A Judicialização Da Saúde No Brasil - Do Viés Individualista Ao Patamar de Bem Coletivo
A Judicialização Da Saúde No Brasil - Do Viés Individualista Ao Patamar de Bem Coletivo
A Judicialização Da Saúde No Brasil - Do Viés Individualista Ao Patamar de Bem Coletivo
RONEI DANIELLI
RONEI DANIELLI
Saúde Pública?
Em conta-gotas anda a Saúde Pública?
Em conta-gotas d´Água...
Em conta-gotas de Sangue ...
Em conta-gotas de Lágrimas.”
(NELSON MARTINS)
5
AGRADECIMENTOS
Sou grato a todos os amigos que gentilmente comigo travaram debates sobre
o tema, enriquecendo sempre o teor da investigação científica, deixando de citá-los
nominalmente por receio de pecar pela memória.
RESUMO
RESUMEN
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................11
2 A SAÚDE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL E SEU REGIME
JURÍDICO-CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO .................15
2.1 AS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DO LIBERALISMO AO
CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL ................................................................... 15
2.2 A POSITIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 .............................................. 20
2.3 O ENQUADRAMENTO NORMATIVO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
SOCIAIS COMO REGRAS OU PRINCÍPIOS............................................................ 22
2.3.1 Distinção entre regras e princípios e possíveis consequências
hermenêuticas ......................................................................................................... 23
2.3.2 Distinção entre regras e princípios e entre os tipos de princípios proposta
por Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero ............................................................... 30
2.4 A PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO SEGUNDO LUIGI FERRAJOLI ............... 34
2.5 O DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL E SUA
ESTRUTURA NORMATIVA ...................................................................................... 36
3 A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES
SOBRE SUA CARACTERIZAÇÃO COMO DIREITO SUBJETIVO E RETROSPECTIVA
JURISPRUDENCIAL ..............................................................................................................40
3.1 DIREITO SUBJETIVO E SISTEMA DE POSIÇÕES JURÍDICAS FUNDAMENTAIS .... 40
3.1.1 Direitos a algo ................................................................................................. 41
3.1.1.1 Direitos a prestações estatais negativas ou direitos de defesa .............. 43
3.1.1.2 Direitos a prestações estatais positivas ou direitos prestacionais ................. 44
3.1.2 Liberdades ...................................................................................................... 45
3.1.3 Competências ................................................................................................. 46
3.2 A TRAJETÓRIA DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA ACERCA DO DIREITO À
SAÚDE: A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL E A SÍNDROME
DA IMONODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA (SIDA OU AIDS) ......................................... 51
10
1 INTRODUÇÃO
1 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 77.
2 Nesse sentido, vale consultar a obra: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais – uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12 ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
16
Ora, como bem pontua Eros Roberto Grau3, sendo a lei em si mesma uma
abstração, enquanto a realidade acontece no mundo concreto, torna-se evidente a
inconsistência do enunciado princípio da igualdade perante a lei.
Logo, em um Estado cujo paradigma era a não intervenção, notadamente na
economia, e a igualdade, um enunciado meramente formal, a própria liberdade
passa a ser restrita a certo segmento social em detrimento de uma esmagadora
maioria desprovida de recursos financeiros suficientes para exercê-la plenamente.
Sob essa perspectiva, as reivindicações dos direitos de segunda dimensão –
direitos de igualdade material – acabam por surgir precipuamente no período
pós-revolução industrial, em grande parte resultante das demandas proletárias,
nascidas como reação à crescente desigualdade social e econômica que
ameaçavam, inclusive, a própria noção de liberdade em seu sentido mais amplo
(liberdade substancial).
Na passagem dos direitos de liberdade, em que a atuação do Estado é
preponderantemente negativa, de omissão, para os de igualdade material, exigindo
não apenas condutas de abstenção, mas prestações efetivas, observa-se a
mudança de paradigma pertinente aos limites éticos, jurídicos e políticos que
legitimam o poder estatal diante das demandas da sociedade.
Contrapondo-se ao Estado liberal burguês, cuja maior formulação fora o
reconhecimento do homem livre como sujeito abstrato de direitos, as demandas de
segunda dimensão de direitos – direitos de igualdade material – somente se
realizam com a atuação de um Estado Social.
Nesse sentido, tem-se como exemplo as constituições sociais do México, de
1917, e de Weimar, de 1919, pioneiras na positivação dessas demandas.
Contudo, na conformação do Estado Social, ainda assentada na noção
clássica de Montesquieu sobre a separação dos Poderes, relegava-se
exclusivamente ao Poder Executivo a concretização dos direitos sociais por meio de
escolhas marcadamente políticas (políticas públicas).
Tal circunstância, somada à realidade do capitalismo global e com ele uma
onda neoliberal trazida pela “pós-modernidade”4, em que as leis do mercado passam
3
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 15 ed. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 22.
4
A expressão especialmente construída na obra de Jean François Lyotard, “A Condição Pós-
Moderna”, de 1979, ganha destaque e será aqui utilizada no sentido em que trabalhada por Eduardo
Bittar, na obra “O Direito na pós-modernidade”, sobretudo ao destacar como sintoma da pós-
17
a demandar posturas abstencionistas por parte dos Estados, acaba por evidenciar
uma terceira dimensão dos direitos fundamentais – os direitos de fraternidade –
dentre os quais se destaca o direito à qualidade de vida, em um meio ambiente
equilibrado e saudável, cada vez mais ameaçado pelo capitalismo mundial, legando,
por consequência, ao Poder Judiciário e à jurisdição constitucional a missão de
realização desses postulados, notadamente nos chamados países periféricos5 como
o Brasil.
Poder-se-ia afirmar que, para a concretização dos direitos de primeira
dimensão, o papel do legislativo no Estado liberal fora tão essencial quanto o do
Executivo no Estado Social para os de segunda geração, passando-se agora para o
momento seguinte, em que se afirmam os direitos de fraternidade no Estado
Democrático em consonância com a atuação do Poder Judiciário.
Nas reflexões de Lenio Streck6 sobre o papel do Direito no Estado
Democrático:
7
STRECK, 2003, p. 279.
19
8
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,
Senado, 1998.
9
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 216-217.
20
10
BARROSO, Luíz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 107-
108.
11 Ibidem, p. 363.
12
Ibidem, p. 103-105.
22
13 Partindo-se da concepção filosófica de Bobbio (1992) de que os direitos humanos são direitos
históricos, que nascem e se justificam conforme as peculiaridades espaço-temporais em que são
gestados, tem-se como direitos fundamentais de segunda e terceira geração ou dimensão os direitos
sociais e o direito à saúde de forma mais ampla, compatível com um meio ambiente saudável,
equilibrado e com qualidade de vida, respectivamente. Para maior aprofundamento, consultar:
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992.
23
Se uma regra vale, então deve se fazer exatamente aquilo que ela
exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto,
determinações no âmbito daquilo que é faticamente e juridicamente
possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é
uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau.
17
Ibidem, p. 85.
18 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil – Ley, derechos, justicia. Tradução: Marina Gascón.
Madrid: Trotta, 2002, p. 109-110.
19
ALEXY, 2011, p. 90.
20 Ibidem, p. 91.
25
21
ALEXY, 2011, p. 92.
22 Ibidem.
26
23
Ibidem, p. 94.
24 ZAGREBELSKY, 2002, p. 110.
25 ALEXY, 2011.
26 Ibidem.
27
27
ALEXY, 2011, p. 99-102.
28 Ibidem, p. 108.
28
32 ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Sobre princípios e regras. Revista Eletrônica
Acadêmica de Direito Law E-journal Panóptica, Disponível em:
<http://www.panoptica.org/seer/index.php/op/article/viewFile/85/93>. Acesso em: 2 março 2016.
33 ALEXY, op. cit.
30
não se pode formular uma lista fechada das mesmas: não se trata só
de que as propriedades que constituem as condições de aplicação
tenham uma área maior ou menor de abstração, se não, de que tais
condições não se encontram sequer genericamente determinadas. O
tipo de indeterminação que afeta os princípios é, pois, mais radical
que o das regras (ainda que, desde logo, entre um e outro tipo de
indeterminação possa haver casos de penumbra).36
39
ATIENZA; MANERO, 2016, p. 56-58, grifo dos autores.
33
42
ATIENZA; MANERO, 2016, p. 60-61.
43
CARRIÓ, Genaro R. Principios jurídicos y positivismo jurídico. Notas sobre Derecho y lenguaje.
3. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1986, p. 34.
44
FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos humanos. O constitucionalismo garantista
como modelo teórico e como projeto político. Tradução: Alexandre Araújo de Souza e outros. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 119.
35
45
FERRAJOLI, 2015, p. 122.
46
Ibidem, p. 123.
47
Ibidem, p. 124.
48 ATIENZA; MANERO, 2016.
36
49
FERRAJOLI, op. cit., p. 124.
50 FERRAJOLI, 2015.
51 ATIENZA; MANERO, 2016.
52 ALEXY, 2011.
53 ATIENZA; MANERO, op. cit.
54 Ibidem, p. 56, grifo nosso.
55 ALEXY, op. cit.
37
Espanha. In: STRAPAZZON, Carlos Luiz; SERRAMALERA, Mercè Barcelò i (orgs.). Direitos
fundamentais em estados compostos. Tradução: Débora Diersmann Pereira. Chapecó: Unoesc,
2013, p. 213.
38
62 ALEXY, 2011.
41
63 Ibidem, p. 193-217.
64 ALEXY, 2011.
65 Ibidem.
42
66
Ibidem, p. 196-201.
43
67
ALEXY, 2011, p. 201.
44
68
ALEXY, 2011, p. 202.
69 Alexy (2011) exemplifica as inúmeras combinações em um quadro sinóptico na p. 215.
45
3.1.2 Liberdades
70 ALEXY, 2011.
71 Ibidem.
72
Ibidem, p. 223, grifo do autor.
46
3.1.3 Competências
73
ALEXY, 2011, p. 239.
74 Ibidem.
75
Em suas palavras: “Direitos de defesa: são aqueles que impõem ao Estado uma abstenção, um
dever de não interferência, de não intromissão no espaço de autodeterminação do sujeito; limitam a
atuação do Estado (incisos II, III, IV, XII, XIII, XV, todos do art. 5º, da CF/198) e se mostram como
normas de competência negativa para os poderes públicos. 2) Direitos à prestação: se os direitos de
defesa visam a assegurar o status quo do sujeito, os direitos a prestação exigem que o Estado aja
para atenuar desigualdades e, com isso, estabelecer um novo molde para o futuro da sociedade.
Estes direitos partem do pressuposto de que o Estado deve agir para libertar os indivíduos das
necessidades. São direitos de promoção que surgem da vontade de estabelecer uma igualdade
efetiva e solidária entre todos os membros da comunidade política e se realizam por meio do Estado
(p. 143). Como se traduzem em ação positiva do Estado, existem peculiaridades especiais que se
referem à densidade normativa, o que os distingue dos demais na medida em que seu modo de
exercício e sua eficácia será diferenciada. Duas são as formas de prestação: 2.1) Direitos a prestação
jurídica: existem direitos fundamentais que se esgotam com a edição de uma simples norma jurídica.
Daí afirmar-se que ―o objeto do Direito será a normação pelo Estado do bem jurídico protegido como
direito fundamental (p. 143). Poderão ser normas penais, que o Estado deve editar para coibir
práticas atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais, ou de procedimento, como é o caso
daquelas que tratam do acesso à justiça. 2.2) Direitos a prestações materiais: são os chamados
direitos a prestações em sentido estrito. Resultam da concepção social do Estado e são relacionadas
a saúde, educação, maternidade, criança, adolescente, etc. 3) Direitos de participação: há quem
não reconheça essa categoria como um terceiro tipo. Contudo, é preciso reconhecer que esses
direitos tratam de assuntos que, à primeira vista, pouco se identificam com os outros dois. Aqui, estão
localizados os direitos políticos de votar e ser votado”. (OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues
de. Os direitos fundamentais e os mecanismos de concretização: o garantismo e a estrita
legalidade como resposta ao ativismo judicial não autorizado pela Constituição Federal. [Tese].
UFSC: Florianópolis, 2011, p. 103-104.
47
76
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Boletim Científico –
Escola Superior do Ministério Público da União. Brasília: ESMPU, Ano II, n. 8, jul/set, 2003, p. 155.
77
ATRIA, Fernando. ¿Existen derechos sociales? Disponível em:
<http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/assets/files/documentos/existen-derechos-sociales
fernando-atria.pdf>. Acesso em: 15 setembro 2015.
48
82 Ou seja, “aquelas normas constitucionais, através das quais o constituinte, em vez de regular,
direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem
cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como
programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado”. (SILVA, José
Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 129).
83 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário no Mandado de Segurança nº
Sob esse enfoque, a atuação do Judiciário fora decisiva, muito embora, nesse
caso concreto, se estivesse diante de hipótese em que o direito fundamental à
saúde se encontrava regulado por lei infraconstitucional (vale dizer, diante da
existência de uma política pública posta em prática) e, portanto, indiscutivelmente
exequível do Estado o cumprimento de dita obrigação, uma vez que, nos dizeres de
Atienza e Manero86, a legislação ordinária tratou de especificar os meios para o
atingimento do fim previsto constitucionalmente. Essa, aliás, é a situação na
qual ninguém duvida de que se trata de direito subjetivo individual, em que o cidadão
tem o poder de exigir do Estado que cumpra a obrigação detalhadamente assumida
na regulamentação da norma constitucional.
Diante do exemplo, faz-se coro à conclusão de Fernando Gomes de
Andrade87 quando afirma veemente:
89
MOREIRA, Pedro da Silva. Eficácia normativa dos princípios constitucionais: o caso do direito
à saúde. [Monografia]. URGS: Porto Alegre, 2010, p. 47-48.
57
90
BARROSO, Luís Roberto. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Luis_Roberto_Barroso.pdf>.
Acesso em: 2 setembro 2015, grifo nosso.
58
91 TJSC. AC n. 2015.018024-9, relator Des. Luiz Fernando Boller, Primeira Câmara de Direito Público,
j. em 01.12.2015, grifo nosso.
92 TJSC. AC n. 2015.017729-7, relator Des. Edemar Gruber, Quarta Câmara de Direito Público, j. em
93TJSC. AC n. 2015.012826-3, relator Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, Segunda Câmara de Direito
Público, j. em 07.04.2015.
61
94TJPR. AC n. 14.1410824-2, relator Des. Adalberto Jorge Xisto Pereira, Quinta Câmara Cível, j. em
17.11.2015.
62
95 TJRS. Apelação e Reexame Necessário n. 70067455279, relator Des. Sergio Luiz Grassi
Beck,Primeira Câmara Cível, J. em 04.12.2015.
96 MOREIRA, 2010, p. 60.
63
Recurso provido.97
97 Apelação Cível n. 70045467016, Vigésima Segunda Câmara Cível, relatora Desª Maria Isabel de
Azevedo Souza, J. em 27.10.2011, grifo nosso.
98 Exemplo concreto é a Lei 9.313, de 13 de novembro de 1996, que dispõe sobre a distribuição
100FERRAJOLI, 2015.
101BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Revista de Direito
Social. n. 34 abr/Jun. Porto Alegre: Notadez, 2009.
66
102
BARROSO, 2009, p. 12.
103 Registre-se que, segundo Barroso, a expressão “ativismo judicial” (judicial activism) fora cunhada
nos Estados Unidos e utilizada pela primeira vez pelo jornalista Arthur M. Schlesinger Junior, ao
escrever sobre a atuação da Suprema Corte americana durante o período do “New Deal” (entre 1954
e 1969), marcada por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais. Contudo,
tal neologismo fora apropriado pela reação conservadora, ganhando forte conotação negativa, vindo
a ser equiparada ao exercício impróprio do poder judicial. Para o autor, depurada a questão
ideológica, o ativismo judicial pode ser entendido como uma maior participação do Judiciário na
concretização dos valores e fins constitucionais. (BARROSO, Luis Roberto. Constituição, Democracia
e Supremacia Constitucional: Direito e Política no Brasil Contemporâneo. Revista Trimestral de
Direito Público. n. 55. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 45).
67
a seguir.
104
Acerca da separação dos poderes, escreve o autor: “A liberdade política, em um cidadão, é esta
tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que
se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro
cidadão. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está
reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o
mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o
poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder
legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador.
Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria
perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse
os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as
querelas entre os particulares.” (MOSTESQUIEU. Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das
Leis. Tradução: Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 168).
105
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 374.
68
recíproca.”
Inspirado nesta noção (de checks and balances), o art. 2º da CFRB de 1988
determina: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário”106.
Novamente nas palavras do autor, deve-se interpretar a independência e
harmonia, nos termos da Constituição, muito mais como um sistema de checks and
balances do que uma separação absoluta de funções entre os Poderes:
pelo Chefe do Poder Executivo, e, por isso goza, pelo menos em tese, de certo respaldo da vontade
popular.
69
Vale afirmar, a propósito, que os direitos fundamentais são, por sua natureza,
109 MACHADO. Rafael Bicca. Cada um em seu lugar: cada um com sua função. In: TIMM, Luciano
Benetti (org.). Apontamentos sobre o atual papel do Poder Judiciário brasileiro, em homenagem ao
ministro Nelson Jobim. Revista de Direito e Economia. São Paulo: IOB Thompson, 2005, p. 43.
110
OLIVEIRA NETO, 2011.
111 Ibidem, p. 132-133.
70
Contudo, tal problema não se afigura insolúvel, pois, segundo o próprio autor,
a resposta está na consideração acerca da importância constitucional conferida ao
direito, no sentido de não se conceber deixar a decisão sobre ele para a maioria
parlamentar, seja pensando no legislador de hoje, bem como no do futuro. São
nesses exatos termos que se defende a natureza contramajoritária dos direitos
fundamentais. Em suas palavras, deve-se “[...] saber se e em que medida eles são,
do ponto de vista do direito constitucional, tão importantes que a decisão sobre eles
não possa ser deixada para a maioria parlamentar simples”113.
Ora, uma vez que, segundo Barroso114, o Estado Constitucional de Direito
gravita em torno dos direitos fundamentais e, sobretudo, da dignidade da pessoa
humana, enquanto “centro de irradiação dos direitos fundamentais, sendo
frequentemente identificada como núcleo essencial de tais direitos”, nada a
estranhar que pela atuação do Judiciário se afirmem e concretizem cada vez mais
tais direitos (notadamente os diretamente afetos à dignidade).
Questiona-se, entretanto, quais os limites concretos para essa atuação
(porquanto se sabe não ser ilimitada), destacadamente quanto aos direitos
prestacionais (que reconhecem obrigações positivas do Estado), caso em que há
repercussão econômica e, consequentemente, nas políticas públicas do país.
Precisamente nesse ponto as opiniões divergem drasticamente. De acordo
com o texto de Edilson Pereira Nobre Jr115, nos países latino-americanos (chamados
“em desenvolvimento”), a jurisdição constitucional deve se abster um pouco mais
das questões que envolvam consequências econômicas, restringindo-se à garantia
116
NOBRE JR, 2011, p. 92.
117 REIS JÚNIOR, Ari Timóteo dos. A teoria da reserva do possível e o reconhecimento pelo Estado
de prestações positivas. Revista Tributária e de Finanças Públicas. Ano 17, n. 86. maio/jun 2009.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 22-23.
72
Quer-se crer que a verdadeira questão a ser enfrentada nos casos difíceis
envolvendo a temática da saúde no país não se refere propriamente à extrapolação
do Judiciário da sua área de atuação. As complexidades próprias do mundo
contemporâneo, identificadas por alguns filósofos como pós-modernidade, somadas
ao fato de uma Constituição analítica, acabam por conformar o fenômeno da
juridicização da vida, ou seja, como a Carta Magna do país, em toda sua prolixidade,
trata de incontáveis aspectos da vida humana, temáticas que antes habitavam a
seara da política ou da sociologia tornaram-se jurídicas e, por isso, houve uma
inegável ampliação da importância do Poder Judiciário e de sua participação no
cenário nacional.
Recrimina-se, isso sim, a intervenção desarrazoada e ilimitada do Judiciário
na área da Saúde, porquanto nesse ponto irresponsável, na medida em que fragiliza
o primado da igualdade no Estado constitucional, tão ou mais caro ao sistema
democrático do que o clássico axioma da separação dos Poderes, corolário do
Estado liberal.
Desse modo, conclui-se que a atuação do Judiciário voltada à afirmação da
dignidade da pessoa humana jamais será exagerada ou descabida, muito menos
vulneradora da separação dos Poderes. Igualmente, havendo o descumprimento de
uma política pública estabelecida, como se percebe na hipótese de ações que
reclamam medicamentos constantes nas listagens do SUS, sua intervenção mais
que salutar é certamente devida. O que não se pode conceber é que o Poder
Judiciário, à revelia da sociedade e dos demais Poderes, arrogue-se da eleição de
prioridades nacionais e da efetivação das políticas públicas na área da Saúde, fato
ensejador de desequilíbrios e desigualdades ante a escassez dos recursos
financeiros, situação ilustrada por Clève120 como a metáfora do cobertor curto, em
que, ao ser puxado para cobrir a parte superior do corpo, deixa descoberta a inferior
e vice-versa.
Considerando-se as parciais conclusões do tópico, resta investigar o que vem
a ser o mínimo existencial e seus desdobramentos e repercussões na esfera de
atuação do Poder Judiciário.
121 SILVA. José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007,
p. 38-39, grifo nosso.
122 ALEXY, 2011.
75
de demanda proposta por estudantes que não haviam sido admitidos em escolas de medicina em
Hamburgo e Munique em face da política de limitação de vagas em cursos superiores, aplicada na
Alemanha na década de 1960, gerou posicionamento inovador na hermenêutica do art. 12 da
Constituição Alemã, o qual prescreve que “ todos os alemães têm direito a escolher livremente sua
profissão, local de trabalho e seu centro de formação”. Ao decidir o caso, referida Corte entendeu que
a satisfação do direito a prestações positivas, tal qual expresso na pretensão em destaque,
sujeitar-se-ia à reserva do possível, ou seja, quando observados os limites do que razoavelmente
(entendido aqui como pretensão embasada racionalmente) pode o indivíduo esperar da sociedade e
do Estado. (SEVERO. Renata Corrêa. O princípio da reserva do possível e a eficácia das decisões
judiciais em face da Administração Pública. Fórum Administrativo – Direito Público - FA. Ano 1, n. 1.
mar 2001. Belo Horizonte: Fórum, 2001, p. 28).
77
129Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 887734, relator Min. Marco Aurélio, Primeira
Turma, julgado em 25.08.2015, grifo nosso.
79
130 Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175, relator
Min. Gilmar Mendes, Plenário, julgado em 17.03.2010, grifo do autor.
131 ALEXY, 2011. A respeito do tema, conferir p. 43 deste trabalho.
80
137
ATIENZA; MANERO, 2016, p. 60.
138 ALEXY, 2011.
139 Ibidem, p. 511-512, grifo nosso.
82
Diante disso, é plausível concluir que o art. 5º, § 1º, CF, contém um
postulado de otimização das normas consagradoras dos direitos
fundamentais, inclusive dos direitos sociais – neles compreendido o
direito fundamental à saúde – impondo aos Poderes Públicos a tarefa
de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais, vinculando-os.
Assim, a vinculatividade normativo-constitucional dos direitos
fundamentais sociais impõe aos poderes públicos a realização
destes direitos por meio de medidas políticas, legislativas e
administrativas concretas e determinadas.
Constituição Federal: uma análise comparada. Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Estado
do Paraná. Curitiba, n. 1, 2010, p. 65.
150 ALEXY, op. cit.
151 REIS JÚNIOR, 2009, p. 27-28.
85
152 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 745745/MG. Relator Min. Celso de Mello, julgado
em 02.12.2014, grifo nosso.
153 ALEXY, 2011.
87
Repise-se que não se está afirmando que o Judiciário não deve agir diante
das hipóteses de inexistência de políticas públicas ou ainda no caso de sua
ineficiência. O que se pretende construir é uma interferência mais efetiva em prol da
influência que esse Poder deve exercer na edificação das políticas públicas, a fim de
colaborar com os demais Poderes na missão constitucional que lhes é comum de
concretizar a saúde no país ao máximo desejável e possível de forma contínua e
progressiva.
No próximo capítulo, tratar-se-á desse enfoque.
154Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublica/anexo/Luis_Roberto_Barroso.pdf>.
Acesso em: 25 janeiro 2016, grifo nosso.
88
155 PILATI, José Isaac. Função social e tutelas coletivas: contribuição do Direito Romano a um novo
paradigma. Jurisprudência Catarinense. v. 106, 2004, p. 189.
156 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil - Processo coletivo.
2014.
90
168 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais – uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 12 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 48.
169
CLÈVE, 2003, p. 158.
95
170
Ibidem, p. 158
171 O Projeto de Lei n. 5.139/2009 teve alterações, em seu texto original, formuladas pela Comissão
de Juristas do Ministério da Justiça e, posteriormente, foram realizadas mudanças pela Casa Civil da
Presidência da República, seguindo o texto para exame do Congresso Nacional e apresentação de
sugestões por instituições que se demonstrarem interessadas. O relator do projeto, o Deputado
Antônio Carlos Biscaia, apresentou, então, parecer substitutivo ao projeto de lei, em setembro de
2009. Em novembro, foi apresentado o terceiro substitutivo ao projeto de lei da ação civil pública,
incorporando 17 alterações, que resultaram dos debates travados no âmbito da Subcomissão
Especial instituída para apreciar a matéria. Após inúmeros debates na Subcomissão Especial,
constituída para analisar o projeto, esse provocou discussões na Câmara dos Deputados, e, em 4 de
março de 2010, adveio uma nova versão do Projeto n. 5.139/2009,acolhendo algumas emendas
propostas e trazendo ao texto modificações, como o fim da previsão de submissão da sentença de
improcedência ao reexame necessário e a previsão de crime para o retardamento ou omissão
injustificados de dados técnicos essenciais à propositura de uma ação civil pública. No dia 17 de
março de 2010, o referido projeto foi rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara
dos Deputados, em uma votação por maioria, de 17 votos a 14, ao fundamento de falta de debate e
de discussão pública. Aqui, podemos ver mais um retrocesso para a tutela coletiva em nossa história,
vez que o referido projeto acolhia diversas teses doutrinárias e jurisprudenciais, além de ser fruto do
trabalho de inúmeras entidades representativas, como forma de tentar pôr fim às polêmicas e às
96
2015, p. 9. Na visão desse autor, o Judiciário precisa promover uma mudança na sua cultura jurídica
a fim de poder enfrentar os conflitos de maior complexidade, entendidos estes como os conflitos
coletivos ou de expressiva repercussão social. Em suas palavras: “O direito material e processual que
praticamos está voltado para o plano individual estanque; não temos, ou melhor, ainda não
desenvolvemos um tipo de processo que alcance e deduza em juízo a verdadeira extensão dos
conflitos; que os enfrente desde a causa, na fonte das mesmas demandas repetitivas, dos grandes
litigantes e dos grandes vazios jurídicos que escarnecem da Justiça”.
173 PILATI, 2015.
97
174Ibidem, p. 25.
175Segundo José Isaac Pilati, em razão do reconhecimento de uma terceira categoria de bens, os
bens coletivos, necessariamente se inclui, na condição de sujeito de direito, o Sujeito Coletivo,
demandando, portanto, a construção de um novo paradigma jurídico que, na óptica do autor,
perpassa necessariamente por um processo administrativo participativo, por lei participativas (a
exemplo do plano diretor) e, por fim, mas não menos importante, um Judiciário disposto à
democratizar o processo judicial, tornando-o participativo nos casos autorizados constitucionalmente,
como no do SUS (Lei n. 8080/90). PILATI, 2015, p. 26.
98
176BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva,
2015, p. 249-250.
99
E, conclui o mesmo autor, afirmando que o art. 333, combinado com o art.
139, inciso X (possibilidade de agravo da decisão que coletiviza ou não a demanda
judicial individual), teria o condão de completar a tutela jurisdicional de direitos e
interesses coletivos, ao lado de outras técnicas, reduzindo, significativamente, o
número de processos no Judiciário, “motivo de tanto aplauso quando o tema são os
mecanismos verticalizados de coletivização, inclusive o Incidente de Resolução das
Demandas Repetitivas”181.
De outro vértice, corroborando as razões do veto, tem-se na doutrina de
José Rogério Cruz e Tucci182.
177 “[...] § 6º O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário do
legitimado para condução do processo coletivo. § 7º O autor originário não é responsável por
nenhuma despesa processual decorrente da conversão do processo individual em coletivo. [...] § 9º A
conversão poderá ocorrer mesmo que o autor tenha cumulado pedido de natureza estritamente
individual, hipótese em que o processamento desse pedido dar-se-á em autos apartados.”
178 “[...] § 5º Havendo aditamento ou emenda da petição inicial, o juiz determinará a intimação do réu
para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias. [...] § 10. O Ministério Público deverá ser
ouvido sobre o requerimento previsto no caput, salvo quando ele próprio o houver formulado.”
179 “[...] § 3º Não se admite a conversão, ainda, se: I – já iniciada, no processo individual, a audiência
183Na lição de José Rogério Cruz e Tucci, tal coletivização sofre, também, no âmbito internacional,
severas críticas: “Já sob outro enfoque, à luz da comparação jurídica, tem sido muito criticada uma
novidade, introduzida pelo Protocolo 14, de 2009, no âmbito da Corte Europeia dos Direitos do
Homem (Tribunal de Estrasburgo), consistente no processo de “arrêt pilote” – julgamento piloto”.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Paradoxo da Corte - Um veto providencial ao Novo Código de
Processo Civil! Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-17/paradoxo-corte-veto-
providencial-cpc>. Disponível em: 5 maio 2016.
101
dos indivíduos que acessam mais facilmente ao Judiciário, nem sempre os mais
carentes.
Malgrado o insucesso, há ainda outra possibilidade de coletivização da
demanda. O denominado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR),
atualmente em vigor, representa técnica de coletivização pelo julgamento que,
coexistindo com a possibilidade de coletivização pelo ajuizamento da demanda
(consoante leis específicas da tutela coletiva), tem como pretensão primeira
uniformizar a solução das demandas repetitivas, entre elas, destacadamente, as
relativas à saúde pública.
Tramitam hoje no Estado de Santa Catarina aproximadamente vinte e cinco
mil demandas relativas à saúde em geral, a maioria de cunho individual, sendo crível
presumir a diversidade de entendimentos e disparidade das soluções dadas a casos
absolutamente idênticos, caracterizando verdadeira “loteria” jurídica o julgamento em
um ou outro sentido.184
Somente, em 2015, foram propostas 9.976 novas demandas, estabelecendo
uma média de 831 novas ações a cada mês. Em 2016, nos três primeiros meses do
ano (janeiro, fevereiro e março), registraram-se 2.883 novos pleitos na área da
assistência à saúde, muitos deles tratando da mesma temática.185
Diante dessa realidade, o IRDR pode representar um avanço à prestação
jurisdicional célere e mais efetiva.
A título de informação, registre-se que foi admitido o primeiro IRDR no
Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em 11/05/2016, versando sobre a
exigibilidade ou não de hipossuficiência do paciente que reclama a dispensação de
medicamentos contra os entes públicos e ainda se devem ser diferenciados os
casos de insumos padronizados daqueles fora da listagem oficial.
184 O número de demandas pendentes na área da Saúde em geral é alarmante no Estado de Santa
Catarina (e, imagina-se, nos outros Estados da Federação). No primeiro grau, foram encontrados
23.624 processos e, nas Câmaras de Direito Público, 1.842 processos, além dos 55 processos
pendentes em outros Órgãos Julgadores desse Tribunal.
185 Sistema MEJUD e SGM, da Secretaria de Estado da Saúde.
102
186 MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2015, p. 1324.
187 BUENO. 2015, p. 613.
188“Art. 979. A instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica
§ 1o Os tribunais manterão banco eletrônico de dados atualizados com informações específicas sobre
questões de direito submetidas ao incidente, comunicando-o imediatamente ao Conselho Nacional de
Justiça para inclusão no cadastro.
§ 2o Para possibilitar a identificação dos processos abrangidos pela decisão do incidente, o registro
eletrônico das teses jurídicas constantes do cadastro conterá, no mínimo, os fundamentos
determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados.
§ 3o Aplica-se o disposto neste artigo ao julgamento de recursos repetitivos e da repercussão geral
em recurso extraordinário.
[...]
Art. 982. Admitido o incidente, o relator:
I - suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na
região, conforme o caso;
II - poderá requisitar informações a órgãos em cujo juízo tramita processo no qual se discute o objeto
do incidente, que as prestarão no prazo de 15 (quinze) dias;
III - intimará o Ministério Público para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias.
§ 1o A suspensão será comunicada aos órgãos jurisdicionais competentes.
§ 2o Durante a suspensão, o pedido de tutela de urgência deverá ser dirigido ao juízo onde tramita o
processo suspenso.
§ 3o Visando à garantia da segurança jurídica, qualquer legitimado mencionado no art. 977, incisos II
e III, poderá requerer, ao tribunal competente para conhecer do recurso extraordinário ou especial, a
suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem
sobre a questão objeto do incidente já instaurado.
§ 4o Independentemente dos limites da competência territorial, a parte no processo em curso no qual
se discuta a mesma questão objeto do incidente é legitimada para requerer a providência prevista no
§ 3o deste artigo.
§ 5o Cessa a suspensão a que se refere o inciso I do caput deste artigo se não for interposto recurso
especial ou recurso extraordinário contra a decisão proferida no incidente.”
189Art. 983. O relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e
entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, poderão requerer
a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de
direito controvertida, e, em seguida, manifestar-se-á o Ministério Público, no mesmo prazo.
§ 1o Para instruir o incidente, o relator poderá designar data para, em audiência pública, ouvir
depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria.
§ 2o Concluídas as diligências, o relator solicitará dia para o julgamento do incidente.
190O Sistema Único de Saúde, baseado na medicina de evidência, disponibiliza diversos
de sedimentar tese jurídica capaz de apaziguar boa parte dos conflitos até então
tratados às migalhas.
Sob esse aspecto em particular, a Audiência Pública, tanto em sede
administrativa, quanto legislativa ou judiciária (hipótese do IRDR), representa, nos
dizeres de Pilati191, a última fronteira para a construção do paradigma jurídico da
pós-modernidade, baseado na ideia de decisão participativa e construída a partir da
realidade, ou seja, analisando-se o conflito em sua totalidade.
Aliás, a temática envolvendo Audiência Pública mostra-se tão relevante, que
dela se ocupa a parte final da presente dissertação, elencando-a como possível
solução ao problema da judicialização da saúde no país, além de servir ao
balizamento da atuação do Poder Judiciário na matéria, sob a perspectiva da
soberania compartilhada.
Sem pretensão de esgotar a polêmica, mas honrando o intuito propositivo do
trabalho, passa-se a uma singela tentativa de sistematização da intervenção judicial
na saúde, corroborando a tendência evidenciada no Novo Código de Processo Civil
de uniformidade dos julgados de casos similares e de respeito ao primado da
segurança jurídica e da igualdade.
198TERRAZAS, Fernanda Vargas. O Poder Judiciário como voz institucional dos pobres.
Disponível em: <bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em: 1º
maio 2016, p. 80.
108
199 Na pesquisa empírica empreendida pela autora, percebeu-se que 97% dos entrevistados
embasaram seus pleitos judiciais a partir da prescrição de médico particular. Dentre os entrevistados,
89% disseram terem sido orientados pelo próprio médico a promover a ação judicial reclamando a
dispensação do medicamento não padronizado pelo SUS. Ainda, 62% das demandas foram
conduzidas por advogado particular. Por fim, 96% dos entrevistados atestaram utilizar o SUS
somente para receber a medicação em foco, ou seja, não utilizam os serviços médicos do sistema
público. Em matéria de renda, o maior percentual, correspondendo a 38% dos beneficiados, recebem
de 2 a 5 salários mínimos. Dos entrevistados, 58% possuem o ensino médio e 40%, o ensino
superior. Dos pacientes ouvidos, 96% possuem casa própria quitada, enquanto 18% encontram-se
pagando as prestações da casa própria.
200
TERRAZAS. Disponível em:
<bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em: 1º maio 2016,
grifo da autora.
201 Ibidem. A autora demonstra que, assim como acontece com o Estado de Santa Catarina, o Estado
de São Paulo gastou muito mais proporcionalmente falando com o cumprimento de decisões judiciais
109
do que com dispensação ordinária de medicamentos aos usuários do sistema de saúde. Eis suas
considerações: “A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo gastou, no ano de 2006, apenas com
o cumprimento das decisões judiciais da comarca da capital de São Paulo (das pessoas que são
atendidas no FAJ), R$ 65 milhões para atender cerca de 3.600 pessoas. Em comparação, no mesmo
ano, com o Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional (cuja execução é de
responsabilidade estadual), a Secretaria de Saúde gastou R$ 838 milhões para atender 380 mil
pessoas. Isso significa que no Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional foram
gastos, em média, R$ 2.205,00/ano por usuário, enquanto com o cumprimento das determinações
judiciais foram gastos, em média, R$ 18.000,00/ano por beneficiado.” (TERRAZAS. Disponível em:
<bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em: 1º maio 2016.)
202 Extrai-se do texto: “Em relação ao tipo de estabelecimento de saúde no qual foi feita a prescrição
do medicamento solicitado, os resultados indicam que a maioria (60,63%) dos beneficiados por
decisões judiciais foi atendida em serviços de saúde privados. Quanto aos condutores das ações, um
primeiro ponto a destacar é que 60% dos entrevistados tiveram suas ações propostas por serviços
particulares – advogados ou associações. Nesse sentido, merece atenção a atuação das ONGs e
demais associações nesse papel. Dos entrevistados, 21,25% apontaram essas instituições como
condutoras da ação judicial que propuseram. Em um primeiro momento, essa informação poderia
sugerir uma boa organização e estruturação da sociedade civil na proteção dos direitos de
determinados grupos (“portadores da doença X”). Considerável parcela desses 21,25%, porém, não
sabia informar o nome da associação/ONG que lhe prestou assistência judiciária ou, não obstante
conhecesse seu nome, nunca havia frequentado tal instituição, não sabia onde era sua sede etc. O
contato era feito por meio de telefone, correio e e-mails. Além disso, os entrevistados não pagavam
nenhum tipo de mensalidade ou contribuição para essas associações desconhecidas ou pouco
conhecidas. Cruzando os dados das ações que foram conduzidas por associações/ONGs com a dos
medicamentos solicitados (tabela 15), constatou-se que das 34 pessoas que disseram que o condutor
da sua ação judicial havia sido uma associação/ ONG, 23 haviam solicitado medicamentos para
artrite reumatoide (67,65%). Coincidentemente, eram os solicitantes desses medicamentos
específicos que não sabiam informar o nome da associação/ONG que lhe prestou o serviço de
assistência jurídica. Enquanto na contagem geral 60% dos entrevistados eram oriundos da rede
privada, quando são analisados somente aqueles que solicitaram medicamentos oncológicos, 84%
dos entrevistados são oriundos da rede privada.
A distribuição das faixas de renda também muda. Há maior concentração nas faixas de dois até cinco
salários mínimos e nas de mais de cinco salários mínimos. Modo como o entrevistado classifica sua
vizinhança. Somando as opções “classe média” e “classe média baixa”, cerca de 70% dos
entrevistados classificaram sua vizinhança como de classe média. Esse número parece retratar de
forma fiel o grupo que predomina como propositor das ações. Pessoas razoavelmente informadas,
que utilizam a rede privada na atenção à saúde, mas que, quando precisam de um medicamento de
custo mais elevado – que não conseguem pagar ou que pagariam com dificuldade –, recorrem ao
SUS. Isso porque este deve garantir seu direito à saúde, que nesse caso é composto por uma única
prestação estatal: o fornecimento de medicamentos de custo elevado.
Primeiramente, e partindo das impressões obtidas durante a realização da pesquisa empírica,
destaca-se que, independentemente de qualquer variável, aqueles que obtêm uma decisão judicial
favorável ao fornecimento de medicamentos são cidadãos privilegiados. Isso porque eles têm acesso
a bens diferenciados e a um tratamento distinto daqueles normalmente oferecidos aos usuários do
SUS.
Recebem frequentemente os medicamentos considerados mais modernos e a falta dos
medicamentos, quando ocorre, é prontamente sanada. Outro filtro a selecionar esse público
diferenciado é o acesso à informação. Isso porque para chegar até o Poder Judiciário e conseguir
uma decisão favorável, além de poder pagar por um advogado ou ter assistência judiciária gratuita –
acesso à Justiça –, é preciso antes saber que existe esse caminho. Sendo assim, quem vai até um
juiz para conseguir medicamentos, normalmente possui um nível de instrução ou renda que lhe
permite ter a informação de que por meio de uma ação judicial é possível obter medicamentos
gratuitamente do SUS”. O Poder Judiciário como voz institucional dos pobres. Disponível em:
<bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em: 1º maio 2016).
110
focar em seu aspecto prospectivo, ou seja, no que Pilati209 defende como sendo
propriamente uma nova forma de exercício do direito coletivo e, por isso, de
repercussão nas três esferas de Poder, e não apenas no Judiciário.210
Em Santa Catarina uma inciativa interessante merece menção, na medida em
que busca aprofundar os debates acerca da saúde pública no Estado, inaugurando
um diálogo multidisciplinar na esfera judicial, a teor do que propõe o Conselho
Nacional de Justiça. 211 Seguindo a recomendação do Conselho Nacional de Justiça
209 Ibidem.
210 A partir dos resultados da Audiência Pública nº 4, realizada pelo STF em maio e abril de 2009, o
CNJ constituiu um grupo de trabalho (Portaria n. 650, de 20 de novembro de 2009) . Os trabalhos do
grupo culminaram na aprovação da Recomendação n. 31, de 30 de março de 2010, pelo Plenário do
CNJ que traça diretrizes aos magistrados quanto às demandas judiciais que envolvem a assistência à
saúde. Em 6 de abril de 2010, o CNJ publicou a Resolução n. 107, que instituiu o Fórum Nacional do
Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde – Fórum da Saúde.
O Fórum da Saúde é coordenado por um Comitê Executivo Nacional (Portaria n. 8 de 2 de fevereiro
de 2016) e constituído por Comitês Estaduais. A fim de subsidiar com informações estatísticas os
trabalhos do Fórum, foi instituído, por meio da Resolução 107 do CNJ, um sistema eletrônico de
acompanhamento das ações judiciais que envolvem a assistência à saúde, chamado Sistema
Resolução 107. Após realizar dois encontros nacionais, o Fórum da Saúde ampliou sua área de
atuação para incluir a saúde suplementar e as ações resultantes das relações de consumo
(disponível em: http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude).
211 Acerca do tema, registre-se o conteúdo da Resolução n. 31, do CNJ, de 30.03.2010: “ [...]
Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que:
a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto
por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à
apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas
as peculiaridades regionais;
b) orientem, através das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que:
b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da
doença, inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou
princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata;
b.2) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela ANVISA, ou em
fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei;
b.3) ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da
apreciação de medidas de urgência;
b.4) verifiquem, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), se os requerentes
fazem parte de programas de pesquisa experimental dos laboratórios, caso em que estes devem
assumir a continuidade do tratamento;
b.5) determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política pública existente, a
inscrição do beneficiário nos respectivos programas;
c) incluam a legislação relativa ao direito sanitário como matéria individualizada no programa de
direito administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da magistratura, de acordo
com a relação mínima de disciplinas estabelecida pela Resolução 75/2009 do Conselho Nacional de
Justiça;
d) promovam, para fins de conhecimento prático de funcionamento, visitas dos magistrados aos
Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou
conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia como
Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - UNACON ou Centro de Assistência de
Alta Complexidade em Oncologia - CACON;
II. Recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM, à
Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho - ENAMAT e às
Escolas de Magistratura Federais e Estaduais que:
a) incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e
aperfeiçoamento de magistrados;
113
qualquer demanda apresentada nessa seara. Ou seja, nem toda pretensão estará
automaticamente albergada na regra. Exige-se, para operar a subsunção, a violação
de uma proibição ou um dever correspondente ao princípio invocado. A propósito da
assertiva, deve-se lembrar que, embora o autor condene a ponderação entre
princípios colidentes, recomenda a ponderação dos fatos a fim de orientar o
processo de subsunção à regra violada.
Nas hipóteses, portanto, das garantias constitucionais positivas, vale-se da
teoria da completude para reconhecer a existência de uma lacuna legislativa e, por
conseguinte, na violação constitucional por omissão da obrigação de concretizar o
direito fundamental em destaque, por meio de uma legislação de atuação,
consistente na introdução das garantias “[...] primárias e secundárias faltantes, que o
princípio da completude impõe ao legislador e que integra a garantia constitucional
primária positiva dos direitos constitucionalmente estabelecidos”214.
De certo modo, reconhece o autor um direito subjetivo à concretização
legislativa da garantia constitucional concernente aos direitos sociais prestacionais.
Segundo Ferrajoli215:
214
FERRAJOLI, 2015, p. 78.
215 Ibidem, p. 75.
216 Ibidem, p. 79.
217
Ibidem, p. 79.
115
219
ALEXY, 2011, p. 202.
220
FERRAJOLI, 2015.
117
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janeiro: Campus, 1992.
BUENO. Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo:
Saraiva, 2015.
MACHADO. Rafael Bicca. Cada um em seu lugar: cada um com sua função. In:
TIMM, Luciano Benetti (org.). Apontamentos sobre o atual papel do Poder Judiciário
brasileiro, em homenagem ao ministro Nelson Jobim. Revista de Direito e
Economia. São Paulo: IOB Thompson, 2005.
MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais – uma teoria geral
dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12 ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2015.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São
Paulo: RT, 1982.
TERRAZAS, Fernanda Vargas. O Poder Judiciário como voz institucional dos pobres.
Disponível em:
<bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8047/6837>. Acesso em:
1º maio 2016.