Autobiografia Precoce - Pagu
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Não escreverei aqui hoje sobre a morte ou sobre mortes.
Quero escrever sobre a vida, pois há pequeninas flores sob as
esbeltas palmeiras, é uma noite com certa aragem
respingada finíssima e fria, e o visitante foi embora depois
do Porto de honra em homenagem a… Devo guardar um
pouco de modéstia. Lembrar, no entanto, a visita de Vida
que você me fez, com o seu livro de notas da escola, os
resultados de sua obstinação, depois de sessenta dias
pregado na cama.
Agradeço, hoje, a visita de Vida que você me fez e a sua
bondade, e os seus olhos, e o seu sorriso de criança. E fico
pensando na vida das naus que partem deste porto de pedra,
que se vão para os seus destinos pela costa, pelas enseadas,
um amor em cada porto, um porto em cada trecho de areia, e
o sonho que perseguem com as suas velas brancas abertas
aos ventos, brancas velas de alvíssimas aves, o olhar
audacioso bicando a cortina distante do horizonte. O mais,
sim, o mais é a viagem.
Os ventos brancos que enfunam a esperança, a quilha que
corta rápida e ligeira, a asa que agora descansa flébil sobre
esta parede de vento e vai deixando se levar pela onda e pelo
espaço varrido, ondulado. Quem bate? Certamente é você de
novo, com as suas notas da escola, seu amor, seu coração e
seu carinho no olhar de visita da Vida. Obrigada. Não foi
agora você que veio, mas apenas a sua lembrança. Um Porto
de honra, pois, ao seu esforço e à sua serenidade.
Rasga essas ondas, vai, cheio de ares importantes de
verdade, mas simples no gesto tão amigo, que eu não
esperava de você tanta felicidade, minha criatura.
O mais, o mais é estouvamento e o contraste de todos os
encontrões pela rua. A mulher que ficou sozinha no
apartamento do Flamengo e pensavam que tinha ido viajar.
O corretor que…
Não, não quero falar de morte, hoje, pois houve uma
grande visita da Vida, e uma visita de ramos de rosas pela
testa olímpica, gentil, serena, fagueira. É noite e desejo para
o seu sono e o seu descanso todas as aragens silenciosas da
terra, as mais leves aragens, uma suave luz azul, um embalo
de mar que nem uma berceuse, oleosa, sem ondas e sem
dores. Recebe as minhas mãos molhadas desta água do meu
mar represado nestas pálpebras, recebe-as, a essas mãos,
sobre os cabelos noturnos com que dorme essa cabeça, meu
filho. — Pt.
Meu Geraldo,
Seria melhor que tudo fosse deglutido e jogado fora.
Pela prisão, tempo-prisão, mundo que começa no nosso
portão. Talvez não valesse a pena a gente passear
retrospectivamente. Sempre implica marcha a ré. Sou contra
a autocrítica. O aproveitamento da experiência se realiza
espontaneamente, sem necessidade de dogmatização.
É que hoje tudo está brilhante. Eu te amo e nada mais tem
importância. A exaltação desta manhã de luz cobre toda a
inquietação persistente. Você é um homem. Eu sou uma
mulher que é sua, meu homem.
O meu corpo quer extensão, quer movimento, quer zigue-
zagues. Sinto os ossos furarem a palpitação da carne. As
folhas estão verdes. As azaleias morrendo. Esse ventinho
doloroso.
Talvez eu não devesse começar meu relatório hoje. Com
olhos de sol. Que preguiça de pensar. A longa história cansa.
Não será ainda uma modalidade de fuga? Uma justificativa
contra o conhecimento? Quero rolar na areia e esquecer… Se
eu tivesse a certeza de que não me custaria nada falar, eu
não falaria. Escrever já é um desvio favorável ao esconderijo.
No fundo, eu penso na defesa dos detalhes, porque sei que
os detalhes justificarão em parte minha maneira de ser. Ou
não. A minúcia será o castigo de minha covardia. Minha
humilhação está na minúcia.
Por que dar tanta importância à minha vida? Mas, meu
amor: eu a ponho em suas mãos. É só o que tenho intocado e
puro. Aí tem você minhas taras, meus preconceitos de
julgamento, o contágio e os micróbios. Seria bom se eu
tivesse o poder de ver as coisas com simplicidade, mas a
minha vocação grandguignolesca me fornece apenas a
forma trágica de sondagem. É a única que permite o gosto
amargo de novo. Sofra comigo.
II
Não tinha livros, não tinha jornais, nem roupas, nem o que
fazer. Contei tábuas do chão, do teto, cantei, dancei, fiz
ginástica, tomava banhos um atrás do outro e pensava,
pensava na minha vida, em minha luta, no muito que
pretendia lutar até que, rompendo a desconfiança dos
trabalhadores organizados, pudesse ser tratada como uma
igual, apenas como uma militante qualquer de base.
Achava justa, justíssima, a restrição que me faziam. Mas
eu havia de lhes demonstrar a minha sinceridade.
O tempo ia passando. Eu é que não sabia de nada do que se
estava passando. E as horas e os dias se sucediam com
implacável demora. Não tinha notícias de nada nem de
ninguém. O encarregado da faxina entrava com a sentinela e
não tinha permissão de trocar uma palavra comigo. Da
mesma forma o velhinho que me levava as refeições. Havia
janelas gradeadas demasiadamente altas e separadas por
tabiques. Ouvia a fanfarra e o apito dos trens passando
perto. Não havia sinais de outros presos.
Depois de semanas de solidão, ouvi numa das tardes
intermináveis que vozes próximas cantavam a
Internacional. Eram presos que chegavam. Seis mulheres
que haviam participado de uma manifestação em prol da
liberdade dos presos políticos. Soube então que os
companheiros presos não estavam na Imigração, mas
espalhados em diversas delegacias, esperando ser
deportados, como já tinham sido outros, para Montevidéu.
Algumas mulheres foram logo postas em liberdade.
Ficamos eu, a companheira de Paulo Lacerda, uma francesa
e Carmen, a companheira de Ramon.
Éramos as boas militantes do partido, com todos os
defeitos das mulheres do povo, mas suficientemente
diferentes das operárias incultas e capazes de entusiasmos
como valentes lutadoras. Os dias, então, eram aproveitados
em conhecimentos recíprocos, trocas de ideias, planos de
reivindicações. Passavam, claro, com mais rapidez e mais
intensamente movimentados.
Depois de muito tempo, me concederam uma visita. Era a
do tenente Emídio Miranda, amigo pessoal meu, que tinha
sido companheiro de Prestes na Coluna. Prevaleceu-se do
seu conhecimento com o diretor da Imigração. Conseguiu
que permitissem excepcionalmente a sua visita. Deixou-me
com a promessa de trazer meu filho no dia seguinte, o que
conseguiu de fato. Concederam-me apenas cinco minutos
para abraçar o garotinho. Rudá completava naquele dia, 25
de setembro, o seu primeiro ano de vida. Ele já andava, o
meu filhinho, e entregou-me ele mesmo algum dinheiro que
Oswald me mandava.
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