A Tradicao e A Traicao A Alma Imoral Sob Um Olhar

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UNIVERSIDADE SANTO AMARO

CURSO DE PSICOLOGIA

Yndianara Souza Soares


Hernani Kaiser Alves
Sueli Florentina Alves

A TRADIÇÃO E A TRAIÇÃO: A “ALMA IMORAL” SOB UM OLHAR PSICANALÍTICO

TRADITION AND BETRAYAL: THE "IMMORAL SOUL" FROM A PSYCHOANALYTIC POINT OF


VIEW

TRADICIÓN Y TRAICIÓN: EL "ALMA INMORAL" DESDE UN PUNTO DE VISTA


PSICOANALÍTICO

https://doi.org/10.47820/recima21.v4i1.4301
PUBLICADO: 10/2023

SÃO PAULO
2023
Yndianara Souza Soares
Hernani Kaiser Alves
Sueli Florentina Alves

A TRADIÇÃO E A TRAIÇÃO: A “ALMA IMORAL” SOB UM OLHAR PSICANALÍTICO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Psicologia da Universidade Santo
Amaro – UNISA, como requisito parcial para a
obtenção do título de Bacharel em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Gerson Heidrich da Silva

SÃO PAULO
2023
AGRADECIMENTOS

Agradecemos a Deus, aos nossos familiares e amigos, por todo o incentivo, dedicação e otimismo ao
longo da jornada acadêmica. Agradecemos ao Professor Dr. Gerson Heidrich da Silva, por ter
aceitado nos acompanhar neste projeto, o seu apoio e incentivo foi essencial para nossa motivação.
EPÍGRAFE

“Não haverá tradição sem traição, nem traição sem tradição.” (A Alma Imoral)
RESUMO
Nilton Bonder publicou em 1998 sua obra intitulada "A Alma Imoral", que também deu origem à peça
homônima apresentada pela atriz e dramaturga Clarice Niskier, além do documentário disponível no
canal do Youtube. Essa obra baseia-se naquilo que o autor chamou de "psicologia evolucionista", a
qual aponta o corpo como algo moral, que tem por objetivo preservar a vida e a alma como imoral, pois
seu desejo é romper com as tradições e transcender. O foco central aqui é o desejo e a maneira como
o ser humano irá se comportar diante dele. Nem sempre o desejo está de acordo com os dogmas
impostos pela tradição e surge aí um dilema: realizar o desejo e trair os acordos contrários a ele ou ser
fiel aos acordos firmados e trair o próprio desejo? Escolher não trair é optar pela fidelidade e tentar
ignorar outros supostos objetos de desejo, como nos foi possível reconhecer neste estudo, pois os
desejos são incontroláveis no sentir, mas no fazer não. Tendo como base a obra de Bonder e ancorado
em obras clássicas da psicanálise, esse trabalho objetivou o desnudar do sujeito e da sua alma (i)moral,
revelando e expondo aquilo que a psicanálise chama de desejo. Concluímos que o desejo se encontra
nas bases da traição e da tradição e é o olhar que difere o moral do imoral e, no fim, percebemos que
“a traição é inevitável".

PALAVRAS-CHAVE: Desejo. Psicanálise. Traição. Tradição. Alma Imoral.

ABSTRACT
Nilton Bonder published in 1998 his work entitled "A Alma Imoral", which also gave rise to the
homonymous play presented by actress and playwright Clarice Niskier, in addition to the documentary
available on the Youtube channel. This work is based on what the author called "evolutionary
psychology", which points to the body as something moral, which aims to preserve life and the soul as
immoral, since its desire is to break with traditions and transcend. The central focus here is desire and
the way human beings will behave in the face of it. Desire is not always in accordance with the dogmas
imposed by tradition and a dilemma arises: Fulfill the desire and betray the agreements contrary to it, or
be faithful to the signed agreements and betray the desire itself? Choosing not to cheat is to choose
fidelity and try to ignore other supposed objects of desire, desires are uncontrollable in feeling, but not
in doing. Based on Bonder's work and anchored in classic works of psychoanalysis, this work aims to
strip the subject and his (im)moral soul, revealing and exposing what psychoanalysis calls desire. We
conclude that desire is at the base of betrayal and tradition, and it is the gaze that differentiates the
moral from the immoral and, in the end, we realize that "betrayal is inevitable".

KEYWORDS: Desire. Psychoanalysis. Betrayal. Tradition. Immoral Soul.

RESUMEN
Nilton Bonder publicó su obra titulada "El alma inmoral" en 1998, que también dio origen a la obra del
mismo nombre presentada por la actriz y dramaturga Clarice Niskier, además del documental disponible
en el canal de YouTube. Este trabajo se basa en lo que el autor llamó “psicología evolutiva”, que señala
al cuerpo como algo moral, que pretende preservar la vida y al alma como inmoral, pues su afán es
romper con las tradiciones y trascender. El foco central aquí es el deseo y la forma en que los seres
humanos se comportarán ante él. El deseo no siempre está de acuerdo con los dogmas impuestos por
la tradición y surge un dilema: ¿cumplir el deseo y traicionar los acuerdos contrarios a él o ser fiel a los
acuerdos firmados y traicionar el deseo mismo? Elegir no hacer trampa es optar por la fidelidad y tratar
de ignorar otros supuestos objetos de deseo, como pudimos reconocer en este estudio, ya que los
deseos son incontrolables en el sentimiento, pero no en el hacer. Basado en la obra de Bonder y
anclado en obras clásicas del psicoanálisis, este trabajo tuvo como objetivo develar al sujeto y su alma
(in)moral, revelando y exponiendo lo que el psicoanálisis llama deseo. Concluimos que el deseo está
en la base de la traición y la tradición y es la mirada la que diferencia lo moral de lo inmoral y, al final,
nos damos cuenta de que “la traición es inevitable”.

PALABRAS CLAVE: Deseo. Psicoanálisis. Traición. Tradición. Alma inmoral.


SUMÁRIO

1 Introdução 8
2.Objetivo Geral 9
3 Contextualização Teórica 10
3.1 A Representação do Corpo e da Alma 10
3.2 O Desejo 12
3.3 Tradição Versus Traição 14
4 Metodologia 16
5 Discussão 17
5.1 Alguns Comentários e Possíveis Olhares 17
5.2 O Olhar da Psicanálise 18
6 Conclusão 22
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1 INTRODUÇÃO

Nilton Bonder, rabino e escritor, publicou em 1998 sua obra intitulada “A Alma Imoral: Traição
e Tradição Através dos Tempos''. Trabalho esse que deu origem à peça homônima, apresentada e
adaptada pela atriz e dramaturga Clarice Niskier, em exibição há quinze anos, sempre com “casa
cheia”, e ao documentário produzido por Silvio Tendler, disponível gratuitamente na plataforma Youtube
há dois anos, com mais de 84 mil visualizações.
Discutida por filósofos, psicólogos e outros pensadores contemporâneos, já foi tema de
dissertação em universidades e matéria para diversos meios de comunicação, causando muita reflexão
e algumas discordâncias, a obra em referência tem por objetivo desnudar a alma humana, revelar que
a tradição pode até nos manter organizados como sociedade e ditar alguns de nossos comportamentos,
mas o desejo primordial sempre estará presente em nossa alma. De uma maneira ou de outra, a traição
é inevitável, como encontrado em Silva e Soares (2017).
O monólogo “A Alma Imoral”, baseado no livro de Bonder, apresentado por Clarice Niskier,
desperta polêmicas contradições à tradição e relações do homem inserido em uma sociedade na qual
o corpo é julgado como responsável pelos hábitos, pelo certo e errado, pela honestidade e
desonestidade, desobediência e obediência. Propõe uma reflexão sobre viver na condição de humano,
na qual a tradição judaica ensina que a verdadeira alma é transgressora, e suas condutas e
pensamentos rompem com a moral estabelecida, e a desobediência à tradição impõe ao indivíduo o
sentimento de culpa pela realização de um desejo.
Este estudo traz como proposta apresentar uma leitura psicanalítica do livro e do documentário
“A Alma Imoral: Traição e Tradição Através dos Tempos”, de Nilton Bonder, olhando também para o
monólogo de Clarice Niskier. O fio condutor será o desejo da psicanálise e suas manifestações em
busca da satisfação diante da (i) moralidade.
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2 OBJETIVO GERAL

Esse estudo teve por objetivo oferecer um olhar psicanalítico à uma obra densa e reveladora
em seu conteúdo, A Alma Imoral, de Nilton Bonder, mostrando o incômodo quando nossos desejos
mais profundos são expostos e nos desnudam da moralidade colada às leis da sociedade, sobretudo
no que se refere ao desejo diante da tradição e da traição. A tradição necessita da traição, assim como
a traição necessita da tradição para que a sociedade evolua, embora essa “simbiose” gere conflito na
psique humana.
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3 CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA
3.1 A Representação do Corpo e da Alma

Dentro da obra de Nilton Bonder, temos a compreensão de que o corpo, além de ser a matéria
física que constitui o ser humano, representa também seus instintos mais primordiais. Cabe ao ser
humano cumprir a ordem dada por Deus: “Crescei e multiplicai”. O homem sabe que o único jeito de se
tornar imortal é partilhar de si para as gerações vindouras, e, por isso, quanto mais ele puder partilhar
do seu sêmen entre as mulheres, maior chance de sucesso ele terá em seu propósito. Já a mulher
sabe que, para a perpetuação da sua espécie, é importante que sua prole seja forte e saudável e por
isso escolhe entre os homens aqueles que são mais fortes, inteligentes, que proporcionem melhores
condições de vida para que ela se faça o receptáculo do sêmen desses afortunados selecionados.
Segundo o autor, essa mecânica é conhecida como "psicologia evolucionista”.
Com o tempo, percebeu-se que haveria um gasto muito menor de energia, além de menores
chances de morrer numa luta por conquista de território, se o homem tivesse apenas uma única mulher
para ser a responsável pelo desenvolvimento de sua prole e, por sua vez, a mulher selecionasse
apenas um homem, aquele melhor disponível para ser o seu parceiro, o que deu origem à monogamia.
Porém, segundo Bonder, o desejo de cumprir a ordem dada por Deus e buscar maior variedade de
parceiros dentre aqueles que darão melhores condições para “crescer e multiplicar”, permanece dentro
de nós.
Assim concluímos que o corpo tem a função de preservar a espécie e com esse intuito tende
a criar leis que facilitem essa preservação com o menor gasto de energia.

O corpo é o responsável por uma intrincada Rede de negociações psíquicas para que
possamos nos preservar tal como somos. No entanto, fizeram com que
acreditássemos que ele nos tenta constantemente com seus desejos. É a alma que
fica inconformada com os sacrifícios vazios do corpo, ela é a responsável pelos
atrevimentos, ousadias, riscos e transgressões (Bonder, 1998, p. 67).

O maior interesse do corpo é sempre o da preservação. O corpo quer manter as coisas como
são, nossa sociedade escraviza o corpo, esconde-o, moraliza o corpo, e quando nascemos, nasce
também um corpo vulnerável ao meio e já é mortal ao nascer. O corpo é moral, pois já se sabe nu
inserido em uma cultura, se reconhece nu e passa assim a procurar de forma consciente a preservação.
Para Bonder (1998, p. 24), “a psicologia evolucionista aponta o corpo como gerador da
moralidade. É justamente para dar conta de seus interesses de preservação que a moralidade é
engendrada”. Ainda, "Está moralidade posta as forças transgressoras da alma.” O enfrentamento
desse corpo gerador da moralidade é o olhar e o entendimento que somos todos mortais e esse corpo
é mortal e assim se faz a nudez da alma e não somente do corpo.

Para a psicologia evolucionista, o corpo é o motivo fundamental de nossas ações e


de nosso comportamento, que ocultamos nas vestimentas de nossos símbolos e
cultura. Um corpo com moral cria um mundo de roupas que veste o nu (Bonder, 1998,
p. 12)

Por obediência a tradição, por preservação, quantas oportunidades o corpo moral perdeu de
se expressar?
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Conforme nos é apresentado na obra, a alma é imoral. Imoral porque é ela quem dita o que é
certo ou errado para si, na maioria das vezes indo contra ao que é pré-estabelecido pela sociedade
como algo bom e, a despeito de ser considerado por essa mesma sociedade como algo ruim, ela
enxerga aquilo como algo bom para si, gerando um movimento de evolução.

A ‘alma’, diferente da definição popular, seria nada mais do que o componente


consciente da necessidade de evolução, a parcela de nós capaz de romper com os
padrões e com a moral. Sua natureza seria, portanto, transgressora e ‘imoral’, por não
corroborar os interesses da moral” (Bonder, 1998, p. 16).

Freud (1927), em seu texto O Futuro de Uma Ilusão, nos diz que “os seres humanos, embora
incapazes de viver no isolamento, sintam como um fardo os sacrifícios que a civilização lhes requer,
para tornar possível a vida em comum.” (p. 234). É esse o conflito interno que existe e sempre existirá
dentro da mente humana, o conflito entre corpo e alma. Corpo é querer a tradição, a fidelidade, a
cultura. Já a alma é querer a transgressão, a traição.
Nilton Bonder (1998), no livro A Alma Imoral, desafia o leitor a compreender o conceito de
“alma”, uma alma imoral, uma alma pronta para transgredir, onde trai a si mesmo e se reconstrói, se
tornando um elemento consciente da necessidade de evolução: “A alma imoral está em constante
processo de sabotagem a ordem estabelecida. Sua função que pode levar a grandes riscos é parte do
ato de devoção à vida” (p. 70).
Clarice Niskier, na peça A Alma Imoral, questiona: “Será que há no corpo uma possibilidade
que devemos reconhecer no outro e assim todos temos a mesma possibilidade?” Continua: “Existe uma
essência em comum, um recurso, uma energia vital, um potencial, ou seja, algo humano que é comum
a todos nós?”. A resposta para os questionamentos de Clarice Niskier é que sim, essa essência nos
acompanha a vida toda e ela é comum a todos.
Ao citar, durante a peça, “É uma alma livre que não pode ser vestida”, Clarice Niskier faz
referência a uma parcela de nós capaz de romper com o padrão e a moral. Ao desnudar o sujeito como
Clarice Niskier faz na peça, traz o revelar dos desejos, uma nudez que entra em comunicação, que
provoca e que se revela podendo ser vista, portanto, como a imoralidade da alma.
Já o filme “A Alma Imoral” aponta que a alma jamais representou o elemento moral e patrulheiro
dos bons costumes, a alma rompe antigos dogmas firmados como seguro na sociedade. Os
rompimentos de paradigmas impostos pela sociedade não deixam de ser complicados, mas são
necessários por fazerem parte da evolução, da busca pelo transcender.
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3.2 O Desejo

O desejo como instrumento propulsor de vida é compreendido e pensado desde os tempos


mais remotos. A filosofia já buscava compreendê-lo fazendo perguntas: Por que desejamos? O filósofo
Spinoza (1632-1677), na sua obra ética propõe: "O desejo é a própria essência do homem, enquanto
está concebida como determinada, em virtude de uma dada afeição a qualquer de si próprio, agir de
alguma maneira”. O desejo é para Spinoza a fonte de nosso agir de encontro a algo que para nós torna-
se primordial e necessário:

não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que
a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela,
por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa.” (Spinoza, Ética, parte
3, proposição 9).

O desejo para Lacan, “É uma ação realizada pelo homem, qualquer que ela seja, que o põe
em condição de tratar o real pelo simbólico” (Lacan, 1964/1988, p. 14). Nos seminários de Lacan, ao
falar do desejo compreendia-se que "o desejo do homem é o desejo do outro" (p. 222-223). Portanto,
somos seres que nos atentamos ao olhar do outro, a expectativa do outro.
Rocha e Rosa (2019) em artigo publicado pela revista Tempo Psicanalítico, de dezembro de
2019, diz que:

Lacan (1957-1958/1999) assinala que o desejo pode ser, não obstante, uma defesa
do sujeito diante do real insuportável. O desejo gira em torno de algo que está no
interior do sujeito, mas que ao mesmo tempo, não se sabe bem ao certo o que é,
descrevendo um percurso significante, sempre além ou aquém da demanda (Lacan
1957, p. 88).

De acordo com Lacan [1955/56], 2008, p. 104), “O sujeito está na busca do objeto do seu
desejo, mas nada o conduz a ele”. Se faz presente então a falta, mesmo após a busca ele não encontra
o objeto que acabará com seu vazio. Ainda segundo Lacan [1955/56] 2008, p. 104),

O sujeito não reencontra jamais, escreve Freud, senão um outro objeto, que
corresponderá de maneira mais ou menos satisfatória às necessidades de que se
trata. Jamais encontra senão um objeto distinto, pois que deve por definição
reencontrar alguma coisa que é de empréstimo. (Lacan [1955/56] 2008, p. 104).

A realização do desejo não é a busca do prazer, ou seja, a satisfação, mas sim a manutenção
da excitação em prol do desejo. Rocha e Rosa (2019), nos diz que o desejo é

Uma busca do sujeito por uma satisfação perdida, uma trajetória que visa ao
reencontro da primeira experiência de satisfação, que deixa um rastro, um traço
mnêmico de certa percepção particularizada, um resto de uma satisfação original que
o sujeito busca reencontrar (Rocha; Rosa, 2019, p. 91).

Visto que a primeira satisfação não poderá ser encontrada, a experiência de satisfação passará
a ser também uma experiência de insatisfação. Quanto menor a tensão para realizar o desejo maior o
prazer para reduzir essa tensão e por mais que alcancemos nosso objeto de desejo, ainda assim, o
desejo não será satisfatório persistindo, assim o desejo pelo objeto.
A sociedade contemporânea apresenta nuances sobre a simbologia do desejo, como a
dificuldade que as pessoas têm de se expressar e entender suas vontades. O desejo, na modernidade,
continua sendo a mola propulsora da sociedade e é a causa de frustrações, quando o prazer é
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entendido como de imediato. O imediatismo, os desejos que mudam a todo momento segundo
demandas da sociedade, implica compreender como os mecanismos de defesa entre outros recursos
de enfrentamentos são mobilizados.
A sociedade também adoece quando não fala do que deseja. Tudo isso baseado em religião,
valores sociais e culturais, que não permitem que o desejo possa acontecer sem prejuízos finais. Mas
será que não há necessidade da transgressão para evolução do bem comum? Talvez precisássemos
do traidor para compreender quem somos, corpo e alma.
Em “Totem e Tabu” (1913), Freud assinala que:

O desejo original de fazer o proibido continua a existir nos povos em que há o tabu.
Eles têm, em relação a tais proibições, uma atitude ambivalente; nada gostariam mais
de fazer, em seu inconsciente, do que as infringir, mas também têm receio disso;
receiam justamente porque querem, e o temor é mais forte que o desejo. No entanto,
o desejo é inconsciente em cada indivíduo desse povo (Freud, 1930, p. 60).

Resta-nos a pergunta: A fidelidade será voltada ao próprio desejo ou à cultura na qual se está
inserido? E se não atender ao seu desejo? Terá traído a si mesmo?
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3.3 Tradição Versus Traição

Na espécie humana não existe tradição sem traição, assim como não há traição sem tradição,
as tradições estão relacionadas a ensinamentos, regras e orientações do passado. As traições resistem
aos ensinamentos, afirmando as novas orientações de futuro. Resistir é afirmar, é anunciar uma
mudança produzindo diferenças e a experimentação das experiências.
Bonder (1998) explica no livro a Alma Imoral que existem duas forças concorrentes de nós:
uma tem a ver com o passado, preservação, valores e que é tendência tentar manter (tradição). A
segunda concorrente dentro de nós, quer mudar, inovar, correr riscos (traição). Ambas as forças
concorrem dentro do ser humano.
A tradição se faz importante na vida do ser humano, ela preserva o sujeito dos embaraços do
desejo representados pelo corpo, a tradição carrega em si a preservação das boas condutas, dos bons
costumes, fazendo-se necessária no campo familiar, em crenças e contratos sociais. No entanto,
transgredir é transcender.
Segundo Bonder (1998), o transgressor na moralidade da sociedade torna-se um traidor
quando opta por uma realidade diferente da que é imposta na tradição. No documentário A Alma Imoral,
transgredir é um processo, é o momento em que voltamos para outra direção, onde marca um novo
segmento em nossas histórias individuais e coletivas. Duas coisas ficam comprometidas pela ausência
de transgressão: a qualidade de vida e a possibilidade de continuidade.
A tradição que se constrói como traição. Seria, então, uma tradição trair?
Segundo o dicionário Aurélio (1975 p.1394), traição é um substantivo feminino que remete para
o ato de trair e significa uma falta de lealdade, quebra de fidelidade e confiança. Traição tem a mesma
origem que a palavra tradição, o termo em latim traditione. Quanto à etimologia, esta palavra está
conotada com a entrega de alguma coisa que pode prejudicar outro. O conceito de traição implica que
há quebra de confiança ou algum outro tipo de relacionamento entre os elementos envolvidos.
Desse modo, podemos questionar: é o desejo que impulsiona o traidor, ou o traidor que é
impulsionado e/ou mobilizado pelo suposto objeto de desejo? Para Bonder (1998),

O traidor é alguém que se exibe, que se expõe e este considerado como


traidor sente no corpo a dor da transgressão e na alma a dor do seu apego. Porque
todo traído é, sem dúvida, alguém que peca pelo apego. Em realidade, por definição,
uma pessoa só pode se sentir traída se está às voltas com dificuldades de acesso de
apego. Para alma, é o apego que representa a traição. O apego fere a alma da mesma
forma que a traição fere o corpo (Bonder, 1998, p. 34-35).

Quando se fala em traição, é inevitável associarmos a traição com a infidelidade conjugal. A


infidelidade emerge como o principal motivo da dissolução conjugal (Zordan; Strey, 2011) e está entre
os principais problemas enfrentados pelos casais na atualidade, principalmente pelo número expressivo
de pessoas que declaram ter sido infiéis em algum momento do seu relacionamento (Almeida, 2012;
Goldenberg, 2006). Além disso, as pessoas julgam a infidelidade como um comportamento negativo,
considerando-a prejudicial aos relacionamentos conjugais (Viegas; Moreira, 2013).
A traição é tema central na organização social do casamento, por isso compreender que se
casar com alguém é também entregar-se com tudo que se tem como plenitude de vida: amigos, família,
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hábitos e víveres. O casamento é um olhar do você é meu, e eu sou teu, onde tudo isso carrega em si
muitos desejos, devaneios e verdades particulares. Essa junção provoca em ambos um pertencimento
do outro, o usufruir do outro. Instaura-se, então, um pacto entre as partes, um contrato que ora é
explícito, ora não.
O casamento tem como premissa a monogamia e verbaliza isso em contrato, há nele uma
promessa de que vai desejar aquele outro todos os dias, ano após anos, até o final da sua vida. Sendo
assim, o casamento está findado a traição, uma vez que não conhecemos para sempre o que
sentiremos, o que o nosso consciente deseja a partir do inconsciente.
Silva e Soares (2017), afirmam que:

O homem suporta o casamento unicamente por tradição como um traidor, não


diferente do homem que rompe abertamente o contrato de um casamento e segue os
desígnios de sua alma, seu desejo. Ainda, não diferente da mulher, porque aqui
estamos nos referindo à condição humana (Silva; Soares, 2017, p. 84).

Escolher não trair é optar pela fidelidade e tentar ignorar outros supostos objetos de desejo. O
desejo que se fez fora do casamento, ou seja, direcionado a um outro objeto de desejo, permanece
vivo no ser humano, apontando para o paradoxo da escolha: reprimir o desejo caracteriza-se como
uma traição a si mesmo.
De acordo com Bonder (1998), a traição visa transgredir, se faz uma representação da alma,
uma parte capaz de romper com a moral, com os padrões, é uma parte de nós consciente da evolução:
“[...] sua natureza seria, portanto, transgressora e ‘imoral’, por não corroborar os interesses da moral”
(p. 16).
Neste contexto, entendemos que a traição é inevitável, o indivíduo trai a si mesmo quando
reprime seu próprio desejo, quando ignora sua vontade para viver a moral da sociedade, trai a si mesmo
ciente de que aquele desejo faz parte do seu ser, trai a si mesmo porque foi ensinado que se deve
desejar não desejar, que o desejo gera sofrimento, gera conflito, gera questões significativas do sujeito
com a religião, com a sociedade, com sua tradição.
Segundo Bonder (1998), os desejos são incontroláveis no sentir, mas no fazer não, isto porque
é nesse lugar de humanidade que fazemos a gestão dos desejos. “Há traições pela fidelidade muito
mais violentas do que as traições pela transgressão'' (p. 68).
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4 METODOLOGIA

Para a produção deste trabalho, um estudo exploratório, utilizamos como referências o livro “A
Alma Imoral, Traição e Tradição através dos tempos”, de Nilton Bonder; a peça teatral homônima, A
Alma Imoral, apresentada e adaptada pela atriz e dramaturga Clarice Niskier; e o documentário
produzido por Silvio Tendler, também sobre A Alma Imoral.
Este estudo exploratório contou com as obras clássicas da psicanálise, como volumes das
obras completas de Freud, por exemplo, além de um levantamento bibliográfico relacionado à obra de
Nilton Bonder e a noção de desejo para a psicanálise. A noção de desejo para a psicanálise foi o fio
condutor para as reflexões e análise do material coletado, jogando luz em uma obra densa em seu
conteúdo que, inevitavelmente, propicia certo incômodo a quem com ela se depara. Há, neste sentido,
o desnudar do sujeito e da sua alma (i) moral, revelando e expondo aquilo que a psicanálise chama de
desejo e que, de certo modo, nos deixa, na condição humana, nus.
Na discussão, apresentaremos alguns comentários de leitores sobre a obra de Bonder,
analisando-os a partir do constructo teórico trabalhado neste estudo. Ainda, exploraremos, com o olhar
da psicanálise, um pouco mais a obra que nos toca a alma.
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5 DISCUSSÃO

5.1 Alguns Comentários e Possíveis Olhares

Apresentaremos, a partir de agora, alguns comentários de leitores sobre a obra de Bonder, e


os analisaremos com um olhar da psicanálise. Será possível notar que a seguinte afirmação de Bonder
(1998, p. 20, 21) desperta nos leitores reflexões:

Da mesma forma que a tradição precisa da traição, que a preservação precisa da


evolução, que o certo de hoje dependeu do erro de ontem, o contrário também é
verdadeiro. Porque a evolução só é possível quando existe uma manifestação para
ser contestada, aviltada (Bonder, 1998, p. 20, 21).

Alguns comentários de leitores encontrados no site da Amazon, onde o livro está disponível
para venda (acesse.one/61Cl7, 2023): “Essa leitura abalou minhas estruturas! rs A peça, derivada do
livro também é outra obra de arte à parte.” (L. 2019);
A fala de L. nos remete a pensar sobre a importância de cada conceito apresentado no livro A
Alma Imoral, quando se é apresentado um olhar da imoralidade da alma, uma alma verdadeiramente
transgressora, que nos leva a refletir sobre algo que vai contra aquilo que é imposto pela tradição como
verdade e nos mostra que existem outras possibilidades de escolha, de fato abala a nossa estrutura.

A leitura é um pouco complexa, dada às reflexões que o autor provoca, mas é muito
agradável. Os conceitos explorados pelo autor são de grande relevância e ajudam a
rever nossas práticas e decisões no cotidiano. A leitura do livro é complementar à peça
de teatro e um não anula, nem deprecia o outro. (acesse.one/61Cl7, 2023, C. 2020);

C. fala em provocações:

As palavras de Bonder, nos traz reflexões sobre nossos pensamentos e condutas que
rompem com a moral já estabelecida pela sociedade, revelando uma alma provocadora,
com propostas e desejos vistos como “imorais”, que nos leva a pensar em quem iremos
trair: A nós mesmos ou ao outro?

Os preceitos do autor estão localizados em uma cela fechada à expansão do


conhecimento. Há limites expostos dentro das barreiras religiosas e ortodoxas. Traição
não é ruptura, traição é traição, ruptura é transgredir paradigmas e se permitir sempre
o caminho da luz, somente viável pelo desejo individual, respeitando o livre-arbítrio de
cada um. (acesse.one/61Cl7, 2023, G. 2022);

G. parece fazer uma crítica quando fala em “cela fechada à expansão do conhecimento”. Nos
fazendo questionar se ao escrever o livro a Alma Imoral, Bonder pensou nos limites ao apresentar a
tradição e a traição, ao falar sobre corpo que preserva e alma que trai com sua natureza transgressora.

Respeito o autor, mas não gostei do malabarismo de frases e palavras. Adorei a peça
de teatro que foi apresentada no Eva Hertz, mas o livro, definitivamente, me deu muitos
nós no cérebro. Pode ser que eu não tenha tido atenção ou capacidade suficiente para
entendê-lo ou captar suas nuances. Mas não sou fã de malabarismos filosóficos...
(acesse.one/61Cl7, 2023, P. 2020).

Na fala de P. parece haver uma crítica à forma de escrita de Bonder, quando usa a palavra
malabarismo. Bonder apresenta uma escrita balanceada entre a tradição conservadora e a traição que
propõe outra lei, que está relacionada a um equilíbrio de jogo da vida. Pessoas inebriadas por algum
tipo de crença, a qual julgam ser a única verdade. Algumas vezes, como mecanismo de defesa,
18

consideram pensamentos contrários àquilo que acreditam como “malabarismos filosóficos” utilizados
pelo pensador, com o objetivo de sustentar tal opinião. Dessa forma, não se dão a chance para
refletirem sobre uma ideia contrária à sua.

5.2 O Olhar da Psicanálise

Bonder (1998) assinala a tradição como que visa resguardar o sujeito dos infortúnios do seu
próprio desejo: “Toda a sociedade está voltada para ‘vestir’ a nudez do ser humano”, e toda moral, toda
tradição, toda religião e toda a lei são produtos do corpo moral, de um animal moral. (p. 15). A traição
simbolizada pela alma tende-se a transgredir, rompendo com os padrões e com a moral. A alma tida
como “imoral” e regente do ser humano no decorrer da evolução, é encontrada na capacidade humana
em optar entre cumprir ou transgredir; o corpo, visto como o condutor da reprodução, é o contrário da
alma, ou seja, uma representação da materialidade cujo interesse é a preservação.
Dentro da perspectiva psicanalítica, o homem é um ser desejante. O desejo está e sempre
esteve presente em cada um de nós. Ele pode ser realizado ou sublimado e, ao acontecer isso, surge
um novo desejo. Ao nosso redor tudo se atualiza frequentemente, nossa forma de olhar o mundo,
nossos valores sobre o que é bom ou ruim, certo ou errado, influência e pode mudar de acordo com
nossas relações, nossas experiências e opiniões. Assim, diante das transformações e o conhecimento
de si, a representação dos nossos desejos também pode ser modificada.
Existe uma tensão dentro de nós, entre o que desejamos e o que é permitido desejar, e a
psique tenta equilibrar essas forças de maneira que elas se sustentem. O desejo não se mostra
claramente, na maioria das vezes é conflituoso, principalmente se o objeto for proibido. A proibição
desse imenso querer pode provocar angústias.
Segundo Vagner Couto, em matéria publicada para o site campinas.com.br em 12 de novembro
de 2022:

Para psicanálise, o desejo tem duas dimensões básicas: por um lado, é aquilo que
nos movimenta em direção a algo que elegemos como necessário. Que, nem sempre,
se mostra claramente e que, como tudo que é cifrado, ambíguo ou obscuro, exige
interpretação – por sua manifestação nos lapsos, nos sintomas e na fantasia de cada
um. Por outro lado, é a volta a uma experiência que um dia se formou, em direção a
um objeto que tem a ver com pulsões infantis que ainda pulsam em nós. Tal como um
movimento rumo à marca psíquica deixada pela vivência da satisfação primeira que
acalmou uma necessidade do bebê (Couto, 2022).

Nascemos, crescemos, vivemos e morremos em sociedade e, para sermos aceitos e


pertencermos a uma determinada sociedade, estamos submetidos a determinadas regras por ela
estabelecidas. Certamente existem muitos benefícios por estar inserido em uma sociedade. Nela,
encontramos determinado conforto, condições mais favoráveis para se viver, cuidado, proteção. Além
disso, vínculos são estabelecidos e necessidades são criadas, levando, inevitavelmente, ao conflito
diante de paradoxos, como o belo e o feio, o bem e o mal, o prazer e o desprazer, o corpo e a alma,
por exemplo.
Freud (1930), em O Mal Estar na Civilização, nos fala sobre um país com um alto nível cultural
onde “vemos que nele se cultiva e adequadamente se providencia tudo o que serve para a exploração
19

da Terra pelo homem e para a proteção dele frente às forças da natureza; em suma, tudo o que lhe é
proveitoso” (p. 52).
E ele continua:

Em tal país, os rios que ameaçam inundar as terras têm seus cursos regulados, e suas
águas são conduzidas por canais até os lugares que delas necessitam. O solo é
cuidadosamente trabalhado e plantado com a vegetação que lhe for apropriada, os
tesouros minerais das profundezas são extraídos com diligência e usados na fabricação
dos instrumentos e aparelhos necessários. Os meios de transportes são abundantes,
rápidos e confiáveis, os animais perigosos se encontram exterminados, e próspera a
criação daqueles domesticados. (Freud, 1930, p. 54-53).

Mas não é apenas para isso que a sociedade existe. Ela também se ocupa de coisas
desnecessárias. Segundo Freud (1930), o homem civilizado precisa cultuar a beleza:

Por exemplo, quando numa cidade os parques, necessários como áreas de lazer e
reservatórios de ar, possuem também canteiros de flores, ou quando as janelas das
casas são adornadas com vasos de flores. Logo notamos que a coisa inútil, que
esperamos ver apreciada na civilização, é a beleza (Freud, 1930, p. 53).

É certo que, para que possamos usufruir das vantagens da civilização, precisamos renunciar
objetos que nos dão prazer e que, de alguma maneira, não condiz com aquilo que é permitido pela
sociedade. A esse renunciar podemos chamar de “trair o nosso desejo”. Em “O Mal Estar da Civilização”
(1930) percebe-se as complicações enfrentadas pelo indivíduo que, ao renunciar a seus instintos, seus
desejos, em razão da manutenção da própria civilização, ver-se-á num conflito interno entre acatar
aquilo que é imposto pela sociedade ou realizar o seu desejo, culpando-se ou por trair a sociedade ou
por trair a si mesmo e, dessa forma, tornando-se um neurótico.
Surge então uma questão: “O quanto o sujeito precisa trair a sua alma imoral para ser aceito
pela sociedade?” A resposta vai depender de cada indivíduo. O que será que lhe dá mais prazer? O
fato é, que para ele ser fiel a um ele precisa trair o outro, não é possível ser fiel aos dois, pois um exige
a renúncia do outro.
A tese clássica de Freud é que a sociedade se compõe a partir da renúncia pulsional do sujeito.
Se não houvesse a repressão do sujeito, a sociedade jamais existiria. No entanto, as proibições da
sociedade aos poucos vão dominando o ser humano, controlando os seus desejos primitivos de forma
tal que o homem começa a internalizar tais proibições, o que, por sua vez, se transformam em
convicções e normas que serão assumidas pelas pessoas. E assim a dinâmica repressiva da sociedade
se torna regra da vida civilizada.
Se o sujeito reprime seus desejos para poder enquadrar-se naquilo que a sociedade lhe permite
fazer, falar ou até mesmo pensar, nesses desejos reprimidos torna-se um tabu. E, por mais estranho
que possa parecer, grande parte da sociedade parece possuir os mesmos desejos reprimidos e mesmo
assim evita trazê-los à luz da consciência. Por isso, tratar desses tabus pode ser um grande problema
para a sociedade. Se um transgressor quebrar com os dogmas estabelecidos pela sociedade a favor
dos seus desejos, outros podem querer seguir o exemplo desse transgressor de modo que ele mesmo,
o transgressor, se torne um tabu.
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Novamente, revela-se aí a importância da “Alma Imoral” que faz o papel de transcender, de


romper com essas regras e dogmas que reprimem, dando ao sujeito a liberdade de apenas ser. E, ao
ser fiel à sua “alma imoral”, acaba tornando-se uma referência para os demais. Dessa forma, como
possível espelho, faz um movimento de evolução para a sociedade como um todo. Temos como
exemplo desse processo o fim da segregação racial e a luta contra todas as manifestações de racismo,
os movimentos pelos direitos das mulheres ou as representações a favor da comunidade LGBTQIA+,
inclusive dentro da religião, como é apresentado no documentário A Alma Imoral.
O diálogo entre a religião e a psicanálise tem seus efeitos e impasses que duram até os dias
atuais. Ideias, preconceitos, tabus diante a tradição são vistos e considerados diferentes para ambos.
Porém a religião no pensamento freudiano tem um espaço significativo. Em Totem e Tabu (1913/1996),
por exemplo, Freud assinala que "Deus nada mais é que o pai glorificado" (Freud, 1913/1996, p. 176).
Em sua interpretação a ideia de um Deus coincide com a ideia originária do pai primevo, da relação do
homem com um Deus que ampara, com um criador protetor. A religião se faz presente em toda
sociedade, oferecendo ao devoto uma proteção psicológica contra os perigos da vida, tendo como
esperança a recompensa de uma vida eterna, uma esperança na justiça futura de um criador que
consola o sofrimento vivenciado na sociedade.
Segundo Freud, em O futuro de uma ilusão, é por meio da religião que o ser humano reativa a
figura paterna. Uma figura paterna que consola, que não desampara, que protege, através da ideia da
existência de um Deus o ser humano se apega a ideia de um pai poderoso, que é amado, mas ao
mesmo tempo temido. A Religião parte dessa ligação entre pai e filho e o sentimento ambivalente do
filho para o pai, assim transferido para um Deus de forma direta.

Dessa maneira, parece plausível supor que o próprio Deus era o animal totêmico, e
que este se desenvolveu numa fase posterior do sentimento religioso. Mas somos
liberados da necessidade de novos exames pela consideração de que o totem nada
mais é que um representante do pai. Assim, embora o totem possa ser a primeira
forma de representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai
conquistou sua aparência humana. (Freud 1913/2006, p. 151).

Em Totem e Tabu, Freud destaca sua visão sobre a religião, onde seu ponto de apoio se faz
no complexo de Édipo e nas incertezas do relacionamento do pai e do filho. De acordo com Morano
(2003, p. 40),

Totem e Tabu torna assim flagrante um conflito em que a dialética que marca a relação
com o pai fica situada em uma espécie de “ou eu ou você”, de tudo ou nada, em que
não há outra saída senão a morte do pai como condição de possibilidade para a
própria existência. A eterna ambivalência afetiva, porém, impede a liberdade do filho,
uma vez que o sentimento de culpa (derivado do polo amoroso da relação) o vincula
para sempre, através da nostalgia, ao pai morto. Esse pai, amado e odiado ao mesmo
tempo, ressuscita agora e começa a recobrar um poder inimaginável. Somente desse
modo o filho acredita poder preencher o terrível vazio deixado pelo pai morto (Morano,
2003, p. 40).

De acordo com Freud (1933/1996), a crença religiosa está relacionada ao desamparo infantil.
Em sua infância, a criança sente-se desamparada e em seu pai encontra a proteção e o amparo de
que necessita. Então percebe no seu crescimento que o pai não pode satisfazer tal necessidade de
proteção, sente-se assim desamparado e procura novamente uma forma de sentir a proteção que tinha
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quando pequeno. Então o indivíduo "retorna à imagem mnêmica do pai, a quem, na infância, tanto
supervalorizava. Exalta a imagem transformando-a em divindade e tornando-a contemporânea e real"
(Freud, 1933/1996, p. 172).
Em sua obra O futuro de uma ilusão (1996), Freud relaciona a religião como uma ilusão, como
um delírio, assim uma instituição que irá promover uma repressão que está ligada à moral. A repressão
religiosa traz para o ser humano danos psíquicos, uma vez que a ideia de moralidade exagerada
sempre traz a repressão que se torna doentia. As ilusões vindas da religião ficam no homem, para que
ele não se sinta desamparado, porém, nos ensinamentos de Freud podemos entender que existe uma
falta, um vazio na estrutura humana, responsável pela busca de um objeto que acabaria com a falta
existente.
Compreende-se que o indivíduo, exposto ao excesso de moralidade, é atraído para a
religiosidade moral do que supostamente se configura como correto. Assim, terá o seu superego
desenvolvido de forma excessiva do certo, do errado, do bem, do mal, do que pode, do que não pode,
levando-o ao sofrimento motivado pela repressão do desejo.
Retomando “O mal-estar na civilização”, Freud (1927) assinala que o homem para viver em
sociedade, na civilização, deve renunciar aos seus desejos, privando-se do prazer e da agressividade
que traz perigo para si e para o outro. Porém, com essa renúncia, o homem se desenvolverá neurótico
e a culpa será instaurada diante da privação que a sociedade lhe impõe. Podemos dizer, então, que a
redução dessas exigências resultaria num retorno à possibilidade de felicidade e, instigado por essa
possibilidade e livre das amarras colocadas pela sociedade, em busca da realização do seu desejo,
caso não se autodestrua, o homem tenderá a evolução não apenas de si próprio, mas também de toda
a sociedade, obrigando-a a se adequar a um novo modo de ser.
Na obra “Alma Imoral”, o autor Nilton Bonder diz: “O cavalo se sabe cavalo, o macaco se sabe
macaco, a cobra se sabe cobra, mas somente o homem se sabe e percebe-se homem”. Assim, o
homem se fez homem desde sua gênese, um ser desejante: “O ser humano se fez o mais vestido e o
mais nu dos animais” (p. 12). Segundo o autor, não existe, na verdade, outro nu, além daquele que se
percebe nu.
Podemos dizer, portanto, considerando os autores estudados que sem a transgressão na
tradição não haveria história. A transgressão não leva consigo uma norma ou regras passadas, ela
surge com uma percepção diferente para o novo caminho, um olhar renovado no qual a tradição não
pode mais se impor como (des) obediência ou culpar o indivíduo pela realização dos seus desejos.
Assim, diante do impulso desobediente, houve a tentação de Adão e Eva ao desobedecerem a lei do
Criador. Em busca da realização do desejo houve, também, o transcender. A partir da desobediência
nasceu, então, a consciência de que somos sujeitos desejantes.
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6 CONCLUSÃO

A obra A Alma Imoral apresenta-nos uma reflexão sobre a imprescindível imoralidade da Alma
sobre o constante questionar da moralidade do corpo. Este mundo não deveria ser nem da ordem do
que temos que fazer e nem do que não podemos fazer. A transgressão se faz presente, uma vez que
o bom pode não ser o correto e o correto pode não ser o bom. As circunstâncias podem levar para um
caminho desnudo de possibilidades no olhar de quem vê o certo, que é o errado, ou o errado que é
certo.
Sob essa perspectiva, podemos concluir que quando falamos sobre tradição e traição, uma
depende da outra para se sustentar, pois só trai quem quebra um acordo (nesse caso com a tradição)
e a tradição só se sustenta porque apesar de existir a possibilidade de quebrar as suas regras, a maioria
opta por mantê-las.
Reconstruindo os conceitos da alma que trai e do corpo que preserva, entendemos a
importância de ambos no processo da vida, tanto para a reprodução quanto para a evolução do ser
desejante e de toda a sociedade. Pois, somente por meio dessa tensão psíquica é que nos tornamos
mais tolerantes às diferenças e assim poderemos evoluir.
O olhar moral e imoral, a transgressão dos tempos, os desejos profundos de entregar-se ao
prazer que implicará no futuro, o corpo moral e a alma imoral, a tradição e a traição que andam lado a
lado, são conceitos apresentados e necessários para possível compreensão do raciocínio aqui
proposto e encaminhado para a abordagem psicanalítica voltada para o desejo. Afinal, o desejo da
transgressão parece existir desde o Jardim do Éden, quando, supostamente tentados pela serpente,
Adão e Eva desobedeceram ao mandamento do Criador ao obedecerem ao desejo do gozo.
Podemos dizer que nas bases da traição e da tradição há o desejo que, por sua vez, leva à
transgressão. Como diz Clarice Niskier, na peça A Alma Imoral (2022): “O olhar que desbrava, o olhar
que julga, o olhar que escolhe não olhar. Quem é moral e quem é imoral está no olhar, na retina que
inverte imagens e nos permite interpretar o mundo, enxergá-lo.”
Paradoxalmente, ao abrir os olhos será possível enxergar que “A traição é inevitável”. Ainda,
diante de qualquer escolha haverá sempre alguma renúncia: se o sujeito escolher realizar um desejo
ele trairá um acordo que o impedia de realizar o desejo; por outro lado, se escolher obedecer ao acordo
e renunciar à realização do desejo, trairá a si mesmo. Não à toa é preciso, por vezes, fechar os olhos
para gozar.
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