, 2) (52):
Os cristãos «estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Passam a vida na terra, mas são
cidadãos do céu» (53).

Resumindo:

2797. A confiança simples e fiel, a segurança humilde e alegre são as disposições que con-
vêm a quem reza o Pai-Nosso.
2798. Podemos invocar Deus como «Pai», porque no-Lo revelou o Filho de Deus feito
homem, em quem, pelo Baptismo, somos incorporados e adoptados como filhos de Deus.
2799. A oração do Senhor põe-nos em comunhão com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. E,
ao mesmo tempo, revela-nos a nós mesmos (54).
2800. Rezar ao nosso Pai deve fazer crescer em nós a vontade de nos parecermos com Ele e
criar em nós um coração humilde e confiante.
2801. Ao dizermos Pai «nosso», invocamos a Nova Aliança em Jesus Cristo, a comunhão
com a Santíssima Trindade e a caridade divina que, através da Igreja, se estende às di-
mensões do mundo.
2802. A expressão «que estais nos céus» não designa um lugar, mas sim a majestade de
Deus e a sua presença no coração dos justos. O céu, a Casa do Pai, constitui a verdadeira
pátria, para onde caminhamos e à qual desde já pertencemos.

ARTIGO 3

AS SETE PETIÇÕES

2803. Depois de nos termos posto na presença de Deus nosso Pai para O adorarmos, amar-
mos e bendizermos, o Espírito filial faz brotar dos nossos corações sete petições, que são sete
bênçãos. As três primeiras, mais teologais, atraem-nos para a glória do Pai; as quatro últimas,
como caminhos para Ele, expõem a nossa miséria à sua graça. «Abismo atrai abismo» (Sl 42,
8).
2804. O primeiro conjunto leva-nos até Ele, para Ele: o vosso nome, o vosso Reino, a vossa
vontade! É próprio do amor pensar, em primeiro lugar, n' Aquele que amamos. Em cada um
dos três pedidos, nós não «nos» nomeamos, mas o que nos move é o «desejo ardente», e
mesmo «a ânsia» do Filho bem-amado pela glória de seu Pai (55): «Santificado seja [...].
Venha [...]. Seja feita...». Estas três súplicas já foram atendidas no sacrifício de Cristo sal-
vador, mas agora estão orientadas, na esperança, para o seu cumprimento final, enquanto
Deus ainda não é tudo em todos (56).
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2805. O segundo conjunto de petições segue a dinâmica de certas epicleses eucarísticas: é of-
erenda das nossas expectativas e atrai o olhar do Pai das misericórdias. Parte de nós e diz- nos
respeito já agora, neste mundo: «Dai-nos [...], perdoai-nos [...], não nos deixeis [...], livrai-
nos...». A quarta e quinta petições dizem respeito à nossa vida, como tal, quer para a aliment-
ar, quer para a curar do pecado. As duas últimas dizem respeito ao nosso combate pela vitória
da vida, que é o próprio combate da oração.
2806. Pelas três primeiras petições, somos confirmados na fé, repletos de esperança e ab-
rasados pela caridade. Criaturas e, para além disso, pecadores, devemos pedir por nós – um
«nós» à medida do mundo e da história – que entregamos ao amor sem medida do nosso
Deus. Pois é pelo nome do seu Cristo e pelo Reino do seu Espírito Santo que o nosso Pai real-
iza o seu desígnio de salvação para nós e para todo o mundo.

I. «Santificado seja o vosso nome»

2807. A palavra «santificar» deve ser entendida, aqui, antes de mais, não no seu sentido
causativo (só Deus santifica, torna santo), mas sobretudo num sentido estimativo: reconhecer
como santo, tratar de um modo santo. É assim que, na adoração, esta invocação é por vezes
entendida como louvor e acção de graças (57). Mas esta petição é-nos ensinada por Jesus na
forma optativa: um pedido, um desejo, e expectativa na qual Deus e o homem estão empenha-
dos. Desde a primeira petição ao nosso Pai, mergulhamos no mistério íntimo da sua divindade
e no drama da salvação da nossa humanidade. Pedir-Lhe que o seu nome seja santificado é
envolvermo-nos «no desígnio benevolente que Ele de antemão formou a nosso respeito» (Ef 1,
9), para que «sejamos santos e imaculados diante d'Ele, no amor» (Ef 1, 4).
2808. Nos momentos decisivos da sua economia, Deus revela o seu nome; mas revela-o real-
izando a sua obra. Ora esta obra só se realiza, para nós e em nós, se o seu nome for santificado
por nós e em nós.
2809. A santidade de Deus é o foco inacessível do seu mistério eterno. Ao que dela se mani-
festou na criação e na história, a Escritura chama Glória, a irradiação da sua majestade (58).
Ao fazer o homem «à sua imagem e semelhança» (Gn 1, 26), Deus «coroa-o de glória» (59),
mas, ao pecar, o homem é «privado da glória de Deus» (60). Desde então, Deus vai manifestar
a sua santidade revelando e dando o seu nome, para restaurar o homem «à imagem do seu
Criador» (Cl 3, 10).
2810. Na promessa feita a Abraão e no juramento que a acompanha (61), Deus compromete-
Se a Si mesmo, mas sem revelar o seu nome. É a Moisés que começa a revelá-Lo (62), e
manifesta-O aos olhos de todo o povo salvando-o dos Egípcios: «revestiu-Se de glória» (Ex 15,
1). A partir da Aliança do Sinai, este povo é «seu» e deve ser uma «nação santa» (ou con-
sagrada; em hebreu é a mesma palavra) (63), porque o nome de Deus habita nela.
2811. Ora, apesar da Lei santa que o Deus santo lhe deu e tornou a dar (64), e muito embora o
Senhor, «por respeito pelo seu nome», usasse de paciência, o povo desviou-se do Santo de Is-
rael e «profanou o seu nome entre as nações» (65). Por isso, os justos da Antiga Aliança, os
pobres retornados do exílio e os profetas arderam de paixão pelo Nome.
2812. Finalmente, é em Jesus que o nome do Deus santo nos é revelado e dado, na carne,
como salvador (66): revelado pelo que Ele é, pela sua Palavra e pelo seu sacrifício (67). É o
coração da sua oração sacerdotal: «Pai santo, [...] por eles Eu me consagro para que também
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eles sejam consagrados na verdade» (Jo 17, 19). Porque Ele próprio «santifica» o seu nome
(68), é que Jesus nos «manifesta» o nome do Pai (69). No termo da sua Páscoa é que o Pai
Lhe dá então o nome que está acima de todo o nome: Jesus é Senhor para glória de Deus Pai
(70).
2813. Na água do Baptismo, nós fomos «purificados, santificados, justificados pelo nome do
Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus» (1 Cor 6, 11). Em toda a nossa vida, o
nosso Pai chama-nos «à santidade» (1 Ts 4, 7) e, uma vez que é por Ele que nós estamos em
Cristo Jesus, «o qual Se tornou para nós [...] santidade» (1 Cor 1, 30), interessa à sua glória e à
nossa vida que o seu nome seja santificado em nós e por nós. Tal é a urgência da nossa
primeira petição.
«Por quem poderia Deus ser santificado se é Ele próprio quem santifica? Mas porque Ele
mesmo disse: "sede santos, porque Eu sou santo" (Lv 14, 44), nós que fomos santificados no
Baptismo, pedimos e rogamos para perseverar no que começámos a ser. E isso nós o pedimos
todos os dias. Precisamos de uma santificação quotidiana para que, incorrendo em faltas to-
dos os dias, todos os dias sejamos delas purificados por uma santificação assídua [...] Port-
anto, oramos para que esta santificação permaneça em nós» (71).
2814. Depende inseparavelmente da nossa vida e da nossa oração que o seu nome seja santi-
ficado entre as nações:
«Pedimos a Deus que o seu nome seja santificado, porque é pela santidade que Ele salva e
santifica toda a criação. [...] Este é o nome que dá a salvação ao mundo perdido. Mas nós pedi-
mos que este nome de Deus seja santificado em nós pela nossa actuação. Porque se nós agir-
mos bem, o nome de Deus é bendito; mas é blasfemado se agirmos mal. Escuta o que diz o
Apóstolo: "O nome de Deus é blasfemado entre as nações, por causa de vós" (Rm 2, 24) 72.
Nós, portanto, pedimos para merecermos ter nos nossos costumes tanta santidade, quanto é
santo o nome de Deus» (73).
«Quando dizemos: "Santificado seja o vosso nome", pedimos que ele seja santificado em nós
que estamos n'Ele, mas também nos outros, por quem a graça de Deus ainda está à espera,
para nos conformarmos com o preceito que nos obriga a orar por todos, mesmo pelos nossos
inimigos. É por isso que nós não dizemos expressamente: santificado seja o vosso nome "em
nós", porque pedimos que o seja em todos os homens» (74).
2815. Esta petição, que as inclui todas, é atendida pela oração de Cristo, como as restantes
seis petições que se seguem. A oração que fazemos ao nosso Pai é nossa, se for rezada «em
nome» de Jesus (75). Na sua oração sacerdotal, Jesus pede: «Pai santo, guarda em teu nome
aqueles que Me deste» (Jo 17, 11).

II. «Venha a nós o vosso Reino»

2816. No Novo Testamento, a mesma palavra « basileia» pode traduzir-se por realeza (nome
abstracto), reino (nome concreto) ou reinado (nome de acção). O Reino de Deus está diante de
nós. Aproximou-se no Verbo encarnado, foi anunciado através de todo o Evangelho, veio na
morte e ressurreição de Cristo. O Reino de Deus vem desde a santa ceia e, na Eucaristia, está
no meio de nós. O Reino virá na glória, quando Cristo o entregar a seu Pai:
«É mesmo possível [...] que o Reino de Deus signifique o próprio Cristo, a Quem todos os dias
desejamos que venha e cuja Vinda queremos que aconteça depressa. Do mesmo modo que Ele
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é a nossa ressurreição, pois n'Ele ressuscitamos, assim também pode ser Ele próprio o Reino
de Deus, porque n'Ele reinaremos» (76).
2817. Esta petição é o «Marana Tha», o clamor do Espírito e da esposa: «Vem, Senhor
Jesus!»:
«Mesmo que esta oração não nos tivesse imposto o dever de pedir a vinda deste Reino, ter-
íamos espontaneamente soltado este grito, com pressa de irmos abraçar o objecto das nossas
esperanças. As almas dos mártires, sob o altar de Deus, invocam o Senhor com grandes gritos:
"Até quando, Senhor, até quando tardarás em pedir contas do nosso sangue aos habitantes da
terra?" (Ap 6, 10). Eles devem, com efeito, alcançar justiça, no fim dos tempos. Apressa, port-
anto, Senhor, a vinda do Teu Reino!» (77).
2818. Na oração do Senhor, trata-se principalmente da vinda final do Reino de Deus pelo re-
gresso de Cristo (78). Mas este desejo não distrai a Igreja da sua missão neste mundo, antes a
empenha nela. Porque, desde o Pentecostes, a vinda do Reino é obra do Espírito do Senhor,
«para continuar a sua obra no mundo e consumar toda a santificação» (79).
2819. «O Reino de Deus [...] é justiça, paz e alegria no Espírito Santo» (Rm 14, 17). Os últi-
mos tempos em que nos encontramos são os da efusão do Espírito Santo. Trava-se desde en-
tão um combate decisivo entre «a carne» e o Espírito (80):
«Só um coração puro pode dizer com confiança: "Venha a nós o vosso Reino". É preciso ter
passado pela escola de Paulo para dizer: "Que o pecado deixe de reinar no vosso corpo mortal"
(Rm 6, 12). Quem se conserva puro nos seus actos, pensamentos e palavras é que pode dizer a
Deus: "Venha a nós o vosso Reino!"» (81).
2820. Discernindo segundo o Espírito, os cristãos devem distinguir entre o crescimento do
Reino de Deus e o progresso da cultura e da sociedade em que estão inseridos. Esta distinção
não é uma separação. A vocação do homem para a vida eterna não suprime, antes reforça, o
seu dever de aplicar as energias e os meios recebidos do Criador no serviço da justiça e da paz
neste mundo (82).
2821. Esta petição é feita e atendida na oração de Jesus (83), presente e eficaz na Eucaristia;
ela produz o seu fruto na vida nova segundo as bem-aventuranças (84).

III. «Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu»

2822. É vontade do nosso Pai «que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento
da verdade» (1 Tm 2, 3-4). Ele «usa de paciência [...], não querendo que ninguém se perca» (2
Pe 3, 9) (85). O seu mandamento, que resume todos os outros e nos diz toda a sua vontade, é
que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou (86).
2823. Ele «manifestou-nos o mistério da sua vontade, segundo o beneplácito que nele de
antemão estabeleceu [...]: instaurar todas as coisas em Cristo [...]. Foi n'Ele também que
fomos escolhidos como sua herança, predestinados de acordo com o desígnio daquele que
tudo opera de acordo com a decisão da sua vontade» (Ef 1, 9-11). Nós pedimos com empenho
que este plano benevolente se realize por completo na terra, como já se cumpre no céu.
2824. Foi em Cristo e pela sua vontade humana que a vontade do Pai se cumpriu perfeita-
mente e duma vez para sempre. Ao entrar neste mundo, Jesus disse: «Eu venho, [...] o Deus,
para fazer a tua vontade» (Heb 10, 7) (87). Só Jesus pode dizer: «Faço sempre o que é do seu
agrado» (Jo 8, 29). Na oração da sua agonia, Ele conforma-Se totalmente com esta vontade:
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«Não se faça a minha vontade, mas a tua» (Lc 22, 42) (88). Eis por que Jesus «Se entregou
pelos nossos pecados [...] consoante a vontade de Deus» (Gl 1, 4). «Em virtude dessa mesma
vontade é que nós fomos santificados, pela oferenda do corpo de Jesus Cristo » (Heb 10, 10).
2825. Jesus, «apesar de ser Filho, aprendeu, por aquilo que sofreu, o que é obedecer» (Heb 5,
8). Com quanto mais razão nós, criaturas e pecadores, que n'Ele nos tornamos filhos de ad-
opção! Nós pedimos ao nosso Pai que una a nossa vontade à do seu Filho, para que se cumpra
a vontade d'Ele, o seu plano de salvação para a vida do mundo. Somos radicalmente impot-
entes para tal, mas unidos a Jesus e com o poder do seu Espírito Santo, podemos entregar-Lhe
a nossa vontade e decidir escolher o que o seu Filho sempre escolheu: fazer o que é do agrado
do Pai (89):
«Aderindo a Cristo, podemos tornar-nos um só espírito com Ele e assim cumprir a sua vont-
ade; desse modo, ela será feita na terra como no céu» (90). «Considerai como Jesus Cristo nos
ensina a ser humildes, fazendo-nos ver que a nossa virtude não depende só do nosso trabalho,
mas da graça de Deus. Aqui, Ele ordena a todo o fiel que ora a fazê-lo de modo universal, por
toda a terra. Porque não diz "seja feita a vossa vontade" em mim ou em vós, mas "em toda a
terra": para que dela seja banido o erro e nela reine a verdade, o vício seja destruído e a vir-
tude refloresça, e para que a terra deixe de ser diferente do céu» (91).
2826. É pela oração que podemos discernir qual é a vontade de Deus (92) e obter persever-
ança para a cumprir (93). Jesus ensina-nos que se entra no Reino dos céus, não por palavras,
mas «fazendo a vontade do meu Pai que está nos céus» (Mt 7, 21).
2827. «Se alguém honrar a Deus e cumprir a sua vontade, Ele o atende» (Jo 9, 31) (94). Tal é
o poder da oração da Igreja feita em nome do seu Senhor, sobretudo na Eucaristia; ela é
comunhão de intercessão com a santíssima Mãe de Deus (95) e com todos os santos que foram
«agradáveis» ao Senhor por não terem querido senão a sua vontade:
«Podemos ainda, sem trair a verdade, traduzir estas palavras: "seja feita a vossa vontade as-
sim na terra como no céu" por estoutras: na Igreja como em nosso Senhor Jesus Cristo; na es-
posa que Lhe foi desposada, como no esposo que cumpriu a vontade do Pai» (96).

IV. «O pão nosso de cada dia nos dai hoje»

2828. «Dai-nos»: como é bela a confiança dos filhos, que tudo esperam do Pai! «Ele faz nas-
cer o seu sol sobre maus e bons e chover sobre justos e injustos» (Mt 5, 45); dá a todos os
seres vivos «de comer a seu tempo» (Sl 104, 27). É Jesus quem nos ensina esta petição que, de
facto, glorifica o nosso Pai porque é o reconhecimento de quanto Ele é bom, acima de toda a
bondade.
2829. «Dai-nos» é também expressão da Aliança: nós somos d'Ele e Ele é nosso, é para nós.
Mas este «nós» reconhece-O também como Pai de todos os homens, e nós pedimos-Lhe por
todos, solidários com as suas necessidades e os seus sofrimentos.
2830. «O pão nosso». O Pai que nos dá a vida não pode deixar de nos dar o alimento ne-
cessário para a vida e todos os bens «convenientes», materiais e espirituais. No sermão da
montanha, Jesus insiste nesta confiança filial que coopera com a providência do nosso Pai
(97). Não nos incita a qualquer espécie de passividade (98), mas quer libertar-nos de toda a
inquietação ansiosa e de qualquer preocupação. Assim é o abandono filial dos filhos de Deus:
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«Àqueles que procuram o Reino e a justiça de Deus, Ele promete dar tudo por acréscimo. Com
efeito, tudo pertence a Deus: nada faltará àquele que possui a Deus se ele próprio não faltar a
Deus»(99).
2831. Mas a presença daqueles que têm fome por falta de pão revela outra profundidade
desta petição. O drama da fome no mundo chama os cristãos que oram com sinceridade a as-
sumir uma responsabilidade efectiva em relação aos seus irmãos, tanto nos seus comporta-
mentos pessoais como na solidariedade para com a família humana. Esta petição da oração do
Senhor não pode ser isolada das parábolas do pobre Lázaro (100) e do Juízo final (101).
2832. Tal como o fermento na massa, a novidade do Reino deve levedar a terra com o
Espírito de Cristo (102). Há-de manifestar-se pela instauração da justiça nas relações pessoais
e sociais, económicas e internacionais, sem nunca esquecer que não há nenhuma estrutura
justa sem homens que queiram ser justos.
2833. Trata-se do «nosso» pão, de «um» para «muitos». A pobreza das bem-aventuranças é
a virtude da partilha. Ela convida a comunicar e a partilhar os bens materiais e espirituais, não
por coacção, mas por amor, para que a abundância de uns remedeie às necessidades dos out-
ros (103).
2834. «Ora e trabalha» (104). «Orai como se tudo dependesse de Deus, e trabalhai como se
tudo dependesse de vós» (105). Tendo nós feito o nosso trabalho, o alimento continua a ser
uma dádiva do nosso Pai; é bom pedir-Lho dando-Lhe graças por ele. Tal o sentido da bênção
da mesa numa família cristã.
2835. Esta petição e a responsabilidade que comporta valem também para outra fome de que
os homens morrem: «O homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca do
Deus» (Mt 4, 4) (106), quer dizer, da sua Palavra e do seu Sopro. Os cristãos devem mobilizar
todos os esforços para «anunciar o Evangelho aos pobres». Há uma fome na terra que «não é
fome de pão nem sede de água, mas de ouvir a Palavra do Senhor» (Am 8, 11). É por isso que o
sentido especificamente cristão desta quarta petição tem a ver com o Pão da Vida: a Palavra de
Deus, que deve ser acolhida na fé, e o corpo de Cristo, recebido na Eucaristia (107).
2836. «Hoje» é outra expressão de confiança. É o Senhor que no-la ensina (108); a nossa pre-
sunção não poderia inventá-la. Tratando-se sobretudo da sua Palavra e do corpo do seu Filho,
este «hoje» não é somente o do nosso tempo mortal: é o «Hoje» de Deus:
«Se em cada dia recebes o pão, cada dia é hoje para ti. Se Cristo é para ti hoje, todos os dias
Ele ressuscita para ti. Como é isso? "Tu és o Meu Filho, Eu hoje Te gerei" (Sl 2, 7). Hoje quer
dizer: quando Cristo ressuscita» (109).
2837. «De cada dia». Esta palavra «epioúsios» não é usada em mais lado nenhum no Novo
Testamento. Tomada num sentido temporal, é uma repetição pedagógica do «hoje» (110) para
nos confirmar numa confiança «sem reservas». Tomada no sentido qualitativo, significa o ne-
cessário para a vida e, de um modo mais abrangente, todo o bem suficiente para a subsistência
(111). Tomada à letra (epioúsios, «sobre-substancial»), designa directamente o Pão da Vida, o
corpo de Cristo, «remédio de imortalidade» (112), sem o qual não temos a vida em nós (113).
Enfim, ligado ao antecedente, é evidente o sentido celestial: «este dia» é o do Senhor, o do
banquete do Reino, antecipado na Eucaristia que é já o antegozo do Reino que vem. É por isso
conveniente que a liturgia Eucarística seja celebrada em «cada dia».
«A Eucaristia é o nosso pão de cada dia [...]. A virtude própria deste alimento é a de realizar a
unidade a fim de que, reunidos no corpo de Cristo, tornados seus membros, sejamos o que
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recebemos. [...] E também são pão de cada dia as leituras que em cada dia ouvis na igreja; e os
hinos que escutais e cantais, são pão de cada dia. Estes são os mantimentos necessários para a
nossa peregrinação» (114).
O Pai celeste exorta-nos a pedir, como filhos do céu, o Pão celeste (115). Cristo «é Ele mesmo o
Pão que, semeado na Virgem, levedado na carne, amassado na paixão, cozido no forno do
sepulcro, guardado em reserva na Igreja, levado aos altares, fornece cada dia aos fiéis um ali-
mento celeste» (116).

V. «Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido»

2838. Esta petição é surpreendente. Se comportasse somente o primeiro membro da frase –


«Perdoai-nos as nossas ofensas» – poderia estar incluída implicitamente nas três primeiras
petições da oração do Senhor, pois que o sacrifício de Cristo é «para a remissão dos pecados».
Mas, de acordo com o segundo membro da frase, a nossa petição não será atendida sem que
primeiro tenhamos satisfeito uma exigência. É uma petição voltada para o futuro e a nossa re-
sposta deve tê-la precedido; liga-as uma expressão: «assim como».

«PERDOAI-NOS AS NOSSAS OFENSAS»...

2839. Começámos a orar ao nosso Pai com um sentimento de audaciosa confiança.


Suplicando-Lhe que o seu nome seja santificado, pedimos-Lhe para sermos cada vez mais san-
tificados. Mas, apesar de revestidos da veste baptismal, não deixámos de pecar, de nos desviar
de Deus. Agora, nesta nova petição, voltamos para Ele, como o filho pródigo (117), e
reconhecemo-nos pecadores na sua presença, como o publicano (118). A nossa petição começa
por uma «confissão» na qual, ao mesmo tempo, confessamos a nossa miséria e a sua miser-
icórdia. A nossa esperança é firme, pois que em seu Filho «nós temos a redenção, a remissão
dos nossos pecados» (Cl 1, 14) (119). E encontramos nos sacramentos da sua Igreja o sinal
eficaz e indubitável do seu perdão (120).
2840. Ora, e isso é temível, esta onda de misericórdia não pode penetrar nos nossos corações
enquanto não tivermos perdoado àqueles que nos ofenderam. O amor, como o corpo de
Cristo, é indivisível: nós não podemos amar a Deus, a quem não vemos, se não amarmos o
irmão ou a irmã, que vemos (121). Recusando perdoar aos nossos irmãos ou irmãs, o nosso
coração fecha-se, a sua dureza torna-o impermeável ao amor misericordioso do Pai. Na confis-
são do nosso pecado, o nosso coração abre-se à sua graça.
2841. Esta petição é tão importante que é a única na qual o Senhor volta a insistir,
desenvolvendo-a no sermão da montanha (122). Esta exigência crucial do mistério da Aliança
é impossível para o homem. Mas «a Deus tudo é possível» (Mt 19, 26).

«ASSIM COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO»

2842. Este «como» não é único no ensinamento de Jesus. «Sede perfeitos como o vosso Pai
celeste é perfeito» (Mt 5, 48); «sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso» (Lc
6, 36); «dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 13,
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34). Observar o mandamento do Senhor é impossível, quando se trata de imitar, do exterior, o


modelo divino. Trata-se duma participação vital, vinda «do fundo do coração», na santidade,
na misericórdia e no amor do nosso Deus. Só o Espírito, que é «nossa vida» (Gl 5, 25), pode
fazer «nossos» os mesmos sentimentos que existiram em Cristo Jesus (123). Então, a unidade
do perdão torna-se possível, «perdoando-nos mutuamente como Deus nos perdoou em
Cristo» (Ef 4, 32).
2843. Assim ganham vida as palavras do Senhor sobre o perdão, sobre este amor que ama até
ao extremo do amor (124). A parábola do servo desapiedado, que conclui o ensinamento do
Senhor sobre a comunhão eclesial (125), termina com estas palavras: «Assim procederá con-
vosco o meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão do fundo do coração». É
aí, de facto, «no fundo do coração», que tudo se ata e desata. Não está no nosso poder deixar
de sentir e esquecer a ofensa; mas o coração que se entrega ao Espírito Santo muda a ferida
em compaixão e purifica a memória, transformando a ofensa em intercessão.
2844. A oração cristã vai até ao perdão dos inimigos (126). Transfigura o discípulo,
configurando-o com o seu Mestre. O perdão é o cume da oração cristã; o dom da oração só
pode ser recebido num coração em sintonia com a compaixão divina. O perdão testemunha
também que, no nosso mundo, o amor é mais forte que o pecado. Os mártires de ontem e de
hoje dão este testemunho de Jesus. O perdão é a condição fundamental da reconciliação (127)
dos filhos de Deus com o seu Pai e dos homens entre si (128).
2845. Não há limite nem medida para este perdão essencialmente divino (129). Quando se
trata de ofensas (de «pecados», segundo Lc 11, 4, ou de «dívidas» segundo Mt 6, 12), de facto
nós somos sempre devedores: «Não devais a ninguém coisa alguma, a não ser o amor de uns
para com os outros» (Rm 13, 8). A comunhão da Santíssima Trindade é a fonte e o critério da
verdade de toda a relação (130). E é vivida na oração, sobretudo na Eucaristia (131):
«Deus não aceita o sacrifício do dissidente e manda-o retirar-se do altar e reconciliar-se
primeiro com o irmão: só com orações pacíficas se podem fazer as pazes com Deus. O maior
sacrifício para Deus é a nossa paz, a concórdia fraterna e um povo reunido na unidade do Pai e
do Filho e do Espírito Santo» (132).

VI. «Não nos deixeis cair em tentação»

2846. Esta petição atinge a raiz da precedente, porque os nossos pecados são fruto do con-
sentimento na tentação. Nós pedimos ao nosso Pai que não nos «deixe cair» na tentação.
Traduzir numa só palavra o termo grego é difícil. Significa «não permitas que entre em» (133),
«não nos deixes sucumbir à tentação». «Deus não é tentado pelo mal, nem tenta ninguém»
(Tg 1, 13). Pelo contrário, Ele quer livrar-nos do mal. O que Lhe pedimos é que não nos deixe
seguir pelo caminho que conduz ao pecado. Nós andamos empenhados no combate «entre a
carne e o Espírito». Esta petição implora o Espírito de discernimento e de fortaleza.
2847. O Espírito Santo permite-nos discernir entre a provação, necessária ao crescimento do
homem interior (134) em vista duma virtude «comprovada» (135) e a tentação que conduz ao
pecado e à morte (136). Devemos também distinguir entre «ser tentado» e «consentir» na
tentação. Finalmente, o discernimento desmascara a mentira da tentação: aparentemente, o
seu objecto é «bom, agradável à vista, desejável» (Gn 3, 6), quando, na realidade, o seu fruto é
a morte.
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«Deus não quer impor o bem, quer seres livres [...]. Para alguma coisa serve a tentação. Nin-
guém, senão Deus, sabe o que a nossa alma recebeu de Deus, nem nós próprios. Mas a
tentação manifesta-o para nos ensinar a conhecermo-nos e desse modo descobrir a nossa mis-
éria e obrigar-nos a dar graças pelos bens que a tentação nos manifestou» (137).
2848. «Não entrar em tentação» implica uma decisão do coração: «Onde estiver o teu te-
souro, aí estará também o teu coração [...] Ninguém pode servir a dois senhores» (Mt 6, 21,
24). «Se vivemos pelo Espírito, caminhemos também segundo o Espírito» (Gl 5, 25). É neste
«consentimento» ao Espírito Santo que o Pai nos dá a força. «Não vos surpreendeu nenhuma
tentação que tivesse ultrapassado a medida humana. Deus é fiel e não permitirá que sejais
tentados acima das vossas forças, mas, com a tentação, vos dará os meios de sair dela e a força
para a suportar» (1 Cor 10, 13).
2849. Ora um tal combate e uma tal vitória só são possíveis pela oração. Foi pela oração que
Jesus venceu o Tentador desde o princípio (138) e no último combate da sua agonia (139). Foi
ao seu combate e à sua agonia que Cristo nos uniu nesta petição ao nosso Pai. A vigilância do
coração é lembrada com insistência (140) em comunhão com a sua. A vigilância é a «guarda
do coração» e Jesus pede ao Pai que «nos guarde em seu nome» (141). O Espírito Santo pro-
cura incessantemente despertar-nos para esta vigilância (142). Esta petição adquire todo o seu
sentido dramático, quando relacionada com a tentação final do nosso combate na terra: ela
pede a perseverança final. «Olhai que vou chegar como um ladrão: feliz de quem estiver vigil-
ante!» (Ap 16, 15).

VII. «Mas livrai-nos do Mal»

2850. A última petição ao nosso Pai também está incluída na oração de Jesus: «Não peço que
os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno» (Jo 17, 15). Ela diz-nos respeito, a cada
um pessoalmente, mas somos sempre «nós» que rezamos, em comunhão com toda a Igreja,
pela libertação de toda a família humana. A oração do Senhor não cessa de nos abrir às di-
mensões da economia da salvação. A nossa interdependência no drama do pecado e da morte
transforma-se em solidariedade no corpo de Cristo, em «comunhão dos santos» (143).
2851. Nesta petição, o Mal não é uma abstracção, mas designa uma pessoa, Satanás, o Ma-
ligno, o anjo que se opõe a Deus. O «Diabo» («dia-bolos») é aquele que «se atravessa» no
desígnio de Deus e na sua «obra de salvação» realizada em Cristo.
2852. «Assassino desde o princípio, [...] mentiroso e pai da mentira» (Jo 8, 44), «Satanás,
que seduz o universo inteiro» (Ap 12, 9), foi por ele que o pecado e a morte entraram no
mundo, e é pela sua derrota definitiva que toda a criação será «liberta do pecado e da morte»
(144). «Sabemos que ninguém que nasceu de Deus peca, porque o preserva Aquele que foi
gerado por Deus, e o Maligno, assim, não o atinge. Sabemos que somos de Deus e que o
mundo inteiro está sujeito ao Maligno» (1 Jo 5, 18-19):
«O Senhor, que tirou o vosso pecado e perdoou as vossas faltas, tem poder para vos proteger e
guardar contra as insídias do Diabo que vos combate, para que não vos surpreenda o inimigo
que tem o hábito de engendrar a culpa. Mas quem a Deus se entrega não tem medo do Diabo.
Porque "se Deus está por nós, quem contra nós?" (Rm 8, 31)» (145).
2853. A vitória sobre o «príncipe deste mundo» (146) foi alcançada, duma vez para sempre,
na «Hora» em que Jesus livremente Se entregou à morte para nos dar a sua vida. Foi o
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julgamento deste mundo, e o príncipe deste mundo foi «lançado fora» (147). «Pôs-se a
perseguir a Mulher»(Ap 12, 13) (148), mas não logrou alcançá-la: a nova Eva, «cheia da graça»
do Espírito Santo, foi preservada do pecado e da corrupção da morte (Imaculada Conceição e
Assunção da santíssima Mãe de Deus, Maria, sempre Virgem). Então, «furioso contra a Mulh-
er, foi fazer guerra contra o resto da sua descendência» (Ap 12, 17). Eis porque o Espírito e a
Igreja rogam: «Vem, Senhor Jesus!» (Ap 22, 17.20), já que a sua vinda nos libertará do
Maligno.
2854. Ao pedirmos para sermos libertados do Maligno, pedimos igualmente para sermos
livres de todos os males, presentes, passados e futuros, dos quais ele é autor ou instigador.
Nesta última petição, a Igreja leva à presença do Pai toda a desolação do mundo. Com a liber-
tação dos males que pesam sobre a humanidade, a Igreja implora o dom precioso da paz e a
graça da espera perseverante do regresso de Cristo. Orando assim, antecipa na humildade da
fé a recapitulação de todos e de tudo, n'Aquele que «tem as chaves da morte e da morada dos
mortos» (Ap 1, 18), «Aquele que é, que era e que há-de vir, o Todo-Poderoso» (Ap 1, 8) (149):
«Livrai-nos de todo o mal, Senhor, e dai ao mundo a paz em nossos dias, para que, ajudados
pela vossa misericórdia, sejamos sempre livres do pecado e de toda a perturbação, enquanto
esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador» (150)

A DOXOLOGIA FINAL

2855. A doxologia final – «Porque Vosso é o Reino, o poder e a glória» – retoma, por in-
clusão, as três primeiras petições do Pai-nosso: a glorificação do seu nome, a vinda do seu
Reino e o poder da sua vontade salvífica. Mas esta repetição faz-se agora sob a forma de acção
de graças, como na liturgia celeste (151). O príncipe deste mundo tinha-se atribuído
mentirosamente este três títulos de realeza, de poder e de glória (152). Cristo, o Senhor,
restitui-os ao seu e nosso Pai, até que Ele Lhe entregue o Reino, quando estiver definitiva-
mente consumado o mistério da salvação e Deus for tudo em todos (153).
2856. «Depois, acabada a oração, dizes: Ámen, subscrevendo com esta palavra, que significa
«Assim seja» (154), o conteúdo desta oração que Deus nos ensinou» (155).

Resumindo:

2857. No «Pai-nosso», as três primeiras petições têm por objecto a glória do Pai: a santi-
ficação do Nome, a vinda do Reino e o cumprimento da divina vontade. As outras quatro
petições apresentam-Lhe os nossos desejos: pedidos concernentes à nossa vida para a ali-
mentar ou para a curar do pecado, ou relativos ao nosso combate para a vitória do Bem
sobre o Mal.
2858. Ao pedirmos: «santificado seja o vosso nome», entramos no desígnio de Deus, que é a
santificação do seu nome – revelado a Moisés e depois em Jesus – por nós e em nós, bem
como em todas as nações e em cada homem.
2859. Na segunda petição, a Igreja tem em vista principalmente o regresso de Cristo e a
vinda final do reinado de Deus. Reza também pelo crescimento do Reino de Deus no «hoje»
das nossas vidas.
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2860. Na terceira petição, pedimos ao Pai que una a nossa vontade à do Seu Filho para
cumprir o seu desígnio de salvação na vida do mundo.
2861. Na quarta petição, ao dizer «dai-nos», exprimimos, em comunhão com os nossos
irmãos, a nossa confiança filial no nosso Pai dos céus. «O pão nosso» designa o alimento ter-
restre necessário à subsistência de nós todos, mas também significa o Pão da Vida: a Palav-
ra de Deus e o Corpo de Cristo. Ele é recebido no «Hoje» de Deus, como alimento indis-
pensável e (sobre) substancial do banquete do Reino, antecipado na Eucaristia.
2862. A quinta petição implora para as nossas ofensas a misericórdia de Deus, a qual não
pode penetrar no nosso coração sem nós termos sido capazes de perdoar aos nossos inimi-
gos, a exemplo e com a ajuda de Cristo.
2863. Ao dizermos: «não nos deixeis cair em tentação», pedimos a Deus que não permita
que enveredemos pelo caminho que conduz ao pecado. Esta petição implora o Espírito de
discernimento e de fortaleza; solicita a graça da vigilância e a perseverança final.
2864. Na última petição: «mas livrai-nos do Mal», o cristão roga a Deus, com a Igreja, que
manifeste a vitória, já alcançada por Cristo, sobre o «príncipe deste mundo», Satanás, o
anjo que se opõe pessoalmente a Deus e ao seu plano de salvação.
2865. Pelo «Ámen» final, exprimimos o nosso «fiat» em relação às sete petições: «Assim
seja...».

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