O Espelho e A Máscara - O Enigma Da Comunicação No Caminho Do Meio - Ciro Marcondes Filho

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As novas tecnologias de comunicação – televisão digital, internet, telefonia móvel – anunci-


am oportunidades excepcionais de melhorar a comunicação humana. As pessoas se tornarão mais próximas, o
contato será incentivado, a solidão poderá ser efetivamente eliminada. Mas, será que é isso mesmo? Afinal, de
que comunicação falam esses novos equipamentos sociais? Até que ponto estaremos “em comum”, juntos, pró-
ximos de fato, uns dos outros?

Há uma grande confusão entre emitir sinais, mensagens, e de fato comunicar. Isso porque comunicar é, antes de
tudo, “sentir junto”, participar da existência do outro, conhecê-lo, mesmo que ele nada diga, mesmo em seu
silêncio. É por isso que as filosofias da linguagem se equivocam quando determinam que o comunicar tem de se
subordinar a um referencial de linguagem padronizado e instituído. Da mesma forma, as filosofias do corpo e
suas derivações pragmáticas se equivocam ao dizer que tudo simplesmente comunica, bastando existir. Não é
bem assim, há mais dimensões, a comunicação passa necessariamente pela validação do outro ou das outras
coisas, é uma questão de reconhecimento.

Esta obra antecede a trilogia Nova Teoria da Comunicação, em seus 7 volumes, publicada pela Editora
Paulus, entre 2004 e 2013, cuja intenção foi a de vasculhar esse imenso continente muito falado, mas desconhe-
cido, dos entrosamentos humanos. Este volume é básico e introdutório. Publicado originalmente em 2002, trata,
de forma genérica, das principais correntes da filosofia da linguagem, da psicanálise da comunicação, das lingua-
gens do corpo. Discute também as tecnologias e sua relação com o homem, trazendo, por fim, uma síntese das
principais escolas teóricas da comunicação. Na segunda parte, inicia um debate, que foi retomado em 2010, no
Volume 3 do Princípio da Razão Durante, ou seja, as possibilidades de pesquisa a partir de uma nova
concepção de comunicação: comunicação como processo dinâmico, que se realiza de forma plena em situações
pontuais e fortemente carregadas. Comunicação como um evento irrepetível, impactante, que repercute pela com-
binação ótima de fatores únicos e, por isso mesmo, paradoxal, fascinante, estranha.

O Volume 2, O escavador de silêncios, publicado em 2004, procurou aprofundar temas apenas iniciados neste
volume: a questão do sentido em Gilles Deleuze, a interpretação segundo Jacques Derrida e a complexidade, a
autopoiese e o sistema comunicacional em Niklas Luhmann. Nietzsche e Heidegger são personagens centrais
nesses debates, além de alusões cosntantes a Peirce, Rorty, Bergson, Merleau-Ponty.

São Paulo, julho de 2018


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Ciro Marcondes Filho

O espelho
e a máscara
O enigma da comunicação no cami-
nho do meio

2ª. Edição

DOI 10.11606/9788572052511

São Paulo
ECA-USP
2019
4

É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a


fonte e autoria, proibindo qualquer uso para fins comerciais.

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

M321e Marcondes Filho, Ciro


O espelho e a máscara [recurso eletrônico] : o enigma da
comunicação e o caminho do meio / Ciro Marcondes Filho –
2. ed. – São Paulo: ECA/USP, 2019. 180 p.

ISBN 978-85-7205-251-1
DOI 10.11606/9788572052511

1. Comunicação 2. Filosofia da comunicação 3. Filosofia


da linguagem 3. Teoria da comunicação I. Título

CDD 23.ed. – 302.2

Elaborado por: Alessandra Vieira Canholi Maldonado CRB-8/6194


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Sumário
1. O enigma da comunicação, 7
2. Filosofias da linguagem, 11
Humboldt, Peirce e Saussure, 11 – Austin e Searle, 20 – Chomsky e Hofstadter, 24 –
Hjelmslev e Deleuze, 28
Excurso 1: A semiologia, 34
Excurso 2: A interpretação, 36
3. Linguagens do corpo e linguagens inconscientes, 41
Linguagens do corpo, 41 – Palo Alto, 41 – Alfred Lorenzer, 48 – A (im)possibilidade
da comunicação, 50
4. Linguagem e tecnologias, 55
Três formas de comunicação, 55 – Comunicação e as temporalidades, 59 – Comunica-
ção e a técnica, 63 – Linguagem e inteligência artificial, 69
Excurso 3: O Jogo da Imitação e a Sala Chinesa, 73
Excurso 4: Homens e máquinas, 78
A escrita diante das tecnologias, 79
5.Teorias da comunicação, 87
Escola de Frankfurt, a primeira teoria da comunicação, 87 – Teorias matemáticas de
comunicação, 89 – A crítica da indústria cultural, 94 – Os modelos empírico-
funcionalistas, 95 – Marshall McLuhan, 97 – Na trilha de Adorno, 101 – Na trilha de
Habermas, 102 – Na trilha de Reich, 103 – Na trilha de Heidegger, 103 – Na trilha de
Marx, 104 – Na trilha de McLuhan, 105 – Na trilha de Nietzsche, 106
Excurso 5: Aplicações em jornalismo e imagem, 113; A informação e a esfera pública,
113
Excurso 5: A imagem, 122

O caminho do meio
6. O caminho do meio, 129
A razão durante, 129
7. A ordem e o caos, 131
8. Autopoiese e auto-organização, 135
9. Conhecimento e paradoxos, 139
Ambiguidades ontológicas, 139 – Ambiguidades epistemológicas, 143 – Ambiguidades
lógicas, 146 – Ambiguidades fenomenológicas, 148
10. Racionalidade, desvios, surpresas, 153
Lógica das águas e lógica das pedras, 153 – O racionalismo científico, 157 – A mudan-
ça de paradigmas na ciência, 162
Excurso 6: Teoria do Caos e ciências humanas, 167
6

Aplicações sociais: A economia, 168 – Ciência política, 169 – Teoria das organizações,
169 – Processos psíquicos, 170;

Bibliografia 175
7

1. O enigma da comunicação

As novas tecnologias de comunicação colocam uma nova questão nas formas de socia-
bilidade humana: elas dizem aumentar as oportunidades de troca, interação, compartilhamento
de sensações e emoções, em suma, elas acreditam ampliar e melhorar as formas de comunicação. En-
tretanto, de que comunicação elas falam? Que relacionamento acreditam ampliar? Que trocas
de fato de efetuam?
Ao que tudo indica, as formas modernas de troca de mensagens, de diálogos permea-
dos pelo computador, de interatividade dilatam as capacidades humanas de receber e repassar
mensagens, mas a pergunta permanece: isso é efetivamente comunicar?
Para tanto cabe rever e rediscutir o conceito de comunicação. O termo designa, em
geral, o ato de transmitir e trocar signos e mensagens, referindo-se mais além à circulação de
bens e pessoas. De forma mais ampla, ela se aplica aos processos técnicos de transmissão e
troca de mensagens que vieram com a imprensa, o rádio, a televisão, os satélites. Cada um des-
ses é um “medium” e o conjunto deles é o plural latino media.
Afora isso, a comunicação social supõe um plano interpessoal, um plano mediatizado
(executado por empresas) e um plano institucionalizado (transmissão cultural, social, etc.).
Mas todas essas definições pecam por se aterem ao plano formal da comunicação, são
meras definições nominalistas que nada dizem sob o processo humano do comunicar. Gregório,
na Metamorfose, de Kafka, por exemplo, não morreu porque se transformou num inseto, mas
porque perdeu a possibilidade de comunicação com sua família.
Desta forma, se quisermos nos manter distantes dos usos difusos e propriamente físi-
cos do termo, comunicação relaciona-se diretamente com comum e com comunhão. E comum
tem a ver com a ideia de pertencer ao mesmo tempo a vários sujeitos. Em Platão, toda seme-
lhança deriva de uma participação efetiva de uma ideia, que seria comum. Já “comunhão” diz
respeito à semelhança dos sentimentos, de ideias, de crenças entre duas ou mais pessoas que
têm consciência dessa semelhança. E. Bréhier, por exemplo, refere-se às comunhões como
criação de uma “atmosfera que dá a cada um dos membros uma espécie de bem-estar moral”.
Não estamos interessados aqui, evidentemente, na interpretação moral do conceito; entretanto,
ele nos abre para o termo comunicação de consciências, supostamente de Jaspers, que nos aproxima
da ideia de comunicação: “Por oposição ao solipsismo da consciência dita 'fechada' - comuni-
cação designa - a experiência imediata da consciência do outro, por exemplo, no olhar, no
amor. Segundo Lalande, o mesmo conceito pode ainda falar da hipótese dos “espíritos se co-
municarem inconscientemente, de uma maneira total ou parcial, analogamente à maneira que
ocorre na percepção.
Esses campos são expurgados das definições correntes de comunicação, que operam
com o fato empírico de alguém mandar algo a outro alguém através de um determinado códi-
go. Isso é muito pouco, principalmente porque se refere a uma forma neutra, fria, indiferente
do processo de comunicar. São definições tecnocráticas do ato comunicativo e sintonizadas com
formas oficiais, conservadoras, identificadas com uma visão de mundo não efetivamente políti-
ca da comunicação. São, em geral, consolos ou justificativas para aqueles que vivem numa so-
ciedade em que ninguém se comunica de fato e se satisfaz com substitutos ou mecanismos
ilusórios. Os sistemas técnicos permitem tudo – mensagens eletrônicas em quantidades extra-
ordinárias, acesso a satélites e a jornais do mundo inteiro, contato com pessoas dos mais dife-
rentes contextos – mas o permitem mantendo cada um separado do outro, fechado em seu
universo, intocável, só.
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Os estudiosos de comunicação ora se dedicam à pesquisa eminentemente linguística,


ora à pesquisa dos sistemas de comunicação enquanto grandes complexos de transmissão de
informações, ora se voltam para as comunicações espontâneas ou inconscientes. Mas todos
esses modelos são parciais e, por esse mesmo motivo, enganosos por suporem – através disso
– dar conta do processo comunicacional. A linguística, por exemplo, seja formalizando a língua
como um sistema à parte do resto do mundo e dos contextos de vida, seja enxergando a co-
municação como um procedimento pragmático em que o que vale são os resultados, coloca-se
sistematicamente acima das coisas: é a posição de Sellars e dos pragmáticos americanos, para
quem a linguagem é a macroexplicação para todos os fenômenos sociais.
Semelhante pretensão beira o ridículo. Por que uma área do conhecimento tem de se
pretender absoluta e matriz para todas as outras? É o mesmo erro em que caem atualmente
semiólogos e semioticistas, ao defenderem que tudo no mundo deve se subsumir à linguagem,
todos os campos do saber são subterritórios da linguística. Engano ingênuo, visto que nenhum
saber pode se arvorar a “macro-saber”, sob o risco de cair no paradoxo. Como diz Watzlawick,
todo sistema se quiser demonstrar coerência deve sair de seu próprio quadro conceitual: so-
mente princípios interpretativos exteriores - que o próprio sistema não pode criar por si mes-
mo - permitem demonstrar que ele não encerra nenhuma contradição.
É por isso também que a gramatologia de Jacques Derrida supera a linguística estrutu-
ral, pois consegue relativizá-la e vê nela vícios teóricos nas próprias concepções de Saussure
que questionam seu conceito de significado.
Mas há outros vícios: se os estruturalistas se batem pelo que está sendo comunicado
versus o que não está sendo comunicado pela linguagem, os estudiosos do Colégio Invisível em
torno de Gregory Bateson, vão dizer, singelamente, que absolutamente tudo comunica. Não há
escapatória: basta estar vivo para estar comunicando. Entretanto, não se estará confundindo aí
uma transmissão obrigatória de sinais, um mero existir com o comunicar? É natural que para
comprovar minha presença no mundo eu tenho que me fazer ver. Mas há coisas que não são
visíveis e que comunicam, há seres que são visíveis e passam totalmente despercebidos, ou seja,
comunicar encerra necessariamente a validação do outro ou das outras coisas e isso remete à
questão do reconhecimento.
Hegel fala a esse respeito no fato de que cada consciência só existe na medida em que é
reconhecida pela outra, não existe uma consciência de si somente por si mesma. Da mesma
forma, os processos comunicacionais não podem jamais existir na unilateralidade. E o que sig-
nificam algumas fórmulas modernas de comunicação eletrônica, de trocas on line nos ambientes
virtuais senão mecanismos unilaterais, ou então, de “sociabilidade com a máquina”?
A comunicação aspira muito mais. A falácia da comunicação baseada apenas na frase
(da linguística estrutural) foi superada pela pragmática, assim como pelos construtivistas, que
consideram a cena, toda a moldura do ambiente. Mas há muitas outras coisas que são sequer
consideradas. Merleau-Ponty fala da experiência do diálogo que se constitui como um terreno
comum: “meu pensamento e o do outro formam um tecido comum, meus propósitos e os de
meu interlocutor são solicitados pelo estado da discussão, se inserem numa operação comum
da qual nenhum de nós é criador. Há aí um ser em dois e o outro, para mim, não é aqui mais
um simples comportamento no meu campo transcendental, nem aliás eu no dele, nós somos,
um para o outro, colaboradores numa reciprocidade perfeita, nossas perspectivas deslizam de
uma para outra, nós coexistimos através do mesmo mundo. No diálogo eu me libero de mim
mesmo, os pensamentos do outro são seus pensamentos, não sou eu que os formo apesar de
os apreender mal eles surgem ou os ultrapassar e, mesmo, a objeção que me faz o interlocutor
extrai de mim os pensamentos que eu não sabia possuir, se sorte que se eu lhe empresto meus
pensamentos, ele me faz pensar de volta”.
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Assim é a comunicação: a agonia de Gregory por não poder mais nada transmitir à sua
família por ser agora um inseto. A partilha dos sentimentos, das ideias, a comunicação das
consciências pelo olhar, pelo amor, a comunicação “entre espíritos”. Husserl dizia que excluí-
mos (da expressão) o jogo de fisionomias e os gestos com os quais acompanhamos involunta-
riamente nosso discurso, ou, pelo menos, sem intenção de comunicação, ou, nos quais, mesmo
sem a cooperação do discurso, o estado de alma de uma pessoa se torna “expressão” inteligível
para os que estão à sua volta. São expressões que não são discurso, caem fora do campo da
linguagem mas são comunicações.

Fato é que todos falam de comunicação, comunicação virou termo da moda, clichê
cultural que se aplica a todas as circunstâncias. E por isso mesmo, um termo que já não diz
quase nada. Palavra oca, esvaziada pelo excesso de uso, ninguém mais sabe muito bem o que é
comunicar. O enigma da comunicação é a tentativa de recuperar a ideia que se associa de for-
ma plena ao ato comunicativo, desdobrando-o para além das dimensões conhecidas e viciadas,
buscando as pistas de um objeto perdido.

Detalhamentos

Para Auroux e Weil, “comunicar é um problema prático antes de ser objeto de uma interrogação filo-
sófica ou de uma elaboração científica. Eu sofro e eu vivo sob o olhar do outro, como o outro vive e
sofre sob meu olhar; fechado na interioridade absoluta de minha consciência, como posso fa-
zer sentir minha dor? Um olhar, um gesto, podem mentir. E há mais, o outro é um homem,
mas, no caso do mundo que nos rodeia, os animais, posso me comunicar com eles? Na Meta-
morfose, de Kafka, Gregório morre não porque ele é um inseto ferido mas porque, metamorfo-
seado em barata, já não há comunicação possível entre sua família e ele. A comunicação é, de
início, compreendida como relação privilegiada de consciências humanas” (Auroux/Weil,
1991, p. 61/62).

Na origem da comunicação está o termo comunhão. Cf. E. Bréhier, Sociedade e comunhão, citado
por Lalande, 1996.

A afirmação de Watzlawick sobre o todo, de sair do seu quadro conceitual, está em


Watzlawick, 1978, p. 232-3.

Sobre o Colégio Invisivel: Trata-se do nome do grupo de pesquisadores de comunicação -


Ray Birdwhistell, Edward Hall, Erving Goffman e, posteriormente, Don Jackson e Paul
Watzlawick - que se formou em torno de Gregory Bateson. Seus membros jamais se reuniram
de fato, a não ser de forma acidental, em um ou outro colóquio, daí o termo Colégio (ou Fa-
culdade) Invivísvel. (conf. Yves Winkin, in: Bateson et al., 1981, p.21). Ver também Miège,
1995, pp. 50ss, Marcondes Filho, 1989, pp. 245ss. A double bind foi construída a partir de Rus-
sell e os tipos lógicos, ver sobre o Colégio Invisível: Bateson, 1956, e Bateson, 1981, p.35ss.

Dialética do Senhor e do Escravo. Segundo Hegel, o senhor arrisca sua vida na luta e, ao
vencê-la, torna-se senhor. O escravo, com medo da morte, nada arrisca aceitando por isso sua
condição de escravo, o que o torna algo como uma “coisa” nas mãos do senhor. Contudo, na
relação entre os dois um movimento dialético inverte os papéis: desaprendendo a fazer as coi-
sas, o senhor torna-se dependente delas, vira escravo do escravo; já o escravo torna-se senhor
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delas, por poder dominá-las e, com isso, senhor do senhor. Além do mais, o senhor não se
realiza plenamente pois o escravo “reduzido a coisa” não constitui o polo dialético adequado
para o senhor. O escravo parte do desejo: o desejo é uma forma de negar o mundo e seu ver-
dadeiro fim é a afirmação da consciência. A subjetividade só se afirma na medida em que o
desejo se apoie sobre uma outra consciência, isto é, um outro desejo. Para cada consciência em
si mesma, a outra é a negação de si e esta negação se exprime através de uma luta mortal. Acei-
tando o devir escravo para preservar sua vida, um dos dois reconhece o outro como senhor;
segue-se que ambos se reconhecem como sendo outros, nenhum tem de fato consciência de si,
ela não se conhece a não ser na alteridade. Cf. Hegel, 1806-1807.

A citação de Merleau Ponty, M. está em Merleau-Ponty, 1945, p.407. A de Husserl, em


Husserl, 1968.
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2 - Filosofias da linguagem

Humboldt, Peirce, Saussure

A linguística moderna inicia-se com Wilhelm von Humboldt, filólogo e filósofo da


linguagem alemão, que viveu no século 19. Fundador da universidade de Berlim, estudioso de
diversas línguas, Humboldt pretendia criar uma “teoria geral das línguas”, como lugar de ope-
rações que se repetem todo o tempo, onde a espécie humana se criaria como humanidade”.
Para ele, a língua não é apenas um quadro, constituido de partes concomitantes, mas
uma música em que os timbres passados e que estão à espera de seu momento intervêm no
timbre atual reforçando e produzindo seus efeitos. A lingua em Humboldt possui vida e mo-
vimento, não tem origem nem fim. Tudo nela é forma e formação de formas pelo processo da
repetição contínua. Daí o caráter dinâmico das interações que ficam se provocando mutua-
mente, tornando a língua uma contrução eterna. Assim, a língua não é “parte do mundo”, ao
contrário, ela constrói o seu mundo, que, sempre singular, tende a se superar na direção de
outros mundos (outras línguas).
Simpatizante da filosofia hegeliana, Humboldt dota a língua de historicidade, no fato de
ela não cessar de se desfazer e se refazer, por meio de uma série de rupturas e de emergências
que mantêm uma efervescência geradora de história (nela se alternam ausências e presenças
sem que um princípio temporal opressor a domine).
A influência de Hegel sobre a filosofia da linguagem continuará a ser exercida depois
de Humboldt, a saber, no pragmatismo de Peirce. Humboldt, por sua vez, servirá de base para
outros linguistas posteriores como Cassirer e Chomsky.

Cerca de 70 após a publicação dos trabalhos de Humboldt, Peirce retomaria a questão


da linguagem, dando origem à semiótica (“ciência dos signos”), através do método pragmático,
versão norte-americana do empirismo. Segundo esse método, o conhecimento não é mera
intuição (como supunha Descartes), não é aceitação acrítica das percepções de senso comum,
não é síntese a priori (como imaginava Kant). Conhecimento é fundamentalmente pesquisa,
que se inicia com a dúvida; a dúvida cria o incômodo e por meio deste busca-se conhecer e se
chegar ao estado de calma e satisfação (“estado de crença”). Buscamos, assim – dizem os
pragmáticos - essas crenças; elas formam os hábitos que determinam nossas ações.
Daí Peirce chega à linguagem: um conceito, um significado racional de uma palavra ou
de uma expressão, consiste nos reflexos que esta tem sobre a conduta de vida. O que importa,
portanto, são os “efeitos experimentais concebíveis”. Mas o que significa isso? Imaginemos um
leão. O conceito de leão reduz-se a alguns efeitos controláveis, que funcionam para nós como “avi-
sos” para que no momento em que deparamos com este animal nos comportemos de modo
adequado às qualidades que lhe atribuímos. A concepção desses efeitos é toda a concepção do
objeto, o objeto são esses efeitos. Assim é seu pragmatismo: são verdadeiras as ideias cujos efeitos
são comprovados pela ocorrência prática ou são constatados empiricamente; mas esse êxito
nunca é definitivo nem absoluto: a verdade só estará no futuro.
Para a identificação das coisas usamo-nos dos signos. Sinais de fumaça, figuras huma-
nas desenhadas em placas, palavras são signos e sua relação com o objeto e a interpretação é o
que ele denomina semiose. O signo é também chamado de representamen, ou seja, qualquer coisa
que é colocada para qualquer coisa, por qualquer um. Ele cria no espírito do observador um
signo mais desenvolvido, chamado de interpretante do primeiro signo. Entretanto, não repre-
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senta qualquer coisa tampouco todas as coisas de seu objeto mas somente um aspecto, chama-
do de fundamento (o ground) do representamen.
Para Peirce, em princípio, tudo comunica, não só os humanos. Fumaça, chuva, céu, são
“comunicações”, pois nos indicam alguma coisa. Além do mais, a interpretação é algo “sempre
móvel” e o signo é “coisa viva”, não como metáfora, mas, de fato, como algo que possui vida.
Por isso, o sentido de alguma coisa restringe-se ao momento determinado em que se está pen-
sando. Ele é herança passada, atualização presente mas também projeção futura. Pela sua flexi-
bilidade e mobilidade, ele indica mais uma tendência do que a algo rígido e determinado. Neste
aspecto identifica-se o parentesco com Humboldt, ou melhor, com o pensamento hegeliano.
Isso fica ainda mais claro que se fala da cosmologia peirceana, na forma como ele vi-
sualiza o universo. Para Peirce, o universo tem a tendência de contrair leis. Se no passado não
havia leis cósmicas, no futuro – acredita Peirce – não restaria mais nenhuma indeterminação,
acaso, pois estaríamos no reino total da lei. Na terminologia do autor, trata-se dos “hábitos”:
todas as coisas tendem a adquirir hábitos, mesmo que haja sempre irregularidade e imprevisibi-
lidade. Além disso, o universo evolui, as coisas interagindo entre si crescem. Hegel aparece
também aqui: a evolução, indo de um momento inicial indeteminado a uma determinação ab-
soluta, é movido por uma energia, que ele chama de ágape, semelhante ao conceito hegeliano
de Ideia.
Mas, como todo o modelo pragmático, o modelo de Peirce é limitado e alvo de uma
crítica a partir de uma concepção filosófica mais abrangente. A crítica será retomada no volu-
me 2 desta obra, ao se discutir o conceito peirceano de interpetante.

Ao lado dessas correntes de inspiração hegeliana desenvolveram-se igualmente corren-


tes pós-kantianas. Se uma fala da transformação, do movimento, do vir-a-ser, privilegiando a
diacronia (a história), a outra analisa os fatos fixando-os, congelando-os, buscando nessa espé-
cie de radiografia dos mesmos as estruturas subjacentes, as funções, os sistemas que operam
num mesmo tempo (sincrônico). A marca de Hegel é a contínua transformação, o fato, por
exemplo, de o Espírito e a verdade deverem se revelar progressivamente, através de um pro-
cesso histórico e determinado. Kant não está interessado nas mudanças nem na história mas
no exame dos poderes da razão: há, por exemplo, para ele, um julgamento “meditante”, que
não produz conhecimento objetivo, mas é a expressão subjetiva de uma ordem que devemos
admitir nos objetos para compreendê-los. Como filósofo, ele possui ao mesmo tempo uma
dimensão humanista (o sujeito é o centro do conhecimento, possui suas estruturas a priori -
certezas intuitivas que vêm antes de qualquer experiência - e sua sensibilidade) e uma dimensão
estruturalista: os objetos têm constituem uma ordem que devemos descobrir.

Ernst Cassirer será o precursor da hermenêutica moderna e do método estrutural na


linguística. Filósofo alemão que viveu no século 20 na Alemanha, Suécia e Estados Unidos,
publicou de 1923 a 1929 A filosofia das formas simbólicas, onde analisa a função simbólica nas
diferentes formas de cultura: mito, religião, pensamento científico. Para Cassirer, a ciência
mostra a realidade por meio de uma síntese da objetividade cada vez mais alta; “objetivo” é o
que é invariante no real mas a invariância se constrói lentamente pela confrontação e pela cor-
reção mútua das hipóteses. O símbolo exprime o invariante atrás das variações. Esse tipo de
enfoque se concedntra nas estruturas, nas coisas, na captação daquilo que é contínuo, regular.
A linguagem, para ele está muito próxima da arte. “Por sua função de denominação, ela
impõe a permanência no seio do devir, da confusão. Ela cristaliza o mundo das instuições. Ela
torna objetivo um mundo da imagem pura, mas também já codificada. Ela esta, assim no cora-
ção da função simbólica que caracteriza o homem”.
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Mas é Ferdinand de Saussure o nome mais importante dessa corrente teórica pós-
kantiana, a linguística estrutural. Suiço de Genebra, Saussure estudou no século 19 na Alema-
nha e propôs, por volta de 1916, as bases de uma ciência das expressões linguísticas que ope-
rasse principalmente com as regras lógicas (abstratas) das línguas em geral sem especial interes-
se pelo uso comum e particular de cada fala. Saussure trabalha no plano “das estruturas”, das
formas, do esqueleto teórico da língua. Nesta, como num jogo de xadrez, a lógica se dá pela
posição das “peças”, umas em relação às outras. A língua é, antes de mais nada, « relação entre
termos » e os termos se diferenciam por seu “valor” diferencial. Valor aqui não é exatamente o
conceito usado em economia, um termo « carregado », em que há qualidade, trabalho ou im-
portância embutidos, algo que se confunde com significação, sentido. Valor é a significação adicio-
nada da « posição da peça ». Ele pode ser modificado, diz Saussure, sem que se toque no seu sen-
tido ou no seu som mas somente pelo fato de o outro termo vizinho ter sofrido uma modifica-
ção.
O valor, portanto, não é definido pelo seu conteúdo mas apenas pela sua relação com
os outros termos do sistema. No xadrez, o valor respectivo das peças depende de sua posição
no tabuleiro; na língua, cada termo tem seu valor determinado pela oposição em relação a to-
dos os demais. Em cada jogada apenas uma peça é movida, mas essa jogada repercute em todo
o sistema e o jogador, para Saussure, não pode prever suas consequências.
Não obstante, a analogia parece ser precária de ambos os lados, pois nem o xadrez po-
de se transpor para uma situação real como a fala humana, nem a língua pode se restringir à
lógica de um tabuleiro. O valor da peça não é intrínseco. Um peão pode assumir grande signi-
ficado se estiver posicionado de forma a viabilizar um xeque ao rei. Uma vez dissolvida a joga-
da, o peão retorna à sua insignificância. Por isso, sua importância é apenas relacional. Esse fato
invabiliza a apreensão das significações culturais, históricas, particulares do termo. Estes são
tomados apenas da perspectiva de seu uso momentâneo e situacional.
O valor relacional inviabiliza mesmo os atributos implícitos das peças, que metaforica-
mente poderiam representar relações e poder real entre rainhas, reis, cavalos (cavaleiros), torres
(guardiães) e peões.
Da mesma forma, a língua, se for vista como um território de combinações e de deslo-
camentos dentro de um quadro restrito e previsível, acaba ficando, nas mãos do pesquisador
suiço, um jogo mecânico, uma estrutura morta. Mesmo que o jogador não possa prever a re-
percussão de sua jogada, dentro do tabuleiro e em função das regras do jogo estas serão neces-
sariamente limitadas e mais ou menos previsíveis, inclusive com o cálculo das combinações
hoje excepcionalmente possíveis pela informática, o que não acontece jamais com a sociedade.
O jogo não pode ser por isso comparável ao « desequilíbrio » de um contexto cultural e social
onde a palavra é usada; é pôr no mesmo plano o previsível e o imprevisível. Aqui estaria talvez
a fonte dos equívocos saussureanos, que não consideram as transformações da língua no tem-
po, ocorridas em função das variações dos seus usos particulares e das mudanças dos lugares.

Dois círculos intelectuais interferiram no desenvolvimento da linguística: o Círculo


Linguístico de Praga (1926) e o Círculo de Viena (1930). O primeiro foi formado entre outros
por Roman Jakobson, Émile Benveniste e André Martinet, seguiu e propagou as ideias de Sau-
ssure, especialmente a ênfase na análise sincrônica dos fatos linguísticos. Para eles, mesmo os
estudos históricos seriam incompletos se não considerarem o estudo diacrônico. A principal
contribuição de Jakobson são as seis funções da linguagem, o estudo dos dois eixos da lingua-
gem e sua relação com a afasia (perda da capacidade de transmitir ou compreender ideias).
Émile Benveniste discute a teoria da arbitrariedade do signo e as relações entre locutor e dis-
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curso e Martinet fala da dupla articulação da linguagem. O mais importante linguista saussure-
ano foi, contudo, Louis Hjelmslev, que será tratado em capítulo à parte.
O Círculo de Viena foi um grupo de filósofos e cientistas chefiados por Moritz Schlick,
tendo como orientação básica o positivismo lógico: a atitude antimetafísica, os estudos de lin-
guagem, ciências naturais e matemáticas. A raiz desta postura é a posição escolástica da Uni-
versidade de Viena na época, indiferente às alterações propostas pelo pensamento idealista
(Kant e Hegel) no século 19. O pensamento positivista foi inspirado em Ernst Mach e as dis-
cussões iniciaram-se em torno da obra Tratado lógico-filosófico, de Ludwig Wittgenstein.
Em 1929, o grupo publicou o manifesto “A concepção científica do mundo”. Para eles,
só tinham validade as proposições que pudessem ser verificadas empiricamente; as outras – as
teológicas, as filosóficas, as especulativas, as psicanalíticas – eram categorizadas como “insensa-
tas”. O grupo buscava uma ciência unificada e se apoiava nos trabalhos dos empiristas lógicos
como Russell, Whitehead, Frege e Peano.
Após a dissolução do grupo e a emigração de muitos representantes aos Estados Uni-
dos, estes provocaram naquele país a mistura de sua filosofia com as correntes pragmáticas. Do
ponto de vista da filosofia da linguagem, Bertrand Russell propunha – nos primeiros anos de
1900 – seu “atomismo lógico”, sugerindo que um “fato atômico” do tipo “João é brasileiro”
seria uma proposição atômica, expressando o fato de João ser um cidadão deste país. Em “Jo-
ão é marido de Rosa” teríamos outra proposição atômica. Ora, se juntarmos as duas teremos
“João é brasileiro e marido de Rosa”, uma proposição complexa ou molecular.
A intenção de Russell é considerar que as frases têm existência própria, independente
do sujeito e da experiência. E ter existência própria significa dizer que elas têm que se referir a
algo. Por exemplo, “o círculo quadrado não existe” é uma frase mas não se refere a nada. As-
sim, Russell propõe o desaparecimento de tais expressões substituindo-as por coisas do tipo
“Não há nenhum círculo que seja quadrado”. A linguagem comum é imperfeita, logo a filoso-
fia (como a ciência) deve abandoná-la.
Inicialmente Ludwig Wittgenstein apoiava a tese de Russell. Em seu Tratado lógico-
filosófico, dizia, com respeito à linguagem, que esta é “representação projetiva” da realidade. Em
princípio não parece sê-lo mas tampouco a notação musical parece representar a melodia, mas
o faz. Um elemento do real representa um pensamento e – como Russell – a realidade consta
de fatos que se resumem a fatos atômicos.
Não obstante, Wittgenstein voltou-se contra Russell e o positivismo lógico na segunda
parte de sua obra, particularmente na elaboração de seus “jogos de linguagem”. Ele critica, em
especial, o modelo tradicional de interpretação que associa simplesmente nomes a objetos, a
coisas, a pessoas, buscando a compreensão através da mera definição. Diferente disso, dizia
Wittgenstein, o jogo de linguagem não é nada tão elementar. Aprender uma língua não é como
pendurar um cartãozinho com um nome em cada coisa. A linguagem tem jogos incontáveis:
novos tipos de linguagens, novos jogos linguísticos surgem continuamente, enquanto outros
envelhecem ou são esquecidos.
São exemplos dos jogos de linguagem: os relatos de um acontecimento, as hipóteses
em torno deles, a invenção de histórias, as representações teatrais, cantar cantigas de roda, con-
tar piadas, etc. Essas proposições associam-se diretamente às teorias pragmáticas de uso:o sig-
nificado de uma palavra é seu uso.

Os estudos de linguagem atuais, assim, são tributários de três visões de mundo, três fi-
losofias que se apoiavam ora nas transformações da língua, no seu caráter dinâmico, histórico,
diacrônico (idealismo hegeliano), ora na fixação em estruturas e elementos invariantes, na sua
15

captação “congelada”, radiográfica, sincrônica (idealismo kantiano), ora no empirismo lógico,


de caráter fornalizante, restritivo e excludente.
Mas as três fontes não se desenvolveram separadamente ou em harmonia: o pragma-
tismo americano orieundo do empirismo associou-se ao hegelianismo, o estruturalismo saussu-
reano viabilizou descendentes não ortodoxos (Hjelmslev) e os pós-estruturalistas, assim como
o hegelianismo de Humboldt influenciou o neocartesianismo de Chomsky.
A primazia de Saussure nos estudos de linguagem durou o período de florescimento do
estruturalismo (até a década de 60), quando a refutação desse sistema teórico dá origem aos
pós-estruturalistas (especialmente Michel Foucault, Jean-François Lyotard, Jacques Derrida e
Gilles Deleuze; estes dois últimos têm tratamento privilegiado no 2º. volume do Princípio da
Razão Durante).

Detalhamentos

Humboldt é o criador da linguística moderna. Uma ampla exposição da obra de Humboldt


pode ser encontrada em Pierre Causat: ver, para isso, Comte-Sponville, 1998, p.735ss.Uma
exposição sintética da obra de Humboldt pode ser encontrada em Reale e Antiseri, 1991, pp.
387-388.

A filosofia hegeliana é bastante complexa e não pode ser reduzida a algumas linhas. O que pode-
mos propor aqui é apenas uma pequena informação que poderá tornar mais claras as passagens
que se refiriram a Hegel no capítulo: “O Espírito é aquilo que se realiza através da experiência
de uma consciência: esta última atravessa, a partir da sensação imediata do mundo até as ciên-
cias mais avançadas, um percurso pedagógico, um caminho iniciático, no curso dos quais é o
Espírito, ele mesmo (a razão infinita que ultrapassa a simples consciência individual), que se
conquista, se realiza e se conhece. Mas não se deve compreender, entretanto, este processo
como uma subida à luz. O desenvolvimento do Espírito não se faz como um lento progresso,
acumulando descobertas sucessivas, mas segundo uma lógica da negação: o aprofundamento
do Espírito se realiza por passagens no negativo. Como o fruto supõe o desaparecimento da
flor e o jovem a superação da criança, da mesma forma, cada nova imagem do Espírito, supe-
rior à precedente, supõe sua supressão. É isto que se designa como movimento dialético, do
qual é preciso bem compreender que ele designa, para Hegel, não um método, mas a própria
vida do espírito que se mantém através do negativo. O Espírito se realiza através da histó-
ria/.../ Hegel pretende observar, no caos de interesses e crimes, de paixões e de guerras, o len-
to trabalho de uma razão universal que, queimando todas as lenhas, põe a loucura dos homens
a serviço de sua realização ” (Clément et al, 1994, p. 150). O modelo dialético hegeliano serviu
de base a vários linguistas, especialmente àqueles que trabalham com a língua como algo conti-
nuamente mutante, graças às características desse sistema que considera os saltos históricos (a
“negação da negação”), a transformação e a mudança das coisas em direção ao futuro, com a
dose de otimismo que esse pensamento carrega.

Segundo o método pragmático, o critério de verdade de uma ideia é o sucesso da ação/.../


Conforme William James, uma ideia verdadeira não é cópia simples da realidade; é na medida
em que uma ideia é guia útil para a ação que ela está em acordo com a realidade e, portanto,
que ela é verdadeira. Cf. Clément et al, 1994, p. 285.

“Sínteses a priori”: “Nós conhecemos qualquer coisa a priori dos objetos [isto é: sem ne-
cessidade da experiência]. Mas, o quê? Kant responde distinguindo duas grandes faculdades do
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espírito humano: a sensibilidade e o entendimento. Pela primeira, os objetos nos são dados
pelas intuições sensíveis; pelo segundo, eles são pensados, postos em relação, de sorte que exis-
te para nós uma natureza submetida a uma ordem e a leis. O conhecimento tem assim condi-
ções 'subjetivas', isto é, ligadas ao sujeito cogniscente. Como, então, considerar seu valor obje-
tivo? Pelo fato de que o sujeito que faz um julgamento não é Pedro, Paulo ou Jaques – o co-
nhecimento não varia com nenhum deles – mas é um sujeito 'transcendental': dito de outra
forma, é o espírito humano em geral que está organizado desta forma e as condições do co-
nhecimento são ao mesmo tempo subjetivas e as mesmas para todos” (Clément et al., 1994, p.
190). Por exemplo, a relação sujeito/predicado para a constituição de uma frase é uma “síntese
a priori”.

Na época atual, atribui-se a pesquisa linguísticas às raízes teóricas de Peirce e Saussure. Peirce, co-
mo Saussure, tem raízes idealistas: As leis e regularidades diversas são conceitos que, em Peir-
ce, toda sua assumem significação no quadro daquilo que ele chama de “idealismo objetivo”:
“a única teoria inteligível do universo é a do idealismo objetivo, segundo a qual a matéria é o
espírito enfraquecido (“effete mind”)”. Cf. Peirce, Collected Papers, 6277, citado por Robin, 1967, e
Thibaud, 1983, p. 23.

Peirce faz uso do pragmatismo "que considera a linguagem não apenas em sua dimen-
são sintática ou semântica, ou seja, relacionada à sua organização interna, mas como ato. (cf.
Clément et al, 1994, p.285). Para Peirce, "semiose é a ação triádica de um signo implicando a
cooperação de três sujeitos: um signo, seu objeto e sua interpretação. Esta ação trirrelativa não é, em ne-
nhum caso, redutível a relações entre pares (Peirce, idem, Collected Papers, 5484).

Os conceitos de Peirce são índice, ícone e símbolo: "Um signo pode ser natural (índice) ou artifi-
cial (sinal, símbolo). Para ele, representação é uma "regressão ao infinito": "...Toda representação se
abre necessariamente sobre um processo de regressão ao infinito: 'O interpretante não é nada
além que uma outra representação que recebe, abrindo o caminho, a chama da verdade; e, en-
quanto representação, tem, novamente, seu interpretante. Vê-se bem, é uma série infini-
ta'"[Peirce, idem, 1339], (p.16), e o símbolo é uma "coisa viva": "Todo símbolo é uma coisa
viva num sentido estrito, o que não é simples figura de retórica. O corpo do símbolo muda
lentamente mas sua significação cresce inevitavelmente, incorporando novos elementos e rejei-
tando antigos [Peirce, idem, 2222]/.../ O pensamento deve viver e se desenvolver através de
incessantes traduções novas e elaboradas, senão se revela um pensamento inautêntico" [Peirce,
idem, 5594].

RESUMO DE PEIRCE
A teoria dos signos
a) ícone: signo em que o significado e o significante apresentam uma semelhança de fato. Ex.: desenho de
um animal. Possui grande similaridade com o objeto (no ícone puro não há diferença entre ele mesmo e
o objeto) mesmo que o animal, por exemplo, um centauro, não exista.
b) índice: é um signo que não se assemelha ao objeto significado mas indica-o casualmente, ele diz “está
aqui!”. Ex.: furo de bala é índice de um tiro, termômetro é índice da variação da temperatura.
c) símbolo: não tem qualquer semelhança com o objeto e depende da adotação de uma regra de uso. Ex.:
bandeira como símbolo de nação.
17

As categorias:
1) O primeirismo (Firstness) é a das qualidades puras: a cor azul, o cheiro de rosa, o silvo da locomoti-
va. Não sofre modificação, degeneração, enfraquecimento. São os fanerons, aquilo que é presente no
espírito não importando se corresponde ou não ao real. Ex.: o sonho.
2) O secundismo (Secondness) já fala dos conflitos: trata-se da ação mútua de duas coisas, relações de
causa-efeito. Ex.: o sonho como objeto da experiência (eu sonhando).
3) O terceirismo (Thirdness) é a mediação, o vínculo entre o primeiro absoluto e o segundo. Trata-se
do signo, da representação. Ex.: associar eu ao sonho, criar um medium entre eles.

Posições:
- Os insights: a inspiração abdutiva acontece em nós num lampejo. É um ato de insight, embora extremamente
falível.
- Toda filosofia não idealista supõe algo absolutamente inexplicável, um termo final inanalisável.
- Símbolo é coisa viva: o corpo do signo muda lentamente, mas o significado cresce inevitavelmente, incorpora
novos elementos e deita fora elementos antigos.
- Todo pensamento é um signo.

Objetos: O objeto pode ser imediato ou dinâmico.


- Objeto imediato: é a idéia partida de nossas sensações, é o conhecimento simples e primitivo das coisas, que não
pode ser contestado. Objeto dinâmico: é aquele que é unitário, objeto de uma ciência dinâmica. Exemplo: “O
sol é azul”. Tanto “sol” como “azul” admitem as duas concepções: como objetos imediatos temos o sol que
vemos todos os dias, o azul de nossa percepção. Como objetos dinâmicos, o sol é um objeto com lugar, mas-
sa, etc. determinados; o azul é uma luz emitida com ondas de cumprimento reduzido, etc.
- Daí deduzirem-se dois interpretantes: o imediato e o dinâmico. O primeiro é associado a um ground (fundo), é
pura possibilidade interpretativa de um signo; o segundo é a atualização do anterior, nele cada ato de inter-
pretação é revisto. Há, por fim, um interpretante final que é a direção à qual tendem os diversos imediatos.

Quadro 1 - A Ação Triádica de Peirce

Primeirismo Secundismo Terceirismo


Representamen Qualissigno Sinsigno Legisigno
(signo) É uma qualidade, indepen- É quando a qualidade é encar- É o signo. Ex.: o conjunto de
dente do fato de se encar- nada num objeto. Ex.: o cha- palavras desta página como
nar ou não em um objeto. péu vermelho regra de significação
Ex.: a cor vermelha
Objeto Ícone Índice Símbolo
Possui uma característica É um signo que perde sua Deixa de ser signo se não tiver o
que o torna signo mesmo característica de signo se se interpretante. Ex.: um discurso
se o objeto não existir suprime seu objeto. não tem sentido se ninguém o
entende
Interpretante Termo (rema) Proposição Razão (argumento)
Uma expressão (frase, Um enunciado suscetível de Um raciocínio destinado a pro-
palavra, verbo) ser verdadeiro ou falso var ou refutar um dado propos-
to.

Um resumo de Ernst Cassirer pode ser obtido em: Gilbert Durant, reproduzido em Comte-
Sponville,1998, p. 328.
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Antes de falar de Saussure, convém mencionar brevemente Martinet, também do início do século
e sua "dupla articulação da linguagem": Contemporâneo de Saussure, André Martinet, propõe
em 1908, que a linguagem seria composta de uma dupla articulação, como algo típico da lin-
guagem humana. Numa primeira articulação, o enunciado irá se constituir de unidades de sentido
como as palavras, os sintagmas e as frases. (Sintagmas são combinações de monemas, como,
por exemplo, o re e o ler no verbo “reler”; sintagmas são também o a, o vida e o humana na ex-
pressão “a vida humana). Monemas ou morfemas são as menores unidades sonoras. Na frase
“a flor nascerá” temos cinco monemas [a-flor-n∂∫-se-ra]. Na segunda articulação cada monema
se articula em seu significante com unidades desprovidas de sentido. O monema “flor”, por exem-
plo, possui quatro fonemas, que podem ser substituídos ou recombinados.

O contraponto de Peirce é Saussure: Saussure define a língua como jogo: « Inicialmente, um


estado de jogo corresponde a um estado da língua. O valor respectivo das peças depende de
sua posição sobre o tabuleiro, da mesma forma que na língua cada termo tem seu valor pela
oposição com todos os outros » (Saussure, 1972, p. 125-6). « Um lance tem uma repercussão
sobre todo o sistema; é impossível ao jogador prever exatamente os limites de seu efeito... Tal
jogada pode revolucionar o conjunto da partida e ter consequências mesmo para as peças mo-
mentaneamente de fora » (p. 126). « O valor de um termo pode ser modificado sem que se
mexa nem no seu sentido nem no seu som, mas apenas pelo fato que um outro termo vizinho
tenha sofrido uma modificação » (p. 166). Ver também Amacker: « O valor não é a significa-
ção. O valor é dado por outros dados; ele é dado, além da significação, pela relação com as
outras ideias, pela situação recíproca das peças da língua » (Amacker, 1975, p. 158). Segundo
Reali e Antiseri, “a valor das peças (os sinais linguísticos) não está vinculado ao material (madei-
ra ou marfim) de que são feitos, mas depende unicamente das relações que se estebelecem en-
tre elas: regras de posições, de deslocamento, etc. Os sinais linguísticos, como as peças de xa-
drez, não valem por sua substância, mas sim pela sua forma” (Reali/Antiseri, 1991, p. 888).“O
sentido de um elemento é determinado por sua posição no conjunto do sistema, como as pe-
ças de um jogo de xadrez se definem por suas respectivas situações recíprocas, isto é, em últi-
ma análise, pelas regras do jogo”. (Clément et al, 1994, p.342).

RESUMO DE SAUSSURE

- Uma linguística estrutural: antecipa o conceito de estrutura na linguística: sistema que explica o arranjo do
todo em partes que são solidárias.

Os dualismos de Saussure:

- Saussure não valoriza a linguagem escrita, mas a linguagem falada (as línguas, antes de serem escritas, eram
faladas);
- Dá mais ênfase à língua (social, genérica, independente do indivíduo) do que à fala (secundária, parte
individual da linguagem);
- Prefere a pesquisa descritiva ou sincrônica em oposição à evolutiva ou diacrônica;
- O signo linguístico é um duplo: compõe-se de um significante [imagem acústica: a palavra “árvore”, por
exemplo] e um significado [conceito: a árvore real] e ele é totalmente arbitrário; o significante está no plano da ex-
pressão, o significado, no do conteúdo.
- Na língua há dois tipos de associações entre signos, que constituem seus eixos básicos: paradigmático e
sintagmático. O primeiro, o das “relações in absentia”, é o das palavras que remetem a associações mentais com
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outras: ensino  educação aprendizagem, etc. O segundo, o das “relações in praesentia”, é o das palavras que
formam, na frase, cadeias de enunciados: vamos  todos  à escola.

Roman Jakobson proporá a vinculação de ambas nos dois eixos da linguagem. (Ver
Tabela abaixo).

RESUMO DE JAKOBSON
- A afasia (perda da capacidade de transmitir ou compreender idéias) tem a ver com dois distúrbios de lingua-
gem: o paradigmático (quando a pessoa não consegue selecionar entre termos afins: casa, prédio, edifício,
construção, etc.) e o sintagmático, que se refere à incapacidade de a pessoa combinar unidades verbais na ca-
deia linguística.

- A linguagem possui 6 funções:


a) Referencial, quando se centraliza no referente: Ex.: O gato é um mamífero. (Também chamada função
denotativa ou cognitiva)
b) Expressiva ou emotiva, quando se centra no emissor ou locutor. Ex.: Eu te amo; Que pena, está cho-
vendo!
c) Conativa, quando visa o receptor para agir sobre ele. Ex.: Não deixe de assistir à aula; Venha cá!
d) Fática, quando procura verificar o bom funcionamento do canal. Ex.: Está ouvindo o que eu estou di-
zendo?
e) Metalinguística: quando se procura explicitar o código. Ex.: Chover é um verbo defectivo.
f) Poética, quando a mensagem visa, antes de tudo, a si mesma, ou elaborar de sua própria forma. Ex.: Já
não queria a maternal adoração, que afinal nos exaure e replandece em pânico.

As críticas ao estruturalismo. 1. A estrutura é uma coisa abstrata: os elementos concretos,


os seres não têm nenhuma importância; em consequência, tampouco tem importância a signi-
ficação de que eles podem se revestir: é por isso que Lévi-Strauss estuda os mitos sem se preo-
cupar com seu sentido ou da civilização na qual eles são contados. 2. Há uma causalidade da
estrutura ou causalidade estrutural (é um todo impalpável que provoca as coisas); a estrutura
está presente mas só pelos seus efeitos, só se captam seus resultados, pois ela é inconsciente. A
“causalidade estrutural” é, assim, a « eficácia de uma ausência » (Althusser), algo que de fato
não existe concretamente mas que tem força pra impor-se 3. O sujeito humano não é uma
instância explicativa para a ciência estrutural, pois ele não pode ser causa de nada; ele pode ser
representado totalmente, na ordem do significante da estrutura, como uma ausência ou uma
falta (Lacan). (conf. Auroux/Weil, 1991, p. 468)

Críticas a Saussure: Émile Benveniste questiona em Problèmes de linguistique générale (1966-


1974), a tese de que o signo seria totalmente arbitrário. Segundo ele, na constituição do signo
vinculam-se, na consciência dos falantes, os significados e os significantes. Merleau-Ponty fala
o mesmo, através de seu conceito de intermundo, onde se cruzam significações de história, sim-
bolismo e verdade: “O intermundo é o mundo cultural das instituições e dos símbolos. A rela-
ção com os outros se desenvolve nesse espaço como reciprocidade conflitual, comunicação
possível ou bem-sucedida, mesmo que não terminada”. (cf. Clément et al, 1994, p.227). Tesniè-
re, por sua vez, fala da existência de um contexto inexpresso entre os signos linguísticos, que não
pode ser ignorado. Em “Alfredo fala”, há, segundo ele, três elementos: Alfredo, fala e a cone-
xão que une os dois primeiros. “É esta conexão que dá à sentença seu caráter orgânico e vivo e
é seu princípio vital” (F. D. Manjali, 1, p.10). Jacques Derrida, em Positions, diz que Saussure, a
exemplo de outros filósofos (Platão, Aristóteles, Rousseau, Hegel e Husserl), desconsidera a
20

escrita no terreno da linguística - da língua e da fala; esta seria um fenômeno de representação


exterior, ao mesmo tempo, inútil e perigosa. “O objeto linguístico não é definido pela combi-
nação da palavra escrita e da palavra falada; esta última constitui, por si só, este objeto”. Além
disso, Derrida considera que a semiologia é incapaz de ver que é apenas um setor do conheci-
mento e não tudo. Saussure seria herdeiro de uma tradição não crítica (Derrida, 1982, p.67).
Para ele, o signo supõe a existência de um significado que existiria em algum lugar antes de sua
“caída” sobre um significante, na exterioridade sensível. Isso remete a um logos absoluto (o da
teologia medieval: a face inteligível do signo permanece voltada ao lado do verbo e da face de
Deus). (idem, p. 25).
Essa deliberada exclusão parece tendenciosa também para Gilles Deleuze e Félix Guat-
tari: Para eles, a escrita é rica, plena de potencialidades, e a escritura jamais foi coisa do capita-
lismo. Este seria « profundamente analfabeto » (Deleuze/Guattari, 1996, v. 3, p. 285).
A crítica da Jacques Derrida será retomada no Excurso 2 bem como, detalhadamente,
no segundo volume do Princípio da Razão Durante.

Austin e Searle

Se os ingleses de Cambridge seguiam as orientações radicais e restritivas de Russell,


excluindo do campo do conhecimento tudo que não fosse logicamente correto, em Oxford
desenvolvia-se uma orientação oposta, centrada nos usos da língua.
Inicialmente G. Ryle, seguindo as pegadas do segundo Wittgenstein, separa o uso da
linguagem comum do uso comum da linguagem, mas será John Austin o mais importante no-
me nesse movimento de recuperação da linguagem efetivamente falada em oposição aos mo-
delos de “lingua teórica”. Com ele, ganham corpo as “filosofias da linguagem ordinária”.
Austin observa uma cerimônia de casamento. Ele vê noivo e noiva diante do altar, o
padre, os padrinhos, a música, e a famosa frase dirigida aos noivos. No momento em que o
padre os declara “marido e mulher”, diz Austin, ele não apenas falou algo: ele, ao mesmo tem-
po, realizou um ato. Com isso, inaugura-se na análise da linguagem, um novo procedimento
em que não basta considerar o enunciado, mas, também, a sua manifestação e a reação ade-
quada das pessoas envolvidas. Inicialmente, ele propôs separar a fala em dois tipos: aquelas que
simplesmente constatam coisas (“está chovendo”), as constatativas, e aquelas que tem o caráter
de agir, performar, as performativas: “a sorte está lançada”, “a placa está inaugurada”, e assim
por diante. Logo, contudo, vai constatar que praticamente todas são falas performativas.
Para este pesquisador, para haver efetivamente efeito não basta uma frase. Todo o tea-
tro tem de funcionar, ou seja, a cena tem que ser verdadeira e oficial, assim como os partici-
pantes e suas falas. Mas como medir a sinceridade das pessoas? Há declarações efetivamente
falsas, como a das pessoas que falam “eu prometo” e não têm nenhuma intenção de levar a
sério o prometido. A esses casos, Austin chama de fracasso do ato comunicativo, se bem que,
mesmo com hipocrisias, ele é consumado. Para situações desse tipo não há controle.
No desenvolvimento de suas investigações, Austin propõe três tipos de atos de lingua-
gem ou “speech acts”: os locucionários, os ilocucionários e os perlocucionários. Uma coisa é
eu dizer “Amanhã vou ao Rio” (frase constatativa, locucionária), que é uma pura informação;
outra é dizer “Eu prometo que amanhã eu vou ao Rio” (ilocucionária), que já envolve uma
ação, uma promessa. Diferem ainda das frases do tipo “Por você, eu até iria amanhã ao Rio”,
perlocucionária. No primeiro tipo temos um enunciado simples, no segundo já realizamos um
ato e no último estimulamos um comportamento no outro.
Na frase “Eu quero isto fora daqui!” (ilocucionária), estou falando e ao mesmo tempo
executando um ato. No caso de “Prometo não recomeçar mais”, a enunciação realiza o ato
21

prometido ao mesmo tempo que indica a natureza da promessa (eu digo + eu prometo). Para
os atos ilocucionários os verbos podem ser perfomativos (do tipo “mandar”) ou de atitude (do
tipo “jurar”). Aqui Austin também constata que é muito difícil separar os primeiros dos segun-
dos e que "efetuar um ato locutório em geral é também produzir, com isso, um ato ilocutório".
Nos atos de linguagem perlocutórios as funções linguísticas não estão inscritas diretamente no
enunciado mas têm efeito direto sobre a pessoa que as recebe, como é o caso dos verbos bada-
lar, agradar, impor medo. Uma pergunta, por exemplo, pode não ter por objeto a obtenção de
uma informação mas sim fazer o interlocutor participar de uma ação. É o caso da frase “Você
é tão simpático”, quando se está, na verdade, querendo dizer “Estou precisando de seu dinhei-
ro, de seu favor, etc.” Ou então “Você é o nosso melhor funcionário!”, para dizer “Venha tra-
balhar no domingo”. Nota-se que no ato ilocucionário a ênfase está na expressão linguística,
enquanto que no perlocucionário ela está em outro lugar, fora da frase.
Diferente dos estruturalistas, no pragmatismo que se desenvolve na Grã-Bretanha dos
anos 50 leva-se em conta as circunstâncias da fala, seu contexto e os efeitos produzidos. As
imprecisões e dificuldades de Austin, contudo, serão em parte corrigidas e aperfeiçadas por
John Searle. Para este, ao inverso de Saussure, o sentido precede ao texto, ele está "no mun-
do". Se o pesquisador genebrense apostava na sincronia, na estrutura da língua como suficien-
te, Searle vai considerar a diacronia, a fala e o contexto. É preciso considerar no speech act a
intenção, que efetivamente está fora do escrito. Língua e mundo são em verdade interdepen-
dentes e não dá para trabalhar os dois em separado. O mais importante da língua está, em ver-
dade, fora dela. A locução, a frase, não dizem nada, pois as afirmações só ganham sentido
quando correspondem, ao mesmo tempo, aos atos.
Saussure desenvolveu em suas investigações a tese de que o sujeito, para falar, usa-se
das convenções linguísticas pré-existentes, e nisso estava certo. Mas elas não bastam, pois não
produzem atos de linguagem, que, na verdade, são mais amplos, envolvendo enunciação, ato e
contexto e seu jogo conjunto.

Mas a complexidade da comunicação parece não terminar aí. São tantas as sutilezas e as
manobras que os humanos fazem para comunicar ou fazer que comunicam uma intenção, co-
municando outra, que mesmo modelos como este têm seus limites. Existe algo chamado “su-
posição de consenso”, que extrapola o conjunto lógico proposto por Searle, que é exatamente
quando se fala algo exatamente para se obter o contrário. Vejamos um exemplo de Schneider:
um rapaz incita o irmão mais jovem a subir na árvore, para provar a este que ele não consegue.
Este tenta e é pego pelo dono do terreno. Os pais o censuram e o jovem mais velho diz que o
irmão não deveria entendê-lo literalmente, mas interpretar exatamente o inverso de sua fala.
Nesse exemplo, o falante intenciona exatamente o não cumprimenro do pedido, para assim
passar "outra mensagem". Se não há uma suposição de consenso anterior, o ato não tem o
efeito que deveria.

Detalhamentos

As filosofias da linguagem ganham corpo no pós-guerra, incialmente com Austin. Para Austin, toda
produção linguística é um ato complexo (speech act), cuja significação depende a) da referência
ao real, b) da situação do locutor e da ação que ele realiza e c) do efeito produzido. Resumida-
mente: locucionária, ilocucionária e perlocucionária. (Austin, 1970, pp.24-42). Para ele, há tam-
bém uma diferença entre o explítico performativo e o primariamente performativo. O primeiro é o da
enunciação formal, oficial, geralmente dentro de contextos institucionais: "Eu batizo este navio
22

com o nome de Rainha Elizabeth". O segundo é o das enunciações vinculadas à linguagem co-
loquial, geralmente mantendo algo implícito, que é preenchido pelo que a recebe.

RESUMO DE AUSTIN
- Enunciados performativos são aqueles em que os verbos da enunciação acabam por realizar a ação que eles ex-
primem. Ex.: eu digo, eu prometo, eu juro. Entre os enunciados performativos há: a) enunciados que são atos
de uma autoridade (“O posto está vago”) e b) enunciados que só dizem respeito ao sujeito da enunciação.
- Atos de linguagem (speech acts) referem-se ao uso da linguagem como ação e não somente como linguagem.
“Faz frio na sala” é um ato de linguagem indireto na medida em que a situação comporta um locutor capaz
de dar uma ordem a um interlocutor e esta ser obedecida.
- Podem ser locutórios, ilocutórios e perlocutórios. No primeiro, trata-se simplesmente do pronunciar de uma
frase; no segundo, da expressão de uma ordem (é um ato que realiza uma ação seja através de verbos perfor-
mativos, como mandar, seja com verbos de atitude, como jurar); no terceiro, ocorre uma função linguística
que não está diretamente inscrita no enunciado mas que tem um efeito indireto sobre o interlocutor. Aplica-
se a verbos como bajular, dar prazer, impor medo, etc.

John Searle revê o trabalho de Austin e introduz a ação: De acordo com os speech acts, a lingua-
gem não se conforma com a estrutura. Ela é, antes de tudo, ação, e somente enquanto tal pode
ser linguagem. Esta se torna, assim, sinônimo de linguagem-ação ou ato linguístico, sempre
ordinário e concreto, pontual, particular. Tal conceito de ação equipara-se à intenção de dizer
algo e combina, a um só tempo, cinco elementos: o corpo, como locus cultural da enunciação
in loco; o desejo, como força produtiva da significação; a significação, enquanto portadora de
sentido cultural; a linguagem, como forma variável de comunicação, com suas estruturas gra-
maticais implícitas, sua opacidade e possibilidades de combinatórias semânticas; e o contexto,
enquanto ambiente particular num tempo histórico determinado. Nesta perspectiva, o mais
importante na linguagem não reside nela mesma. Sua significação não provém de suas formas
de fundo, injunções formais e partes interligáveis, mas nelas se detém. Não é a locução, a sen-
tença, o enunciado que diz algo, pois qualquer assertiva somente significa enquanto é, ao mes-
mo tempo, ato. O mais importante também não está no contexto que as asserções da lingua-
gem realiza. O contexto não pode ser apenas base de significação, porque ele também diz algo
no e pelo ato de linguagem. O mais importante repousa, pois, nessa ação, que pressupõe, num
amálgama, todos os fatores anteriormente mencionados. (Coletivo NTC, 1996, pp. 52-53).

Searle faz a distinção nas frases explícitas entre a parte ilocucional (que explica a ação) e
a parte proposicional (que determina o objeto da ação). Um ato ilocucionário é bem-sucedido
quando ficou assegurada a sintonia paralela entre o que fala e o que ouve. Mas isso nem sem-
pre ocorre. Como destaca Schneider, o conceito de sucesso em Searle não considera que é
diferente você mesmo se atribuir êxito e o outro ser da mesma opinião que você. Esta pré-
decisão que Searle toma se dá pela inclusão de uma “suposição de consenso”, baseada em Ha-
bermas e suas aspirações de validade: a suposição de um acerto existente sobre a definição da
situação (Schneider, 1994, p.122).
23

RESUMO DE SEARLE
- Frases explícitas são compostas de uma parte proposicional (unidade sintática elementar constituída de
um sujeito e de um predicado) e de uma parte ilocucional (a realização concomitante de um ato).

- Background e breakdown. Na linguagem, o sentido é mais importante que os termos linguísticos. Ele é
extraído do mundo ao qual somos “atirados”; a ação linguística é o resultado total em suas múltiplas rela-
ções. A linguagem não é a aglutinação ou a reunião de partes mas uma “totalidade intencional”.
- Na ação linguística, as regras são seguidas de forma tácita, “automática”, sem necessidade de explicação;
o consenso sobre o que está sendo enunciado vem dos costumes, dos hábitos e é diferente conforme o
momento, o lugar, a classe, etc. O consenso fica claro quando ocorre um tipo de choque, conflito (break-
down): “Raspe o prato!” não significa passar um instrumento, uma lixa, uma raspadeira num prato, mas,
simplesmente, “coma tudo”.
-
- Além disso, há um “pano de fundo” (background), um conhecimento prático implícito da língua ao qual
se liga uma finalidade do ato comunicativo.

- Em Searle, o conceito de intencionalidade desempenha um papel fundamental. Só um sujeito pode ter


intencionalidade. Não se trata de uma vontade passageira, um desejo psicológico, pessoal, mas de uma
causalidade de fato, isto é, as intenções provocam as ações (inclusive linguísticas) como um modo de
ação comum, que, apesar disso não é nada linear, previsível, determinista.

- Naturalismo biológico: Nas ações, bem como nas ações linguísticas há a ação de um micronível e de um
macronível. No primeiro, os estados mentais das pessoas envolvidas num ato de linguagem são produzi-
dos por minúsculas transformações neurobiológicas, causadas, enquanto “tensões”, por fenômenos que
estavam subjacentes; ao mesmo tempo, estes estados causam outros fenômenos (processo da intenciona-
lidade). No segundo, as excitações neuronais levam a modificações fisiológicas. Assim, os estados men-
tais são tanto causados por fenômenos biológicos quanto causadores de outros fenômenos biológicos.
- Por isso, Searle fala em intenção e in-tensão. Este último seria a tensão sobre o modelo biológico, deriva-
da da opacidade da língua, enquanto que a intenção do sujeito comunicante é o que viabiliza o mútuo en-
tendimento e o encontro na ação.

Estados intencionais e suas condições de satisfação: Posso crer que chove e me enganar; posso temer
que esteja chovendo, posso afirmar que chove. Uma mentira pode satisfazer cada um dos enunciados
sem dizer nada de verdadeiro. É porque há tanto o background (pressuposto para satisfazer um enuncia-
do, de uma percepção, de um ato) quanto a representação, que é uma apreensão do mundo, como num
quadro. O sentido atual de uma representação remete a um sentido anterior (intencionalidade), não ha-
vendo um começo nem um fim mas um contínuo ajustamento a um conteúdo intencional pré-existente.

Tem sido criticada em Searle, igualmente, sua indiferença em relação aos atos perlocu-
cionários. Para Wunderlicht, Searle omite quase inteiramente as consequências de ações lin-
guísticas em sua investigação dos atos ilocucionários. Os "efeitos ilocucionários", isto é, o re-
conhecimento das consequências de expressões que vão além das intenções de fala, caem, para
Searle, no campo dos efeitos perlocucionários contingentes, que, na sua opinião, não formam
nenhuma base apriopriada para a análise de atos ilocucionários. Efeitos perlocucionários são
identificáveis como consequências naturais, previsíveis, independente de regras/.../ Contudo,
em relação às consequências das ações linguísticas, na medida em que são definidas pelo pre-
enchimento e conformidade a exigências, tal classificação é claramente inadequada. (Schneider,
1994, p.141)
24

Chomsky e Hofstadter

O modelo estruturalista de Saussure estendeu-se até os anos 50. O norte-americano


Claude Shannon, criador da teoria matemática da informação, usa-se de uma sequência seme-
lhante àquela que o autor genebrense utiliza para explicar a comunicação. Para Saussure, uma
fala entre duas pessoas é um circuito, onde estão envolvidos pelo menos três processos. Ela
inicia-se no cérebro de um dos falantes, que, a partir de um conceito dado, cria uma imagem
acústica correspondente, um som (fenômeno psíquico); a seguir, o cérebro transmite aos ór-
gãos da fonação o impulso correspondente a essa imagem (processo fisiológico) e as ondas
sonoras se propagarão da boca de um ao ouvido de outro (processo físico). O outro, ao rece-
ber realiza o processo inverso. O conhecido esquema “canônico” de Shannon de fonte-
emissor-canal-receptor-destino reatualiza o circuito de Saussure de uma maneira eletrônica.
Mas a semelhança dos dois não pára aí. Em sua teoria da informação, Shannon separa
de um lado a informação e, do outro, o significado dessa mesma informação (que não lhe inte-
ressa), como faz Saussure, que separa signo do seu referente material (a palavra “sapato” da
ideia “sapato”), ficando com o primeiro, tornando o estudo totalmente abstrato. Da mesma
maneira que o linguista genebrense diz que o sentido da língua pode ser extraído apenas da
posição dos termos no conjunto do sistema - como nas peças do xadrez - o pesquisador norte-
americano vai dizer que a probabilidade informacional de um processo, ou seja, quanto de
informação ele traz, pode ser calculada usando-se unicamente o conjunto do qual é extraído:
eu reconheço a informação nova através da quantidade de vezes que o termo aparece, através
assim de sua frequência (uma informação é tanto mais nova quanto mais rara, quanto menos
frequentemente aparecer); não preciso saber o que diz cada palavra.
Por isso, seria apressado dizer que com a crise do atomismo lógico de Russell, com a
virada de Wittgenstein e a recuperação da perspectiva pragmaticista, todo o universo do positi-
vismo lógico (Círculo de Viena) estaria liquidado. A tese de Rudolf Carnap, um dos seus prin-
cipais mentores, de que “aprender a falar é apenas poder ligar palavras” vai repercutir até o
presente nas investigações sobre linguagem e inteligência artificial (a ser vista no próximo capí-
tulo). Essa será sua fraqueza e sua utopia.

Na base dessa proposta utiliza-se o modelo linguístico de Noam Chomsky. Sua contri-
buição à linguística não está no campo da descrição da língua mas na tentativa de explicação de
seu funcionamento. “Como a língua é gerada” é a preocupação de sua gramática gerativa. Por
exemplo, as frases complexas são geradas a partir de frases nucleares (numa alusão remota às
“frases atômicas” de Russell), por meio de transformações.
Além disso, Chomsky fala em competência e performance. Competência são as normas
e os mecanismos de que o sujeito dispõe para poder executar, ou seja, criar frases ou expressões
linguísticas. Um sujeito pode, conforme Chomsky, compreender e produzir infinitamente fra-
ses mesmo sem nunca tê-as ouvido nem lido (aprendizado linguístico não é estímulo-resposta
nem adestramento repetitivo). Em uma palavra, há, em cada um, capacidades inatas como he-
rança linguística de um patrimônio da espécie. Todos seríamos, assim, geneticamente capazes à
fala, desencadeando o ambiente essas capacidades instaladas. Mesmo aqueles que tiveram al-
guma lesão cerebral, e são, portanto, mentalmente incapacitados, teriam, em princípio, essa
possibilidade. Ela assegura uma certa competência linguística, ativada quando as pessoas têm
acesso ao aprendizado e à experiência.
25

Há, na sequência, o desempenho, a "performance" linguística, que é o uso cotidiano e


variado da linguagem. A capacidade cognitiva humana (a possibilidade de conhecer o mundo,
apropriar-se dele e se expressar) estaria na ligação entre essa estrutura profunda (da língua), que
nasce com o homem, com uma estrutura superficial (das falas), executada pela "gramática-
máquina", que regula o léxico e a sintaxe. Seria essa a gramática gerativa de Chomsky, a capacida-
de de falar, que é formada por muitos componentes (sintáticos, semânticos, fonológicos); sua
parte sintática comporta tanto um sistema de regras de escrita - o conjunto (tido como infinito)
das estruturas profundas - quanto as tais regras de transformação, que as associam às estrutru-
ras superficiais.
A gramática gerativa de Noam Chomsky foi a principal fonte teórica entre os linguistas
e autorizou os pesquisadores norte-americanos a pensar na possibilidade de uma máquina falar.
Teoricamente achou-se viável construir a capacidade inata no computador de um robô, o que
lhe permitiria gerar frases e declarações. Mas emitir frases elementares, qualquer sistema ele-
trônico de ônibus, elevador ou de terminal de saque pode fazer. Programas de computador são
capazes também de frases mais complexas e sofistadas. Mas ainda estamos muito longe, certa-
mente a anos-luz de distância da capacidade de efetiva falar.

Posições ora cartesianas, ora saussureanas, são constatadas também em outros pensa-
dores recentes da teoria da linguagem, como René Thom e Douglas Hofstadter. Seguindo os
passos de Descartes, o matemático francês René Thom também diz que compreender é 'geo-
metrizar' os fenômenos - submetê-los a uma leitura abstrata, matemática - e, continando Saus-
sure, sai também em busca de uma gramática universal, dos mecanismos comuns a todas as
línguas, propondo igualmente uma linguística como descrição de elementos discretos, como
uma “combinatória”. Thom absorve o modelo chomskyano de uma estrutura profunda e uma
superficial na linguagem. O curioso - mas talvez não tão moderno - em sua proposta é a vincu-
lação entre linguística e embriologia (identificação da estrutura triploblástica do embrião com a
estrutura transitiva sujeito-verbo-objeto da língua: ectoderma seria o objeto, mesoderma o ver-
bo e endoderma o sujeito) e a proposição de ver todo o sistema humano de inteligibilidade -
como Pavlov - a partir da imposição ("pregnância") biológica sobre as formas sociais de
aprendizagem social: uma forma exterior estimula o sujeito a produzir falas, da mesma forma
como uma presa estimula o animal faminto. O sistema cultural constrói-se a partir da sucessão
desses contágios por similaridade.

O filósofo norte-americano Douglas Hofstadter acredita, como Chomsky, que o cére-


bro humano não precisa ser ensinado a nada, pois ele já vem, de fábrica, equipado com seu
'hardware'. Um cérebro responde aos estímulos externos a partir da detonação e é assim, por
exemplo, que uma criança aprende a linguagem, deixando-a irromper. Da mesma escola de
Descartes, ele acredita que os símbolos linguísticos não nascem, não são impostos de fora; na
verdade, sempre estiveram lá. Seus mecanismos de deciframento são universais, formas fun-
damentais da natureza que nascem nos mais diferentes contextos.

A filosofia da linguagem de John Searle é o contraponto de Chomsky (e, por derivação,


também dos demais). Como visto anteriormente, o sentido, para Searle, vem, em primeiro lu-
gar, ele precede à “letra” (à escrita, o texto, à lingua em uma palavra). Os atos de linguagem
são, ao mesmo tempo, resultado de uma "ruptura" com a maneira formal de ver uma língua
(na gramática, na fala oficial) e de uma adaptação ao contexto cultural. A ruptura explica por-
que há tantos mal-entendidos na linguagem. Quando eu digo "tome este ônibus", eu não estou
querendo dizer para fazer a tomada (militar) do ônibus. Quanto ao contexto, ele é que dá sen-
26

tidos específicos à língua. Um termo, uma expressão, podem ter sentidos diferentes em distin-
tas partes do país e, mais ainda, em países que falam a mesma língua.
Isso significa que, diferente do que supõe a linguística cartesiana de Chomsky, apesar
de ser possível a produção mecânica de frases, o sentido de uma língua - como nos dialetos,
nos idiotismos e na gíria, a saber, a dimensão semântica - diferente da lexical, só se consegue
quando esta estiver imersa no ambiente social e cultural onde ela é falada. Fora disso ela não é
nada, não passa de maquinação intelectual. Máquinas podem produzir frases, mas o sentido
refere-se a algo que está fora delas, na relação de cada indivíduo com seus interesses, valores,
intenções, etc.

Detalhamentos

Shannon refaz o caminho de Saussure. Ele se utiliza do circuito da fala. Ver: Silingardi, cita-
do por Sfez, L., 1993, p. 1733. Sobre o circuito informacional de Shannon: Claude Shannon
será apresentado em detalhes na parte V deste trabalho, quando for abordada a presença dos
cibernéticos na teoria da informação. O esquema de comunicação apresentado pode ser encon-
trado em Bateson et al, 1981, p.18.

Mas a reabilitação do pensamento cartesiano se encontra em Chomsky. Noam Chomsky, continu-


ador de Port-Royal, pode ser conferido em D. Perrocha, citado por: Sfez, 1993, vol. 2, p. 1699.
Assim é descrita sua gramática inata: "A matematização leva Chomsky a considerar que os uni-
versais linguísticos são estruturas comuns a todas as línguas, que ele considera como inerentes
ao espírito humano. A partir disso ele postula uma natureza humana capaz de uma criatividade
infinita, o que leva a crer que ele retoma as teses do inatismo cartesiano" (Auroux/Weil, 1991,
p. 59)". "(Descartes) admite, de uma parte, que deve existir em cada sujeito pensante um tipo
de gramática inata, que pré-existe à possibilidade de aprender uma língua particular; de outra,
que os fatos da linguagem são produtos dessa estrutura universal". (Clément et al, 1994, p.53).
Ver quadro na página seguinte.

Para ele, a competência linguística é possível sem interação social: "...a teoria chomskyana postula,
de fato, que se pode desenvolver um modelo de competência do locutor, isto é, reconstruir o
sistema de regras subjacentes que ele interioriza, sem ter de levar em conta a interação do locu-
tor com seu meio, nem aliás o fato de que a língua possa lhe servir para comunicar." (Proust, in
Sfez, L., 1993, p.23)

E até os robôs podem falar: "Toda sequência linguística que um locutor-receptor ideal é
capaz de reconhecer como gramatical pode ser descrita como engendrada por um autômato de
um certo tipo. Consideremos uma máquina como a última daquelas descritas no artigo “Má-
quina”; nesse caso, uma gramática Gi sobre uma língua Li seria um conjunto de instruções que
permitem à máquina, considerado o vocabulário Vi, escrever sobre uma fita, no final do pro-
cesso, uma frase da língua. Estas condições podem ser concebidas como regras de escrita cor-
respondentes aos diversos estados da máquina." (Auroux/Weil, 1991, p. 58)

René Thom o segue na mesma direção. "Thom ocupou-se posteriomente também com a se-
miótica e a linguística, nas quais parece se tratar também da constituição de formas estáveis.
Ele acredita que os diversos 'caminhos' possíveis através das catástrofes formam um grupo de
<ocorrências fundamentais> puras, que se encontram por detrás da semântica dos verbos as-
sim como da maneira como organizamos cognitivamente o mundo, no decurso de pequenos
27

eventos com poucas unidades (no máximo quatro) participantes. Ele apresenta uma longa série
de propostas originais para a construção de uma 'semiofísica', como ele a denomina, que enca-
ra a significação em grande medida como um fenômeno natural". (Ravn, 1997, p.112)

Mas este estruturalismo de Thom é diferente do clássico: "Um retorno a algo como as formas
platônicas, como o princípio epistemológico maior, é marcante e com consequências radicais.
Um dos princípios aceitos do estruturalismo convencional é a análise da linguagem em termos
de unidades categoriais e seus princípios combinatórios, isto é, em termos de relações para-
digmáticas e sintagmáticas. Isto envolve a classificação de temas sentenciais em seus elementos
e categorias com base na similaridade/diferença de função e significado, e daí a indicação de
sua maneira de combinação sintagmática. Neste caso, o método é o estabelecimento de unida-
des - fonemas, morfemas, lexemas, sememas, etc. - com base em suas posições contextuais,
especificando suas regras de combinação. Como resultado, por exemplo, temos diferentes in-
terpretações do fonema: a física, a abstrata e a fisiológica." (Manjali, 2, p. 4)

RESUMO DE CHOMSKY
- A língua é criatividade. Daí a necessidade de uma gramática gerativa, isto é, uma gramática que gere sentenças e
que dê ao falante a capacidade de se exprimir e compreender frases novas.
- A expressão linguística compreende uma competência (“eu conheço minha língua”) e um desempenho ou perfor-
mance (“eu uso minha língua adequadamente”). A primeira é gerada pela gramática que constitui o saber lin-
guístico dos sujeitos falantes de algum lugar; a segunda é a utilização particular que cada locutor faz da língua
em situações específicas.
- Na língua há duas estruturas básicas: uma profunda, constituída de “universais linguísticos” ou esquemas ina-
tos (como, por exemplo, a relação sujeito/objeto), que faz com que todas as línguas sejam talhadas pelo
mesmo padrão, e uma de superfície, caracterizada pelo componente transformacional, que permite que se che-
gue à estrutura das frases. A passagem de uma para outra obedece a regras das transformações. Neste esquema,
o sentido da frase é derivado quase que totalmente da estrutura profunda.
- Há duas concepções teóricas opostas relativas ao aprendizado de uma língua: a empirista e a racionalista. Para
a primeira, a linguagem seria ensinada por condicionamento (Skinner, Quine), treino ou explicação aberta
(Wittgenstein), ou por métodos elementares de processamento de dados; já a especulação racionalista (de
Chomsky) acha que além destes há idéias inatas que determinam o conhecimento adquirido. Chomsky não
menciona as teorias que falam que linguagem se aprende por interação social, vivência, contexto.

Ele fala das relações entre linguagem e embriologia em: Thom, 1983, pp. 86-87. Sobre a "preg-
nância": "Digamos que uma forma exterior é 'pregnante' (impositiva) para um sujeito, se a per-
cepção desta mesma forma suscite nele reações psicofisiológicas de grande amplitude (como a
forma da presa para um predador faminto). /.../(Em Pavlov) a forma (a pregnância) de tocar a
sineta adquiriu, por contiguidade espaço-temporal repetida com uma forma indutora, a preg-
nância alimentar." (idem, p.154). O sinal, no caso, tornou-se a coisa. Thom acredita que "todo
sistema cultural de inteligibilidade foi construído de forma semelhante à pregnância animal,
pela sucessão de contágios por continuidade e por similaridade”. Ele vê “a constituição da lin-
guagem humana como resultado da explosão de grandes pregnâncias biológicas sobre uma
sequência dÉformas induzidas' pela aprendizagem social” (idem, pp. 156-7).

Finalmente, é Douglas Hofstadter que toma o cérebro como hardware. “Parece que nosso cérebro
vem equipado com hardware para reconhecer que certas coisas são mensagens e assim decodifi-
cá-las. Esta capacidade inata mínima de extrair significações internas é o que permite ocorrer
28

um processo altamente recursivo, tipo bola de neve, da aquisição da linguagem/.../ Cérebros


humanos são construídos de tal forma que um cérebro responde em geral da mesma forma
que outro diante de um determinado disparador, todo o resto é igual. Por isso uma criança
pode aprender a linguagem; ela responde ao disparador da mesma forma que qualquer outra
criança./.../” (Hofstadter, 1989, p.171)/.../ “Poderíamos atribuir os significados (estruturas,
exterior e interior) de uma mensagem a ela mesma, pelo fato de os mecanismos de deciframen-
to serem universais - isto é, são formas fundamentais de natureza que surgem da mesma forma
em diferentes contextos.”(idem, ibidem) /.../ “Se acontece (a formação de um novo símbolo
pela interação de outros dois), pode-se dizer que o novo símbolo 'sempre havia estado lá mas
nunca fora ativado' - ou iria alguém dizer que ele foi criado?” (idem, p.355)

Porém, do outro lado, Searle critica Chomsky e seus seguidores: “A linguagem (pela qual o ho-
mem pensa e sabe que pensa) não é um processo linear, regulado como um mecanismo e no
qual seu desdobramento conduz ao sentido. O sentido aqui precede a letra. O sentido está no
mundo onde nos encontramos 'atirados' e nossa ação linguística é um engajamento total em
suas múltipas manobras. Se ele está voltado à ação, como sua determinação principal, não po-
demos tratá-lo como uma parte composta de partes, mas como uma totalidade intencional.
Dito de outra forma, como um corpo a corpo entre falante e do falado, corpo a corpo que
exprime as relações dos sujeitos com seu meio, definindo-o e modificando-o a cada instante a
composição” (Sfez, 1988, p. 302).

Hjelmslev e Deleuze

A linguística, apesar de ter sido “apropriada” pelo pensamento positivista lógico, mos-
trou-se posteriormente muito mais “ciência humana”, como a sociologia, a antropologia e a
política. Ciência, portanto, que inclui o inobservável, o imprevisível, o estranho. E a linguagem,
muito mais do que simplesmente “comunicar signos”. A interferência de fatores extra-
linguísticos é determinante. Há falas que são verdadeiras ações, disse Austin, e a produção de
falas é um processo social complexo, em que não há enunciações pessoais, subjetivas, particu-
lares, mas jogo contínuo de diferentes vetores.
A leitura mais moderna da linguagem ultrapassa a clássica fórmula saussureana que
simplificava a língua vinculando (subordinando) um significado a um significante, instaurando
uma relação de termos interdependentes, em que o valor de cada um resultava apenas da pre-
sença de outro(s). O linguista dinamarquês Louis Hjelmslev vai ultrapassar a lógica saussureana
do jogo, baseada na definição de dois componentes em relação de subordinação (um significa-
do, a ideia da árvore; um significante, a palavra, o som ‘arvore’), ao introduzir a « lógica da mo-
eda », baseada numa relação de troca recíproca e permanente entre os elementos em questão.
Ele irá também romper a ligação significante como complemento do significado, separando-os
agora como expressão e conteúdo. Isso quer dizer que ambos passam a ter ampla independên-
cia e ação recíproca ao invés de um jogo de vinculação estreita.
Mais além, Hjelmslev institui para cada plano um nível das substâncias (massa amorfa
onde se encontram os pensamentos, as possibilidades expressivas) e um nível das formas (as
escolhas linguísticas e fonéticas específicas de cada cultura). Tem-se, então, em substituição ao
modelo bipartite de Saussure, um esquema de quatro elementos ou combinações: forma de
conteúdo, substância de conteúdo, forma de expressão e substância de expressão. Assim, passa
a ser possível estudar a literatura não apenas a partir do plano estritamente escrito mas também
como jogo de formas, além de se poder estudar a escrita sem considerar os sons. Hjelmslev
29

abre os horizontes da investigação linguística para campos situados em dimensões até então
não tidas como relevantes para os pesquisadores.
Sua perspectiva será retomada mais recentemente (anos 70) por Gilles Deleuze e Félix
Guattari, que, de uma perspectiva pós-estruturalista, desdobram o plano originalmente desen-
volvido pelo linguista dinamarquês.
Importante nessa posição dos autores franceses é o caráter mutuamente determinante
desses dois planos de agenciamentos ou da forma (do conteúdo e da expressão) e da substân-
cia (do conteúdo e da expressão). Como um jogo contínuo de forças, as declarações repercu-
tem sobre o sistema, as instituições, os organismos que, por sua vez, as reformulam e reenviam
às pessoas, num jogo contínuo de vai-e-vem, sem começo nem final, de influência recíproca.
Para os autores franceses, a linguagem é fundamentalmente constituída de palavras de
ordem, ou seja, falas que não são proferidas para que nelas se acredite mas para que sejam
obedecidas (a fala do pai, do padre, do professor, da polícia, do governo). São falas, que pela
sua enunciação transformam as pessoas. Com isso eles retomam e ampliam a posição de Aus-
tin, exposta anteriormente (dos enunciados performativos), através do conceito de transformação
incorpórea: a partir de uma enunciação, os corpos se transformam: uma declaração de guerra
altera uma população, uma declaração de sequestro transforma pessoas em reféns. Os atenta-
dos terroristas realizados em Nova Iorque em 2001 levaram a que a primeira reação do presi-
dente americano Bush fosse “declarar a guerra”. A partir desse instante toda a opinião pública
daquele país se transformou; a fala presidencial reposicionou todos os atores e agora segundo
uma estratégia de interesse econômico-militar: os agressores viraram “inimigos da Nação”,
seus atentados, uma “declaração de guerra”, a posição americana, uma cruzada contra a violên-
cia terrorista que vinha de fora. Uma declaração tem, assim, o poder de reorganizar as mentes,
funcionalizá-las segundo critérios estratégico-ofensivos e os atores adquirirem rapidamente um
novo status.
Ao mesmo tempo, os autores eles remetem toda a enunciação a uma autoria coletiva,
excluindo-se aí qualquer aspiração de indivíduos isoladamente serem criadores de discursos: há
uma estruturação, um agenciamento coletivo da enunciação, da mesma forma como - no plano das
máquinas, das engrenagens, dos processos - há um agênciamento maquínico dos corpos. O
agenciamento coletivo, no caso acima, corresponde ao envolvimento total, generalizado da
população na “campanha”, atuando não só no espírito, mas materialmente concatenada (como
uma “máquina”) para a ação e a reação. Esse agenciamento quer dizer que há uma máquina
abstrata situada além do plano linguístico, ao qual a linguagem se adapta, ganha sentido e signi-
ficação social.
Toda a fala não passa de « discursos indiretos », dizem eles. Eu nunca sou o dono do
meu discurso, estou sempre falando outras falas. Esse contínuo deslocamento das falas, enun-
ciações, linguagens por diversas períodos de tempo e em diferentes espaços é o que torna
sempre iguais e sempre diferentes. Por isso, também a significação está no contexto, além das
enunciações reduzidas, individualizadas: está no sistema todo, que como um pulsante órgão
incorpora todos os movimentos, os percursos, entradas e saídas. O social, como cada um dos
indivíduos, é poroso, internamente labiríntico e flexível como uma esponja. Recebe tudo e
expele tudo.
E os signos que circulam no social pertencem a um só tempo a múltiplos circuitos em
que se reciclam, se renovam ou morrem. Ora são desenhos, ora são répteis, ora voltam a ser
desenhos, como em Répteis, de Escher. Os signos atuais têm parentesco com signos passados e
formarão signos futuros numa contínua remissão, numa contínua reatualização, como o Movi-
mento perpétuo, também de Escher.
30

Detalhamentos

Deleuze/Guattari fazem a reatualização da crítica da semiologia saussureana: Em Saussure, “falta


o 'elemento suplementar/.../ inacessível à linguística: a fala, sua instantaneidade, sua imediati-
cidade” (Bakhtin, cf. Deleuze/Guattari, 1995, vol. 2, p. 21). Diferente da informática, acredi-
tam Deleuze/Guattari, o que vem primeiro é a redundância da fala; a informação é apenas
condição mínima para a transmissão de falas. “A professora não se questiona quando interroga
o aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo.
Ela 'ensigna', dá ordens, comanda. Os mandamentos do professor não são exteriores nem se
acrescentam ao que ele nos ensina. Não provêm de significações primeiras, não são a conse-
quência de informações: a ordem se apóia sempre, e desde o início, em ordens, por isso é re-
dundância” (idem, p. 11). “A relação entre o enunciado e o ato é interior, imanente, mas não
existe identidade. A relação é, antes, de redundância. A palavra de ordem é, em si mesma, redun-
dância do ato e de um enunciado. Os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato
de nos dizerem o que é “necessário” pensar, reter, esperar, etc. A linguagem não é informativa
nem comunicativa, não é comunicação de informação, mas – o que é bastante diferente –
transmissão de palavras de ordem, seja de um enunciado a um outro, seja no interior de cada
enunciado, uma vez que um enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no enunciado. (p.
17)

A enunciação não é individual, é um fenômeno social...: É como diz Birdwhistel: "O indivíduo
não se comunica; ele toma parte numa comunicação em que se torna um elemento. Ele pode
se mexer, fazer barulho... mas não se comunica. Em outros termos, ele não é o autor da comu-
nicação, ele participa dela. A comunicação, enquanto sistema, não deve ser concebida como
modelo elementar da ação e da reação, por mais complexo que seja seu enunciado. Deve-se
entendê-la no plano da troca". (Watzlawick et al, 1972, p.68). "Não há contornos distintivos
nítidos, não há, antes de tudo, inserção de enunciados diferentemente individuados, nem en-
caixe de sujeitos de enunciações diversos, mas um agenciamento coletivo que irá determinar
como sua consequência os processos relativos de subjetivação, as atribuições de individualida-
de e suas distribuições moventes no discurso" (Deleuze/Guattari, 1995, vol. 2, p.18). "O dis-
curso indireto é a presença de um enunciado relatado em um enunciado relator, a presença da
palavra de ordem na palavra. É toda a linguagem que é um discurso indireto... O discurso dire-
to é um fragmento de massa destacado, e nasce do desmembramento do agenciamento coleti-
vo; mas este é sempre como o rumor onde coloco meu nome próprio, o conjunto de vozes
concordantes ou não de onde tiro minha voz" (idem, p. 23).
31

...em que a frase não significa nada. “Não existe enunciação individual nem mesmo sujeito
da enunciação. Entretanto, existem relativamente poucos cientistas que tenham analisado o
caráter necessariamente social da enunciação/.../O caráter social da enunciação só é intrinse-
camente fundado se chegamos a mostrar como a enunciação remete, por si mesma, aos agenci-
amentos coletivos”. (Deleuze/Guattari, 1995, vo. 2, p.17-18). Ver tb. Benveniste: “O enunciado
performativo não é nada fora das circunstâncias que o tornam o que é” (idem, p. 20/21). O
significado está no 'continuum': “O significante é um signo redundante com o signo. Os signos emi-
tem signos uns para os outros. Não se trata de saber o que tal signo significa, mas a que outros
signos remete, que outros signos a ele se acrescentam, para formar uma rede sem começo nem
fim, que projeta sua sombra sobre um continuum amorfo atmosférico. É esse continuum
amorfo que representa, por enquanto, o papel do 'significado', mas ele não pára de deslizar
sobre o significante para o qual serve apenas de meio ou de muro: todos os conteúdos vêm
dissolver nele as formas próprias” (idem, p.62).

ESQUEMA DE HJELMSLEV

Conteúdo (significado) Expressão (significante)


Forma do/da Forma instituída por cada língua para efetivar a Seleção dos sons, formação de termos
[escolhas] comunicação
Substância do/da Massa amorfa de pensamentos, idéias. Repertório de substâncias expressivas:
[fontes] Território onde prevalece a avaliação da comu- fônica, gráfica, sinalética;
nidade, as opiniões, etc. Múltiplas pronúncias, etc.
Espaço de constituição das metáforas

RESUMO DE HJELMSLEV
- Para Saussure, o signo linguístico possui duas dimensões: conteúdo (significado) e expressão (significante) e a
língua é apenas forma, não substância. Hjelmslev em sua glossemática busca aprofundar as relações entre forma
e substância linguística, isto é, as diferentes relações entre linguagem e pensamento ou contexto de opções
linguísticas e fonéticas.
- Assim, em termos da expressão, uma mesma forma pode se manifestar através de múltiplas substâncias:
fônica, gráfica, sinais por bandeiras e outros. Ela é idêntica a si mesma mas pode ser comunicada diferente-
mente.
- Forma é o plano responsável pelas seleções, pelos cortes operados sobre uma “massa amorfa” de pensamen-
tos e idéias, visando construir sua linguagem própria. Ela é, assim, a estruturação de uma língua na sua inten-
ção de comunicar. A forma do conteúdo que a língua inglesa construiu para uma idéia do “eu não sei” é o “I
don’t know”, o francês o “je ne sais pas”, o alemão o “Ich weiss es nicht”.
- A substância é essa massa amorfa originária, onde se instala a noção do “eu não sei”. Pode-se vê-la igualmen-
te no contínuo amorfo de cores de onde cada língua tira o seu termo (blau, blue, bleu, azul, etc.). Na substân-
cia do conteúdo vale, antes de mais nada, a avaliação. Conforme Hjelmslev, não se caracteriza um uso semân-
tico de um termo apenas ou principalmente pela descrição física do mesmo; ao contrário, isso ocorre através
das avaliações adotadas pela comunidade, as apreciações coletivas, a opinião social. Daí um mesmo objeto re-
ceber descrições semânticas bem diferentes conforme a civilização considerada: “um elefante é algo bem di-
ferente para um hindu ou um africano que o utiliza e o cria, que o teme e o ama, e para uma determinada so-
ciedade européia ou americana para as quais o elefante só existe como objeto de curiosidade exposto num
jardim de aclimatação e em circos e feiras, e descrito em manuais de zoologia”. [Hjelmslev, 1954, p. 164].
32

- Forma da expressão e substância da expressão têm uma definição equivalente, só que aplicadas às palavras e
aos sons. A substância da expressão é também uma massa amorfa, mas de possíveis sons, articulações, ento-
nações, vibrações acústicas. Há zonas de figuras (fonemas) e zonas vocálicas; são múltiplas formas fônicas,
gráficas, sinaléticas, assim como um repertório de pronúncias, sotaques, regionalismos.
- A forma da expressão combina, por exemplo, os sons b, w, e a para constituir o termo francês “bois”.

Se bem que Hjelmslev abra o reducionismo saussureano, de limitar o estudo da lingua-


gem à substância de expressão fônica, quando poderia ampliar para a gráfica, por exemplo,
Derrida acredita que ele permanece mesmo assim muito preso a uma vinculação estreita entre
forma de expressão e substância de expressão.

Importantes são os pressupostos implícitos: “Chamamos palavras de ordem não uma categoria
particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer
palavra ou qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se
realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. (Deleuze/Guattari, 1995, vol. 2,
p.16). Em um sequestro de avião, a ameaça do bandido que aponta um revólver é evidente-
mente uma ação; da mesma forma que a execução de reféns, caso ocorra. Mas a transformação
dos passageiros em reféns, e do corpo-avião em corpo-prisão, é uma transformação incorpórea
instantânea, um mass-media act no sentido que os ingleses falam de speech act. As palavras de or-
dem ou os agenciamentos de enunciação em uma sociedade dada – em suma, o ilocutório –
designam essa relação instantânea dos enunciados com as transformações incorpóreas ou atri-
butos não corpóreos que eles expressam. (idem, p.19). “Um tipo de enunciado só pode ser
avaliado em função de suas implicações pragmáticas, isto é, de sua relação com pressupostos
implícitos, com atos imanentes ou transformações incorpóreas que ele exprime e que vão in-
troduzir novos recortes entre os corpos" (idem, p. 23).

A importância de Hjelmslev, segundo Deleuze/Guattari: Em Mil Platôs, citado acima, Deleu-


ze/Guattari tentam exemplificar a utilização que fazem de Hjelmslev em sua teoria e porque a
tomam como “a única teoria moderna da linguagem”:

1. Para melhor explicar o esquema de Hjelmslev, Deleuze/Guattari utilizam-se do


exemplo da crise monetária na República de Weimar. A forma do conteúdo seria, para eles, o
corpo monetário da inflação, a massa de dinheiro em circulação. Os dois autores franceses
chamam a isso de "agenciamento maquínico dos corpos, das ações, das paixões". É muito
mais, portanto, do que a simples produção, que seria, para eles, uma forma de "corpo sem ór-
gãos". A forma da expressão seriam as ações e sentenças, os comportamentos gerados por esse
fator. Trata-se, aqui, do "agenciamento coletivo da enunciação, dos atos, dos enunciados": são
contínuos deslocamentos, apropriações e mudanças de significações das prescrições, das or-
dens e determinações do regime de signos.

« Em seu aspecto material ou maquínico, um agenciamento não nos parece remeter a


uma produção de bens, mas a um estado preciso de mistura de corpos em uma sociedade,
compreendendo todas as atrações e repulsões, as simpatias e as antipatias, as alterações, as ali-
anças, as penetrações e expansões que afetam os corpos de todos os tipos, uns em relação aos
outros. Um regime alimentar, um regime sexual, regulam, antes de tudo, misturas de corpos
obrigatórias, necessárias ou permitidas. Até mesmo a tecnologia erra ao considerar as ferra-
mentas nelas mesmas: estas só existem em relação às misturas que tornam possíveis ou que as
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tornam possíveis. O estribo engendra uma nova simbiose homem-cavalo, que engendra, ao
mesmo tempo, novas armas e novos instrumentos. As ferramentas não são separáveis das sim-
bioses ou amálgamas que definem um agenciamento maquínico Natureza-Sociedade. Pressu-
põem uma máquina social que as selecione e as tome em seu phylum: uma sociedade se define
por seus amálgamas e não por suas ferramentas. E, da mesma forma, em seu aspecto coletivo
ou semiótico, o agenciamento não remete a uma produtividade de linguagem, mas a regimes de
signos, a uma máquina de expressão cujas variáveis determinam o uso dos elementos da língua.
Esses elementos, assim como as ferramentas, não valem por si mesmos. Há o primado de um
agenciamento maquínico dos corpos sobre as ferramentas e sobre os bens, primado de um
agenciamento coletivo da enunciação sobre a língua e as palavras ». (Deleuze/Guattari, 1995,
vol. 2, p. 31-32)

2. Hjelmslev introduz duas novas dimensões: forma do conteúdo e forma da expressão. No aspecto
da forma da expressão, esta se manifesta na língua, nas palavras, onde se engendra uma nova
semântica, onde se realiza efetivamente a pragmática. Aqui os fatos linguísticos não são mais
constantes, como no caso anterior, mas "pseudoconstantes": variáveis de expressão, na própria
enunciação, que se misturam a variáveis de conteúdos. « Na Alemanha, por volta de 20 de no-
vembro, tem-se a inflação desterritorializante do corpo monetário, mas também a transforma-
ção semiótica do reichsmark em rentenmark, que predomina e torna possível a reterritorializa-
ção” (Deleuze/Guattari, 1995, vol. 2, p. 29)

Ouçamos os autores falarem: "Há grandes diferenças entre uma linguística de fluxos e a lin-
guística do significante/.../...a linguística de Hjelmslev se opõe profundamente às empresas
saussureana e pós-saussureana. Pois ela abandona toda referência privilegiada. Porque ela des-
creve um campo de pura imanência algébrica, que não se deixa ultrapassar por nenhuma ins-
tância transcendente, mesmo em supressão. Porque ela faz fluir no campo seus fluxos de for-
ma e substância, de conteúdo e de recuo. Porque ela substitui à relação de subordinação signi-
ficado/significante a relação de pressuposição recíproca expressão-conteúdo. Porque a dupla
articulação não se faz mais entre dois níveis hierarquizados da língua mas entre dois planos
desterritorializados conversíveis, constituídos pela relação entre a forma do conteúdo e a forma
da expressão. Porque atinge-se, nesta relação, figuras que não são mais efeitos do significante,
mas esquizos, pontos-signos ou cortes de fluxos que perfuram a parede do significante, passam
através dela e vão mais além. Porque os signos ultrapassam uma nova soleira de desterritoriali-
zação. Porque estas figuras perderam definitivamente as condições de identidade mínima que
definem os elementos do próprio significante. Porque a ordem dos elementos é aí segunda em
relação à axiomática dos fluxos e das figuras. Porque o modelo da moeda, no signo-ponto ou
na figura-corte destituída de identidade, não tendo mais que uma identidade flutuante, tende a
substituir o modelo do jogo. Em resumo, a situação bastante particular de Hjelmslev na lin-
guística e as reações que ela suscita nos parecem explicar por isto: ele tende a fazer uma teoria
puramente imanente da linguagem, que rompe o duplo jogo da dominação voz-grafismo, que
faz fluir forma e substância, conteúdo e expressão seguindo os fluxos do desejo e corta esses
fluxos seguindo pontos-signos ou figuras-esquizos. Longe de ser uma sobredeterminação do
estruturalismo e de sua ligação ao significante, a linguística de Hjelmslev indica a destruição
combinada e constitui uma teoria decodificada de línguas, da qual pode-se dizer também, tribu-
to ambíguo, que ela é a única adaptada ao mesmo tempo à natureza dos fluxos capitalistas e
esquizofrênicos: até agora a única teoria moderna (e não arcaica) da linguagem" (1972, p. 287-
9)
34

"Louis Hjelmslev reconheceu que, em relação ao texto, a significação não está ligada do
significante numa relação um-a-um, dentro de signo-unidades identificáveis. Ele minimizou a
ideia de que o significado e o significante estariam associados de forma complementar no inte-
rior de unidades do signo. Em vez disso, propôs uma descrição sígnica que `deve analisar sepa-
radamente conteúdo e forma, com cada uma das duas análises produzindo um número restrito
de unidades, que não sejam necessariamente suscetíveis à equalização com entidades no plano
oposto'. (Hjelmslev, 1961, edn. 45; ver também Manjali, 1, p.4)

Hjelmslev e a lógica. Para Hjelmslev a linguagem não pode ser reduzida a puros e simples
princípios da lógica; o tipo lógico-matemático de oposição (por exemplo: positivo e negativo)
não é o único tipo de oposição a ser encontrado na língua. Por exemplo, na dimensão direção,
o que nós vemos não é uma relação de oposição, isto é, a presença de uma característica indi-
cando a ausência da oposta. Em lugar de um sistema lógico baseado na lei de oposição e
nãocontradição, as linguagens, sugere Hjelmslev, são guiadas por um sistema pré-lógico, com
suas próprias 'leis de participação'. A oposição não é entre uma linguagem tendo uma caracte-
rística A e outra, tendo a característica não-A mas é entre tendo características A e não-A na
mesma linguagem. (Manjali, 1, p.11)

Excurso: A semiologia

A semiologia ou linguística estrutural teve desdobramentos em várias ciências humanas,


como na antropologia, na política, na filosofia e na psicanálise, através de nomes como Lévi-
Strauss, Althusser, Foucault e Lacan. O solo de desenvolvimento desses autores foi a França
dos anos 50 e seu alvo de ataque foi o existencialismo, o humanismo, o historicismo e o mar-
xismo hegeliano.
Como visto no primeiro item deste Capítulo, a linguística torna-se estrutural a partir de
Ferdinand de Saussure, mas desdobra-se principalmente com Jakobson, Greimas e Hjelmslev.
Prevalecem metáforas como jogo de xadrez, cartas de jogo, sendo que homens e relações soci-
ais diretas não têm importância teórica, são apenas formas e não substâncias.
Para Lévi-Strauss, o sociólogo e o linguista estão muito próximos, pois os termos de
parentesco assim como os fonemas são elementos do significado e só adquirem esse status na
condição de integrarem-se em sistemas; os sistemas de parentesco e os sistemas fonológicos
são elaborados pela mente no estágio do pensamento inconsciente e ambos se submetem a leis
gerais da cultura, de caráter oculto. Diz o antropologo, que as regras de matrimônio e os siste-
mas de parentesco são uma espécie de linguagem, quer dizer, um conjunto de operações desti-
nadas a assegurar entre indivíduos e grupos um certo tipo de comunicação. Mais ainda: as
mensagens são as próprias mulheres que circulam entre os clãs, as estirpes e as famílias. Elas
“circulam” entre os grupos garantindo, com isso, a troca sexual, ou seja, a abertura da tribo
para outras e sua preservação.
A importância de Lévi-Strauss para a comunicação está também em ele trabalhar com o
mito (que depois foi reapropriado por Barthes). O etnólogo estudou sua organização sintática,
seus elementos, suas relações enquanto pares (herói-vítima, amigo-inimigo, pai-mãe, cru-
cozido, ou seja, binárias, conjuntivas, opositivas) e concluiu que eles dão um significado co-
mum às elaborações inconscientes, sendo que, para ele, não são os homens que pensam os
mitos mas “os mitos que se pensam nos homens sem que eles o percebam”.
Michel Foucault estudou a história da loucura, o estudo da história, a arqueologia do
saber e, tangencialmente, ofereceu subsídios aos estudos de comunicação. Em As palavras e as
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coisas, distingue três estruturas epistêmicas que se sucederam na história do pensamento. Numa
primeira, as palavras teriam a mesma realidade do que significavam, por exemplo, uma moeda
tinha, ela própria, também um valor real, a significação estava contida na própria coisa. Numa
segunda estrutura, por volta do Renascimento, o “discurso” (isto é, a representação) quebra
essa correspondência direta entre significante e coisa. Ainda no exemplo da economia, o metal
deixa de ter valor intrínseco: ele passa a ser representado. O valor de uma moeda não vem
mais da matéria que a compõe mas de sua forma, da imagem ou marca do príncipe. Mas há
ainda uma terceira estrutura, que surge a partir aproximadamente de 1800, e que já não se rela-
ciona com a representação visível do valor (ou do significado) mas o remete a uma dimensão
oculta. Assim acontece com a linguagem, diz Foucault, que dá sentido às palavras: já não é o
dinheiro que se torna a medida do valor de um bem mas algo abstrato, o trabalho necessário
para produzi-lo.
Jacques Lacan retoma o projeto de Freud, segundo o qual “o inconsciente e as patolo-
gias falam”. Este – o inconsciente – seria o território privilegiado da palavra. Todas as marcas
do inconsciente estão de alguma forma “registradas” em sua linguagem: no corpo como “mo-
numento”, nos documentos de arquivo (recordações da infância), na forma como eu falo (na
minha semântica), na tradição (as lendas que veiculam minha história). Freud propôs uma “es-
trutura linguística” do sonho, como veremos mais à frente (“O caso Irma”, em: Linguagens In-
conscientes), através de conceitos como deslocamento, condensação e sobredeterminação. Os
dois primeiros, Lacan rebatiza com termos linguísticos: metonímia e metáforna.
Para Lacan, o sintoma neurótico seria um significante de um significado reprimido da
consciência. Ao sujeito permanece oculta a “verdade” de sua própria história e a terapia busca
mostrar o paciente essa verdade, que, de fato, o imobiliza na repetição. Feito isso, ele seria en-
tão restituído à plenitude da dimensão histórica de sua existência. Essa aspiração à verdade foi
severamente criticada por Castoriadis, Deleuze, Atlan e Derrida. Derrida trabalha também com
Freud mas não aceita a trajetória lacaniana: ele não concorda com um telos (com a finalidade)
de se chegar à “palavra plena” de Lacan, pois não aceita sua ligação a uma verdade. Isso apare-
ce particularmente no texto “Palavra vazia e palavra cheia na realização psicanalítica do sujei-
to”: lá Lacan fala do nascimento da verdade na palavra, da verdade da revelação.
O conceito lacaniano de desejo, não obstante, ainda fornece amplas possibilidades de
exploração no campo da comunicação e na cultura de massas. Desejo não se confunde com
necessidade, pois esta pode ser satisfeita pelo objeto que se consegue. Ele está mais próximo
da “demanda”: demanda de presença e de ausência, demanda de amor. Neste sentido, Lacan
lembra a concepção de comunicação do Colégio Invisível e das linguagens outras que não a
propriamente verbal. Um desejo vem sempre mascarado de necessidade: se eu respondo a um
apelo com a coisa que me é apelada, estarei respondendo à necessidade mas não ao amor: um
doce para uma criança pode não ser a expressão de uma necessidade mas de uma carência real:
do amor. Um excesso de respostas formais aos pedidos de uma criança – um volume extraor-
dinário de guloseimas – pode levar à rejeição, visto que não a satisfaz naquilo que ela efetiva-
mente busca. Os cuidados da mãe podem ser facilmente confundidos com essa satisfação ma-
terial, o que pode levar à anorexia mental e ao suicídio.
O desejo estaria em Lacan ainda além da demanda, ele corrói a necessidade e se localiza
no campo do “Outro” (lugar estruturado como teia, que estrutura o sujeito), isto é, é desejo de
outro desejo para Lacan, “desejo de fazer o outro reconhecer seu desejo”.
Roland Barthes estuda os mitos modernos: a vedete, o automóvel, os signos de consu-
mo, como « sistemas de signos », discursos que transplantados sobre as línguas naturais, for-
mam uma segunda língua falando da primeira. Sua semiologia estudou o cinema, os mitos as-
sim como o sistema da moda ou dos textos literários em termos de signos, sistemas de oposi-
36

ções, de complexos significantes e de funções simbólicas. Trata-se de um modelo epistemoló-


gico que encontrou posteriormente aplicação na análise do discurso publicitário, na comunica-
ção impressa e nas artes visuais, incluindo aí a televisão.
Não obstante, as mesmas críticas desferidas contra o estruturalismo são válidas para es-
te modelo, que teve nos anos 60 sua expressão mais forte, adicionando a isso, também, o fato
de a semiologia cair não raro nas malhas da dotação de sentido, do deslocamento para interpre-
tações psicanalíticas e da construção de um espaço ou de uma coerência lógica em contextos,
ambientes, cenas, que, necessariamente não obedeceriam a uma noção de ordem que, em mui-
tos casos, está sediada mais na cabeça do pesquisador.
Como os cientistas que buscam uma ordem que "tem que surgir" a partir do caos, da
mesma maneira, o método semiológico, com o recurso do estruturalismo, busca, como diz
Vincent Descombes, a reencarnação do projeto de uma ciência unificada de todas as coisas.

Detalhamentos

O estruturalismo de Claude Lévi-Strauss pode ser consultado em Lévi-Strauss, 1949 e


1967, assim como em Marcondes Filho, C., 1989, pp. 178ss. Jacques Lacan pode ser consulta-
do em Marcondes Filho, C., 1989, pp.184-203. Jaques Derrida critica Lacan em Derrida, 1972,
p. 54.
Críticas a Lacan. Castoriadis, a partir de seu conceito de autonomia, critica Jacques La-
can. Através da autonomia, diz ele, “meu discurso deverá tomar o lugar do discurso do Ou-
tro”, ou seja, desse discurso estranho que está em mim e que me domina, cf. Castoriadis, 1975,
p.124. O biólogo Henri Atlan, por seu turno, diz que “a luta de Lacan com e contra a lingua-
gem provém do fato de que a aquisição da linguagem seja indispensável à maturação do infans
e só ela o salva da psicose. Mas, ao mesmo tempo, ela não se dá a não ser pelo recalque e a
denegação, pela instalação do engodo da consciência, de tal forma que, no limite, só o psicóti-
co está ainda ligado à verdade” (Atlan, 1986, p. 103). Ver também aqui Deleuze/Parnet: “Os
psicanalistas ensinam a resignação infinita, eles são os últimos padres (não, ainda haverá outros
depois)” (1996, p.100). Jacques Derrida em A escritura e a diferença, censura o psicanalista francês
ao dizer que Lacan mantem-se no campo logocêntrico ao privilegiar um telos da palavra plena
sem ligação essencial com a Verdade (Derrida, 1995, p. 54). Sobre o “inconsciente estruturado
como linguagem” e a crítica de Bougnoux a isso, dizendo que isso ignora a pragmática, ver
Bougnoux, 1991, p.59.
Roland Barthes foi o primeiro autor semiólogo a se dedicar aos estudos de comunica-
ção. Ele trabalhou inicialmente com a narrativa e propôs, a partir de uma perspectiva estrutura-
lista, operar três níveis da sua descrição: função, noção e narração: "Uma função não tem sen-
tido a não ser que ela tenha lugar no interior da ação geral de um ator, e esta ação recebe, ela
mesma, seu sentido último do fato que ela é narrada, confiada a um discurso que tem seu pró-
prio código" (Miège, 1995, p. 30). Cf. Miège, suas proposições foram largamente retomadas
pelos estudos de imprensa, mensagens e argumentação publicitária e questionaram o primado
da análise tradicional de conteúdo temático.
Umberto Eco se ocupa, no campo semiótico, dos estudos da imagem na indústria cul-
tural: “Numa pesquisa semiológica é preciso sempre considerar que os fenômenos da comuni-
cação não são totalmente explicáveis com as categorias da linguística” (idem, p. 30). É o caso
do filme, que tem sua própria gramática. Foi preciso, assim, buscar outras fontes explicativas a
partir da visão semiológica, se bem que o fôlego desta corrente de pesquisa não a consolidou.
37

Apesar da separação de campos, ele não abandonou a corrente-mãe do estruturalismo e foi


levada junto com ela em sua crise nos anos 80.
Sobre Vincent Descombes, consultar Descombes, 1989, 168.

Excurso – A interpretação

A questão da interpretação é um tema delicado nos estudos de comunicação. Daremos


aqui apenas um quadro introdutório, pois o tema será retomado e aprofundado no 2º volume
desta obra.
A interpretação relaciona-se com a filosofia (A questão do sentido), com a história,
com a comunicação no processo terapêutico.
O tema do sentido está associado a uma tradição metafísica, ao vazio existencial do
final do século 20, em que grandes modelos de ação e de orientação desmoronaram (as grandes
atitudes explicativas, de Arnold Gehlen, os metarrelatos, de Jean-François Lyotard), assim co-
mo a uma certa impotência humana diante das novas tecnologias, que, de certa forma, se apro-
priaram dos projetos da razão. Todo esse quadro constitui um contexto específico que se con-
vencionou chamar de pós-moderno.
A ausência de sentido resume-se no pânico do vazio, ou horror vacui. Umberto Eco refe-
re-se a ele falando de Xanadu, museu norte-americano onde se trabalha com excesso de peças,
de objetos antigos e novos misturados, onde o exagero com os detalhes transmite a "vontade
obsessiva de não deixar nenhum espaço que não lembre algo". O vazio é preenchido pelos
sentidos, pelas interpretações. Parece que a própria consciência do vazio é sufocante e aterrori-
zante. Preenchê-lo, dar um nome tranquiliza ao mesmo tempo que o esteriliza. Mas, não estaria
aí uma resistência à mudança? Lao-Tsé dizia que uma via que pode ser traçada não é uma via
eterna, o Tao. Um nome que pode ser pronunciado não é um nome eterno, e que atribuir um
sentido, uma significação, é construir uma realidade particular. Nos três casos se trata de impor
um destino, um enquadramento, um limite. Isso porque o vazio, se bem que desespero e caos,
é também, paradoxalmente, o mesmo que a liberdade, à qual, conforme Anders, o homem está
"irremediavelmente condenado".

No plano da significação (histórica, textual), a busca de sentido é igualmente questionável.


É conhecida a afirmação de Nietzsche em História de um erro de que o "verdadeiro mundo"
acabou por se tornar fábula ou, então, um recolhimento de mentiras (Proust). Daí a dificuldade
do historiador atual em exercer seu métier. Tem que trabalhar com os documentos sem tomá-
los como verdades (visto que em qualquer época forjaram-se provas). São peças, pistas, vestígios
que o pesquisador aceita ou não, e se aceitar, o faz com reservas, pois, se trata de informações
descobertas entre milhões de outras que se apagaram, que foram sonegadas ou simplesmente
não registradas. Interpretar, criar uma cadeia de sentido, reconstruir uma história torna o traba-
lho do historiador o mesmo que de um ficcionista.
Em Heidegger e os "judeus", Lyotard questiona a validade da reconstrução histórica na
televisão, no cinema, a partir dos relatos, dos vestígios. Para ele, as vivências, inclusive trágicas,
do passado são irrepresentáveis. Todas as vezes que as sintetizamos, ou, como ele diz, a inscre-
vemos na memória, tendemos a esquecê-la pois o que se inscreve - diferente da vivência - pode e
tende a se apagar.

Documentos, relatos escritos, podem ser decifrados mas se discute a capacidade efetiva
de compreendê-los plenamente. Douglas Hofstadter acredita que o significado sempre está no
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documento e se o texto não tivesse sido decifrado por um grupo, o seria por outro em outra
época. Ele acha que alienígenas entenderiam Bach, pois, para ele, no mesmo sentido de Cho-
msky, todo o processo não passa de “ativar estruturas no cérebro dos aborígenas, que criariam
efeitos emocionais análogos aos nossos, quando ouvimos a peça”. Cultura musical, gosto de-
senvolvido, espírito da época, identificação com o tipo de som, história entrelaçada com a mú-
sica, em suma, nenhum dos componentes sociais (portanto histórico-culturais) precisam ser
considerados. Não obstante, quando fala de música e diz que esta não precisa de códigos de
deciframento, pois mexe diretamente com estruturas cerebrais ativáveis sempre que necessá-
rias, cai em contradição ao comentar John Cage: “diferente de Bach, ele só seria compreensível
pela moldura externa”. A questão geral com que nos deparamos, complementa, é quanto uma
mensagem precisa de contexto necessário para restabelecer seu próprio entendimento (Hofs-
tadter, 1989, p.175).
Não é o que pensa Wittgenstein, por exemplo, para quem não existe essência da significa-
ção, mas jogos de linguagem que relativizam a comunicação tornando-a diferente conforme as
circunstâncias. Tampouco Paul Ricœur, que recusa a noção de extrair sentido: todo texto - por-
tanto, também, texto musical - é um mundo desdobrado, no qual novas possibilidades mere-
cem a cada vez ser exploradas.
É Derrida, em verdade, quem mais radicalmente questiona o sentido, propondo que as
identidades se deslocam e as significações e as verdades são plurais. Para ele, é impossível a
apropriação do sentido, porque a linguagem é marcada por uma alteridade constitutiva, ela é sem-
pre "algo outro", diferente do que à primeira vista se imagina. Desconstruir é sair em busca do
sentido, que, para ele, como para Lacan e sua cadeia de significantes, jamais será localizado;
dele só se pode ter "pistas", referências, relações, nunca o verdadeiro desvelamento, a verda-
deira revelação do que ele é ou significa.
Estamos, portanto, diante de um reconhecimento da incapacidade humana de efetiva-
mente decifrar a linguagem ou de encontrar nelas a significação última. Temos que nos conten-
tar com o sentido restrito, discreto, momentâneo de cada enunciação.
Silvain Auroux e Yvonne Weil falam, nesse sentido, de uma frase francesa “Et les fruits
passeront la promesse des fleurs” (E os frutos superarão a promessa das flores), do século 17, que,
em si não traz nenhuma particularidade especial, podendo ter sido dita por qualquer pessoa no
campo ou diante de um pomar. Entretanto, ela faz parte de um poema, e é aí que ela é particu-
larmente bela, pois contem um não-sei-quê que lhe garante sua singularidade. Este não-sei-quê é
sentido através de uma experiência muito específica e particular: a experiência estética ou o
julgamento do gosto. Jamais o aborígene poderá ter a mínima sensação do que significa isso.

No plano comunicacional e terapêutico o sentido expresso vale muito pouco ou quase nada.
As tentativas de interpretação, tradução, representação do que se passa no inconsciente sempre
tendem a violentar a coisa.
Da mesma forma a comunicação. Para os pragmáticos, a verdade tem a ver diretamente
com a verificação experimental, a comunidade de uma época, um contexto; ela não é proprie-
dade do enunciado, mas apenas um acontecimento, uma afirmação parcialmente justa e confiável.
Segundo Peirce, ela é uma propriedade indissociável da experiência humana, que não pode ser
destacada do sujeito que a formula. A representação é uma regressão ao infinito: o sentido não
está no pensado, no momento, mas nas associações, sendo que a interpretação final é apenas
uma direção, uma tendência (como em Derrida). Ele remete, de acordo com Thibaud, a um só
tempo a uma interpretação posterior - esse será o papel do interpretante - e é precedido de um
ponto, resultante de todas as interpretações passadas. O signo em movimento é, assim, inter-
39

pretações passadas + interpretação atual (e futuras).

Detalhamentos

A interpretação - a busca de sentido - pode ser vista no plano metafísico, histórico e terapêutico-
communicacional. Primeiramente, o metafísico diz "nós somos o sentido da Criação", o "sentido preenche nossa
vida". Na raiz do discurso do sentido encontra-se a metafísica: Kant fala que há em toda parte,
no mundo dos signos, uma ordem executada conforme uma intenção determinada (finalidade);
esta ordem não é inerente às coisas; há, portanto, um ser inteligente e sábio que é a causa do
mundo" (Auroux/Weil, 1991, p.97). Günther Anders critica esta afirmação, dizendo que o
Velho Testamento elevava os homens não apenas a senhores de tudo mas também à categoria
daqueles seres para os quais todos os outros haviam sido criados, que com isso tornavam-se o
"sentido" deles. (Anders, 1979, p. 383). O sentido, conforme o filósofo, estava associado à
ideia da Criação: tudo o que existe só existe (só tem sentido) em função da Criação. A religião
não pergunta “que sentido tem isso ou aquilo” mas “o que tinha Deus em mente (que sentido
tinha para ele). Em 1755 – continua - Lisboa foi destruída por um incêndio. Voltaire se per-
gunta em sonho: Por quê? Qual era o sentido disso? Deus teria o convocado para justificar a
catástrofe. Anders constata, assim, que o sentido, na religião, está também sempre associado à
ideia de negatividade, de punição. Por trás de cada catástrofe, de cada calamidade há a ira de
Deus contra os homens, a necessidade de expiação. Afinal, porque Deus não perguntou a Vol-
taire o sentido de uma Lisboa próspera e feliz? (idem, p. 386).
Paul Watzlawick acredita que se os homens estão convencidos de que a vida deve ter
um sentido último, este pensamento revela o anúncio de um desespero e de um caos fi-
nal/.../O suicida busca um sentido à vida, pois, quando acaba finalmente convencido que ela
não tem nenhum, ele se mata. (Watzlawick, 1988, p. 350). Watzlawick critica aqui também a
"obsessão pelo sentido": "A maior parte de nós está engajada numa interminável busca de sen-
tido e tende a imaginar a ação de um experimentador secreto atrás das vicissitudes mais ou
menos banais da nossa vida cotidiana. Poucos entre nós são capazes da igualdade de espírito
do Rei de Copas em Alice no país das maravilhas, que consegue assimilar o poema do Coelho
Branco através desta observação filosófica: 'Se não há sentido, isso nos desembaraça de nossas
preocupações, você sabe. De certa forma, não nos cansaremos em buscar compreendê-lo'."
(Watzlawick, 1978, p. 79-80).
O psiquiatra refere-se também à experiência de "neurose experimental" com o cão que
aprende rapidamente qual é o sentido do círculo e da elipse e seu mundo posteriormente voa em
pedaços quando o pesquisador destrói esse sentido: se se começa a treinar um cachorro a dis-
criminar entre círculo e elipse e, em seguida, se faz com que ele seja incapaz de fazer essa dis-
criminação, aumentando-se progressivamente a elipse até que ela se torne cada vez mais um
círculo, teremos aí todos os elementos da double bind (1988, p. 270).
Anders fala em 1929, antes de Sartre (que pode ter sido influenciado por ele), que o
homem é um ser condenado à liberdade, é vítima de sua própria liberdade (Fuld, 1992).

No aspecto histórico-contextual, os metarrelatos perdem seu poder explicativo. Arnold Gehlen é o


primeiro a refutar os grandes paradigmas filosóficos usados para explicar o mundo e a socieda-
de: em 1963 descreve esses amplos esquemas explicativos como "historicamente ultrapassadas
e não mais constituíveis", isto é, "um empreendimento que a partir de uma visão de conjunto
pretende dar uma interpretação do mundo e nela uma esclarecedora diretriz de ação." (Gehlen,
1963, p. 313) O tema vai ser tomado por Lyotard, em 1979, na sua Condição pós-moderna, sob o
título de crise dos metarrelatos (edição brasileira: Lyotard, 1986). Aliás, toda a teoria do pós-
40

moderno investe contra a interpretação e a dotação de sentido. Literatura a respeito do pós-


moderno pode ser encontrada em: Jameson, 1984; Hassan, 1988; Huyssen, 1984; Harvey, 1989;
Lyotard, 1979; Vátimo, 1987; Kroker/Cook, 1988. Lao-Tsé, é citado em: Watzlawick, 1988, p.
354. Umberto Eco, e o conceito de horror vacui está em Eco, 1984, p. 32.

E as inscrições conduzem ao esquecimento. Lyotard critica a representação do passado: "Represen-


tar 'Auschwitz' em imagens, em palavras, é uma forma de fazê-lo esquecer. Não estou pensan-
do só nos filmes ruins e nas séries de grande audiência, nos maus romances ou 'testemunhos'.
Penso até mesmo naquilo que pode ou poderia do melhor modo fazer com que não se esque-
cesse, pela exatidão, pela severidade. Mesmo isso representa o que deve continuar irrepresen-
tável para não ser esquecido como sendo o esquecido mesmo. Shoah, o filme de Claude Lanz-
mann, representa uma exceção, talvez a única. Não só porque ele recusa a representação em
imagens e em música, mas porque ele não oferece quase nenhum testemunho onde se aponte
o irrepresentável do extermínio, mesmo por um instante, por uma alteração do timbre de voz,
pelo nó na garganta, por soluços e lágrimas, uma fuga da testemunha para fora do campo, uma
desregulagem do tom do relato, um gesto fora de controle. Da mesma maneira que se sabe que
estão certamente mentindo, 'representando', escondendo alguma coisa, as testemunhas impas-
síveis, sejam quais forem. Representando, inscreve-se na memória, e isto pode parecer uma boa
guarda contra o esquecimento. É o contrário, julgo eu. Não se pode esquecer no sentido co-
mum a não ser aquilo que se pôde inscrever, pois então poderá se apagar. Mas o que não está
inscrito, por falta de superfície onde possa inscrever-se, por falta de uma duração e de um lugar
onde se situe a inscrição - o que não tem lugar no espaço nem no tempo de dominação, na
geografia e na diacronia do espírito seguro de si, por não ser sintetizável, digamos - que não é
matéria para experiência, mesmo inconsciente, aquela que produz o recalque secundário, lhe
são inaptas e ineptas, isto não pode se esquecer, não oferece chance de esquecimento - perma-
nece presente 'somente' como uma afecção, que nem se chega a qualificar, e como um estado
de morte na vida do espírito (Lyotard, 1994, p.36-38).

Poderiam alienígenas entender Bach? Hofstadter e a ativação das estruturas do cérebro, em:
Hofstadter 1989, p.164 a 170. Sobre Wittgenstein, consultar Clément et al., 1994, p. 382. Paul
Ricœur: “O símbolo faz pensar”: não se trata tanto de pensar nos [através dos] símbolos mas
de buscar a partir dos símbolos compreender a si mesmo (Clément et al., 1994, p. 310). A frase
de Et les fruits passeront les fleurs é comentada em Auroux/Weil, 1991, p. 130.

A interpretação da comunicação é impossível, ela remeterá reiteradamente a outras relações. Para Jac-
ques Derrida, os signos têm temporalidades próprias e efeitos de significação que estão escon-
didos atrás de uma certa ordem ocidental, hierárquica, camuflada. É preciso, portanto, des-
montá-los. A escrita não é algo suplementar, apenas marginal à palavra viva, mas o par fala-
escrita é o representante dessa ordem. Ele se enraíza num fenômeno original e enigmático, da
diferensa ou o traço, concebido como uma produção, um jogo só perceptível pelas deferenças
precisamente que ele engendra. Há na linguagem, em outros termos, essa alteridade constituti-
va - uma ausência, um atraso, um estranhismo - que tornam impossível qualquer a propriação
do pensamento por ele mesmo. A desconstrução filosófica é então a busca impossível de da-
dos de sentido indefinidamente relacionados de texto em texto, sem esperança de desvelamen-
to. O conceito de diferensa, de Derrida (algo que não somente separa ou distingue mas, ao
mesmo tempo, joga para um outro tempo) tenta dar conta dessa ex-cronicidade. A escrita é sua
primeira manifestação: diferente da fala (imediata, presença), ela é ausência, alguém que lá este-
ve e deixou sua marca. Ver Hayles, 1990, p.180; Clément et al., 1994, pp. 79 e 342.
41

O trabalho intensivo com a obra de Jacques Derrida foi desenvolvido em O escavador de


silêncios, do mesmo autor (Marcondes Filho, 2004).

Sobre Peirce, "símbolo como coisa viva", conferir com o documento 5594 dos Collected
Papers. Ver também a explicação de Bougnoux, segundo a qual, as faces do interpretante em
Peirce são: 1) ele é, como o objeto, captado pelo signo; 2) ele é um sistema de regras e sua tra-
dução; 3) ele é genético: relança sem cessar o movimento de interpretação, o apelo a novos
interpretantes, pois todo signo está numa cadeia semiótica; 4) ele não é descritivo mas prescri-
tivo: exprime a regra operatória para a compreensão. Não há ação de um sujeito cartesiano ou
kantiano; ele os substitui pela comunidade de interpretantes (1991, p. 171). Verdade, represen-
tação e interpretação estão em Peirce, fragmentos 1339, 5289 e 5504, citado em Robin, 1967.
Thibaud pode ser conferido em Thibaud, 1983. Sobre a antecipação de Gödel, diz Peirce que
"nenhum conceito, nem mesmo das matemáticas é absolutamente preciso", Fragmento 6496.
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43

3. Linguagens do corpo e linguagens inconscientes

Linguagens do corpo

A crítica à proposta de Saussure, a recusa às metodologias formais de análise da lingua-


gem e as proposições dinâmicas nos estudos da enunciação levam a crer que falar não é neces-
sariamente comunicar, expressar-se linguisticamente remete a outras coisas que não estão no
enunciado, ou seja, que o campo da linguagem é apenas um setor, uma dimensão (muito enga-
nosa) da comunicação.

Palo Alto

Sigmund Freud, na criação da psicanálise, introduziu o método da entrevista oral como


forma de atualizar os traumas individuais e torná-los acessíveis através da fala. A rememoração
dos sonhos, as interrupções no discurso do paciente (sempre sugestivas ao médico), suas pia-
das, seus atos falhos conduziriam, segundo ele, a revelar as origens psíquicas das anomalias.
Outro psiquiatra, Jacque Lacan, concentrou-se, da mesma forma que Freud, na linguagem,
dedicando a esse tema uma posição central em sua terapia. Por fim, Gregory Bateson, apesar
de não ser psiquiatra, contribuiu excepcionalmente para a pesquisa da esquizofrenia, ao lançar
a hipótese linguística double bind (a ser vista adiante).
Freud trabalhava com o modelo energético do psiquismo: o organismo é um sistema
cuja energia circulante – a libido – buscava saída pela satisfação direta ou pela substituição,
através da neurose. O inconsciente constitui o processo primário, é um fluxo energético sem
obstáculo e que se manifesta livremente no sonho, permitindo assim o livre escoamento de
energia. O processo secundário é um circuito consciente: a energia libidinal é controlada e cen-
surada e só sai de forma autorizada pelo sujeito.
Esse modelo, tomado de empréstimo da 1ª lei da termodinâmica, considera nosso apa-
relho psíquico um sistema no qual os complexos e os traumas antigos continuariam a produzir
interminavelmente fluxos de energia, que por não encontrarem uma saída motora satisfatória,
redundariam em neuroses, psicoses, perversões e outros estados patológicos. Esses fluxos pul-
sionais vez por outra conseguiriam romper os diques da censura consciente e atingir o "exteri-
or", nos sonhos, nas piadas, nas falas espontâneas, no "deixar sair" dos impulsos e das vonta-
des. A função da terapia seria, então, de trazer à superfície, através da linguagem, da conversa,
em suma, da comunicação terapêutica espontânea, estes sintomas e assim tratar os pacientes.
Freud foi o primeiro a pensar o inconsciente como uma espécie de linguagem: através
dela, o inconsciente, essa região estranha, totalmente desconhecida de cada um de nós, criaria
um meio de se comunicar conosco: Freud sonhou com uma moça chamada Irma e esta, no seu
sonho, não é a pessoa que ele de fato conhece por esse nome, mas uma colagem de múltiplas
pessoas: de sua governanta, de uma sedutora amiga de Irma, da própria mulher de Freud, de
sua filha mais velha e de uma senhora idosa que o psiquiatra trata com injeções. A Irma do
sonho de Freud, em verdade, é sobredeterminada, ou seja, são muitos caracteres numa única
figura. Ela condensa esse conjunto todo e ao fazê-lo, Freud, em sonho, desloca para outras
mulheres seus desejos reais - que tem pela atraente amiga de Irma, de quem gostaria de tratar -
e que não quer revelar a si mesmo. A linguagem dos sonhos seria, assim, esse triplo: condensa-
ção, deslocamento e sobredeterminação.
44

Em Jacques Lacan, a linguagem assume uma forma mais elaborada. O psiquiatra fran-
cês, além disso, não se limita à clínica, ampliando o raio de alcance de seu método para os dis-
cursos sociais mais amplos. O inconsciente não é o lugar dos instintos mas, conforme Lacan, é
o “capítulo de minha história” marcado por um branco e ocupado por uma mentira, um capí-
tulo censurado. Não obstante, acredita Lacan que a verdade possa ser encontrada, escrita nou-
tro lugar: nos “monumentos”, como, por exemplo, no meu corpo, nos “documentos de arqui-
vo”, que são as recordações de infância, na minha semântica (no vocabulário e na linguagem
que é minha própria, no meu estilo).
As doenças falam e a terapia busca fazer o sujeito compreender a verdade inconsciente.
Este é estruturado como linguagem, não é acessível a nós, e as pessoas são como que o resul-
tado do que esse personagem misterioso realiza em cada um. Pois essa linguagem não é indivi-
dual como no sonho de Freud, mas produto múltiplo, social e cultural, organizado no conceito
de "Outro", um entrecruzamento de múltiplos significantes, relações, processos. Por isso, já
não é tão fácil localizar a causa da patologia, visto que o significante libera-se de qualquer signi-
ficado determinado, e relaciona-se apenas com outros significantes, formando uma cadeia pró-
pria em que um remete ao outro, ao outro, ao outro, perdendo a acoplagem a um significado.
Ele recebe múltiplas significações e não é algo vivo mas “sistêmico”: cada um é definido e tem
seu valor pela articulação com os demais, sendo a comunicação o “jogo conjunto” de todos
eles.
Freud e Lacan encaram assim o inconsciente como objeto de possível deciframento,
algo que nós poderíamos capturar por meio do trabalho da clínica. Essa talvez seja a maior
fragilidade dessa teoria.
Diferente dos psiquiatras, Cornelius Castoriadis propõe trabalhar os sonhos como
“magmas”, isto é, como a origem, a fonte de onde se podem extrair as manifestações deriva-
das, mas que não pode ser reconstruído pela reunião dessas mesmas manifestações. Ele seria
mutante, maior, mais complexo e impenetrável que esses resultados. A um imaginário social,
onde uma sociedade cria, desenvolve, produz, corresponderia um "imaginário radical", que
seria a função equivalente da psique e do soma.
Freud e Lacan são criticados também por Gilles Deleuze e Felix Guattari,: no primeiro
eles veem a ilusão de fazer o paciente acreditar que poderia produzir enunciados pessoais,
quando, para eles, todos os enunciados são necessariamente coletivos, discurso indireto; além
disso, criticam em Lacan a insistência no componente vicioso, a eterna repetição dos mesmos
atos. O paciente fala mas sempre se repete, seria pura resignação. Numa virada pragmática, eles
propõem o inconsciente como uma "fábrica" em que de nada adianta a insistência nas pulsões,
nas lembranças, nas fixações, pois a práxis social dispõe, desloca, realoca o tempo todo signifi-
cações e exige de cada um novas posturas. A clínica, segundo eles, não trataria de histórias
(história psíquica), mas de uma espécie de geografia dos deslocamentos.

Gregory Bateson irá inverter totalmente a maneira freudo-lacaniana de trabalhar a lin-


guagem. Para efetuar a cura, descarta a remissão a situações e cenas da infância, mesmo que as
patologias tenham origem remota, e, em lugar do modelo energético de Freud, propõe um
modelo centrado "na troca de informações", à semelhança da segunda lei da termodinâmica,
que fala da troca de energia, dos fluxos internos e do comportamento recíproco de todos en-
volvidos nas situações de conflito. O modelo freudiano perguntava o porquê dos comporta-
mentos; o modelo batesoniano se pergunta o como dos relacionamentos. Se para os psiquiatras
a doença “fala”, para Bateson “o corpo fala”: não dá para não comunicar.
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Quadro 2. Corpo (comunicação indicial) x Linguagem (comunicação simbólica)

CORPO .............. Comunicação (obrigatória) enunciação = forma definitiva  Índices

versus

LINGUAGEM...Informação (contingencial) enunciado = forma provisória  Símbolo

A lógica do corpo não admite mal-entendidos. A presença da pessoa, pura e simples-


mente, quer queira, quer não, sempre comunica. O comportamento é uma forma expressiva
em si e não há como forjá-lo ou mesmo manipulá-lo. Ele não tem "o outro lado", a parte es-
condida, ele é toda a expressão. Puro processo primário, ele fala por nós.
Investigando as origens da esquizofrenia, Bateson e seus colaboradores chegaram à
hipóteses da dupla cilada, armadilha do relacionamento, que eles denominaram double bind.
Numa família em que o pai é fraco ou ausente e a mãe é hostil e assustadora, a criança vivencia
um comportamento contraditório: se se aproxima da mãe, esta se afasta; se se retrai, a mãe
simula uma aproximação que contradiz seu afastamento original. A aproximação simulada seria
um "comentário" relativo ao seu próprio gesto anterior de distanciamento, uma mensagem
falando sobre a outra mensagem, que caraterizaria, conforme Bateson, dois diferentes tipos
lógicos.
A sequência mãe-filho é um processo que se repete outras vezes. Se a criança percebe
os dois tipos de mensagem, ela é punida, pois compreende que sua mãe age contraditoriamen-
te: a rejeita mas a tenta persuadir do contrário. Para não sofrer, ela atua como se não percebes-
se os dois níveis, mas acaba, assim, fazendo o jogo de sua mãe, se aproximando dela quando
ela se achega. Ora, mas a mãe se retira e a pune assim mesmo, ao se distanciar outra vez. Desta
forma, a criança se encontra prensada sem possibilidade de saída. Punida por interpretar corre-
tamente a mãe e punida por não fazê-lo.
Para Bateson, a solução do dilema estaria em a criança denunciar a posição contraditó-
ria da mãe, mas esta impede de metacomunicar (de falar sobre a própria comunicação) e atrofia
sua capacidade de interação. Bateson diz que a segunda ordem entra em conflito com a primei-
ra. Por exemplo, quando a mãe fala “vá para cama, meu filho, você está cansado, precisa dor-
mir” sua linguagem do corpo vai mais na direção do “saia da minha frente, estou cheia de vo-
cê”. Essa ambiguidade é mais difícil de checar, pois geralmente vem por caminhos não verbais:
postura física, entonação, gestos, voz, atitudes. Há sempre a necessidade de uma terceira or-
dem, proibindo a criança de sair da cilada e sistematicamente desfigurando sua percepção me-
tacomunicativa.
No caso dos adultos, acredita Bateson, o esquizofrênico não consegue distinguir as
mensagens do tipo lógico 1 das do tipo 2: tudo que ele ouve, toma literalmente e é incapacita-
do de metacomunicar. Não consegue ver, por exemplo, que quando uma pessoa diz “hoje não
estou bem”, não está se referindo apenas ao seu estado físico-emocional mas está ao mesmo
tempo querendo dizer: “Faça algo contra!”. É como aquele funcionário que, em meio ao expe-
diente de trabalho, vai embora para casa. Quando o colega lhe pergunta: “Como você conse-
guiu “isso?”, ele responde, “com meu carro!” A resposta foi ao pé da letra e não no tipo lógico
(figurado) esperado. Um outro caso clínico, comentado por Jay Haley, relata a história de um
médico, em cuja porta constava o aviso: "Sala do médico. Favor bater", que foi levado ao de-
sespero e, por fim, à capitulação por um paciente obediente, pois este, sempre que passava à
porta dele, conscienciosamente batia.
46

Haley diz também que não é possível não qualificar uma mensagem. Mesmo quando é
claro o significado de determinadas mensagens, através de uma leve elevação de voz no final
de cada palavra, uma afirmação pode ser transformada numa pergunta, um leve sorriso pode
dar a uma declaração um aspecto mais irônico que sério, um sutil movimento do corpo para
trás qualifica uma fala carinhosa e demonstra que ela é dita com reserva. Igualmente o silêncio
pode ser uma mensagem significativa. Tudo isso demonstra que a avaliação se a pessoa está
sendo sincera ou hipócrita, está falando sério ou gozando é feita pela congruência das múltiplas
manifestações.

A double bind é teoricamente explicada por Bateson através da teoria dos tipos lógicos
de Bertrand Russell, segundo a qual, um grupo de componentes de qualquer coisa constitui “a
classe” dessa mesma coisa; uma classe de tal ou qual objeto já é uma categoria acima do pró-
prio objeto. Desta forma, uma classe – por exemplo, a classe dos veículos de passeio - não
pode ser ao mesmo tempo membro de si mesma (ela não se confunde com os próprios veícu-
los), ela pertence a outro nível de abstração, a um nível superior.
A psicologia da comunicação usa-se das classes lógicas mas, diferentemente, fala em
continuidade entre classe e membros, fala de um continuum. Uma patologia surge quando ocor-
re um curto-circuito entre os níveis lógicos da comunicação na relação entre mãe e filho. Jogos,
brincadeiras, a fantasia, a metáfora; mas também a postura corporal, gestual, a expressão facial,
a entonação, o contexto da comunicação, o humor, a falsificação de alguns sinais (riso fingido,
simulação de amizade, blefe, trapaça), etc. todos esses são diferentes tipos lógicos de comuni-
cação.
No clima e na atmosfera da conversa - pode-se juntar - entrecruzam-se múltiplos códi-
gos comunicacionais, de diferentes tipos lógicos. Em muitos casos são contraditórios e condu-
zem a equívocos de comunicação que vão desde mal-entendidos superficiais até os casos cita-
dos de double bind.

No plano da política, constata-se uma ampliação do paradoxo dos níveis ou tipos lógi-
cos, no qual pode-se incluir igualmente o paradoxo das linguagens, do proselitismo e das tem-
poralidades.
A linguagem na política, por exemplo, é mais eficiente quando travestida de significa-
ções populares, de cacoetes culturais, de simbolismos de fácil decodificação. Isso não apenas
no Brasil. Um caso clássico foi o do fascismo alemão e nas campanhas eleitorais do início dos
anos 30. Enquanto os comunistas se dirigiam às massas com uma enfadonha linguagem de
números e cifras econômicas, os fascistas lhes falavam e ganhavam sucesso público através do
discurso emocional e ficcional do paraíso de trabalho para todos, da ampliação do espaço e da
recuperação das perdas de outras guerfras. Níveis diferentes, resultados diferentes.
Comentando essa época, Oskar Negt e Alexander Kluge propunham para a recupera-
ção das oposições uma “solidariedade sensoriamente palpável”, o contato direto e aberto, res-
ponsável, segundo alguns, pelo sucesso da campanha eleitoral nazista em 1932 (trata-se das
"comunidades místicas", que se tornaram o principal trabalho de base na construção do nacio-
nal-socialismo como movimento de massas), que veio antes do uso dos grandes meios de co-
municação, que, em verdade, apenas vieram complementar esse trabalho. Ernst Bloch, falava,
no mesmo sentido, da assincronia, ao comentar a agitação política de Bruno von Salomon, nos
anos 30, que, em suas pregações na Turíngia, utilizava-se de textos de quatrocentos anos de
Thomas Münzer, o que era muito bem compreendido pelos homens do campo; em contrapo-
sição, usava em Hessen um autor como Georg Büchner, de cem anos, que era o que os cam-
ponenes de lá melhor entendiam.
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Voltando à comunicação interpessoal, Paul Watzlawick, igualmente do Colégio Invisí-


vel de Gregory Bateson, refere-se à "dupla moldura": falas pessoais necessitam de uma moldura
(das bordas) para dar sentido a um fundo de significação. Comunicação é, assim, ao mesmo
tempo, “relação” e “conteúdo”: a relação corporal ou visual dos gestos encaminha o conteúdo
verbal da mensagem. A margem ou moldura (comportamento analógico: aquilo que não é có-
digo, ou seja, nossa postura, nosso jeito) enquadra o texto (o digital: nossa fala expressa). Os
animais não compreendem nossa fala mas entendem nossa comunicação analógica; ela é nossa
mais pura sinceridade, pois, como nas crianças, nos loucos e nos animais, é impossível mentir
nesse plano. Não obstante, ela tem menos recursos de abstração que a digital, visto haver con-
ceitos inexprimíveis pelo corpo. (É muito comentada a suposta comunicação das abelhas entre
si, apresentada por K. von Frisch, em que umas informam outras sobre fontes de alimentação.
Apesar dessa “informação”, não se trata de uma linguagem, pois elas não conhecem o diálogo,
que é uma forma tipicamente humana)

Watzlawick acredita também que sem o paradoxo - esse jogo de oposições entre men-
sagens analógicas e digitais - não é possível haver comunicação: a fala resumiria um jogo enfa-
donho de regras rígidas e comunicados estilizados, sem alternações nem humor. É através do
paradoxo que se pode constatar que o que realmente define não é o que as pessoas dizem, mas
o que elas fazem. Que a realidade, de fato, é algo moldado pelas pessoas e que não existe ape-
nas uma mas múltiplas realidades.
A separação entre os níveis, contudo, pode atingir dimensões neuróticas, por exemplo,
como a que ocorre entre os casais exauridos após alguns anos de convivência. Comentando o
tema, Don Jackson diz que, ao final de certo tempo, esses casais chegam a uma séria economia
dos temas sobre os quais se pode discutir. Trata-se da pontuação. Eles parecem, por um acordo
geralmente tácito, ter excluído de seu repertório de interações o tratamento de amplos temas -
geralmente questões problemáticas, difíceis de resolver, “tabus” - e jamais retornam a esses
itens. “Pontuam” as falas segundo suas conveniências. Watzlawick diz ainda que essa questão -
que se refere à perspectiva (ao “ponto”) como cada um prefere ver o problema, valorizando-o
exclusivamente segundo seu ângulo -, seria uma prova de que cada um, diante de uma mesma
situação, vê o mundo diferentemente.

Detalhamentos

A utilização do processo de comunicação na psiquiatria começou com Freud... Os dados sobre pro-
cesso primário e secundário, inconsciente, linguagem dos sonhos, formações neuróticas, po-
dem ser encontrados basicamente em Freud, 1900, em Bateson et al, 1981, p.121, em Boug-
noux, 1991, pp.59 e 122, e em Marcondes Filho, 1989, pp. 21-56. Freud acreditava que os
histéricos sofreriam de reminiscências inconscientes e a neurose seria uma defesa contra isso.
A psicanálise, assim, atrelava-se à expressão verbal do doente, um tipo de procedimento que,
às vezes negligenciando sintomas visíveis, visaria, sob o nome de catarse, desembaraçar o do-
ente do peso de suas lembranças, fazendo-o retornar ao passado infantil. (Ver para isso: Au-
roux/Weil, 1991, p.158).

...E Jacques Lacan vê o tratamento do ponto de vista da linguística. Consultar Lacan, Ecrits, 1966
(edição brasileira: Escritos, 1992) e Séminaires (1953-1980). O termo “Outro” em Lacan tem uma
posição central. Trata-se do lugar organizado como teia e que é o estruturante do sujeito. “A
análise do estado do espelho faz aparecer o caráter ao mesmo tempo prevalecente e preeminente
48

do Outro sobre o sujeito. A linguagem, que dá forma à gênese do sujeito/.../, é o meio no qual
o indivíduo é mergulhado desde o nascimento. Um meio que o sujeito deverá subjetivar, onde
ele deverá se reencontrar nele em sua própria história, e que Lacan designa como lugar do Ou-
tro. A linguagem é então, originariamente, menos um meio de comunicação do que uma fun-
ção que permite a identificação do sujeito no reconhecimento dos traços que definem a condi-
ção de um ser ao mesmo tempo sexuado e mortal. O Outro, no qual o sujeito se aliena como
Eu de um modo imaginário, é definido pelas leis próprias do significante” (Auroux, 1996, p.
266). Veja também Marcondes Filho, 1989, pp.176-183.

Pois faltou o social (interação, história) nesses estudos psicanalíticos de comunicação. Castoriadis
propõe um conceito diferente inconsciente: “O inconsciente não conhece o tempo nem a con-
tradição” (1982, p. 316-7); “falar de 'representação' é violentar a coisa” (p. 317); “reduzir deslo-
camento e condensação a metáfora e metonímia é enfraquecer Freud” (p. 317); “não há 'con-
fusão', incompreensão na psique: seu ser é que é a gênese das representações” (p. 318). Sobre
os sonhos: “O ponto mais denso, mais rico, mais importante do sonho é 'insondável' /.../ pela
natureza da própria coisa. Eles (os pensamentos no sonho) fogem por todos os lados na rede
entrelaçada de nosso mundo de pensamentos: eles são magmas em um magma” (p. 322). Com
relação à psique: “Se ela faz com que tudo saia dela mesma, se ela é produção pura e total de
suas representações tanto em relação à sua forma (organização) quanto aos seus conteúdos,
pergunta-se como e por que ela encontraria alguma vez outra coisa a não ser si mesma e seus
produtos” (p. 325). Sobre o magma: "um magma é aquilo de onde se podem extrair (ou: em
que se podem construir) organizações conjuntistas em número indefinido, mas que não pode
jamais ser reconstituído (idealmente) por composição conjuntista (finita ou infinita) dessas
organizações". (p. 388)

A crítica à psicanálise tradicional pode ser encontrada também em Deleuze/Guattari. Em O anti-


Édipo: “A psicanálise é criticada porque ela convida à repetição”, Clément et al., 1994, p. 77.
Em Mil Platôs: “O erro da psicanálise foi ter se servido da enunciação edipiana para levar o
paciente a acreditar que ele ia produzir enunciados pessoais, individuais, que ele ia finalmente
falar em seu nome” (Deleuze/Guattari, 1995, vol. 1, p. 51). Diz Deleuze: “Não cremos nas
pulsões: bucal, anal, genital, etc. Em cada caso, nós perguntamos, em que agenciamentos en-
tram esses componentes: não a que pulsões eles correspondem, nem a que lembranças ou fixa-
ções eles reenviam, mas com que elementos extrínsecos eles se compõem para fazer um dese-
jo, para fazer desejo” (Deleuze/Parnet, 1996, p.116). O que conta no desejo não é a falsa alter-
nativa lei-espontaneidade, natureza-artifício, mas é o jogo respectivo de territorialidades, reter-
ritorializações e movimentos de desterritorialização. (idem, p.119). A análise do inconsciente
deveria ser uma geografia, muito mais do que uma história (idem, p. 122). Nesse aspecto eles
também concordam Watzlawick, para quem “o comportamento é, sem dúvida, determinado,
pelo menos parcialmente, pela experiência anterior, mas sabe-se bem que é aventuroso pesqui-
sar as causas no passado” (Watzlawick et al., 1972, p. 40).

Ouçamos Bateson falar da “double bind”: “Se uma pessoa viveu sua vida numa relação double
bind, da forma como é descrita aqui, suas relações com as outras irão apresentar, após um des-
moronamento psicótico, um padrão determinado. Em primeiro lugar, ela não irá dividir com
pessoas normais aqueles sinais que buscam acompanhar as mensagens, para demonstrar aquilo
que a pessoa quer dizer. Seu sistema de metacomunicação - comunicação da comunicação -
desintegra-se e ela não sabe mais de que tipo de mensagem se trata. Quando alguém lhe diz: “o
que você está pensando em fazer hoje? “, ela é incapaz de avaliar precisamente, através do con-
49

texto, da entonação que é dada ou através dos gestos do outro, se ela está sendo criticada pelo
que fez ontem, se está sendo convidada para um ato sexual ou o que afinal. Diante dessa inca-
pacidade de julgar precisamente o que o outro de fato quer dizer e de uma exagerada preocu-
pação com aquilo que de fato é intencionado, esta pessoa defende-se na medida em que esco-
lhe uma ou muitas de uma série de alternativas. Ela pode, por exemplo, supor que por trás de
cada expressão esteja escondido um significado que lhe prejudica. Ela mostrará um exagerado
interesse em significados escondidos e ficará decidida a demonstrar, que não irão enganá-la -
da mesma forma como tentaram fazê-lo a vida inteira. Se ela apela para esta alternativa, então
permanecerá continuamente atrás daquilo que as pessoas falam, buscando significados atrás de
acontecimentos casuais ao seu redor, e se tornará fortemente desconfiada e obstinada.
Talvez escolha outra alternativa e tenda a tomar tudo o que os outros lhe falam ao pé
da letra. Caso eles contradigam na entonação, no gesto ou no contexto aquilo que falam, então
ela, de forma risonha, não se importará com estes sinais metacomunicativos. Ela desistirá de
fazer tentativas para separar os planos da mensagem e irá tratar todas as mensagens como se
fossem sem importância ou para serem ridicularizadas.
Se ela não se colocou com desconfiança diante das mensagens metacomunicativas ou
não tenha tentado descaracterizá-las através do riso, ela tentará talvez ignorá-las. Desta forma,
ela considerará importante ouvir ou ver cada vez menos aquilo que se passa ao seu redor e
fazer o máximo para não motivar qualquer reação ao seu ambiente. Ela tentará subtrair seu
interesse do mundo externo e concentrar-se-á nos processos em seu interior, o que lhe dá um
aspecto de alguém retraído ou talvez calado.
Em outras palavras: quando não se sabe com que tipo de mensagens a pessoa se de-
fronta, ela irá se defender de uma forma descrita como paranóica, hebefrênica ou catatônica.
Estas não são as únicas alternativas. O ponto central é que ela não pode escolher a alternativa
que poderia lhe ajudar para decifrar o que as pessoas querem dizer; sem considerável ajuda ela
não pode responder às mensagens do outro. Diante desta incapacidade, a pessoa relaciona-se
como um sistema de autorregulagem que perdeu seu regulador; ela gira em infinitas espirais de
distorção, sempre presas ao sistema" (Bateson, 1956).

Sobre a Freud e Bateson como duas versões da termodinâmica, veja-se Watzlawick: "Vocês po-
dem, da mesma forma, comparar, se vocês quiserem, a diferença entre o primeiro e o segundo
princípio da termodinâmica. O primeiro princípio repousa sobre o modelo energético. Assim,
na teoria psicanalítica, a libido é uma quantidade de energia que sofre transformações, regres-
sões, etc. O modelo que subentende a terapia familiar é, opostamente, um modelo sistêmico,
cibernético. Ele se baseia na troca de informação e não coloca a questão de saber porque as
pessoas se comportam como elas o fazem, mas, ao contrário, como elas se comportam aqui e
agora, e como elas se influenciam mutuamente. Neste sentido restrito, o modelo sistêmico se
insere no domínio do segundo princípio da termodinâmica" (in: Bateson, 1981, p. 321).

Mas a linguagem teve seu uso equivocado também na política. Sobre isso e o contato 'sensorial-
mente palpável', consultar Oskar Negt e Alexander Kluge, 1972. Também: Marcondes Filho,
1982, p.55, 164 e 190. Sobre a assincronia de Ernst Bloch, ver Bloch, 1972 e Traub/Wieser,
1974.

Como na fotografia, a comunicação é o fundo mas também a moldura. Sobre a "dupla moldura",
ver Bateson, 1981, p. 256; Wazlawick in: Bougnoux, 1998, p. 25. Daniel Bougnoux nos dá
também um interessante exemplo dos dois planos de linguagem, através do exemplo de um
orador político: "...à margem dos sinais simbólico-icônicos, sua voz e sua postura emitem uma
50

quantidade de sinais indiciais que ele administra desigualmente, e nossa atenção de receptor,
notadamente em face à lupa de aumento da telinha, terá a tendência de privilegiar as margens
do texto para perseguir aí o sintoma, até mesmo o inconsciente da mensagem. Parece, na práti-
ca, muito mais difícil garantir o encaminhamento sem distorções de um discurso/.../. Não há
transmissão sem tradução do enunciado, sem criação contínua de sentido ao longo dos elos da
cadeia; e o telespectador entrincheirado na esfera doméstica tem o prazer malicioso de pulveri-
zar o curso majestoso da mensagem em uma coleção de curiosidades indiciais" (1998, p.40)

Sobre a questão das abelhas: "A mensagem das abelhas não pode ser nenhuma resposta ao
meio, senão uma certa conduta, que não é resposta. Isso significa que as abelhas não conhecem
o diálogo, esta é uma condição da linguagem humana/.../ Não se constatou que uma abelha
tenha, por exemplo, levado à outra colméia a mensagem que ela tivesse recebido na sua, o que
seria uma maneira de transmissão ou de intermediação./.../ A abelha não constrói uma mensa-
gem a partir de outra mensagem" (Benveniste, pp. 60-62). “A abelha que percebeu um alimen-
to pode comunicar a mensagem àquelas que não o perceberam; mas a que não o percebeu não
pode transmiti-lo às outras que igualmente não o perceberam. A linguagem não se contenta em
ir de um primeiro a um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, mas vai necessaria-
mente de um segundo a um terceiro, não tendo, nenhum deles, visto. É neste sentido que a
linguagem é transmissão de palavra funcionando como palavra de ordem, e não comunicação
de um signo como informação. A linguagem é um mapa não um decalque” (Deleuze/Guattari,
1995, p.13-14)

As metalinguagens podem ser encontradas em Bateson, 1981, p. 241-2; a afirmação de


que “sem paradoxo não há comunicação”, em Bateson, idem, p. 261.

Para os pesquisadores de Palo Alto, a comunicação pode ser comparada a uma orquestra sem maestro.
Sobre o conceito de “orquestra”: “...a diferença entre estas duas estruturas (da composição
musical e da comunicação) é que a composição musical possui uma partitura explícita, escrita e
conscientemente aprendida e repetida. A 'partitura' da comunicação não foi formulada por
escrito e, de certa forma, foi aprendida inconscientemente”. (Albert Scheflen, in: Bateson,
1981, p.25)

Conceitos desenvolvidos por Watzlawick, Hall, Jackson: "Não há uma mas várias realidades e
preferimos deformá-las" (Watzlawick, 1978, p.7, 61); sobre comunicação analógica (movimen-
tos corporais, etc.); sobre o fato de nesses movimentos não se dar para mentir, de serem eles a
linguagem sincera dos animais, loucos e crianças (Watzlawick et al., 1972, p. 60-63); sobre Jack-
son, as neuroses de casais (em idem, p. 134); sobre Edward Hall, "importa o que as pessoas
fazem, não o que dizem” (em Bateson, 1981, p.192).

Alfred Lorenzer

Outra importante corrente - apesar de pouco conhecida - nos estudos de comunicação é a do psiquiatra
alemão Alfred Lorenzer. O especialista desenvolve uma teoria do símbolo diferente das posições
já comentadas nesta obra. Contra a posição da Teoria Crítica (Escola de Frankfurt, v. cap. 5),
que reduzia à família o território traumático das neuroses, Lorenzer refuta os destinos da pul-
são em Freud ("a vida é determinada pelas pulsões"), advogando, ao contrário, os "destinos do
objeto", ou seja, que as interações só se realizam nas relações da criança com o objeto de amor
51

e estas só existem num campo cultural, material, determinado. A "deformação" das pessoas
não é algo somente psíquico mas também relacionada com a produção social.
No símbolo, para Lorenzer, não reside apenas a experiência subjetiva de cada um, restrita
ao triângulo parental, mas há múltiplos extratos, como nos tipos lógicos anteriores, e nele en-
contra-se inscrita a cultura e a história. Como, por exemplo, no termo "mãe"; há nele, diz Lo-
renzer, símbolos verbais (palavras) e não verbais (imagens, representações diversas), como a
mãe terna, a mãe castigadora, etc. O símbolo é um fato consciente e é no seu campo que ocor-
rem os investimentos pulsionais (paixão, ódio, abnegação, etc),
Lorenzer centra sua teoria nos conceitos de clichê e signo e suas relações com a lingua-
gem. Estes conceitos sobre a formação da linguagem, descritos abaixo, serão retomados no
Capítulo 5, na apresentação das novas teorias de comunicação. Clichês, para ele, referem-se aos
representantes simbólicos que haviam se formado no processo de aprendizado da língua, mas
foram depois "ex-comunicados", ou seja, por força da repressão, foram postos para fora da
linguagem, não podem ser pronunciados. Não obstante, eles podem ser reevocados em labora-
tório, isto é, na terapia. Eles precisam de uma "cena", tal como ocorre nos ataques histéricos.
O psiquiatra exemplifica-os com as manifestações de nojo, sensações de medo e de aperto
diante dos homens, relatado no caso Dora, exposto por Freud.
Nos signos, diferentes dos clichês, os significados esvaziaram-se, não há mais a emoci-
onalidade da cena histérica (do clichê), o calor, a vivacidade afetiva em virtude de processos de
isolamento e intelectualização. Quando eu intelectualizo eu me separo da coisa, já não a sinto
mais da mesma forma, a suprimo de mim.
O aprendizado da língua ocorre com os contatos iniciais com a mãe e, para isso, é pre-
ciso que se construam "figuras de interação", a saber, as formas de contato que haviam sido
iniciadas na vida do feto ou do embrião vão ganhar agora efetiva concretude, isto é, conteúdo,
com a linguagem. A interação, que estava antes culturalmente "vazia", ganha agora um predi-
cado, torna-se forma simbólica de interação, pois já opera no plano dos signos linguísticos.
Essas formas de interação são absorvidas pela língua, tornando-se fala cotidiana, ou
podem também ficar na soleira da consciência, estando, assim, num plano mais baixo. Esse
seria o caso do complexo de Édipo, que permanece no nível do não pronunciável. Para Loren-
zer, essa armadilha faz com que a criança, não podendo abandonar o desejo da mãe, nem dei-
xá-lo amadurecer, tenha um retrocesso à forma anterior, dessimbolizada de interação com a
mãe, como era o caso antes da linguagem. Cria-se, assim, o clichê.
O símbolo linguístico é o terceiro elemento da relação mãe-filho. Uma conduta marca-
da pelo clichê, contudo, não se limita ao plano linguístico. Como houve o expurgo de predica-
ção, diz Lorenzer, a carga afetiva cai sobre um "predicador inimigo", que corresponderia à
parte má da mãe. Pela carga afetiva envolvida no clichê, a dramaticidade imanente a esse desvio
da simbolização faz com que o agir se torne agressivo. Existe, portanto, uma "conduta deter-
minada pelo clichê", que é também produzida socialmente, e tem fins sociais. Lorenzer exem-
plifica esse fenômeno com as mães sioux, dizendo que o aprendizado espartano que elas re-
produzem na relação com os filhos leva a práticas irracionais e rancorosas. Cabe a elas produ-
zir caçadores dedididos e guerreiros valentes.
Pelo fato de o clichê constituir-se num "defeito de predicação", ou seja, uma cegueira
em relação à causa da patologia (no interior da díade mãe-filho), as mães cultivam uma dispo-
nibilidade dos filhos para trabalhar por determinados regimes e para a supressão da discussão
sobre as formas de ação. Não há aí espaço para uma "ação mediada por símbolos" (uma ação
racional e consciente); os sujeitos sentem-se imunes, com consequências previsíveis para toda a
sociedade.
52

Uma "conduta determinada pelo signo" se dá, ao contrário, pelo esvaziamento afetivo
dos significados e sua submissão a um processo intelectualizante. É como, por exemplo, tratar
a paixão, a sensualidade de forma "teórica", neutra, técnica. As formas sociais correspondentes
têm a ver com a ausência da emocionalidade, a apatia em relação ao mundo, as letargias associ-
adas à vivência sem efetiva participação em nenhum processo. Alfred Lorenzer pode ser en-
contrado em Lorenzer, 1970 e 1973, assim como em Marcondes Filho, 1989, p. 163-175. Klaus
Horn, em Horn, 1980.

Tributários da corrente lorenzeriana em psicanálise, pensadores como Helmut Dahmer e


Klaus Horn desdobraram os estudos sociais decorrentes dos desvios da formação simbólica
(da linguagem) na cultura.
Klaus Horn trabalha com o conceito das patologias que se tornam o que ele chama de
"inconscientemente realizadas" (das unbewußt Gemachte). Analisando o livro O aviador, de Ange-
lander (1972), o psicanalista descreve um caso de incapacidade de contato humano, que do
ponto de vista pessoal é vivida como problemática, e no plano social maior é amplamente va-
lorizada, pois viabiliza o manuseio tecnocrático, manipulativo, estratégico com objetos. O pro-
blema do paciente, isto é, o vazio libidinoso (no sentido da conduta determinada pelo signo),
por cujo motivo ele foi à terapia, não pôde ser transformado pelo terapeuta, porque o outro
lado da incapacidade para o amor objetal (a outras pessoas) - ou seja, a extraordinária capaci-
dade de valorização de coisas - compensava o paciente, tornando-se para ele o conteúdo de
vida. Esse é o lucro secundário com a doença, a enorme capacidade do personagem de inserir e ver
realizados e valorizados na sociedade seus problemas de distonia do ego.
Rara nos indivíduos, a loucura, para Nietzsche, é uma norma nos grupos, partidos, po-
vos e épocas (1886, p. 80). Da mesma forma, Watzlawick reconhece, em A realidade da realidade,
que a sociedade valoriza procedimentos e comportamentos que, do ponto de vista individual,
são tidos como patológicos. In: Watzlawick, 1978, p.33.

A (im)possibilidade da comunicação

Mas a comunicação não é apenas o campo dos corpos que falam e das doenças men-
tais. Há outras linhas de fuga nas mais recentes discussões sobre comunicação.
O biofísico Heinz von Foerster, da Universidade de Illinois, é de opinião que a comu-
nicação é impossível já que duas pessoas são duas atividades nervosas distintas, intransponí-
veis, logo, um processo irrealizável. De forma semelhante, o sociólogo alemão Niklas Luh-
mann não acredita na comunicação. Ele acha que o modelo de “comunicação bem sucedida”
(de que fala Jürgen Habermas, apontado a seguir) não pode se realizar no plano do “ideal nor-
mativo” desse autor e prefere um modelo autopoiético, de percepção isolada das pessoas. Para
ele, as duas "caixas pretas" permanecem - como para von Foerster - impenetráveis, uma em
relação à outra, apesar de todas as preocupações e de toda perda de tempo. A posição de Lu-
hmann, de que a comunicação seria uma “operação autopoiética (que cria a si mesma) de um
sistema autopoiético” e só se relacionaria consigo própria, encontra um defensor francês em
Lucien Sfez e seu “círculo tautístico”, para quem impera uma mistura de tautologia (“comuni-
car é produzir comunicação”) com autismo (ausência se contato com o exterior), portanto,
nada de informação.
O filósofo alemão Jürgen Habermas, contrariamente, acredita na racionalidade dos atos
humanos e sua sobrevivência possível através da comunicação. Sua teoria argumentativa, acha
possível que indivíduos ainda se constituam como sujeitos da comunicação e conquistem um
espaço de relevância no social. Quatro seriam, então, os requisitos para tanto: inteligibilidade,
53

verdade, autenticidade e justiça. Habermas defende a recuperação da razão e isto se daria pelo
entendimento entre os homens pela estratégia do bom senso, em que os agentes voltariam a
repensar seus planos e projetos a partir de uma postura representada pela dotação de autono-
mia e pela capacidade de intervenção de homens historicamente localizados. Na mesma posi-
ção que ele, o sociólogo Manfred Faßler não reconhece paradoxos na comunicação: haveria
efetivamente troca de informações, constrói-se e organiza-se o entendimento e existe a possibi-
lidade social de as pessoas se "autodescreverem". O entendimento não é garantido mas ideal-
mente pressuposto.
As duas posturas são certas dentro de suas limitações. Trata-se de conhecimentos par-
ciais que procuram entender o paradoxo de uma sociedade de comunicação ser uma sociedade
sem comunicação, uma sociedade onde existem comunicações que não comunicam e não co-
municações que comunicam. A máquina de comunicação efetivamente não funciona ou, se
funciona, o faz de forma invertida, destorcida, desconhecida, misteriosa. O que sabemos e o
que podemos saber, afinal, da comunicação?

Comunicar e não comunicar são opostos que se somam, mas ainda não resolvemos
com isso o dilema das “condições mínimas” da comunicação. Se, pelo modelo funcionalista
clássico, uma comunicação necessitaria de um emissor (a saber: uma fonte), um receptor (a
saber, um destino) e uma mensagem (tecnicamente também de um canal, de um meio e mes-
mo de um ruído), da perspectiva pragmática ela necessita de um signo, um objeto e de uma
interpretação, pois o ato só existe em função das consequências que provoca.
A semiose é a soma de signo, objeto e interpretante. O fato de uma nuvem escura
“emitir” uma informação só tem sentido se alguém a decodificar. Entretanto, o decodificador
pode estar deslocado no tempo: aquele que atira uma garrafa com mensagem ao mar, o ho-
mem pré-histórico que esculpe um touro na parede da caverna não conhecem o receptor mas
suas mensagens têm um receptor virtual, hipotético. Uma comunicação não tem prazo de vali-
dade: aquilo que foi produzido agora poderá ser decodificado em qualquer época, por qualquer
sujeito potencial. Ela não se torna comunicação somente no momento em que surge um recep-
tor, ela já existia virtualmente como mensagem à espera de alguém que a decodificasse. É pre-
ciso apenas que se constitua um sujeito decifrador, que pode ser instantâneo ou deslocado no
tempo. Os dois modelos, contudo, mantêm-se no plano formal da comunicação.
Comunicar tampouco significa apenas informar. Pela acepção precedente (do Colégio
Invisível), ela é um ato automático, imediato, involuntário, é a forma como as coisas aparecem
para nós. Já informar envolveria uma intenção, uma vontade (quando se trata de agentes hu-
manos), ou um sinal útil, quando se trata de coisas.
O emissor pode ter intenções reais de informar, mas muitas vezes só consegue comu-
nicar (quando as pessoas ignoram o que ele fala e só registram sua mise-en-scène); opostamente,
uma fumaça, mesmo involuntária, pode de fato informar a existência de um incêndio. O peso
maior, assim, está na perspectiva do observador: os carros na avenida me comunicam mas se
há um acidente, eles então me informam. As coisas sempre comunicam mas só efetivamente
informam quando o interesse do observador é despertado por elas, quando este transforma sua
relação passiva em envolvimento ativo.
Bem diferente de tudo isso, a comunicação pode e deve ir mais longe do que imagi-
nam os semiólogos e psicanalistas do Colégio Invisível. Para estes últimos, comunicar é refletir,
produzir reflexo: jamais deixo de refletir ao outro aquilo que sou, “não se pode não comuni-
car” significa o mesmo que não posso falsificar aquilo que eu reflito.
Mas se os filósofos da linguagem se limitam ao plano formal da comunicação (esquema
canônico, modelo significado-significante, esquema triádico, modelo quadripartite) e estes úl-
54

timos ao lado fenomenológico do “mostrar-se em público”, o conceito permanecerá no campo


da abstração.
Von Foerster e Luhmann não acreditam na comunicação, pois “caixas pretas” jamais
vão se reconhecer, mas, se assim fosse, não poderia haver compartilhamento de emoções, sen-
sações, vivências que algumas formas estéticas, que certos “entendimentos tácitos”, que certas
“telepatias” viabilizam. Comunicar efetivamente é sentir junto, o mais denso e profundo que se
possa imaginar. É seguramente um processo que se realiza em graus distintos de sucesso.
A empatia, a “química” bem-sucedida, a transmissão de sensações, mesmo sem ou
além da linguagem é um fenômeno mais complexo do que parece, o que torna a comunicação
um conceito muito usado mas pouco conhecido. Ela se realiza em flashes, momentos, cenas
breves e passageiras, em situações-chave em que as condições ótimas de copossibilidade te-
nham encontrado uma síntese favorável.

Detalhamentos

Para Heinz von Foerster não se pode comunicar: "A comunicação é a interpretação feita por
um observador da interação entre dois organismos 1, 2. Mais ainda: a comunicação é uma re-
presentação (interna) de uma relação entre si mesmo e um outro; portanto, nada é (pode ser)
comunicado, já que tudo depende apenas do observador e atividade nervosa de um organismo
não pode ser compartilhada por outro organismo"/.../...é sempre necessário comunicar, para
entender os organismos vivos, suas interações e para agir sobre eles, e é impossível comunicar,
já que tudo depende de nossa subjetividade" (Sfez, 1993, p. 808).

Para Niklas Luhmann a comunicação é improvável, cf. Luhmann, 1981, p. 26. Ver também:
“Aqui se trata mais de refutar que a comunicação se baseie em entendimento idêntido dos sen-
tidos do que de processos da organização do entendimento. Com sua posição teórica de siste-
ma, N. Luhmann se refere a uma ruptura entre (a) o ideal normativo, vinculado a valores, ori-
entado à identidade, que seria constituída no diálogo, componentes estes de uma 'comunicação
bem sucedida', como J. Habermas defende, e (b) um modelo que parte do trabalho autopoiéti-
co (auto-organizador) de percepção isolada de pessoas. Ele não nega que pessoas e sistemas
sociais possam se comunicar. Pelo fato de cada sistema contar com uma diferença dentro-fora,
estaria, nessa 'diferença', um uso distinto da informação. O que se pode observar são aconte-
cimentos comportamentais... 'mas como a coisa se dá lá dentro, isso não interessa a nin-
guém'./.../ As duas caixas pretas permanecem apesar de todas as preocupações e de toda perda
de tempo 'impenetráveis', uma em relação à outra”. (Faßler, 1997, p. 37). Também: "Comuni-
cação significa uma 'operação autopoiética de um sistema autopoiético. Ela só surge quando há
sistemas que constróem e reproduzem - com a ajuda dessas operações elementares, chamadas
comunicação - uma rede de reprodução destas mesmas operações elementares'/.../ A comuni-
cação relaciona-se com a comunicação, ela se orienta, no seu seguir avante, sempre pelos mes-
mos conteúdos autoproduzidos de significação. (idem, p.159)

Autopoiese leva ao “círculo tautístico da comunicação”. Sfez diz que a técnica ocupa o lugar da
comunicação humana ao introduzir um novo modelo comunicacional; seria uma forma de
comunicação numa sociedade que não sabe mais se comunicar consigo mesma, em que a coe-
são é contestada, os valores desagregam-se e os símbolos mais usados não servem mais para
unificar (Sfez, 1988, p. 16).
55

Há teóricos que acham, ao contrário, que a comunicação pode ser bem-sucedida: A teoria argumen-
tativa de Habermas tem dois planos distintos: um, o da racionalidade comunicativa e outro, o
dos próprios princípios da argumentação. A primeira refere-se a uma força racional-
comunicativa vinculante, que advém dos atos ilocucionários em virtude de um sistema de co-
nexões com razões e na possibilidade de um reconhecimento intersubjetivo, baseado na con-
vicção racional e não na força. Diz ele, que a dissolução do núcleo arcaico-normativo dá lugar
a uma imagem de mundo, à universalização do direito e da moral e à aceleração dos processos
de individuação. É possível através disso, portanto, que os indivíduos ainda se constituam co-
mo sujeitos, diz ele. Para isso é preciso que reconquistem a dimensão da comunicação, obtível
por este conhecimento intersubjetivo de que fala o autor, a partir de processos de entendimen-
to mútuo em que os interlocutores se reconheçam como indivíduos válidos e dignos da conse-
cução do próprio projeto. Sua teoria da argumentação é marcada por quatro requisitos de vali-
dade da linguagem e pelos objetivos que se deve considerar para o atingimento desse fim: a
inteligibilidade (compreensão), definida como o conhecimento prévio anterior que os interlo-
cutores devem possuir para obter entendimento; a verdade, ou a aceitação de validez do regime
de verdade do sistema sócio-cultural; a autenticidade, apresentada como a questão das “inten-
ções dos atores”, que devem coincidir com o que eles “realmente pensam”; e, por fim, a justi-
ça, que trata da correção do ato da fala em relação ao contexto normativo. Os atores, neste
caso, devem ter os elementos para poder avaliar, discernir entre o normal e o patológico, real e
imagnário, ser e aparência. Ver para isso: Marcondes Filho, 1991, p. 90-92; Habermas, 1987.
56
57

4. Linguagem e tecnologias
Três formas de comunicação

Antes de falar das tecnologias cibernéticas, cabe rever os diferentes tipos de comunica-
ção. Tomando por variável o sistema técnico utilizado, podemos diferenciar três formas bási-
cas: a comunicação pessoal, sem mediação tecnológica, em que há a presença física dos atores da
comunicação, sejam eles apenas duas pessoas ou toda uma comunidade de fiéis, de alunos, de
membros de uma comunidade, um partido, etc.; a comunicação irradiante, em que um polo emis-
sor explícito ou mais ou menos difuso ou anônimo emite para um público ou uma massa anô-
nima; e a comunicação espectral, eletrônica, em tempo real, interfacial, virtual. A comunicação tele-
fônica, apesar de se usar de um meio técnico, entra no primeiro tipo, pois se trata de um diálo-
go ponto-a-ponto onde a presença humana mantém as dimensões mais importantes do face a
face (percepção da sensibilidade do outro: sinais extra-verbais, sensações, humores, empatia ou
não).
As três formas citadas (direta, irradiante e espectral) são classificações básicas, grandes
linhas que permitem, entretanto, apesar de suas diferenças, certas intersecções, certas formas
híbridas : pode-se encontrar na internet formas de comunicação que se assemelham às da co-
municação irradiada (os grandes portais se comportam como se fôssem grandes jornais im-
pressos ou de televisão), o correio eletrônico funciona de forma similar ao correio convenional,
etc. Eles variam de uma identidade claramente determinada a uma situação de identidade nula.
A face a face foi tratada no capítulo precendente como enigmática e paradoxal: comunica
quando não comunicamos, não comunica quando comunicamos. Aqui veremos as comunica-
ções diretas, que em verdade são indiretas, e outras, absolutamente diretas, que são, são obs-
tante, indiretas.

O face a face é a forma "direta". É um procedimento ritualizado, teatral, um sistema


em que as pessoas formalizam sua face exterior e procuram através da fala e dos signos con-
vencionalizados manter uma cena de representação. Pouca coisa informativa é efetivamente
passada nessa forma de comunicação. As estratégias de conservação de certos padrões de con-
vivialidade conquistados são rigorosamente mantidas. Trata-se de sustentar a cena do ritual.
É uma forma comunicacional que prima por outras ligações, não exatamente informa-
tivas, isto é, relacionadas ao novo. O face a face pertence a um conjunto maior - esse sim, dire-
to, pois analógico, indicial - que é o das relações primárias básicas, como na família, na escola,
na igreja, na comunidade. Poucos hão de achar que no ambiente familiar são transmitidas efe-
tivamente informações. Estas aparecem seguramente mas num número muito reduzido. Pas-
sam antes comportamentos, processos educacionais, modelos de convivência e de pensamen-
to, em suma, regras de uma sociabilidade adaptante e adaptada. Além disso, são estruturas com
fortes vínculos emocionais. Acima de tudo, funcionam como sistemas fechados, mais ou me-
nos integrados, o que não significa que garantam o bem-estar ou um clima agradável a todos os
membros. Impõe-se, acima disso, a obrigação de coesão e submissão aos rituais.
Por isso, processos como a filiação a seitas religiosas, a grupos de defesa da moral, a as-
sociações comunitárias e mesmo a movimentos políticos têm a base de constituição e consoli-
dação nessas estruturas primárias. Nenhum movimento social de relevância - isto é socialmente
enraizado - decola se o vínculo entre seus membros não foi tecido nas relações primárias. É o
caso do fascismo. Por isso, também, a comunicação propriamente dita, a troca de informações
relevantes, não ocorre nesse meio. Este serve, ao contrário, para neutralizar as informações,
58

para relativizá-las, para domesticá-las e adaptá-las ao universo de compreensão e racionalidade


interno da comunidade.
A comunidade não é um sistema de troca, aberto a influências externas e readaptativo.
Não tem relação com os processos auto-organizadores e evolutivos; ao contrário, funciona
como sistema de defesa, conservador, refratário às oscilações exteriores e ao novo. É, da mes-
ma forma, um sistema de neutralização do indivíduo. Estar com os outros, em coletividades
vinculadas a determinados fins e práticas, é o mesmo que renunciar à autonomia e ao pensa-
mento diferenciado. O comportamento dos homens aproxima-se mais, em verdade, a movi-
mentos brownianos, que são agitações de partículas, corpos microscópicos, de forma irregular,
movendo-se desordenadamente para um lado e para outro.
Se associarmos a um retrato, essa comunicação não é a foto propriamente dita, mas sua
moldura. Isso porque a moldura ou o porta-retratos equivale à nossa postura, nosso corpo,
nosso jeito, nosso olhar. A fotografia mesma é a informação. Ora, a moldura é analógica, "so-
mos nós aparecendo diante dos outros", é uma comunicação automática de nossa presença. A
foto é o que falamos, algo necessariamente elaborado, portanto, manipulável, falsificável, "digi-
tal".
Na comunicação face a face, o discurso oral é apenas um componente do ritual das
práticas cotidianas. O sermão do padre, o discurso do líder comunitário, a retórica do diretor
da escola são falas tautológicas - nada dizem - e fazem parte de um ritual maior, o da coesão e
da resistência às ameaças de ruptura. Fala-se pela linguagem "indicial" (índices são signos pu-
ros: a presença física da pessoa, seu jeito), que não tem mal-entendido, que é unívoco pela sua
própria forma de se apresentar. Aqui não há paradoxos, daí seu caráter enfadonho para os bus-
cam o novo e confortante para quem está em busca de segurança e imutabilidade.
O caráter "sincero" desses movimentos - de todas as comunicações analógicas - não es-
tá nas propostas, nem nos programas, mas nas práticas. Sincera é a revelação dessas intenções
através dos atos. Atos são falas; eles não mentem jamais.

Quadro 4. Esquema sintético da comunicação

Processo Primário Processo Secundário


Gesto Fala
Comunicação Informação
Imaginário Simbólico
Analógico Digital
Realidade de 1a. ordem Realidade de 2a. ordem
Desordem / caos Ordem
Sistemas não lineares Sistemas lineares
Não – falsificável Falsificável

A presença de um aparelho ou processo técnico desfaz as dificuldades do face a face, a


necessidade das máscaras e a mise-en-scène comunicacional. Reduz-se bastante o "ruído" exte-
rior e abre-se caminho para a transmissão de informações novas, de caráter desestabilizante.
Os meios de anonimato parcial (jornais, livros e revistas: conhece-se o autor mas não se
conhece o receptor) e de anonimato total, caso de rádio e da TV (o emissor é uma entidade
difusa, vaga e a autoria do discurso ou da emissão é geralmente desconhecida), são o contra-
ponto do modelo da comunicação convivial e de pequena comunidade. Não constróem com-
portamentos, processos educacionais, modelos de convivência e de pensamento mas os repro-
duzem de forma livre, no conjunto dos outros, numa multiplicidade difusa. Não têm compro-
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missos com nenhuma sociabilidade, adaptante e adaptada. Os vínculos emocionais são cons-
truídos em laboratório (no estúdio) e constituem sistemas abertos, pouco integrados, não se
interessando tampouco pelo bem-estar de seu público, mas pelo consumo e pelos índices de
audiência. Preservam, não obstante, um componente de coesão e submissão aos rituais, apa-
rentemente como forma de se atrelarem aos valores internos do público.

Na comunicação espectral reina o anonimato, desaparece a identidade e circulam co-


municações diversas, ligadas ou não, reais e ficcionais. Sai-se do "demasiado pleno" das comu-
nicações ditas diretas e pratica-se, sem entraves, através das tecnologias de tempo real, as trocas
efetivamente diretas.
Aqui não se pode dizer que, em função da liberdade total da não identificação, impere a
forma de comunicação indicial das linguagens diretas do corpo e da presença. Estamos ainda
no campo do simbólico, dos discursos, da comunicação falsificável. O que muda, em verdade,
é a dilatação do ficcional, a construção de múltiplas subpersonalidades em um mesmo partici-
pante e a produção exacerbada de fantasias.
Muda também o caráter dessas práticas, já que, diferente das formas clássicas, as fanta-
sias e as ficções podem ser produzidas em conjunto com outro(s), à distância, como formas de
interação. Nesses processos criam-se ambientes de comunicação, na verdade, de construções
imaginárias ou virtualmente reais, submundos derivados, exponencialmente reproduzidos do
ambiente original do participante.

Detalhamentos

Para Guillaume, o autor no qual muito nos baseamos para construir esta parte, há três formas de co-
municação: face a face, irradiante e espectral.

1. A "tête-à-tête". Na forma face a face, a comunicação desaparece. Verdadeiramente, "a comu-


nicação repousa naquilo que lhe é contrário, a diferença, a separação dos seres" (Guillaume,
1989, p.21). Heinz von Foerster, citado no final do capítulo anterior, acredita que nada é efeti-
vamente comunicável. É necessário mas, ao mesmo tempo, impossível comunicar. Só sobra
algo muito tênue: "a linguagem conotativa 'imageada', aproximativa, analógica pela qual nós
escapamos do solipsismo, criando, entre nós, observadores, uma comunidade de observações."
(Sfez, 1993, p. 808). Manfred Faßler: "É tão frequente falarmos com pessoas que reagem fa-
zendo que 'sim', dando a impressão de compreender e serem compreensivos, e, mesmo assim,
temos a impressão de cada um estar pensando uma coisa e não entender o mesmo que nós.
Mesmo quando falamos com colegas e amigos de mesma qualificação formal, mesma origem
social e mesmo tipo de interesse - ou seja, parecendo bons os pressupostos para uma 'interpre-
tação idêntica' - as interpretações, os significados e o uso nunca são idênticos". (Faßler, p. 21-
22)

A comunicação direta ocorre basicamente nas comunidades místicas e movimentos sociais. Por exem-
plo: o fascismo. "Pesquisas realizadas recentemente sobre apenetração de ideias nacional-
socialistas na Alemanha [da República de Weimar], mostram que a estratégia de ação dos nazis-
tas não pode ser vista isoladamente na massificação em larga escala, com concentrações, festas
e rituais militares. Igualmente importante foi o trabalho feito com grupos pequenos e de cará-
ter informativo, onde era transmitido o conceito ideológico do fascismo: 'Os cenários propri-
amente rituais das grandes concentrações voltavam-se para as necessidades do cotidiano dos
indivíduos de forma apenas abstrata; eles transmitiam, contudo, juntamente com a credibilida-
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de ganha a nível regional - uma noção sólida de unidade e força... ao movimento' (Jaschke,81)".
Ver também: "O sucesso do fascismo deveu-se muito à criação de um forte vínculo entre as
pessoas com os ideais de conciliação coletiva, através dos quais 'o nivelamento fraternal dos
trabalhadores do braço e da cabeça [deveria ser garantido pela] comunidade popular nacional-
socialista" (Knödler-Bunte, 1975, p. 24). Ambas as citações estão em: Marcondes Filho, 1982,
pp. 49-50 e 194.

E a comunicação está ausente no "estar em comum". Martin Heidegger: "Este estar-em-comum


[nos transportes públicos, nos serviços de informação, onde cada um se parece com o outro]
dissolve completamente o ser-aí que é meu, no modo de ser do 'outro'. Desaparece nos outros
aquilo que eles têm de diferente e expressamente particular. Esta situação de indiferença e in-
distinção permite ao 'se' desenvolver sua ditadura característica. Nos divertimos, nos distraí-
mos, como as pessoas se divertem/.../ O 'se' que não é ninguém determinado e que é todo
mundo, se bem que não seja a soma de todos, prescreve à realidade cotidiana seu modo de
ser./O 'se' tem suas maneiras próprias de ser. A tendência característica do estar-com-os-
outros, que denominamos 'distanciamento', se funda no fato de o ser-em-comum buscar impor
tudo o que está em conformidade com o médio. O médio é um traço existencial do 'se'/.../ A
preocupação da média contém uma nova tendência do ser-aí, nós chamamos de nivelamento de
todas as possibilidades do ser"(Heidegger, 1927, p.158-160).

Há o monólogo coletivo de uma "geração emudecida": "Estar aberto, sem barreiras, para os ou-
tros e ficar emudecido parecem se excluir mutuamente. Mas só parecem. Pois o emudecimento
não aparece (este é o caso mais comum) apenas quando o abismo entre pessoa e pessoa torna-
se tão amplo ou perigoso que não se consegue superá-lo. Ele ocorre também quando o abismo é
muito estreito, para tornar possível uma mediação linguística. Toda conversação exige uma distância
mínima. O comunicado só tem sentido quando há uma diferença entre o falante e o ouvinte.
Quando A, que sabe de alguma coisa, deixa um B, que não sabe, participar de seu conhecimen-
to. Este mínimo de diferença não haverá mais para os congruistas, dos quais se formará a soci-
edade perfeitamente conformista de amanhã." (Anders, 1979, p.152). Sobre a troca tautológica: "a
mesma bola que mandamos é a bola que recebemos", em (Anders, 1979, p.157). Sobre o movi-
mento browniano, ver Detalhamentos, 2º parágrafo.

2. Comunicação irradiante. O "tautismo" na comunicação como "repetição imperturbável


do mesmo", encontra-se em Lucien Sfez (Sfez, 1988, p.77). Lucien Sfez refere-se à televisão e à
informação – grandes sistemas estruturados segundo sofisticados processos tecnológicos –
como formas de comunicação que entram numa espiral delirante e tautológica, onde o excesso
de informação leva à desinformação. No tautismo (neologismo de Sfez que funde tautologia
com autismo) a sociedade diz “eu sou a comunicação”. O fenômeno da auto-referencialidade
está nos jornais cuja notícia são eles mesmos, nas televisões que focalizam, falam, tratam, po-
lemizam consigo mesmas. São os media narcisos, nos quais o único referente para a transmissão
pública são suas próprias maquinações e fabricações.

3. A terceira forma é a comunicação espectral, conceito de Marc Guillaume, que se refere "a
um novo modo de ser e de trocar com os outros" que "abole a maior parte das convenções e
regras estabelecidas" (Guillaume, 1989, p.18). "No passado, tratava-se de jogar com as conven-
ções;/.../ a comunicação espectral privada ou descomprometida destas instâncias de controle
escapa à sedimentação cultural e às convenções estabelecidas." (idem, p.19 e 20). "Os trabalhos
de Palo Alto [Bateson, Watzlawick e outros] são pouco aplicáveis a situações espectrais. Eles
61

só valem para a comunicação ordinária. As formas de comunicação mediatizada por artefatos


técnicos têm outras instâncias de controle, outras instâncias de contextualização./.../ É preciso
resistir à tentação de ver a comunicação espectral como uma comunicação parcial, incompleta
[oposto da face a face]./.../ De fato, se tudo é dividido, se tudo é comum entre duas pessoas,
não há mais comunicação, ela se diluiu numa intimidade muito grande" [Ver acima, a esse res-
peito também, Günther Anders]/.../"Dito de outra forma, toda comunicação repousa sobre
aquilo que lhe é contrário e sobre a separação das pessoas. É por isso que a comunicação se
nutre de todas as formas de distanciamento, de estranhismo e, assim, de todos os riscos de
incompreensão e mal-entendidos (Baudrillard/Guillaume, 1994, p. 26/27).
"Há comunicação espectral quando os atores da comunicação podem se dispensar mais
ou menos parcialmente, mais ou menos provisoriamente, dos procedimentos de controle e
identificação habitualmente requeridos. Eles podem escapar, por exemplo, à identidade defini-
da ou definível na comunicação tradicional pelo nome, reconhecimento prévio, presença física.
As comunicações ordinárias são estreitamente controladas, canalizadas por seu contexto e,
mais geralmente, pelos fenômenos de metacomunicação". (Baudrillard/Guillaume, 1994, p.25).
"Os atores podem se dispensar mais ou menos parcialmente, mais ou menos provisoriamente,
os procedimentos de controle e identificação previamente requeridos no habitual." (Guillaume,
1989, p. 20).

O anonimato: fuga do 'demasiado pleno'. "O anonimato é um operador simbólico que per-
mite criar, instituir um espaço vazio. Deste ponto de vista, o anonimato permite fugir do de-
masiado-pleno institucional, se as condições forem boas, e de fazer surgir um novo ator coleti-
vo". (Baudrillard/Guillaume, 1994, p.30)

Faßler crê, ao contrário, que há semelhanças entre a primeira e a terceira forma: "a mesma confia-
bilidade que nós geralmente atribuímos ao face a face pode ser inteiramente transportada aos
aparelhos (Faßler, 1997, p.117), se bem que falte ainda uma "cultura do asseguramento anôni-
mo" (p.129). Para ele, as relações face a face são complementadas por situações de interface de
tempo real, eventualmente mesmo superpostas (idem). Ele menciona Bateson como aquele
que busca as regras na troca e não na significação da mensagem: "o jogo entre uma ausente
vinculação rígida à verdade e uma confiança de que meu interlocutor não irá me explorar, tra-
pacear, enganar, lhe possibilita ver a comunicação como um teste, experimento, jogo preso a
regras, 'realização do entendimento' (idem, p.45).

Comunicação e as temporalidades

As formas de counicação têm relação direta com a noção de tempo: elas podem funci-
onar como processos para estagnar o curso das mudanças (especialmente os tipos de comuni-
cação direta), de acelerá-las (comunicação irradiante), ou mesmo introduzir outras temporali-
dades, concorrentes com a noção de tempo cotidiana (presente-passado-futuro) dos atores da
comunicação.
Pode-se classificar genericamente o tempo de duas formas: como linear, que é o “tem-
po abstrato”, o tempo do relógio, um tempo marcado em que todos os instantes são iguais, são
unidades matemáticas constantes (segundos, minutos, horas, etc.) e regulares; ou como não
linear, tempo concreto, que são as diversas variações subjetivas de nossa consciência da tempo-
ralidade e da mudança.
O tempo linear é caracterizado pela flecha do tempo, em que as mudanças ocorrem numa
linha reta, histórica, irreversível, como o trajeto de uma flecha que caminha sem retorno. Os
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físicos dizem que a flecha do tempo lhes pertence e que ela não tem nada a ver com a discus-
são filosófica do que é o tempo. Tomemos o exemplo das bolas de bilhar. Um triângulo for-
mado de diversas bolas sobre a mesa de bilhar recebe um golpe, que atinge o delas; elas se dis-
persam, e, conforme Ilya Prigogine, “dissipa-se a informação que representa a forma triangu-
lar”. Para se reagruparem, as bolas precisariam se comunicar sobre a forma da disposição anteri-
or. Contudo, isso é impossível, pois o volume de informações sobre posição, momento, traje-
tória seria inimaginavelmente grande. Se isso já é difícil para um pequeno grupo de bolas, ima-
gine-se a inviabilidade de fazer retroceder todo o universo. Por isso, conclui ele, o tempo só
pode ir para frente. Problema de comunicação, portanto. Entretanto, se as moléculas podem se
comunicar para construir estruturas que se auto-organizam, que se transformam a partir de
influências exteriores, o que as impediria de se comunicar para retroceder?
Prigogine, contudo, admite outra forma de temporalidade: o tempo biológico, tempo
interno de uma experiência, chamado de "tempo do padeiro". (Um padeiro dobrando sucessi-
vamente uma massa de pão cria uma sequência de tempo entre a primeira dobra e a segunda,
entre a segunda e a terceira, e assim por diante, constituindo aí uma temporalidade própria,
intrínseca au seu movimento). Neste último, ele se refere ao conceito de idade biológica.

A filosofia, diferente da física linear, pressupõe que não haja uma temporalidade única e
que vivenciamos, ao contrário, formas de temporalidade não linear: são os múltiplos tempos,
as diferentes noções de mudanças. Por exemplo, Alice, de Lewis Carroll, fala que não se pode
simplesmente "gastar" tempo, pois tem o tempo é uma pessoa. Além de algo exterior (os ponteiros
do relógio), no qual não podemos intervir ou influenciar, é alguém com quem vivemos junto, a
quem somos ligados subjetiva e afetivamente e do qual é preciso obter seus benefícios.
Efetivamente não vivemos apenas sob duas noções de tempos, mas sob várias. Existe o
conceito bergsoniano de duração, a sobreposição de temporalidades do inconsciente, os tem-
pos concomitantes das trombadas cronológicas, os múltiplos futuros de Jorge Luis Borges, o
tempo virtual da cibercultura, o tempo de exposição de Paul Virilio.

Como consciência íntima, dizia Henri Bergson, o tempo demora ou se acelera, pesa ou
se esquece em função do acaso da vida: tem-se às vezes a impressão que nada se passou e uma
espera ou a impaciência fazem minutos virarem horas.
Bergson foi um filósofo francês que questionou seriamente as acepções reducionistas
da física de sua época, em relação ao tempo. Em oposição ao conceito linear do tempo propôs
o de duração: Se nas ciências físicas, o tempo nada mais é do que a justaposição ou a sucessão
de instantes imóveis, um tempo abstrato, a duração é um tempo real, concreto, cuja essência
seria a de "durar".
A duração é contínua, indivisível e mutante. Contínua em oposição ao tempo abstrato
que se fragmenta em horas, minutos, segundos. É indivisível, não dá para medir, é uma totali-
dade não fragmentável e cada momento age de acordo com a totalidade do passado. É mutan-
te, pois nunca é igual a si mesma. Da mesma forma, é imprevisível, residindo aí sua liberdade.
Enquanto o tempo abstrato dos físicos é espacializado (fragmentos se sucedem uns aos outros,
o tempo pode ser segmentado), a duração bergsoniana é uma realidade que só se apreende da
vida interior, da consciência. Paul Watzlawick, fala, nesse sentido, que a vida inteira de uma
pessoa pode ser comparada a um filme: a sequência do tempo só existe em relação ao projetor
(ela não é intrínseca à vida; há algo externo que a regula). Sem o projetor, ele seria algo análogo
ao universo, sem tempo.
Também fatos significativos e signos vivem temporalidades diferentes. Certos aconte-
cimentos não se restringem ao momento de sua realização, um minuto pode ser tão longo co-
63

mo uma eternidade, pois seu efeito perdura no tempo. Uma hora, um dia, uma estação, um
clima, um ou vários anos têm uma individualidade perfeita, que não se confunde com algo que
nos englobe. 'Que terríveis cinco horas da tarde', diz Deleuze: não se trata de um instante, da
brevidade que distingue este tipo de período. Uma "heceidade", continua ele, pode durar o
tanto de tempo e mesmo mais do que necessário ao desenvolvimento de uma forma e à evolu-
ção de um sujeito.
Bougnoux, por seu turno, apoiando-se na diferensa de Derrida, diz que o signo pode
ainda funcionar além do tempo ocorrido entre emissão e recepção. Sua ressonância continuaria
por tempos subsequentes. O fenômeno se virtualizaria no seu objeto. Tal é o caso das velhas
cinzas milenares que atestam a presença de um acampamento humano em cavernas.
Pessoas, comunidades, populações inteiras muitas vezes vivem temporalidades diferen-
tes das da cidade, por exemplo. Ernst Bloch, como vimos no Capítulo 3, falava de assincronia,
referindo-se ao fato de que em regiões atrasadas a consciência das pessoas encontra-se em outro
tempo. Mas há também verdadeiras “trombadas cronológicas” entre pessoas que habitam o
mesmo ambiente (pais e filhos, colegas, correligionários), que em vista de seus diferentes pa-
drões de referência (teóricos, epistemológicos), estariam ancorados em momentos diferentes
da história cultural e das ideias, vendo, assim, cada um a seu modo, “mundos diferentes”.
Ao lado de um tempo real, haveria diversos tempos vividos, todos constituindo, ao
mesmo tempo, o "tempo do mundo". Como em Jorge Luis Borges, na história dos futuros, em
que seu personagem, o Dr. Albert, diz que "o tempo está sempre dividindo a si mesmo em
inúmeros futuros e em um deles eu sou seu inimigo".

Não somente o tempo, a velocidade está também - e principalmente - nas tecnologias.


O teclado do computador funciona hoje como o gatilho de Camus: o acionamento das teclas é
imediato, fulminante e irreversível. Não há retorno. Forma de comunicação que torna todos e
todas as mensagens excepcionalmente vulneráveis, apaga a mise-en-scène do espaço de tempo
intermediário entre uma ação e sua consecução, o tempo do pensar.
Além do teclado, a própria imagem nas telas de computador e os diferentes acessos
embaralham as temporalidades: as vivências em comunidades virtuais submetem-se a uma
marcação de tempo própria desses lugares, mesmo o decurso dessas experiências tem outra
cronologia; os programas de imersão em outros mundos operam um corte no tempo vivido
para que os participantes se insiram em outras épocas, outros períodos históricos. A marca da
nova temporalidade cibernética, aliás, é a transformação do tempo-passagem em tempo-
velocidade ou instantaneidade.
Paul Virilio acredita que as tecnologias computacionais engendrem uma nova cultura, a
do tempo de exposição, conceito esse surgido da comparação com a fotografia. Fotos antigas ne-
cessitavam de um longo período de exposição à luz para sensibilizarem o negativo; no presen-
te, a sensibilização é instantânea. Há uma aceleração que faz com que a atualidade (o presente)
das pessoas esteja associada ao mínimo período de tempo de exposição à luz (luz mediática).
Quer dizer, um fato se torna velho não pela sua idade, mas pela demora em aparecer, pela es-
pera até chegar ao expectador. A mesma notícia numa revista é antiquíssima, no jornal é muito
velha quando comparada à sua apresentação relativamente rápida na TV, consecutiva no rádio
e em tempo real nos noticiários on line. É o tempo (curto) de exposição que lhe garante a jovi-
alidade. Para Virilio, a própria percepção tornou-se um campo de batalha.
64

Detalhamentos

Para os físicos, a flecha do tempo pertence à física e é uma questão de "comunicação". Este conceito
está em Isabelle Stengers (Stengers, 1997, 5, p.11). A contestação das bolas de bilhar está em
N. Katherine Hayles (Hayles, 1990, p. 97 e 102). Os dois tempos de Ilya Prigogine podem ser
encontrados em Progogine/Stengers, 1986, p. 52. Tranformações do padeiro: “Toma-se um qua-
drado, estica-se em retângulo, corta-se em dois, dobra-se uma parte sobre a outra, modifica-se
constantemente o mesmo quadrado o estendendo novamente; é a operação da padaria. Ao
cabo de um certo número de transformações, dois pontos, por mais próximos que estivessem
no quadrado original, estarão fatalmente em duas metades opostas/.../ “No filme Je t’aime, je
t’aime (Alain Resnais), vê-se um herói que é reconduzido de volta a um instante de sua vida e
este instante vai ser tomado em situações sempre diferentes. É como as coberturas que serão
perpetuamente dobradas, modificadas, redistribuídas, de tal forma que aquilo que está próximo
sobre uma cobertura estará, contrariamente, muito distante sobre a outra”. (Deleuze, 1990, p.
170)

Mas o tempo é também outras coisas: "pessoa", multiplicidades. A menção de Alice no país das
maravilhas, do texto, está em Clément et al., p. 352. Lewis Carroll, nas duas obras sobre Alice
que o consagraram retorna sempre ao paradoxo do tempo. Em Alice no país das maravilhas, fala
que "o tempo não suporta ser marcado" (Carroll, 1980, p.99) e descreve que ele sempre estaci-
ona na hora do chá (p.101); em Alice no país do espelho, ele apresenta a curiosa lógica de virem
antes as consequências depois as causas (p.90): primeiro a pessoa é julgada, depois comete o
crime (p.130), primeiro circulam as fatias do bolo, depois ele é cortado (p.131), primeiro guar-
da-se o prato, depois chega o bolo (p.139).

Para Bergson, ele não deve ser confundido com "duração". Ver para isso: Clément et al., 1994,
p.39. O conceito de assincronia (Ungleichzeitigkeit), de Ernst Bloch, não se confunde com o ana-
crônico (o que não pertende àquele espaço de tempo ou o que é falsamente situado em relação
ao tempo), mas com ausência de homologia entre o ser social e a consciência, estando esta
historicamente atrasada em relação àquele. (Cf. Marcondes Filho, 1988, p.19).

O conceito de tempo pode ser sintetizado na ideia da vida como um filme. A afirmação é de
Watzlawick e está em Watzlawick, 1978, p. 215. Sobre as "heceidades" de Deleuze, ver: Deleu-
ze/Parnet, 1996, p. 111. As temporalidades dos signos encontram-se em Bougnoux, 1998,
p.50.

No trânsito entre intelectuais podem ocorrer as "trobadas cronológicas". Trata-se de uma hipótese
de trabalho que desenvolvi em Coletivo NTC, 1996, p. 300 e que tem a ver com a estagnação
da consciência, que não acompanha o movimento das ideias e suas transformações. O pressu-
posto é que a construção do saber se dá de forma cumulativa durante todo o processo de es-
truturação e consolidação do conhecimento, em geral na academia, e normalmente sustentada
por um paradigma científico ou filosófico. O que ocorre posteriormente, no terreno intelectu-
al, são acréscimos pontuais de informações necessárias à atividade profissional ou à reciclagem
de qualquer natureza, com exceção daqueles que promovem verdadeiros cortes epistemológi-
cos radicais no sentido de Bachelard. A hipótese é a de que o conhecimento cumulativo se
estabiliza em sua estrutura ordenadora básica, em seu eixo epistemológico ou em seu paradig-
ma, e daí para frente só receba acréscimos não dissonantes. Constitui-se, assim, um filtro -
segunda hipótese - por onde passam a passar todas as novas informações recebidas; este funci-
65

ona como âncora e critério de conduta intelectual, ocorrendo, quando de seu desmoronamen-
to, episódios dramáticos de perda de de identidade intelectual. Pois bem, como a formação do
conhecimento se dá em épocas diferentes, correspondendo às diversas de gerações de pensa-
mento que se sucedem, e caso a segunda hipótese seja verdadeira, temos a convivência, num
mesmo ambiente de discussão, de diferentes armaduras epistemológicas, que engendram inter-
pretações de mundo sempre subordinadas a seus respectivos eixos lógicos. Assim, pessoas
formadas nos anos 50 e com o paradigma intelectual dessa época entrarão fatalmente em con-
fronto com outras, cujo paradigma é dos anos 70 ou 90, assim por diante. A incongruência
entre discursos e visões de mundo prepara uma terceira e última hipótese, a de que, a circula-
ção de ideias no contexto intelectual é marcada por grande assincronia das estruturas lógico-
científicas, configurando trombadas cronológicas, verdadeiros desencontros e embates entre
discursantes que não têm possibilidade de se entender, pois falam a partir de planos diferentes
de interpretação de mundo. Desta maneira, não se chocam apenas temporalidades distintas
nem modelos de pensamento e visões de mundo, mas também representações de mundo, isto
é, o mundo é diferente para cada um.

A citação de Jorge Luiz Borges pode ser encontrada no conto "O jardim dos caminhos
que se bifurcam", Borges, 1944.

O tempo é também aceleração. Os toques do teclado são como um gatilho. Vilém Flusser compara
o teclado do computador com o gatilho acionado pelo suicida, extraído de Albert Camus. "O
que é novo hoje é/.../o fato de que o teclado QUBE [Question Your Tube, aparelho com te-
clados para escolhas, Warner Corp., 1977] permite a cada um ser na vida cotidiana uma edição
em miniatura do suicida de Camus e do presidente norte-americano [que tem o botão verme-
lho e que acioná-lo significa a morte de parte da humanidade]" (Flusser, 1997, p.128). "O sui-
cida decide entre as alternativas: ser objeto ou ser sujeito, enquanto o assinante de QUBE de-
cide diariamente ser ao mesmo tempo sujeito e objeto. Neste sentido, a pulverização das deci-
sões leva a uma forma existencial além do suicídio" (idem p. 129). Ou seja, os efeitos cumulati-
vos daquele que diariamente opera o monitor de TV são tais que superam (banalizam) a deci-
são existencial (que é uma só).
Paul Virilio e seu conceito de tempo de exposição: ver para isso Virilio, 1993. Ver tam-
bém Florian Rötzer, 1991, p.33, sobre a percepção como 'campo de batalha', em Virilio.

Outro efeito da aceleração é a fibrilação nervosa da tela: "A característica da tela e do PC é que
lá só encontramos movimento e nenhuma paz. Não é bem que as imagens na picacoteca não
falam e que elas são sem movimento. Em realidade, cada grande obra de arte tem esses dois
traços em si: ela descansa em si mesma, pois informa sobre um lugar, e é, ao mesmo tempo,
movimento. Se só há o movimento na tela, então, chega-se ao declínio da dimensão acromáti-
ca. Se só há a paz, temos então o kitsch e o clichê, temos a arte nazista e o realismo socialista, o
herói, que não existe na Terra; então temos a ficção, que se apodera da arte, no mau sentido"
(Riedel, 1991, p. 472). [O acromatismo tem a ver com o equilíbrio das distorções da cor em
instrumentos ópticos através da combinação de prismas e lentes].

Comunicação e a técnica

O aparecimento das tecnologias de comunicação é um processo que não deve ser mi-
nimizado. Não se confunde com a descoberta da fotografia, do cinema, do rádio ou da TV, se
66

bem que estes, especialmente a fotografia, tenham desempenhado uma revolução extraordiná-
ria em toda a recente história da cultura. Os meios eletrônicos dão um salto ainda maior, repor-
tando-se à revolução cultural promovida pela criação dos tipos móveis de Guttenberg e a im-
prensa.
Nas tecnologias comunicacionas deparamo-nos com um salto de 2a. ordem, radical,
pois elas alteram nosso conceito de perspectiva (antes do Renascimento não existia a perspec-
tiva, a figuras apareciam "chapadas", sem profundidade; com o Renascimento, ela foi criada e o
pintor, privilegiando um ângulo, um lado, um aspecto, nos levava a ver as coisas como ele as
via), introduzindo os múltiplos acessos a uma imagem, tornam todas imagens e textos mutá-
veis, alteráveis, "provisórios", criam territórios de ação virtuais, interferem nas temporalidades,
na memória, em suma, em eixos até então estáveis da cultura.

O termo técnica referia-se, na antiguidade, a um sistema organizado e codificado de ges-


tos e regras operatórias, que permitiam reproduzir indefinidamente o analogon do objeto. É o
"saber poético" (do fazer), em oposição a dois saberes: o teórico (do ver), que deixa intacto seu
objeto, e o prático, que visa à perfeição (moral e política) da pessoa que o executa. Esse concei-
to clássico, assim, refere-se às formas do fazer, em oposição às formas do ver e do aperfeiçoar.
É uma categoria, portanto, muito ampla, pouco nos ajudando, por isso, na discussão da técnica
atualmente.

O debate contemporâneo em relação à técnica foi deslanchado principalmente após


1945, ano em que a técnica - a bomba atômica - foi utilizada como instrumento de aniquilação
em massa da espécie humana. A técnica aí perdeu sua pureza e passou a ser vista como ameaça
à vida e à natureza, como força imbatível pelo homem ou pelo bom senso, em suma, como
poderoso instrumento de intimidação e chantagem.
Para discutirmos a técnica, deveremos considerar tanto os que a vem como "neutra"
quanto seus adversários.
Um primeiro nível do debate, assim, fala da neutralidade da técnica. Para essa corrente
de pensamento, a técnica é neutra, sua periculosidade depende do uso (pacífico ou beligerante)
que lhe seja dado. A fissão nuclear vale tanto para destruir imensas metrópoles quando para
produzir energia elétrica para o país, conforme a intenção do homem. Esse argumento acredita
na racionalidade e defende que as instalações são seguras, que o homem é confiável e que o
progresso não pode ser detido.
A corrente oposta afirma que a técnica não é neutra. Ela própria pode provocar mu-
danças no comportamento humano, fazer de simples homens, seres dominadores, selvagens e
destruidores pelo fato de deterem esses instrumentos. Segundo essa corrente, o homem não é
confiável, as instalações podem a qualquer momento falhar e que não há um conceito absoluto
de progresso. Eles perguntam: progresso, para onde?
O argumento da neutralidade foi defendido pelos pensadores e cientistas impregnados
do espírito das Luzes. Tanto ideólogos da burguesia quanto Marx enalteceram as maravilhas da
técnica, mudando o mundo, promovendo o progresso, dinamizando o desenvolvimento eco-
nômico e social. Os que argumentam pela não neutralidade dizem que nós é que nos coloca-
mos neutros diante da técnica, mas ela mesma não o é.
Deve-se mencionar ainda algumas posições que tentam conciliar as anteriores, como os
que acham que a técnica é tanto ameaça quanto salto de consciência, que o homem não domi-
na as máquinas mas tampouco é dominado por elas.
67

Uma acalorada discussão intelectual sobre o assunto desenvolveu-se nos anos 50, espe-
cialmente por antigos intelectuais alemães ligados, nos anos 20, à revista do Instituto de Pes-
quisa Social, de Frankfurt, e a partir da crítica à racionalidade desenvolvida por Max Weber
desde o começo do século. O grupo de Frankfurt empreende uma sistemática recusa da racio-
nalidade e da aceitação do progresso técnico a qualquer preço. Para Marcuse, a técnica - como
uma espécie de 1984 amplamente realizado - é um projeto histórico-social com tendências
totalitárias.

Pode-se distinguir nessa argumentação quatro aspectos principais: o moral, o político, e


metafísico e o ontológico.

O argumento moral fala das perdas. De que toda a inovação técnica traz necessariamen-
te mudanças, criando objetos, fatos e ideias e, ao mesmo tempo, suprimindo outros, produzin-
do, portanto, "vazios". É a suposição de que o homem, com a técnica, perde sua destreza, sua
capacidade de movimento. Os opositores desta corrente acreditam que as substituições sejam
inevitáveis e que mesmo a arte provoca suas mudanças e interfere na maneira de homens ve-
rem e organizarem o mundo.

O argumento político afirma que os homens, com a técnica, dominam diferentemente,


que a própria técnica institui relações de poder, não nitidamente identificáveis com as antigas
formas humanas de dominação. O poder técnico seria menos nítido, escondendo-se atrás do
fascínio da inovação tecnológica. Em oposição a isso, argumenta-se que há sempre homens
intervindo, regulando as máquinas de fora.
Em outro plano, mais abstrato, argumenta-se que "a técnica" seja um poder supremo,
algo incontrolável, que não podemos frear. Ela escravizaria os homens depois de liberá-los e
haveria, por trás de todo o saber, uma violência escondida. Os homens, ao contrário, se torna-
riam progressivamente submissos.

O argumento metafísico é mais amplo. Fala que a técnica, numa era de decadência dos
valores religiosos e da crença em poderes sagrados, se instituiria como a nova divindade, bezer-
ro de ouro, cujo caráter religioso não estaria sendo percebido pelos homens. O homem, em
vez de manter uma separação cautelosa e crítica em relação à máquina, estaria se conformando
às limitações, à racionalidade e ao "vazio" da máquina.

Finalmente, o argumento ontológico desloca a atenção das máquinas e da técnica visi-


velmente observável para um plano além das máquinas. Fala que se formos nos concentrar nas
máquinas, perderemos a perspectiva de criticá-las, que o ser da técnica não está nas máquinas,
mas fora delas: ele foi internalizado nos homens, uma vez que o pensamento maquínico se
centraria nesse "tudo funciona", no desenraizamento e num certo "sem-sentido" do agir hu-
mano substituído por relações técnicas.

Detalhamentos

A discussão das tecnologias de comunicação começa a partir da polêmica sobre os equipamentos técnicos
e sua relação com os homens. Mas o que é a técnica, afinal? Auroux e Weil acreditam que as duas posi-
ções relativas à técnica (ver abaixo) supõem a separação radical entre 1) atividades propriamen-
te humanas e morais (que correspondem a uma atividade finalizada) e 2) o universo reificado
dos instrumentos e técnicas, que em si mesmo não traz a finalidade. É a partir desta condição
68

que se pode pensar que o progresso (que permanece definido pela felicidade da humanidade)
passa pelo instrumento técnico, mesmo que este porte em si uma contra-finalidade catastrófica
(tema do perigo da sujeição do homem à técnica e à máquina). (1991, p.473)

As tecnologias mudam nossa perspectiva em relação à maneira de vermos o mundo. A mudança do


perspectivismo pode ser consultada em Freier, 1984, McLuhan, 1968, em Kerkhove, 1991, e
em Edmond Couchot,1988. As imagens virtuais, em tempo real, tridimensionais têm a ver com
a existência de entidades híbridas situadas entre o real e o não real, que podem ser vistas em
Weissberg,1993. Ver também o conceito de praeter real em Quéau,1993. Trata-se, em todos
esses casos, do salto da técnica para sua segunda realidade. Em relação a isso, ver também Viri-
lio: "Onde a motorização /.../provocou uma mobilização geral/.../, os meios de transmissão
instantânea provocam inversamente uma inércia progressiva, a televisão e principalmente a
teleação, não [necessitam] mais da mobilidade das pessoas, mas somente de sua mobilidade no
lugar" (Virilio, 1995, p.33). Da mesma forma ver seu conceito de inércia polar, em Virilio, 1993:
como nos parques aquáticos, ficamos parados e a água se move dando-nos a ilusão de nos
movermos quando de fato não saimos do lugar.

Um primeiro nível da discussão sobre a técnica se refere à questão da neutralidade. Neutralistas são
principalmente os pensadores influenciados pela filosofia das Luzes. Não neutralistas são os
vinculados ou próximos à Teoria Crítica.

Os "neutralistas"

Simondon diz que as máquinas não são significação, que uma máquina não muda a
forma de resolver os problemas; isso quem faz é o só o ser vivo. In: Simondon, 1989, p.143.
Contra a posição da neutralidade aparece Günther Anders: "A técnica hoje é o sujeito da histó-
ria", (Anders, 1979, p. 9) e também Castoriadis: "Em certo sentido, os instrumentos de uma
sociedade são significações, eles são a 'materialização' da dimensão identitária e funcional das
significações imaginárias de uma sociedade considerada. Uma cadeia de fabricação ou de mon-
tagem é (e só pode ser) 'materialização' de uma quantidade de significações imaginárias centrais
do capitalismo". (Castoriadis, 1982, p. 406). Ler para isso também Souza: "Cada inovação téc-
nica age, por um lado, sobre o sistema de normas (suspende as interdições, queima os códigos
éticos - que se tornam, a partir dela, desatualizados -, rompe as normas positivas) e sobre o
sistema político internacional" (Jorge de Oliveira Souza em: Ellul, 1977, p.189)

Há também os argumentos "intermediários" como em Vilém Flusser: "A utopia, os cenários


futuros [ou seja, a técnica] contêm tanto ameaça na forma de climas de desmoronamento, as-
sim como uma quantidade que não se pode desprezar de novas possibilidades, que simbioti-
camente vinculadas, poderiam trazer consigo incríveis saltos de consciência" (em: Klo-
ock/Spahr, 1997, p.84). Na mesma direção vai John Hart: "(O indivíduo humano) não domina
[o objeto técnico individualizado], não é dominado por ele mas entra num tipo de relação dia-
lética". (in: Simondon, 1989, p. IX). Compare-se isso com a frase de Dietmar Kamper: “as
máquinas também morrem” (Kamper, 1998, II).

Os não neutralistas: Weber comenta em sua Ética protestante que o ascetismo religioso
saiu dos mosteiros e foi levado para a vida profissional, contribuindo para a formação da or-
dem econômica e técnica, que "determina de maneira violenta o estilo de vida de cada indiví-
duo nascido sob esse sistema". Para ele, os últimos homens seriam "especialistas sem espírito e
69

sensualistas sem coração" (Weber, 1987, p.131). Herbert Marcuse, em Cultura e sociedade, afirma,
na mesma direção, que o próprio conceito de razão técnica já seria 'ideológico' e, em One dimen-
sional Man, que no estágio presente o homem é mais impotente do que nunca perante seus
próprios aparelhos (1964, ed. alemã, p. 246). Jürgen Habermas, apesar de ver a técnica, como
Marcuse, como instrumento de uma racionalidade tornada ideologia, ou seja, a serviço da do-
minação, acredita nela ver um possível parceiro: "podemos dirigir-nos a ela como a um parcei-
ro numa possível interação. Em vez da natureza explorada, podemos buscar a natureza frater-
na. (Mas) uma subjetividade da natureza ainda agrilhoada não pode emergir antes que a comu-
nicação entre os homens se torne livre" (Habermas, 1968, p.308).
A classificação destes pensadores como "nostálgico-conservadores" é equivocada: esse
aspecto, pertence, em verdade, ao discurso fascista: "A propaganda fascista apoiou-se por isso,
em grande parte, na recuperação da vida idílica, camponesa, como forma de oposição ao 'caos
industrializado'/.../A propaganda nazista apelava a esse mundo romântico-imaginário com
muita perícia: abordar os temas utópicos e oníricos aliviava a consciência da massa da dura
realidade cotidiana e a predispunha a ceitar novos místicos" (Marcondes Filho, 1982, p.49 e
53).

Há quatro níveis em que se desenvolveram os debates mais importantes sobre a técni-


ca.
1. O argumento moral. Ele fala de perdas. Virilio acredita que "o handicap maior, [é] resul-
tante, por um lado, da perda do corpo locomotor do passageiro, do telespectador e da perda desta terra
firme, deste grande solo, terreno de aventura de identidade do ser no mundo/.../A grandeza
natural das distâncias físicas tendo assim sofrido a lei da potência microfísica das ondas transmitindo
a audição, a visão e amanhã o toque (tato à distância), como não evocar o risco para a humani-
dade de uma perda do mundo próprio?" (Virilio, 1995, p.50). A hipótese é a de que se antes os
homens usavam-se dos equipamentos técnicos (crítica tradicional da técnica), hoje eles vivenci-
am um salto qualitativo, as técnicas absorvem o social e impõem seu contexto. São tecnologias
associadas ao tempo, não mais à função.

2. O nível político. "Seria falso supor neutralidade à técnica, pois nela estão implantadas
relações sociais de poder" (Kittler, 1993, p.215). Ou então: "A máquina permite apenas dois
modos de funcionamento, o modo supervisor e o modo usuário, dos quais somente um, o do
usuário é acessível."(idem, p.213). "Esta separação estreita entre usuário e sistema exprime de
fato relações de poder. Aos utilizadores impõem-se as possibilidades, seu agir é, no sentido
mais verdadeiro do termo, pré-programado. Isto é, 'escreve-se como sujeito ou subordinado (o
sub já o diz) da Microsoft Corporation.'/.../Isso vale da mesma forma para os mundos virtuais
do ciberespaço. Quem entra no mundo simulado pode, certamente, atuar nele de forma criati-
va mas somente até o ponto em que o programa permite. (Kittler, s/d, p.127). "Em geral, o
'untrusted user' é mantido longe do verdadeiro centro da técnica computacional. Disso resulta
que aí surge um 'núcleo rígido de poder', onde programadores criam a 'arquitetura do clip'/.../
Correspondentemente, o mundo colorido, múltiplo do software vale como aparência que em
verdade apenas encobre a logística do hardware e as estruturas inerentes de poder. A tese de
Kittler é que 'não há software'./.../ O software cada vez mais amigável do usuário, de fato,
subtrai a máquina do seu usuário, pois esconde da programação os ícones do ato da escrita".
(Kloock/Spahr, 1997, p.202)
A dominação vem de fora: "Não há nenhum controle interno dos resultados, nenhum
mecanismo interno de regulação, pois seus resultados se fazem sentir num nível e em domínios
70

que não são técnicos. O sistema técnico não funciona no vazio mas na sociedade e num ambi-
ente humano 'natural'."(Ellul, 1977, p. 132)

A técnica é, portanto, também uma forma de dominação. "O fator dessacralizante torna-se, por
seu turno, o sagrado, da mesma forma que o fato de a técnica ter se tornado autônoma lhe dá
uma situação suprema: não há nada acima dela que possa julgá-la - por consequência ela se
transforma em instância suprema: é a partir dela que tudo deve ser julgado". (Ellul, 1977, p.
165). Para Simondon "parece haver uma lei singular no devir do pensamento humano, segun-
do a qual, toda inovação ética, técnica, científica, que é de início um meio de liberação e redes-
coberta do homem, torna-se pela evolução histórica um instrumento que retorna contra seus
próprios fins e subjuga o homem o limitando" (Simondon, 1989, p.101-2). "A dominação cien-
tífica e técnica, que, segundo Heidegger, se desencadeia hoje em escala planetária, revela a vio-
lência escondida em todo o saber positivo e comunicável". (Prigogine/Stengers, 1986, p. 64)

A inércia do homem telemático: "Voltado à inércia, o ser interativo transfere suas capacida-
des naturais de movimento e deslocamento às sondas, aos detectores que lhe informam instan-
taneamente sobre uma realidade longínqua, em detrimento de suas próprias faculdades de
apreensão do real, a exemplo daquele para- ou tetraplégico capaz de teleguiar seu ambiente, sua
morada, modelo desta demótica e destes 'imóveis inteligentes', que respondem a nossos míni-
mos desejos". (Virilio, 1995, p.29). Também mais adiante: "...quando os relês mecânicos cedem o
caminho aos relês elétricos, o corte é manifesto e se instala o desmembramento corporal, levando
a que estes impulsos eletromagnéticos dos novos comandos à distância atinjam, com o zapping,
por exemplo, a inércia comportamental do indivíduo" (idem, p.136). Hans Jonas: "o homem
não controla mais a técnica: esta responde, em verdade, a uma lógica que lhe é própria e nós
não conseguimos frear esta irresistível fuga para frente". (Clément et al., 1994, p.184)

3. O nível metafísico. Ramon R. Garcia, interpretando Heidegger, comenta que "a técnica,
enquanto modo peculiar de descobrir, é metafísica, pois esta é sempre um mostrar o ente co-
mo ente desta ou daquela maneira/.../A metafísica funda uma época na medida em que fun-
damenta sua figura essencial com uma determinada interpretação do ente e mediante uma de-
terminada concepção de verdade. Este fundamento domina todos os fenômenos que caracterizam a época"
(Garcia, 1987, p.178, grifo nosso). Para Jürgen Habermas, na mesma direção, onde havia reli-
gião agora há a racionalização. (1968, p. 65-66).

4. O nível ontológico. O homem incorpora a técnica, torna-se ele mesmo um ser "maquí-
nico". Esta perspectiva desloca a discussão de uma "malignidade intrínseca" das técnicas para a
técnica como um modo de ação, não como materialidade de aparelhos e máquinas, mas para
um pensar e um proceder tecnicamente transformado.

Já no âmbito da filosofia idealista Hegel havia falado, em Realphilosophie, I, que o ho-


mem, transferindo trabalho à máquina, distancia-se de si mesmo: "fazendo a natureza operar
com todos os tipos de máquinas, ele [o homem] não suprime a necessidade de seu próprio
trabalho: ele se contenta em retardar a data de finalização, ele se distancia da natureza e não se
regula mais com ela como um ser vivo sobre uma natureza, que é viva; esta vitalidade negativa
desaparece e o tipo de trabalho que lhe resta é cada vez mais maquinal" (Hegel, 1805/1806, p.
237). Da perspectiva do existencialismo, Heidegger trabalha a questão da técnica como "modo
de desocultar" e como metafísica (metafísica, não no sentido religioso). Quatro são os indica-
dores básicos dessa postura: 1) a técnica não se confunde com o conjunto dos aparelhos; 2) ela
71

não se refere ao seu uso instrumental (a técnica não é neutra); 3) ela é uma promotora da deso-
cultação (conceito heideggeriano de Ge-Stell) e 4) ela é a realização mais plena da metafísica.
(cf. Heidegger, 1954, pp. 80, 13, 72 e 181-2). [O conceito de "desocultar" vai na direção do
termo "descobrir", usado na citação acima de Garcia]
Em A questão da técnica, Heidegger fala que a ameaça dos homens não vem das máqui-
nas e aparatos mortais da técnica. A real ameaça já penetrou no ser dos homens, está internali-
zada. (1954, p.36). Jacques Perriault, comentando a célebre passagem de Heidegger sobre a
essência da técnica, diz que a gênese do objeto técnico é um processo de pensamento que leva
ao tangível, misturando matéria, forma, finalidade e modo de realização. Cita, a seguir, Thierry
Gaudin, que, como neste livro, fala de um movimento pelo qual esta se "desprende" das con-
cepções instintivas, favoráveis ou desfavoráveis, que acompanham a palavra "técnica", para se
elevar ao nível do pensamento. (Perriault, 1998, p. 201). O conceito aqui usado de metafísica
tem a ver com realização plena, universal da técnica. "A onipotência do pensamento técnico
teria expulsado do âmbito do possível qualquer outra forma de pensar, qualquer outro modo
de revelarem-se as coisas que não seja o de sua figura técnica" (cf. Garcia, 1987, p. 181-2).
Martin Heidegger será, por sua vez, corrigido por Günther Anders, que promove a
redução do papel do homem e expande a crítica da técnica através da crítica à própria fragili-
dade humana em seu conceito de desnível prometeico. (Anders, 1956) O pensamento maquí-
nico, internalizado nos homens, é o mesmo que atribui às máquinas e aos robôs a capacidade
de pensar como homens.

Linguagem e inteligência artificial

As primeiras pesquisas e teorias ligadas à inteligência artificial consideravam o homem


como um "sistema processador de informações" e cabia aos engenheiros criarem uma máquina
que repetisse os mesmos mecanismos que o homem põe em funcionamento quando pensa.
Para tanto, partiam da hipótese de que, diante de uma tarefa elementar (para a "solução de um
problema"), todos os homens desencadeariam processos lógico-mentais similares. A estes pes-
quisadores o ambiente, o contexto externo, não teriam relevância especial para essas tarefas e
homens e máquinas seriam sistemas "basicamente sequenciais" (para os quais as decisões e
ações seriam resultado de procedimentos sucessivos).
Faz parte dessa visão de mundo, em si simplificadora e redutora, a opinião de que ho-
mens, máquinas e formigas seriam em última análise semelhantes. Homens teriam se tornado
mais complexos por terem se transformado, como resultado adaptativo ao meio ambiente.
A comparação do homem com outros animais vem de René Descartes e a diferença
está na capacidade de falar. Para ele, é possível explicar o comportamento animal pelo modelo
da máquina. O problema destas é que jamais poderão usar-se de palavras, visto que não podem
arranjá-las. Não basta "falar" como um papagaio, é preciso compor e montar.

No Capítulo 2 foram apontadas as insuficiências do modelo cartesiano aplicado à lin-


guística da inteligência artificial. Chomsky, Thom e Hofstadter foram seus teóricos. Aqui cabe
desenvolver outros aspectos dessa crítica, partindo da língua artificial e dos estudos da inteli-
gência.

A linguagem simulada das máquinas não é capaz da autorreferência, ou seja, de desig-


nar a linguagem como linguagem. Estamos aqui, novamente, no terreno da metacomunicação
72

de que falava Bateson ao analisar a double bind. Incapaz também de reproduzir os brancos da
linguagem, a máquina, conforme Atlan, não possibilita por isso a passagem de um nível a outro
no interior da própria linguagem. Ela opera só em um nível.
Além disso, ela é necessariamente reduzida e se torna "formalização pura", perdendo,
naturalmente, o caráter amplo, diverso, variado, de múltiplos sentidos. Mais ainda, ela tenta
operar independente do aspecto contextual, criticado anteriormente através de Searle e outros.
Mas a linguagem, se bem que fenômeno essencialmente cultural, não pode ser vista separada
da inteligência, que muitos, ao contrário, veem como um processo puramente físico-químico e
de aprendizado, passível portanto de ser reproduzido em laboratório (isto é: em máquinas).

Uma das definições de inteligência é a capacidade de inventar condutas adaptadas a situa-


ções. A inteligência humana estaria associada além disso à improvisação e à transformação do
meio ambiente, afora a capacidade especulativa e conceitual, tidas como impossiveis à máqui-
na.
A ciência cognitiva acredita que pensamos por meio de chuncks, isto é, que vemos o real
a partir de blocos e não de pensamentos individualizados. Como os enxadristas que aparente-
mente não veem o jogo de xadrez como uma sequência de movimentos mas como um conjun-
to maior de lances, como um "tipo lógico" superior, digamos assim. Douglas Hofstadter é de
opinião que a mente funcione em níveis diferentes. O mais baixo seria aquele das "constantes
definitivas", muito próximo às estruturas profundas de Chomsky. Nesse nível, os processos
ocorreriam de forma autônoma, sem nossa ordem. Os níveis mais altos, ao contrário, seriam
menos estáveis e sujeitos a maiores trepidações.
A consciência para esses pesquisadores funciona de forma diferente do que para os
psicanalistas. Para os engenheiros, o cérebro é um objeto matemático (redução semelhante à
que fazia Descartes, para quem se deveria "geometrizar" os fenômenos para melhor apreendê-
los) e o processo mental, em verdade, pouco diferencia do estomacal, pois, da perspectiva dele,
todos são derivados de um "substrato computacional".
Da mesma forma como Descartes, Chomsky e Thom apostam na existência de estrutu-
ras inatas. A ciência cognitiva as vê igualmente na formação dos símbolos. Se para os psicana-
listas e os linguistas os signos são formalizações linguísticas eminentemente culturais - Freud
fala de uma "herança arcaica", Susanne Langer os vê como discursivos ou “apresentativos” da
cultura, Lacan atribui ao simbólico a intervenção do social na constituição do sujeito, Lorenzer
atribui ao símbolo historicidade e polifonia -, para os cognitivistas eles são algo "sempre já
dado". Eles estão adormecidos e podem ser ativados a partir de um estímulo externo. Daí ter a
criatividade humana, para eles, também ela, "uma máquina atrás de si".

Mas é difícil aceitar essas hipóteses. Além da negada existência dos objetos e de pro-
moverem uma exclusão injustificável de tudo que as ciências humanas já produziram em ter-
mos de linguagem, produção simbólica e criatividade, simplesmente negam que os atos huma-
nos tenham outras fontes que não a materialidade maquínica.
Ao ignorarem formações como o inconsciente e o pré-consciente, deixam sem explica-
ções inúmeros fenômenos que estão fora do esquema simples dos níveis, do substrato compu-
tacional, dos estímulos externos trazidos do behaviorismo. Desejos, pulsões, libido, formações
do inconsciente, deslocamento de significantes, tudo isso e muito mais desaparecem do cenário
da mente humana, reduzida a um esquema mecânico de estímulos e respostas adaptativas.
Não se sabe exatamente se a interpretação tecnocrática do cérebro e da mente tem a
ver apenas com a reabilitação de princípios racionalistas, com uma nova roupagem da tese an-
tropocêntrica ou com "a fuga ao fardo do Dasein" (da existência); ou com todos ao mesmo
73

tempo. O fato é que o resultado não se resume apenas no fracasso em se criar inteligências
equivalentes às humanas, que é um handicap para essa corrente de pensamento, mas, mais seri-
amente, na difusão e venda de visões de mundo tecnocráticas associadas ao que antes se de-
nominou de um certo totalitarismo do pensar técnico.

Detalhamentos

Segundo os pesquisadores da inteligência artificial, o homem é um sistema de tratamento de informa-


ções. As informações relativas aos postulados da inteligência artificial, como sistema de proces-
samento de informação (IPS), são de Simon e von Newman, podem ser vistas em Sfez: “o
homem age por seleção sucessiva de meios para atingir um fim definido de antemão, ele tenta
estabelecer uma relação de similitude entre essa atividade do 'passo a passo' e a do computa-
dor... a ponto de fazê-las coincidir e garantir que o homem opera como um sistema de proces-
samento de informação” (Sfez, 1988, p. 132).
Os cientistas e engenheiros de inteligência artificial baseiam-se em Descartes mas o
filósofo os contradiz: “Uma máquina bem aperfeiçoada poderá dar a ilusão perfeita de um
organismo vivo, mas um animal jamais poderá se fazer passar por um homem: lhe faltará sempre
a linguagem. Não se confundirá, de fato, a simples repetição automática dos sons (como pode
produzir um papagaio bem-educado, que reage a estímulos), com um diálogo livre, em que
cada consciência pensante exprime suas ideias e responde sempre de acordo. A palavra huma-
na escapa às leis da mecânica: ele remete a uma dimensão puramente espiritual” (Clément et al.,
1994, p. 84). Sobre a impossibilidade de animais e máquinas usarem palavras e signos, coisa
que podem até "os mais estúpidos" dos homens, ver Descartes, 1637, p.64-65.

O dualismo cartesiano é caracterizado pela substância pensante, de um lado, e pela


substância estendida, de outro (como a cera que se pode amassar e fazer desaparecer a figura
que ela tem atualmente, mas também o próprio corpo). Em Douglas Hofstadter encontramos,
além das "constantes definitivas", o dualismo (reabilitado) através da afirmação de que "as
emoções são um subproduto automático da faculdade de pensar. Elas derivam mesmo do pen-
samento" (fala de Camille, em: Hofstadter/Dennett, 1987, p. 89).

Mas a simplicação das funções cerebrais humanas leva a malentendidos em relação à possibilidade de
construção de uma linguagem artificial. É de Huizinga a frase que diz: maior o progresso, mais des-
valorizada a palavra. E Jacques Ellul, sobre o tema, acredita que: "A linguagem perde seu mis-
tério, sua incompreensibilidade, sua magia: não é mais expressão de sonhos - ou, talvez sim, ela
se torna, pela decodificação técnica que sofre, o meio para fazer entrar também os sonhos,
inspirações, aspirações e delírios neste meio técnico" (Ellul, 1977, p. 61). Sobre os brancos da lin-
guagem: "A passagem de um nível a outro no interior da linguagem se faz por intermediações de
brancos da escrita (ou cortes e ritmos das palavras), que servem de uma só vez para cortar e
reunir as palavras em frases". (Atlan, 1986, p. 74)
A língua como relação social e contextual pode ser encontrada na crítica que Sfez faz a
Chomsky utilizando-se de Searle ("O sheriff John Searle"), em Sfez, 1988. A mesma tese - da
língua como relacional - encontramos em Heidegger (Auroux, 1996, p. 256), e em Wittgenstein
e seus jogos de linguagem, onde “cada frase tem sentido no jogo”, além de muitos outros.

Os malentendidos se desdobram também sobre a noção de inteligência. As definições de inteligên-


cia podem ser encontradas em Auroux/Weil, 1991, p.236. O conceito de chunck está em: Hofs-
tadter, 1989, p.286. Ver também: os níveis da mente: Na camada mais baixa, o estabelecimento
74

do mais profundo aspecto do contexto. É uma constante constante (sic). Há depois as suposições
de fundo, que são aspectos fixados de situações (temporários). Podem ser alterados mas são
mais ou menos fixos. São as "constantes", como as regras de um jogo de futebol. Depois vêm
os parâmetros, que são mais variáveis, mas temporariamente se as tem como constantes (no
futebol: o tempo, o time adversário). Por fim, a camada mais alta, a mais trepidante (Hofs-
tadter, 1989, p. 644).

A consciência. Os pesquisadores da inteligência artificial dizem que nós não precisamos


de consciente nem de inconsciente: “Para que serve a consciência, se um tratamento da infor-
mação, que é perfeitamente desprovido dela e é mesmo desprovido de sujeito, pode teorica-
mente realizar todas as tarefas pelas quais os espíritos conscientes supunham existir?” (Hofs-
tadter/Dennett, 1987, p. 22-23). "Nós nunca nos preocupamos realmente em pensar sobre o
que pode causar esses 'defeitos' na nossa mente, a saber, a organização do nosso cérebro. Suge-
rir caminhos para reconciliar o software da mente com o hardware do cérebro é a principal
meta deste livro" (Hofstadter, 1989, p. 302). "O pensamento deve depender de uma representa-
ção da realidade no hardware do cérebro" (idem, p. 337). "No limite, o cérebro é um tipo de objeto
'matemático' (idem, p. 559). Processo mental = processo estomacal: a versão microscópica do teste
Church-Turing diz que "os processos mentais não possuem nenhuma mística maior - mesmo
que possuam maiores níveis de organização - do que, digamos, processos estomacais" (idem, p.
572). A "versão reducionista" fala que todos os processos mentais são derivados de um subs-
trato computacional (idem, p. 572).

Os símbolos. Freud diz que "somos obrigados a ver [os sonhos, que não são parte da vi-
da adulta, nem da infância esquecida pelo sujeito], como parte de uma herança arcaica, que a
criança, influenciada pela vivência da genealogia, traz consigo ao mundo em cada vivência pró-
pria. Encontramos a contrapartida deste material filogenético nas mais antigas lendas da hu-
manidade e nos seus costumes que sobreviveram. O sonho torna-se assim uma fonte não des-
prezível da pré-história humana" (Freud, 1953, p. 21). Após 1918 e a sistematização de Jones
(consolidando o símbolo como true symbol: em que aceita as categorias anteriores de Freud mas
critica o fato de os símbolos terem significado constante e serem independentes das condições
individuais), a teoria dos símbolos sofreu reinterpretações pela semiótica e por Ernst Cassirer.
Mas foi Suzanne Langer que separou as formas discursivas dos símbolos (língua) das formas
apresentativas (mitos, artes, música) (cf. Marcondes Filho, 1989, p.164ss). Para a inteligência
artificial, os símbolos podem ser adormecidos ou acordados (ativados): símbolo ativo - o que foi
detonado - é aquele em que o número de neurônios foi levado ao disparo pelo estímulo exter-
no. (Hofstadter, 1989, p.349). Ver também: "o substrato mecânico da criatividade pode per-
manecer escondido da visão mas ele existe" (idem, p.673).

Não parece, contudo, tão elementar que qualquer processo mental possa ser simulado
por um programa. Em seu delírio de fantasias maquínicas, os engenheiros e pesquisadores da
inteligência artificial parecem recusar noventa por cento da realidade e aceitar apenas o peque-
no universo em que se inserem com suas máquinas.
Para Marc Guillaume, "os que acham que não somos diferentes das máquinas procu-
ram se confortar/.../ Aproximar-se das máquinas é desembaraçar-se do fardo do da alma, do
Dasein. Construir uma inteligência artificial libera um certo tipo de obstinação terapêutica, não
para conservar a vida mas para se desembaraçar da humanidade da mortalidade. Fantasma po-
bre, regressivo, o da máquina atraindo o homem-objeto à sua órbita; mas fantasma que exacer-
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ba já a fascinação de uma alteridade radical, do 'exotismo primordial entre objeto e sujeito'.


(Guillaume, 1989, p.111)
Tampouco parecem as máquinas dar conta de todas as mínimas sutilezas que exige uma
inteligência humana. Fazer cálculos astronômicos em alguns segundos, ter na memória duzen-
tas mil combinações de jogadas de xadrez, poder executar várias operações ao mesmo tempo
são sinônimos de agilidade no trato com informações. O homem jamais poderá rivalizar nesses
campos, como também não pode rivalizar com um automóvel em velocidade, com um avião
na capacidade de voar, com um microscópio na capacidade de ampliar. Mas, a inteligência seria
só isso? Reduzir-se-ia às questões puramente operacionais? Nos irritamos com portas magnéti-
cas que não abrem, com procedimentos do computador que teimam em repetir atos errados,
com sistemas que têm uma inteligência simplesmente imbecil. Mas o raciocínio está viciado na
raiz. Programas não se inventam a si mesmos se não tiverem uma razão externa para isso. Aí,
já não serão mais máquinas. Os homens, ao contrário, mudam, são imprevisíveis, porque o
móvel de suas ações não está em nenhum registro, está, ao contrário, na sua relação com o
mundo e o ambiente, na incodificável indeterminação de seus valores, sempre em mutação. E
para vasculhar esse domínio teremos que entrar no campo dos humores, das preferências sin-
gulares, dos posicionamentos em relação ao mundo, em suma, dessa estranha química entre
vivência difusa, indeterminada, realizada segundo processos subjetivos, pessoais, e o modo de
reação psíquica a isso, por sua vez, vinculado a fatos imprescrutáveis no pré-natal e do pré-
simbólico. As máquinas, infelizmente, não foram paridas e nem viveram traumas de infância.
De onde vão extrair a infra-estrutura psíquica que justifica o agir humano espontâneo?

Excurso 4: O Jogo da Imitação e a Sala Chinesa

A argumentação dos cientistas da inteligência artificial em favor da superioridade das


máquinas baseia-se no conhecido Teste de Turing (O Jogo da Imitação); contra ele foi propos-
ta a demonstração denominada "Sala Chinesa", de John Searle.
O teste de Turing tenta provar que a máquina pode simular o pensamento humano e
mesmo confundir o homem no que diz respeito ao componente "humano" da máquina. Dele
participam três pessoas, um homem (A), uma mulher (B) e um interrogador (C), que pode ser
de qualquer sexo. Este último está numa sala separada dos outros dois. O objetivo do jogo
para C é determinar onde está o homem e onde está a mulher. O objetivo do homem, por seu
lado, é tentar enganar, respondendo como se fosse mulher. Esta deve, por seu turno, ajudar ao
perguntador. O que aconteceria, então, se uma máquina assumisse o papel de A neste jogo?
Será que o interrogador iria errar com a mesma frequência se lá estivesse um homem de fato?
Se sim, é porque a máquina pode muito bem simular um homem, ou seja, agir como se de fato
pensasse.
Muitas objeções foram colocadas ao Jogo da Imitação. Apesar de poder confundir,
como neste jogo, a máquina não tem, na maioria de seus usos, consciência do que está fazen-
do, é inábil, não cria nada. Outros vão mais longe e dizem, por exemplo, que ela jamais teria a
capacidade de discutir questões de matemática teórica, de refletir sobre si mesma, e que sua
"mente" é mecânica e essencialmente morta. Mas há os que defendem a máquina e dizem, co-
mo Hofstadter, que esta sempre será mais rápida e poderosa. “Um dia você pode erguer 100
quilos, outro não. Mas nunca vai haver um dia, seja qual for”, diz ele, “que você poderá pegar
um objeto de 250 toneladas”. Assim seria com o cérebro: apesar de ser vago o limite até onde
cada um pode teorizar em matemática, há sistemas que estão muitíssimo além desta habilidade,
muito mais distantes que o homem jamais poderá alcançar.
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No teste da Sala Chinesa, John Searle tenta fazer a contra-argumentação "empírica" do


teste de Turing. Um participante (A) está fechado numa sala e recebe textos em chinês, língua
que não conhece, nem na forma falada nem escrita. Num segundo momento, recebe mais tex-
tos em chinês e regras de correlação entre o 2°. e o 1°. lotes, escritas em inglês, sua língua.
Dão-lhe, depois, um terceiro lote de símbolos com instruções em inglês, sua língua, o que lhe
permite fazer relações entre os dois primeiros e as regras de como produzir certos símbolos.
Na sequência, o participante recebe continuamente histórias em inglês para as quais deverá
produzir símbolos, conforme as instruções anteriores, e lhe fazem perguntas a respeito. Se-
guindo com destreza e desenvoltura a manipulação de símbolos chineses, as respostas às ques-
tões tornam-se absolutamente indistinguíveis das de um chinês. Pergunta-se: compreende ele
histórias chinesas?
Searle argumenta que se pode seguir princípios formais sem se ter a compreensão do
que está sendo tratado. No caso de um computador, ele daria as respostas mas não teria a inten-
ção, que só vem de um organismo que possui estrutura biológica (físico-química). Também o
estômago é um sistema com entrada, saída e um programa, mas nada compreende.
Para o linguista americano, há um equívoco relativo aos teóricos da inteligência artifical
com respeito ao conceito de tratamento da informação. Sua psicologia, diz ele, considera o ser hu-
mano como um "sistema de tratamento de informação" e a ciência cognitiva supõe que o cére-
bro trate a informação da mesma forma que um computador. Ora, isso é equivocado, pois as
pessoas tratam diferentemente a informação quando refletem, pensam a história, etc., e o
computador age de forma mecânica, apenas manipulando símbolos formais.
Não se pode separar mente de cérebro, nem reduzir um ao outro. A mente, continua
Searle, não é o cérebro. John Searle trabalha com dois planos distintos do humano: a “máqui-
na” (nosso sistema bioquímico, o cérebro, a parte biologicamente intencional, nosso hard) e o
“programa” (nosso sistema lógico, a mente, o lado mecânico, o soft). Fenômenos mentais, as-
sim, dependem de propriedades físico-químicas de nossa máquina e os pesquisadores da inteli-
gência artificial estariam sendo dualistas (cartesianos) vendo a mente como algo separado do
cérebro. Para estes, programas como vencer um teste rodam independente do cérebro (ou seja,
o hard, o bioquímico, o intencional).

Do ponto de vista técnico, o homem não é sequencial, não precisa explicar cada passo
que dá. Se bem que não respondamos a todas as questões que a máquina responde, nossa habi-
lidade, acima de tudo, está - como disse Pascal - no "colocar questões". O computador pode
compor músicas, fazer poesias, mas há coisas que não podem ser ditas, que estão no campo
extralinguístico, como a percepção das sutilezas das cores e dos sons e a associação destes com
fatos vividos.
Tudo leva a crer que a forma como a inteligência artifical encara o cérebro é ingênua.
Além do processamento mecânico de informações, há funções abstratas, complexas, que
transcendem em muito a capacidade das máquinas. E não se trata de algo momentâneo, vincu-
lado a um estágio ainda não suficientemente desenvolvido da técnica, que futuramente poderá
ser atingido. Se trata, isso sim, de procedimentos impossíveis à máquina, pois são capacidades
não programáveis nem passíveis de apreensão pela lógica do computador. É impossível à má-
quina chegar àquilo que se denominaria o "entendimento kantiano", isto é, à função de elabo-
rar conceitos, realizar julgamentos, visto estarem esses associados a valores.
A incapacidade da máquina está também em superar um segundo desafio: o impasse ni-
etzscheano, de que o homem - e só o homem, ao que parece - se afirma impondo-se como von-
tade de poder e como valor e de que o pensamento humano se separa da máquina no plano da
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abstração. Conforme Clément e outros, esta operação do espírito - a abstração - permite dar
uma existência estável e um nome às qualidades das coisas e das pessoas, às relações que as
unem, aos valores que nós lhes atribuímos. Brancura, grandeza, mas também justiça ou liber-
dade seriam propriedades de coisas, cuja identificação estrutura nosso conhecimento do real,
pois fornece os critérios de distinção, de agrupamento, de comparação etc.
Em suma, não há condições lógicas, menos ainda operacionais, de submeter algo ilimi-
tado, imprevisível, incompreensível em toda sua extensão a um sistema redutor. Há uma certa
potência, uma certa força na incompletude, na fraqueza, na imperfeição da nossa mente, naquilo que escapa à
razão, e que a torna, por isso mesmo, indomesticável.
Mas os pesquisadores e teóricos do artificial parecem não querer ouvir nada. Respon-
dem com um evasivo "é preciso dar um tempo" ou com argumentos que encerram qualquer
discussão, como os do tipo "como você pode afirmar que uma máquina não pensa? Você está
dentro dela?"

Detalhamentos

Os cientistas da inteligência artificial se apoiam no teste de Turing. Vejamos as objeções a esta


lógica.

As objeções ao teste de Turing. J.R. Lucas. As precauções do filósofo inglês J. R. Lucas ao


teste de Turing são possivelmente as mais densas de toda a listagem de críticas: "Um ser cons-
ciente pode discutir questões gödelianas de uma forma que a máquina não o faz, pois um ser
consciente pode considerar ambos, tanto a si mesmo e sua performance quanto ao outro, o
que executou a performance./.../[Ou seja], ele pode refletir sobre si mesmo e criticar suas pró-
prias performances e nenhuma parte extra é requerida para fazer isso" (Hofstadter, 1989, p.
389)/.../Estamos tentando produzir um modelo de mente que é mecânica - que é essencial-
mente 'morta' - mas a mente, sendo, de fato, 'viva', pode sempre funcionar melhor do que
qualquer sistema formal, ossificado, morto. Graças ao teorema de Gödel, a mente tem sempre
a palavra final"(p. 472). /.../Mesmo se nós juntarmos a um sistema formal um conjunto infini-
to de axiomas, consistindo na fórmula sucessiva de Gödel, o sistema resultante seria ainda in-
completo e conteria uma fórmula que não poderia ser provada no sistema, embora um ser ra-
cional possa, estando fora do sistema, ver que ela é verdadeira" (p. 473). Sobre o Teorema de
Gödel, consultar Cap. 9)

Argumento da consciência: "Enquanto a máquina não puder escrever um soneto ou com-


por um concerto, por lhe faltarem pensamento e emoção, enquanto lhe faltarem símbolos, não
podemos concordar que a máquina seja igual ao cérebro, isto é, não apenas escrever mas saber
que ela escreve aquilo. Nenhum mecanismo poderia sentir prazer pelo seu sucesso, dor quando
válvulas queimam, aquecer-se com o calor/prazer, sentir-se miserável pelos seus erros, encan-
tado pelo sexo, ficar faminto ou depressivo quando não obtém o que queria" (idem, p. 597-
598).
Argumento das inabilidades: "São inabilidades da máquina: ter iniciativa, fazer erros, usar
as palavras corretamente..."
Objeção de Lady Lovelace: "O Engenho Analítico não tem pretensão de criar coisa alguma.
Ele pode fazer qualquer coisa que lhe mandarmos.
Argumento da comunidade do sistema nervoso: "O sistema nervoso não é certamente uma
máquina discreta estável. Um pequeno erro na informação sobre o tamanho de um impulso
nervoso que afeta um neurônio pode fazer uma grande diferença em relação ao impulso de
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saída. Sendo assim, não podemos esperar ter condições de imitar seu comportamento com um
sistema discreto estável".
Percepção extra-sensorial: se o jogo da imitação fosse jogado por alguém com capacidade
telepática, probabilisticamente sua chance seria maior que as da máquina. (idem, p. 598-9)

A crítica à lógica da inteligência artificial vem de John Searle. A exposição detalhada de John
Searle sobre a Sala Chinesa está em Searle,1980. Searle apresenta também alguns argumentos
dos defensores da inteligência artificial, que vão do imaginável ao totalmente delirante (Searle,
1980). A melhor parte da tese de Searle está condensada neste argumento: "A inteligência arti-
fical não tem nada a nos ensinar sobre a máquina [a máquina do corpo humano, CMF]... Ela
tem a ver com programas e os programas não são máquinas. Seja qual for a intencionalidade
[dos cérebros], trata-se de um fenômeno biológico, e há tantas chances que ela seja causalmen-
te dependente da bioquímica específica às suas origens, como a lactação, a fotossíntese ou
qualquer outro fenômeno biológico. Ninguém irá supor que pudéssemos produzir leite ou
açúcar fazendo uma simulação por computador das sequências formais de lactação e fotossín-
tese, ou, desde que a mente está em jogo, muita gente está prestes a acreditar em tal milagre,
por força do dualismo profundamente ancorado: supõem que a mente seja uma questão de
processo formal ou seja independente de causas materiais totalmente específicas, enquanto o
leite e o açúcar não o são. (op. cit.) (Hofstadter/Dennett, 1987, p.372)

Outras objeções correntes: 1) A especifidade humana: "Apoiando-se apenas na identidade de


respostas da máquina e do sujeito humano nesse processo, Turing conclui sobre a indiscerna-
bilidade do homem e da máquina, pois, por um deslocamento totalmente ilegítimo, afirma que
as máquinas podem pensar/.../Estas pesquisas... manifestam uma ligação impressionante a
uma representação simples e ingênua da inteligência e do cérebro"(Marc Guillaume em:
Baudrillard/Guillaume, 1994, p.117). Ver tambem Dreyfus: "Para pensar, é preciso um corpo"
(Dreyfus, citado por Bougnoux, 1991, p.103).

2. O entendimento kantiano referido no texto: Ver, no primeiro capítulo o conceiuto de


“síntese a priori kantiano”. Ainda sobre o entendimento kanitano, ouçamos Guillaume: "Os
computadores não devem somente aprender mas aprender a aprender, pensar seu próprio pen-
samento/.../ pensar sua entidade física - seu "corpo" - como distinto do resto do mundo e
muitas outras dimensões ainda/.../Adquirir intencionalidade, em particular a intencionalidade
de jamais se contentar em ser o que eles são". (Guillaume, 1989, p.120)

3. Homem: o buraco negro irredutível. "Quando se perguntou a Newton como ele havia che-
gado à lei da gravitação universal, ele respondeu: ‘Pensando nisso sempre’. Esse 'nisso' designa
o vazio lógico, ele não pode ter lugar num programa de computador." (Guillaume, 1989,
p.126). "O Outro é assim sempre parcialmente irredutível a si mesmo, eternamente incompre-
ensível (Segalen) e, de uma só vez, radicalmente diferente e semelhante no seu estatuto. O Ou-
tro é a força desta incompreensão que, em vez de bloquear, relança indefinidamente o pensa-
mento e aniquila assim a esperança de um saber absoluto. É uma inteligência sem limites, pre-
cisamente porque deixa sempre um resto (de incompreensão)" (idem p. 128).
H. Dreyfus: "A inteligência artificial jamais atingirá o saber-fazer de um especialista
humano". (Auroux/Weil, p.239). Ellul: "O funcionamento do cérebro humano é essencialmen-
te de tipo não formal/...há sempre no pensamento humano uma parte de imprevisibilidade e
de surpreendente que são inacessíveis ao computador" (Ellul, 1977, p.110).
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4. Homem, ser não sequencial. "A partir de um certo nível, o homem não atua mais se-
quencialmente mas por um 'tratamento reunitarizado': grandes mestres teriam uma percepção
holista ou intuitiva do tabuleiro" (Bougnoux, 1991, p.100). Hofstadter reconhece que o que o
computador faz é pseudomúsica, pseudoconto-de-fadas, pseudoconhecimento (idem). Ver
também: "A expressão material a mais crua ou mais 'cruel', a regressão corporal profunda mer-
gulhando nos arcaismos da carne, a dança expressionista, os gïclures e a arte bruta, em suma,
todas as postulações indiciais, exprimem uma reação exasperada ao mundo do cálculo".
(Bougnoux, 1991, p.105)

5. Os humanos: a força está na fraqueza. "É justamente aí, além da potência mental do cál-
culo, que o homem pode tentar ser definitivamente superior - nesta relação de alteridade que
se funda na supressão de seu próprio pensamento, que Deep Blue jamais conhecerá, e que é o
pressuposto sutil do jogo. É lá que o homem pode se impor em termos de ilusão, de decepção,
de desafio, de sedução, de sacrifício. É nesta estratégia de fraqueza, de um jogo aquém de suas
possibilidades, que o computador pior compreende, pois está condenado a jogar o máximo de
suas possibilidades (Baudrillard, 1997a, p.183) /.../ O homem dispõe... de um pensamento
verdadeiramente exponencial, criador de constelações, inéditas, imprevisíveis, de um tipo de
estratégia caótica, que mesmo um computador mil vezes mais forte que um Deep Blue não
saberá afrontar" (idem, p. 185).

A inteligência artificial está sustentada em bases frágeis: no já exaustivamente criticado


reflexo condicionado [Hartree: "Isso não implica que não seja possível construir máquinas
eletrônicas que 'pensem por si mesmas' ou que, em termos biológicos, se possa incluir nelas
um reflexo condicionado que lhe serviria de base ao 'aprendizado'." Hofstadter/Dennett, 1987,
p.71]. Efetivamente não é por reflexo condicionado que se chega ao aprendizado, mas pela
interação. À inteligência artificial falta, assim, o "princípio de imprevisão", de produzir a partir
do nada, base de criação estética, entre outras.

Hofstadter acha que tudo é questão de tempo. Ouçamos o relato que põe na boca de
sua personagem Camille, "estudante de filosofia", em resposta à afirmação de que “há coisas
que o computador não pode fazer”: “Roma não foi construída num só dia” (Hofs-
tadter/Dennett, 1987, p.77). Outras frases sintomáticas do autor: “Como você sabe que quan-
do eu lhe falo se passa intimamente a mesma coisa de similar àquilo que você chama 'pensar' ”
(p.87). "As emoções são um subproduto automático da faculdade de pensar"(p.89). "Como
você sabe se eu sei ou não o que sentem os peixes?"(p.91). "...quando você reúne suficientes
cálculos frios em uma vasta organização coordenada, você obtém qualquer coisa que tem as
propriedades num outro nível/.../ como um sistema de tendências, desejos, convicções, etc."
(p. 93).
Sobre a origem dos desejos, o autor descarta pesquisas, teorias e hipóteses consolidadas
da ciência desde Freud, ao afirmar que "a não ser que você seja um 'soulista' [que acredita em
almas], você provavelmente dirá que ele [o desejo] vem do seu cérebro - uma parte do hardwa-
re que você não determina nem escolhe/.../ Você não é um objeto 'autoprogramado' (seja isso
o que for), mas você ainda tem o sentido dos desejos e ele vem do substrato físico da mente"
(p.686). É como dizer que a luz elétrica vem da tomada. Mas ele ainda sugere mais: em relação
à “emocionalidade das máquinas”, diz, por exemplo, com seriedade, que "desgraçadamente
muitos trabalhadores em inteligência artificial neste momento estão desinteressados, por diver-
sas razões, em considerar seriamente este tipo de questão. Mas, de certa forma, eles estão cer-
tos: é um pouco prematuro pensar em computadores chorando" (Hofstadter, 1989, p.675-6).
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Difícil saber onde termina a investigação preocupada, interessada, rigorosa e onde co-
meça o lado humorístico do texto. Pessoas que ouviram as afirmações do filósofo americano
não puderam deixar de formular a pargunta: "você acredita mesmo que há algo sério nisso
tudo? (idem, p.714)

Excurso 4: Homens e máquinas

O debate sobre a técnica, a inteligência artificial, as máquinas, conduz inevitavelmente à


questão metafísica do fascínio mas também da angústia dos humanos diante de seus produtos
mais intrigantes. Anders fala de um desnível prometeico, através do qual o homem toma consciên-
cia de sua inegável e insuperável inferioridade diante do aparato técnico: jamais poderemos
estar suficientemente atualizados em relação às máquinas, somos de uma “vergonhosa” in-
completude, morremos, apodrecemos facilmente, não temos chance da imortalidade.
A máquina se renova, seus problemas resumem-se em "trocar peças", elas não se can-
sam e estão o tempo todo inevitavelmente em forma. Mas máquinas também morrem, afirma
Kamper. Os cemitérios de automóveis e os lixões de produtos de computação estão aí para
comprová-lo. Elas também têm vida, também submetem-se ao ciclo vital e são substituídas. Só
não têm a melancolia de uma existência finita e que tende inexoravelmente à morte. Por isso
talvez não chorem, não façam poesia, não se suicidem. Elas não têm consciência da morte, daí
sua imperturbável tranquilidade.

Mas apesar do desnível prometeico ou talvez mesmo por causa dele, muitos humanos
são fissurados na ideia de serem ultrapassados. Veja-se o Deep Blue. Outros, contrariamente,
reagem com energia à ideia de serem comparados à máquina. Mas afinal é bom ou mau ser
substituído pela máquina?
Anders relata que no começo dos anos 50 a humanidade foi salva, não por um repre-
sentante da espécie humana - que, como o presidente americano Harry Truman, apostava na
destruição e na calamidade - mas por uma máquina. Ela foi mais humana - se bem que não por
razões de consciência - que o homem. Essa fantasia, a de as máquinas de repente se mostrarem
mais sensíveis que os homens e sua associação com desastres iminentes aparece reproduzida na
personagem Dominique, do diálogo de Hofstadter, quando esta pronuncia o delírio inocente
mas muito difundido de que "projéteis retornarão pois não quererão se suicidar". Voltarão
como anjos, talvez.
As máquinas acabam funcionando, em contextos semelhantes, como veículos de espe-
rança, portadores não deturpados nem corrompidos de uma moralidade já desaparecida na
Terra. Aceita-se tacitamente a ideia de que os homens não conseguem se remendar mas isso
também já não será mais preciso. Está aí mais um reforço à ideia de divinização da técnica, já
mencionada na discussão sobre a metafísica. Especialmente se há a crença (séria) de que um
dia todos esses equipamentos poderão sentir emoções, se enternecer, agir com o coração. De
certa forma, a tecnologia paga a fatura da humanidade exposta por Dostoievski em Os Irmãos
Karamasov: o homem é mais fraco e mais vil do que pensava Jesus. Seu Frankenstein será o
novo arcanjo Gabriel.

Detalhamentos

O homem se sente inferior em relação às máquinas. O "desnível prometeico". "Nós chamamos


' desnível prometeico' a assincronia diariamente crescente do ser humano com o mundo de seus produ-
tos; ao fato de a distância tornar-se cada vez maior, dia após dia, chamamos de "desnível pro-
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meteico" (Anders, 1956, p.16). Mas há também a vergonha prometeica: "A vergonha diante da
‘encabulante’ alta qualidade das coisas autoproduzidas" (idem, p. 23). Ouçamos a seguinte his-
tória por contada por Günther Anders: "Decidi-me, junto com T., fazer uma visita a uma ex-
posição técnica aqui inaugurada. T. comportou-se da forma mais estranha possível, de tal ma-
neira insólita, que passei antes a observar anter a ele do que propriamente aos equipamentos.
Logo que um dos mais sofisticados deles começou a funcionar, T. fechou os olhos e silenciou.
Escondeu as mãos por trás das costas como se estivesse com vergonha de ter trazido este seu
aparelho pesado, deselegante e obsoleto para a mais fina sociedade dos aparelhos que funcio-
nam com tal precisão e refinamento/.../Ter que ficar em pé com sua estupidez carnal, sua im-
precisão de criatura diante dos olhos de tais aparelhos perfeitos lhe era totalmente insuportá-
vel, ele se envergonhava de fato" (p. 23). Sobre a imortalidade: “...os produtos em série ganharam
através de sua substitubilidade a 'imortalidade' e se o ser humano é excluído da existência em
série e da substitubilidade, então está fora também da imortalidade” (idem, p. 55-56). Sobre a
técnica como vontade de se desvencilhar do fardo do Dasein, rever nota de Guillaume em Detalhamentos.
Virtualidade como sede de desaparecer e o sonho humano "que nos ultrapassem", estão em
Baudrillard, 1997, pp. 203 e 182)

E as máquinas funcionam como "correção da natureza humana". Sobre a experiência dos anos
50 com o general McArthur, relata Anders: No início do conflito da Coréia, o gal. McArthur
poderia ter detonado a terceira guerra mundial, mas a decisão a respeito lhe foi tirada das mãos.
Não para que outros a tomassem mas para transferi-la a um aparelho, um "cérebro elétrico".
Este aparelho, que funcionou como uma espécie de "máquina-oráculo", foi, então, alimentado
com dados relativos à economia americana e à do inimigo, com conceitos como vanta-
gem/prejuízo, lucro/não lucro, o que significava que destruir ou não vidas humanas, devastar
ou não territórios se submeteria a critérios de lucros e perdas. A resposta que o cérebro emitiu
foi mais humana que as pré-decisões do Gal. McArthur: "Negócio com perdas". Essa foi a
felicidade da humanidade, segundo Anders, "mas o processo como tal representou, ao mesmo
tempo, a derrota jamais sofrida pela humanidade, pois em tempo algum esta se humilhou tanto
ao confiar a uma coisa a sentença sobre sua história, talvez sobre seu ser ou não ser." (Anders,
1956, p.62)
O diálogo de Camille, Dominique e Claude está em Hofstadter/Dennett, 1987, p.77ss.:
"O teste de Turing: conversa num café". Dominique: "A gente vai acabar por ter mísseis que
decidirão de repente se tornar pacifistas, farão o retorno e aterrisarão sem explodir. Poder-se-á,
‘talvez, ter mesmo 'projéteis inteligentes que farão o retorno em pleno vôo porque não terão
vontade de se suicidar" (p.99).
Em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, Jesus retorna à Terra em Sevilha no século 16,
mas é preso pelo cardeal Grande Inquisidor. Na prisão, este discute com Jesus, dizendo que
este traiu a humanidade, pois lhe teria retirado o único meio de garantir a felicidade aos ho-
mens. Diz o Inquisidor que “Não há preocupação mais aguda para o homem do que encon-
trar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom de liberdade que o infeliz traz consi-
go ao nascer”/.../“O homem prefere a paz e até mesmo a morte à liberdade de discernir entre
o bem e o mal”/.../ “Aumentaste a liberdade humana em vez de confiscá-la a assim impuseste
para sempre ao ser mortal os pavores da liberdade”/.../ “Juro-o, o homem é mais fraco e mais
vil do que pensavas”/.../ “Dar-lhe-emos uma felicidade mansa e humilde, uma felicidade adap-
tada a criaturas fracas como ele”.

A escrita diante das tecnologias


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As tecnologias reinterpretam o mundo a partir dos ícones de comunicação, mas são,


ainda, tecnologias da escrita. Escrita reduzida, racionalizada, escrita fragmentária e telegráfica.
Escrita não escritural. Platão achava equivocadamente que a escrita destruiria o saber vindo direto
da experiência humana: os homens teriam aparência de instruídos mas não o seriam. Mas a
oralidade, por outro lado, não teria feito sozinha suas ideias sobreviverem por mais de dois
milênios. A escrita, por isso, é necessária e importante. Ela não é o entravamento da experiên-
cia humana. O capitalismo, dizem Deleuze/Guattari, não quer a escrita, "ele é profundamente
analfabeto".
Mas tratava-se da escrita que não fazia parte dos media. Rigorosamente, por ser a única
forma de transmissão de informações até o século 19, ela era o único medium. O conjunto deles
- os media - viriam, se aceitarmos a hipótese de Kittler, com as técnicas de armazenamento,
transmissão e tratamento da informação, a saber, com o gramofone, o filme e o fonógrafo, que
decretam o fim na soberania e do monopólio da escrita.
A comunicação de sons e imagens vai mudar essencialmente a comunicação, produzin-
do em massa as imagens e decretando o fim do Projeto Moderno. As novas tecnologias de
comunicação irão suprimir os traços humanos do processo da escrita. Diante das transformações
que estão ocorrendo no terreno das comunicações, que, não por acaso, tornou-se o espaço
decisivo do social, reorganizador e estruturador dos demais espaços, faz sentido a pergunta de
Kamper, "há algum mundo além dos media?" A dúvida pode ser expandida para o próprio
complexo eletrônico: será o mundo eletrônico o único mundo possível? Recoloca-se, assim,
sob novas bases, a pergunta de Victor Hugo em Notre Dame de Paris: Estes vão matar aquela? A
escrita, como memória e testemunho, havia se apoderado do lugar e da relevância social da
arquitetura. E agora, estaria ela condenada?

A sociedade virtual do ciberespaço

Ciberespaço é o espaço criado na era tecnológica. Espaço novo, desconhecido nos


2500 anos anteriores de cultura ocidental, inexistente materialmente, para onde ninguém pode
se dirigir caminhando, de carro ou de avião. O único meio de acesso é a tela do computador.
Isso leva a supor que a tela é, ao mesmo tempo, uma porta, um buraco, que, como um túnel,
nos faz chegar a um novo mundo. Como um holograma, é plano mas tem múltiplas dimen-
sões. Curiosamente é um espaço paradoxal, pois nele se entra, permanecendo-se no mesmo
espaço físico anterior. Fica-se assim, de uma só vez, em dois mundos paralelos em que comu-
tamos como se fossem duas vidas separadas.
É um espaço onde a comunicação parece ser expressiva (participante, envolvente, 'cor-
po presente') mas é, em verdade, puramente representativa (mera construção). Esta é a perple-
xidade de Sfez. Expressão e representação se misturando, se interpenetrando, se descaracteri-
zando: universo da confusão, segundo ele.
O paradigma platônico da caverna volta mais uma vez a ser utilizado, só que agora,
inversamente, os homens estão presos na encenação sem saberem que se trata de uma prisão.
A abolição da separação cena/espectador significa o fim da ilusão estética; em verdade, o fim
de toda a forma estética até hoje conhecida.
Mas o acoplamento simultâneo de dois mundos leva, necessariamente, à degradação de
um deles, indubitavelmente, do mundo antigo, do mundo-base, do mundo-referência para to-
das as construções no mundo dos espaços virtuais: entramos na civilização do esquecimento.

Comutar com o mundo virtual significa transferirmo-nos "fisicamente" para outro es-
paço, um espaço não concreto. No passado, isso era feito através das formas da fantasia, nos
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passeios do imaginário. Mas eram sempre caminhadas individuais, solitárias, não compartilha-
das. O inovador neste novo território é que ele não é imaginário; é real mas não é concreto, é
præter real, ao lado do real, como diz de Quéau. É múltiplo, social, não é produto de minha
fantasia isoladamente. Ele existe.
A virtualização - como as máquinas da inteligência artificial - é um tipo de limpeza,
depuramento, salvação da espécie. Já que não conseguimos resolver nossos problemas terre-
nos, já que a revolução não vingou, já que as esperanças de transformação da humanidade es-
tão fora de moda, o homem ainda tem uma chance: pode se depurar nas tecnologias. É o pen-
samento técnico que expulsou do âmbito do possível todas as outras formas de pensar, todos
os outros modos de se revelarem as coisas, que não seja o técnico. O virtual é a nossa reden-
ção.
Ele decreta a inutilidade da matéria e, por extensão, do corpo, dos espaços concretos,
de toda a geografia. Para que precisamos de um corpo com pernas, tórax, abdômem, sexo, se o
ciberespaço nos exige apenas dois olhos, dois dedos para digitar e um cérebro para pensar?
Corpo, "presença fantasmagórica" (Heiner Muller), portadora de memória: para que precisa
disso a civilização virtual, que inaugura o novo século?
Os novos espaços, tanto os concretos espaços siderais, objetos da nova Marcha para o
Oeste, como as comunidades "realmente inexistentes" das cidades eletrônicas virtuais releem o
mundo e dão vasão às fantasias numa era em que o planeta vai ficando cada vez mais à mercê
de si mesmo, cada vez mais espaço de dejetos, de todos possíveis, desde o lixo atômico, os
alimentos envenenados, o ar irrespirável, os solos contaminados, até as próprias massas huma-
nas desalojadas, abandonadas, sumariamente liquidadas em guerras limpas. A própria revolta, o
protesto, a indignação, estão estruturalmente dependentes das tecnologias em tempo real.

Detalhamentos

Para Platão, a escritura seria uma forma de destruição da sabedoria, mas ele estava equivocado. Em
Fedra, ele conta a história de Teuth, que descobre os caracteres da escrita e vem comunicá-la ao
rei Tamos. Diz o rei: "Neste momento, veja que você, nesta sua qualidade de pai dos caracteres
da escrita, você, por complacência a eles, atribuiu-lhes o oposto de seus verdadeiros efeitos!
Pois este conhecimento irá, como resultado, junto àqueles que o irão adquirir, tornar as almas
esquecedoras, porque deixarão de exercer sua memória: colocando sua confiança na escrita elas
rememorarão as coisas não de dentro, graças a si mesmas, mas de fora, graças às impressões
estranhas ". (Platão, 1954, p.88)

A técnica de impressão surgiu há 500 anos e, com ela, os livros, os jornais, a difusão escrita. Mas os
media propriamente ditos só aparecem no fim do século 19. Kittler fala da escrita como único medium
em Kittler, 1995, p. 519ss. Diz que "o desenvolvimento dos media gramofone e filme necessita-
ram da psicofísica, pois, somente a separação experimental da percepção tornou possível a
síntese analógica ou simulação/.../ Com os media gramofone e filme rompeu-se o monopólio
da escrita."
A crise da escrita, ainda conforme Kittler, teria produzido um James Joyce na literatura.
"A literatura, como 'simulacro da loucura', representou para Kittler não uma mudança revolu-
cionária do escritor contra as normas burguesas, mas a lógica do sistema da escrita". (Klo-
ock/Spahr, 1997, p. 183)

Eles mudam o "Projeto Moderno". "Em verdade, ler e escrever equivalem à perseguição de
uma obsessão, que sobrevive, apesar do muitas vezes declarado fim da escrita e da leitura. Mas
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isso - creio eu - tem a ver com a vergonha de a maior empresa da dominação mundial, o Proje-
to da Modernidade, ter miseravelmente fracassado. Eu não faço parte daqueles que querem se
furtar através do distanciamento linguístico. Eu sei que a derrota traz o duplo nome 'Aus-
chwitz' e 'Hiroshima', e eu sei, ao mesmo tempo, que nada do que se passou foi entendido. Eu
sei que tudo vai voltar, todas as eliminações em massa, todas as guerras, toda a desumanidade
em nome do homem, se os homens não puderem entender o que fizeram". (Kamper, 1995, p.
35)

E apagam os traços humanos... Sobre a eliminação eletrônica das pistas humanas da escrita,
ver Rötzer, que se refere ao conceito de rewriting, de Jean-Franois Lyotard. "Rewriting é, no jar-
gão jornalístico, uma palavra corrente e refere-se a uma antiga profissão. Trata-se exatamente
de eliminar as pistas que as associações inesperadas, 'ricas em fantasia', deixaram no texto".
(Rötzer, 1991, p.21). Comparar com Derrida, quando fala das marcas de infância, que desapa-
recem da mente consciente mas deixam traços nos estratos mais profundos. (Hayles, 1990, p.
179)

Os media tornaram-se o único mundo disponível. Em "Imanência dos media e corporeidade


transcendental", Dietmar Kamper se pergunta se há algo além dos media ou se eles, em verda-
de, abrangem tudo (Kamper, 1998, I). É a atualização de uma questão sempre recorrente, que
se tem visto desde a mudança da televisão, no sentido da “neotevê”, de Umberto Eco, que
veremos no capítulo V. Van den Boom desdobra esse conceito através de sua teoria do estú-
dio: "O mundo, ou falando de forma mais precisa do ponto de vista fenomenológico, o hori-
zonde de mundo aparece a nós, hoje, como ambiente de um único grande estúdio./.../ O es-
túdio ou o sistema de representação, o plano de representação da imagem social do mundo, é,
consequentemente, também, por seu turno, uma parte do mundo" (van den Boom, 1991,
p.186).

Mas será que eles poderão "matar" a escrita? É notório que a história dos media seja também
uma história canibalesca: uns devoram os outros, e, quando não o fazem, alteram sua função
na direção de sua própria lógica ou impõem a eles uma virada radical, que torna irreconhecíveis
as antigas formas. A fotografia decretou a morte da pintura representativa, os meios autovisu-
ais relegaram aos museus as formas clássicas da literatura, a televisão fez o cinema hollywoodi-
ano tornar-se um escritório de produção de séries televisivas. Tudo muda, se mutila ou desapa-
rece.
Victor Hugo, em “Este matará aquele”, capítulo de O corcunda de Notre Dame, diz que a
impressão (o livro) mataria a arquitetura (o "livro de pedra"); a arquitetura, que havia sido até o
século 15 a "grande escrita do gênero humano", o principal registro da humanidade, não so-
breviveria. "Não se engane, a arquitetura morreu, morreu sem volta, morreu pelo livro impres-
so" (Hugo, 1967, p.143). E, se não morreu de fato, deixou de ser o "livro da humanidade".
Este é um fenômeno que parece natural e coerente com o desenvolvimento das formas
de comunicação. O papirus não teria sentido hoje em dia e seria puro saudosismo mantê-lo em
uso. As sociedades engendram a cada vez novas formas de comunicação, de acordo com o
desenvolvimento tecnológico. Mas o argumento mais ouvido é o da convivência pacífica entre
novos e velhos meios, como se o aparecimento e a posterior hegemonia de um novo meio em
cada época não troussesse consequências, no mais das vezes, arrasadoras aos demais.

E qual é a nossa relação diante do avanço das tecnologias? A questão parece ser mal-colocada.
O lamento não cabe quando se trata de uma tecnologia que se autoimpõe sem permitir resis-
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tência. Como disse Hans Jonas, ela tem lógica própria, não conseguimos frear essa fuga para a
frente. Mas podemos - e assim em geral o fazemos - subverter sua ordem e sua lógica, readap-
tando-a a outras finalidades. O que não tem nada a ver com a - atrás comentada - "neutralidade
da técnica". Efetivamente, ninguém sai ileso da inovação tecnológica. Ela altera a percepção, os
sentidos, nosso posicionamento no mundo (espaço e tempo), ela realmente nos transforma em
cada nova revolução tecnológica. É por isso que sua lógica está além dos aparelhos, está em
algo não técnico, assim como a lógica inversa, a de sua inversão de sentido.
Vivemos constantemente a substituição tecnológica e esta aparece, à primeira vista,
após o entusiasmo inicial, sempre como algo desvantajoso. Temos efetivamente perdas (ou -
talvez melhor formulado - acostumamo-nos, atrelamo-nos firmemente a coisas, que, em sua
natureza, remetem a uma certa noção de durabilidade, de estabilidade, e abdicar delas parece
ser um pouco "perda de solo", de ancoragem, de laços) mas isso é normal. O problema é o
fato de ela constituir uma imagem de mundo, de definir como as coisas tem de aparecer, de
uniformizar o pensamento e não viabilizar outro modo de pensar, senão o seu, da técnica. As
ancoragens, os laços sempre se reconstróem outra vez, mesmo com as novas técnicas, o que
remete novamente à lógica apontada acima: laços são materializações de vivências e estas con-
tinuam. Mesmo com as tecnologias que se criam a cada vez. O Diabo não está nas máquinas,
se bem que elas o ajudem bem, está na lógica engendrada a cada vez pela inovação técnica.

O ciberspaço: em dois mundos ao mesmo tempo. Na sociedade virtual, sugere Lucien Sfez, a
técnica ocupa o lugar da comunicação humana, introduzindo um novo modelo comunicacio-
nal. Trata-se agora de uma forma de comunicação "numa sociedade que não sabe mais se co-
municar consigo mesma" e em que a coesão é contestada, os valores se desagregam e os sím-
bolos mais usados não servem mais para unificar. (Sfez, 1988, p.16). Sociedade tautista, em que
a informação é tautológica - girando sobre si mesma, nada dizendo - e autocentrada, como no
autismo.
Considere-se o "Mito da Caverna", de Platão. Lá há prisioneiros acorrentados, cuja
única noção do mundo de fora é extraída das sombras do exterior que o sol projeta nas pare-
des da caverna. O mundo sensível está para um mundo real da mesma forma que as imagens
estão para a realidade. Rötzer relê esse paradigma referindo-se ao ciberespaço, em que "os ho-
mens estão presos numa encenação que eles consideram real, sem perceber que se trata de uma
prisão" (Rötzer,1993, p.38). Novamente, a figura de Sfez: nem representação, nem expressão.
As novas tecnologias nos levam ao mundo da confusão.
O desaparecimento da fronteira entre representação e expressão embaralha os territó-
rios. Baudrillard acredita que a separação cena/espectador é o mesmo que o fim da ilusão esté-
tica: "Quando todos tornam-se atores, já não há mais ação. /.../ Num certo nível de maquina-
ção, de imersão na maquinaria virtual, desaparece a distinção homem/máquina: a máquina fica
dos dois lados da interface." (Baudrillard, 1997a, p. 200)
No ciberespaço, quando pensamos que estamos agindo, tudo não passa de uma gros-
seira representação; sensores espalhados pelo corpo não são um toque sensual nem a relação
sexual, são uma simulação virtual; fazer viagens virtuais em cabines fechadas, com simulação
de choques e sons, é pura mentalização. Pode-se argumentar que as vivências reais, o toque
físico dos corpos na relação sexual, também se realizam através de sinais nervosos em termi-
nais situados em nossa pele, que tudo também é puramente mentalização. Mas a marturbação
não é menos gratificante por ser mentalizada, mas por ser solitária. Esta é a diferença.
Isso remete fatalmente à discussão do solipsismo, ou seja, à questão se a comunicação
necessita efetivamente do outro, se a existência deste é reconhecida ou se esse outro pode ser
um outro simplesmente imaginado, esvaziado de determinação (como as Marilyns de Andy
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Warhol). O idealismo subjetivo, declarando que não há outra realidade senão a do próprio
sujeito, encontra respaldo social tanto na impessoalidade dos grandes centros, no isolamento
das habitações, na ideologia do consumo, quando nas tecnologias informáticas. Em termos de
manifestação externa, são comportamentos, na convivência como na solidão, que se confun-
dem com a patologia esquizofrênica.
A rejeição à exterioridade tem, além disso, outra dimensão. O exterior é produtor de ru-
ídos, isto é, informações novas, mudança, transformação. Subjetividade e intersubjetividade
formam certamente um jogo de trocas e de aprendizado, que tem a ver com o agir social e com
a participação no mundo, além dos limites de sua própria pele. O solipsismo paralisa, pois ope-
ra como um sistema fechado, sem trocas com o exterior, um sistema portanto entrópico (ver
próximo capítulo), cuja energia interna se consome em si mesma e tende à desintegração.

Uma realidade que se dissolve em sofwares. No entender de van den Bloom, o idealismo co-
mo posição filosófica não foi refutado pelo materialismo, como queria Marx, mas pela técnica;
ela transformou a posição kantiana em práxis sensórea objetal, agora sem nenhuma ideologia
enxertada. No lugar do sujeito da imaginação entrou o projeto da representação. A aparência
não é mais produzida como "superestrutura", mas como subestrutura técnica, produzida não pe-
los proprietários dos meios de produção, mas por estes mesmos. "O medo da aparência, com-
plementa, surge quando as pessoas veem que diante de seus olhos cada vez mais componentes
da realidade dissolvem-se em softwares" (van den Boom, 1991, p.184)
A mediatização, a virtualização, a telematização são às vezes vistas como "limpezas do
mundo real" (Kamper, 1994). O corpo deve volatizar-se. Materialidade, corpo, geografia são
categorias de baixo investimento na era tecnológica. Nietzsche, antecipando-se à era do virtual,
dizia que "o homem individualmente passa hoje por muito mais desdobramentos internos e
externos, mais do que ele ousaria estabelecer em toda sua vida ou de uma única vez. Um ho-
mem bem moderno, que deseja, por exemplo, construir uma casa, tem nesse fato uma sensa-
ção que estaria se emparedando ainda vivo num mausoléo" (Nietzsche, 1878, p. 464).
O declínio da materialidade do corpo ou a “abstração do corpo” é cabeça de Janus: ela é
ambígua, olha para frente ao mesmo tempo que olha para trás; é Deus que descobre no passa-
do o futuro e que mesmo nos momentos infelizes da história encontra uma pista de algo feliz
(Kamper, 1991, p.93). "Trata-se de uma cabeça, pois há muito tempo tem a ver com processos
imateriais, ou, mais exatamente, com o 'tornar-se imaterial' dos processos. O paradigma da
civilização: a abstração do corpo expande-se inteiramente no campo dos novos media. A com-
plexidade aqui atingida torna decididamente difícil saber se a tão citada autorreferência é uma
conquista ou uma fatalidade" (idem, p.93)
A "limpeza do mundo real", verdadeiro trabalho de depuração dos problemas cotidia-
nos e deslocamento mental para universos puros, limpos e desinfetados do ciberespaço, con-
tudo, não parece ser de todo confiável: "[Os media] trabalham com uma 'segunda natureza' do
homem, que faz esquecer a primeira, com todas as suas necessidades, mas, ela também, traz
novas calamidades" (idem, p. 96).

Trata-se da nova e mais uma vez intrigante Marcha para o Oeste. A sociedade do futuro parece
que será determinada pelas firmas de computação, pela biotecnologia, por locais de produção
infoestruturados. Não haverá muito mais espaço para outras coisas, que tenderão a desaparecer
no buraco negro do social. É assim que Florian Rötzer imagina o futuro próximo. Espécie de
cenário noir semelhante ao de Blade Runner, produto da degradação de vida das cidades reais
(com zonas de apartheid, bunkers high tech, zonas circunscritas). Assim é o cenário de Snow
Crash, de Neal Stephenson, que fala das cidades utópicas, cidades duais, em que sobrevivem as
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mesmas diferenças sociais das cidades reais. As pessoas transportam ao ciberespaço suas políti-
cas de segregação e isolamento.
Rötzer comenta o livro e outros projetos e acredita que a conquista do ciberespaço ou
da telepólis tem a ver com a fantasia americana de conquista de novas fronteiras. A mesma
ideologia do sonho americano (se você tiver sucesso estará acima dos outros), em sociedades vir-
tuais. (Rötzer,1977, p. 50-98)
Assim são também os fundamentos para a construção da Biosfera II e dos projetos da
NASA que ele descreve: povoamento do espaço sideral, quando a Terra não puder mais ser
habitada (guerras, poluição, devastação geral), quando se precisar emigrar, quando não se su-
portar mais a convivência com vizinhos.
Deslocamentos hoje tecnicamente possíveis, viagens para outras partes do universo,
construção de ilhas e estações flutuantes, todos sob um único e mesma princípio, seguramente
não o mais correto, de em lugar de recuperar, corrigir, equilibrar os espaços de vida, de traba-
lho e de lazer, abandonar o que foi destruído, manter os privilégios, inocentar a pilhagem. O
devaneio parece continuar indefinidamente.
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5. Teorias da comunicação
Escola de Frankfurt: a primeira teoria da comunicação

O problema das teorias de comunicação é se ocuparem com um objeto excessivamente


amplo: tudo é simplesmente comunicação. Por isso, os teóricos sempre resvalaram para consi-
derações gerais, que se aproximavam da sociologia, da psicologia, da filosofia. Talvez mesmo a
comunicação jamais possa ser vista como algo que possa ser separado como uma célula, a que-
da de um corpo no espaço, a introdução de uma inovação numa cultura tribal ou a criação de
um novo produto para o público x.
A comunicação parece tender, ao contrário, para o campo dos fenômenos inapreensí-
veis, os buracos negros da teoria, em que uma campanha política, um novo gênero de novela
de televisão, uma revista - apesar da utilização de fórmulas conhecidas, de exemplos equivalen-
tes bem-sucedidos, de padrões de aceitação comprovados - não dão certo, não "decolam", e
ninguém saiba explicar porquê. Menos ainda as pessoas conseguem indicar os motivos pelos
quais ocorrem sucessos inesperados de certos produtos (um novo ritmo musical, uma nova
tendência na moda, uma nova filosofia).
A comunicação é a única ciência que tem no seu interior e de forma estruturante a pre-
sença expressiva do estranho, do inexplicável. Talvez por isso ela seja uma ciência tão « mo-
derna », tão ligada aos mais recentes e inovadores modos de pensar. É por isso que ela necessi-
ta de um modo todo próprio de trabalhar cientificamente seus objetos. Ela não desvela o mis-
terioso, ela lhe atribui o status de respeitabilidade intelectual ao incluí-lo no corpo de seu saber.
Neste sentido, as descobertas das novas tendências científicas, a incerteza, o caos, a incomple-
tude, o fractal confirmam os pressupostos da comunicação e a legitimam como ciência pionei-
ra da nova ordem. Seus fenômenos e, por deviração, sua prática científica, são a causa e não a
consequência de toda essa revolução do pensamento no último século.

As teorias da comunicação serão apresentadas de forma bastante introdutória, isto é,


genérica e resumida, concentrando-se principalmente em três períodos: os anos 20, com a ex-
pansão do rádio e do cinema nos países industrializados; os anos de após-guerra, com a discus-
são dos efeitos políticos e sociais da expansão dos meios de comunicação e o fim de século,
com o desdobramento das trilhas abertas nos anos 50 e a consideração das novas tecnologias
de comunicação.
Esquematicamente pode-se dizer que houve uma discussão sobre os efeitos da comu-
nicação durante e imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, entre Walter Benjamin,
Theodor Adorno e Max Horkheimer, se bem que as tecnologias de armazenamento, com o
telégrafo, já tivessem aparecido na Guerra Civil Americana.
O rádio foi utilizado com fins políticos pela primeira vez em 1918, na revolta dos ma-
rinheiros em Kiel, e nos anos 20 ele tornou-se uma verdadeira febre popular, pois os próprios
trabalhadores construíam os aparelhos e, através disso, não apenas ampliavam o contato com
os outros países mas também fundavam clubes, se informavam e promoviam a agitação políti-
ca.
O cinema popular já existia antes da Primeira Guerra Mundial e a oferta dominante era
de filmes de comerciais e de sexo. Nos anos que seguiram ao após-guerra, as telas alemãs, por
exemplo, foram ocupadas até por volta de 1924 pelo expressionismo alemão.
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A primeira teoria da comunicação

A chamada “Escola de Frankfurt” foi um grupo de intelectuais que se reunia em torno


do Instituto de Pesquisa Social dessa cidade durante os anos 20 do século passado. Os princi-
pais colaboradores do Instituto foram, no início, Karl Korsch, Georg Lukács e David Riaza-
nov, que escreviam para sua revista. No campo da comunicação e da cultura destacaram-se,
especialmente no final da década, Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin,
Herbert Marcuse, Erich Fromm e Leo Löwenthal.

A teoria da comunicação dos anos 20 se concentrou no conflito entre Adorno e Horkheimer


e um representante menos identificado com as teses da escola, se bem que próximo a ela, Wal-
ter Benjamin. A esquerda hegeliana foi fortemente influenciada por Georg Lukács, que nos
anos 20 inovou o marxismo através do conceito de consciência de classe, ou seja, do desdobramen-
to da teoria marxista para o âmbito das ideias e da cultura. O efeito repercutiu também forte-
mente nos membros escola psicanalítica freudiana, que se dividiram entre uma "direita" (Carl
Jung) e numa "esquerda" (Wilhelm Reich, Erich Fromm, Otto Fenichel).
Max Horkheimer, ao assumir a direção do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt,
em 1931, o transforma numa escola intelectual por excelência, cuja função será a de renovar o
marxismo, nele integrar os novos conhecimentos vindos da psicanálise, desenvolvendo, em
suma, estudos críticos da sociedade em que viviam, procurando vincular numa visão crítica
única, a economia, a história, a psicologia e a cultura. Originalmente, o grupo se ocupou com
estudos sobre a autoridade, sobre a família como espaço de reprodução do consenso e de acei-
tação das condições sociais, sobre a tecnologia e a crítica de sua racionalidade, assim como
com a crítica ao positivismo nas ciências. Theodor Adorno empreende estudos sobre o autori-
tarismo e a psicanálise freudiana de esquerda.
O conflito entre Adorno e Benjamin ocorre, depois dos anos 30, pela divergência de
opiniões em relação às técnicas e à comunicação dita "de massas". Inicialmente, Adorno e
Horkheimer haviam se chocado com a recusa de Benjamin de aceitar a teoria marxista do re-
flexo – a saber: a economia (a infraestrutura) reflete-se necessariamente nas produções ideoló-
gicas da sociedade: em sua cultura, em sua arte, em sua política. Este optaria pela teoria da ex-
pressão, que, segundo Guéry, "salva" a imaginação e condiciona o "despertar" histórico, forma
messiânica de transcendência.
Walter Benjamin parte da conhecida ideia de aura, como elemento inerente às obras de
arte clássicas. Trata-se da dimensão mística que emanaria desses objetos por serem objetos
únicos. Admirador das técnicas, o intelectual propõe uma "teoria da obra de arte não aurática"
ao seduzir-se pela força política das imagens e da fotografia. Esta última, para ele, homenagea-
ria o rosto mais do que a pintura, e a ciência e a técnica não teriam nada a ver com dominação,
seriam antes formas de "expressão e imaginação". Pela técnica, diz ingenuamente Benjamin, a
massa se libertaria: Chaplin seria a comprovação de que a massa, se se colocava de forma rea-
cionária diante de um Picasso, seria progressista no cinema.
Esta posição entrou em choque frontal com as concepções de Adorno e Horkheimer,
para quem Chaplin não transformava ninguém em progressista. Há que se considerar, por ou-
tro lado, que enquanto Adorno e Horkheimer assumiam uma posição culturalista aristocrática
e antidecadentista no que se refere à arte clássica, Benjamin tinha os olhos mais voltados para o
futuro e para as possibilidades de extrair um lucro secundário com a técnica, da mesma forma
que Brecht o havia feito com sua teoria do rádio.
91

O desentendimento entre Adorno e Benjamin teria naturalmente sido melhor resolvido


se tivesse havido maior interesse de entendimento recíproco de ambas as partes, que na verda-
de só tinham olhos para seu ponto de vista, fosse ele o social ou o técnico.
A Segunda Guerra Mundial suspendeu a discussão intelectual sobre a comunicação, a
política e a técnica. No campo da informação de massa, as autoridades nazistas impuseram o
atrelamento da imprensa e da indústria de comunicação ao ministério da propaganda e às cam-
panhas oficiais de difamação e perseguição. Do lado oposto, os Aliados voltaram-se ao deci-
framento dos códigos militares alemães.

No após-guerra, os debates em torno do processo comunicacional e seus mass media


(meios de comunicação em massa, para massas) desdobraram-se em pelo menos três campos
diferenciados, todos em solo norte-americano. De um lado, mais voltados à questão técnica de
transmissão de mensagens e de construção de aparelhos auto-suficientes, estão 1) os modelos
informático-cibernéticos. Paralelamente ao seu desenvolvimento (década de 40 e 50), duas outras
correntes disputam o estudo dos veículos de comunicação, daquilo que então passaria a ser chama-
do de "mass media": 2) a critica da indústria cultural, os que partem de uma posição filosófica
crítica ao sistema e à produção industrial como um todo e 3) os que usam os modelos empírico-
funcionalistas, que pretendem compreender (e utilizar plenamente) a nova realidade instaurada
com o aparecimento e a expansão dos grandes meios de comunicação.

Teorias matemáticas da comunicação

Os do primeiro grupo, os informático-cibernéticos, estiveram voltados à dissecação da


natureza técnica do processo comunicacional (envolvendo, portanto, as máquinas informativas,
como de Turing, cf. Excurso 3), à simulação dos comportamentos humanos, à mensuração
quantitativa das informações. Grosso modo, poderiam ser agrupados em duas categorias: a do
processo circular, de Norbert Wiener, e a do processo linear, do "esquema canônico", de Clau-
de Shannon.
Norbert Wiener esteve ocupado, uma vez terminada a guerra, com a cibernética. Esta
nova ciência se torna o domínio do conhecimento que se interessa pelos organismos - ou sis-
temas - tanto humanos como não humanos que operam de forma circular. É como um circuito
abastecido continuamente por entradas e saídas. Entram informações, o sistema as trabalha,
elabora as respostas e as devolve ao público, que gera novas informações numa rotatividade
contínua de inputs e outputs; todo efeito reage sobre sua própria causa. Diferentemente do
modelo estímulo-resposta dos behavioristas (os organismos e sistemas não podem se auto-
corrigir), estes sistemas se regulam a si mesmos da mesma forma como o piloto automático e
similares. A informática é a ciência voltada às primeiras máquinas que funcionam desta maneira
e à descoberta de métodos que possam simular o funcionamento de sistemas semialeatórios
(parcialmente espontâneos), que têm condições de se corrigir a partir do transporte interno de
informação entre as partes e sem interferência externa.
Heinz von Foerster propõe uma « correção » à cibernética wieneriana, quando reforça
o papel do observador (antes relativamente discreto) e de sua maneira de intervir no sistema. A
comunicação para este autor é a interpretação, feita por um observador, da interação de dois
organismos. Além disso, ela é uma representação (interna) de uma relação entre si mesmo
(uma representação interna de si) e um outro, donde "nada é (pode ser) comunicado", já que
tudo depende do observador isoladamente e a atividade nervosa de um organismo não pode
ser compartilhada por outro organismo. Provocando uma confluência com as teorias quânticas
e seu questionamento dos processos de mensuração, ele afirma, como o faz também
92

Watzlawick, que a realidade não existe objetivamente mas é construída pelo observador. Von
Foerster, dará nascimento ao movimento de auto-organização, ou seja, dos sistemas que exer-
cem recursivamente, sobre si mesmos, sua própria atividade, engendrando assim seu processo
de autonomia.

O matemático Claude Shannon reatualiza Ferdinand de Saussure e utiliza o conceito de


entropia da Segunda Lei da termodinâmica na construção de sua teoria da informação. Se Sau-
ssure isola da língua a parte relativa ao uso corrente, ficando apenas com a estrutura abstrata,
Shannon isola o sentido da comunicação, permanecendo somente com suas unidades quantita-
tivas (matemáticas).
A intenção original do pesquisador era de construir uma teoria matemática do telégra-
fo, buscando uma fórmula que conseguisse medir o grau de novidade de um comunicado por
meio do cálculo de probabilidades. A novidade de uma informação é o seu grau de raridade;
para combater o ruído da mensagem (distúrbios que a tornam pouco clara) ela deveria recorrer
à redundância (à repetição, à confirmação), sendo a boa comunicação o resultado de um com-
promisso ótimo entre esses três componentes (os três "r"): raridade, (redução do) ruído e re-
dundância.
Shannon utiliza-se da termodinâmica humanizando-a, ao associar o conceito de entropia
à informação. Um comunicado não compreendido é uma forma de desordem, de incerteza.
Entropia para ele é o conceito que mede a quantidade de desentendimento da informação, sua
"ignorância". A questão, portanto, é como passar da entropia à informação. Para tanto, Shan-
non propõe a redução da incerteza e da desordem, através da melhora do rendimento de toda a
cadeia, tratando os fatos perturbadores.
Em oposição a Wiener, que apresentou um modelo circular de comunicação através do
fluxo cibernético de entradas e saídas, Shannon propõe um modelo linear: a comunicação é a
relação entre dois extremos: de uma lado, uma fonte e um emissor, de outro, um destino e um
receptor. Entre os dois, um canal (e seu ruído).
O modelo de Shannon tem a desvantagem de nada dizer sobre as mensagens (seu sen-
tido, significado, seu componente semântico). Os pesquisadores de Palo Alto (Bateson e cola-
boradores) criticam Shannon afirmando que a comunicação não é apenas esse processo linear e
expresso de mandar comunicados mas o concurso de múltiplos códigos de comportamento,
que incluem a palavra, o gesto, o olhar, a mímica, o espaço interindividual, etc.

Detalhamentos

As teorias da comunicação cobrem um campo muito extenso. Bernardo Miège critica as teorias
generalizantes, que, segundo ele, seriam demasiadamente ambiciosas, "vítimas do prestígio
social e do sucesso mediático atualmente atribuídos à comunicação". Como "limitações e ca-
rências", ele acusa as teorias de a) reducionismo ("reduzem a comunicação à informatização e
às relações entre homens e máquinas de comunicar" ; mediar acaba tornando-se mediatizar), b)
abstração (elas "são um meio cômodo de pôr de lado a complexidade do social, a diversidade
das relações sociais,/.../de fundar toda uma explicação a partir de tendências emergentes ou de
inovações sociais"), c) dar primado a apenas um paradigma ("os golpes teóricos têm em geral
por finalidade impor um paradigma novo, substituindo os anteriores, paradigma este proposto
com tanta insistência que tudo deve passar a ter de ser explicado somente a partir dele"), d)
confusão das instâncias visadas ("a comunicação interpessoal ou linguística supõe 'representar'
toda a comunicação na sociedade"), e) deriva futurológica ("tendência dos pensamentos pós-"),
93

f) ausência ou insuficiência de procedimentos de verificação empíricos (inclusive recurso aos


"casos exemplares" como provas de afirmações geralmente difíceis de se validar). (Miège, 1990,
p.67)
Por outro lado, as teorias não podem isolar os fenômenos e tratá-los em laboratório. Na advertência
sobre essas teorias, Miège fala que "se trata de uma tomada de partido teórico e de uma forma
de aceitar, a priori, a ideia de que uma teoria deva ser suscetível de dar conta de todas as ques-
tões que se ligam à comunicação" (idem, p. 66). O difícil, contudo, é isolar a comunicação co-
mo fenômeno próprio, questão que o teórico não responde. Até que ponto é de fato possível
estabelecer as fronteiras do que é "apenas" comunicação e o que é efeito de uma sociedade, de
um pensamento, de uma ideologia, de uma cultura? Se isolarmos demais os fenômenos de co-
municação - a análise da penetração de um jornal, dos efeitos de um programa de televisão, da
capacidade persuasiva de uma publicidade - e nos restringirmos àquele fenômeno isoladamente
estaremos possivelmente agindo cartesianamente, separando no vácuo processos e estruturas,
que, em realidade são continuamente atravessadas por outros processos. Não está claro até que
ponto é possível realmente extrair o fenômeno do meio e operar leitura específica.

Sobre a comunicação como buraco negro: "A impossibilidade de nós mesmos vermos o 'espíri-
to em ação' conduziu-nos, recentemente, a adotar o conceito de 'buraco negro', tirado do do-
mínio das telecomunicações/.../ Hardwares são tão complicados que não se estuda sua estrutura
complexa interna"/.../[O que nós estudamos] "concentra-se nas relações específicas entre a
informação introduzida na máquina e aquela que sai dela." (Watzlawick et al., 1972, p.39)

Para uma consulta mais detalhada das teorias de comunicação, ver: Bougnoux, 1991;
Faßler, 1997; Kloock/Spahr, 1997; Miège, 1995; Sfez, 1988 e 1993.

Os primeiros debates sobre a comunicação foram iniciados nos anos 20. Sobre o rádio popular na
República de Weimar, consultar: Marcondes Filho, 1988, p. 29ss. O expressionismo alemão
teve seus maiores sucessos no início dos anos 20: O gabinete do Dr. Caligari, 1920; O Golem, 1920;
A morte cansada, 1921; Nosferatu, 1922 e Dr. Mabuse, 1922. (Idem, p.28).

Foi o período do conflito opondo Adorno a Benjamin. Sobre Walter Benjamin: A tese de que
arte é destituída de sua aura sob o efeito de mercantilização está em A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, de 1935. Jean Caune afirma que "a profundidade e a originalidade do
pensamento de Benjamin estaria no fato de decentralizar a análise: "a aura não está nem no
olhar nem na coisa mas no [espaço] entre os dois, na relação" (Caune, 1997, p.31). Se, para Benja-
mim, o filme é abolição da aura (Kloock/Spahr, p.31), Daniel Bougnoux a redescobre em con-
textos de instalações da atualidade: "[As instalações interativas], permitindo realizar a perfor-
mance em torno de um espectador promovido a coprodutor, relocalizam a obra ao extremo; o
contexto provedor da aura não está mais num lugar imutável e longínquo, mas numa relação
potencialmente ilimitada de trocas do homem com a máquina"(Bougnoux, 1998, p.108).

Adorno e Horkheimer recebem friamente Benjamin. Ver Guéry, in: Sfez, 1993, p.1450. Para es-
te autor, Benjamin estaria à parte da Escola de Frankfurt, da fenomenologia de Heidegger ou
do weberianismo: para Benjamin "nem a ciência, nem técnica industrial são tomadas num sen-
tido de uma 'racionalidade' dominadora ou utilitarista". Elas seriam "expressão, força da imagi-
nação". (Guéry, idem, p.1452)
94

Chaplin seria « progressista » segundo ele. Benjamin: "O comportamento reacionário da mas-
sa diante de um Picasso reverte em progressista quando se trata de Chaplin" (Kloock/Spahr, p.
29). "Para ele, a massa teria, pela primeira vez, na história da arte, a possibilidade de se auto-
organizar" (idem, p. 29). "A técnica fílmica abole radicalmente a recepção passiva com a sub-
missão contemplativa na obra, a insistência devota diante da aura, que era típica das te-
las"(idem, p. 31).
"Uma mudança da função social da arte ocorreu porque fotografia e filme falaram, pela
primeira vez, à ampla massa, que foi continuamente excluída da cultura burguesa" (idem, p. 21)
/.../"A lógica imanente dos media leva, por assim dizer, à sua apropriação pelas massas. Isso faz
supor que há aí uma confiança na técnica..."(idem, p. 26)
Adorno não concorda "que o reacionário torne-se um vanguardista a partir do enten-
dimento objetivo do filme de Chaplin" (idem, p. 30)

Siegfried Kracauer, em seu Culto da distração, também dá elementos à tese benjaminiana:


"A crítica ao público de cinema, como viciados em distração, é 'pequeno-burguesa'. A pura
externalização (Äußerlichkeit) da distração tem 'honestidade para si', enquanto que a permanência
em valores culturais 'que ficaram irreais' desvia o olhar dos prejuízos da sociedade" (Klo-
ock/Spahr, 1997, p.32)

Olhos voltados ao passado e ao futuro. "Diante do perigo fascista, ele [Benjamin] não recla-
mava tanto a perda de valores tradicionais ou de sensibilidades costumeiras, mas tentava, mais
do que isso, reconhecer nas novas condições um potencial emancipatório e revolucioná-
rio/.../Diferente de Adorno, que junto com Horkheimer reclamava do declínio e da ruína da
arte sob as novas relações de produção da indústrial cultural, Benjamin não tinha olhos para o
passado que não poderia voltar mas para o futuro que estava chegando" (Zec, in: Rötzer, 1991,
p.100).

Sobre a comunicação e a imprensa sob o Terceiro Reich, consultar: Marcondes Filho,


1986, p. 101 a 110.

Após a Segunda Guerra, três tendências se revelaram: a técnica, a crítica e a empírica. Sobre Nor-
bert Wiener e a cibernética, consultar: Bateson et al., 1981, p. 16; Miège, 1995, p. 18. Daniel
Bougnoux comenta Wiener: "A razão cibernética recusa a priori o corte entre o corpo e o espí-
rito, o organismo e seu meio, o humano e a máquina, o micro e o macro/.../, enquanto disci-
plinas/.../a comunicação não é apenas objeto da teoria, mas modo de produção desta. Duas
classes de problemas fortemente associados estão aí debatidos: de comunicação e dos meca-
nismos que produzem, eles mesmos, sua unidade. Pensamento das relações, da causalidade
circular e dos paradoxos, a cibernética terá multiplicado as passarelas lógicas e as metáforas.
Ciência das solidariedades e dos sistemas, ela não privilegia nem a natureza nem a cultura mas
sua interação e remete de volta à ficção a ideia de um sujeito vivo ou pensante isolado". (Boug-
noux, 1991, p.11)

Na cibernética de 2a. ordem, Heinz von Foerster – conforme uma citação de Lucien Sfez -
contesta uma realidade que seria 'dada' sem a intervenção dos processos de construção do ob-
servador com relação àquilo que ele observa, mas propõe também e principalmente o método
de uma certa 'epistemologia experimental', em que a experiência praticada é aquela que poderí-
amos chamar de 'textos' ou lógicas formais, sem preocupação de realização propriamente dita.
Mas esta “exclusão do mundo das realidades”, comenta Sfez, este retorno sobre si, se arma de
95

modelos tão diversos que a tentação do autismo é evitada na maioria do tempo, mas não sem
freagens em cima da hora, retornos ou “prestidigitações” ou ainda denegações e justificações
(cf. Sfez, 1993, p. 808). Indubitavelmente, a transcrição de Sfez ou a própria fala de von Foers-
ter são confusas: diz inicialmente que o observador participa da observação (logo, não há neu-
tralidade), e que isto deveria ser como que “corrigido” pelo método da epistemologia experi-
mental, a saber, pela reconstrução da realidade a partir de textos, lógicas formais, como pura
abstração. Assim, sai-se do mundo real, palpável, da experiência e se entra em outro, fechado,
das construções teóricas do observador, sempre sujeito a soluções mágicas.
Tabela 8. O Esquema de Shannon

Shannon está próximo de Suassure. "A teoria de Saussure separa signo do referente; a teoria
de Shannon separa informação de significado. Nas equações de Shannon, a probabilidade in-
formacional de um elemento pode ser calculada apenas com referência ao conjunto da qual é
tirada, isto é, não totalmente mas através de uma série de diferenças. Este passo permite que o
conteúdo informativo de uma mensagem seja quantificado independente do contexto ou do significa-
do" (Hayles, 1990, p.178).
Shannon, semelhante a Bolzmann, mede probabilidades, não de moléculas, mas de
sinais em determinado lugar. "Quanto mais improvável, a priori, a ocorrência de um sinal par-
ticular na mensagem, tanto mais informativa, a posteriori, é sua ocorrência. Quanto mais certa
a presença de um sinal, tanto menor a informação" (Atlan, 1992, p.31).

O conceito de informação: "medida quantitativa da incerteza de uma mensagem em função


do grau de probabilidade de cada sinal que compõe esta mensagem" (Petit Larousse). "A infor-
mação da mensagem é uma função desta probabilidade (menos uma mensagem é provável,
mais ela é informativa) e, por aí, pode-se indicar uma quantidade. Shannon dá a esta quantida-
de H o nome de entropia./.../Isto lhe permitirá estabelecer numerosos teoremas relativos à ca-
pacidade máxima de uma canal para transmitir a informação, a redundância, o ruído (que é
uma incerteza sobre a mensagem pela inclusão de elementos exteriores), etc."(Auroux/Weil,
1991, p. 227)
Vilém Flusser associa informação, redundância à morte pelo calor: "A 'morte pelo ca-
lor' do universo é provável. Seria a parada do tempo, o ponto de acronicidade, como também
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o fim da história natural. A 'morte pelo calor' é, assim, algo como a 'redundância', a informação
zero ou desinformação, que é recebida como monotonia." (Kloock/Spahr, 1997, p.87-88)

A crítica da indústria cultural

A primeira teoria da comunicação, desenvolvida nos anos 20 na República de Weimar


(discussões sobre o rádio popular, teatro, sobre a imprensa ligada ao movimento social, sobre
estética e literatura proletária) e parcialmente continuada na França antes da ocupação nazista,
continuará a render seus frutos no exílio norte-americano, onde se encontram além dos irmãos
Heinrich e Thomas Mann, Hanns Eisler, Arnold Schönberg e Bertholt Brecht, Theodor Ador-
no, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. Lá iniciam uma nova fase de seus estudos críticos,
sempre vinculando a reflexão filosófica a uma prática social e a um engajamento ideológico.
Em 1947, Adorno e Horkheimer fazem um balanço do fracasso do movimento operá-
rio alemão, do desenvolvimento do Estado soviético, da burocratização e das aporias do pro-
gresso e da ciência e publicam a Dialética do Iluminismo, onde sustentam que a razão destrói-se a
si mesma; exemplo disso é Auschwitz. Segundo eles, depois do holocausto tudo – inclusive a
cultura e a crítica – não passam de restos, coisa sem valor.
A preocupação fundamental nesse período esteve, assim, voltada à questão do sentido
e da autodestruição da razão no século 20. Seu conceito de “dialética da negação” negava a
identificação entre real e racional, postulando que a realidade não seria de forma alguma com-
preensível no âmbito da racionalidade. O iluminismo deveria ser criticado por ser algo que
tinha vindo para tirar o medo dos homens mas tornara-se sua desventura; a razão não estava
mais do lado dos homens, mas das técnicas. A própria democratização da cultura seria, para
eles, igualmente, uma gigantesca “mistificação de massas” para aqueles que dela detêm o con-
trole. De sua dialética negativa - que não é, como muitos pensam, o mesmo que pessimismo
ou pensamento apocalíptico, antes uma postura não conformista - o grupo de pensadores des-
tila uma crítica radical à cultura promovida pelos grandes meios de comunicação, especialmen-
te a televisão. Eles desenvolvem uma reflexão e uma teorização sobre os novos processos de
industrialização do bem cultural e da "reificação" da cultura, em que objetos passariam a se
tornar senhores dos homens.
Nos anos 50, Adorno e Horkheimer retornam à Alemanha, onde passam a estudar a
“indústria cultural”, um complexo que não seria exatamente algo veiculador de uma ideologia
mas seria, ela própria, ideologia: trata-se da aceitação – através dos meios de comunicação, da
indústria do livro, da publicidade – de fins que, em princípio, são estabelecidos por outros. Sob
o rótulo de indústria cultural estudaram-se os efeitos das emissões comerciais, a propaganda e a
trivialidade das soap operas norte-americanas.
Herbert Marcuse permanece nos Estados Unidos e pesquisa a sociedade de consumo,
as formas de controle e a "consciência manipulada". Criou o conceito de consciência feliz, fazen-
do um jogo com a consciência infeliz hegeliana, em que grandes contingentes das camadas
médias ignorariam sua infelicidade ao caírem nas malhas enganosas de um sistema de domina-
ção, segundo ele, injusto e frustrante. Vai se tornar, no final da década de 60, um dos ideólogos
do movimento estudantil de contestação da sociedade americana.
Para Marcuse, a sociedade é basicamente repressiva e as necessidades humanas, no
mesmo sentido que Freud lhes explica, são alienadas: só se deseja aquilo que é imposto (a esco-
lha já vem viciada). A ciência - tema que será retomado mais tarde por Jürgen Habermas - re-
prime, pois, através da racionalidade, projeta o homem num mundo de apenas uma dimensão.
O doentio na sociedade industrial estaria no que ele classifica de administração do psiquismo, ou
97

seja, o planejamento e o controle das necessidades, da satisfação dos desejos e das pulsões.
Haveria, segundo ele, uma "adicional de repressão" no social que provocaria nos indivíduos
uma ligação libidinosa às mercadorias, aos serviços, aos candidatos, aos divertimentos, aos
símbolos de status, surgindo daí a coordenação, a estandardização ao das necessidades. Os
aspectos "verdadeiramente totalitários" estariam nos meios de comunicação, que alimentam a
opinião pública: através do embrutecimento das imagens, da exposição das mortes, atiçamen-
tos de fogo, envenenamento de vítimas, desenvolve-se um estilo cotidiano frio e até humorísti-
co, um tipo de jornalismo que associa ações criminosas a jogos de futebol, notícias sobre o
tempo e bolsa de valores.
A Escola de Frankfurt pecou pela generalização de suas posições e pela rejeição in totum
das possibilidades advindas dos meios de comunicação, chamando todas de "racionalidade da
dominação". Para Adorno e Horkheimer, por exemplo, filme, cinema, imprensa formam em
conjunto uma estrutura, a "indústria cultural", cujo produto é a cultura de massas. Na sua ge-
neralização extrema, contudo, foram injustos também com as iniciativas de contracomunicação
e contrainformação, que se originaram ou dos próprios trabalhadores ou de ativistas políticos
que se voltavam contra o sistema, como foi o caso do complexo Münzenberg, na República de
Weimar.
Não obstante, não é correto atribuir-se a eles a tese da conspiração das elites contra as
massas ou da aceitação pacífica, pelas pessoas, dos produtos da indústria cultural: a velha expli-
cação de que os que têm interesses e poder controlariam todos os meios de opinião pública
não é, para Adorno, suficiente por si só porque as massas, em sua opinião, não se deixariam
levar por uma propaganda torpe e falsa se nelas não houvesse algo que acolhesse os chamados
ao sacrifício e ao perigo.

O último representante da Escola de Frankfurt é Jürgen Habermas, para quem a razão


- diferentemente de Adorno e Horkheimer - não estaria inutilizada nem histórica nem estrate-
gicamente; se trata de encontrar uma maneira de melhor utilizá-la. Em algum ponto, o desen-
volvimento da racionalidade desviou-se do caminho e tendeu para a racionalidade presa a fins
(Zweckrationalität) e ao desencanto universal.
Sua estratégia não tem mais nada a ver com a filosofia da consciência (isto é, desenvol-
ver a consciência dos oprimidos na direção de seu autodesenvolvimento, conforme Lukács e
Adorno), nem com a filosofia do sujeito autoconsciente de Marx (desalienado, revolucionário).
Para ele, a saída do dilema encontra-se na mudança do paradigma filosófico (hegeliano clássi-
co) para o linguístico, o da "ação comunicativa".
Os pontos de partida são Émile Durkheim e G. H. Mead. O sociólogo francês lhe dá
as bases de uma "reserva cultural e tradicional dos indivíduos" capaz de fazer frente ao sistema
racionalizante e massificante. O linguista americano lhe abre as perspectivas de vinculação dos
indivíduos entre si e da realização de seus interesses na sociedade através da comunicação.
Utilizando a teoria dos atos da fala, de John Searle, Habermas vai apoiar-se tanto no
conteúdo proposicional (os modos de dialogar, a própria argumentação) quanto nos atos ilocu-
cionários (que demonstram convições racionais dos interlocutores e não o uso da força) para
sua teoria argumentativa. Através desta, os homens ainda poderão constituir-se como sujeitos.

Os modelos empírico-funcionalistas

As pesquisas norte-americanas sobre leitura de jornais, audiência de rádio, propaganda,


fenômenos de persuasão tiveram início em plena Segunda Guerra Mundial. Opostamente à
dialética negativa dos teóricos alemães da indústria cultural, a tônica destes estudiosos não foi a
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de rejeição desses sistemas comunicativos mas de sua aceitação enquanto tal, investigando seus
efeitos e a mudança social que provocavam.
O método funcionalista é um procedimento segundo o qual a explicação de uma certa
classe de fenômenos tem a ver com sua função, mais do que com uma estrutura intrínseca ou
com os processos que dela decorrem. Uma coisa, então, só existe se tem pertinência, se fosse
útil ao sistema, preenchendo uma certa função social, tendo "uma tarefa a cumprir". O esque-
ma, não obstante, é falho, pois há na sociedade funções "latentes", que não são criadas nem
desejadas (a criminalidade, a exclusão), assim como a atividades, procedimentos que existem
mas não na direção de que bom funcionamento (corrupção, grupos clandestinos).
Curiosamente, foi um austríaco, da mesma origem e do mesmo contexto cultural dos
teóricos da Escola de Frankfurt, quem deu início a esta segunda linha de pesquisa comunicaci-
onal nos Estados Unidos: Paul Lazarsfeld.
A pesquisa empírica de Lazarsfeld, realizada em 1944, tratava da leitura de jornais e da
audiência de rádio. Seguiram-lhe Carl Hovland, que realizou estudos psico-sociológicos volta-
dos aos fenômenos de persuasão em pequenos grupos, Harold Lasswell, que trabalhou com
avaliação das propagandas, e, no início da década de 50, Elihu Katz, Robert Merton, Charles
Wright e Talcott Parsons.
O instituto onde operava Lazarsfeld, o Bureau of Applied Social Research, se opunha ao
behaviorismo clássico nos estudos de comunicação, segundo o qual os consumidores da co-
municação seriam frágeis e influenciáveis e os grandes media, empresas poderosas na manipula-
ção das massas. Contrariamente, firmava-se em dois princípios básicos: a comunicação tem
efeitos limitados e o fluxo ocorre em dois momentos.
No primeiro caso, a partir de pesquisas sobre o efeito dos media em campanhas eleito-
rais, foi possível identificar três processos (filtros) na recepção das mensagens: percepção, ex-
posição e memorização seletivas. No segundo, Elihu Katz e Lazarsfeld, realizando análises de
conteúdo manifesto da comunicação, elaboraram, em 1954, a teoria dos dois momentos do fluxo
comunicacional, onde, além dos grandes polos de transmissão (sistemas de comunicação e do
receptor final), localizou-se a figura do "líder de opinião", personagem cuja função era de pro-
porcionar a compreensão e a aceitação das mensagens da comunicação junto aos receptores.
Bregnam e Missika, em sua exposição sobre os desdobramentos do empírico-
funcionalismo na pesquisa da comunicação norte-americana, enumeram várias tendências des-
sa corrente a partir da década de 60. J. Klapper, por exemplo, reorganiza e põe em ordem as
pesquisas até então realizadas pelo Bureau: em princípio, os efeitos da comunicação não se dei-
xam captar tão facilmente, são relativos e parece difícil isolá-los de um conjunto maior de vari-
áveis independentes. A teoria funcionalista, aqui, se aproxima curiosamente da teoria do caos.
Na crítica ao behaviorismo, destacou a importância dos fatores sociais e de mediação, o
papel da duração para avaliar o impacto de um conjunto de mensagens. Destacam-se aqui no-
ções como aprendizagem, hábito e experiência de utilização dos media pelo público, composto
de indivíduos inseridos numa rede de influências sociais, que ativamente selecionam e trans-
formam as mensagens recebidas.

Desdobramentos a partir da década de 70, confome Bregnam e Missika:

1. A função de agenda: os media, atribuindo uma grande parte de sua atenção a tal ou qual
problema, estruturam a hierarquia de preocupações do cidadão. Eles estabelecem também os
limites da discussão pública, o que, durante uma campanha eleitoral, pode favorecer o surgi-
mento de certas jogadas políticas. A longo prazo, eles mobilizam a atenção da opinião pública
99

para certos problemas, exercendo o papel de gate keepers, de vigias. (McCombs e Shaw, 1972, e
Funkhouser, 1973).
2. Usos e Gratificações: os indivíduos têm um uso diferenciado dos media, conforme sua
inserção social; esta posição diferenciada é a fonte de suas maiores ou menores gratificações ou
de satisfações. Neste caso, considera-se que o público é dividido em fragmentos e tem capaci-
dade de intervir diferenciadamente na oferta de produtos mediáticos: importa mais o que a
gente faz da TV do que o que ela faz da gente. (Blumler, Katz e Gurvitch, 1974)
3. « Knowledge gap »: utilizações diferenciais induzem a desigualdades com respeito à
aquisição de informações. Assim, indivíduos que já são os mais bem-informados extraem mais
dos media, fato esse que tem a tendência de acentuar o fosso entre "ricos em informação" e os
demais (Tichenor et al., 1970).
4. Espiral do silêncio: segundo esta teoria, o medo do isolamento social faz com que as
opiniões divergentes não tenham chance de aparecer, sejam como que obrigadas a se silencia-
rem no espaço social. (Noëlle-Neumann, 1984)

Marshall McLuhan

Convém considerar, por fim, entre as principais correntes nos estudos de comunicação,
o paradigma tecnológico de Marshall McLuhan.
A Galáxia de Gutenberg descreve uma civilização construída a partir da impressão dos
primeiros livros, do século 16 ao século 20, processo esse que desenvolveu uma lógica de pen-
samento, um modelo estético, uma perspectiva científica, em suma, uma visão de mundo tota-
lizante. O livro instituiu, segundo McLuhan, uma reeducação do olhar, uma centralização, a
escolha de um ponto fixo, semelhante à perspectiva central da pintura. Mais além, ele definiu a
observação científica a partir da descrição de processos causais isolados e do pensamento line-
ar de uma ciência unitária.
O livro, na verdade, representaria o símbolo de toda uma estrutura social e ideológica
que é a da máquina. A lógica da tipografia teria construído um mundo rígido, severo e friamen-
te racional, sua tendência unificadora teria levado às regras austeras da ortografia e da gramáti-
ca, que conduziram à literatura e à consciência nacionalista. Centralismo rigoroso e o princípio
do individualismo teriam surgido disso.
O novo comportamento historicamente rígido também daí derivado seria a expressão
da deturpação e da redução de nossa experiência sensitiva nos campos da estética, da ciência e
da sensibilidade humanas e a brutal separação entre sentimento e entendimento. Arte, religião e
ética são rebaixadas a opinião pessoal ou questão subjetiva sem relevância enquanto as catego-
rias científicas tendem cada vez mais à mensurabilidade, à exatidão dos dados empíricos, à
comprovação formalizada, cujo modelo é a lógica matemática.
Também aqui, na epistemologia, a impressão de livros fez surgir assim um novo tipo de
saber, baseado na tradução de eventos não visuais, como o movimento e a energia, em catego-
rias visuais. A prática da precisão da terminologia científica seguiu à lógica reducionista da ti-
pografia, pois a definição de conceitos roubou das palavras sua vida e as separou-a da diversi-
dade da percepção. O livro impôs a ordem e a disciplina: a composição assim como a redação
de um texto contínuo passaram a remeter a uma ordenação esquemática do espaço em partes.
McLuhan investe contra esse sistema propondo uma grande inversão da forma de pen-
sar, e o faz na teoria e na própria forma de escrever seus livros. Com base numa teoria frag-
mentada, "caleidosópica", propõe um paradigma intencionalmente inconsistente, o do "pen-
samento em mosaico".
100

Em termos de método, ele antecipou-se interativamente ao seu tempo, oferecendo, em


lugar de um "pacote cartesiano", inspirado na razão gutemberguiana, no qual os leito-
res/receptores deveriam consumir passivamente, aquilo que o economista canadense Harold
Innis chamava de o "procedimento faça-você-mesmo", de participação ativa na produção e
recepção com os bens comunicacionais.
Tomando por base o modelo pré-moderno de conhecimento, McLuhan investe assim
na abertura da expressão, que pode permitir uma multiplicidade de significações e várias con-
clusões. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma crítica ao eurocentrismo. Ela é decisiva também
no que se refere ao seu "método do julgamento oscilante", o único adequado, segundo ele, aos
tempos atuais. A multiplicidade graças à eletricidade, permitiria viver ao mesmo tempo, plura-
listicamente, em muitas culturas.

Em 1967 surge seu livro O meio é a massagem. Mais uma vez, o autor canadense usa-se
do jogo de linguagem para se posicionar: operando com a manipulação de palavras, oferece
uma concepção incomum da teoria, pois, segundo ele, uma piada sagaz pode ter mais impor-
tância que a planura (a trivialidade) entre duas capas de livro.
Na obra Understanding Media (1964), McLuhan havia se usado da frase - bem-sucedida
na academia, apesar de não original - de que "o meio é a mensagem". Aqui, como explicam
Kloock e Spahr, o "conteúdo" é um outro medium: "A língua é o conteúdo da escrita, esta, por
sua vez, o conteúdo da impressão do livro e este, o conteúdo do telégrafo". Este 'conteúdo'
encobre o modo de atuação dos meios, desvia-os de seus verdadeiros efeitos.
É também nesta obra que ele diz que cada nova técnica é uma extensão do corpo hu-
mano. As extensões do corpo, contudo, não são vistas como puras projeções ou alívios de
determinados órgãos mas, antes, como amputações: a limitação do órgão representa um duro
golpe no corpo e provoca um choque. Automaticamente a percepção bloqueia-se e o ser assim
paralisado já não é mais capaz de lucidez: a autoamputação exclui o autoconhecimento, ponti-
fica McLuhan. O uso cotidiano das técnicas coloca-nos, diz ele, num papel narcísico da consci-
ência subliminar ou de narcotização em relação à imagem de nós mesmos. Elas se tornam nós:
cada nova descoberta ou cada nova técnica é, segundo ele, a ampliação ou a autoamputação de
nosso corpo natural e tal extensão exige uma nova relação ou um novo equilíbrio dos outros
órgãos e a extensão dos corpos entre si.
Para McLuhan os meios são frios ou quentes. Quentes são aqueles que ampliam apenas
um sentido e de forma detalhista: o livro, o rádio, o filme. São recebidos, segundo McLuhan,
de forma "passiva". Frios são aqueles que tanto qualitativa quanto quantitativamente oferecem
pouca informação e são pouco específicos. Exigem, portanto, complementação por parte do
receptor, são "ativos". São a linguagem, o telefone.
Se bem que seja ostensiva sua crítica à Galáxia Gutenberg, McLuhan coloca-se no ex-
tremo oposto em relação ao meio "eletricidade": ela constitui um contexto, uma totalidade que
se opõe à técnica limitada, mecanicamente atomística. A eletricidade cria uma unidade orgânica
dos processos que se ligam uns aos outros.
Como crítica ao seu pensamento colocam-se a apresentação relativamente caótica de
seus argumentos, afirmações grosseiramente formuladas ("Hitler deve sua existência política
exclusivamente ao rádio e ao altofalante"), ausência de precisão nos conceitos, especialmente
no seu conceito de media, geralmente confundido com "técnica". Sua teoria da comunicação é
em grande parte impressionista e se aproxima mais da poética do que do discurso acadêmico.
101

Detalhamentos

A corrente crítica- Escola de Frankfurt (Teoria crítica da sociedade) faz uma objeção severa aos me-
dia. Sobre o Grupo de Frankfurt nos Estados Unidos, consultar: Auroux/Weil, 1991, p.154.
A dialética negativa se opõe à positividade do mundo moderno. Já não se trata mais,
como em Hegel e sua dialética, do desenvolvimento da Ideia, mas da negação e da desconstru-
ção, sendo que a única esperança está na utopia (cf. tb. Auroux/Weil, 1991, p.155). Conforme
Clément et alii, o desenvolvimento dessa visão da história e da sociedade "não deve, ao contrá-
rio, descartar a preocupação constante em trabalhar em favor da constituição de uma sociedade
em conformidade com as exigências da razão" (idem, p.136).
As posições de Marcuse podem ser encontradas em: Marcuse, 1955, p.457. Veja-se,
também, B. Charbonneau, citado por Ellul: "Nas sociedades cada vez mais organizadas somos
talvez mais livres porque melhor nutridos e mais instruídos; isto se obtém pela proliferação de
ordens e proibições em todos os domínios" (Ellul, 1977, p.122)

Adorno e Horkheimer e a indústria cultural: "Deve-se desistir de uma investigação particular


das técnicas específicas dos media, pois, no capitalismo, 'racionalidade técnica' é o mesmo que
'racionalidade da dominação'. Os resultados da indústria cultural não são imputados a 'nenhu-
ma lei (de movimento) da técnica como tal, mas somente à sua função na economia" (Ador-
no/Horkheimer, p. 109, citado por Kloock/Spahr, 1997, p.34). Estes teóricos ignoraram a
indústria cultural proletária: os comunistas ergueram na década de 20, na Alemanha, um gigantes-
co complexo comunicacional para fazer frente aos monopólios "burgueses" constituídos, ou
seja, a companhia cinematográfica BUFA, depois UFA, a grande imprensa, as rádios públicas.
Inicialmente, com apoio do Partido Comunista, Willi Münzenberg criou, em 1921, o AIZ (Jor-
nal Ilustrado do Trabalhador, com 200.000 exemplares de tiragem em 1925 e 350 mil, no fim
da década) e as empresas cinematográficas Meschrabpom-Russ (1924) - depois Weltfilm AG
(1927) - e Prometheus Film Ltda (1927). O conglomerado editava, além disso, várias revistas,
organizava encontros, envolvia-se em toda a produção cultural da época realizando um autên-
tico front cultural de sustentação da chamada cultura proletária. Ver para isso: Marcondes Fi-
lho, 1982, p. 25-60.

Sobre a posição de Adorno diante da propaganda falsa e torpe, ver Adorno, 1955, p.36.

Sobre a proposição de Jürgen Habermas: de Durkheim, ele extrai o fato de que a integração
social deve ser vista como algo necessariamente associado à integração sistêmica. Não existe
percepção do mundo subjetivo, próximo, marcado pelas relações sociais diretas e palpáveis,
sem a vinculação deste com um processo maior, despersonalizado, impessoal. Em segundo
lugar, ele extrai dele a concepção de força do mundo sagrado. É deste mundo que se origina a
autoridade moral das normas sociais. Por derivação, Habermas vai buscar exatamente aí uma
espécie de "reserva cultural e tradicional dos indivíduos", que poderia torná-los capazes de
fazer frente à imposição racionalizante e massificante de um sistema anônimo.
De G. H. Mead, Habermas extrai a estratégia comunicativa. Para o linguista americano,
o discurso garante o processo de individuação. É no processo comunicativo que se instaura a
possibilidade de espaços recíprocos de auto-reprodução e de empatia. Uma comunidade ideal
de comunicação é aquela onde há identidade de indivíduos no universal e no particular. A co-
municação, assim, funciona como uma espécie de ligação, mediação entre os interesses e as
possibilidades individuais e sua realização no plano macro-social.
102

Do conteúdo proposicional e da força ilocucionária de John Searle, Habermas vai ex-


trair os dois planos de sua teoria argumentativa: o da racionalidade e o da argumentação. O
plano da racionalidade fala de uma "força racional-comunicativa vinculante", derivada dos atos
ilocucionários, força essa apoiada em um sistema de associações com razões e na possibilidade
de um reconhecimento intersubjetivo, baseado na convicção racional e não na força. A disso-
lução do núcleo arcaico-normativo daria lugar a uma imagem de mundo, a uma universalização
do direito e da moral e à aceleração dos processos de individuação.

Os empírico-funcionalistas. Antecendentes: a expressão clássica do behaviorismo em teoria


da comunicação foi o estudo de Serge Tchakhotine, A mistificação das massas pela propaganda polí-
tica, de 1939 (edição brasileira: 1967), segundo o qual os media, através de uma "seringa hipo-
dérmica", injetariam a propaganda às massas passivas e vulneráveis.

Sobre Paul Lazarsfeld. Nos Estados Unidos, os membros da Escola de Frankfurt "tive-
ram discussões bastante vivas com o filósofo e sociólogo de origem vienense, Paul Lazarsfeld
(1901-1976), um dos fundadores da sociologia empírica moderna". (Auroux/Weil, 1991, p.154-
5). Sobre o Bureau of Applied Social Research, de Lazarsfeld, consultar Lucien Sfez, 1993, p.
1000.
A exposição de D. Bregman e de J.L. Missika estão em Sfez, 1993, p. 1000.

Mas é preciso considerar também, entre os fundadorers, nos anos 60, McLuhan. Sobre o método
de McLuhan como derivado de Oswald Spengler ver: a conclusão analógica do mosaico de
McLuhan assemelha-se à diferenciação de formas de pensamento de Spengler: “ ‘Fórmula’,
‘lei’, ‘sistema’ são, para Spengler, figuras matemáticas mentais, que só têm valor quando aplica-
das em formas mortas. Contrariamente, a ‘analogia’ é um meio de entender o orgânico e o vi-
vo” (Kloock/Spahr, 1997, p. 42).

McLuhan e os jogos de linguagem: "Ele destaca a criatividade das culturas orais, que -
ainda vivas na escolástica - foram excluídas da ciência com a impressão dos livros. Como Ni-
etzsche, ele situa a retórica como forma de conhecimento contra a lógica clássica. Os compo-
nentes da 'arte da fala', como o aforismo, o jogo de palavras, a aliteração, etc. constituem um
estilo de pensamento que considera o receptor, através do caráter incompleto das falas. Estes
tipos de expressão contêm camadas de ideias, que podem ser liberadas, alusões, que podem ser
desvendadas, e associações que podem ser perseguidas em diferentes direções;" (Klo-
ock/Spahr, 1997, p. 43)

"O meio é a mensagem" foi proferida por McLuhan em 1968. Em 1956, o filósofo alemão
Günther Anders já falava, sobre a televisão, que "o que nos marca e desmarca, o que nos for-
ma e deforma não são apenas os objetos transmitidos pelos 'meios', mas os próprios meios, os
próprios aparelhos: que não são apenas objetos de possíveis usos mas eles já fixam, através de
sua estrutura e função firmemente determinadas, seu uso e com isso o estilo de nossa ocupa-
ção e nossas vidas, em resumo, de nós" (Anders, 1956, p. 100).

Sobre a amputação: “A limitação de um órgão representa um duro ataque ao corpo e


provoca um choque. A percepção torna-se automaticamente bloqueada, de tal forma que o
sujeito paralisado fica impossibilitado de qualquer conhecimento. A 'autoamputação exclui o
autoconhecimento'. McLuhan explica essa situação com a ajuda do mito de Narciso. O termo
'narciso' vem de 'narcose', atordoamento, insensibilidade. Narciso, narcotizado pela extensão
103

de si mesmo, não estava em condições de identificar a si-mesmo diante do espelho. O homem


não se reconhece na técnica mas vê nela uma aparição estranha. Com isso permanece também
inconsciente o fato de que as extensões do corpo existem como partes integrantes do mesmo e
que o determinam de igual forma como seus órgãos naturais. Incapaz para o autoconhecimen-
to, o homem é entregue às suas consequências” (Kloock/Spahr, 1997, pp. 51-52). McLuhan:
“Ver, utilizar ou perceber qualquer ampliação de nós mesmos na forma técnica é o mesmo que
necessariamente também incluí-la. Ouvir rádio, ler uma página impressa significa captar essas
extensões de nós mesmos no nosso sistema pessoal e, junto com isso, captar 'fechamento' ou o
recalque da percepção, que lhe segue automaticamente. A contínua captação de nossa própria
técnica no dia a dia coloca-nos no papel narcísico da consciência subliminar ou na narcotização
em relação a estas imagens de nós mesmos” (McLuhan, 1992, p. 62).

Na trilha de Adorno

As trilhas tratarão de alguns autores menos conhecidos da literatura internacional de


comunicação, especialmente daqueles que foram pouco ou não ainda citados neste livro. Por
este motivo, não mencionaremos, por exemplo, as filiações heideggerianas de Jacques Derrida
ou de Marc Guillaume - ou, indiretamente, de Daniel Bougnoux - nem a filiação marxista-
kantiana de Lyotard ou filiações mais difusas e de menor identificação, se bem que consolida-
das e decisivas no campo da comunicação, como Lucien Sfez ou Paul Virilio. Faz-se, no caso,
exceção a Jean Baudrillard, ainda relativamente pouco citado, que será indicado como "trilha"
no final do capítulo.

A trilha de Adorno

Dentro das teorias de comunicação recentes, a trilha de Adorno foi parcialmente segui-
da por Dieter Prokop, em Frankfurt. Apoiado nas propostas psicanalíticas de Alfred Lorenzer
(Ver Capítulo 3), Prokop desenvolve os conceitos de formação sígnica e fantasia-clichê para estudar
filmes e seriados de televisão, mas os termos aplicam-se também a telenovelas e spots publici-
tários. O ponto de partida teórico é que o arranjo técnico interfere na construção simbólica,
ou, dito de outra maneira, a transmissão ideológica está nas formas e não nos conteúdos.
A formação sígnica é um processo de não envolvimento emocional do telespectador e tem
aplicação especialmente nas cenas de violência, brutalidade e forte dor. Opera-se um tratamen-
to técnico na edição do programa, de forma a criar uma contradição interna no conteúdo cho-
cante da emissão: a cena é forte, impressionante, arrebatadora mas a forma técnica de narrar a
esvazia: o telespectador nada sente. Uma cena de campo de concentração produz no telespec-
tador o mesmo efeito emocional que um picnic no verde.
Fantasias-clichê são cenas ou situações fílmicas particularmente bem-sucedidas e memo-
ráveis, que foram outrora sucesso de público, e que são transplantadas a outros contextos, de-
sencadeando rápida e automaticamente reações de emoção, compaixão, ternura, entrega emo-
cional. Desmonta-se um filme e se reutilizam trechos particularmente expressivos, como nos
desmanches de automóveis em que peças são retiradas e vendidas separadamente. Família reu-
nida em torno da mesa de Natal, belas casas com gramados, crianças sorrindo ou correndo no
campo atrás de borboleta são cenas de fantasias-clichê de felicidade, harmonia, paz.
Nos estudos de televisão, Prokop interessa-se também pelo aspecto de fascínio e de té-
dio nas telas. Descobre que existe um tédio dentro da fascinação e que isso constitui o cotidiano
das imagens televisivas.
104

Na sociologia alemã contemporânea pesquisadores como Ulrich Reyher e Michael Bu-


selmeier produziram, na década de 70, obras que também seguiam na direção de Theodor
Adorno e sua crítica à indústria cultural.
Reyher preocupou-se com a questão « de onde vem a atratividade, o magnetismo que
torna os telespectadores presos, amarrados à TV? » Para ele a causa está nos próprios recepto-
res, em suas "necessidades", nos produtos que se ocupam com temas próximos à sua vida e
que fornecem um contrapeso ao monótono, ao insuportável do cotidiano. A sociedade como
um todo sofre uma desmaterialização da miséria e o público tem uma experiência de carência, em
que lhe faltam ações, realizações, a "concretude" das experiências vivas.
Buselmeier discute os conteúdos da indústria cultural, especialmente da televisão; para
ele, a mesma lógica que preside o trabalho, preside o lazer na sociedade industrial contemporâ-
nea.

A trilha de Habermas

Podemos considerar duas importantes trilhas opostas abertas pelos seguidores de Ha-
bermas, ambas relacionadas com a esfera pública, tema que consagrou o pesquisador alemão.
Só a primeira trabalharemos aqui, a esfera pública "proletária", deixando a trilha da esfera pú-
blica virtual para a próxima seção.
Oskar Negt e Alexander Kluge produziram, no início da década de 70, na Alemanha,
uma obra que repercutiu em toda a década no país: Esfera pública e experiência. Funcionou como
uma espécie de contraponto "antiburguês" à Mudança estrutural da esfera pública, que Habermas
lançou em 1965 e que serviu de "base teórica' para o movimento estudantil alemão da época.
Na obra de Negt e Kluge são discutidos os erros do movimento operário alemão, agora
sob o enfoque da chamada "questão ideológica", que os autores, contudo, preferiram tratar
como questão de consciência, experiência e práticas, a saber, a dimensão mediático-cultural da
política.
O grande erro da política dos comunistas nos anos que antecederam à escalada fascista
teria sido a mentalidade de « campos separados » (Lagermentalität), segundo a qual os comunis-
tas investiram na política das duas sociedades opostas, antagônicas num mesmo solo: a burgue-
sia e a cultura proletária. Os campos deveriam manter-se desunidos e nem social-democratas
(que eles chamavam de "socialfascistas") poderiam somar-se aos comunistas. Esse teria sido a
causa do fiasco de uma organização política de esquerda que nos anos 30, cujo partido contava
com mais de um milhão de filiados.
A política de campos separados atuou também no sentido da ortodoxia política: temas
como moradia, educação infantil, sexualidade, trabalho, lazer - denunciados insistentemente
por Wilhelm Reich - ficavam de fora da agenda dos comunistas da época. Tratava-se única e
exclusivamente da conquista de cabeças, a saber, de arregimentação de filiados.
Na Itália, o mesmo tipo de equívoco político, de origem leninista, se fez sentir em
1945, numa célebre discussão em torno da revista Il Politecnico, em que a redação pretendia se
abrir para a constituição de uma frente ampla antifascista e o partido comunista, chefiado por
Palmiro Togliatti, fechou questão pelo isolamento.
A esfera pública proletária permanece, não obstante, até hoje à margem da história das
comunicações e dos media. Apesar da tentativa de Negt e Kluge, de reabrir a discussão do uso
da televisão, da contracomunicação, das formas de manifestação dos dominados, em suma, das
dificuldades de manter o debate político no interior do terreno mediático, do entretenimento,
do lazer, esta questão desperta pouco interesse entre intelectuais e pesquisadores, mesmo no
presente.
105

Mas, efetivamente, houve - e continua a existir subterraneamente - uma comunicação


não dominante, uma comunicação esquecida, no lado oposto às barricadas da comunicação
oficial, mesmo se jamais registrada, e essa história até hoje não faz parte do estudo dos media,
que como a história oficial, só registrou experiências vitoriosas, a maior parte não democráti-
cas. Falou-se atrás do conglomerado Müzenberg na República de Weimar, talvez o maior em-
preendimento jamais conseguido pelas organizações de esquerda. Mas há também, nesse sécu-
lo 20, a experiência cinematográfica de Bertholt Brecht e S. T. Dudow com Kuhle Wampe, a
história e os descaminhos da revolução cultural chinesa, os movimentos político-culturais de
pós-guerra na Europa, a dimensão mediática da Revolta Estudantil dos anos 60, o movimento
das Rádios Livres em toda Europa, o uso popular e comunitário das novas tecnologias de co-
municação, além de experiências como a política informativa e mediática do Chile sob Allende,
do Peru sob Alvarado, da imprensa alternativa brasileira, da Revolução dos Cravos portuguesa,
do advocacy journalism americano.

Na trilha de Reich

Pode-se dizer que apreenderam as agudas e pertinentes observações de Wilhelm Reich


sobre os erros da comunicação política antes da escalada fascista dois pensadores bastante he-
terogêneos entre si: Ernst Bloch e Peter Schneider.
O filósofo Bloch a aplica em sua tese sobre a "corrente fria" e a "corrente quente" no
movimento político: à esquerda da época teria faltado o verdadeiro espírito da comunicação,
que não tem nada a ver com os frios números das estatísticas ou das teses acadêmicas, mas
com o calor, entusiasmo, a encenação e a festa, tão familiares aos media de massa.
Schneider fala do subdesenvolvimento da fantasia nos discursos da esquerda e de como
ela não só é aproveitada pela propaganda política, bem como penetra em todos os espaços da
subjetividade, do lazer e da cultura, como se fosse "não ideológica".

Na trilha de Heidegger

Pelo existencialismo, o homem é privado de todos os recursos e deve pensar sua exis-
tência no horizonte da morte. Trata-se de uma orientação filosófica que se centra em questões
como a preocupação, a má fé, o fracasso. Principalmente a angústia, tema privilegiado, é vista
como condição fundamental do homem. No campo dos media aparece a figura de Günther
Anders.
Filósofo maldito, Anders rompeu com Heidegger antes de este ter aderido ao nazismo,
por causa de sua "privinciana visão de mundo" e pelas suas ilusões antropocêntricas, seguindo
um caminho solitário durante o esvaziamento filosófico da Alemanha durante o fascismo e no
exílio norte-americano. Lá, preferiu trabalhar 14 anos na linha de montagem de uma fábrica a
conviver com o grupo de intelectuais alemães residente na Califórnia, os quais ele acusava de
indiferença ante os destinos da barbárie alemã.
Pela sua inflexibilidade e intolerância diante dos deslizes dos outros conquistou inimi-
gos no ambiente intelectual que contribuiriam para que permanecesse permanentemente es-
quecido.
A principal obra de Anders - originalmente Günther Stern - está em seu livro de 1956,
O antiquismo do homem, que teve seu segundo volume publicado em 1979. São suas algumas das
principais teses em teoria da comunicação que depois apareceriam em nomes que se consa-
gram na área:
106

- O único não existe; qualquer coisa só existe se for continuamente reproduzida, dupli-
cada, seja pela comunicação, seja pela gravação, seja pela fotografia. Esta última efetivamente
dispara contra o único. Ela mata-o para "corrigir sua natureza". Verdadeiramente entes, de fato,
segundo ele, são só os produtos plurais, feitos em série. Os homens, além da desgraça de "se-
rem inferiores às máquinas", têm outro defeito: são únicos. O singular não pertence ao ser.
- O simulacro, por isso, ocupa o lugar e é sempre mais importante que o original (pos-
teriormente, tese de Baudrillard)
- A única existência possível das pessoas no mundo rodeado pelos media é a dos mode-
los, "matrizes", clichês veiculados pela cultura industrializada. Referindo-se a uma certa jovem
V., Anders relata um pouco de sua história: antes de se tornar artista de Hollywood, ela não era
nada, não passava de um anônimo "quem"; agora que está lá ela é importante, uma mercadoria,
ela tornou-se é um "quê".
- Os meios de comunicação operam num círculo tautístico (posteriormente tese de
Umberto Eco e Lucien Sfez): escolhemos as escolhas já foram feitas por outros para nós.
- Os meios de comunicação nos desarmam: a eles nos abrimos sem atenção e nos en-
tregamos sem defesa.
- O meio é a mensagem: o que nos marca é, em verdade, o próprio meio, não seu su-
posto conteúdo (tese retomada mais tarde por McLuhan)
- TV é o mesmo que ambiente familiar sem diálogo. Promove o atrofiamento da lin-
guagem, rouba a capacidade de expressão, a oportunidade linguística, o que conduz a um monó-
logo coletivo. Somos analfabetos pós-literários: imagens formam um fluxo contínuo, tapam-nos
os olhos até a idiotização.
- A comunicação promove progressivamente a vulgarização do íntimo (Verbiederung)
- A política na TV é o império das aparências. Lá o sujeito esgota-se no predicado (no
atributo externo).
- A TV não se vê como cópia, mas como "a própria realidade". Radicalizando Karl
Kraus, que dizia que "no início era a imprensa, depois criou-se o mundo", ele diz que "no co-
meço havia o programa de TV, e o mundo passou a acontecer para ele" (tese retomada mais
tarde por Umberto Eco e Arthur Kroker).
- A televisão realiza o nomadismo sedentário: ela está sempre "em outro lugar". E' estar
em toda parte e em casa ao mesmo tempo: « elefantíase da vida privada ».
- Antecipando a sociedade informatizada, diz que o último ideal do homo faber consiste
em construir a "sociedade sem tempo" (tempo seria o "vazio, inutilidade"), a esperança do
amanhã. Apesar disso, continua, não suportamos chegar à meta, nos tortura o vazio, o estar
sem meta. (O homem está eternamente em busca da ocupação do horror vacui, que o desespera).

Na trilha de Marx

Radicalmente diferente das preocupações intelectuais e acadêmicas dos anos 60, a trilha
de Marx se encontra hoje esvaziada. Poucos vão buscar na crítica que empreende à sociedade
capitalista os elementos para o entendimento do mundo atual das comunicações. Naquela épo-
ca - anos 60 - destilava-se da vasta obra de Marx uma pequena passagem do primeiro capítulo
d'O Capital, intitulada "O fetichismo da mercadoria", que servia, junto com trechos d'A ideologia
alemã, para construir uma visão marxista (portanto, justa, objetiva, digna, respeitável) dos pro-
cessos culturais e ideológicos.
É daí também que parte, no início dos anos 70, o pesquisador alemão Wolfgang Fritz
Haug em sua "Crítica da estética da mercadoria", espécie de investigação marxista da publici-
dade e de seus recursos. Haug acredita ultrapassar a análise marxista clássica no setor, que ha-
107

via chegado à dualidade valor e valor de uso nas mercadorias, apresentando, a "manifestação
do valor de uso", como entidade autônoma: "a manifestação sensível e o sentido do valor de
uso separam-se do objeto". Há, nesse momento, a intervenção de uma produção específica
dessa aparência.
A essa área, que se tornou decisiva no capitalismo contemporâneo, Haug dá o nome de
tecnocracia da sensualidade. Ela apela para a produção de "estimulantes do consumo, para a criação
de uma estética da mercadoria de massa, através da qual a mercadoria daria seu "salto mortal",
realizaria o "milagre da transubstanciação", lançando olhares sedutores aos seus prováveis
compradores. Citando Walter Benjamin, diz que se houvesse uma alma da mercadoria, ela seria
a mais empática que já entrou no reino das almas, pois precisaria ver em cada pessoa um com-
prador que a acolhesse nas mãos e a levasse para casa.
A trilha de Marx é seguida mais recentemente por pelo menos dois nomes de projeção:
o norte-americano Fredric Jameson e o canadense Arthur Kroker. O primeiro, dentro do dis-
curso da pós-modernidade, fala da estética que reduz hoje em dia as formas artísticas a pasti-
ches e colagens; fala da comunicação e da confusão de temporalidades, provocada pelas novas
tecnologias, que fazem as pessoas se sentirem num contexto de realidade esquizofrênico e alu-
cinatório. O presente do mundo, o significante material coloca-se diante do sujeito com redo-
brada intensidade: o mundo torna-se « pele lustrosa », visão estereoscópica, agitação de ima-
gens sem densidade. Só haveria um tempo na tecnologia da comunicação: o presente perpétuo,
vivência do êxtase, da emoção, do entusiasmo, do impacto. Superposição de outro universo,
novas coordenadas de espaço-tempo e uma nova posição do homem nisso tudo.
Arthur Kroker trabalha com a estética das novas tecnologias de comunicação e com as
fantasias cibernéticas. No plano da estética, ele incorpora a tese da desmaterialização da arte: a
arte já não tem mais o estatuto material do passado, centrado nas “obras de arte”; hoje, é a
experiência das pessoas que se estetiza, os ambientes que fazem parte da cultura é que se tor-
nam estéticos. Esse seria o fenômeno estético geral. As fantasias cibernéticas são trabalhadas
em suas obras mais recentes em que a realidade se tornou o horizonte eletrônico do século 21.

Na trilha de McLuhan

A trilha de McLuhan foi continuada nos anos 80 por aquele que, segundo Bazon
Brock, foi o mais importante filósofo alemão dos anos 70 e 80: o tcheco Vilém Flusser.
Flusser, que ensinou no Brasil, na França e na Alemanha, fala sobre a precedências das
tecnoimagens, do gesto da busca (de códigos ideográficos), do pensamento nômade, do con-
ceito de informação, da sociedade telemática, da televisão.
Nômades, diz ele, são pessoas que vão atrás de algo, que perseguem. Não importa qual
é a meta perseguida, a busca nunca termina quando se atinge. Todas as metas são estações in-
termediárias, estão junto ao caminho e, como totalidade, o caminhar é um método sem meta.
Uma civilização programada por imagens não lhe parece novidade; ao contrário, diz
ele, sempre foi assim. Contudo, se no passado da civilização dominava o analfabetismo, hoje,
após Gutenberg e a impressão, o quadro é distinto: o homem pré-moderno vivia num mundo
de imagens que significavam o "mundo". Nós vivemos num mundo de imagens que tenta
pressagiar as teorias em relação ao "mundo".
Pelo fato de as antigas gerações lerem o mundo, isto é, o interpretarem do ponto de
vista lógico e matemático, estas ainda são programadas por textos. Ainda pensamos em catego-
rias como "história", "ciência", "programa político", "arte". As novas gerações, contudo, são
programadas pelas imagens técnicas - pelos números, pelas formas, pelas cores, pelos tons -
108

elas não compartilham de nossos valores, pensam cromática, musical, matematicamente e cada
vez menos logicamente. Elas vivem numa pós-história.
O novo mundo é o técnico-imaginário dos modelos. Essas imagens, sendo modelos,
significam "conceitos", ou seja, o programa de TV não é a cena de um determinado assunto
mas um "modelo", a imagem de um conceito de cena. Esses modelos não são transparentes
para a sociedade, eles são caixas pretas, e a sociedade sequer tem consciência de estar sendo ma-
nipulada desta maneira. Isso tudo ainda permanecerá confuso se nos mantivermos nos critérios
históricos, se não colocarmos na perspectiva do tecnocódigo.
Por isso, a filologia, a crítica de textos, a psicologia, a sociologia, já não nos servem:
"uma análise psicológica de uma imagem de computador é um mal-entendido histórico". Não
há fundo algum, opostamente aos textos alfabéticos, as imagens são completamente superfici-
ais. Os novos códigos são ideográficos, eles rompem o contexto entre o pensar e o falar, não são
discursivos mas sintéticos.
Na nova sociedade, a informação é o valor absoluto: os que dispõem de informação
sobre construção de armas atômicas, usinas nucleares, operações genéticas e aparelhos admi-
nistrativos dominam. Não adianta dispor de coisas, matérias-primas, alimentos se estes devem
ser submetidos a informações cada vez mais caras. Não é o concreto (a coisa), mas a informa-
ção que é o concreto econômica, política e socialmente. O ambiente torna-se a olhos vistos
mais mole, nebuloso, espectral.

Na trilha de Nietzsche

A posição de Jean Baudrillard nas teorias da comunicação é polêmica. Se O sistema dos


objetos mantinha vínculos com a semiologia de Roland Barthes, a produção teórica posterior
trilhou caminhos bastante diversificados: a teoria da sedução, de 1979, marca um ponto decisi-
vo no pensamento do autor e, com isso, uma proposta absolutamente nova de se encarar os
processos sociais, que não agem por determinação mas "por sedução".
No campo da comunicação e dos produtos culturais, Baudrillard trabalhou na década
de 80 com a estética do corpo e da sexualidade (a paixão está, como a sedução, no extremo
oposto da pornografia e do erótico), com as estratégias astuciosas e enganosas dos objetos de
pesquisa, especialmente as enquetes (as massas de informação, os levantamentos de opinião
seriam falsos exatamente porque, como o objeto, não se deixam apanhar, iludindo qualquer
aspiração do empirismo). A estratégia destes, ao contrario, é da "sedução".
A estratégia da sedução sugere que a "verdadeira jogada" está no domínio das aparên-
cias, e - como Flusser - não há profundidades. Não existe o desvelamento das verdades escon-
didas, que foi durante muito tempo o jogo das ideologias entre esquerda e direita no discurso
político. O manifesto e superficial, diz Baudrillard, volta-se sobre a "ordem profunda" para
anulá-la. E' o espaço do jogo e das cartadas, da "paixão pelo desvio", contra a pesquisa pelo
sentido escondido. O que é sedutor no texto é sua aparência.
Na política, as massas realizam seu "humor silencioso", enganando as estatísticas, não
desejando, delegando o exercício do poder de fato, exercendo ao contrário - como as demais
coisas - uma soberania passiva, opaca. São, como os fenômenos caóticos, incaptáveis, imprevi-
síveis.
Na década de 90, Baudrillard desenvolve seu teorema da parte maldita, marcando uma
posição original e surpreendente na discussão sobre a mudança de paradigmas e as novas or-
dens epistemológicas. Processos extremos são os desajustes, os mecanismos que a máquina
não controla, que ultrapassam a lógica da administração total do mundo industrializado: o ter-
109

rorismo, a aids, o virus de computador, o aiatolá, fenômenos que jogam com regras próprias,
misterioras, imprevisíveis, virais, diabólicas.
A realidade, segundo sua lógica, não pode ser apreendida. Ela trabalha com fatos que
não têm leis mas um comportamento astucioso. Suas estratégias irônicas são superiores às ca-
pacidades do homem, por isso este deve resignar-se a ficar a espreita até o momento em que o
real seja suficientemente tolo para se deixar apanhar, dando ao homem a ilusão que o apreen-
deu.
A energia da parte maldita, conforme Baudrillard, é a do princípio do Mal. O cristia-
nismo baniu o mal da cultura e ao exorcizar a negatividade colocou o sistema em risco perma-
nente. Resgatando a parte maldita, contudo, instauram-se novamente paraísos artificiais do
consenso, ou seja, o verdadeiro o princípio de morte (a morte das coisas: sua “falsidade”).
Outro dilema da sociedade contemporânea, que se espelha igualmente na transmissão
mediática, é a neutralização do outro, a negação da alteridade. Os índios da América, por
exemplo, significavam para o conquistador espanhol uma alteridade radical, uma estranheza
absoluta que ultrapassava totalmente a capacidade deste de submetê-lo ao padrão conhecido.
Diante disso, o europeu não pôde proceder de outra forma senão aniquilando-o. Este é o mo-
delo que na época atual ganha contornos ainda mais radicais com a comunicação negando a
existência do outro real: as relações de troca são constituídas segundo padrões onde as outras
pessoas não existem, todos os demais sendo cópias auto-referentes de si mesmo.
Daí deriva-se igualmente a ontologia do ser na época eletrônica, como um sujeito des-
dobrado em várias personalidades, cuja identidade perde qualquer determinação fixa ou rígida
e um jogo de subidentidades oscilantes, transitórias, cujo espaco ideal de desdobramento é nas
comunidades virtuais, toma seu lugar. Nele falta a força do drama existencial, que estaria por
trás das máscaras que ele usa, na persona hoje inexistente.

Detalhamentos

A trilha de Adorno é continuada por Dieter Prokop e seus conceitos de formação sígnica e fantasia-
clichê : "Diante dos objetos, cuja presença não decifrada na consciência seria incômoda ou des-
trutiuva, o ego utiliza-se de diferentes mecanismos de defesa, como a recusa da realidade, o
recalque, etc. Por isso, os mecanismos de defesa são importantes, pois trata-se de estratégias do
ego utilizadas inconscientemente para não deixá-lo, em princípio, chegar aos conflitos com as
normas ou situações sociais. Ao contrário, separam-se determinadas percepções. Um desses
mecanismos é a dissociação do símbolo vocabular do significado emocional: a formação de signos.
A formação de signos é, do ponto de vista psicanalítico, uma delimitação do ego em relação ao
objeto. Tal delimitação permite ao ego manter-se de fora, pois não se identifica com o objeto
apresentado. Pessoas e coisas transformam-se em algo como fichas de jogos, das quais pode-se
dispor". (Prokop, 1986, p. 72) Fantasias-clichê: "Se possuímos, no caso da formação de signos,
como forma de fantasia, uma necessária separação entre sujeito e objeto, o outro princípio de
defesa caracteriza-se, em essência, por meio da fusão inconsciente, de um amoldar-se mútuo
entre ego e objeto. /.../Fica-se fixado em determinadas cenas, situações, mas não se pode colo-
cá-las no contexto, compreendê-las" (pp. 75-6). Um exemplo dos filmes de far-west: “Quando,
num filme de far-west de Hollywood, um herói secundário e, mais ainda, um pouco carinhoso
postado junto à fogueira, em close up, olha nostálgico para longe e fala de sua amada, que gosta-
ria de rever e com a qual pretende ter filhos, família, casa, então já se sabe que ele não sobrevi-
verá ao próximo assalto dos índios” (Prokop, idem, p. 81).
Sobre a questão técnica, ver também Thiedecke: "A iluminação de uma cena filmada
pode alterar dramaticamente seu conteúdo. Cenas de corte ou montagem de truques de video-
110

clips destróem histórias contadas ou produzem contextos de múltiplas formas./.../A conden-


sação sígnica da informação, que é típica para a comunicação medial, é, ao mesmo tempo, pon-
to de partida conteudístico para a formação de generalizações simbólicas" (Thiedecke, 1997, p.
82)

Sua preocupação são também as categorias de fascinação e tédio nos produtos de monopólio: « A fas-
cinação tem sempre muitos sentidos/.../As coisas que fascinam não são verdadeiras, falsas e
boas no sentido da estética clássica. São momentos muito vivos, mas também nem sempre
'positivos'. Há também uma fascinação do poder./.../Mesmo uma 'simbologia de status'/.../As
belas pessoas em suntuosos oldtimers, com malas de couro e criados, em mansões e jardins ma-
ravilhosos/.../Fascina a possibilidade de estar, por assim dizer, presente, pela imaginação, co-
mo partner, como companheiro dos poderosos, nos seus golpes/.../ O prazer voyeurístico de
jogar com a fronteira entre a 'realidade de superfície' e a 'realidade secreta, sutil', sem ultrapas-
sá-la, /.../de os produtos permitirem uma ligeira ruptura com o mundo rotineiro ». (Prokop,
1986, p. 149)
O tédio na fascinação: "Os produtos da cultura monopolística têm também algo de
entediante. O incrível design, o rápido noticiário, as coreografias de televisão escassamente ges-
ticuladas/.../Muitos produtos não se aprofundam em seus objetos. Eles formalizam as coisas
mais belas e estimulantes. Músicas de sucesso viram uma lengalenga sem sentido. /.../Os es-
quemas permanecem sempre iguais; até o gentil inspetor Columbo mantém, após o sétimo
capítulo, algo de teimoso, obrigatório. Esta modéstia dos esquemas, a preguiça da transposição
artística, a ausência de exigência de imagens e nos ritmos, as frases dos jornalistas, pensadas
com ponderação, são cansativas" (idem).
Os demais seguidores da trilha, Reyher e Buselmeier, podem ser localizados em: Bu-
selmeier, 1974.

Trilha de Habermas. Sobre a história da contracomunicação ou da esfera pública proletá-


ria e de esquerda neste século: Marcondes Filho, 1982. Sobre a revista Il Politecnico, consultar
Peter Kammerer, 1976. Sobre a história do Jornal Ilustrado do Trabalhador, na República de Wei-
mar: Marcondes Filho, 1988, p. 27; sobre os aparelhos de rádios construídos pelos próprios
ouvintes, idem, p. 29; sobre as comuniddes de ouvintes, idem, p. 31; sobre os filmes operários
e empresas cinematográficas a partir de 1924, idem, p. 31/32.
A crítica de Wilhelm Reich: "[Enquanto o partido orientava-se por metas abstratas, a
consciência das massas era subjetiva e não elaborada]. O conteúdo era o interesse pela alimen-
tação, vestuário, moda, relações familiares, possibilidade de satisfação sexual no sentido amplo,
como com o cinema, o teatro, as lojas, os parques e a dança, e, mais além, os problemas da
educação de crianças, dos objetos de decoração, da extensão e da organização do lazer".
(Reich, 1934, p. 14)

Na trilha de Reich, Bloch fala das correntes: as correntes fria e quente na política: "Eu estava
certa vez no Palácio do Esporte, era pouco antes da vitória de Hitler, quando dois propagan-
distas falaram, um comunista e um nazista. Entre os dois houve uma disputa cavalheiresca
sobre quem deveria falar primeiro. O (aparentemente) gentil nazista pediu ao comunista que
falasse antes, o que este viu como distinção, o idiota. E começou a falar. Aí veio aquilo tudo: a
contradição principal, a taxa média de lucro, as partes mais complicadas d'O Capital, cifras e
cada vez mais cifras. O público não o entendia e ouvia cada vez mais entediado. O aplauso foi
regular, um pouco mais que fraco. Então aparece o nazista, que fala de início muito gentilmen-
te: 'Eu agradeço ao senhor orador que me precedeu pelas explicações lúcidas e pelas explica-
111

ções, para a maioria daqui, não tão lúcidas. E disso os senhores já podem ter aprendido algo,
antes que eu começasse a falar. O que os senhores fazem, pertencendo à classe média, à pe-
quena classe média, quando trabalham em escritórios, por exemplo, como contadores e conta-
doras, o que os senhores fazem o dia inteiro? Os senhores escrevem números, somam, subtra-
em, etc. E o que os senhores ouviram hoje do senhor orador precedente? Números, números,
nada mais que números. De tal forma que a frase de nosso Führer encontrou uma nova con-
firmação, desta vez do lado inesperado: comunismo e capitalismo são dois lados da mesma
moeda'. Então, uma pausa estudada. Quando o discurso terminou - foi relativamente longo - o
homem esticou-se, imitando Hitler, lançou o braço de uma vez para cima e gritou em voz bem
alta, lentamente, para o público: 'Eu, porém, falo a vocês com a mais alta das incumbências!'. O
circuito fechou-se rapidamente. Era a passagem para Hitler" (Traub/Wieser, 1977, p. 196).

Da mesma forma, Peter Schneider segue Reich: "A fantasia, que é expulsa da realidade e da
consciência, reaparece na neurose. Aquilo que se atrofia nos seres humanos, de suas capacida-
des artísticas, realiza-se no capitalismo tardio nos sintomas de neuroses de massas./.../Nas
fantasias persecutórias, que se tornaram leis dos regulamentos internos das habitações, das
prescrições de trânsito, nos cacos de vidro sobre os muros dos quintais, em todos esses apa-
rentes exageros do princípio de realidade capitalista, a fantasia de massas reprimida nos subter-
râneos, sua sensibilidade, sua musicalidade, seu ouvido apurado, etc. conquista seu direi-
to."(Schneider, in: Marcondes Filho, C. (Org), 1988, p. 24-25)

Na trilha de Heidegger estão as teses de Günther Anders: O único não existe (Anders, 1956, p.
182, 190); entes são só os produtos em série (idem, p. 191); os media constituem um círculo
tautológico (idem, p.1) e um monólogo coletivo (Anders, 1979, p.152); os media nos desar-
mam (idem, p.136); o meio é a mensagem (Anders, 1956, p. 4, 100); a linguagem está atrofiada
(idem, p. 109); o homem não suporta o horror vacui (idem, p. 139); a Verbiederung (idem, p.
116); processos ficcionais tornam-se reais (idem, p. 133); TV não se diz cópia, mas realidade
(idem, p. 168); no começo era o programa...(idem, p. 191); sobre o nomadismo sedentário
(Anders, 1979, p.87).

Na trilha de Marx, Haug e a estética da mercadoria, cf. Haug, 1972. Sobre Fredric Jame-
son, ver Jameson, 1984, e Arthur Kroker, consultar Kroker/Cook, 1988. Sobre os textos mais
recentes de Kroker: Marcondes Filho, 1997.

Na trilha de McLuhan, aparece Vilém Flusser. A citação sobre o nomadismo está em Flus-
ser, 1977, p.155. A sobre a análise psicológica da imagem está em Flusser, 1997, p. 58.
Sobre a televisão ele fala que: "Imagens de TV são bidimensionais, elas não se com-
põem de linhas mas de pontos. Os sons, contudo, abrem uma nova dimensão, eles preenchem
o espaço e nós mergulhamos nele enquanto sentamo-nos de frente às imagens. Este mal-
entendido entre imagem e som deverá ter no futuro consequências decisivas para a nossa for-
ma de percepção, pois, pelo eletronic intermix é possível ver os sons e tornar audíveis as ima-
gens". (Flusser, 1997, p. 114)

Na trilha de Nietzsche, Jean Baudrillard fala em seu livro Da Sedução, desse procedimento:
trata-se de uma estratégia que opera com signos não codificados. Por situar-se além do campo
das interpretações, reserva para si uma alta dose de indeterminação. Seduzir, em Jean Baudril-
lard, é jogar com as armas impeceptíveis e é no campo a sexualidade que ela desempenha seu
112

papel de forma mais plena. Sua estratégia é da astúcia, das linguagens escondidas, do não falar.
Sedução é uma estratégia feminina, o que não quer dizer que se restrinja à mulher ou à sua
forma de conquista: o modelo é feminino, ou seja, tem a ver com a negação
dos componentes culturalmente associados à virilidade: a dominação ou sedução fria, o de-
sempenho, a transparência.

Quadro XI- As Escolas Teóricas da Comunicação

Filiação
Escola filosófica ou Representantes Seguidores Características
epistemoló- da trilha
gica
Escola de Marxismo Th. Adorno Crítica da arte kitsch, da música, do cinema
Frankfurt hegeliano M. Horkheimer Idem
(primitiva) Walter Benjamin Aura, reprodução técnica, cinema, literatura
Bertholt Brecht Teatro e cinema políticos
Teoria Dialética (Ad/Horkheimer) Indústria cultural; desvios do iluminismo
Crítica da negativa (e Prokop Fantasias-clichê; formação sígnica; o tédio na cul-
Sociedade freudiana) Enzensberger tura de massas
Buselmeier Indústria da consciência
Reyher Ind. cultural e cotidiano das massas
Negt/Kluge Desejo das massas ; carência de concreção
H. Marcuse Comunicação e causas proletárias
J. Habermas Administração do psiquismo ; crítica da técnica
Esf. públ.; crít.da racio. tecnol.;a «ação comunicat.»
Sociedade Crítica à mo- S. Kracauer O ornamento da massa; os ídolos
do espetá- dernidade Guy Debord Sociedade do espetáculo
culo tecnológica
Crítica Marxismo Mikhail Bakhtin Sóciolinguística
tradicional clássico A. Gramsci « Filosofia da práxis » ; intelectuais e cultura
W.F. Haug Crítica da estética da mercadoria (da publicidade)
A.Mattelart/Schiller Indústrias culturais; imperialismo na comunicação
Crítica Marxismo F. Jameson Pastiche, colagens; Esquizofrenia nas NTC
contempo- pós-moderno D. Harvey Cultura pós-moderna; marxismo e tecnologias
rânea A. Kroker Cultura « excremental », niilista do pós-moderno
M. Canevacci Antropologia da cultura de massas
Stuart Hall Estudos culturais, minorias; recepção crítica
Teoria do Messianismo Martin Buber Diálogo como comunicação
diálogo ateu
Teorias da H. Bergson Noção de “duração”, teoria da percepção
percepção M. Merleau-Ponty Visível e invisível; carne do mundo; a experiência
B. Massumi Intensidades; Corpo e movimento; Da arte política
Crítica pós- Martin Heide- G. Anders A obsolescência do homem; vergonha prometeica;
heideggeri- gger F. Kittler Aparelhos de registro. Legado de Drácula
ana da D. Kamper As imagens; O presente impossível
técnica V. Flusser Imagens técnicas; era da iconofagia
Fenomeno- Heidegger E. Levinas Comunicação e alteridade; do rosto; do feminino
logia pós- Husserl como alteridade absoluta
heideggeri-
aba
Funciona- Funcionalis- P. Lazarsfeld Estudos de penetração dos MCM; voto e comunic.
lismo empí- mo C. Hovland Estudos de voto, influência dos MCM ; opinião
113

rico e teóri- Funcionalis- R. Merton Teoria dos sistemas na comunicação


co mo estrutural T. Parsons Teoria dos sistemas na comunicação

Pragmática Psiquiatria G. Bateson P. Watzlawick Analógico e digital na comunicação humana


da comuni- Cibernética Teoria da Doble bind
caçao
Contrutti- Auto- H. von Foerster Cibernética, mente humana
vismo organização H. Maturana Autopoiese
radical Autopoiese N. Luhmann Sistema, comunicação, autopoiese
Crítica Marcel Mauss G. Bataille Comunicação como êxtase, embriaguês, delírio
antropoló- M. Leiris
gica da
cultura
Semiologia Estruturalis-F. Saussure Linguística estrutural
clássica mo R. Jakobson Linguagem e afasia; funções da linguagem
A. J.Greimas Estudos sobre o signo e sinais
E. Benveninste Estrutura do signo; a enunciação
L. Hjelsmlev Glossemática
Sem. com- R. Barthes Mitos na cultura; estudos sobre fotografia
temporânea J. Lacan Linguagem e inconsciente; desloc. de significantes
Semiologia Pós- M. Foucault Estruturas sistêmicas; os epistemas
crítica estruturalismo J.F. Lyotard Estudos da imagem; memória e representação
J. Derrida Gramatologia; o logocentrismo; origens da língua
G. Deleuze Agenciamentos da enunciação; língua e dominação
J. Baudrillard Troca simbólica; O princípio do Mal ;a sedução
Semiótica Pragmatismo C.S. Peirce Semiose; Índice, ícone e símbolo
U. Eco A interpretação; A « obra aberta »
I. Lotman O sentido, a semiosfera
Linguística Pragmatismo J. Austin Enunciados perfomarivos; Atos ilocucionários
Pragmática J. Searle Atos de discurso e a intencionalidade
Informáti- Lógico- ma- Norbert Wiener Teoria circular; Sistemas de retroalimentação
co- temática Heinz von Foerster 2ª Cibernética; auto-organização; papel do agente
cibernética Claude Shannon Teoria linear : Modelo canônico da comunicação
Galáxia Positivismo Marshall Mc Luhan Crítica à cultura escrita; pensamento em mosaico;
Gutenberg tecnológico tecnologias como extensão do corpo; meio como
mensagem
D. Kerkhove Transform. do paradigma cerebral com as NTC
V. Flusser Cultura por imagens; pós-história; códigos ideográ-
ficos; temporalidade mediática
P. Lévy Cibercultura; tecnologias da inteligência
114
115

Excurso 5: Aplicações em jornalismo e imagem


A informação e a esfera pública

O debate em torno da informação é um dos mais vivos nas discussões mediáticas atu-
ais. Os pesquisadores se batem sobre o valor de uso da informação veiculada nos jornais, rádios e
nas estações de televisão, sobre o cumprimento de sua promessa em verdadeiramente infor-
mar: afinal, aprendemos algo com o que ouvimos, vemos e lemos, ou isso tudo é apenas um
ritual repetitivo e sem consequências?
Um primeiro grupo de teóricos afirma que efetivamente há informação. Seu representan-
te é Lucadou. Para ele, o modelo de Shannon não serve para medir informação, visto se tratar
de um medidor de quantidades e não do conteúdo. Para tanto, propõe um modelo em que 4
fatores sejam matematicamente considerados: novidade (isto é novo?), confirmação (se trata
disso mesmo?), autonomia (não houve manipulação?) e confiabilidade (a fonte é digna?). A
regra é simples: NxC = AxC = I.
Na prática, entretanto, o modelo não foi testado o que o coloca a uma boa distância de
Shannon, que o autor pretende corrigir.
C.W. Churchman vai na mesma direção e diz que informação é uma mercadoria com
seu próprio preço, uma mercadoria utilizada por indivíduos e grupos para influenciarem indi-
víduos e grupos; informação serve para formar ação social.
Um segundo grupo de teóricos é mais descrente e diz que há alguma informação na
transmissão noticiosa. Jean Baudrillard, usando-se ironicamente da teoria dos quanta, fala que
uma notícia, enquanto não desmentida, circula como provável. Se ela chegar a ser desmentida,
algo desse crédito lhe restará. O conceito de verdade - valor de uso da informação - lhe per-
mancerá agregado, mesmo que a notícia for inteiramente falsa.
Por fim, um terceiro grupo de teóricos afirma que, efetivamente, não há nenhuma informa-
ção no noticiário jornalístico. Os media, em verdade, só existem para entreter. Em vez de infor-
mação eles transmitem comunicação, que é bem diferente: a informação, diz Daniel Bougnoux,
é cara, vamos buscá-la, vem de uma determinada fonte, enquanto que a comunicação nos vem
gratuitamente, de grandes empresas e de forma nem sempre desejada.
O que se discute nessa divisão radical é se na informação gratuita, que Bougnoux cha-
ma de "comunicação", efetivamente não há informação embutida. Ou seja, se estaria derrubada
a tese de McLuhan de que o meio também é a mensagem (e informação). Jean Meyrat, em sua
definição de comunicação não acredita, pois acha que toda comunicação tem um conteúdo
cognitivo mais ou menos importante, que é a informação. Isso implica, portanto, que não pode
haver informação sem o invólucro da comunicação, seu veículo.
A comunicação pode não informar coisa alguma: quando apanhamos impressos publi-
citários em nossa caixa de correspondência, os atiramos automaticamente no lixo. Não se pro-
cessou aí nenhuma transmissão de informação. Mas a recíproca não é verdadeira: toda a in-
formação vem necessariamente conduzida por um veículo que é, obrigatoriamente, de comu-
nicação.

Fato é que a sociedade da comunicação, como diz Lucien Sfez, é a sociedade em que
menos se comunica. Paradoxo do sentido, inventa-se uma "sociedade de comunicação" exata-
mente porque tornou-se notório que, por força da autorreferência mediática (os meios de co-
municação só falam de si mesmos, a realidade, todo o mundo exterior torna-se quintal, estúdio
das emissoras de TV), pouco se transmite do mundo "real".
116

Niklas Luhmann diz que os meios de comunicação parecem ao mesmo tempo cuidar e
minar sua própria credibilidade. Eles se autodesconstróem, pois, com suas próprias operações
reconstróem a contínua contradição de seus componentes textuais constatativos e performati-
vos.
Exercem, portanto, tanto a informação como sua própria crítica: têm a mesma lógica
do capitalista, que é capaz de vender a corda em que deverá ser enforcado. Absorvem a infor-
mação e sua crítica, realizando, na prática, o engodo da duplicidade, como no caso dos dois
lados da notícia, ilusão para aqueles que acham que na dupla opção encontra-se automatica-
mente a democracia.

As notícias

Há pelo menos duzentos anos sobrevive a sensação de que os homens têm necessidade
de se informar. A própria imprensa é bem mais velha do que isso, mas foi a partir da Revolu-
ção Francesa que o jornalismo conquistou um lugar decisivo na vida política das sociedades
industriais. Participar da polis, da vida republicana, não se limitava a votar, constituir governos
representativos e acompanhar seu trabalho. Era preciso se informar.
Ler jornais, discutir os temas da política na praça pública passaram a fazer parte direta
da noção de cidadania. Por esse motivo, também, a imprensa passou a se ver e a ser vista como
parte integrante das instituições republicanas, espaço inalienável da democracia. Daí também o
mito de que o jornalismo seria o espelho da sociedade.
O jornalismo cativou escritores, políticos, cientistas, poetas para suas páginas, visto que
se tornou o primeiro grande meio de comunicação em massa. A vida política já não vivia sem
ele. Mas tornou-se também, para a sociedade que nascia no seio da república representativa,
um mal-estar, uma forma de "consciência infeliz", como dizia Hegel, onde se dava o desapare-
cimento da experiência subjetiva direta ou mesmo sua incomunicabilidade. O jornalismo insti-
tui com sua hegemonia na sociedade um mundo vivido por delegação: estava criada a cultura
da informação.
Mas essa delegação foi instituída em graus. Se inicialmente, como disse Benjamin, a ex-
periência de cada um havia se tornado incomunicável, pois a imprensa socializava todas as
experiências num saber comum, no desenvolvimento histórico do jornalismo do século 20 esse
processo foi absorvendo partes ainda maiores da vivência de cada um, a ponto de o mundo, a
vida social e política, a realidade externa de cada pessoa serem construídos num nível de reali-
dade que não seria nem o da vivência imediata (realidade plena), nem o da imaginação (ficção
plena), mas num campo intermediário em que o real era embalado e vendido como ficção.
O jornalismo ocupou esse espaço da ficcionalização do real; especializou-se no traba-
lho de colecionar aleatoriamente fragmentos do real e remontá-lo nas páginas do jornal, cons-
truindo outros mundos que passaram a competir com a realidade externa e de cada um. Mais
que a literatura, esses mundos forjavam o autêntico, criavam o verdadeiro, se ofereciam como o
único mundo, a ponto de - no final do século 2O - com a retração da vida pública, a cocooniza-
ção das sociedades graças ao desenvolvimento dos mais diversificados sistemas de comunica-
ção e informação, eles apresentarem-se como "o real", a vida pública tout court.
Várias teses tentam dar conta dessa ocupação do terreno do imaginário, promovida pelo jor-
nalismo, hoje inesperadamente ameaçado pelas formas de produção de notícias on line, como se
verá mais adiante.

Tese 1: "Os media fabricam a notícia, na rua ou no estúdio". Haveria aqui uma inversão
da precedência: antes, os fatos ocorriam e a imprensa saía para cobri-los. Hoje, os fatos acon-
117

tecem porque a imprensa vai cobri-los. Anders fala que há numerosos acontecimentos que só
acontecem como acontecem para serem usados como notícia; Baudrillard sugere que muitos
acontecimentos não teriam ocorrido se os media não estivessem lá.
Há outros exemplos. Há os "eventos que já nascem falsos", na conhecida e engraçada
descrição de Umberto Eco, do casamento real na Grã-Bretanha, que tudo - até a tonalidade
pastel do excremento dos cavalos, compatível com as cores suaves das roupas femininas - fun-
cionava segundo a lógica ficcional televisiva; há o famigerado caso das valas comuns de Timi-
soara, a Guerra do Golfo e o que era deslize jornalístico tornou-se regra.
Ignacio Ramonet amplia esses "pequenos desvios da imprensa" para o conjunto dos
órgãos noticiosos, cuja pauta se monta, não raro, por um "efeito bola de neve autointoxicante":
quando uma grande emissora divulga um fato que considera importante, todas as demais têm
também de divulgá-lo. A verdade já não é mais um atributo do ocorrido mas do fato jornalístico
de todos informarem.
Esta afinação entre todos os noticiários ocorre também e outras áreas. Bourdieu fala da
crítica literária, assim como do fato de os jornalistas, antes de mais nada, publicarem para si
mesmos e de serem eles mesmos os principais leitores de todos os jornais.

Tese 2: "Os media cofabricam a notícia". Daniel Bougnoux diz: "De que vale um acon-
tecimento se não for repercutido por nenhum medium? Mais ou menos aquilo que vale um
cômico que não faz ninguém rir: não é um cômico. Da mesma forma, um escândalo não existe
a não ser que a imprensa fale dele. Nenhum caso Dreyfus sem a batalha determinada dos jor-
nais. Nada de Watergate. Nem, aliás, de Carpentras. Em cada caso, os media coproduzem o
acontecimento e é por isso que toda arte do terrorismo moderno está em atrair o olhar deles e
os manter como reféns o maior tempo possível"

Tese 3: "A manipulação é uma questão antes de mais nada técnica".


Os responsáveis pelas programações jornalísticas nas emissoras de televisão, na diantei-
ra dos processos de reinvenção da notícia, impuseram um novo conceito de informação, de
forma irreconhecivelmente distante dos critérios clássicos, pautados na apresentação dos acon-
tecimentos, na verificação cuidadosa, no acréscimo de contextos de sentido. Hoje, a notícia
ocupa um espaço entre o imaginário ficcional dos novos mundos da eletrônica e os aconteci-
mentos cotidianos da esfera pública, estes, cada vez mais reduzidos ao status de matéria prima
bruta, inutilizável in natura para a comunicação. Assistir a um noticiário tem a ver hoje muito
mais com o conceito de vivenciar, de participar à distância, de entrar no clima interativo de
uma instalação, de uma performance. Para isso, importa mais à notícia ser muito real, mais real
do que o real, muito bem montada do ponto de vista técnico: a beleza plástica, a qualidade da
imagem, do som, da tomada submetem a reportagem, o documentário ao critério estético do
cinema. Verdadeiro, real, é o que satisfaz o critério da estética eletrônica: uma boa imagem,
uma economia verbal - uma única declaração de cada entrevistado, duas é demais -, uma capa-
cidade de provocar emoção. Emoção verdadeira, diz Eco, torna a notícia verdadeira. A quali-
dade da representação se impõe como critério da objetividade jornalística.
Mas a notícia tem de ser também rápida, com comedidas doses de choque, bem talhada
para fornecer traços, pegadas, rastros dos acontecimentos mas não chocar excessivamente.
Tem de ser orquestrada pelas diversas emissoras, redundância obrigatória, espécie de beneplá-
cido das autoridades espirituais mediáticas para que possa ganhar o selo de validade, a bênção
como "verdadeiras".
118

Rapidez, instantaneidade, velocidade

Já se falou que o passaporte para o ingresso na sociedade das altas tencologias é a velo-
cidade. Como na corrida de Fórmula 1, quanto melhor e mais rápido for meu desempenho,
melhor estarei posicionado na pole position das inovações e do desfrute dos bens culturais. E
aqui cabe reproduzir a preocupação de Virilio: pode-se democratizar a instantaneidade? Como
discernir, na rapidez, o relevante do irrelevante? Com toda certeza isso não seja possível e seja
este exatamente o novo marco da diferença, além da já desgastada teoria do "aumento do fosso
entre os mais e os menos informados". Além ser reduzido o número dos que acompanham a
velocidade ou que desejam fazê-lo, a própria imediaticidade, por estar associada às decisões
instantâneas, emocionais, impulsivas, investe contra a democracia da reflexão, da avaliação, da
ponderação cautelosa.
O imediato tornou-se também um critério para as notícias. É o mesmo Virilio que fala
de um "tempo de exposição" que torna excepcionalmente velhas as notícias, pelo simples fato
de seus veículos serem mais lentos e não intantâneos (# 9, final).

O volume de dados

Inacio Ramonet diz que o massacrante volume de dados e informações à disposição


das pessoas realiza uma espécie de "censura democrática". O termo, contudo, ainda deixa
transparecer uma conotação positiva: há a censura, mas ela é democrática, como, por exemplo,
a de um colegiado, eleito democraticamente, que acha por bem mover uma ação de censura
contra um membro. Com o excesso, a obesidade informativa, o que se tem é antes uma democra-
cia massacrante, asfixiante, sufocante, uma antidemocracia, democracia negada e invertida pelo
seu excesso.
Pierre Bourdieu diz que "não se pode pensar na pressa". Muito justo, mas tampouco se
pode pensar sob esse volume. O volume de informações mata a informação, deixando-a inutilizá-
vel, porque está além da nossa capacidade de trabalhá-la, ao mesmo tempo que devastadora do
princípio de busca do pouco qualitativo, do silêncio reflexivo, do raro produtivo.

A esfera pública

Centro dos debates das discussões políticas dos anos 60, a esfera pública foi ponto de
honra dos movimentos de protesto: era preciso dar um basta aos monopólios da opinião exer-
cidos pelas grandes cadeias de informação. Na Alemanha, o estopim foi quando a cadeia jorna-
lística Springer, no final dos anos 60, manipulou o assassinato de Breno Ohnesorg; na Itália,
quando os meios de comunicação falsearam ostensivamente o incidente de Pinelli/Valpreda,
conhecido como Strage di Stato ou "a morte acidental de um anarquista". Também a França
aspirava uma imprensa de nova geração, pois já não mais se identificava com o estilo Le Monde
de fazer jornalismo. Nos espaços europeus, repercutiam as ideias de Jürgen Habermas, pro-
pondo a retomada da discussão da esfera pública e a conquista de um amplo território de dis-
cussão das oposições não conformadas com o controle do espaço político pelas redes de co-
municação.
Esse movimento deu origem a vários novos jornais oposicionistas, a dezenas de rádios
piratas, que lutavam para quebrar o monopólio público da radiodifusão, aos movimentos de
TV comunitária, de vídeo alternativo, além de inúmeras companhias de cinema de protesto, de
teatro político, redes de distribuição e empresas de suporte da contra-informação. Pode-se
119

dizer que efetivamente criou-se ou ressurgiu, após décadas de monolitismo informativo, uma
esfera pública atuante e com repercussões não desprezíveis no cenário europeu dos anos 70.
A expansão acelerada das tecnologias informáticas na década seguinte e as grandes de-
fecções políticas, acrescidas à crise ideológica do final da década, e, não menos importante, a
própria fragilidade estrutural (econômica, política, ideológica) dos grupos-suporte dessa esfera
pública, que atuavam via de regra sem profissionalismo, levaram ao esvaziamento desse movi-
mento. Nos anos 80, excetuando-se alguns jornais sobreviventes, já não há mais nada desse
grande debate em torno dos meios de comunicação e da informação.
Com a internet, a fantasia de uma esfera pública ressurge, pois o sistema construído em
rede e com ligações em tempo real com qualquer parte do mundo, viabilizaria aquilo que o
movimento anterior não havia conseguido. Não obstante, apesar da infra-estrutura técnica, a
assim chamada "esfera pública eletrônica" é radicalmente diferente da anterior. Ela não é unitá-
ria em torno de temas aglutinantes, mas, ao contrário, difusa, com ampla e variada oferta. Ela é
pulverizada em milhares de microgrupos, que não conseguem e nem pretendem fundir-se co-
mo grande movimento de pressão. Pelo seu tipo de expansão exponencial e incontrolável, tra-
ta-se antes de um ser amorfo, indistinto, espécie de magma ou medusa megacomunicativa, que
não viabiliza qualquer tipo de administração. Mais uma vez, morre-se pelo excesso, ou, sob o
peso da liberdade.
A esfera pública eletrônica, por isso, não é exatamente uma esfera pública, pois não
junta pessoas "enquanto público". É, antes, um agregado de milhares de microdiscussões, em
geral subjetivas e particularistas, em que cada milhonésima parte tem o direito do seu nanoter-
ritório, que mais funciona como "álibi" do acesso e do uso, do que, efetivamente, da comuni-
cação. Por isso, apesar das aparências é um colossal sistema de poucas trocas, de comunicações
geralmente duais e solitárias. Gigantesco aparelho de contatos imediatos, que de nada serve à
comunicação ampla e social, mais que espelha o crescimento irregular e metastásico das comu-
nicações aleatórias e das trocas inconsequentes.
E nem poderia ser diferente. As pessoas têm à sua disposição um sistema desmesurado,
com múltiplas possibilidades, mas pouco podem fazer com ele. Primeiro, porque não têm fa-
miliaridade com a produção de qualidade na comunicação; segundo, porque não têm nada a
dizer; terceiro, porque estão desaculturados da prática do debate e da discussão pública. O que
resta, então, são as demonstrações insólitas de pessoas que põem seus ambientes íntimos e
particulares à visitação pública, seja pelo dinheiro, seja pelo exibicionismo, seja pela amargura
do anonimato e da indiferença na sociedade eletrônica. Um uso ao mesmo tempo patético e
trágico de uma infraestrutura, que, além da finalidade comercial, pouco lucro oferece aos seus
usuários a não ser as microvantagens marginais comparativas que se pode ter com toda essa
instalação: correio eletrônico, conversas, curiosidades e grandes somas de horas em perda de
tempo.
A esfera pública eletrônica funciona ampla e irrestritamente numa época em que a ve-
lha política morreu e tem razão Vilém Flusser ao dizer que não adianta querer ressuscitar a
velha esfera pública. Mas ele também se coloca na fileira dos ingênuos que veem neste aparato
todo oportunidades efetivas de democracia, desenvolvimento ou melhoria das condições soci-
ais. Talvez funcione sim para simular uma participação, que desapareceu das ruas e que nin-
guém mais se lembra que existiu.
120

Detalhamentos

Lucadou e a informação pragmática: "O significado de uma informação exprime-se pela


reação ou pelo efeito que ela provoca, sendo que 'reação', para ele, significa mudança de com-
portamento; ela é, em determinada situação/.../ uma medida para avaliar o significado de uma
situação comunicativa.... A quantidade de informação pragmática (IP) que contém uma notícia
revela-se no seu efeito sobre o sistema. Este efeito pode ocorrer em seguida ou após um de-
terminado tempo. [Diferente do modelo estímulo-resposta do behaviorismo]...a IP precisa ser
'entendida'. /.../Para fixar as características da IP, o biólogo Ernst von Weizsäcker introduziu,
em 1974, dois conceitos como componentes da IP: novidade [Erstmaligkeit] e comprovação
[Bestätigung]" (Lucadou, 1995, p. 145). Por exemplo, um jornal com muita informação mas em
língua desconhecida ou um jornal de ontem, com informação velha e só confirmações. "Novi-
dade e comprovação são conceitos complementares. Esta complementaridade mostra clara-
mente que a IP não é um conceito clássico que se pareça com o conceito de efeito na teoria
quântica" (p. 146). Para complementar os conceitos, Lucadou lança mão de outros dois: auto-
nomia e confiabilidade. Autonomia ocorre quando um sistema não é manipulado de fora ou
não pode ser controlado. Confiabilidade é a segurança previsível. Assim, NxC = AxC = I.
Mas como funciona esse esquema? "A IP é quântica, ela só aparece em unidades ple-
nas, que se pode conceber como 'unidades de entendimento' (chunks). O 'tamanho' dessas in-
formações pragmáticas quânticas depende do respectivo sistema, quando se mede em unidades
de informação Shannon. Para um determinado aluno, o professor precisa investir mais palavras
do que para outro; no final, contudo, o efeito é o mesmo: ambos entenderam o teorema de
Pitágoras. /.../Os bits, que representam conhecidamente unidades de medida informacional de
Shannon, não são 'informação quântica', mas simplesmente unidades de medida como o centa-
vo, no dinheiro. A equivalência básica acima ainda não diz nada sobre como se mede a IP na
prática. Esta tarefa, não tão fácil, só pode ser resolvida no contexto de um sistema concreto"
(p. 148).
Citação de Churchman, v. Churchman, 1969, p. 5.

Beaudrillard: "Você lança uma informação. Enquanto ela não for desmentida, ela será
plausível. A não ser que ocorra um acidente, ela jamais será desmentida em tempo real. Mesmo
se for desmentida mais tarde, ela não será mais totalmente falsa, porque obteve credibilidade.
Contrariamente à verdade, a credibilidade não se refuta, pois é virtual. Estamos num tipo de
verdade fractal: da mesma forma que uma verdade fractal não é de uma ou duas dimensões,
mas de 1,2 ou 2,3 dimensões, assim, um acontecimento não é nem verdadeiro nem falso mas
oscila entre 1,2 ou 2,3 oitavas de verdade. O espaço entre o verdadeiro e o falso não é mais um
espaço de relação mas um espaço de distribuição aleatória" (Baudrillard, 1997b, p. 135-6).

As manipulações. Também Daniel Bougnoux, falando do paradoxo da enunciação, pro-


põe um critério de desvendamento da manipulação: "Reservamos o termo paradoxo a uma
concentração vertical, não entre dois sujeitos afrontados, mas entre um enunciado e uma
enunciação que dão seu relevo lógico à mensagem, isto é, entre o que ela mostra e o que ela diz,
entre a moldura comportamental e o texto verbal, entre os aspectos da relação e o próprio
conteúdo da 'mesma' mensagem. O paradoxo surge quando o conteúdo refuta ou se vê refuta-
do pelos sinais normalmente convergentes ou periféricos da orquestra" (Bougnoux, 1998, p.
26)
Não há informação, só comunicação: "Nossos media são assim, consagrados, em boa parte, a
estabilizar e a estender o sentimento de pertencimento./.../ nos propomos a ver nossos media e
121

certas técnicas de comunicação menos como exteriorização de nossas funções biológicas de


ligação e ação sobre o mundo exterior, segundo o esquema de Lévi-Gourhan, do que como
aperfeiçoamentos e extensões do cocoon primário, batizado de espaço potencial, que se amarra e
se polariza na primeira relação entre mãe e filho"(Bougnoux, 1998, p.77). Informações se
compram, vêm anonimamente pelo mundo; comunicação vem gratuitamente, de empresas e
grupos (p. 84).
Jean Meyrat, citado por Bernard Miège em: Miège, 1995, p.91.

A transmissão mediática do irreal: "O horizonte medial de sentido, em cujos limites a reali-
dade se transmite, deve ser caraterizado como informacional, de acordo com as condições medi-
ais de transmissão. Isso significa que ele é composto de representações de realidade, das quais a
comprovação através de interações diretas, físicas, é ostensivamente suprimida. Assim, as ex-
pectativas já não podem ser avaliadas em sua consistência a partir de contatos sociais diretos.
Correspondentemente ao aumento da capacidade informacional da técnica medial, as condi-
ções de transmissão da comunicação tornam-se cada vez mais informacionais. Não se perma-
nece, portanto, numa forma de construção medial da realidade. O âmbito da seleção da infor-
mação torna-se cada vez mais preocupante. Esse desenvolvimento produz três tipos de cons-
trução de realidades: desrealização, simulação e virtualização (Thiedecke, 1997, p. 85). Daí fe-
cha-se o circuito da autorreferência: "A comunicação medial produz e se reproduz sob condi-
ções da comunicação da auto-informação" (idem, p. 94).

Sobre as notícias. Vilém Flusser: "Os homens deixam a esfera privada/.../ e entram no
espaço público/.../ para serem informados e retornarem à casa para armazená-las e trabalhá-
las. Esta é a vida política e isto é o que Hegel chamava de 'consciência infeliz': quando saio
para o mundo, me perco, e quando volto, para voltar a me encontrar, perco o mundo". (Flus-
ser, 1997, p. 136). Walter Benjamin: "O triunfo da informação sobre a história e sobre a novela
reflete a morte da experiência, pois para ele [WB], experiência significa algo mais do que fatos e
explicações. Significa a textura da vida criada da riqueza de pequenos momentos compartilha-
dos, as expectativas não verbalizadas e inconscientes que formam o tecido sobre o qual os per-
sonagens são bordados. Na ausência desses contextos divididos, a experiência é incomunicá-
vel" (Hayles, 1990, p. 238)
Os media fabricam a notícia: Günther Anders, 1956, p.191; Baudrillard, cf. Pessis-
Pasternak, 1994, p. 252. Umberto Eco: v. Eco, 1984. Ignacio Ramonet, em Ramonet, 1999, p.
28 e 64. Pierre Bourdieu em: Bourdieu, 1996, Cap. 1.
Os media cofabricam a notícia: citação de Bougnoux em: Bougnoux, 1991, p.133.

A manipulação é antes de mais nada uma questão técnica. Inácio Ramonet: Sob influência da
TV, (1) mudou o conceito de informação, isto é, descrever um fato bem como seu contexto
precisa e verificamente. Informar agora é mostrar a 'história em marcha', ou possibilitar que se
assistam (se possível ao vivo) os acontecimentos. A imagem do acontecimento agora é sufici-
ente para lhe dar toda significação" (Ramonet, 1999, p. 190). Mudou também (2) o conceito de
atualidade: "a importância dos acontecimentos é proporcional à sua riqueza de imagens/.../Um
acontecimento que pode se mostrar (ao vivo, em tempo real) é mais forte, mais eminente que
aquele que permanece invisível e cuja importância é abstrata" (idem, p. 191). Mudou (3) o tem-
po de informação: "A Internet encolhe o ciclo da informação. A apresentação ótima dos media
é hoje instantânea (tempo real), o “ao vivo”, que só a TV e rádios podem praticar. Isso enve-
lhece a imprensa cotidiana" e a (4) veracidade: "Hoje, um fato é verdadeiro/... porque os ou-
tros media repetem as mesmas afirmações e 'confirmam'. A repetição substitui a demonstração"
122

(p. 192). Umberto Eco: "Se a emoção que você sente vendo um jornal é verdadeira, a informa-
ção é verdadeira. /.../A verdade está na realidade do corpo virtual que eu vejo morrer na tela
ou na materialidade das lágrimas que esta visão suscita em mim? A ambiguidade é, de qualquer
forma, bem real: pensa-se facilmente que já que as lágrimas são verdadeiras, o evento que está na
origem delas também o é". (Ramonet, 1999, pp. 30 e 63). "Quando há duas frases numa entre-
vista, a segunda frequentemente mata a primeira. As sonoras devem ser curtas, pois em geral
são chatas"(Balbastre, 1999, p. 29).

Hipóteses de Trabalho 1. A manipulação


Pode-se creditar o mesmo à teoria da manipulação. Em princípio, todos os jornais, pelo
fato de selecionarem livremente as notícias, de estabelecerem suas prioridades, seus enfoques,
seus destaques - não só no texto, mas nas filmagens, nas fotos, na ordem de aparecimento e no
tempo dedicado à cobertura - procuram manipular à sua moda. Note-se bem: procuram. Isso,
naturalmente, não se aplica somente ao noticiário ou à imprensa em geral. Qualquer relato é
uma forma de retraduzir o mundo segundo a perspectiva de quem conta. Intencionalmente ou
não, portanto, todos manipulamos.
Mas quando se trata de notícias de grande interesse público como a contaminação dos
alimentos, um acidente nuclear, uma ameaça de fechamento de uma fábrica, o leitor tem con-
dições de se defender contra a manipulação, mesmo aquela que é orquestrada por todos os
meios de comunicação, se fizer um bom uso de três critérios básicos: alguma informação ante-
rior (à partir de uma vivência), uma memória e uma visão de conjunto.
É fácil manipular quando aquele que ouve não tem nenhuma informação prévia sobre
o assunto: uma nova área científica, um novo tipo de doença, uma nova teoria, são em prin-
cípio facilmente assimiláveis, porque o receptor não tem um conceito anteriormente formado
que avalie esses dados. Faltam-lhe bases de julgamento. Isto não acontecerá, ele não poderá
ser manipulado, se esteve lá, ou seja, se vivenciou no ato o fato noticiado no rádio ou na TV.
Mas, convenhamos, esse é um critério relativamente improvável. Na maioria esmagadora dos
fatos noticiados, o receptor efetivamente não pôde ter estado lá.
A memória é o segundo critério: todo aquele que se recorda do político, do jornalista
ou do crítico, por algo pelo qual ele foi condenado ou denunciado tempos atrás, não se deixa
levar pelas suas boas intenções, pelas tentativas de manipulação, por mais bem elaboradas que
sejam. Um véu de descrédito encobre todo o discurso e rejeita in totum a fala do comunicante.
O contexto, igualmente, funciona como meio de fazer frente à manipulação. Através
do contexto de um debate político, sabe-se que os candidatos ali atacam-se uns aos outros so-
mente para satisfazer um espetáculo de ações e emoções na TV. Da mesma forma, o contexto
de um jornal conservador ou radical faz com que todas suas críticas a proeminentes políticos
adversários sejam neutralizadas, pois estas já vêm "viciadas na origem".

Bougnoux: "O jornalista não tem o monopólio das notícias ou dos conteúdos a trans-
mitir: o professor, o pesquisador científico, o enqueteiro ou, em menor medida, o artista, tra-
zem mensagens que podem ser fatores de abertura, daí, de insegurança e problemas. É cons-
tante que para atenuar esse fato nós consumamos informação genuína em doses homeopáticas
e sempre encadeadas à comunicação" (Bougnoux, 1998, p.82).
Hertha Sturm e a « teoria do meio segundo a menos »: "...através da dramaturgia tecno-
lógica específica da televisão/.../não se dá tempo suficiente para a percepção do acontecido e
para a antecipação do que vai vir, assim como para a construção de uma continuidade de senti-
do. Exatamente esses períodos, contudo, seriam necessários para a verbalização interna, vista
como estratégia de obtenção da experiência própria/.../e de expectativas na apresentação me-
123

dial. A verbalização interna é necessária para a lembrança, a compreensão e o acompanhamen-


to do acontecido" (Wrobel, 1997, p. 159).

J.-M. Vernier fala de três contratos de visibilidade na percepção da televisão. O primeiro, da "ima-
gem-profundidade", fala que há um real e ele pode ser captado pela imagem televisiva, símbolo
de uma época perdida em que a TV ainda poderia fazer crer que era uma janela para o mundo.
Tal contrato exigia um telespectador ingênuo e inocente diante das imagens do mundo. O se-
gundo, da "imagem-superfície", toma o mundo como espetáculo. A transmissão esportiva é
exemplar da pregnância das imagens-superfície, que vêm modificar o gestual dos esportistas.
Por fim, o da "imagem-fragmento", imagens esvaziadas de sentido e um contrato de visibilida-
de visando a intensidade, a pura sensação. Para o telespectador, o mundo é apenas uma cola-
gem de imagens, combinatória de imagens virtuais (Sfez, 1993, p. 953).

Efeitos do tempo e da instantaneidade na TV. A frase de Udo Thiedecke, "a inclusão social
se dá pela rapidez", está em: Thiedecke, 1997, p. 91. Ouçamos também Paul Virilio: "A Guerra
do Golfo marca o início de uma interrogação decisiva sobre o reino da informação mediática:
podemos democratizar a ubiquidade, a instantaneidade, a imediaticidade, que são justamente
apanágios do divino, dito de outra forma, da autocracia?" (Virilio, in : Ramonet, 1999).
Günther Anders: "Este jogo é exatamente o princípio da emissão, pois seu trabalho consiste
em enviar apenas ou quase apenas o simultâneo, de forma que atue como verdadeiro presente;
de dar ao presente forma e aparência de presente verdadeiro, de dissolver completamente a
linha demarcatória, em si já pouco clara, entre os dois 'presentes', e, com isso, entre o relevante
e o irrelevante" (Anders, 1956, p. 133). Daniel Bougnoux: "Cada vitória da transmissão direta,
ao vivo/.../é um recuo da democracia. Sob a Revolução Francesa, a vitória dos montanhistas
sobre os girondinos foi também a dos partidários de uma oralidade imediata e quente sobre os
que imprimiam seus programas" (Bougnoux, 1991, p.134).

Overdose informativa: "Grandes quantidades de informação à disposição: a informação


torna-se amorfa na transmissão medial."/.../"A informação permanece, na comunicação medi-
al, sempre 'fora de foco', porque ela, tanto do ponto de vista da forma como do conteúdo,
tornou-se múltipla e falta-lhe o último, o reforço pessoal ou a assinatura"(Thiedecke, 1997, p.
83-4). Rötzer: "O fluxo adicional de informações que invadem as situações de trabalho, e a
possibilidade, a qualquer tempo, de poder se comunicar e ter acesso a informações prejudicam
a situação recolhida e concentrada de trabalho de um pensador isolado que se coloca diante do
vazio de uma folha em branco" (Rötzer, p. 1991, p. 22). A "censura democrática": "Esta se
funda/.../ na acumulação, na saturação, no excesso e na superabundância de informações"
(Ramonet, 1999, p. 40).

Histórico da EP-Eletrônica. A interatividade nasceu na Itália: a prática do jornalismo de


moeda permitiu ao serviço noticioso das principais rádios democráticas o uso de informação
diretamente vinculada à experiência vivida, fato que satisfaria a exigência da contracomunica-
ção espontânea (Marcondes Filho, 1982, p. 192). Anos 7O, movimento de recuperação da es-
fera pública: "De certa forma, [com a Nova Esquerda européia dos anos 70] tentou-se constru-
ir uma contracomunicação a nível igualmente supranacional, que nos primeiros anos conseguiu
equilibrar-se com a ideologia industrializada." (idem, p. 163).

Internet: a tendência é mais para variação do que para união. "Diante da inflação de grupos or-
ganizados e de temas, já não se coloca a esfera pública como agregado unitário, consensual.
124

Tanto 'os que oferecem a esfera pública' quanto 'os que buscam a esfera pública' parecem estar
muito mais ocupados com a construção e a reconstrução de uma oferta variada, do que com o
fato de que poderia surgir uma orientação de ação unitária"/.../"Para a sociedade se apresentar,
se mostrar surge, a partir daí, uma descrição difusa da comunicação pública... A esfera pública
emancipatória é mais uma vez atacada e superada como instância central de controle da ação
social. (Thiedecke, 1997, p. 232). "A esfera pública passa/.../de uma questão do acesso moral a
um problema de formação prática. O problema central agora é: como pode, apesar da concorrência
de ofertas ou em associação com outras ofertas, ser construído um cruzamento da comunica-
ção?"(idem, p. 233)

O estado atual. "A esfera pública performativa pode ser caracterizada como 'autotemati-
zação paradoxal' da comunicação da sociedade da informação, ou seja, é microdiferenciada e globa-
lizada,/.../encontra-se num estágio de permanente projeto/.../ e sua interatividade, [é] ao mesmo tem-
po sua incontrolabilidade."(Thiedecke, 1997, p. 238)

Uma esfera pública "privatizada". "Hoje, as informações são transmitidas diretamente no


espaço privado" (Flusser, 1997, p. 137).

Podem as pessoas atuar como agentes da nova comunicação? "O público/.../se recusa a 'ir a fun-
do nas coisas' " (Heidegger, 1927, p. 160). Nas experiências européias com rádios democrátias
constatou-se o fracasso da ideologia do "levar o povo a fazer seu próprio programa de rádio".
A ausência de profissionalismo, de familiaridade com a técnica e com a atividade, a ausência de
um projeto ou de algo para dizer minou todas as experiências. (Marcondes Filho, 1982, p.124-
5). Nos media, só há o obsceno (Kamper): "Aquilo que se iniciou na literatura do fin-de-siècle
do século 19 teve seu terrível epílogo na esfera pública dos media do século 20 que se encerra
são tentativas claramente fracassadas, frustradas de um expor-se definitivo da mais interna
natureza humana - esta é a zona obscena da cena." (Kamper, 1998-I, p.4).

Uma esfera pública impossível. "A intenção última da rede não é, de fato, a mensagem mas
a disponibilidade do contato: a rede é, em princípio, fática, e não há, no fundo, outra finalidade:
toda a utopia se esgota no ato de ligar entre si os correspondentes" (Bougnoux, 1998, p.114).
Com a extensão da rede, 'acabou o culto' e, ao mesmo tempo, a massa: para cada um, sua in-
formação, suas curiosidades e suas relações particulares" (idem).

Uma esfera pública eletrônica possível: Flusser: "Muitos observadores e críticos sugerem atu-
ar contra as novas tecnologias. Eles querem salvar o espaço público (a cidade) e a consciência
política;/.../mas se trata de tentativas reacionárias e condenadas ao fracasso. /.../ [Ao contrá-
rio, trata-se de] atuar pela vinculação dialógica na transmissão informativa" (Flusser, 1997, p.
174).
Excurso 6: A imagem

Violência das imagens

Uma imagem pode neutralizar a violência, tratá-la de tal forma "estética", que esta se
torna suave, tranquila, digerível. É o estilo do seu tratamento mediático. A violência faz parte
do cotidiano das pessoas, é componente integrante das relações de trabalho, de socialidade, do
trato interpessoal, mas da forma traumatizante ela não pode ser apresentada, pelo menos nor-
malmente. Por isso não nos chocamos. O tratamento sígnico da uma sequência violenta num
125

filme a reduz a formalizações da violência já sem qualquer componente de choque. O medium


separa tecnicamente o componente visual, a imagem da violência de sua relação vivencial. Co-
mo formalização vazia, desconectada, ela pode aparecer livremente em qualquer programa.
Todos assistem com grande indiferença cenas de assassinatos, mutilações, violações, desfigura-
ções, etc. A cena não ultrapassa o plano do registro elementar, ela não conecta com a sensibili-
dade e a dor.

No Capítulo IV, Detalhamentos, falou-se da impossibilidade da representação mediática


da dor. Mesmo sem submeter-se ao regime da formação sígnica, mesmo conseguindo articular
as peças provocando envolvimento afetivo na trama, ou seja, mesmo obtendo-se a dor real, a
violência real, mesmo assim, não se estará jamais falando da cena efetivamente vivida. Uma
representação, mesmo de Auschwitz, do Vietnã, das sangrentas ditaduras latino-americanas, da
carnificina africana, por ser inscrição pode dramatizar a violência, mas não tem mais nada a ver
com a coisa. Não se pode esquecer a não ser aquilo que se inscreveu, pois poderá ser apagado.
Ou : inscrever é esquecer, pois o que foi registrado pode ser deletado. Só o que não foi inscri-
to, transcrito, reconstruído, representado, porque não pode sê-lo, porque é impossível sê-lo,
permanece na memória. Representar é também uma forma de "apagar os vestígios". Este tal-
vez seja o limite da violência mediática. A violência mediatizada, qualquer que seja, não somen-
te apaga a experiência vivida; ela não pode tampouco atingir seu nível de dramaticidade, que
permanece « reserva individual », espaço inatingível.

Imagens digitais

A questão da digitalização das imagens hoje em dia (a transformação das cenas, das
representações, das telas, das fotos em sequência numéricas reprogramáveis) está muito além
da revolução técnica que a acompanhou, a saber, o fato de nenhuma imagem mais poder ser
definitiva, fixa, imitável, mas, ao contrário, espaço de infinitas recombinações de partes, deta-
lhes, cenas, expressões, conjuntos. Trata-se, mais longe que isso, de que todos os códigos da
cultura deixam de ser sequenciais, lógicos, históricos para serem ideográficos.
Da nova combinação de texto e imagem, com precedência desta última, entra-se numa
era cujo princípio orientador, cujo centro na imediatez do observado, do vivenciado, nos evoca
o paradoxo da imagem holográfica: a tridimensionalidade sem fundo, sem densidade, sem vo-
lume. Tudo termina na superfície. Como diz Flusser, desaparece o fundo e nada ocupa seu
lugar.
É um pouco a alegoria do tempo presente. Na era da comunicação eletronicamentre
mediada, diz von den Boom, não apenas os aparelhos estariam todos interconectados mas
estaríamos diante de uma verdadeira "obra de arte total", no sentido wagneriano, sendo que o
novo dessa história é que tudo está semioticamente associado a tudo, o mundo real semioti-
zou-se de uma ponta a outra. Um semiotização hologramática em que uma superfície bidimen-
sional, lisa como uma folha de papel, condensa o mundo todo, retraduz tudo como "uma obra
de arte". A pergunta que se coloca Flusser, ainda preso à visão histórico-sequencial, em vias de
superação, é "afinal, para onde estamos indo?". A pergunta que se colocam os meios é, afinal,
que mundo é esse que ainda se pergunta para onde se vai?

As imagens

O grande temor dos críticos da sociedade atual é a verdadeira inversão do ciclo civiliza-
tório dos últimos 500 anos em que predominou a palavra, o texto, o documento escrito (para
126

uns, signo de ponto de ancoragem intelectual, de solidez, de firmeza conceitual e das ideias;
para outros, sinal de petrificação do pensamento e expulsão das variações, das diferenças, das
"anomalias"), e que admite agora a silenciosa invasão da civilização visual. O terror para muitos
é de que na era das imagens desapareça a cultura letrada, a reflexão, o saber consciente, lúcido
e atuante, e em seu lugar instale-se o império da trivialidde, da leviandade, da irresponsabilida-
de, em suma, o caos.
Imagens, na cultura, representaram sempre o signo da reflexão inferior, menos séria,
menos profunda. Não dá para "imaginar" conceitos abstratos, filosóficos, as representações
imateriais. Por derivação, supôs-se que as imagens seriam um obstáculo ao pensamento.
Não obstante, a crítica ao racionalismo ocidental, à ditadura das estruturas lógicas do
texto e da tipografia, vem a partir do pensar com referênciais imagéticos. As metáforas literá-
rias e poéticas, as ousadias da arte, as extravasões da fotografia e do cinema minaram a consci-
ência dos homens da cultura do século 20 e em lugar da mecânica rígida e harmoniosa, contro-
lável e disciplinada da física celeste, colocaram as imagens sempre improváveis e imprevisíveis
do fractal, dos atratores estranhos, dos flocos de Mandelbrot. A imagem é paradoxal: inibe a
reflexão conceitual porque não opera por hierarquias de complexidade teórica mas por impac-
tos intantâneos: não demonstra, simplesmente faz constatar. Esse estatuto específico da ima-
gem é que suscita mal-estar, pois a um só tempo revela e oculta, ilustra magistralmente e ob-
nubila tragicamente. Tudo numa rapidez extralógica que não pode ser seguida, acompanhada,
fiscalizada. Não se questionam imagens: aceita-se ou não se aceita. Daí suas cartadas serem
perigosas, atuarem num plano pouco racional da percepção imediata e terem efeitos instantâ-
neos. Daí também sua familiaridade incontestável com os equipamentos eletrônicos, eles tam-
bém atuando no plano da lógica instantânea.
É o mesmo motivo pelo qual se sente, também, esse incômodo diante da imagem, pois,
operando em milésimos de segundo de percepção, ela não dá tempo suficiente para se tomar
pé da situação. É aceitar ou largar. E na resignação a essa hegemonia cultural submetemo-nos
ao seu ritmo, às suas escolhas, à sua expansão imprevisível e incontrolável. A televisão foi o
seu primeiro grande espaço de proliferação social. A editoração eletrônica e todos os recursos
das artes gráficas e da iconização das planilhas de computador aumentaram exponencialmente
sua área de alcance, na razão inversa de nossa capacidade de acompanhar (refletir, questionar)
seu desenvolvimento. Uma imagem conduz a outra, a outra, a outra, numa recursividade infini-
ta, que para o telespectador funcionam mais como vertigem. A proliferação, o jogo entre pró-
ximo e distante, dentro e fora, grande e pequeno, mistura-se com os signos de bom e mau,
belo e feio, certo e errado. Não há polaridades na imagem eletrônica porque não há valores
associados, estamos na civilização além do bem e do mal, na era dos signos puros, desenvolvi-
mento inesperado, enfant terrible da televisão.
As imagens dispuseram dessa capacidade de nos advertir sobre os descaminhos da civi-
lização da racionalidade, da objetividade, da lógica totalitária da perspectiva central; não obs-
tante, pela sua ambiguidade, elas nos colocam também numa nau sem rumo da sensibilidade: a
'desapropriação rítmica do olhar', o declínio do poder ouvir e do entender chamam de volta a
razão, num conturbado círculo dialético, daquilo que é aceitável, ponderado, adequado. A cura
da civilização das imagens vem, invertendo os caminhos do paradoxo, pela cultura da escrita.

Detalhamentos

Desapropriação do olhar. "Entre o hábito dos filmes hiperviolentos e os abusos da teles-


copagem de sequências visuais, assistimos já a uma desapropriação rítmica do olhar, especial-
mente na elevação em potência da imagem e do som. Amanhã, se nós observarmos isso, sere-
127

mos vítimas inconscientes de um tipo de conjuração do visível traficado por excesso de acele-
ração das representações costumeiras". (Virilio, 1995, p.114)

Hipóteses de trabalho 2. A formação das imagens: A vivência cria um repertório de imagens


mentais. As muitas imagens de um mesmo objeto criam o que se classifica como classe desses
objetos. Por exemplo, a árvore, a casa, a estrada. Essas imagens são construídas precariamente
no processo de vida e são sempre associadas a vivências emocionais. Durante o desenvolvi-
mento da vida (mais vivências, mais experiência, mais imagens), as imagens individuais podem
ser ampliadas, diversificadas, estimuladas ou simplesmente recalcadas. Outras imagens tornam-
se petrificadas, viram preconceitos, ideias fixas, mitos, fanatismos, como a imagem do judeu
para a cultura nazista. A memória passiva (o pré-consciente), por si mesma, não dá conta da
memória recalcada (inconsciente), não a alcança por processos espontâneos. A arte, a literatura,
etc., ao contrário, podem ativar emoções denegadas ou propiciamente bloqueadas. É o que
chamo de despertar fantasmas adormecidos. Essa ativação desencadeia energias incômodas, estimu-
lantes ou regeneradoras. Os conceitos de árvore, casa, estrada são construções puramente abs-
tratas, trabalho exclusivo do intelecto. Se não houve jamais uma vivência para armazenar a
imagem, seremos facilmente manipulados (formados) por imagens emprestadas por outros.
Processos mediáticos também sobrepõem-se à construção individual (variada, difusa, subjetiva)
impondo-lhe clichês, congelando detalhes (ex.: imagens do passado). Na falta de referência
própria, tornamo-nos hetero-orientados.

Repertórios e estruturas. "O motivo fundamental para esta possível revolução na nossa
forma de percepção [trata-se da transcendência 'prática' da percepção: os fenômenos que de
outra forma eram possíveis, agora são visíveis, é possível manipular a percepção] está no códi-
go da TV. /.../ um código linear, cujos elementos são bidimensionais, ou, mais exatamente, o
repertório do código são imagens e sons e sua estrutura, a linha. Repertório é a soma dos ele-
mentos de um sistema e estrutura, a soma das regras, de acordo com as quais os elementos do
sistema se ordenam. Decisivo para a codificação de elementos bidimensionais é a imaginação e
para estruturas bidimensionais, a concepção. Por isso, o código da televisão possibilita uma
participação ao mesmo tempo imaginativa e conceitual, uma situação jamais vivida. Nele, todos
os processos tornam-se 'imagináveis' e as representações 'processáveis'. Se 'percepção imagi-
nante' é uma forma de percepção 'pré-histórica' e a percepção processual 'concebente' (konzi-
pierende), a 'histórica', então pode-se falar, em relação à TV, da possibilidade de uma 'forma de
percepção pós-histórica' " (Flusser, 1997, p. 113)

Hipótese de trabalho 3. Sobre a "consciência sígnica" a partir dos conceitos de Alfred Lorenzer: As
formas patológicas do comportamento determinado pelo signo são marcantes através de um
agir totalmente descomprometido com a emocionalidade. Na vida real, o comportamento síg-
nico ou a reação sígnica com certos comportamentos traumáticos da vivência provocam o
desmoronamento psíquico ou a total apatia em relação ao mundo. Certas práticas sociais que
envolvem seres humanos e sua própria destruição podem ser consideradas como detonadoras
desse comportamento sígnico. O colapso psíquico, por exemplo, de ex-combatentes em guer-
ras sangrentas tem como efeito a criação de uma patologia psíquica tal, que o sujeito não con-
segue recuperar a unidade perdida. É uma espécie de trauma do corpo dividido ocorrendo só
no psiquismo. Há uma dilaceração psíquica levando ao agir maquínico frio, indiferente, letárgi-
co. Pode-se pensar igualmente como causa do suicídio entre estudantes de medicina também
numa dilaceração psíquica irreversível provocada pela compulsoriedade de tratar seres huma-
nos como objetos de laboratório, dos quais se exorciza a carga afetiva, e que são cortados, mu-
128

tilados, retalhados. Em alguns casos esta compulsoriedade e a consequente desagregação psí-


quica realizam-se também em esferas da vida profissional, que nada têm a ver com a clínica ou
guerra. A profissão do repórter, do fotógrafo em acidentes e guerras, a necessidade do isola-
mento afetivo, de ruptura do relacionamento, a separação entre sujeito e conteúdo fílmico para
os profissionais que atuam nesse setor exige que estes se tornem também absolutamente
"frios" em relação a seus objetos.

A tela nos protege da violência. "O processo realizado nos media de propagar a violência tem
pouco sentido. Pois a tela, superfície virtual, nos protege muito bem, qualquer coisa que se
diga, dos conteúdos reais da imagem" (Baudrillard, 1997a, p.103).

A trivialização da morte. "Entre junho de 1997 e julho de 1998, os media tailandeses di-
fundiram, em geral ao vivo, imagens mórbidas de 650 suicídios!" (Ramonet, 1999, p. 119). Ao
que parece, juntam-se aí vários processos da política mediática e do cotidiano das pessoas. Pelo
lado jornalístico, o tratamento da morte como espetáculo, variação, apelo para conquista de
maior audiência; do lado técnico, a descaracterização da tragédia como dor, sofrimento, angús-
tia de todo mundo; da perspectiva das pessoas, a trivialização da morte, o uso dos media como
caixa de ressonância da própria morte, como sistema que lhe dá significação, sentido. Eu não
morro para que minha alma vá ao paraíso, mas para que chegue a todas as TVs. Os 15 minutos
de glória tornaram-se 15 segundos de elevação transcendental.
"A solução final estava em Auschwitz, mas também no filme Holocausto, que retraçava e
portanto dava a ilusão de memória. Quando se junta o arrependimento e a consciência moral
tranquila a um acontecimento traumático, se sanciona o mesmo de qualquer forma e se extrai
dele a energia de ruptura" (Baudrillard, 1997, p. 59). Analisando o Holocausto, Prokop consta-
ta como, por força de recursos técnicos (formação de signos e fantasia-clichê), um filme que
retrata um fato de alta carga emocional e histórica pode ter o mesmo efeito que um alegre pas-
seio no parque.

Representar a violência é esquecê-la. Esse tema já foi iniciado no Capítulo IV, com Jean-
François Lyotard (Detalhamentos, 2O): "Não basta, dizia Freud, falando do parricídio, realizar o
assassinato, é preciso apagar seus vestígios. /.../ Essa política apolítica se perpetua depois de
“Auschwitz” e seria preciso exterminar os seus meios. E os há, ao menos de dois tipos: uns
procedem pelo apagamento, os outros pela representação. /.../ Mas fazer esquecer o crime
representando-o é mais apropriado, se é verdade que se trata, no caso dos “judeus”, de algo
como o afeto inconsciente de que o Ocidente não quer saber de modo algum. Não pode ser
representado, a não ser com falha, esquecido de novo, pois desafia as imagens e as palavras.
Representar “Auschwitz” em imagens, em palavras, é uma forma de fazê-lo esquecer” (Lyo-
tard, 1994, p. 37-38).

Hipótese de trabalho 4. Porque não nos chocamos nos filmes? Dieter Prokop não avança muito
no que efetivamente provocaria o choque nas produções médiáticas. A partir do estudo de
filmes e programas de televisão, contudo, podemos sugerir algumas hipóteses de trabalho que
indicam porque não nos chocamos:
1. Por não termos acesso a detalhes particulares do mutilado ou pelo fato de os mutila-
dos da cena serem em grande número, nos inviabilizando a identificação com eles;
2. Pelo fato de o mutilado já ter sido anteriormente "preparado" para a violência, por
ter sido desclassificado ou tratado como desprezível no início da narrativa;
129

3. Pelo fato de a sequência de tomadas e, porteriormente, de cenas editadas não cons-


truírem um nexo crescente de envolvimento. A rápida troca de planos e de situações produz
um ritmo de impacto sobre impacto, o que tanto desgasta a potência de cada impacto como
nos narcotiza em relação a eles;
4. Pelo fato de o tratamento da cena ser pouco fiel, pouco convincente, dramaturgica-
mente pobre a ponto de não causar o pathos;
5. Pelo fato de o enredo ser débil, frágil demais para suportar seriamente a violência.

Imagens de síntese. « O homem não pensa somente em símbolos abstratos, como o são os
conceitos que veiculam a linguagem. O cérebro constrói imagens mentais que possuem uma
métrica. Epistemologicamente, são as imagens de síntese a partir de dados numéricos que in-
troduzem uma verdadeira ruptura no estatuto da imagem. As imagens de síntese são, de início,
tabelas de números ordenados nas memórias dos camputadores: a oposição entre imagem sen-
sível e abstração conceitual é à partir de agora é insustentável » (Auroux/Weil, 1991, p. 221).
"Imagens técnicas...são, em comparação com imagens tradicionais, de 'dimensão zero',
pontuais, pois são sintetizadas de elementos como pontos" (Flusser, em Kloock/Spahr, 1997,
p.79). "Nós ainda não sabemos para que significação programam as imagens técnicas que nos
envolvem" (Flusser, 1997, p. 27). Códigos são 'ideográficos', rompem o contexto do pen-
sar/falar, (idem, p. 53)

O filme. "A história segue atualmente pela perspectiva das imagens técnicas: ela é banda
fílmica a ser cortada e emendada e somente este cortar e colar lhe dão significado. /.../Um
documentário, um filme engajado, uma revista semanal movem-se, todos, no mesmo plano de
realidade, a saber, aquele dos quais cenas são compostas como acontecimentos, como histó-
rias/.../Para a pesquisa, tudo ocorre a partir da perspectiva da tecnoimaginação. Com ela, não
só se supera qualquer engajamento na história, transformando-se em engajamento em tecnoi-
magens, mas todos os valores históricos - por exemplo, o humanismo - desmoronam como
um castelo de cartas" (Flusser, 1997, 100-1)

A fotografia. "Como o começo do fim do novo tempo pode-se ver a fotografia/.../ Pela
primeira vez, os raios são tratados como objetos, para deles se fazer algo. Se se toma a luz co-
mo 'imaterial'/.../então a fotografia torna-se o primeiro produto daquela cultura 'imaterial' que
substitui o do novo tempo. Mas na foto não se mostra como o escuro do mundo se desloca
sobre nós mesmos: a câmera escura ainda é o fundo e não um devorante de luz (Li-
chtverschluckender). Somente com a inteligência artificial e um pouco mais tarde com os holo-
gramas mostra-se o que aqui está em jogo: o desaparecimento de todos os fundos e o apareci-
mento do nada em seu lugar" (Flusser, 1997, p. 233)

A arte. "O que antes era entendido pela cultura como 'contexto de cegueira/cegamento'
(Adorno) ou como 'dessublimação repressiva' (Marcuse) transformou-se hoje em fato positivo,
sendo que precisamente sua integração como antiarte nas instituições mostrou a impotência de
uma arte que se dedicou à critica social" (Rötzer, 1991, p. 10)
"Na 'obra de arte total' multimediática da representação total na era tecnodigital tudo
pode e deve estar estreitamente associado a tudo, como a concepção leibniziana do universo.
Tudo deve estar relacionado semioticamente às transformações digitais dentro de um computa-
dor. /.../"O plano de representação virtual faz parte da categorialidade do lógico-semiótico.
No seu limite, como zona periférica de passagem, ocorre uma semiotização do mundo real,
onde os media tornam-se mensagens" (van den Boom, 1991, p.187-9)
130

Humanidade: programada por imagens. "O fato de a humanidade ser programada por super-
fícies (imagens) não pode ser visto como uma novidade revolucionária. Ao contrário: parece
ser um retorno a uma situação arcaica. /.../Contudo, não é uma boa ideia querer [pensar] nossa
situação como retorno ao analfabetismo. As imagens que nos programam não são do tipo que
dominava a cena antes da descoberta da impressão. /.../As imagens pré-modernas são produ-
tos do artesanato ('obras de arte'), as posteriores ao moderno são produtos da técnica."(Flusser,
1997, p.22)

O preconceito contra as imagens. Pode-se pensar com imagens? "O Islão interdita qualquer ima-
gem religiosa. A Igreja bizantina, codificando os modos de produção de ícones (Cristo, Virgem
e santos) e sua distribuição, controla uma fé, tida como mais imediata e mais convincente que
aquela que se exprime pelos meios discursivos. /.../De maneira geral, a partir de Platão, os
filósofos sempre viram na imagem uma forma inferior de representação, um obstáculo mesmo
ao pensamento. A filosofia tradicional, de fato, é dualista: a imagem está do lado da matéria e o
pensamento autêntico é imaterial. Para pensar, é preciso transcender as imagens. Como dizia
Spinoza: a ideia do círculo não é redonda" (Auroux/Weil, 1991, p. 220).

TV: declínio da dimensão do poder-ouvir e entender. "Quem se senta diante de uma tela não
está calado, está mudo. /.../O realmente perigoso é o declínio da dimensão acromática do po-
der-ouvir e entender, isto é, a decadência daquela força hermenêutica que é necessária para que
as obras de arte não se tornem, elas mesmas, mudas" (Riedel, 1991, p. 471). Não há o ouvir, a
paz, o silêncio: "ouvir corresponde aos componentes principais da paz, ele vem do calar-se. Di-
ante do aparelho de TV eu não consigo ouvir se se fala diante de cada imagem e se as próprias
imagens falam. Com isso, fere-se a simetria, que está profundamente ancorada em nós, e o que
para nós, como falantes, é a específica dupla estrutrura da língua. Ouvimos a partir do silêncio
e conseguimos, apenas a partir do ouvir, falar de forma correta (idem, p. 472).

Não pára: uma imagem conduz a outra, a outra, a outra... "Encontramo-nos num sistema
de imagens que se desenvolvem ao infinito e só se reproduzem, sem cessar. Não há mais o
'parar sobre a imagem'. Não vale a pena voltar ao acontecimento literal. O essencial é que uma
imagem conduz a outra" (Baudrillard em Pessis-Pasternak, 1994, p. 252).

Assistimos TV por vertigem. "Os cidadãos não decidem em consciência assistir à televisão.
Eles o fazem por um tipo de atração, de vertigem. Cada um é um ponto intermediário no cir-
cuito ou neste anel de Möbius da informação. Eu acho que toda essa maquinaria virtual não
tem por dimensão a real informação, o conhecimento, o encontro, mas uma veleidade de de-
saparecer" (Baudrillard, 1997b, p. 65).

Virilio e as imagens importadas: "Após a linha do horizonte aparente, primeiro horizonte


da paisagem do mundo, o horizonte ao quadrado da tela (terceiro horizonte de visibilidade) viria
parasitar a lembrança do segundo horizonte, este horizonte profundo de nossa memória dos
lugares e, portanto, nossa orientação no mundo, confusão entre o próximo e o distante, o de
dentro e o de fora, perturbação da percepção comum que afetaria gravemente as mentalidades"
(Virilio, 1995, p. 39)
131

6. O caminho do meio

A razão durante

Não basta falar as coisas, é preciso ser convincente. Para se ser convincente e ao mes-
mo tempo não se fazer uso de explicações místicas e religiosas, criou-se o pensamento científi-
co. Uma forma de retórica que aspirava a objetividade, a verdade acima das opiniões particula-
res e subjetivas. Um outra forma, portanto, de fazer prevalecer as próprias posições.
No passado como hoje a conquista das consciências significa obrigatoriamente o aces-
so direto ao poder. Deter, assim, as regras do certo e do errado, do verdadeiro e não do falso
passaram a funcionar como mecanismos de dominação.
Vários autores já trabalharam com o tema do monopólio da explicação e da verdade
durante os 2500 anos de civilização ocidental. Construíram-se sistemas lógicos, modelos de
pensamento e de procedimento de pesquisa, regras básicas de comportamento dos seres, das
coisas, dos processos, todos eles buscando legitimarem-se como procedimentos dominantes,
regras consensualmente admitidas e que, por isso, excluíam as demais explicações. A história
da racionalidade ocidental, assim, está cheia de casos de perseguição, punição e mesmo liquida-
ção de muitos que ousavam pensar diferente do padrão da época, do cânone oficial.
Por esse motivo, o caminho para os estudos de comunicação, um caminho que propo-
nha um novo olhar para esse objeto, ao mesmo tempo que sugira outros meios de legitimação
de suas verdades, de seus achados e constatações, não pode nem pretender impor um método,
tampouco um procedimento de investigação único ou rígido. Mais do que isso: considerando
que a comunicação é um enigma e que ela não se materializa empiricamente nem se constitui
um objeto de apreensão automática e duradoura, caberá, ao contrário, investigar as possibilida-
des de se pensar uma forma de estudo que seja tão ágil como seu objeto.
Esse é o grande desafio. A proposta que se elaborou nesta introdução e no terceiro
volume deste trabalho buscou, respeitando a inconsistência de seu objeto ao mesmo tempo
que a sua intensa e arrebatadora presença nos momentos específicos em que ela acontece, for-
necer os argumentos para o reconhecimento deste saber como digno das pesquisas, das refle-
xões teóricas, das aplicações universitárias e mesmo na sua divulgação em sociedade.

O que vai ser apresentado nesta parte do livro é a sugestão de que a aparente solidez
das posições tradicionalmente consolidadas em epistemologia e na filosofia das ciências enco-
bre, de fato, uma contínua estratégia de reprimir o novo. Não qualquer novo, mas aquilo que
sempre existiu à margem, que foi desconsiderado, aquilo que se rebelava contra uma ordem
lógica. O novo, e especialmente o mutante, pelo seu caráter de instabilidade não servia para
legitimar saberes anteriores ou escolas constituídas. Foi sempre ocupação de filósofos despre-
tenciosos e desinteressados pela instituição filosófica. Sloterdijk falava dos Quínicos da anti-
guidade, que não se confundiam com os cínicos; Feyerabend, Rorty e outros insistem no para-
digma de Galileo, alguns filósofos franceses ocupam-se com os estóicos e com Lucrécio. Mas
tudo isso é ainda muito lacunar. Pensa-se em trabalhar na construção de um discurso em que
ao transitório seja reconhecida a legitimidade, em que o paradoxo e a ambiguidade não sejam
excluídos, em que o objeto estranho cujas pegadas não podem ser recuperadas seja integrado
no trabalho.
Em suma, um saber que valide o espectro de processos, agentes e combinações que es-
capam ao campo do empirismo, do imediatamente reconhecível, do formalmente legitimado.
132

Mas que atue também no campo das temporalidades pontuais que, pela sua própria natureza,
constituem o real-enquanto tal. A vida, a razão, o sentido, o conteúdo, o valor, o revelador, o
evocador, o sugestivo não está seguramente na cristalização dos corpos - na estrutura, na for-
ma, na instituição ou no corpo social - nem na sua dissolução episódica em crises, viradas, mu-
danças de estado, salto; ela está no jogo dialético dos extremos, no durante, no corpo pulsante,
no organismo vital, vibrante, que interage com o ambiente, que dá e recebe, forma e desforma,
cria e destrói. A razão durante é “a coisa funcionando”, é a tentativa de ver a comunicação em
vários planos: na plenitude de que falava Merleau-Ponty e seu diálogo, isto é, no plano inter-
subjetivo associado às formas de entendimento e de apreensão do outro além da linguagem;
nas práticas grupais que geram o novo a partir de encontros bem-sucedidos e que conseguem
engendrar pela própria situação excepcional e irrepetível do evento o transe do novo; na força
de processos sociais de grande alcance da comunicação mediada tecnologicamente que trans-
forma pessoas, que redefine o social, que instaura novas configurações sociais a partir de ins-
tantes-chave carregados de especial força comunicativa.
A razão durante é a razão que surge em momentos particularmente felizes da reflexão e
que é suficientemente hábil para extrair dos fatos a razão em seu instante de fosforescência
fugaz. Ela está nos processos e nas substituições, na alternância das coisas, das fases, das eras,
das histórias. Sua marca é a absorção e a validação dos contrários: imagem-escritura, recursivi-
dade infinita, espirais de retroalimentação, negação da negação, jogo de recombinações, rea-
daptações, refusões e novas sínteses. Cada nova dominância reencontra os novos desafios dos
vencidos, agora renovados, rejuvenescidos, rearticulados. Eterno retorno do sempre diferente.
A busca teórica vê a comunicação como a emergência incansável do novo, eterna indetermina-
ção, jogo de significações flutuantes, disputa entre corpo e fala, símbolos e índices, enunciado e
enunciação, comunicação e informação, analógico e digital. A proposição imagina poder se
misturar, fazer o jogo para pegar o enredo, acompanhar os movimentos, entrar no clima, vi-
sando-se ter a chance de poder jogar. Imergir no processo para viver com ele: sentir sua pulsa-
ção. Mas isso ainda não é entender. Compreender será um episódio raro, fortuito, quase ina-
preensível. Em geral, só se conhece a coisa, quando muito, a posteriori.
A proposição será a de ver a comunicação como esse território movediço, de levantar
informações e expô-las; esperar que delas surjam correlações, hipóteses, novas buscas. Por
hipótese, os processos de comunicação, estruturas, instituições, gêneros, modelos, linguagens
são esse jogo de reenvios e remissões, idas e vindas, sínteses de passados e presentes, consti-
tuindo seu movimento vital. São a história construindo cada vez novas formas, novos estilos,
novos temas mas que remetem, num alucinante jogo de alternâncias, à recolocação das ques-
tões vitais: dominação, conflito, prazer, esperança e trabalho.
A exposição do “caminho do meio” deverá inicialmente questionar a validade das afir-
mações da ordem no social, no pensamento, nos sistemas complexos da natureza, sugerindo,
ao contrário, que, ao exemplo da ontologia do ser e do pensamento nela ancorado (o absoluto,
a verdade, o ser como presença), trata-se de uma variante da aspiração humana pela dominação
e apropriação racional do real. Daí propõem-se, contrariamente, modos alternativos de conhe-
cimento que se baseiam nos paradoxos, nas diferentes ambiguidades explicativas, em suma, na
precedência da não determinação. Esse desenvolvimento prepara o caminho para uma rápida
perlaboração do que foi a filosofia da ciência em seus períodos principais, questionando o va-
lor de verdade das determinações epistemológicas assentadas em critérios rígidos, dominantes
(e, por isso, excludentes) e, por derivação, paralisantes do saber, desembocando a exposição
nas mais recentes demonstrações de que se pode plenamente defender as proposições teóricas
e de pesquisa a partir de modelos não restritivos, não reducionistas, não lineares de pensamen-
to. Pleiteia-se a dotação de cidadania a um modo de pensar que favoreça inclusive as instâncias
133

não só não empíricas, mas também extrafilosóficas, em suma, das instâncias que reconhecem
legitimidade no estranho, no incaptável, naquilo que só se apreende de forma indireta e a pos-
teriori. Pois assim parecem ser os processos de comunicação nos três planos expostos atrás:
marcados por uma temporalidade única, por variáveis incontroláveis, por uma especificade que
só se apreende enquanto se vivencia junto todo o processo.

7. A ordem e o caos

Os homens, ao observarem a natureza, suas relações sociais e subjetivas, ao olharem a


si mesmos instituíram o conceito de ordem. Trata-se de um constructo tranquilizador, pois lhes
assegurava o domínio, o controle, a “visão plena”, mesmo que geralmente ilusória do movi-
mento e dos sistemas.
A elaboração do conceito de ordem, não por acaso, deu origem à “era metafísica” (ou
“ontoteológica”), cujo primeiro representante foi Sócrates e que somente mais recentemente
foi questionada na filosofia (Nietzsche, Heidegger) e nas ciências físicas e biológicas (através da
teoria do caos, da incerteza, da incompletude e da complexidade). Platão foi o primeiro a dar
ênfase à ordem através da busca de simetrias na natureza e no homem, ordem essa que encon-
trou seu apogeu na mecânica celeste do século 16, com Isaac Newton (Cap. IV). A ordem,
assim, é uma criação humana. Está mais na cabeça do pesquisador, do analista, do político do que
no sistema que ele observa: o sujeito transfere para um fenômeno as significações que em geral
estão na sua consciência. É a imposição, portanto, à natureza, aos fatos sociais, aos eventos
diversos de um arranjo regular, de uma disposição uniforme, de uma harmonia que eles não
precisam necessariamente ter. Da mesma forma, está no observador a imposição ou a localiza-
ção (real ou imaginária) de coerência entre as partes, de solidariedade dos agentes, de organicida-
de do conjunto. É como se a ordem fosse um padrão inconsciente ou inconscientemente pas-
sado pela cultura, pela religião, pela tradição, que faz com que sua ausência torne-se algo insu-
portável.
Não obstante, prevalece em todos os planos a ausência de ordem, o que não significa o
mesmo que desordem. É que os dados da natureza (inclusive humana) desenvolvem-se segun-
do processos e continuidades que muitas vezes escapam à capacidade humana de apreender.
Tem-se, assim, antes, formações caóticas.

Da mesma forma que a ordem, convencionou-se instituir o conceito de “sistema” co-


mo recurso lógico para delimitar o território teórico. Não obstante, o conceito de sistema não
é livre das críticas, visto que seu uso implica na aceitação de uma convenção epistemológica
suspeita. Por definição, sistema é um conjunto de elementos materiais ou imateriais que de-
pendem uns dos outros, de maneira a formar um todo orgânico, como o sistema solar e o sis-
tema nervoso. Condillac, possivelmente o primeiro a sintetizar o conceito, diz que “um sistema
não é outra coisa que a disposição das diferentes partes de uma arte ou de uma ciência numa
ordem em que elas se sustêm todas mutuamente, e onde a últimas se explicam por meio das
primeiras”. Como se vê, um recurso epistemológico que remete de volta à ordem.
De fato, “sistema” na terminologia da ciência incorpora antes uma conotação negativa,
visto que é um recurso principalmente lógico de explicação. Assim como “estrutura” ele encerra
um campo geralmente fechado e delimitado, restringindo o real ao fixo e estruturado. Proces-
sos, ao contrário, têm a ver com a vida e a morte dos seres, instituições, realidades concretas
ou abstratas, com o movimento.
134

Há pelo menos duas correntes opostas do caos: uma que acredita que ele vem de fora
para trazer ordem aos fenômenos; outra, para quem ele já está nos fenômenos e cabe ao cien-
tista identificá-lo, “domesticá-lo”. A primeira é a de Ilya Prigogine e as projeções dessa corren-
te são de amplo alcance e de extensão filosófica. A segunda é a dos teóricos que acreditam
numa ordem escondida no interior do caos, são os teóricos do atrator estranho. As projeções
dessa corrente são de alcance imediato e aplica-se a casos práticos. Comum a ambas teorias do
caos é a dificuldade de predizer o desenvolvimento dos fenômenos. Eles não atuam com o
esquema clássico de causa/efeito das ciências.
Há, por fim, comentadores da ciência que falam de uma “fronteira do caos”, um terre-
no de contato, linha divisória que separa ordem de ausência de ordem. Seria aqui o campo da
“produção de sentido”, o “ponto de equilíbrio”, partida para as grandes viradas ou mutações,
espaço do novo.

Detalhamentos

Ordem é um conceito de raiz metafísica. O filósofo francês Jacques Derrida atualiza a exposi-
ção heideggeriana relativa à metafísica ocidental e ao lugar da palavra (logos, phoné) nesse quadro.
Para ele, o logocentrismo (domínio da palavra, do verbo, do texto escrito sobre os homens)
representa um tipo de etnocentrismo, uma forma de imposição de uma verdade superior, que
vem desde os pré-socráticos. Para ele, a escritura, o signo, fazem parte de uma época metafísica
que já dura 2.500 anos na cultura ocidental e que teria um caráter restritivo, limitador, bloquea-
dor das possibilidades da expressão. Cf. Derrida, 1972, p. 8ss.

Ordem é também muitas vezes uma "fantasia" intelectual. A ordem, a simetria, a invariabilidade,
foram, desde Platão, sempre procuradas pelas pessoas (Mainzer, 1992, p. 263). Ela "só está em
nós"; tome-se por exemplo esta ilustração de Scheck: imagine-se uma estação de trem em que
chegam muitos trens lotados. Ao lado dela, um ponto de ônibus, onde muitas pessoas esperam
e partem nas mais diferentes direções. Visto de cima, tudo parece caótico. Mas todos sabem
que cada passageiro tem uma meta clara. Sai da plataforma 17, mistura-se à massa, pega o ôni-
bus 42. Ou faz o inverso. Agora imagine-se o mesmo lugar num feriado, com um mercado
anual e muitas barracas. As pessoas andam de um lado para o outro, olham barracas, vão na
direção de conhecidos, etc. Olha-se de cima e agora é diferente (citado por Wrobel, 1997, p.
44).

Para Nietzsche, somos nós quem cria as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a
coação, o número, a lei, a habilidade, o motivo, a finalidade". (1886, p.27). Da mesma fora,
para Watzlawick, caos e ordem não são verdades objetivas mas - como tantas outras coisas -
determinados pelo ponto de vista do observador (1978, p. 64). Para Atlan, "uma ordem obser-
vada na natureza só aparece como tal aos olhos do observador que nela projeta significações
conhecidas ou supostas" (Atlan, 1992, p. 34). Ver também: "Contrariamente ao postulado da
racionalidade do real, posto pela ciência, todos os discursos repousam sobre a ideia de que a
realidade é contraditória, e que a não contradição lógica não passa de uma construção do nosso
pensamento, adaptado às exigências de ação a curto prazo e de domínio do real em suas cama-
das superficiais e aparentes" (Atlan, 1986, p. 140).

A obsessão pela ordem é também sinônimo de opressão. Veja-se Deleuze: "A ciência jamais dei-
xou de delirar, de fazer passar os fluxos do conhecimento e de objetos inteiramente codifica-
dos, seguindo linhas de fuga que iam cada vez mais longe. Há, portanto, toda uma política que
135

exige que essas linhas sejam fechadas, que uma ordem seja estabelecida"(Deleuze/Parnet, p.
81). Ou ainda Atlan: "Tudo se passa como se nossa razão não pudesse suportar a ausência de
ordem e de razão nas coisas" (Atlan, 1986, p.111). Ou ainda Hayles, referindo-se a Derrida:
"Teoria da informação e pós-estruturalismo competem em assinalar o valor positivo do caos.
Mas onde os cientistas veem o caos como força da ordem, pós-estruturalistas se apropriam
dele para subverter a ordem" (Hayles, 1990, p.176).
Jacques Ellul associa à ordem também a informática: "A informática é um prodigioso
instrumento de ordem. Graças a ela tudo é posto em seu lugar exato. Com tudo o que se rela-
ciona. Todas as referências. Tudo é classificado corretamente. /.../ Mas eis que é exatamente
neste momento que os pensadores um pouco inquietos estão dando valor à desordem. Nada se
faz sem desordem. Eis que se descobre, que o que porta mais significação, na informação, é o
'ruído', o contrasenso, a lacuna, a margem, o não dito..." (Ellul, 1981, p. X)

Mas é a desordem que está ligada à criação (Edgar Morin). É a mesma opinião de Prigogine e
Stengers: "Esta convicção, de que a natureza não é um sistema de ordem mas eterno desdo-
bramento de uma potência produtora de efeitos antagônicos, afrontados numa luta por supre-
macia e dominação, tem certas ressonâncias e raízes filosóficas" (Prigogine/Stengers, 1986,
p.178-9). Ver também Deleuze/Parnet, dizerem que a escrita, a arte, a inovação política não
são desenvolvimentos harmoniosos - como queriam Goethe, Schiller ou Hegel - mas conflitos,
desordens, deslocamentos como em Hölderlin, Kleist, Nietzsche (1996, p. 114).

Há um "caos" antes de se apresentar ou ser identificada uma ordem. Para Nietzsche, o mundo
é caos, assim como para a filosofia em geral: sinônimo de ausência, algo contrário à ordem.
Nas ciências naturais, sistemas caóticos são aqueles que se comportam inexplicavelmente e
para os quais variando-se as condições iniciais eles se tornam imprevisíveis. A teoria da depen-
dência hipersensível às condições iniciais (DHCI), ou Teoria da Borboleta, está em Kolmorov, Arnold
e Moser (Mainzer, 1992, p. 267). Para Kayes, sabe-se as causas mas não as interações dos pro-
cessos (Kayes, 1993, p. 7). Os movimentos caóticos, contudo, conforme Kayes, não são total-
mente estranhos à previsibilidade mas tendem a um padrão. Diferem dos movimento aleató-
rios, pois, nestes conhecem-se as variáveis mas não as forças de propulsão; nos caóticos, sabe-
se a causa mas sua interação é complexa.

As significações imaginárias sociais são aquilo que "não pode ser pensado nem como caos
desordenado, ao qual a ciência teórica /.../ impõe, sempre sozinha, uma ordem, que traduz
apenas a própria legislação e arbítrio, nem como conjunto de coisas bem separadas ou bem
situadas num mundo perfeitamente organizado por si ou/.../como sistema de essências, qual-
quer que seja sua complexidade" (Castoriadis, 1982, p. 386-7)
A descrição das duas correntes do caos está em Hayles, 1990, p.8ss.

Caos junto com ordem:"A dicotomização entre caos e ordem, que foi marcante no proces-
so científico do início dos novos tempos, é eliminada em favor de uma necessidade simultânea
dos dois, que já está presente no mito. Paralelismo e sincronia são as características suposta-
mente opostas que se expressam em sistemas complexos" (Wrobel, 1997, p. 45)

A margem do caos. “Em verdade, todos esses sistemas complexos adquiriram, de certa
forma, a habilidade de colocarem ordem e caos num tipo especial de equilíbrio. Esse ponto de
equilíbrio – em geral chamado de margem do caos – é onde os componentes do sistema quase
nunca se fecham em lugar algum e tampouco se dissolvem totalmente na turbulência. A mar-
136

gem do caos é onde a vida tem suficiente estabilidade para se autossustentar e suficiente criati-
vidade para merecer o nome de vida. A margem do caos é onde as novas ideias e os genotipos
inovadores são tirados para sempre das margens do status quo e onde seria eventualmente
derrubada mesmo a mais entrincheirada velha guardiã. A margem do caos é onde séculos de
escravidão e segregação de repente dão margem ao movimento dos direitos civis dos anos 50 e
60” (Waldrop, 1992, p. 12). A fronteira do caos. “...o sentido é o inexprimível ou o expresso da preposição
e o atributo do estado de coisas. Ele volta uma face para as coisas, uma face para as proposições.
Mas não se confunde com a proposição ou a qualidade que a proposição designa. É, exatamen-
te, a fronteira entre a proposição e as coisas”. (Deleuze, 1969, p. 23). Isabelle Stengers: O caos
marca justamente os limites de poder que procedem de tais explicações. /.../ O oceano perde
o estatuto de 'causa' da qual a onda seria a consequência. Ele se define somente em termos de
condições que devem ser satisfeitas para que a onda se produza" (Stengers, 5, 1977, p. 93).
Margem do caos, consultar Hayles, 1990, p.27.

Para Pascal, nossa natureza está no movimento: o pleno repouso é morte (Pensamentos, §129). Na
mesma direção fala Georges Bataille para quem somos seres descontínuos, sendo que a morte
dá o sentido da continuidade do ser: os seres só morrem para voltar a nascer. A morte é apenas
a matéria que muda de forma. (cf. Bataille, 1957, p. 13-24). Ver também, a esse respeito, Casto-
riadis: “a autoalteração perpétua das sociedades é seu próprio ser que se manifesta pela coloca-
ção de formas-figuras relativamente fixas e estáveis e pela explosão dessas formas-figuras, que
só podem ser sempre posição-criação de outras formas-figuras” (Castoriadis, 1982, p. 416).
Tudo segue na direção do taoismo: o universo como algo vasto, amorfo, sempre em mudança
(cf. Waldrop, 1992, p. 330).

As estruturas podem ser rígidas e flexíveis. Cristais e fumaça são os paradigmas empregados
por Henri Atlan para o caso: “As organizações vivas são fluidas e móveis. Qualquer tentativa
de fixá-las - no laboratório ou em nossa representação - faz com que caiam numa ou noutra
das duas formas de morte. /.../Qualquer organização celular, portanto, é feita de estruturas
fluidas e dinâmicas. O turbilhão líquido - destronando a ordenação do cristal - se transformou
ou retransformou em seu modelo, do mesmo modo que a chama da vela, em algum ponto
entre a rigidez do mineral e a decomposição da fumaça"(Atlan, 1992, p. 9). /.../Duas noções
opostas, a de repetição, regularidade e redundância, de um lado, e a de variedade, improbabili-
dade e complexidade, do outro, puderam ser destacadas e reconhecidas como ingredientes que
coexistem nessas organizações dinâmicas. Estas, portanto, surgiram como compromissos entre
dois extremos: uma ordem repetitiva, perfeitamente simétrica, cujos modelos físicos mais clás-
sicos são os cristais, e uma variedade infinitamente complexa e imprevisível em seus detalhes,
como a das formas evanescentes da fumaça” (idem).

Quadro 6. Esquema das estruturas e dos processos

Estrutura estática morfogênese pedras cristais pausa sists.estacionários, órbitas estáveis retroação positiva
Processo dinâmica catástrofe águas fumaça movimento sists. caóticos retroação negativa
137

8. A autopoiese e a auto-organização
Organismos e entidades podem ter uma força geratriz, propulsão externa ou se criarem
a si mesmos, neste último caso, constituindo um processo autopoiético. O termo autopoiesis é re-
sultante da combinação do radical grego , que significa fazer, criar, compor (daí a palavra
poema), com o prefixo auto-, que significa "por si mesmo", algo que se fabrica a si mesmo. Na
biologia, é auto-renovação mantendo a integridade, uma ordem originária de dentro do próprio
sistema.
Imagine-se, por exemplo, uma rede, uma tela, um sistema de laços e entrecruzamentos
em que a vida desses sistemas se daria com eles se tecendo continuamente as si mesmos. Au-
topoiesis é a rede de interações em que os componentes geram outra vez a própria rede. O
melhor exemplo daquilo que produz si mesmo continua sendo a célula: uma célula produz
outras células, que produzirão outras, assim por diante. São as chamadas "curvas de retroali-
mentação" (feedback loops). Hofstadter estende o conceito também às máquinas, que podem
transcender as limitações de seus criadores, ao modificarem as intenções do programador, co-
mo no caso do filme 2001 Odisséia no espaço, de Stanley Kubrick, em que o cérebro eletrônico
gerou a contra-ordem de seu desligamento.

Na criação de vida pode-se também criar a própria indeterminação (Bergson), e isso só


pode vir de efeitos externos. Aí pode se constatar uma insuficiência do conceito de autopoiesis,
pelo menos se cair no “fechamento operacional”: Varela considera o sistema nervoso como
uma rede fechada de neurônios e esta rede estaria agregada ao organismo, sendo sua estrutura
determinada pela autopoiesis do organismo. A pergunta levantada pelos críticos é se neste caso
a realidade externa ainda sobrevive ou se estaríamos aí caindo novamente no solipsismo, no
fechamento do ser dentro de si mesmo? (conforme visto no final do Capítulo 4).
Para os pesquisadores Briggs e Peat, os organismos se renovam a si mesmos e mantém
sua identidade mas precisam ser necessariamente abertos ao ambiente externo: a história de
cada organismo é a mesma da história do meio e de outras estruturas semelhantes.
Ou seja, a retroalimentação dos sistemas e o jogo entre os múltiplos fatores conduz à
criação de uma ordem superior, acima de cada parte isolada. Este é o princípio da complexida-
de, qualidade dos sistemas não lineares e foi originalmente sugerido pelo homeostato de Ash-
by, dispositivo constituído de quatro subsistemas autorregulados e idênticos, em que a pertur-
bação de um afeta diretamente os demais, que contrarreagem. O equilíbrio de cada um só pode
ser obtido através do equilíbrio do todo. Sistemas não lineares funcionam de forma semelhante
ao homeostato de Ashby, visto que sua ação conjunta produz efeitos e resultados que não se
resumem à soma das ações de cada elemento separadamente.
Da renovação dos sistemas com manutenção de sua identidade através das trocas com
o meio e seu equilíbrio chega-se ao conceito de auto-organização, que se refere à forma como os
sistemas reagem às interferências, exigências, alterações inesperadas do ambiente, de modo a
sobreviver aumentando suas capacidades de respostas e de produção de novos estímulos. Pela
auto-organização pode-se melhor entender o conceito de "ordem que vem de fora", ou seja, das
interferências externas (o "ruído") que permitem a assimilação, integração e evolução dos sis-
temas. Faz parte do conceito de auto-organização: a flutuação (a detonação de uma mudança),
a bifurcação (o momento em que o sistema tem de decidir o rumo que tomar), a entropia (o
grau provocado de desordem) e a dissipação (a dispersão de calor do ambiente).
138

O desencadeamento de uma mudança é dado pela flutuação, ou seja, a ação de um pro-


pulsor às vezes pequeno, imprevisível, cuja ação desencadeia grandes efeitos (processo "retroa-
limentação positiva"). A transformação de qualquer organismo ou complexo é marcada por um
ponto de passagem, momento em que o sistema “opta” por uma determinada via e rejeita au-
tomaticamente outra. Estamos diante, assim, de um movimento de bifurcação. Ela é um ponto
de separação, de decisão em que o sistema reage diante de forças de mudança. Sabemos que o
sistema tomará um rumo ou outro mas não podemos saber qual sentido escolherá; sua defini-
ção é verdadeiramente imprognosticável. Segundo Katherine Hayles, Jorge Luiz Borges anteci-
pou as duas características essenciais do método da bifurcação: a ocorrência frequente de divi-
sões arbitrárias no fluxo da dinâmica de um sistema e a inexorável não linearidade da natureza.
A passagem para um novo estado significa necessariamente a reorganização de todo o
conjunto e a provocação de uma determinada quantidade de desordem. Entropia é a medida
dessa desordem. Segundo a 2ª lei da termodinâmica, a desestruturação assim como a restrutu-
ração levam a uma perda de energia. Essa perda (entropia) significa que não se pode retornar
ao estado anterior, que a mudança é irreversível. Maior a entropia, menor a capacidade de tra-
balho e maior a desordem. Pode-se misturar um litro de água fria e um litro de água quente
para se obter dois litros de água morna, mas será impossível separar novamente esses dois li-
tros de água morna para recuperar um litro de água fria e de água quente: a mistura de água fria
e água quente é um processo sem retorno. O que obtivemos é "desordem", ou seja, aumento
da entropia. Conforme a 2ª lei, o universo caminha, por força de um aumento constante de
entropia, na direção da morte pelo calor.
Para Ilya Prigogine, não obstante, a entropia é um meio que leva o mundo não necessa-
riamente à morte mas a uma complexidade maior. Ele e a filósofa Isabelle Stengers acham que
em sistemas longe do equilíbrio a produção de entropia é tão alta que a redução local em en-
tropia pode ocorrer sem violar a 2ª lei. Sob certas circunstâncias, este mecanismo permite a um
sistema se auto-organizar espontaneamente. Sistemas dissipativos seriam assim, segundo eles,
os sistemas dinâmicos que se submetem à rápida transformação de aparentemente caótico para
progressivamente ordenado no outro extremo do ponto de bifurcação. Utilizam-se de energia mate-
rial ou trabalho humano e os devolvem ao ambiente como calor. São, em princípio, “sistemas
fora do equilíbrio” (a troca com o exterior e a entropia internamente produzida não se equiva-
lem), baseados antes na troca: essa troca leva a organizações mais complexas e os sistemas a
“aprenderem” e evoluírem.
Entropia, como se viu no Capítulo 5, é também uma medida para a informação. Se au-
menta a entropia é porque caiu a informação disponível que possuíamos do sistema, ele se
torna menos controlável. Mesmo tendo-se toda a informação sobre um sistema isso não é sufi-
ciente para prognosticar seu futuro, pois - conforme Wrobel - a própria informação pode so-
frer processos entrópicos. Isso ocorre quando o nível de informação do observador permanece
constante enquanto que o do objeto de sua informação aumenta.
A 2ª lei da termodinâmica, que diz respeito à entropia de um sistema, pode por isso
também ser aplicada à linguagem. Uma parcela de incerteza na transmissão de uma mensagem
irá reduzir o grau de informação dessa mesma mensagem, gerando mais indeterminação, mais
entropia. Se eu lhe informo alguma coisa deixando lacunas, dúvidas, meu interlocutor compre-
enderá menos. Mas o freio seria a redundância: reforçar a explicação, falar mais, dar mais deta-
lhes, para frear a incerteza. Assim, nos sistemas complexos, segundo Henri Atlan, o grau de
organização não pode ser reduzido nem sua variedade (ou quantidade de informação), nem a
sua redundância, mas deve consistir num compromisso ótimo - num equilíbrio - entre essas
duas propriedades opostas. (Ver também: Detalhamentos de Teorias Matemáticas da Comuni-
cação).
139

Detalhamentos

Em algumas áreas e para alguns pesquisadores, os sistemas se autoreproduzem por si mesmos.


"...alguns sistemas, em particular as células vivas, estão continuamente envolvidos na criação de
si mesmos. /.../O ser humano pode igualmente ser visto como um sistema autopoiético, in-
terminavelmente transcendendo sua estrutura material momentânea num evento contínuo de
autocriação" (Humberto Maturana e Francisco Varela, in: Combs, 1995, p. 132). Pribram: "O
conceito de autopoiesis foi gerado pela observação de que a integridade estrutural, a forma
biológica de uma membrana, de uma célula ou organismo, é mantida diante das constantes
trocas de componentes que constituem aquela forma biológica. Autopoiesis trata da automanu-
tenção mais do que da criação de forma, que é a ênfase do programa de Prigogine".
(Abraham/Gilgen, 1995, p. 310)

Nesses casos, a informação fecha-se em si mesma. Conceito de “fechamento operacional” (F.


Varela): "Uma unidade organizatoriamente fechada é definida como sendo uma unidade articu-
lada por meio de uma rede de interações dos componentes que gera, recursivamente, por meio
de suas interações, a própria rede de interações que a produziu; além disso, ela produz a rede
como unidade no espaço, espaço esse em que os componentes existem pelo fato de constituí-
rem e determinarem os limites da unidade como sendo algo distinto do seu fundo". (Lucadou,
1995, p. 152). Strange loops são o mesmo que hierarquia de entrelaçamentos. Eles ocorrem
“quando aquilo que você supõe que sejam níveis hierarquicamente claros o surpreendem e
desdobram-se numa forma que rompe com essa hierarquia. O elemento surpresa é importante;
é por esse motivo que eu chamo as 'voltas estranhas' de 'estranhas'” (Hofstadter, 1989, p. 691).
Vimos a ruptura das hierarquias no Capítulo 3, quando Bateson usa-se dos tipos lógicos de
Russell rompendo as hierarquias e as fazendo se misturarem.

Quadro 7: Determinismo e Não-determinismo

Determinismo As condições de existência de um fenômeno são determinadas, fixadas de forma


absoluta, de tal forma que as condições, estando colocadas, o fenômeno tem que se
produzir.
Não-determinismo As condições de existência de um fenômeno são marcadas pela indeterminação,
pelo acaso e não se repetem.

A crítica ao conceito de fechamento informacional, de Felix Guattari, em: Stengers, 1997, 6,


p.123. Comentário de Lucien Sfez em Sfez, 1988, p.202.

Mas a retroalimentação pode também chegar a novas complexidades se considerado o meio externo :
pela teoria da complexidade isso ocorre quando sistemas se comportam de forma inexplicável,
se tomados pela soma de suas partes. É através dela que se explicam como as voltas retroativas
(strange loops) podem levar um sistema também a desacelerar. Em relação a Briggst e Peat,
ver: Wrobel, 1997, p. 119. O homeostato de Ashby é descrito por Watzlawick et al., 1972, p.
28.
140

Assim, para outros, os sistemas se transformam pelo efeito de "ruídos". São os sistemas não lineares,
que se auto-organizam e consideram a 2ª lei da termodinâmica. Diz a lei: Em qualquer máquina em que
diferentes formas de energia são transformadas umas nas outras existe sempre uma quantidade
de calor perdida, não recuperável. Ela não pode mais ser utilizada sob nenhuma outra forma de
energia, nem mecânica (isto é, produtora de movimento da matéria, de trabalho), nem elétrica,
nem química. É o calor produzido pelo atrito indesejável que os melhores rolamentos de esfe-
ras não conseguem evitar, ou pelos escapamentos de vapor ou de corrente elétrica que os me-
lhores isolantes não conseguem anular, ou pelo petróleo queimado para fabricar eletricidade,
sem que nenhuma usina química que funcione com essa eletricidade possa ressintetizar uma
quantidade de combustível igual à que foi utilizada. (entropia = calor não utilizável) [Atlan,
1992, p. 28]

Quadro 8. Esquema das termodinâmicas linear e não linear

Termodinâmica Sistemas Entropia Evolução


Termodinamica linear Sistemas fechados sem Entropia nula Evolução controlada
Ex.: o cristal [macro- troca Ciência clássica  trajetória dada de uma
sistemas físicos]  sistemas de equilíbrio vez por todas
(equilíbrio de fluxos que
entram e saem); sistemas
que podem ser isolados.

Termodinâmica espontânea Sistemas abertos com Entropia indica a evolu- Evolução em direção ao
Ex.: uma cidade, uma célula troca ção equilíbrio.
viva [microssistemas]  sistemas que vivem de (Há flecha do tempo:  Evolução do não equi-
sua abertura, alimentam- futuro é a direção para a líbrio para um equilíbrio
se de energia. qual aumenta a entropia)  Sistema "esquece"
 os sistemas não po- condições iniciais; só
dem ser separados do  irreversíveis conta a bacia atratora
seu meio

Aqui, o conceito básico é o de entropia. Segundo Atlan, a matéria só se deixa restringir e do-
minar até certo ponto. As transformações impostas pelas máquinas implicam uma orientação,
uma ordenação da matéria e de seus componentes (moléculas, átomos). Entregue a si mesma, a
matéria ignora essa ordem imposta pelo construtor de máquinas. Em particular, a principal
fonte de energia natural, o calor (do fogo e do sol), tem como efeito agitar as moléculas desor-
denadamente, isto é, aleatoriamente, em todas as direções, sem que nenhuma delas seja privile-
giada, nem mesmo numa média estatística. Para que haja movimento, deslocamento de maté-
ria, trabalho, é preciso que todas as moléculas da amostra se desloquem juntas na mesma dire-
ção. Transformar calor em trabalho implica que se ordene o movimento desordenado de mo-
léculas num movimento orientado, de tal sorte que, em média, as moléculas se desloquem nu-
ma mesma direção. Essa transformação, imposta de fora, não pode ser total: uma certa parcela
de desordem molecular continuará a existir e se traduzirá por um calor nãoutilizável (Atlan,
1992, pp. 28/29). Sobre entropia (equilíbrio termodinâmico, morte) em oposição a neguentropia
(aumento da complexidade), ver Harvey, 1989, p. 302.
141

Os conceitos da auto-organização podem ser encontrados em: Atlan, 1992, e em Mainzer, 1992, p.
270. Flutuação. As correntes da auto-organização estão descritas em Ravn, 1997, p. 61. Sobre o
equilíbrio entre o exterior e a entropia internamente produzida, ver Hayles, 1990, p. 94 e Hay-
les, 1991, p.191. Wrobel fala da associação que geralmente se faz da entropia com melancolia,
pessimismo (1997, p.83), da diferença entre entropia (enrijecimento final) e caos (abertura),
dizendo não encontrar incompatibilidade entre os dois processos (idem, p. 214), e da entropia
da informação (idem, p. 82). Estruturas dissipativas: ver em Prigogine/Stengers, 1986, p.170ss;
Stengers, 1997, 3, p. 56ss; Atlan, 1992, p. 73ss. Definição também em Mainzer, 1992, p. 266.

9. Conhecimento e paradoxos

Ambiguidades ontológicas

Os estudos de comunicação estão em busca de um modelo teórico próprio. Um mode-


lo que se adapte ao caráter pulsante dos processos sociais da própria comunicação. O desen-
volvimento dos debates que se seguem e do próximo capítulo servirá de preparação à discus-
são em torno de um modelo próprio de pensar, estudar e pesquisar a comunicação, de apresen-
tar subsídios para um projeto que acompanhará toda esta obra: o princípio da razão durante.

A reflexão científica contemporânea tem sido marcada pelo aparecimento e pela valida-
ção de modos alternativos de conhecimento, resultantes das revoluções na ciência provocadas pela
relatividade, incerteza e caos, e, concomitantemente, das limitações, da incapacidade e da crise
das lógicas formais (especialmente Russell e o Círculo de Viena), denominada da crise do posi-
tivismo, do racionalismo e da objetividade nas ciências. Esse desenvolvimento será visto em
detalhes no próximo capítulo. Por ora basta apresentar os modos alternativos de conhecimento
que acompanham as inovações anteriormente apresentadas (como catástrofe, caos e ordem,
autopoiesis e auto-organização), e seu destaque para se pensar esse novo projeto para estudos
de comunicação.

Ambiguidades ontológicas

Scott Fitzgerald dizia que inteligência seria ter duas ideias opostas. Presumivelmente
ele incorporava as ambiguidades ontológicas, que têm a ver com a duplicidade do estatuto de
identidade das coisas, ou, dito de forma mais clara, com o fato de as coisas parecerem mas não
serem, não parecerem mas serem. De o objeto oscilar entre o ser e o não ser, sendo as duas
coisas ao mesmo tempo. É o campo dos paradoxos, em que a imagem mais conhecida é das
Mãos desenhando, de Escher; a mão desenhada desprende-se do papel e desenha a outra mão.
142

Imagine-se primeiramente o princípio da contradição. Ele encontrou sua forma filosó-


fica mais expressiva em Hegel e sua dialética, através da frase "o que é idêntico deve aparecer
na contradição e o que está em contradição deve aparecer na identidade". Contra a lógica clás-
sica, que propõe que A = A e que A # B, a dialética hegeliana propõe que A = não-A. Uma
proposição que exprime a identidade em termos contraditórios, seria, por exemplo, o ser e o
nada, como uma e mesma coisa. A unidade (a identidade) das determinações contrárias seria,
então, ela mesma, uma determinação. A coisa é igual ao seu oposto.
Mas esta afirmação aparentemente paradoxal encontra sua validade na ideia de que a
coisa gera, enquanto unidade, sua própria negação e do conflito entre os contrários surgirá a
superação, o novo estado. O falso, assim, é produtivo; é momento necessário do verdadeiro. O
fruto surge do desaparecimento da flor.
A dialética hegeliana falava da “realização da Ideia”: “no caos de interesses e crimes, de
paixões e guerras, [há] o lento trabalho de uma razão universal que, fazendo fogo de todas as
lenhas, põe a loucura dos homens a serviço de sua realização”. O marxismo adotou, no passa-
do, a mesma lógica, aplicando-a às lutas sociais e traduzindo-a não mais como realização da
Ideia mas em termos de conceber a revolução social e seu produto, a sociedade sem classes,
como síntese de um longo processo de tese (modo burguês) e antítese (sua negação: a oposição
dos trabalhadores).
O contraditório, entretanto, não é o mesmo que o paradoxal. Enquanto o primeiro no
contraditório permite a escolha de uma saída, o paradoxal não deixa nenhuma chance, tem-se
que ficar com os dois. Segundo o princípio de complementaridade do físico Niels Bohr, duas descri-
ções que aparentemente se excluem são igualmente necessárias se se quiser entender um fenô-
meno descrito. O reconhecimento do paradoxal como argumentação é necessário nas ciências,
além disso, colabora para a captação do múltiplo e para o expurgo da ortodoxia, pois, como
diz Oscar Wilde, pelos paradoxos se chega à verdade.

Sob ambiguidade ontológica pode-se compreender igualmente o conceito de instabilida-


de farmacológica que Isabelle Stengers utiliza para caracterizar o fato de as coisas serem ao mes-
mo tempo si mesmas e outras. Em grego, o termo fármaco ( significa ao mesmo
tempo preparar remédios, venenos ou encantos. No caso, a filósofa fala do estatuto farmaco-
lógico atribuído aos átomos, à ADN e aos neutrinos, como elementos de identidade oscilante.
O mesmo estatuto de indeterminação tem o movimento browniano: o líquido parece em re-
pouso mas a partícula browniana mostra agitação incessante.
143

Ambiguidades epistemológicas

O psiquiatra polonês Paul Watzlawick desenvolve em várias obras uma discussão sobre
o conceito de realidade, defendendo a tese de que não há uma única realidade, mas apenas
versões diferentes desta. Ele exemplifica com os casos de tradução em que cada língua corres-
ponde a uma realidade; com a psiquiatria, em que o trabalho paciente-médico, a relação double
bind de mãe-filho, sempre exprimem mundos diferentes; com a ciência, que por vezes prefere
deformar a realidade para adaptá-la à teoria, e com o fenômeno da pontuação, segundo o qual, as
pessoas - por exemplo num conflito familiar, de casal, de filhos - contam, cada uma a partir do
seu ângulo, a história da sua maneira, criando aquilo que se pode chamar, sem exagero, de rea-
lidades diferentes.
As múltiplas realidades remetem diretamente aos fenômenos do fractal: o mundo é visto
como um fractal de milhares de faces no qual todas as leituras são possíveis. Na tela do com-
putador, por exemplo, pode-se isolar um setor de uma grande figura e aumentá-lo do tamanho
da tela. Desta nova tela pode-se igualmente extrair mais um trecho e ampliá-lo, obtendo-se
sempre novas e impressionantes criações fractais infinitas. Esses milhares de formas vão na
direção das múltiplas dimensões fractais nos objetos (os objetos não teriam uma dimensão, duas
ou três, mas, por essa lógica, 1,2 ou 1,9 dimensões, etc). De forma semelhante, multiplica-se,
na teoria das catástrofes, o espaço substrato por um "espaço auxiliar" para se chegar ao ser da
coisa. Por fim, é esse também o sentido da lógica fuzzy, segundo a qual, não haveria apenas
dois valores de verdade, o verdadeiro e o falso, mas entre eles existiriam muitas outras possibi-
lidades.
O paradoxo das medições é a outra manifestação desse fenômeno. O mesmo objeto pode
ter medidas diferentes de acordo com a distância a partir da qual ele é medido. Por exemplo,
para medir a extensão da costa da Inglaterra, quanto mais exatamente se medir, “tanto maior
ela será”, quer dizer, da perspectiva da mensuração óptica ela será diferente se a mensuração
for feita a partir de um avião ou com a fita métrica. Se bem que o volume da ilha permaneça o
mesmo, a superfície - comprovada do ponto de vista técnico da mensuração – tenderá a au-
mentar.
Da mesma maneira, segundo a teoria de incerteza, sistemas fechados não permitem a
mensuração simultânea de mais de uma qualidade: a focalização de uma grandeza impede a
simultânea captação de outra. Tal constatação põe limites às capacidades de mensuração quan-
do consideradas essas circunstâncias. Por exemplo, se num experimento eu puder determinar
com bastante precisão o tempo, a mensuração da energia será obrigatoriamente imprecisa; nos
casos extremos ela pode ser tão grande que uma partícula irá surgir do nada e sobreviver ainda
por um curto período de tempo.
A superposição de estados quânticos, de Niels Bohr, tem a ver com a impossibilidade de se
determinar como se manifesta uma situação até a interferência do observador. Como nos casos
anteriores, a medição é posta em dúvida. Para muitos físicos, os fenômenos quânticos depen-
dem da consciência dos homens e da forma como vemos o mundo. O caso do gato de
Schrödinger, em que observar o gato pode salvá-lo ou matá-lo; da torneira, cuja temperatura só
é definível se pusermos a mão; ou das bolinhas de ping-pong sugerem que os objetos vivem a
um só tempo em vários estados superpostos. Só se pode saber de seu estado quando se proce-
der à mensuração. Nós, portanto, temos muito mais influência nos fenômenos que observa-
mos do que à primeira vista aparenta.
144

Heisenberg e Bohr opõem-se diretamente a Einstein na discussão sobre as leis funda-


mentais que regem os fenômenos. Para a teoria da incerteza, a intervenção de um observador
provoca o desmoronamento da função de onda (ver abaixo: Detalhamentos), introduz um dado subjeti-
vo nessas leis fundamentais. Explicando de outra forma, ela diz que qualquer sistema físico de
observação e medida, inclusive o olho ou o cérebro de um homem, se obedecer às leis físicas
descritas pela mecânica quântica, modificará a função de onda do elétron observado (Atlan). É
o mesmo que dizer que o simples fato de observar as partículas provoca esse colapso da fun-
ção de onda, isto é, sua redução a apenas uma única região do espaço.

As ambiguidades epistemológicas se opõem ao racionalismo, da forma como foi sistemati-


camente utilizado na história da ciência. Isso porque a racionalidade, por tanto tempo prestigi-
ada na ciência, parece não ser diferente do mito. Ela é uma criação do Ocidente, postulando
um único caminho, uma única metodologia, um método e uma verdade que não estão longe do
dogmatismo e do absolutismo da metafísica. Vimos atrás que nossa tradição científica - e a
questão será retomada no Capítulo IV - é intolerante com as ambiguidades, foi e em muitos
casos ainda é intolerante com tudo o que foge à razão clássica.
As novas práticas científicas, contudo, propõem a abertura do leque, incorporando di-
versos tipos de lógicas e outras formas de racionalidade, contrastantes com o modelo clássico.
Henri Atlan - como o antropologo Claude Lévi-Strauss, para quem o pensamento mítico e o
pensamento científico têm a mesma lógica - dá o exemplo do raio, que em diferentes culturas
tem explicações distintas nem por isso menos racionais. Tanto um como o outro modo de
pensar estão na busca de uma ordem, apesar de diferenciarem-se na forma de exprimir essa
lógica.
Por isso não há justificativa, sob o risco de exercer um controle do pensamento e da
produção do saber, de excluir o mito do campo da racionalidade. O erro da psicanálise, co-
menta Atlan, foi inverso. Ela quis ser reconhecida no campo da racionalidade científica, quan-
do sua riqueza estava exatamente no componente mítico. Assim como Bergson aposta na in-
tuição, este biólogo acredita nas formas delirantes, tradicionalmente tidas como extra-
científicas, como meios de cientistas imaginarem correlações, explicações, possibilidades, ou
seja, a fonte da inovação e da criatividade na ciência.

Detalhamentos

Hoje em dia se fala, em ciência, nos modos alternativos de conhecimento. Nas ambiguidades onto-
lógicas as coisas são e não são ao mesmo tempo. Sobre Hegel e a contradição, consultar Au-
roulx/Weil, 1991, p. 172. Sobre a distinção entre o paradoxal como diferente do contraditório,
ver: Watzlawick et al., 1972, p. 218. Sobre Niels Bohr e o princípio da complementaridade,
consultar Ravn, 1997, p.120.

Ou, um remédio tanto cura quanto mata. Ouçamos Isabelle Stengers: "O neutrino, o átomo
ou a ADN 'existem' autonomamente em relação àqueles que os construíram; eles superaram as
provas destinadas a mostrar que eles não passavam de uma ficção entre tantas, suscetíveis de
trair seu autor, e que no caso deles teria havido efetivamente 'invenção do poder de conferir às
coisas o poder de conferir ao experimentador o poder de falar em seu nome"/.../"O neutrino,
o átomo ou a ADN distanciam-se do lugar muito específico - a rede de laboratórios - onde eles
ganharam existência, invenção e comprovação; eles podem mudar de significação e tornar-se
vetores daquilo que se pode chamar da 'opinião científica': os fatiches científicos têm uma ins-
145

tabilidade farmacológica". (Stengers, 1997, 1, p.57). Sobre o conceito de 'fatiches', ver Bruno
Latour, 1996. Sobre o movimento browniano: "O biólogo Robert Brown descobriu em 1828 o mo-
vimento casual de corpos microscopicamente visíveis em meio líquido. Tais corpos, como
grãos de pó, não vão para o fundo mas movimentam-se de forma totalmente irregular para um
lado e para outro. Esse interminável movimento casual é explicável pelo movimento do calor
das moléculas em meio líquido; elas movem os corpos em direção ao acaso" (Bolz, 1994, p.
302). Ver também: Stengers, 1997, 3, p. 108.

A ambiguidade epistemológia questiona a existência de uma única realidade... As diferentes reali-


dades de Watzlawick estão em: Watzlawick, 1978. A citação é da pág. 68. Considere-se também
a afirmação do filósofo norte-americano N.R. Hanson: "Observando o mesmo pôr do sol, os
astrônomos Tycho Brahé e Kepler não 'viam' a mesma coisa: um percebia um objeto brilhante
móvel ao redor da Terra e outro um objeto brilhante fixo" (Auroulx/Weil, 1991, p. 138). Pri-
gogine e Stengers falam do espaço de fases: "[O fato de que]... jamais conhecemos uma trajetó-
ria mas um conjunto de trajetórias num espaço de fases, não é somente uma maneira mais
prudente de exprimir os limites de nosso conhecimento, mas o ponto de partida de uma forma
nova de conceber a descrição dinâmica" (Prigogine/Stengers, 1986, p. 321).

...Envolve as muitas faces do fractal, bem como o paradoxo das medições... Fractal é "uma figura
geométrica com 'franjas', cuja forma se repete em medidas cada vez menores quando mais nos
aproximamos dela, e pode ser descrito por meio de dimensões (fractais), que não são em nú-
meros inteiros". (Ravn, 1997, p. 65). Fractal e as medidas da costa da Inglaterra estão em:
Hess/Hofner, 1992, p. 34.

Sobre a Teoria da Incerteza, de Heisenberg: "Trata-se de medidas físicas que não po-
dem ser obtidas ao mesmo tempo com alta precisão. /.../Heisenberg relata que "em determi-
nados pares de características de partículas atômicas ou em processos quanta a medição precisa
de uma grandeza leva a que uma grandeza complementar só possa ser determinada com pe-
quena precisão. A exatidão de ambas medidas das duas características é desigualmente propor-
cional" (Ravn, 1997, p. 92)

O gato de Schrödinger: "O gato é posto numa caixa fechada contendo um recipiente com
veneno e um martelo preso a uma alavanca fixa, de tal forma que em caso de ser acionado ele
quebra o recipiente. O acionamento do martelo é comandado por um relógio que registra fatos
aleatórios, como o decréscimo radioativo. A experiência dura exatamente o tempo necessário
para que haja ½ probabilidade de o martelo bater. A mecânica quântica representa matemati-
camente o sistema com a soma de uma função do gato vivo e de uma função do gato morto,
em que cada um tem uma probabilidade da metade" (Hofstadter/Dennett,1987, p. 47).

Desmoronamento da função de onda: de acordo com Erwin Schrödinger, "um elétron não
deve ser visto como uma partícula, mas como uma onda. Não uma onda contínua, que se mo-
ve fisicamente em torno do fóton, mas uma onda fixa. Isso significa que a órbita deve consistir
em uma vasta série de extensões de onda (como, por exemplo, o som num órgão de sopro) e
os diferentes níveis de energia só podem ser caracterizados através de um número determinado
de extensões de onda"./.../"A forma de vibração do elétron desta onda fixa é descrita por uma
grandeza matemática, a função de onda, cuja oscilação num determinado lugar no espaço é
interpretada como medida da probabilidade de que sendo mensurada irá se encontrar elétrons
num determinado lugar."/.../"Segundo a interpretação probabilística, a função de onda mostra
146

os diversos resultados possíveis a serem obtidos das mensurações realizadas nos respectivos
sistemas físicos; por meio da mensuração chega-se a um dos possíveis resultados, a partir do
qual os outros deixam de existir" (Ravn, 1997, p. 250-1).

Teoria das Catástrofes. "A teoria das catástrofes supõe que as coisas que vemos seriam
apenas reflexos e que para chegar ao próprio ser da coisa seria preciso multiplicar o espaço
substrato por um espaço auxiliar e definir neste espaço produzido o ser mais simples, que, por
projeção, daria origem à morfologia observada" (Thom, 1983, p. 85).

E propõe outras formas de racionalidade para explicar o real. A racionalidade não passa de um
mito: Atlan, 1986, pp. 198 e 259; é criação do Ocidente, em Auroulx/Weil, 1991, p. 411. O caso
do raio: "O relâmpago e o raio, interpretados como descarga elétrica ou cólera de um deus,
permanecem aquilo que são, integrados nos dois casos a uma cadeia causal, portanto, por ela
'explicados'. /.../ Do ponto de vista dos efeitos do raio sobre o psiquismo ou uma organização
social, a segunda interpretação não será desprovida de eficácia/.../ se se trata de uma sociedade
animista." (Atlan, 1986, p. 172). "As duas formas de discurso, ambas racionais, são 'incomensu-
ráveis', não são superpostas e menos ainda confundidas e são, uma em relação à outra, como
dois movimentos sobre trajetórias paralelas em direções opostas: uma de um racional a priori
em direção à realidade; outra, de realidade sensível ilimitada a priori, em direção à razão do dis-
curso." (idem, p.146)

Os erros da psicanálise, segundo Atlan:"A ambiguidade da psicanálise quanto à sua cienti-


ficidade só poderia ser boa para ela, pois /.../ é pelos seus aspectos não científicos que ela apa-
rece como a mais original e a mais interessante" (idem, p. 216)/"...recusar a riqueza de tudo o
que podem trazer as tradições místicas parece, de um lado, arbitrário e ridículo a todos aqueles
para quem o conteúdo é mais importante que o método. Ao contrário, ela é a condição mesma
de uma certa ética da pesquisa para todos aqueles para quem o rigor se apresenta; mesmo ao
risco de amputação e empobrecimento é uma condição de fecundidade futura"(idem, p.220)

Sobre o delírio: Para o filósofo e historiador norte-americano G. Holton, são as premissas


inconscientes - para ele thêmata - que guiam na longa história as descobertas e as pesquisas cien-
tíficas" (Auroulx/Weil, 1991, p.139). Ver também Atlan: "A ideia de que o delírio seria uma
projeção inadequada do nosso pensamento sobre a realidade, enquanto o pensamento não
delirante ('racional', logo verdadeiro) seria expressão dessa realidade, é das mais ingênuas e não
resiste à análise do processo de teorização sejam quais forem, científico ou não" (Atlan, 1986,
p. 171).

Ambiguidades lógicas

Bertrand Russell tencionava, no início do século 20, dotar a matemática de uma estru-
tura lógica absoluta, na qual nenhuma questão poderia permanecer não resolvida, não decidida.
Tudo o que era obscuro deveria encontrar uma explicação lógica. Gottlob Frege, do mesmo
círculo, acreditava que a matemática, como linguagem simbólica, deveria se desembaraçar das
imprecisões das línguas naturais. É o mesmo sonho de Descartes: transformar intuições em
exatidões.
147

O desafio de Russell, no empenho de eliminar as ambiguidades lógicas, foi o paradoxo


de Epimênides ("Todos os cretenses são mentirosos"), que, reproduzido de forma simplifica-
da, sintetiza-se na frase: "eu estou mentindo" ou "eu sou um mentiroso". Esta frase, que con-
tém um paradoxo interno - pois se é verdade a afirmação então ela é falsa e se ela é falsa, a
afirmação só poderá ser verdadeira - recebe um saída russellinana através da teoria dos tipos lógicos.
Uma classe reúne todos os objetos que satisfazem uma certa função. Por exemplo, a
classe dos palitos de fósforo. Cada palito não é a classe, mas um membro dela. O palito, por-
tanto, não pode ser a classe dos palitos de fósforos, ele está necessariamente num outro nível
lógico. No caso da frase, "eu minto", ela deixa de ser um paradoxo se eu crio um outro nível,
acima deste da própria frase contraditória, que a insere num conjunto de frases paradoxais ou
simplesmente exclui o paradoxal. Desta forma, ela perde seu estatuto de estranheza, sem-
sentido, para se encaixar uma norma que a entende.
Para Wittgenstein, só se pode conhecer o mundo saindo dele. É o que nos passa a gra-
vura de Escher, Exposição de gravuras. Como diz também Watzlawick, todo sistema para de-
monstrar sua coerência deve sair de seu próprio quadro conceitual: somente princípios inter-
pretativos exteriores, que o próprio sistema não pode criar por si mesmo, permitem demons-
trar que ele não encerra nenhuma contradição.

O questionamento da lógica russelliana acontecerá com Kurt Gödel, e seus indecidíveis,


se bem que o fato de que nosso processo lógico estar sempre incompleto já havia aparecido
em Niels Bohr. Para Gödel, nenhum sistema pode ser completo e consistente ao mesmo
tempo. Seu teorema diz que para cada formalização consistente da aritmética há afirmações
que são verdadeiras mas que não podem ser provadas com os meios desse sistema formal. Há
uma incompletude básica nos sistemas matemáticos: eles não podem dar conta de todas as ver-
dades matemáticas.
A ilustração talvez mais sugestiva dessa teoria apareceu em Douglas Hofstadter, e seu
clássico Gödel, Escher, Bach, no diálogo "Contracrostipunktus" em que Aquiles visita sua amiga e
companheira de corridas, a Tartaruga. No diálogo, a Tartaruga diz a Aquiles que está se apri-
morando cada vez mais num certo tipo de música: a música para quebrar fonógrafos. Um ami-
go desta, o Caranguejo, aficcionado por toca-discos, vem um dia visitá-la, e tinha acabado de
comprar um fonógrafo especial, capaz de reproduzir todos os tipos de som, ou seja, um "fo-
nógrafo perfeito". Numa outra visita a ele, a Tartaruga portava um disco com uma música de
sua própria composição Não posso ser tocada no fonógrafo 1. Depois das primeiras notas, o fonó-
grafo do Caranguejo arrebentou-se em mil pedaços. Para um segundo aparelho, mais caro, que
seu amigo havia comprado, a Tartaruga preparou o disco equivalente Não posso ser tocada no
148

fonógrafo 2 e o novo fonógrafo explodiu igualmente. O Caranguejo, então, ficou convencido de


que não existe um fonógrafo perfeito. Não pode ser completo e consistente ao mesmo tempo.
As hierarquias de Russell são também criticadas por Recenati, para quem nem enuncia-
dos imperativos, nem declarativos, nem interrogativos estavam nos Principia mathematica de
Russell e Whitehead. Hofstadter, que diz que Russell só vale para conjuntos matemáticos, seus
tipos lógicos seriam formas rígidas e uma lógica sem contradições, onde Epimênides fica ne-
cessariamente de fora.

Ambiguidades fenomenológicas

Blaise Pascal dizia que qualquer objeto a que pensemos nos apegar e em nos consoli-
dar, nos abandona e se o perseguirmos, foge à perseguição: ele escorrega-se entre as mãos nu-
ma fuga eterna. Assim parecem ser também alguns objetos do conhecimento como o inconsci-
ente, a paixão, o poder, as massas, mas também objetos da física atômica e subatômica como
os quarks, hadríons e outras partículas, bem como os dados da investigação científica, proces-
sos, fenômenos: eles têm sua própria autonomia. Prigogine e Stengers dizem que o movimento
orbital não emite nem absorve nenhuma energia, nada produz que possamos medir, não inte-
rage com o mundo exterior. Só podemos conhecer algo do elétron quando ele salta de uma
órbita para outra. Da mesma forma, atribuem a mesma indeterminação às cidades, como pro-
cessos contínuos e autônomos, "sobre os quais pode-se certamente intervir para modificar e
organizar mas dos quais há de se respeitar o tempo intrínseco sob pena de fracasso".
Todas essas suposições conduzem a uma autossuficiência, uma autodeterminação, uma
liberdade dos objetos, dos processos e dos desenvolvimentos naturais, que reduzem drastica-
mente as fantasias humanas - científicas - em dominá-los. O homem efetivamente domina
muito pouco: Max Planck acreditava que os seres fabricados pela física são reais, dotados de
uma existência própria. São os fatos ou fatiches, que nos ultrapassam e importam mais do que
nós.
A ciência chega, assim, ao seu ponto de autorreflexão e cautela. Desaparecido o de-
mônio de Laplace, as certezas da mecânica clássica e da geometria euclidiana, atribuído status
de cidadania aos fenômenos não lineares, caóticos, incertos, incompletos, imprevisíveis, irre-
versíveis, estranhos, cabe pensar que procedimento metodológico ainda justifica esse nome. Michel
Serres fala de uma "razão generalizada", algo que longe de excluir ou subtrair a desordem, o
obscuro, o instável propõe a continuidade, as transições, considera o excesso, a imprevisibili-
dade.
Mas como pensar esse “caminho seguido pelo conhecimento” se há uma verdadeira
resistência de todos os envolvidos com a ciência (pesquisadores, consultores, responsáveis por
financiamento de pesquisa, entidades de apoio) de pensar o novo? Se os pesquisadores e cien-
tistas estabelecidos apoiam-se em visões subjetivas, em considerações atreladas a paradigmas
ultrapassados, enquanto o conhecimento, ao contrário, parece caminhar em outra direção, no
sentido do múltiplo, do diverso, daquilo que considera a grande gama de possibilidades e de
variedades, daquilo que está sempre atrás do vivo, daquilo que não descança?
A pesquisa vive do financiamento e os agentes investem, calculam, preveem. Seus
prognósticos baseiam-se na respeitabilidade do líder da pesquisa, na seriedade de seu objetivo -
que normalmente está associada a um paradigma conservador, reconhecido, sujeito quando
muito a pouca variação e risco - no alto índice de confiabilidade do investimento, que, como
na empresa, tem de retornar. Da mesma forma, o pesquisador tem de zelar pelo progresso e
desenvolvimento de seus tutelados, garantir-lhes que seu trabalho não será em vão, que o ca-
minho indicado é o melhor.
149

Propor um método para os estudos de comunicação, que seja adequado aos novos
tempos de alta rotatividade, de rápida perecibilidade de ideias e modelos, de instabilidade de
todo o saber parece ser um desafio prometeico. Ou então um paradoxo na própria origem:
sugerir o estável num quadro de mudança permanente. Só há chance de se pensar um método
ou melhor, um quase-método seguindo o paradigma do próprio movimento, nem na vida, nem
na morte: no movimento e fora de todas as coisas.

Detalhamentos

Há proposições que são "indicidíveis", não se pode decidir se são de uma forma ou de outra, pois isso
está além do sistema explicativo. "A matemática tem de ser precisa". A afirmação de Frege nessa
direção pode ser encontrar em Clément et al., 1994, p. 136. Sobre a lógica elementar, em Au-
roulx/Weil, 1991, p. 315.

Russell e os paradoxos: Há classes de muitas coisas, de tudo imaginável: classe dos palitos,
dos automóveis, dos verbos regulares, das paixões, etc. Para Russell, os membros de uma clas-
se não podem se confundir com a própria classe: a classe geral dos fósforos, que não é, ela
mesma, um membro - um fósforo - dessa classe; os fósforos não são o fósforo; digamos que há
uma classe de todos esses “os” fósforos. Não é possível, portanto, misturar níveis de abstra-
ção. Ora, Russell entrará num dilema insustentável quando lhe propõem que possa existir uma
classe de elementos que não fazem parte de nenhuma classe. Se esta classe é possível então
caimos novamente no paradoxo: se os membros não fazem parte de nenhuma classe, então
fazem parte de uma classe. Se fazem, então não fazem parte dessa classe.
Tomemos o exemplo do mentiroso. "Eu sou um mentiroso" é uma frase que está ao
mesmo tempo em dois planos: 1) eu sou uma pessoa que mente (afirmação de um dado, um
fato singular, um elemento); 2) o que eu falei não pode ser considerado, porque eu sou mentiroso
(refere-se ao conjunto das afirmações). Se eu misturo elemento com conjunto eu crio o chama-
do paradoxo da reflexividade. É como dizer que o nome da rua é a própria rua, que a fotogra-
fia é a pessoa, que o mapa é a própria cidade.
Um elemento não é um conjunto, ele pertence a outra classe lógica. O todo não pode
fazer parte de si mesmo e há um conjunto desses todos que não são partes deles mesmos; ora,
no caso do mentiroso, o todo se confunde com a parte. Russell cria a hierarquia de classes para
evitar o paradoxo. Uma classe 1 não é apenas diferente da classe à qual pertence, a classe 2,
tampouco pode servir para se definir a si mesma, mas só à seguinte. Está excluído, assim, que
se fale da classe das classes que não fazem parte delas mesmas, pois elas criam um tipo de "pa-
radoxo em segundo grau". Ver para isso também: Watzlawick, 1988, p. 233 e Aroulx/Weil,
1991, pp. 428ss. A afirmação de Watzlawick sobre o todo, de sair do seu quadro conceitual,
está em Watzlawick, 1988, p. 232-3.

O Teorema de Gödel: É o seguinte o primeiro teorema: "Num sistema que contém pelo
menos a aritmética recursiva e que é não contraditório existem proposições indecidíveis [unents-
cheidbaren] (que não se pode demonstrar nem refutar)". Segundo Teorema: "Em todo sistema
que preenche as condições deste, a proposição que afirma que o sistema não é contraditório
não é demonstrável no sistema. Dito de outra forma, a demonstração supõe meios mais pos-
santes que os do sistema" (Auroulx/Weil, 1991, p. 288). Bohr já havia dito algo semelhante: cf.
Feyrabend, 1991, p. 56.
150

Aplicação em Hofstadter: "Contracrostipunctus", Hofstadter, 1989, pp. 75ss. Pode-se


encontrar aplicações do teorema de Gödel também em Baudrillard fala que "nenhum jogador
deverá ser maior que o jogo, sob pena de liquidar o jogo" (1997a, p.184)

A refutação de Russell: Recenati diz que enunciados imperativos, declarativos, interrogati-


vos não entram na "linguagem" dos Principia mathematica, onde todos os enunciados são afirma-
ções (Recenati, 1970, p.188). Hofstadter diz que a teoria dos tipos consegue excluir os paradoxos
da teoria dos conjuntos às custas da introdução de uma hierarquia aparentemente artificial e
desautorizando a formação de certos tipos de conjuntos. "Sua estratificação parece aceitável
mas quando se ocupa de linguagem, que atinge todas as partes da vida, parece absurda. Nós
não nos imaginamos saltando para cima e para baixo na hierarquia de linguagem quando fala-
mos de várias coisas. Uma sentença prosaica como 'neste livro, eu critico a teoria dos tipos'
seria proibida nesse sistema; primeiro, porque ela menciona 'neste livro', que só seria mencio-
nável em outro livro; segundo, ela me menciona - uma pessoa de quem eu não seria autorizado
a falar"(1989, p. 22).

Nas ambiguidades fenomenológicas fala-se das coisas que escapam de nossas mãos, que não se deixam
apanhar. Blaise Pascal, Pensamentos, §72: “Qualquer objeto a que pensemos apegar-nos e conso-
lidar-nos abandona-nos e, se o perseguirmos, foge à perseguição. Escorrega-nos entre as mãos
numa eterna fuga”. Sobre o movimento orbital, a autonomia das coisas e seu tempo próprio:
Prigogine e Stenders, pp. 305 e 390. Sobre quarks e hadríons: Capra, 1999, p.187ss.
Sobre a autonomia das coisas criadas em laboratórios, Bruno Latour desenvolveu o con-
ceito de fatiche. A palavra vem do português "feitiço" e da raiz latina fatum, fanum, fari. A mis-
tura de "feitiço" com "fato" produz o neologismo fatiche. Poderíamos reconstruí-lo como feiti-
che, mas não parece justo com as intenções do autor, porque 1) confunde com o termo portu-
guês fetiche, que não é o caso; 2) no francês, o termo é faitiche, que se utiliza do substantivo fait,
fato. A conversão correta partiria, então, de "fato". Seria mais apropriado, assim, manter o
tronco fa- , na construção do termo. Ouçamos Latour: quando fabricamos os fatos nos nossos
laboratórios, com nossos colegas, nossos instrumentos e nossas mãos, estes se tornam, de re-
pente, por um efeito mágico de reinversão, algo que ninguém havia fabricado, aquilo que sim-
plesmente surge e que as pessoas, intrigadas, esmurram na mesa: 'e não é que esses safados
estão aí!'. Somos - continua Latour - ultrapassados por aquilo que fabricamos: divindades, os
gens, os nerônios, as economias, as sociedades, eles importam mais do que nós. (Latour, 1996,
p. 38 e 43)
A "razão generalizada" de Michel Serres, pode ser encontrada em: Clément et al., 1994,
p. 328.

Quadro X – As Ambiguidades

Ambiguidade Característica Exemplos


Ontológicas As coisas são e não Princípio da complementaridade (Niels Bohr)
são ao mesmo tempo Instabilidade farmacológica (Isabelle Stengers)
Strange loops ou hierarquia de entrelaçamentos (Hofstadter)
Mãos desenhando, Répteis (Escher)
Epistemológica Não há uma realidade Double Bind (G. Bateson)
mas somente versões Pontuação (Paul Watzlawick)
Dimensões fractais (Mandelbrot)
Paradoxo das medições (Heisenberg)
Superposição de estados quânticos (Niels Bohr)
151

Desmoronamento da função de onda (Bohr, Schrödinger)


Princípio de múltiplas lógicas (Feyerabend, Atlan)
Teoria das Catástrofes (René Thom)
Metodológica É possível mesmo Reversibilidade e irreversibilidade se completam (Thom)
necessário conciliar Reducionismo forte e reducionismo fraco (H. Atlan)
procedimentos dife- Ilusão das escolhas possíveis (Watzlawick)
rentes de pesquisa Tempos sobrepostos (I. Stengers)
Teorema da Incompletude (Kurt Gödel)
Margem do caos (K. Hayles)
Fenomenológi- Os objetos escapam Conceito de elétron (Física quântica)
cas de nossa apreensão Fatiches (Bruno Latour)
Razão generalizada (Michel Serres)
152
153

10. Racionalidade, desvios, surpresas


Lógica das águas e lógica das pedras

Trabalhar a história do pensamento, para nele encontrar os traços perdidos de um pro-


cedimento que possa ser remontado a partir de bases múltiplas, amplas, abertas, exige necessa-
riamente remissões, busca de tendências e atores esquecidos, pistas que revelem outros cami-
nhos. É como faz a psicanálise com a anamnese perlaborando o passado, realizando um processo
que permite ao paciente aceitar certos elementos recalcados e libertar-se da influência dos me-
canismos repetitivos. Talvez seja a essa a única forma de retornar o tempo sem recurso ao cli-
chê ou a saudosismos.

O pensamento filosófico ocidental oscilou entre as posturas que se fundaram na con-


cepção do ser enquanto existência ou movimento, enquanto ideia e enquanto presença real ou
material. O enfoque centrado no movimento e na transformação iniciou-se com Heráclito, na
civilização ocidental, e encontrou seu pendant nas filosofias orientais, que – como no taoismo –
investiram na dinâmica e na mudança. Essa visão de mundo e do universo permaneceu hiber-
nada durante todo o período de predomínio do pensamento cristão no Ocidente (ontoteologia
metafísica), encontrando alguns flashes divergentes na filosofia antiga. A terceira postura enfo-
que é a do empirismo
O idealismo, a orientação predominante em 2.500 anos de filosofia, pode ser dividido,
em três grandes categorias: o platônico, o idealismo subjetivo de Descartes e de Kant e o idea-
lismo objetivo de Hegel. No primeiro, a ideia existe em si e é modelo para as coisas. No se-
gundo, as categorias inatas e as categorias a priori pré-existem à relação e à apreensão do mun-
do e, no terceiro, o mundo é visto como autodesenvolvimento da Ideia na direção do Espírito
Absoluto.
Em Platão, aparecem as primeiras bases para a construção autônoma do pensamento
científico a partir de sua oposição entre o subjetivo e o objetivo. O mundo dos sentidos, as
imagens, a opinião, a subjetividade, todos eles são postos em oposição às ideias, à racionalida-
de, à ciência e à objetividade. Aristóteles irá desenvolver mais intensamente a reflexão sobre os
fenômenos físicos ao dizer que a vida é atividade em direção ao automovimento, sem um de-
tonador externo, possuindo alma e sendo compreendida como “força organizadora da maté-
ria” e dará - na opinião de Mainzer - os primeiros elementos para a ideia da auto-organização
do ser vivo.
A retomada das reflexões antigas no Renascimento será acompanhada de uma excepci-
onal valorização da matemática, tida como instrumento objetivo e indiscutível para o cálculo
na física e na astronomia, em oposição as formas de saber puramente especulativas, herdadas
da metafísica. A matemática vai dar também base aos modelos de pensamento apriorísticos,
que definem fórmulas mentais a serem estabelecidas como verdadeiras antes da observação de
fenômenos.
Em Descartes observa-se a precedência de um modelo de pensamento que busca regu-
laridades, comportamentos contínuos, que será posteriormente sistematizado na mecânica ce-
leste newtoniana, e que têm por paradigma o cronômetro. É a lógica das estruturas que se
opõe a dos processos: a pedra prevalece diante das águas. Diferente de Aristóteles, ele propõe
o princípio da inércia (nenhum corpo pode, por si mesmo, mudar do estado de repouso ou de
movimento) e considera o movimento como um estado que não pode se alterar sem causa; sua
teoria reduz a causalidade à ação mecânica recíproca dos corpos.
154

Posteriormente, no empirismo, com seu primeiro representante, Locke, vem a refuta-


ção do inatismo de Descartes: para Locke a alma é uma tábula rasa, uma página branca vazia
de caracteres. Os fundamentos dessa orientação de pesquisa ficarão em estado de relativa hi-
bernação durante a precedência dos modelos idealistas no pensamento europeu (Kant, Hegel)
nos séculos 18 e 19, bem como seu uso no movimento das Luzes e da revolução burguesa,
para serem recuperados por Ernst Mach e pelos representantes do positivismo lógico: Moritz
Schlick (que funda o Círculo de Viena), Ludwig Wittgenstein e Rudolph Carnap. Para estes, o
empirismo vai servir de base para a refutação dos julgamentos kantianos a priori.
Isaac Newton, ao lado de Descartes, provocou uma das maiores revoluções em toda
história da ciência. Refutando ao mesmo tempo o empirismo e o racionalismo, instituiu um
movimento próprio de pensamento estruturado em axiomas da física. Descobrindo a "força",
que lembrava as qualidades ocultas de Leibniz, foi o primeiro positivista, propondo uma realidade
independente dos indivíduos e a "objetividade" das coisas (trajetórias, pesos e velocidades são
entidades reais), apostou no mito da harmonia e da ordem, fornecendo as bases científicas de
apoio ao processo de consolidação do protestantismo em sua época.
Mas o idealismo subjetivo moderno inicia-se efetivamente com Immanuel Kant, para
quem qualquer fenômeno para ser observado como experimento necessita de algo mental an-
terior, um a priori, que o subordine a leis anteriores do pensamento. Diferente de Newton, ad-
mite que apesar de o cosmos de ter surgido de leis mecânicas, a vida não se derivou somente
delas. Mais ainda, defende a opinião de que o sistema planetário seria uma estrutura total e dinâ-
mica, portanto, em expansão, movendo-se (diferente da regularidade e imobilidade de máquina
newtoniana) e vinculando-se assim às mais recentes teorias astronômicas.
Segundo Krohn e Kuppers, Kant já havia lançado a seu tempo as bases inclusive para a
teoria da auto-organização, propondo que as partes de um mesmo objeto da ciência fossem a
um só tempo causa e consequência de sua forma. A separação entre o a priori kantiano e os
componentes inatos do conhecimento, propostos por Descartes, será defendida por Ernst
Cassirer.
O pensamento de Newton será conservado praticamente intacto até o século 19, sinte-
tizado de forma bastante conhecida através do demônio de Laplace: um ente imaginário que,
reconhecendo a posição e a velocidade de cada partícula do universo em um determinado
momento, teria condições de prever todos os eventos futuros. Esta fórmula sustentava a visão
de mundo da época, que preservava a não mudança, a ausência de história ou de desenvolvi-
mentos complexos da vida do planeta e das sociedades, a tradição e a conservação, em que o
presente seria sempre determinado pelo passado, o estável funcionaria como verdade da mu-
dança.

A virada epistemológica começa a se esboçar no final do século, primeiramente com o


magnetismo, que não podia ser descrito pelo mecanicismo e que trabalhava com um novo tipo
de força, e, depois, com as divergências entre termodinâmicos e mecânico-estatísticos, comen-
tadas por Isabelle Stengers, e nas novas propostas científicas que começaram a pôr abaixo os
princípios reducionistas. O chamado "caos" vem se sobrepôr à ordem, tida durante séculos
como princípio inabalável.
A partir daí, o caminho para uma nova forma de ver a ciência - aberta, imprevisível,
probabilística - estava desbravado. Posição decisiva nesse processo teve o físico francês Henri
Poincaré, o primeiro cientista a se deparar com os comportamentos caóticos de leis determinis-
tas. Para ele deixava de existir a chamada "infecção entrópica", ou seja, a instabilidade dos sis-
temas não seria algo alienígena, estranho, externo à sua harmonia interna, mas algo de sua pró-
pria realidade.
155

Uma nova ciência, marcada pela espontaneidade e pela liberdade, vem concorrer com o
saber oficial, caracterizado pelo determinismo e pela racionalidade mecanicista. A termodinâ-
mica, a relatividade e a mecânica quântica provocarão a substituição ou pelo menos a relativi-
zação do paradigma clássico de Newton. Elas propõem a existência de variáveis ocultas provo-
cando o movimento dos elétrons, as propriedades ondulatórias que apontam para um caráter
coletivo dos movimentos, a própria dualidade onda-partícula, estendida à matéria. Todos esses
fenômenos, descritos por Prigogine e Stengers, seguem na direção do que eles classificam co-
mo “a nova aliança”, buscando superar a situação, antes negativa, descrita por Jacques Monod
como “velha aliança”:
Seria equivocado sorrir, mesmo com a ternura e o respeito que inspira a infância. Pode-se crer que a
cultura moderna tenha de fato renunciado à interpretação subjetiva da natureza? O animismo havia estabelecido
entre a Natureza e o Homem uma profunda aliança, fora da qual parece estender-se apenas uma assustadora
solidão. Será que é preciso romper esse liame pelo fato de o postulado da objetividade impô-lo? A história das
ideias, a partir do século 17, testemunha os pródigos esforços empreendidos pelos maiores espíritos para evitar a
ruptura, para forjar um novo aro da 'velha aliança'. Pense-se também nas grandiosas tentativas como a de
Leibniz ou no enorme e substantivo monumento elevado por Hegel. /.../A história humana prolonga a evolu-
ção biológica, que - ela também - faz parte da evolução cósmica. Graças a este princípio único, o homem reencon-
tra enfim no universo seu lugar eminente e necessário, com a certeza do progresso ao qual ele é hoje prometido
(Monod, 1970, p. 49 e 51).
Detalhamentos
Para rever a história do pensamento científico é preciso trazê-lo ao presente, com vida, "perlaborá-lo".
Na perlaboração ou working-through, "deseja-se apoderar-se do passado, compreender o que se
foi, deseja-se administrar, exibir o crime inicial, o crime de origem, perdido, manifestá-lo como
tal, como se ele pudesse ser desembaraçado de seu contexto afetivo, das conotações de erro, de
vergonha, de angústia nas quais ainda se é submerso no presente e que precisamente motivam
a ideia de uma origem". (Lyotard, 1988, p.38) Os artistas de vanguarda, conforme Lyotard,
"perlaboram" o passado em suas obras, buscam livres associações com elementos aparente-
mente inconscientes de situações passadas, e sob esse ângulo devem ser compreendidos. To-
mando o exemplo do nazismo e do silêncio sobre o drama, imposto pelos velhos a seus filhos
desde o após-guerra, diz o filósodo ser impossível o progresso em sua superação sem a perla-
boração. Isabelle Stengers, 1997, 3, pp. 23, 32 e 94.

O estudo do pensamento antigo pode iniciar-se pela história do idealismo. Os três idealismos: 1)
idealismo platônico, [é aquele] em que a ideia forma as coisas e é seu modelo, ela existe em si,
separada do mundo sensível; o mundo não passa de sua cópia; 2) idealismo subjetivo moderno,
[é aquele] para quem a primeira certeza é a consciência: é o idealismo que se pergunta se existe
um mundo exterior à minha consciência; a vertente cartesiana fala que a ideia pré-existe, é inata; a
vertente kantiana, [diz que] há a realidade das coisas e há o papel destas como dados sensíveis na
atividade cognitiva, mas é preciso uma determinação formal dos fenômenos através das formas
conceituais e sensíveis próprias ao sujeito cogniscente; 3) idealismo objetivo: [para quem] tudo
o que é resulta do autodesenvolvimento da Ideia, que, no final do seu desenvolvimento, se
reconhece como Espírito Absoluto (Hegel). Cf. Auroux/Weil, 1991, p. 209. Sobre Aristóteles e
a auto-organização, ver Mainzer, 1992, p. 270.

Lógica das pedras e das águas: "O lado material do cosmos, criado pelo dualismo cartesia-
no, continha objetos discretos, movidos por forças inanimadas, atuando com regularidade ma-
quinal. Em tal universo, imaginado à semelhança do relógio, a estrutura é o básico na ordem
156

ontológica das coisas e os processos são secundários, da mesma forma como as engrenagens e
os discos de um relógio são aquilo que efetivamente constitui o relógio e o movimento segue
de seu arranjo. Esta forma de pensar o mundo, na qual os objetos têm uma posição superior e
o processo é derivativo, pode ser chamada a lógica das pedras. Por outro lado, não é talvez de
estranhar que pensadores do processo desde Heráclito até Lao Tsu tenham construído suas
metáforas de imagens de água, naquilo que poderia ser chamado de lógica das águas (Combs,
1995, p. 131).

Sobre os germes inatos: "Para Descartes, o espírito humano possui germes de verdade
sob a forma de ideias inatas. Não se trata do inatismo de um conteúdo, as ideias inatas não dife-
rem da faculdade de pensar e Descartes as compara a estas doenças às quais algumas famílias
parecem ser predispostas. O inatismo repousa sobre a dupla recusa de fazer depender o pen-
samento do mecanismo corporal e de explicar a universalidade e a necessidade de conhecimen-
tos pela experiência. Ele afirma que se não se puser a questão de que há no homem qualquer
coisa de inato, uma faculdade priopriamente humana, jamais se poderá explicar o pensamento
e a linguagem. /.../ Logo, para ele, 1) o homem não é uma máquina; 2) o condicionamento
externo não pode em nenhum caso explicar que o homem fala (Auroux/Weil, 1991, p.232).

Mas há também Newton que empreende a maior revolução científica depois dos gregos... Newton e a
força: "Que teriam dito aqueles que no Continente acolheram com suspeição, senão com indig-
nação, esta 'força' estranhamente semelhante às qualidades ocultas, às preferências e às atrações
da velha física? Que teriam dito os defensores da racionalidade e do rigor mecanicista se eles
tivessem conhecido a estranha história da força newtoniana?" (Prigogine e Stengers, 1986,
p.109).

A crítica a Locke: "As ideias simples são sempre adequadas e Deus construiu nosso apa-
relho sensorial de forma a que correspondam às qualidades sensíveis. Não acontece o mesmo
com as ideias complexas, construídas livremente. Algumas delas, ele afirma que são sempre
objetivas, pois não concebemos coisas a não ser a partir daquilo que as ideias nos mostram;
por aí se garante a certeza demonstrativa das matemáticas e da moral, que se orienta em ideias
complexas. Contrariamente, ele fala a respeito das substâncias das quais só temos um conhe-
cimento inadequado, já que nada nos permite afirmar que a coleção de ideias simples, que
constituem a ideia, corresponda de uma vez por todas às propriedades que nós poderemos
observar. Permance a dicotomia entre conhecimento racional e abstrato e um conhecimento
relativo ao mundo sensível" (Auroux/Weil, 1991, p. 283).

Newton e a ordem: "tudo [nele está] associado ao mito da harmonia, onde se comunicam
ordem natural, ordem moral, social e política" (Prigogine/Stengers, p. 60). Newton e o protestan-
tismo: "A metáfora newtoniana do relógio lembra o protestantismo padrão. Basicamente, há
uma ordem no universo. Não que a gente confie em Deus para ter a ordem. Isso seria demasi-
ado católico. É que Deus arranjou o mundo de tal forma que a ordem estará naturalmente lá se
nós nos comportarmos" (Waldrop, 1992, p. 330).

...E Kant, que superando Newton em alguns pontos, sintetiza racionalismo e empirismo. Sobre Kant
e o caos, ver principalmente Krohn e Kuppers, 1990, p. 32 a 38. Sobre causa e consequência, diz
Kant em Crítica do Juízo: "Se uma coisa, como produto natural/.../ relaciona-se com um fim,
então exige-se, para isso, que as partes da mesma se juntem numa unidade de um todo, de tal
forma que sejam, uma para a outra, causa e efeito de sua forma. Pois, desta maneira, é possível
157

que inversamente a ideia do todo determine novamente a forma e a ligação de todas as partes"
(Krohn/Kuppers, 1990, p. 45). Assim, continuam, "um tal produto, como ser organizado e auto-
organizante, poderia ser chamado de naturalmente adequado (naturzweck)". Para os autores, Kant
oferece ainda outro ponto de vista que o classifica como precursor da auto-organização: seres
vivos têm a capacidade de um ser auto-organizado, de substituir partes perdidas (idem, p. 46).
Por fim, concluem os autores: "Kant não teve flagrantemente sucesso - no que se refere ao
fenômeno da vida - em apresentar um modelo totalmente desenvolvido de uma teoria mecâni-
ca da auto-organização. Em vista de sua rígida formulação do reducionismo, segundo a qual
todas as explicações empíricas devem surgir como variantes da relação recíproca mecânica, ele
conseguiu, mesmo assim, primeiro, reconhecer o princípio da auto-organização como caracte-
rística da vida; segundo, defini-la conceitualmente na linguagem da causalidade mecânica e,
terceiro, apresentar uma hipótese empírica que permitiria avançar a pesquisa reducionista da
auto-organização sem limitação" (idem, p. 49)
O mundo como alguma coisa determinada pelo passado, em Laplace, está em Prigogi-
ne/Stengers, 1986, p.130 e 294.

A primeira ruptura com Newton veio com o magnetismo. “O primeiro desses progressos con-
sistiu na descoberta e investigação dos fenômenos elétricos e magnéticos, que não podiam ser
adequadamente descritos pelo modelo mecanicista e que envolviam um novo tipo de força.
Esse passo fundamental foi dado por Michael Faraday e James Clerk Maxwell – o primeiro, um
dos maiores experimentadores na história da ciência; o segundo, um brilhante teórico” Capra,
1999, p. 51.

E continuou com a termodinâmica. Hess e Hofner: “Considerando que a energia, numa


forma superior (por exemplo, radiação, movimento) transforma-se em calor e que as quedas de
calor se comunicam - dissipação de energia - mas que ambos jamais seguem em direções opos-
tas, pode-se imaginar o pânico dos reducionistas diante da ideia de que suas qualidades (estru-
turas, processos, contextos) diluem-se e 'o fim de nosso universo será uma situação de total
homogeneidade, um cosmos morno de partículas igualmente distribuídas: sem sentido, sem
sexo, sem forma'” (Briggs/Peat, 1990, p.16). Ver também: Hess e Hefner: “O caos, que parecia
a total desordem através da equidistribuição, seria a situação que iria vencer a ordem, que du-
rante séculos foi tida como princípio superior. Se se tinha tido até o momento desvios e desor-
dem como infecção provocada por influências externas prejudiciais (infecção entrópica), con-
tra a qual um sistema precisaria se defender, assim como se defende o ferro pela raspagem da
ferrugem, tornou-se [hoje] preciso entender que o mundo, como uma totalidade, não pode ter
nenhum externo de onde surjam as infecções, se a intenção que se tem não é a de colocar uma
metafísica à margem da física” (idem, p.17). Sobre a nova ciência vencendo a ciência oficial, ver
Prigogine/Stengers, 1986, p. 38, 116. Sobre a importância da mecânica quântica nesta revolu-
ção, idem. p. 300; sobre a dualidade onda-partícula, p.303.

O racionalismo científico

O filósofo Friedrich Hegel já havia apontado, há mais de cento e cinquenta anos, que é
impossível dissociar a forma de uma pesquisa de seu conteúdo, tudo é uma coisa só. Portanto,
qualquer proposição de metodologia para desenvolver uma observação, uma pesquisa, um
estudo de caso carrega em si, necessariamente, uma posição teórica implícita; o método nunca
158

é neutro.
Seria possível, então, imaginar um método, qualquer que seja, que dê conta dos proces-
sos em permanente transformação? Pode-se fotografar o movimento sem congelá-lo? É possí-
vel uma ciência do transitório, um saber da própria mutação, um conhecimento que capte as
coisas em sua própria mudança permanente?
Uma ciência da comunicação em movimento é algo inusitado. Pode-se encaixar em al-
gum lugar ou questiona o próprio princípio de encaixe?
Segundo Jürgen Habermas, as ciências podem ser divididas em três categorias: as empí-
rico-analíticas, as histórico-hermenêuticas e as críticas. As duas primeiras teriam "interesse prá-
tico", enquando que a terceira teria "interesse emancipador". Poderíamos alinhar na primeira
categoria especialmente as ciências biológicas, físicas, que são baseadas na observação, na se-
gunda, as ciências humanas, voltadas à compreensão dos fenômenos sociais e, na terceira, a
psicanálise, a crítica da ideologia, que são ciências especulativas e não se apóiam em dados
concretos mas em discursos. Falta, não obstante, um saber que ele próprio se acople no passo de
seu objeto e se atualize com ele.

A história ocidental confunde-se com a história do racionalismo ocidental. Desde a Anti-


guidade, razão e racionalidade foram formas culturais cujo poder poderia ser equiparado ao
dos deuses e tiranos. Tratava-se de tomar o mundo real como algo semelhante ao relógio: uni-
forme, regular, previsível e sujeito a leis universais. Toda a filosofia que seguia na direção da
unidade, que buscava descobrir leis, métodos, uniformidades subordinava-se a essa direção.
Trata-se de uma noção especial de ordem introduzida pelo racionalismo, de um certo controle
sobre as coisas e da atribuição de regularidade mecânica a fenômenos naturais, sociais e indivi-
duais. De alguma forma, era preciso domesticar a natureza, reduzi-la a um estado de submissão.
No ocidente, o racionalismo teve seu ponto culminante nas filosofias que, como visto acima,
privilegiavam o abstrato, o restrito, e excluíam o mitológico, o épico, o trágico. No plano das
práticas, o racionalismo, privilegiando um ponto de vista não humano mas técnico acabava por
legitimar atos bárbaros e genocidas.

No perído de auge do racionalismo, durante os séculos 17 a 20, predominou nas ciên-


cias o modelo racional-positivista, de inspiração newton-kantiana, de separação entre sujeito do
conhecimento e objeto de pesquisa (ambos como entidades distintas), de interpretação "objeti-
va" do real, sem interferência do pesquisador, e do mito da neutralidade.
O primeiro positivismo, de Auguste Comte (Curso de filosofia positiva, 1826), consolida
esses pressupostos numa doutrina filosófica: o espírito humano é teológico em seus primeiros
anos, metafísico em sua adolescência e positivo na maturidade. Para ele, positivo significa o
relativo, o real, o certo e acima de tudo o útil. O pensamento científico desenvolve-se indepen-
dente das hipóteses metafísicas, a saber, trabalha-se uma geometria sem nenhuma alusão ao
espaço, com uma física que se distancia da essência do corpo e das forças, com uma ciência
desconectada dos sentidos. Nesse mais completo divórcio com a materialidade ou com a sen-
sibilidade, a ciência positiva não procura encontrar a causa última dos fenômenos mas busca
suas leis. Ela se funda na experiência para atingir o progresso.
São esses fundamentos que serão reencontrados no positivismo lógico, no estrutura-
lismo, na grande onda intelectual que tomou conta dos pesquidadores entre a metade do século
19 até a metade do século 20. Essa "objetividade", como forma de buscar uma representação
correta, fiel, pura da realidade, acabava funcionando mais como uma forma de abstratificação
esterilizante da pesquisa, de pseudopurificação, na ilusão de se conhecer os fatos sem qualquer
interferência humana. Só como máquinas é que talvez os homens poderiam aspirar semelhante
159

neutralidade.
O positivismo lógico inicia-se com Rudolf Carnap, de filiação kantiana, que fundou nos
anos 20 o Círculo de Viena. O movimento foi um violento ataque contra o que eles classifica-
vam de "metafísica", a saber, as ciências filosóficas, especulativas, interpretativas (como a his-
tória, o estudo dos signos), e mesmo a psicanálise. Carnap avança mais ainda na ruptura e na
marginalização desses conhecimentos nem práticos nem empíricos, e com o afastamento des-
ses para a periferia dos saberes, junto, possivelmente, com o misticismo, a magia e a ignorân-
cia. Para ele, as proposições "metafísicas" são intrinsecamente absurdas, já que não são nem
tautológicas (afirmações do tipo: o celibatário é aquele que não se casa), nem seus enunciados
satisfazem os critérios de verificação.
O movimento ganha posteriormente com a absorção do primeiro Ludwig Wittgenstein:
também para este, na época, não haveria lugar para uma ciência metafísica, que só seria cons-
truída a partir de “pseudoproposições”, ou seja, de frases que não seriam nem corretas nem
falsas. Uma ciência deveria “esclarecer proposições” e todas as proposições dotadas de sentido
devem poder ser traduzidas em linguagem lógica.
O atomismo lógico de Bertand Russell havia aberto esta mesma direção, como vimos
anteriormente: a de transformar toda a matemática num corpo lógico de axiomas e dela expul-
sar tudo que parecesse paradoxal. Cria-se, assim, um saber purificador da realidade, que, como a
religião, simplesmente ignora os paradoxos, as questões obscuras, as contradições inerentes aos
fenômenos. Uma orientação que, em nome do rigor e da excelência científica, fecha os olhos
àquilo que não pode explicar, como o fez Russell com os tipos lógicos paradoxais. Prevalece o
que se encaixa em suas regras lógicas, o formal e o técnico. A realidade deve a eles se adaptar a
elas.
Gaston Bachelard será o pensador francês que no início da década de 30 irá se manifes-
tar contra o positivismo lógico. De espírito aberto, refuta a exclusão da metafísica na ciência e
denuncia os mecanismos conservadores no ambiente científico através de sua “filosofia do
não”. Para ele, a ciência deve sofrer mudanças periódicas, “cortes epistemológicos”, e voltar-se
contra a dogmatização do conhecimento.

Karl Popper, filósofo austríaco, fará, nos anos 30, a primeira oposição consequente ao
positivismo lógico, mas ainda dentro do empirismo lógico, excludente de outros saberes. Di-
zendo que nenhum saber pode ser extraído apenas da experiência dos sentidos - pois há detur-
pações na observação direta, uma evidência pode estar "contaminada", ou seja, viciada, desgas-
tada - acredita que todo o conhecimento comece com uma teoria ou uma hipótese sobre o
mundo, que se tenta posteriormente comprovar. Contudo, nenhuma afirmação sobre leis natu-
rais universais pode ser comprovada; afirmações desse tipo só podem ser falsificadas e a ciência
consiste em declarações em princípio falsificáveis.
Mas o que é a falsificabilidade? É a constatação de que as teorias são refutadas quando
surgem outras para substituí-las e dominarão até o momento em que serão, por sua vez, tam-
bém refutadas. Uma ciência permanece, então, válida por um fenômeno chamado de provisão,
quer dizer, enquanto dispor de suficiente "provisão de verdade" para se manter como aceita e
atual no campo intelectual e científico.
Há teorias que jamais serão falsificáveis, como, por exemplo, a teoria econômica de
Marx, a psicanálise, a filosofia da linguagem, a metafísica. Ninguém vai falsificar uma análise de
sonho, uma interpretação de um sintoma, uma descrição da economia ou uma afirmação do
tipo "Deus existe". Estas são, em princípio, enquanto teorias científicas (readmitidas na sociedade
das ciências, diferentemente, portanto, do positivismo lógico), áreas em que a ciência se baseia
nas impressões do pesquisador e não nos critérios do experimento, nas condições de laborató-
160

rio ou na sequência de passos de um evento. Estes sim podem ser falsificáveis, apresentando-
se um contra-exemplo: eu posso obter o mesmo resultado falsificando a sua pesquisa, alteran-
do suas condições. Neste caso, diz Popper, estamos diante de uma teoria empírica.

Mesmo após Popper prosseguiu a obra de desconstrução da metodologia e da episte-


mologia racional-positivista. Não há nem pode haver um método universalmente válido e mo-
delos explicativos como o estruturalismo são condenados por respeitáveis teóricos da ciência
como Thomas Kuhn, para quem a ciência não deve sair em busca de estruturas permanentes
mas buscar aproximação com outros saberes. Kuhn duvida da objetividade afirmando que o
que o sujeito vê depende e muito de sua experiência anterior e que os próprios dados também
se alteram.

RESUMO DE BACHELARD
- É o primeiro protesto contra o Círculo de Viena:
a) Não aceita a priori a cientificidade da ciência;
b) Não aceita a rejeição do Círculo de Viena à história;
c) Não considera a metafísica insensata (o espírito, em verdade, não pode prescindir da metafísica)

- Os cortes epistemológicos:
Bruscas mudanças na prática científica vêm contradizer o passado. As sucessivas contradições (refu-
tações) do modo de pensar (cientificamente) do passado são rupturas epistemológicas. A história da
ciência é marcada por essas rupturas.

- Há uma grande diferença entre o conhecimento sensorial (que é genérico) e o conhecimento cientí-
fico (que é especializado). Daí ser impossível a prática da “divulgação científica”.

- Os obstáculos epistemológicos:
São os fatos que impedem o avanço da ciência (hábitos cristalizados, inércia, dogmatização de teori-
as científicas). Até a primeira metade da vida os homens de ciência são úteis; na segunda metade,
tornam-se inúteis (por força desses obstáculos).
- Filosofia do Não: é a filosofia que rejeita os velhos esquemas, que se colocam como absolutos. A
experiência científica deve dizer “não” à experiência antiga e ultrapassada.

Detalhamentos

Método não é uma atividade neutra na pesquisa: nele está embutida uma visão de mundo. Forma e
conteúdo da pesquisa são fatos indissociáveis, conforme Hegel: “A forma sistemática da pes-
quisa não é separável de seu conteúdo, isto é, do próprio 'movimento do conceito'” (Clément
et al., 1994, p. 229). Em Habermas, a divisão das ciências está em: Habermas, 1973.

A história da ciência ocidental é a mesma história do racionalismo. O mais veemente discurso


contra o racionalismo ocidental está possivelmente em Paul Feyerabend. Um resumo da histó-
ria desse racionalismo pode ser encontrado em Feyerabend, 1991a, p.140-1, p. 309. Sobre o
poder do racional "semelhante aos deuses", pode ser encontrado em Feyerabend, idem, p. 17.
Sobre o racionalismo como contraposto ao mito, a tragédia e ao épico, em Feyerabend, 1991b,
p.72. A violência do racionalismo, como separação brutal homem/natureza, está em Feyera-
bend, 1991a, p. 149 e 348. A filosofia de Auguste Comte: cf. Clément et al., 1994, p.59. Sobre
Rudolf Carnap, ver: idem, p.51.
161

Popper é a primeira oposição consequente ao positivismo lógico. Sobre Popper, consultar Ravn,
1997, p.251. Ver também Feyerabend, 1975, p. 83 (sobre falsificabilidade). Feyerabend diz
também que num teste de falsificabilidade às vezes é preciso inserir hipóteses contrárias ao
resultado esperado (idem, p. 30). Sobre as deturpações na observação direta, ver: idem, p.235.
Sobre a "contaminação das evidências": idem, p.89.

RESUMO DE POPPER
- Faz oposição ao Círculo de Viena
- Rejeita a antimetafísica do Círculo: para ele, a metafísica é progenitora de outras ciências
- Foi crítico da Escola de Frankfurt

Teses 1: A indução não existe


- Não existe a indução repetitiva: observações frequentes do mesmo fenômeno não garantem maior
proximidade à verdade;
- Não existe a indução por eliminação: é incorreto pensar que eliminando-se todas as teorias falsas vai
se chegar automaticamente à verdade;
- Não acredita que se possa chegar ao universal pelas observações singulares;

Tese 2: A mente tem seus pressupostos. Ou seja, a mente não é uma tabula rasa, livre de ideias e concepções
anteriores; ao contrário, ela é uma “tabula plena”.

Tese 3: Há dois contextos: de descoberta e da justuficação. O primeiro, a gênese das ideias, são nossas impressões,
nossas suposições, que podem surgir de qualquer situação, e um contexto da justificação (a comprovação
da ideia), que é sua submissão à investigação.

- Popper cria a sequência-padrão para a realização de investigações científicias:


a) definição de um problema
b) elaboração de uma ou mais hipóteses
c) teste de hipótese(s)

Tese 4: A falsificabilidade
Uma teoria para ser científica deve ser verificável (deve ser “falseável”, a saber, refutável). Há,
igualmente, uma assimetria entre fatos e comprovação: mil fatos podem comprovar uma teoria mas um
apenas pode falseá-la.

Crítica da antimetafísica do Círculo de Viena:


1) Não é correto tentar eliminar a metafísica do campo do saber científico, afinal, houve ideias metafí-
sicas que fizeram a ciência avançar. Da mesma forma, a ciência não avança sem a fé, que é metafísi-
ca;
2) Algumas concepções que eram originariamente metafísicas tornaram-se conceitos científicos: o
atomismo, a teoria do movimento da terra, a teoria corpuscular da luz, etc.;
3) O âmbito do verdadeiro não se limita ao âmbito do verificável;

Contra a dialética:
- O erro da dialética é achar que pode justificar tudo; historicismo e holismo são dois erros deri-
vados da dialética. O historicismo se propunha a captar as leis do desenvolvimento histórico e, com isso,
prevê-lo; não obstante, falhou em sua ambição. Quanto ao holismo, ele acredita que pode compreender o
real a partir do conhecimento da totalidade; entretanto, a ciência só pode captar as partes das coisas.

Rorty critica Popper: “Se lhe (Dewey) fosse dado ler Popper, sem dúvida ele teria aprecia-
do nele o falhibislismo, deplorando, contudo, os dualismos que Popper, a exemplo de Carnap,
tinha como certo. Pois a corrente do empirismo lógico, da qual Carnap e Popper são represen-
tantes (esta corrente que após a 2ª. Guerra Mundial pôs brucamente de lado o pragmatismo
162

nos departamentos de filosofia americanos), reinventou a distinção kantiana estrita de fatos e


valores, aquela que opõe de um lado a ciência e de outro a ideologia, a metafísica e a religião”
(Rorty, 1995, p. 31).

O Dicionário de Filosofia define a falsificabilidade como a característica de teorias cientí-


ficas de serem sempre - e por natureza - suscetíveis de ser refutadas pela experiência, mas que
não poderem jamais ser definitivamente confirmadas ou corroboradas (Clément et al., 1994,
p.128). Outro Dicionário de Filosofia diz que na epistemologia 'faillibiliste' jamais podemos ter
certeza absoluta de uma teoria. Ela nunca é totalmente confirmada. Devemos selecionar as
teorias e submetê-las a uma crítica severa e escolher a menos ruim, a saber, a mais "resistente"
(Auroux/Weil, 1991, p. 388ss).

Sobre a impossibilidade de uma metodologia e de uma epistemologia, ver Roberta Corvi:


“a perplexidade das objeções de Feyerabend não se limitaram a investir numa particular con-
cepção da ciência, como é o racionalismo crítico; imediatamente se voltam a uma dura conde-
nação da epistemologia tout court, pelo menos tal como foi concebida na tradição ocidental. Os
pontos de acusação são principalmente dois: a epistemologia acreditou na hipótese de um mé-
todo universalmente válido, que na realidade não existe, e reduziu a racionalidade às suas apli-
cações científicas” (Feyerabend, 1991b, p.123).

Sobre Kuhn: “Foi ele (juntamente com Carl Friedrich von Weiszäcker) que me con-
venceu que é necessária uma aproximação da ciência, das artes, etc., etc., historicamente, per-
correndo a história da sua vida, e não logicamente, ou seja, procurando captar qualquer estru-
tura permanente. Existem analogias, mas não estruturas permanentes”. (Feyerabend, 1991b,
p.112). A afirmação de Kuhn sobre experiência anterior do pesquisador, ver Kuhn, 1972,
p.138; sobre os dados que se alteram, em Kuhn, 1972, p.148.

A mudança de paradigmas na ciência

A ciência não evolui de forma harmônica e gradual mas dá saltos, impõe rupturas, rea-
liza verdadeiras revoluções. É o que se chamou atrás de substituição de paradigmas; os que haviam
sido válidos até um certo momento, cedem terreno, a partir de uma inovação radical, a novas
formas de conhecimento. Isso porque, apesar de no cotidiano da ciência haver acréscimos não
dissonantes, cumulativos, as formas que o homem utiliza para pesquisar e descrever o real alte-
ram-se sempre, não havendo uma racionalidade científica permanente.
Mas essas rupturas nunca ocorrem pacífica e alegremente. Ao contrário, verdadeiras
guerras internas ocorrem no interior da arena científica, em que defensores de paradigmas
convencionais e estabelecidos usam-se de todos os instrumentos à mão para resistir ao avanço
das novas ideias e métodos. Como diz Bachelard, o espírito nunca é jovem, mas muito velho,
ele tem a idade de seus preconceitos. Os cientistas, diz Kuhn, não têm por meta normalmente
inventar novas teorias e são em geral intolerantes diante de outros que inventam.
Thomas Kuhn é o teórico da mudança de paradigmas. Estes sistemas científicos com-
plexos impõem-se em certas épocas e orientam o rumo e a lógica dominante do saber. Um
paradigma quando se impõe refuta automaticamente outro, ele é “incomensurável”, não com-
porta nenhuma medida comum com o paradigma anterior. Sua principal função não seria exa-
tamente a de resolver todos os problemas que o paradigma anterior deixou abertos mas a de
servir de guia para as futuras investigações. Ainda que relativamente cético, Kuhn acredita que
163

o convencimento para novas teorias ocorra com processos de persuasão, na forma de “tradu-
zir” os conhecimentos na linguagem do novo paradigma.
O seguidor de Popper, Imre Lakatos, retoma as posições popperianas para criticar
Kuhn. Lakatos advoga que a ciência tem como principal função a de prever e, em vez de pen-
sar em termos de “paradigma dominante”, ele prefere falar de programas que competem entre si.
Se perde capacidade de prever, a teoria acusa um “deslizamento regressivo”, isto é, uma deca-
dência nos campos do saber. Como Popper, Lakatos ataca fortemente o marxismo, que, para
ele, é um programa fraco, incapaz para previsões.
Paul Feyerabend causa grande agitação na cena dos filósofos analíticos (os que se
opõem ao positivismo lógico), ao propor, em oposição a seus antecessores, a discussão do
método “virando completamente a mesa”, isto é, advogando um “anarquismo epistemológi-
co”: às vezes, diz contra Popper, é mais aconselhável introduzir uma hipótese ad hoc, contrária
ao resultado experimentalmente estabelecido. Feyerabend diz que o método deve ser sempre
dinâmico, mutável, adaptável continuamente às mudanças de época e de contextos históricos.
As normas científicas existem para ser burladas e isso é o que garante o progresso no saber.
O primeiro passo, assim, é o de saltar para fora do círculo e inventar um novo sistema
conceitual, ou mesmo importar esse sistema de fora do âmbito da ciência. Para este caso, o
teórico austríaco lança mão de seu conceito de “vale tudo”: indivíduos, grupos, civilizações
inteiras podem se beneficiar com o estudo de culturas, instituições, ideias estranhas (por muito
fortes que sejam as tradições que sustentam as próprias opiniões). Por exemplo - continua Fe-
yerabend - os católicos romanos podem lucrar com o estudo do budismo, os médicos com o
estudo de nei ching ou com um encontro com curandeiros africanos, os psicólogos podem tirar
proveito do estudo da maneira como os romancistas e atores criam um personagem, os cientis-
tas em geral podem se beneficiar com um estudo de métodos e pontos de vista não científicos
e a civilização ocidental em geral pode aprender muito com as crenças, hábitos e instituições
dos povos “primitivos”.
Feyerabend ataca a unanimidade no campo do saber, dizendo que ela pode ser boa para
uma igreja, nunca para a ciência: o conhecimento objetivo exige variedade. Ataca igualmente o
recurso às evidências (os dados materiais, objetivos) na pesquisa, dizendo que uma teoria pode
estar incompatível com as evidências não por encerrar incorreção mas por estas estarem con-
taminadas.
Para a competição científica vale, segundo ele, a imaginação criadora e não o universo
dos fatos.

Detalhamentos

A ciência evolui constantemente, mas através de saltos. As mudanças se dão por revoluções.
“Uma mudança permite ver e interpretar novos fatos” (A. Koyré). Sobre Thomas Kuhn: “A
pesquisa científica é conduzida em cada época por um paradigma, isto é, por um grupo de
concepções (Vorstellungen) subordinadas, em geral inconscientes, sobre como é a realidade,
que problemas pode-se pesquisar, com que métodos, o que uma teoria deve provar,
etc./.../Progressos científicos só podem ser alcançados no âmbito do paradigma, na medida
que os problemas que o paradigma aceita como objetos legítimos de pesquisa são trabalhados e
explicados./.../ Contudo, a longo prazo acumulam-se as chamadas anomalias que não podem
ser explicadas no interior do paradigma e são, por isso, ignoradas. Em algum momento é lan-
çado um paradigma possível, que têm condições de resolver as anomalias do velho paradigma.
Os partidários do velho paradigma e do possível novo paradigma têm concepções tão diferen-
ciadas da realidade, do saber e da pesquisa que o novo paradigma normalmente só se impõe
164

quando uma nova geração de pesquisadores substitui os representantes do velho paradigma”


(Ravn, 1997, p.174-5).

RESUMO DE KUHN

. A história da ciência se desenvolve através da sequência do paradigma atual a anomalias do novo para-
digma;
. A ciência normal é cumulativa e o cientista normal não busca a novidade;
. A crise do paradigma vem a partir da ciência extraordinária. Trata-se das anomalias: são elas que põem
em dúvida a confiança no saber e provocam a crise;

A mudança de paradigmas na ciência: com a mudança do paradigma científico, os cientistas passam a mani-
pular o mesmo número de dados, entretanto, são as relações entre eles que agora são diferentes.

. A mudança de paradma deve ocorrer de uma vez e não gradualmente;


. O fato de se aceitar um novo paradigma não significa que este passe a resolver todos os problemas dei-
xados a descoberto pelo velho paradigma, mas que ele abre promessas em outros campos do saber. A pergunta
que se faz, então, é “que paradigmas devem guiar as pesquisas no futuro?”;
. Conceito de progresso: ele não vale para a história da ciência em geral mas se aplica a um paradigma em
vigor;

Críticas recebidas:
De Popper: A tese kuhniana da incomensurabilidade dos paradigmas é um mito. Chegou-se, em relação
à matéria, a pelo menos três teorias dominantes em competição desde a antiguidade.
De Imre Lakatos: A mudança de paradigma é um tipo de “conversão mística”. A transformação científi-
ca é uma experiência de conversão religiosa.

Sobre a intolerância da ciência tradicional, desatualizada, em relação às novas iniciativas. Sobre as


“trombadas cronológicas”, ver Capítulo 4, Comunicação e temporalidades. Sobre a intolerância: “Uma
nova verdade científica não triunfa convencendo seus opositores e os fazendo entrever a luz,
mas porque seus opositores morrem um dia e uma nova geração familiarizada com ela apare-
ce” (Max Planck, citado em Kuhn, 1972, p. 181). “Para eles [certos especialistas], a nova teoria
implica uma mudança de regras que governavam até lá a prática da ciência normal. Donde
[surge] uma repercussão inevitável sobre uma parte do trabalho científico que eles já realiza-
vam com sucesso. É por isso que uma nova teoria, qualquer que seja seu campo de aplicação, é
raramente ou não é jamais um simples aumento daquilo que já se conhecia. Sua assimilação
exige a reconstrução da teoria anterior e a reavaliação dos fatos anteriores, processos intrinse-
camente revolucionários, o que é raramente realizado por um só homem e jamais de um dia
para o outro” (Kuhn, 1972, p. 21). Os cientistas são intolerantes diante de novas invenções
(Kuhn, 1972, p. 40). Isso também atinge os estudantes: “estudantes e não iniciados se apegam a fra-
ses envelhecidas/.../como se lhes fosse insuportável...toda ação” (Feyerabend, 1975, p. 286).
As invenções fundamentais em geral vieram de homens muito jovens ou recém-chegados à
especialização (Kuhn, 1972, p.113).

Do convencimento: "...a superioridade de uma teoria sobre outra não pode ser provada pe-
la discussão. Eu insisti no fato de que em lugar de provar, cada partido deve tentar converter o
outro pela persuasão. /.../ Numa discussão relativa à escolha de uma teoria, não se pode ter
recurso a uma boa teoria; as teorias devem ser escolhidas por razões em última análise pessoais
e subjetivas e um certo tipo de percepção mística está na origem da decisão à qual se chega"
(Kuhn, 1972, p. 234).
165

RESUMO DE LAKATOS
- Imre Lakatos é o sucessor de Popper. Para ele, a ciência deve ter a função de predizer.

- A ciência é, foi e sempre será a competição entre programas rivais;


- A sucessão científica é uma sucessão de teorias e não uma única teoria;
- A série de teorias (a continuidade) se desenvolve a partir de um programa genuíno de pesquisa;
- Uma ciência madura é aquela em que os programas não apenas antecipam os fatos mas igualmente
novas teorias auxiliares. Marxismo e freudismo, assim, são teorias fracas porque não antecipam na-
da.

Composição de um “programa de pesquisa”:


a) Um núcleo;
b) Hipóteses auxiliares que formam um cinturão de proteção (que deve resistir ao ataque das verifica-
ções);
c) O sucesso de um programa se dá quanto todo o procedimento leva a um “deslizamento progressi-
vo” do problema. Um “deslizamento regressivo” é aquele em que as alterações no cinturão de pro-
teção já não predizem fatos novos.

Feyerabend: Ela inclui o "vale tudo", a ausência de fronteiras, as ficções... O vale tudo: "Não há ou-
tra saída: ou dizemos que os deuses e os quarks são igualmente reais, mas se encontram ligados
a circunstâncias diferentes, ou deixamos em absoluto de falar em 'realidade' das coisas e servi-
mo-nos antes de esquemas de ordenação mais complexos". (Feyerabend, 1991a, p.109). Vilém
Flusser, explicando seu pensamento nômade, diz que ele se transforma nova e imediatamente em
não convencional através do cruzamento de muitas associações paralelas 'interdisciplinares',
tanto em relação à arte quanto à literatura, mas também - e cada vez mais frequente no seu
desenvolvimento - em relação às ciências naturais e à técnica (Kloock/Spahr, 1997, p.83). Para
Feyerabend, "a antiga ideia de verdades independentes da tradição (a noção de objetividade, co-
mo se poderia designar), que conduziam ao problema da variedade cultural, foi substituída pela
ideia, um pouco menos antiga, de formas de descobrir verdades independentes da tradição (a noção
formal de objetividade)" (Feyerabend, 1991a, p.17).

Sobre o oportunismo: "O oportunismo encontra-se estreitamente ligado ao objetivismo:


admite que uma cultura estranha possa ter aspectos que valha a pena assimilar, receba o que
lhe possar ser útil e deixe intacto o resto" (Feyerabend, 1991a, p.105). A citação de Feyerabend
sobre áreas do saber se beneficiando com outras está em: Feyerabend, 1991a, p.31. O que está
certo para uma cultura pode não estar certo para outra, em Feyerabend, 1991a, p.105; sobre a
polifonia e o fato de a unanimidade poder ser bom para uma igreja, ver Feyerabend, 1975,
p.57; sobre a cacofonia, ver Feyerabend, 1991a, p.319. Ver também Atlan: "Todas as teorias,
científicas ou não, seriam delirantes, pois são sempre projeções interpretativas e em todo dis-
curso racional sobre os fatos, só se trata sempre de racionalização" (Atlan, 1986, p.171).

As fronteiras. Feyerabend: "Na prática, a ciência ultrapassa com frequência as fronteiras


que alguns cientistas e filósofos tentam criar no seu caminho e torna-se investigação livre e
sem restrições" (1991b, p.49). Veja também Moscovici: "A Relatividade nasceu numa 'acade-
mia' nada acadêmica, formada por amigos dos quais nenhum era físico, mas apenas engenhei-
ros e filósofos amadores" (citado por Lyotard, 1979, p.121).

A citação de Medawar está em Lyotard, 1979, P. 108. Feyerabend diz que os poetas
"são autênticos manuais de descrições fenomenológicas de estranhos processos que se tornam
166

reais apenas em virtude dessas descrições." (1991b, p.69).

RESUMO DE FEYERABEND
- Advoga um anarquismo epistemológico;
- O método não pode ter princípio estáticos, imutáveis, absolutamente obrigatórios;
- As normas científicas estão lá para ser violadas: violar o método é necessário ao progresso científico;
- As incoerências: as teorias só se tornam claras e racionais depois que suas partes incoerentes tenham
sido utilizadas por algum tempo. A violação do método é pressuposto inevitável da clareza e do su-
cesso empírico;
- Em ciência, a unanimidade é ruim;
- As evidências não são um critério infalível para a ciência: elas podem estar contaminadas;
- Deve-se praticar o “vale tudo” no conhecimento: católicos podem aprender com budistas, médicos
com praticantes de nei ching, psicólogos com escritores, cientistas com não cientistas;

Debate com Popper:


1) Popper dizia que seria preferível uma teoria com mais conteúdo a uma com menos conteúdo. Feye-
rabend diz o contrário: é preferível, em certas circunstâncias, utilizar hipóteses cujo conteúdo é me-
nor em relação às hipóteses alternativas.
2) Popper diz: quando duas visões filosóficas ou religiosas de mundo são incomensuráveis, duas teori-
as que tenham de resolver os mesmos problemas podem ser comensuráveis, com por exemplo, as
teorias de Newton e Einstein.
Feyerabend diz que a mecânica de Newton e a relatividade de Einstein são incomensuráveis, pois
em Newton as formas, as massas, os volumes são propriedades e em Einstein são relações.

Só se cria no conflito de oposições. "A escrita, a arte, uma novidade política para Hölderlin,
Kleis, Nietzsche [não é] um desenvolvimento harmonioso da forma ou de uma formação bem
regrada do sujeito, como o queriam Goethe ou Schiller, ou Hegel, mas de sucessões de catato-
nias e de precipitações, de suspensões e de flechas, de coexistência de velocidades variáveis, de
blocos do devir, de saltos para cima dos vazios, de deslocamentos de um centro de gravidade
sobre um plano de imanência, um 'processo estacionário' à velocidade louca, que libera partícu-
las e afetos" (Deleuze/Parnet, 1996, p.114).

A razão pequena. Bruno Latour: "Logo que nós fabricamos em nossos laboratórios,
com os colegas, nossos instrumentos e nossas mãos, os fatos de tornam, por um efeito mágico
e reinversão, algo que ninguém havia fabricado" (Latour, 1996, p. 38). Max Planck, citado por
Isabelle Stengers em Stengers, 1997, 1, p.37. A percolação de Michel Serres, em: Isabelle Sten-
gers, 1997, 3, p.103. O conceito de astúcia maligna do objeto foi desenvolvido por Baudrillard
em Baudrillard, 1983.

Jean Baudrillard propõe, em seu A transparência do Mal (1996), alguns interessantes cri-
térios para o relacionamento entre pesquisador e seu objeto, de forma a não submeter este
último mas a permitir sua realização e captar o que for possível de seu modo de funcionamen-
to, sem aspiração de esgotá-lo ou de conhecer inteiramente sua lógica. Vejamos alguns de seus
postulados:
(1) O princípio do Mal não é moral; é um princípio de desequilíbrio e de vertigem,
princípio de complexidade e de estranheza, princípio de sedução, princípio de incompatibilida-
de, de antagonismo e irredutibilidade (Baudrillard, 1996, p.114).
(2) Analisar os sistemas contemporâneos em sua forma catastrófica, fracassos e aporias,
tanto quanto no modo como eles se impõem e se perdem no delírio do próprio funcionamen-
167

to é fazer ressurgir em toda parte o teorema e a equação da parte maldita, é verificar em toda
parte seu irredutível poder simbólico (idem, p. 114),
(3) Chamem como quiserem o que aí se introduz: a parte maldita ou os atratores estra-
nhos, o destino ou a dependência sensitiva aos dados iniciais, não escaparemos a essa arranca-
da de força, a essa trajetória exponencial, a essa verdadeira patafísica dos fenômenos incomen-
suráveis (idem, p.115).
(4) Todas as espécies de acontecimentos aí estão, imprevisíveis. Já aconteceram ou es-
tão chegando. O que nos resta fazer é, de certa forma, assestar o projetor, manter a abertura
telescópica sobre esse mundo virtual, esperando que alguns desses acontecimentos façam a
gentileza de se deixar apanhar. A teoria só pode ser isso: uma armadilha preparada na esperan-
ça de que a realidade seja suficientemente ingênua para se deixar apanhar (idem, p.117).
(5) O essencial é assestar o projetor na boa direção. Mas não sabemos onde fica a boa
direção. É preciso escrutar o céu. Na maioria das vezes, trata-se de acontecimentos tão longín-
quos, metafisicamente longínquos, que só despertam uma leve fosforescência nas telas. É pre-
ciso revelá-los e ampliá-los, como uma foto. Não para descobrir-lhes um significado, pois não
são logogramas e sim hologramas. Não têm mais explicação do que o espectro fixo de uma
estrela ou as variações do vermelho.
Para captar esses acontecimentos estranhos, é preciso refazer da própria teoria uma
coisa estranha. É preciso fazer da teoria um crime perfeito ou um atrator estranho (idem, p.
p.117).

Teoria do Caos e ciências humanas

As ciências humanas têm tirado pouco proveito das novas teorias que estão aparecen-
do. Aqui também e ainda mais claramente se faz sentir a diferença ideológica das aplicações. Ja-
mes Gleick e N. Katherine Hayles haviam sugerido uma radical divisão neste complexo pouco
claro que se convencionou chamar "teoria do caos". De um lado, está o campo dos que acredi-
tam que há uma ordem escondida, interna, a ser descoberta nos sistemas caóticos. São pesqui-
sadores voltados a problemas práticos e que operam com atratores estranhos. De outro, o
campo dos que acham que a ordem vem de fora, é externa, ela promove a auto-organização
dos sistemas. Uma excede pela prática, outra pela filosofia.
Uma aplicação do primeiro tipo em ciências sociais pode ser encontrada Kiel e Elliott,
1996. A coletânea que publicam traz uma série da ensaios, artigos e resultados de pesquisa em
sociologia, política, economia, em que os conceitos do caos são utilizados de forma a aperfei-
çoar o modelo empírico-funcionalista convencional de pesquisa, criticado páginas atrás. Trata-
se de uma verdadeira reinvenção ou ressurreição do positivo aplicado. Pelo seu trabalho pode-
se ver como uma proposição original, pouco ligada às convenções e plena de possibilidades
pode se reduzir ou ser domesticada como método de rejuvenescimento de práticas científicas
atropeladas pelo tempo.
Naturalmente, nem todos são assim mas se encontram inevitavelmente situações em
que o novo pode servir para revitalizar o velho, para dotar os modelos de intervenção social ou
de controle de um equipamento teórico mais moderno. Especialmente se a óptica permanece
utilitarista, no sentido de mobilizar o aparato científico para "resolver pequenos problemas
práticos".
Em outros casos, as propostas vindas a auto-organização ou do efeito borboleta - de-
pendência hipersensível às condições iniciais - estão tendo um uso se não vago, muitas vezes
curioso ou irônico.
168

Toma-se como necessidade atualmente a supressão das barreiras entre as ciências hu-
manas e as ciências naturais. Se, por um lado, as humanidades se sentem hoje atraídas pelas
novas proposições da incerteza, da incompletude e do caos, as próprias ciências físicas e bioló-
gicas submeteram-se a essa gigantesca mudança a partir de pressupostos colocados, se não pe-
las próprias ciências humanas, certamente pela crítica que as humanidades fizeram ao sectaris-
mo, ao isolamento social das ciências da natureza e às suas desastrosas consequências.
As ciências físicas dobraram-se a uma realidade denunciada pelas ciências do homem e,
numa mudança excepcional de posicionamento e atitude, passaram a reconhecer o marginal, o
anormal, o insólito, tudo aquilo que fugia às leis e à normalidade. Exatamente porque o cami-
nho do pensamento técnico, das objetividades e das regularidades naturais, quando aplicado às
questões sociais e culturais, revelava seu lado desumano.
A própria ambiguidade no conceito de caos revela a discrepância de posicionamentos.
Para as ciências matemáticas, caos é apenas uma estrutura complexa. Para as ciências físicas e
biológicas, são os sistemas que se comportam inexplicavelmente. Para as humanidades, ao con-
trário, tem o caos componentes particularmente polêmicos: ele é subversão da ordem, de uma
ordem que os cientistas exatos tomam como "pressuposta", encarando o real como obediente
a uma ordenação fundamental, e como se os processos não tivessem outro destino senão ten-
der à regularidade e à disciplina.
A dualidade ainda é mais crítica pelo o fato de um conhecimento (as exatas) estar vol-
tado para o saber em si e o outro (as humanidades) para o saber para transformar, cf. Henri
Atlan. Só por esta divergência de finalidades já se avalia o quanto é mais difícil produzir as ci-
ências do homem e legitimá-las para competir em igualdade de condições com as ciências da
natureza.

Aplicações sociais: a economia

Além da intensa aplicação da teoria do caos em estudos de literatura, convém aqui


mencionar seu uso na economia, na sociologia, na teoria da organização e em psicologia e psi-
canálise.

Costuma-se falar das aplicações do não linear na economia, um dos primeiros campos
humanísticos a desvendar possibilidades inovadoras nas novas teorias. A bolsa de valores e
suas oscilações foi um exemplo insistentemente mencionado para exemplificar, junto com ci-
clones e movimentos de marés, as reações em cadeia incontroláveis, os desdobramentos suces-
sivos a partir de certas "condições iniciais" detonadoras imprevistas.
Na produção e no consumo, no comportamento dos produtos e em suas "reações" de
instabilidade, nas grandes mudanças da economia pensa-em em aplicar igualmente e cada vez
mais os novos modelos, não, evidentemente, sem o perigo da vulgarização, do esvaziamento e
da utilização meramente modista.
Waldrop descreve como é difícil fazer teóricos conservadores da economia porem os
olhos um pouco fora de sua rotina. Eles, por pensarem de forma sistêmica e não considerarem
que "coisas mudam" ou se tornam imprevisíveis, estariam viciados nos procedimentos da retro-
alimentação negativa, ou seja, na tendência a apostar no desaparecimento dos pequenos efeitos (a
saber: processos pequenos, discretos, não sobrevivem). Não obstante, os retornos crescentes, o
lock in (o fato de o menos provável acabar se impondo em processos sociais), a impredictabili-
dade, os eventos pequenos que acabam tendo consequências consideráveis.
169

Na ciência política e na sociologia

A partir das células autômatas têm-se empreendido estudos políticos e eleitorais, asso-
ciando as transformações de uma célula e das células vizinhas a partir de processos de conta-
minação. Voto e opinião pública são vistos como processos quase-biológicos em que um caos
inicial permite que se formem aos poucos composições regulares que se ampliam e constituem
verdadeiros núcleos de concorrência com outros. O risco está, naturalmente, na tendência de
se biologizar o político, negligenciando fatores psicológicos, culturais e mesmo inconscientes
na estrutura social.
Waldrop, por seu turno, sugere que na política internacional pequenos fatos - retroali-
mentação positiva - podem detornar guerras que envolvem todos, mas é na sociologia que as
especulações são mais frequentes. Hegselmann e Peitgen publicaram recentemente uma obra
em que as dinâmicas sociais são estudadas à luz da complexidade e do caos. Os autores chegam
a resultados conteudísticos e a propostas heurísticas (apoiadas em modelos), a partir das pro-
posições da complexidade. Especial utilização, em seu estudo, receberam aspectos como:
- O microplano pode levar a macro-efeitos (pequenos grupos podem provocar grandes
tumultos; retroalimentação negativa vista acima);
- Há resultados obtidos que não eram necessariamente desejados pelos atores sociais:
alguns modelos de ação e interação social ajustam-se aos chamados "efeitos não intencionados
da ação social". Por exemplo, alguns indivíduos que não intencionavam participar de certos
processos acabam, por motivos ligados à complexidade, sendo levados a isso (impredictabili-
dade)
- Alguns modelos, mesmo reconhecidamente equivocados ('vivemos num tabuleiro de
xadrez'), são, segundo os autores, úteis para prognóstico e para a explicação no mundo real.
- Não há instância central, uma mão invisível que crie as ordens. Esta surge do indiví-
duo, mesmo que pareça vir da mão invisível. Para os autores, este seria um caso de "auto-
organização social".

Teoria das organizações

Guastello e colaboradores utilizam o método da complexidade e da auto-organização


para identificar padrões de aceitabilidade e de rejeição a ideias, chamados de atratores e repelo-
res, e para definir o curso de uma ação que circula com sucesso pelo campo vetorial da organi-
zação. Espejo e colaboradores falam na teoria da administração da complexidade e da causali-
dade circular aplicada a sistemas: do fato de inventarmos as organizações que irão criar o con-
texto para as ações que irão criar ou inventar, por seu turno, estas mesmas organizações. A
filiação a Varela é automática.
Niklas Luhmann, contudo, adverte quanto às intenções do sistema: é certo que ele não
pode funcionar senão reduzindo a complexidade, contudo, deve suscitar a adaptação das aspi-
rações individuais aos seus próprios fins. O desempenho, imperativo maior da sobrevivência
dos sistemas, estaria fatalmente comprometido se houvesse efetivamente circulação livre de
informações, pois esta retardaria os prazos de decisão.
As aspirações individuais, dirigidas através da "quase-aprendizagem", que as compatibi-
liza com o sistema (Luhmann), anulam qualquer esforço dos técnicos em sistemas de implantar
a democracia ou, pelo menos, métodos de auto-organização que de fato considerem as aspira-
ções das pessoas. Estas só são aceitas se não forem dissonantes com a lógica maior do próprio
sistema.
170

Os processos psico-psíquicos

Apesar da crítica de Henri Atlan às apropriações que a psicologia ou a psiquiatria fazem


de conceitos de energia, já reproduzida neste livro (Cap. 3, # 18), alguns pesquisadores têm
encontrado aplicações que lhes parecem perfeitamente adequadas aos estudos das disposições
mentais. Combs acredita que a consciência seja um processo não linear e sua energética, assim
como nossos humores, seriam autopoiéticos: humores, pensamentos e percepções "tecem o
mesmo pano que os suporta". O mesmo acontece com os estados exteriores (de disposição
religiosa, por exemplo) que atuam sobre a pessoa, que reage da mesma forma, constituindo ela
o mesmo estado outra vez. Como atratores, diz Combs, esses estados desdobram-se - aparen-
temente de forma circular - jamais retornando ao mesmo ponto duas vezes.
Henri Atlan, em suas hipóteses sobre a auto-organização e os estados mentais, fala que
agimos com parte de nós (consciente) mas somos conduzidos pelo todo (que nos escapa). De
alguma forma, portanto, colaboramos, se bem que sem saber exatamente para onde nos leva o
trem. Ele é mais cauteloso, de qualquer forma, na apropriação, às vezes forçada, dos conceitos
do caos.

Em todos os casos é de se questionar, considerando-se algumas sugestivas e produtivas


transposições mencionadas, se não está se fazendo apenas uma mudança de nomes, para dar a
aparência de uma modernização nas ciências sociais? Até que ponto estamos falando efetiva-
mente de modos novos e significativamente diferenciados de estudar os processos da socieda-
de? Pode-se classificar o mercado de ações, por exemplo, de "turbulento", dentro das três fases
mencionadas (estacionário, periódico e turbulento), mas o que isso efetivamente revoluciona o
estudo clássico da economia? Da mesma forma falar em auto-organização, complexidade, atra-
tores e "repelores", em organizações.
Comportamentos em série no consumo, na formação de opinião, no lazer acabam fa-
cilmente sendo traduzidos para a linguagem mais sofisticada e aparentemente inovadora de
simetrias recursivas, sem qualquer ganho real para a ciência social, a não ser sua mistificação. É o
que fazem também alguns economistas ao classificar de atratores estranhos alguns ciclos ines-
perados da economia, descrevendo sua curva em "espaços de fase" inseridos em "bacias de
atratores". Além do modismo, essa utilização abusiva vulgariza um espaço epistemológico que
já não consegue controlar a inflação de abusos.
Mais constante talvez seja, pela própria ligação que permite com as ciências sociais e a
filosofia, o uso de conceitos como auto-organização, estruturas dissipativas, flutuações e bifur-
cações. Mas até que ponto semelhante simplificação é aceitável? Não se vê a suspeita entre soció-
logos - mas, por que não colocá-la? - de que a complexidade e a heterogeneidade dos processos
sociais acabam por se reduzir quando explicados como auto-organização, cujo alcance ainda
não está claro nas ciências sociais. Uma bifurcação é uma revolução? Seria pobre demais, visto
que o próprio termo da física conforma processos históricos humanos a eventos naturais.
Este parece ser o perigo maior. A transferência pura e simples de conceitos e, não raro,
de fenomenologias inteiras, pode, por um lado, ter o efeito de tornar obsoleto e demodé todo o
quatro teórico-conceitual anterior que a ciência desenvolveu em décadas de estudos e pesqui-
sas, e, por outro, contaminar as ciências sociais com conceitos que em sua origem vieram de
quadros naturais, ou seja, que já dispensaram lá, na fonte, a interferência humana na sua produ-
ção, desenvolvimento e utilização científica.
171

Detalhamentos

Há duas correntes na teoira do caos, mas apenas uma se diz aplicável às ciências humanas. James
Gleick, fala da duas correntes: 1)“Há uma ordem escondida por detrás dos sistemas caóticos”. São seus
representantes: Michael Feigenbaum, Benoit Mandelbrot, Robert Shaw e Kenneth Wilson.
Estão voltados à resolução de problemas práticos ligados a sistemas não lineares. 2) A ordem
surge fora do sistema caótico. Seus representantes são: Arthur Winfree, Ilya Prigogine e René Thom.
O conceito-chave é a auto-organização. Eles trabalham as implicações filosóficas da teoria do
caos. Para eles, o mundo pode renovar-se e não está constantemente se deteriorando (Gleick,
1990). A corrente atrator estranho difere do paradigma ordem a partir do caos pelo seu interesse
em sistemas que permanecem caóticos. Para eles, o foco está na descida ordeira ao caos, em
vez de estar nas estruturas organizadas que emergem do caos. /.../A corrente [de Prigogine] foi
criticada dentro da comunidade científica pela relativa insuficência dos seus resultados, especi-
almente à luz de sua ampla exigência filosófica. A corrente atrator estranho, contrariamente, foi
subteorizada, seus praticantes preferem se concentrar em problemas de interesse prático ime-
diato. Em resumo, a corrente ordem a partir do caos tem mais filosofia que resultados; a cor-
rente atrator estranho tem mais resultados do que filosofia" (Hayles, 1990, p.10). Sobre Ilya
Prigogine, Katherine Hayles diz que uma das debilidades de sua teoria estaria na ambição de
transcender o nível dos fenômenos físico-biológicos para deduções de ordem filosófica (Hay-
les, 1990, p. 10 e 91).
A obra de Kiel e Elliott, apesar de trazer como último e distonante o artigo do David
Harvey, comporta algo que lembra, em alguns casos, a utilização da ciência social com preocu-
pações semelhantes às das antigas doutrinas norte-americanas do social engineering como forma
de crisis management, de triste memória.
Há uma aplicação de Prigogine para o caso do trânsito: por exemplo, uma situação apa-
rentemente confusa, perturbada, insolúvel do trânsito de veículos urbanos encontra, de repen-
te, uma solução oportuna e a ordem se instala novamente no sistema, introduzida por algum
fator inesperado.

Sobre a teoria da borboleta. O efeito borboleta pode ser ironizado com o exemplo da perda
das chaves do carro de um executivo (condição inicial), que pode gerar efeitos absolutamente
imprevisíveis como a ausência no trabalho, a não entrega de importante documentação ao che-
fe, a perda da concorrência, o suicídio do chefe por causa disso, o desmoronamento da empre-
sa e a reação em cadeia em todo conglomerado e a crise econômica nacional daí resultante.
A literatura fornece hoje em dia muitos exemplos de aplicação da teoria do caos na soci-
edade. Além de Jorge Luiz Borges, já citado, pode-se também evocar nomes como Italo Calvi-
no (Se um viajante numa noite de inverno) ou Thomas Pynchon (O leilão do lote 49). Outros autores
trabalham com Robert Musil, Paul Auster, Umberto Eco, William Gibson, Martin Grzimek e
até mesmo com Goethe. Mesmo clássicos como Ivan Turgueniev, Hermann Brock ou Arthur
Schweizer são mencionados como pós-modernos ou escritores do caos avant la lettre.
Sobre caos como subversão da ordem entre os pós-estruturalistas, como, por exemplo,
Derrida, ver Hayles, 1990, p.176.

Fato é que não se justifica a separação radical entre ciências humanas e ciências físicas e da natureza.
Sobre a ausência de diferenças entre ciências físicas e humanas, consultar Feyeraband, 1991b,
p.102, Mainzer, 1992, p.275. Sobre a arrogância dos exatos: a declaração de René Thom está em
172

Thom, 1983, p.122 e 47. A "ausência de bases teóricas" é de Hegselmann/Peitgen, 1996, p.7-8;
a ausência de paradigmas, de Thomas Kuhn, 1972, p.31.
Henri Atlan fala que nas ciências humanas não valem leis naturais mas as - muito mais
difícil de isolar, estudar, generalizar - 'regras do jogo'; que a cientificidade destas ciências não
está na busca da 'verdade' e que a experiência em ambas é totalmente diferente (1986, p. 257).
"O princípio de conservação de energia perde toda sua fecundidade quando é estendido, de
forma abusiva, às formas de 'energia' como a 'energia' psíquica e sexual, onde as relações quan-
titativas com as formas de energia física (mecânica, calórica, elétrica, química, nuclear) jamais
foram estabelecidas...; e isso porque os fenômenos que se supõe que elas dirijam - psíquicos,
sexuais - não são descritos a não ser em níveis de organização diferentes e separados daqueles
aos quais as descrições físicas podem se aplicar diretamente./.../Da mesma forma, o princípio
de incompletude e de indecidibilidade de Gödel perde todo o interesse se se pretende expandi-
lo a uma realidade que está prestes, como os místicos e certos artistas, a admitir o contraditó-
rio" (Atlan, 1986, p.143).

Há casos de aplicações das novas teorias na economia... M. Michel Waldrop e a retroalimentação


positiva: "Movimentos moleculares pequenos tornam-se células por convecção. Ventos tropicais
suaves tornam-se furacões. Grãos e embriões tornam-se criaturas vivas totalmente desenvolvi-
das. A retroalimentação positiva parece ser o sine qua non da troca, da surpresa, da própria vida"
(Waldrop, 1992, p.34). "Se a inovação resulta de novas combinações de velhas tecnologias,
então, o número de inovações possíveis iria crescer muito rapidamente quando cada vez mais
tecnologias se tornassem disponíveis. De fato/.../ uma vez que se passa um certo limiar de
complexidade, pode-se esperar um tipo de transição de fase análoga àquelas que ele
[Kaufmann] encontrou nos conjuntos catalíticos" (idem, p.126).

Na sociologia: Waldrop fala de guerras como exemplo de transição de períodos metaes-


táveis para caóticos: Waldrop, 1992, p. 334. Em política, diz que "nós vimos as perturbações
nos Bálcãs e em toda parte. Pois, nos modelos, uma vez que você sai de um desses períodos
metaestáveis, você entra num período caótico em que muda um monte de coisa. As possibili-
dades de guerra são muito maiores - inclusive daquele tipo que poderia levar a uma guerra
mundial. Ele é muito mais sensível agora às condições iniciais" (idem, p.320).

Hegselman e Peitgen utilizam ordem, caos e complexidade para estudar alguns modelos
de dinâmica social. Seu ponto de partida é que a vida em comum (social ou subjetiva) tem uma
dinâmica: parceiros são procurados tanto no nível individual como das instituições. Os atores
portam diferentes convicções e opiniões, influenciam-se reciprocamente, constituem em geral
grupos com opiniões mais ou menos homogêneas ou que se posicionam de forma hostil. Em
muitas questões, como, por exemplo, o uso da energia atômica participam muitos grupos de
atores. Os autores dizem que os cientistas, os jornalistas e os cidadãos não são homogêneos e
se influenciam reciprocamente de uma ou de outra forma, mas os resultados de suas ações são
surpreendentes e dificilmente previsíveis.
Um dos estudos que apresentam no livro para aplicar ordem, complexidade e caos é o
da formação de opinião. Para tanto, os autores imaginam o social como um tabuleito de xa-
drez, em que indivíduos se influenciam mutuamente e essa influencia tem uma "espacialidade":
os de vizinhança mais próxima têm mais influência que os de vizinhança mais remota, acres-
cendo-se aí também um poder de convencimento diferenciado entre as pessoas. Nesste tipo de
estudo, toma-se emprestado o modelo dos autômatos celulares: num tabuleiro residem células
(pessoas), que têm uma certa posição política. Há regras que tentam explicar quando uma pes-
173

soa muda sua posição política. Os pequenos resultados observáveis pela vizinhança e seus efei-
tos de convencimento pela proximidade (microplano) repercutem em processos sociais maio-
res (macroefeitos) e, para tanto, os autores acreditam que possa haver uma homologia.
Um outro tipo de estudo fala dos "clusters", que são grupos de pessoas em tornos de
algum objetivo. Através dele, acreditam os autores, o equilíbrio de opiniões se estabelece a
partir do fato que esses núcleos dão guarida a opiniões minoritárias. No cluster - este é o se-
gredo de sua sobrevivência - opiniões que são minoritárias no geral tornam-se majoritárias no
particular.
Mais um tipo de estudo fala da busca de companheiros e a criação de redes de solidari-
edade dos mais diferentes tipos para essa finalidade. O modelo do tabuleiro permanece, mas
agora temos o deslocamento dos atores. Interessante nesse estudo é o fato de essas redes po-
derem também se configurar negativamente: há pessoas que delas se aproveitam para vanta-
gens pessoais. Este estudo avalia pessoas altamente e baixamente carentes de outros e extrai a
conclusão que estas vivem ou fortemente as redes ou não conseguem encontrar ninguém.
Mas até aí a interferência da ordem, caos e complexidade é pequena. Os autores as des-
tacam nos resultados.

Nowak: a opinião pública


Nowak estuda os fenômenos qualitativos que podem ser mostrados através de modelos
(polarização, formação de pequenos grupos):
1. Não linearidade de mudança de atitude: no passado, diz ele, as atitudes eram uma va-
riável contínua. Mudanças seriam proporcionais às influências exercidas sobre cada um indivi-
dualmente. Contudo, constata em suas pesquisas,'forças sociais' agem muito frequentemente
de forma não linear... Pequenas mudanças levam a drásticas mudanças de atitude. (No-
wak/Freilak, 1996, p. 62)
2. Diferenças individuais: As pessoas não são iguais em seus parâmetros de forças. Para
matemáticos e físicos, a dinâmica do sistema, consistindo de 'equal individuals', de pessoas
iguais, leva necessariamente à uniformidade de opiniões, quando da presença de ruídos infini-
tesimamente pequenos. Aqui, contudo, diferenças individuais provêm uma força de sobrevi-
vência de grupos minoritários... sua força é praticamente infinita (p. 63)/.../A questão de 'co-
mo pode a minoria sobreviver' pode ser respondida pela formação desses pequenos grupos. Os
que estão no interior deles são rodeados por outros que partilham da mesma opinião. Somente
aqueles localizados nas suas bordas estão expostos à pressão de pessoas que defendem opini-
ões majoritárias. /.../ Schelling (1971,1969) mostrou que pequenos grupos podem ter sucesso
pelo simples fato de que as pessoas se movem de forma aleatória até que encontrem si mesmas
em ambientes mais satisfatórios (idem).

Na teoria da organização. Guastello fala de mudanças evolucionárias e mudanças revolucionárias.


As primeiras "ocorrem quando há apenas mudanças graduais no campo vetorial e em seus
retratos de fase, ao serem mudados os parâmetros de controle. Mudança revolucionária é bi-
furcação, seja ela sutil, catastrófica ou explosiva" (1995, p. 268). /.../ Quando um sistema não
linear é posto em condição longe do equilíbrio, ele pode sofrer um processo de auto-organização
ou transformação espontânea para uma ordem ou padrão de funcionamento mais complexo.
Essas condições longe do equilíbrio podem ser aquelas das condições estáveis que já não mais
satisfazem em virtude da mudança das metas, na ética, ou demandas do ambiente organizacio-
nal ou então elas podem representar instabilidades quando parâmetros organizacionais ou am-
bientais de controle forçam a organização para condições estáveis que predominam em pontos
bifurcacionais (idem, p. 270).
174

Espejo: "A mudança que tornamos clara/.../ é da perspectiva dos sistemas sociais co-
mo entidades independentes, externas a nós, sujeitos de nossos esforços de controle, para uma
visão na qual aparecemos como atores produzindo estes mesmos sistemas. Há uma causalidade
circular; nós criamos, inventamos as organizações que proveem, por seu turno, o contexto para
as próprias ações criando, inventando estas organizações (Espejo et al., 1995, p.3)
Niklas Luhmann critica a teoria da organização, em: Lyotard, 1979, p.112. A menção a
Luhmann é de seu Legitimation durch Verfahren.

Nos processos psico-psíquicos. "Na minha opinião, diversas facetas da consciência são
igualmente não lineares, apesar de nós até o momento não entendermos sua energética, em
muitos sentidos autopoiética. Por exemplo, muitos processos mentais parecem ser não apenas
autossustentados mas autocriadores." (Combs, 1995, p.133). /.../ Vistos de uma forma mais
próxima, os estados de consciência parecem demonstrar a mesma qualidade autopoiética vista
acima nas fases de Piaget. Toda a matriz de subsistemas, que forma um estado particular -
emoções, memória, cognição, etc. - se combina, à semelhança das faixas de Möbius, para tecer
o mesmo pano que as suporta. Os humores, os pensamentos e as percepções de cada estado
são únicas e contribuem na formação do tecido. Atividades externas, da mesma forma, contri-
buem para e reforçam os estados de consciência que as evocam. A realidade comum da vigília,
por exemplo, é indutiva para a atividade energética que, em retorno, aguça os pensamentos,
percepções e o sentido de um ego produtivo, do qual é extraído o estado. Estados estáticos
religiosos, por outro lado, são indutivos de uma disposição de culto, reza e meditação, con-
templação silenciosa etc.; todos eles tendem a reforçar aquele estado. /.../ O fato de que os
estados de consciência possam ser compreendidos como processos coerentemente complexos
sugere a utilizabilidade da conceituação como atratores. Da mesma maneira que os atratores
matemáticos, eles desdobram-se de momento a momento dentro de certos limites amplos mas
nunca numa forma linear direta e jamais retornando exatamente ao mesmo ponto duas vezes"
(idem, p.135).
Henri Atlan: agimos conscientemente mas somos levados pelo todo, em Atlan, 1992,
p.118-19.
175

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