Artigo Contos de Maia Couto

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“A MENINA DE FUTURO TORCIDO” E “O DIA QUE

EXPLODIU MABATA-BATA”, DE MIA COUTO:


UM ESTUDO SOBRE O TRÁGICO

“A MENINA DE FUTURO TORCIDO” AND “O DIA


QUE EXPLODIU MABATA-BATA”, BY MIA COUTO:
A STUDY OF THE TRAGIC

Regilane Barbosa Maceno


[email protected]
Doutora em Literatura pela UnB; é Professora de Literatura e Teoria Literária da
Dossiê Universidade Estadual do Maranhão -UEMA - Campus Pedreiras; Professora da Rede
Municipal de Ensino de Codó. Pesquisadora do Grupo Mayombe da UnB, do Núcleo
de Estudos e Pesquisas Afro-NEPA, e do Projeto de Pesquisa Rede Nordeste Leitura
Literaturas africanas e afrodiaspó- literária na escola da UFPE, e Membro efetivo da Associação de Jornalistas e Escrito-
ricas: escritas emancipatórias ras do Brasil/AJEB-Seccional Maranhão. É autora dos livros infantojuvenis “Badu e
a goiabinha” (2018) e “As Borboletinhas e o sapo Jururu” (2021); e do livro “O colo-
nialismo e suas implicações na literatura contemporânea: Identidades cambiantes na
trilogia As Areias do Imperador de Mia Couto” (2022), entre outros.

Organizadores:

Prof. Dr. Cláudio R. V. Braga

Profa. Dra. Gláucia R. Gonçalves

Resumo/Abstract
Profa. Dra. Fernanda Guida Palavras-chave/Keywords

O artigo analisa os contos A menina de futuro torcido e O dia que explodiu Mabata-bata, do
Profa. Dra. Elena Brugioni aclamado escrito moçambicano Mia Couto. Afigura-se como problema mostrar de que ma-
neira a reflexão sobre a tragédia moderna, ou antes, o espírito do trágico, está representado
nos referidos contos. Procura-se mostrar que o pesar ligado à ação e suas consequências con-
tinuam marcando o gênero, apesar de não se tratar de tragédia clássica, mas de textos com
cariz trágico específico, que seguem mostrando como os conflitos humanos continuam ocor-
v. 32, n. 61, maio, 2023 rendo e se repetindo em alguma medida. A partir da análise dos contos, foi possível observar
que a angústia ligada à reflexão e à possibilidade de uma vida trágica perpassa a escrita
Brasília, DF dessas narrativas e do próprio contexto sócio-histórico de Moçambique. Para tanto, ancora-
ISSN 1982-9701 mo-nos nos pressupostos teóricos de Raymond Williams (2002), Mauro Pergaminik Meiches
(2000), Lígia Militz da Costa (1992).
Tragédia, Contos, Mia Couto

Fluxo da Submissão The article analyzes the short stories A menina de futuro torcido and O dia que explodiu
Mabata-bata, by the acclaimed Mozambican writer Mia Couto. The research problem that
Submetido em: 25/08/2022 shows refers to how the reflection on modern tragedy, or rather, the spirit of the tragic, is
represented in the said tales. This article seeks to show that the grief linked to the action
Aprovado em: 29/03/2023 and its consequences continue to mark the genre, even though it is no longer a classic trage-
dy, but texts with specific tragic traits that continue showing how human conflicts remain
the same. From the analysis of the short stories, it was possible to observe that the anguish
Distribuído sob linked to reflection and the possibility of a tragic life permeates the writing of these narrati-
ves and the socio-historical context of Mozambique. For that, we anchor ourselves in the
theoretical assumptions of Raymond Williams (2002), Mauro Pergaminik Meiches (2000),
Lígia Militz da Costa (1992).
Tragedy, Short stories, Mia Couto
MACENO

“A menina de futuro torcido” e “O dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um estudo sobre o trágico

Primeiro ato
ficados e renuncia-se aos outros em nome da
primazia do significado privilegiado. Este
O termo tragédia, de acordo com o Di- ponto de partida tem como principais con-
cionário Etimológico da Língua Portuguesa sequências, por um lado, deixar de lado
(2010), deriva do grego tragōidía e, original- textos que poderiam ser contemplados co-
mo sendo trágicos e, por outro lado, rejeitar
mente, significava “canto do bode”, ligado aos
como não sendo pertinente o sentido co-
cantos religiosos com que se acompanhavam o mum da palavra (SCHURMANS, 2012, p.
sacrifício dum bode nas festas dedicadas ao 159)
deus Dionísio. Sua origem é tão antiga que não
se sabe precisar um início. Como uma forma Corroborando esse pensamento, o estu-
teatral, a tragédia alcançou seu estágio de de- dioso e crítico literário Raymond Williams
senvolvimento na Grécia antiga, sendo tam- (1921-1988), na obra Tragédia Moderna, ao pen-
bém “a base de toda a teoria da arte contida no sar a permanência do trágico após o fim da tra-
texto aristotélico. Dos 26 capítulos da Poética, gédia clássica, pontua que o termo tragédia pas-
dezessete são dedicados ao estudo da tragé- sou a designar quaisquer acontecimentos –
dia” (COSTA, 1992, p. 18). guerras, desastres ambientais, revoluções, aci-
A partir do trabalho descritivo de dentes – que provocam comoção, afastando-se
Aristóteles, que foi tomado como ‘regra’ para o do conceito aristotélico que o define como um
estudo do gênero posteriormente, muitas carac- dos gêneros primários da arte: uma representa-
terísticas descritas como inseparáveis nesses ção mimética específica, com caraterísticas bem
textos, ainda na atualidade, continuam valen- marcadas e que, portanto, não cabe generaliza-
do para os estudos literários e teatrais, tais co- ções de sua natureza. Portanto, a tragédia não
mo a presença da narração a partir da vivência pode ser reduzida a mero sofrimento e agruras.
do próprio personagem por meio de atores, a Para Wiliams,
ligação com o tempo presente e, principalmen-
te a necessária presença de um conflito. A tra- tragédia, nós dizemos, não é meramente
morte e sofrimento e com certeza não é aci-
gédia, para esses estudos, é definida, pois, como
dente. Tampouco, de modo simplista, qual-
“uma forma específica de mimese, segundo cri- quer reação à morte ou ao sofrimento. Ela
térios que diferenciam as artes miméticas e o é, antes, um tipo específico de acontecimen-
efeito que a representação determina no espec- to e de reação que são genuinamente trági-
tador” (COSTA, 1992, p. 18). cos e que a longa tradição incorpora.
(WILLIAMS, 2002, p. 30-31).
Na atualidade, o conceito de
‘tragédia’, às vezes adjetivado na palavra
Ao conceituar a tragédia, o autor é ca-
‘trágico’, surge carregado de variadas defini-
tegórico quando afirma que “confundir essa tra-
ções e, até mesmo, imbricado pelo senso co-
dição com outras formas de acontecimentos e de
mum. Nesse sentido, tanto o substantivo
reação é simplesmente uma demonstração de
‘tragédia’ quanto o adjetivo ‘trágico’ passam a
ignorância” (WILLIAMS, 2002, p. 31). Há que
ser associados ao infortúnio, ao mau fado, às
se considerar as muitas diferenças entre a tragé-
desgraças em todas as suas formas de manifes-
dia clássica e a tragédia moderna. Ao mencio-
tação social, que provocam emoção em quem
nar, então, a questão da tradição, o autor apon-
assiste quando encenados.
ta para uma possibilidade de se analisar um cor-
Para o pesquisador Fabrice Aimé Fer-
po de obras sob a comenda e a força da palavra
nand Schurmans, em sua tese de doutoramento
trágico. Para Raymond Williams,
O Trágico do Estado Pós-Colonial Pius Ngandu
Nkashama, Sony Labou Tansi e Pepetela (2012): examinar a tradição trágica não significa
necessariamente interpretar um único corpo
A dificuldade da definição de trágico pro- de obras e pensamentos ou perseguir varia-
vém, muitas vezes, de um pressuposto en- ções em uma suposta totalidade. Significa
tre a maior parte dos observadores: encara- olhar crítica e historicamente para as obras
se o conceito a partir de um dos seus signi- e ideias que têm algumas ligações evidentes

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entre si e que se deixam associar em nossas


mentes por meio de uma única e poderosa do homem comum/contemporâneo e procurar
palavra. É, acima de tudo, observar essas em seus problemas cotidianos o novo tecido pa-
obras e ideias no seu contexto imediato, ra essas representações miméticas. Por isso, se
assim como na sua continuidade histórica,
examinado o lugar e a função que exercem
faz necessário a observação, na atualidade, do
em relação a outras obras e ideias e em lugar em que foram produzidas e, especialmen-
relação à diversidade e multiplicidade da te, a função que exercem ao serem relacionadas
experiência atual. (WILLIAMS, 2002, p. com a diversidade e multiplicidade das experi-
34) ências atuais.
São essas questões que direcionam nos-
A ênfase do autor, a partir do trecho
so olhar para o trágico na literatura miacoutia-
acima, insere o conceito de tragédia na experi-
na, principalmente a partir da leitura dos con-
ência individual dos sujeitos, mas também o
tos A menina de futuro torcido e O dia em que
liga a uma história e a uma cultura específicas,
explodiu Mabata-bata, do aclamado autor Mia
relacionando-o ao esfacelamento da moral hu-
Couto, ambos presentes na obra A menina sem
mana. Essa é a nova visão, na concepção de
palavra (2013), sem pretensão exaustiva, mas
Williams, da tragédia: está relacionada às vi-
como possibilidade de ampliação de estudos que
cissitudes da história e à crise ética do homem.
tenham essa temática como foco.
Nesse sentido, as ações na tragédia
moderna são, ao mesmo tempo, necessárias e
Segundo ato
complexas, pois o homem moderno não tem a
intenção de quebrar as amarras das instituições
O conto A menina de futuro torcido traz
tradicionais, mas quer reerguê-las em bases só-
a trágica história de Filomeninha e de seu pai
lidas, engendrando assim um conflito insolúvel,
Joseldo Bastante. O pai ver a possiblidade de
resultante do embate entre um mundo conheci-
ficar rico e sair da miséria em que vive com a
do apenas na superfície e todo um universo do-
esposa e seus 12 filhos ao ouvir relatos dos tran-
minado pelos valores absolutos. Assim,
seuntes sobre um jovem contorcionista e o
A tragédia cria, mais do que descobre, no-
quanto ele ganha dinheiro fazendo peripécias,
vos aspectos da experiência humana; situa aliás aumentadas a cada nova boca falando pa-
o homem em um solo totalmente movediço ra novo ouvido atento:
de valores e práticas, em que ele nunca
mais poderá encontrar configuração cuja O rapaz tinha sido contratado por um em-
permanência seja garantia de bem-estar. O presário para exibir suas habilidades, con-
homem é colocado como grande problema: fundir o trás para a frente. Percorria as ter-
sua maneira de proceder na vida em socie- ras e o povo corria para lhe ver. Assim, o
dade é um enigma de tal ordem de comple- jovem ganhou dinheiro até encher caixas,
xidade que acaba por não comportar solu- malas e panelas. Só devido das dobragens e
ções. (MEICHES, 2000, p. 33-34). enrolamentos da espinha e seus anexos. O
contorcionista era citado e recitado pelos
Corroborando a afirmação de Meiches, camionistas e cada um aumentava uma
Raymond Williams assevera que “não é a jus- volta nas vantagens elásticas do rapaz. Che-
garam mesmo a dizer que, numa exibição,
tiça eterna, no sentido hegeliano, que é afirma- ele se amarrou no próprio corpo como se
da na questão trágica moderna, mas antes, o fosse um cinto. Foi preciso o empresário
movimento geral da história numa espécie de ajudar a desatar o nó; não fosse isso, ainda
transformações decisivas da sociedade”. hoje o rapaz estaria cintado. (COUTO,
(WILLIAMS, 2002, p. 57; ênfase nossa). É 2013, p. 107).
ponto pacífico entre Williams e Meiches que a
tragédia na modernidade só tem espaço para se Vendo nessas habilidades uma oportu-
realizar quando há, em contrapartida, trans- nidade de experimentar um novo estilo de vida,
formações sociais evidentes, quando há um mo- Joseldo Bastante elabora uma fixação patológi-
vimento da história, o que a faz se aproximar ca pela ideia da riqueza: “E assim tomou a deci-
são: Filomeninha havia de ser contorcionista,
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apresentada e noticiada pelas estradas de mui-


República do Congo poderá comover-se face
to longe.” (COUTO, 2013, p. 107). A partir de ao sofrimento das personagens de Tansi.
então, a menina passa a viver uma rotina in- (SCHURMANS, 2011, P. 95)
tensa e acelerada de exercícios físicos torturan-
tes. O pai tinha pressa, pois não poderia perder O pensamento desse teórico, mutatis mu-
a chance de, no retorno do empresário para o tandis também pode ser tomado em relação à
vilarejo, mostrar que Filomeninha era capaz de literatura moçambicana e, de modo mais especí-
alcançar o avesso. Para garantir os resultados fico, às personagens do conto em estudo. Tanto
na mesma dimensão de seu afã, Joseldo Bas- Filomenhinha quanto Joseldo Bastante apon-
tante quis fatiar o tempo: tam para questões individuais do ser humano,
para o esfacelamento da moral, como menciona-
Para acelerar os preparos, Joseldo Bastan- do por Williams, sobretudo o personagem do
te trouxe da oficina um daqueles enormes pai.
bidões de gasolina. A noite amarrava a
filha ao bidão para que as costas dela ficas-
Na contemporaneidade, onde não há es-
sem noivas da curva do recipiente. De ma- paço para uma tragédia em moldes clássicos, o
nhã, regava-a com água quente quando ela conto A menina do futuro torcido constitui-se de
ainda estava a despertar: — Essa água é uma forma de assimilação do trágico, principal-
para os seus ossos ficarem moles, daptáveis. mente quando observamos como se dá a desme-
Quando a retiravam das cordas, a menina
estava toda torcida para trás, o sangue
dida, na concepção aristotélica, na narrativa.
articulado, ossos desencontrados. Essa desmedida ou falha que resulta no fim trá-
(COUTO, 2013, p. 108). gico do conto está nas ações de Joseldo Bastan-
te, que não é capaz de ver a filha definhar:
Uma cena torturante que provoca ter-
ror e piedade no leitor, duas emoções que, se- Os tempos passaram, Joseldo sempre espe-
rando que o empresário passasse pela vila.
gundo Aristóteles, são responsáveis, na tragé- Na garagem os seus ouvidos eram antenas à
dia clássica, pelo efeito catártico1, ou seja, o procura de notícias do contratador. [...]
leitor é tocado em demasiadas e inevitáveis Enquanto isso, Filomena piorava. Quase
emoções e reflexões diante da leitura. não andava. Começou a sofrer de vómitos.
No artigo O trágico do Estado pós- Parecia que queria deitar o corpo pela boca.
O pai avisou-lhe que deixasse essas fraque-
colonial. Sony Labou Tansi e Pius Ngandu zas: — Se o empresário chegar não pode-lhe
Nkashama (2011), o pesquisador Fabrice encontrar da maneira como assim. Você
Schurmans analisa a questão do trágico na lite- deve ser contorcionista e não vomitista.
ratura de países que experienciaram tipos de (COUTO, 2013, p. 107).
violência praticados pelas forças coloniais
(guerra civil, ditadura, conflitos, ingerência...) Nesse trecho, a inércia dupla, como ser
e considera que esses textos assumem um cará- humano e como pai, de Joseldo Bastante frente
ter universal. Para este autor, ao sofrimento da filha, é marca incômoda dos
excessos (desmedidas) pós-coloniais. Não há,
O que é aqui de extrema importância é por parte do personagem, sentimento nobre em
que, embora a obra literária possa ser lida relação à filha que definha. Ele é um homem
localmente ou contribuir para a estrutura- destituído da racionalidade, não tendo consci-
ção de uma identidade nacional, ela ultra-
passa as fronteiras de um país ou de um
ência de sua própria condição de sujeito coloni-
continente. Dito de outro modo, o receptor zado, que age como e vislumbra ser colonizador,
que lê e interpreta fora das fronteiras da transformado em “vítima expiatória” de um

1 De acordo com o teórico brasileiro Massud Moises, em Dicionário de termos literários (2004, p. 71), a definição de catarse é
uma questão bastante controversa e debatidas dentro das ideias estéticas. Segundo esse autor, como Aristóteles, primeiro a
colocar essa questão, não desenvolveu nem esclareceu o vocábulo, abriu-se margem para numerosas interpretações, todas
insatisfatória, sobretudo por ser uma palavra presente em várias áreas do conhecimento.

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contexto por si só marcado pelo trágico: o colo-


vida. Viajante que passava, carro que para-
nialismo português. va, ele aproximava e capturava as conver-
Mesmo não se configurando como uma sas. Foi assim que chegou de ouvir um des-
tragédia, na concepção clássica, o conto A me- tino para sua filha mais velha. (COUTO,
nina do futuro torcido está contaminado pelos 2013, p. 107)
elementos trágicos. Os eventos que acontecem
na vida de cada personagem foram e são trági- Apesar de, a partir leitura do trecho aci-
cos. Mia Couto, como escritor que escreve na ma, ser possível a interpretação da opção ser em
língua do colonizador, dá outros matizes à con- virtude da idade, do fato da menina ser a mais
cepção de trágico, moldando-o ao contexto mo- velha, chama a atenção a escolha de uma me-
çambicano e, sobretudo, ao fazê-lo por meio de nina/mulher para tal “missão”, entre os doze
uma escrita sui generis, que combina poesia filhos, cuja existência de meninos/homens é
com um mosaico de sentido expandido. apontada pelo uso do gênero não marcado:
O teórico Gerd Bornheim (2007) lembra “Joseldo pensou na sua vida, seus doze fi-
que, no desfecho do acontecimento trágico lhos” (COUTO, 2013, p. 107; ênfase nossa). Es-
existe uma tentativa de restabelecer a harmo- sa situação, embora não seja o foco deste traba-
nia inicial da narrativa, tanto na tragédia clás- lho, remete a outras questões sociais também
sica quanto na contemporânea. No conto em urgentes, e ajuda a reforçar o cariz trágico da
estudo, essa tentativa é percebida quando os narrativa: a condição da mulher africana que,
dois personagens seguem para a cidade em bus- como assegura Fonseca (2004), é simbolicamen-
ca do tal empresário – a solução de sua miséria te definida a partir de expressões do próprio
– e Filomeninha não parava de tremer de frio: corpo e, no caso de Filomeninha, das transfor-
mações abusivas que lhes são impostas ao frágil
— Deixa, filhinha. Quando começar a en- corpinho entanguido pela necessidade que pas-
trar fumo, isto já vai aquecer. sa, mas a quem é delegada a função “natural”
Mas as tremuras da menina aumentavam
sempre até serem mais que o balanço do
de protetora e mantenedora da família.
comboio. Nem o vestido largo escondia os Já o conto O dia em que explodiu Mabata
estremeções. O pai tirou o casaco e colocou -bata conta a história de Azarias, um órfão ga-
-o sobre os ombros de Filomena. (COUTO, roto cujo fado já é anunciado no próprio nome e
2013, p. 110). em sua orfandade. Ele vive com o tio Raul e a
avó desde a morte dos pais: “Azarias trabalha-
Mesmo com o gesto “nobre” de cobrir a
va para ele desde que ficara órfão. Despregava
filha que tremia, uma tentativa de demonstrar
antes da luz para que os bois comessem o cacim-
certa integridade moral do pai, ao contrário do
bo das primeiras horas” (COUTO, 2013, p. 11).
que caracteriza a teoria do “bom selvagem” de
O garoto trabalha como pastor dos bois
Rousseau: o homem é bom, a sociedade o cor-
do tio. Durante mais um dia de trabalho, um
rompe, Joseldo não mostra arrependimento e
dos bois – o Mabata-bata – pisa numa mina e
segue rumo ao seu projeto de futuro promissor
explode: “De repente, o boi explodiu. Rebentou
que desenhou para si: ser rico. Isso acentua o
sem nem um múúú. No capim em volta chove-
tom trágico da narrativa, que veio sendo cons-
ram pedaços e fatias, grãos e folhas de
truído seguindo um percurso progressivo e con-
boi” (COUTO, 2013, p. 11). Assustado, o pas-
tínuo ao longo do conto. Uma das razões para
torzinho tenta entender o que pode ter aconte-
escolha de Filomeninha para ser a contorcio-
cido: “Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de
nista foi o fato de ela ser a mais velha dos 12
silêncio, sombra de nada” (COUTO, 2013, p.
filhos, como aponta o trecho:
11). Esse boi era o maior da manada e estava
Joseldo Bastante, mecânico da pequena
destinado como prenda do lobolo2 do casamento
vila, punha nos ouvidos a solução de sua do tio.

2 A estudiosa Irene Dias de Oliveira explica o que é o Lobolo. Para essa autora: lobolo é uma forma de compensação, garan-
tia da estabilidade do casamento e estabelece uma aliança entre os dois grupos familiares. (...) Uma família cedia a outra a
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A partir de então, Azarias entra em “um sentimento acorde com a reivindicação éti-
transe de desespero, buscando uma explicação ca ao mesmo tempo associado ao sofredor, isto
nos costumes locais (o ndlati, a ave do relâm- é, com aquilo que é necessariamente implícito
pago) para o ocorrido e, ao mesmo tempo, vis- na sua condição de afirmativo e substanti-
lumbrando as consequências que o sumiço do vo” (HEGEL apud COUTINHO, 1977, p.25).
animal lhe traria. É a partir disso que a narra- Essa definição do autor aplicada ao conto em
tiva passa a avançar, e à medida em que isso estudo quer significar que cada leitor reage ao
acontece, o leitor vai descortinando a vida so- desenvolvimento da trama conforme seus pa-
frida, marcada por violência e traumas pessoais drões éticos: o drama dos países assolados pelos
da criança. conflitos bélicos deixou impactos trágicos para
Sobre essa preocupação do personagem, a sociedade. Mortes e mutilações provocadas
que é carregada de um caráter ético, a pesqui- por essas minas3 soterradas são um lembrete
sadora brasileira Lígia Militz da Costa disserta incômodo do homem como lobo do homem.
que: Sobre essa questão do trágico, Peter
Szondi afirma que:
O fato de a tragédia ser imitação de uma
ação qualificada eticamente e de os carac- O trágico consiste originalmente no fato de
teres serem nela subordinados à ação im- que, em tal colisão, cada um dos lados opos-
põe a necessidade de as personagens que tos se justifica, e, no entanto, cada lado só é
agem e se apresentam serem também qua- capaz de estabelecer o verdadeiro conteúdo
lificadas pelo cárter e pelo pensamento. positivo de sua meta e de seu caráter ao
(COSTA, 1992, p. 19) negar e violar o outro poder, igualmente
justificado. Portanto cada lado se torna
Azarias é uma criança, que teve a infân- culpado em sua eticidade. (SZONDI, 2004,
cia roubada, que sonha em frequentar a escola, p. 42).
brincar livremente, seu caráter é forjado na
No caso da narrativa, ao contrário, o tio
convivência desse mundo. Ao se dá conta que
de Azarias não tenta justificar suas ações para
os demais bois estavam espalhados pela explo-
com o garoto, mas o culpa e preparava-lhe o
são, “o medo escorregou dos olhos do pequeno
castigo: “ – Apareça lá, não tenha medo. Não vou
pastor” (COUTO, 2013, p. 12). Com receio da
-te bater. Juro. Jurava mentiras. Não ia bater:
surra que o esperava, o pastorzinho resolve fu-
ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de
gir com os animais que restaram: “Apareça sem
juntar os bois” (COUTO, 2013, p. 14).
um boi, Azarias. Só digo: é melhor não apare-
Os personagens tipo são característicos
cer” (COUTO, 2013, p. 12). Essas reflexões que
das produções a partir do modernismo. Diante
o personagem faz sobre a perda dos bens do tio
das transformações e discussões intensas sobre
e as consequências disso ilustram o que a teóri-
grupos até esse momento desconsiderados, cria-
ca afirma, visto que o protagonista possui um
se esse personagem que desfilará por muitas li-
caráter qualificado, de honestidade não negli-
teraturas. Azarias e, mesmo Filomeninha, são
genciado nem durante a raiva que os pensa-
essas representações: africanos (ambas crian-
mentos trazem.
ças), impactados por processos desumanos,
Ao retomar os estudos de Hegel, Eduar-
marcados por violências (em todos os sentidos
do Coutinho afirma que a piedade trágica é

capacidade criadora de um de seus membros femininos, e para ser compensada, pela perda, recebia bens de determinado
valor. Portanto o lobolo é uma compensação nupcial. O lobolo representa também a tomada de responsabilidade do marido
pela manutenção e bem-estar da mulher e legitimação dos filhos gerados pela mulher lobolada para pertença do marido.
(OLIVEIRA, 2002, p. 27).
3 Desde o fim da Guerra Civil de Moçambique, em 1992, até 2015, foram removidos mais de 300 mil artefatos enterrados.
Hoje, o país é considerado desminado graças ao esforço coletivo do governo por meio do Instituto Nacional de Desminagem
em parceria com Halo Trust, uma instituição britânica que trabalhou em conjunto com as autoridades desde 1993. Disponí-
vel em: https://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2015/09/apos-mais-de-duas-decadas-mocambique-se-
declara-livre-de-minas-terrestres.html Acesso em 13/11/2022

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do termo) e tragédias pessoais e coletivas. mo que tanto feriu Filomeninha já não interes-
Nessa perspectiva, com esse processo sava ao contratador: “A única coisa que me in-
pulverizador da individualidade, é tarefa difícil teressa agora são esses tipos com dentes de aço.
falar no herói trágico quando falamos em tex- Umas dessas dentaduras que vocês às vezes
tos atuais, como os dois contos miacoutianos. têm, capazes de roer madeira e mastigar pre-
Em todo caso, observa-se que os personagens gos.” (COUTO, 2013, p. 110). O empresário não
Raul e Joseldo Bastante detêm o poder de agir quer mais contorcionistas, o mercado exige ou-
sobre o destino de todos os demais personagens tra performance, mais atraente para o público.
nas duas narrativas, principalmente dos dois E isso é dito desnudando-se também uma pers-
protagonistas (Filomeninha e Azarias). Por es- pectiva preconceituosa da imagem do negro
sa razão, pode-se dizer que ambos figuram com moçambicano, olhado sempre como exótico pe-
traços do herói trágico, considerando os confli- la máquina colonial, assim como desnuda a ra-
tos das obras: pidez do dissolvimento dos valores materiais
que as coisas e as pessoas têm na modernidade
É a do homem que não se distingue muito tardia, na pós-colonialidade.
pela virtude e pela justiça; se cai no infor- Nesse caso, o trágico se manifesta por
túnio, tal acontece não porque seja vil e
malvado, mas por força de algum erro; e
meio de circunstâncias contrastantes. A fala do
esse homem há de ser daqueles que gozam empresário marca o seu lugar de colonizador,
de grande reputações ou fortuna, como que chega ao colonizado inebriado pela visão
Édipo e Tiestes ou outros insignes repre- caleidoscópica dos estereótipos inculcado pela
sentantes de famílias ilustres máquina colonial para dispor de cada um deles
(ARISTÓTELES, 1992, p. 69).
a seu bel prazer, restando a Joseldo Bastante
recolher-se a sua insignificância de colonizado:
Joseldo Bastante era mecânico nem de-
“O Joseldo sorriu, envergonhado, e desculpou-
masiadamente mau, também não é um homem
se de não poder servir” (COUTO, 2013, p. 111).
bom. Já Raul, dono de uma criação de bois,
É na cena final de A menina de futuro
também compartilha essas características de
torcido que o trágico revela toda sua intensida-
homem comum, sujeito aos infortúnios do cur-
de. Depois da conversa com o empresário, Josel-
so da vida.
do Bastante, cuja contradição do próprio nome
É somente com a chegada da avó que
não passa despercebida ao mais desatento lei-
Azarias sai de seu esconderijo. Ela é o traço de
tor, ralhava com o destino sobre a nova
tranquilidade que ele ainda experimenta. “ –
‘necessidade’ do mercado: “dentes; agora são os
És tu, Azarias. Volta comigo, vamos para casa.
dentes!”, quando,
[...] – Vais fugir para onde, meu filho?
(COUTO, 2013, p. 15). De súbito, um brilho acendeu-lhe o rosto.
Depois de saber que os bois estão salvos, Segurando a mão da filha, perguntou, sem a
Raul tenta restabelecer uma harmonia com o olhar: — É verdade, Filomena: você tem
sobrinho, como defende Bornheim (2007), mas dentes fortes! Não é isso que diz a sua mãe?
seu arrependimento é falso. Apenas pela conve- E como não tivesse resposta, abanou o bra-
ço da criança. Foi então que o corpo de Fi-
niência, acha por bem concordar com tudo na- lomeninha tombou, torcido e sem peso, no
quele momento, prometendo-lhe que deixaria colo de seu pai. (COUTO, 2013, p. 111-112).
que frequentasse a escola no ano seguinte. En-
tretanto, “Depois, emendaria as ilusões do ra- Diante das novas exigências do mercado,
paz e voltariam as obrigações do serviço das Joseldo Bastante ver-se obrigado a buscar no-
pastagens” (COUTO, 2013, p. 16). vos caminhos para a sobrevivência da família.
Mas, nesse momento, Filomeninha morre, mar-
ATO FINAL cando o fim de sua trágica passagem pela vida.
Já no conto O dia em que explodiu Maba-
Os finais dos dois contos são previsíveis. ta-bata, a tragicidade não é menos chocante,
Em A menina de futuro torcido, o contorcionis- apesar do lirismo poético característico de Mia

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MACENO

“A menina de futuro torcido” e “O dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um estudo sobre o trágico

Couto na descrição da cena final: Referências

O pequeno pastor saiu da sombra e correu ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de


o areal onde o rio dava passagem. De súbi- Souza - São Paulo: Ars Poética, 1993.
to, deflagrou um clarão, parecia meio-dia
da noite. O pequeno pastor engoliu aquele
BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. 3 ed.
todo vermelho, era o grito do fogo estou- São Paulo: Perspectiva, 2007.
rando. Nas migalhas da noite viu descer o COSTA, Lígia Militz da. A Poética de Aristóte-
ndlati, a ave relâmpago. Quis gritar: — les: mimese e verossimilhança. São Paulo: Edi-
Vens pousar quem, ndlati? Mas nada não tora Ática, 1992.
falou. Não era o rio que afundava suas
palavras: era um fruto vazado de ouvidos,
COUTINHO, Eduardo. Antígona e Macbeth à
dores e cores. Em volta tudo fechava, mes- luz da estética de Hegel. In: Letras de hoje: nº
mo o rio suicidava sua água, o mundo em- 27: março
brulhava o chão nos fumos brancos. – Vens de 1977. Porto Alegre, 1977. p. 23 – 37.m
pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no COUTO, Mia. A menina sem palavra. São Pau-
tio, afinal das contas, arrependido e prome-
tente como pai verdadeiro que morreu-me? E
lo: Companhia da Letras, 2013.
antes que a ave do fogo se decidisse, Azari- CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Eti-
as correu e abraçou-a na viagem de sua mológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
chama. (COUTO, 2013, p. 16) Lexikon, 2010.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literatura
Azarias também se torna vítima das de autoria feminina: estudo de antologias poéti-
minas terrestres ao pisar em uma delas. A cena, cas. Belo Horizonte: Scripta, v. 8, n. 15, 2004.
muito forte, provoca o sentimento catártico no MEICHES, Mauro Pergaminik. A travessia do
leitor, pois é impossível não sentir o terror de trágico em análise. São Paulo: casa do Psicólogo,
ver a criança explodir e, ao mesmo tempo, a 2000.
piedade pelo ser humano que ele representa, MOISÉ, Massud. Dicionário de termos literários.
pela inocência que foi corroída sem que a crian- São Paulo: Cultrix, 2004.
ça tivesse culpa. Em sua tragédia pessoal, o OLIVEIRA, Irene Dias de. Identidade negada e
pastorzinho morre acreditando nas promessas o rosto desfigurado do povo africano (Os Tson-
mentirosas do tio, morre pelas ações malvadas gas). São Paulo: Annablume: Universidade Ca-
do homem. tólica de Goiás, 2002.
Mesmo com uma narrativa simples e de SCHURMANS, Fabrice. O trágico do Estado pós
fácil reconstituição, tanto no conto A menina -colonial. Sony Labou Tansi e Pius Ngandu
de futuro torcido como em O dia em que explodiu Nkashama.e-cadernos ces [Online], 12 | 2011,
Mabata-bata, Mia Couto recria elementos trági- colocado online no dia 01 Junho 2011.
cos não calcados em modelos de tragédia mo- Disponível em: URL : http://
derna ou na tragédia clássica aristotélica, mas eces.revues.org/704 ; DOI : 10.4000/eces.704
busca demonstrar, de maneira diferente, outros Acesso em 14 de abril 2019.
conflitos e dores aliados às questões muito SCHURMANS, Fabrice Aimé Fernand - Trági-
abrangentes sobre a política, o social e o cultu- co do Estado pós-colonial Pius Ngandu Nkas-
ral experienciados em seu país, propondo um hama, Sony Labou Tansi e Pepetela. Coimbra :
posicionamento crítico e de movimento sobre a [s.n.], 2012. Tese de doutoramento. Disponível
história e a realidade moçambicana e que pode, na www: http://hdl.handle.net/10316/20034
pelo caráter específico de sua obra, como litera- Acesso em 10 de janeiro de 2022
tura africana, adequar-se a outros espaços e SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Tradu-
tempos, cuja experiência histórica de coloniza- ção de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge-
do se confunda com Moçambique. Zahar, 2004.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. São
Paulo: Cosac&Naif, 2002.

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MACENO

“A menina de futuro torcido” e “O dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um estudo sobre o trágico

COMO CITAR

MACENO, R. B. “A menina de futuro torcido” e “O


dia que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto: um
estudo sobre o trágico. Revista Cerrados, 32(61), p.
33–41. 2023. https://doi.org/10.26512/
cerrados.v32i61.45715

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