Text

Fazer download em txt, pdf ou txt
Fazer download em txt, pdf ou txt
Você está na página 1de 1

SOPA DE FEIJÃO

Eram férias de final de ano e minha enteada, a Maria, estava com


febre e dor de ouvido. Estávamos no sítio dos meus pais. O pronto-socorro
da cidade não tinha atendimento específico para crianças. Tudo apontava
para uma otite. Meu pai é médico aposentado. Ele dedicou mais de 50 anos
à medicina. Mas hoje, às vezes, ele falha na indicação dos remédios: receita
algo que não existe mais ou está ultrapassado. Coisas do tempo que podem
tornar nosso conhecimento certo em incerto. Ele recomendou para a Maria
um determinado remédio. No meio dessa história, a pediatra retornou minha
mensagem pelo celular. Indicou o que era melhor para uma criança naquela
situação. A recomendação do meu pai, de fato, não era o melhor caminho
para aplacar as dores da menina, já que aquela medicação não deveria ser
usada por alguém da idade dela. Falar sobre isso com meu pai demandou
uma boa dose de delicadeza. Mesmo assim, ele ficou chateado e me
dilacerou com a pergunta: “Você não confia no seu pai? Fui médico a vida
toda!...” Difícil, muito difícil ouvir isso. Principalmente porque meu pai é
alguém que admiro demais.
Ele tem uma história linda de força e garra. Cresceu em meio às
adversidades – perdeu pai e mãe ao nascer e foi criado ora por um tio, ora
por uma tia, sem muito afeto ou amor. O que o levava para frente era o sonho
de ser médico. Não tinha dinheiro para a faculdade. Cursava medicina em
período integral e trabalhava no tempo que lhe restava como técnico em
raios X. Morava em uma pensão, comia o prato mais barato do bar da
esquina, porque o dinheiro era escasso. Essa força de vontade e perseverança
o acompanharam a vida toda. Deu inúmeros plantões e trabalhava mais de
12 horas seguidas para dar conta da família de três filhos. Mas o que eu mais
admirava nele era o coração disponível. Apesar do cansaço, ele sempre tinha
um sorriso no rosto e um abraço para acolher. Era incrivelmente atencioso
com os pacientes, a paixão das senhoras octogenárias e nunca teve vergonha
de chorar quando a emoção falava mais alto.
Meu pai me ensinou a amar intensamente, a ser gentil, generosa e a
olhar para o mundo com esse mesmo amor e generosidade. Não sei dizer se
ele foi o melhor cardiologista da cidade. Mas foi o melhor pai para mim.
Não foi perfeito, mas foi humano. E o mais difícil de vê-lo envelhecer é
perceber que ele não está lidando bem com o fato de não ser mais o médico,
um cuidador de pessoas. Ele agora precisa também ser cuidado, aninhado,
abraçado. Eu gostaria que ele entendesse que confio nele, mesmo
imperfeito, mesmo falhando. O que nos une não é o que ele foi – um médico
–, mas o que é e sempre será: meu pai. Uma noite dessas, ele estava jantando
sopa de feijão, bem temperada e quentinha. Me inspirei e preparei a mesma
sopa em casa. Fez sucesso e aqueceu meu coração. Me senti acolhida,
abraçada, reconfortada. Que sopa danada! Divido aqui a receita, que é de
uma singeleza só.
4 xícaras (chá) de feijão carioca já cozido • 4 xícaras (chá) de água • 1
cebola • sal • pimenta-do-reino • temperos verdes (cebolinha, coentro
e/ou salsinha) • cominho
COMO FAZER
Bata o feijão com a água no liquidificador. Refogue a cebola bem picadinha
no azeite e coloque o feijão batido ali. Se você quiser com mais caldo, basta
acrescentar mais água. Tempere com sal, pimenta moída na hora, cebolinha
picada, coentro (pouco) e cominho (pode ser uma colher de café). Deixe
ferver por uns dez minutos. Se quiser acrescentar um pouco de macarrão,
cozinhe à parte e misture depois. Caso contrário, a sopa ficará grossa
demais. Sirva quente, com a família reunida para ajudar a aquecer também
o coração.
(Holanda, Ana. Minha mãe fazia – crônicas e receitas saborosas e cheias
de afeto. Rio de Janeiro: Rocco, 2017)

Você também pode gostar