Apostila de Direitos Humanos Iep

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DIREITOS HUMANOS

Introdução
Vivemos hoje numa cultura que almeja uma ordem social pautada em valores como a justiça, a igualdade, a eqüidade e aparticipação coletiva na
vida pública e política de todos os membros da sociedade, ao mesmo tempo em que busca uma vida digna para todas as pessoas. Esses
valores são basais na Declaração Universal dos Direitos Humanos, fruto de um pacto consolidado em 1948 no âmbito da Organização das
Nações Unidas e hoje assumidos pelos países democráticos como uma referência de ética e de valores socialmente desejáveis.
Em seus trinta artigos, os princípios presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) situam-se na confluência democrática
entre os direitos e liberdades individuais e os deveres para com a comunidade em que se vive. Como demonstração de sua força ética, nas
últimas décadas, inúmeros outros documentos vêm sendo elaborados e acordados no mundo inteiro, na busca por garantir tais direitos e
deveres para grupos ou comunidades específicas, contribuindo para a construção de uma cultura de direitos humanos.
No campo da educação, entende-se que para promover uma educação ética e voltada à cidadania deve-se partir de temáticas significativas
do ponto de vista ético, propiciando condições para que os alunos e alunas desenvolvam sua capacidade dialógica, tomem consciência de
seus próprios sentimentos e emoções e desenvolvam a capacidade autônoma de tomada de decisão em situações conflitantes do ponto de
vista ético/moral. Documentos como a DUDH, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto dos Idosos e muitos outros podem
fornecer as bases para uma educação em valores.
Da mesma forma, como decorrência dos documentos citados, abordar nos projetos educativos temáticos como o trabalho infantil, a
exploração sexual de crianças e adolescentes, o atendimento socioeducativo do adolescente em conflito com a lei e a promoção.

E defesa dos direitos de pessoas com deficiência são maneiras de se introduzir, no cotidiano das escolas, a preocupação com a ética e com
a cidadania.
O módulo de "Direitos Humanos" do Programa Éticae Cidadania, relacionado à temática de inclusão e exclusão social, pretende contribuir
com as escolas interessadas na difusão desse tipo de projeto educativo, fornecendo as bases conceituais e metodológicas para o trabalho que
ajude na diminuição das desigualdades e exclusões sociais.
O texto de Maria Victoria Benevides abre o módulo, fornecendo bases sociológicas e filosóficas que mostram por que os direitos
humanos são considerados universais, naturais e ao mesmo tempo históricos. Na seqüência, propomos às escolas que conheçam a Cidade
dos Direitos, uma representação gráfica que mostra de forma didática o Estatuto da Criança e do Adolescente e seus
principaispressupostos. Comorelatodeexperiência, apresentamos o projeto da rede de observatórios de direitos humanos, descrito em um
artigo de mesmo nome por seu coordenador Marcelo Daher. Tudo isso acompanhado de sugestões de estratégias pedagógicas que ajurão
na disseminação dessas idéias no cotidiano das escolas.
Cidadania e direitos humanos
Otexto sugerido temcomo principal objetivo introduzir alguns conceitos fundamentais sobreos direitos humanos. Nele, a socióloga
Maria Victória Benevides discorre sobreas três dimensões (ou gerações) em que o conjunto de direitos humanos é classificado: 1) a dimensão
das liberdades individuais ou os chamados direitos civis; 2) a dimensão dos direitos sociais; 3) a dimensão dos direitos coletivos da
humanidade. Neste contexto, edeformaacessível, aautoraadverte-nosque igualdadenãosignificahomogeneidade e traz como premissa que o
direito à igualdade pressupõe o direito à diferença. Premissa essa fundamental para fomentar práticas escolares que promovam e respeitem
os direitos humanos.

SOARES, Maria Victoria Benevides. Cidadania e Direitos Humanos. In: CARVALHO, Jose Sérgio (Org.).
Educação, Cidadania e Direitos Humanos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. P. 56-65.

[...]
***
Os direitos humanos são [...] universais, naturais e ao mesmo
tempo históricos. São naturais e universais porque vinculados à
natureza humana, mas são históricos no sentido de que mudaram ao
longo do tempo num mesmo país e o seu reconhecimento é diferente
em países distintos, num mesmo tempo. Podem, igualmente, ter o
seu escopo ampliado, em virtude de novas descobertas, novas
conquistas, novas correntes de pensamento. São relativamente
recentes, no rol dos direitos fundamentais da pessoa humana,
aqueles que dizem respeito à defesa do meio ambiente, a direitos
sociais não vinculados ao mundo do trabalho. Hoje, com as
descobertas científicas.
No campo da genética, podemos imaginar como o rol dos direitos humanos voltados para a dignidade
da pessoa humana poderá se ampliar. Os direitos humanos, no que dizem respeito à orientação sexual,
por exemplo, seriam impensáveis há trinta anos; hoje eles já integram o núcleo daqueles direitos
considerados fundamentais, ou seja, ninguém poderá ser discriminado, maltratado, excluído da
comunidade política e social por causa de sua orientação sexual.
O núcleo fundante dos direitos humanos é, evidentemente, o direito à vida, porque de nada adiantariam
os outros se este não prevalecesse. Quando falamos em direito à vida, reconhecemos que ninguém tem o
direito de tirar a vida do outro – a não ser em legítima defesa –, mas isso também não é óbvio, se
observarmos exemplos ao longo da história da humanidade. Basta ler a Bíblia para vermos, por exemplo,
a legitimidade da escravidão.

E até mesmo a insinuação de sacrifícios humanos. Nas sociedades coloniais e patriarcais – como na história brasileira –, o pater
familias tinha o direito de vida e morte sobre sua família e os agregados. Se o pressuposto dos Direitos Humanos é o direito à vida, não
se pode admitir nem a pena de morte e os demais castigos cruéis e degradantes, porque isso é diretamente atentado contra a vida, e nem a
exploração do trabalho, porque isso incide diretamente sobre o direito à dignidade, inclusive o direito à saúde. E aqui deve ser
salientado esse ponto, que talvez seja um dos mais complexos no entendimento dos direitos humanos: o que queremos dizer quando
falamos em dignidade humana?

É evidente que, no interior de determinada cultura, podemos saber, diante de um fato concreto, se aquilo atinge a nossa dignidade, ou
a dignidade de alguém. Sabemos que são indignos certos comportamentos, certas atitudes. Todas as atitudes marcadas pelo
preconceito, pelo racismo, pela exploração do forte sobre o fraco, atentam contra a dignidade da pessoa e nós assim sentimos; se algo
humilha uma pessoa, a humilhação pode não atingir a integridade física, mas atinge a sua dignidade espiritual como pessoa.

De que falamos quando recorremos, em última instância, à dignidade da pessoa humana para justificar os direitos humanos? Durante
muito tempo o fundamento da concepção de dignidade podia ser buscado na esfera sobrenatural da revelação religiosa, da criação divina –
o ser humano criado à imagem e semelhança do Criador. Ou, então, numa abstração metafísica sobre aquilo que seria próprio da
natureza humana, o que sempre levou a discussões filosóficas sobre a essência da natureza humana. Independentemente dessaspolêmicas,
aquelesquesãoreligiososouespiritualistastêmummotivoa maispara se preocupar com a dignidade da pessoa humana, se acreditam na
criação divina, na afirmação de que todos somos irmãos, nessa fraternidade que vem da religião, como no caso, dentreoutros,
docristianismo. Hoje, numavisãomaiscontemporânea, percebemos como todosostextosnacionais einternacionaisde defesa dos
direitoshumanos explicam a dignidade pela própria transcendência do ser humano, ou seja, foi o homem que criou ele mesmo o direito.
Ele mesmo criou as formas da idéia de dignidade em grandes textos normativos que podem ser sintetizados no artigo 1o da Declaração
Internacional de Direitos Humanosde 1948:―todosossereshumanosnascemlivrese iguaisemdignidade e em direitos‖. Esta formulação
decorre da própria reflexão do ser humano que a ela chegou de uma maneira que é historicamente dada.

Como já foi dito acima, foi uma grande revolução no pensamento e na história da humanidade chegar à reflexão conclusiva de que
todos os seres humanos detêm a mesma dignidade. É evidente que nos regimes que praticam a escravidão, ou qualquer tipo de
discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos e étnicos não vigoram tal compreensão universalista, pois neles a dignidade é
entendida como um atributo de apenas alguns, aqueles que pertençam a um determinado grupo.

A dignidade do ser humano não repousa apenas na racionalidade; no processo educativo, porexemplo,procuramos atingir
arazão,mastambémaemoção, isto é,corações ementes. – pois o homem não é apenas um ser que pensa e raciocina, mas que chora e que ri
que é capaz de amar e de odiar, que é capaz de sentir indignação e enternecimento, que é capaz da criação estética. Unamuno dizia que o que
mais nos diferencia dos outros animais é o sentimento, e não a racionalidade. O homem é um ser essencialmente moral, ou seja, o seu
comportamento racional estará sempre sujeito a juízos sobre o bem e o mal. Nenhum outro ser no mundo pode ser assim apreciado em
termos de dever ser, da sua bondade ou da sua maldade. Portanto, o ser humano tem a sua dignidade explicitada através de.

Características que são únicas e exclusivas da pessoa humana; além da liberdade como fonte da vida ética, só o ser humano é dotado
de vontade, de preferências valorativas, de autonomia, de autoconsciência como o oposto da alienação. Só o ser humano tem a
memória e a consciência de sua própria subjetividade, de sua própria história no tempo e no espaço e se enxerga como um sujeito no
mundo, vivente e mortal. Só o ser humano tem sociabilidade, somente ele pode desenvolver suas virtualidades no sentido da cultura e do
auto-aperfeiçoamento vivendo em sociedade e expressando-se através daquelas qualidades eminentes do ser humano como o amor, a
razão e a criação estética, quesãoessencialmente comunicativas. Éoúnicoserhistórico, poiséoúnicoque vive em perpétua transformação
pela memória do passado e pelo projeto do futuro. Sua unidade existencial significa que o ser humano é único e insubstituível. Como
dizia Kant, é o único ser cuja existência é um valor absoluto, é um fim em si e não um meio para outras coisas.

Essa idéia da dignidade, que é central para a compreensão dos direitos humanos e de sua universalidade, esclarece, entre outros temas, por
que quando ocorre uma violação grave no Brasil é legítima a interferência de outro Estado, como, por exemplo, as comissões européias e
norte-americanas, que vêm investigar violação de direitos dos índios, dos negros, das crianças, das mulheres, dos presos, dos pobres,
ou a devastação do meio ambiente. Por que essa intromissão é legítima? Porque os direitos humanos superam as fronteiras jurídicas e a
soberania dos Estados nacionais.

Do ponto de vista histórico, há uma distinção já bem aceita dos direitos humanos, que talvez seja interessante reafirmar aqui. O
conjunto dos direitos humanos é classificado em três dimensões, ou gerações – são gerações no sentido da evolução histórica e não no
sentidobiológico, poisnãosãosuperadoscomachegadadeumanovageração, osdireitos precedentes continuam incorporados na geração
seguinte.

A primeira geração, ou dimensão, é a das liberdades individuais, ou os chamados direitos civis. São as liberdades consagradas no século
XVIII, com o advento do liberalismo; constituem direitos individuais contra a opressão do Estado, contra o absolutismo, as
perseguições religiosas e políticas, contra o medo avassalador em uma época em que predominava o arbítrio e a distinção em castas,
em estamentos, mais do que em classes sociais. Trata-se das liberdades de locomoção, propriedade, segurança, acesso à justiça,
associação, opinião e expressão, crença religiosa, integridade física. Essas liberdades individuais, tambémchamadasdireitoscivis,
foramconsagradas em várias declarações e firmadas nas constituições de diversos países.

A segunda dimensão é a dos direitos sociais, do século XIX e meados do século XX. É todos aqueles direitos ligados ao mundo do
trabalho, como o direito ao salário, jornada fixa, seguridade social, férias, previdência etc. São também aqueles direitos que não estão
vinculados ao mundo do trabalho – mais importantes ainda –, porque são direitos de todos e não apenas daqueles que estão
empregados. Trata-se dos direitos de caráter social mais geral, como o direito à educação, saúde, habitação, lazer e, novamente,
segurança. São direitos marcados pelas lutas dos trabalhadores já no século XIX e acentuadas no século XX, as lutas dos socialistas e
da social- democracia, que desembocaram em revoluções e no Estado de Bem-Estar Social. Hoje, no Brasil e nos países efetivamente
democráticos, são igualmente reconhecidos como ―direitos do cidadão‖.

A terceira dimensão é aquela dos direitos coletivos da humanidade. Referem-se esses à defesa ecológica, à paz, ao desenvolvimento,
à autodeterminação dos povos, à
Do patrimônio científico, cultural e tecnológico. Direitos sem fronteiras, ditos de
―solidariedade planetária‖. Assim sendo, testes nucleares, devastação florestal, poluição industrial e contaminação de fontes de água potável,
além do controle exclusivo sobre patentes de remédios e, dasameaçasdasnaçõesricasaos povos que semovimentam em fluxos migratórios
(pormotivospolíticos oueconômicos), porexemplo, independentementede onde ocorram, constituem ameaças aos direitos atuais e das
gerações futuras. O direito a um meio ambiente não degradado já se incorporou à consciência internacional como um direito ―planetário‖. O
mesmo ocorre com a dominação econômica dos países ricos, sob a hegemonia norte-americana, secundada pelo G-8. Essa dominação implacável
identifica umaóbviaviolaçãododireitomundial ao desenvolvimento. Eaconsciênciadessedireito universal legitima movimentos de
―cidadania mundial‖, como os ocorridos em Seattle, em Praga, em Porto Alegre e em Gênova, de oposição às reuniões dos grandes órgãos
da economia globalizada, que pretendem impor as suas regras de um novo e devastador imperialismo.
***
Um ponto importante, recentemente discutido por Fábio Konder Comparato, merece.
Destaque. No Brasil não existiu uma ―revolução burguesa‖, no sentido de que as classes proprietárias não lutaram em defesa de
liberdades civis e políticas que lhes tivessem sendo negadas (ver, a respeito, a análise de Sérgio Buarque de Holanda quando afirma
que, no Brasil, ―a democracia sempre foi um lamentável mal- entendido‖). Logo, a consciência da dignidade humana na liberdade, na
igualdade, na solidariedade nasceu ao mesmo tempo, de um só golpe, no século XX. É por isso que, como já mencionado acima,
podemos afirmar que os direitos econômico e social são condiçãoparaa realização das liberdades
– E não o contrário.

A presente discussão é apenas introdutória a uma temática mais ampla dos direitos humanos. O ponto com o qual gostaríamos de terminar
refere-se à questão da igualdade, até aqui associada aos direitos sociais, tanto os referidos ao mundo do trabalho, quanto os mais amplos,
como o direito à educação. Seria interessante chamar a atenção para a dificuldade que temos de entender a idéia da igualdade. Se o
valor da liberdade é razoavelmente bem percebido – e está, de certa forma, presente em nosso ―inconsciente coletivo‖ –, o mesmo não
ocorre com o valor da igualdade. Como princípio fundador da democracia e dos direitos humanos e certamente contidos na proposta da
cidadania democrática, a igualdade não significa ―uniformidade‖ de todos os seres humanos – com suas diferenças de etnias, cor da
pele, sexo, cultura etc.

Partimos, portanto, da premissa de que a igualdade não significa homogeneidade. Daí, o direito à igualdade pressupõe – e não é uma
contradição – o direito à diferença. Diferença não é sinônimo de desigualdade, assim como igualdade não é sinônimo de homogeneidade
e de uniformidade. A desigualdade pressupõe uma hierarquia dos seres humanos, em termos de dignidade ou valor, ou seja, define a
condição de inferior e superior; pressupõe uma valorização positiva ou negativa e, portanto, estabelece quem nasceu para mandar e quem
nasceu para obedecer; quem nasceu para ser respeitado e quem nasceu só para respeitar. A diferença é uma relação horizontal; podemos ser
muito diferentes e já nascemos homens ou mulheres (graças a Deus), o que é uma diferença fundamental; mas não é uma desigualdade;
será uma desigualdade se essa diferença for valorizada no sentido de que os homens são superiores às mulheres, ou vice-versa. Brancos e
negros são diferentes, europeus e latino-americanos podem ser diferentes, cristãos, judeus e muçulmanos podem insistir em suas
diferenças, mas a desigualdade se instala com a crença na superioridade intrínseca de uns sobre os outros.

O direito à diferença, portanto, é um corolário da igualdade na dignidade. O direito à diferença nos protege quando as características de
nossa identidade são ignoradas ou contestadas; o direito à igualdade nos protege quando essas características são motivo para
exclusão,discriminaçãoeperseguição.Concluindo,umadiferençapodesere,geralmente,o é culturalmente enriquecedora, enquanto uma
desigualdade pode ser um crime. No Brasil, é o que ocorre. E, cada vez mais, é o que tem ocorrido no mundo, marcado por guerras e
perseguições motivadas por diferenças de identidade étnica e religiosa - o que julgávamos superado pela ―modernidade ocidental‖. A igualdade
democrática pressupõe:
 A igualdade diante da lei; é um pressuposto da aplicação concreta da lei, quer. Proteja, quer puna. É o que os gregos chamavam de
isonomia.
 A igualdade do uso da palavra, ou da participação política; é o que os gregos chamavam de isegoria.
 Aigualdadedecondiçõessocioeconômicasbásicas,paragarantiradignidadehumana. Desconhecida dos gregos antigos é o resultado das
revoluções burguesas, mas principalmente das lutas do movimento operário e socialista nos séculos XIX e XX.

Essaterceiraigualdadenãoconfiguraumpressuposto, masumametaaseralcançada, não só por meios de leis, mas pela obrigatória e correta
implementação de políticas públicas, de programas de ação do Estado.

As três dimensões históricas dos direitos humanos – as quais se confundem de certa forma, com as etapas históricas da cidadania,
englobam e enfeixam os três ideais da Revolução Francesa: o da liberdade, o da igualdade e o da fraternidade, ou da solidariedade. Além
de naturais, universais e históricos, os direitos humanos são, também, indivisíveiseinterdependentes.
Sãoindivisíveiseinterdependentesporqueàmedidaque são acrescentados ao rol dos direitos fundamentais da pessoa humana não podem
mais ser fracionados. Numa democracia efetiva não se pode, por exemplo, separar o respeito às liberdades individuais da garantia dos
direitos sociais. Não se pode considerar natural o fato de que o povo seja livre para votar, mas continue escravo das teias da pobreza
absoluta. Por outro lado, a luta legítima pela igualdade social não pode ser justificativa para a eliminação da liberdade. E ambas – e
liberdade e igualdade – não subsistem nas sociedades contemporâneas sem a prática eficiente da solidariedade. Solidariedade no plano
pessoal e grupal, mas, essencialmente, como uma condição política para a cidadania, asolidariedade
quenaturalmentedevederivardeumnovoregimepolítico, um novo sistema econômico - bases para a criação da democracia radical, isto é,

das raízes. Esta como uma exigência contra as novas formas do capitalismo ―selvagem‖ e do novo imperialismo, neste mundo globalizado no
maisperverso neoliberalismo econômico, é o grande desafio para o século XXI.

Referências

ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1988.


BENEVIDES, Maria V. de Mesquita. A cidadania ativa. São Paulo: Ática, 1991.
. Cidadania e democracia. Lua Nova, n. 33, 1994. São Paulo: Cedec.
. Cidadania e direitos humanos. Cadernos de Pesquisa, n. 104, jul./1998. Fundação Carlos
Chagas.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 1986. CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. São Paulo:
Moderna, 1984.
COMPARATO, Fábio K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. Ed. São Paulo: Saraiva 2003.
JELIN, Elizabeth. A cidadania desde baixo. Lua Nova, n. 32, 1984. São Paulo: Cedec.

Sugestões de estratégias de trabalho


16

O trabalho com os direitos humanos deve ser um dos objetivos principais dentro do Programa Ético e
Cidadania. Para isso, levar a comunidade escolar e os estudantes, de forma específica, a conhecer a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), seus artigos e princípios, pode ser um excelente
caminho para a transformação da realidade local.

 Na reunião do Fórum:

Aleitura do texto de Maria Victória Benevides fornece aos membros do Fórum uma
boa introdução sobre o que são os direitos humanos,
Sua importância na sociedade contemporânea e por que nossa cultura almeja fundamentar seus valores
nos princípios ali elencados.

Portanto, para a reunião do Fórum Escolar de Ética e de Cidadania, deve-se providenciar, para todos os
membros, uma cópia da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se possível, a mesma pode ser
apresentada em transparências, por meio de um retroprojetor. Dessa maneira, o grupo pode ler e debater
cada um dos artigos, à luz do texto de Maria Victória Benevides.

Muitas vezes, os artigos da DUDH parecem distantes da realidade concreta das pessoas, por abordarem
temáticas de natureza distante do nosso cotidiano; mas é necessário fazer
umesforçoparatrazeradiscussãoparaasociedadebrasileira,ondevivemos. Porexemplo, o Artigo IV da
DUDH afirma que ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos
serão proibidos em todas as suas formas. Embora possa parecerestranhofalardeescravidãonoséculoXXI,
quandoas pessoaspensamnaabolição da escravatura no Brasil em 1888, é evidente que essa problemática
ainda está presente em nossas vidas, por meio da manutenção de trabalho escravo, do tráfico de mulheres,
do trabalho infantil, etc.

É sempre importante, nas discussões, procurar estabelecer relações entre os artigos e a realidade
local, como forma de contextualizar a Declaração Universal dos Direitos.
Humanos, trazendo-a para a vida cotidiana das pessoas. Tal princípio deve pautar a reunião do Fórum.

Como sugestão, ao final da reunião, o Fórum poderia estabelecer como proposta a ser levado à escola e
à comunidade o desenvolvimento no bimestre, ou no ano, de projetos tendocomoreferênciaa Declaração
Universaldos Direitos Humanoseseusartigos. Dessa maneira, garantir-se-
iaquetodaaescolaeacomunidadedoentornoteriamconhecimento desse importante documento
internacional.

 Nas salas de aula:

Definido, pelo Fórum, que a escola vai trabalhar a DUDH no bimestre, cada
professor (a) envolvido (a) no Programa Ético e.
Cidadania poderia, junto com sua turma, escolher um artigo do documento para desenvolver seus
projetos.

Paraexemplificarcomooprojetoapresentadopodeserdesenvolvido, segueumaproposta de atividade


elaborada pelas professoras Maria Celina de Lima e Silvia Maria Panattoni Martins,* visando ao
trabalho com o artigo V da DUDH:

ARTIGO V DA DUDH

―Ninguém será submetido à tortura,


nem a castigo ou tratamento cruel, desumano ou

Depois dos atentados explícitos contra a vida, as formas mais chocantes de violação dos
direitos humanos são a tortura, a crueldade e a degradação humana. Todas elas formas
injustificáveis de violência contra as pessoas.

A tortura, sua vertente mais aguda, é geralmente empregada por governos ou grupos
despóticos com o intuito de punição ou de obtenção de informações ou confissões
forçadas porpartedealguns, assim como paraaterrorizarapopulação em geral, impondo
um sentimento coletivo de intimidação.

* In: ARAÚJO, U.F. & AQUINO, J. G. Os direitos humanos na sala de aula: a ética como tema
transversal. São Paulo: Moderna, 2001.
Sempre flagrante nas guerras, muitas vezes presente nos presídios e nos exércitos, algumas vezes evidente em
nosso cotidiano (das relações de trabalho aos esportes, passando pelas ruas), a violência é algo difícil de ser
erradicado, uma vez que pode se manifestar de modo diverso de suafacemaiscorriqueira: a tortura física.
Elapodeser, também, de naturezapsicológica.

E como isso se dá? Sempre que houver alguém humilhando ou intimidando outrem, depredando sua
auto-estima, ameaçando seu bem-estar, um quadro de violência estará esboçado.

Nesse sentido, o abuso e os maus-tratos – tanto físicos quanto psíquicos − contra mulheres, homens,
crianças, adolescentes, idosos, deficientes, qualquer um, seja onde for (nas famílias, nas escolas, nos
hospitais etc.), devem ser combatidos e denunciados imediatamente.

Projeto

A atividade que propomos tem como objetivo oferecer aos alunos e alunas elementos para que possam
identificar e refletir sobre situações de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes presentes no seu dia
a dia e nas relações sociais.

A metodologia que propomos baseia-se na técnica dos Enfoques Socioafetivos que nos ensina que as
experiências e exercícios socioafetivos têm como primeiro, mas não único objetivo, o desenvolvimento
da sensibilidade para reconhecer situações moralmente relevantes e para sentir-se pessoalmente
afetados por elas. Sua pretensão, portanto, é trabalhar sobre os sentimentos e as emoções dos alunos;
entretanto, sem esquecer que o sentir-se afetado emocionalmente por algo deve ser completado com
uma cuidadosa reflexãosobre as questõesquenosfazemsentirdediversasformas e, ainda, comaadoção de
atitudes e de compromissos pessoais coincidentes com os sentimentos experimentados e as opiniões
formuladas.

Para iniciar a atividade foi escolhida a música ―Perfeição‖ (Dado Villa-Lobos, Renato RussoeMarcelo
Bonfá), dogrupomusical Legião Urbana. Aletradessamúsicaapresenta um conteúdo denso, ironizando a
situação social brasileira e emprega o verbo ―celebrar‖ para denunciar o descaso das autoridades para com
as questões sociais. Apresentada apenas como sugestão, a música pode ser substituída por outra que o
professor ou professora julgue mais adequada à idade e à realidade dos seus alunos e alunas.
Sua escolha se deu porque, em nossa experiência, os jovens muitas vezes gostam, ouvem e cantam
músicas sem, no entanto, prestarem atenção, perceberem e analisarem o sentido de suas letras. Nossa
intenção, ao propor uma letra de música tão densa para ser trabalhada na sala de aula, é claramente a
de ―incomodar‖ alunos e alunas, chamando-lhes a atenção para a realidade presente no seu dia-a-dia.
Geralmente, permanecemos indiferentes ao que acontece ao nosso redor e isso não contribui para a
construção da cidadania. Precisamos entrar em contato com a realidade para que desejemos modificá-
la.

PERFEIÇÃO

Dado Villa-Lobos, Renato Russo e Marcelo Bonfá.

Vamoscelebrar a estupidez humana / A estupidez de todas as nações O meu país e


sua corja de assassinos / Covardes, estupradores e ladrões Vamos celebrar a estupidez
do povo / Nossa polícia e televisão.

Vamos celebrar nosso governo / E nosso estado que não é nação


Celebrar a juventude sem escola / As crianças mortas / Celebrar nossa desunião Vamos celebrar
Eros e Thanatos / Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza / Vamos celebrar nossa vaidade.

Vamoscomemorarcomoidiotas/ Acadafevereiroeferiado/Todososmortosnasestradas Os
mortosporfaltadehospitais /Vamoscelebrarnossajustiça/ Aganânciaeadifamação Vamoscelebrar os
preconceitos / Ovotodosanalfabetos/ Comemoraraáguapodre

E todos os impostos / Queimadas, mentiras e seqüestros / Nosso castelo de cartas marcadas Otrabalho escravo /
Nosso pequeno universo / Todahipocrisia e toda afetação.
Todo roubo e toda indiferença / Vamos celebrar epidemias: / É a festa da torcida campeã.

Vamoscelebrarafome/ Nãoteraquemouvir/ Nãoseteraquemamar Vai alimentar


o que é maldade / Vamos machucar um coração Vamoscelebrarnossabandeira/
Nossopassadoseabsurdosgloriosos
Tudooqueégratuitoefeio/ Tudoo queé normal/ Vamoscantarjuntoso Hino Nacional (A
lágrimaéverdadeira)/Vamoscelebrarnossasaudade/ Ecomemoraranossasolidão.
Vamosfestejar a inveja / A intolerância e a incompreensão Vão festejar a
violência / E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira / E agora não tem mais direito a nada

Vamoscelebraraaberração/ De todaanossafaltade bom senso Nosso


descaso por educação / Vamos celebrar o horror
De tudo isso - comfesta velório e caixão / Está tudomortoeenterradoagora Já que também
podemos celebrar / A estupidez de quem cantou esta canção

Venha, meu coração está com pressa / Quando a esperança está dispersa Só a verdade
me liberta / Chega de maldade e ilusão.
Venha, o amor tem sempre a porta aberta / E vem chegando à primavera Nosso futuro
recomeça: / Venha, que o que vem é perfeição.

Inicialmente, o/a professor/a apresenta aos alunos e às alunas o Artigo V da DUDH para breve
reflexão e discussão das idéias ali presentes. Em seguida, coloca-se a música
―Perfeição‖ para que ouçam e acompanhem a letra.

Em seguida, divide-se a turma em sete grupos, cabendo a cada um deles a discussão e reflexão de
uma das estrofes da letra da música, solicitando que identifiquem situações que se relacionem com os
termos do artigo V da DUDH, especialmente as que se referem a tratamentos cruéis desumanos ou
degradantes. Sugerimos sete grupos com a intenção de que a oitava estrofe, que apresenta uma
mensagem de esperança, se contrapondo à crueldade dos trechos anteriores, não entre inicialmente na
discussão.

Prosseguindo a atividade, o/a professor/a propõe a cada grupo a montagem de um painel (ou cartaz)
utilizando apenas imagens que retratem o conteúdo do trecho musical em discussão.

O/a professor/a deverá levar para a classe jornais e revistas ou poderá solicitar antecipadamente aos
estudantes que tragam esse material de casa, bem como tesoura, cola, canetas hidrográficas, lápis de
cor, etc. Isso porque, na montagem dos painéis, poderão utilizar, além de fotos de jornais e revistas,
desenhos para representar o que desejam. É claro que, com criatividade, também podem ser propostas
outras formas artísticas para representar o tema da música, como teatro e até mesmo outras músicas.
Numa outra aula, os sete painéis devem ser apresentados à classe e observados por todos os estudantes
durante alguns minutos. Em seguida, o professor ou professora solicita aos estudantes que explicitem,
rapidamente, os sentimentos provocados ao observarem os painéis.

Apresenta, então, o últimotrechoda música, como resgate da esperança ecom a proposta de transformação
dessa realidade.

Nessa etapa, sugerimos a montagem de outro painel só que, agora, coletivamente. Cada aluno e aluna
seleciona uma imagem que represente o seu desejo de transformação da nossa realidade. Nesse momento,
as mesas da sala podem ser afastadas e os alunos e alunas solicitados a se colocarem em círculo (sentados
no chão), ao redor de um grande papel ou cartolina, sendo que, cada um deverá levantar-se e colocar no
cartaz a imagem que expressa o seu desejo, explicitando-o, oralmente, para a turma. O/a professor/a pode
lançar algumas questões para envolver os alunos e alunas nessa tarefa. Por exemplo:

 Que tipo de vida desejamos?


 Quais situações nós temos possibilidade de modificar?
 Qual seria nossa contribuição concreta para a transformação social?

Imaginando que projetos semelhantes a esse possam ser desenvolvidos simultaneamente em várias turmas
da escola, abrangendo um enorme leque de temáticas, estudos e ações, podemos ter um quadro de
grande visibilidade e aprendizado dos estudantes e da comunidade sobre valores de ética e de cidadania.
Ao final do bimestre ou semestre, ou do ano, dependendo do tempo que a escola definiu para duração
desses projetos, pode-se organizar, junto com outras entidades, um seminário sobre o tema dos direitos
humanos, contribuindo para a consolidação desse documento no cotidiano das pessoas.

Inclusão e exclusão social


Para trazer experiências e a possibilidade de estudos sobre os direitos humanos e outros documentosdeledecorrentes em
novaslinguagens, escolhemos apresentar a interessante experiência elaborada pelo portal Pró-menino/RISolidaria
(http://www.promenino.org.br ), de iniciativa da Fundação Telefônica.

Esse projeto busca tornar escolas e organizações, que lidem com crianças e adolescentes, aptas a atuar na garantia dos direitos do
público infanto-juvenil, e tem como missão contribuir para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes por meio da educação,
disseminando informações e apoiando organizações do governo e da comunidade que lidem com essa temática, tendo a escola como
foco prioritário deatenção.

A equipe encarregada de desenvolver o portal Pró-Menino, ao definir que um dos objetivos do projeto é promover uma maior
compreensão do Estatuto da Criança e do Adolescente, percebeu-se desafiada a encontrar uma forma inovadora, lúdica, didática e
pedagógica de esclarecer a filosofia e as políticas instituídas pela Lei.

Em conversasediscussõescomoprofessor Antonio Carlos Gomes da Costa, surgiuaidéiade fazerumarepresentaçãográficado Estatuto.


Aimagemconstruídapeloprofessorfoia de uma cidade que tinha uma praça central e quatro avenidas principais que levam a essa praça.

A partir dessa idéia básica, as equipes da Fundação Telefônica e do Centro de Empreendedorismo Social e Administração em
Terceiro Setor (CEATS) foram enriquecendo, urbanizando, construindo e habitando a Cidade dos Direitos.

A Cidade foi dividida em quatro zonas. Cada uma delas representa uma linha de ação da política de atendimento estabelecida pelo
ECA (Estatuto da Criança e o Adolescente): Políticas Sociais Básicas, Políticas de Assistência Social, Políticas de Proteção Especial e
Políticasde Garantia de Direitos. Juntas, elasproporcionamaproteçãointegral dacriança e do adolescente.

Cada avenida é cortada por ruas que representam elementos básicos daquela política de atendimento. As ruas, por sua vez,
possuem edifícios e casas que representam os.
programas e serviços oferecidos em cada um dos temas. Além disso, a população da Cidade é formada por cidadãos exemplares, os
quais guiam os internautas pela Cidade dos Direitos e seu conteúdo.

A Cidade dos Direitos foi concebida para estimular a interatividade com o (a) internauta. Por isso mesmo ela é uma metáfora lúdica
do Estatuto da Criança e do Adolescente. A simplicidade com que a lei é explicada torna mais agradável o seu entendimento.
Portanto, entre na Cidade e tenha uma boa viagem!

Endereço do site:
http://www.promenino.org.br

A primeira atividade a ser desenvolvida pelos integrantes do Fórum Escolar de Ética e de Cidadania é passear pela Cidade dos Direitos,
conhecendo a praça, todas as suas ruas, prédios e personagens. Ali se aprenderá muito sobre direitos e deveres da sociedade, responsabilidade e como
atuar para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

Na escola, o trabalho com a Cidade dos Direitos pode ocorrer de várias formas, de acordo com os interesses e particularidades de cada
instituição. Ele pode ocorrer como iniciativa isolada de alguns docentes, com suas classes específicas, ou como projeto articulado em
toda a escola a partir do Fórum Escolar de Ética e de Cidadania.

Se o projeto é para ser desenvolvido em apenas uma sala, ou por várias salas, a sugestão é que os participantes se dividam em grupos,
e que cada grupo se responsabilize por uma das ―ruas‖ da Cidade dos Direitos.

O procedimento inicial é que cada grupo caracterize os dados apresentados no portal e elabore um documento que aponte como os
direitos e deveres presentes naquela ―rua‖ estãosendotratadosnasuaescolaecomunidadelocal. Paraatingiressesobjetivos, ogrupo
podevisitareentrevistarpessoaseinstituiçõesquetêmresponsabilidadesobre as linhasde ação da política de atendimento estabelecida pelo
ECA: Políticas Sociais Básicas, Políticas de Assistência Social, Políticas de Proteção Especial e Políticas de Garantia de Direitos.

Otrabalhopoderáserconcluídocomaapresentaçãodosrelatóriosnumapróximareunião do Fórum Escolar de Ética e de Cidadania,


com a presença das entidades, instituições e pessoasquefizerampartedoestudorealizado. Dessaforma, alémdeatrairnovosparceiros da
comunidade para participar de forma mais ativa do funcionamento da escola, ter-se-á uma excelente oportunidade de construção de
valores de ética e de cidadania por parte de toda a comunidade escolar.

Se tais projetos estiverem articulados com o dia-dia das disciplinas escolares, presentes nas produçõesdetextos, conteúdosde
Matemáticaeestudosde História, Geografia,Sociologiae Filosofia, podesercriado um
movimentodetransversalidadequeenriqueceráocurrículoda escola, tornando esses projetos mais significativos para seus alunos e suas
alunas.de Observatórios de Direitos Humanos
O relato que se segue traz depoimentos sobre ações desenvolvidas no âmbito de um projeto que teve por objetivo promover o
envolvimento de jovens com temas dos direitos humanose com atividades comunitárias e, ao mesmo tempo, gerarinformações sobre sua
situação. Trata-sede umapropostadeformaçãoepesquisa, envolvendojovensmoradores como observadores da situação local no que diz
respeito aos direitos humanos.

Partindo do olhar de cada participante, as informações foram coletadas de várias maneiras: relatos de histórias de vida, entrevistas,
fotografias, filmagens, descrição dos espaços comunitários, etc.

Um ponto forte dessa experiência foi a aproximação estabelecida entre os direitos humanos e o cotidiano do (a)s jovens
participantes. Ao descreverem e compartilharem suas experiências de vida tiveram oportunidade de resgatar, concretamente, situações
nas quais seus direitos foram desrespeitados. Apesar das singularidades contidas nos relatos dos participantes, é possível identificar
paralelismos em suas trajetórias, marcadas, especialmente, pela invisibilidade ou transgressão dos direitoshumanos.

Por fim, a riqueza e os detalhes presentes no texto a seguir podem ser transformados em
elementosdeinspiraçãoparaaelaboraçãodediferentesprojetosdetrabalhonainstituição escolar.

DAHER, Marcelo. O projeto da rede de observatórios de direitos humanos. In: SCHILLING,


Flávia (Org.). Direitos Humanos e Educação: outras palavras, outras práticas. São Paulo: Cortez,
2005. pp. 209-220.

de direitos humanos*
Marcelo Daher
Observação e Narrativa

Em umdebatecomum grupodeeducadores, lançamosapergunta


aberta sobre por que achavam relevante desenvolver atividades
pedagógicas sobre os direitos humanos. A maioria dizia que nas

comunidadescomasquaistrabalhariam(bairroscomaltosíndicesdeviolênciaepobreza), a população não teria nenhum direito respeitado,


sem contar que, segundo eles, quase nenhum dos educandos conheceria os direitos humanos. Em seguida, foi perguntado como
procederiam nesse cenário. As respostas variaram mais: alguns propunham expor historicamente o processo de luta pelos direitos humanos,
outros propunham abordagens que visavam a mobilizar a turma em torno de ideais como paz, fraternidade, justiça etc. Mas, de modo geral,
o que mais chamou a nossa atenção foi que, de uma maneira ou de outra, apesar de quase todas as propostas partirem do reconhecimento
de um cotidiano de privações, havia uma tendência a evitar o trabalho direto com esse contexto e com as visões que os próprios educandos
já tinham sobre ele.

Agregando uma proposta de formação e pesquisa envolvendo jovens moradores como observadores da situação local dos direitos humanos,
o projeto da Rede de Observatórios de Direitos Humanos vem tentando trilhar um caminho totalmente oposto a esse distanciamento do
cotidiano mais imediato dos educandos em sua formação em direitos humanos. Os observatórios são formados por pequenos grupos de
jovens com cerca de cinco integrantes, que, acompanhados por monitores e coordenadores, levantam e registram informações sobre a
situação dos direitos humanos em suas próprias comunidades. Por cerca de sete meses, diversos grupos trabalharam em rede, levantando,
trocando e registrando informações sobre suas localidades e suas vidas. Todo esse material foi, depois, reunido nos Relatórios de
Cidadania e nas revistas Lupa, distribuída para outros moradores dentro e fora das áreas observadas.

Concebido e coordenado a partir da parceria entre um centro de pesquisas, organizações não-governamentais e associações comunitárias, o
projeto teve por objetivo, ao mesmo tempo, promover o envolvimento de jovens com os temas dos direitos humanos e com atividades

comunitárias e gerar informações diferenciadas sobre a situação dessas áreas, trazendo o jovem como sujeito desse processo. Apesar da
proximidade entre os grupos envolvidos e dos temas em questão, o encaminhamento da proposta não ocorreu de maneira linear e direta.
Desde o princípio dos trabalhos, vivenciamos desafios tanto no aprimoramento do processo de observação e pesquisa quanto na melhoria do
processo de formação e fortalecimento doengajamentodos gruposdejovens. Algumasdasprincipaisdificuldadesvividas nesse início
parecem ter sido conseqüências diretas da cisão inicialmente feita, que separou as atividades voltadas à formação em direitos humanos, por
um lado, e aquelas destinadas ao desenvolvimento de técnicas de pesquisa das atividades de observação propriamente dita, poroutro.
Aligaçãoentreosdoisprocessos residirianofatode aformação funcionar como uma preparação para a pesquisa.

De acordo com esse ponto de vista, por serem ainda inexperientes no tema, os jovens
deveriamconhecerosinstrumentosbásicosparaotrabalhodeobservaçãoesefamiliarizar com as discussões dos direitos humanos para que, na
seqüência, munidos com novas informações, estivessemaptosparasairacampoerelatarsuasobservações. Foramentão. propostas algumas
séries de debates em grupo com a participação de especialistas e ativistas, explorando a história dos direitos humanos, suas conexões
com movimentos sociais, com a academia e até com o cenário internacional.

De certa forma, um pouco à maneira dos educadores citados no exemplo do primeiro parágrafo, iniciamos o processo a partir de uma
abordagem rica em exemplos, mas.

distanciada das percepções mais imediatas dos jovens. Contudo, infelizmente, os resultados dessa abordagem não foram muito positivos: a
separação fez com que, apesar dosesforçosem fazerdasdiscussõesumdebate,oconteúdoficasserelativamenteabstrato e, por isso, nelas
predominaram os ditos ―especialistas‖, e, quando saíamos a campo, os jovens estabeleciam poucas e muito esquemáticas relações com os
temas debatidos. Os diversos envolvidos no projeto (pesquisadores, jovens moradores e ativistas) sentiam, assim, os objetivos
negligenciados por diferentes motivos.

Tanto as atividades de pesquisa como as pedagógicas se desdobraram com muita dificuldade.


Atensãochegouaopontodesediscutirqualseriaoobjetivomaisimportante do projeto: formar e mobilizar os grupos de jovens ou pesquisar e
divulgar informações? Aos poucos, entre idas e vindas, o próprio processo de trabalho foi se consolidando exatamente a partir da fusão
de ambos os objetivos, de forma que, em cada atividade, a formação se desdobrasse a partir da atividade de observação e vice-versa.

Nosso ponto de partida

Depois de quase dois anos trabalhando com quatro comunidades em São Paulo, foi possível consolidarumroteirodeatividadesmaisbem-
sucedidasnoestabelecimento dos observatórios. Nessaabordagemmetodológica, avivênciadoseducandose as noçõesque eles já
carregavam tornaram-se os pontos de partida determinantes para as atividades pedagógicas sobredireitoshumanos. Em
vezdeiniciarmoscomaexposiçãodeconceitos e princípios, a base para o processo de trabalho passou a ser a discussão e a descrição das
experiências vividas ou conhecidas pelos próprios jovens no seu cotidiano, aprimorando os conhecimentos do grupo sobre os temas
relacionados aos direitos humanosa partir das situaçõespresentesnessasdescrições, e, pormeiodasuatranscrição em registrosescritos,
desenvolver também suas capacidades de registrar e compartilhar informações que seriam relevantes para a elaboração do Relatório de
Cidadania.

Isto não quer dizer que eliminamos discussões que saiam da órbita desse cotidiano específico, descartando contextualizações históricas
ou discussões mais teóricas, por exemplo. Mas significa que procuramos atingi-las a partir da detalhada reconstrução das
experiênciascotidianasedesuadiscussão em grupo. De fato, ao longodetodooprocesso, destacamos a importância do exercício da descrição
detalhada das situações específicas observadas na comunidade, evitando análises ou debates que fugissem muito desse espaço escolhido.
Essarestrição eraestratégica, poisvisava, em primeirolugar, aqueospróprios jovens explorassem mais suas próprias capacidades narrativas e
descritivas (algo bastante limitado nas várias formas de comunicação a que somos expostos e incalculavelmente prejudicado pela total
falta de familiaridade dos jovens com a escrita) e, em segundo lugar, uma apropriação mais concreta dos temas dos direitos humanos, na
medida em que se aproximavam diretamente da vivência de cada um. Nesse percurso, trabalhamos com a redação de depoimentos
pessoais, mas também com entrevistas abertas, semi- abertas, descrição de espaços comunitários e instituições, fotografias, filmagens,
entre outras formas de registro. Gradativamente, os próprios jovens foram tramando as teias de relações entre os temas dos direitos e a
vivência que descrevem a partir de diálogos em grupo, nos quais compartilhavam essas experiências por escrito e oralmente.

Vale destacar que a observação partia das próprias experiências e dos olhares de cada um, mas não se desdobrava de maneira totalmente
aberta ou espontânea — atividades e encaminhamentos foram propostos pelos monitores visando a trazer mais conteúdos.

para a discussão e buscando ampliar as capacidades de expressão e escrita. Limitações de tempo, de risco (principalmente quando o tema é
violência), de maturidade, entre outros fatores, também exigiram do educador flexibilidade nessa atuação, alternando momentos de grande
abertura com outros de restrição em enfoques mais específicos. Se por um lado não estávamos apenas transferindo um conhecimento sobre os

direitos, mas sim buscando a noção que já existia entre os jovens, por outro não estávamos também meramente registrando sua vivência e
seu olhar tal como ele sempre se apresentava. A equipe de monitores e coordenadores era responsável pela orientação do grupo de
observadores para que, juntos, construíssemos um relatório que seguisse alguns padrões predefinidos.

Nessa proposta de pesquisa-formação, começávamos ampliar a visão dos educandos- observadores sobre os acontecimentos descritos,
desnaturalizar situações banalizadas e, principalmente, aprimorar sua capacidade em descrever esses momentos, reconhecendo os diferentes
pontos de vista existentes sobre ele. A aposta fundamental era a de que a curiosidade investigativa e a experiência da pesquisa são

instrumentos fundamentais no processo de formação individual e de grupos.


Em outro contexto, no início da década de 1970, as chamadas experiências de ―pesquisa participante‖ propiciaram abordagens semelhantes
sobre o processo de formação e pesquisa. Em palestra a um grupo de educadores populares na Tanzânia, Paulo Freire aponta o papel
fundamentalmente pedagógico da atividade de descrição do cotidiano, assim como o caráter investigativo da pedagogia. Para ele,
―quanto mais, em uma forma de conceber e praticar a pesquisa, os grupos populares vão aprofundando, como sujeitos, o ato de
conhecimento de si em suas relações com a sua realidade, tanto mais vão podendo superar ou vão superando o conhecimento anterior em
seus aspectos mais ingênuos. Desse modo, fazendo pesquisa, educo e estou me educando‖.

Certamente, esse caminho não é linear. Descrever e pesquisar sua própria realidade
— geralmente um cotidiano atravessado por uma sobreposição de graves violações —, detalhar as experiências de desrespeito à dignidade
no contexto que nos cerca, por mais fortalecedor que seja do ponto de vista do interesse coletivo, está longe de ser um trabalho
confortável no plano individual. Muito pelo contrário, o redimensionamento do olhar que foi proposto implicava construir o
enfrentamento de situações penosas e conflitantes, passando pré-questionamento de valores, pelo reconhecimento de sofrimentos
silenciados, de ambigüidades, de antagonismos no grupo, entre outros difíceis movimentos. Assim, o processo de pesquisa-formação
não é direto ou unilateral, mas depende fundamentalmente da conformação de um espaço de diálogo e respeito no grupo para florescer
com mais vigor. Nesse sentido, a metodologia que procuramos desenvolver no projeto, além de se desdobrar a partir da idéia de que a
vivência de cada um é a base para se conhecer os direitos humanos, reconhece também que para que a exploração do tema ocorra de modo
mais efetivo, é fundamental que seja estabelecido um espaço amplo e permanente de diálogo, onde cada um se sinta confortável e
respeitado para expor suas experiências; e seu ponto de vista. Daí também a importância do trabalho em rede, que permite o contato e a
troca de experiências e de pontos de vista entre todos os integrantes do trabalho.

Trocando histórias, tecendo a rede.

Essa postura metodológica tornou-se mais clara a partir da experiência desafiadora que tivemos com a expansão dos observatórios pelo
país. No ano de 2002, a Rede de.

Observatórios foi implementada simultaneamente em sete localidades diferentes do


Brasil:Belém,Recife,RiodeJaneiro,Salvador,SãoPaulo,Vitória,alémdetrêscidadesno interior de Pernambuco. Com exceção do Rio de
Janeiro e de São Paulo, que formaram grupos de observadores em seis comunidades, os outros cinco locais trabalharam com grupos em
três comunidades cada. Dessa maneira, tínhamos sete coordenações locais, trabalhando com 27 grupos de observadores, cada um deles
com cinco jovens e um monitor. Divididos por longas distâncias e sem terem se conhecido, quase 180 pessoas se defrontaram pela
primeira vez com a proposta de observar e descrever a situação dos direitos humanos em suas comunidades.

Para nós, na coordenação do conjunto da rede de grupos, o desafio seria sistematizar um roteiro mínimo para que cada grupo constituísse
independentemente seus núcleos de observadores e encaminhasse suas atividades semperder de vista todosos outros grupos. Assim,
ametodologiafoi organizadademodoapermitirquecadalocalpudesseconstruir seu processo de trabalho a partir de suas especificidades, mas
sem perder de vista o fato de que todos integravam urna rede maior, que tinha limites de tempo definidos e que resultaria em um mesmo
Relatório de Cidadania.

Uma das primeiras etapas de atividades que incluímos nesse roteiro é bastante emblemática para que se compreenda concretamente
como se desdobrou o trabalho conjugado de pesquisa e de formação em rede. Trata-se da redação da história de vida de cada observador.
Essa etapa, a primeira após o processo de consolidação dos grupos deobservadoresedadiscussãocoletivasobreosobjetivos, as estratégiase
as diretrizesdo trabalho, foi fundamental para tomar a proposta do observatório mais clara e instigante.
Emlinhasgerais,aatividadeconsistianaredaçãodeumacartaporcadajovemobservador, na qual ele se apresentasse para outro leitor
anônimo.

Aproveitando o fato de estarmos trabalhando em rede e com pessoas que não se conheciam, essas cartas eram digitadas e trocadas entre os
jovens das diferentes cidades envolvidas. Assim, cada um, após escrever sua carta, recebia outra, de um morador de outra cidade. A carta
recebida era lida e comentada pelo observador, que apontava aquilo quemaislhechamavaaatenção,
levantavadúvidaseindicavasemelhançasoudiferenças comsuaprópriahistória. Essescomentários eramentãoenviados aosautores,
queporsua vezpodiamtransformar, ounão, suascartasoriginais, alémderesponderaoscomentários com mais uma mensagem.

Dessa forma, todos comentaram histórias alheias e também tiveram suas próprias cartas analisadas por outra pessoa distante de si. Além
disso, alguns observadores chegaram a expor internamente histórias por meio de imagens, dramatizações e músicas apresentadas nos
encontros que reuniam grupos de uma mesma cidade.

Essa série de atividades, apesar de aparentemente simples, abriu inúmeros pontos que foram fundamentais no desenvolvimento de todo o
trabalho. As histórias de vida já compunham uma primeira parte do relatório que se escrevia.

Afinal, as informações apresentadas por cada um já ofereciam um quadro muito rico sobre a situaçãovivida em cada local. Assim comoo processo de
elaboração e de trocadascartas foi também a base para a formação nos direitos humanos e nas técnicas de redação e pesquisa.

Os registros da história pessoal, potencialmente, traziam incontáveis conteúdos para serem trabalhados, e essa diversidade era
explorada, mas sempre se reconhecendo que.

desde o momento que sugerimos o relato em formato da carta, já se estava interferindo naquilo que cada um descreveria. Cada observador
preparava seu texto sabendo que alguém que não o conhecia iria lê-lo e discuti-lo. E todos sabiam também que, com a carta, estariam
começando a descrever a situação de suas comunidades e que isso seria parte de um relatório. Portanto, sugerimos que os conteúdos que
estariam presentes na carta fossem antes debatidos em grupo, para que todos discutissem o que seria ounão interessante descrever no
texto, elaborando um roteiro mínimo de pontos que poderiam serexplorados. Comisso, aos poucos, umtema comoa históriapessoal, queé
claramente individual, subjetivo, começa a ser explorado coletivamente e de maneira mais objetiva. Evidentemente, as interpretações e a
disponibilidade para escrever variavam muito: alguns jovens achavam que bastavam informações gerais, como onde estudou com quem vivia,
quantos irmãos tinha; outros achavam necessário pontuar características físicas, como altura, cor de cabelos; outros propunham ainda
expormais detalhes sobre as dificuldades vividas na família etc. Mesmo com a definição das pautas mínimas (em geral bastante amplas),
naturalmente divergências permaneceram e foram respeitadas pelos grupos. Essa explícita tensão entre a subjetividade e a objetividade, entre
aquilo que o jovem achava necessário expor e aquilo sobre o qual estava disposto a falar, entre o que queria ou não dizer, exigiu uma
abordagem cuidadosa e delicada por parte de toda a equipe, pois representava a referência mais importante, propiciada pela atividade, para
a apreensão dos dilemas metodológicos do trabalho no observatório. Ao se ter como personagem da própria descrição e trocar sua
história com outras pessoas, cada jovem vivenciava concretamente a função delicada e ambígua de ser o ―observador‖ e, ao mesmo tempo, o
―observado‖. Algo que foi fundamental para o restante do projeto, pois em níveis diferentes, em todas as outras etapas, o foco da
observação foi sempre a realidade na qual todos estavam inseridos. Nesse sentido ainda, a preparação da história de vida significou também
uma fonte de referência para as futuras elaborações e execuções de entrevistas. Primeiro porque trabalhamos com a dificuldade que temos
para organizar os muitos conteúdos que surgem quando vamos abordar a experiência de vida de uma pessoa, tornando mais clara a
necessidade da definição de objetivos, roteiros e estratégias para cada entrevista, por exemplo. Depois, porque o observador pode perceber
os limites que. cadaum temparafalarsobresuas vivências, principalmentequando estamostocandoem temas pessoais ou que envolvem o
sofrimento e o desrespeito à dignidade de cada um.

Aofomentarmosas trocasdecartasentreosjovens,buscávamos, apartirdosseuspróprios comentários, motivá-los a que aprofundassem tanto


as noções sobre o que relatar (e futuramenteobservar),comosobrecomorelatar,aprimorandoaescrita.Atrocaestimulou
asuperaçãodediversasdificuldadeseinibiçõessempremuitopresentesentreosjovensde todopaís. Comaintensificação da relaçãoentreos
grupos, evitava-seofortalecimento da idéia de que a redação da história era uma ―tarefa‖ que deveriam ―acertar‖ para agradar ao monitor. Não que
essa relação não existisse. É natural que o jovem buscasse a aprovação do monitor também, mas com o fortalecimento de um debate mais
amplo, o monitor não seria o único interlocutor relevante para quem se escreve.

A partir daí, a curiosidade pelo trabalho, aumentou muito. Em todos os grupos, antes de escrever seus comentários, os jovens partilhavam
entre si as cartas que tinham recebido das outras cidades. Ficava notório para todos que, mesmo dentro dos padrões definidos, existia uma
diversidade de estilos, conteúdos e enfoques. Da mesma forma, reagia-se de diferentes formas às cartas alheias: alguns se encantavam
com os detalhes que eram descritos, outros reclamavam dizendo que a carta era muito extensa. Nas suas primeiras reações, alguns grupos
chegaram a reprovar bastante o trabalho de outros e faziam duras.

críticas à redação ou aos enfoques apresentados. Geralmente, a referência dessa crítica era o modelo de carta que tinha sido usado pelo
próprio grupo na feitura de suas cartas. As equipesque acompanhavamostrabalhos em cadaumadas cidades ea coordenaçãoda rede
buscavam, então, discutir e relativizar as razões desses estranhamentos.

Essadiversidadedereaçõeseinteressesfoiimportanteparaquefossemodificadaanoção de que existia um modelo correto e outro errado de


redação, e, ao mesmo tempo, serviu para apontar lacunas e dificuldades de expressão que confundiam os leitores. A partir da
percepçãodesemelhançasediferençasnascartas, osobservadorespercebiamcomofatos que antes lhes pareciam muito banais, que
dispensavam explicação, para outros leitores eram pouco compreensíveis ou até inusitados. Essas questões eram significativas tanto para o
aprimoramento da carta que era questionada como para que os próprios autores das perguntas repensassem seus trabalhos.

Um grupo em Recife, por exemplo, dizia que não compreendia a carta de um carioca que afirmava morar na metade do ―morrão‖ ao
lado do Engenho da Rainha. Mas, ao mesmo tempo, na discussão interna, percebia-se que também não havia sido detalhada claramente
como era a divisão do espaço na sua própria comunidade. Como estávamos trabalhando em cidades e regiões distintas, as expressões
idiomáticas e as atividades culturais variavam bastante também. Nomes de brincadeiras, jogos, festas, manifestações religiosas ou até de
alimentos eram motivo de discussão entre muitos grupos: em Belém, por exemplo, o ―brega‖ é um tipo de música muito popular e de surgimento
mais recente, estilo que nada tem a ver com a noção de ―brega‖ presente no Sudeste; brincadeiras de infância têm nomes diferentes, apesar de
serem, por vezes, idênticas. Todos esses ―mal- entendidos‖contribuírammuitoparaqueariquezadadiversidadeculturalfossepercebida e que,
portanto, era preciso muito detalhe na descrição para o preparo de relatos mais interessantes e acessíveis ao leitor. Percepção que seria
inatingível apenas com a leitura e os comentários isolados do educador ou de um especialista.

Logicamente, não foram todas as trocas que resultaram em experiências positivas. Foi preciso cuidado entre as equipes para que o
processo não se tornasse competitivo ou para que críticas mais agressivas não interferissem negativamente na comunicação. Como
dissemos a opção de trabalhar com um conteúdo íntimo podia ser dolorosa para alguns e até arriscada se não se mantivesse um bom clima
no diálogo tanto interno, nas cidades, corno nas correspondências entre locais diferentes. A postura do monitor e do
coordenadorerafundamental nesse aspecto: eram eles que melhor poderiam avaliar se os comentários estavam sendo desrespeitosos, quais as
lacunas e dificuldades poderiam ser maisexploradaseatéquepontoumadivergênciapoderiaserdiscutidaparacontribuircom o crescimento do
grupo. Em alguns casos a identificação excessiva entre o monitor e seu grupo atrapalhava muito o trabalho, pois ele acabava assumindo
freqüentemente a ―defesa‖ dos ―seus‖ educandos em relação às críticas e aos comentários vindos de fora, corroborando a sensação de rivalidade e
limitando uma maior autocrítica do próprio grupo.

Direitos humanos no cotidiano


A visualização mais concreta dos temas pertinentes aos direitos humanos foi também outro resultado muito rico de todo esse
processo. Ao descrever e compartilhar as experiências que consideravam relevantes em suas trajetórias de vida, os jovens,
espontaneamente delinearam qual tipo de educação lhes foi oferecida, recordaram-se de episódios relevantes de insegurança ou
de discriminação, descreveram as condições.

de renda e trabalho vividas pela família ao longo do tempo, entre outros assuntos. Isso tudo, sem termos que apontar previamente quais
direitos específicos iríamos observar, ou que conceitos queríamos explorar. Afinal, a própria trajetória de cada um, de certa forma, já
era uma trajetória de busca e resgate de condições dignas de vida, de felicidade e de integração social. Nesse aspecto, o passo
fundamental que o diálogo da troca de cartas propiciou de forma muito concreta (e que, na nossa perspectiva, representa, talvez, um dos
elementos mais relevantes a serem visados em uma formação em direitos humanos) é perceber que essa trajetória de busca pelo
exercício da dignidade, apesar de ter seus inúmeros caminhos individuais, pode e deve ser entendida como uma questão coletiva e
compartilhada. Aos poucos, com os diálogos nos grupos e entre as cidades, foi sendo percebido um contexto comum permeado por
situações difíceis, reivindicações, desejos e realizações. Fatos que aparentemente poderiam ter uma conotação exclusivamente pessoal
ou isolada apareceram, dessa forma, mais articulados com o contexto geral.

Umasituaçãovivida em umadasdiscussõescomumgrupodeobservadoresdointeriorde Pernambucoébastanteilustrativaaesserespeito: ao


apresentaremsuashistórias, algumas meninas comentavam um pouco envergonhadas, o fato de seu pai ter desenvolvido o alcoolismo
(algo que marcava a trajetória de toda a vida familiar). No início, poucas se manifestaram e, em certo sentido, ligavam o alcoolismo a um
traço negativo do caráter do pai. Aos poucos, cada vez mais jovens se sentiram seguras para relatar que tinham vivido O mesmo
problema em suas casas, chegando a ponto de, dentro da própria discussão, uma observadorainterromper o debatedizendo que discordava
da idéiade que o alcoolismo seria um problema específico, ou ligado ao caráter do pai, mas sim que seria um problema, em certa medida,
coletivo — afinal, em quase todas as famílias havia situações semelhantes (mais tarde isso ainda seria reforçado pela leitura de cartas de
outros estados). Esse movimento foi bastante fortalecedor e retirou o peso da vergonha que turvava o debate e afligia alguns dos jovens,
alterando também as expectativas de resolução do problema que, sendo coletivo, exigia também medidas pensadas para a coletividade.
Em todo o trabalho, nossa expectativa era a de que essa
―coletivização‖ atravessasse a reflexão sobre diferentes assuntos.

Dessa forma, temas muito presentes nas histórias pessoais, como a total falta de expectativas de se obter um primeiro emprego gratificante, o
desejo frustrado de ingressar no curso superior, a discriminação devido à condição social ou as atividades de lazer prediletas ganhavam
novas dimensões com a troca de informações. Eram motivos de polêmicas e abriam espaço para uma observação mais detalhada e
aprofundada. Ao mesmo tempo, se por um lado, alguns sofrimentos silenciados e tratados como distinções individuais passavam a ser
notados como mais comuns e, portanto, perdia-se um pouco do medo ou do preconceito em comentá-los, por outro lado, muitas coisas que
antes pareciam banais para alguns, podiam ser vistas, agora, corno bons exemplos de conquistas de direitos para outros. A escola
construída em mutirão, uma creche comunitária ou um serviço especial de atendimento para adolescentes gestantes que, para alguns
jovens, já era algo dado como natural no contexto vivido, para outras comunidades eram grandes exemplos de iniciativas a serem seguidas.
Com todo esse processo, a maioria das histórias de vida acabou aumentando muito de tamanho.

Quanto mais amplo o diálogo interno no grupo, maiorera também a abertura e a propensão dosjovensparaaprofundarseuprocessodeobservação.
Etalcomoocorreunoqueserefere ao incremento da qualidade da escrita, nesse processo se relativizavam valores e atitudes.

que, no início, apareciam de forma muito absoluta nos textos, sem que, para tanto, fosse imprescindível que um olhar ―especializado‖, do
monitor ou do coordenador, apresentasse sua análise ou uma versão mais ―aprofundada‖ ou mais ―crítica‖ dos fatos descritos.
Nas etapas voltadas para a leitura da Declaração dos Direitos Humanos e para uma discussão mais conceitual, as cartas forneciam
também elementos concretos para o debate. A indivisibilidade dos direitos, por exemplo, já aparecia de forma inescapável na história de
cada um, os (des) respeitos aos direitos surgiam articulados ao cotidiano, como no caso da percepção da insegurança que limita o uso de
parques, diminuindo a circulação de pessoas e afetando os estabelecimentos comerciais no lugar. Outro aspecto muito trabalhado a partir do
diálogo realizado através da rede foi também a compreensão da universalidade dos direitos em consonância com o respeito à diversidade:
jovens com formações religiosas muito distintas percebiam paralelismos nas suas trajetórias, apesar da absoluta diferenciação de crenças,
por exemplo.

Aatividadederedaçãoetrocadecartasrelatandoexperiênciasesituaçõeslocaisaindafoi retomada em duasoutrasetapasdotrabalho. Após,


descreverem as históriasdesuasvidas, os grupos prepararam cartas coletivas com a história e a descrição de suas comunidades (baseados na
sua visão e em mais cinco relatos com moradores de faixas etárias diferentes). E, finalmente, depois da discussão mais aprofundada sobre a
Declaração dos Direitos Humanos, cada grupo seria ainda estimulado a registrar pelo menos uma situação que considerasse relevante
para a compreensão dos seis eixos de direitos que propúnhamos observar: saúde; trabalho e renda; segurança; cultura e lazer; igualdade; e
educação.[...]

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