A Judicialização Da Saúde No Brasil - Do Viés Individualista Ao Patamar de Bem Coletivo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 124

0

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI


VICE-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTOSENSU EM CIÊNCIAS JURÍDICAS – PPCJ
CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS – CMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL:


DO VIÉS INDIVIDUALISTA AO PATAMAR DE BEM COLETIVO

RONEI DANIELLI

Itajaí (SC), agosto de 2016


1

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI


VICE-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTOSENSU EM CIÊNCIAS JURÍDICAS – PPCJ
CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS – CMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL:


DO VIÉS INDIVIDUALISTA AO PATAMAR DE BEM COLETIVO

RONEI DANIELLI

Dissertação apresentada como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre
em Ciências Jurídicas pela Universidade
do Vale do Itajaí, com dupla titulação pela
Universidade de Alicante – UA/Espanha –
Programa de Pós-Gradução em Ciência
Jurídica.

Orientador: Prof. Dr. Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto

Itajaí (SC), agosto de 2016


2
3
4

Saúde Pública?
Em conta-gotas anda a Saúde Pública?
Em conta-gotas d´Água...
Em conta-gotas de Sangue ...
Em conta-gotas de Lágrimas.”
(NELSON MARTINS)
5

À Alexandra, à Rafaela e ao Mateus pela parceria,


inspiração e compreensão durante a jornada acadêmica,
combustível imprescindível ao resultado alcançado.
6

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientar, Prof. Dr. Francisco José Rodrigues de Oliveira


Neto, por sua dedicação e empenho em aprimorar os meus esforços, na pessoa de
quem homenageio todo o corpo docente da Univali/SC pelo exercício do verdadeiro
sacerdócio que é o magistério.

Agradeço especialmente aos membros da banca de defesa deste trabalho,


cujas sugestões agora integram o texto final, tornando-o certamente mais harmônico
e melhor.

Registro, ainda, os agradecimentos aos professores da Universidade de


Alicante pela calorosa acolhida e pelas preciosas lições de Direito, transformando
minha breve estadia em uma experiência acadêmica memorável.

Agradeço ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina pelo incentivo,


fundamental para a realização dessa pesquisa, com a qual pretendo humildemente
retribuir a aposta em mim depositada.

Sou grato a todos os amigos que gentilmente comigo travaram debates sobre
o tema, enriquecendo sempre o teor da investigação científica, deixando de citá-los
nominalmente por receio de pecar pela memória.

Consigno, também, os agradecimentos à equipe do Gabinete pela prévia e


atenta leitura do trabalho, seguida de considerações relevantes a sua redação final,
em especial à Renata Raupp Gomes pelas sugestões de bibliografia e conselhos
acadêmicos no tocante ao desenvolvimento do tema.

Agradeço, por último e sempre, à minha família extensa, especialmente meus


pais e irmãs, pelo feliz convívio e aprendizado recíproco.
7

RESUMO

Em razão de ter como preocupação central da investigação o crescente número de


demandas judiciais na área da Saúde pública, fenômeno descrito como
“judicialização da saúde”, o presente trabalho procura traçar um diagnóstico da
situação atual para, em seguida, debater acerca dos eventuais limites da atuação
judicial na matéria, bem como buscar construir parâmetros para o desempenho da
jurisdição, propondo, ao final, algumas soluções ao problema levantado. Para tanto,
analisa-se de início o direito à saúde sob o ponto de vista de seu regime jurídico-
constitucional, delineando seu enquadramento normativo, distinguindo-se entre
regras e princípios e, consequentemente, entre as diferentes repercussões
hermenêuticas na sua aplicação, ou seja, buscando delimitar a atuação do
Judiciário, observado o primado do equilíbrio e a cooperação entre os Poderes como
essencial ao bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. Pretendendo
uma abordagem propositiva, sugere-se uma preliminar distinção entre mínimo
existencial e máximo desejável, entendida a saúde no primeiro caso como a garantia
das condições básicas de vida digna ao ser humano, enquanto, na segunda
definição, se estaria diante de políticas públicas voltadas à efetivação progressiva e
proporcional ao crescimento e às riquezas do país em matéria de prevenção e de
promoção da saúde da população em geral, resgatando-se a teoria da reserva do
possível do direito alemão, como sendo o que o indivíduo pode razoavelmente
esperar do Estado. Nesses termos, defende-se que há um direito subjetivo de exigir
prestações positivas do Estado à efetivação do mínimo existencial (via demanda
individual), não se configurando óbice oponível a essa obrigação a cláusula ou teoria
da reserva do possível, destinada apenas a modular políticas públicas na
concretização do máximo prometido. Ainda tratando do máximo desejável ou
prometido, conclui-se tratar de discussão concernente ao bem coletivo e, nessa
esfera, insuscetível de análise particularizada, pois, seja para reclamar a ausência
de política pública específica ou a necessidade de alteração ou ampliação da
existente, o debate deve ser democratizado, não podendo se restringir a uma
pretensão individual. Alinhava-se, por fim, diversos instrumentos jurídicos capazes
de conformar a tutela e o exercício dos direitos coletivos, destacando-se entre eles a
Audiência Pública como forma de participação popular por excelência.

Palavras-chave: Saúde pública. Sistema Único de Saúde. Judicialização da saúde.


Mínimo existencial. Máximo desejável.
8

RESUMEN

El creciente número de demandas judiciales en el área de la Salud Pública,


fenómeno descrito como “judicialización de la salud”, es la preocupación central de
esta investigación. El presente trabajo intenta trazar un diagnóstico de la situación
actual debatiendo, a continuación, los eventuales límites de la actuación judicial en
la materia; asimismo, busca construir parámetros para el desempeño de la
jurisdicción proponiendo, al final, algunas soluciones al problema planteado. Para
ello, inicialmente se analiza el derecho a la salud desde el punto de vista de su
régimen jurídico constitucional, delineando su encuadramiento normativo,
distinguiendo entre reglas y principios y consecuentemente, entre las diferentes
repercusiones hermenéuticas en su aplicación, es decir, buscando delimitar la
actuación judicial, observado el primado del equilibrio y la cooperación entre los
Poderes como esencial al buen funcionamiento del Estado Democrático de Derecho.
Con el propósito de realizar un abordaje propositivo, se sugiere una distinción
preliminar entre mínimo existencial y máximo deseable. En el primer caso se
entiende la salud como la garantía de las condiciones básicas de vida digna al ser
humano, mientras que, en la segunda definición, se estaría delante de políticas
públicas dirigidas a la realización progresiva y proporcional al crecimiento y a las
riquezas del país en materia de prevención y promoción de la salud de la población
en general, rescatándose la teoría de la reserva de lo posible del derecho alemán,
como lo que el individuo puede esperar razonablemente del Estado. En esos
términos se defiende que hay un derecho subjetivo de exigir prestaciones positivas
del Estado a la ejecución de lo mínimo existencial (vía demanda individual), sin que
se configure óbice oponible a esa obligación la cláusula o teoría de la reserva de lo
posible, destinada solamente a modular políticas públicas en la concretización de lo
máximo prometido. Todavía tratando de lo máximo deseable o prometido, se
concluye que se trata de una discusión concerniente al bien colectivo, y en esa
esfera, no susceptible a un análisis particular, pues ya sea para reclamar acerca de
la ausencia de una política pública específica o de la necesidad de alteración o
ampliación de la existente, el debate debe ser democrático y no se puede restringir a
una pretensión individual. Se enumeran, por último, diversos instrumentos jurídicos
capaces de formar la tutela y el ejercicio de los derechos colectivos, destacándose
entre ellos la Audiencia Pública como forma de participación popular por excelencia.

Palabras clave: Salud pública. Sistema Único de Salud. Judicialización de la salud.


Mínimo existencial. Máximo deseable.
9

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................11
2 A SAÚDE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL E SEU REGIME
JURÍDICO-CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO .................15
2.1 AS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DO LIBERALISMO AO
CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL ................................................................... 15
2.2 A POSITIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 .............................................. 20
2.3 O ENQUADRAMENTO NORMATIVO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
SOCIAIS COMO REGRAS OU PRINCÍPIOS............................................................ 22
2.3.1 Distinção entre regras e princípios e possíveis consequências
hermenêuticas ......................................................................................................... 23
2.3.2 Distinção entre regras e princípios e entre os tipos de princípios proposta
por Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero ............................................................... 30
2.4 A PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO SEGUNDO LUIGI FERRAJOLI ............... 34
2.5 O DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL E SUA
ESTRUTURA NORMATIVA ...................................................................................... 36
3 A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES
SOBRE SUA CARACTERIZAÇÃO COMO DIREITO SUBJETIVO E RETROSPECTIVA
JURISPRUDENCIAL ..............................................................................................................40
3.1 DIREITO SUBJETIVO E SISTEMA DE POSIÇÕES JURÍDICAS FUNDAMENTAIS .... 40
3.1.1 Direitos a algo ................................................................................................. 41
3.1.1.1 Direitos a prestações estatais negativas ou direitos de defesa .............. 43
3.1.1.2 Direitos a prestações estatais positivas ou direitos prestacionais ................. 44
3.1.2 Liberdades ...................................................................................................... 45
3.1.3 Competências ................................................................................................. 46
3.2 A TRAJETÓRIA DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA ACERCA DO DIREITO À
SAÚDE: A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL E A SÍNDROME
DA IMONODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA (SIDA OU AIDS) ......................................... 51
10

4 OS LIMITES DA ATUAÇÃO JUDICIAL NA ÁREA DA SAÚDE – CONSIDERAÇÕES


FUNDAMENTAIS ACERCA DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO, DO MÍNIMO
EXISTENCIAL E DO MÁXIMO POSSÍVEL ..........................................................................65
4.1 ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO E DEMOCRACIA: A TENSÃO
ENTRE OS PODERES EXECUTIVO ........................................................................ 67
4.2 A IMPORTÂNCIA DAS NOÇÕES DE MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA, LIBERDADE E IGUALDADE .................................................... 74
5 A COLETIVIZAÇÃO DAS DEMANDAS NA ÁREA DA SAÚDE EM PROL DA
IMPLEMENTAÇÃO DO MÁXIMO POSSÍVEL: DO PARADIGMA DEFENSIVO (DA
TUTELA) AO DO EXERCÍCIO COLETIVO DO DIREITO FUNDAMENTAL .....................88
5.1. O DIREITO À SAÚDE E SUA DIMENSÃO COLETIVA: EM PROL DE UM NOVO
PARADIGMA JURÍDICO ........................................................................................... 93
5.2 INSTRUMENTOS TENDENTES À COLETIVIZAÇÃO DE CERTAS DEMANDAS
NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: PRÓS E CONTRAS NO CASO
ESPECÍFICO DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE ............................................................. 97
5.2.1 A previsão do artigo vetado que possibilitava a coletivização da demanda
individual no Novo Código de Processo Civil ...................................................... 98
5.2.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas ............................... 101
5.3 PARAMETRIZANDO A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA ÁREA DA SAÚDE 104
5.3.1 Ações individuais ......................................................................................... 104
5.3.2 Ações coletivas ............................................................................................ 105
5.4 A AUDIÊNCIA PÚBLICA COMO FORMA DE POLITIZAÇÃO E
DEMOCRATIZAÇÃO DA TEMÁTICA NAS TRÊS ESFERAS DE PODER ............. 110
5.5 CONCILIANDO O NEOCONSTITUCIONALISMO (OU CONSTITUCIONALISMO
PRINCIPIALISTA) E O GARANTISMO NA ATUAÇÃO JUDICIAL EM MATÉRIA DE
SAÚDE PÚBLICA.................................................................................................... 113
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................120
11

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho parte de uma inquietação pessoal do pesquisador, como


magistrado, notadamente diante da intuição de profundo colapso do modelo
tradicional de jurisdição e de fundamento decisório fornecido como resposta ao
fenômeno da judicialização da saúde no país.
Para tanto, tendo como preocupação central da investigação o crescente
número de demandas na área, em sua maioria propostas individualmente, esta
dissertação procura contextualizar esse recente fenômeno, traçando um diagnóstico
da situação atual para, em seguida, debater acerca dos eventuais (e desejáveis?)
limites da atuação judicial na saúde, bem como buscar construir parâmetros para
essa atuação, propondo, ao final, algumas soluções ao problema levantado.
Faz-se, ainda, um rápido paralelo com o caso espanhol, haja vista a
experiência pessoal do pesquisador que, valendo-se da possibilidade da dupla
titulação facultada pela instituição, desfrutou de feliz convívio e de frutíferas
investigações na Universidade de Alicante.
Utiliza-se como método de abordagem o indutivo, método de procedimento o
monográfico e como técnica de pesquisa a pesquisa bibliográfica, realizada a partir
de documentação direta e indireta.
No segundo capítulo, a saúde é analisada sob o ponto de vista de seu regime
jurídico-constitucional, historiando-se as dimensões dos direitos fundamentais e a
posição do direito à saúde como um direito fundamental social na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
Ainda nesse capítulo, trata-se de delinear o enquadramento normativo desse
direito fundamental, distinguindo-se entre regras e princípios e, consequentemente,
entre as diferentes consequências hermenêuticas.
De fundamental importância para o trabalho, no capítulo terceiro, faz-se uma
retrospectiva jurisprudencial até os primeiros precedentes sobre a Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida (SIDA ou AIDS), verdadeiro marco jurídico na matéria,
não apenas em relação à atuação judicial, mas também na busca popular pela
intervenção desse Poder, enfrentando o problema da sindicabilidade do direito à
saúde como direito subjetivo.
12

No intuito de situar tal polêmica, busca-se compreender o significado e a


extensão da expressão “direito subjetivo”, alicerçando doutrinariamente tal categoria
nos ensinamentos do constitucionalista alemão Robert Alexy. Na sequência,
passa-se à definição do que vem a ser posição jurídica fundamental, direito a algo,
direito a prestações negativas ou positivas, liberdades e competências.
Complementa-se o estudo de Robert Alexy com as contribuições de Manuel
Atienza e Juan Ruiz Manero. De outro lado, contrapõe-se à teoria principialista o
garantismo de Luigi Ferrajoli, para quem não há ponderação entre princípios
jusfundamentais, mas em subsunção às regras, ponderando-se os fatos.
No quarto capítulo, versa-se a respeito dos limites à atuação do Judiciário na
saúde pública, enfrentando, em um primeiro momento, a questão da separação dos
poderes como essencial ao bom funcionamento do Estado Democrático de Direito e
a tensão produzida entre eles pelo fenômeno da judicialização da saúde.
Desse modo, procura-se explicar o atual contexto, partindo-se da realidade de
uma Constituição analítica e de uma sociedade altamente complexa que, somadas,
acabam por conformar o fenômeno da juridicialização da vida, ou seja, como a Carta
Magna do país, em toda sua prolixidade, trata de incontáveis aspectos da vida
humana, áreas que antes habitavam a seara da política ou da sociologia tornaram-
se jurídicas.
Em que pese isso, propõe-se uma preliminar distinção, capaz de estabelecer
um parâmetro inicial à atuação judicial na temática da saúde pública, respeitante ao
que se entende por mínimo existencial e máximo desejável, entendida a saúde, no
primeiro caso, como a garantia das condições básicas de vida digna ao ser humano,
enquanto, na segunda definição, se estaria diante de políticas públicas voltadas à
efetivação progressiva e proporcional ao crescimento e às riquezas do país em
matéria de prevenção e de promoção da saúde da população em geral.
A propósito dessa discussão, resgata-se a teoria da reserva do possível do
direito alemão como sendo o que o indivíduo pode razoavelmente esperar do
Estado.
Com base nessa proposição, defende-se que há um direito subjetivo de exigir
prestações positivas do Estado à efetivação do mínimo existencial, não se
configurando óbice oponível a essa obrigação a cláusula ou teoria da reserva do
possível, destinada apenas a modular políticas públicas na concretização do máximo
prometido.
13

Por fim, no quinto e último capítulo, dá-se um enfoque especial à dimensão


coletiva do direito à saúde e seu tratamento jurídico, fazendo-se um breve apanhado
histórico dos direitos e das tutelas coletivas no Brasil, passando-se ao exame dos
instrumentos introduzidos pelo Novo Código de Processo Civil voltados à
coletivização das demandas individuais, com especial destaque ao dispositivo
vetado que tratava do Incidente de Coletivização da Demanda Individual (art. 333) e
ao Incidente de Resolução de Demanda Repetitiva (IRDR).
Reforça-se, nesse momento, a distinção entre demanda individual,
elegendo-se como parâmetro da atuação judicial, nessa hipótese, versar a respeito
do mínimo existencial ou descumprimento de uma política pública existente,
enquanto, de outro vértice, a discussão deverá se dar no âmbito coletivo.
Vale mencionar, tratando-se a discussão do máximo desejável ou prometido
(constitucionalmente), seja para reclamar a ausência de política pública específica
ou a necessidade de alteração ou ampliação da existente, que se deve ampliar e
democratizar o debate que, a toda evidência, não poderá se restringir a uma
pretensão individual. Isso porque, consoante afirmado no derradeiro capítulo, a
vocação coletiva do direito à saúde, sua configuração como bem coletivo, sugere a
necessidade de ampla participação popular, na forma definida por José Isaac Pilati
como soberania compartilhada, a engendrar um novo paradigma, inclusive em
termos de jurisdição.
Traz-se, ao final, a Audiência Pública como forma de resolução desses
conflitos, na medida em que proporciona uma visão mais global e especializada ao
mesmo tempo do problema da saúde, em toda a sua complexidade, proporcionando,
desse modo, uma solução construída e compartilhada por diversos segmentos da
sociedade, superando a visão autocrática da jurisdição.
Por último, mas não menos importante, ressalta-se que o paradigma
participativo, do qual a Audiência Pública é o grande trunfo, pode e deve ser
estabelecido não apenas no Judiciário, mas nas três esferas de Poder.
Encerra-se o capítulo resgatando a aparente polêmica entre o
constitucionalismo principialista de Robert Alexy e o garantismo de Luigi Ferrajoli,
procurando identificar pontos comuns no concernente ao direito à saúde e sua
interpretação.
Sabe-se não ter sido possível esgotar o tema não apenas pela limitação de
tempo e espaço que uma dissertação impõe, mas, sobretudo, pelas fronteiras
14

intelectuais do pesquisador, sempre o maior desafio a ser vencido no labor


acadêmico.
Entretanto, dada a grandeza do tema e a profundidade de sua repercussão
social, entende-se salutar a incompletude do trabalho, na medida em que
certamente continuará a instigar e a ser objeto de maiores e mais eficientes
pesquisas.
A pretensão de problematizar aspectos destacados do tema e prospectar
possíveis soluções, pensa-se, encontra-se conquistada. O resto é o caminho, que,
nas palavras do poeta espanhol Antônio Machado, “se faz ao caminhar”.
15

2 A SAÚDE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL E SEU REGIME


JURÍDICO-CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

2.1 AS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DO LIBERALISMO AO


CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL

Partindo-se da concepção filosófica de Norberto Bobbio1 de que os direitos


humanos são direitos históricos, que nascem e se justificam conforme as
peculiaridades espaço-temporais em que são gestados, adota-se como premissa
das considerações doravante desenvolvidas a tese das gerações, ou melhor, das
dimensões dos direitos fundamentais a fim de fundamentar, além do entrelaçamento
de sua positivação com as demandas de cada época, a noção de que tais direitos
não são sucessivos, ao menos no sentido de superação, mas sim necessariamente
complementares na medida em que podem e devem coexistir 2.
Seguindo essa classificação por objetivos didáticos, pode-se dizer que à
primeira dimensão de direitos corresponde a afirmação da liberdade não apenas
contra o Estado, mas também no Estado, ao tempo em que o homem livre (burguês)
como sujeito de direito buscou conquistar prerrogativas civis e políticas mediante a
atuação de um Estado marcadamente liberal.
Pela experiência do anterior Estado monárquico, absolutista e despótico, no
Estado liberal burguês, surgido após a Revolução Francesa de 1789, concebia-se o
Estado como inimigo, e, nessa extensão, as demandas de primeira dimensão
buscavam a sua limitação por meio de intervenção mínima na sociedade e na
economia. Pode-se inferir, então, que o ditame da igualdade, componente da tríade
revolucionária (liberdade, igualdade e fraternidade), referia-se a uma igualdade
meramente formal que, no Estado de Direito liberal, passou a ser expressa na
formulação “todos são iguais perante a lei”.

1 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 77.
2 Nesse sentido, vale consultar a obra: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos

fundamentais – uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12 ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
16

Ora, como bem pontua Eros Roberto Grau3, sendo a lei em si mesma uma
abstração, enquanto a realidade acontece no mundo concreto, torna-se evidente a
inconsistência do enunciado princípio da igualdade perante a lei.
Logo, em um Estado cujo paradigma era a não intervenção, notadamente na
economia, e a igualdade, um enunciado meramente formal, a própria liberdade
passa a ser restrita a certo segmento social em detrimento de uma esmagadora
maioria desprovida de recursos financeiros suficientes para exercê-la plenamente.
Sob essa perspectiva, as reivindicações dos direitos de segunda dimensão –
direitos de igualdade material – acabam por surgir precipuamente no período
pós-revolução industrial, em grande parte resultante das demandas proletárias,
nascidas como reação à crescente desigualdade social e econômica que
ameaçavam, inclusive, a própria noção de liberdade em seu sentido mais amplo
(liberdade substancial).
Na passagem dos direitos de liberdade, em que a atuação do Estado é
preponderantemente negativa, de omissão, para os de igualdade material, exigindo
não apenas condutas de abstenção, mas prestações efetivas, observa-se a
mudança de paradigma pertinente aos limites éticos, jurídicos e políticos que
legitimam o poder estatal diante das demandas da sociedade.
Contrapondo-se ao Estado liberal burguês, cuja maior formulação fora o
reconhecimento do homem livre como sujeito abstrato de direitos, as demandas de
segunda dimensão de direitos – direitos de igualdade material – somente se
realizam com a atuação de um Estado Social.
Nesse sentido, tem-se como exemplo as constituições sociais do México, de
1917, e de Weimar, de 1919, pioneiras na positivação dessas demandas.
Contudo, na conformação do Estado Social, ainda assentada na noção
clássica de Montesquieu sobre a separação dos Poderes, relegava-se
exclusivamente ao Poder Executivo a concretização dos direitos sociais por meio de
escolhas marcadamente políticas (políticas públicas).
Tal circunstância, somada à realidade do capitalismo global e com ele uma
onda neoliberal trazida pela “pós-modernidade”4, em que as leis do mercado passam

3
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 15 ed. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 22.
4
A expressão especialmente construída na obra de Jean François Lyotard, “A Condição Pós-
Moderna”, de 1979, ganha destaque e será aqui utilizada no sentido em que trabalhada por Eduardo
Bittar, na obra “O Direito na pós-modernidade”, sobretudo ao destacar como sintoma da pós-
17

a demandar posturas abstencionistas por parte dos Estados, acaba por evidenciar
uma terceira dimensão dos direitos fundamentais – os direitos de fraternidade –
dentre os quais se destaca o direito à qualidade de vida, em um meio ambiente
equilibrado e saudável, cada vez mais ameaçado pelo capitalismo mundial, legando,
por consequência, ao Poder Judiciário e à jurisdição constitucional a missão de
realização desses postulados, notadamente nos chamados países periféricos5 como
o Brasil.
Poder-se-ia afirmar que, para a concretização dos direitos de primeira
dimensão, o papel do legislativo no Estado liberal fora tão essencial quanto o do
Executivo no Estado Social para os de segunda geração, passando-se agora para o
momento seguinte, em que se afirmam os direitos de fraternidade no Estado
Democrático em consonância com a atuação do Poder Judiciário.
Nas reflexões de Lenio Streck6 sobre o papel do Direito no Estado
Democrático:

Assim, se no paradigma liberal o Direito tinha a função meramente


ordenadora, estando na legislação o ponto de tensão nas relações
entre Estado-Sociedade, no Estado Social sua função passa a ser
promovedora, estando apontadas as baterias para o Poder
Executivo, pela exata razão da necessidade da realização das
políticas do Welfare State. Já no Estado Democrático de Direito,
fórmula constitucionalizada nos textos magnos das principais
democracias, a função do Direito passa a ser transformadora, onde o
pólo de tensão, em determinadas circunstâncias previstas nos textos
constitucionais, passa para o Poder Judiciário ou os Tribunais
Constitucionais.

modernidade “o desenvolvimento e introdução de uma nova cultura pós-industrial e pós-moderna,


provocado pelo uso canônico do capitalismo pelas ideologias implantadas pelo poder mundial,
coincidente com o advento de um modo de vida compatível com as formas de conceituar o mundo e
as relações sócio-humanas. A pós-modernidade, não sendo apenas um movimento intelectual, ou
muito menos um conjunto de ideias críticas quanto à modernidade, vem sendo esculpida na realidade
a partir da própria mudança de valores, dos costumes, dos hábitos sociais, das instituições, e
algumas conquistas e desestruturações sociais que atestam o estado em que se vive em meio a uma
transição”. (BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2009, p. 109). Transição esta que, somada às ideias neoliberais (para efeito deste trabalho se
traduzem pela noção de Estado mínimo e de liberdade absoluta de mercado), define o contexto social
da Pós-Modernidade. Mais adiante, será trabalhada a noção de paradigma jurídico pós-moderno, no
sentido desenvolvido por José Isaac Pilati, a partir do entrecruzamento da noção de Bem Coletivo e
Sujeito Coletivo, sob a perspectiva da democracia participativa. (PILATI, José Isaac. Audiência
Pública na Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015).
5 A respeito da classificação, vide o estudo de Samuel Pinheiro Guimarães, intitulado “Desafios e

dilemas dos grandes países periféricos: Brasil e Índia”. Disponível em:


<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73291998000100006>. Acesso em: 5
maio 2016.
6
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: perspectivas e possibilidades de
concretização dos direitos fundamentais sociais no Brasil. Novos Estudos Jurídicos. v. 8, nº 2,
maio/ago 2003, p. 266-267.
18

Ressalte-se que, para o autor, o paradigma assumido pelo Estado


Democrático de Direito importa em nova forma de atuação do Poder Judiciário na
afirmação dos direitos fundamentais e na edificação da dignidade da pessoa
humana, sobretudo em países como o Brasil, no qual o projeto de modernidade não
chegou a se efetivar e o Estado Social não passou de simulacro. Com base nisso,
Streck7 afirma que:

[...] a noção de Constituição que se pretende preservar nesta quadra


da história é aquela que contenha uma força normativa capaz de
assegurar esse núcleo de modernidade tardia não cumprida. Esse
núcleo consubstancia-se nos fins do Estado estabelecidos no artigo
3º da Constituição. O atendimento a esses fins sociais e econômicos
é condição de possibilidade da própria inserção do Estado Nacional
na seara da pós-modernidade globalizante. Quando, portanto – para
estranheza e até surpresa de muitos constitucionalistas – continuo
apostando em um “dirigismo” constitucional, não estou a falar de um
conceito desvinculado da contemporaneidade que cerca a noção de
Estado Nacional e tampouco pretendo um isolacionismo de cunho
monádico-autárquico (ou, utilizando a expressão cunhada por
Canotilho, um autismo nacionalista e patriótico).
Na verdade, o que propugno é que os mecanismos constitucionais
postos à disposição do cidadão e das instituições sejam utilizados,
eficazmente, como instrumentos aptos a evitar que os poderes
públicos disponham livremente da Constituição (hermeneuticamente,
essa “disposição” nada mais é do que uma forma de “objetificação”).
A força normativa da Constituição não pode significar a opção pelo
cumprimento ad hoc de dispositivos “menos significativos” da Lei
Maior e o descumprimento sistemático daquilo que é mais importante
– o seu núcleo essencial-fundamental. É o mínimo a exigir-se, pois!
Dito de outro modo, descumprir os dispositivos que consubstanciam
o núcleo básico da Constituição, isto é, aqueles que estabelecem os
fins do Estado (o que implica trabalhar com a noção de “meios” aptos
para a consecução dos fins), representa solapar o próprio contrato
social (do qual a Constituição é o elo conteudístico que liga o político
e o jurídico da sociedade). O texto constitucional, fruto desse
processo de repactuação social, não pode ser transformado em um
latifúndio improdutivo.

Vale, portanto, a premissa inaugural de que os direitos fundamentais, sob a


perspectiva do constitucionalismo fraternal, devem, necessariamente, voltar-se à
afirmação do núcleo, da essência do Estado Democrático proposto
constitucionalmente, cujas bases são definidas tanto no preâmbulo (“instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e

7
STRECK, 2003, p. 279.
19

individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e


a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos”), como no art. 3º da CRFB de 1988, a saber:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa


do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.8

Nas palavras do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres


Brito9, o constitucionalismo fraternal pode ser assim resumido:

Efetivamente, se considerarmos a evolução histórica do


Constitucionalismo, podemos facilmente ajuizar que ele foi liberal,
inicialmente, e depois social. Chegando, nos dias presentes, à etapa
fraternal da sua existência. Desde que entendamos por
Constitucionalismo Fraternal esta fase em que as Constituições
incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a
dimensão da Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais
afirmativas, que são atividades assecuratórias da abertura de
oportunidades para os segmentos sociais historicamente
desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos
e as mulheres (para além, portanto, da mera proibição de
preconceitos). De par com isso, o constitucionalismo fraternal
alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor do
Desenvolvimento, do Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, da
Democracia e até de certos aspectos do urbanismo como direitos
fundamentais. Tudo na perspectiva de se fazer da interação humana
uma verdadeira comunidade. Isto é, uma comunhão de vida, pela
consciência de que, estando todos em um mesmo barco, não têm
como escapar da mesma sorte ou destino histórico.
Se a vida em sociedade é uma vida plural, pois o fato é que ninguém
é cópia fiel de ninguém, então que esse pluralismo do mais largo
espectro seja plenamente aceito. Mais até que plenamente aceito,
que ele seja cabalmente experimentado e proclamado como valor
absoluto. E nisso é que se exprime o núcleo de uma sociedade
fraterna, pois uma das maiores violências que se pode cometer
contra seres humanos é negar suas individualizadas preferências
estéticas, ideológicas, profissionais, religiosas, partidárias,
geográficas, sexuais, culinárias, etc. Assim como não se pode
recusar a ninguém o direito de experimentar o Desenvolvimento

8
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,
Senado, 1998.
9
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 216-217.
20

enquanto situação de compatibilidade entre a riqueza do País e a


riqueza do povo. Autosustentadamente ou sem dependência externa.

Reconhecer na contemporaneidade um novo paradigma de Estado


(Democrático de Direito), de Constituição (Dirigente) e de Sociedade (Fraterna)
corresponde, pois, a um reposicionamento do papel do Judiciário na conquista e
concretização dessa dimensão emergente de direitos fundamentais que ultrapassam
os limites do individualismo (típicos nos de primeira dimensão) ou de certos grupos
sociais (a exemplo dos de segunda dimensão) para abranger demandas dos seres
humanos em geral, inclusive de forma prospectiva, voltando-se às gerações
vindouras.
Assim, partindo-se da concepção de fraternidade, passa-se à análise do
direito fundamental à saúde, sem se olvidar, todavia, dos problemas decorrentes de
sua efetividade à luz das dimensões anteriores, embora pretendendo encontrar sua
amplitude fraternal e, com isso, seu equacionamento como um direito coletivo por
excelência.
Como primeira etapa ao enfrentamento da eficácia social dos direitos
fundamentais e, em especial, do direito à saúde, passa-se à análise de sua estrutura
normativa.

2.2 A POSITIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL


SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

Sabe-se que o papel das constituições, desde a origem do


constitucionalismo como limitação do Poder Estatal, forjado pela ideologia liberal,
centrou-se na separação dos Poderes e na garantia dos direitos fundamentais,
notadamente os de defesa, também chamados de civis e políticos, a ensejar
obrigações negativas por parte do Estado.
Observa-se, porém, da trajetória do constitucionalismo brasileiro e de
grande parte do continente europeu (a exemplo da Alemanha, da Espanha, de
Portugal e da Itália), uma crescente positivação dos direitos sociais como
fundamentais, ampliando significativamente a atuação do Estado, que, nesse
cenário, assume obrigações positivas, ou seja, de implementação de políticas
21

públicas capazes de dar efetividade a normas voltadas à concretização dos


postulados da igualdade material e liberdade substancial.
Aliás, a positivação dos direitos humanos como direitos fundamentais,
fenômeno típico das chamadas constituições sociais democráticas do segundo
pós-guerra, representa uma das grandes conquistas do constitucionalismo
contemporâneo.
Conforme a retrospectiva feita por Barroso10:

Das origens até os dias de hoje, a ideia de Constituição – e do papel


que deve desempenhar – percorreu um longo caminho. O
constitucionalismo liberal, com sua ênfase nos aspectos de
organização do Estado e na proteção de um elenco limitado de
direitos de liberdade, cedeu espaço para um constitucionalismo
social. Direitos ligados à promoção da igualdade material passaram a
ter assento constitucional e ocorreu uma ampliação notável das
tarefas a serem desempenhadas pelo Estado no plano econômico e
social.
Em alguns países essa tendência foi mais forte, dando lugar à noção
de dirigismo constitucional ou de Constituição dirigente, com a
pretensão de impor ao legislador e ao administrador certos deveres
de atuação positiva, com a consequente redução do campo
reservado à deliberação política majoritária.

Explicita o mesmo autor11 que, em países de democracia tardia, como


Portugal, Espanha e, sobretudo, o Brasil, tal fenômeno, embora tenha ocorrido mais
recentemente, faz-se sentir de maneira muito profunda.
Nesse viés, insere-se a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 (CRFB), que pode ainda ser definida, do ponto de vista de sua tipologia, como
uma Constituição escrita, democrática, rígida e analítica.12
Mais importante ainda, pode-se afirmar, a partir da conjugação de elementos,
como a rigidez constitucional, a prevalência do poder constituinte sobre o
constituído, o conteúdo substancial da constituição e sua pretensão de permanência,
a supremacia da Constituição no ordenamento jurídico brasileiro.
Com essa conformação, o constitucionalismo atual, superando a versão
positivista de Constituição, de caráter marcadamente formalista, assume feição
substancialista, na qual as normas não se limitam aos aspectos formais,

10
BARROSO, Luíz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 107-
108.
11 Ibidem, p. 363.
12
Ibidem, p. 103-105.
22

procedimentais de ordenação e limitação do Poder Estatal, mas dizem respeito


também à proposição de valores, de princípios e de determinados fins que
expressem consensos mínimos, asseguradores da dignidade das pessoas e do
regime democrático e plural da sociedade brasileira.
Sob essa perspectiva, a Constituição pátria ocupa hoje o vértice do
ordenamento jurídico não apenas em seu aspecto formal, mas sob o ponto de vista
material, axiológico, irradiando seus efeitos sobre os Poderes Legislativo, Executivo
e Judicial, bem como pautando as relações intersubjetivas na sociedade.
Utilizando da metodologia de Bobbio13, pode-se afirmar que, na
contemporaneidade, assiste-se à constitucionalização dos direitos fundamentais de
segunda e terceira dimensões, como expressão de uma proposta/promessa de
sociedade democrática, justa e solidária.
Nessa linha de desenvolvimento do constitucionalismo, foram positivados na
CRFB de 1988 inúmeros direitos sociais, como os relativos ao trabalho, à moradia, à
educação e, mais especificamente, ao direito à saúde.
A questão que se discute a partir dessa realidade posta é saber em que
medida tais direitos são judiciáveis ou, dito de outro modo, até que ponto podem ou
devem ser concretizados via atuação judicial.
Sem dúvida, a celeuma a ser investigada neste capítulo perpassa pela
análise da eficácia normativa do direito à saúde, desde seu enquadramento jurídico
até o exame de sua extensão e possibilidades hermenêuticas.

2.3 O ENQUADRAMENTO NORMATIVO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


SOCIAIS COMO REGRAS OU PRINCÍPIOS

Um dos principais dilemas enfrentados no tratamento da eficácia normativa


do direito à saúde, exemplo de direito fundamental social, consiste, precisamente,
em seu devido enquadramento como norma constitucional (regra ou princípio) e, por

13 Partindo-se da concepção filosófica de Bobbio (1992) de que os direitos humanos são direitos
históricos, que nascem e se justificam conforme as peculiaridades espaço-temporais em que são
gestados, tem-se como direitos fundamentais de segunda e terceira geração ou dimensão os direitos
sociais e o direito à saúde de forma mais ampla, compatível com um meio ambiente saudável,
equilibrado e com qualidade de vida, respectivamente. Para maior aprofundamento, consultar:
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992.
23

consequência, os limites de sua judicialidade (ideia que remete à discussão acerca


de constituir-se ou não em direito subjetivo).
Isso porque, em que pese a CRFB ter afirmado a eficácia imediata dos
direitos fundamentais (incluídos nesse rol os direitos fundamentais sociais do art. 6º),
há sérias controvérsias acerca dos reflexos jurídicos desse mandamento,
notadamente no que concerne ao reconhecimento de verdadeiro direito subjetivo
decorrente de seus arts. 6º e 196, cujas redações se repetem a título ilustrativo:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o


trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.
[...]
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.14

Na exata caracterização de uma norma constitucional (gênero) como regra ou


como princípio (espécies) reside, segundo boa parte dos constitucionalistas da
atualidade (neoconstitucionalistas 15), sua eficácia normativa, ou seja, a aptidão de
ser imediatamente cumprida e de, com sua observância, atingir o fim social a que se
destina.

2.3.1 Distinção entre regras e princípios e possíveis consequências


hermenêuticas

Para a teoria formulada por Robert Alexy16, mostra-se de relevância ímpar


distinguir a estrutura das normas constitucionais de direitos fundamentais – em
regras e princípios – como base à fundamentação dos direitos fundamentais, além
de representar a chave para a solução dos casos difíceis (hard cases) enfrentados
pela hermenêutica constitucional contemporânea.

14 BRASIL. Constituição (1988).


15 Qualificação utilizada no trabalho como definidora de um novo olhar do Direito constitucional,
voltado à concretização dos direitos fundamentais a partir do reconhecimento da força normativa da
Constituição e com fulcro na transformação do estado de Direito no Estado Constitucional de Direito.
16
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2011.
24

Nas palavras de Alexy17, sem essa necessária distinção, não é possível


construir “uma teoria adequada sobre as restrições a direitos fundamentais, nem
uma doutrina satisfatória sobre colisões, nem uma teoria suficiente sobre o papel
dos direitos fundamentais no sistema jurídico”.
Para o autor, tanto as regras quanto os princípios são espécies do gênero
norma jurídica, porque, em ambos os casos, diz o que deve ser, admitindo-se
formulações deônticas de permissão ou proibição.
Sem embargos das inúmeras teorias que buscam explicitar a diferença entre
regras e princípios, o referido autor concentra sua hipótese focando no conflito entre
regras e na colisão entre princípios de forma a demonstrar, concretamente, a
diversidade fundamental nas soluções em ambos os casos.
Com certa similitude de pensamento, ensina Gustavo Zagrebelsky18:

Si el derecho actual está compuesto de reglas y principios, cabe


observar que las normas legislativas son prevalentemente reglas,
mientras que las normas constitucionales sobre derechos y sobre
justicia son prevalentemente principios.

Alexy19 refere-se aos princípios distinguindo-os das regras, por entendê-los


como mandamentos de otimização, ou seja, ressaltando o aspecto de que podem
ser satisfeitos em graus variados, consoantes as possibilidades de fato e de direito
em jogo no caso analisado, sendo que as possibilidades jurídicas são determinadas
pela colidência entre princípios e regras.
Ao contrário, as regras são definidas como normas que ou são plenamente
satisfeitas ou não são satisfeitas, isto é, não comportam satisfação parcial. Segundo
Alexy20:

Se uma regra vale, então deve se fazer exatamente aquilo que ela
exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto,
determinações no âmbito daquilo que é faticamente e juridicamente
possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é
uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau.

17
Ibidem, p. 85.
18 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil – Ley, derechos, justicia. Tradução: Marina Gascón.
Madrid: Trotta, 2002, p. 109-110.
19
ALEXY, 2011, p. 90.
20 Ibidem, p. 91.
25

Assim, sob a perspectiva do autor, a distinção entre princípios e regras


evidencia-se precisamente na hipótese de colisão (entre princípios) e de conflito
(entre regras), cada qual a requerer solução específica.
Seguindo a lógica anterior, o conflito entre regras somente pode ser
solucionado ao se introduzir em uma delas exceção capaz de afastá-lo ou se for
declarada sua invalidade. Como exemplo, Alexy21 cita uma regra que proíba a saída
de sala de aula antes de bater o sinal e outra que determine a saída imediata ao
tocar o alarme de incêndio. Se o sinal ainda não tiver tocado e o alarme de incêndio
soar, a coexistência das duas regras conduz a juízos de dever-ser contraditórios
entre si. Tal conflito pode ser solucionado mediante a inclusão de uma cláusula de
exceção à regra de não sair da sala antes do sinal, no caso de soar o alarme de
incêndio. De outro vértice, sinaliza ainda o autor que, quando uma resolução
semelhante não for possível, há de ser declarada a invalidade de uma das regras,
extirpando-a do ordenamento jurídico.
Isso porque não se pode admitir como válidas duas regras com
consequências jurídicas concretas contraditórias. Por outro lado, afirma Alexy 22 que
tal constatação não resolve o problema de qual das regras deva ser declarada
inválida, solução que remete a outros critérios como o da lei posterior revogar a
anterior, da lei especial revogar a geral ou da relevância de cada regra conflitante.
Já a solução das colisões havidas entre princípios aponta para equacionamento
diverso.
Na hipótese de um princípio permitir algo e outro proibir a mesma conduta,
um deles terá que ceder ante a precedência do outro. Entretanto, a não aplicação de
certo princípio não importa a sua invalidação ou sua retirada do ordenamento
jurídico, ou mesmo a introdução de cláusula de exceção, porquanto a precedência
de um princípio sobre o outro dependerá sempre das condições concretamente
apresentadas, lembrando que todos têm validade prima facie. Alterando-se as
condições, o sopesamento dos princípios colidentes pode ser drasticamente
alterado, e o princípio antes precedente (conforme condição diferente) agora cede
ante ao princípio oposto.

21
ALEXY, 2011, p. 92.
22 Ibidem.
26

Em suma, segundo Alexy23, os “conflitos entre regras ocorrem na dimensão


da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos
podem colidir – ocorrem para além dessa dimensão, na dimensão do peso”.
Corroborando o afirmado, tem-se em Zagrebelsky24:

En pocas palabras, a las reglas “se obedece” y, por ello, es


importante determinar con precisión los preceptos que el legislador
establece por medio de las formulaciones que contienen las reglas; a
los principios, en cambio, “se presta adhesión” y, por ello, es
importante comprender el mundo de los valores, las grandes
opciones de cultura jurídica de las que forman parte y a las que las
palabras no hacen sino una simple alusión.

A propósito da assertiva, destaca Alexy25 que os princípios em geral, exceto o


da dignidade da pessoa humana, não possuem precedência abstrata ou absoluta,
ou seja, não existe hierarquia preestabelecida entre eles, de modo que o
estabelecimento da precedência de um sobre o outro depende sempre das
condições concretas de cada caso apreciado. No entanto, defende que, uma vez
realizado o sopesamento entre princípios colidentes, considerada certa
circunstância, o resultado dessa operação consiste em uma regra de direito
fundamental atribuída, a qual deve ser subsumida a casos idênticos.
Para tanto, utiliza como exemplo o caso paradigmático denominado “O
assassinato de soldados em Lebach”, em que um determinado programa de
televisão pretendia contar a história do homicídio de quatro soldados da guarda de
sentinela do Exército Alemão, na cidade de Lebach, que foram mortos enquanto
dormiam, e armas foram roubadas no intuito de praticar outros crimes. Ocorre que
um dos condenados pelo referido crime, à época da exibição do documentário,
estava para ser libertado da prisão e apresentou uma reclamação constitucional
para impedir a veiculação do programa sob o argumento de violação de seus direitos
fundamentais, notadamente em prejuízo de sua ressocialização.
Segundo Alexy26, a decisão do Tribunal Constitucional Alemão desenvolveu-
se em três etapas. Inicialmente se constatou a tensão entre a proteção
constitucional da personalidade (princípio identificado como P1) e a liberdade de

23
Ibidem, p. 94.
24 ZAGREBELSKY, 2002, p. 110.
25 ALEXY, 2011.
26 Ibidem.
27

informação (princípio identificado como P2). A colisão é cristalina, pois,


isoladamente considerados, P1 levaria à proibição da exibição do documentário,
enquanto P2 resultaria em sua permissão. Note-se que, nesse caso, nenhum dos
dois princípios tem precedência absoluta sobre o outro, tampouco um deles mostra-
se inválido. A solução em hipóteses como a apresentada é construída à luz do caso
concreto.
Assim, em uma segunda etapa, o Tribunal Alemão sustentou, considerando
os valores constitucionais, uma precedência geral da liberdade de informar (P2) no
caso de uma notícia atual sobre atos criminosos (condição denominada de C1),
chegando-se à seguinte regra: “(P2 P[precede] P1) C1”.
Na terceira etapa – etapa da decisão –, o Tribunal entende que a reprise do
documentário sobre o crime não se reveste mais da atualidade que justificaria o
interesse da informação capaz de sobrepor-se ao direito de ressocialização do
condenado a ser solto (aqui denominada de condição 2 – C2), de modo a prevalecer
o P1 sobre o P2, denotando, no caso concreto, a proibição da veiculação pretendida
pela emissora televisiva. Na formulação resumida por Alexy27: (P1 P P2) C2, ter-se-
á, então, uma regra de direito fundamental atribuída, segundo a qual havendo a
condição C2, P1 deve prevalecer sobre P2.
Prosseguindo na tentativa de discernir regras de princípios, o autor ressalta
que, enquanto estes últimos ostentam razões prima facie, as primeiras, quando não
introduzida cláusula de exceção, representam razões definitivas, entendida a
expressão razões como fundamentos para normas (gerais ou concretas).
Contrariando a concepção de que princípios são razões para regras unicamente,
não servindo como razão para decisões concretas, afirma que tanto regras como
princípios podem servir tanto como razão para regras como para decisões
concretas.
Desse modo, as regras, como razões definitivas, estabelecem direitos
definitivos e são aplicadas por meio de subsunção. De outro lado, os princípios,
como razões prima facie, exprimem direitos também prima facie, cujo conteúdo
definitivo somente pode ser encontrado após operada a relação de preferência ou
precedência no caso concreto. Segundo Alexy28:

27
ALEXY, 2011, p. 99-102.
28 Ibidem, p. 108.
28

Nesse sentido é possível afirmar que sempre que um princípio for,


em última análise, uma razão decisiva para um juízo concreto de
dever-ser, então, esse princípio é o fundamento de uma regra, que
representa uma razão definitiva para esse juízo concreto.

Exceção a exigir expressa menção traduz-se na dignidade da pessoa


humana, que a Constituição alemã, tal qual a brasileira, reconhece como um direito
absoluto, de acordo com a formulação “a dignidade humana é inviolável”, indicando
tratar-se de norma manifestada em parte como regra e em parte como princípio.
Tanto que, diante de situações concretamente avaliadas, não se discute sua
precedência ou não sobre outras normas, mas apenas se foi ou não violada.
Por fim, ressaltando a importância da amplitude do conceito de princípio,
Alexy29, discordando de Dworkin, para quem princípios apenas servem como razões
para direitos individuais (enquanto, para o atendimento de interesses coletivos, há
“políticas”), insiste que há princípios vinculados a interesses individuais e há
princípios vinculados a interesses coletivos, reclamando estes últimos a implementação
de “situações que satisfaçam – na maior medida possível, diante das possibilidades
jurídicas e fáticas – critérios que vão além da validade ou da satisfação de direitos
individuais”.
Com esse perfil traçado acerca dos princípios, o autor30 desenvolve, a seguir,
com base na formulação do Tribunal Constitucional Alemão de que “a máxima da
proporcionalidade decorre da própria essência dos direitos fundamentais”, a
conexão e até mesmo a complementariedade do axioma à teoria dos princípios,
desde, é lógico, que referente a direitos fundamentais expressos em forma de
princípios.
Isso porque os princípios são mandamentos de otimização, realizáveis em
face das possibilidades jurídicas e fáticas. Nesses termos, a máxima da
proporcionalidade em sentido estrito (sopesamento) diz respeito à relativização
consideradas as possibilidades jurídicas (colisão de princípios antagônicos),
enquanto as máximas da necessidade e da adequação traduzem ponderação das
circunstâncias fáticas do caso concreto.
Para Alexy31, a regra metodológica da ponderação dos valores
jusfundamentais, por ele chamada de “máxima da proporcionalidade”, é a resposta

29 ALEXY, 2011, p. 114-115.


30 Ibidem.
31 Ibidem.
29

hermenêutica para a resolução de eventual colisão de princípios antagônicos, por


meio da qual se estabelece o prevalente no caso concreto, consideradas as
condicionantes de fato e de direito.
Encaminhamento um pouco mais detalhado, notadamente no que pertine à
classificação dos princípios, é sugerido pelos professores espanhóis, Manuel
Atienza e Juan Ruiz Manero32, tomando-se por referência a teoria de Alexy33.

32 ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Sobre princípios e regras. Revista Eletrônica
Acadêmica de Direito Law E-journal Panóptica, Disponível em:
<http://www.panoptica.org/seer/index.php/op/article/viewFile/85/93>. Acesso em: 2 março 2016.
33 ALEXY, op. cit.
30

2.3.2 Distinção entre regras e princípios e entre os tipos de princípios proposta


por Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero

Com intuito de distinguir regras de princípios, utilizando-se tanto do aspecto


estrutural como funcional das normas, Atienza e Manero 34 consideram
imprescindível a distinção entre princípio em sentido estrito e princípio diretriz.
Sabendo-se que às regras correspondem enunciados que correlacionam
casos com soluções, resta identificar quanto aos princípios (diretrizes e em sentido
estrito) eventual identidade de estrutura condicionada, tal qual acontece com as
regras.
Antes, porém, deve ser explicitado o que diferencia um princípio diretriz de um
princípio em sentido estrito:

c) “Princípio” no sentido de norma programática ou diretriz, isto é, de


norma que estipula a obrigação de perseguir determinados fins. Por
exemplo, o art. 51 da Constituição Espanhola: “os poderes públicos
garantirão a defesa dos consumidores e usuários, protegendo,
mediante procedimentos eficazes, a segurança, a saúde e os
interesses econômicos legítimos dos mesmos”. d) “Princípio” no
sentido de norma que expressa os valores superiores de um
ordenamento jurídico (e que são o reflexo de uma determinada forma
de vida), de um setor do mesmo, de uma instituição, etc. Por
exemplo, o art. 14 da Constituição Espanhola: “os espanhóis são
iguais perante a lei, sem que possa prevalecer qualquer
discriminação por razão de nascimento, raça, sexo, religião, opinião
ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social.35

A partir da definição proposta e dos próprios exemplos formulados pelos


autores, pode-se vislumbrar a similitude estrutural dos princípios em sentido estrito e
das regras, destacadamente o aspecto de sua condicionalidade expressa no
binômio caso-solução, embora com peculiaridades, a seguir destacadas:

Em nossa opinião, os princípios em sentido estrito podem ser


formulados sempre como enunciados que correlacionam casos com
soluções, mas isso não quer dizer que, desde esta perspectiva, não
exista nenhuma diferença entre regras e princípios. A diferença
consiste em que os princípios configuram o caso de forma aberta,
enquanto que as regras o fazem de forma fechada. Com isso
queremos dizer que, enquanto que nas regras as propriedades que
conformam o caso constituem um conjunto fechado, nos princípios

34 ATIENZA; MANERO, 2016.


35 Ibidem, p. 52, grifo dos autores.
31

não se pode formular uma lista fechada das mesmas: não se trata só
de que as propriedades que constituem as condições de aplicação
tenham uma área maior ou menor de abstração, se não, de que tais
condições não se encontram sequer genericamente determinadas. O
tipo de indeterminação que afeta os princípios é, pois, mais radical
que o das regras (ainda que, desde logo, entre um e outro tipo de
indeterminação possa haver casos de penumbra).36

Todavia, o mais importante aspecto ressalvado por Atienza e Manero 37, em


contraposição à distinção proposta por Alexy38 (de que os princípios, como
mandamentos de otimização, podem ser cumpridos na medida do possível em
comparação com as regras – sempre cumpridas na integralidade), somente se
confirma em relação aos aqui denominados princípios diretrizes ou normas
programáticas, porquanto, ao se tratar de princípio em sentido estrito, haverá, após
o processo de ponderação e de eleição de prevalência, sua aplicação integral,
exatamente a exemplo do que acontece com a regra.
Nesse sentido, os exemplos da Constituição espanhola, trazidos pelos
doutrinadores, são elucidativos:

Um princípio como o formulado no art. 14 da Constituição Espanhola,


visto como princípio secundário, pode, nos parece, apresentar-se na
forma de um enunciado condicional, como o seguinte: “se um órgão
jurídico deve ditar uma norma, aplicá-la, etc., e não se dão as
circunstâncias normativas ou fáticas que exijam outra coisa (isto é,
que desloquem o princípio), este órgão está proibido de estabelecer
ou de fazer que prevaleça qualquer discriminação em virtude de
raça, sexo, religião, opinião ou qualquer outra condição ou
circunstância pessoal ou social”. Encontramos a indeterminação
característica dos princípios aqui unicamente na configuração aberta
das condições de aplicação, mas não na descrição da conduta
proibida: discriminar. Pode, desde então, entender que
“discriminação” é um termo vago em certos contextos, mas este tipo
de indeterminação se dá também nos padrões a que chamamos de
“regras”. A regra de que a mulher trabalhadora deve receber salário
igual ao do homem se diferencia do princípio anterior unicamente no
fato de que suas condições de aplicação se configuram de forma
fechada (assim, o art. 28 do Estatuto dos Trabalhadores estabelece
que “o empresário é obrigado a pagar pela prestação de trabalho
igual o mesmo salário, tanto por salário base como pelos
complementos salariais, sem discriminação alguma por razão de
sexo”), mas também aqui pode haver problemas de indeterminação
na hora de estabelecer tanto se suas condições de aplicação se dão
em um determinado caso individual (podem existir dúvidas sobre se

36 ATIENZA; MANERO, 2016, p. 56-57.


37 Ibidem.
38 ALEXY, 2011.
32

uma determinada atividade deve ser considerada ou não como


“trabalho”), ou sobre o alcance da descrição da conduta proibida (um
complemento salarial para vestuário diferente por razão do sexo
deve ser considerado proibido pelo mesmo artigo 28?).
Estruturalmente, a única diferença entre o art. 14 da CE e o art. 28
do ET reside, em último caso, no fato de que as condições de
aplicação da norma constituem um conjunto fechado, ainda que sua
formulação possa apresentar problemas de indeterminação
semântica (e insistimos que as indeterminações semânticas não
afetam o caráter de regra, a não ser que alcancem um grau extremo
que não permita que se fale de determinação de um modelo de
conduta). Mas em relação à descrição do modelo de conduta
qualificado deonticamente, ambas as normas apresentam um grau
de determinação semelhante. Dito de outra forma: se foi determinado
que o princípio de igualdade consagrado no art. 14 prevalece, na
combinação de fatores relevantes que apresenta um determinado
caso individual, frente a princípios que operam em sentido contrário,
este princípio exige um cumprimento pleno; ou se cumpre ou não se
cumpre, mas não cabem modalidades graduáveis de cumprimento.
3.1.2. Se dos princípios em sentido estrito passamos às diretrizes ou
normas programáticas, as coisas parecem ser algo distintas. Uma
norma como, por exemplo, o art. 51 da Constituição, antes
relembrado, pode também se expressar sempre na forma de um
enunciado condicional: “se x é um Poder Público e não se dão as
circunstâncias normativas ou as fáticas que o impeçam, então x deve
utilizar os procedimentos eficazes tendentes a proteger a segurança,
a saúde e os legítimos interesses econômicos dos consumidores e
usuários”. Mas se agora nos propusermos a questão sobre como se
diferencia estruturalmente o art. 51 e o art. 14 da CE, resulta óbvio
que enquanto o último deles só configura de forma aberta suas
condições de aplicação, mas não o modelo de conduta qualificado
deonticamente, o primeiro configura de forma aberta tanto as
condições de aplicação quanto o modelo de conduta prescrito. A
diferença, pois, entre um princípio em sentido estrito e uma diretriz,
da perspectiva que estamos agora contemplando as normas, parece
ser a seguinte: sobre os princípios em sentido estrito cabe dizer que
são mandamentos de otimização unicamente no sentido de que, ao
estarem configuradas de forma aberta suas condições de aplicação,
a determinação de sua prevalência ou não em um caso individual
determinado exige sua ponderação em relação com os fatores
relevantes que o caso apresente, com princípios e com regras que
operem em sentido contrário; mas uma vez determinado que nesse
caso prevalece o princípio, este exige um cumprimento pleno. As
diretrizes, pelo contrário, ao estipular a obrigatoriedade de utilizar
meios idôneos para perseguir um determinado fim, deixam também
aberto o modelo de conduta prescrito: as diretrizes sim podem, de
fato, ser cumpridas em diversos graus. Isto é o que explica porque,
por exemplo, o art. 14 da Constituição Espanhola mudaria de sentido
se fosse estabelecido como uma norma programática (“os poderes
públicos promoverão a igualdade dos espanhóis ante a lei, para que
não possa prevalecer discriminação alguma em virtude de
nascimento, raça [...]”).39

39
ATIENZA; MANERO, 2016, p. 56-58, grifo dos autores.
33

Com essa importante ressalva, os autores distinguem regras de princípios a


partir de suas estruturas, alertando para o fato de que os princípios em sentido
estrito somente podem ser considerados mandamentos de otimização enquanto não
realizada a ponderação com normas colidentes para eleger, em dada situação fática
e jurídica, a prevalência de uma delas. Após tal operação e eleito um princípio
predominante ou prevalente para o caso concreto, este se aplica tal qual a regra, ou
seja, na base do “tudo ou nada”. Isso porque a “textura aberta” do princípio em
sentido estrito refere-se às condições de aplicação e não ao modelo de conduta
prescrito.
Todavia, quando se trata dos chamados princípios diretrizes ou normas
programáticas, estes padecem de “abertura” (ou melhor, de abstração) tanto no que
se refere às condições de aplicação quanto à conduta prescrita.
Nesse sentido, ao se prescrever o dever do Estado de promover a saúde de
sua população, por exemplo, afirma-se concretamente que deve empreender meios
idôneos e eficientes para atingir esse determinado fim, sem deixar claro, porém, qual
é a medida de satisfação dessa tarefa, que é, em última instância, a conduta
prescrita.
Por fim, analisando a distinção entre regras e princípios (e entre eles a
diferença dos princípios em sentido estrito e diretrizes) como razão de agir, afirmam
Atienza e Manero40 que as regras são razões peremptórias independente de seu
conteúdo e, portanto, verificadas as condições de sua aplicação (suporte fático da
regra), deve o julgador utilizar-se da subsunção para atribuir a consequência
prevista no comando normativo. Descabe, na hipótese de regra, falar-se em
ponderação do julgador, porquanto tal operação (opção) já fora realizada
politicamente pelo legislador.
Dessa feita, “as regras – para quem as segue – operam como razões
peremptórias ou protegidas, enquanto que os princípios os fazem como razões de
primeira ordem, que devem ser ponderadas com outras razões” 41. Vale afirmar,
portanto, que as regras são mandados ou comandos definitivos.
Ainda, considerando-se a distinção entre os princípios em sentido estrito e os
princípios diretrizes, assentam os autores:

40 ATIENZA; MANERO, 2016.


41 Ibidem, p. 60.
34

As diretrizes geram razões para a ação de tipo instrumental ou


estratégico: para que a consecução de um fim F seja desejável faz
com que exista, em princípio, uma razão em favor de todo aquele
que conduza a tal fim; a razão não é excludente, pois pode haver
razões em sentido contrário e que tenham uma maior força. Pelo
contrário, as razões para a ação que derivam de princípios em
sentido estrito são razões de correção: igual às anteriores, não são
também excludentes, mas, na deliberação do sujeito, as razões de
correção operam como razões últimas (não são razões finalistas,
mas sim razões finais). Por isso, as razões estratégicas que derivam
de diretrizes podem e devem ser avaliadas – e, em seu caso,
superadas – por razões de princípio, enquanto que o contrário não
pode ocorrer: se tem uma razão de princípio para fazer X, então, o
não fazer X só pode se justificar apelando às outras razões de
correção – baseadas em princípios – que tenham um maior peso,
mas não às razões finalistas – baseadas em diretrizes – que
mostram que a consecução de um certo fim é incompatível com a
ação X.42

Cumpre ressaltar em tempo que, apesar da sistematização didática, a própria


imprecisão da linguagem acarreta muitas vezes o que Genaro Carrió43 denomina de
“zona de penumbra”, resultando, mesmo na hipótese de regra, em dúvidas acerca
da inclusão ou exclusão de determinado fato à norma, dificultando sobremaneira o
processo de mera subsunção. Nesse caso específico, há de se ponderar os
fundamentos de referida norma, seus princípios informadores, de modo que o
campo de aplicação da regra dependerá do processo interpretativo e, sob essa
óptica, necessariamente criativo.

2.4 A PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO SEGUNDO LUIGI FERRAJOLI

Para o autor italiano Luigi Ferrajoli44, os direitos fundamentais expressos por


normas constitucionais são genéricos e abstratos (universais) e configuram direitos
subjetivos aos seus titulares, porquanto traduzem “expectativas de não lesão como
são todos os direitos de liberdade ou imunidade ou mesmo expectativas positivas de
prestação, como são todos os direitos sociais, como, por exemplo, os direitos à
assistência sanitária e à educação”.

42
ATIENZA; MANERO, 2016, p. 60-61.
43
CARRIÓ, Genaro R. Principios jurídicos y positivismo jurídico. Notas sobre Derecho y lenguaje.
3. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1986, p. 34.
44
FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos humanos. O constitucionalismo garantista
como modelo teórico e como projeto político. Tradução: Alexandre Araújo de Souza e outros. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 119.
35

Do outro vértice, a tais expectativas correspondem obrigações negativas


(vedações ou limites fundamentais) no que concerne aos direitos de liberdade e
obrigações positivas (satisfações ou vinculações fundamentais) no tocante aos
direitos sociais.
Defende o autor garantista que os direitos fundamentais, ainda que
estabelecidos na forma de princípios, são regras deônticas nas quais reside sua
força normativa em relação à legislação e à jurisdição, ou seja, vinculando o
legislador ao seu respeito e o intérprete à sua “[...] aplicação substancial aos atos
inválidos que constituem as suas violações. E é pela possibilidade de sua violação,
por comissão ou omissão, que as normas que os estabelecem são reconhecíveis
como regras deônticas”45.
Em suma, pode-se pensar na tentativa de conciliação dessa visão com as
anteriores no ponto em que reconhece o autor que os direitos fundamentais são
geralmente expressos por meio de princípios que, no entanto, quando violados
(comissiva ou omissivamente), aplicam-se como regra:

Têm, portanto, a forma de princípios, exatamente por que de tal


forma as Constituições proclamam explicitamente as expectativas,
isto é, as proibições e as obrigações àqueles correspondentes; pois,
em outras palavras, graças a tal forma elas exprimem diretamente,
como bem sublinhou Giorgio Pino, os fins e as escolhas ético-
políticas que com eles o ordenamento pretende perseguir. Mas é
claro que com relação às violações das proibições e às
inobservâncias dos deveres a eles correspondentes, estes princípios
são colocados em relevo como regras, no sentido já ilustrado de que
são aplicáveis judicialmente às primeiras e atuados legislativamente
pelas segundas.46

Desse modo, segundo as conclusões de Ferrajoli47, a argumentação é


sempre realizada por meio dos princípios, enquanto a aplicação é feita sempre por
meio das regras correspondentes, pois “se é verdade que toda aplicação supõe
normalmente uma argumentação por intermédio de princípios, é também verdade
que toda a argumentação é finalizada à aplicação de uma regra”.
Percebe-se certa aproximação com o posicionamento de Atienza e Manero48,
precisamente quando os autores espanhóis identificam a similitude entre os

45
FERRAJOLI, 2015, p. 122.
46
Ibidem, p. 123.
47
Ibidem, p. 124.
48 ATIENZA; MANERO, 2016.
36

princípios em sentido estrito e as regras, ressalvando-se a nomenclatura dada por


Ferrajoli49 de princípios regulativos no lugar de princípios em sentido estrito:
“princípios e regras, no caso dos princípios regulativos, não são normas distintas, ou
pior, contrapostas, mas são uns a face oposta das outras”.
Coincidem também os autores quanto à coexistência de princípios chamados
diretrizes na Constituição, a reclamar políticas públicas (prestações fáticas ou
jurídicas), de modo que a dissidência parece se resumir quanto à caracterização dos
direitos sociais como saúde, moradia ou educação como princípio regulativo,
segundo Ferrajoli50, e princípio diretriz, segundo Atienza e Manero51.

2.5 O DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL E SUA


ESTRUTURA NORMATIVA

De acordo com a teoria de Alexy52, a maioria dos direitos fundamentais


sociais se expressa na forma de princípio e, por isso, demanda concretização na
maior extensão possível, recebendo, segundo a concepção de Atienza e Manero 53, a
denominação de princípio diretriz, porquanto trata de atingir determinado fim, por
meio da adoção de certas medidas (prestações).
Aliás, a propósito da distinção entre princípios e regras, Atienza e Manero54,
criticando a proposição de Alexy55, ressalvam:

Robert Alexy, desenvolvendo, pelos demais, algo que já estava


presente em Dworkin, escreveu que “o ponto decisivo para a
distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas
que ordenam que se realize algo na maior medida possível, em
relação às possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios são, por
conseguinte, mandamentos de otimização, que se caracterizam
porque podem ser cumpridos em diversos graus e porque a medida
ordenada de seu cumprimento não só depende das possibilidades
fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O campo das
possibilidades jurídicas está determinado por meio de princípios e de
regras que operam em sentido contrário. De outro lado, as regras
são normas que exigem um cumprimento pleno e, nesta medida,
podem sempre ser somente cumpridas ou descumpridas. Se uma

49
FERRAJOLI, op. cit., p. 124.
50 FERRAJOLI, 2015.
51 ATIENZA; MANERO, 2016.
52 ALEXY, 2011.
53 ATIENZA; MANERO, op. cit.
54 Ibidem, p. 56, grifo nosso.
55 ALEXY, op. cit.
37

regra é válida, então, é obrigatório fazer precisamente o que ela


ordena, nem mais nem menos” (ALEXY, 1988, p. 143-144). A nosso
juízo, é verdadeiro que os princípios possam ser cumpridos em
diversos graus quando se referem às diretrizes ou às normas
programáticas, mas não o é no caso dos princípios em sentido
estrito.

Tal constatação parte do pressuposto de que, em se tratando de um princípio


em sentido estrito, ou seja, aquele entendido como norma que expressa os valores
superiores de um ordenamento, como, por exemplo, o princípio da igualdade quando
eleito como precedente a outro colidente no caso concreto, cumpre-se integralmente
não havendo possibilidade de cumprimento gradual.
A partir dessa realidade, vislumbra-se, segundo Atienza e Manero56, a
distinção entre os princípios em sentido estrito das diretrizes (ou princípios
diretrizes), entendendo os direitos sociais, em sua grande maioria como sendo do
último tipo, podendo, por óbvio, ser cumprido na medida do possível (ou, na visão de
Alexy57, como mandamento de otimização).
Evidentemente que essa percepção pode estar intimamente ligada ao fato de
que tais diretrizes encontram-se normatizados no Capítulo Terceiro da Constituição
Espanhola de 1978, sob a denominação de “princípios reitores da política social e
econômica”, motivo por que sua classificação como normas programáticas parece
ser mais facilmente assimilável do que no Brasil, contexto em que os direitos sociais
são definidos expressamente como fundamentais (e de eficácia imediata) na
sequência dos direitos civis e políticos, mesmo que realizáveis por prestações
positivas do Estado.
Segundo Clara Marquet Sardà58, a positivação de direitos fundamentais na
Constituição espanhola distribui-se em diferentes grupos, conforme sua localização
sistemática (Título I – Direitos e deveres fundamentais; Cap. II – Direitos e
liberdades; Cap. III – Princípios reitores da política social e econômica), sendo que
há previsão de direitos sociais em todos os agrupamentos, variando, tão somente,
as garantias que lhes são correlatas:

56 ATIENZA; MANERO, 2016.


57 ALEXY, 2011.
58 SARDÀ, Clara Marquet. Estado Social, Direitos Sociais e Princípios no sistema Consitucional da

Espanha. In: STRAPAZZON, Carlos Luiz; SERRAMALERA, Mercè Barcelò i (orgs.). Direitos
fundamentais em estados compostos. Tradução: Débora Diersmann Pereira. Chapecó: Unoesc,
2013, p. 213.
38

Finalmente, o Capítulo III do Título I CE contém a maior parte de


conteúdos prestacionais. Apesar da rubrica do Capítulo, “Princípios
reitores da política social e econômica”, alguns destes conteúdos se
reconhecem expressamente como direitos, enquanto outros se
estabelecem como mandatos aos poderes públicos. Entre os
primeiros, acham-se o direito à proteção da saúde (artigo 43.1 CE), o
direito de acesso à cultura (artigo 44.1 CE), o direito a desfrutar de
um meio ambiente adequado (artigo 45.1 CE), e o direito a desfrutar
de uma moradia digna (artigo 47 CE). Entre os segundos, um amplo
espectro de mandatos que vão desde a proteção a determinados
grupos sociais, ao estabelecimento de diretrizes de política
econômica e à garantia de determinadas instituições do Estado
social.
As garantias destes direitos diante do legislador deduzem-se, ao
contrário, do artigo 53.1 CE, que não os inclui na obrigação de
respeito ao conteúdo essencial nem na reserva de lei. Ademais, o
artigo 53.3 CE estabelece expressamente que “o reconhecimento, o
respeito e a proteção dos princípios reconhecidos no Capítulo III
informará a legislação positiva, a prática judicial e a atuação dos
poderes públicos. Só poderão ser alegados ante a jurisdição ordiná-
ria de acordo com o que disponham as leis que os desenvolvam.”
Isso implica que, apesar de que vinculam aos poderes públicos em
suas atividades, a eficácia subjetiva direta destes preceitos se acha
condicionada a seu desenvolvimento legislativo, o que lhes atribui,
com os matizes que se verão posteriormente, uma menor possibi-
lidade de exigência judicial. Toda a análise dos direitos sociais na
Constituição espanhola se acha impregnada por esta divisão entre os
direitos do Capítulo II e os princípios reitores do Capítulo III.

Retomando, pois, a perspectiva defendida por Atienza e Manero59, o direito à


saúde, no caso brasileiro, poderia ser entendido como um “princípio diretriz” e, por
esse motivo, diferentemente de um princípio em sentido estrito ou de uma regra,
admitiria ser realizado na maior extensão possível (sopesadas razões de ordem
fática e jurídicas) por políticas públicas orientadas à sua concretização social.
Tal assertiva se ampara na “abertura” normativa dos dispositivos correlatos ao
direito à saúde, destacadamente os arts. 6º e 196 da CRFB de 1988 que, na
explicação de Atienza e Manero60, caracterizam-se pela abstração no que pertine à
conduta prescrita pela norma, uma vez que, como já asseverado, esta se traduz em
assegurar meios idôneos para atingir o fim colimado, sem deixar claro, todavia, qual
é a medida de satisfação da obrigação por ela imposta.
Por fim, entendendo-se o direito à saúde, na forma com que positivado na
CRFB de 1988, como um princípio diretriz, pode-se afirmar que tal norma, assim
como outras de mesma estrutura (como, por exemplo, o direito à educação ou à

59 ATIENZA; MANERO, 2016.


60 Ibidem.
39

moradia), gera razões para ação de tipo instrumental ou estratégico, traduzindo-se


por justificar toda a ação voltada à consecução de tal finalidade. Porém, tal razão
não é excludente, porquanto podem existir razões em sentido contrário de maior
força ou peso, incompatibilizando sua concreção.
De outro vértice, caso fosse atribuído ao direito à saúde o caráter de regra,
uma vez observado o suporte fático, deveria invariavelmente incidir a consequência
prevista. No entanto, como se disse, a textura aberta do princípio e sua natureza
claramente diretiva impede que se visualize o que configura exatamente o seu
malferimento e o que se delimita como consequência correlata.
Assim, diante das considerações tecidas, define-se o direito à saúde como
princípio diretriz, nos termos trabalhados por Atienza e Manero61, cujas posteriores
imbricações serão oportunamente tratadas notadamente no capítulo seguinte, em
que serão analisados os direitos subjetivos positivados na forma de direitos sociais
e, mais especificamente, na forma de princípio diretriz.
Essa não é, todavia, a única dificuldade encontrada à concretização dos
direitos fundamentais sociais ou, dito de outra forma, à sua efetivação no meio
social. Para além de compreender a estrutura normativa do direito fundamental à
saúde e suas implicações hermenêuticas, cumpre também o enfrentamento da
polêmica em torno de sua justiciabilidade, ou seja, necessário se mostra a discussão
em torno de ser ou não considerado um direito subjetivo e quais as implicações
concretas dessa asserção.
Para tanto, o terceiro capítulo deste trabalho ocupa-se do direito à saúde
quanto às dimensões objetiva e subjetiva, além de realizar uma retrospectiva da
jurisprudência na matéria, a fim de demostrar sob quais fundamentos estes foram
justificados pelo Poder Judiciário em seu mister concretizador.

61 ATIENZA; MANERO, 2016.


40

3 A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES


SOBRE SUA CARACTERIZAÇÃO COMO DIREITO SUBJETIVO E
RETROSPECTIVA JURISPRUDENCIAL

Os principais questionamentos que se propõe a responder o presente capítulo


voltam-se à análise da efetividade dos direitos sociais e, em particular, do direito à
saúde no Brasil e podem ser resumidos da seguinte forma: os direitos sociais são
direitos subjetivos, isto é, são direitos exigíveis perante o Poder Judiciário? Pode o
particular reivindicar judicialmente a prestação estatal necessária para a satisfação
de seu direito à saúde? E, por último, como vem decidindo o Poder Judiciário na
matéria e sob quais fundamentos vem concretizando o direito fundamental à saúde
dos jurisdicionados.
No intuito de dar encaminhamento a essas polêmicas, parte-se da concepção
de direito subjetivo e da noção relacional de posição jurídica (ou seja, analisando-se
a questão também sob o ponto de vista do destinatário da norma), chegando-se, por
fim, ao objeto da norma ou, mais especificamente, à ação exigida do obrigado.
Após essas importantes digressões, espera-se poder concluir se o direito
fundamental à saúde é um direito subjetivo e em que medida deve ser assim
compreendido, bem como de que forma deve se dar a sua tutela judicial, sem
vulnerar a independência e a separação entre os Poderes que, ao lado da
positivação dos direitos fundamentais, representam importantes alicerces do Estado
Democrático de Direito.

3.1 DIREITO SUBJETIVO E SISTEMA DE POSIÇÕES JURÍDICAS


FUNDAMENTAIS

Para início da sistematização dessa importante celeuma, vale-se da teoria de


Alexy62, entendendo, a partir de suas proposições, a expressão “direito” como
sinônima de “posição jurídica.”

62 ALEXY, 2011.
41

Segundo o autor63, ao se falar em “direito subjetivo”, pode-se cogitar tanto de


(1) direitos a algo, como de (2) liberdades ou (3) competências, consoante se
desenvolverá a seguir.

3.1.1 Direitos a algo

Alexy64 defende que geralmente os direitos a algo são expressos a partir da


seguinte formulação: a tem, em relação a b, um direito a G.
Desmembrando-se cada componente da fórmula encontrada, evidencia-se (a)
como portador ou titular do direito; (b) como o destinatário da norma; e, finalmente,
(G) como o objeto do direito, ou dito de forma mais detalhada, a ação do
destinatário. Merece destaque a circunstância de que as relações obtidas do
esquema demonstrado variam conforme o titular do direito fundamental, seja pessoa
física ou jurídica de direito público e seu destinatário um particular ou o Estado.
Ainda, de relevância significativa ser a ação (G) uma ação positiva ou uma
abstenção.
A essa formulação, Alexy65 empresta o conceito de um direito que se
manifesta mediante uma relação triádica estabelecida entre seu titular o destinatário
e seu objeto.
Exemplificando a partir do art. 2º, § 1º, 1 da Constituição alemã, extrai-se a
relação triárdica mesmo do enunciado “todos têm direito à vida”. Ainda que
aparentemente se identifique apenas uma relação diárdica – entre titular e objeto,
pode-se afirmar que, (1) se a têm direito à vida, equivale a afirmar que (2) a tem, em
face do Estado, um direito a que este não o mate, e, em outro sentido, que (3) a
tem, em face do Estado, um direito a que este proteja sua vida contra
intervenções ilegais por parte de terceiros. Nesses termos, o direito expresso na
alternativa (2) corresponde a uma ação negativa (direito de defesa), enquanto o
direito configurado pela assertiva (3) impõe uma ação positiva ao destinatário (direito
prestacional).
Sob o ponto de vista dos direitos dos cidadãos contra o Estado a ações
estatais negativas (direitos de defesa), Alexy66 os divide em três grupos: direitos ao

63 Ibidem, p. 193-217.
64 ALEXY, 2011.
65 Ibidem.
42

não embaraço de ações, direitos à não afetação de características ou situações e


direitos à não eliminação de posições jurídicas.

66
Ibidem, p. 196-201.
43

3.1.1.1 Direitos a prestações estatais negativas ou direitos de defesa

O primeiro grupo de direitos – direitos ao não embaraço de ações – apontam


para uma obrigação negativa do Estado, porquanto este não pode criar empecilho
que impeça ou dificulte as ações dos titulares do direito em foco, tomando-se por
base, por exemplo, o direito à livre manifestação do pensamento ou à liberdade de
crença. Tal direito subjetivo pode ser expresso pela seguinte formulação: “a tem, em
face do Estado, um direito a que este não o embarace na realização da ação h”.
O segundo tipo de direitos – direitos à não afetação de características ou
situações – aponta para a obrigação negativa do Estado, no sentido de abster-se de
afetar (vulnerar) determinadas características e situações do titular de um direito
fundamental. Serve de exemplo a inviolabilidade do domicílio, presente tanto na
Constituição alemã como na brasileira. Por sua vez, esse direito pode ser formulado
da seguinte forma: “a tem, em face do Estado, um direito a que este não afete a
característica A (a situação B) de a”.
Por último, na terceira categoria de direitos de defesa ou a ações negativas
ou abstenções do estado, tem-se o direito à não eliminação de posições jurídicas.
Vale-se das palavras do autor para explicitar esse tipo de direito:

A existência de uma posição jurídica significa que uma norma


correspondente (individual ou universal) é válida. O direito do
cidadão, contra o Estado, a que este não elimine uma posição
jurídica sua é, nesse sentido, um direito a que o Estado não derrogue
determinadas normas.67

Dos termos propostos, pode-se inferir a seguinte representação: “a tem, em


face do Estado, um direito a que este não elimine a posição jurídica [PJ] de a”.
Sob a perspectiva dos direitos fundamentais sociais, pode-se afirmar, a partir
das considerações destacadas até o momento, que há, de forma plena e imediata,
um direito subjetivo dos cidadãos concernente a uma abstenção do Estado em
praticar qualquer conduta que vulnere as garantias enumeradas
constitucionalmente, a exemplo do direito à saúde.

67
ALEXY, 2011, p. 201.
44

3.1.1.2 Direitos a prestações estatais positivas ou direitos prestacionais

Paralelamente ao direito à abstenção estatal, encontram-se os chamados


direitos a ações positivas ou, simplesmente direitos prestacionais, cujo titular é o
cidadão e o destinatário, o Estado (esse tipo de direito interessa sobremaneira para
o presente estudo, como adiante se verá), dividindo-se as ações estatais positivas
em ações fáticas ou ações normativas.
As primeiras expressam-se por algum meio jurídico (pode até mesmo ser
mediante a criação de certa lei) apto à satisfação do direito fundamental em questão.
Alexy68 dá como exemplo, entre outros, a satisfação do direito do titular fundado na
noção de mínimo existencial (temática que será oportunamente retomada na
pesquisa).
Diferentemente do primeiro caso, uma ação positiva estatal entendida como
normativa, consiste em ter, em face do Estado, um direito a que este crie uma norma
apta ao asseguramento pleno do direito fundamental em voga.
Inegavelmente, esse esquema de posições jurídicas deve ser compreendido
também do ponto de vista relacional e não apenas de seu objeto. Ou seja,
considerando-se as formulações deônticas do Direito para afirmar-se um direito
subjetivo, deve-se analisar a equivalência lógica entre direito e obrigação, não direito
e privilégio.
Dizer-se, nesses termos, que (1) a tem um direito, em face de b, a uma
abstenção, corresponde à afirmação de que (2) b tem, em face de a, um dever de
abstenção.
Nos mesmos moldes, corresponde a um direito de (1) a, em face de b, a um
fazer, a (2) obrigação de b, em face de a, relativa a esse fazer.
Contrariamente aos exemplos construídos, se a assertiva é modificada e
passa a fórmula a expressar (1) nenhum direito de a, em face de b, a uma
abstenção, necessariamente significará, em contrapartida, a (2) permissão de
ação para b, em face de a, ou ainda, se a formulação traduz-se em (3) nenhum
direito de a, em face de b, a um fazer, resulta em (4) permissão de abstenção
para b, em face de a.69

68
ALEXY, 2011, p. 202.
69 Alexy (2011) exemplifica as inúmeras combinações em um quadro sinóptico na p. 215.
45

Tal classificação resulta relevante na apreciação do tipo de direito ou de


obrigação imputada às partes componentes da relação jurídica que, junto às
liberdades e competências, contemplam as inúmeras possibilidades acerca dos
direitos positivos e negativos dos cidadãos em face do Estado.

3.1.2 Liberdades

Para a teoria de Alexy70, o conceito jurídico de liberdade pode ser entendido


como alternativa de ação, correspondendo à ideia de liberdade negativa.
Assim, Alexy71 introduz a questão da liberdade jurídica como a liberdade de
fazer ou não fazer algo. Tomando por exemplo a liberdade de expressão, pode-se
afirmar que tanto a pode ser livre para expressar o seu pensamento, como a
também é livre para não o expressar.
Diferentemente da liberdade jurídica, a liberdade fática pressupõe que o titular
de uma liberdade jurídica possua condições concretas ou possibilidades reais de
fazer aquilo que lhe é permitido ou facultado.
Assim, se para a criação de uma posição de liberdade jurídica basta uma
conduta de abstenção por parte do Estado, o contrário ocorre quando se pretende
propiciar uma situação de liberdade fática, a saber:

Se a transformação da situação de não-liberdade econômica em uma


situação de liberdade econômica tiver que ocorrer de uma forma
juridicamente garantida pelo Estado, então, a ele pode ser concedido
um direito a uma prestação em face do Estado, ou seja, um direito a
uma ação estatal “positiva”. Já para a criação de uma situação de
liberdade jurídica é necessário, ao contrário, apenas uma abstenção
estatal, ou seja, uma “ação negativa”. Para a garantia da liberdade
não é necessário um direito a prestação, apenas, um direito de
defesa.72

Ambos os conceitos têm peculiar relevância, como se verá adiante, para o


objeto do presente estudo. Por ora, mostra-se suficiente reconhecer o
entrecruzamento do que se entende por liberdade fática aos direitos
prestacionais, somando-se ao final do próximo capítulo, à intelecção do que venha
a ser considerado mínimo existencial.

70 ALEXY, 2011.
71 Ibidem.
72
Ibidem, p. 223, grifo do autor.
46

3.1.3 Competências

Ao lado dos direitos a algo e das liberdades, as competências completam a


gama das posições jurídicas designadas como direitos.
Por competência, entende o autor73 que se caracteriza a ação institucional
voltada à alteração de uma situação jurídica, as quais são amparadas não apenas
na capacidade natural do titular, mas em regras que lhes são constitutivas. Dá-se o
exemplo do casamento ou da confecção de testamento como o exercício de uma
competência.
Para Alexy74, a garantia de institutos de direito privado é, sobretudo, uma
proibição endereçada ao legislador, contra a eliminação de determinadas
competências dos cidadãos.
Resumindo-se o tópico relativo aos direitos subjetivos, vale-se do poder de
síntese de Francisco Oliveira Neto75 que, em sua tese de doutorado, sistematiza as
posições jurídicas decorrentes dos direitos fundamentais como sendo (1) direitos de
defesa, (2) direitos a prestações jurídicas ou fáticas e (3) direitos de participação.

73
ALEXY, 2011, p. 239.
74 Ibidem.
75
Em suas palavras: “Direitos de defesa: são aqueles que impõem ao Estado uma abstenção, um
dever de não interferência, de não intromissão no espaço de autodeterminação do sujeito; limitam a
atuação do Estado (incisos II, III, IV, XII, XIII, XV, todos do art. 5º, da CF/198) e se mostram como
normas de competência negativa para os poderes públicos. 2) Direitos à prestação: se os direitos de
defesa visam a assegurar o status quo do sujeito, os direitos a prestação exigem que o Estado aja
para atenuar desigualdades e, com isso, estabelecer um novo molde para o futuro da sociedade.
Estes direitos partem do pressuposto de que o Estado deve agir para libertar os indivíduos das
necessidades. São direitos de promoção que surgem da vontade de estabelecer uma igualdade
efetiva e solidária entre todos os membros da comunidade política e se realizam por meio do Estado
(p. 143). Como se traduzem em ação positiva do Estado, existem peculiaridades especiais que se
referem à densidade normativa, o que os distingue dos demais na medida em que seu modo de
exercício e sua eficácia será diferenciada. Duas são as formas de prestação: 2.1) Direitos a prestação
jurídica: existem direitos fundamentais que se esgotam com a edição de uma simples norma jurídica.
Daí afirmar-se que ―o objeto do Direito será a normação pelo Estado do bem jurídico protegido como
direito fundamental (p. 143). Poderão ser normas penais, que o Estado deve editar para coibir
práticas atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais, ou de procedimento, como é o caso
daquelas que tratam do acesso à justiça. 2.2) Direitos a prestações materiais: são os chamados
direitos a prestações em sentido estrito. Resultam da concepção social do Estado e são relacionadas
a saúde, educação, maternidade, criança, adolescente, etc. 3) Direitos de participação: há quem
não reconheça essa categoria como um terceiro tipo. Contudo, é preciso reconhecer que esses
direitos tratam de assuntos que, à primeira vista, pouco se identificam com os outros dois. Aqui, estão
localizados os direitos políticos de votar e ser votado”. (OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues
de. Os direitos fundamentais e os mecanismos de concretização: o garantismo e a estrita
legalidade como resposta ao ativismo judicial não autorizado pela Constituição Federal. [Tese].
UFSC: Florianópolis, 2011, p. 103-104.
47

Além da dimensão subjetiva, já abordada, há uma importante dimensão


objetiva decorrente dos direitos fundamentais (mesmo nos enunciados na forma de
princípios diretrizes), capaz de explicar sua eficácia imediata, nos termos em que é
indicada na Constituição. Isso porque, independentemente da posição jurídica
conferida ao titular de direito fundamental (vale dizer, a possibilidade de reclamar em
juízo determinada ação ou abstenção), inegável a vinculação dos poderes
constituídos às normas jusfundamentais, cujo respeito e conformidade são
decorrentes da própria força da constituição.
Extrai-se da explicação de Clèmerson Merlin Clève76 a respeito do tópico:

Neste ponto, independente das posições jusfundamentais extraíveis


da dimensão subjetiva, incumbe ao Poder Público agir sempre de
modo que confira a maior eficácia aos direitos fundamentais [...]. A
dimensão objetiva também vincula o Judiciário para reclamar uma
hermenêutica de respeito aos direitos fundamentais e das normas
constitucionais, com releitura de todo o direito infraconstitucional à
luz dos preceitos constitucionais, designadamente dos direitos,
princípios e objetivos fundamentais.

Com base nas digressões a respeito do tema, conclui-se majoritariamente


pela existência de um direito subjetivo (ou pelo menos objetivo) à saúde extraível
das normas constitucionais brasileiras.
Porém, não se olvida de posicionamentos contrários. Há quem defenda que,
independentemente de sua conformação constitucional como princípio ou regra, os
direitos fundamentais sociais, por encerrarem a noção de comunidade (do todo), de
solidariedade, de fraternidade, não se afirmam como direitos subjetivos individuais,
ou seja, não podem ser reclamados na justiça individualmente sob pena de
insanável contradição.
Nesse sentido, o professor Fernando Atria77 adverte:

Sostendré que si la noción de derecho es entendida por referencia a


la idea de derecho subjetivo en el sentido jurídico del término, la
noción de derechos sociales es una contradicción en los términos. Si
queremos evitar esta conclusión debemos rescatar una forma
alternativa de entender el concepto político de derechos.

76
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Boletim Científico –
Escola Superior do Ministério Público da União. Brasília: ESMPU, Ano II, n. 8, jul/set, 2003, p. 155.
77
ATRIA, Fernando. ¿Existen derechos sociales? Disponível em:
<http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/assets/files/documentos/existen-derechos-sociales
fernando-atria.pdf>. Acesso em: 15 setembro 2015.
48

Segundo sua visão, o problema começa a partir do momento em que as


demandas sociais foram positivadas nas constituições sociais e, com isso, alijadas
de sua natural perspectiva política, substituída, no constitucionalismo atual, pela
linguagem jurídica como meio de possibilitar sua contraposição aos direitos civis e
políticos com igual força normativa.
Todavia, sustenta a importância dessa dimensão perdida dos direitos sociais,
sem a qual se pode chegar ao absurdo de afirmar que direitos não judiciáveis não
são direitos. Aponta o fenômeno da judicialização da vida nos países latino-
americanos como a transmutação da luta política em luta jurídica (e individual!):

Hoy, sin embargo, todo esto es rápidamente descartado como


retórica política, lenguaje ‘metafórico’ o ‘figurativo’, ‘meras’
declaraciones de principio, obligaciones ‘programáticas’ que a nada
obligan, a menos que los derechos declarados impliquen al menos la
exigencia de conceder a su titular un derecho subjetivo dotado de
todas las características propias de los derechos subjetivos,
especialmente exigibilidad. En este contexto, hay un sentido
importante en que el conflicto político, especialmente en
Latinoamérica (y también en Europa del este) se ha desplazado
desde las calles o parlamentos hacia las cortes.
El desplazamiento al que me refiero no es simplemente un
cambio de locus institucional, aunque nadie puede negar que la
importancia política de los tribunales ordinarios y
constitucionales ha aumentado de modo considerable en,
digamos, los últimos 20 años [...].78

Por fim, ao registrar que a jurisprudência constitucional espanhola demonstra


o caráter diretriz da maioria dos direitos sociais, compreendidos no Cap. III da CE de
1978, negando-os como direitos subjetivos no sentido tradicional do termo, ressalta
que, quando assim os reconhece, é porque se travestem de direito subjetivo
individual, perdendo seu aspecto social, mormente reclamados como direitos
fundamentais de primeira dimensão, como liberdade ou igualdade em seu sentido
formal:

Comenzamos considerando un aspecto de la discusión sobre el


estatus normativo de los derechos sociales en la Constitución
Española. Como se sabe, la mayoría de los bienes que
habitualmente se denominan derechos sociales son agrupados por
esta constitución en su capítulo 3°, al que luego se le niega

78 ATRIA, Fernando. ¿Existen derechos sociales? Disponível em:


<http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/assets/files/documentos/existen-derechos-sociales
fernando-atria.pdf>. Acesso em: 15 setembro 2015, grifo nosso.
49

protección judicial. Ante esta situación, autores como L. Prieto se


preguntan por qué los denominados ‘principios rectores de la política
económica y social’ del capítulo III de la Constitución Española
aparecen en ese texto constitucional ‘jurídicamente devaluados’, en
particular si esa devaluación ‘responde em verdad a alguna exigencia
técnica o representa más bien el fruto de una decisión política
(nótese como Prieto ha formulado con toda precisión la tensión
identificada más arriba). Como Prieto encuentra en otras partes de la
Constitución Española derechos que muestran las posibles notas
características de los derechos sociales, pero que están dotados de
exigibilidad judicial, inicialmente concluye que si los principios
rectores se hallan juridicamente devaluados no es principalmente
porque sean derechos sociales, es decir, no es porque reúnan
algunas de las características propias de esa categoría de derechos,
sino que obedece más bien a la voluntad constituyente.
No obstante esta conclusión, Prieto luego nos informa de que la
jurisprudencia del Tribunal Constitucional español ha
reconocido valor normativo a los principios rectores, aunque
uno limitado, porque ‘la concreta operatividad de los mismos no
resulta siempre uniforme y generalmente depende de la
presencia de otras disposiciones relevantes para el caso’.
Cuando la pregunta que Prieto intenta responder es por qué el
reconocimiento del ‘valor normativo’ de los principios rectores es
limitado de este modo, la explicación que nos ofrece no descansa ya
en una ‘decisión política’ de la ‘voluntad constituyente’ contenida en
el capítulo III, porque ‘aun cuando’ esa decisión cambiara,
permitiendo la protección judicial de esos derechos, es probable que
los tribunales no pudiesen llegar mucho más lejos de donde ha
llegado la doctrina del tribunal Constitucional [...]. Por la propia
naturaleza de la actividad jurisdiccional, de los posibles efectos de
sus sentencias y de la fuerza ejecutiva de las mismas, cabe suponer
que mientras no se arbitre una articulación detallada de los distintos
principios, el otorgamiento de amparo judicial mostraría una
virtualidad bastante limitada ante el vacío jurídico de normas
secundarias o de organización.
Nótese la referencia, de nuevo, a lo que por naturaleza es el
caso: lo que queda excluido de la protección por la ‘naturaleza’
del derecho es precisamente la idea central de los derechos
sociales en su comprensión socialista: que ellos configuran una
forma diferente de comunidad, una em que la comunidad como
un todo se preocupa del bienestar de cada uno de sus
miembros. Sólo una noción de este tipo completa la
caracterización del contenido pasivo de esos ‘derechos’.
Habiendo excluido esta dimensión de los derechos sociales, los
autores creen poder rescatar algo todavía: la idea de que
algunos aspectos de esos derechos son exigibles. Pero
sorprendentemente (o, quizás: predeciblemente), cuando ellos
proceden a determinar de modo preciso cuáles son estos
aspectos, lo que aparece no son ni derechos sociales, ni las
necessidades que los derechos sociales tienden a satisfacer: la
principal dimensión de exigibilidad de los derechos sociales, la
que ‘queda siempre abierta’, nos dicen los autores, es la
posibilidad de plantear judicialmente la violación de
obligaciones del Estado por assegurar discriminatoriamente el
derecho.
50

Pero aun cuando es posible ir más allá de lo que ‘queda siempre


abierto’, y cuando la violación a un derecho social puede ser
diretamente invocada ante un tribunal, es necesario que ella sea
‘reformulada [...] em términos de violación individualizada y
concreta, en lugar de en forma genérica’.79

Tratando o direito à saúde, de modo específico, registra Atria80:

De este modo el derecho social a la protección de la salud, que


originalmente consistía en que se garantizara un nivel de atención de
salud a todos (porque una comunidad en la que todos nos
preocupamos por los otros es una comunidad más decente que otra
en la que cada uno persigue su bienestar individual y el resto lo hace
la mano invisible), se convierte en un derecho individual alegado por
el demandante de que se obligue al Estado a dar una determinada
prestación de salud, sin que las necesidades de los otros puedan ser
relevantes (las necesidades de los otros aparecen ante el juez como
no distribuidas, es decir, como objetivos de política o aspiraciones
comunitarias, y por eso los derechos las triunfan). Lo que llega al
tribunal no es un derecho social, no puede ser un derecho
social, sino una demanda privada, que expresa ya no la idea de
una forma superior de comunidad sino la negación de ésta: la
pretensión del demandante de que su interés sea atendido, aun
a costa del interés de los demás.

A questão trazida por Atria81 resgata a importante distinção entre a dimensão


individual e a dimensão coletiva do direito à saúde.
Retomar-se-á tal linha de raciocínio após a análise do mínimo existencial,
entendido como persecução de caráter individual e natureza personalíssima,
enquanto, de outro lado, a saúde como o máximo possível, de caráter
marcadamente prospectivo e necessariamente coletivo.
As decisões judiciais acerca do direito à saúde no Brasil infelizmente não
trazem a perspectiva de tal diferenciação, fato que acarreta até hoje repercussões
negativas ao esclarecimento da matéria e correta concretização do conteúdo
assegurado constitucionalmente.

79 ATRIA. Fernando. ¿Existen derechos sociales? Disponível em:


<http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/assets/files/documentos/existen-derechos-sociales
fernando-atria.pdf>. Acesso em: 15 setembro 2015, grifo nosso.
80 Ibidem, grifo nosso.
81 Ibidem.
51

3.2 A TRAJETÓRIA DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA ACERCA DO DIREITO À


SAÚDE: A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL E A
SÍNDROME DA IMONODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA (SIDA OU AIDS)

No Brasil, a discussão relativa ao direito à saúde teve trajetória bastante


acidentada, entendendo-se, inicialmente, tratar-se de norma tipicamente
programática82, sem nenhuma ponderação acerca de sua dimensão objetiva,
tampouco reflexão acerca do mínimo existencial e sua natureza individual.
As primeiras decisões judiciais sobre o tema refletem essa premissa:

[…] Normas constitucionais meramente programáticas - ad


exemplum, o direito à saúde - protegem um interesse geral, todavia,
não conferem aos beneficiários desse interesse, o poder de
exigir sua satisfação - pela via do mandamus - eis que não
delimitado o seu objeto, nem fixada a sua extensão, antes que o
legislador exerça o munus de completá-las através da legislação
integrativa. Essas normas (arts. 195, 196, 204 e 227 da CF) são de
eficácia limitada, ou, em outras palavras, não tem força
suficiente para desenvolver-se integralmente, 'ou não dispõem
de eficácia plena', posto que dependem, para ter incidência
sobre os interesses tutelados, de legislação complementar. Na
regra jurídico-constitucional que dispõe 'todos têm
direito e o Estado o dever' - dever de saúde - como afiançam os
constitucionalistas, 'na verdade todos não têm direito, porque a
relação jurídica entre o cidadão e o Estado devedor não se
fundamenta em vinculum juris gerador de obrigações, pelo que falta
ao cidadão o direito subjetivo público, oponível ao Estado, de
exigir em juízo, as prestações prometidas a que o Estado se
obriga por proposição ineficaz dos constituintes.
No sistema jurídico pátrio, a nenhum órgão ou autoridade é permitido
realizar despesas sem a devida previsão orçamentária, sob pena de
incorrer no desvio de verbas. […] (sem grifo no original).83

A mudança interpretativa no Judiciário nacional começa a partir das


demandas específicas de pacientes contaminados com o vírus da imunodeficiência
humana (HIV).

82 Ou seja, “aquelas normas constitucionais, através das quais o constituinte, em vez de regular,
direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem
cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como
programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado”. (SILVA, José
Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 129).
83 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário no Mandado de Segurança nº

6.564/RS, relator Ministro Demócrito Reinaldo, Primeira Turma, julgado em 23.05.1996, DJ


17.06.1996, grifo nosso.
52

De fato, o tratamento jurídico de tal enfermidade insere-se perfeitamente no


paradigma constitucional da fraternidade, sobretudo porque, além do perecimento
fisiológico do paciente, há ainda o preconceito social, fruto do estigma decorrente da
contaminação pelo vírus, vulnerando a própria dignidade da pessoa doente.
Na década de 1990, as demandas individuais e, na sequência, coletivas,
buscando o fornecimento de medicações imprescindíveis ao tratamento da
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA ou AIDS) inundaram o Poder
Judiciário, forçando a reflexão acerca da exigibilidade do direito à saúde e sua
extensão.
Percebe-se, do longo caminho percorrido, que os precedentes no sentido de
reconhecer o poder do cidadão de exigir do Estado tal prestação positiva
normalmente se fundavam não apenas no direito à saúde, mas, sobretudo, no direito
à vida (vida com sentido, ou seja, com dignidade) e à integridade física e moral da
pessoa enferma, o que, invariavelmente, remete à noção de mínimo existencial,
como será visto oportunamente.
Ainda que se possa concordar com Atria no ponto em que destaca a
dessocialização do direito na medida em que demandado individualmente, inegável
que o volume das ações nesse sentido (mesmo que individuais e algumas até
coletivas), somado à mobilização da sociedade em torno da doença, acabou por
devolver a dimensão política da discussão, motivando a edição de normas
específicas voltadas à tutela do tratamento da AIDS84.
Nesse aspecto, pode-se observar a dimensão coletiva do direito na medida
em que a politização dos reclamos sociais referentes ao tratamento da AIDS foi
responsável pela concretização do direito à recuperação da saúde dos pacientes
soropositivos, assegurando-lhes o máximo possível prometido constitucionalmente.
Maurício de Melo Santos85, a partir de dados colhidos pela Associação
Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), criada pelo sociólogo Hebert de Souza,
destaca a importância assumida pelas organizações não governamentais para o
implemento de prestações positivas por parte do Estado concernente ao tratamento

84 A exemplo da Lei nº 9.313, de 13 de novembro de 1996, e Portarias nº 21, de 21 março de


1995/SAS/MS, e nº 27 SVS/MS, de 29 de novembro de 2013.
85 SANTOS, Maurício de Melo. O combate à epidemia de HIV/Aids no Brasil e o papel das

organizações não governamentais. Disponível em:


<http://www.revistahospitaisbrasil.com.br/artigos/o-combate-a-epidemia-de-hivaids-no-brasil-e-o-papel-
das-organizacoes-nao-governamentais>. Acesso em: 9 setembro 2015, grifo nosso.
53

dos pacientes soropositivos, seja no âmbito do Judiciário, do Legislativo e do


Executivo:

[...] a partir do ano de 1996, as organizações não governamentais


passaram a ajuizar as primeiras demandas judiciais coletivas,
reivindicando medicamentos mais novos para o combate da
síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), bem como maior
qualidade nos tratamentos fornecidos pelo Estado. Os demandantes
restaram exitosos nesta empreitada.
Ainda neste ano as duas maiores ONGs existentes, até então, o
Grupo de Apoio a Prevenção da AIDS (GAPA) e a ABIA, aliaram a
estas ações judiciais a mobilização social que, conforme afirmado,
influenciaram decisivamente na aprovação da lei. 9.313/96, também
conhecida como Lei Sarney, que garantia aos portadores do vírus
HIV, o acesso à droga ARV, indispensável no combate aos efeitos do
vírus.
A partir de então fora cumprida no Brasil a política de acesso
universal ao tratamento antirretroviral. De acordo com dados
estatísticos demonstrados, entre 1997 e 2004, houve uma redução
de 70% na mortandade e 40% na mortalidade de portadores da
doença, bem como o índice das hospitalizações reduziu em 80%, o
que significou uma economia de US$ 2,3 bilhões (dois bilhões e
trezentos milhões de dólares).
De acordo com informações prestadas pelo Ministério da Saúde,
atualmente o Poder Público garante o fornecimento e medicamentos
antirretrovirais a 100% (cem por cento) das pessoas que vivem com
o vírus HIV no país, cerca de 170.000 (cento e setenta mil).
Desse modo concluiu o estudo que esse êxito na política de
acesso universal ao tratamento antirretroviral, executada pelo
Poder Público, apenas foi possível pelos seguintes fatores: 1 –
Participação ativa das ONGs através de ações judiciais, a fim de
garantir distribuição gratuita e universal aos portadores do vírus
HIV; 2 – A possibilidade de serem produzidos medicamentos no
próprio país, através de laboratórios públicos e privados, o que
viabilizou a comercialização destes em valores inferiores aos
oferecidos por empresas multinacionais; 3 – As criações das
leis nº. 9.313/96 (lei Sarney) e a nº. 9.279/96 (lei de propriedade
industrial), sendo que esta última viabilizou a produção local de
medicamentos a preços acessíveis.
[...] Frente a esta realidade infere-se que a tutela coletiva, quando
manejada de maneira responsável e prudente, pode influenciar o
Poder Público, no tocante a gênese e execução das políticas
públicas.

Interessante registrar que, mesmo após a superveniência de legislação


específica (ou seja, havendo já estabelecida uma política pública), muitos pacientes
não encontravam respaldo suficiente nas ações governamentais à efetivação das
terapias protocolares da doença.
54

Sob esse enfoque, a atuação do Judiciário fora decisiva, muito embora, nesse
caso concreto, se estivesse diante de hipótese em que o direito fundamental à
saúde se encontrava regulado por lei infraconstitucional (vale dizer, diante da
existência de uma política pública posta em prática) e, portanto, indiscutivelmente
exequível do Estado o cumprimento de dita obrigação, uma vez que, nos dizeres de
Atienza e Manero86, a legislação ordinária tratou de especificar os meios para o
atingimento do fim previsto constitucionalmente. Essa, aliás, é a situação na
qual ninguém duvida de que se trata de direito subjetivo individual, em que o cidadão
tem o poder de exigir do Estado que cumpra a obrigação detalhadamente assumida
na regulamentação da norma constitucional.
Diante do exemplo, faz-se coro à conclusão de Fernando Gomes de
Andrade87 quando afirma veemente:

[...] não basta existir norma infraconstitucional que regulamente os


direitos insculpidos na Constituição e denominados “programáticos”,
é preciso vontade política para concretizá-los e, quando da inércia
dos demais poderes, o Judiciário é o último front para a plena
concretização dos direitos prestacionais e, pelo que verificamos, em
nome da dignidade da pessoa humana e calcada nos direitos de
fraternidade, há uma efetiva concretização de tais direitos.

Como último front à concretização do direito ao adequado tratamento da


Síndrome, tem-se a primeira decisão colegiada, proferida pela Segunda Turma do
Supremo Tribunal Federal, em 16/11/1999, sob a relatoria do Min. Marco Aurélio,
que, negando seguimento ao trânsito de recurso extraordinário, consignou:

SAÚDE - PROMOÇÃO - MEDICAMENTOS. O preceito do


artigo 196 da Constituição Federal assegura aos necessitados
o fornecimento, pelo Estado, dos medicamentos indispensáveis
ao restabelecimento da saúde, especialmente quando em jogo
doença contagiosa como é a Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida. (AI 238328/RS, j. 16.11.1999)

Na sequência, após precedentes da lavra do Min. Marco Aurélio (RE 195192,


j. em 22.02.00) e do Min. Maurício Correa (RE 259508, j. em 08.08.00), o Recurso

86ATIENZA; MANERO, 2016.


87 ANDRADE, Fernando Gomes. Direitos de fraternidade como direitos fundamentais de terceira
dimensão: aspectos teóricos e aplicabilidade nas decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Amicus Curiae. v. 8, n. 8, 2011, p. 13.
55

Extraordinário n. 271286, da relatoria do Min. Celso de Mello, discutiu diversos


aspectos que circundam a questão do direito constitucional à saúde e a suposta
colisão com outros princípios previstos na Carta Magna. O acórdão encontra-se
assim ementado:

PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE


RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE -
FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER
CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT,
E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO
IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA
CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO
DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa
prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das
pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz
bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve
velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe
formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas
que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do
vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica
e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como
direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa
conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder
Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no
plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se
indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir,
ainda que por censurável omissão, em grave comportamento
inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA
PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM
PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter
programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem
por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano
institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode
converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena
de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas
pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de
seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do
Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A
PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade
jurídica de programas de distribuição gratuita
de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas
portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos
fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e
196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto
reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas,
especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não
ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial
dignidade. Precedentes do STF.88

88 RE n. 271286/RS, relator Min. Celso de Mello, j. em 12.09.2000, grifo nosso.


56

Note-se que o paradigmático julgado, reconhecendo o direito subjetivo do


paciente soropositivo ao tratamento medicamentoso de sua enfermidade, fora
proferido em um contexto de desrespeito às políticas públicas já instituídas
acerca da temática, ocasião em que se depara muito mais com uma discussão
acerca de um descumprimento parcial do dever do Estado ou até mesmo de um
cumprimento discriminatório de uma obrigação positiva, a toda evidência
justiciável.
Desse modo, diante de uma política pública vigente em todo o território
nacional, não se sustenta o descumprimento por parte de município ou Estado da
Federação sob pena de ver-se judicializada a questão.
Contudo, a conclusão de que o direito à saúde configura, sem ponderações,
um direito subjetivo concreto (e, portanto, exigível do Estado o tratamento
necessário a toda e qualquer enfermidade) passou a ser correntemente utilizada
como parâmetro para a solução de casos extremamente difíceis, nos quais, além de
não haver políticas públicas preexistentes, propõe-se erroneamente a colisão entre o
direito fundamental à saúde e as questões orçamentárias, burocráticas, obviamente
de somenos importância quando sopesadas com o direito à vida ou à dignidade do
doente.
Do corpo do mencionado acórdão, extrai-se precisamente a “colisão” entre o
direito fundamental (e subjetivo) à saúde e o interesse financeiro e secundário do
Estado, do que se concluiu e sempre se poderá concluir a prevalência do direito à
saúde. Isso porque há inegavelmente o deslocamento do verdadeiro conflito
existente e, por consequência, da própria estrutura ponderativa que justifica a
conclusão do voto e que costuma ser, sem maiores reflexões, referendada pela
doutrina e jurisprudência pátria.
Em trabalho monográfico a respeito do tema, Pedro da Silva Moreira89 propõe
uma análise mais detida acerca do que realmente está em jogo em decisões dessa
monta:

A dificuldade, nesse sentido, habita no preenchimento do princípio


que limita a caracterização do direito à saúde como um direito
definitivo. A compreensão do despretensioso princípio da
“competência orçamentária do legislador” deve ser trabalhada não

89
MOREIRA, Pedro da Silva. Eficácia normativa dos princípios constitucionais: o caso do direito
à saúde. [Monografia]. URGS: Porto Alegre, 2010, p. 47-48.
57

apenas do ponto de vista formal, mas também sob o ângulo material,


sob a análise das consequências, sob o que – de fato – representa
essa competência. A colisão entre um direito fundamental atrelado
ao direito à vida e um princípio que protege uma formalidade é, não
no caso concreto, mas já em abstrato, desigual, e, por isso, não está
sequer informada pela teoria dos princípios, em nenhuma daquelas
ideias expostas no início deste trabalho. Essa colisão não necessita
ser colocada diante de um caso concreto, no qual sejam avaliadas as
possibilidade fáticas e jurídicas, tendo em vista que o princípio é um
mandamento de otimização. Posta da maneira apresentada por
Leivas, seguindo a interpretação de Alexy, e do modo tratado pelo
Ministro Celso de Mello, no voto exposto, o direito à saúde prevalece
sempre diante desse conflito, deixando de ser, assim, um
mandamento de otimização, dependente de aspectos fáticos, para
ser, na verdade, um princípio absoluto, aplicado como regra jurídica.
O que está, então, por trás da ponderação? Qual é a efetiva, real e
inconveniente ponderação?

Na tentativa de (re) posicionar a verdadeira ponderação a ser feita nas


demandas individuais de saúde, destacadamente nas quais se reclamam
medicamentos ou procedimentos ainda não oferecidos pelo sistema (situações
realmente complexas), o Ministro Luiz Roberto Barroso90, manifestando-se em
audiência pública sobre a matéria, pontua:

Desenvolveu-se certo senso comum, que é preciso enfrentar, de que


o Judiciário, no caso de judicialização, pondera o direito à vida e à
saúde de uns e, de outro lado, pondera princípios orçamentários,
separação de Poderes. Infelizmente, esta não é a verdade. O que o
Judiciário verdadeiramente pondera é direito à vida e à saúde de
uns contra o direito à vida e à saúde de outros. Portanto, não há
solução juridicamente fácil nem moralmente simples nesta
matéria.

Sob essa perspectiva, vê-se claramente a relevância, sobretudo no Brasil


(pela forma com que o direito fundamental à saúde é majoritariamente entendido),
de um aprofundamento maior sobre a temática, cujo resultado, intui-se, pode levar à
conclusão de que toda a generalização na matéria leva à incompreensão do
problema, ou melhor, dos diferentes problemas decorrentes da efetividade normativa
desse direito social.
Assim, percebe-se a enorme influência dos precedentes acerca da SIDA ou
AIDS na matéria, a ponto de deslocar a compreensão do direito à saúde de um

90
BARROSO, Luís Roberto. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Luis_Roberto_Barroso.pdf>.
Acesso em: 2 setembro 2015, grifo nosso.
58

nítido princípio diretriz (nas palavras de Atienza e Manero) a um princípio em sentido


estrito, absoluto.
Dessa realidade resulta que, em vez de tratar o dispositivo constitucional
(art.196) concernente à promoção, proteção e recuperação da saúde da população
brasileira como um compromisso assumido pelo Estado e a ser concretizado ao
máximo possível – ponderando-se circunstâncias fáticas e jurídicas, seja pelo Poder
Legislativo, seja pelo Judiciário (segundo a teoria de Alexy) –, o Judiciário passou a
tratá-lo como razão definitiva, como princípio em sentido estrito, compreendê-lo
como regra, à qual devem os fatos ser subsumidos.
A partir dessa intelecção, perdeu-se de vista a importância do interesse
coletivo, tornando as discussões a respeito do direito à saúde um tópico
eminentemente individual.
Com essa conformação, o direito à saúde passou a ser entendido como um
direito subjetivo a uma prestação positiva do Estado e aplicado como se regra fosse
pelos Tribunais pátrios.
Vê-se, a título de exemplo:

1) APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO


DE FAZER. FORNECIMENTO GRATUITO DE FÁRMACO.
RESPONSABILIDADE DOS ENTES FEDERATIVOS PELO
FUNCIONAMENTO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. DEVER DE
PROMOÇÃO, PREVENÇÃO E RECUPERAÇÃO DA SAÚDE DOS
CIDADÃOS. ARTS. 6º E 196 DA CF/88. DESNECESSIDADE,
ADEMAIS, DE COMPROVAÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA DO
DEMANDANTE.
"O direito à saúde, nem na Carta Política, tampouco em legislação
infraconstitucional, tem seu exercício condicionado ou limitado à
comprovação de pobreza ou hipossuficiência daquele que requer a
assistência do Estado" (Agravo de Instrumento nº 2008.054686-1.
Relator Desembargador José Volpato de Souza, julgado em
24/05/2009).
INSURGÊNCIA CONHECIDA E DESPROVIDA. RECURSO
INTERPOSTO PELO ESTADO.
ALEGAÇÃO DE QUE NÃO SERIA VIÁVEL O FORNECIMENTO DE
MEDICAMENTOS NÃO PADRONIZADOS PELO SUS.
IRRELEVÂNCIA. NECESSIDADE E ADEQUAÇÃO BEM
EVIDENCIADAS.
"Demonstrada a efetiva necessidade de medicamento específico,
cumpre ao ente público fornecê-lo, estando o fármaco padronizado
ou não para a moléstia da paciente" (Apelação Cível nº
2009.024064-9, de Laguna. Rel. Des. Jaime Ramos, julgado em
25/06/2009).
APONTADA AUSÊNCIA DE DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA
ESPECÍFICA PARA A AQUISIÇÃO DE FÁRMACOS.
59

IRRELEVÂNCIA. BEM MAIOR A SER PROTEGIDO. AFRONTA AO


PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INSUBSISTÊNCIA.
"A falta de dotação orçamentária específica não pode servir de
obstáculo ao fornecimento de tratamento médico ao doente
necessitado, sobretudo quando a vida é o bem maior a ser protegido
pelo Estado, genericamente falando. [...]
Não há como falar em violação ao Princípio da Separação dos
Poderes, nem em indevida interferência de um Poder nas funções de
outro, se o Judiciário intervém a requerimento do interessado titular
do direito de ação, para obrigar o Poder Público a cumprir os seus
deveres constitucionais de proporcionar saúde às pessoas, que não
foram espontaneamente cumpridos" (Apelação Cível nº
2015.016525-4, de Braço do Norte. Rel. Des. Jaime Ramos, julgado
em 14/05/2015).
[...] APELO CONHECIDO E DESPROVIDO.91

2) APELAÇÕES CÍVEIS E REEXAME NECESSÁRIO. ORDINÁRIA.


FORNECIMENTO DE FÁRMACOS. DECRETO DE PARCIAL
PROCEDÊNCIA.
[...] APELO DO ENTE MUNICIPAL. [...] DIREITO À SAÚDE.
EXEGESE DOS ARTS. 6º E 196 DA CF/88, E 153 DA CE/89. [...]
APELO DA AUTORA. COMBATE À CONCESSÃO PARCIAL DOS
MEDICAMENTOS PELA EXISTÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS
DE COMBATE À DOENÇA. INEFICÁCIA DOS MEDICAMENTOS
DISPONIBILIZADOS PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
DEVIDAMENTE DEMONSTRADA. SENTENÇA REFORMADA NO
PONTO. [...] RECURSO DA MUNICIPALIDADE DESPROVIDO E
PARCIALMENTE PROVIDO O DA AUTORA E O REEXAME
OFICIAL.
É inegável que a garantia do tratamento da saúde, que é direito de
todos e dever dos entes públicos, pela ação comum da União, dos
Estados e dos Municípios, segundo a Constituição, inclui o
fornecimento gratuito de meios necessários a preservação a saúde a
quem não tiver condições de adquiri-los. [...] Demonstrada a efetiva
necessidade de medicamento específico, cumpre ao ente público
fornecê-lo, estando o fármaco padronizado ou não para a moléstia da
paciente [...] (TJSC, AC n. 2009.024064-9, de Laguna, rel. Des.
Jaime Ramos, j. 25-06-2009).92

3) REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO CIVIL


PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. ESTADO E
MUNICÍPIO NO PÓLO PASSIVO. SOLIDARIEDADE ENTRE OS
ENTES FEDERADOS. AUTOR IDOSO PORTADOR DE DOENÇA
PULMONAR. ENFERMIDADE E HIPOSSUFICIÊNCIA
RECONHECIDAS. OBRIGAÇÃO DOS ENTES ESTATAIS DE
FORNECER O FÁRMACO DE USO CONTÍNUO INDISPENSÁVEL
AO TRATAMENTO. MEDICAMENTO NÃO PADRONIZADO. LAUDO
PERICIAL QUE ATESTA A IMPOSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO
POR MEDICAÇÃO FORNECIDA PELO SUS. AUSÊNCIA DE
PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA. IRRELEVÂNCIA. CONDENAÇÃO

91 TJSC. AC n. 2015.018024-9, relator Des. Luiz Fernando Boller, Primeira Câmara de Direito Público,
j. em 01.12.2015, grifo nosso.
92 TJSC. AC n. 2015.017729-7, relator Des. Edemar Gruber, Quarta Câmara de Direito Público, j. em

26.11.2015, grifo nosso


60

GENÉRICA. INOCORRÊNCIA. CONTRACAUTELA SEMESTRAL


DEVIDA. RECURSOS DESPROVIDOS
Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica
como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria
Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra
essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário
do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões
de ordem ético - jurídica impõem ao julgador uma só e possível
opção: o respeito indeclinável à vida (Min. Celso de Melo) (Agravo de
Instrumento n. 2010.062159-9, de Pinhalzinho, rel. Des. Jaime
Ramos).
Suficientemente demonstrada a moléstia e a impossibilidade de o
enfermo arcar com o custo do medicamento necessário ao respectivo
tratamento, surge para o Poder Público o inafastável dever de
fornecê-lo gratuitamente, assegurando-lhe o direito fundamental à
saúde (Apelação Cível n. 2012.018477-4, de Otacílio Costa, rel. Des.
Sônia Maria Schmitz).93

4) FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS A PESSOA


PORTADORA DE DOENÇAS GRAVES E CARENTE DE
RECURSOS FINANCEIROS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
DOS ENTES FEDERADOS NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS
PÚBLICOS DE SAÚDE À POPULAÇÃO. ENUNCIADO N.º 16 DAS
CÂMARAS DE DIREITO PÚBLICO DESTE TRIBUNAL.
PRELIMINAR REJEITADA. PRESCRIÇÃO FORMALIZADA POR
MÉDICO ESPECIALISTA. IRRELEVÂNCIA DE OS FÁRMACOS
NÃO SE ENCONTRAREM INSERIDOS NOS PROTOCOLOS
CLÍNICOS E DIRETRIZES TERAPÊUTICAS DO MINISTÉRIO DA
SAÚDE.DESCUMPRIMENTO DE DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA
OU À SAÚDE (CF, ARTS. 6.º E 196) QUE PERMITE A CHAMADA
"JUDICIABILIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS".
A prestação de assistência à saúde é direito de todos e dever do
Estado, assim entendido em sentido amplo, coobrigando União,
Estados e Municípios, podendo a ação ser dirigida em face de
qualquer um desses entes federados, em conjunto ou
separadamente (Enunciado n.º 16 das Câmaras de Direito Público
desta Corte). É certo, além disso, que, se um ente federado por força
de decisão judicial executar ação ou serviço de saúde, que pela
legislação infraconstitucional não seja de sua alçada, poderá se
compensar financeiramente com aquele outro legalmente
responsável, pois o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS)
é realizado por todos eles (§ 1.º do art. 198 da CF e inciso XI do art.
7.º da Lei Federal n.º 8.080/1990).(2) "Eventual ausência do
cumprimento de formalidade burocrática não pode obstaculizar o
fornecimento de medicação indispensável à cura e/ou a minorar o
sofrimento de portadores de moléstia grave que, além disso, não
dispõem dos meios necessários ao custeio do tratamento" (STJ, 2.ª
Turma, RMS n.º 11.129/PR, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, j.
em 02.10.2001).(3) A medicina é ciência que não trabalha com
soluções únicas ou absolutas. Os Protocolos Clínicos e Diretrizes
Terapêuticas, como fundamento para indeferir o fornecimento de
medicamentos, são genéricos e podem não representar a melhor

93TJSC. AC n. 2015.012826-3, relator Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, Segunda Câmara de Direito
Público, j. em 07.04.2015.
61

alternativa, sendo digno de maior confiança o diagnóstico e a


prescrição realizados pelo médico que atende o paciente, de modo
que "Comprovado por atestado médico que o impetrante deve fazer
uso do medicamento solicitado, certo é que tem ele direito líquido e
certo a que este lhe seja fornecido pelo Estado" (TJPR, 5.ª CCv.
MandSeg. n.º 662.652-2, Rel. Juiz Eduardo Sarrão, j. em
27.07.2010). (4) A inexistência de previsão orçamentária não justifica
a recusa ao fornecimento de remédio a pessoa portadora de doença
grave e carente de recursos econômicos, visto tratar-se de dever do
Estado, em sentido amplo, e direito fundamental do cidadão. Nessa
perspectiva mais abrangente, do enfoque constitucional dos direitos
e deveres envolvidos no caso concreto, afasta-se a
discricionariedade dos atos administrativos, permitindo-se a chamada
"judiciabilidade das políticas públicas", impondo-se ao Poder Público
a superação de eventuais obstáculos através de mecanismos
próprios disponíveis em nosso ordenamento jurídico, pois, no plano
das políticas públicas, onde e quando a Constituição Federal
estabelece um fazer, ou uma abstenção, automaticamente fica
assegurada a possibilidade de cobrança dessas condutas comissiva
ou omissiva em face da autoridade e/ou do órgão competente.(5) A
multa cominatória é simples meio de coerção porque por ela não se
visa uma punição, mas o cumprimento da obrigação imposta, isto é,
não interessa à Justiça sua aplicação em proveito da parte, mas o
cumprimento da obrigação imposta e, por conseguinte, a efetividade
do provimento jurisdicional, notadamente porque no caso em exame
o bem jurídico constitucionalmente tutelado é a "saúde", que constitui
direito fundamental do cidadão (CF, arts. 6.º e 196) [...]94

5) APELAÇÃO REEXAME NECESSÁRIO. DIREIRO PÚBICO NÃO


ESPECIFICADO. SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO.
1. A assistência à saúde é direito de todos garantido
constitucionalmente, devendo o Poder Público custear os
medicamentos e tratamentos aos necessitados. Inteligência do art.
196 da CF. 2. Em razão da responsabilidade solidária estabelecida
entre os Entes Federados para o atendimento integral à saúde,
qualquer um deles possui legitimidade para figurar no polo passivo
da demanda que busca o acesso à saúde assegurado pela
Constituição, cabendo tanto à União, quanto ao Estado ou ao
Município. 3. Tratando-se de demanda que visa o fornecimento de
medicamento inacessível e imprescindível à preservação da vida e
da saúde da parte requerente, é suficiente a demonstração da
existência da moléstia, com a prescrição do tratamento apropriado, e
a ausência de recursos financeiros da parte autora para custear o
tratamento. 4. A prescrição do tratamento pelo médico assistente do
paciente é suficiente para que o Poder Público preste assistência à
saúde, de modo que os argumentos relativos ao uso inadequado de
medicamentos sem comprovação da sua eficácia não constitui óbice
ao dever prestacional do Estado determinado pela Constituição. 5. É
legítima a atuação do Poder Judiciário quando, por ação ou omissão
do Poder Público, existe a ameaça de violação aos direitos

94TJPR. AC n. 14.1410824-2, relator Des. Adalberto Jorge Xisto Pereira, Quinta Câmara Cível, j. em
17.11.2015.
62

fundamentais garantidos pela Constituição, principalmente a vida


digna, sobre os quais se alicerça o Estado Democrático de Direito. 6.
É inviável a substituição dos fármacos prescritos para o demandante,
pois o médico que acompanha o paciente é quem possui as
melhores condições de avaliar o seu estado de saúde e a
necessidade de prescrever o tratamento adequado para a cura da
enfermidade diagnosticada, não podendo prevalecer o entendimento
demonstrado em parecer emitido pelos técnicos da SES em situação
diversa e sem contato com o doente. Portanto, não existe a
possibilidade de determinar a disponibilização dos medicamentos
constantes na lista do SUS indicados como tratamento alternativo de
eficácia similar para a doença de mesma CID do autor, conforme
defendido pelo Estado. 7. Somente o profissional que assiste o caso
possui os elementos necessários para determinar qual o tratamento
apropriado para a cura ou o controle dos sintomas da doença, sendo
o responsável pela indicação dos fármacos e seus efeitos no
combate à evolução da patologia diagnosticada. 8. Descabe ao
Poder Judiciário fazer esse tipo de avaliação, pois em se tratando de
demanda que visa o fornecimento de medicamento inacessível e
imprescindível à preservação da vida e da saúde da requerente, é
suficiente a demonstração da existência da moléstia, com a
prescrição do tratamento apropriado, e a ausência que recursos
financeiros da autora para custear o tratamento. 9. É possível o
fornecimento do medicamento exclusivamente pela sua
Denominação Comum Brasileira (DCB), sem configurar seu paciente.
Inteligência do artigo 3º da Lei 9.787/99. 10. De acordo com a Lei nº
8.121/1985 e decidido pelo Órgão Especial desta Corte na ADI nº
70038755864 e no IIn nº 70041334053, são devidas as despesas
processuais, exceto as de oficial de justiça. RECURSO
PARCIALMENTE PROVIDO. SENTENÇA CONFIRMADA, NO MAIS,
EM REEXAME NECESSÁRIO.95

Em comentários de Moreira96 à jurisprudência do Tribunal gaúcho


(semelhante à colacionada da Corte catarinense, como visto), merece destaque o
seguinte trecho:

Por todo o exposto ao longo dos capítulos anteriores, sobretudo em


relação às singelas considerações efetuadas nos itens antecedentes,
a impropriedade dessa linha decisória, amplamente majoritária no
TJ/RS, é decorrência lógica das premissas estabelecidas neste
trabalho, não sendo – portanto – necessário repetir as razões pelas
quais ocorre o equívoco. Mas vale sublinhar que desconsiderar a
escassez de recursos, conforme se observa dos julgados
mencionados, equivale a ter fé, crença, de que há recursos
financeiros para todas as necessidades de saúde, em sua completa
e absoluta integralidade. Além disso, afirmar a existência de um
direito à saúde que se materializa de maneira imediata e
incondicionada equivale a negar substância à teoria dos princípios,

95 TJRS. Apelação e Reexame Necessário n. 70067455279, relator Des. Sergio Luiz Grassi
Beck,Primeira Câmara Cível, J. em 04.12.2015.
96 MOREIRA, 2010, p. 60.
63

afastando a justificação da decisão judicial de uma base teórica


consistente, já que esta postura decisória acaba negando o caráter
de princípio ao direito fundamental social à saúde, inevitavelmente
esvaziando a ideia de mandamento de otimização.
Por fim, e aqui se manifesta uma preocupação relevante, tratar o
direito à saúde como um direito subjetivo individual, aplicado por
meio da estrutura concernente às regras (Se A, então B, sendo A
apenas a necessidade do tratamento e, por vezes, a carência de
recursos que integra a necessidade), conduz à redução significativa
do juízo de fato e, como consequência, da instrução probatória,
transformando a matéria, inexplicavelmente, em matéria de direito,
implicando – não raro – julgamento antecipado da lide. Isso provoca
uma preocupante tendência de que se produzam decisões
padronizadas, seja na primeira ou segunda instância, de modo que
as ações sobre medicamentos, de peculiar complexidade, terminem
por integral o rol dos modelos prontos, já que a análise sobre a
existência ou não do direito – na concepção aqui apresentada – é
deveras singela.

Destoando da jurisprudência dominante, a 22ª Câmara do Tribunal de Justiça


do Rio Grande do Sul, resgatando a diferenciação entre princípio diretriz (direito
fundamental à saúde, assegurado a todos) e regra (após regulamentado o princípio
legal ou administrativamente), manifestou-se em alguns julgados, dentre os quais se
copia na íntegra o seguinte:

SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE. MEDICAMENTO. LISTAS


PÚBLICAS. PROVA PERICIAL. 1. A assistência terapêutica, no
âmbito do SUS, compreende a dispensação de medicamentos e a
realização de procedimentos em regime domiciliar, ambulatorial e
hospitalar, adotados em protocolos e diretrizes terapêuticas. 2. A
assistência farmacêutica compreende apenas os medicamentos
constantes das relações de medicamentos instituídas pelos gestores
do SUS. 3. O direito social à saúde, a exemplo de todos os
direitos (de liberdade ou não) não é absoluto, estando o seu
conteúdo vinculado ao bem de todos os membros da
comunidade e não apenas do indivíduo isoladamente. Trata-se
de direito limitado à regulamentação legal e administrativa
diante da escassez de recursos, cuja alocação exige escolhas
trágicas pela impossibilidade de atendimento integral a todos,
ao mesmo tempo, no mais elevado standard permitido pela
ciência e tecnologia médicas. Cabe à lei e à direção do SUS
definir seu conteúdo em obediência aos princípios
constitucionais. 4. As políticas públicas do SUS sujeitam-se ao
controle judicial. Mas, não basta a mera afirmação da necessidade
do uso do medicamento ou da realização do procedimento para
obrigar o Poder Público custear o tratamento não incluído no SUS. A
ineficácia ou a inadequação dos fármacos e procedimentos
disponibilizados no SUS exige a ampla produção de provas.
Precedente do STF. Hipótese em que a prova pericial não prova a
inexistência ou inadequação dos fármacos fornecidos pelo SUS.
64

Recurso provido.97

Cumpre destacar, em arremate ao presente capítulo, que os precedentes que


inauguraram a discussão sobre a concretização do direito fundamental à saúde
(sobretudo o primeiro deles do Supremo Tribunal Federal), versando acerca do
fornecimento de medicação para o tratamento dos pacientes soropositivos, foram
precedidos por normas específicas 98, de modo a tornar evidente o direito subjetivo
reclamado em todas as demandas em face de algum descumprimento do Estado.
Não obstante o registrado, a jurisprudência a partir desse marco teórico
passou a interpretar todo e qualquer direito reclamado na matéria como um direito
subjetivo individual, havendo, do outro lado, uma obrigação de prestação positiva do
Estado – a uma ação fática –, desimportando outros fatores jurídicos ou práticos.
Vale ressaltar que a hermenêutica dominante do direito à saúde passa a delineá-lo
como regra, como razão definitiva e exclusiva, descabendo falar-se em ponderação.
A título de exceção, menciona-se o entendimento mais recente da Corte
gaúcha, ainda que minoritário, no sentido de reconhecer um direito subjetivo
coletivo a uma prestação positiva por parte do ente estatal, mas de natureza
normativa – uma ação normativa –, ou seja, o direito de exigir-se a edição de
norma apta à concretização do direito fundamental perseguido, apontando, como
salienta Moreira99, um novo caminho a percorrer, ventilando “alguma possibilidade
de irradiação jurisprudencial futura”.
De todas as considerações desenvolvidas no precedente gaúcho,
destacam-se a preocupação com os limites da atividade judicial, com a
independência e separação dos Poderes, a discricionariedade da administração
pública, sem esquecer, por óbvio, do controle judicial sobre esta última. Além disso,
presente também no voto, o devido sopesamento entre escassez e políticas
públicas.
O próximo capítulo tratará dessas celeumas, com foco específico nas noções
de mínimo existencial e máximo possível, objetivando conciliar a atuação
jurisdicional a partir da distinção entre direito individual e direito coletivo e direito a
uma prestação fática e direito a uma prestação normativa.

97 Apelação Cível n. 70045467016, Vigésima Segunda Câmara Cível, relatora Desª Maria Isabel de
Azevedo Souza, J. em 27.10.2011, grifo nosso.
98 Exemplo concreto é a Lei 9.313, de 13 de novembro de 1996, que dispõe sobre a distribuição

gratuita de medicamentos aos portadores de HIV.


99 MOREIRA, 2010, p. 62.
65

4 OS LIMITES DA ATUAÇÃO JUDICIAL NA ÁREA DA SAÚDE –


CONSIDERAÇÕES FUNDAMENTAIS ACERCA DO PRINCÍPIO
DEMOCRÁTICO, DO MÍNIMO EXISTENCIAL E DO MÁXIMO POSSÍVEL

Como se discutiu até o presente momento, os direitos fundamentais sociais


possuem uma dimensão objetiva (negativa) imediata, identificada por Ferrajoli100
como a esfera do “não decidível”, haja vista que vincula o legislador, bem como o
administrador público e o Poder Judiciário, ao respeito e à impossibilidade de
supressão ou de contrariedade ao que fora constitucionalmente consagrado.
Todavia, possuem também uma vocação prospectiva (positiva), ou seja, devem ser
realizados progressivamente em compasso com o crescimento e as riquezas do
país.
No caso específico da saúde, note-se que a criação e estruturação do
Sistema Único de Saúde (SUS) não esgotam os esforços em prol da concretização
desse direito fundamental na sociedade brasileira, e a prova disso são as inúmeras
ações judiciais que assolam o país desde as décadas passadas.
Tal fenômeno evidencia a tensão trazida pelo Estado Constitucional de Direito
ao Poder Judiciário e, a partir dessa inexorável realidade, a necessidade de balizar a
atuação jurisdicional, notadamente diante dos postulados de harmonia entre os
Poderes, de realização e respeito aos direitos fundamentais e de igualdade
substancial.
Em artigo específico sobre a matéria, Barroso101 apresenta diagnóstico do
direito à saúde no Brasil, historiando que, se por um lado os direitos sociais
perderam a caracterização de projetos políticos dirigidos aos Poderes Executivo e
Legislativo, ganhando aplicabilidade direta e imediata pelo Judiciário, de outro, o
sistema apresenta fissuras e ameaça ruir frente aos exageros e decisões
emocionais que se proliferam no tema, notadamente as que obrigam a
Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis, ameaçando sucumbir da
própria “cura”. Em suas palavras:

100FERRAJOLI, 2015.
101BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Revista de Direito
Social. n. 34 abr/Jun. Porto Alegre: Notadez, 2009.
66

Tais excessos não são apenas problemáticos em si. Eles põem em


risco a própria continuidade das políticas de saúde pública,
desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação
racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da
jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas,
dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente
implementadas. Trata-se de hipótese típica em que o excesso de
judicialização das decisões políticas pode levar à não realização
prática da Constituição Federal. Em muitos casos, o que revela é a
concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da
generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas
universalistas implementadas pelo Poder Executivo.102

Com esse alerta em mente, mostra-se mais que o necessário. Portanto, é


preciso, urgente até, repensar a atuação judicante frente ao excesso de demandas
(normalmente com vistas à obtenção de medicamentos ou terapias), tanto do ponto
de vista teórico como prático, vale-se dizer, das consequências sociais e políticas da
judicialização da saúde no Brasil.
O trecho citado pontua questões relevantíssimas ao equacionamento do que
se pode entender como uma racional prestação jurisdicional na temática, dentre elas
destacam-se a relação de equilíbrio entre os Poderes – com repercussão direta e
imediata no ideal democrático –, a crescente individualização das demandas em
detrimento da criação de políticas públicas coletivas e, por fim, o eventual
desequilíbrio resultante da judicialização, vulnerando o primado da igualdade
substancial, corolário do Estado Constitucional de Direito.
Neste capítulo, então, pretende-se problematizar todas essas questões a fim
de vislumbrar quais delas são superáveis e quais devem servir de limite à
concretização do direito à saúde pelo Poder Judiciário.
Como primeiro ponto, elege-se a separação dos Poderes, porquanto
frequentemente apontada como malferida pela atuação dos julgadores na matéria,
ensejando o que muitos denominam como “ativismo judicial”103, conforme analisado

102
BARROSO, 2009, p. 12.
103 Registre-se que, segundo Barroso, a expressão “ativismo judicial” (judicial activism) fora cunhada
nos Estados Unidos e utilizada pela primeira vez pelo jornalista Arthur M. Schlesinger Junior, ao
escrever sobre a atuação da Suprema Corte americana durante o período do “New Deal” (entre 1954
e 1969), marcada por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais. Contudo,
tal neologismo fora apropriado pela reação conservadora, ganhando forte conotação negativa, vindo
a ser equiparada ao exercício impróprio do poder judicial. Para o autor, depurada a questão
ideológica, o ativismo judicial pode ser entendido como uma maior participação do Judiciário na
concretização dos valores e fins constitucionais. (BARROSO, Luis Roberto. Constituição, Democracia
e Supremacia Constitucional: Direito e Política no Brasil Contemporâneo. Revista Trimestral de
Direito Público. n. 55. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 45).
67

a seguir.

4.1 ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO E DEMOCRACIA: A TENSÃO


ENTRE OS PODERES EXECUTIVO, LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO

A questão relativa à separação dos Poderes deita profundas raízes no


pensamento humano, ocupando a atenção de pensadores como Platão e
Aristóteles, passando por Locke e Montesquieu, embora se atribua a este último o
lastro teórico da tripartição dos Poderes com suas consequentes funções, tal qual se
apresenta na atualidade.104
Na concepção desenvolvida por Montesquieu, deve-se repartir entre órgãos
diversos o poder estatal, atribuindo-lhes reciprocamente a função de impedir
eventuais abusos por parte dos demais.
Essa concepção chegou a ser considerada como a doutrina máxima do
exercício da soberania, a exemplo do ocorrido na Revolução Francesa, como
preconizado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, sob o
enunciado: “qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos
direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.
Note-se que a contemporaneidade tratou de superar o mito da separação
estanque entre os Poderes, responsável pelo ideário do “juiz boca da lei”, ao mesmo
tempo em que a ideia de limitação da soberania pela distribuição dos Poderes
estatais a diferentes órgãos foi paulatinamente mitigada.
Segundo Marcelo Novelino105, o princípio hoje não apresenta a mesma força
ou rigidez, “[...] porquanto a ampliação das atividades estatais impôs novas formas
de inter-relação entre os poderes, de modo a estabelecer uma colaboração

104
Acerca da separação dos poderes, escreve o autor: “A liberdade política, em um cidadão, é esta
tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que
se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro
cidadão. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está
reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o
mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o
poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder
legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador.
Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria
perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse
os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as
querelas entre os particulares.” (MOSTESQUIEU. Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das
Leis. Tradução: Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 168).
105
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 374.
68

recíproca.”
Inspirado nesta noção (de checks and balances), o art. 2º da CFRB de 1988
determina: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário”106.
Novamente nas palavras do autor, deve-se interpretar a independência e
harmonia, nos termos da Constituição, muito mais como um sistema de checks and
balances do que uma separação absoluta de funções entre os Poderes:

Por não haver uma “fórmula universal apriorística” para este


princípio, é necessário extrair da própria constituição o traço
essencial da atual ordem para fins de controle de constitucionalidade.
A independência entre eles tem por finalidade estabelecer um
sistema de “freios e contrapesos” para evitar o abuso e o arbítrio por
qualquer dos Poderes. A harmonia se exterioriza no respeito às
prerrogativas e faculdades atribuídas a cada um deles.107

Em suma, por independência e harmonia deve-se entender a busca por um


equilíbrio de forças necessária à realização do bem da coletividade, sobretudo
rechaçando possíveis arbitrariedades cometidas em detrimento dos governados.
Desse modo, pode-se pretender superar as críticas dirigidas à atuação do
Poder Judiciário no Estado Constitucional de Direito, formuladas sob o manto do
princípio democrático, apontando-a como desrespeitosa à clássica noção de
separação dos Poderes.
Nessa mesma linha seguem os críticos do chamado ativismo judicial (por eles
definido resumidamente como usurpação de competência pelo Poder Judiciário,
referindo-se aos juízes que “legislam”), voltando-se à ideia de soberania popular e
vontade da maioria. Esta, em um sistema representativo, se operacionaliza mediante
a eleição periódica de um chefe do Poder Executivo e dos membros do Legislativo,
detentores do poder político – pois legitimados como maioria – em um dado
momento histórico. Por sua vez, os componentes do Poder Judiciário são
selecionados, em regra, por critérios exclusivamente técnicos, razão por que não
representam, na versão tradicional de democracia, o governo da maioria, traduzido
mais fielmente (ao menos em tese) pela atuação dos outros dois Poderes eletivos.108

106 BRASIL. Constituição (1988).


107 NOVELINO, 2012, p. 374-375, grifo do autor.
108 No caso brasileiro, deve-se ressaltar que a escolha dos membros das Cortes Superiores é feita

pelo Chefe do Poder Executivo, e, por isso goza, pelo menos em tese, de certo respaldo da vontade
popular.
69

Nesse contexto, afirma-se, consoante primado da democracia representativa,


a competência do Legislativo e do Executivo para a elaboração das leis e das
políticas públicas, inclusive quanto à alocação de recursos na área da Saúde, não
faltando quem, a exemplo de Rafael Bicca Machado109, rechace por completo a
interferência do Judiciário nessa seara, sob o argumento de que, na falta de
mandato popular dos juízes, as decisões acerca dos direitos prestacionais
vulnerariam o próprio princípio democrático da separação dos Poderes.
Em vértice oposto, explica Oliveira Neto110, com base na teoria garantista de
Ferrajoli, que a legitimidade do Judiciário decorre de sua precípua função de
garantia dos direitos fundamentais, de modo a deslocá-la da clássica ideia de
democracia política ao paradigma de democracia constitucional, própria do
Estado Constitucional de Direito. Desse modo, a atuação jurisdicional, calcada na
concretização e na intangibilidade dos direitos fundamentais, conquista seu novo
papel, deveras diverso do desempenhado no sistema liberal, nada relacionado com
a vontade da maioria.
Confira-se a seguinte passagem do autor:

O que se pode extrair disso é uma mudança fundamental que se dá


com a alteração na concepção do Estado de Direito – e sua
passagem para um Estado Constitucional de Direito – e a
compreensão do Garantismo não mais como apenas uma mera
proteção dos direitos de liberdade em relação ao Estado, ou diante
dele, entendimento histórico da expressão. Se antes era assim
entendido, o que gerava uma função jurisdicional típica do liberalismo
calcada na ideia de separação dos poderes, agora a concepção de
Garantismo representa uma forma de identificar a Democracia
constitucional própria do Estado Constitucional de Direito (IBANHES,
2005, p. 61).
Isso explica sua raiz penal e a ampliação para a garantia de todos os
demais direitos fundamentais, legitimando e justificando a atuação
judicial para essa proteção – já que o sistema constitucional atual
impõe de maneira vinculante uma Teoria Crítica do Direito, não mais
limitada e na ocultação das divergências entre o ser e o dever ser,
mas que problematiza o Direito, perdendo o juiz seu papel tradicional
imposto pela visão kelseniana do ordenamento.111

Vale afirmar, a propósito, que os direitos fundamentais são, por sua natureza,

109 MACHADO. Rafael Bicca. Cada um em seu lugar: cada um com sua função. In: TIMM, Luciano
Benetti (org.). Apontamentos sobre o atual papel do Poder Judiciário brasileiro, em homenagem ao
ministro Nelson Jobim. Revista de Direito e Economia. São Paulo: IOB Thompson, 2005, p. 43.
110
OLIVEIRA NETO, 2011.
111 Ibidem, p. 132-133.
70

contramajoritários, como se extrai das considerações de Alexy112 acerca da polêmica


entre o princípio democrático e os direitos fundamentais:

A necessária colisão entre o princípio democrático e os direitos


fundamentais significa que o problema da divisão de competências
entre o legislador com legitimação democrática direta e
responsabilidade – em razão da possibilidade de não-reeleição – e o
tribunal constitucional apenas indiretamente legitimado
democraticamente e não destituível eleitoralmente, é um problema
inevitável e permanente. [...]

Contudo, tal problema não se afigura insolúvel, pois, segundo o próprio autor,
a resposta está na consideração acerca da importância constitucional conferida ao
direito, no sentido de não se conceber deixar a decisão sobre ele para a maioria
parlamentar, seja pensando no legislador de hoje, bem como no do futuro. São
nesses exatos termos que se defende a natureza contramajoritária dos direitos
fundamentais. Em suas palavras, deve-se “[...] saber se e em que medida eles são,
do ponto de vista do direito constitucional, tão importantes que a decisão sobre eles
não possa ser deixada para a maioria parlamentar simples”113.
Ora, uma vez que, segundo Barroso114, o Estado Constitucional de Direito
gravita em torno dos direitos fundamentais e, sobretudo, da dignidade da pessoa
humana, enquanto “centro de irradiação dos direitos fundamentais, sendo
frequentemente identificada como núcleo essencial de tais direitos”, nada a
estranhar que pela atuação do Judiciário se afirmem e concretizem cada vez mais
tais direitos (notadamente os diretamente afetos à dignidade).
Questiona-se, entretanto, quais os limites concretos para essa atuação
(porquanto se sabe não ser ilimitada), destacadamente quanto aos direitos
prestacionais (que reconhecem obrigações positivas do Estado), caso em que há
repercussão econômica e, consequentemente, nas políticas públicas do país.
Precisamente nesse ponto as opiniões divergem drasticamente. De acordo
com o texto de Edilson Pereira Nobre Jr115, nos países latino-americanos (chamados
“em desenvolvimento”), a jurisdição constitucional deve se abster um pouco mais
das questões que envolvam consequências econômicas, restringindo-se à garantia

112 ALEXY, 2011, p. 447.


113 ALEXY, 2011, p. 448.
114
BARROSO, 2009, p. 19.
115 NOBRE JR, Edilson Pereira. Ativismo Judicial: possibilidades e limites. Revista Trimestral de

Direito Público, n. 55. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 92.


71

das prerrogativas sociais mínimas necessárias à dignidade da pessoa humana,


atentando-se para o fato de que a distribuição das riquezas e a eleição de políticas
públicas devem ser prioritariamente tratadas pelo Legislativo e Executivo. Nesse
sentido, afirma o autor:

Por isso, é de ser afirmado que a atuação do Judiciário na efetivação


dos direitos fundamentais há de pautar-se pela existência de normas
que portem densidade normativa suficiente, ou quando indispensável
assegurar-se o mínimo existencial.116

Em defesa de uma atuação consciente e responsável do Judiciário, Ari


Timóteo dos Reis Júnior117, pondera:

A separação dos poderes é pedra angular de todo Estado


Democrático de Direito, de delicada configuração ante a
especialização de funções concebida pelo checks and balances. A
acumulação de poderes desborda no arbítrio e desprezo dos direitos
e garantias fundamentais. A quebra do equilíbrio entre os órgãos
superiores do Estado arrastaria consigo todas as instituições
democráticas e direitos de liberdade e igualdade.
Portanto, descabem argumentos irresponsáveis que se apegam em
uma realização a qualquer preço de direitos a prestações positivas
pelo Estado, sem considerações financeiras e orçamentárias. A
função de traçar as políticas públicas é conferida ao Poder
Legislativo, que têm melhores condições do que qualquer outro de
avaliar como e quando implementá-las, regulamentando as normas
de eficácia limitada que consagram os direitos sociais, culturais e
econômicos e alocando os recursos cabíveis para tanto. Há liberdade
de conformação pelo Legislativo, existindo uma reserva legislativa
sobre a questão que, no âmago da separação de poderes, não está
sujeita à interferência dos demais poderes.
Este é o cerne da reserva do possível. Na conformação dos direitos a
prestações materiais positivas o Judiciário não pode interferir em
razão de serem os recursos limitados e insuficientes para
atendimento geral, o que determina decisões disjuntivas que
incumbem ao legislador ante a separação de poderes.

No entanto, também não se olvida o autor de que o Poder Legislativo, como


órgão constituído, limitado e condicionado pela Constituição, a ela se submete,
devendo-lhe obediência, nos termos prescritos pelo legislador originário
(reconhecendo, portanto, sua força vinculativa).

116
NOBRE JR, 2011, p. 92.
117 REIS JÚNIOR, Ari Timóteo dos. A teoria da reserva do possível e o reconhecimento pelo Estado
de prestações positivas. Revista Tributária e de Finanças Públicas. Ano 17, n. 86. maio/jun 2009.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 22-23.
72

Isso equivale a afirmar que a liberdade do Poder Legislativo não é absoluta,


especialmente no que concerne à obrigação na edição de normas integradoras que
concretizem direitos fundamentais de segunda e terceira dimensões.
Conclui, então, suas digressões afirmando:

As normas de eficácia limitada dependem de integração legislativa


para serem aplicadas, mas isto não significa que sejam desprovidas
de qualquer eficácia, sob pena de negarmos a sua condição jurídica.
Tais normas produzem um mínimo de efeitos, como, por exemplo,
estabelecem dever para o legislador infraconstitucional de editar as
leis regulamentadoras, condicionam a legislação futura que não
poderá ir na contramão dos programas constitucionalmente
estabelecidos, ab-rogam legislação anterior incompatível e
constituem sentido teleológico para interpretação, integração e
aplicação de normas jurídicas.
A falta de edição da norma integrativa de sua eficácia caracteriza o
que chamamos de síndrome da inefetividade das normas
constitucionais, autorizando o manejo de ação direta de
inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção, porque
tal omissão será inconstitucional por contrariar o dever de legislar
sobre o assunto.118

Na tentativa de identificar e agrupar as divergências doutrinárias acerca dos


limites da atuação judicial em matéria de prestações positivas pelo Estado, Reis
Júnior119 enumera as possíveis teses em três: a) os que entendem que podem ser
tutelados pelo Judiciário os direitos fundamentais em qualquer hipótese; b) os que
dizem ser passível de tutela imediata os direitos de liberdade (negativos), enquanto
os sociais (positivos) dependeriam de lei disciplinadora e de alocação de recursos
orçamentários prévios (reserva do possível); e, finalmente, c) os que entendem
imediatamente tuteláveis os direitos fundamentais sociais, independente de lei
regulamentadora, desde que ligados à noção de mínimo existencial, enquanto os
demais se submeteriam à reserva do possível.
Comunga-se da terceira corrente, razão por que se mostra imprescindível
aprofundar o conceito de mínimo existencial, correlacionando-o com a ideia de
dignidade da pessoa humana, liberdade jurídica e fática e igualdade, contrapondo-o
à noção de máximo desejável e de reserva do possível.
Antes, porém, cumpre um fechamento ao problema da separação dos
Poderes.

118 REIS JÚNIOR, 2009, p. 23.


119 Ibidem, p. 24.
73

Quer-se crer que a verdadeira questão a ser enfrentada nos casos difíceis
envolvendo a temática da saúde no país não se refere propriamente à extrapolação
do Judiciário da sua área de atuação. As complexidades próprias do mundo
contemporâneo, identificadas por alguns filósofos como pós-modernidade, somadas
ao fato de uma Constituição analítica, acabam por conformar o fenômeno da
juridicização da vida, ou seja, como a Carta Magna do país, em toda sua prolixidade,
trata de incontáveis aspectos da vida humana, temáticas que antes habitavam a
seara da política ou da sociologia tornaram-se jurídicas e, por isso, houve uma
inegável ampliação da importância do Poder Judiciário e de sua participação no
cenário nacional.
Recrimina-se, isso sim, a intervenção desarrazoada e ilimitada do Judiciário
na área da Saúde, porquanto nesse ponto irresponsável, na medida em que fragiliza
o primado da igualdade no Estado constitucional, tão ou mais caro ao sistema
democrático do que o clássico axioma da separação dos Poderes, corolário do
Estado liberal.
Desse modo, conclui-se que a atuação do Judiciário voltada à afirmação da
dignidade da pessoa humana jamais será exagerada ou descabida, muito menos
vulneradora da separação dos Poderes. Igualmente, havendo o descumprimento de
uma política pública estabelecida, como se percebe na hipótese de ações que
reclamam medicamentos constantes nas listagens do SUS, sua intervenção mais
que salutar é certamente devida. O que não se pode conceber é que o Poder
Judiciário, à revelia da sociedade e dos demais Poderes, arrogue-se da eleição de
prioridades nacionais e da efetivação das políticas públicas na área da Saúde, fato
ensejador de desequilíbrios e desigualdades ante a escassez dos recursos
financeiros, situação ilustrada por Clève120 como a metáfora do cobertor curto, em
que, ao ser puxado para cobrir a parte superior do corpo, deixa descoberta a inferior
e vice-versa.
Considerando-se as parciais conclusões do tópico, resta investigar o que vem
a ser o mínimo existencial e seus desdobramentos e repercussões na esfera de
atuação do Poder Judiciário.

120 CLÈVE, 2003, p. 158.


74

4.2 A IMPORTÂNCIA DAS NOÇÕES DE MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA


PESSOA HUMANA, LIBERDADE E IGUALDADE

Quase que intuitivamente, costuma-se concatenar a ideia de mínimo


existencial com a de dignidade da pessoa humana. E não sem razão.
Compõe o ideário de mínimo existencial a reunião de diferentes dimensões
da existência humana, compreendendo o ser em toda a sua complexidade,
englobando, inclusive, suas necessidades materiais e não apenas espirituais, morais
ou estéticas. Enfim, busca-se um entendimento ontológico do homem.
Assim, quando se defende um direito fundamental ao mínimo existencial, está
se afirmando, em outras palavras, que precisam ser asseguradas as condições
básicas de vida digna ao ser humano.
Nesse sentido, conforme as lições de José Afonso da Silva121:

Repetiremos aqui o que já escrevemos de outra feita, ou seja, que a


dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o
conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o
direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora
de todos os direitos fundamentais, [observam Gomes Canotilho e
Vital Moreira] o conceito de dignidade da pessoa humana obriga
a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo
sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia
apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da
dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais,
esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para
construir a ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a
quando se trata de direitos econômicos, sociais e culturais”. Daí
decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos
existência digna (art. 170), a ordem social visará à realização da
justiça social (art. 193), à educação, ao desenvolvimento da pessoa e
seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205), etc., não como
meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo
normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.

Normalmente, quando se discute o mínimo existencial, pensa-se


automaticamente nos direitos sociais: moradia, saúde, educação, entre outros.
Porém, também os direitos de primeira dimensão ligam-se intimamente à noção de
mínimo existencial, como bem salienta Alexy122, ao discernir a liberdade jurídica da
fática (consoante tratado no Capítulo 3, item 3.1.1, do presente estudo).

121 SILVA. José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007,
p. 38-39, grifo nosso.
122 ALEXY, 2011.
75

A partir dessa premissa epistemológica, cabe afirmar, como o faz


efetivamente Barroso123, que a liberdade e a igualdade estão fundamental e
umbilicalmente intrincadas à dignidade humana, porquanto somente se realizam
materialmente quando observado o mínimo existencial, ou seja, garantidas as
condições elementares à subsistência digna, em termos de educação, moradia,
saúde e renda “[...] que permitam em uma determinada sociedade, o acesso aos
valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate
público”.
Convém lembrar, nessa senda, que compreende papel dos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário a concretização dos direitos fundamentais na
maior extensão possível, observado como parâmetro mínimo o núcleo essencial
desses direitos – a dignidade humana, doravante sintetizado como mínimo
existencial.
Note-se que a noção de mínimo existencial, embora não definida com essa
designação, já aparece na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da
Organização das Nações Unidas (ONU), datada de 1948, cujo art. XXV proclama um
direito a um nível mínimo de vida a fim de garantir a existência digna:

Art. XXV - Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de


assegurar a si e a sua família saúde e bem
estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos
e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso
de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos
de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu
controle.124

Na Constituição brasileira125, vê-se que até mesmo a ordem econômica se


submete à noção básica de mínimo existencial, consoante explicitado pelo art. 170,
ao dispor: “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social [...]”.

123 BARROSO, 2009, p. 19


124 D E C L AR AÇ ÃO U N I V E R S AL D O S D I R E I T O S H U M AN O S ( 1 9 4 8 ) . D i s p o n í v e l e m :
< h t t p : / / w w w . o n u . o r g . b r / i m g / 2 0 1 4 / 0 9 / D U D H . p d f >. Acesso em: 30 maio 2016.
125 BRASIL. Constituição (1988).
76

Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo126 anotam a crescente tendência doutrinária


e jurisprudencial de reconhecer “exigibilidade judicial de posições subjetivas ligadas
à tutela do mínimo existencial” – entendida como algo além da mera sobrevivência
física, alcançando “a garantia de condições materiais mínimas para uma vida
saudável (ou o mais próximo disso, de acordo com as condições pessoais do
indivíduo) e, portanto, para uma vida com certa qualidade”.
Importante anotar, no entanto, a confusão que usualmente se faz em termos
de submissão dos direitos fundamentais sociais aos ditames da reserva do possível.
Cumpre, neste momento, resgatar a origem histórica da teoria da “reserva do
possível” no cumprimento de direitos fundamentais. Tal equacionamento fora
sedimentado pelo Tribunal Constitucional Alemão quando, ao analisar uma
Reclamação Constitucional de um grupo de jovens que apontava desrespeito à Lei
Maior – direito ao ensino superior – pela ausência de vaga em curso universitário,
entendeu que tal direito fundamental deveria ser concretizado na medida do
possível, ou seja, dentro dos limites do que se pode racionalmente exigir da
sociedade e do Estado, não configurando, portanto, direito absoluto127.
Registre-se que originalmente tal teoria não se apresenta necessariamente
atrelada às condições materiais para a realização do direito, senão de traçar
parâmetros à satisfação por parte do Estado de prestações positivas, vinculando as
pretensões apresentadas à noção de razoabilidade da exigência formulada.
Contudo, transposta à realidade brasileira, acabou por ser consagrada
apenas no aspecto do materialmente possível, transcendendo até mesmo a
razoabilidade da pretensão deduzida.
Compreensível que tenha se dado dessa forma na sociedade brasileira,
126 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas considerações sobre o direito
fundamental à proteção e promoção da saúde nos 20 anos da Constituição Federal de 1988.
Disponível
em:<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/O_direito_a_saude_no
s_20_anos_da_CF_coletanea_TAnia_10_04_09.pdf>. Acesso em: 16 dezembro 2015.
127 Segundo relato de Renata Corrêa Severo, a apreciação pela Corte Constitucional Federal Alemã

de demanda proposta por estudantes que não haviam sido admitidos em escolas de medicina em
Hamburgo e Munique em face da política de limitação de vagas em cursos superiores, aplicada na
Alemanha na década de 1960, gerou posicionamento inovador na hermenêutica do art. 12 da
Constituição Alemã, o qual prescreve que “ todos os alemães têm direito a escolher livremente sua
profissão, local de trabalho e seu centro de formação”. Ao decidir o caso, referida Corte entendeu que
a satisfação do direito a prestações positivas, tal qual expresso na pretensão em destaque,
sujeitar-se-ia à reserva do possível, ou seja, quando observados os limites do que razoavelmente
(entendido aqui como pretensão embasada racionalmente) pode o indivíduo esperar da sociedade e
do Estado. (SEVERO. Renata Corrêa. O princípio da reserva do possível e a eficácia das decisões
judiciais em face da Administração Pública. Fórum Administrativo – Direito Público - FA. Ano 1, n. 1.
mar 2001. Belo Horizonte: Fórum, 2001, p. 28).
77

especialmente sob a circunstância de que os direitos sociais mais básicos (mínimo


existencial) carecem de concretude e os recursos apresentam-se como insuficientes
para realizá-los.
Todavia, o parâmetro do que se pode razoavelmente esperar da sociedade e
do Estado (ainda mais sob a concepção de solidariedade social ou de fraternidade)
não deveria ser de todo abandonado pelo Judiciário, notadamente diante das
peculiaridades e do contexto de escassez no caso brasileiro, o que evidencia certos
pleitos como completamente irreais (até mesmo para a realidade alemã!) e, nessa
medida, ensejadores de agravamento das desigualdades sociais.
É preciso que se esclareça desde logo a importância da distinção entre
pretensões versando sobre a garantia de direito ligado ao mínimo existencial e, por
excelência, à noção de dignidade da pessoa humana, daquelas voltadas à
implementação do máximo prometido em termos de saúde pública.
Retornando aos ensinamentos de Alexy128, a dignidade da pessoa humana
configura direito absoluto, tanto que, diante de situações concretamente avaliadas,
não se discute sua precedência ou não sobre outras normas, mas apenas se foi ou
não violada.
Com base nessa proposição, defende-se que há um direito subjetivo de exigir
prestações positivas do Estado para a efetivação do mínimo existencial, não se
configurando óbice oponível a essa obrigação a cláusula ou teoria da reserva do
possível, destinada apenas a modular políticas públicas na concretização do máximo
prometido.
Nesses termos, a atuação do Judiciário pauta-se pela garantia do mínimo
existencial e/ou pela obediência às políticas públicas existentes na área da Saúde,
situações em que a reserva do possível não deve ser ponderada, porquanto ferida a
própria dignidade humana ou a regra regulamentadora do direito em foco.
É o que, em outras palavras, se extrai das decisões do Supremo Tribunal
Federal, a seguir enumeradas:

1) O preceito do artigo 196 da Carta da República, de eficácia


imediata, revela que “a saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua

128 ALEXY, 2011.Consultar p. 24 deste trabalho.


78

promoção, proteção e recuperação”. Reclamam-se do Estado


(gênero) as atividades que lhe são precípuas, nos campos da
educação, da saúde e da segurança pública, cobertos, em termos de
receita, pelos próprios impostos pagos pelos cidadãos. É hora de
atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja,
proporcionar vida gregária segura e com o mínimo de conforto
suficiente a atender ao valor maior atinente à preservação da
dignidade do homem.129

2) [...] No Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou,


em termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na
criação e implementação de políticas públicas em matéria de
saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é
apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento de
políticas públicas já existentes.
Esse dado pode ser importante para a construção de um critério ou
parâmetro para a decisão em casos como este, no qual se discute,
primordialmente, o problema da interferência do Poder Judiciário na
esfera dos outros Poderes.
Assim, também com base no que ficou esclarecido na Audiência
Pública, o primeiro dado a ser considerado é a existência, ou
não, de política estatal que abranja a prestação de saúde
pleiteada pela parte. Ao deferir uma prestação de saúde incluída
entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo Sistema
Único de Saúde (SUS), o Judiciário não está criando política
pública, mas apenas determinando o seu cumprimento. Nesses
casos, a existência de um direito subjetivo público a
determinada política pública de saúde parece ser evidente.
Se a prestação de saúde pleiteada não estiver entre as políticas do
SUS, é imprescindível distinguir se a não prestação decorre de (1)
uma omissão legislativa ou administrativa, (2) de uma decisão
administrativa de não fornecê-la ou (3) de uma vedação legal a sua
dispensação.
[…]
O segundo dado a ser considerado é a existência de motivação para
o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS. Há
casos em que se ajuíza ação com o objetivo de garantir prestação de
saúde que o SUS decidiu não custear por entender que inexistem
evidências científicas suficientes para autorizar sua inclusão.
Nessa hipótese, podem ocorrer, ainda, duas situações: 1º) o SUS
fornece tratamento alternativo, mas não adequado a determinado
paciente; 2º) o SUS não tem nenhum tratamento específico para
determinada patologia.
A princípio, pode-se inferir que a obrigação do Estado, à luz do
disposto no artigo 196 da Constituição, restringe-se ao fornecimento
das políticas sociais e econômicas por ele formuladas para a
promoção, proteção e recuperação da saúde.
[…]
Dessa forma, podemos concluir que, em geral, deverá ser
privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção
diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a
ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente.

129Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 887734, relator Min. Marco Aurélio, Primeira
Turma, julgado em 25.08.2015, grifo nosso.
79

Essa conclusão não afasta, contudo, a possibilidade de o Poder


Judiciário, ou de a própria Administração, decidir que medida
diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada
pessoa que, por razões específicas do seu organismo, comprove que
o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso. Inclusive, como
ressaltado pelo próprio Ministro da Saúde na Audiência Pública, há
necessidade de revisão periódica dos protocolos existentes e de
elaboração de novos protocolos. Assim, não se pode afirmar que os
Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS são
inquestionáveis, o que permite sua contestação judicial.
Situação diferente é a que envolve a inexistência de tratamento da
rede pública. Nesses casos, é preciso diferenciar os tratamentos
puramente experimentais dos novos tratamentos ainda não testados
pelo Sistema Único de Saúde Brasileiro. [...]
Parece certo que a inexistência de Protocolo Clínico no SUS não
pode significar violação ao princípio da integralidade do sistema, nem
justificar a diferença entre as opções acessíveis aos usuários da rede
pública e as disponíveis aos usuários da rede privada. Nesses casos,
a omissão administrativa no tratamento de determinada patologia
poderá ser objeto de impugnação judicial, tanto por ações individuais
como coletivas. No entanto, é imprescindível que haja instrução
processual, com ampla produção de provas, o que poderá configurar-
se um obstáculo à concessão de medida cautelar.
Portanto, independentemente da hipótese levada à consideração
do Poder Judiciário, as premissas analisadas deixam clara a
necessidade de instrução das demandas de saúde para que não
ocorra a produção padronizada de iniciais, contestações e
sentenças, peças processuais que, muitas vezes, não
contemplam as especificidades do caso concreto examinado,
impedindo que o julgador concilie a dimensão subjetiva
(individual e coletiva) com a dimensão objetiva do direito à
saúde. Esse é mais um dado incontestável, colhido na Audiência
Pública – Saúde.130

Além da dignidade da pessoa humana, o mínimo existencial comporta


entrecruzamento com o que Alexy131 chama de liberdade fática, vale repisar, a
prerrogativa jurídica corroborada pelas circunstâncias materiais a pautar a atuação
do indivíduo no meio social. Ou melhor, a liberdade fática assegura que o titular de
uma liberdade jurídica possua condições concretas ou possibilidades reais de fazer
aquilo que lhe é permitido ou facultado, ensejando uma obrigação positiva por parte
do Estado e não apenas negativa, como ocorre na liberdade jurídica.
Assim, quando se demanda em torno de direito que diz respeito à esfera do
mínimo existencial, desloca-se a discussão para o malferimento de um direito
subjetivo de primeira dimensão – liberdade –, cuja justiciabilidade é manifesta.

130 Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175, relator
Min. Gilmar Mendes, Plenário, julgado em 17.03.2010, grifo do autor.
131 ALEXY, 2011. A respeito do tema, conferir p. 43 deste trabalho.
80

Coisa diversa acontece quando a demanda de saúde aponta para a


consecução de fármaco ou terapia extravagante, sem prévia política pública
instituída e, muitas vezes, de eficácia não comprovada ou de custo elevadíssimo por
não ser disponibilizado no país, dentre inúmeras hipóteses de pleitos frequentes na
Justiça. Nesses casos, tem-se, em regra, uma pretensão nitidamente voltada à
concretização do máximo prometido constitucionalmente em termos de saúde
pública.
Precisamente diante da abissal diferença entre o pleito voltado ao mínimo
existencial daquele pretendendo o máximo possível (equacionamento entre o
máximo desejável e a reserva do possível), mostra-se de importância ímpar a
teoria de Alexy132 ao discernir princípio de regra e suas formas de aplicação (e, mais
especificamente, de Atienza, no que concerne à distinção entre princípios em
sentido estrito e princípios diretrizes).
Logo, percebe-se que a metodologia da ponderação dos valores
jusfundamentais, denominada por Alexy133 de “máxima da proporcionalidade”,
merece substancial relevo na atuação judicial destinada ao equacionamento das
demandas na área da Saúde, porquanto permite sopesar eventual colisão de
princípios antagônicos (proporcionalidade em sentido estrito), além das
circunstâncias fáticas do caso concreto (necessidade e adequação).
Em complemento à teoria e metodologia de Alexy134, Atienza e Manero135
ressaltam que somente os princípios diretrizes podem ser cumpridos na medida do
possível (e, por consequência, ser interpretados como mandamentos de otimização).
Cabe relembrar o que foi tratado no Capítulo 3 desta dissertação,
concernente à distinção entre regra e princípio (diretriz).
Segundo Atienza e Manero136, a principal distinção entre regras e princípios
(diretrizes) como razão de agir evidencia-se na medida em que as regras são razões
peremptórias independente de seu conteúdo e, portanto, verificadas as condições de
sua aplicação (suporte fático da regra), deve o julgador utilizar-se da subsunção
para atribuir a consequência prevista no comando normativo. Descabe, na hipótese
de regra, falar em ponderação do julgador, porquanto tal operação (opção) já fora

132 ALEXY, 2011.


133 Ibidem.
134 Ibidem.
135
ATIENZA; MANERO, 2016.
136
Ibidem.
81

realizada politicamente pelo legislador, “[...] enquanto que (sic) os princípios os


fazem como razões de primeira ordem, que devem ser ponderadas com outras
razões”137. Vale afirmar, portanto, que as regras, diferentemente dos princípios, são
mandados ou comandos definitivos.
Baseado em tudo o que foi exposto até o momento, faz-se coro à proposta de
solução aventada por Alexy138, quando, ao tratar dos direitos fundamentais sociais
sob o ponto de vista de sua justiciabilidade (direito subjetivo do cidadão de exigir
judicialmente prestações positivas por parte do Estado), os liga a uma ideia-guia
que, no aspecto formal, remete à natureza contramajoritária dos direitos
fundamentais e, no substancial, à dignidade da pessoa humana.
Conforme a explicação detalhada do constitucionalista alemão Alexy139:

De acordo com essa fórmula, a questão acerca de quais direitos


fundamentais sociais o indivíduo definitivamente tem é uma questão
de sopesamento entre princípios. De um lado está, sobretudo, o
princípio da liberdade fática. Do outro lado estão os princípios
formais da competência decisória do legislador democraticamente
legitimado e o princípio da separação dos poderes, além de
princípios materiais, que dizem respeito sobretudo à liberdade
jurídica de terceiros, mas também de outros direitos fundamentais
sociais e de outros interesses coletivos.
[...]
O modelo não determina quais direitos fundamentais sociais
definitivos o indivíduo tem. Mas ele diz que ele pode ter alguns e o
que é relevante para a sua existência e conteúdo. [...]
Uma posição no âmbito dos direitos a prestações tem que ser
vista como definitivamente garantida se (1) o princípio da
liberdade fática a exigir de forma permanente e se (2) o princípio
da separação de poderes e o princípio democrático (que inclui a
competência orçamentária do parlamento) bem como (3) os
princípios materiais colidentes (especialmente aqueles que
dizem respeito à liberdade jurídica de outrem) forem afetados
em uma medida relativamente pequena pela garantia
constitucional da posição prestacional e pelas decisões do
tribunal constitucional que a levarem em consideração. Essas
condições são necessariamente satisfeitas no caso dos direitos
fundamentais sociais mínimos, ou seja, por exemplo, pelos
direitos a um mínimo existencial, a uma moradia simples, à
educação fundamental e média, à educação profissionalizante e
a um patamar mínimo de assistência médica.

137
ATIENZA; MANERO, 2016, p. 60.
138 ALEXY, 2011.
139 Ibidem, p. 511-512, grifo nosso.
82

Ressalva, entretanto, as enormes repercussões financeiras mesmo se


tratando do mínimo existencial, notadamente, como é o caso do Brasil, quando
muitas pessoas demandam esses direitos mais básicos. Segundo Alexy140:

Mesmo os direitos fundamentais sociais mínimos têm, especialmente


quando muitos deles necessitam, enormes efeitos financeiros. Mas
isso, isoladamente considerado, não justifica uma conclusão
contrária à sua existência. A força do princípio orçamentário do
legislador não é ilimitada. Ele não é um princípio absoluto. Direitos
individuais podem ter peso maior do que razões político-financeiras.

Ainda, em tempo, discorre o autor acerca da importância da garantia do


mínimo existencial em tempos de crise. A despeito de contextualizar seus escritos
na realidade alemã, vale a transcrição da seguinte passagem, quer pela atualidade,
quer pela adequação ao contexto nacional:

A extensão do exercício dos direitos fundamentais sociais aumenta


em crises econômicas. Mas é exatamente nesses momentos que
pode haver pouco a ser distribuído. Parece plausível a objeção de
que a existência de direitos fundamentais sociais definitivos –
ainda que mínimos – tornaria impossível a necessária
flexibilidade em tempos de crise e poderia transformar uma
crise econômica em uma crise constitucional. Contra essa
objeção é necessário observar, em primeiro lugar, que nem tudo
aquilo que em um determinado momento é considerado direito social
é exigível pelos direitos fundamentais sociais mínimos; em segundo
lugar, que, de acordo com o modelo aqui proposto, os necessários
sopesamentos podem conduzir, em circunstâncias distintas, a
direitos definitivos distintos; e, em terceiro lugar, que é exatamente
nos tempos de crise que a proteção constitucional, ainda que
mínima, de posições sociais parece ser imprescindível.141

Em resumo, o modelo apresentado se assenta na ideia de sopesamento.


Isso porque se parte da premissa de que o que é devido prima facie seja mais amplo
daquilo que é devido definitivamente (após a operação do sopesamento).
Assim, de acordo com a proposta de Alexy142, o indivíduo passa a ter um
direito definitivo à prestação (fática ou normativa, ressalte-se) quando o princípio da
liberdade fática (ligado à noção de dignidade) tem um maior peso em detrimento dos
demais princípios formais ou das condições materiais colidentes, conjuntamente

140 ALEXY, 2011, p. 513.


141 Ibidem, p. 513, grifo nosso.
142 Ibidem.
83

considerados, a exemplo do que ocorre em relação ao mínimo existencial,


consoante afirmado anteriormente.
Importante esclarecer, como bem o faz Alexy143, que correspondem aos
direitos prima facie os deveres estatais prima facie, especialmente no sentido de que
deve o Estado zelar para que a liberdade jurídica dos indivíduos se traduza, ao
máximo possível, em liberdade fática.
Nesse aspecto, alerta que os deveres estatais prima facie, embora sejam
excedentes, ou seja, sujeitos a recortes provenientes de ponderação (neste trabalho
defendido como respeitantes ao máximo prometido constitucionalmente), não
deixam de ser vinculantes:

Seria um equívoco considerar os deveres prima facie, na parte em


que a eles não correspondam deveres definitivos, ou seja, no âmbito
excedente como juridicamente não-vinculantes [...]. A existência de
uma diferença fundamental entre deveres prima facie e deveres
jurídicos não vinculantes é perceptível no fato de que deveres prima
facie têm que ser considerados no sopesamento, enquanto isso não
ocorre no caso dos deveres jurídicos não vinculantes. Para a não
satisfação de um dever prima facie é necessário que haja, do ponto
de vista jurídico, razões aceitáveis; para a não satisfação de um
dever não vinculante, não. Caso não existam razões aceitáveis para
a sua não satisfação, um dever prima facie pode levar a um dever
definitivo; um dever não vinculante nunca poderia fazê-lo.144

Reforça o autor a identificação entre vinculação dos deveres prima facie e


controle judicial, observando, entretanto, que não pode ser objeto de análise do
tribunal constitucional “saber se foi satisfeito tudo aquilo que o dever prima facie
exige, mas tão somente se foi satisfeito o que lhe resta, como dever definitivo, em
face de deveres prima facie colidentes”, ou ainda determinar quando, diante do
sopesamento entre princípios colidentes e circunstâncias fáticas, “o dever prima
facie foi satisfeito em grau suficiente”145.
Conclui vaticinando:

A competência do tribunal termina nos limites do definitivamente


devido. Mas os princípios contêm exigências normativas
endereçadas ao legislador mesmo além desses limites. Um
legislador que satisfaça princípios de direitos fundamentais além do
âmbito do definitivamente devido satisfaz normas de direitos

143 ALEXY, 2011.


144 Ibidem, p. 518.
145
Ibidem, p. 519.
84

fundamentais mesmo se não está definitivamente obrigado a fazê-lo,


e, por isso, não pode ser obrigado a tanto por um tribunal
constitucional.146

Encaminhando o presente capítulo ao seu desfecho, embora longe de


concluir de forma definitiva a celeuma, acredita-se que, excetuando as pretensões a
prestações positivas que dizem respeito ao mínimo existencial, todo o conteúdo
restante, extraível do art. 196 da CRFB de 1988, submete-se à metodologia da
ponderação, nos termos defendidos por Alexy147.
Tal intelecção nega a aplicação dos direitos prestacionais como regra, ou
seja, na base da subsunção:

Embora o art. 5º, § 1º, da CF/1988, estabeleça a aplicação imediata


dos direitos e garantias fundamentais, o postulado da aplicabilidade
imediata dos direitos sociais prestacionais não pode resolver-se com
a dimensão de tudo ou nada. O seu alcance depende do caso
concreto, ou seja, de uma norma especificamente considerada.
Este aspecto guarda crucial relevância com a efetividade de
prestações positivas com que se relaciona a reserva do possível,
visto que as normas que as preveem se hospedam normalmente em
normas dependentes de integração legislativa.148

Em sentido semelhante, resume Marcelene Carvalho da Silva Ramos149:

Diante disso, é plausível concluir que o art. 5º, § 1º, CF, contém um
postulado de otimização das normas consagradoras dos direitos
fundamentais, inclusive dos direitos sociais – neles compreendido o
direito fundamental à saúde – impondo aos Poderes Públicos a tarefa
de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais, vinculando-os.
Assim, a vinculatividade normativo-constitucional dos direitos
fundamentais sociais impõe aos poderes públicos a realização
destes direitos por meio de medidas políticas, legislativas e
administrativas concretas e determinadas.

Ainda, sob a perspectiva de Alexy150, Reis Júnior151 assevera:

O reconhecimento de direitos a prestações positivas exige que eles


sejam imprescindíveis ao princípio da liberdade fática e que o

146 ALEXY, 2011, p. 519.


147 Ibidem.
148 REIS JÚNIOR, 2009, p. 18.
149 RAMOS. Marcelene Carvalho da Silva. O direito fundamental à saúde na perspectivada

Constituição Federal: uma análise comparada. Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Estado
do Paraná. Curitiba, n. 1, 2010, p. 65.
150 ALEXY, op. cit.
151 REIS JÚNIOR, 2009, p. 27-28.
85

princípios da separação de poderes (incluindo a reserva parlamentar


legislativa em matéria de gastos públicos) seja atingido somente de
maneira diminuta.
Afirma a existência de um direito a prestações positivas básicas,
indispensáveis para uma vida com dignidade que consubstanciam
um mínimo existencial. O interesse deve ser tão fundamental que a
necessidade de seu respeito, sua proteção ou seu fomento se deixe
fundamentar pelo Direito. Tal fundamentalidade justifica a prioridade
sobre todos os escalões do sistema jurídico, portanto, também
perante o legislador.
Deve haver um mínimo de segurança material a ser garantido por
direitos fundamentais, evitando-se o esvaziamento da liberdade
pessoal e garantindo uma liberdade real. Assim, o reconhecimento
do mínimo existencial sempre deverá prevalecer, mesmo quando em
conflito com o princípio da reserva do possível e do princípio
democrático, que não são absolutos.

A partir desse enfoque, pretende-se delinear os limites da atuação judicial


correlacionando-os aos extremos do mínimo existencial e do máximo desejável.
No extremo compreendido pelo mínimo existencial (ligado à dignidade
humana e liberdade fática ou quando houver patente desrespeito a uma política
pública já instituída), afirma-se haver um direito subjetivo a uma prestação positiva
do Estado, nesse caso fática, de modo que a intervenção judicial pode e deve se dar
de forma contundente, aplicando-se o direito à saúde na base do tudo ou nada
(como regra).
De certa forma, reflete o pensamento preponderante na Corte Suprema do
país, do qual se extrai, a título exemplificativo, o precedente:

1) RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI Nº


12.322/2010) – MANUTENÇÃO DE REDE DE ASSISTÊNCIA À
SAÚDE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – DEVER ESTATAL
RESULTANTE DE NORMA CONSTITUCIONAL –
CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO
INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO –
DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA
ESTATAL (RTJ 183/818-819) – COMPORTAMENTO QUE
TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL DA
REPÚBLICA (RTJ 185/794-796) – A QUESTÃO DA RESERVA DO
POSSÍVEL: RECONHECIMENTO DE SUA INAPLICABILIDADE,
SEMPRE QUE A INVOCAÇÃO DESSA CLÁUSULA PUDER
COMPROMETER O NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O
MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191-197) – O PAPEL DO PODER
JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO
PODER PÚBLICO – A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL
NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS:
IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O
86

INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE


PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO PODER
PÚBLICO – A TEORIA DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU
DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”) – CARÁTER COGENTE E
VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE
DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM
DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS, ESPECIALMENTE NA
ÁREA DA SAÚDE (CF, ARTS. 6º, 196 E 197) – A QUESTÃO DAS
“ESCOLHAS TRÁGICAS” – A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES
INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL
FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E
TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO
JURISPRUDENCIAL DO DIREITO – CONTROLE JURISDICIONAL
DE LEGITIMIDADE DA OMISSÃO DO PODER PÚBLICO:
ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA
PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS
PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE
RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL,
VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE
EXCESSO) – DOUTRINA – PRECEDENTES DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-
1220) – EXISTÊNCIA, NO CASO EM EXAME, DE RELEVANTE
INTERESSE SOCIAL – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.152

Em vértice oposto, tratando-se de pretensão voltada à implementação do


máximo desejável, deve-se interpretar o direito à saúde como um mandamento de
otimização a ser concretizado por políticas públicas na maior medida possível, de
modo que, para a atuação judicial, se recomenda prudência, aplicando-se a
metodologia sugerida por Alexy153, ou seja, a ponderação entre os demais princípios
jurídicos colidentes (como, por exemplo, a igualdade), além das circunstâncias
fáticas relevantes (a exemplo da cláusula da reserva do possível). Isso porque, na
maioria dos precedentes, o que se percebe é que os magistrados, ao ponderarem,
acabam por eleger os princípios jurídicos colidentes de forma equivocada,
resultando, geralmente, em uma colisão entre o direito à saúde de alguém versus a
política orçamentária do Estado.
A verdadeira questão que subjaz ao julgamento dos casos difíceis e que
poucos se dispõem a enfrentar é a contraposição do direito à saúde de um (aquele
que demanda em uma ação individual) em detrimento da saúde de vários

152 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 745745/MG. Relator Min. Celso de Mello, julgado
em 02.12.2014, grifo nosso.
153 ALEXY, 2011.
87

(consoante analogia do cobertor curto), com profunda e imediata repercussão no


primado da igualdade.
Barroso154, no discurso proferido em Audiência Pública realizada pelo
Supremo Tribunal Federal acerca da saúde, alerta a respeito do tópico:

Eu acho que a judicialização e o atendimento de casos individuais,


onde deve haver uma política pública coletiva, uma política pública,
favorece a captura do sistema pela classe média ou pelo menos
favorece aqueles que não estão na base mais modesta do sistema.
Mas, sobretudo, essa transformação da ação individual em uma ação
coletiva permite que se realize a ideia de universalização e a ideia da
igualdade. Vai-se realizar e se atender aquele direito para todo
mundo, ou não, mas não se vai criar um modelo em que o
atendimento passa a ser lotérico – depende de ter informação,
depende de cair em um determinado juízo. Portanto uma política
pública, não o atendimento a varejo de prestações individuais. [...]
Desenvolveu-se certo senso comum que é preciso enfrentar,
que o Judiciário, no caso da judicialização, pondera o direito à
vida e à saúde de uns e, de outro lado, pondera princípios
orçamentários, separação dos poderes. Infelizmente esta não é
a verdade. O que o Judiciário verdadeiramente pondera é direito
à vida e à saúde de uns contra direito à vida e à saúde de outros.
Portanto, não há solução juridicamente fácil nem moralmente
simples nesta matéria.

Repise-se que não se está afirmando que o Judiciário não deve agir diante
das hipóteses de inexistência de políticas públicas ou ainda no caso de sua
ineficiência. O que se pretende construir é uma interferência mais efetiva em prol da
influência que esse Poder deve exercer na edificação das políticas públicas, a fim de
colaborar com os demais Poderes na missão constitucional que lhes é comum de
concretizar a saúde no país ao máximo desejável e possível de forma contínua e
progressiva.
No próximo capítulo, tratar-se-á desse enfoque.

154Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublica/anexo/Luis_Roberto_Barroso.pdf>.
Acesso em: 25 janeiro 2016, grifo nosso.
88

5 A COLETIVIZAÇÃO DAS DEMANDAS NA ÁREA DA SAÚDE EM PROL DA


IMPLEMENTAÇÃO DO MÁXIMO POSSÍVEL: DO PARADIGMA DEFENSIVO
(DA TUTELA) AO DO EXERCÍCIO COLETIVO DO DIREITO FUNDAMENTAL

Iniciou-se o presente estudo com as considerações sobre uma nova


dimensão de direitos consagrados em sede constitucional – para além do indivíduo e
de sua própria geração (direitos coletivos ou difusos) – originando o chamado
Constitucionalismo Fraternal, premissa que se retoma como basilar neste capítulo.
Nesse rumo, ao prescrever o direito à saúde, abrangendo as esferas de sua
promoção, proteção e recuperação, inclusive no que tange aos ditames sanitários e
nutricionais para o asseguramento da qualidade de vida, do equilíbrio do meio
ambiente e do progresso social (viés preventivo), lê-se o comprometimento estatal
não apenas com a geração presente, mas também com as futuras, em um constante
movimento de devir.
Inegável que o projeto constitucional refere-se a uma progressiva
concretização desse direito fundamental, até mesmo porque o próprio avanço da
ciência e da tecnologia engendra novos medicamentos, terapias e condutas capazes
de assegurar cada vez mais e melhor (inclusive em maior escala) a saúde da
população.
Pode-se, com essa reflexão, afirmar que há uma promessa constitucional do
máximo desejável, entendendo-se tal conceito como um horizonte a todo tempo
mutável. Explica-se: o compromisso constitucionalmente assumido é o de
concretizar ao máximo o direito à saúde dos indivíduos e das gerações presentes e
futuras, consideradas as possibilidades do país em termos de riquezas, crescimento
e recursos financeiros. Por essa razão, o máximo prometido submete-se à reserva
do possível, diferentemente do mínimo existencial, conforme assentado
anteriormente.
Sem se distanciar dessa premissa, pretende-se demonstrar a natureza
coletiva ou difusa das pretensões voltadas à concretização do máximo desejável,
89

enquanto a violação do mínimo existencial reverbera na esfera mais íntima e privada


do indivíduo, ferindo sua dignidade.
Da mesma forma que a dimensão individual do direito fundamental à saúde
mereceu destaque nos capítulos anteriores (3 e 4), focar-se-á, neste capítulo
derradeiro, em seu âmbito coletivo/difuso.
Sob essa óptica, parte-se da tutela coletiva do direito à saúde nos moldes
tradicionais, passando pelas inovações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil,
até se alcançar a superação da posição reativa para a de verdadeiro exercício do
direito coletivo à saúde.
Para melhor compreender o que se pretende demonstrar neste tópico,
convém retomar o aspecto histórico das tutelas coletivas, a exemplo da ação
popular, herdada do pragmatismo romano, passando pelo período das codificações
no Brasil, no qual se pretendeu aniquilar a noção de coletivo, substituindo-a pela
concepção dicotômica de público e privado.
Nesse sentido, relembra José Isaac Pilati155 que, nos tempos dos
jurisconsultos clássicos, havia diversas ações e interditos de cunho popular, por
meio dos quais os cidadãos de reputação ilibada podiam apresentar-se como
demandantes e cujo interesse coletivo preferia, inclusive, o de cunho meramente
pessoal.
Fredie Didier Jr e Hermes Zaneti Jr156, na mesma linha de intelecção,
sinalizam a ação popular romana, na defesa da coisa pública, como decorrência do
forte vínculo e sentimento que o romano possuía em relação aos bens públicos,
notadamente pela profunda convicção de que a coisa pública (a República)
pertencia ao cidadão, ou melhor, à coletividade de cidadãos. Diante dessa visão,
interessava à República que muitos fossem os defensores de sua causa.
Corroborando o breve retrospecto, Daniel Amorim Assunpção Neves 157 indica
que, para os países de tradição romano-germânica, tal qual o Brasil, a origem da
tutela coletiva se confunde com a das ações populares do Direito Romano. Em sua
visão, as ações populares romanas podem ser explicadas pela definição elástica do
papel do Estado de então, motivo pelo qual o cidadão romano concebia a res publica

155 PILATI, José Isaac. Função social e tutelas coletivas: contribuição do Direito Romano a um novo
paradigma. Jurisprudência Catarinense. v. 106, 2004, p. 189.
156 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil - Processo coletivo.

7. ed. Salvador: Jus Podivum, 2012, p. 25.


157 NEVES, Daniel Amorim Assunpção. Manual de processo coletivo. 2. ed. São Paulo: Método,

2014.
90

como pertencente a todo o povo romano, considerados coproprietários dos bens


públicos e, assim, legitimados para pretender sua defesa que, a despeito de vincular
todos os demais, não deixava de significar uma pretensão relativa a direito próprio
dos cidadãos autores. De acordo com a linha do tempo dada pelo autor:

No início, a ação popular romana voltava-se a pretensão


predominantemente de caráter penal, com pedidos de caráter inibidor
de conduta lesiva e com a cominação de multa ou alguma espécie de
pena pecuniária a ser admitida por parte do transgressor. Com o
desenvolvimento do instituto, a ação popular romana passou a tutelar
cada vez mais situações de direito transindividual, ainda que
fortemente relacionada à defesa das coisas públicas e de caráter
sacro. Ações pro libertate, para a defesa da liberdade, pro tutela, na
defesa de interesses do pupilo, e ex lege Hostilia, para a proteção
dos bens de ausente vítima de furto, eram ações que se justificavam
pelo interesse geral no cumprimento da lei, o que demonstra o
interesse transindividual dos interesses tutelados.
Com a queda do Império Romano, as actiones populares do direito
romano não resistiram ao direito bárbaro, permanecendo não
aplicáveis durante o período feudal, sem reentrância nas monarquias
absolutistas, tampouco no direito canônico. Significa que o direito
intermédio representou um período sombrio para as ações coletivas,
sendo apontado pela doutrina como marcos do renascimento da
ação popular a Lei Comunal, de 30 de março de 1836, na Bélgica, e
a Lei Comunal, de 18 de julho de 1837, da França, que teriam
servido de base para a ação popular eleitoral italiana de 1859.158

No Brasil, apesar da tímida existência da ação popular, de vigência


compreendida entre o período Imperial e o início da República, época das
Ordenações do Reino, Didier e Zaneti159 sinalizam o seu aniquilamento com o
Código Civil de 1916, legislação que, como sinal do seu tempo, expressava o
individualismo, a propriedade privada, a autonomia da vontade e o direito de agir do
lesado (direito subjetivo individual) como base do sistema jurídico.
Acerca da reflexão, vale transcrever a seguinte passagem:

O direito ao processo como conhecemos hoje foi fortemente


influenciado pelo liberalismo e pelo iluminismo. A partir do século
XVII, com a difusão do método cartesiano e da lógica racionalista na

158 NEVES, 2014, p. 01.


159 Desse modo, a Codificação de 1916, comprometida com a completude e exclusividade do sistema,
rechaçou qualquer possibilidade de tutela coletiva, vinculando textualmente (em seu art. 76) legítimo
interesse para propor uma ação à defesa de um interesse moral ou econômico do demandante ou
sua família. Somente na Constituição de 1934, há expressa menção à ação popular, ainda que
suprimida pela Carta de 1937. Restabelecida pela Constituição de 1946, manteve-se nos textos
constitucionais subsequentes, destacadamente no da CRFB de 1988, elencada como direito
fundamental (art. 5º, LXXIII). DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012.
91

Europa continental, foi cristalizada a ideia da propriedade individual,


da autonomia da vontade e do direito de agir como atributos
exclusivos do titular do direito privado, único soberano sobre o
próprio destino e do direito subjetivo individual (base de todo o
sistema). Só ao titular do direito lesado cabia decidir se propunha ou
não a demanda. Era o início dos Estados-Nação, da vinculação da
jurisdição à soberania estatal e da futura “Era dos Códigos”. Neste
projeto jurídico não havia mais espaço para o direito da coletividade
no sistema, as preocupações sistemáticas voltavam-se apenas para
o indivíduo, a formação de sua personalidade jurídica, seus bens,
suas relações familiares e a sucessão patrimonial.160

Inegável que a promulgação de uma constituição democrática e de cunho


social no país (a CRFB de 1988), alinhando diversos novos direitos aos já
consagrados como fundamentais, propiciou a (re) descoberta da tutela coletiva como
forma de efetivação e concretização constitucional.
Somado a isso, deve-se também aos estudos dos processualistas brasileiros,
com clara influência italiana, o resgate e a evolução das tutelas coletivas, inclusive
com influência da class actions norte americana (vide CDC), cuja raiz deriva das
ações coletivas de classes do direito anglo-saxão.
Independentemente de seu acidentado histórico no direito brasileiro, a tutela
coletiva é hoje consagrada tanto no âmbito constitucional como infraconstitucional, a
exemplo da ação popular, da ação civil pública, do mandado de segurança coletivo,
e das ações coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos entre outras.
Pode-se, ainda, reconhecer um campo bastante fértil a futuros desdobramentos
desse tipo de tutela, haja vista o tanto que tende a se desenvolver no atual estágio
da sociedade contemporânea, notadamente a partir do paradigma fraternal. Freddie
e Zaneti161 apontam, segundo opiniões de processualistas como Nelson Nery Jr e
Rosa Maria Nery, as ações de controle de constitucionalidade (Ação Direita de
Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade) como uma
modalidade crescente de tutela coletiva, porquanto para o controle abstrato das
normas inexiste interesse subjetivo individual, mas difuso, de toda a coletividade na
higidez da norma federal ou estadual em comparação com o texto da CRFB.
Antes de assentar o direito à saúde no quadro dos direitos coletivos lato
sensu (difusos, coletivos e individuais homogêneos), cumpre uma breve definição de
tutela coletiva, bem como de direitos coletivos.

160 DIDIER JR., ZANETI JR., 2012, p. 26.


161 Ibidem, p. 45.
92

Tutela jurisdicional coletiva pode ser entendida como a:

[...] proteção que se confere a uma situação jurídica coletiva ativa


(direitos coletivos lato sensu) ou a efetivação de situações jurídicas
(individuais ou coletivas) em face de coletividade, que seja titular de
uma situação jurídica coletiva passiva (deveres ou estado de
sujeição coletivos).162

De outro vértice, denominam-se direitos coletivos lato sensu os direitos


coletivos entendidos como gênero do qual decorrem como espécies os direitos
difusos, os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos.163
Segundo a classificação doutrinária proposta, são direitos difusos (a teor do
art. 81, parágrafo único, inciso I, do CDC) os entendidos como transindividuais
(também definidos como metaindividuais, porque são pertencentes a uma
coletividade), indivisíveis (consideram-se em sua totalidade), possuindo como
titulares pessoas não individualizáveis (sujeitos indeterminados) que, sem relação
jurídica precedente, apresentam-se ligados por circunstância de fato, tal qual a
ofensa ao meio ambiente ou à moralidade administrativa, afetando um número
incalculável de pessoas (dependendo até de futuras gerações), de modo que a coisa
julgada decorrente de sentença de procedência nesse tipo de demanda será sempre
erga omnes, atingindo a todos de maneira idêntica.164
Por sua vez, os direitos coletivos stricto sensu materializam-se (consoante
a regra do art. 81, parágrafo único, inciso II, do CDC) quando há direitos
transindividuais, de natureza indivisível, de determinado grupo, classe ou categoria
de pessoas (determináveis, registre-se) ligadas entre si por relação jurídica base
preexistente à lesão. Nesse caso, a coisa julgada será ultrapartes, ainda que
limitada ao agrupamento em questão.165
Ao final, mas não menos importante, tem-se os direitos individuais
homogêneos como uma categoria de direitos coletivos, que respondem ao
fenômeno da massificação das relações jurídicas, conferindo ao direito individual
uma clara dimensão coletiva em razão da sua padronização, ou melhor, de sua
homogeneidade. De acordo com Didier e Zaneti166, a gênese desse tipo de direito

162 DIDIER JR., ZANETI JR., 2012, p. 44.


163 Ibidem, p. 75.
164 Ibidem, p. 76.
165 Ibidem, p. 76.
166 Ibidem, p. 78.
93

está na class actions for damages do direito norte-americano. Caracterizam-se,


portanto, na dicção do CDC, como decorrentes de uma origem lesiva comum, ou
seja, o nascimento do direito é consequência da própria lesão ou ameaça de lesão a
ligar as partes em uma relação jurídica pós-conduta comissiva ou omissiva do
lesante.
Reforça-se que o fato de se poder individualizar as pessoas prejudicadas não
retira a possibilidade e conveniência da ação coletiva, sobretudo pelo caráter
uniforme da pretensão conjunta a fomentar um provimento genérico na demanda,
cuja eficácia erga omnes permite, ainda em sede de liquidação de sentença, a
reclamação individualmente perseguida de certas peculiaridades de cada
prejudicado.167
Em suma, trata-se de albergar em uma tese jurídica geral, relativamente a
determinado fato, interesses de inúmeras pessoas prejudicadas que, sem essa
possibilidade, teriam que reclamar suas pretensões individualmente.
Pois bem, com base nesse panorama, certamente sem esgotá-lo, mas, antes,
situando os tipos de direitos e tutelas coletivas no país, passa-se à análise do direito
fundamental à saúde e seu enquadramento como um direito de abrangência
coletiva.
Nos capítulos antecedentes, tratou-se destacadamente do direito à saúde em
seu âmbito mais primário, aqui denominado de mínimo existencial que, por se referir
às necessidades mais básicas a serem satisfeitas pelo Estado, situa-se na esfera
dos direitos de primeira e segunda dimensões (liberdade e igualdade). Muito já se
disse acerca de seu contorno e sua sindicabilidade junto ao Poder Judiciário. O que
se pretende agora é delinear o direito à saúde em todo o seu alcance constitucional,
vale-se dizer, desvelar seu caráter coletivo, alçando-o à terceira dimensão dos
direitos fundamentais.

5.1. O DIREITO À SAÚDE E SUA DIMENSÃO COLETIVA: EM PROL DE UM NOVO


PARADIGMA JURÍDICO

167 DIDIER JR., ZANETI JR., 2012, p. 79.


94

O direito à saúde, por sua natureza e propósito prospectivo e progressivo,


demonstra ser, essencialmente, um direito coletivo, sem negligenciar, todavia, o
respeito à concretização, no plano individual, do mínimo existencial.
A propósito do afirmado, vale transcrever os ensinamentos de Ingo Wolfgang
Sarlet168:

Os direitos fundamentais da terceira dimensão, também


denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem
como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da
figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à
proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e
caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade
coletiva ou difusa.

A saúde pública, assim entendida a partir da leitura do art. 196 da


Constituição, em todo o seu âmbito de proteção, configura-se direito difuso, por
excelência, ainda que permita ser pleiteada como direito individual (homogêneo).
Sob esse viés, considera-se esse direito social fundamental como de eficácia
progressiva, devendo sua tutela ser assegurada por meio dos instrumentos
processuais voltados a concretizar os direitos prestacionais diante da inércia do
Poder Público.
Clève169 defende, pois, a necessidade de potencialização de instrumentos
como “[...] a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a arguição de
descumprimento de preceito fundamental e o mandado de injunção [...]” como
mecanismos de concretização dos direitos sociais. Todavia, reconhecendo a
fragilidade dos mencionados meios processuais, notadamente do primeiro (controle
objetivo) e do último (controle subjetivo), aposta nos mecanismos processuais já
consagrados no país, especialmente as ações coletivas, com relevante destaque à
ação civil pública.
Em suas palavras:

O manejo da ação civil pública pode trazer importante contribuição


para a efetivação dos direitos fundamentais, especialmente quando

168 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais – uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 12 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 48.
169
CLÈVE, 2003, p. 158.
95

voltada para a implementação das políticas necessárias à realização


progressiva dos direitos.170

A ação civil pública tem se mostrado, na conjuntura atual, forte instrumento na


concretização do direito à saúde, especialmente em um contexto no qual até mesmo
as políticas públicas já instituídas carecem de cumprimento regular, não desafiando,
nesse passo, o manejo da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, da
arguição de descumprimento de preceito fundamental ou do mandado de injunção.
Projeta-se para o futuro uma importância ainda maior a esse instrumento de
defesa dos direitos coletivos (individuais homogêneos, transindividuais e difusos),
principalmente no que concerne à efetivação do máximo prometido.
Em que pesem essas considerações, o Novo Código de Processo Civil (Lei
n. 13.105/2015), em comparação ao Diploma anterior (Lei n. 5869/73), de cunho
marcadamente individualista, avança muito pouco em prol de uma tutela processual
coletiva, deixando, inclusive, de sistematizar melhor institutos esparsos como a ação
civil pública.
Dentre as justificativas comumente levantadas para tal realidade, releva-se a
de que tramitava na Câmara dos Deputados, concomitantemente ao Anteprojeto de
Código de Processo Civil, o Projeto de Lei n. 5.139/2009, voltado à revisão da Lei da
Ação Civil Pública e à instituição de um Sistema Único Coletivo, capaz de ordenar as
ações coletivas à tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos,
notadamente para proporcionar a racionalização do processo e do julgamento dos
conflitos de massa.171

170
Ibidem, p. 158
171 O Projeto de Lei n. 5.139/2009 teve alterações, em seu texto original, formuladas pela Comissão
de Juristas do Ministério da Justiça e, posteriormente, foram realizadas mudanças pela Casa Civil da
Presidência da República, seguindo o texto para exame do Congresso Nacional e apresentação de
sugestões por instituições que se demonstrarem interessadas. O relator do projeto, o Deputado
Antônio Carlos Biscaia, apresentou, então, parecer substitutivo ao projeto de lei, em setembro de
2009. Em novembro, foi apresentado o terceiro substitutivo ao projeto de lei da ação civil pública,
incorporando 17 alterações, que resultaram dos debates travados no âmbito da Subcomissão
Especial instituída para apreciar a matéria. Após inúmeros debates na Subcomissão Especial,
constituída para analisar o projeto, esse provocou discussões na Câmara dos Deputados, e, em 4 de
março de 2010, adveio uma nova versão do Projeto n. 5.139/2009,acolhendo algumas emendas
propostas e trazendo ao texto modificações, como o fim da previsão de submissão da sentença de
improcedência ao reexame necessário e a previsão de crime para o retardamento ou omissão
injustificados de dados técnicos essenciais à propositura de uma ação civil pública. No dia 17 de
março de 2010, o referido projeto foi rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara
dos Deputados, em uma votação por maioria, de 17 votos a 14, ao fundamento de falta de debate e
de discussão pública. Aqui, podemos ver mais um retrocesso para a tutela coletiva em nossa história,
vez que o referido projeto acolhia diversas teses doutrinárias e jurisprudenciais, além de ser fruto do
trabalho de inúmeras entidades representativas, como forma de tentar pôr fim às polêmicas e às
96

Lastimável ter-se perdido a oportunidade de sistematizar no Novo Código de


Processo Civil o processo verdadeiramente coletivo, inaugurando-se um paradigma
de jurisdição participativa, com ampla possiblidade de construção das soluções dos
chamados conflitos de alta complexidade (dentre os quais se destacam os conflitos
coletivos na saúde)172, superando a lógica do processo civil tradicional e imprimindo
um viés preventivo às eventuais lesões de direitos.
A despeito do registro, e ainda que com um “pé no passado”, o novo Diploma
Processual alça alguns voos panorâmicos sobre o paradigma jurídico da
pós-modernidade que, na definição de Pilati173, afunilando os conceitos gerais e
adaptando à realidade do direito, significa a (re) descoberta da titularidade coletiva
em contraposição à noção da modernidade de estatização do público, separando o
Estado da Sociedade e alçando-o a uma posição hierárquica superior. Admite-se,
portanto, a coexistência de três classes de bens: bens públicos, bens privados
(individuais) e bens coletivos.
Nas palavras do autor:

A Pós-Modernidade Jurídica não é, pois, uma proclamação de


direitos e muito menos um conjunto inane de princípios
hermenêuticos, ao sabor da Modernidade. É uma nova prática,
legitimada pela Constituição; e que reclama a necessidade de operar
uma nova realidade jurídica. Uma Teoria Pós-Moderna do Direito,
que redefina objetos, sujeitos e processos, e abra espaço para novas
práticas jurídicas em favor do Estado, dos Indivíduos e da
Sociedade; que reintroduza na mediação do Direito a dimensão
coletiva, a começar pela ampliação da classificação dos bens.
Ao lado dos bens públicos e privados da Modernidade, inaugura-se
uma terceira classe, que são os bens coletivos constitucionais:
aqueles pertencentes à Sociedade, e que se pautam e exercem no

lacunas existentes, como a simplificação das regras de competência e a criação de um cadastro


coletivo de ações. (PINHO, Humberto Dalla Bernardina. Incidente de Conversão da ação individual
em coletiva no CPC projetado: Exame Crítico do Instituto. Disponível em:
<http://www.processoscoletivos.net/revista-eletronica/63-volume-4-numero-3-trimestre-01-07-2014-a-
30-09-2014/1459-incidente-de-conversao-da-acao-individual-em-acao-coletiva-no-cpc-projetado-
exame-critico-do-instituto>. Acesso em: 5 maio 2016).
172 PILATI. José Isaac. Audiência Pública na Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2015, p. 9. Na visão desse autor, o Judiciário precisa promover uma mudança na sua cultura jurídica
a fim de poder enfrentar os conflitos de maior complexidade, entendidos estes como os conflitos
coletivos ou de expressiva repercussão social. Em suas palavras: “O direito material e processual que
praticamos está voltado para o plano individual estanque; não temos, ou melhor, ainda não
desenvolvemos um tipo de processo que alcance e deduza em juízo a verdadeira extensão dos
conflitos; que os enfrente desde a causa, na fonte das mesmas demandas repetitivas, dos grandes
litigantes e dos grandes vazios jurídicos que escarnecem da Justiça”.
173 PILATI, 2015.
97

âmbito da soberania participativa. Os bens passam a ser públicos,


privados e coletivos.174

Passa-se, pois, ao exame desses novos institutos introduzidos pelo Código


de Processo Civil de 2015.

5.2 INSTRUMENTOS TENDENTES À COLETIVIZAÇÃO DE CERTAS DEMANDAS


NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: PRÓS E CONTRAS NO CASO
ESPECÍFICO DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE

Como já exposto anteriormente, a Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015


(NCPC), deixa muito a desejar no que concerne à construção do novo paradigma
participativo para o exercício dos direitos coletivos, a partir da soberania
compartilhada (art. 1º, inciso I, parágrafo único, da CRF/88)175.
No entanto, algumas novidades trazidas por esse novo Diploma merecem
destaque, especialmente as que guardam relação com a dimensão coletiva do
processo civil e, em última instância, com o cerne do presente capítulo, ou seja, com
a conformação de um novo modelo jurídico para atender à questão da saúde pública
no país.
Sob esse prisma, não se pode deixar de analisar a tentativa de coletivização
da demanda individual quando, segundo os critérios legais, é perceptível a sua
complexidade ou evidente a repercussão geral na sociedade, além de situada a
ofensa na dimensão coletiva do direito em foco, ultrapassando a esfera meramente
privada do demandante.
Talvez pela falta de aprofundamento da ideia ou mesmo pela ausência de
debates acerca do instituto, o dispositivo que introduziu a novidade na ordem
processual – incidente de coletivização da demanda individual – acabou sendo
vetado, conforme será explanado a seguir.

174Ibidem, p. 25.
175Segundo José Isaac Pilati, em razão do reconhecimento de uma terceira categoria de bens, os
bens coletivos, necessariamente se inclui, na condição de sujeito de direito, o Sujeito Coletivo,
demandando, portanto, a construção de um novo paradigma jurídico que, na óptica do autor,
perpassa necessariamente por um processo administrativo participativo, por lei participativas (a
exemplo do plano diretor) e, por fim, mas não menos importante, um Judiciário disposto à
democratizar o processo judicial, tornando-o participativo nos casos autorizados constitucionalmente,
como no do SUS (Lei n. 8080/90). PILATI, 2015, p. 26.
98

5.2.1 A previsão do artigo vetado que possibilitava a coletivização da demanda


individual no Novo Código de Processo Civil

Um dos institutos que visava à coletivização das demandas individuais de


repercussão social, de incontestável relevância para a análise deste trabalho,
acabou sendo vetado, após grande polêmica em torno de suas consequências.
Conforme a previsão original do art. 333 do Novo Código de Processo Civil,
esta era a redação proposta:

Art. 333. Atendidos os pressupostos da relevância social e da


dificuldade de formação do litisconsórcio, o juiz, a requerimento do
Ministério Público ou da Defensoria Pública, ouvido o autor, poderá
converter em coletiva a ação individual que veicule pedido que:
I - tenha alcance coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso
ou coletivo, assim entendidos aqueles definidos pelo art. 81,
parágrafo único, incisos I e II, da Lei no 8.078, de 11 de setembro de
1990 (Código de Defesa do Consumidor), e cuja ofensa afete, a um
só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade;
II - tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a
uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, por sua
natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente
uniforme, assegurando-se tratamento isonômico p/ todos os
membros do grupo.

Segue, na sequência, o argumento oficial do veto:

Veto: Poderia levar à conversão de ação individual em ação coletiva


de maneira pouco criteriosa, inclusive em detrimento do interesse
das partes. O tema exige disciplina própria para garantir a plena
eficácia do instituto. Além disso, o novo Código já contempla
mecanismos para tratar demandas repetitivas. No sentido do veto
manifestou-se também a OAB.

Na opinião de Cássio Scarpinella Bueno176, o veto não possui fundamentos


suficientemente fortes a justificá-lo, porquanto baseado no mero receio da má
compreensão ou da má aplicação do novo instituto, não afetando, de modo algum, a
tutela aos direitos individuais:

A tutela adequada e suficiente do interesse das partes, inclusive do


“direito individual” que justificou o rompimento da inércia jurisdicional,

176BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva,
2015, p. 249-250.
99

estava expressa nos §§ 6º, 7º e 9º do art. 333,177 no amplo


contraditório a ser travado antes da conversão (caput, §§ 5ºe 10º do
art. 333178) e, até mesmo, no limite procedimental da transformação
da ação individual em coletiva (inciso I do § 3º do art. 333179) para
preservar a fluidez do processo individual originário).
Quanto ao entendimento de que o tema merece “disciplina própria” (e
o art. 333 não lhe dava uma, de forma suficiente?) e que o Novo
CPC já trata de “mecanismos para tratar demandas repetitivas”, cabe
afirmar que, infelizmente, tem prevalecido o entendimento em
direção ao esvaziamento e ao enfraquecimento dos processos
individuais que têm início na primeira instância. O veto do art. 333 é
prova segura e mais recente disto, como suas próprias razões
evidenciam. Tanto que as “demandas repetitivas” do novo CPC são,
de acordo com o art. 928, aquelas provenientes dos Tribunais de
cima para baixo.180

E, conclui o mesmo autor, afirmando que o art. 333, combinado com o art.
139, inciso X (possibilidade de agravo da decisão que coletiviza ou não a demanda
judicial individual), teria o condão de completar a tutela jurisdicional de direitos e
interesses coletivos, ao lado de outras técnicas, reduzindo, significativamente, o
número de processos no Judiciário, “motivo de tanto aplauso quando o tema são os
mecanismos verticalizados de coletivização, inclusive o Incidente de Resolução das
Demandas Repetitivas”181.
De outro vértice, corroborando as razões do veto, tem-se na doutrina de
José Rogério Cruz e Tucci182.

A moderna concepção publicística do processo civil não implica


dilatação do poder estatal, mediante o exercício ilimitado da atividade
jurisdicional, mas, sim, pressupõe a existência de um juiz,
independente e imparcial, na direção dos atos processuais, seguindo
normas legais predispostas, tendentes a tutelar direitos que
reclamam proteção, submetidos à cognição do Poder Judiciário por
exclusiva iniciativa dos respectivos titulares ou de quem é legitimado

177 “[...] § 6º O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário do
legitimado para condução do processo coletivo. § 7º O autor originário não é responsável por
nenhuma despesa processual decorrente da conversão do processo individual em coletivo. [...] § 9º A
conversão poderá ocorrer mesmo que o autor tenha cumulado pedido de natureza estritamente
individual, hipótese em que o processamento desse pedido dar-se-á em autos apartados.”
178 “[...] § 5º Havendo aditamento ou emenda da petição inicial, o juiz determinará a intimação do réu

para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias. [...] § 10. O Ministério Público deverá ser
ouvido sobre o requerimento previsto no caput, salvo quando ele próprio o houver formulado.”
179 “[...] § 3º Não se admite a conversão, ainda, se: I – já iniciada, no processo individual, a audiência

de instrução e julgamento [...] ”


180 BUENO, 2015, p. 249-250.
181 Ibidem, p. 250, grifo do autor.
182 TUCCI, José Rogério Cruz e. Paradoxo da Corte - um veto providencial ao Novo Código de

Processo Civil! Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-17/paradoxo-corte-veto-


providencial-cpc>. Acesso em: 5 maio 2016.
100

a agir em nome próprio defendendo interesses alheios. Viceja


destarte a instrumentalidade do processo como vetor
institucionalizado em prol da efetivação do direito material.
Assim, firme nesse postulado, acredito que deve ser combatida
qualquer tentativa de romper o paradigma da inércia da jurisdição,
com a imposição de um processo de matriz autoritária, que, a
pretexto de prestigiar os princípios fundamentais da duração razoável
e da economia processual, vulnere o direito individual do cidadão, a
exemplo, aliás, da regra – agora solenemente vetada – do artigo 333
do CPC, na redação então aprovada no Senado Federal, que
regrava o disparatado incidente de coletivização da demanda
individual.

Ainda que se possa ponderar os argumentos contrários ao incidente vetado, a


verdade é que a coletivização da demanda individual na área da Saúde permitiria
traçar um panorama geral da situação, bem como questionar, com maior
propriedade e profundidade, a incompletude da listagem oficial do SUS, os impactos
orçamentários de sua ampliação, entre outros temas recorrentes que, discutidos em
ações individuais, nunca chegam a ser apreciados em sua totalidade,
permanecendo o problema original de que decorrem diversas outras demandas
individuais e assim por diante.
Há uma experiência semelhante, introduzida pelo Protocolo 14, de 2009, na
Corte Europeia dos Direitos do Homem, que consiste, basicamente, na ideia de
coletivização de uma demanda individual (desde que respeitados os critérios legais).
Em resumo, quando um cidadão provoca a jurisdição da Corte Europeia,
tendo em vista ofensa perpetrada por um dos países signatários da Convenção
Europeia para a tutela dos direitos humanos, a demanda (individual na origem) pode
ser coletivizada ao exclusivo arbítrio da Corte, cujo mote será examinar melhor a
matéria e, ao final, condenar o Estado demandado a regulamentá-la, de modo geral,
ou seja, para todos os cidadãos potencialmente interessados.183
O Incidente da Coletivização da Demanda Individual poderia ser um excelente
instrumento, considerado o paradigma participativo na saúde, de ampliação do
debate e, sobretudo, de concretização do primado da isonomia, sem favorecimento

183Na lição de José Rogério Cruz e Tucci, tal coletivização sofre, também, no âmbito internacional,
severas críticas: “Já sob outro enfoque, à luz da comparação jurídica, tem sido muito criticada uma
novidade, introduzida pelo Protocolo 14, de 2009, no âmbito da Corte Europeia dos Direitos do
Homem (Tribunal de Estrasburgo), consistente no processo de “arrêt pilote” – julgamento piloto”.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Paradoxo da Corte - Um veto providencial ao Novo Código de
Processo Civil! Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-17/paradoxo-corte-veto-
providencial-cpc>. Disponível em: 5 maio 2016.
101

dos indivíduos que acessam mais facilmente ao Judiciário, nem sempre os mais
carentes.
Malgrado o insucesso, há ainda outra possibilidade de coletivização da
demanda. O denominado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR),
atualmente em vigor, representa técnica de coletivização pelo julgamento que,
coexistindo com a possibilidade de coletivização pelo ajuizamento da demanda
(consoante leis específicas da tutela coletiva), tem como pretensão primeira
uniformizar a solução das demandas repetitivas, entre elas, destacadamente, as
relativas à saúde pública.
Tramitam hoje no Estado de Santa Catarina aproximadamente vinte e cinco
mil demandas relativas à saúde em geral, a maioria de cunho individual, sendo crível
presumir a diversidade de entendimentos e disparidade das soluções dadas a casos
absolutamente idênticos, caracterizando verdadeira “loteria” jurídica o julgamento em
um ou outro sentido.184
Somente, em 2015, foram propostas 9.976 novas demandas, estabelecendo
uma média de 831 novas ações a cada mês. Em 2016, nos três primeiros meses do
ano (janeiro, fevereiro e março), registraram-se 2.883 novos pleitos na área da
assistência à saúde, muitos deles tratando da mesma temática.185
Diante dessa realidade, o IRDR pode representar um avanço à prestação
jurisdicional célere e mais efetiva.
A título de informação, registre-se que foi admitido o primeiro IRDR no
Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em 11/05/2016, versando sobre a
exigibilidade ou não de hipossuficiência do paciente que reclama a dispensação de
medicamentos contra os entes públicos e ainda se devem ser diferenciados os
casos de insumos padronizados daqueles fora da listagem oficial.

5.2.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas

O Novo Código de Processo Civil inaugura importante instrumento jurídico em


prol da coerência, isonomia e segurança jurídica para o tratamento das demandas

184 O número de demandas pendentes na área da Saúde em geral é alarmante no Estado de Santa
Catarina (e, imagina-se, nos outros Estados da Federação). No primeiro grau, foram encontrados
23.624 processos e, nas Câmaras de Direito Público, 1.842 processos, além dos 55 processos
pendentes em outros Órgãos Julgadores desse Tribunal.
185 Sistema MEJUD e SGM, da Secretaria de Estado da Saúde.
102

repetitivas, pretendendo sua uniformização e, em última instância, a estabilização


das relações sociais, essencial ao Estado Democrático de Direito.
A seguir, o teor do dispositivo:

Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de


demandas repetitivas quando houver, simultaneamente:
I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre
a mesma questão unicamente de direito;
II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

Segundo a doutrina de José Miguel Garcia Medina, o incidente é cabível


quando se verifica existir controvérsia, unicamente de direito, que se replica em
diversas demandas, interessando a solução da referida questão aos litigantes, em
primeiro lugar, mas servindo indubitavelmente a um propósito maior, qual seja, "[...]
a realização de valores constitucionais, sobretudo o da segurança jurídica"186.
Com esse intuito, o instituto processual pretende concentrar os processos que
“[...] versem sobre uma mesma questão de direito no âmbito dos tribunais e permitir
que a decisão a ser proferida nele vincule todos os demais casos que estejam sob a
competência territorial do tribunal julgador”187.
O rito estabelecido pelo IRDR permite que o órgão indicado no Regimento
Interno de cada Tribunal para uniformizar sua jurisprudência seja o competente para
admitir, processar e julgar o IRDR (no prazo máximo de um ano), fixando a tese
jurídica e, ao mesmo tempo, decidindo o recurso específico que o originou:

Art. 978. O julgamento do incidente caberá ao órgão indicado pelo


regimento interno dentre aqueles responsáveis pela uniformização de
jurisprudência do tribunal.
Parágrafo único. O órgão colegiado incumbido de julgar o incidente
e de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa
necessária ou o processo de competência originária de onde se
originou o incidente.

Prescreve ainda ampla divulgação e publicidade acerca da instauração do


Incidente188, podendo, inclusive, o relator chamar Audiência Pública 189 a fim de
construir solução multidisciplinar à controvérsia.

186 MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2015, p. 1324.
187 BUENO. 2015, p. 613.
188“Art. 979. A instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica

divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça.


103

Nas demandas envolvendo a dispensação de medicamentos e terapias


protocolares ou não constantes do rol do SUS190, por sua especificidade transbordar
o conhecimento jurídico, a ouvida de especialistas e pessoas ligadas à área
mostra-se de grande valia ao órgão julgador do Incidente, inclusive com perspectiva

§ 1o Os tribunais manterão banco eletrônico de dados atualizados com informações específicas sobre
questões de direito submetidas ao incidente, comunicando-o imediatamente ao Conselho Nacional de
Justiça para inclusão no cadastro.
§ 2o Para possibilitar a identificação dos processos abrangidos pela decisão do incidente, o registro
eletrônico das teses jurídicas constantes do cadastro conterá, no mínimo, os fundamentos
determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados.
§ 3o Aplica-se o disposto neste artigo ao julgamento de recursos repetitivos e da repercussão geral
em recurso extraordinário.
[...]
Art. 982. Admitido o incidente, o relator:
I - suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na
região, conforme o caso;
II - poderá requisitar informações a órgãos em cujo juízo tramita processo no qual se discute o objeto
do incidente, que as prestarão no prazo de 15 (quinze) dias;
III - intimará o Ministério Público para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias.
§ 1o A suspensão será comunicada aos órgãos jurisdicionais competentes.
§ 2o Durante a suspensão, o pedido de tutela de urgência deverá ser dirigido ao juízo onde tramita o
processo suspenso.
§ 3o Visando à garantia da segurança jurídica, qualquer legitimado mencionado no art. 977, incisos II
e III, poderá requerer, ao tribunal competente para conhecer do recurso extraordinário ou especial, a
suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem
sobre a questão objeto do incidente já instaurado.
§ 4o Independentemente dos limites da competência territorial, a parte no processo em curso no qual
se discuta a mesma questão objeto do incidente é legitimada para requerer a providência prevista no
§ 3o deste artigo.
§ 5o Cessa a suspensão a que se refere o inciso I do caput deste artigo se não for interposto recurso
especial ou recurso extraordinário contra a decisão proferida no incidente.”
189Art. 983. O relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e

entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, poderão requerer
a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de
direito controvertida, e, em seguida, manifestar-se-á o Ministério Público, no mesmo prazo.
§ 1o Para instruir o incidente, o relator poderá designar data para, em audiência pública, ouvir
depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria.
§ 2o Concluídas as diligências, o relator solicitará dia para o julgamento do incidente.
190O Sistema Único de Saúde, baseado na medicina de evidência, disponibiliza diversos

medicamentos previamente selecionados com base na eficácia e segurança, compondo, assim, a


listagem oficial denominada RENAME- Relação Nacional de Medicamentos, subdividida em Relação
Nacional de Medicamentos do Componente Básico da Assistência Farmacêutica, Relação Nacional
de Medicamentos do Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica e Relação Nacional de
Medicamentos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica. Este rol é atualizado
frequentemente, consoante os avanços técnicos na área e novas descobertas científicas. Por
intermédio do Ministério da Saúde, mais especificamente da Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias – CONITEC, novas drogas podem ser incorporadas às listagens oficiais, desde que: (a)
sejam avaliadas cientificamente as opções terapêuticas disponíveis no mercado para a melhor
escolha possível; (b) sejam verificadas a eficácia e segurança do medicamento submetido à
incorporação; (c) haja baixa probabilidade de que novos estudos mudem as vantagens apresentadas
pela nova tecnologia em relação às demais; (d) seja observado o “melhor benefício - menor risco” e o
melhor “custo-efetividade. Cumpre esclarecer, por fim, que tal incorporação é regulada pela Lei n.
12.401, de 28 de abril de 2011 (que altera a Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990), dispondo
sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologias em saúde no âmbito do Sistema
Único de Saúde. Disponível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2015/julho/30/Rename-
2014-v2.pdf>. Acesso em: 5 maio 2016.
104

de sedimentar tese jurídica capaz de apaziguar boa parte dos conflitos até então
tratados às migalhas.
Sob esse aspecto em particular, a Audiência Pública, tanto em sede
administrativa, quanto legislativa ou judiciária (hipótese do IRDR), representa, nos
dizeres de Pilati191, a última fronteira para a construção do paradigma jurídico da
pós-modernidade, baseado na ideia de decisão participativa e construída a partir da
realidade, ou seja, analisando-se o conflito em sua totalidade.
Aliás, a temática envolvendo Audiência Pública mostra-se tão relevante, que
dela se ocupa a parte final da presente dissertação, elencando-a como possível
solução ao problema da judicialização da saúde no país, além de servir ao
balizamento da atuação do Poder Judiciário na matéria, sob a perspectiva da
soberania compartilhada.
Sem pretensão de esgotar a polêmica, mas honrando o intuito propositivo do
trabalho, passa-se a uma singela tentativa de sistematização da intervenção judicial
na saúde, corroborando a tendência evidenciada no Novo Código de Processo Civil
de uniformidade dos julgados de casos similares e de respeito ao primado da
segurança jurídica e da igualdade.

5.3 PARAMETRIZANDO A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA ÁREA DA


SAÚDE

A fim de cumprir o propósito de dar tratamento isonômico aos casos idênticos


ou muito similares, que na matéria relativa à postulação de medicamentos, cirurgias
ou tratamentos médicos em geral mostram-se comuns, enumeram-se algumas
premissas, a título de parâmetro à atuação do Judiciário, com base nos escritos de
Barroso192.

5.3.1 Ações individuais

Segundo as conclusões de Barroso193, em demandas individuais, o Poder


Judiciário deveria restringir sua atuação à efetivação da obrigação estatal de

191 PILATI, 2015.


192
BARROSO, 2009, p. 36-42.
193
Ibidem, p. 36.
105

disponibilizar os medicamentos ou as terapias constantes do rol elaborado pelos


entes federativos.
Isso porque, na visão do autor, se estaria assegurando a universalidade das
prestações e preservando a isonomia no atendimento aos cidadãos,
independentemente de seu acesso maior ou menor ao Judiciário. De outro vértice,
conforme o argumento democrático, seria evitada a ingerência desse Poder na
tomada de decisões com repercussão no orçamento público e, em última instância,
na eleição de prioridades e de políticas públicas, alijando-se a participação popular
ainda que indireta (como acontece ao se eleger os representantes do Poder
Legislativo), privilegiando-se o casuísmo judicial.
Em que pesem tais reflexões, estende-se um pouco mais além. Assim,
acredita-se que, nas ações individuais versando sobre pretensões básicas, ligadas à
noção de mínimo existencial (ainda que sem a devida regulamentação pelas
políticas públicas), não se pode negar efetividade ao direito perseguido,
notadamente por sua íntima correlação com a dignidade da pessoa humana e com
os postulados da liberdade fática e da igualdade substancial.
Com efeito, havendo desrespeito a políticas públicas já instituídas (leia-se não
fornecimento de medicamentos ou terapias protocolares, já padronizadas), deve-se
concretizar o direito à saúde na base do tudo ou nada, ou seja, sem efetuar
ponderações ou contraponto, especialmente com a cláusula da reserva do possível
(até porque, como se afirmou anteriormente, mostra-se mais do que razoável,
esperado até, exigir-se do ente estatal o cumprimento do estabelecido
juridicamente). Na hipótese de malferimento à dignidade, igualdade substancial ou
liberdade fática (mínimo existencial), a tutela individual é cabível, devendo-se, no
entanto, ponderar com os demais princípios, inclusive relevando discutir a reserva
do possível, que, repise-se, não se limita a examinar questões orçamentárias,
mas também o que legitimamente pode esperar o cidadão do Estado.
Quaisquer outras pretensões que não se alinhem ao descumprimento de uma
política pública já delimitada ou desafie o mínimo existencial do indivíduo devem ser
deduzidas por meio das ações coletivas, de cujo rol se destaca a ação civil pública.

5.3.2 Ações coletivas


106

As pretensões versando sobre alteração das listas de medicamentos


fornecidos pelo SUS, segundo Barroso194, deveriam ser objeto de ações coletivas
e/ou ações abstratas de controle de constitucionalidade.
Tal assertiva é fundada na concepção do autor de que, se por um lado
descabe ao Judiciário deferir a litigantes individuais medicamentos não incluídos nas
listagens oficiais, de outro, nada impede a discussão judicial de dito rol. No entanto,
o autor propõe que a revisão seja feita apenas no “[...] âmbito de ações coletivas
(para defesa de direitos difusos ou coletivos e cuja decisão produz efeitos erga
omnes no limite territorial da jurisdição de seu prolator)” ou, ainda “[...] por meio de
ações abstratas de controle de constitucionalidade, nas quais se venha a discutir a
validade”195.
O principal argumento a amparar tal parâmetro é o de que, em discussões
coletivas ou abstratas, exige-se um aprofundamento do inteiro contexto da política
pública aplicada, além de facilitar o dimensionamento dos reais custos para a sua
ampliação ou modificação, com bases mais concretas das possibilidades existentes
para tanto.
Interessante observar também que, nesse caso, se evitaria efetivar a
microjustiça (para um caso concreto) em detrimento da macrojustiça
(considerando-se outras necessidades relevantes, somado ao problema da limitação
de recursos versus demandas ilimitadas). Sob essa perspectiva, Barroso196
manifesta-se:

Ora, na esfera coletiva ou abstrata examina-se a alocação de


recursos ou a definição de prioridades em caráter geral, de modo que
a discussão será prévia ao eventual embate pontual entre micro e
macrojustiças.

Por fim, ao endossar a reflexão de Barroso,197 ressalta-se que a produção de


efeitos erga omnes preserva o primado da universalidade e da igualdade no
atendimento à população, baluartes do SUS.
Ainda, na concepção do autor, poder-se-ia elencar, na hipótese de alteração
das listas de medicamentos disponibilizados pelo sistema público de saúde, alguns

194 BARROSO, 2009.


195 Ibidem, p. 39.
196
BARROSO, 2009, p. 39.
197 Ibidem.
107

parâmetros complementares, capazes de orientar as decisões judiciais na temática,


quais sejam: a) o Judiciário só pode determinar a inclusão, em lista, de
medicamentos de eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os
alternativos; b) o Judiciário deverá optar por substâncias disponíveis no Brasil; c) o
Judiciário deverá optar pelo medicamento genérico, de menor custo; e d) o Judiciário
deverá considerar se o medicamento é indispensável para a manutenção da vida.
Tais balizas devem orientar não somente as alterações e inclusões de novos
insumos e terapias nas demandas coletivas, mas também em demandas individuais
versando sobre fármacos ou tratamentos não padronizados que repercutam na
esfera do mínimo existencial e, em última instância, na dignidade, igualdade material
e liberdade fática do cidadão.
Em tempo, complementando o que foi elencado, sobreleva-se a necessidade
de ampliar e aprofundar o debate na área da Saúde, pluralizando e politizando a
discussão com a inclusão de inúmeros agentes sociais e especialmente admitindo a
existência desse novo sujeito de direito, o sujeito coletivo.
Corroborando essa intuição, destaca-se a tese desenvolvida por Fernanda
Vargas Terrazas198 de que, como os direitos sociais são direitos essencialmente
coletivos, a garantia deles de forma individualizada – que ocorre normalmente
quando há a atuação do Judiciário – faz com que haja tratamento diferenciado. E, ao
contrário do que se imagina, essa diferenciação não é feita em benefício das
pessoas que não possuem voz política, mas sim daquelas já consideradas no
processo político.
Essa conclusão é embasada por uma pesquisa empírica levada a efeito junto
aos pacientes atendidos pelo Fornecimento para Ação Judicial (FAJ) que, embora
não seja um órgão na estrutura jurídica da Secretaria da Saúde do Estado de São
Paulo, consiste em uma estrutura física organizada para a entrega mensal de
medicamentos determinados pela justiça aos litigantes em processos judicias em
face do ente estatal.
Após a captura e o cruzamento de uma série de dados das pessoas
atendidas no FAJ, notadamente faixa de renda, escolaridade, tipo de moradia, ser
ou não usuária habitual do SUS, entre outros, conclui a autora que a judicialização

198TERRAZAS, Fernanda Vargas. O Poder Judiciário como voz institucional dos pobres.
Disponível em: <bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em: 1º
maio 2016, p. 80.
108

da saúde não colabora com a democratização do sistema público de saúde,


tampouco com o ideal de justiça social ou de fraternidade. Ao contrário, sua hipótese
é no sentido de que fragiliza ainda mais o grande grupo de indivíduos excluídos
politicamente, destacadamente porque não se consegue superar o modelo
tradicional de solução de conflito, sendo ele próprio fator complicador do problema: a
solução individualizada de uma questão coletiva.199
Assim, acaba por criticar ferrenhamente a judicialização na matéria,
especialmente no modelo tradicional de demanda individual, pois, em sua
concepção, nenhum indivíduo pode titularizar um direito subjetivo sobre uma dessas
coisas em particular (saúde, educação, moradia etc.):

[...] pela mesma razão que um condômino não tem um direito


subjetivo exclusivo e excludente sobre uma parte qualquer de um
bem condominial pro indiviso. O exercício de seus respectivos
direitos está condicionado à possibilidade de exercício simultâneo e
na mesma extensão do direito dos outros condôminos. Dessa forma,
os direitos sociais, por terem o caráter de generalidade e serem
usufruídos coletivamente, a fim de que haja um acesso igualitário aos
respectivos bens sociais, não se ajustam à ideia de individualização.
Isso porque, toda vez que um indivíduo tem acesso a um bem não
distribuído aos demais – nas mesmas condições –, ele está
recebendo um tratamento diferenciado – um privilégio –, o que é
incompatível com a ideia de igualdade e de justiça.200

Ora, encampando-se a ideia da pesquisadora de que a saúde, como bem


coletivo, merece um tratamento diferenciado pela complexidade e diversidade de
interesses envolvidos, capaz de equacionar e construir decisão para a coletividade e
não para os indivíduos, forçoso reconhecer a limitação do processo judicial clássico,
individual e fragmentado na busca pela macrojustiça.201

199 Na pesquisa empírica empreendida pela autora, percebeu-se que 97% dos entrevistados
embasaram seus pleitos judiciais a partir da prescrição de médico particular. Dentre os entrevistados,
89% disseram terem sido orientados pelo próprio médico a promover a ação judicial reclamando a
dispensação do medicamento não padronizado pelo SUS. Ainda, 62% das demandas foram
conduzidas por advogado particular. Por fim, 96% dos entrevistados atestaram utilizar o SUS
somente para receber a medicação em foco, ou seja, não utilizam os serviços médicos do sistema
público. Em matéria de renda, o maior percentual, correspondendo a 38% dos beneficiados, recebem
de 2 a 5 salários mínimos. Dos entrevistados, 58% possuem o ensino médio e 40%, o ensino
superior. Dos pacientes ouvidos, 96% possuem casa própria quitada, enquanto 18% encontram-se
pagando as prestações da casa própria.
200
TERRAZAS. Disponível em:
<bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em: 1º maio 2016,
grifo da autora.
201 Ibidem. A autora demonstra que, assim como acontece com o Estado de Santa Catarina, o Estado

de São Paulo gastou muito mais proporcionalmente falando com o cumprimento de decisões judiciais
109

Para Terrazas202, a questão crucial é superar o mito de que as ações de


medicamento realizam a justiça social, quando, o que se percebe, interpretando os
dados de sua pesquisa empírica, é justamente o contrário.

do que com dispensação ordinária de medicamentos aos usuários do sistema de saúde. Eis suas
considerações: “A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo gastou, no ano de 2006, apenas com
o cumprimento das decisões judiciais da comarca da capital de São Paulo (das pessoas que são
atendidas no FAJ), R$ 65 milhões para atender cerca de 3.600 pessoas. Em comparação, no mesmo
ano, com o Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional (cuja execução é de
responsabilidade estadual), a Secretaria de Saúde gastou R$ 838 milhões para atender 380 mil
pessoas. Isso significa que no Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional foram
gastos, em média, R$ 2.205,00/ano por usuário, enquanto com o cumprimento das determinações
judiciais foram gastos, em média, R$ 18.000,00/ano por beneficiado.” (TERRAZAS. Disponível em:
<bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em: 1º maio 2016.)
202 Extrai-se do texto: “Em relação ao tipo de estabelecimento de saúde no qual foi feita a prescrição

do medicamento solicitado, os resultados indicam que a maioria (60,63%) dos beneficiados por
decisões judiciais foi atendida em serviços de saúde privados. Quanto aos condutores das ações, um
primeiro ponto a destacar é que 60% dos entrevistados tiveram suas ações propostas por serviços
particulares – advogados ou associações. Nesse sentido, merece atenção a atuação das ONGs e
demais associações nesse papel. Dos entrevistados, 21,25% apontaram essas instituições como
condutoras da ação judicial que propuseram. Em um primeiro momento, essa informação poderia
sugerir uma boa organização e estruturação da sociedade civil na proteção dos direitos de
determinados grupos (“portadores da doença X”). Considerável parcela desses 21,25%, porém, não
sabia informar o nome da associação/ONG que lhe prestou assistência judiciária ou, não obstante
conhecesse seu nome, nunca havia frequentado tal instituição, não sabia onde era sua sede etc. O
contato era feito por meio de telefone, correio e e-mails. Além disso, os entrevistados não pagavam
nenhum tipo de mensalidade ou contribuição para essas associações desconhecidas ou pouco
conhecidas. Cruzando os dados das ações que foram conduzidas por associações/ONGs com a dos
medicamentos solicitados (tabela 15), constatou-se que das 34 pessoas que disseram que o condutor
da sua ação judicial havia sido uma associação/ ONG, 23 haviam solicitado medicamentos para
artrite reumatoide (67,65%). Coincidentemente, eram os solicitantes desses medicamentos
específicos que não sabiam informar o nome da associação/ONG que lhe prestou o serviço de
assistência jurídica. Enquanto na contagem geral 60% dos entrevistados eram oriundos da rede
privada, quando são analisados somente aqueles que solicitaram medicamentos oncológicos, 84%
dos entrevistados são oriundos da rede privada.
A distribuição das faixas de renda também muda. Há maior concentração nas faixas de dois até cinco
salários mínimos e nas de mais de cinco salários mínimos. Modo como o entrevistado classifica sua
vizinhança. Somando as opções “classe média” e “classe média baixa”, cerca de 70% dos
entrevistados classificaram sua vizinhança como de classe média. Esse número parece retratar de
forma fiel o grupo que predomina como propositor das ações. Pessoas razoavelmente informadas,
que utilizam a rede privada na atenção à saúde, mas que, quando precisam de um medicamento de
custo mais elevado – que não conseguem pagar ou que pagariam com dificuldade –, recorrem ao
SUS. Isso porque este deve garantir seu direito à saúde, que nesse caso é composto por uma única
prestação estatal: o fornecimento de medicamentos de custo elevado.
Primeiramente, e partindo das impressões obtidas durante a realização da pesquisa empírica,
destaca-se que, independentemente de qualquer variável, aqueles que obtêm uma decisão judicial
favorável ao fornecimento de medicamentos são cidadãos privilegiados. Isso porque eles têm acesso
a bens diferenciados e a um tratamento distinto daqueles normalmente oferecidos aos usuários do
SUS.
Recebem frequentemente os medicamentos considerados mais modernos e a falta dos
medicamentos, quando ocorre, é prontamente sanada. Outro filtro a selecionar esse público
diferenciado é o acesso à informação. Isso porque para chegar até o Poder Judiciário e conseguir
uma decisão favorável, além de poder pagar por um advogado ou ter assistência judiciária gratuita –
acesso à Justiça –, é preciso antes saber que existe esse caminho. Sendo assim, quem vai até um
juiz para conseguir medicamentos, normalmente possui um nível de instrução ou renda que lhe
permite ter a informação de que por meio de uma ação judicial é possível obter medicamentos
gratuitamente do SUS”. O Poder Judiciário como voz institucional dos pobres. Disponível em:
<bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em: 1º maio 2016).
110

5.4 A AUDIÊNCIA PÚBLICA COMO FORMA DE POLITIZAÇÃO E


DEMOCRATIZAÇÃO DA TEMÁTICA NAS TRÊS ESFERAS DE PODER

Ao retomar a noção de saúde pública como direito coletivo por excelência, é


imprescindível repensar a forma pela qual se delibera e decide sua concretização,
bem como se solucionam os conflitos decorrentes de sua ineficácia no meio social.
Figurando a saúde pública ao lado e em complemento a um meio ambiente
sadio (com qualidade de vida!) como um bem coletivo, na concepção defendida por
Pilati203, dever-se-ia primar por um processo decisório participativo nas três esferas
de poder, pois, “em face da CRFB/88, os bens coletivos já não são monopólio da
soberania representativa, que os tratava como mero caso de polícia entre Estado e
infrator”.
Diante dessa nova realidade (ou melhor, complexidade), afirma o autor à
urgência de um “[...] devido processo legal participativo pós-moderno[...]”, apto a
construir a “[...] solução coletiva de direito aplicável à espécie; como se fosse um
condomínio social, que contempla, ouve, e ao decidir, procura atender a todos os
interesses, distribuindo de forma justa os ônus e bônus sociais”204.
Essa, aliás, é a verdadeira feição do SUS, extraindo-se dos arts. 196 a 200 da
CRFB o fundamento participativo da assistência à saúde pública.
Novamente, recorrendo-se aos ensinamentos de Pilati205, vale a transcrição
da seguinte passagem:

Na verdade, o SUS é um sistema participativo, e o papel do


Judiciário nesse caso, primordialmente, é de garantir que o SUS
funcione como SUS, com participação. [...] o SUS deve estar
habilitado a resolver o assunto de acordo com a natureza
democrático-participativa do SUS; como propriedade de todos os
brasileiros, então, o SUS não se coaduna com um processo
constante de intervenção judicial autocrática tradicional.
Eis a grande complexidade do processo judicial participativo. Esse
caso do SUS permite observar que o Judiciário brasileiro e o próprio
SUS ainda não tomaram as devidas providências, comuns (no plano
do ius edicendi), para um funcionamento participativo do sistema. As
soluções individuais caso a caso – à moda tradicional e com as
limitações do paradigma – só tem prolongado a agonia das
instituições, e da população, em benefício muitas vezes de
criminosos e corruptos. Da mesma forma, bens coletivos como

203 PILATI, 2015, p. 27.


204 Ibidem, p. 27.
205 PILATI, 2015, p. 67.
111

patrimônio histórico e cultural, ambiental, além do SUS e outros, são


problemas e objetos de processo participativo e o ius edicendi deve
ser exercido pelos órgãos envolvidos; tais bens pertencem ao
Judiciário, ao Ministério Público, às autoridades do mesmo modo que
pertencem à Sociedade. Não se restringem ao poder de polícia
tradicional, como na ordem constitucional anterior a 1988.

Daí o porquê de o autor defender, sem menosprezo da importância da ação


civil pública para a defesa dos interesses coletivos, a necessidade de se avançar em
termos de exercício dos bens coletivos206. Isso porque o mencionado instrumento
processual conserva o caráter reativo (punitivo) à lesão já ocorrida ou ameaça de
lesão contra o bem coletivo, mas não dá conta do amplo exercício desses bens,
erigidos constitucionalmente como coletivos autônomos, papel atribuído à Audiência
Pública.
Desse modo, patente a necessidade de um novo paradigma, apto a construir
soluções mais isonômicas e democráticas.
Pilati207 identifica a Audiência Pública como a mais genuína expressão da
democracia participativa, utilizando-se da expressão “soberania compartilhada” para
designar o verdadeiro propósito de sua realização.
Nesses termos, defende a sua relevância nas três esferas de Poder:

O processo legislativo refere-se à elaboração das leis participativas,


ou seja, aquelas leis que têm por objeto dispor sobre bens coletivos
constitucionais. A deliberação e aprovação travam-se no campo da
Sociedade; a representação parlamentar, no caso, referenda ou
rejeita (o que lembra a auctoritas patrum do Senado romano do
período republicano). No processo administrativo participativo, da
mesma forma: a autoridade do Poder Executivo convoca e preside à
deliberação de exercício de direito sobre bem coletivo, mediante
audiência pública, homologando a decisão respectiva; sem
participação a decisão é ilegítima, e sem a homologação não vale.
Não é diferente em relação ao processo judicial, quando a
deliberação participativa for judicializada; o juiz acionado limita-se a
garantir a participação, e quando assue a deliberação é para
conduzi-la e homologar o resultado final (pois que o bem pertence
aos litigantes coletivamente e não ao Estado, que ele representa no
ato).208

Trata-se, portanto, de superar o caráter defensivo do direito (normalmente


estampado em uma demanda coletiva, baseada na infração ou lesão ao direito) para

206 Ibidem, p. 43.


207 Ibidem.
208 PILATI, 2015, p. 42.
112

focar em seu aspecto prospectivo, ou seja, no que Pilati209 defende como sendo
propriamente uma nova forma de exercício do direito coletivo e, por isso, de
repercussão nas três esferas de Poder, e não apenas no Judiciário.210
Em Santa Catarina uma inciativa interessante merece menção, na medida em
que busca aprofundar os debates acerca da saúde pública no Estado, inaugurando
um diálogo multidisciplinar na esfera judicial, a teor do que propõe o Conselho
Nacional de Justiça. 211 Seguindo a recomendação do Conselho Nacional de Justiça

209 Ibidem.
210 A partir dos resultados da Audiência Pública nº 4, realizada pelo STF em maio e abril de 2009, o
CNJ constituiu um grupo de trabalho (Portaria n. 650, de 20 de novembro de 2009) . Os trabalhos do
grupo culminaram na aprovação da Recomendação n. 31, de 30 de março de 2010, pelo Plenário do
CNJ que traça diretrizes aos magistrados quanto às demandas judiciais que envolvem a assistência à
saúde. Em 6 de abril de 2010, o CNJ publicou a Resolução n. 107, que instituiu o Fórum Nacional do
Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde – Fórum da Saúde.
O Fórum da Saúde é coordenado por um Comitê Executivo Nacional (Portaria n. 8 de 2 de fevereiro
de 2016) e constituído por Comitês Estaduais. A fim de subsidiar com informações estatísticas os
trabalhos do Fórum, foi instituído, por meio da Resolução 107 do CNJ, um sistema eletrônico de
acompanhamento das ações judiciais que envolvem a assistência à saúde, chamado Sistema
Resolução 107. Após realizar dois encontros nacionais, o Fórum da Saúde ampliou sua área de
atuação para incluir a saúde suplementar e as ações resultantes das relações de consumo
(disponível em: http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude).
211 Acerca do tema, registre-se o conteúdo da Resolução n. 31, do CNJ, de 30.03.2010: “ [...]

Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que:
a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto
por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à
apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas
as peculiaridades regionais;
b) orientem, através das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que:
b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da
doença, inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou
princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata;
b.2) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela ANVISA, ou em
fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei;
b.3) ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da
apreciação de medidas de urgência;
b.4) verifiquem, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), se os requerentes
fazem parte de programas de pesquisa experimental dos laboratórios, caso em que estes devem
assumir a continuidade do tratamento;
b.5) determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política pública existente, a
inscrição do beneficiário nos respectivos programas;
c) incluam a legislação relativa ao direito sanitário como matéria individualizada no programa de
direito administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da magistratura, de acordo
com a relação mínima de disciplinas estabelecida pela Resolução 75/2009 do Conselho Nacional de
Justiça;
d) promovam, para fins de conhecimento prático de funcionamento, visitas dos magistrados aos
Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou
conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia como
Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - UNACON ou Centro de Assistência de
Alta Complexidade em Oncologia - CACON;
II. Recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM, à
Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho - ENAMAT e às
Escolas de Magistratura Federais e Estaduais que:
a) incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e
aperfeiçoamento de magistrados;
113

(Recomendação n. 43 da Presidência), por meio do Convênio n. 174/2015 entre o


Poder Judiciário (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e a Secretaria de Saúde de
Santa Catarina, foi instalado, como projeto piloto, o Núcleo de Apoio Técnico/SC –
NAT/SC, com objetivo principal de fornecer subsídios técnicos aos magistrados para
o julgamento das ações que buscam compelir o Estado ao fornecimento de
medicamentos e componentes nutricionais, viabilizando a troca de informações entre
diferentes áreas do conhecimento.
Há, ainda, a intenção de estender o Convênio a outras comarcas, além da
comarca da Capital, de forma gradativa, consoante ampliação da relevância desse
diálogo institucional e de saberes. Registre-se, para tanto, que referido Núcleo
procura congregar conhecimento científico específico na área da saúde, de modo a
embasar as decisões judiciais sobre dispensação de terapias, insumos e
complementos nutricionais, além de sobrelevar o viés coletivo da saúde. A iniciativa
visa, ainda que de forma incipiente, preparar o Judiciário para a subsequente
especialização de Varas Estaduais e Federais para processar e julgar ações que
objetivem o acesso à saúde pública.212
Por último, pretendendo chegar-se às considerações finais e retomando as
teorias constitucionais contemporâneas, ousa-se afirmar que a distância a separar
as bases teóricas do neoconstitucionalismo e do garantismo não chega a constituir
um hiato na definição do direito fundamental à saúde, bem como quais são os limites
à atuação racional do Judiciário na temática.

5.5 CONCILIANDO O NEOCONSTITUCIONALISMO (OU CONSTITUCIONALISMO


PRINCIPIALISTA) E O GARANTISMO NA ATUAÇÃO JUDICIAL EM MATÉRIA
DE SAÚDE PÚBLICA

Do ponto de vista da atuação do Judiciário na matéria sob a óptica garantista


de Ferrajoli213, por mais que o autor defenda ser o direito à saúde, a exemplo dos
demais direitos sociais fundamentais, um princípio regulativo (e não diretivo), tal fato
não significa reconhecer uma obrigação prestacional por parte do Estado em toda e

b) promovam a realização de seminários para estudo e mobilização na área da saúde, congregando


magistrados, membros do ministério público e gestores, no sentido de propiciar maior entrosamento
sobre a matéria;”.
212 Esse é o teor da Recomendação n. 43 do CNJ, conforme DJE/CNJ n. 157/2013, de 21.08.2013.
213 FERRAJOLI, 2015, p.123-127.
114

qualquer demanda apresentada nessa seara. Ou seja, nem toda pretensão estará
automaticamente albergada na regra. Exige-se, para operar a subsunção, a violação
de uma proibição ou um dever correspondente ao princípio invocado. A propósito da
assertiva, deve-se lembrar que, embora o autor condene a ponderação entre
princípios colidentes, recomenda a ponderação dos fatos a fim de orientar o
processo de subsunção à regra violada.
Nas hipóteses, portanto, das garantias constitucionais positivas, vale-se da
teoria da completude para reconhecer a existência de uma lacuna legislativa e, por
conseguinte, na violação constitucional por omissão da obrigação de concretizar o
direito fundamental em destaque, por meio de uma legislação de atuação,
consistente na introdução das garantias “[...] primárias e secundárias faltantes, que o
princípio da completude impõe ao legislador e que integra a garantia constitucional
primária positiva dos direitos constitucionalmente estabelecidos”214.
De certo modo, reconhece o autor um direito subjetivo à concretização
legislativa da garantia constitucional concernente aos direitos sociais prestacionais.
Segundo Ferrajoli215:

Não menos importantes que as garantias constitucionais negativas


são as garantias constitucionais positivas, impostas pelo princípio da
completude e indevidamente negligenciadas pela doutrina, embora
indispensáveis à efetividade dos direitos fundamentais
constitucionais estabelecidos e, sobretudo, dos direitos sociais a
prestações positivas: como a educação, a saúde e a previdência.
Elas consistem no dever dirigido ao legislador, em respeito a tais
direitos, de produzir uma legislação de atuação: em suma, na
obrigação de introduzir garantias legislativas, primárias e
secundárias, correspondentes aos direitos fundamentais
constitucionalmente estipulados.

Na mesma direção de outros tantos direitos sociais, como a moradia, a


educação, a previdência social e o trabalho, o direito à saúde exige a concretização
por uma lei de atuação que estabeleça sua garantia, não se podendo considerar, a
exemplo do que ocorre com os direitos patrimoniais, que esta se estabeleça
simultaneamente ao próprio direito garantido.216
Acerca do tema, discorre Ferrajoli217:

214
FERRAJOLI, 2015, p. 78.
215 Ibidem, p. 75.
216 Ibidem, p. 79.
217
Ibidem, p. 79.
115

Isto vale, evidentemente, para todos os direitos sociais, como o


direito à saúde ou à educação, e para os próprios direitos de
imunidades de lesões penais, os quais, na falta de uma legislação
social em matéria de assistência sanitária ou de ensino, ou das
normas penais que proíbam e punam suas violações, ou das
garantias processuais relativas à liberdade individual – isto é, na falta
de garantias fortes, sejam primárias ou secundárias – estão
destinadas a permanecer no papel. Mas certamente não diremos,
nestes casos, que não existem obrigações correspondentes aos
direitos constitucionalmente estipulados e que, portanto, com base
na noção de direito subjetivo tais direitos não existem. Na verdade,
existe a obrigação constitucional, que, porém, apenas o legislador
pode satisfazer, de introduzir garantias fortes, isto é, de colmatar as
suas lacunas: uma obrigação que materializa e satisfaz, como
garantia constitucional positiva, a tese teórica no nexo de implicação
entre direitos e garantias. Acrescento que é esta a principal tarefa da
política, que não se exaure nas atividades conexas à esfera do
indecidível, mas inclui, sobretudo, a implementação da esfera do não
decidível [...].

Ao mencionar o caso brasileiro em específico, ressalta-se a importância da


introdução de garantias fortes aos direitos fundamentais sociais, como se percebe
no trecho a seguir:

Limito-me a recordar a obrigação dos governos, introduzida pela


Constituição brasileira, de respeitar, com efeito, precisos percentuais
orçamentários relativos aos direitos sociais, isto é, a obrigação de
destinar quotas mínimas da despesa pública à satisfação dos direitos
sociais e, em particular, dos direitos à saúde e à educação. Graças a
esta inovação, a garantia fraca da genérica obrigação do legislador
de introduzir, sem qualquer vínculo quantitativo, leis destinadas a
conferir efetividade aos direitos sociais se transformou em garantia
forte da obrigação de destinar, para a satisfação de tais direitos, ao
menos determinadas quotas do orçamento; com o resultado de que
as lacunas relativas à falta de introdução de tais leis, de per se
insuscetíveis de reparação pela via jurisdicional, foram
transformadas em antinomias, reparáveis por intermédio de
iniciativas e ações dos órgãos do Ministério Público, como
violações à Constituição.218

Com efeito, o entendimento mais recente da Corte gaúcha acerca de pleito


relativo à saúde, mais especificamente exigindo medicamento não padronizado,
reconhecendo um direito subjetivo coletivo a uma prestação positiva por parte
do ente estatal, mas de natureza normativa – uma ação normativa –, alinha-se
perfeitamente com o pensamento garantista.

218 FERRAJOLI, 2015, p. 78-79; 133-222, grifo nosso.


116

Há certo grau de convergência desse pensamento com o de Alexy219, quando


distingue o direito subjetivo do cidadão em face do Estado de exigir uma ação
positiva estatal fática ou normativa. Entende-se tratar de ação normativa quando o
direito subjetivo consiste em ter, em face do Estado, um direito a que este crie uma
norma, apta ao asseguramento pleno do direito fundamental em voga, ainda que em
matéria de saúde tenda a definir a obrigação como sendo uma prestação fática, que
pode ou não ser efetivada pela confecção de uma lei.
Assim, cumpre registrar que, ao arrepio da teoria garantista defendida por
Ferrajoli220, interpretar o art. 196 da CRFB de 1988 como regra, isto é, entender que
todo e qualquer medicamento ou terapia requerida corresponde a uma obrigação
estatal positiva e, portanto, deve ser “garantida” (leia-se aplicada imediatamente pelo
Poder Judiciário), corresponde a um indesejável incremento do poder jurisdicional
em usurpação da obrigação constitucional destinada ao legislador de introduzir
garantias fortes aos direitos fundamentais sociais, tal qual o direito à saúde.
Aliás, a nítida separação entre direito e moral, base central da teoria
garantista, rechaça, de forma ainda mais veemente, o chamado ativismo judicial, na
medida em que submete a atividade jurisdicional aos estritos ditames da lei.
Causa, portanto, estranheza quando, em decisões judiciais de concessão de
medicamentos não padronizados ou de cirurgias a serem realizadas no exterior, com
custos estratosféricos, por exemplo, o julgador se valha da teoria garantista a fim de
fundamentar seu processo decisório.
Relembre-se que, para o autor italiano, a prática jurisdicional justifica-se pelo
exercício da subsunção, competindo ao juiz pequena margem de discricionariedade
interpretativa com relação à parcela de indeterminação da linguagem legal.
De certo modo, os dois constitucionalistas trabalhados com maior afinco nesta
pesquisa, um de matriz principialista (Alexy) e outro garantista (Ferrajoli), apesar das
dissonâncias nos fundamentos de suas teorias, bastantes profundas, diga-se de
passagem, não chegam a divergir quanto ao resultado encontrado ao fim e ao cabo
das diferentes trajetórias de seus pensamentos.
É certo, também, que a teoria principialista confere maior margem de liberdade
à atuação judicial, na medida em que admite a ponderação entre as normas
fundamentais, a ser operada no caso concreto, efetivando-o na maior extensão

219
ALEXY, 2011, p. 202.
220
FERRAJOLI, 2015.
117

possível. Contudo, não se confunde tal metodologia com o voluntarismo e


subjetivismo judicial, a toda evidência incompatíveis com o Estado Constitucional de
Direito.
118

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Longe de se alcançar consenso, pretendeu-se, ao longo deste trabalho,


evidenciar algumas polêmicas e problematizar algumas das soluções engendradas
até este ponto do longo caminho que ainda resta a percorrer em direção à
concretização e ao efetivo exercício popular e coletivo do direito fundamental à
saúde.
De início, enfrenta-se a questão de uma nova dimensão de direitos que, ao
lado de um novo tipo de constitucionalismo e de Constituição, enseja maior e mais
significativa atuação do Poder Judiciário.
Nesse contexto sociojurídico, erige-se a saúde como direito social
fundamental que, em sua dimensão individual, guarda consonância com a noção de
mínimo existencial, com profunda e inseparável conexão com os princípios da
dignidade, da igualdade material e da liberdade fática, reclamando tutela judicial
própria, vale dizer, aplicada na base do tudo ou nada.
Igualmente merece tutela individualizada e na base do tudo ou nada o
descumprimento das políticas sociais previamente definidas, descabendo, nesses
casos, ponderar entre o direito ao recebimento de terapias ou insumos padronizados
pelo SUS e o argumento da reserva do possível, pois se entende como reserva do
possível não apenas as questões orçamentárias, mas, sobretudo, propõe-se a
retomada de seu conteúdo original, derivado do Direito Alemão, consubstanciado no
que pode ou deve o indivíduo razoavelmente esperar do Estado.
É evidente que pode o cidadão racional e razoavelmente esperar do Estado a
concretização do mínimo existencial, até porque, sem isso, sem essa garantia, nem
mesmo se pode cogitar de um Estado Democrático de Direito.
Todavia, é inegável que o direito fundamental à saúde mostra-se mais
complexo do que isso, porquanto possui alcance muito maior que a efetivação do
mínimo existencial. Configura, nessa perspectiva abrangente, um compromisso de
se atingir o máximo possível em termos de promoção, proteção e recuperação da
saúde no país, observadas as bases da universalidade e isonomia, verdadeiros
pilares do próprio SUS.
Buscou-se, assim, distinguir a atuação judicial, especialmente seus limites,
atrevendo-se até a uma tentativa de parametrização, conforme a discussão
119

privilegiasse direito individual (mínimo existencial ou descumprimento legal) ou


direito coletivo (versando sobre o máximo prometido ou ainda o máximo desejável).
Afirmou-se, nesse ponto, que somente no último caso cabe ponderar valores
jusfundamentais, nos termos definidos por Alexy221 e complementados por Atienza e
Manero222, a fim de resolver eventuais colisões entre princípios fundamentais,
consideradas as condicionantes de fato e de direito, destacadamente a teoria da
reserva do possível (em sua concepção primária).
Por último, mas não menos importante, pretendeu-se afirmar a dimensão e a
natureza coletiva do direito à saúde, sinalizando-se a urgência na construção de um
novo paradigma, capaz de proporcionar seu verdadeiro exercício como tal e não
apenas refletir a preocupação com sua tutela coletiva, ao lado da individual.
Valendo-se da doutrina de José Isaac Pilati223, tratou-se da Audiência Pública,
nas três esferas de Poder, como sendo a última fronteira à resolução das questões
mais intrincadas da temática proposta nesta pesquisa.
Entendeu-se que, ao lado da evolução das tutelas coletivas, notadamente
após a introdução de novos instrumentos na Lei Processual Civil recentemente em
vigor, precisa-se ainda avançar um pouco mais, ampliando e, por que não afirmar,
politizando a questão da saúde pública no Brasil.
Como se mencionou, o tema, em toda a sua amplitude e abrangência, não foi
esgotado, tampouco se teve a pretensão de fornecer todas as respostas.
Pretendeu-se, sim, formular algumas perguntas incômodas e defrontar com algumas
“certezas” construídas jurisprudencialmente que, ao contrário do que se possa
supor, fazem parte do problema e não de sua solução.
A solução, quer parecer, passa primeiro pela compreensão da complexidade
do tema e, como não poderia deixar de ser, pela busca de um novo modelo de
atuação legislativa, executiva e judiciária, pautada pela convicção de tratar a saúde
de um bem coletivo por excelência e, nessa lógica, exigir a ampliação do debate, a
democratização e a universalização do acesso a esse direito fundamental,
passando, necessariamente, pela participação popular.

221 ALEXY, 2011.


222 ATIENZA; MANERO, 2016.
223 PILATI, 2015.
120

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da


Silva. São Paulo: Malheiros, 2011.

ANDRADE, Fernando Gomes. Direitos de Fraternidade como Direitos Fundamentais


de Terceira Dimensão: aspectos teóricos e aplicabilidade nas decisões do Supremo
Tribunal Federal brasileiro. Amicus Curiae, v. 8, n. 8, 2011.

ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Sobre princípios e regras. Revista


Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal Panóptica, 2016.

ATRIA, Fernando. ¿Existen derechos sociales? Disponível em:


<http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/assets/files/documentos/existen-
derechos-sociales fernando-atria.pdf>. Acesso em: 15 setembro 2015.

BARROSO, Luíz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – os


conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed., 2ª tiragem. São
Paulo: Saraiva, 2012.

______. Constituição, Democracia e Supremacia Constitucional: Direito e Política no


Brasil Contemporâneo. Revista Trimestral de Direito Público, n. 55. São Paulo:
Malheiros, 2011.

______. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,


fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial.
Revista de Direito Social. n. 34 abr/jun. Porto Alegre: Notadez, 2009.

______. Manifestação em Audiência Pública. Disponível em:


<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Luis_Rob
erto_Barroso.pdf>. Acesso em: 2 setembro 2015.

BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2009.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF, Senado, 1998.

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

BUENO. Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo:
Saraiva, 2015.

CARRIÓ, Genaro R. Principios jurídicos y positivismo jurídico. Notas sobre


Derecho y lenguaje. 3. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1986.
121

CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais. Boletim


Científico – Escola Superior do Ministério Público da União. Brasília: ESMPU, Ano
II, n. 8, jul/set, 2003.

DECL AR AÇ ÃO UNI VERS AL DO S DI RE I TO S HUM ANO S ( 1948) . Dispon ível


em : <ht t p: // www. onu . or g. br / img / 2014/ 09/DUDH. pdf >. Acesso em: 30 maio 2016.

DIDIER JÚNIOR, Fredie; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Curso de Direito Processual


Civil - Processo coletivo. 7. ed. Salvador: Jus Podivum, 2012.

FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos humanos. O


constitucionalismo garantista como modelo teórico e como projeto político.
Tradução: Alexandre Araújo de Souza e outros. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2015.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 15 ed. São


Paulo: Malheiros, 2012.

GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios e dilemas dos grandes países


periféricos: Brasil e Índia. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003473291998000100006>.
Acesso em: 5 abril 2016.

MACHADO. Rafael Bicca. Cada um em seu lugar: cada um com sua função. In:
TIMM, Luciano Benetti (org.). Apontamentos sobre o atual papel do Poder Judiciário
brasileiro, em homenagem ao ministro Nelson Jobim. Revista de Direito e
Economia. São Paulo: IOB Thompson, 2005.

MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

MOREIRA, Pedro da Silva. Eficácia normativa dos princípios constitucionais: o


caso do direito à saúde [Monografia]. URGS: Porto Alegre, 2010.

NEVES, Daniel Amorim Assunpção. Manual de processo coletivo. 2. ed. São


Paulo: Método, 2014.

NOBRE JR, Edilson Pereira. Ativismo Judicial: possibilidades e limites. Revista


Trimestral de Direito Público, n. 55. São Paulo: Malheiros, 2011.

NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012

OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues de. Os direitos fundamentais e os


mecanismos de concretização: o garantismo e a estrita legalidade como resposta
ao ativismo judicial não autorizado pela Constituição Federal [Tese]. UFSC:
Florianópolis, 2011.

PILATI, José Isaac. Audiência Pública na Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2015.
122

______. Função social e tutelas coletivas: contribuição do Direito Romano a um


novo paradigma. Jurisprudência Catarinense. v. 106.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina. Incidente de conversão da ação individual


em coletiva no CPC projetado: exame crítico do instituto. Disponível em:
<http://www.processoscoletivos.net/revista-eletronica/63-volume-4-numero-3-
trimestre-01-07-2014-a-30-09-2014/1459-incidente-de-conversao-da-acao-individual-
em-acao-coletiva-no-cpc-projetado-exame-critico-do-instituto>. Acesso em: 5 maio
2016.

REIS JÚNIOR, Ari Timóteo. A teoria da reserva do possível e o reconhecimento pelo


Estado de prestações positivas. Revista Tributária e de Finanças Públicas. Ano
17, n. 86, maio-jun 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

SARDÀ, Clara Marquet.Estado Social, Direitos Sociais e Princípios no sistema


Consitucional da Espanha. In: STRAPAZZON, Carlos Luiz; SERRAMALERA, Mercè
Barcelò i (orgs.). Direitos fundamentais em estados compostos. Tradução:
Débora Diersmann Pereira. Chapecó: Unoesc, 2013.

SANTOS, Maurício de Melo. O combate à epidemia de HIV/Aids no Brasil e o papel das


organizações não governamentais. Disponível em:
<http://www.revistahospitaisbrasil.com.br/artigos/o-combate-a-epidemia-de-hivaids-
no-brasil-e-o-papel-das-organizacoes-nao-governamentais/>. Acesso em: 9
setembro 2015.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais – uma teoria geral
dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12 ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2015.

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas considerações


sobre o direito fundamental à proteção e promoção da saúde nos 20 anos da
Constituição Federal de 1988. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/O_direito_
a_saude_nos_20_anos_da_CF_coletanea_Tania_10_04_09.pdf>. Acesso em: 16
dezembro 2015.

SEVERO. Renata Corrêa. O princípio da reserva do possível e a eficácia das


decisões judiciais em face da Administração Pública. Fórum Administrativo –
Direito Público - FA. Ano 1, n. 1. mar 2001. Belo Horizonte: Fórum, 2001, p. 28.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São
Paulo: RT, 1982.

______. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: perspectivas e


possibilidades de concretização dos direitos fundamentais sociais no Brasil. Novos
Estudos Jurídicos. v. 8, n. 2, maio/ago 2003.
123

TERRAZAS, Fernanda Vargas. O Poder Judiciário como voz institucional dos pobres.
Disponível em:
<bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em:
1º maio 2016.

TUCCI, José Rogério Cruz. Paradoxo da Corte - um veto providencial ao Novo


Código de Processo Civil! Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-
17/paradoxo-corte-veto-providencial-cpc>. Acesso em: 5 maio 2016.

ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil – Ley, derechos, justicia. Tradução:


Marina Gascón. Madrid: Trotta, 2002.

Você também pode gostar