O Trabalho Da Obra Maquiavel - Claude Lefort
O Trabalho Da Obra Maquiavel - Claude Lefort
O Trabalho Da Obra Maquiavel - Claude Lefort
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Claude Lefort
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Parte 1
A questão da obra
Este livro nasceu da atração por um enigma cujas razões não
saberíamos apontar. É uma atração que, longe de diminuir diante
da descoberta da abundância da literatura crítica, em que o
enunciado e a solução de tal enigma são repetidos pateticamente,
apenas aprofunda a consciência de um deslocamento: o recuo de
seu objeto para fora do campo no qual, em sua obscuridade
primeira, ele parecia se situar.
Quem pensar que um intérprete é movido tanto pelo desejo de
sobrepujar seus rivais quanto por aquele de conquistar um saber —
como dão testemunho a propriedade, que ele se atribui, do sentido
de uma obra, e a consequente autoridade de captar o favor de todo
leitor futuro — pode tomar como um simples refinamento de tal
desejo a aspiração de interrogar de uma só vez o escritor e sua
posteridade, a tentativa de apreender o movimento continuado
pelo qual a obra escapa à apreciação de seus intérpretes, de
desvelar a cumplicidade de que são feitos seus conflitos e de
estabelecer com ela uma ligação inédita — de modo que a obra
permaneça à distância, no mais íntimo diálogo, como alguém que
sabemos que fala para além da nossa compreensão, ou de modo
que tome para si um problema a partir do saber que dela extrai e
ponha uma dúvida em questão até o fim e renuncie à descoberta
que selaria o discurso. Refinamento, ou perversão, talvez… Seria
vão se defender de tal pensamento. Mas, ao menos, poderíamos
replicar: qual juiz decide? Quanto ao saber, quem sustentará que
ele poderia se separar do desejo? A perversão nomeia a quem, qual
lei a garante, fora do campo do discurso que tem no outro seu
apoio e se sustenta ao falar para além do ponto no qual este outro
se silencia, isto é, ao diferir o termo, ao subtraí-lo da fatalidade do
ciclo no qual estava alojado, ao suspender-lhe a possibilidade de
uma nova origem, ao buscar ainda junto de um leitor uma
sobrevida?
Dizíamos ser um enigma! Mas seria melhor nomear de início
algumas questões que surgiram, até que não possamos fazer outra
coisa a não ser pensá-las conjuntamente.
Há uma questão que se vincula ao nome de Maquiavel.
Ouvimos esse nome ser pronunciado, empregamo-lo sem saber
nada de sua proveniência. Há quatro séculos, ao menos, ele se
inscreveu na linguagem comum, bem como seus derivados —
maquiavelismo, maquiavélico —, a ponto de constituir nessa
linguagem um significante insubstituível, voltado não somente
para o uso político, embora este ainda seja o mais comum, mas
apto a designar um ato típico da conduta do homem para com o
homem. Estranha e intrigante aventura, pois basta uma iniciação
bastante rápida na história da sociedade em que vivia Maquiavel e
uma leitura, superficial que seja, de suas obras para se convencer
de que ele não foi nem o autor nem o praticante dessa perversão
política que se designa maquiavelismo, para reconhecer, em
contrapartida, qualquer que seja o argumento que se utilize acerca
de sua ação e de suas ideias, a sua qualidade de homem político e
de escritor: político muito dedicado ao Estado e bastante
preocupado com a Itália, mais vinculado às liberdades que aos
senhores com quem teve de conviver; escritor extremamente sutil,
cujo discurso, longe de se resumir a algumas fórmulas escabrosas,
desenvolve-se por múltiplas e difíceis vias, compara-se aos mais
respeitáveis historiadores e filósofos — Tito Lívio, Cícero e
Plutarco, mas também Platão, Aristóteles e Xenofonte — e, enfim,
requer do leitor, o de outrora como o nosso contemporâneo, uma
atenção e uma cultura pouco comuns. As aventuras do termo
teriam algum sentido? Como compreender que o nome próprio se
cristaliza, destaca-se da pessoa e começa a ter uma vida
independente, misturando-se com as línguas mais diversas, com as
palavras mais desgastadas, no esquecimento de sua origem? Ou,
melhor dizendo, o que significa essa longínqua decapitação do
nome próprio, sob que efeito esse nome próprio oscila na língua
comum e é apropriado por essa potência anônima para funcionar
como um signo?
Um signo novo do imoralismo, diz-se, transposto da obra, do
Principe* notadamente, que teve algumas de suas fórmulas
repetidas, talvez com deleite por alguns enquanto produziam o
horror noutros, até que, na ignorância do autor, da obra e da letra
do próprio texto, não subsistisse senão a comodidade da palavra.
Mas, sem dúvida, jamais faltaram testemunhos do imoralismo. Ao
ouvido dos homens chegaram palavras bastante fortes sobre a
necessidade da violência ou sobre o prazer que se tira da opressão,
de modo que nos surpreendemos com os efeitos de um discurso
que, não apenas não se reduz a isso, mas termina com um apelo à
libertação da pátria italiana. Para quem se recorda dos argumentos
atribuídos a Polo, Cálicles e Trasímaco, não há dúvida de que a
contestação da lei encontrava na Antiguidade partidários ousados;
mais, a palavra calicleana traz o desafio e a invectiva, enquanto não
há nenhum vestígio aparente disso na de Maquiavel. Os
adversários de Sócrates provocariam menos paixão por se
apresentarem vinculados a seu objetor? Ou, ainda, faltaria
seriedade ao seu furor? Esses pretensos iconoclastas não teriam
jamais ultrapassado os limites do simulacro? Sócrates teria tido
razão em duvidar da oposição deles às leis e de seu desprezo pelo
povo, qualificando-os de bajuladores e insinuando mesmo que eles
são mais seduzidos que sedutores, movidos à sua revelia pelo
desejo do demos que acreditam dominar, ligados fortemente à lei
que pensam ridicularizar? Surgiria, então, com Maquiavel, uma
contestação de um alcance completamente diferente, que
mascararia, não sem a designar, a acusação de maquiavelismo?
Maquiavel teria atacado a lei num sentido inaudito? Seria ele o
autor de uma transgressão efetiva, cujo efeito foi abalar, em seu
tempo, uma certeza tão mais desesperadamente preservada quanto
mais era ameaçada pelo acontecimento, de modo que se anulava,
em certa zona, a diferença estabelecida entre moralidade e
imoralidade — anulação tão grave, enfim, que não podia ser
reconhecida, e foi necessário deslocar seu objeto para condená-la?
Para que tal questão ganhe corpo, é necessário interrogar o
termo maquiavelismo, investigar suas origens, perscrutar os
primeiros lugares em que seu uso se propaga, sem esquecer que
ele continua a ter um significado distante de suas origens, livre da
função ou das funções que cumpria primeiramente. Mas não
devemos ceder muito rápido às explicações que nos são oferecidas,
as quais não sabemos ainda se participam do movimento que lhe
deu origem. Nem devemos substituir um preconceito por outro,
substituir a ideia de que o maquiavelismo se deduz do discurso
maquiaveliano, que ele é seu emblema colocado em circulação, por
outra que diz ser ele um efeito do acaso, o resto de uma acusação
injusta, o trapo que a língua ajeita para si mesma a partir de um
tecido ruim de palavras. Em vão esperaríamos ter um
conhecimento da obra a partir dessa investigação, pois não é por
esses efeitos que ela é pensada. Estamos dizendo apenas que eles
são muito problemáticos para que neles busquemos uma
advertência, um indício de que algo está em jogo e em relação ao
qual ela não é estrangeira.
Mas uma questão não brota jamais sozinha. Por que fingir
ignorá-la se Maquiavel se apresenta, em nossos dias, envolto na
reputação de fundador? Com ele, diz-se, teria sido inaugurado o
discurso político, não certamente uma reflexão sobre a essência do
bom regime ou da arte de governar, mas o discurso que visa a
política como tal, circunscreve seu domínio e rompe toda e
qualquer ligação com a metafísica e a teologia. O fato de a irrupção,
na língua, do significante equívoco do maquiavelismo ser o efeito
de uma primeira ruptura na ordem do pensamento; de essa
ruptura, invisível para a maioria, ser, contudo, surdamente
reconhecida a ponto de produzir um deslizamento na ordem do
falar; esse fato é capaz de aguçar nossa curiosidade. Mas convém,
ainda, interrogar-se sobre o sentido que emprestamos ao
acontecimento, em vez de rapidamente acolher uma representação
da qual nossos contemporâneos parecem tão certos quanto estão
seguros de ver nascer com Platão o discurso filosófico, com Galileu
o discurso científico ou, com Hegel e Marx, o discurso sobre a
História* como tal. Ora, assim que nos damos conta dessa
representação, o discurso dos outros, aquele que compõe a
posteridade do escritor, nos captura e nos implica um movimento
do qual, em breve, não seremos mais senhores — provocação
contínua ao espanto e lugar de um espanto que, embora cesse em
cada um assim que a coisa é julgada, transmite-se para outro, como
que para manter aberta, para além de toda questão sobre o sentido
da obra, uma questão sobre sua identidade.
Foi Maquiavel o fundador, o defensor de um discurso
radicalmente novo? Esse julgamento tem suas origens num
passado mais longínquo do que podemos supor pela leitura de
alguns comentadores modernos. Sejam eles considerados seus
primeiros adversários ou seus primeiros partidários, vemos que
uma certeza já os anima: algo foi escrito pela primeira vez, algo que
nunca tinha sido ou que jamais deveria ter sido escrito. Tudo
ocorre como se uma liberdade, intolerável ou exaltante, tivesse
sido tomada relativamente à verdade dos livros — verdade esta
que, de seu próprio lugar, dava anteriormente suporte e
determinava a ação dos homens, e a ordenava em virtude de seu
afastamento de uma razão secreta. Não é somente o enunciado que
revela aos olhos de uns e outros uma audácia desconhecida, pois as
restituições desse enunciado são bastante diversas. É antes o
movimento da palavra que parece surpreender, escandalizar ou
encantar, por meio da modificação que introduz na relação do livro
com seu objeto e, simultaneamente, do autor com seu leitor. O
desejo de imputar a Maquiavel a paternidade do discurso político é
acompanhado em cada leitor por uma representação singular da
obra, cuja verdade se afirma pela exclusão das outras
representações como pura falta de sentido. É perturbador
constatar uma crença tão amplamente partilhada acerca da
originalidade de um escritor e, ao mesmo tempo, um desacordo
tão profundo, tão cedo enraizado na sua posteridade, tão
assiduamente alimentado sobre o sentido de sua obra.
Quando começamos a sondar a literatura desenvolvida em
torno dessa obra, temos uma primeira surpresa ao constatarmos o
ódio de que ela foi objeto e que, por ter conhecido o apogeu
cinquenta anos após sua publicação, jamais se desfez. Mas temos
outra ao descobrirmos que a defesa do escritor, independente do
que se tenha dito, não é menos antiga que sua condenação e que
também ela provocou uma paixão ainda mais viva e durável.
Surpreendemo-nos ainda ao ficarmos sabendo que, em nome de
um saber objetivo e livre das impurezas da polêmica,
comentadores se empenham, há séculos, em restituir a verdadeira
figura do escritor — esse ódio, esse amor, essa pretensa
neutralidade recobrem sempre tal variedade de interpretações que
os motivos dos autores tornam-se anedóticos. Mas não menos
surpreendente é o esforço de alguns para descobrir uma obra
conhecida, estudada, discutida como poucas o foram na história e
fingir condená-la ou fazer-lhe inteira justiça pela primeira vez. É
também surpreendente a vantagem que se tira em cada época
dessa descoberta ao se reclamar uma verdade inaudita sobre o
presente, como se um véu caísse pela leitura de Maquiavel, como
se os signos depositados no Principe ou nos Discorsi, até então
desconhecidos e indecifráveis, porque escritos para um leitor
futuro na espera de um tempo que seria dele revelador, falariam,
enfim, no contato com o acontecimento. Não menos
surpreendente é a diversidade daqueles a quem a obra fascina, pois
esses não são apenas filósofos, teólogos, moralistas e historiadores,
que são escritores, mas também políticos ou, ainda, homens que
aparentemente sequer se prepararam para tal prática, mas que,
tomados de paixão, se convencem da necessidade e urgência que
haveria de alertar seus contemporâneos para a mensagem
maquiaveliana.
Ora, que haja um discurso da posteridade ou, para melhor dizer,
que essa posteridade se ordene em razão de um discurso, que esse
discurso se articule à revelia de seus agentes na forma de um
processo — de modo que, mudando os protagonistas, subsista a
mesma distribuição de papéis e de argumentos — e, sob o signo de
um mito — a identificação, em sua dupla figura, positiva e
negativa, a ressurreição do autor em sua dupla função de
imortalização e de aniquilamento, repetindo-se insensível às
influências do tempo —, esse pensamento provoca nossa
interrogação e, ao mesmo tempo, abre-lhe o campo. Com efeito,
como compreender que, de uma época a outra, se encontram
novamente as mesmas lacunas ou lacunas semelhantes na
representação da obra? Como compreender, sobretudo, que as
divisões ideológicas a que estamos acostumados se misturem no
contato com a obra, que alianças inesperadas se estabeleçam, que
parentescos que acreditávamos estabelecidos se desfaçam?
Essas aventuras, sem dúvida, nos incitam a reconsiderar o
estatuto da obra de pensamento, a distinguir o saber da obra de sua
ideologia. Sem dúvida, tais aventuras pedem que interroguemos a
natureza do discurso maquiaveliano, que investiguemos o que, no
discurso, as torna possíveis, ou o que as autoriza; talvez somente
ganhem todo seu sentido sob a condição de, uma vez ainda,
perscrutar-se a representação do discurso político que está
implicado no discurso da obra. Mas elas não poderiam nos ensinar
alguma coisa a mais sobre as próprias ideologias? Quanto à
ideologia — ou o que nomeamos rapidamente como tal, para nela
localizar o lar de conhecimentos acesos e conservados pelo desejo
de uma categoria de homens de fazer ou refazer a ordem social
conforme as exigências de sua própria prática —, não é estranho
que sejamos impedidos de mensurar sua eficácia, justamente no
momento em que tínhamos a esperança de fazê-lo, pois, em se
tratando da apreciação e da exploração de uma obra política, ela
estaria no seu mais alto grau de manifestação?
A obra teria algum poder de embaralhar as referências em torno
das quais se ordena a linguagem política e de desvelar, nos
divórcios e cumplicidades que se instituem em torno dela, aquém
das opiniões e valores comumente aceitos, um jogo de oposições
desconhecido, o qual, por ser desconhecido, se mantém protegido
das variações da ideologia?
Ora, essas questões não são esquecidas quando a atenção se
volta do campo geral da literatura maquiaveliana para o lugar mais
preciso da crítica científica, lugar em que o conhecimento
prevalece sobre o julgamento, em que a imaginação é freada, em
que a fidelidade ao texto comanda. Essa atenção se sustenta na
decisão de experimentar seu sentido por meio não só da
comparação regrada de proposições do discurso, da avaliação exata
de sua escrita, do ajuste das condições de coerência, mas também
pela reconstituição disso que era ao mesmo tempo o teatro em
cujo palco o texto figura como um acontecimento e a sua questão
de conhecimento: o mundo social e histórico do começo do século
XVI — mais precisamente, no interior desse mundo, Florença e o
modo como ela se inseria no encadeamento dos acontecimentos
que a conduziram à servidão, nos conflitos de classe e de
constituições políticas em que aqueles acontecimentos se
inscreviam e no estado de crenças e de saber que determinava a
relação dos homens com seu meio. Sob o signo da ciência, o
mínimo que se pode dizer é que nenhum acordo é alcançado; as
divergências ganham peso e se ampliam ao custo do trabalho que
as suporta, excedendo em muito os limites que o destino de toda
obra de pensamento nos impõe, destino que, de resto, é em si
mesmo já enigmático. Contido, o desejo ressurge no homem de
ciência, indiferente às exigências, ordenadoras de seu discurso
crítico, de fazer um julgamento final sobre o sentido e o valor da
pretensa mensagem maquiaveliana, dela tirando vantagem, o que
seria possível pelo artifício de uma anulação de seus efeitos, para
dizer ou insinuar uma verdade preciosa sobre o presente e,
simultaneamente, denunciar aqueles que têm olhos de não ler o
livro e tampouco a história.
Mas o debate científico não é importante somente em razão das
divergências que vemos ser repetidas em seu seio e pelo vínculo
inquebrantável que se encontra nele entre a intenção crítica e a
intenção política. Sua natureza é tal que faz da interpretação
mesma um mistério. Ao observarmos o movimento em que as
teses rivais se desenvolvem, a partir de certas premissas e em
direção a conclusões diferentes — sob o signo constante de uma
restauração do sentido da obra e de uma certeza equivalente de
reconquistar um saber cujo título teria até então sido usurpado —,
não podemos deixar de nos perguntar sobre a lógica que o
governa, sobre o vínculo que é formado, aquém das declarações de
método e dos julgamentos manifestos, entre os discursos do
escritor e do intérprete. Seria vão querer determinar na
interpretação as fronteiras do saber e da crença, na esperança de
limitarmos as contingências da interpretação aos estados de ânimo
de seu autor — qualquer que seja a profundidade em que situemos
a origem, qualquer que seja o fundamento que atribuamos aos
valores que presidem sua leitura, as interpretações suscitam suas
próprias questões e preparam suas respostas. A divisão não se
deixa operar. O campo do conhecimento científico da obra — seja
ele medido pela extensão das proposições verificáveis avançadas,
pela coerência do sistema no qual se articula a argumentação ou,
ainda, pela virtude dos princípios que o governam — não se deixa
subtrair do campo global da interpretação, porque esse campo é
ele mesmo simbólico em toda sua dimensão, porque toda
determinação dos elementos é simultaneamente determinação do
estatuto da obra, de sua inserção no tempo, numa história do
pensamento, mas também numa história do mundo,
determinação, enfim, de uma realidade em relação à qual e no seio
da qual a crítica se situa.
Assim, somos incitados a interrogar o projeto que sustenta a
interpretação como tal. Mas não fazemos isso somente para tentar
circunscrever a problemática que se engendra pela reflexão sobre a
obra, para desdobrá-la em todas as suas dimensões, vale dizer, para
investigar como as teses que visam o sentido do discurso
maquiaveliano se articulam com outras teses sobre o sentido da
história e da política. Além disso, não poderíamos deixar de notar
que a interpretação, por tudo o que ela coloca em jogo na
reivindicação de um saber sobre a obra, tende a substituí-la e, no
momento em que parece fazer da obra seu objeto, retoma como
sua a intenção que a preside e visa o que ela visava. Ora, que o
empreendimento esteja sempre recomeçando e, relativamente ao
seu fim, seja sempre incompleto, que a obra ofereça
indefinidamente uma resistência ao movimento de apropriação
que ela suscita, no momento mesmo em que tal movimento
demonstra a mais decidida submissão a seus fins, que ela se retire
ao ser re-produzida, no momento mesmo em que a crítica pretende
se apagar diante dela para deixá-la falar — não reconhecemos aí a
prova de um impossível acesso à objetividade? Isso não é o sinal de
que o que nomeamos objetividade nos impede de pensar a essência
da obra em relação ao poder que ela tem de fundar um discurso
crítico, de impor aos outros a dupla necessidade de visar seu
sentido próprio e de escrever em seus sulcos sobre aquilo que sua
escrita designa?
Essa questão não se soma apenas àquela que é posta pelo
conflito de interpretações, pois ela modifica seu alcance. Esse
conflito, perguntamos inicialmente, lança luz sobre a obra? Não é a
obra que governa secretamente o conflito? Ao tomarmos
conhecimento do que está em jogo, não vemos a dimensão do
campo que ela abre para o pensamento político? Assim, o espanto
que vivenciamos pelo contato com a crítica maquiaveliana nos
coloca no rastro do sentido. Mas, quando perscrutamos, uma após
outra, as obras dos intérpretes e descobrimos, para além da
diversidade de teses, a repetição de uma tentativa cujo objeto é
banir qualquer indeterminação da obra, fixar os limites de seu
saber, atribuir-lhe um estatuto e uma função na realidade —
tentativa essa que supõe em cada um a garantia de uma palavra
desligada da palavra que o fez falar —, outra questão se levanta e
perturba nossa interrogação primeira. O jogo das interpretações,
perguntamos agora, não se organiza em razão do desconhecimento
do que está no seu fundamento, a saber: a relação que o crítico
mantém com a obra? Entrar em tal jogo não é aprender a descobrir
as causas desse desconhecimento, os ardis pelos quais o intérprete
se livra do discurso erigindo-o em coisa dita, dissimula a filiação
que denunciaria a natureza de sua dívida e, no momento em que
seu discurso substitui aquele na dependência do qual ele se
inaugura, pretende afastar um terceiro que o destitui do direito de
concluir, finge esquecer a indeterminação na qual se abre e se
desenvolve seu próprio empreendimento? Continuamos ainda em
busca de um sentido. Certamente, esses ardis não são invenções
gratuitas: as vias da dissimulação sulcam um espaço cujas
propriedades já estão determinadas pela singular obra de
Maquiavel. Mas uma coisa é acolher o que a obra propõe para a
posteridade, outra é descobrir no que ela se transforma na troca do
discurso crítico, é discernir a recusa de pensar, na obra, o poder
que ela possui de revelar.
No entanto, essas questões somente nos tocam porque a
própria obra, na primeira relação que estabelecemos com ela ao lê-
la, nos coloca em estado de questionamento. Por banal que seja o
julgamento sobre a obra de pensamento — uma banalidade contra
a qual será necessário se defender para sondar a verdade que ela
recobre —, é de sua essência se produzir numa relação tal que
aquele que se torna o agente de sua manifestação interroga. Com
certeza, o livro, determinado nos seus limites e na ordem de
signos que se articulam segundo as leis da língua e a necessidade
resultante de um discurso, é inteiramente suporte de um sentido,
o qual, sem tolerar qualquer divisão, é irradiação de uma presença
— do ser da obra. Mas esse sentido é apenas prometido; essa
presença está sempre um passo atrás disso que anuncia: o anúncio
e a promessa são inseparáveis dos signos que o leitor jamais deixa
de retomar para interpretar, por um trabalho que lhe é próprio, a
saber: modulação e escansão do discurso do outro, mas também
apreensão e ordenação das diferenças, bem como apreensão e
distribuição de massas e valores, escalonamento de planos,
trabalho — por mais bem-sucedido que seja — cujo efeito não
poderia livrá-lo da incerteza, fornecer a garantia última da verdade
do discurso. Se tivéssemos apenas que emprestar à obra
maquiaveliana, uma obra de pensamento, nossa paciência e nossa
fé de leitor, ela afastaria qualquer questão sobre as aventuras ou
sobre as metamorfoses às quais a história a expõe. Mas é tal nosso
encontro com ela que, no suposto retiro da leitura, ela se esquiva
ao mesmo tempo que se deixa apreender, e descobrimos a
necessidade do trabalho que ela nos impõe quando
experimentamos uma dúvida sobre sua identidade, dúvida esta que
reflui sobre nós mesmos, enquanto, de certo lugar, já nos
esforçávamos em pensar a política.
Como a obra se esquiva e comanda o movimento que, de
releitura em releitura, aumenta nossa atração e multiplica nossas
questões, eis o que não poderíamos mencionar apressadamente,
por causa da dupla impossibilidade de antecipar a ideia da
interpretação como modo de interrogação e a própria
interpretação como desdobramento dessa interrogação. O máximo
que podemos fazer é evocar o momento em que — seduzidos que
estávamos, inicialmente, pela liberdade que o Principe concede a si
mesmo para ignorar as distinções clássicas e cristãs do bom e do
mau regime, de autoridade legítima e ilegítima (termos, portanto,
de um debate mais que milenar), pela liberdade para apresentar,
em consequência disso, o poder como objeto de uma luta oferecida
a quem melhor sabe tirar partido das divisões da sociedade civil,
liberdade para dar forma de hipótese aos dados do combate
político, para circunscrever, no campo social, um sistema de forças
cujas combinações são calculáveis, para atribuir à ação regras cuja
validade é independente da natureza dos fins aos quais ela se
submete, e, ainda, seduzidos pelo brilho de um discurso cujo rigor,
concisão e alegre movimento parecem testemunhar a verdade que
ele designa — duvidamos subitamente de ter compreendido o
Principe e, mesmo, de tê-la acompanhado, ao considerar as palavras
proferidas sobre a natureza das classes e a diferença de seu desejo,
sobre a dependência na qual o príncipe se encontra relativamente a
elas, sobre a necessidade em que ele se encontra de
simultaneamente oprimir e colocar um limite à opressão, de se
fazer reconhecer pelo povo e conservar em relação a ele uma
distância que preserva a diferença entre Estado e sociedade, sobre
o perigo que ele enfrenta, em razão mesmo daquela distância, de
se encerrar na ilusão da segurança e da onipotência, sobre o risco,
enfim, que acompanha toda ação, exposta que está aos acasos da
convergência ou da divergência dos acontecimentos. E, marcados
pela referida dúvida, entrevemos, no próprio tempo em que essas
palavras nos fazem deslizar da ideia do racional àquela do irracional
na política, a profundidade do discurso, dificilmente perceptível ao
primeiro olhar, um jogo de digressões, alusões, deslocamentos de
sentidos, que arruína nossa certeza primeira.
* Lefort mantém os títulos das duas principais obras políticas de Maquiavel — a saber, O
príncipe e os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio — em italiano, grafando-as,
então, Principe e Discorsi. Optamos por respeitar sua decisão. [N. T.]
* As citações das obras de Maquiavel foram traduzidas diretamente por nós. [N. E.]
Parte 2
O nome e a representação de
Maquiavel
A fortuna de Maquiavel excitou muito cedo a curiosidade da crítica
e uma importante literatura lhe foi consagrada. Extraímos o
essencial de nossa informação das obras mencionadas abaixo. Sua
listagem não pretende de modo algum constituir a bibliografia
exaustiva da questão. Além disso, algumas outras obras serão
citadas no curso de nossas análises, em pontos particulares.
Estudos de conjunto
Ou ainda:
Ou ainda:
Interpretações exemplares
1.
A doutrina do maquiavelismo: Uma interpretação de Jean-
Félix Nourrisson[164]
que apenas se esboçavam nos fatos. Por mais moderna que fosse a
obra política de um Frederico II, por exemplo, ela era impotente
para se refletir na teoria.[239] Maquiavel é “o primeiro pensador
que teve uma representação completa do que significava o Estado”.
Nesse sentido: “Ele antecipou pelo pensamento o curso inteiro da
futura vida política da Europa”.[240]
Não podemos, então, separar o aspecto político e o aspecto
filosófico de sua empreitada. Ele não se contentou em descrever
fatos com maior ou menor exatidão e traduzir em uma linguagem
positiva aquilo que a ideologia tradicional furtava ao conhecimento
dos homens. Ele vinculou a um princípio de explicação novo uma
experiência confusa cuja síntese implicava uma revolução do
espírito. Certamente, nos diz Cassirer, “Maquiavel não era um
filósofo no sentido clássico e medieval do termo. Ele não possuía
um sistema especulativo nem mesmo um sistema político”; mas,
acrescenta ele imediatamente:
Seu livro exerceu no entanto uma influência indireta, muito
poderosa, sobre o desenvolvimento do pensamento filosófico
moderno. Pois ele foi o primeiro que, de uma maneira
deliberada e incontestável, rompeu com toda a tradição
escolástica. Ele destruiu a pedra angular dessa tradição: o
sistema hierárquico.[241]
* Lefort traduz o termo alemão Dämonie pelo termo francês pouco utilizado démonie. Para
o português, optamos por demoníaco, mas sua tradução poderia igualmente ser força
demoníaca. Importante observar ainda que Ritter se serve do termo Macht, geralmente
traduzido como poder. Lefort prefere puissance e aqui o seguimos, optando pelo termo
potência. [N. T.]
6.
A visão moral do mundo e a ideia da necessidade: Uma
interpretação de Leonhard von Muralt [270]
Ora, não é por acaso que o autor deixa de dizer que todos os meios
são bons, ele não dissimula que alguns são intrinsecamente maus,
mas sustenta somente que o fim é bom qualquer que seja o
caminho que até ele conduza.[278]
As citações de Maquiavel, como dissemos, são utilizadas como
provas. Ora, basta se deixar guiar por Von Muralt pelos textos para
que ele chame nossa atenção para medir a arbitrariedade de seu
comentário. De fato, a distinção que ele estabelece entre o
domínio da necessidade e o da moralidade é tão clara que não
compreendemos por que Maquiavel não a enuncia nos termos que
utiliza seu intérprete, ou, se preferirmos, por que este se encontra
coagido a traduzir Maquiavel em uma linguagem nova. Von
Muralt, se falasse em seu próprio nome da política de Agátocles,
deixaria de dizer, parece, que ele fez bom uso da crueldade e, mais
ainda, de acrescentar: “Se do mal é permitido falar bem”, pois que
ele sustenta de sua parte que o mal é o mal e o bem é o bem, e que
a necessidade se estabelece em um nível em que não se coloca a
questão de sua diferença. Também não se arriscaria a interrogar
sobre a virtude do príncipe, pois que a seus olhos o príncipe deve
ser virtuoso e somente se dobrar às leis da ação política, cujos
efeitos não alteram em nada, não importa o que ele faça, o valor de
sua empreitada; pois que, de outra parte, a análise do
comportamento dos tiranos, que agem apenas a serviço de sua
ambição, não faz, segundo ele, vacilar a imagem do bom príncipe e
não tem outra função que colocar essas leis em evidência. De
maneira geral, os textos citados são preciosos para mostrar que
Maquiavel não renuncia a recorrer às noções morais, embora torne
seu uso desconcertante. Ora, a interpretação elimina o paradoxo e
a questão que ele engendra. Ela quer, por exemplo, persuadir de
que a análise da criação de um poder despótico não coloca em
causa os valores que comandam a ação de um homem privado. Mas
deixa de assinalar que, se a ninguém é imposta a obrigação de se
engajar na aventura política, menos ainda naquela do despotismo,
há contudo uma escolha que se opera nos limites dessa aventura e
no quadro mesmo da empreitada de que Filipe da Macedônia foi o
agente. Por que Maquiavel associa o exemplo de Filipe àquele de
Davi no mesmo fragmento? Por que ele conclui que os homens
não sabem ser totalmente bons nem totalmente maus — o que não
é simplesmente dizer que eles ignoram a necessidade? Há aí um
pequeno enigma dissimulado. E existe outro, seguramente, a
observar que logo depois de ter colocado a salvação do Estado e da
liberdade acima de toda consideração moral, Maquiavel evoca os
costumes dos franceses e fala somente da salvação e da glória do
rei.
E quanto ao sentido das declarações exploradas por Von
Muralt? Não convém no momento se preocupar com isso, pois
seria cair na armadilha, que nós denunciamos, de opor um
comentário a um comentário, permanecendo nas fronteiras da
citação: admitir que a frase cai do céu, que ela não tem relação com
as frases ditas por outros, sem destinatário, e ao mesmo tempo
sem passado e sem futuro no interior do discurso. Somente nos
importa a observação de que o Maquiavel ao qual o intérprete dá a
palavra não emprega a linguagem na qual ele o traduz. Não
poderíamos, é verdade, concluir que ele se engana absolutamente.
Talvez a teoria da necessidade seja aquela que Maquiavel buscava e
que não soube enunciar, de tal modo que o engano de seu
comentador seria somente subestimar o papel desempenhado por
ele na elaboração dessa teoria. Entretanto, se nós a consideramos
agora em si mesma, sem nos preocuparmos em confrontá-la com o
discurso maquiaveliano, é preciso reconhecer que ela repousa
sobre uma dupla ilusão: a de que haja uma objetivação dos fatos
políticos do mesmo tipo que a objetivação dos fatos físicos ou
biológicos; e a de que essa objetivação implica o conhecimento das
condições da liberdade humana. Em sua essência, a tese de Von
Muralt se reduz a uma concepção do determinismo científico que
garantiria o estatuto do sujeito à distância dos fenômenos. Ora,
importa de início observar que o conceito de determinismo é
privado de pertinência se os termos da determinação não são
fixados segundo um procedimento que assegura o sujeito da
identidade deles e da reprodutibilidade de suas operações. E ainda
não basta dizer que o sujeito conquista assim a segurança de sua
posição; antes, ele se constitui como sujeito de conhecimento,
legitimamente, como sujeito universal, em virtude da construção
de um aparelho de símbolos que se desfaz da linguagem tecida na
experiência sensível. Pela leitura de Von Muralt devemos constatar
que os termos da linguagem política — com a carga da
interpretação que ele lhes dá, enquanto membro de uma sociedade
política e, de modo geral, pelos significados que os homens neles
investiram na experiência passada e presente de suas relações
políticas — não são reduzidos à função de símbolos unívocos e
manipuláveis pelo sujeito da ciência. Estado, poder, república,
monarquia, tirania, liberdade, segurança, glória, ambição, outros
tantos conceitos cuja lista poderíamos facilmente estender,
supõem, se quisermos defini-los, o desdobramento de um discurso
e, mais ainda, o rastro nesse discurso de discursos antagonistas.
Essa observação por si só autoriza a afirmar que a tese do
determinismo político é de caráter ideológico, pois que ela reveste
de todos os traços do universal uma ordem de relações à qual
apenas temos acesso em razão de nossa participação em uma
experiência e uma linguagem particulares. Mas, além disso, se
negligenciássemos essa primeira crítica, como não perceber que o
intérprete desnatura o argumento kantiano sugerindo que pode
haver ao mesmo tempo conhecimento da necessidade e
conhecimento de seu limite? Com efeito, somente existe
conhecimento do condicionado, pela operação do entendimento
que constrói o objeto real no assujeitamento às condições do
espaço e do tempo. A ciência da política, supondo que ela exista,
tem a ver somente com fenômenos. E que ela implique a
elaboração de hipóteses nas quais se encontra incluso o desejo do
príncipe em nada muda seu estatuto: o desejo do príncipe é ele
próprio construído como todo fenômeno pelo Sujeito do
conhecimento, colocado sob a coerção das condições gerais de
toda experiência. Em outros termos, ele está inscrito no registro
do empírico e se encontra capturado em uma rede de relações
espaçotemporais como qualquer fenômeno; de tal modo que não
poderíamos tirar da ciência a ideia de que o príncipe deve observar
as regras do encadeamento das operações políticas (supostamente
requeridas para a conquista do poder ou sua conservação) para
cumprir sua tarefa moral. É impossível conjugar a virtude do
príncipe, que é o efeito de um imperativo categórico, com a força,
a astúcia, a prudência que são ditadas pelos imperativos
hipotéticos, por exemplo aqueles da segurança dos dirigentes ou
da cidade, da concórdia civil ou da expansão do Estado, pois o
imperativo é categórico na medida em que transcende a cadeia das
condições. Sustentar, como faz Von Muralt comentando
Maquiavel, que a necessidade se manifesta no próprio exercício da
ação moral, pois o príncipe não pode produzir sempre suas
qualidades, ou que haveria perigo para ele em possuí-las todas, é,
contra a tese fundamental, situar no mesmo plano as duas
modalidades de ação. Contradição que não deve nos espantar, pois,
uma vez que ocupou a posição de Sujeito da ciência para decifrar a
necessidade, o autor não pode daí se retirar, devendo então seguir
até o ponto de dizer: a virtude não é sempre necessária, ou seja, de
colocar a virtude no grupo dos fenômenos cujas condições de
aparição são, como aquelas de qualquer fenômeno, estritamente
determinadas. Conclusão dissimulada porque o corolário — a
virtude é às vezes necessária — é silenciado. Mas não importa o
artifício, o argumento implica que a virtude apareça como um feixe
de comportamentos submetido às leis que regem todos os
comportamentos empíricos. Da mesma forma, não importa que se
distinga a necessidade em si da necessidade que permanece
suspensa pela ação do Sujeito, pois o Sujeito não é, como quer
fazer crer Von Muralt, o sujeito prático: é o Sujeito de
conhecimento. Graças a sua operação há hipótese e encadeamento
inteligível de relações e tudo o que aparece se ordena ao registro
da necessidade.
Fracassa a tentativa de extrair da obra de Maquiavel textos que
provem sua intenção de circunscrever uma esfera da necessidade.
A tentativa de estabelecer a legitimidade dessa intenção também
não resiste ao exame dos argumentos que a fundam. Mas não é
tanto esse fracasso que convém perscrutar quanto a dupla relação
instituída, de uma parte, entre Von Muralt e Maquiavel e, de outra,
entre o teórico e a política. Pois essa relação é tal que implica o
apagamento da questão do ser ou — aquilo que o assinala — do
advento a si da sociedade política e da obra do pensamento. Esse
apagamento é a condição de uma objetivação que dissimula a
relação que o intérprete-historiador mantém com aquilo de que ele
fala. E a operação requer nos dois casos um recorte e uma
remontagem; o primeiro, de citações, a segunda, de situações,
destinadas a produzir uma ordem dos pensamentos e uma ordem das
coisas; de forma que, nos dois casos, essa ordem supostamente
sustenta o enunciado de uma tese fundamental, quer dizer, há uma
hierarquia das significações sob a instância da Ideia na obra e sob
aquela do Estado de direito na sociedade. Observação que
desconheceríamos se acreditássemos que nos dois casos se trata da
mesma instância dominante. A despeito da aparência, pois, o
importante não é que a tese fundamental seja aquela do rechte Staat
e que o fundamental da política se inscreva no rechte Staat; o que
conta é que os artifícios que sustentam a construção da obra e da
política permitam reportar a um centro os elementos, triados e
ordenados de maneira a apagar todo traço de contradição e fazer
coincidir, legitimamente, saber e poder.
Para melhor apreciar o que está em jogo, devemos agora tomar
em consideração o segundo elo da interpretação de Von Muralt,
em que nos é apresentada a concepção moral da política.
Ora, ele aparece quando esta requer a introdução de uma nova
divisão cuja função é ainda a de esconjurar a ameaça que faz pesar
sobre o destino da teoria a acusação de maquiavelismo. Divisão,
então, que substitui aquela entre necessidade e moralidade e
mostra que a hierarquização das significações prossegue assim no
interior do universo da moralidade. Com efeito, o autor julga que a
inspiração ética se manifesta, em primeiro lugar, na busca pelo
estabelecimento de um poder estável. Reclamando um argumento,
a bem da verdade muito conhecido — a saber, que governar é
arrancar os homens da desordem da luta de todos contra todos,
que se engendra da concorrência cega dos apetites, elevá-los à
consciência de suas obrigações recíprocas e ensiná-los assim a
subordinar seus fins particulares aos da comunidade de que fazem
parte —, ele sustenta que, quando Maquiavel estuda os problemas
relativos à fundação e à conservação do poder do Estado, seguindo
um método que parece totalmente positivo, sua obra serve já para a
defesa dos valores que são investidos na ordem política.[279] A
intenção permanece somente implícita — e não poderia ser
diferente, pois que, em tal perspectiva, a distinção entre a boa e a
má autoridade, entre o bom e o mau regime, não tem maior
importância. Mas disso não poderíamos duvidar, ao descobrir que
esta é, em outro nível da argumentação, o objeto explícito da
reflexão. O cuidado de uma definição da boa autoridade e do bom
regime nos assegura de que a análise das formas inferiores da vida
política já se encontra comandada pelo cuidado de estabelecer,
com os fundamentos da autoridade e do Estado como tais, aqueles
de uma existência propriamente humana. Em outros termos,
segundo nosso intérprete, o pensamento maquiaveliano obedece,
de uma ponta a outra, à mesma exigência, mas ele se encontra
constrangido a se inserir em dois registros diferentes porque seu
objeto oferece uma dupla face: o Estado é em si mesmo valor,
através dele se realiza a sobrepujança da humanidade natural, de tal
modo que mesmo onde sua organização é a pior ela encarna a
moralidade, se, em sua ausência, se produzisse somente a
desordem; e de outra parte o Estado é portador de valores, sua
instauração comanda um acesso à busca do bem — cuja religião,
educação moral e busca da liberdade e da igualdade no espaço da
política balizam o percurso, de tal modo que há diferenças de grau
na virtude dos regimes — e um Estado de direito, no qual se
inscreve a vocação da humanidade a se reconhecer em sua plena
realização fora do mundo da natureza.
Segundo Von Muralt, da mesma forma que os intérpretes
cometem o erro de julgar em termos morais declarações cuja única
função é ensinar a necessidade que governa a ação política, eles se
enganam ao querer imputar a um nível de exigência moral o que
concerne a outro. É ininteligível a seus olhos que o teórico possa
ao mesmo tempo erigir em norma as instituições de uma república
democrática e estudar os meios de que dispõe o tirano para afirmar
seu poder. Consequentemente, ou eles denunciam a contradição
ou retêm a tese do maquiavelismo e a estendem ao modo de
expressão do escritor. O esquema muraltiano da refutação se vê,
então, repetido em um primeiro momento. Nosso autor se aplica,
com efeito, a demonstrar, com a ajuda de citações ad hoc, que os
argumentos geralmente invocados para colocar nos mais estreitos
limites a ética maquiaveliana do Estado não fecham de forma
alguma o acesso a uma visão moral do mundo. Mas, de novo, é
preciso reconhecer a arbitrariedade de seu comentário ao segui-lo
em seu próprio terreno. Ele quer reinterpretar os textos que se
referem à maldade natural do homem para nos persuadir de que o
pessimismo maquiaveliano não exclui a busca do bem em política;
de fato, ele prova somente uma coisa: que esse pessimismo não é
dogmático, senão ele tornaria ininteligível toda vontade de
reforma. Mas há uma distância entre a afirmação de que a hipótese
da maldade está a serviço de uma teoria da Lei e aquela de que o
mal possa ser desenraizado e o bom regime assegura uma
metamorfose do homem, distância que nenhuma citação autoriza a
ultrapassar. Ao contestar que o conceito de virtù — na acepção de
força de alma e de coragem física — forneça a chave da moral
maquiaveliana, para sustentar que ele se esclarece nos Discorsi a
partir de sua conjunção com aquele de bontà,[280] ele atrai
justamente a atenção para as qualidades que o escritor reconhece
no povo. Mas ele nos deixa na ignorância acerca do papel que este
último desempenha — a massa dos governados — no campo da
política e, logo, acerca da significação da bontà em seu
comportamento. Afirmando que em um fragmento dessa obra
virtù e bontà estão colados e que o segundo termo dá a plena
significação ao primeiro, ele incita ainda a observar que em uma
passagem vizinha Maquiavel fala pejorativamente da bontà do
gonfaloneiro Soderini, cuja credulidade e paciência provocaram a
queda da República florentina. Sem dúvida, devemos reconhecer
que o autor do Principe que examina as chances de instauração de
uma tirania condena César sem reserva nos Discorsi. Essa
condenação efetivamente coloca uma questão; mas é tão vão
extrair o julgamento sobre César quanto aquele sobre Bórgia,
sobre Agátocles da Sicília ou sobre Severo para encontrar o sentido
verdadeiro da teoria, na ausência de um conhecimento do
argumento de onde ele vem. Sustentar que o modelo do bom
regime implica a condenação de César é pouco convincente na
medida em que, atendo-se aos termos da problemática do
intérprete, essa dedução não é necessária, pois que César
estabelece seu poder em uma sociedade corrompida, ameaçada de
desmembramento pela luta das facções e incapaz de respeitar as
exigências do bom regime. Entretanto, de todas as provas
apresentadas, a mais espantosa é aquela que toca o sentimento
religioso de Maquiavel e pretende, assim, inverter a imagem
comumente disseminada. Não contente em observar que os
Discorsi concedem um lugar importante à religião e recomendam
aos governantes cuidar para que esta seja praticada e respeitada,
Von Muralt não hesita em afirmar que ela não é reduzida a sua
função política e que a crítica da Igreja romana deixa intacta a fé no
cristianismo.[281] Ora, a citação que ele apresenta fornece o
exemplo mais eloquente de seu método. Invocando o julgamento a
respeito de são Domingos e são Francisco, ele se encanta que
Maquiavel escreva: “As novas ordens que eles estabeleceram foram
tão poderosas que eles impediram que a religião fosse perdida pela
licença dos bispos e dos chefes da Igreja”. Mas, prossegue o
escritor:
À leitura do Principe
1.
Primeiros sinais [358] *
tanto dos novos como dos antigos e dos mistos, são boas leis e
boas armas. E como não é possível ter boas leis ali onde as
armas não valem nada e se as armas são boas, é igualmente
razoável que as leis sejam boas, deixarei de refletir sobre as leis
[io lascerò indietro el ragionare delle legge] e tratarei das armas.
Sua resposta lança, com efeito, uma luz inteiramente nova sobre a
discussão precedente: “Creio que isso resulte da crueldade bem ou
mal empregada. Pode-se chamar boa a crueldade (se é legítimo
falar bem do mal — se del male è licito dire bene) perpetrada uma só
vez, por necessidade de segurança, e que depois não persiste, mas
rende o máximo possível de utilidade para os súditos”.
Palavras tanto mais chocantes porque Maquiavel, ao se referir
aos expedientes do braço direito de Bórgia — o qual não recuou
diante de nenhum meio, nem sequer diante do assassinato de seu
tio e protetor, para se apoderar do poder —, irá tocar o fundo da
vilania em política. Através desse exemplo deixa-se apreender o
que ele havia denominado “brutal crueldade e desumanidade”, a
ponto de parecer subitamente impróprio interrogar-se sobre a
virtù de Agátocles. Agora, a distância que separa seus
empreendimentos se desvela sem qualquer transição; um se
desenvolve inteiramente sob o signo da violência, o outro se
mostra capaz de se modificar em função dos imperativos criados
pela coexistência do príncipe com seus súditos. Sem dúvida,
Maquiavel se abstém de compará-los: deixa ao leitor o encargo de
fazê-lo — não sem lhe facilitar a tarefa, uma vez que, silenciando
acerca do fim de Agátocles, recorda, em compensação, que um ano
após ter se apoderado de Fermo, Oliverotto deixa-se apanhar na
cilada de Sinigália (por ingenuidade, como nos ensina no capítulo
anterior), encontrando uma morte indigna de um grande político e
grande capitão.
Mas, no momento em que o leitor acredita compreender por
que e como um príncipe consegue conservar o poder obtido por
extrema violência, em suma, quando o leitor supõe ter finalmente
penetrado no coração do tema, é preciso convir que sua imagem da
ação política está estranhamente confusa. Em vão louvaríamos
aquele que — como Agátocles — põe fim ao terror e decide agir
no interesse de seus súditos. A insistência com a qual o autor falou
de sua crueldade (o próprio uso desse termo que, observemos,
teria sido fácil substituir por um vocábulo mais neutro) e a
evocação do parricídio de seu discípulo impedem de esquecer ou
apenas de minimizar a vilania, ou mesmo pensar que esta pôde
ceder alguma vez diante das exigências do bom governo. Mas em
vão, igualmente, pretenderíamos nos ater a uma condenação sem
reservas, uma vez que esta envolveria no mesmo opróbrio o
exercício contínuo da violência e sua metamorfose em política,
uma vez que, enfim, sob o pretexto da intransigência moral,
deixaria escapar o sentido de uma conversão que, é preciso
reconhecer, é essencial, em relação aos seus efeitos. Maquiavel não
autoriza pensar que o bem desfaz o mal, nem o inverso; em relação
ao mal, obriga a manter os olhos abertos no mesmo momento em
que o denomina bem, nos deixando desse modo numa incerteza
resumida na sua feliz fórmula: se del male è licito dire bene.
Não nos livraremos dessa incerteza recusando a hipótese, isto é,
condenando o mal à sua origem para não ter de julgar as suas
consequências, pois não se trata tanto de apreciar a conduta de um
homem quanto de buscar o sentido de uma situação de que apenas
conseguimos nos esquivar ao deixar fora de nossa apreensão uma
parte da experiência. De resto, a dificuldade em que nos
encontramos de raciocinar no quadro da moral ordinária não está
ligada somente à análise de um caso particular. Se este último nos
faz passar da imagem do mal à de certo bem, o exame da fundação
gloriosa havia nos confrontado com a imagem do bem apenas para
nos preparar para acolher aquela de certo mal. Estamos ainda
menos dispostos a esquecer isso porque a ironia maquiaveliana não
perde uma ocasião para sublinhar a passagem de uma perspectiva a
outra: após haver descoberto que os heróis da Antiguidade —
entre eles, Moisés — não se fiavam nem nos homens nem na
Providência, descobrimos agora que os príncipes criminosos
“podem com a ajuda de Deus e dos homens [con Dio e con li
uomini] encontrar algum remédio favorável…”.
Enfim, dado que todo critério moral foi rechaçado, nada se
ganharia ao supor que a superação da violência é mero efeito da
necessidade, que as mesmas razões explicam a política criminosa
de Agátocles, no seu início, e seus esforços posteriores para dar
satisfação ao povo, pois o uso inteiramente oposto que Maquiavel
faz do termo necessità até o fim do capítulo 8 é tão deliberadamente
restritivo que impede de situá-los sobre um mesmo plano. Uma
primeira vez, o autor fala de crueldades impostas ao príncipe “pela
necessidade de sua segurança” ( per la necessità delle assicurarsi),
marcando seu limite; uma segunda vez, nota que o príncipe que
toma o poder “deve cogitar em todas as crueldades que lhe são
necessárias fazer [quelle offese che gli è necessario fare] de um golpe
só para não ter de renová-las todos os dias e, não as repetindo,
tranquilizar os homens e conquistá-los através de benefícios”; uma
terceira vez, esclarece que aquele que agir de outro modo “será
obrigado a permanecer sempre de arma em punho [è sempre
necessitato tenere il coltello in mano] e não poderá jamais se fundar
sobre seus súditos”. Isto equivale a sugerir que o imperativo de
segurança e o imperativo de governo não são da mesma natureza,
ou melhor: que saber responder ao segundo é se libertar do
primeiro.
Quando busca um fundamento em seus súditos, o príncipe sem
dúvida obedece ainda à necessidade de se conservar, mas esse
empreendimento dá à política uma dimensão imprevista. À luta
direta em vista da dominação sucede uma luta indireta, que
implica o reconhecimento de si pelo outro; ao poder da morte do
qual se deduz a ação sucede o da vida, que determina consentir no
intercâmbio. Assim, após haver observado que o príncipe deve
fazer o mal de uma só vez para “assegurar-se” (assicurarsi),
Maquiavel acrescenta que deve assegurar os homens (assicurare gli
uomini) e conquistá-los pelos benefícios, depois conclui que na
falta dessa política estes não poderão “se assegurar dele” (assicurare
di lui). Nessa inversão da dependência institui-se um sentido novo
da ação. Ora, o autor nos desencoraja de buscar uma interpretação
moral dela, uma vez que, no momento em que essa passagem é
indicada, usa uma linguagem deliberadamente cínica, declarando:
“É preciso fazer o mal de uma só vez a fim de que, sentindo menos
tempo seu gosto, ele pareça menos amargo, e o bem, pouco a
pouco, para que seja mais bem saboreado”. A verdade é que a
necessidade se quebra antes de se restabelecer sobre outro
registro, no ponto em que se desdobra a imagem que o príncipe dá
de si mesmo para que apareça aquela que lhe devolvem seus
súditos. De modo que podemos dizer igualmente que sua conduta
obedece, do começo ao fim, à mesma determinação, como o deixa
entender, no início, a conclusão do capítulo, “um príncipe deve
em todas as coisas viver com seus súditos de tal maneira que
nenhum acidente bom ou mau precise fazê-lo mudar”, e que seu
mérito consiste em saber romper essa determinação no momento
exato para tomar a cargo a representação do outro, como o ensina a
sequência imediata do texto: “pois as necessidades sobrevindo em
tempos adversos, não terás tempo para o mal, e se tu fizeres o
bem, não te trará proveito porque se julgará que o fizeste forçado
[perché è judicato forzato], e não se concederá a ti reconhecimento
algum”.
Esta última ambiguidade soma-se, pois, àquela com que
tínhamos inicialmente sido confrontados: da liberdade se passa à
necessidade como, num momento anterior, do bem se passava ao
mal.
Ora, ao mesmo tempo, é preciso convir que a questão levantada
a propósito da virtù de Agátocles — questão que, não nos passou
despercebido, dizia respeito menos à pessoa do tirano de Siracusa
do que ao estatuto da ação política — permanece em suspenso. De
fato, se num momento temos boas razões para duvidar da validade
da introdução da oposição entre a virtù do homem excelente e a do
excelente capitão, estamos agora desconcertados em ter de
constatar que o termo desapareceu do discurso desde que se
esclareceu o que dá valor ao comportamento político de Agátocles.
Talvez devamos pensar que pergunta e resposta foram separadas de
maneira que esta fosse entendida unicamente por aqueles que
possam acolhê-la. Talvez, em vez disso, o risco de equívoco teria
sido maior se o autor tivesse audaciosamente denominado virtù a
decisão de Agátocles de converter a crueldade em ação a serviço
dos súditos. Talvez, porém, também suas reservas tenham outro
motivo. Quando escrevia: não se pode chamar virtù assassinar seus
concidadãos, trair seus amigos, não ter fé, piedade nem religião,
pois esses meios permitem adquirir o poder mas não a glória,
fornecia, com efeito, uma indicação que então não tivemos em
conta, mas que estamos agora em melhores condições de
compreender. Ao revelar que não há virtù sem glória, já dava a
entender que não se pode definir a ação política sem se considerar
ao mesmo tempo a representação que os homens fazem dela. Ele
não dizia, aliás, que a virtù é incompatível com o crime, a mentira
e a falta de religião, mas negava — o que é diferente — que se
poderia atribuir tal nome a esses meios de conquistar o poder. E,
sem dúvida, se revelou, de outro lado, que Agátocles havia feito
mais do que simplesmente se apropriar do imperio, uma vez que
ele rechaçou a invasão cartaginesa, levou a guerra à África e se uniu
aos seus súditos, de maneira que não podemos duvidar de que
conquistou certa glória… Todavia, esta não apaga a marca de
origem de seu poder nem seus primeiros crimes, que sabemos se
assemelharem aos perpetrados pelos mais nobres políticos, mas
apaga o fato de que foram cometidos sem justificativa, ou sem
disfarce, por um homem que nada, senão sua ambição, destinava a
reinar. Se não pode aspirar à glória dos homens excelentes, nem
mesmo à de Bórgia, isso não se deve ao fato de sua ascensão ao
poder ter sido aos olhos de seus súditos, e seguir sendo na
memória da posteridade, a de um homem — Maquiavel tomou o
cuidado de precisá-lo — de infima e abjetta fortuna, simples filho de
um oleiro (nato d'uno figulo)?
Julgando assim, compreendemos melhor por que o autor se
esforça ao mesmo tempo para aproximar Agátocles dos príncipes
ilustres que havia dado como modelo e para afastá-lo deles, para
desfazer a diferença que esperávamos ver enunciada e para romper
a identidade com a qual estávamos dispostos, na sequência, a dar-
nos por satisfeitos. Mas a ideia nos deixa ainda insatisfeitos. De
uma maneira ou de outra, somos levados a situar a ação do príncipe
no meio social no qual adquire seu significado específico; mas até
agora Maquiavel nos falou desse meio apenas em termos vagos.
Que o príncipe depende de seus súditos, que sua conduta se
determina somente em vista de uma opinião, são verdades que
vêm sobrepor-se àquelas a princípio enunciadas — que deve
depender apenas de si e contar unicamente com a força —, sem
que se possa, todavia, compreender como se articulam entre si.
Ora, a análise de súbito ganha contornos mais nítidos e abrange a
relação política e a relação social quando surge uma nova hipótese
— a última, acreditamos —, consagrada ao principado civil.
Logo que circunscreve o caso que irá examinar, o da tomada do
poder por um homem elevado pelo apoio de seus concidadãos, e
observa que ela se realiza pela instigação do povo ou dos Grandes,
o autor declara: “Pois em toda cidade se encontram estes dois
humores diferentes, cuja origem está no fato de o povo desejar não
ser comandado nem oprimido pelos Grandes e os Grandes
desejarem comandar e oprimir o povo: desses dois apetites
diferentes nasce nas cidades um destes três efeitos: ou principado,
ou liberdade ou licença”.
Assim, estamos diante de um julgamento de alcance universal
que resume o ensinamento prudentemente insinuado nos
capítulos precedentes, ao mesmo tempo que ele o completa. Ao
limitar a diversidade das formas de governo a três regimes,
Maquiavel abandona espetacularmente as classificações
tradicionais nas quais se encontravam opostos regimes legítimos e
ilegítimos, regimes sãos e corrompidos. Sugere que, aos olhos do
observador, conta apenas a maneira como se resolve a luta de
classes; ou esta engendra um poder que se eleva acima da
Sociedade e a subordina inteiramente à sua autoridade — é o
principado —, ou ela se regula de tal maneira que ninguém está
submetido a ninguém (ao menos de direito) — é a liberdade —, ou
ela é impotente para se reabsorver no seio de uma ordem estável
— é a licença. Nessa perspectiva, não importa, particularmente,
distinguir o tirano do príncipe. Mas, se é permitido confundi-los,
isso não se deve mais unicamente, como poderíamos supor, ao fato
de terem de responder ao mesmo problema de governo; a razão
mais profunda está em que as mesmas causas explicam seu
advento, em que a monarquia é sempre um resultado da divisão
civil. Doravante, as condições de fato nas quais um homem alcança
a tirania permitem apreender o princípio da gênese de todo
principado. Porém, ao mesmo tempo se esclarece a questão dos
fundamentos do poder principesco. Até agora, Maquiavel falava de
maneira muito geral das relações do príncipe com seus súditos;
nos capítulos 3 e 6, fazia alusão às divisões que a criação das ordini
nuovi suscita, mas sem precisar sua natureza; no capítulo 8, havia
notado apenas de passagem que Agátocles tinha determinado a
morte dos senadores e dos cidadãos mais ricos; agora se revela que
o conceito de “povo” recobre uma oposição. Ou, para dizê-lo de
modo diferente, que no interior do povo, comunidade visível cuja
identidade qual é conferida pelo Estado, descobre-se a massa dos
sem poder — “povo” no sentido preciso que o subtrai da unidade
fictícia que a linguagem política lhe impõe. É preciso falar então de
uma oposição constitutiva do político e irredutível à primeira vista,
não de uma distinção de fato, pois aquilo que faz com que os
grandes sejam os Grandes e que o povo seja o povo não é que
tenham, por sua fortuna, seus costumes ou sua função, um
estatuto distinto associado a interesses específicos e divergentes;
é, Maquiavel diz sem rodeios, porque uns desejam comandar e
oprimir e os outros, fugir ao comando e à opressão. Sua existência
se determina apenas nessa relação essencial, no choque de dois
“apetites” por princípio igualmente “insaciáveis”. Assim, na
origem do poder principesco e subjacente a esse, uma vez
estabelecido, encontra-se o conflito de classes. Ora, descobrir isso
é preparar-se para ver com novos olhos que o príncipe deve buscar
um fundamento em seus súditos, pois o solo no qual se enraíza sua
autoridade mostra-se doravante ligado ao terreno movediço que
compõe para ele o fluxo desses dois desejos que não podem jamais
ser totalmente extintos um pelo outro. É por essa razão que
Maquiavel, enquanto invocava o exemplo dos fundadores, havia de
início afirmado que o príncipe não pode contar com ninguém: não
somente não pode encontrar nos homens tomados em seu
conjunto um apoio estável, uma vez que sua comunidade se
assenta sobre um dilaceramento, mas não pode sequer repousar
sobre uma parte deles, uma vez que uma classe existe apenas pela
falta que a constitui em face da outra. A busca necessária de um
ponto de apoio passa pela experiência do vazio que nenhuma
política jamais preenche, pelo reconhecimento da impossibilidade
na qual se encontra o Estado de reduzir a Sociedade à unidade.
Contudo, admitir que o ponto de apoio é sempre indireto é
compreender também a natureza do vínculo político que convém
estabelecer. Quando se vê surgir como um terceiro do coração da
luta civil, pela incitação de um protagonista ou outro, o príncipe
toma consciência do que lhe prescreve sua função e da necessidade
de escolher, entre os dois partidos, o do povo. A oposição entre os
Grandes e a massa implica, com efeito, uma desigualdade: lá está o
desejo de oprimir; aqui, o de não ser oprimido; uns apelam ao
príncipe para “poder à sua sombra satisfazer seu apetite” (sotto la
sua ombra sfogare il loro appetito); para os outros se trata de obter
uma proteção. Se decidisse apoiar-se sobre aqueles que
comandam, estaria exposto a ver sua autoridade impedida a todo
momento. Pois é só aparentemente que os Grandes o colocam no
poder: fazem-no apenas por temor do povo, para serem
confirmados em seu estatuto de opressores. Esse poder forte que
decidiram criar deve ser exercido apenas contra seu adversário;
eles mesmos jamais estão dispostos a obedecer; a seus olhos, o
príncipe não está acima das classes, não é um árbitro cujo
julgamento estaria subtraído à contestação; é seu igual, de maneira
que este não pode nem comandá-los, nem governá-los à sua
maneira. Desse modo, o vínculo do príncipe com os Grandes
converte-se necessariamente em relação pessoal, ainda que na
origem ele esteja colocado numa posição de independência. Ao
passo que, se ele se funda sobre o povo — seja por haver sido
levado por este ao poder, seja por haver sabido mudar de partido
oportunamente —, nenhuma resistência lhe será oposta, dado que
sua ação contra os Grandes responderá à expectativa que foi posta
em seu governo. A amizade do povo, escreve Maquiavel, é fácil de
conservar, este “não pede outra coisa, senão que não seja
oprimido”. É preciso entender: “não oprimido” pelos Grandes.
Seguramente, o príncipe oprime. Se essa verdade é deixada agora à
sombra, ao menos as análises anteriores não deixavam dúvidas a
esse respeito. Porém a violência de seu poder parece ser de
natureza diferente daquela dos Grandes, pois nestes o povo
encontra seu adversário natural, o Outro que o constitui como
objeto imediato de seu desejo. O príncipe está livre dessa relação
pela simples razão de não fazer parte dela e, em virtude de sua
presença, tira dos Grandes sua pretensão de serem os
dominadores. Essa libertação é sem dúvida medida de acordo com
a proteção material que seus súditos dele obtêm, uma vez que ela
substitui a opressão intolerável que reina no seio da Sociedade
Civil por um mal menor. Mas, se é percebida como tal, isso se
deve ao fato de que, em seu princípio, o poder que ele exerce
difere daquele da classe dominante. O povo pode se submeter à
sua autoridade, pois seu objetivo não é comandar, mas somente
não ser comandado. Recusa que funda o consentimento numa
nova autoridade, cujo primeiro efeito visível é subtrair o povo à
opressão permanente que o mantém prisioneiro.
Por um subterfúgio, que Hegel denominará mais tarde “astúcia
da razão”, o desejo do povo une-se ao do príncipe. Combatendo os
Grandes, o príncipe apenas obedece ao seu apetite de potência que
não admite ser contrariado pelo de seus iguais; conquistando o
favor popular, “ele se encontra só” — que é o seu objetivo —, mas
essa conduta supõe que se coloque um freio à violência e se
satisfaça a massa que busca segurança. Ao mesmo tempo, o povo
que crê encontrar nele um defensor na luta contra seu adversário
de classe põe-se sob a proteção de um novo senhor e dessa
maneira se entrega a uma submissão contra a qual resistia. Não
poder e poder absoluto se justapõem numa obscuridade que
convém não eliminar.
Numa palavra, Maquiavel mostra que essa astúcia escapa ao
povo: este, observa, tem visão menos clara e menos astuta do que
os Grandes. E essas palavras, além de nos relembrar a importância
da opinião, sugerem que haja muito ainda a dizer sobre a relação
do príncipe com sua imagem; mas é o suficiente, de momento,
para desfazer um mal-entendido. Se caíssemos na tentação de
definir o acordo estabelecido entre o príncipe e seus súditos nos
termos de um contrato — uma parte levando o benefício de sua
proteção enquanto, em troca, a outra se compromete a obedecer
—, a evocação da ingenuidade popular dissiparia nossa ilusão. Sem
dúvida, a massa encontra vantagem em servir um príncipe que
garanta sua segurança, mas, ao oferecer-lhe seu apoio, não sabe o
que faz. Enquanto luta para não ser oprimida, se prepara para a
opressão de um novo gênero; enquanto imagina o bem, ganha o
mal menor. Ainda que, talvez, nada de melhor possa suceder-lhe
do que se deixar enganar — conclusão incerta, uma vez que não
sabemos qual seria sua sorte numa república —, permanece que
ela não se liga por um pacto, mas antes cede a uma impulsividade
que bastaria controlar para que sua ligação com o príncipe fosse
imediatamente rompida. De resto, como seus interesses a
constituiriam uma parceira de um intercâmbio, visto que,
reduzindo-se em última análise à recusa da autoridade e da
opressão, eles não são suscetíveis de nenhuma definição em
termos positivos?
Maquiavel evita uma interpretação idealista devido à sua
insistência não somente em designar a luta de classes como
fenômeno universal e permanente, mas em desvelar a essência do
povo ao nível do desejo de classe de escapar ao desejo do Outro.
Enquanto o filósofo ou o historiador se limitam a descrever um
estado primeiro de insegurança no qual cada um é uma ameaça
para o outro, é possível imaginar um momento no qual a renúncia
dos particulares à potência, em favor de um deles, coincide com o
surgimento de uma ordem proveitosa a todos. Enquanto fala da
divisão civil como de uma situação de fato, sem definir o que a
provoca, com a simples ideia de que a desigualdade das condições
cria a oposição dos grupos antagonistas, permanece a possibilidade
de se ater a essa mesma imagem. Em compensação, esta não
resiste à descoberta de que um conflito irredutível dilacera a
Sociedade. Com efeito, pode-se muito bem julgar que este é capaz
de se modificar como resultado da intervenção do príncipe, mas,
por mais preciosa que seja a mudança introduzida, uma vez que
cria ou recria as condições de uma coexistência, esta não poderia
passar por uma solução.
Contudo, essa crítica implica outra. De fato, as mesmas razões
impedem de apresentar como um contrato a relação que o príncipe
estabelece com seus súditos e de retomar os termos da análise que
o autor havia esboçado inicialmente quando, associando o
problema da tomada do poder ao da conquista militar, havia
reduzido a lógica política à das relações de força. Essa perspectiva
certamente conserva uma verdade, como mostra a argumentação
desenvolvida em favor da tese de que o príncipe deve se fundar
sobre o povo: em primeiro lugar, a força popular é superior à dos
Grandes, uma vez que não se pode governar contra as massas, ao
passo que é possível conquistar as graças da minoria; em segundo
lugar, essa minoria tem mais audácia e deve ser temida sempre que
se volta contra o poder, enquanto a massa não poderia fazer nada
de pior do que abandoná-lo; enfim, é preciso sempre contar com
ela, uma vez que o príncipe precisa viver com o mesmo povo, ao
passo que pode destituir os Grandes que ocupam os altos cargos e
nomear outros. Porém, por mais importantes que sejam, esses
argumentos não tocam o essencial. Não basta que o príncipe deva
ter uma ideia precisa das forças que lhe possibilitam dominar, pois
jamais descobrirá, mantendo-se a essa distância dos fenômenos, o
sentido da oposição sobre a qual se assenta seu poder. Se considera
a Sociedade como um objeto, ignorará que as classes antagonistas
são de natureza diferente, que, incomparáveis nisso aos Estados,
cuja rivalidade implica que tenham a mesma identidade e os
mesmos objetivos — seja qual for, de outra parte, a desigualdade
de suas forças —, somente existem em seu enfrentamento em
torno desse desafio, que constitui para uns a opressão e para outros
a recusa da opressão. Essa verdade é palpável apenas àqueles que
percebem, mais além dos dados imediatos da conduta, os motivos
aos quais essa se liga, quem àqueles que decifram o desejo, o apetite,
a exigência — termos que Maquiavel utiliza sucessivamente —,
com os quais o grupo se postula como classe política. E, sem
dúvida, quando se dá esse passo na interpretação, abre-se
passagem para os julgamentos de valor. De fato, não é um acaso se
o autor observa neste lugar: “Além disso, não se pode satisfazer
honestamente aos Grandes sem fazer injustiça aos outros [non si
può con onestá satisfare a' grandi e senza injuria d'altri], mas ao povo
sim, porque o objetivo do povo é mais honesto do que o dos
Grandes”. Essa é uma maneira de mostrar que não podemos nos
ater à simples verificação dos fatos. No entanto, a apreciação moral
não é nem primeira nem decisiva. Interessa ao príncipe que o povo
seja mais honesto que os Grandes apenas porque ele pode extrair
disso um ensinamento político, o exercício do poder se fará mais
fácil se lhe for possível satisfazer, a um menor custo, as
necessidades de seus partidários, quer dizer, abster-se de violência
e reduzir assim os perigos aos quais está exposto. E, de outro lado,
estaria iludido quem quisesse se fiar diretamente nessa
honestidade, como o provam os exemplos antigos e modernos, o
dos Gracos em Roma e o de Giorgio Scali em Florença, que, por
terem se colocado como defensores das reivindicações populares,
acreditaram poder contar com o apoio da plebe no momento da
prova de forças e se viram abandonados por ela. O povo somente é
digno de confiança quando está submetido ao príncipe. Ele oferece
um apoio enganador ao homem a quem faltam a autoridade do
governante e a força das armas, ainda que o reformador dê
expressão ao seu desejo. Se há uma honestidade e uma fidelidade
populares, elas estão condicionadas à ação de um poder que
assegura seus súditos contra a opressão dos Grandes; só existem
quando o desejo de não ser oprimido, em si mesmo impotente
para apreender seu objeto, para se realizar na forma de um poder
que é ao mesmo tempo não poder, encontra sua medida ao chocar-
se contra o terceiro que o inscreve na realidade da ordem política.
Não é, pois, nem ao julgamento moral nem ao julgamento de
fato que podemos nos limitar. A verdade se dá mais além, pelo
desvelamento do ser do social, tal como aparece na divisão de
classes.
Quando Maquiavel se opõe aos detratores do povo, a essa
opinião comum, resumida no ditado “Quem se funda no povo, se
funda no lodo [chi fonda in sul populo fonda in sul fongo]”, ele
denuncia duas imagens igualmente falsas em política, uma da
potência, a outra da natureza humana. Com efeito, é cometer um
erro em relação à primeira pensar que o príncipe possa governar
contra seu povo confiando na força das armas ou na força de uma
minoria que o colocou no poder, e é se enganar em relação à
segunda perder a fé no apoio do povo sob o pretexto de que ele se
esquiva quando deveria agir. Tal é, sem dúvida, o sentimento
desses pseudossábios de Florença que foram já ridicularizados, os
quais “têm na boca da manhã à noite usufruir as vantagens do
tempo”. Se não são nomeados, ao menos não podemos deixar de
evocá-los, pois sabemos que o governo republicano sucumbiu sob
a ameaça dos Grandes por não haver conquistado um apoio
popular a tempo. E, com efeito, a impotência para fundar-se sobre
o futuro e para fundar-se sobre o povo, a ilusória confiança no
presente e nas vantagens adquiridas, têm uma só origem: quer-se
esquecer que os homens e as coisas são instáveis, que o tempo
tudo varre, que o desejo não dá trégua e que só existe segurança no
risco e pelo movimento que se concilia com a agitação do mundo.
A crítica do povo é ingênua porque lhe confere uma identidade
que ele não possui e é nebulosa porque serve de álibi à fraqueza do
príncipe. É verdade que as massas são mais honestas que os
Grandes, uma vez que querem unicamente escapar à opressão,
mas isso não significa que esse querer possa se converter em
poder. Se os homens que se põem à frente das massas para fazer
valer suas reivindicações falham nesse empreendimento talvez seja
porque as massas têm um saber obscuro do impossível. Mas se o
príncipe traz, não diremos uma solução, mas minimamente a
fórmula de uma ordem mais tolerável, elas estão prontas para se
aliar a este e são capazes então de constância. É preciso ainda,
precisamente, que o príncipe esteja decidido a impor essa ordem e
se assegure dos meios de agir para que o povo não duvide de sua
autoridade. Entre a confiança e a força há um intercâmbio. Uma se
revela ao contato da outra e esta se nutre daquela.
Compreende-se, pois, por que interessa tanto que o príncipe se
afirme como o único senhor. Se espera ser premido pelos
acontecimentos para tomar o poder de modo absoluto (la autorità
assoluta), não encontrará ninguém ao seu lado no momento
decisivo. Aqueles que têm o encargo de governar se voltarão
contra ele ou o abandonarão, e seus súditos, habituados a outra
autoridade, não estarão dispostos a lhe obedecer. “Com efeito, o
príncipe não pode fundar-se no que vê nos tempos de paz, quando
os cidadãos têm necessidade do Estado, porque então todos
correm ao seu encontro, todos prometem e todos querem morrer
por ele quando a morte está distante, mas em tempos adversos,
quando o Estado tem necessidade dos cidadãos, encontram-se
poucos.” Assim, os Estados estão em perigo quando precisam
passar subitamente de um modo de governo a outro (salire dallo
ordine civile allo assoluto). A conduta correta é evitar essas
dificuldades pela instituição, desde o início, de um poder pessoal,
de tal sorte que, colocado na submissão direta ao príncipe, o povo
experimente a solidez desse vínculo a todo momento.
Maquiavel já havia observado no correr do capítulo 6: “A
natureza dos povos é variável; e é fácil convencê-los de uma coisa,
mas difícil firmá-los naquela convicção. Por isso, é preciso dar uma
ordem tão boa que, quando não acreditarem mais, se possa fazê-los
crer pela força”. E no final do capítulo 8: “Acima de tudo, deve um
príncipe viver com seus súditos de forma que nenhum acidente,
mau ou bom, faça variar seu comportamento”. E conclui agora:
“Um príncipe sábio deve pensar num meio pelo qual seus súditos,
sempre e em todas as ocasiões, tenham necessidade do Estado e
dele, e eles sempre lhe serão fiéis”. Aparentemente, o ensinamento
permanece o mesmo: é preciso que o príncipe aja de tal modo que
seus súditos dependam dele e não tenham escolha, tanto na má
quanto na boa sorte. Mas o argumento foi singularmente
enriquecido; doravante, a obrigação está ligada à proteção, as
condições da segurança e da potência do príncipe são também
aquelas do funcionamento da sociedade política. O que havia de
brutal e excessivo na crítica de Savonarola é compensado por uma
crítica de sentido contrário: seu fracasso permanece simbólico,
pois é justamente esse homem que fez, em seu prejuízo, a
experiência da inconstância popular; como aquele dos Gracos, seu
exemplo ensina que, quando a morte está próxima, a massa foge.
Mas, simultaneamente, descobre-se que seus adversários não
estavam ainda à altura de sua tarefa, pois eles, que o
ridicularizavam por buscar um apoio no povo, caíram por sua vez
por haverem se afastado dele — duplamente falhos, uma vez que
não foram nem profetas nem armados e não ofereceram nada para
crer nem para temer. E se define repentinamente o alcance dessas
ordini nuovi das quais Maquiavel havia falado antes em termos
enigmáticos. Havíamos aprendido que sua criação expunha aos
maiores perigos, que ela se chocava com a hostilidade dos
partidários das ordini vecchi e encontraria apenas tímidos
defensores na pessoa daqueles que deveriam tirar proveito dela,
que, enfim, unicamente a força asseguraria o seu sucesso. Ora,
podemos pensar, com razão, que a audácia do fundador consiste
justamente no fato de ele subverter a hierarquia estabelecida,
arruinar o poder dos Grandes e, para edificar o seu, se voltar para o
povo. Sem dúvida, a coerção lhe é necessária para vencer a
“incredulidade” dos homens, para convencer aqueles que, tais
como os partidários dos Gracos ou de Savonarola, “não acreditam
nas coisas novas se não as veem já realizadas numa experiência
segura”, mas os princípios da política não se resumem aos da força.
Quando o autor escreve: um príncipe que, “por sua coragem e as
instituições que criou, dá coragem à massa [enga con lo animo e
ordini suoi animato lo universale], jamais será enganado por esta e
verá que lançou bons fundamentos [buoni fondamenti]”, mostra que
esses princípios comandam a aliança do príncipe e do povo.
A que essa aliança obriga? Essa é a pergunta que o leitor se
coloca. Maquiavel não a responde — ou, ao menos, não a responde
segundo nossas expectativas. Observa de passagem que o príncipe
tem muitas maneiras de conquistar a amizade de seu povo, mas
que não se pode dar uma regra geral delas, de modo que é melhor
não falar delas. Sabemos, porém, que esse silêncio é provisório.
Sem dúvida, ele julga que ainda não chegou o momento de dizer
mais. Seja como for, estamos já acostumados à sinuosidade do
discurso e começamos a perceber seu fundamento. Se é verdade
que nada faz sentido por si só, se este se estabelece na relação
entre uma tese e outra, ou, o que dá no mesmo, na distância
tomada simultaneamente em relação a uma e outra, se é preciso
colocar pontos de referência não para fechar as definições, mas
para avaliar as variações, o abandono da composição lógica não é
um defeito; a descontinuidade é, ao contrário, necessária. Os
pontos de ruptura determinam, tão categoricamente quanto as
coisas ditas, a verdade do discurso. Não é astúcia da linguagem
quando o escritor suprime o lugar em que estava para se situar em
outro. Ou, para dizê-lo melhor, a astúcia não vem dele; nasce da
linguagem, da necessidade de desfazer as representações fixas e
independentes para abrir passagem à palavra interrogativa.
são de tal maneira fortificadas que todos percebem que deve ser
algo bem longo e difícil assaltá-las, porque possuem fossos e
muros adequados, artilharia em grande quantidade e sempre
têm o que comer, beber e queimar nos depósitos públicos para
o prazo de um ano. Além disso, para poder alimentar a plebe
sem qualquer diminuição ou perda para o bem público, a
comunidade tem sempre trabalhos para lhes dar durante um
ano naquelas atividades que são o nervo e a vida da cidade e por
meio das quais a plebe subsiste. Enfim, mantêm em grande
honra os exercícios da guerra, havendo vários ordenamentos
sobre sua prática.
* Optamos aqui por traduzir attache por “ponto de apoio”, a exemplo do que fez o
tradutor da versão espanhola. As opções mais óbvias seriam “laço”, “vínculo” ou mesmo
“amarra”. Embora esses termos expressem melhor o uso mais corriqueiro do termo
francês, Lefort tem em mente o ponto de ancoragem do poder na sociedade, em vez de
sua natureza unificadora.[N. T.]
4.
Sobre o bem e o mal, o estável e o instável, o real e o
imaginário
Digo que seria bom ser tido por liberal. Não obstante, a
liberalidade, praticada de maneira que sejas tido por tal, te
ofende. Porque se a praticas virtuosamente, e como se deve
praticar, não te poupará da infâmia de seu contrário; assim, para
quem quiser manter entre os homens o nome de liberal, será
necessário não dispensar nenhuma espécie de suntuosidade; de
tal modo que um príncipe consumirá sempre em semelhantes
ações [opere] todas as suas disponibilidades [tutte le sue facultà]; e
será necessário, por fim, se quiser manter o nome de liberal,
onerar extraordinariamente seu povo, esmagá-lo com impostos
e fazer tudo o que for necessário para obter dinheiro. Isto
começará por torná-lo odioso diante dos seus súditos e,
tornando-os pobres, por fazê-lo malquisto por seus súditos.
E observa ainda:
Quanto a mim, não sei se, querendo defender uma causa que
todos os historiadores, como tenho dito, têm combatido,
conquistarei uma terra [provincia] selvagem e encontrarei nela
tantas dificuldades que terei de renunciar com honra ou
prosseguir penosamente. Mas, seja como for, da minha parte
não julgo nem julgarei jamais como um defeito oferecer as
razões para defender uma opinião [con le ragioni] sem querer
recorrer à autoridade ou à força.
* Corrigimos a informação, pois se trata do capítulo 32, e não do 31, como consta do
texto original. [N. T.]
4.
Sobre a guerra e a diferença dos tempos
Mas a coisa é tão evidente para todos os olhos que não hesitarei
em dizer com audácia o que penso daqueles tempos e destes, a
fim de estimular nos jovens que lerem meus escritos o desejo
de imitar a uns e de fugir do exemplo dos outros todas as vezes
em que o acaso lhes fornecer a ocasião [accioche gli animi de'
giovani che questi mia scritti leggeranno, possino fuggire questi e
prepararsi ad imitar quegli qualunque volta la fortuna ne dessi loro
occasione].
Não se diz nada de que naquela ocasião Ciro antes de mais nada
fingiu organizar uma caça para se aproximar do inimigo sem
levantar suspeitas. Ora, vale a pena observar que Ciro usava de
astúcia e que seu procedimento o fez similar a Epaminondas: não
recorreu à caça para ensinar aos seus a arte da guerra, ele se serviu
de um jogo para dissimular seus propósitos. Não devemos deixar
escapar esse detalhe, pois a autoridade de Xenofonte já foi
invocada no segundo livro, numa passagem que julgamos decisiva
para denunciar a política de engano praticada pelos romanos na
Itália. O fato de o elogio da caça ser emprestado a Xenofonte,
erigido anteriormente em teórico da astúcia, tem para nós o valor
de uma advertência. Devemos prestar ainda mais atenção nele,
porque a astúcia é um tema dominante nos últimos capítulos de
nossa obra. Assim, pois, está Maquiavel utilizando Xenofonte de
novo para seus próprios fins?
Para decidir isso, é preciso recordar que ele então imputava ao
historiador filósofo uma tese acerca do êxito pela astúcia que este
não havia sustentado, ao menos explicitamente, na Ciropedia.
Maquiavel discorria como se o relato de Xenofonte tornasse
manifesta por si mesma uma interpretação da política. Agora ele
não julga necessário salientar a astúcia de Ciro — uma astúcia, não
obstante, muito visível —, mas chama nossa atenção para a função
que ele reconhecia à caça. Estamos tentados a buscar nesse
procedimento o indício de uma astúcia suplementar. Com efeito,
Maquiavel uma vez mais discorre como se o relato de um fato
bastasse a si mesmo; como se, no fato em questão, a representação
da guerra como caça, tal como a forja Ciro diante de seus oficiais,
fosse plenamente eloquente. Não busca convencer seu leitor por
uma demonstração, mas fala como se o leitor — como se certo
leitor — entendesse o suficiente para acompanhá-lo. A referência
ao tema da caça em Xenofonte seria mais rica para esse leitor que
qualquer outro argumento sobre a aprendizagem da guerra e o uso
da astúcia? Seria, sem dúvida, se ele conhecesse o pequeno tratado
consagrado a essa arte pelo autor da Ciropedia. Ora, sabemos que a
obra na sua tradução latina, De Venatione, passou por muitas mãos
em Florença no tempo em que Maquiavel redigia os Discorsi. Nela,
Xenofonte não se contenta em observar que a caça fornece o
melhor treinamento para a guerra. Ao final de um longo estudo
sobre as armadilhas e as armas, sobre os cães e os animais
selvagens, opõe a esse nobre exercício os vis procedimentos dos
sofistas. O que então se revela como o verdadeiro tema do tratado
é a formação da juventude: tema em torno do qual se organiza uma
série de distinções entre aqueles que só querem se ocupar de seus
assuntos particulares e aqueles que se preocupam com a salvação
do Estado; entre aqueles que criticam os homens instruídos e o
trabalho e aqueles que amam aprender com os outros e enfrentam
as penosas provas da virtude; entre os homens que possuem a arte
de enganar e aqueles que buscam o pensamento justo; entre
aqueles que visam a aparência do útil e o proveito pessoal e aqueles
que visam o bem comum — distinções que permitem descobrir
finalmente duas categorias de caçadores: os sofistas dedicados a
caçar os jovens de famílias ricas e os filósofos. Assim, devemos
admitir que Xenofonte utiliza, à sua própria maneira, a tática que
atribui a Ciro. Ao mesmo tempo faz da caça uma imagem da
filosofia e se serve dela para combater seus adversários. E essa
astúcia, por sua vez, esclarece a de Maquiavel: não busca ele o jogo
utilizando Xenofonte para atingir seu objetivo? Se seu propósito
próprio é levantar a juventude contra as mentiras defendidas pelos
“sábios do tempo”, não dá a entender agora que, sob o nome de
“conhecimento dos lugares e dos países”, ele designa um saber
novo da política, um saber “revolucionário” que se apoia na
exploração da História e na crítica da Tradição?
Invocando a dupla autoridade de Epaminondas e Xenofonte,
Maquiavel se apresenta sob os traços combinados de um capitão
filósofo e um político filósofo, fundador de um empreendimento
que alia ciência do geral e ciência do particular, cujo objeto é a
verdade de todos os tempos e de todos os lugares e a verdade desse
tempo e desse lugar. Como Epaminondas, ele se dirige aos jovens
para prepará-los para uma revolução. Como Xenofonte, ele se
distingue dos modernos sofistas porque não caça para converter os
jovens em sua presa, e sim para convertê-los ao saber.
Já sabíamos que os jovens são inclinados, em virtude de seu
desejo de agir, a se inflamar com o desejo de saber. Agora se
mostra que sua realização supõe uma série de provações graças às
quais eles descobrem sua identidade, a do inimigo e o lugar do
enfrentamento. Maquiavel os engaja, por seu discurso, nos
combates simulados, nos quais eles não somente têm de afirmar
sua superioridade diante dos guardiães da Tradição, mas também
compreender que compõem um exército novo e aprender a
distinguir os traços de seu adversário. O palco sobre o qual têm de
identificar, em seu entorno, o jogo dos atores políticos é, sem
nenhuma dúvida, Florença às vésperas da queda da República. Para
aceder à verdade do drama que ali se representa, eles precisam
adquirir a inteligência da História e se elevar à filosofia, tornar-se
capazes assim de inspecionar os lugares que o príncipe e o
conspirador ocupam, os lugares públicos e secretos da corrupção.
Mas esse drama, no qual se decifram os sinais de uma tarefa
revolucionária nova, é ainda uma ficção, e dominar sua intriga
confere o poder de situar-se adequadamente na sociedade presente
e preparar-se para agir quando surgir a ocasião de derrubar o
regime.
Se não nos enganamos, é então que se esclarece o exemplo que
nosso autor empresta de Tito Lívio para mostrar no mesmo
capítulo quanto importa o conhecimento dos lugares quando se
empreende um combate num país novo. É inútil espantar-se de
que o herói invocado não domine a arte da caça; trata-se de sua
façanha militar — e não importa que a perseguição de animais
selvagens prepare ou não para isso. O tribuno Décio empresta seus
traços ao audacioso político que, após haver rompido a armadilha
na qual a democracia havia se deixado fechar, escapa ao perigo ao
qual se expôs e volta a ocupar suas funções. Ele empresta seus
traços ao capitão filósofo cuja arte consiste em apreciar a situação
presente em função de situações passadas, em assumir um risco
calculado e, uma vez salvo o Estado, em colocar um termo à
aventura.
Públio Décio, relata Maquiavel, servia como tribuno sob as
ordens do cônsul Cornélio numa guerra contra os samnitas. Tendo
se apercebido de que o exército romano estava engajado num vale
em que poderia facilmente ser encurralado, avistou uma colina que
dava acesso a ele e convenceu o cônsul a autorizá-lo a tomá-la com
um destacamento. Após haver assegurado assim a passagem das
tropas, conseguiu na noite seguinte explorar os lugares, coberto
com uma simples capa de soldado, para depois escapar ao inimigo
com os seus. Ora, esse duplo êxito é particularmente designado
para nossa atenção. “Quem considerar, portanto, esse texto [de
Tito Lívio] em sua totalidade”, acrescenta o autor,
Mas, das duas proezas assinaladas, é na segunda que ele sugere nos
determos para apreciar o relato de Tito Lívio em sua totalidade. Este
ilustra a habilidade de um chefe que não hesita em se privar dos
sinais exteriores da autoridade para escapar da vista do inimigo e
subtrai seus partidários ao maior perigo após tê-lo enfrentado. Esse
chefe alia a prudência à audácia; não está cego por uma jactância e
não faz mais do que perseguir a salvação comum. Além disso, a
aventura na qual se arrisca está estritamente limitada pelas
necessidades que as circunstâncias impõem. Seu exemplo
aparentemente contrasta com o de Ciro, príncipe conquistador,
ocupado em edificar sua própria potência, mas se equipara também
ao de Epaminondas mediante os limites que confere ao
empreendimento e à luz que lança sobre o exitus, o caminho de
retorno. Nesse sentido, acaso deveríamos pensar que, no
momento em que a ação mais ousada e mais nova é indicada, é
importante libertar seu esquema das figuras particulares em que a
inscreve o desejo dos atores? Ou estaria o modelo do
revolucionário tebano muito bem fundado, na medida em que o do
capitão romano lhe oferece uma réplica tranquilizadora? E, ainda,
acaso Maquiavel se faria passar por Décio para insinuar aos jovens
que em seu afastamento da tradição ele se converte em seu
verdadeiro guardião e que a via nova que lhes abre reconduz a bom
porto?
Essas questões não são vãs, uma vez que alguns capítulos
adiante elas nos são relembradas pelo nome de Décio. É verdade
que o personagem evocado já não é então o tribuno que nos ocupa.
Trata-se de seu filho, engajado por seu turno em um combate
contra os samnitas, um filho desejoso de se igualar à glória de seu
pai, mas cuja coragem e audácia, em oposição, servem apenas para
perdê-lo e colocar em perigo o exército.
Todavia, o episódio do qual ele é o infeliz herói está destinado a
ressaltar a prudência de outro chefe, tão hábil quanto o primeiro
Décio para unir a preocupação da vitória à da segurança: o grande
Fábio, que sabemos também não recuar diante dos
empreendimentos mais audaciosos, mesmo quando eles lhe faziam
transpor os limites da legalidade. Enquanto Décio se precipita à
frente dos seus, nos conta o autor, ao encontro dos inimigos, e
resolve imolar-se quando vê suas tropas vacilar, Fábio, que
comanda outra ala do exército, se contenta em sustentar o choque
daqueles que o assaltam. É somente após conhecer a sorte de seu
colega que, “ávido de igualá-lo em vida”, ele lança todas as forças
que poupou para o momento decisivo e alcança uma brilhante
vitória. Tal como o primeiro Décio, Fábio sobressai encontrando a
melhor solução. Aquele adivinhava a intenção do adversário; este
soma a essa habilidade a de adivinhar as falhas do seu aliado. Do
mesmo modo que nesse caso ele sabe a ocasião de negligenciar as
ordens recebidas e apresentar às autoridades estabelecidas o fato
consumado, ele sabe, quando a necessidade o exige, adiar o
combate. Não se assemelha a seu descendente, o adversário de
Aníbal, contemporizador por natureza, mais que Décio a seu filho.
Sua conduta não é efeito de seu temperamento. Julga a situação
antes de agir. Pratica a paciência quando é preciso. Essa paciência
não é boa em si; é louvável enquanto pode se aliar a seu contrário.
Ademais, Maquiavel não deixa dúvida sobre o significado de sua
análise, uma vez que no capítulo precedente, o de número 44,
demonstrava que não raro se obtém mediante um movimento
violento e a audácia o que não os meios ordinários
proporcionariam.
O termo impeto, empregado no título dos dois capítulos,
convida a observar sua articulação. Os exemplos, antigos e
modernos, escolhidos para evidenciar aquele que sabe pressionar o
outro e obrigá-lo a uma aliança que não desejava, recordam a ação
de Fábio, lançado em perseguição dos etruscos através da floresta
Címina, com a convicção de que o Senado só poderá aprová-la uma
vez alcançada a vitória.
Não duvidamos de que Maquiavel tenha suas razões para
assinalar na última parte de sua obra que um chefe de semelhante
ousadia sabe esperar sem ceder à imagem de uma jactância, que é
hábil para preservar sua vida. O retrato de Fábio não evoca
somente o de Décio. Entre esses dois capitães, Valério, Mário e
Epaminondas se estabelece um parentesco que não deve nada a
seu caráter ou à natureza de seus empreendimentos. Mário habitua
suas tropas à visão do inimigo; Valério as engaja em escaramuças
preliminares para lhes inspirar confiança em si mesmas;
Epaminondas as instrui mediante combates simulados; Fábio deixa
que o inimigo se canse em seus primeiros assaltos; Décio se separa
do grosso do exército realizando no espaço esse desvio que se
inscreve em outro lugar no tempo. Uns não temem aparentar falta
de coragem; outros chegam até a desfazer os sinais de sua
autoridade. Suas ações seguem um mesmo esquema. Mas não
poderíamos esquecer que este foi traçado pela primeira vez com o
exemplo de Bruto: aquele conspirador que encontrou na simulação
da loucura o único meio de preservar sua vida junto ao tirano, que
se desonrou, que esperou pacientemente sua ocasião e soube, uma
vez alcançada a vitória, abandonar suas ambições. Nessa cadeia de
identificações se deixa entrever a figura daquele que as produz: o
próprio Maquiavel, que se submete ao novo reinado dos Médici e,
pelo subterfúgio do discurso, conduz os jovens a suportar o impeto
do adversário e examinar seus traços, a preparar a reação, a se
comprometer numa conspiração lenta e prudente.
A passagem da estratégia do capitão em combate à do
reformador político e do escritor-filósofo é ininterrupta no terceiro
livro. Mas, observávamos, é no capítulo 39 que ela melhor se
apresenta para nossa consideração — nesse capítulo que abre com
um elogio do conhecimento dos lugares e fecha com o relato do
episódio em que um exército romano está prestes a cair numa
armadilha antes de ser salvo por um audacioso capitão. Portanto,
ali onde Maquiavel multiplica os sinais do enfoque filosófico e
revolucionário do discurso, onde sugere o pacto oferecido aos
jovens contra aqueles que se apropriaram abusivamente dos
emblemas do saber e da lei, ele indica também ao leitor atento às
suas advertências o caminho de certo lugar. O desfiladeiro no qual
irá se fechar o cônsul Cornélio está seguramente destinado a nos
conduzir a outra parte. Se duvidássemos disso, para nos convencer
bastaria considerar o relato, oferecido um momento mais tarde, de
um novo episódio da guerra contra os samnitas e depois os
exemplos, multiplicados no penúltimo capítulo, das armadilhas
eficazmente armadas ou frustradas. Não pode escapar a eles a
insistência do escritor na última parte de sua obra em produzir a
imagem de uma armadilha para descrever situações diversas nas
quais um capitão se deixa enganar pelos estratagemas ou consegue
desmascará-los. Ele monta um hábil dispositivo para nos sugerir o
que não pode apresentar: o combate político no qual se precipita a
República florentina às vésperas da agressão espanhola. Essa
evocação é necessária, pois só a inteligência da conspiração que
arruinou a liberdade permite aos jovens medir as dificuldades de
sua própria conspiração a serviço de sua restauração; só esta lhes
permite aplicar à história presente o ensinamento político e
filosófico do autor. Mas é preciso usar de astúcia para falar sobre o
que deve ser calado em razão do perigo que haveria em denunciar
homens, famílias, facções que ainda estão vivas. A astúcia é aqui
maior que a do conselheiro, que deveria, dizia-se, para garantir sua
segurança e não trair a verdade, expor as alternativas sem paixão e
deixar o outro livre em sua decisão. É preciso se contentar em
fornecer ao leitor os indícios que o advertem da natureza do tema e
dar a ele liberdade para entender ou não entender. Ademais, a
maior astúcia consiste em introduzir o leitor no lugar
convencionado por um discurso sobre a astúcia; em dissimular e
assinalar ao mesmo tempo seu propósito mediante palavras cujo
sentido manifesto pareça bastar a si mesmo, que choquem o
suficiente a opinião comum para que ela não tenha como se
espantar mais e, não obstante, que sejam testemunhas, mediante
sua disposição, de um estratagema. Com efeito, como ficarmos
satisfeitos com o elogio da astúcia, que inaugura o capítulo 40,
quando percebemos que ele contradiz os enunciados anteriores e
contradiz a si mesmo no espaço de algumas páginas? Temos de
resistir ao efeito que certas fórmulas de aparência audaciosa
produzem para buscar o motivo que as organiza. Maquiavel agora
pretende limitar o uso da astúcia ao teatro da guerra. A reserva é
estranha, uma vez que ele nos fez admirar a de Bruto e
Epaminondas: “Direi somente isto”, precisa ele, “que não entendo
ser gloriosa a astúcia que consiste em romper a fé dada e os pactos
concluídos; essa astúcia pode muito bem ser útil algumas vezes a
um Estado ou a um reino, mas jamais trará a glória. Falo dos
estratagemas que é preciso empregar contra um adversário
precavido e que constituem propriamente a arte da guerra”. Mas
não esquecemos sua interpretação de Xenofonte e o comentário da
política romana. “Podia ser mais pérfida”, dizia no segundo livro,
“do que foi nos seus começos, quando pretendia o título de
companheira dos latinos e de outros povos, seus vizinhos, a que na
realidade converteu em escravos?” Como esqueceríamos ainda que
para ele não há meio mais seguro que a astúcia para se elevar de
uma baixa condição a uma grande fortuna. Sem dúvida, Maquiavel
se precaveu de aliar a astúcia ou o engano à glória, mas seus
exemplos, o de Roma ou o de Ciro, falavam por si mesmos. Temos
razão em suspeitar que ele nos engana no presente, uma vez que
suas primeiras asserções são desmentidas na sequência do texto:
ele nos conduz a recusar a alternativa entre ignomínia e glória que
apresentou no capítulo 41, quando escreve: “Quando se trata de
deliberar sobre a salvação da pátria, ele [o cidadão] não deve ser
detido por qualquer consideração de justiça ou injustiça, de
humanidade ou crueldade, de ignomínia ou glória. O ponto
essencial que deve prevalecer sobre todos os demais é o de
assegurar sua salvação e sua liberdade”. E ainda sugere que o
político não poderia se degradar com a defesa do Estado quando
conclui a propósito da fórmula dos franceses: “O rei não pode
sofrer vergonha”. Finalmente, é para subverter seu discurso inicial
sobre a fé jurada que conclui o capítulo 42, consagrado a defender
que “não se deve manter as promessas extraídas pela força” —
argumento que encontra seu coroamento na proposição segundo a
qual “rompem-se sem se desonrar as convenções pelas quais se
comprometeu a nação todas as vezes em que a força que a obrigou
a contratá-las não subsiste mais”.
Poderíamos sem dúvida julgar uma vez ainda, ao medir as
diferenças de uma proposição a outra, que o autor, fiel a seu
princípio, se dedica a afastar progressivamente seus leitores de
uma representação comum. Mas o procedimento não está aqui a
serviço de um ensinamento novo. Ao fim da análise, não se
avançou nada que não fosse já conhecido. O discurso sobre a
astúcia nos faz assim pensar naquele que Ciro pronuncia a
propósito da caça diante de seus oficiais; ele acompanha um
movimento em direção ao objetivo; como Ciro, Maquiavel fala e se
aproxima de seu objetivo. O sinal desse movimento nos é dado
tanto pela hipótese introduzida de uma situação extraordinária na
qual se joga a sorte do Estado como pelo exemplo em função do
qual se organizam todas as considerações sobre a astúcia. Como
anunciamos, ele nos apresenta pela segunda vez o exército romano
às voltas com os samnitas e precipitado numa armadilha. Mas não
há Décio para advertir a tempo do perigo. Os romanos, enganados
pelos inimigos disfarçados de pastores e acreditando em suas
indicações mentirosas, serão encurralados no desfiladeiro das
Forcas Caudinas, onde o inimigo os aprisionará.
Contudo, o relato do acontecimento revela imediatamente o
erro cometido pelos samnitas na sequência de seu êxito e a justa
resposta que deram os romanos numa situação em que pareciam
perdidos. Enquanto o chefe samnita põe seus prisioneiros,
imprudentemente, ante a alternativa de se submeter ao jugo e
fazer uma promessa de paz ou então ser massacrados, os chefes
romanos sabem aceitar as condições desonrosas para salvar o
exército. Mais, uma vez de volta a Roma, seu cônsul convence o
Senado a violar os acordos firmados sacrificando, consigo mesmo,
somente os oficiais comprometidos. Assim, o exemplo nos oferece
a imagem de uma astúcia e de uma contra-astúcia, de um
enganador e de um enganado que intercambiam suas posições.
Ora, não cabe dúvida de que a maior parte dos elementos da cena
não deve ser tida em conta, uma vez que Maquiavel os arranja para
fazer com que os encontremos em outras cenas. O desfiladeiro de
Cáudio em que se encontram encurralados Lêntulo e Postúmio se
assemelha àquele no qual se aventura o cônsul Cornélio; os
soldados disfarçados de pastores reaparecem no primeiro exemplo
do penúltimo capítulo; as falsas informações, no último exemplo,
em que os florentinos são vítimas de um Pisano; a imagem de um
enganador enganado na mesma passagem, enquanto o apelo de
Lêntulo a não sacrificar a vida de seus soldados em honra ao
exército encontra sua réplica na atitude de Fábio ao deixar imolar
seu infeliz colega para não correr um risco inútil. Só não
descobrimos equivalente para a astúcia do cônsul ao firmar uma
promessa que não manterá. Mas, a seu propósito, após haver
observado que se romperão sem desonra os pactos com os quais se
comprometeu a nação, Maquiavel acrescenta este comentário: “A
História oferece muitos exemplos disso, e todos os dias há novos
debaixo de nossos olhos”. Mesmo se a observação parece dizer
respeito apenas à política dos príncipes, ela convida o leitor a
dirigir o olhar aos acontecimentos presentes.
Mas, mais ainda que a esse apelo, somos sensíveis à
representação de uma situação na qual se devem empregar todos
os meios para escapar às ciladas armadas pelo adversário e
salvaguardar a liberdade do Estado. De todas as críticas dirigidas
aos antigos dirigentes de Florença, há uma em particular que não
poderíamos esquecer: eles resolveram imprudentemente
prosseguir a guerra contra os espanhóis quando a necessidade
exigia prudência e compromisso. No segundo livro, Maquiavel
citava o exemplo de Aníbal, que não havia se envergonhado de
pedir a paz romana, por mais corajoso e experimentado que fosse
na guerra, e opunha então a ele a presunção daqueles que se
recusaram a uma negociação após a primeira batalha de Prato. A
análise do comportamento dos romanos após sua derrota nos faz
claramente entender que as proposições formuladas pelo vice-rei
deveriam ter sido aceitas, que importava pouco ter de se
comprometer a pagar o tributo, a romper a aliança com a França,
inclusive a fornecer garantias políticas graças à evicção de
Soderini, de tal forma a necessidade exigia ganhar tempo para
organizar uma reação. Contudo, a comparação sugerida entre o
realismo de uns e a imbecil presunção de outros nos induz ao
exame de uma situação cuja face política até agora só algumas
alusões nos fizeram entrever. Assim, suspeitamos que os erros
cometidos tanto pelos samnitas como pelos romanos devem
esclarecer a conduta dos dirigentes florentinos. Entre esses erros,
há um sobre o qual insiste nosso autor, que ele já atribuiu aos
florentinos: o de escolher a “via do meio”, em vez de perdoar ou
exterminar; de excitar o desejo de vingança por medidas ofensivas.
Agora nos é dito que aí reside a falha dos florentinos face aos
rebeldes de Arezzo e a dos samnitas diante do exército romano. A
aproximação estaria desprovida de significado se nos limitássemos
a considerar a política externa de Florença. Mas tal não é o caso se,
como já supusemos, os inimigos mais perigosos da República
tivessem estado em 1512 no interior da cidade.
Aqueles que fomentavam abertamente um complô em favor dos
Médici não estiveram por um momento à mercê dos republicanos?
Alguns foram aprisionados com a notícia da invasão da Toscana.
Mas a medida não foi eficaz, pois nos últimos dias do regime,
como assinala o autor numa carta, “o pavor chegou a tal grau que
os habitantes encarregados da guarda do palácio e das outras portas
da cidade as abandonaram e as deixaram absolutamente sem
defesa, colocando assim a senhoria na obrigação de soltar um
grande número de cidadãos que tinha trancado no palácio havia
alguns dias como suspeitos de amizade pelos Médici”.[384] Já não
havia Maquiavel sugerido que, quando se quer forçar o povo a
combater e fazer que a paz seja impossível, é preciso impeli-lo a
cometer um grande crime? Nesse caso, a “via do meio” escolhida
pelo governo se mostra inútil. Pode-se julgar que ela é denunciada
de novo. Mas eram os partidários dos Médici os verdadeiros
inimigos internos? Suas opiniões eram conhecidas, sua
conspiração, visível. Seguramente, eram mais perigosos aqueles
que fingiam apoiar o regime. A estes não houve ninguém para
desmascarar. Ora, o episódio da astúcia samnita não representa
uma preciosa indicação sobre o comportamento desses
adversários? Os soldados disfarçados de pastores que enganam os
romanos não designam os burgueses florentinos que ostentam seu
devotamento a um governo que abominam? É o que imaginamos
quando recordamos as condições em que se rejeitou o primeiro
ultimato espanhol. Soderini reuniu então o conselho e declarou
com soberba que detinha seu cargo pela vontade do povo, que não
renunciaria ainda que todos os reis do mundo se unissem para lhe
ordenar que o fizesse, mas que estava pronto para se demitir se a
assembleia assim desejasse. Ora, ainda que seus adversários fossem
numerosos, ninguém se opôs a ele. Sua demissão é recusada por
unanimidade e todos se oferecem para defendê-lo, pondo em
perigo inclusive suas vidas. Enganado por esse apoio, Soderini se
acredita ao abrigo do perigo interno e se engaja imprudentemente
na via da resistência.[385]
É exagerado pensar que ele corre para uma cilada que lhe foi
deliberadamente armada? Sem dúvida, não estamos em condições
de identificar os falsos pastores. Mas se nos remetemos ao relato
que nosso autor fez dos acontecimentos na carta que evocamos
(dirigida para um destinatário cuja posição e nome o obrigaram,
contudo, à prudência), certos fatos sugerem que a difusão de falsas
informações não deixou de provocar efeitos na atitude do
gonfaloneiro. Enquanto os espanhóis conheceram um primeiro
fracasso diante de Prato, ficamos sabendo que o gonfaloneiro
recusa a opinião das pessoas sensatas e os termos do compromisso
proposto pelo vice-rei, confiando em indicações enganosas
relativas à fraqueza do inimigo, à fome que está passando e à
firmeza dos defensores de Prato (referito le cose degli spagnoli deboli,
allegando che si morieno di fame e che Prato era per tenersi). Depois,
uma vez conhecida a notícia da tomada de Prato, ele continua
confiando, baseando-se “em não sei qual quimera” (confidatosi in su
certe sue vane openioni).[386] Ora, não podemos deixar de recordar
aqui o julgamento proferido no capítulo 30, num trecho do
discurso em que Maquiavel recomenda com crueza a eliminação
física dos invejosos e menciona a impotência de Soderini: “Se
semelhantes homens (os invejosos) vivem numa cidade
corrompida, em que a educação não pode despertar neles nada de
generoso, será impossível que algo os detenha. Para alcançar seu
objetivo e saciar sua perversidade, aceitariam a ruína de sua pátria”.
Qual jogo duplo se praticava no conselho à aproximação do
exército espanhol? Qual complô se tramava entre as facções
inimigas às costas de Soderini? A que meios recorrem os
“invejosos” para alcançar seus fins no momento mesmo em que se
manifestava união diante do perigo? Não sabemos. Mas bastou a
queda de Prato para que subitamente se desvanecesse toda vontade
de resistência; para que o próprio Soderini, sem que o exército
florentino tivesse combatido, sem que uma assembleia o
depusesse, pela simples pressão de seu séquito, consentisse em
fugir; para que seu sucessor, Ridolfi, enfim, chefe do partido dos
Optimates, depois de suas firmes declarações em favor do regime
republicano, se anulasse prontamente diante dos Médici. Quem
não veria nisso os sinais de uma cilada montada desde longa data e
de conivências combinadas entre os partidários dos Médici e os
supostos defensores da liberdade?
Devemos supor que a cena da cilada a que um capitão seria
atraído por homens hábeis em desarmar sua desconfiança é
particularmente edificante, pois que Maquiavel a apresenta uma
segunda vez no penúltimo capítulo da obra. Repetição ainda mais
notável porque o episódio então analisado parecia pequeno e
arbitrariamente extraído do relato de Tito Lívio. Dessa vez, os
etruscos ocupam o lugar dos samnitas: é um lugar-tenente do
exército romano, Fúlvio, que está encarregado do comando do
campo na ausência do cônsul, chamado a Roma para uma
cerimônia religiosa. O estratagema do inimigo consiste em enviar
para a proximidade do campo soldados disfarçados de pastores
com seus rebanhos. Nessa ocasião, o chefe romano triunfa sobre a
astúcia do adversário, em vez de se deixar iludir: o enganador é
desmascarado. Talvez convenha revelar que esse chefe não é o
cônsul detentor da autoridade ordinária, mas um substituto. Este
se mostra hábil em identificar o inimigo sob seu disfarce, enquanto
seu superior se ocupa em decifrar os sinais da potência divina nas
vísceras de uma ave. Já não assinalou Maquiavel que é mais digno
de um capitão ver o que se passa diante de seus olhos do que
adivinhar os propósitos do inimigo, interpretar suas ações
presentes e mais próximas do que as que são realizadas à distância?
O mérito do lugar-tenente é encontrar-se no lugar certo, enquanto
o cônsul está afastado dele, e interrogar o visível enquanto o outro
perscruta em vão o invisível. Não devemos deixar escapar essa
indicação, sobretudo porque nosso autor curiosamente modificou
o texto de Tito Lívio nessa ocasião. Nesse, não se trata de um
cônsul, mas de um ditador; não há indicação de que este último
havia se ausentado para uma cerimônia religiosa; ele está de
regresso ao campo romano quando se produz o incidente
assinalado, e é ele mesmo que dirige o ataque contra os etruscos.
Quanto ao lugar-tenente Fúlvio, são seus batedores que descobrem
a identidade dos pastores (ao perceber que eles não gritavam,
como é próprio desse ofício). Ele mesmo não faz mais do que
dirigir um posto avançado; não substitui o ditador à frente do
campo. O mínimo que se pode dizer é, portanto, que semelhante
erro trai uma intenção. Na versão maquiaveliana, o personagem
Fúlvio se carrega de traços que pertencem a Décio e a Fábio. Do
mesmo modo que o primeiro, sabe interpretar o que o cônsul não
vê ou o que se deixou ficar sem condições de ver; do mesmo modo
que o segundo, alcança uma vitória às costas do chefe, retido em
Roma por uma cerimônia religiosa. Os três são heróis que tiveram
de substituir uma autoridade fraca. Mas não é preciso supor que o
erro é cometido para chamar a atenção de um leitor atento? Não é
temerário supor isso se consideramos a regra enunciada no título
do capítulo, cujo comentário introduz a proeza de Fúlvio:
“Quando se vê um inimigo cometer um grande erro, deve-se crer
que ele esconde alguma armadilha”.
Somos então reconduzidos à ideia de que o autor disfarça seu
pensamento, somos incitados a buscar em que ele nos engana.
Sem dúvida ele não é nosso inimigo, mas não dissemos que ele
prepara seus leitores por meio de combates simulados? Ora, basta
estar de sobreaviso para perceber a singularidade dos outros dois
exemplos mencionados no capítulo. O primeiro nos relembra a
tomada de Roma pelos gauleses, acontecimento no qual o escritor
havia se detido longamente numa passagem de seu discurso em
que opunha ao Estado romano, capaz de se reerguer na
proximidade da ruína, o Estado moderno, impotente para inverter
a fortuna quando ela lhe é contrária, por não usufruir de um apoio
popular. A derrocada da República florentina dá o pleno significado
dessa oposição — posteriormente articulada com a dos homens
que o destino adapta à natureza dos Estados, com a de um Camilo
e de um Soderini. No momento, somente nos é dito que os
gauleses, depois de haver vencido os romanos em Alia, marcharam
até Roma, encontraram abertas e sem guarda as portas da cidade e
passaram um dia e uma noite sem penetrar nela, por medo de cair
numa cilada. Depois, a esse breve relato sucede a narração de um
episódio no qual se mostra que os florentinos foram cruelmente
enganados por um falso desertor de Pisa. Enquanto sitiavam essa
cidade, é relatado, concluíram um acordo com um de seus
cidadãos, Afonso di Mutolo, que lhes prometeu abrir uma porta.
* Corrigimos a informação, pois se trata do capítulo 46, e não do 45, como consta do
texto original. [N. T.]
Parte 6
EDITORA UFMG
DIRETOR Flavio de Lemos Carsalade
VICE-DIRETORA Camila Figueiredo
capa
Daniel Trench
imagem de capa
Tommaso Todeschini. Retrato de Nicolau Maquiavel
© Artokoloro/ Alamy/ Fotoarena
composição
Jussara Fino
preparação
Ana Cecília Agua de Melo
Mariana Delfini
índice onomástico (ed. impressa)
Luciano Marchiori
revisão
Ana Maria Barbosa
Renata Lopes Del Nero
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
ISBN 978-65-5692-246-1
Título original: Le Travail de l’oeuvre Machiavel
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub
1. Maquiavel. 2. Filosofia. 3. Crítica. I. Pancera, Gabriel. II. Adverse, Helton. III. Ames,
José Luiz. IV. Título
CDD 320
5. Charbonnel, op. cit., pp. 17-23 e 28; Thuau, op. cit., pp. 55-6.
[««]
13. Cf. notadamente Villari, op. cit., II, p. 405. Panella nota de sua
parte: “Do caráter pernicioso de suas obras, ninguém se deu conta
então, nem em seguida, durante vários anos” (Panella, op. cit., p.
21). Recordemos que os Discorsi foram editados simultaneamente
em Roma, sob os cuidados de Antonio Blado, e em Florença, sob
os cuidados de Bernardo Giunta, em 1531. Os dois editores
publicaram, cada um, o Principe e as Storie florentine em 1532.
Clemente VII concedeu a autorização a Blado por um breve.
Monsenhor Gaddi aceitou a dedicatória de B. Giunta. O cardeal
Ridolfi encorajou o empreendimento (cf. Panella, ibid.).
[««]
26. Por exemplo, M. and the Devil, de Robert Daborne, citado por
Meyer (op. cit., p. 129).
[««]
28. Ibid.
[««]
38. Ibid.
[««]
39. Ibid.
[««]
53. Meyer, op. cit., p. 25. Ele cita o testemunho de Harvey (1579).
[««]
54. Artaud, op. cit., II. Sobre seu comentário do processo, pp. 287
ss.
[««]
55. Robert Lenoble, Mersenne ou la naissance du mécanisme. Paris:
Vrin, 1943, p. 604.
[««]
59. Meinecke, op. cit., I, cap. IV; Procacci, op. cit., pp. 71 ss.
[««]
62. Ed. Henry Desbordes, Amsterdam. Cf. Procacci, op. cit., pp.
296-8.
[««]
63. Le prince de N. M. secrétaire et citoien de Florence, traduzido e
comentado por A. N. Amelot, senhor de La Houssaye,
Amsterdam, 1683.
[««]
94. “In wiefern M.' Politik auch noch auf unsere Zeiten
Anwendung habe”. Fichte, op. cit., pp. 420 ss.
[««]
101. Meinecke, op. cit., III, 4; Procacci, op. cit., pp. 406-11.
[««]
102. Maurice Joly, Dialogue aux enfers entre M. et Montesquieu,
Paris, 1948.
[««]
114. Ibid.
[««]
118. Ibid., p. 8.
[««]
119. Ibid., p. 9.
[««]
145. Ibid.
[««]
147. Ibid.
[««]
149. Citado por Burd, op. cit., pp. 35-6. Ver também Meyer, op.
cit., p. 4, n. 3.
[««]
156. Boccalini, op. cit. Vale a pena resumir o conto, pois há razão
para crer que ele transpõe os termos de uma discussão real.
Maquiavel se vê convocado diante do tribunal de Apolo e
convidado a se desculpar. Ora, ele declara de início, sua intenção
não é renegar seus escritos. Ele os condena voluntariamente pelo
tanto que são repletos de exemplos ímpios e cruéis. Mas, ele
acrescenta, cabe saber se a doutrina que ele expõe é de sua
invenção ou se ele apenas descreve a conduta de príncipes de
quem ele poderia dar os nomes. Nessa hipótese, seria injusto
considerar santos aqueles que praticaram uma política “colérica e
desesperada” e tratar como velhaco e ateu aquele que se limita a
relatar os fatos. Este argumento abala os juízes, que estão a ponto
de absolvê-lo, quando o procurador faz uma revelação: ele o
surpreendeu, uma noite no campo, atarefado entre um rebanho de
carneiros; ele tentava implantar, nessas bestas inofensivas, dentes
de cão; se ele tivesse conseguido, o pastor não mais poderia fazer-
se obedecer com um bastão e um apito… As três teses são, então,
esboçadas no conto: a tese do maquiavelismo, a do realismo
científico e a da subversão. E cada uma se apresenta como a
refutação da outra, enquanto a incerteza permanece. Salientemos
que Boccalini, de outra parte, falou severamente de M. (cf. Treves,
op. cit.), mas não é certo que sua indignação fosse sincera (cf.
também Gramsci, op. cit., p. 116).
[««]
160. Ibid.
[««]
163. Ibid.
[««]
191. Ibid.
[««]
193. Ibid.
[««]
200. Ibid.
[««]
201. Ibid.
[««]
204. Ibid.
[««]
230. Ibid., p. 301. “Sua obra de escritor conta mais do que sua
ação; mais do que sua política e seus julgamentos políticos, a ideia
que ele teve da política. Essa ideia é a de um realista que sabe,
como realista, o preço e a ação da poesia.” Declaração estranha, de
resto, pois que M. parecia antes vítima das quimeras.
[««]
232. Ernst Cassirer, The Myth of the State. New Haven: Yale
University Press, 1946 [ed. bras.: O mito do Estado. Trad. Álvaro
Cabral. São Paulo: Códex, 2003].
[««]
233. Cassirer escreve notadamente: “Estamos sujeitos a um erro
que poderíamos chamar de the historian's fallacy. Atribuímos nossas
próprias concepções da história e do método histórico a um autor
para quem essas concepções eram inteiramente desconhecidas e
seriam dificilmente inteligíveis” (ibid., p. 124). Ele observa ainda:
“Por mais paradoxal que possa parecer, devemos dizer que nesse
caso nosso sentido moderno da história nos cegou e nos impediu
de perceber a verdade histórica manifesta” (ibid.). Assinalemos,
além do mais, que a crítica do psicologismo vai de par com a do
historicismo: “Em lugar de analisar os pensamentos de M. e de lhe
fazer a crítica, a maior parte de nossos comentadores modernos
apenas interroga seus motivos” (grifo do original).
[««]
262. Ibid., “Im politischen Daseinkampf muss man immer ein rechter
Freund oder ein rechter Feind sein, aber nicht neutral bleiben; denn
Neuttralität ein Zeichen von Schwäche”.
[««]
263. Ibid., p. 42.
[««]
297. Ibid., p. 8.
[««]
298. Gramsci não estabelece explicitamente o paralelo. Ele o
sugere pela reaproximação estabelecida entre a teoria de M. e a
filosofia da práxis, e pela designação do Principe como manifesto
político (ibid., pp. 9 e 119).
[««]
302. Ibid., p. 9.
[««]
304. Ibid.
[««]
305. Ibid., p. 9.
[««]
311. Ibid.
[««]
314. Ibid.
[««]
320. Ibid.
[««]
321. Ibid.
[««]
323. Ibid.
[««]
348. Ibid.
[««]
356. Ibid.
[««]
357. Ibid.
[««]
365. Ibid., II, pp. 252 ss. (Quadro das coisas da França, 1510).
[««]
369. Hans Baron, “The Principe and the Puzzle of the Date of the
Discorsi”. Bibliothèque d'Humanisme et Renaissance, Gênova, XVIII,
1956, pp. 405-28.
[««]
372. Capítulo 3.
[««]
373. Capítulo 15: “Ma sendo l'intento mio scrivere cosa utile a chi la
intende, mi è parso piu conveniente andare dietro alla verità effettuale
della cosa che alla immaginazione di essa”.
[««]
377. Ver Mario Ferrara, op. cit. A denúncia dos tiepidi se encontra
na pregação sobre o salmo Quam Bonus, na pregação Sopra Giobbe
(p. 274) e na oitava pregação Sopra Aggeo, pronunciada um mês
após a queda de Piero. Nesta última, Savonarola acentua a
necessidade de criar as ordini nuovi. O apelo à prece como o meio
mais eficaz para salvar a cidade do perigo se encontra
especialmente no Il trattato circa il reggimento… (ibid., pp. 208-10).
[««]
385. Ibid.
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386. Ibid. (N. M., Lettere. Feltrinelli, Milão, 1961, pp. 225-6.)
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387. Maquiavel a Pier Soderini, em Raguse. Ibid., II, p. 326.
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399. Ibid.
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