Artigo Contos de Maia Couto
Artigo Contos de Maia Couto
Artigo Contos de Maia Couto
Organizadores:
Resumo/Abstract
Profa. Dra. Fernanda Guida Palavras-chave/Keywords
O artigo analisa os contos A menina de futuro torcido e O dia que explodiu Mabata-bata, do
Profa. Dra. Elena Brugioni aclamado escrito moçambicano Mia Couto. Afigura-se como problema mostrar de que ma-
neira a reflexão sobre a tragédia moderna, ou antes, o espírito do trágico, está representado
nos referidos contos. Procura-se mostrar que o pesar ligado à ação e suas consequências con-
tinuam marcando o gênero, apesar de não se tratar de tragédia clássica, mas de textos com
cariz trágico específico, que seguem mostrando como os conflitos humanos continuam ocor-
v. 32, n. 61, maio, 2023 rendo e se repetindo em alguma medida. A partir da análise dos contos, foi possível observar
que a angústia ligada à reflexão e à possibilidade de uma vida trágica perpassa a escrita
Brasília, DF dessas narrativas e do próprio contexto sócio-histórico de Moçambique. Para tanto, ancora-
ISSN 1982-9701 mo-nos nos pressupostos teóricos de Raymond Williams (2002), Mauro Pergaminik Meiches
(2000), Lígia Militz da Costa (1992).
Tragédia, Contos, Mia Couto
Fluxo da Submissão The article analyzes the short stories A menina de futuro torcido and O dia que explodiu
Mabata-bata, by the acclaimed Mozambican writer Mia Couto. The research problem that
Submetido em: 25/08/2022 shows refers to how the reflection on modern tragedy, or rather, the spirit of the tragic, is
represented in the said tales. This article seeks to show that the grief linked to the action
Aprovado em: 29/03/2023 and its consequences continue to mark the genre, even though it is no longer a classic trage-
dy, but texts with specific tragic traits that continue showing how human conflicts remain
the same. From the analysis of the short stories, it was possible to observe that the anguish
Distribuído sob linked to reflection and the possibility of a tragic life permeates the writing of these narrati-
ves and the socio-historical context of Mozambique. For that, we anchor ourselves in the
theoretical assumptions of Raymond Williams (2002), Mauro Pergaminik Meiches (2000),
Lígia Militz da Costa (1992).
Tragedy, Short stories, Mia Couto
MACENO
“A menina de futuro torcido” e “O dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um estudo sobre o trágico
Primeiro ato
ficados e renuncia-se aos outros em nome da
primazia do significado privilegiado. Este
O termo tragédia, de acordo com o Di- ponto de partida tem como principais con-
cionário Etimológico da Língua Portuguesa sequências, por um lado, deixar de lado
(2010), deriva do grego tragōidía e, original- textos que poderiam ser contemplados co-
mo sendo trágicos e, por outro lado, rejeitar
mente, significava “canto do bode”, ligado aos
como não sendo pertinente o sentido co-
cantos religiosos com que se acompanhavam o mum da palavra (SCHURMANS, 2012, p.
sacrifício dum bode nas festas dedicadas ao 159)
deus Dionísio. Sua origem é tão antiga que não
se sabe precisar um início. Como uma forma Corroborando esse pensamento, o estu-
teatral, a tragédia alcançou seu estágio de de- dioso e crítico literário Raymond Williams
senvolvimento na Grécia antiga, sendo tam- (1921-1988), na obra Tragédia Moderna, ao pen-
bém “a base de toda a teoria da arte contida no sar a permanência do trágico após o fim da tra-
texto aristotélico. Dos 26 capítulos da Poética, gédia clássica, pontua que o termo tragédia pas-
dezessete são dedicados ao estudo da tragé- sou a designar quaisquer acontecimentos –
dia” (COSTA, 1992, p. 18). guerras, desastres ambientais, revoluções, aci-
A partir do trabalho descritivo de dentes – que provocam comoção, afastando-se
Aristóteles, que foi tomado como ‘regra’ para o do conceito aristotélico que o define como um
estudo do gênero posteriormente, muitas carac- dos gêneros primários da arte: uma representa-
terísticas descritas como inseparáveis nesses ção mimética específica, com caraterísticas bem
textos, ainda na atualidade, continuam valen- marcadas e que, portanto, não cabe generaliza-
do para os estudos literários e teatrais, tais co- ções de sua natureza. Portanto, a tragédia não
mo a presença da narração a partir da vivência pode ser reduzida a mero sofrimento e agruras.
do próprio personagem por meio de atores, a Para Wiliams,
ligação com o tempo presente e, principalmen-
te a necessária presença de um conflito. A tra- tragédia, nós dizemos, não é meramente
morte e sofrimento e com certeza não é aci-
gédia, para esses estudos, é definida, pois, como
dente. Tampouco, de modo simplista, qual-
“uma forma específica de mimese, segundo cri- quer reação à morte ou ao sofrimento. Ela
térios que diferenciam as artes miméticas e o é, antes, um tipo específico de acontecimen-
efeito que a representação determina no espec- to e de reação que são genuinamente trági-
tador” (COSTA, 1992, p. 18). cos e que a longa tradição incorpora.
(WILLIAMS, 2002, p. 30-31).
Na atualidade, o conceito de
‘tragédia’, às vezes adjetivado na palavra
Ao conceituar a tragédia, o autor é ca-
‘trágico’, surge carregado de variadas defini-
tegórico quando afirma que “confundir essa tra-
ções e, até mesmo, imbricado pelo senso co-
dição com outras formas de acontecimentos e de
mum. Nesse sentido, tanto o substantivo
reação é simplesmente uma demonstração de
‘tragédia’ quanto o adjetivo ‘trágico’ passam a
ignorância” (WILLIAMS, 2002, p. 31). Há que
ser associados ao infortúnio, ao mau fado, às
se considerar as muitas diferenças entre a tragé-
desgraças em todas as suas formas de manifes-
dia clássica e a tragédia moderna. Ao mencio-
tação social, que provocam emoção em quem
nar, então, a questão da tradição, o autor apon-
assiste quando encenados.
ta para uma possibilidade de se analisar um cor-
Para o pesquisador Fabrice Aimé Fer-
po de obras sob a comenda e a força da palavra
nand Schurmans, em sua tese de doutoramento
trágico. Para Raymond Williams,
O Trágico do Estado Pós-Colonial Pius Ngandu
Nkashama, Sony Labou Tansi e Pepetela (2012): examinar a tradição trágica não significa
necessariamente interpretar um único corpo
A dificuldade da definição de trágico pro- de obras e pensamentos ou perseguir varia-
vém, muitas vezes, de um pressuposto en- ções em uma suposta totalidade. Significa
tre a maior parte dos observadores: encara- olhar crítica e historicamente para as obras
se o conceito a partir de um dos seus signi- e ideias que têm algumas ligações evidentes
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“A menina de futuro torcido” e “O dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um estudo sobre o trágico
“A menina de futuro torcido” e “O dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um estudo sobre o trágico
1 De acordo com o teórico brasileiro Massud Moises, em Dicionário de termos literários (2004, p. 71), a definição de catarse é
uma questão bastante controversa e debatidas dentro das ideias estéticas. Segundo esse autor, como Aristóteles, primeiro a
colocar essa questão, não desenvolveu nem esclareceu o vocábulo, abriu-se margem para numerosas interpretações, todas
insatisfatória, sobretudo por ser uma palavra presente em várias áreas do conhecimento.
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“A menina de futuro torcido” e “O dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um estudo sobre o trágico
2 A estudiosa Irene Dias de Oliveira explica o que é o Lobolo. Para essa autora: lobolo é uma forma de compensação, garan-
tia da estabilidade do casamento e estabelece uma aliança entre os dois grupos familiares. (...) Uma família cedia a outra a
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“A menina de futuro torcido” e “O dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um estudo sobre o trágico
A partir de então, Azarias entra em “um sentimento acorde com a reivindicação éti-
transe de desespero, buscando uma explicação ca ao mesmo tempo associado ao sofredor, isto
nos costumes locais (o ndlati, a ave do relâm- é, com aquilo que é necessariamente implícito
pago) para o ocorrido e, ao mesmo tempo, vis- na sua condição de afirmativo e substanti-
lumbrando as consequências que o sumiço do vo” (HEGEL apud COUTINHO, 1977, p.25).
animal lhe traria. É a partir disso que a narra- Essa definição do autor aplicada ao conto em
tiva passa a avançar, e à medida em que isso estudo quer significar que cada leitor reage ao
acontece, o leitor vai descortinando a vida so- desenvolvimento da trama conforme seus pa-
frida, marcada por violência e traumas pessoais drões éticos: o drama dos países assolados pelos
da criança. conflitos bélicos deixou impactos trágicos para
Sobre essa preocupação do personagem, a sociedade. Mortes e mutilações provocadas
que é carregada de um caráter ético, a pesqui- por essas minas3 soterradas são um lembrete
sadora brasileira Lígia Militz da Costa disserta incômodo do homem como lobo do homem.
que: Sobre essa questão do trágico, Peter
Szondi afirma que:
O fato de a tragédia ser imitação de uma
ação qualificada eticamente e de os carac- O trágico consiste originalmente no fato de
teres serem nela subordinados à ação im- que, em tal colisão, cada um dos lados opos-
põe a necessidade de as personagens que tos se justifica, e, no entanto, cada lado só é
agem e se apresentam serem também qua- capaz de estabelecer o verdadeiro conteúdo
lificadas pelo cárter e pelo pensamento. positivo de sua meta e de seu caráter ao
(COSTA, 1992, p. 19) negar e violar o outro poder, igualmente
justificado. Portanto cada lado se torna
Azarias é uma criança, que teve a infân- culpado em sua eticidade. (SZONDI, 2004,
cia roubada, que sonha em frequentar a escola, p. 42).
brincar livremente, seu caráter é forjado na
No caso da narrativa, ao contrário, o tio
convivência desse mundo. Ao se dá conta que
de Azarias não tenta justificar suas ações para
os demais bois estavam espalhados pela explo-
com o garoto, mas o culpa e preparava-lhe o
são, “o medo escorregou dos olhos do pequeno
castigo: “ – Apareça lá, não tenha medo. Não vou
pastor” (COUTO, 2013, p. 12). Com receio da
-te bater. Juro. Jurava mentiras. Não ia bater:
surra que o esperava, o pastorzinho resolve fu-
ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de
gir com os animais que restaram: “Apareça sem
juntar os bois” (COUTO, 2013, p. 14).
um boi, Azarias. Só digo: é melhor não apare-
Os personagens tipo são característicos
cer” (COUTO, 2013, p. 12). Essas reflexões que
das produções a partir do modernismo. Diante
o personagem faz sobre a perda dos bens do tio
das transformações e discussões intensas sobre
e as consequências disso ilustram o que a teóri-
grupos até esse momento desconsiderados, cria-
ca afirma, visto que o protagonista possui um
se esse personagem que desfilará por muitas li-
caráter qualificado, de honestidade não negli-
teraturas. Azarias e, mesmo Filomeninha, são
genciado nem durante a raiva que os pensa-
essas representações: africanos (ambas crian-
mentos trazem.
ças), impactados por processos desumanos,
Ao retomar os estudos de Hegel, Eduar-
marcados por violências (em todos os sentidos
do Coutinho afirma que a piedade trágica é
capacidade criadora de um de seus membros femininos, e para ser compensada, pela perda, recebia bens de determinado
valor. Portanto o lobolo é uma compensação nupcial. O lobolo representa também a tomada de responsabilidade do marido
pela manutenção e bem-estar da mulher e legitimação dos filhos gerados pela mulher lobolada para pertença do marido.
(OLIVEIRA, 2002, p. 27).
3 Desde o fim da Guerra Civil de Moçambique, em 1992, até 2015, foram removidos mais de 300 mil artefatos enterrados.
Hoje, o país é considerado desminado graças ao esforço coletivo do governo por meio do Instituto Nacional de Desminagem
em parceria com Halo Trust, uma instituição britânica que trabalhou em conjunto com as autoridades desde 1993. Disponí-
vel em: https://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2015/09/apos-mais-de-duas-decadas-mocambique-se-
declara-livre-de-minas-terrestres.html Acesso em 13/11/2022
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“A menina de futuro torcido” e “O dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um estudo sobre o trágico
do termo) e tragédias pessoais e coletivas. mo que tanto feriu Filomeninha já não interes-
Nessa perspectiva, com esse processo sava ao contratador: “A única coisa que me in-
pulverizador da individualidade, é tarefa difícil teressa agora são esses tipos com dentes de aço.
falar no herói trágico quando falamos em tex- Umas dessas dentaduras que vocês às vezes
tos atuais, como os dois contos miacoutianos. têm, capazes de roer madeira e mastigar pre-
Em todo caso, observa-se que os personagens gos.” (COUTO, 2013, p. 110). O empresário não
Raul e Joseldo Bastante detêm o poder de agir quer mais contorcionistas, o mercado exige ou-
sobre o destino de todos os demais personagens tra performance, mais atraente para o público.
nas duas narrativas, principalmente dos dois E isso é dito desnudando-se também uma pers-
protagonistas (Filomeninha e Azarias). Por es- pectiva preconceituosa da imagem do negro
sa razão, pode-se dizer que ambos figuram com moçambicano, olhado sempre como exótico pe-
traços do herói trágico, considerando os confli- la máquina colonial, assim como desnuda a ra-
tos das obras: pidez do dissolvimento dos valores materiais
que as coisas e as pessoas têm na modernidade
É a do homem que não se distingue muito tardia, na pós-colonialidade.
pela virtude e pela justiça; se cai no infor- Nesse caso, o trágico se manifesta por
túnio, tal acontece não porque seja vil e
malvado, mas por força de algum erro; e
meio de circunstâncias contrastantes. A fala do
esse homem há de ser daqueles que gozam empresário marca o seu lugar de colonizador,
de grande reputações ou fortuna, como que chega ao colonizado inebriado pela visão
Édipo e Tiestes ou outros insignes repre- caleidoscópica dos estereótipos inculcado pela
sentantes de famílias ilustres máquina colonial para dispor de cada um deles
(ARISTÓTELES, 1992, p. 69).
a seu bel prazer, restando a Joseldo Bastante
recolher-se a sua insignificância de colonizado:
Joseldo Bastante era mecânico nem de-
“O Joseldo sorriu, envergonhado, e desculpou-
masiadamente mau, também não é um homem
se de não poder servir” (COUTO, 2013, p. 111).
bom. Já Raul, dono de uma criação de bois,
É na cena final de A menina de futuro
também compartilha essas características de
torcido que o trágico revela toda sua intensida-
homem comum, sujeito aos infortúnios do cur-
de. Depois da conversa com o empresário, Josel-
so da vida.
do Bastante, cuja contradição do próprio nome
É somente com a chegada da avó que
não passa despercebida ao mais desatento lei-
Azarias sai de seu esconderijo. Ela é o traço de
tor, ralhava com o destino sobre a nova
tranquilidade que ele ainda experimenta. “ –
‘necessidade’ do mercado: “dentes; agora são os
És tu, Azarias. Volta comigo, vamos para casa.
dentes!”, quando,
[...] – Vais fugir para onde, meu filho?
(COUTO, 2013, p. 15). De súbito, um brilho acendeu-lhe o rosto.
Depois de saber que os bois estão salvos, Segurando a mão da filha, perguntou, sem a
Raul tenta restabelecer uma harmonia com o olhar: — É verdade, Filomena: você tem
sobrinho, como defende Bornheim (2007), mas dentes fortes! Não é isso que diz a sua mãe?
seu arrependimento é falso. Apenas pela conve- E como não tivesse resposta, abanou o bra-
ço da criança. Foi então que o corpo de Fi-
niência, acha por bem concordar com tudo na- lomeninha tombou, torcido e sem peso, no
quele momento, prometendo-lhe que deixaria colo de seu pai. (COUTO, 2013, p. 111-112).
que frequentasse a escola no ano seguinte. En-
tretanto, “Depois, emendaria as ilusões do ra- Diante das novas exigências do mercado,
paz e voltariam as obrigações do serviço das Joseldo Bastante ver-se obrigado a buscar no-
pastagens” (COUTO, 2013, p. 16). vos caminhos para a sobrevivência da família.
Mas, nesse momento, Filomeninha morre, mar-
ATO FINAL cando o fim de sua trágica passagem pela vida.
Já no conto O dia em que explodiu Maba-
Os finais dos dois contos são previsíveis. ta-bata, a tragicidade não é menos chocante,
Em A menina de futuro torcido, o contorcionis- apesar do lirismo poético característico de Mia
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COMO CITAR
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