E-Book 1 Edicao Premio Nayde Vasconcelos - TJAM
E-Book 1 Edicao Premio Nayde Vasconcelos - TJAM
E-Book 1 Edicao Premio Nayde Vasconcelos - TJAM
Direitos Humanos,
meio ambiente e disputas
em espaços virtuais:
uma visão feminina
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Capa e diagramação: Jéssica Razia
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de direitos humanos. Investigador do Instituto de
Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de direitos humanos. Catedrático de Direito Constitucional
da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
ISBN: 978-65-5908-537-8.
CDU: 349.6
DOI: 10.53071/boo-2023-03-31-6426fcac1cabb
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou
editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003),
sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
Direitos Humanos,
meio ambiente e disputas
em espaços virtuais:
uma visão feminina
AUTORAS
Andressa de Bittencourt Siqueira
Anna Karollina da Costa e Silva
Annie Mara Arruda de Sá e Brito
Isabele Augusto Vilaça
Karen Nayara de Souza Sturmer
Laura Fernanda Melo Nascimento
Lutiana Valadares Fernandes Barbosa
Stephanie Vieira Brito
Tatiana Tomie Onuma
Thaís Henriques Dias
Viviane Ceolin Dallasta del Grossi
Apresentação do livro
Este livro reúne os artigos aprovados e/ ou premiados no
1º Concurso de Artigos Científicos - Prêmio Nayde Vasconcelos,
realizado em 2022 pela Escola Judicial do Tribunal de Justiça do
Amazonas (EJUD/ TJAM). A premiação é resultado da junção de
esforços institucionais para viabilizar a Política Nacional de Incen-
tivo à Participação Feminina no Poder Judiciário (Resolução CNJ
nº 255/ 2018) e ratificar o engajamento para alcance das metas do
ODS 5 - Agenda 2030 da ONU, com especial atenção àquela que
vislumbra promoção de igualdade de gênero mediante participação
plena e efetiva das mulheres nos ambientes de tomada de decisão.
A modalidade concurso de artigos científicos foi escolhida por
entendermos que é preciso construir espaços de apresentação e vi-
sibilização do conhecimento produzido por mulheres, bem como
disseminar as perspectivas femininas sobre os fenômenos. Neste li-
vro, ao mostrarmos discussões sobre temas como a terra, os povos
e as tecnologias, entendemos estar expondo não só investigações de
pesquisadoras, mas formas de compreensão de mundo sob olhares
femininos. Inspiradas na noção de Ética do Cuidado1, pensamos que
as questões oriundas ou endereçadas ao Sistema de Justiça precisam
ser debatidas em articulação às noções de cuidado, proteção e com-
prometimento.
Fazendo jus a esse intento, foi considerada a relevante biogra-
fia de Nayde Vasconcelos, eleita em 1981 como a primeira desem-
bargadora do Tribunal de Justiça do Amazonas, para dar nome ao
concurso de artigos científicos. A figura da Desembargadora repre-
senta importante marco no judiciário amazonense para a superação
da desigualdade de gênero no poder público, pois seu pioneirismo
1 Constructo inicialmente desenvolvido pela pesquisadora Carol Gilligan, discute sobre a estrutura do ra-
ciocínio moral das mulheres estar orientada para o desenvolvimento de uma ética do cuidado e bem-estar
do outro. Elementos como os sentimentos, a conexão, o compromisso, o zelo e a proteção estão cultural-
mente presentes na estrutura do desenvolvimento moral feminino, conduzindo-nos à uma compreensão
de realidade que pondera sobre o bem-estar coletivo, e não apenas o individual.
5
materializou formas de construir a participação feminina com efeti-
vidade, cuidado e compromisso.
Assim, esperamos que as leitoras e os leitores sintam-se mo-
tivadas/ os a pensar sobre as questões aqui debatidas, utilizando o
material intelectual como subsídio para reflexões e transformação
da realidade.
Afetuosamente,
Comissão Organizadora
6
Discurso de abertura da
cerimônia de premiação
7
rio, permitindo assim que a sociedade conheça as contribuições das
mulheres que atuam e analisam esses temas
Recebemos, com grata surpresa e orgulho, a submissão de 60
artigos científicos, a demonstrar a pujança intelectual feminina e o
acerto desse projeto.
Todo o processo de organização e avaliação dos trabalhos foi
desenvolvido exclusivamente por mulheres que atuam no Poder
Judiciário, com destaque para o brilhante trabalho da Desembar-
gadora Vânia Marques Marinho, e teve todas as etapas de acordo
com as legislações aplicáveis a concursos dessa natureza, reforçando
o compromisso com a lisura do processo. Elas fizeram um trabalho
magistral, demonstrando novamente o nível de preparo e excelência
de nossas servidoras e magistradas.
Ainda são necessárias ações desse tipo, para incrementar da
participação feminina no âmbito do Poder Judiciário, sobretudo em
eventos institucionais, citações de obras jurídicas de referência e em
comissões de concurso e bancas examinadoras, considerando que o
índice de participação feminina até hoje é inferior nessas esferas, em
razão de anos de oportunidades reduzidas e sobrecarga feminina,
resultado de suas múltiplas jornadas.
A diversidade e a riqueza temática são um destaque entre os
artigos submetidos à premiação. Os textos tratam de temas como
direito ambiental, tecnologia e direito, justiça 4. 0, questões econô-
micas e terras indígenas, assédio e ambiente de trabalho, questões
sociais, racismo, justiça e saúde, entre outros, os quais decerto exigi-
ram muito trabalho da Comissão Julgadora.
Esperamos que o sucesso da primeira edição deste projeto
marque o início de uma exitosa jornada de produção intelectual, es-
timulando a multiplicação de trabalhos acadêmicos de autoria femi-
nina nas próximas edições deste Prêmio, o qual será aprimorado, de
modo a, talvez, contemplar mais categorias e premiar mais autoras.
Agradeço novamente a presença de todos e parabenizo, na
oportunidade, o empenho costumeiro da equipe da nossa Escola
8
para a produção de eventos que promovem a evolução acadêmica e
capacitação dos servidores deste Tribunal.
Parabenizo às autoras premiadas pelo êxito obtido, com votos
de que perseverem na produção científica, pois apenas por meio des-
ta podemos evoluir enquanto sociedade.
Desejo felicidade a todos e, desde já, um bom e Feliz Natal, e
um Próspero Ano Novo. Muito obrigado!
9
Sumário
Apresentação do livro...............................................................................5
Comissão Organizadora
Discurso de abertura da cerimônia de premiação......................................7
Desembargador Cezar Luiz Bandiera
Tecnologias de informação, autoritarismo midiático e monopolização
informativa: a erosão democrática nas redes...........................................11
1. Introdução
As tecnologias de informação representam um conjunto de
ferramentas que potencializam a quebra de paradigmas espaço-tem-
porais, aproximando indivíduos geograficamente distantes e permi-
tindo que as trocas de mensagens e informações sejam instantâneas.
As vantagens da facilitação das conexões, por outro lado, devem ser
acompanhadas por uma correspondente responsabilidade, de modo
a permitir que a difusão de informações atue pautada pela verdade
e pela garantia dos direitos fundamentais e dos princípios democrá-
ticos.
Ao se observar os perigos da massificação de inverdades pro-
pagadas pelos recursos tecnológicos, assumidas acriticamente e des-
preocupadamente com a verdade por um conjunto de indivíduos
capitaneados por figuras centrais que pré-selecionam as informações
e a forma como estas serão repassadas, denota-se uma ameaça demo-
crática que insurge pelos perigos do mau uso das tecnologias e de
ferramentas originalmente democráticas.
A monopolização informativa e a polarização de “focos da
verdade” culminam no surgimento do fenômeno do autoritarismo
1 Mestre em Direitos Humanos e Fundamentais pela UFMT. Bacharel em Direito pela Faculdade de Di-
reito da UFMT. Advogada com foco na área cível e empresarial. Aluna de mobilidade acadêmica - nível
Mestrado - Universidade de Coimbra (2021). Participante de intercâmbio acadêmico na Universidad de
Santiago de Compostela, Espanha (2018/ 2019). Membro do Grupo de Pesquisa de Direito Constitu-
cional da UFMT- GConst (2016 - atualmente) Bolsista de Iniciação Científica pela FAPEMAT (2017/
2018). Membro da Comissão de Direitos Humanos e Comissão do Direito do Idoso da OAB/ MT.
11
midiático, com a imposição de “verdades” pautadas não por fatos,
mas por interesses, e que direcionam uma coletividade a assumi-las
como verdades absolutas, em uma nova forma de pós-verdade.
Por meio de uma metodologia bibliográfica e documental e
pesquisa investigativa qualitativa, buscou-se combinar uma análise
sociojurídica do processo comunicativo e da sociedade de informa-
ção com questões atinentes ao aspecto jurídico-político da manipu-
lação da verdade para verificar os riscos de uma erosão democrática
pela prática interna de desvirtuação das ferramentas originalmente
democráticas de universalização da comunicação e ampliação da ex-
posição de pensamentos.
Em razão disso, em um primeiro momento foi analisado
como a comunicação e a informação se tornaram elementos centrais
na compreensão da estrutura tecnológica da sociedade contempo-
rânea para, na segunda parte do trabalho, verificar como verdades
individuais são impostas como novas verdades coletivas, por meio
de um autoritaritarismo midiático2. Por fim, buscou-se avaliar como
o uso inadequado dos direitos na esfera digital poderia impactar na
realização dos direitos fundamentais, em uma espécie de erosão de-
mocrática na qual as próprias ferramentas democráticas são utiliza-
das, de forma distorcida, para atacar a democracia.
2 Entende-se como midiático por se tratar de um elemento comunicativo intermediado por meios de
comunicação virtualizados.
3 SHANNON, Claude E. WEAVER, Warren. The mathematical theory of communication. Illinois:
University of Illinois Press, 1963.
12
A referida teoria foi importante ao estabelecer conceitos como
o da transformação da informação em mensagens transportadas por
um meio de comunicação, assim como por apontar uma necessária
etapa de recepção do ouvinte para efetiva transformação da mensa-
gem em informação e conhecimento.
Todavia, é certo que as variáveis de um processo comunicativo
não podem ser compreendidas como componentes de uma ciência
exata, uma vez que são dotadas de subjetividade inerente à pessoa
humana, bem como pela inegável existência de condições políticas,
sociais, culturais e individuais que contribuem para eventuais modi-
ficações, e até manipulações, do processo comunicativo.
Para conseguir compreender o papel da comunicação dentro
de uma realidade democrática informatizada, portanto, é importan-
te que se estabeleça o processo comunicativo como aquele respon-
sável pela troca de conhecimento, podendo favorecer ou prejudicar
o aparecimento de conhecimentos individuais e de grupos sociais,
organizados e sistematizados socialmente4, que também irão atuar
na construção da opinião pública e, consequentemente, se tornar
elemento central em democracias contemporâneas.
Compreende-se, assim, a chamada Sociedade da Informação
como aquela não apenas conceituada a partir do processo comuni-
cativo de compartilhamento de informações, mas também caracteri-
zada pelas mudanças introduzidas pelas tecnologias de informação e
comunicação (TICs) que modificaram e ainda transformam a estru-
tura social, criando novos papeis sociais, reforçando padrões já exis-
tentes e remodelando as formas de relações dentro de uma sociedade
cronicamente desigual.
As inovações tecnológicas e a necessária adaptação às novas
tecnologias, que assumem papel central na vida pessoal, política,
econômica, laboral e social, interagem e interferem na forma de
organização da sociedade e guardam estreita relação com a forma
como direitos serão reconhecidos, exercidos e validados.
13
Para além da teoria matemática da comunicação de Shannon
e Weaver5, Marshall McLuhan6 propôs considerações importantes e
atemporais sobre o papel das novas tecnologias como novos meios
de comunicação nas sociedades contemporâneas.
Apesar do incipiente desenvolvimento tecnológico e da Inter-
net na época da publicação, em 1964, muitas de suas considerações
podem ser aplicadas ou, ao menos, servem de reflexão para com-
preender a realidade ainda complexa, confusa e por vezes descoorde-
nada que permeia a realidade imposta pelas inovações tecnológicas e
suas repercussões na sociedade.
Em “Understanding media”7, depreende-se elementos chaves
para análise das formas de comunicação contemporâneas, seja pela
compreensão do meio como a própria mensagem, como pela dis-
tinção entre as possibilidade de participação e interpretação nesses
meios de comunicação.
A ideia de que “o meio é a mensagem”8, sintetiza o pensamen-
to de que as ferramentas tecnológicas influenciam, modelam e con-
trolam a forma como se dão as novas relações sociais no ambiente
virtual, deixando de assumir uma posição meramente passiva como
na teoria matemática de Shannon e Weaver.
Ao entender os meios de comunicação como uma extensão do
próprio ser humano que tem nessas ferramentas não apenas meios
de compartilhamento de informações, mas também instrumentos
de trabalho, estudo, relacionamentos sociais, ferramentas políticas e
profissionais, conclui-se pela imprescindibilidade da observação do
poder dessas tecnologias e seu impacto na estrutura social na qual
se insere.
14
O poder, portanto, não se encontra apenas na mensagem e
informação transmitidas, recebidas e reinterpretadas, mas também
está no próprio meio em que são veiculadas, alterando noções de
sentido, de capacidade de interpretação, compreensão e intensidade
com que referido meio é utilizado.
McLuhan também distingue os meios de comunicação (hot and
cool medias)9 de acordo com o grau de participação dos indivíduos no
processo de compreensão da mensagem, diferenciando-os a partir da
exigência de determinado grau de participação dos usuários.
Contextualizando o pensamento nos dias atuais, a distinção
é válida ao servir como um alerta acerca do fato de que o indivíduo
nem sempre terá a mesma participação e fará um uso crítico, de fil-
tragem e de interpretação das informações.
Por outro lado, referida teoria também desconsidera as condi-
ções socioeconômicas de exclusão social e de mitigação de direitos,
de desvalorização como membros ativos de uma sociedade construí-
da coletivamente, condições estas que também irão influenciar a for-
ma como as pessoas interagem com as tecnologias, a acessibilidade à
essas ferramentas e o potencial crítico, autônomo e participativo que
é direcionado a diferentes grupos sociais.
A partir dessa análise contemporaneizada das teorias comuni-
cativas, é possível também identificar que a finalidade comunicativa
pode ser sobreposta pelo adentramento de interesses econômicos e
políticos na esfera informativa, na qual as informações e conheci-
mentos (político, social, cultural, intelectual) serão expressos por
meio de tecnologias midiáticas, da mesma forma que refletem a rea-
lidade sociopolítica e cultural existente como em um “sistema de
feedbacks entre espelhos deformadores”10.
A forma de interação das pessoas com as tecnologias de in-
formação ao mesmo tempo em que transforma a realidade social,
9 MCLUHAN, Marshall. Understanding media. The extensions of man. Cambridge: The MIT Press.
1994.
10 CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. A sociedade em rede. Tradu-
ção de Roneide Venancio Majer. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 422.
15
é também modelada pelos interesses do público, que se segmenta e
promove a adequação contínua das mídias para as individualidades e
identidades que são consideradas “importantes” a serem preservadas.
Manuel Castells aponta que as tecnologias não funcionam
mais como um “envio de um número limitado de mensagens a uma
audiência homogênea de massa”11, mas sim acaba por promover uma
segmentação e seleção do processo comunicativo, especializando e
individualizando pessoas e grupos dentro de segmentos conforme
ideologia, valores, gostos e estilos de vida.
Em contraponto à teoria da aldeia global de Marshall
McLuhan, Manuel Castells vê uma individualização extrema no de-
senvolvimento do uso das TICs, o que se considera um desenvolvi-
mento complementar da teoria anterior e não necessariamente um
pensamento completamente antagônico.
Assim como em McLuhan, entende-se que a política adentra
a esfera comunicativa com uma nova espécie de propaganda política
com possibilidade de interação12, ao mesmo tempo em que transfor-
ma a informação e as tecnologias em objetos mercantilizados pauta-
dos por interesses econômicos e políticos.
A partir dessa mercantilização e politização do processo co-
municativo pelas TICs, o reforço de padrões sociais é consequência
da manutenção de uma estrutura que não universaliza a ferramenta
que se propunha a ser universal e democratizadora de informações
e conhecimentos.
As diferenças sociais e culturais ocasionam a segmentação dos
usuários-cidadãos “de acordo com seus interesses, pela exploração
das vantagens das capacidades interativas”13, com crescente estrati-
ficação social, dando espaço para o surgimento de novas formas de
exclusão e que irá demandar da democracia um cuidado redobrado
11 CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. A sociedade em rede. Tradu-
ção de Roneide Venancio Majer. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 424.
12 CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. A sociedade em rede. Tradu-
ção de Roneide Venancio Majer. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999
13 CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. A sociedade em rede. Tradu-
ção de Roneide Venancio Majer. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 457.
16
para não subverter ferramentas idealmente democratizadoras em no-
vos instrumentos de segregação.
Ao estarem as tecnologias também atentas aos interesses polí-
ticos e econômicos, podem atuar de forma inversa, retirando o uso
consciente, massificando pensamentos, ao mesmo tempo em que
segrega grupos de acordo com interesses, prendendo os usuários em
suas próprias esferas de comunicação onde se comunicam e decidem
se informar apenas daquilo que lhes seja confortável e benéfico.
A importância de se perceber a importância do diálogo de-
liberativo na construção político-social da sociedade é ainda mais
necessária em uma realidade permeada por contínuas inovações tec-
nológicas, seja pela criação de novos e mais modernos aparelhos, seja
pelo surgimento de novas funcionalidades e possibilidades dentro
desses recursos telemáticos.
Isso porque, nesse cenário, uma “moeda informativa” se apre-
senta como impulsionadora ou bloqueadora dos movimentos sociais
e de legitimidade das ações, decisões e teorias jurídicas, requerendo
uma constante revisão da forma como a sociedade está se comuni-
cando, se informando e, consequentemente, concretizando direitos
que se realizam (ou não) dentro de um contexto tecnológico.
É imprescindível, por outro lado, que não sejam esquecidas as
demais dimensões que estruturam a sociedade da informação, reco-
nhecendo que as tecnologias da comunicação, idealizadas hoje como
democratizadoras e para o uso globalizado, têm origem em ferra-
mentas desenhadas para uso em atividades econômicas específicas e
que não possuíam necessariamente objetivos de democratização de
acesso e de facilitação e adequação aos sistemas democráticos.
O uso para fins democráticos e de materialização de direitos
depende de uma construção sociojurídica subsidiada por um pano-
rama jurídico que analise, oriente e forneça parâmetros para a forma
como essas tecnologias devem ser desenvolvidas, quais usos podem
ser facilitados e melhorados e quais comportamentos perante essas
mídias devem ser corrigidos ou retirados do uso cotidiano das TICs.
O direito como um todo, e sobretudo os direitos humanos
como um processo de luta pela dignidade, perpassa pela recriação
17
das esferas de proteção e de novos espaços onde antigos direitos se
inserem e, portanto, a construção social da realidade informativa e
tecnológica também deve ser acompanhada de uma constante busca
pela realização desses direitos.
A multidiversidade de potencialidades comunicativas dentro
da estrutura tecnologizada não pode recair na invisibilização daque-
les previamente já marginalizados, fazendo com que seja aceita a
segmentação em “bolhas” comunicativas como um processo natural
do desenvolvimento das tecnologias, o que autorizaria, naturaliza-
ria e banalizaria a assunção de verdades individuais absolutas, agora
transformadas em um autoritarismo que dita a verdade coletiva seg-
mentada a ser internalizada por um grupo.
Compreender noções básicas do processo comunicativo e
como as tecnologias se inseriram no processo informativo e, por
consequência, na aplicação e criação de direitos, permite que melhor
se entenda como se constitui a democracia dentro dessa realidade
virtualizada, quais seus principais desafios, avanços e retrocessos, o
que melhor precisa ser estudado e observado de forma crítica e cons-
ciente.
São essas inquietações que direcionam a análise da democracia
e o desenho das instituições na “Sociedade em Rede”14 e que condu-
zem à percepção do surgimento de um autoritarismo midiático, no
qual a verdade individual absoluta se transforma em uma imposição
de verdade coletiva pensada e monopolizada, muitas vezes, por uma
figura central e reproduzida sem criticidade por um grande número
de pessoas, mergulhadas em uma nova forma paradoxal de pós-ver-
dade.
14 CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. A sociedade em rede. Tradu-
ção de Roneide Venancio Majer. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999
18
recíproca entre os usuários e as tecnologias, estando os primeiros
condicionados ao uso para realização das tarefas do dia a dia e as
segundas voltadas a atender aos interesses predominantes para se
manterem ativas e inovadoras.
Denota-se, portanto, o entrelaçamento entre a vida privada,
profissional, política, recreativa e social do cidadão enquanto usuá-
rio individual e cidadão, com a vida virtual, vivida na virtualidade
das relações intermediadas pelas ferramentas tecnológicas.
Com isso, direitos ligados à esfera pública e privada começam
a ser exercidos dentro do contexto virtual das redes, seja na dinâmica
privada, trabalhista, político-informativa e de prestação de serviços
públicos agora intermediados, em todo ou parcialmente, por recur-
sos e plataformas tecnológicas.
Se por um lado, há benefícios incontestes de ordem material
que facilitam e tornam maior o alcance de determinados direitos a
um número maior de indivíduos, por outro, é certo que potentes
benefícios devem ser acompanhados da correspondente responsa-
bilidade por parte da sociedade, do Estado e de cada cidadão no
uso consciente e coordenado das tecnologias e as oportunidades dela
advindas.
Ante à dinâmica tecnológica existente, a “produção do direito
legítimo através de uma política deliberativa”15, como apontado por
Habermas, faz com que a comunicação desponte como meio para
programar e regular conflitos, além da persecução de fins coletivos
baseados no diálogo e na construção deliberativa da vontade política
e da opinião pública:
Pois o direito é um medium que possibilita o translado das estruturas de re-
conhecimento recíproco - que reconhecemos nas interações simples e nas re-
lações de solidariedade natural - para os complexos e cada vez mais anômi-
cos domínios de ação de uma sociedade diferenciada funcionalmente, onde
aquelas estruturas simples assumem uma forma abstrata, porém impositiva.
Internamente, porém, o direito se estrutura de tal forma que um sistema po-
lítico, configurado juridicamente, só pode continuar as realizações naturais de
15 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II. Tradução Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 45
19
integração que se realizam sob o nível de articulação do direito formal - num
nível reflexivo. Ou seja, a integração social, realizada politicamente, tem que
passar através de um filtro discursivo16.
A importância e imprescindibilidade de se discutir os pressu-
postos comunicativos para se pensar em regular a interação e con-
vívio humano também é salientada por Eduardo Bittar ao pontuar
como “espaços comunicativos, oportunidades de fala, qualidade de
informações, ausência de coerção devam estar determinando o mo-
dus operandi das instituições”17.
A comunicação, portanto, não deve ser aqui compreendida
apenas como a transmissão e recepção de mensagens, mas também
como instrumento por meio do qual direitos são exercidos e ferra-
menta indispensável para a realidade democrática contemporânea,
sobretudo se pensada em um viés de deliberação e construção da
opinião pública pelo diálogo entre os cidadãos.
Há ainda a comunicação interinstitucional, essencial para que
seja preservada a separação dos poderes que, não alheios ou incomu-
nicáveis com as outras instituições, encontram no diálogo um cami-
nho para coordenar a manutenção de suas respectivas autonomias.
Marck Van Hoecke, ao discorrer sobre a democracia delibera-
tiva e a legitimidade democrática das decisões, aponta uma relação
circular e não linear, na qual os cinco círculos comunicativos permi-
tiriam o fortalecimento dos sistemas jurídicos e da força democrá-
tica.
Seriam os cinco círculos comunicativos a comunicação entre
(i) parte e juízes; (ii) corte superior avaliando as partes e corte infe-
rior; (iii) comunicação pelos comentários acadêmicos aos resultados
do julgamento; (iv) a comunicação pela mídia e audiência não ju-
rídica e (v) discussão pela comunidade em larga escala em questões
fundamentais, ética ou excessivamente políticas18.
16 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II. Tradução Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 45.
17 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Justiça, razão comunicativa e emancipação social: filosofia do direito
e teoria da justiça a partir do pensamento de Jürgen Habermas. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. v. 106/ 107, p. 565-589, jan. / dez. 2011/ 2012, p. 575.
18 HOECKE, Mark Van. Judicial review and deliberative democracy: a circular model of law creation
20
Denota-se que todo o círculo democrático da legitimação de
decisões jurídicas perpassa por todas as esferas de comunicação, seja
a interna (partes, juízes e cortes), como a pública especializada (aca-
demia), a pública intermediada (mídia e audiência não-jurídica) e a
pública geral (comunidade em larga escala).
Debruçar-se-á, portanto, sobre o quarto círculo comunicati-
vo, a comunicação pela mídia e audiência não jurídica, por se tratar
da dinâmica preponderantemente impactada pelo uso massivo de
tecnologias de comunicação e informação.
A comunicação de decisões jurídica, assim como a de acon-
tecimentos e conhecimentos à uma audiência não especializada faz
com que, segundo a teoria matemática de comunicação, as mensa-
gens e informações sejam transportadas aos receptores-cidadãos que
as transformam em novo conhecimento e nova informação a partir
de sua filtragem e interpretação.
Evidencia-se, portanto, o papel fundamental exercido pela fil-
tragem individual na construção da informação final que adentra à
esfera de conhecimento do cidadão. Em outras palavras, a capaci-
dade de leitura/escuta/visualização crítica das informações, decisões
judiciais e conhecimentos transmitidos por meio dos recursos tecno-
lógicos é peça essencial para se compreender por quais motivos uma
sociedade altamente tecnológica e informatizada ainda encontra es-
paços de demasiada desinformação.
Como ensina José Levi Mello de Amaral Júnior, ao mesmo
tempo que os meios de comunicação atuam como instrumento para
informação do cidadão e difusor de opiniões alinhados ao processo
deliberativo democrático, há também o risco da formação de fábri-
cas midiáticas de consenso19.
As fábricas midiáticas de consenso aqui são entendidas como
canais de comunicação permeados por interesses políticos e econô-
21
micos externos que tornam o processo comunicativo passível de ma-
nipulação e controle, na seleção de como e quanta informação será
efetivamente comunicada.
Com isso, a suavização do ético, moral e verdadeiro ameaça a
veracidade existente no processo comunicativo idealizado. E a criti-
cidade e filtragem individual para transformação das mensagens em
novos conhecimentos e informações interpretadas demanda cada
vez mais esforço e tempo de análise.
Por outro lado, em uma sociedade de indivíduos quase sem-
pre “sem tempo”, o filtro crítico das informações acaba sendo re-
lativizado ou até mesmo inutilizado e a comunicação de decisões
jurídicas e de comunicações de fatos e acontecimentos públicos e
políticos se torna um cenário corriqueiramente marcado por infor-
mações incompletas, distorcidas ou manipuladas.
É nesse contexto que desponta a figura da pós-verdade, termo
que ganhou notoriedade nos últimos anos e que é definido pela Ox-
ford Dictionaries20 como a possibilidade das notícias e informações
serem moldadas conforme apelos sociais e questões políticas, prete-
rindo a veracidade do seu conteúdo.
A validação de inverdades em razão de interesses privados ou
de grupos sociais específicos faz com que a linha que separa a infor-
mação e desinformação se torne cada vez mais tênue e de contornos
embaçados.
Para Ralph Keyes21, mentiras são eufemizadas para uma “eco-
nomia com a verdade”, em uma dinâmica de minimização dos efei-
tos perversos da desinformação em uma sociedade pretensamente
informada e que assume verdades individuais como premissas abso-
lutas, isolando-se em bolhas comunicativas que aceitam e admitem
apenas o que reputam subjetivamente “verdadeiro”.
20 OXOFORD Dicitionary. Post-truth. Disponível em: https:/ / en. oxforddictionaries. com/ definition/
posttruth. Acesso em: 11 de julho de 2022
21 KEYES, Ralph. The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. Disponível em:
https:/ / ralphkeyes. com/ book/ the-post-truth-era/ . Acesso em: 11 de julho de 2022
22
Isso significa que, por mais que o conceito de verdade seja
algo ontologicamente complexo, rememora-se que “verdades abso-
lutas como a dignidade da pessoa humana, liberdade e tolerância
atuam mesmo tempo como condições de verdade”22.
Em outras palavras, a verdade a ser compreendida individual-
mente não pode ser dissociada de sua conotação coletiva referente
ao caráter fundamental de princípios como o da dignidade da pessoa
humana, da liberdade e o dever de respeito às pluralidades inerentes
a uma realidade democrática.
Com base nesse cenário democrático de tecnologias, comu-
nicação e verdade, denota-se que a democracia mais do que nunca
depende de um povo verdadeiramente informado e necessariamente
consciente e crítico das informações que recebe, seja pela proteção
das verdades absolutas da dignidade, liberdade e respeito, como pela
defesa da própria lógica democrático-deliberativa, que depende de
cidadãos informados e hábeis a participar das esferas de discussão e
construção da opinião e vontade política.
A conjuntura social marcada pela presença da pós-verdade,
em sua concepção originária, é aquela similar à dinâmica descrita
por Manuel Castells, na qual o uso intenso das tecnologias poderia
acabar por fragmentar a sociedade em esferas individuais comunica-
tivas de pessoas imersas em sua própria rede.
Entretanto, ao lado do perigo da verdade absoluta individual
validada pelo fenômeno da pós-verdade em um complexo de pseu-
do-verdades individuais, constata-se a ocorrência da imposição de
verdades coletivas pensadas, muitas vezes, por um personagem cen-
tral e reproduzida e reforçada por uma massa de seguidores acríticos,
uma nova espécie de pós-verdade.
Diz-se nova forma de aparecimento do fenômeno da pós-ver-
dade uma vez que não se trata da simples assunção de uma verdade
individual como verdadeira, banalizada pela despreocupação com a
22 KEYES, Ralph. The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. Disponível em:
https:/ / ralphkeyes. com/ book/ the-post-truth-era/ . Acesso em: 11 de julho de 2022
23
verdade real, mas sim de estratégias jurídico-políticas voltadas a cria-
ção de “verdades” a serem validadas coletivamente em um movimen-
to de pós-verdade conjunto entre determinado grupo de pessoas.
Necessário se faz lembrar que quem alicerça uma democracia
é o povo, e o papel do povo na política e na realização dos direitos
pensados pelas instituições deve passar a considerar o cidadão como
participante ativo e não passivo, ao risco de subverter o poder eman-
cipatório e reivindicatório da população em um seguidismo acríti-
co23, em sentido oposto ao aperfeiçoamento informativo esperado.
Importante ponderar, neste momento, que o reconhecimento
da importância do povo informado para a democracia e do risco da
criação de verdades coletivas por uma figura central resvala na noção
negativa de populismo que pode ser assim descrita:
A noção mais arraigada identifica populismo à noção negativa de política na
qual haveria primado dos afetos em detrimento da racionalidade. Neste senti-
do, o líder populista seria o protótipo da liderança carismática, que manipula
o eleitor através de práticas clientelistas e rituais públicos em que as massas
seriam cooptadas. (...) Seguindo esta linha, populismo é uma acusação a prá-
ticas políticas em regimes absolutamente distintos entre si. A atualização do
conceito descreve líderes que usam as modernas tecnologias de comunicação
como forma de mobilização de seu eleitorado24.
A inclusão do povo suficiente informado e crítico no uso das
ferramentas tecnológicas disponíveis difere da inserção de uma mas-
sa inconsciente em movimentos de legitimação de interesses priva-
dos ou individuais e, nesse sentido, é importante diferir uma crítica
ao populismo, como movimento necessário de legitimação do poder
popular, do autoritarismo midiático exercido sobre uma massa que
não pode ser responsabilizada pela manipulação e monopolização
informativa que passam a existir.
É dizer, cria-se uma forma de tentativa de controle da sobera-
nia popular, por meio da monopolização das informações concen-
23 FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo
Garcia; Antônio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boi-
teux, 2009.
24 FERNANDES CAMARA, Heloisa. Populistas e autoritários? Debates sobre usos do conceito/ Populists
and authoritarians? Discussions about uses of the concept. Revista Direito e Práxis, [S. l. ], v. 12, n. 2, p.
861-884, jun. 2021. ISSN 2179-8966, p. 866.
24
tradas em propagar informações e conhecimentos fragmentados ou
mesmo manipulados, desestimulando um uso crítico das ferramen-
tas tecnológicas e incentivando a materialização da pós-verdade em
contextos coletivos e previamente direcionados.
É uma forma de bloqueio da esfera pública da opinião entre
grupos antagônicos, por meio de um “conjunto de ações determi-
nadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a
esfera da opinião: a mídia monopoliza a informação, e o consenso é
confundido com a unanimidade”25.
Com isso, não se trata de pós-verdades individuais que atin-
gem a uma esfera restrita de forma descoordenada, mas sim de pós-
-verdades coletivas, impostas por ações planejadas de grupos antagô-
nicos que buscam monopolizar a sua própria verdade colocando sua
discordância “como ignorância, atraso ou ignorância”26.
Não se ataca um populismo midiático negativo, mas sim um
autoritarismo das mídias, controladas e por vezes planejadamente
manipuladas, buscando não ampliar, mas reduzir as possibilidades
de aperfeiçoamento da democracia pelo exercício da soberania po-
pular de um povo falsamente ou manipuladamente informado.
O círculo comunicativo composto pelas mídias, meios de co-
municação e pela audiência não-jurídica deve encontrar o equilíbrio
entre, de um lado, uma liberdade e maior leque de possibilidades do
exercício de atuação democrática de validação das decisões políticas
e jurídicas e, de outro lado, a responsabilidade, cautela e criticidade
necessárias para o exercício dessa liberdade e do aproveitamento des-
sas oportunidades.
Nas palavras de Heloísa Câmara, é necessário distinguir o es-
tudo dos novos autoritarismos e sua influência constitucional do
legítimo papel do povo no direito constitucional, sendo o primeiro
25 CHAUÍ, M. Democracia e sociedade autoritária. Comunicação & Informação, Goiânia, Goiás, v. 15,
n. 2, p. 149–161, 2013. Disponível em: https:/ / revistas. ufg. br/ ci/ article/ view/ 24574. Acesso em: 8
jul. 2022, p. 160.
26 CHAUÍ, M. Democracia e sociedade autoritária. Comunicação & Informação, Goiânia, Goiás, v. 15,
n. 2, p. 149–161, 2013. Disponível em: https:/ / revistas. ufg. br/ ci/ article/ view/ 24574. Acesso em: 8
jul. 2022, p. 160.
25
uma ameaça urgente e o segundo uma perene necessidade democrá-
tica27, a fim de evitar, por fim, uma silenciosa erosão democrática
pelo uso descoordenado das tecnologias na realização de direitos.
27 FERNANDES CAMARA, Heloisa. Populistas e autoritários? Debates sobre usos do conceito/ Populists
and authoritarians? Discussions about uses of the concept. Revista Direito e Práxis, [S. l. ], v. 12, n. 2, p.
861-884, jun. 2021. ISSN 2179-8966.
28 MARENGHI, Patricia, BADILLO Ángel, De la democracia mediática a lademocracia electrónica. CIC.
Cuadernos de Información y Comunicación [Internet]. 2001; (6):39-61, p. 42.
26
Ao mesmo tempo, também é necessário que essas tecnologias
não estejam condicionadas a se tornarem meros veículos de inverda-
des propagadas com um falso véu de veracidade, legitimando movi-
mentos antidemocráticos em nome de uma suposta democracia de
informação.
Não há apenas uma função político-eleitoral das tecnologias
dentro de uma democracia, mas também subsiste uma função de
realização dos direitos do cidadão.
Um estudo espanhol29 acerca da democracia relacionada às
mídias aponta que os meios de comunicação apresentam dois pa-
peis: o primeiro de construtores dos discursos das instituições que
informam os cidadãos, e o segundo como construtores da opinião
pública a partir da qual as agendas e decisões políticas são tomadas.
Ou seja, da mesma forma que facilita a opinião pública, tam-
bém é por ela moldada, ao ser o meio pelo qual políticos avaliam
as condições nas quais irão sustentar ou não discursos favoráveis às
suas agendas e decisões. Com isso, permite-se que pronunciamentos
e discursos sejam moldados e informações sejam disseminadas com
intuito de agradar determinado grupo de destinatários, polarizando
eventual oposição como equivocada ou falaciosa ao contrapor a ver-
dade construída unilateralmente por uma figura autoritária central.
Rememora-se que a comunicação entre instituições, socieda-
de e entre os representantes e setores políticos depende das interco-
municações entre cada um desses setores, isto é, uma comunicação
entre as instituições políticas, jurídicas e sociais; entre os movimen-
tos sociais e a sociedade em geral; e também entre os representantes
políticos, independente de polarizações e conflitos, que jamais de-
vem se sobrepor às necessidades e aos direitos dos cidadãos.
É indispensável que cada cidadão e cada instituição não cons-
truam e se sirvam do seu próprio “menu” de dados e documentação
política, que fragmentam e dificultam opções e programas políticos
27
coletivos30, por meio de um autoritarismo da verdade, embasada não
em fatos, mas em interesses.
Uma visão positiva da democracia informativa mediada pelas
tecnologias é aquela na qual as redes funcionam como um “tecido
conectivo que permite unir os cidadãos através de uma comunicação
livre, direta e imediata”31, assim como ampliam a capacidade de con-
tribuição do cidadão na formação da vontade legislativa do Estado
e da opinião pública direcionadora da agenda política de um país.
A visão forte da teledemocracia defendida por Pérez Luño32
poderia ser ainda acrescida da ideia da utilização dessa rede conectiva
para a materialização de direitos humanos e direitos fundamentais,
permitindo que a defesa desses direitos, o combate às desigualdades
e à desinformação, e a proteção da própria democracia acontecesse
pela percepção da influência das TIC’s nesses cenários e pelo reco-
nhecimento de que uma cultura democrática e de direitos humanos
poderia ser criada nesse contexto tecnológico e digital.
As tecnologias devem ser concebidas como ferramentas cons-
trutoras da opinião pública e como canais de acesso às informações
básicas para o exercício da cidadania e dos direitos, seja em questões
eleitorais, permeadas por deturpações e manipulações informativas,
como em contextos humanitários, onde informações e uma boa co-
municação são fundamentais para garantia dos direitos e da dignida-
de da pessoa humana em suas mais variadas dimensões.
As tecnologias de comunicação não repercutem e modificam
apenas as relações de comunicação, mas têm repercussões sociopolí-
ticas33, interseccionando processos tecnológicos, políticos, jurídicos,
econômicos e sociais, e necessitando de uma abordagem interdisci-
30 SUNSTEIN, Cass R. República. com. Internet, democracia y libertad. Barcelona: Editorial Paidós,
2003.
31 LUÑO, António-Enrique Pérez. Teledemocracia, Ciberciudadnia y Derechos Humanos. Revista Brasi-
leira de Políticas Pública, v. 4, n. 2, 2014. p. 8-46, p. 30.
32 LUÑO, António-Enrique Pérez. Teledemocracia, Ciberciudadnia y Derechos Humanos. Revista Brasi-
leira de Políticas Pública, v. 4, n. 2, 2014. p. 8-46.
33 LUÑO, António-Enrique Pérez. Teledemocracia, Ciberciudadnia y Derechos Humanos. Revista Brasi-
leira de Políticas Pública, v. 4, n. 2, 2014. p. 8-46.
28
plinar não apenas sociológica e comunicativa, como também jurídi-
co-política.
Para o constitucionalista34, ao mesmo tempo em que se in-
tenta extrair o potencial máximo de desenvolvimento das TIC’s para
um reforço da condição cívica, também se objetiva estabelecer ga-
rantias que protejam os cidadãos da “agressão tecnológica” dos seus
direitos.
Em outras palavras, o desenvolvimento e a ampliação da pre-
sença das TIC’s representam tanto um potencial positivo de refor-
mulação e melhorias no exercício da cidadania, por meio de uma
maior participação e um maior acesso aos canais de informação e de
comunicação com representantes e instituições, como também, por
outro lado, representam perigos e ameaças, sobretudo quando uti-
lizadas para disseminar e reproduzir desinformações como verdades
autoritárias criadas apenas para contrapor interesses opostos.
Significa também dizer que, ao mesmo tempo em que o direi-
to à liberdade de expressão atinge um alcance global e, aparentemen-
te, mais universalizado, também resvala no desigual acesso às ferra-
mentas digitais e no necessário limite configurado pelo simultâneo
exercício do direito à informação verdadeira e adequada.
Isso porque, o direito à liberdade de expressão se configura
pela livre comunicação de ideias e opiniões em um cenário demo-
crático plural e aberto à diversidade inerente ao povo e o acesso à
informação e a liberdade para usufruir das informações acaba por
traçar limites à liberdade de expressão que não pode se dar pela co-
municação de informações e opiniões que violem uma informação
verdadeira e pautada pelo respeito aos direitos fundamentais.
Na esteira das criações de verdades autoritárias criadas para
validação de interesses antagônicos, denota-se o apagamento da vin-
culação necessária entre a liberdade e o dever de informar e ser in-
formado. Como ensina José Levi do Amaral Júnior35, a “liberdade
29
de expressão é inerente à democracia, não só como direito de ser
ouvido, mas também enquanto direito de ouvir o que os outros têm
a dizer”.
Isso significa que entender a dualidade necessária entre liber-
dade de expressão e liberdade de informação é compreender que a
“liberdade de expressão completa-se no direito à informação, livre e
plural”36.
A presença de um autoritarismo midiático criador de verdades
individuais expandidas como verdades coletivas segmentadas repre-
senta uma grave afronta à democracia, assim como permite que um
direito fundamental tenha seu uso distorcido para utilização como
ferramenta justificadora da transgressão de outros direitos funda-
mentais.
Isso acontece, por exemplo, quando se justifica a ofensa às
minorias e grupos vulneráveis, os ataques à honra e à privacidade,
a ocorrência de discursos misóginos, de ódio e atentatórios à dig-
nidade humana, sobretudo encobertos pelo uso das tecnologias de
informação, em nome de um (falso) exercício do direito à liberdade
de expressão.
A utilização de ferramentas constitucionais, como os direitos
fundamentais, para ferir e violar pressupostos democráticos e os pró-
prios direitos fundamentais desequilibra a relação entre constitucio-
nalismo e democracia, impacta negativamente a realização de direi-
tos em uma sociedade tecnologicamente democrática e abre espaço
para que a democracia e os direitos sejam atacados internamente,
por meio do uso corrompido dos próprios direitos e princípios de-
mocráticos oferecidos. Esse cenário pode ser visto quando:
Os atuais processos de mudança política têm se refletido diretamente no di-
reito constitucional, através de descumprimentos de normas constitucionais,
minimização da importância de direitos fundamentais, alterações da própria
30
constituição e, em sentido amplo, do questionamento da relação entre consti-
tuição e política37.
37 FERNANDES CAMARA, Heloisa. Populistas e autoritários? Debates sobre usos do conceito/ Populists
and authoritarians? Discussions about uses of the concept. Revista Direito e Práxis, [S. l. ], v. 12, n. 2, p.
861-884, jun. 2021. ISSN 2179-8966, p. 834.
38 LUÑO, António-Enrique Pérez. Teledemocracia, Ciberciudadnia y Derechos Humanos. Revista Brasi-
leira de Políticas Pública, v. 4, n. 2, 2014. p. 8-46, p. 37.
39 LUÑO, António-Enrique Pérez. Teledemocracia, Ciberciudadnia y Derechos Humanos. Revista Brasi-
leira de Políticas Pública, v. 4, n. 2, 2014. p. 8-46.
40 LUÑO, António-Enrique Pérez. Teledemocracia, Ciberciudadnia y Derechos Humanos. Revista Brasi-
leira de Políticas Pública, v. 4, n. 2, 2014. p. 8-46.
31
Quando as informações, do setor público e privado, passam
a primar pelo interesse particular ao invés do interesse público, ci-
dadãos passam a representar uma massa de “consumidores passivos
de política mediada”41, ou ainda, usuários imersos e segmentados
em suas próprias esferas comunicativas de seleção do que querem
ser informados, afundados em verdades coletivas desapegadas da ve-
racidade dos fatos, mas legitimadas por um autoritarismo das redes
centralizados em figuras específicas e geralmente polarizadoras de
conceitos, conhecimentos e opiniões.
Como consequência dessa mercantilização e polarização, as
relações sociopolíticas podem encontrar no uso descoordenado das
tecnologias um instrumento de “despersonalização do cidadão e
para sua alienação política”42, e o meio de veiculação das mensagens
passa a integrar uma esfera de controle político, na qual o isolamen-
to de usuários-cidadãos e a falta de integração social conduz a uma
apatia e despolitização dos cidadãos.
Essa apatia política pode ser equiparada à cidadania bloquea-
da descrita por Boaventura de Sousa Santos43, e que é complementa-
da pela ideia de que racionalização política, ao invés de se basear em
informações concretas, bem estruturadas e refletidas a partir de uma
comunicação deliberativa entre sociedade e instituições, passa a ser
substituída por tomadas de decisões fundamentadas em informações
fragmentadas e construídas de forma seletiva em relação aos interes-
ses econômicos e políticos de grupos antagônicos.
Quando a intensa tecnologização das atividades públicas
ocorre em paralelo à uma fragmentação e manipulação dos usuários-
-cidadãos, orientados por (in)verdades autoritárias, a interação entre
a sociedade, na mobilização por lutas sociais, também é fragmenta-
da e enfraquecida, com uma participação debilitada pela criação de
novos espaços de segregação, de desigualdade e de controle social.
32
A par de tudo isso, cidadanias bloqueadas despontam como
cidadãos despolitizados e desinteressados em democratizar o novo
espaço político, conduzidos por um exercício político acrítico, in-
consciente, não emancipado e, consequentemente, não empodera-
do.
Ao invés de favorecer uma esfera de reconhecimento pauta-
da pela justiça e solidariedade, insurge uma contracultura política
fundada em um “vazio de valores comunitários”44, que não apenas
mina a participação direta como prejudica também a representação
dos cidadãos.
A “erosão das democracias”, segundo Hug e Ginsburg45, não
ocorre, em sua maioria, por “reversões autoritárias” como acontecia
antigamente, mas sim por “retrocessos constitucionais”, podendo
ser indicado o uso descoordenado, mercantilizado e excludente das
TIC’s como um propulsor de retrocessos constitucionais nas demo-
cracias contemporâneas.
A forma como a democracia na sociedade da informação é
organizada em torno da informação mediatizada por tecnologias
tem como causa e consequência o surgimento de uma “cibercidada-
nia”, como defendida por Pérez Luño, que necessita de criticidade e
emancipação no seu exercício para alcançar a configuração de cida-
dania ativa pautada pela informatização, pelo diálogo e pela verdade.
A informação como elemento de poder comunicativo, polí-
tico, social e econômico e a comunicação por tecnologias como o
meio de repasse, recebimento, validação e configuração dessas in-
formações, transformam a dialogicidade e o caráter deliberativo em
fatores ainda mais imprescindíveis para a democracia e com novos
obstáculos a serem enfrentados.
Para conceber a importância e inegável impacto das tecnolo-
gias nas realidades democráticas, deve-se pensar o oposto de cenários
33
marcados pela desinformação ou de manipulação contínua das in-
formações, como acontece em cenários distópicos de utilização de-
turpada, totalitária e descoordenada das tecnologias, que oprimem
liberdades e alienam indivíduos à completa insensibilização e exclu-
são do outro, como em cenários literários presentes em obras como
1984, de George Orwell.
As desinformações repassadas de forma massiva, não filtradas
e interpretadas com criticidade e reproduzidas acriticamente asse-
melham-se ao contexto do Ministério da Verdade da obra literária,
responsável pela propaganda enganosa na distopia de um Estado au-
toritário fictício, que exercia um controle social extremo a partir da
comunicação tecnologizada de inverdades assumidas coletivamente
como absolutas verdades.
Na narrativa fictícia, há uma verdadeira insensibilidade e
esquecimento programado daqueles que não são mais produtivos,
considerados úteis ou interessantes às sociedades fictícias, bem como
o conhecimento crítico e a informação sobre as ações dos governos
são vedadas, em completa alienação da sociedade, silente e cega às
identidades e pluralidades.
A ficção deve ser ao máximo afastada da realidade, uma vez
que cenários distópicos como os retratados nos livros devem ser evi-
tados e não ganhar contornos de facticidade.
5. Considerações finais
A utilização de ferramentas tecnológicas não pode apagar o
lado humano de quem as utiliza, devendo estar presente a cons-
ciência, a criticidade, a sensibilidade e humanidade dos usuários ao
dispor dos recursos disponíveis na constante inovação tecnológica
das redes.
Tecnologias, sobretudo as de informação e comunicação, fa-
zem parte da estrutura da sociedade contemporânea, permeando as
relações sociais estabelecidas e o cenário democrático existente, uma
vez que o debate e a deliberação muitas vezes são intermediados
pelas mídias sociais.
34
Os canais de comunicação também adquirem papel funda-
mental na construção de cidadãos ativos e informados, que dispõem
não apenas de recursos telemáticos, mas da capacidade crítica de
leitura e de reprodução das mensagens, possibilitando uma esfera
pública mais inclusiva, abrangente e globalizada.
Por outro lado, as inúmeras vantagens não apagam a existência
de riscos inerentes ao uso desenfreado e não regulado das tecnolo-
gias, sobretudo quando considerada a impossibilidade da legislação
acompanhar os contínuos avanços e modificações que as tecnologias
promovem no cotidiano social.
O fenômeno da pós-verdade é amplamente debatido ao lon-
go dos últimos anos e, neste trabalho, foi abordado a partir do viés
de uma pós-verdade coletiva criada por uma figura central que im-
põe sua (in)verdade por meio de um autoritarismo midiático que
desqualifica e imputa como ignorante qualquer ideia e pensamento
contrário ao seu.
Com isso, torna-se possível que direitos intermediados pelas
ferramentas tecnológicas sejam utilizados de forma indevida, abusi-
va e distorcida de modo a atacar outros direitos, fazendo com que a
democracia e os direitos fundamentais sejam corroídos (ou erodidos)
internamente, em movimentos de deslegitimação que ocorrem a par-
tir do uso das próprias ferramentas democráticas e constitucionais.
Como exemplo tem-se o direito à liberdade de expressão mui-
tas vezes utilizado para propagação de discursos de ódios, de desres-
peito ao próximo, de ataques à honra e a intimidade e desvirtuação
da noção de liberdade de expressão.
Há também, a utilização das tecnologias como instrumentos
de controle social e de reprodução de conteúdo inverídico como se
fato verídico fosse, em completo desrespeito ao direito à liberdade de
informação que não pode ser dissociada da liberdade de expressão.
Ademais, pode-se listar outros direitos afetados como o res-
peito à intimidade e privacidade, o direito à publicidade, o direito
à participação e representação política e o acesso à serviços públicos
muitas vezes facilitados (ou não) por meio de recursos de tecnologia.
35
Fato incontroverso é que a presença de um autoritarismo mi-
diático de inverdades polui a esfera pública deliberativa e faz com
que a democracia seja gravemente afetada, tanto por polarizações
entre verdades absolutas como pela massificação do povo em grupos
inconscientes da informação consumida.
Conscientizar, criticar, repensar, empoderar e reconhecer o
papel do usuário-cidadão na construção de uma democracia mais
sólida e menos porosa às inverdades autoritárias é questão e objetivo
atual a serem considerados.
36
Conflitos e disputas no
direito: o caso do desastre-
crime da Samarco/ Vale/ BHP1
1. Introdução
O objetivo deste artigo é discutir as contradições do atual ce-
nário jurídico diante de desastres e crimes na mineração. Essa dis-
cussão faz parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado de-
senvolvida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/ UFF), entre 2019 e
2021. Como caso empírico do estudo está o desastre-crime3 decor-
rente do rompimento da barragem de rejeitos de mineração deno-
minada Fundão, da empresa Samarco Mineração S. A e de suas con-
troladoras Vale S. A e BHP Billiton, ocorrido no dia 5 de novembro
de 2015, no município de Mariana, Minas Gerais. Trata-se do maior
desastre envolvendo barragem de rejeitos de mineração do mundo,
em termos de volume de material liberado - cerca de 60 milhões
m³ - e extensão atingida - 663 km -, que fez também do rio Doce
um depósito de rejeitos e uma extensão do complexo minerário da
Samarco/ Vale/ BHP. Em seus desdobramentos jurídicos e institu-
cionais, tem se desenvolvido conflitos, que possibilitam investigar
determinadas práticas jurídicas e modelos de reparação de danos (re)
produzidos nesse caso, ao longo dos últimos sete anos.
Para isso, utilizou-se os aportes teórico-metodológicos da Pes-
quisa Empírica no Direito a partir da Teoria Crítica, tendo em vista
1 A pré-publicação original com algumas alterações deste texto foi feita em InSURgência: revista de direitos
e movimentos sociais, com o título “O direito como campo de conflito no caso do crime da Samarco/
Vale/ BHP: disputas e contradições em seu processo de reparação”.
2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminen-
se - PPGSD/ UFF (2022-2026).
3 O termo desastre-crime é utilizado tanto pelo sentido sociológico de desastre, que é explicitado ao longo
do texto, como no sentido jurídico, por se tratar de crimes ambientais e penais, e político de evidenciar
que o desastre poderia ter sido evitado.
37
perspectivas críticas e interdisciplinares entre o direito e as ciências
sociais. Trata-se de uma proposta de articulação entre a Pesqui-
sa Empírica em Direito e a Teoria Crítica. A primeira consiste no
acúmulo téorico-metodológico da Rede de Estudos Empíricos em
Direito4. Já a segunda diz respeito, em especial, ao Materialismo
Histórico-Dialético, em diálogo com as epistemologias decoloniais.
Fruto de um trabalho coletivo, essa articulação se volta para a ideia
da aplicação do direito como problema de conhecimento. Ou seja,
o direito é concebido como prática a ser problematizada histórica
e epistemologicamente. Nela, os conflitos sociais são entendidos
como lócus privilegiado de compreensão do universo social, pois
são momentos de tensão em que as diferentes versões em termos
de interesses, os diferentes agentes do processo em curso e as suas
contradições aparecem de modo mais explícito5,6.
O direito tem sido um dos principais espaços de conflito e
disputas travados, de forma geral, entre as empresas mineradoras
Samarco S. A, Vale S. A e BHP Billiton, agentes do Estado e popula-
ções atingidas. O sistema de justiça tem sido acionado de diferentes
maneiras e por diferentes agentes e grupos sociais, em diversos mo-
mentos. Dezenas de acordos, judiciais e extrajudiciais, ações judi-
ciais coletivas e milhares de ações judiciais individuais foram propos-
tas no decorrer dos últimos sete anos. Ao mesmo tempo, tais meios
institucionais e legais são disputados pelas populações atingidas, por
meio da sua organização, articulação e resistências, ao produzir po-
lítica, técnica e direito, historicamente e no curso do processo de
reparação7. Ao invés de campo de consenso, o direito é, então, um
4 MACHADO, M. R. (org. ). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos
em Direito, 2017.
5 RIBEIRO, A. M. M. O trabalho coletivo do OBFF: Por uma sociologia “desde abajo”. Confluências:
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. v. 21, n. 2: dossiê especial. Niterói: PPGSD/ UFF,
2019.
6 RIBEIRO, A. M. M. ; FREITAS, E. O. ; MADEIRA FILHO, W. M. ; BORGES, N. M. ; NOVAES,
R. B. Pesquisa empírica em Direito a partir da Teoria Crítica: as contribuições da escola teórico-metodo-
lógica do PPGSD e do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF). In: O Brasil que arde e a boiada
que passa: instituições, conflitos e relações de poder. OLIVEIRA, V. L. ; RIBEIRO, A. M. ; LOBÃO,
R. (org. ). Rio de Janeiro: Autografia, 2020. p. 265-307
7 CAVA: mineração em debate. Destruição do Rio Doce: um desastre que dura cinco anos - Parte 2. [Lo-
cução de] Raquel Giffoni; Bruno Milanez. Entrevistados: Lelis Barreiros; Verônica Viana; Simone Silva.
Anchor, nov. , 2020. Podcast.
38
campo em disputa, em que os conflitos se desenvolvem de forma
complexa e contraditória, evidenciados em tensionamentos sociais,
que comportam os diferentes significados e ordens jurídicas sobre os
territórios e a realidade8,9.
Com base nos métodos da pesquisa com abordagem quali-
tativa, como o estudo de caso e análise de documentos, utilizou-se
como fontes de pesquisa os cadernos de campo, feitos entre 2016
e 2019, no Espírito Santo e Minas Gerais, e documentos jurídi-
cos. Estes últimos são referentes à litigância em torno da disputa
por direitos das populações atingidas em tensão com os interesses
das empresas por reduzir custos da reparação, em especial, em um
processo judicial. Neste caso, os cadernos de campo serviram para
apreender o contexto em que esses documentos foram produzidos e
as relações de forças presentes dentro e fora do documento jurídico.
Os objetivos foram problematizar o atual cenário jurídico para a
gestão ou administração dos desastres na mineração, por meio da
análise de como os meios legais para a reparação do desastre têm
sido implementados e executados e como os conflitos se expressam
no campo do direito, enquanto um campo em disputa; e identificar
as argumentações jurídicas utilizadas em torno da responsabilidade
civil, que mostram diferentes concepções e interesses sobre o direito
e o processo de reparação. Tais objetivos se inserem nas discussões de
como o desastre-crime da Samarco/ Vale/ BHP expõe uma série de
conflitos e relações de forças que nos possibilitam observar e investi-
gar a dimensão empírica do direito.
Não obstante a importância da tutela ambiental e do pro-
cesso de consolidação de um direito voltado para a prevenção e
reparação de desastres ambientais, a lógica compensatória e inde-
nizatória de caráter dogmático por detrás do arcabouço jurídico
apresenta entraves para administrar os conflitos e os problemas es-
truturais decorrentes do modelo de mineração brasileiro, que pro-
duz desastres como o da Samarco/ Vale/ BHP. Na segunda seção
8 THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
9 LYRA FILHO, R. O que é direito. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.
39
deste artigo, destacam-se algumas especificidades dos desastres na
mineração que são importantes para qualquer tentativa de tutela
jurídica. É o caso das suas múltiplas dimensões que extrapolam
aquelas previstas no licenciamento ambiental ou em modelos de
indenização de danos criados sob uma lógica negociada e empre-
sarial que, apesar de aparentemente flexibilizar os modelos tradi-
cionais de responsabilidade civil, acaba reforçando eixos civilistas
tradicionais. Tais modelos e tendências são problematizados na
terceira seção do artigo.
Na quarta e última seção, os conflitos e disputas entre di-
ferentes agentes do campo do direito são objeto de análise, por
meio das argumentações jurídicas presentes em um processo ju-
dicial. Observam-se no direito, de um lado, práticas restritivas,
no sentido de pulverizar o crime ambiental, transmudando-o em
quantificação de danos e desvalidando qualquer outro aspecto e,
de outro, ações que procuram abrir o leque de normativas regra-
doras de direitos para comunidades atingidas, através dos meios
legais disponíveis e de noções emergentes e emancipatórias de jus-
tiça ambiental. Nessas disputas, destaca-se o instituto jurídico da
responsabilidade civil, utilizado tanto em um sentido mais restri-
tivo como de forma mais ampliada, a depender da concepção e in-
teresses do grupo que o utiliza, que pode estar relacionada à visão
de mundo e à inserção de classe, raça e gênero de quem fala através
do documento.
40
caso as barragens, para descarte de rejeitos, produzem riscos poten-
ciais às vidas humanas e não-humanas, evidenciadas nas sucessivas
etapas de expansão da Samarco Mineração S. A e de seu complexo
minerário de mineração-indústria-siderurgia-porto10. Essa novidade
remete a um mesmo padrão capitalista, colonial e moderno, que
implica a degradação sistemática da vida coletiva, de modo que a
devastação dos territórios corre em paralelo à violação de direitos
das populações atingidas, ao mesmo tempo em que o capital mineral
acumula e concentra riqueza11.
A ideia de que os desastres são produzidos e criados por esse
modelo de mineração aparece de forma mais evidente no trabalho
de autores que identificaram uma relação estrutural entre rompi-
mento de barragens de rejeitos e os ciclos econômicos da mineração.
Essa relação consiste no aumento da ocorrência dos rompimentos
durante o processo recessivo dos ciclos de preços de minérios, cha-
mado de pós-boom, quando há uma intensificação da exploração
mineral para manter os lucros obtidos anteriormente, além de uma
série de causas e elementos que criam esses riscos12,13. A ruptura da
barragem do Fundão faz parte da trajetória de desastres de barragens
no Brasil e está relacionada a fatores como: os procedimentos de mo-
nitoramento precários; as práticas corporativas orientadas à redução
de custos operacionais quanto à disposição de rejeitos e às condições
de trabalho deterioradas pela adoção de uma ampla política de ter-
ceirização; fragilidades institucionais quanto ao processo de licen-
ciamento ambiental e capacidade aquém dos órgãos ambientais para
41
lidar com os riscos das obras e complexos minerários; retrocessos nas
legislações ambiental e mineral, entre outros14,15.
Nas ciências sociais, existe uma literatura que dialoga com
essa realidade e busca explicar os desastres, em sua amplidão e
complexidade quanto às suas consequências e desdobramentos so-
cioambientais, territoriais, institucionais, econômicos, políticos e
afetivos16,17,18,19. De forma geral, tais perspectivas trabalham com
a concepção de que o desastre não tem início no rompimento da
barragem de Fundão, nem tem uma previsão de fim, diante dos
problemas das vítimas, aprofundados pela sua gestão empresarial e
tratamento institucional. Tal concepção leva em conta a dimensão
histórica mais ampla dos conflitos entre diferentes coletividades e a
mineração, que pode ser observada tanto em Minas Gerais, como no
Espírito Santo. Nesse sentido, o desastre faz parte da ordem social
e está relacionado às injustiças distributivas históricas dos riscos de
funcionamento desse modelo mineral. Essa literatura contrapõe-se à
interpretação do desastre como um “acidente” ou como um aconte-
cimento imprevisível, o qual teria um tempo cronológico determi-
nado, transformando em pré ou pós-desastre todos os seus antece-
dentes e desdobramentos.
No direito, o que se observa é uma dificuldade de abertura
do universo jurídico para a dimensão empírica dos conflitos e dos
42
desastres, isto é, para a realidade dos diversos territórios atingidos.
Além de não haver uma resolução que possa ser tomada por de-
finitiva, os desastres na mineração têm dimensões muito maiores
do que aquelas previstas no licenciamento ambiental e nos danos
juridicamente reconhecidos, por exemplo. No caso da barragem de
Fundão, o que foi previsto no licenciamento ambiental como Áreas
de Influência20 do empreendimento está muito aquém do que se ob-
serva hoje, após o rompimento. A possibilidade de rompimento da
barragem ou o extravasamento de rejeitos em grande quantidade e as
suas consequências foram subdimensionadas, consideradas impro-
váveis. Contudo, já haviam sido registrados grandes rompimentos
de barragens em Minas Gerais e no mundo, de modo que existiam
referências históricas de desastres como esse21.
O rompimento da barragem de Fundão evidenciou que os
danos e desdobramentos da mineração podem ser observados além
do território de extração em si, no estado de Minas Gerais, atingin-
do também o Espírito Santo, onde não ocorre atividade de extração
mineral em grande escala, mas sofre as consequências infraestrutu-
rais desse setor. Os rejeitos de mineração da Samarco/ Vale/ BHP se
espalharam por uma extensa área do território capixaba e do oceano,
além da heterogeneidade e complexidade dos danos e perdas, mate-
riais e imateriais, e dos segmentos sociais atingidos. Diante da sua
complexidade e abrangência geográfica é importante ter em mente
que houve um aprofundamento dos conflitos gerados pelo setor ex-
trativo nesses lugares e que ele ainda permanece afetando as vidas
humanas e não-humanas, sobretudo aquelas cujos modos de vida
têm relação, direta e indireta, com o rio Doce, seus afluentes, e com
o mar. Diante dessa realidade, a seguir são apresentadas algumas
problemáticas presentes no atual cenário jurídico para a reparação
de desastres na mineração.
20 São aquelas áreas previstas como afetadas direta ou indiretamente pelos impactos positivos ou negativos
decorrentes do empreendimento, durante suas fases de implantação e operação, cuja delimitação é um
dos requisitos legais previsto na Resolução Conama 01/ 86 para processos de licenciamento ambiental.
21 SANTOS, R. S. P. ; WANDERLEY, L. J. Dependência de barragem, alternativas tecnológicas e a inação
do Estado: repercussões sobre o monitoramento de barragens e o licenciamento do Fundão. In: ZONTA,
M. ; TROCATE, C. (org. ). Antes fosse mais leve a carga: reflexões sobre o desastre da Samarco/ Vale/
BHP Billiton. Marabá: Editorial Iguana, 2016. p. 87-137.
43
3. Reparação socioambiental: tendências e modelos
atuais sob crítica
44
de direitos, de forma no máximo compensatória, sem levar em conta
as singularidades e dinâmicas sociais locais, os problemas estruturais
das atividades minerárias, como a geração de doenças, a deterioração
das condições socioambientais, territoriais e econômicas da região e os
conflitos que resistem aos mecanismos de sua “solução”. Nessas nego-
ciações, as populações atingidas, órgãos governamentais e instituições
de justiça são vistos, na gramática empresarial, como stakeholders, isto
é, partes interessadas nos negócios empresariais.
Essas tendências também estão presentes no desastre-crime da
Samarco/ Vale/ BHP, a partir de uma política de negociação de com-
pensações sujeitas em última instância à rentabilidade dos projetos de
mineração. Num primeiro momento, houve a consolidação de um
processo de negociação direta entre as empresas e o Estado, sob a lógi-
ca da resolução negociada de conflitos socioambientais, como solução
para o problema da judicialização dos conflitos, mas sem a partici-
pação das pessoas e populações atingidas. Como resultado, foi cons-
truído um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC),
firmado no dia 2 de março de 2016, popularmente conhecido como
“Acordão de Mariana”. Esse acordo versou sobre a política de repa-
ração de danos, por meio da criação de um sistema de governança.
Foram estabelecidos 42 programas desenvolvidos e executados por
uma fundação de direito privado, instituída em junho de 2016, cha-
mada Fundação Renova, controlada pelas próprias mineradoras. Na
literatura crítica sobre o caso, as análises demonstraram que esse meio
escolhido para reparação socioambiental configurou uma privatização
do desastre, por meio da sua gestão empresarial como estratégia das
empresas para controlar os custos da reparação e sobrepor os seus in-
teresses sobre os direitos socioambientais27,28,29,30.
27 CAMPOS, R. ; SOBRAL, M. O acordado sai caro, e muito caro! Percepções iniciais da Defensoria Pú-
blica acerca dos processos indenizatórios da Bacia do Rio Doce. In: LOSEKANN, C. ; MAYORGA, C.
(orgs. ). Desastre na bacia do Rio Doce: desafios para a universidade e para instituições estatais. Rio
de Janeiro: Folio Digital/ Letra e Imagem, 2018. p. 149-171
28 ROJAS, C. M. O. ; PEREIRA, D. B. As veias continuam abertas: o rompimento da barragem de Fun-
dão/ MG e o modus operandi da Samarco (Vale/ BHP Billiton). Lutas Sociais, São Paulo, v. 22, n. 41,
p. 223-236, jul. / dez. 2018.
29 SANTOS, Rodrigo S. P. ; MILANEZ, Bruno. A construção do desastre e a “privatização” da regulação
mineral: reflexões a partir do caso do vale do rio Doce. In: ZHOURI, A. (org. ). Mineração, violências
e resistências: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil. Marabá: Editorial iGuana;
ABA, 2018. p. 111-154.
30 FERREIRA, L. T. “Gato e sapato”: a solução negociada e a pilhagem da bacia do rio Doce. Redes: Revis-
45
A estrutura jurídica do processo de reparação do desastre foi
marcada pela feitura de novos acordos, sobretudo por meio de Ter-
mos de Ajustamento de Conduta (TAC’s) e outras variações de acor-
dos jurídicos. Tais acordos geraram mais controvérsias e violações
de direitos, fomentando novas ações judiciais e contribuindo para
tornar a reparação dos danos ainda mais lenta, por causa da flexibi-
lização de direitos, da dispensa de marcos normativos importantes
e do descumprimento de uma série de compromissos acordados31.
Posteriormente, houve um movimento de (re)judicialização de todo
o processo de reparação, ao mesmo tempo em que os acordos fo-
ram reiteradamente descumpridos e uma negociação de repactuação
iniciada, novamente sem contar com a participação das pessoas e
populações atingidas. Muitas incertezas pairam sobre o processo de
reparação, diante dessa nova mesa de negociação, da demora das
empresas em contratar as Assessorias Técnicas Independentes (ATI’s)
escolhidas pelas populações atingidas e da estagnação ou paralisação
de projetos e programas, que estão judicializados. É o caso do reas-
sentamento das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Bai-
xo, ambas em Mariana/ MG, e o de Gesteira, em Barra Longa/ MG,
em que as obras de infraestrutura não foram concluídas ou iniciadas
e o conjunto das casas não está pronto até o momento.
A solução com participação popular tem sofrido obstáculos
tanto pelas empresas como pelo sistema de justiça. Essa postura tem
dificultado a construção coletiva de processos decisórios alinhados
às demandas e dificuldades enfrentadas pelas pessoas atingidas e
à noção de centralidade das vítimas para a sua reparação32. Como
consequência, há um emaranhado de desdobramentos e inúmeras
reivindicações que apontam para os efeitos das ações de reparação,
isto é, para danos ligados às ações de reparação, sobre os quais há
muitas denúncias que foram se acumulando e sendo reelaboradas ao
46
longo do tempo. Esse cenário tem se revelou ainda mais dramático
na pandemia da Covid-19, em que as condições socioeconômicas
das populações atingidas foram agravadas, seja pela retração das ati-
vidades econômicas já bastante desgastadas pelo desastre, seja pelas
condições de saúde e proteção social ainda precariamente tratadas
no âmbito dos programas da Fundação Renova33.
Um exemplo são os programas de indenização, feitos com
base em modelos de mediação e de negociação direta, para indenizar
as vítimas do desastre. Segundo Zhouri et al. 34, esse meio escolhi-
do ressignificou as vítimas e os agentes corporativos como partes
interessadas, engajados em uma espécie de barganha de medidas re-
paratórias e compensatórias, supostamente em posições simétricas.
De acordo com o parecer produzido pelo Grupo de Estudos em
Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais -
GESTA/ UFMG35, ao individualizar e não considerar as comuni-
dades e grupos sociais como esferas coletivas de existência constituí-
da por valores, práticas sociais e concepções de mundo específicas,
historicamente construídas na relação com os territórios, os efeitos
do desastre sobre as redes de interação, trabalho e reciprocidade e
sobre a formação de identidades sociais e culturais também não são
considerados. Quando essa compreensão não é feita, a negociação
não impede o agravamento dos conflitos e pode até prolongá-los,
permitindo a continuação do desastre nas comunidades atingidas.
As tendências favoráveis a uma justiça negociada e privatizada,
feitas por meio da inserção de políticas, dispositivos e mecanismos
legais para a chamada “cultura de pacificação” dos conflitos socioam-
bientais, fazem parte de um contexto maior de transformações do
direito, provocadas por políticas neoliberais adotadas também por
47
países periféricos ao capitalismo, como o Brasil36,37,38,39,40. As reformas
legais e práticas jurídicas privadas e flexíveis na resolução de conflitos
e de desastres, com origem no contexto empresarial e internacional,
influenciadas por concepções normativas, segundo as quais, os confli-
tos devem ser prevenidos e o seu tratamento tecnificado por meio de
regras e manuais sem, contudo, testar essas concepções com estudos
empíricos da sua aplicação em casos concretos. Essas tendências po-
dem englobar tanto a atividade judicial quanto a resolução negocial
de conflitos, às vezes de modo aparentemente contraditório, em um
processo de tensão entre judicialização e “governança”41.
No caso do desastre-crime da Samarco/ Vale/ BHP, observam-
-se outros exemplos dessas tendências, como: 1) o uso dos chama-
dos Mecanismos Adequados de Solução de Conflitos, que inclui a
mediação e as soluções extrajudiciais de conflitos, também previstas
no Código de Processo Civil de 2015 (CPC/ 15), que serviram de
base para a criação do Programa de Indenização Mediada (PIM),
a partir do chamado Design de Sistemas de Disputas, e no campo
judicial, para o uso do novo instituto processual de precedentes ju-
diciais, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR);
2) as claims resolutions facilities, traduzidas como entidades de in-
fraestrutura específica, organizações multistakeholders e concepções
de governança, utilizadas para a criação da Fundação Renova; e 3)
a noção de rough justice, traduzida como justiça possível, levantada
pelo juízo da 12ª Vara Federal Cível e Agrária de Minas Gerais, res-
ponsável legal pelo caso, em uma sentença de julho de 2020, pro-
ferida no Processo Judicial Eletrônico nº 1016742-66. 2020. 4. 01.
36 NADER, L. Harmonia Coerciva: A economia política dos modelos jurídicos. Revista brasileira de
Ciências Sociais, São Paulo, v. 9, n. 26, out. 1994.
37 MEIRELLES, D. R. S. Meios alternativos de resolução de conflitos: justiça coexistencial ou eficiência
administrativa?. Revista Eletrônica de Direito Processual, 1ª ed. , p. 70-85, out. / dez. , 2007.
38 MATTEI, U. ; NADER, L. Pilhagem: quando o Estado de Direito é ilegal. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2013.
39 ZHOURI, A. ; VALENCIO, N. Apresentação. In: ZHOURI, A. ; VALENCIO, N. (org. ). Formas de
matar, de morrer e de resistir: limites da resolução negociada de conflitos ambientais. Belo Horizon-
te: UFMG, 2014. p. 7-16.
40 VIEGAS, R. N. O campo da resolução negociada de conflito: o apelo ao consenso e o risco do esvazia-
mento do debate. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 21, p. 7-44, set. / dez. 2016.
41 MATTEI, U. ; NADER, L. Pilhagem: quando o Estado de Direito é ilegal. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2013.
48
3800, como solução judicial referente à indenização individual de
danos às pessoas atingidas, por meio do Novo Sistema Indenizatório
Simplificado (Novel).
Apesar de na teoria tais modelos, mecanismos, dispositivos e
técnicas de resolução de conflitos serem apresentados como inicia-
tivas bem-sucedidas, inéditas e efetivas de solução adequada para os
problemas advindos do desastre, na prática eles têm sido objeto de
denúncias de sua ineficiência e de violação de direitos por parte das
populações atingidas e de instituições de justiça42,43,44. Por exemplo,
há uma série de condições para que as pessoas atingidas recebam
indenizações, tanto pela Fundação Renova como pela via judicial.
São algumas delas: as cláusulas de encerramento de toda e qualquer
demanda judicial, nacional e no exterior; de quitação integral e de-
finitiva dos danos e de todas as pretensões financeiras decorrentes
do desastre, que apesar de não incluir os danos morais coletivos e os
danos futuros, não levam em conta os danos continuados, não iden-
tificados ou reconhecidos e aqueles gerados pela própria política de
reparação; e o fim do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), mes-
mo sem o restabelecimento das atividades socioeconômicas e produ-
tivas das populações atingidas. Além disso, estudos empíricos têm
demonstrado uma série de problemáticas em torno dessas iniciativas
neste caso específico. 45,46,47,48
42 ESPÍRITO SANTO. 1ª Vara Federal de Linhares. Ação Civil Pública com pedido de Tutela de Ur-
gência. Processo nº 001182136. 2017. 4. 02. 5004. Autor: Grupo Interdefensorial do Rio Doce. Réus:
Fundação Renova; Samarco S. A; União Federal. Linhares, 27 abril de 2017.
43 MINAS GERAIS. 5ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte. Processo número 5023635-78. 2021.
8. 13. 0024. Ação Civil com Pedido de Intervenção. Autor: Ministério Público de Minas Gerais. Réus:
Fundação Renova; Samarco Mineração S. A; Vale S. A; BHP Billiton Brasil LTDA. Juiz: Nicolau Lupia-
nhes Neto. Belo Horizonte, MG, 2021.
44 ATINGIDOS, aposentados da Vale e organizações da sociedade civil denunciam Vale em sua nova sede
em Vitória: assassina! Coletivo de Comunicação MAB ES, 2022. Disponível em: https:/ / bit. ly/ 3Al-
P3l3. Acesso em: 2 jun. 2022.
45 ROJAS, C. M. O. ; PEREIRA, D. B. As veias continuam abertas: o rompimento da barragem de Fun-
dão/ MG e o modus operandi da Samarco (Vale/ BHP Billiton). Lutas Sociais, São Paulo, v. 22, n. 41,
p. 223-236, jul. / dez. 2018.
46 FERREIRA, L. T. “Gato e sapato”: a solução negociada e a pilhagem da bacia do rio Doce. Redes: Revis-
ta Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.
47 ZUCARELLI, M. C. ; AMBOSS, F. Acordos coercivos e a dissolução do direito à água na governança do
desastre. In: SANT’ANA JÚNIOR, H. A. ; RIGOTTO, R. M. (org. ) Ninguém bebe minério: águas e
povos versus mineração. Rio de Janeiro: 7Letras, 2020. p. 105-137.
48 ZUCARELLI, M. C. A matemática da gestão e a alma lameada: crítica à mediação em licenciamen-
tos e desastres na mineração. Campina Grande/ PB: EDUEPB, 2021.
49
Por outro lado, é importante destacar que, diante de conflitos
e desastres na mineração, a criação de organizações, fundos e/ ou
instrumentos financeiros para gestão de recursos para processos de
reparação e/ ou compensação de danos ainda estão em experimen-
tação, processo de análise e comparação de modelos em aplicação49.
A crítica não está na criação de uma fundação para gerir o desastre,
mas nas formas de legitimar e reforçar as relações de força desiguais
entre as partes, através desses acordos e organizações. Por outro lado,
existem diferentes casos com encaminhamentos mais favoráveis às
populações atingidas. Um deles é o conflito minerário desencadea-
do com a chegada da mineradora norte-americana Alcoa, em Juriti
Velho, localizado no oeste do Pará, em 2005. De acordo com Braga,
Souza e Madeira Filho50, a força organizativa e reativa das comuni-
dades locais fez com que fosse possível chegar a um modelo negocial
dos conflitos socioambientais plausível, devido a uma série de arti-
culações e fatores externos e conjunturais.
Outro exemplo é o desastre-crime da Vale em Brumadinho,
Minas Gerais, em 2019, em que a Fundação Renova foi de pronto
impedida de atuar no caso, devido a um acúmulo das populações
atingidas e movimentos sociais sobre os diversos problemas enfren-
tados no contexto do desastre-crime da Samarco/ Vale/ BHP. A or-
ganização e reação das populações atingidas também gerou conquis-
tas importantes, como os direitos à Assessoria Técnica Independente
(ATI) e auxílio emergencial, implementados de forma rápida. Tam-
bém foi feito um acordo mediado pelas instituições de justiça, com
governo e empresa, na esteira da resolução negociada de conflitos.
Apesar da existência de lacunas, entraves e problemáticas presentes
tanto no processo de negociação como no acordo em si, outras im-
portantes vitórias foram alcançadas, como a previsão de participação
direta das pessoas atingidas em determinados projetos e de um pro-
50
grama de transferência de renda51. Essas experiências mostram que
tais arranjos são contestados, apropriados e disputados pelos grupos
sociais atingidos, entre outros agentes, tendo em vista a luta pelo
reconhecimento de direitos através dos meios legais disponíveis.
51
cesso judicial, esses agentes são representados, respectivamente, por
advogados empresariais, representantes dos Ministérios Públicos e
Defensorias Públicas, advocacia pública e por advogadas populares,
esta última no papel de ATI (Assessoria Técnica Independente).
Os primeiros dizem respeito à advocacia empresarial exercida
por meio de escritórios de advocacia, que prestavam serviços às em-
presas e à Fundação Renova. Os segundos consistem em promotores
e defensores públicos, ligados às suas respectivas instituições, tanto
a nível estadual – Minas Gerais e Espírito Santo – como federal;
e na advocacia pública exercida pelos representantes judiciais e ex-
trajudiciais da União e dos estados de Minas Gerais e do Espírito
Santo, quais sejam, a Advocacia Geral da União (AGU), a Advocacia
Geral do Estado de Minas Gerais (AGE/ MG), e a Advocacia Geral
do Estado do Espírito Santo (AGE/ ES), respectivamente. Ambos
- promotores e defensores públicos, e advocacia pública - se envol-
veram no desastre vinculados a uma prestação de serviço público. E,
por fim, está a advocacia popular, um setor da advocacia brasileira,
que consiste em um dos eixos das práticas da Assessoria Jurídica
Popular (AJP), cuja atuação no desastre se dá, sobretudo, em ATI’s,
mas também nas redes e associações sem fins lucrativos, Organiza-
ções Não-Governamentais (ONG’s), movimentos sociais e grupos
de pesquisa e extensão ligados a universidades.
Por detrás das discordâncias sobre o objeto do processo - ca-
dastro e indenização - foi possível observar diferentes concepções e
interesses de fundo sobre o processo de reparação e o direito. Tais
diferenças podem ser vistas na forma como esses agentes utilizam as
legislações, princípios e direitos e quais argumentos estão presentes,
tanto para abranger as reivindicações das populações atingidas por
reparação e indenizações, como para limitá-las. Essa análise se insere
nas discussões de como os conflitos se expressam no campo do di-
reito, enquanto um campo em disputa. Dentre as disputas presentes
nesse processo, optou-se por analisar aqui as que se referem à res-
ponsabilidade civil, instituto jurídico que consiste no dever jurídico
de reparação, por meio da imputação do evento danoso a um sujeito
determinado, o qual tem o dever de indenizar. Em caso de desastres
na mineração, em tese, esse instituto é fundamentado pelas normas
52
de Direito Ambiental e pelas regras e princípios gerais previstos na
Constituição Federal, no Código Civil, no Código Minerário e na
Política Nacional do Meio Ambiente – Lei 6. 938/ 1981, Política
Nacional de Segurança de Barragens – Lei 12. 334/ 2010 e Política
Nacional de Proteção e Defesa Civil – Lei 12. 608/ 2012.
No caso do desastre-crime da Samarco/ Vale/ BHP, a respon-
sabilidade civil teve enorme relevância em petições iniciais de ações
judiciais coletivas, que, em geral, tinham objetivos ligados à repara-
ção, minimização e prevenção dos danos causados pelo desastre53.
Esse instituto serviu para fundamentar o ressarcimento de diversos
tipos de danos para obrigar as empresas a indenizar e reparar in-
tegralmente as pessoas e populações atingidas. Segundo Losekann,
Dias e Camargo54, muitos danos apareceram nessas petições de for-
ma mais complexa do que a lei prevê, pois ganharam sentidos diver-
sos, como “o sentido de interdições nos modos de vida; alteração nas
relações sociais locais; perda da memória e dignidade; oneração do
poder público; desconfiança nas instituições; imposição do modelo
de reparação; insegurança quanto ao futuro”. Essa abertura e flexi-
bilidade que a responsabilidade civil possibilita, na medida em que
é um direito, sobretudo, jurisprudencial55, permitiu que disputas
emergissem em torno da definição dos danos, enquanto dinâmica
tensionada inerente aos conflitos socioambientais56.
No caso do processo judicial escolhido para a presente análise,
qual seja, o processo judicial nº 1000415-46. 2020. 4. 01. 3800,
denominado de “Eixo Prioritário nº 7 - Cadastro e Indenização”,
esse tema também está presente de maneira relevante. A responsa-
bilidade civil aparece relacionada às discussões sobre as demandas
53
das empresas Samarco/ Vale/ BHP em fechar o cadastro das pessoas
atingidas para fins de indenização e em condicionar o recebimen-
to da indenização ao fim do Auxílio Financeiro Emergencial, por
meio do chamado “Termo de Quitação Integral e Definitiva”, que
também previa a quitação total dos danos e de todas as pretensões
financeiras decorrentes do desastre, com exceção dos danos morais
coletivos e futuros. Em geral, as Defensorias Públicas, Ministérios
Públicos, advogados públicos – AGU, AGE-MG e AGE-ES – e po-
pulares se manifestaram contrários a essas demandas das empresas,
com argumentações que apontaram diversos problemas no progra-
ma de cadastro e no fim do auxílio. Como recorte empírico, a seguir
destacam-se apenas uma parte dessas manifestações, quais sejam a
das advogadas populares de uma Assessoria Técnica Independente,
representando uma Comissão de Atingidos, em contradição com a
dos advogados empresariais, representando as empresas.
Em parecer técnico das advogadas e assistentes sociais da Co-
missão de Atingidos, atuando como ATI, foram levantados proble-
mas de ordem conceitual, formal e prática relacionados ao progra-
ma de cadastro da Renova. Foram identificados problemas quanto
à capacidade de verificar a extensão dos danos, a apresentação dos
problemas e das soluções para a reparação. A argumentação parte da
problematização da forma como o cadastro das pessoas atingidas,
para fins de acesso aos programas de reparação e compensação, foi
produzido pela Fundação Renova, a partir de uma perspectiva ur-
bana, patrimonial, quantitativista e individualista dos danos. Disso
decorre a delimitação restritiva do conceito de pessoa atingida e a
restrição dos conceitos de recuperação e reparação atrelados a um
estreitamento da responsabilidade civil da empresa, limitada à in-
denização individual de danos materiais, sem levar em consideração
os danos imateriais, por exemplo. Além disso, as críticas giram em
torno do afastamento imposto pela linguagem excessivamente técni-
ca, metodologias pouco participativas e desconsideração das especi-
ficidades dos povos tradicionais, como quilombolas e indígenas, de
forma a excluí-los das políticas indenizatórias57.
57 GESTA. Grupo de Estudos e Temáticas Ambientais. Parecer sobre o Cadastro Integrado do Programa
54
Por trás da defesa pela manutenção do auxílio financeiro e
do programa de cadastro, há concepções de fundo importantes so-
bre o processo de reparação, que vão embasar a luta por reconheci-
mento da construção histórica de determinados direitos das popu-
lações atingidas. No parecer, observa-se o uso de direitos materiais
e princípios jurídicos tendo em vista a busca por um processo mais
equitativo entre as partes que compõem o conflito. São eles: o Prin-
cípio da Centralidade do Sofrimento da Vítima, cunhado por Antô-
nio Augusto Cançado Trindade, durante sua atuação como juiz na
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); o direito ao
contraditório e ampla defesa; direito à participação e à informação
(participação informada); direito à possibilidade de debater direitos;
à isonomia de tratamento; direito à revisão dos programas; direito ao
meio de sobrevivência e proteção à renda (direitos econômicos e so-
ciais ou direitos humanos); proteção da dignidade da pessoa huma-
na; conceitos de indenização justa dos danos e de reparação integral.
Os conceitos de dano e de reparação integral aparecem como
centrais para a discussão sobre o reconhecimento de pessoas como
atingidas e dos danos sofridos em decorrência do desastre. Existe
uma tensão na forma como esses conceitos são argumentados e uti-
lizados pelas advogadas populares e empresariais. Apesar de, em am-
bos os casos, o conceito de dano partir do direito civil e, portanto, de
uma matriz privada e individual de responsabilidade civil, o seu uso
se dá com objetivos, concepções e articulações diferentes. No caso
do parecer técnico feito por advogadas populares, o dano é entendi-
do não só a partir da sua regulação pelo direito civil, sendo articu-
lado ao direito ambiental. Em geral, trata-se da construção de um
direito sedimentado na experiência reparatória de graves violações
de direitos humanos, no modelo participativo instituído para prote-
ção socioambiental no Brasil e na América Latina e na interlocução
constante com as pessoas atingidas. Nessa perspectiva, os conceitos e
instrumentos jurídicos são utilizados para abranger o maior número
de situações, dimensões, territórios e pessoas atingidas pelo desastre.
de Levantamento e Cadastro dos Impactados (PLCI) elaborado pelas empresas Samarco e Synergia
Consultoria Ambiental. Belo Horizonte, 23 de novembro de 2016.
55
Por outro lado, no caso da petição de advogados empresariais,
há a defesa da quitação definitiva dos danos e de todas as preten-
sões financeiras decorrentes do desastre, com exceção de eventuais
danos futuros. Uma das formas de fazerem esta defesa é por meio
do artigo 319, do Código Civil, que estabelece que o devedor que
paga tem direito à quitação, como contraprestação do pagamento.
Nesse sentido, defendem o direito de as empresas e a Fundação Re-
nova obterem a respectiva quitação definitiva dos danos, tendo em
vista a necessidade de as empresas terem segurança jurídica quanto
à quitação dos danos pagos. Argumenta-se que tais interesses não se
qualificam como coletivos, pois se trataria apenas da defesa de inte-
resses patrimoniais, individuais, relacionados somente ao pagamen-
to de danos materiais e morais, e disponíveis de um grupo limitado
de indivíduos. Neste caso, a responsabilidade civil é utilizada para
restringir as obrigações das empresas quanto à reparação, no sentido
de que a obrigação de reparar extingue-se com o pagamento. As rei-
vindicações por indenizações são tratadas como defesa de interesses
patrimoniais individuais, de forma separada de seus aspectos coleti-
vos, o que limita a percepção da abrangência dos danos e pessoas a
serem indenizadas.
As diferentes argumentações jurídicas em torno da responsa-
bilidade civil das empresas, em indenizar os danos decorrentes do
desastre e reparar as pessoas e populações atingidas, mostram dife-
rentes versões em termos de interesses. Enquanto a primeira procura
abrir o leque de normativas regradoras de direitos para comunidades
humanas atingidas e para formas de reparação integral e indenização
justa dos danos, a segunda desenvolve ações no sentido de minimi-
zar as despesas compensatórias e limitar a sua responsabilidade legal
sobre as consequências danosas do desastre. A abertura ou não da
responsabilidade civil para a tutela jurídica de desastres na mine-
ração depende da forma como ela é utilizada e dos interesses dos
agentes que fazem uso dela. Neste caso, as demandas de um grupo
de pessoas atingidas aparecem em contradição com as demandas das
empresas. Esse conflito presente no processo judicial possibilita vi-
sualizar o direito em sua dimensão prática que, conforme salientou
Thompson (1987), não se restringe a ser um instrumento da classe
56
dominante, mas pode ser utilizado como um conjunto de recursos
na luta por direitos por meios legais.
5. Considerações finais
De forma geral, o artigo identificou determinadas práticas ju-
rídicas e instrumentos de reparação de danos presentes no cenário
jurídico atual, que apresentaram entraves ao processo de reparação
do desastre da Samarco/ Vale/ BHP. Apesar de a análise ter sido li-
mitada a este caso, modelos jurídicos, como os aqui citados, têm
sido utilizados em outros casos, como no desastre-crime da Vale S.
A em Brumadinho, Minas Gerais, em 2019, e no desastre-crime da
Braskem S. A em Maceió, Alagoas, em 2018. Diante de um vazio
regulatório sobre desastres na mineração, tais modelos e sistemas de
indenização podem servir como fonte legal para as empresas nego-
ciarem os desdobramentos da prática da extração mineral e legitimar
os desastres ambientais, inclusive a destruição de ecossistemas, as
mortes e a criação de novas zonas de sacrifício. A ideia é que, nesse
cenário, o Brasil se tornaria um laboratório, um lugar propício para
o experimento desses modelos de reparação de danos, que garantam
segurança jurídica para as empresas continuarem a reproduzir um
modelo de mineração que produz desastres como esse. Contudo, es-
ses experimentos não ocorrem sem conflitos, de modo que, a depen-
der do contexto e da luta de classes, podem ter encaminhamentos
mais favoráveis às populações atingidas e à proteção socioambiental.
A escolha de um processo judicial para analisar as diferentes
argumentações jurídicas sobre a responsabilidade civil, serviu para
identificar os conflitos e as disputas presentes entre diferentes agen-
tes acerca do processo de reparação do desastre. A partir do conflito
entre um grupo de pessoas atingidas e as empresas, por meio de
seus representantes legais, foi possível perceber como o instituto ju-
rídico da responsabilidade civil é argumentado juridicamente a de-
pender dos interesses em jogo. Observou-se que a responsabilidade
civil foi utilizada tanto de forma ampliada, sistemática e articulada
ao arcabouço legal disponível para a tutela de desastres e conflitos
socioambientais, quanto de forma mais dogmática e limitada aos
eixos civilistas tradicionais. Essas relações de forças presentes dentro
57
e fora do documento jurídico permitiram visualizar o direito como
um campo em disputa, que aparece como componente intrínseco
ao conflito social.
A perspectiva de analisar o conflito, enquanto acontecimento
recortado da realidade, também permitiu destacar a dimensão práti-
ca do direito, que além de se constituir como um campo de conflito,
também se constitui enquanto um campo em movimento. Essa di-
mensão do direito, que está em movimento e em disputa, possibili-
tou visibilizar a agência dos grupos subalternizados sobre ele, não se
restringindo, portanto, a ser um instrumento da classe dominante.
Foi o caso de destacar e analisar as argumentações jurídicas das advo-
gadas populares, que trabalham na perspectiva de construir direitos
e buscar estratégias para o seu reconhecimento, por meio da orga-
nização e educação popular junto às populações atingidas. Como
resultado, as suas argumentações jurídicas aparecem como parte e
resultado da construção histórica dos direitos dessas populações, re-
sultado da organização, articulação e resistências populares.
Por fim, é importante destacar a tensão entre as discussões so-
bre justiça socioambiental e as questões de custo e eficiência econô-
mica da indenização dos danos, que estão por trás das argumentações
jurídicas. Um dos problemas levantados no texto é a resistência que
as empresas e as instituições de justiça têm em relação à participação
popular, em termos de possibilidades de atuação em decisões e nas
discussões sobre direitos, indenizações e formas de compensação e
reparação do desastre. Esse tem sido apontado como um dos fatores
que tem contribuído para a continuação do desastre nos territórios
atingidos. É o caso dos danos gerados pela própria política de repa-
ração, que não leva em conta as dinâmicas socioculturais das popu-
lações atingidas na construção dos modelos e sistemas indenizatórios
individuais. Por outro lado, as experiências de participação popular
e lutas por direitos das populações atingidas no processo de repara-
ção do desastre podem indicar caminhos possíveis e alternativos ao
atual modelo minerário e às suas formas de reparação de danos, além
de colocarem questões importantes no âmbito do debate acadêmico,
político e jurídico sobre conflitos e desastres na mineração.
58
Dissolução de sociedades e o
Tribunal de Justiça do Paraná
Karen Nayara de Souza Sturmer1
1. Introdução
A legislação brasileira é pouco intervencionista nas questões
societárias de empresas privadas, de modo que fica a cargo do Po-
der Judiciário solucionar eventuais desavenças. O Código Civil e o
Código de Processo Civil, salvo em casos de dissolução de sociedade
por justa causa, prezam pela prevalência do que foi pactuado em
contrato social ou acordo de sócios. Ademais, “a tendência atual do
direito comercial, no que diz respeito às questões envolvendo os só-
cios, é a de procurar preservar a empresa”2.
Por outro lado, não se pode obrigar um sócio a manter-se
associado, independentemente do motivo que o levou a optar pela
dissolução, mas nos cabe entender as motivações e o meio eleito
para formalizar a dissolução da sociedade e os impactos causados
por essas escolhas.
O procedimento de dissolução de sociedade em nosso orde-
namento pode ser realizado, na massiva maioria das hipóteses pre-
vistas em lei, de maneira extrajudicial. Isto porque a constituição e
dissolução das empresas depende, ordinariamente, da vontade das
partes. Entre as poucas possibilidades de dissolução exclusivamente
judiciais, podem ser destacadas a que se dá por inexequibilidade do
objeto social e o recesso antes do termo, quando a sociedade é cons-
tituída por prazo determinado, circunstâncias em que é imprescin-
dível o reconhecimento judicial.
1 Graduada em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçú (2015). Mestra em Ciências Ju-
rídicas - Ambra University (2021). Palestrante, consultora e Advogada, atuando na prevenção de conflitos
e dissolução de sociedades empresariais.
2 COELHO, Fábio Ulhoa. Novo manual de direito comercial (31ª ed. ). São Paulo. SP: Thomson Reu-
ters Brasil, 2020, p. 187.
59
Em que pese a ação de dissolução de sociedade tenha procedi-
mento especial e, teoricamente simplificado, pode abordar inúmeras
causas de pedir, seguidas dos pedidos de reconhecimento da resolu-
ção por morte, recesso, exclusão e apuração de haveres, sendo que
os três primeiros podem ser cumulados com o pedido de apuração
de haveres.
Os valores discutidos nessas ações são relativamente altos,
porque correspondem ao montante de capital social do sócio que
pretende se afastar, aos bens dos quais a empresa é proprietária, à
participação nos lucros o que no Tribunal de Justiça do Paraná im-
plica, muitas vezes, a não concessão dos Benefícios da Assistência
Judiciária Gratuita pela dificuldade de comprovação da hipossufi-
ciência, ainda que transitória, além de ser essencial a nomeação de
perito para a apuração desses haveres, trabalho oneroso, sem limites
de valores pré-definidos, o que pode inviabilizar seu pagamento pe-
las partes, dado que não conseguem arcar, prejudicando o conven-
cimento do juízo, ou obrigando um acordo sem embasamento nos
valores reais devidos.
A pesquisa tem por objetivo identificar os principais motivos
que levam empresas sediadas no Estado do Paraná ao Poder Judiciá-
rio para dissolver as sociedades, já que este ato poderia ser realizado
sem a intervenção judicial. Registre-se que, a não ser em empresas
com prazo de duração determinado, as dissoluções de sociedade por
meio do Poder Judiciário não trazem benefícios para o desenvol-
vimento socioeconômico do país, dado que o tempo e os recursos
despendidos junto ao Poder Judiciário e por este Poder poderiam ter
sido melhor alocados.
Inicialmente, diante do desejo de que as empresas se mante-
nham no tempo, privilegiando o princípio da preservação da em-
presa, bem como da possibilidade de solucionarem suas questões ex-
trajudicialmente, o trabalho pretende identificar as principais causas
de pedir das ações judiciais de dissolução de sociedade sediadas no
Estado do Paraná, julgadas em 2ª instância pelo TJPR no período de
março de 2016 a março de 2021.
60
A hipótese adotada é de que as motivações são causadas por
conflitos de interesse internos decorrentes de falta de transparência
e confiabilidade das informações entre os envolvidos nas relações
empresariais, em especial, informações de cunho financeiro.
A pesquisa realizada possui grande relevância acadêmico-cien-
tífica e social, tendo em vista que busca preencher a lacuna acadê-
mica existente no que tange à prevenção da dissolução judicial das
sociedades empresárias, posto que a legislação e a praxe jurídica con-
centram-se, precipuamente, na constituição da empresa e posterior-
mente na resolução de problemas provenientes de conflitos já exis-
tentes, bem como no procedimento de falência, recuperação judicial
e dissolução da sociedade, de tal modo que não há levantamento da
motivação principal das dissoluções.
A pesquisa foi realizada entre março e setembro de 2021, me-
diante consulta jurisprudencial no Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná, com a utilização do termo “ação de dissolução parcial de
sociedade” e “ação de dissolução de sociedade”. Foram analisados
todos os processos encontrados, julgados no período de março de
2016 a março de 2021 em segunda instância.
O corte geográfico se deu em razão do Tribunal de Justiça do
Estado Paraná possuir boa parte do acervo processual a partir do ano
de 2011 disponível eletronicamente, sejam processos de primeira
ou segunda instância, de modo que as informações são facilmente
acessadas na fonte primária. Ou seja, não é necessário mecanismo
intermediário de busca, pois os processos tramitam em um único
sistema, bastando a consulta jurisprudencial no acervo de decisões,
seguido da consulta do número dos autos na plataforma PROJUDI,
por meio do acesso com login e senha de Advogado, pois esta opção
permite acesso mais amplo aos processos e aos documentos.
O corte temporal de cinco anos possibilita uma análise am-
pla do cenário judicial acerca do tema, envolvendo as motivações, o
tempo de duração dessas ações, já que embora as decisões tenham
sido prolatadas no período de cinco anos, a ação pode ter sido pro-
tocolizada antes disso. Também pode-se fazer a análise do quão sa-
61
tisfatória foi a prestação jurisdicional nos casos, sobretudo para os
requerentes
Os dados coletados foram tratados estatisticamente (análises
estatísticas descritivas) para caracterizar a amostra e verificar a possí-
vel maior incidência de determinado grupo de elementos dentro de
cada variável considerada. Adicionalmente, foram realizados testes
de independência para comprovar, ou não, eventuais relações entre
as variáveis de interesse. Todos os testes estatísticos foram executados
com uso do software IBM SPSS Statistics® 20. 0. Os dados qualita-
tivos, por sua vez, foram examinados mediante análise documental.
3 COELHO, Fábio Ulhoa. Novo manual de direito comercial (31ª ed. ). São Paulo. SP: Thomson Reu-
ters Brasil, 2020, p. 187.
4 COELHO, Fábio Ulhoa. Novo manual de direito comercial (31ª ed. ). São Paulo. SP: Thomson Reu-
ters Brasil, 2020, p. 187.
62
Mauro Rodrigues Penteado, por sua vez, entende que “a dis-
solução lato sensu é um processo de encerramento da sociedade que
objetiva a extinção da pessoa jurídica, abrangendo três fases distin-
tas: a dissolução stricto sensu, a liquidação e a extinção5.
Marlon Tomazette segue o mesmo entendimento de Pentea-
do, de que a extinção seria uma fase da dissolução lato sensu, ou em
outras palavras, seria a consequência da dissolução, considerando
ainda que no momento da ocorrência da dissolução stricto sensu,
haveria uma alteração no objetivo social da empresa e ela passaria a
realizar somente negócios pendentes, inadiáveis e necessários à sua
extinção6.
No presente trabalho, optamos por utilizar as terminologias
adotadas por Fábio Ulhoa Coelho, por entender que se aplicam mais
frequentemente na seara processual, campo desta pesquisa, que se
propõe a buscar as principais causas de pedir dos ingressantes em
ações judiciais de dissolução.
5 PENTEADO, Mauro Rodrigues Dissolução e liquidação de sociedades. (3ª ed. ). São Paulo, SP: Sarai-
va. 2000, p. 18.
6 TOMAZETTE, Marlon. Teoria geral e direito societário. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 425.
63
nuem, tem-se a dissolução, nos termos do artigo 1. 033, I. Entre-
tanto, com a ausência de oposição e continuação da atividade social,
a prorrogação por tempo indeterminado se dá automaticamente7.
De acordo com o artigo 1. 044 do Código Civil, sendo uma socieda-
de empresária, essa também se dissolve pela declaração de falência, o
que se reafirma nos artigos 1. 051 e 1. 087 do mesmo diploma legal.
A inexequibilidade do objeto social, também causa de disso-
lução total, pode ser de várias ordens, não devendo ser entendido
de forma literal, vez que ele pode ser mediato, como a ausência de
lucros por longos períodos, ou imediato, como a impossibilidade de
produção de determinado objeto, que não se usa mais, a exemplo de
um vídeo cassete8.
Ainda pode ser mencionada a cessação de autorização para
funcionar, em sociedades que atuem em ramos específicos, como
aviação, instituições financeiras, sociedades estrangeiras, entre ou-
tros, e que necessitam de autorização especial, concedida pelo Poder
Executivo Federal, se por algum motivo não foi concedida ou reno-
vada a autorização, extingue-se a sociedade.
Outra causa de dissolução total é a Dissolução Compulsória,
trazida ao nosso ordenamento pela Lei 12. 846/ 2013, que ficou
conhecida como Lei Anticorrupção, e em seu artigo 19 determina
que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por
meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação
judicial, ou equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar
ação com vistas à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas
infratoras: (...) III - dissolução compulsória da pessoa jurídica;”, que
deverá ser aplicada quando comprovada a constituição ou utilização
habitual da sociedade para o cometimento de ilícitos e ocultação dos
crimes e dos agentes.
Além das causas elencadas acima e pelo Código Civil, este
ainda autoriza que os sócios convencionem outras causas de dissolu-
7 TOMAZETTE, Marlon. Teoria geral e direito societário. São Paulo: Saraiva Educação. 2020, p. 427.
8 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário: regime vigente e inovações do
novo Código Civil (2ª ed. ). São Paulo, SP: Editora Juarez de Oliveira. 2004, p. 331.
64
ção. Já se vê sociedades que estabelecem uma condição futura, com
data prevista para que determinado objetivo se concretize, e em caso
diverso, acordam previamente pela extinção, o que é permitido com
base no artigo 1. 035 do Código Civil de 2002.
9 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense. 2018,
p. 227.
65
te das novas tendências societárias e, da lei como era, não mais aten-
der o interesse do jurisdicionado. Atualmente, várias podem ser as
motivações para dissolver parcialmente uma sociedade, entretanto,
o Código Civil as simplifica, de acordo com o objetivo pretendido,
de modo que os artigos 1. 028 a 1. 032 trazem as seguintes possibi-
lidades.
10 COELHO, Fábio Ulhoa. Novo manual de direito comercial (31ª ed. ). São Paulo. SP: Thomson Reu-
ters Brasil, 2020, p. 174.
66
Da mesma forma, o capítulo do Código Civil que rege as so-
ciedades limitadas, por vezes menciona a aplicação de outros artigos
referentes à sociedade simples, como os artigos 1. 054, 1. 070 e 1.
077 do Código Civil. Em outras palavras, ainda que o Código Civil
não tenha mencionado expressamente a aplicação do artigo 1. 208
para as sociedades limitadas, vários outros aspectos aplicam-se no
que couberem, vez que inclusive, o capítulo destinado às limitadas
não aborda mecanismos de dissolução.
Assim, falecido o sócio, os herdeiros podem judicial ou ex-
trajudicialmente pleitear a alteração do contrato social, apuração de
seus haveres, ou em acordo com os demais sócios, ingressar na so-
ciedade.
67
sociedades limitadas, o artigo 1. 077 do Código Civil ainda garante
a possibilidade de recesso “Quando houver modificação do contra-
to, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra” nos
trinta dias subsequentes à reunião.
2.2.3. Exclusão
Da mesma forma que o sócio pode retirar-se por sua vontade,
a sociedade pode excluir algum sócio. Relativamente às sociedades
simples, a exclusão pode se dar apenas judicialmente, “mediante ini-
ciativa da maioria dos demais sócios, por falta grave no cumprimen-
to de suas obrigações, ou, ainda, por incapacidade superveniente” de
acordo com o artigo 1. 030 Código Civil.
Já nas sociedades limitadas, desde que prevista a possibilidade
de exclusão em contrato social, poderá ser feita extrajudicialmente
por meio de reunião de assembleia de sócios, com mais da metade
do capital social, quando entenderem que “um ou mais sócios estão
pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de
inegável gravidade” (artigo 1. 085 Código Civil). E, caso contrato
social não aborde a possibilidade de exclusão, ela deverá ocorrer ape-
nas judicialmente. De todo modo, se não houver disposição contra-
tual especificando a apuração dos haveres, deverá ocorrer conforme
determina o artigo 1. 031 do Código Civil.
68
3. Ação de dissolução parcial de sociedade
A ação de dissolução parcial de sociedade foi disposta no Có-
digo de Processo Civil (CPC-2015) como procedimento especial, o
qual está descrito nos artigos 599 a 609. Este procedimento pode
ter como objetivo todas as possibilidades de dissolução já abordadas,
ou seja, reconhecimento da resolução por morte, exclusão e recesso,
além da apuração de haveres e seu pagamento. Ainda que a ação te-
nha por objeto apenas a apuração de haveres, será denominada “ação
de dissolução parcial de sociedade”.
A competência para julgamento da ação é da vara cível ou
vara especializada, se houver, do foro eleito no contrato social, ou
na ausência deste, o da sede da sociedade. O Juizado Especial não
possui competência para julgamento dessas demandas, tendo em
vista que mesmo após a entrada em vigor do CPC/ 2015, os juiza-
dos permanecem com a competência descrita no artigo 275, inciso
II do antigo CPC, ou seja, causas de menor complexidade, de até
40 salários-mínimos. Além disso, o Juizado Especial não comporta
a realização de perícia, prova fundamental na ação de dissolução
parcial de sociedade, conforme orientação do FNONAJE - Fórum
Nacional dos Juizados Especiais – “ENUNCIADO 54 – A menor
complexidade da causa para a fixação da competência é aferida pelo
objeto da prova e não em face do direito material”.
O CPC determina que a petição inicial será instruída com o
contrato social (art. 599, §1º) e que a ação também pode ter como
“objeto a sociedade anônima de capital fechado quando demonstrado,
por acionista ou acionistas que representem cinco por cento ou mais
do capital social, que não pode preencher o seu fim” (art. 599, §2º).
Fábio Ulhoa Coelho, em artigo de opinião abre discussão
acerca do tema, asseverando que a “doutrina societarista tradicio-
nalmente se posicionava contrária à dissolubilidade parcial da so-
ciedade anônima, em função das características do tipo”, sobretudo
quando fundamentada na quebra da affectio societatis11.
11 COELHO, Fábio Ulhoa. . A dissolução parcial das sociedades anônimas. Revista do Advogado, 141.
69
Esse posicionamento se refletia nas decisões do STJ, como
pode ser observado pelo REsp 171. 354-SP do ano de 2001.
Com o passar do tempo a doutrina e o entendimento juris-
prudencial foram se flexibilizando, passando a aceitar a dissolução
parcial de companhias em que a quebra de affectio societatis im-
possibilite o regular funcionamento da companhia, de modo que a
impeça de alcançar o objeto e fim sociais, qual seja, o auferimento
de lucro por parte dos acionistas.
Portanto, e segundo Coelho, o melhor entendimento é de que
o artigo 599, §2º do CPC revoga o artigo 260, II, b, de modo que
o não preenchimento do fim social, demonstrado em ação proposta
por acionistas titulares de 5% ou mais do capital social, não é mais
causa de dissolução total, e sim, de dissolução parcial da sociedade
anônima, onde o pedido é de recesso.
No tocante a legitimidade para propositura da ação de dis-
solução parcial da sociedade, temos rol previsto no artigo 600 do
Código de Processo Civil, o qual indica como legitimados, dentre
outros, o sócio excluído e a própria sociedade, nos casos em que a lei
não autoriza a exclusão judicial.
70
até a prolação de sentença. Entretanto, ao prolatar a sentença, o juiz
deverá seguir o especificado no artigo 604 do CPC, fixando a data
de resolução da sociedade (descritos conforme cada caso no artigo
605), o critério de apuração de haveres, observado o disposto no
contrato social e nomeará o perito, além de determinar o depósito
do valor incontroverso, que poderá ser levantado imediatamente.
Se, porventura, o contrato social não estabelecer o critério
de apuração de haveres, o juiz o definirá com base no “valor patri-
monial apurado em balanço de determinação, tomando-se por re-
ferência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo,
tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também
a ser apurado de igual forma”, conforme redação dada pelo artigo
606 do CPC.
As partes ainda podem pedir que sejam revistos o critério de
apuração de haveres e a data de resolução, que o juiz poderá conce-
der a qualquer momento antes de iniciada a perícia. A data de reso-
lução é de extrema importância, tendo em vista que é o termo até
o qual se integra o valor devido aos retirantes, que é composto pela
“participação nos lucros ou os juros sobre o capital próprio declara-
dos pela sociedade e, se for o caso, a remuneração como administra-
dor”, nos termos do disposto no artigo 608 do CPC.
Vale lembrar que “após a data de resolução os retirantes terão
direito, apenas, à correção monetária dos valores apurados e aos ju-
ros contratuais ou legais” conforme redação do parágrafo único do
artigo 608 do CPC.
Por fim, após apurados os valores, o pagamento também de-
verá ser efetuado de acordo com o que foi estabelecido pelo contrato
social e na ausência de tais definições, seguirá o que determina o
artigo 1. 031 do Código Civil.
71
no caso da extinção - dissolução total da sociedade12. Para fins de
liquidação deve ser feita a realização do ativo, que consiste na trans-
formação de todo patrimônio em dinheiro e o pagamento do passivo.
Na prática para a dissolução parcial, avalia-se todo o patrimô-
nio pelo valor de mercado e desconta-se todas as dívidas, restando ao
sócio que se retira a participação nos valores restantes de acordo com
a sua quota social. Logo, a apuração de haveres é a forma como se
dá a liquidação da sentença no procedimento especial da dissolução
parcial da sociedade, ou seja, a quantificação do valor que o sócio
que se retira ou é excluído da sociedade tem direito a receber. Esta
mensuração de valores deve ser feita de maneira adequada e respon-
sável, obedecendo os critérios acordados entre as partes em contrato
social ou de acordo com o determinado pelo CPC.
Todavia, estes cálculos não são simples e demandam, muitas
vezes, o trabalho de um profissional qualificado. Diferentemente do
que ocorre em outros procedimentos processuais, em que a nomea-
ção de um perito é parte importante do convencimento do magis-
trado, na ação de dissolução parcial de sociedade, o juiz primeiro
deve se convencer da dissolução ou as partes devem assim concordar,
só então o juiz sentenciará decretando-a, e na sentença nomeará o
perito. Essa parte do procedimento se dá conforme redação dada
pelo artigo 604 do CPC.
Diversamente do que acontece na dissolução total da socie-
dade, na parcial não há nomeação de um liquidante, mas sim de
um perito técnico habilitado para realizar a perícia contábil, para a
definição do valor a ser pago ao sócio falecido ou dissidente13.
A apuração dos haveres, conforme já informado, deverá guiar-
-se pelo critério de apuração estabelecido em contrato social. Caso
o contrato não aborde este critério, o Código Civil determina que a
apuração será feita “com base na situação patrimonial da sociedade,
12 COELHO, Fábio Ulhoa. Novo manual de direito comercial (31ª ed. ). São Paulo. SP: Thomson Reu-
ters Brasil, 2020, p. 193.
13 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense. 2018,
p. 244.
72
à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado,
nos termos do artigo 1. 031.
A redação do artigo 606 do CPC, no entanto, sobre à apura-
ção de haveres nos traz que “o valor patrimonial apurado em balanço
de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e
avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço
de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma. ”
Segundo Coelho14, trata-se de uma imprecisão do Código
Civil, tendo em vista que o balanço ali mencionado é o que mensura
o valor patrimonial e leva em consideração todos os ganhos que a
sociedade teve no decorrer de sua história. Ele se difere do balanço
em que se mensura o valor econômico das quotas, que avalia quanto
a sociedade valerá no futuro ou em certo período de tempo.
Além disso, pode haver negociação entre as partes e o perito,
que propõe o valor de seus honorários e é possibilitado às partes
apresentar contraproposta. Em caso de negativa do perito, nomeia-
-se outro, e outro, até que um deles aceite a proposta da parte.
73
de primeiro grau. Isto porque, em muitos casos há mais que um
recurso para cada ação em primeiro grau, em momentos processuais
diferentes.
Podemos exemplificar alguns processos em que figuram várias
partes em litisconsórcio passivo ou ativo e, em várias ocasiões, inter-
põem agravo de instrumento em face de decisão interlocutória que
não agradou requerentes ou requeridos.
Diante da duplicidade de informações, já que a cada novo
acórdão pesquisado foram acessados também os autos na origem,
foi necessário separar apenas uma decisão em segundo grau em cada
processo, para ter compreensão do número real de processos encon-
trados. Esta separação foi realizada por meio da ferramenta de for-
matação condicional do Microsoft Excel, criando uma regra para
localizar e realçar dados em duplicidade, com a busca pelo número
dos autos em primeiro grau que se repetiam.
Portanto, foram encontrados um total de 229 processos, que
tramitam ou tramitaram em primeira e segunda instância no Tribu-
nal de Justiça do Estado do Paraná.
74
Tabela 01: Frequência da ocorrência da causa de pedir
Causa de pedir Frequência Porcentagem
Quebra de affectio societatis 170 74. 2%
Falta grave 19 8. 3%
Morte do sócio 14 6. 1%
Prejudicado 5 2. 2%
Sócio excluído 4 1. 7%
Fraude no contrato social 3 1. 3%
Imotivada 3 1. 3%
Inadimplemento de obrigações sociais 3 1. 3%
Reconhecimento e dissolução de sociedade de fato 3 1. 3%
Inexequibilidade do fim social 2 0. 9%
Empresa inativa 1 0. 4%
Falta de pluralidade de sócios 1 0. 4%
Recusa de registro na Junta Comercial 1 0. 4%
Total 229 100%
Fonte: Elaboração dos autores
75
narrados sejam a verdade real, mas sim a perspectiva que a parte
autora tem dos fatos.
É necessário exemplificar os acontecimentos que fazem a par-
te proponente da ação utilizar este termo, que em todos os casos está
relacionado à alegação de suspeita de desvio de valores da empresa,
falta de transparência ou sonegação de informações tidas como im-
portantes, sobretudo as de cunho financeiro ou relatórios de valores
e divisão irregular de atribuições profissionais dentro da empresa.
Isso pode ser observado no caso selecionado e demonstrado a seguir
76
se dá pela violação de alguma regra concreta, seja ela estabelecida em
acordo de sócios ou contrato social.
A diferença entre a causa de pedir que se baseia na quebra
de affectio societatis e a que se baseia na prática de falta grave está
no fato de que a exclusão de sócios depende de votação por meio
de reunião de assembleia de sócios, com mais da metade do capital
social, quando entenderem, conforme artigo 1. 085 do Código Ci-
vil que “um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da
empresa, em virtude de atos de inegável gravidade”15. E, caso contra-
to social não aborde a possibilidade de exclusão, ela deverá ocorrer
apenas judicialmente.
Desta forma, cumpre demonstrar um exemplo para ilustrar
as motivações apresentadas pelas partes na fundamentação da falta
grave como causa de pedir:
77
Os requerentes apontam ainda a violação de cláusula do con-
trato social, que impede a venda de cotas sociais sem a anuência
unânime dos demais sócios, já que o requerido teria dado suas cotas
sociais em garantia a um empréstimo realizado com outro sócio.
78
Durante as tratativas, o Autor, através da Inventariante, tentou assumir a atu-
ação na Primeira Requerida, com a nomeação de um médico preposto, bem
como, tentou acompanhar o desenvolvimento das atividades daquela. Con-
tudo, o Segundo Requerido impediu qualquer participação da Inventariante
ou de seu proposto na Primeira Requerida, inclusive impedindo seu acesso à
sede desta.
Tendo em vista a divergência entre as partes quanto ao valor das quotas sociais
e forma de pagamento, não foi possível às partes concluírem pela venda das
quotas do Autor ao Segundo Requerido nem mesmo com a dissolução consen-
sual da Primeira Requerida.
Diante de tal situação, alternativa não resta ao Autor senão buscar os préstimos do
Poder Judiciário para requestar a dissolução parcial da Primeira Requerida, para
que dissolvida com relação a sua pessoa e apurados seus haveres, sejam estes pagos.
O caso apresentado demonstra uma tentativa da viúva em in-
gressar nos negócios e rotinas da empresa através de um preposto
contratado, bem como que apresentou proposta de venda de suas
quotas sociais, o que alega ter sido infrutífero.
79
e) Reconhecimento e dissolução de sociedade de fato: tra-
ta-se de três processos em que não havia contrato social e
por exclusão, não se enquadram nos demais casos, vez que
nestes busca-se primordialmente a apuração de haveres;
f ) Inexequibilidade do fim social: abordada em dois proces-
sos, onde se informam que é impossível seguir atingindo
o fim social das empresas. A primeira pela alegação de que
há muito não aufere lucros. No segundo caso, alegam os
autores que a empresa foi constituída para construir um
loteamento que jamais foi iniciado;
g) Falta de pluralidade de sócios: único processo em que
houve falecimento de vários sócios, restando apenas um
mandatário, munido de procuração de um dos falecidos.
Uma das herdeiras alega a falta de pluralidade de sócios,
já que os sucessores não assumiram o quadro societário;
h) Recusa de registro na Junta Comercial: apenas uma ação,
em que apesar da saída do sócio ter sido acordada e não
haver pagamento de haveres, a Junta Comercial recusou-
-se a fazer a alteração contratual em virtude de penhora
por débitos trabalhistas no contrato social da empresa.
Insta observar que as causas que a lei elenca obrigatoriamente
judiciais, como o sócio excluído para reaver seu lugar na empresa
(artigo 600, VI do CPC e artigo 1. 030 do CC) e a inexequibilidade
do fim social (artigo 1. 034, II do CC) são pouco expressivas se com-
paradas com outras as outras causas encontradas em maior número,
que podem ser resolvidas extrajudicialmente.
5. Considerações finais
A ação de dissolução parcial de sociedade surgiu como respos-
ta à necessidade apresentada pelas empresas de que um sócio pudesse
se retirar sem que isso implicasse na extinção ou dissolução total da
empresa. A ação começou a ser utilizada por meio de iniciativa dou-
trinária e jurisprudencial, com base nos princípios da preservação da
empresa, da livre iniciativa e da função social da empresa, todavia,
sem a previsão legal dos requisitos e do procedimento.
80
A previsão legal da dissolução parcial irrompeu no Código
Civil de 2002, como “resolução da sociedade em relação a um sócio”
e o procedimento da ação foi regularizado pelo Código de Processo
Civil de 2015, em capítulo específico, denominado “Da ação de
dissolução parcial de sociedade”, que pode ter como pedidos o reco-
nhecimento da resolução por morte, a exclusão, o recesso e a apura-
ção de haveres e seu pagamento.
Quando se trata de sociedades empresariais, a affectio socie-
tatis é bastante relevante, representa-se como elo essencial para a
constituição da sociedade de pessoas, em que a relação pessoal se
sobressai em relação ao capital que ela possa a vir a agregar à socie-
dade16. Entretanto, sua quebra deixou de ser requisito legal para a
dissolução da sociedade, passando a ser necessário a simples intenção
de recesso.
O presente trabalho teve por objetivo principal identificar e
analisar as principais causas de pedir das partes (sócios/ empresas)
em ações de dissolução parcial de sociedade, bem como as motiva-
ções que subsidiaram a causa de pedir.
A quebra da affectio societatis foi a causa de pedir em 74,2%
dos processos pesquisados, constituindo a mais relevante causa en-
contrada. Foi possível observar que as partes utilizam o termo para
sintetizar várias motivações, como problemas de confiança entre os
sócios por suspeita de desvio de valores da empresa, falta de trans-
parência ou sonegações de informações tidas como importantes,
sobretudo as de cunho financeiro ou relatórios de valores e divisão
irregular de atribuições profissionais dentro da empresa.
A segunda causa de pedir que mais apareceu, todavia, bem
menos que a primeira (8,3%), foi a alegação de cometimento de
falta grave. Neste caso, é necessária a comprovação de um ato efetivo
que coloque em risco a continuidade da empresa, eivado de inegável
gravidade. A terceira causa mais frequente foi a morte do sócio, em
6,1% dos processos.
16 PRADO, Fred John S. A holding como modalidade de planejamento patrimonial da pessoa física no
Brasil. Jus Navigandi. 2011, p. 190.
81
O que se pode inferir, até mesmo pela obstinação das partes
e do Poder Judiciário em seguir utilizando a quebra de affectio so-
cietatis como fundamento para quase tudo que envolve dissolução
de sociedade, em que pese nenhum dos códigos vigentes sequer uti-
lizem o termo, é o fato de que o procedimento é recente, portanto,
os operadores do Direito ainda não o assimilaram por completo e
permanecem resquícios das legislações e entendimentos anteriores
acerca do assunto.
O ponto a ser levantado, entretanto, é quais os problemas
reais das empresas do Paraná estão sendo ocultados pelo termo “que-
bra de affectio societatis”? As partes vão ao Judiciário com ânimos
exaltados, havendo a menção à existência de boletim de ocorrência
junto à autoridade policial por agressões, invasões e ameaça em mui-
tas petições iniciais.
É possível fazer uma analogia, em que a quebra da affectio
societatis é o sintoma de uma doença causada pela falta de trabalho
preventivo de riscos, falta da regularização das relações empresariais,
falta de transparência e de prestação de contas.
Em que pese à relevância dos dados encontrados, seriam inó-
cuos diante da omissão na busca por resultados mais eficazes, prefe-
rencialmente, fora do âmbito do Poder Judiciário. Como pode ser
observado no decorrer deste trabalho, a ação de dissolução parcial
de sociedade não possui um procedimento simples e tampouco é
econômica, além de ser pouco previsível, dada a natureza dos casos.
De posse dessas informações, é fundamental buscar meios
de prevenir os conflitos, ou ao menos, prevenir que estes conflitos
cheguem ao Poder Judiciário. Isto pode ser feito por meio de me-
canismos de mediação, programas de compliance e prevenção de
riscos, contratos sociais e acordos de sócios mais bem desenhados e,
se assim mesmo a dissolução for medida que se impõe, que se faça
perante às Juntas Comerciais e demais órgãos competentes.
82
Reflexões ao estado-juiz sobre
o uso da proporcionalidade
nos conflitos judiciais sobre
exploração econômica em
terra indígena
1. Introdução
A partir da perspectiva normativa, a relação entre povos in-
dígenas e Estado encontra-se em mudança paradigmática desde o
final do século XX. No cenário constitucional latino-americano, a
Constituição brasileira de 1988 inaugurou uma nova era de direitos
coletivos, reconhecendo aos povos indígenas o direito de ser e de
permanecer indígenas e, com isso, a autodeterminação de seus mo-
dos de vida em seus próprios territórios2.
No âmbito internacional, a Convenção nº 169 da Organiza-
ção Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, também inaugurou
uma nova orientação aos Estados, ao substituir a lógica da Con-
venção anterior de nº 107, que compreendia a identidade indígena
como provisória (supunha-se que existiria enquanto não houvesse
assimilação à cultura da sociedade nacional), por uma que reconhe-
cia o direito de ser indígena3. A partir de então, e nos mesmos
83
moldes da Constituição brasileira, o Estado passou a estar obrigado
a com eles dialogar para definir os rumos de suas decisões.
Os cenários advindos desse diálogo são diversos, tanto quanto
são as pluralidades étnicas de cada povo e que, por suas próprias ma-
neiras de entender o mundo que os cerca, ou mesmo pelas suas con-
dições de existência em vulnerabilidade, podem, ou não, anuir com
a realização do projeto econômico em seus territórios. Não se pode,
portanto, tratar de direitos indígenas com a premissa da incompa-
tibilidade de sua relação com o Estado, a qual deve ser pautada, ao
contrário, sob a lógica do diálogo intercultural.
A esse respeito, destaque-se, desde logo, que não se ignora que
a vulnerabilidade socioeconômica a que os povos indígenas estão
condicionados ao longo dos anos vem se tornando fator preponde-
rante para que haja um aumento nos acordos para a realização dos
projetos econômicos em suas terras4.
Há casos outros em que, todavia, o projeto econômico não
se adequa à realidade de determinada comunidade indígena, ou lhe
obriga à saída de suas terras contra sua vontade, por utilização do
território incompatível com sua existência, ou mesmo em decorrên-
cia de retaliações, violências e riscos de vida, momento em que surge
o cenário de conflituosidade.
Fato é que não se pode prever as diversas interrelações em que
as duas esferas se encontram (indígenas e Estado), e o Direito, diante
de sua própria limitação de tentar prever e regulamentar as mais ge-
néricas situações normativas, precisa se conformar à realidade social.
No âmbito nacional, a Constituição Federal de 1988 estipula
exceções taxativas para intervenção do Estado no território indígena,
contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu outras dife-
rentes hipóteses restritivas em sua jurisprudência.
Essa definição prévia de restrições ao direito à autodetermina-
ção indígena em seus territórios, como se explicará adiante, acabou
4 EISENSTADT, T. A. ; WEST, K. J. Who Speaks for Nature? Indigenous Movements, Public Opi-
nion, and the Petro-State in Ecuador. Nova Iorque: Oxford University Press, 2019.
84
por se tornar uma valoração abstrata de prevalência de determinados
bens jurídicos de interesse do Estado sobre outros, o que não se
mostra coerente com os novos paradigmas constitucionais e interna-
cionais de proteção dos direitos indígenas5.
Em ordenamentos jurídicos comparados, adotam-se outros cri-
térios de solução dos conflitos, dentre as quais se identificou o postu-
lado da proporcionalidade para se decidir qual direito será mitigado
(autodeterminação indígena ou desenvolvimento econômico).
A proporcionalidade surge como um dos postulados decisó-
rios, isto é, “normas que orientam a aplicação de outras [normas]”6.
Por meio da utilização de postulados, o Estado-juiz passa a resolver
conflitos judiciais em que precisa otimizar, ao máximo possível, a
garantia de dois direitos coexistentes.
Ante essa contextualização, surge a seguinte pergunta-proble-
ma: o postulado da proporcionalidade é mais adequado para resol-
ver conflitos judiciais sobre desenvolvimento econômico em terra
indígena?
Para respondê-la, a pesquisa visa a apresentar, primeiramente,
os atuais paradigmas de proteção dos povos indígenas e de desenvol-
vimento econômico na atualidade. Em seguida, intenta a explicar por
quê o postulado da proporcionalidade é atualmente utilizado como
o critério mais avançado para proteger os direitos fundamentais em
conflito (autodeterminação indígena e desenvolvimento nacional).
Na terceira parte, a pesquisa dispõe-se a demonstrar que o
postulado da proporcionalidade, por ser pautado por uma lógica
otimizante, pode vir a perpetuar uma contradição insolúvel entre as
duas lógicas de mundo que constituem os direitos envolvidos.
Para alcançar seu propósito, o método de pesquisa utilizado
foi a revisão bibliográfica. Referida metodologia foi escolhida por
ser um trabalho de cunho teórico-críticos e qualitativo e a coleta dos
85
dados foi realizada mediante acesso a livros e artigos científicos jurí-
dicos especializados nos temas debatidos (autodeterminação indíge-
na, desenvolvimento econômico e postulado da proporcionalidade);
à legislação brasileira e internacional (Constituição federal de 1988
e Convenção 169 da OIT); bem como à jurisprudência nacional e
internacional (colombiana), esta última utilizada apenas a título de
direito comparado.
O raciocínio epistemológico da pesquisa e da escrita foi o de-
dutivo, isto é, utilizou-se um processo de análise dos dados coletados
que permitiu chegar a uma conclusão sobre o resultado alcançado. No
presente artigo, demonstra a construção do raciocínio para a alcançar
a conclusão de que a lógica otimizante do postulado da proporciona-
lidade se mostra limitada para resolver o cenário conflituoso posto.
A conclusão do artigo foi alcançada gradativamente. Apresen-
ta-se, no início, os direitos coletivos dos povos indígenas e do desen-
volvimento nacional como fenômenos recentes para o paradigma
jurídico atual e com naturezas de direito fundamental. Na sequên-
cia, demonstra-se a diferença entre decidir o conflito por meio da
valoração abstrata de um bem jurídico sobre outro ou por meio do
postulado da proporcionalidade, que impõe uma análise concreta e
otimizante, de modo a ser, esta última, a preferível.
Ao final, questionou-se se a lógica otimizante, ainda que a
mais acertada, é, de fato, adequada para solução do cenário confli-
tuoso, considerando que há, no dissenso sobre qual bem jurídico
prevalecer, perspectivas diversas sobre a ordem jurídica a cada grupo
social e somente uma instância subjetiva decisora (o Estado-juiz).
7 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
86
meno jurídico recente que quebra a dicotomia do direito público ou
privado e emerge como direito intermediário.
Os direitos de povos indígenas, que por séculos estiveram
nesse limbo jurídico intermediário, passam, então, a partir da pro-
mulgação da Constituição Federal de 1988, a ser reconhecidos na
perspectiva de direito de uma coletividade8.
Para entender a especificidade dos direitos de povos indígenas
como direitos coletivos, é necessário aceitá-los nessa natureza inter-
mediária de essência coletiva. Os direitos essencialmente coletivos
se distanciam dos direitos individuais por se afastarem da concep-
ção contratualista e constitucionalista do século XIX, isto é, não são
coletivos por serem um somatório de vários direitos individuais a
serem tutelados pelo Estado9.
Os direitos essencialmente coletivos são os direitos difusos,
ainda que exista em nosso ordenamento jurídico as outras duas cate-
gorias denominadas “direitos coletivos” ou “direitos individuais ho-
mogêneos”. No caso de direitos difusos, não existe um único sujeito
titular específico, todos são sujeitos da titularidade difusa, sem que o
direito integre a esfera patrimonial de cada um10.
Ao mesmo tempo em que não fazem parte do direito indivi-
dual e privado, os direitos coletivos saem da esfera exclusivamente
estatal e se deslocam para o intermediário campo da coletividade.
Esse fenômeno jurídico tem como consequência o fato de se torna-
rem direitos exigíveis contra o próprio Estado11.
A Constituição Federal brasileira de 1988 inseriu no orde-
namento jurídico interno diversos desses direitos essencialmente
coletivos, mas como explica Marés12, não no capítulo I do título
II (direitos e deveres individuais e coletivos), que inicia os direitos
fundamentais do artigo 5º, e sim em várias outras partes do texto
8 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
9 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
10 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
11 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
12 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
87
constitucional, extraídos a partir de uma interpretação combinada
e sistemática.
Com essa hermenêutica, é possível identificar alguns direitos
essencialmente coletivos, tais como exigir uma Administração Pú-
blica que se paute de acordo com os princípios constitucionais; o
direito ao patrimônio cultural; o direito ao meio ambiente ecolo-
gicamente equilibrado; o direito ao patrimônio genético; o direito
do consumidor; o direito à emanação da ordem jurídica de direitos
fundamentais; e os direitos dos povos indígenas13.
Quanto a estes últimos Marés14 demonstra que possuem uma
excepcionalidade em relação aos direitos difusos em geral, qual seja,
a sua titularidade é restrita para os indígenas e não extensível à toda
coletividade da sociedade envolvente, à exceção do direito à socio-
diversidade (este é pertence à toda humanidade, é o direito de todos
à existência e à manutenção de todos os povos, em exercício da al-
teridade).
Já os direitos essencialmente coletivos específicos dos povos
indígenas seriam os relacionados aos seus territórios, cultura e auto-
-organização. Apesar de se diferenciarem nessas três categorias para
melhor compreensão didática, são mutuamente dependentes e fa-
zem parte dos elementos de existência de um povo: base física (terri-
tório), onde estão presentes suas referências culturais e o ecossistema
sob o qual detêm controle e conhecimento (território e cultura), e na
qual se vive mediante seus próprios usos, costumes, crenças e regras
comunitárias, aqui incluídos religiosidade, alimentação, farmaco-
peia e arte (território, cultura e auto-organização)15.
Desse modo, o direito ao território para os povos se torna de-
manda coletiva fundamental, pois não se trata apenas de base física
de ocupação, mas sim de uma área habitada mediante referência
cultural específica daquele povo, advinda da relação terra-ecossiste-
13 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
14 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
15 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
88
ma-uso tradicional da terra pelos próprios costumes e regras comu-
nitárias.
Outra especificidade do direito coletivo do povo indígena é
que sua relação com o Estado está inserida no que Marés denomina
uma “contradição insolúvel”16. Isso porque o Estado para os povos
indígenas não é somente garantidor de direitos ou provedor de direi-
tos sociais, mas também o “Estado-tutor”, o qual fica
[...] premido entre dois princípios, o da fidelidade ao tutelado e da legalidade.
Na contradição entre o interesse público genérico e o interesse individual do
tutelado, de que lado se põe o tutor-Estado? A lei indica que do lado do inte-
resse público, a tutela aponta para defesa dos interesses do tutelado17.
Outra forma de se enxergar a contradição insolúvel entre a
relação dos povos indígenas e o Estado é o papel fraco e forte que o
Estado exerce na garantia de seus direitos:
A luta dos povos indígenas há de ser a manutenção de um Estado tão fraco
que não possa impedi-los de realizar plenamente sua cultura, religião e direito,
mas tão forte que possa reprimir todos aqueles que violenta ou sutilmente
procurem impedi-los de realizar plenamente a sua cultura, religião e direito18.
Essa lógica da contradição insolúvel do papel do Estado na
promoção dos direitos coletivos indígenas se mostra ainda mais evi-
dente quando o próprio Estado é quem interfere no território, na
cultura ou na auto-organização indígena.
Ações estatais desse tipo podem ser visualizadas no exemplo
de quando o Estado outorga concessões públicas para exploração
econômica em território indígena, o que, sob outra ótica, é atuação
do Estado na promoção de outro direito coletivo, o direito ao desen-
volvimento, que também possui comando constitucional impositivo
ao Poder Público.
16 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 104.
17 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 104.
18 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 194.
89
Direito entre público e privado aqui também se faz presente, com o
emergir desse direito que, igualmente, detém natureza intermediária
e sai da esfera estatal para a esfera da coletividade.
Conforme explica Anjos Filho19, na virada do século XVI,
a visão dominante sobre “desenvolvimento” tinha como centro o
poder do Estado expansionista na era das grandes navegações e do
mercantilismo; no século XVIII, o centro do poder nacional passa a
ser o poder econômico da nação; e no início do século XX, o sentido
estático de economia passa a dar uma nova noção de desenvolvi-
mento vinculada à teoria econômica, momento em que passa a ser
denominado “desenvolvimento econômico”.
O problema de associar o desenvolvimento ao fator econô-
mico, é que passa a ser associado à ideia de crescimento econômico,
quando, na verdade, este, por si só, não assegura o desenvolvimento.
O crescimento econômico é indicador de riqueza quantitativa, ao
passo em que o desenvolvimento é indicador de riqueza qualitativa,
exigindo transformação da economia para um estágio mais moder-
no, eficiente e inclusivo, com alteração de estruturas econômicas,
produtivas, sociais, institucionais e políticas20.
Nesse sentido, o desenvolvimento conteria, em si, a ideia de
bem-estar social e atribuiria ao Estado o papel de agente e promotor
de determinado planejamento de caráter ideológico para implemen-
tação de políticas públicas21.
Esse caráter ideológico, todavia, não pode fugir à ideia geral
de progresso do século XXI, que reaproxima a ciência econômica da
ética após a crise do progresso do século XX, considerado inadequa-
do pelos países na esfera internacional por ser distante da preocupa-
ção com a situação social e o desenvolvimento sustentável22.
Diante disso, a reaproximação do econômico com o ético traz
à tona novos debates, tais como a aceitação do pluralismo cultural e
90
o reconhecimento de identidades como parte da satisfação de neces-
sidades humanas e realização da justiça, inserindo-os na concepção
de desenvolvimento do século XXI23.
A quebra do paradigma estritamente econômico e a reapro-
ximação com a ética também é uma maneira de reforçar o valor
jurídico atribuído ao desenvolvimento, ao mesmo passo em que en-
fraquece as teorias que negam a sua juridicidade.
Segundo Anjos Filho24, a concepção de que o desenvolvimen-
to é direito ganhou força no cenário internacional somente a partir
do consenso formado na Conferência Internacional de Direitos Hu-
manos de Viena, em 1993; e, na atualidade, o foco do debate não
mais deveria ser a sua natureza jurídica, e sim as questões relativas à
sua implementação.
Bercovici25 confirma que o marco internacional para o con-
siderar como direito fundamental foi a sua reafirmação na Confe-
rência de Viena de 1993. O autor também destaca que, até esse
momento, foram vários estágios de discussão no âmbito da ONU,
iniciado com um enfoque economicista e transformado para o atual
enfoque de direito fundamental.
Assim, o direito ao desenvolvimento enquanto direito funda-
mental do ser humano e dos povos, de titularidade difusa, somente
se emerge no final do século XX, e demanda ser “respeitado, garan-
tido e promovido pelo Estado, que é o principal formulador das
políticas de desenvolvimento” 26.
Nessa perspectiva, houve uma transição do Estado Liberal ao
Estado Social, o que modificou parâmetros do próprio Direito, den-
tre os quais a modificação do papel do Estado que deixa de ser ape-
nas o poder soberano e passa a ser o principal promotor de direitos
sociais27.
91
Por muitos anos, propagou-se ideologicamente que o Estado
Social seria contrário às liberdades individuais, quando, na verdade,
ele emerge dentro do próprio Estado Liberal, como um passo a mais
na democratização do Estado mediante regulação de setores econô-
micos, no intuito de “a ordem econômica e social [ficar] colocada à
disposição da vontade popular, democraticamente manifestada”28.
Esse paradigma é tão recente e ainda aceito com certa resistên-
cia ideológica, que, conforme ressalta Bercovici, “em nenhum lugar
do mundo, o Estado Social é uma realidade acabada, mas está em
constante realização”29. Para sua concretização, precisa-se aceitar a
ideia de que o Direito não serve apenas para proteger direitos contra
o Estado, mas também pode ser por utilizado como meio para mu-
danças estruturais na sociedade.
Segundo o mesmo autor30, essa opção ideológica de Estado
de Direito Social foi escolhida para o ordenamento brasileiro pelo
Constituinte de 1988 no artigo 3º e instituída como princípio cons-
titucional fundamental.
Respeitada essa concepção, surgiu no cenário jurídico brasi-
leiro a confirmação de que o direito ao desenvolvimento se insere
na ótica do desenvolvimento humanizado e culturalmente diversi-
ficado, a qual impõe ao Poder Público a atuação concomitante na
promoção dos direitos coletivos indígenas e do direito ao desenvol-
vimento.
Essa nova hermenêutica sobre o artigo 3º da Constituição Fe-
deral de 1988 foi estabelecida pelo próprio STF no julgamento da
Petição 3388/ RR, conhecido como o caso da Terra Indígena Rapo-
sa Serra do Sol. Apesar disso, a doutrina compreende que a Corte
Constitucional adotou, naquele precedente, uma postura contradi-
tória, ao estabelecer como regra de solução de conflitos a prevalência
28 BERCOVICI, G. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003, p.
52.
29 BERCOVICI, G. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003, p.
53.
30 BERCOVICI, G. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003.
92
abstrata de determinados bens jurídicos sobre o direito à autodeter-
minação indígena.
31 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [Brasília, DF]: Presidência da Re-
pública, [1988].
32 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [Brasília, DF]: Presidência da Re-
pública, [1988].
33 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [Brasília, DF]: Presidência da Re-
pública, [1988].
93
rou-lhes apenas a participação nos resultados da lavra, na forma da
lei (ainda não editada), observadas a autorização do Congresso Na-
cional e a oitiva do seu povo34.
Também retirou a intangibilidade da terra indígena para
aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais ener-
géticos, e para pesquisa de riquezas minerais, mantidas as duas con-
dicionantes anteriores: autorização do Congresso Nacional e a oitiva
da comunidade35.
Em que pese tenha autorizado as intervenções territoriais ci-
tadas, o artigo 231, § 5º, estabeleceu o direito dos grupos indígenas
de não serem removidos de suas terras, salvo três situações de risco:
catástrofe, epidemia ou no interesse da soberania do país, obedeci-
dos, em cada caso, a participação específica do Congresso Nacional
e o direito ao retorno imediato logo que cessado o risco36.
No parágrafo 6º do mesmo artigo 231, a Constituição Federal
de 1988 considerou nulos e extintos quaisquer atos que tenha por
objeto a ocupação, o domínio e a posse de terras tradicionalmente
ocupadas, bem como a exploração das riquezas de usufruto exclu-
sivo dos indígenas, exceto se houver relevante interesse público da
União previsto em lei complementar, a qual, todavia, também não
editada37.
Dos artigos acima citados, nota-se que a regra constitucional
é a posse permanente e o usufruto exclusivo da terra pelos próprios
indígenas, a eles garantidos como direito coletivo. As exceções são
taxativamente previstas no texto constitucional e demandam a ob-
servância de algumas premissas: a oitiva do povo; o direito de não
serem removidos dos seus territórios; e a necessidade de leis federais
específicas prévias regulamentando o interesse público.
34 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [Brasília, DF]: Presidência da Re-
pública, [1988].
35 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [Brasília, DF]: Presidência da Re-
pública, [1988].
36 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [Brasília, DF]: Presidência da Re-
pública, [1988].
37 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [Brasília, DF]: Presidência da Re-
pública, [1988].
94
Além disso, está-se diante de situações futuras e incertas de
exploração econômica em terra indígena e de conceitos jurídicos in-
determinados (interesse de soberania do país e relevante interesse
público).
Diante da abertura do texto constitucional, o STF definiu,
durante o julgamento da Petição 3388 - caso da Terra Indígena Ra-
posa Serra do Sol -, situações de interesse público a serem considera-
das no mesmo patamar hierárquico dos direitos indígenas38.
As salvaguardas estabelecidas pela Corte Constitucional visa-
ram à proteção do “interesse público relevante da União” e não a dos
povos indígenas, apesar de a regra, como visto, é deterem a posse
permanente e o usufruto exclusivo, e as exceções serem as situações
específicas em que se admite a interferência em terra indígena.
A Corte Constitucional, no caso concreto, acabou por des-
considerar a natureza de eficácia contida do direito fundamental de
usufruto exclusivo da terra indígena, que somente poderia ter sido
restringida diante de lei complementar sobre o interesse público da
União.
Inverteu-se, portanto, a lógica da eficácia de normas constitu-
cionais, ocasião em que o STF tratou o interesse público da União
como se norma fundamental autoaplicável fosse e estabeleceu, judi-
cialmente, salvaguardas para o interesse público em situações vin-
douras.
38 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Petição 3388/ RR. AÇÃO POPULAR. DE-
MARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS
NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E
232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6. 001/ 73 E SEUS DECRETOS
REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/
2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMO-
LOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA,
EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONA-
LIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TER-
RAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA
INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO
DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA
IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS
FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IM-
PORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PAR-
TIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE
DISPOSITIVA DA DECISÃO. Relator: Carlos Britto, 19 de março de 2009. Disponível em: http:/ /
redir. stf. jus. br/ paginadorpub/ paginador. jsp?docTP=AC&docID=630133.
95
A partir desse ativismo judicial conservador39, o STF impôs
19 (dezenove) condicionantes às terras indígenas, sob a premissa de
que a exclusividade do usufruto das riquezas é conciliável com a pre-
sença de não-indígenas, nos termos do voto do Ministro Menezes
Direito40.
Desse modo, ficou estabelecido que o interesse público da
União poderia ser genérico (e não apenas relevante); que o usufruto
também era excepcionado por garimpagem e faiscação de riquezas
minerais (e não somente pesquisa e lavra mineral); que o usufruto
estava condicionado ao interesse da política de defesa nacional, à
instalação de bases, unidades e postos militares e demais interven-
ções militares, à expansão da malha viária, à exploração de alternati-
vas energéticas e ao resguardo das riquezas, quando tivessem cunho
estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa
e Conselho de Defesa Nacional)41.
39 SARMENTO, D. Prefácio. In: ARAUJO JUNIOR, J. J. Direitos territoriais indígenas - uma interpre-
tação intercultural. Rio de Janeiro: Processo, 2018.
40 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Petição 3388/ RR. AÇÃO POPULAR. DE-
MARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS
NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E
232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6. 001/ 73 E SEUS DECRETOS
REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/
2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMO-
LOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA,
EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONA-
LIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TER-
RAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA
INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO
DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA
IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS
FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IM-
PORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PAR-
TIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE
DISPOSITIVA DA DECISÃO. Relator: Carlos Britto, 19 de março de 2009. Disponível em: http:/ /
redir. stf. jus. br/ paginadorpub/ paginador. jsp?docTP=AC&docID=630133.
41 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Petição 3388/ RR. AÇÃO POPULAR. DE-
MARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS
NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E
232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6. 001/ 73 E SEUS DECRETOS
REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/
2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMO-
LOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA,
EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONA-
LIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TER-
RAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA
INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO
DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA
IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS
FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IM-
96
Neste último ponto, o STF vinculou as situações ao interesse
“estratégico” e não a questões de “soberania nacional”, diferente do
previsto na Constituição, e não mencionou o direito ao retorno ime-
diato assim que cessado o risco que levou à intervenção no território.
O usufruto também foi excepcionado para atribuições das
Forças Armadas e Polícia Federal; para a instalação de equipamen-
tos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte e
construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União;
além de terem sido estabelecidas condicionantes no caso de sobrepo-
sição de terras indígenas com unidades de conservação; de vedação
de arrendamento, interdição ou bloqueio de estradas, cobrança de
pedágio e inibição de funcionamento de repartições públicas42.
Ao levantar essas condicionantes, o Ministro Menezes Direito
considerou que as questões debatidas pelas partes eram “extensíveis
e aplicáveis a outros conflitos que envolvam terras indígenas” e que
a decisão iria consolidar o entendimento do STF com repercussão
para o futuro43.
97
No julgamento de embargos de declaração, a Corte afirmou
que as condicionantes foram consideradas como pressupostos para
reconhecimento da validade da demarcação da Terra Indígena Ra-
posa Serra do Sol e que deveriam ser consideradas como diretrizes
básicas para dirimir graves controvérsias naquela região44.
Não obstante, o STF destacou que, como a decisão foi profe-
rida em ação popular, era desprovida de força vinculante, de modo
que seus fundamentos não poderiam ser estendidos de forma au-
tomática a outros processos e eram dotados apenas de força moral
e persuasiva, a ensejar ônus argumentativo elevado para superação
jurisprudencial45.
Ficou estabelecido, portanto, que as condicionantes não deve-
riam ser aplicadas automaticamente a outros conflitos territoriais in-
dígenas46, todavia, formou-se um precedente em que a Corte mais
alta do país fez suposições de prevalência abstrata de outros bens
jurídicos sobre o território indígena47.
A definição de prevalência abstrata desses bens jurídicos vai
na contramão do seu posicionamento nesse mesmo caso, quando
declarou falsa a premissa de incompatibilidade ou de antagonismo
entre a questão indígena e o desenvolvimento econômico.
98
Na ementa do julgamento, identifica-se a orientação do STF
para que o Poder Público, em todas as suas esferas federativas, não su-
bestime ou hostilize comunidades indígenas diante de projetos econô-
micos, mas, ao contrário, considere-as para contribuírem e diversifica-
rem o potencial econômico-cultural nos territórios por si ocupados48.
Estabeleceu-se, assim, que o desenvolvimento sem ou contra os
indígenas desrespeita o objetivo fundamental da República de garantir
o desenvolvimento nacional (previsto no artigo 3º, II, da Constituição
Federal). Com efeito, o desenvolvimento deve ser, além de ecologica-
mente equilibrado, humanizado e culturalmente diversificado, com a
presença da realidade e do componente indígena49.
A participação indígena nos projetos de desenvolvimento
econômico foi garantida, sob essa ótica, com força de comando
48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Petição 3388/ RR. AÇÃO POPULAR. DE-
MARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS
NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E
232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6. 001/ 73 E SEUS DECRETOS
REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/
2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMO-
LOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA,
EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONA-
LIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TER-
RAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA
INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO
DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA
IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS
FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IM-
PORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PAR-
TIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE
DISPOSITIVA DA DECISÃO. Relator: Carlos Britto, 19 de março de 2009. Disponível em: http:/ /
redir. stf. jus. br/ paginadorpub/ paginador. jsp?docTP=AC&docID=630133.
49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Petição 3388/ RR. AÇÃO POPULAR. DE-
MARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS
NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E
232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6. 001/ 73 E SEUS DECRETOS
REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/
2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMO-
LOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA,
EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONA-
LIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TER-
RAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA
INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO
DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA
IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS
FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IM-
PORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PAR-
TIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE
DISPOSITIVA DA DECISÃO. Relator: Carlos Britto, 19 de março de 2009. Disponível em: http:/ /
redir. stf. jus. br/ paginadorpub/ paginador. jsp?docTP=AC&docID=630133.
99
constitucional, de modo que não se pode mais reduzir o direito de
participação indígena em projetos econômicos como se existissem
somente em decorrência do direito de consulta prévia previsto na
Convenção 169 da OIT. Repita-se: trata-se de verdadeira imposição
constitucional.
Sob essa ótica, surge a necessidade de compatibilização entre
interesses jurídicos diferentes e historicamente tidos como antagô-
nicos, mas que passam a ser reconsiderados como possíveis numa
coexistência harmônica. Essa compatibilidade, todavia, é retirada de
foco quando se aplica a mera ótica de prevalência abstrata de um
bem sobre o outro.
100
Cita-se, portanto, a Sentença de Unificação do entendimento
jurisprudencial nº 123/ 2018 da Corte Constitucional colombiana,
por ser a sentença mais emblemática daquele país em matéria de
consulta prévia a comunidades étnicas.
No referido julgamento, considerou-se que houve violação do
direito à consulta prévia da comunidade indígena Awá, por ter sido
concedida licença e iniciadas as atividades de exploração de hidro-
carbonetos no seu território sem a sua participação52.
Mesmo que o objeto daquele processo buscasse a declaração
de violação do direito à consulta prévia, um ponto de destaque da
sentença é que a Corte colombiana teceu considerações aos futuros
cenários após cumprirem efetivamente a consulta à comunidade.
Os cenários possíveis são: (1) ou a obtenção do consentimen-
to do povo indígena com o projeto de exploração; ou (2) um acordo
com mútua cessão entre as partes envolvidas; ou (3) um desacordo
completo sobre a concessão econômica, o que poderia gerar novo
conflito e nova submissão da questão ao Poder Judiciário.
Já adiantando a possível situação de desacordo, a Corte co-
lombiana estabeleceu que existem regras a serem seguidas quando
não se alcança o acordo após a consulta prévia. Nesses casos, o Esta-
do acabará por determinar qual o destino do projeto econômico e,
se for por sua continuidade, esta decisão somente poderá ser consi-
derada válida se decisão estatal:
i) esteja desprovida de arbitrariedade e autoritarismo; ii) esteja baseada em
critérios de “razoabilidade, proporcionalidade e objetividade quanto ao dever
de reconhecimento e proteção da diversidade étnica e cultural da Nação; iii)
tome em consideração, até onde seja possível, das posições expressadas pelas
partes, e em especial aquelas do povo étnico, durante a consulta; iv) respeite os
direitos substantivos dos povos reconhecidos na Constituição e especificamen-
te na Convenção 169 da OIT; e v) preveja mecanismos eficazes, adequados e
eficientes para atenuar os efeitos negativos da medida (tradução nossa) (CO-
LÔMBIA, 2018).
101
Em caso de futuro acionamento do Judiciário sobre o con-
flito, a decisão judicial deveria se pautar por algumas diretrizes. A
primeira delas é aferir se as limitações territoriais ao território in-
dígena são constitucionalmente legítimas, necessárias para proteger
um interesse hierárquico superior e de forma menos gravosa para
a autonomia das comunidades étnicas53. Além disso, deveriam ser
ponderados e analisados os seguintes elementos:
(i) a posição e as propostas dos atores; (ii) o comportamento da empresa e, em
particular, se esta teve ou não devida diligência frente aos direitos do grupo
étnico; (iii) qual é a melhor forma de garantir os direitos fundamentos dos
membros dos povos indígenas e dos demais habitantes dos respectivos territó-
rios – tais como o direito à vida e integridade pessoal, ao livre desenvolvimento
da personalidade, à segurança e à saúde -; (iv) a proteção do interesse geral da
nação colombiana à diversidade étnica e cultural; (v) os direitos de terceiros
que poderiam se ver afetados pela suspensão ou, ao contrário, pela continuação
do projeto; e (vi) o interesse geral e os poderes potestativos inerentes ao Estado
colombiano (tradução nossa)54.
102
xima da proporcionalidade, do sopesamento e da ponderação55, e
para a qual as normas constitucionais de natureza principiológica
(princípios) “ordenam que algo seja realizado na maior medida pos-
sível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”56.
O postulado da proporcionalidade costuma ser utilizado pelo
magistrado seguindo as três etapas definidas por Alexy57: adequa-
ção, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Na etapa da
adequação, questiona-se se a atividade exploratória que se pretende
implantar é adequada para realização do interesse público estatal de
desenvolvimento.
Na etapa da necessidade, deve-se considerar que “dentre dois
meios aproximadamente adequados, seja escolhido aquele que inter-
venha de modo menos intenso”58, isto é, se houver alguma forma de
garantir o desenvolvimento sem intervir dentro do território indíge-
na, ele deve ser escolhido. Pela ótica da necessidade, há vedação do
sacrifício de um direito fundamental se não houver necessidade59.
Por último, na etapa da proporcionalidade em sentido estrito,
é onde se identifica, de modo mais nítido, a lógica da otimização dos
direitos colidentes. É a lei do sopesamento, em que quanto maior
a afetação de um direito, tanto maior deverá ser a importância, a
justificativa e a legitimação de satisfazer o outro, considerado ven-
cedor60.
Consideradas essas questões, e sob uma análise comparativa
entre os precedentes citados (o do STF e o da Corte Constitucional
da Colômbia), o postulado da proporcionalidade é quem concretiza
55 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
56 ALEXY, R. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malhei-
ros Editores, 2008, p. 91.
57 ALEXY, R. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malhei-
ros Editores, 2008.
58 ALEXY, R. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malhei-
ros Editores, 2008, p. 588.
59 ALEXY, R. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malhei-
ros Editores, 2008.
60 ALEXY, R. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malhei-
ros Editores, 2008.
103
o comando de desenvolvimento humanizado e culturalmente dife-
renciado e não a simples a valoração abstrata de superioridade de
determinados bens jurídicos em depreciação ao território indígena.
61 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 141.
62 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 142.
63 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 144.
104
Sob essa linha de pensar, o não consentimento da comunida-
de indígena à realização de um projeto de desenvolvimento econô-
mico dentro de seu território pode estar associado a uma perspectiva
diversa sobre a ordem jurídica ou mesmo um sistema social diferente
estruturalmente constituído.
Como retrata Marés64, certos povos indígenas se regem por
regras tradicionais da própria comunidade indígena e não com-
preendem a lógica do Direito nacional, de modo que o sistema ju-
rídico da sociedade envolvente pode ser, para eles, ordem jurídica
alheia, desconhecida ou mesmo incompreendida.
Nesse raciocínio, os povos indígenas podem representar, na
colisão dos princípios, um sujeito ou grupo social de perspectiva
diferenciada, e na defesa de seu direito de ter autodeterminação em
seu território, o conflito entre princípios se insere numa realidade
hipercomplexa.
É sob esse viés que Neves65 questiona qual o sentido de falar
em otimização de princípios, se não levar em conta que esse pos-
tulado decisório legitima apenas uma das instâncias subjetivas (o
Estado-Juiz), e a legitima como instância “intersubjetiva supraorde-
nada, capaz de determinar o que cabe definitivamente a cada esfera
de vida”.
O problema de determinar somente a uma instância subjetiva
a definição da esfera de vida da outra é que elas não são mutuamente
intercambiáveis. Conforme explica Ribeiro:
Jamais uma cultura indígena e a nacional se confrontam – com suas qualidades
culturais intrínsecas – como elementos livremente comparáveis e intercam-
biáveis. Os índios, compelidos a redefinir suas crenças, não o fazem atentos
[...] às razões do funcionário chamado a protegê-los e que lhes quer impingir
suas próprias concepções [...]. Essas diversas representações não se oferecem ao
índio como alternativas racionais dentre as quais ele deva ou possa optar, me-
diante a crítica de suas concepções anteriores e a adoção da que lhe pareça mais
acertada ou mais adequada. Na verdade, cada um desses corpos ideológicos,
assim como aquele que o próprio indígena traz dentro de si, é a cristalização
64 MARÉS, C. F. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
65 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 149.
105
de uma mentalidade, de uma consciência que de desenvolveu e se alterou con-
dicionada por certas circunstâncias peculiares e que só dentro desse contexto
alcança significação. [...] No caso do índio, essa consciência [...] será espúria se
for induzida de fora, pela interiorização de elementos da consciência do ‘outro’,
e, portanto, se opera não para servir ao grupo [...]66.
66 RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. 7 ed.
São Paulo: Global, 2017, p. 328.
67 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 166.
68 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 168.
69 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 168.
70 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
106
rogeneidade, de modo que se “encontre caminhos além da autorre-
ferência, viabilizando a observação recíproca a partir de perspectivas
diversas”71.
Certo é que, assim como afirma Moraes72, a heterogeneidade
e a dificuldade de encontrar respostas para a hipercomplexidade das
tarefas constitucionalmente atribuídas não é razão suficiente para
deixar de realizá-las. Resta ao Poder Público, ao menos, agir na me-
dida de suas possibilidades, de acordo com o fluxo das demandas
sociais, da evolução do Direito e dos objetivos democráticos, ainda
que isso signifique reconhecer, num caso concreto específico, o di-
reito de intangibilidade do território indígena contra o Estado.
5. Considerações finais
O presente artigo objetivou demonstrar que o postulado da
proporcionalidade (apesar de ser adotado como critério compatível
com o atual paradigma jurídico de proteção dos direitos dos povos
indígenas), pode não ser adequado para resolver conflitos sobre ex-
ploração econômica estatal no território indígena.
Para alcançar seu resultado, o artigo demonstrou que, do
ponto de vista da proteção dos direitos indígenas, é preferível que a
colisão dessas normas constitucionais seja resolvida pelo postulado
da proporcionalidade se comparado à simples valoração abstrata de
preferência de um bem jurídico de interesse público em depreciação
ao direito territorial indígena.
Todavia, uma vez considerado que, na atualidade, o postula-
do da proporcionalidade é regido por uma lógica de otimização de
direitos a partir de uma única instância decisora (o Estado-Juiz), ele
pode vir a ser instrumento de perpetuar a intervenção e a desintegra-
ção de vidas indígenas, sob a justificativa de exploração econômica
71 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 152.
72 MORAES, R. Q. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação
com o constitucionalismo dirigente. Revista de informação legislativa, [Brasília], v. 51, n. 204, p. 269-
285, out. / dez. 2014.
107
do território, sem considerar as peculiaridades do dissenso hiper-
complexo posto.
Desse modo, o atual paradigma jurídico constitucional de afe-
rir a proporcionalidade, sopesar ou realizar ponderação entre nor-
mas principiológicas, parece ser insuficiente ou, nos termos de Mar-
celo Neves73, subcomplexo para a conflituosidade hipercomplexa, a
qual vai além do dissenso entre princípios de uma mesma ordem e se
constitui a partir de princípios colidentes entre perspectivas e ordens
jurídicas e sociais diversas.
Assim sendo, enquanto não surge outro postulado que se
mostre mais criterioso e adequado para solução do conflito estuda-
do, resta ao Poder Público tentar promover ambos os direitos cole-
tivos, pautando-se, ao menos, pela concepção de desenvolvimento
econômico humanizado e culturalmente diferenciado, estando aber-
ta a possibilidade de o Estado-Juiz reconhecer, concretamente, a pre-
valência do direito territorial indígena contra o Estado.
73 NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
108
Amazônia, Direitos Humanos,
Unidade de Conservação,
Quilombos e Sustentabilidade:
A questão jurídica de
sobreposição territorial na
reserva extrativista de Ipaú-
Anilzinho, Pará
Stephanie Vieira Brito1
1. Introdução
A realidade constituída na América-Latina foi mundialmen-
te imposta. Nesse mesmo movimento histórico, o emergente poder
capitalista tornou-se mundial, fixando os centros hegemônicos de
controle na Europa2.
A modernidade eurocentrada opera sob a lógica da exclusão e
submissão dos povos, logo, o paradigma da apropriação e violência
sempre foi a tônica do tratamento para todos aqueles que se en-
contram como os “outros” (não-europeus), dentro da racionalização
moderna eurocêntrica. Essa perspectiva produziu e continua a pro-
duzir relações de poder entre dominantes e dominados, controlando
a economia, a autoridade, a natureza e os recursos naturais, o gênero
e a sexualidade, e também a subjetividade e o conhecimento3. Ex-
1 Mestra em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/
UFPA), na linha de pesquisa Direitos Humanos e Meio Ambiente. Especialista em Comunicação Cientí-
fica, pelo Programa Internacional de Formação de Especialistas em Desenvolvimento de Áreas Amazôni-
cas - XXVIII Fipam, vinculado ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/ UFPA). Pós-graduanda
(lato sensu) em Advocacia Cível pela Escola Superior e Advocacia (ESA/ OAB) e Fundação Escola Supe-
rior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP-RS). Bacharela em Direito pela Universidade da
Amazônia (Unama).
2 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. de S. ; MENE-
SES, M. P. G. (Orgs. ). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina; CES, 2010.
3 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. de S. ; MENE-
109
propriações e violências que marcam a trajetória de muitos povos
latino-americanos, como os remanescentes de quilombos no Brasil.
Apesar desse eixo de dominação, os subjugados pela ordem
moderna ocidental e capitalista global produzem formas de resis-
tência e inclusive de apropriação de espaços historicamente hege-
monizados, disputam, por exemplo, o saber jurídico e o próprio di-
reito. O direito moderno e seus fundamentos centrados nos direitos
individuais e na propriedade privada como sua máxima expressão
passam a ser questionados por outras concepções e formas de vidas,
formas estas que introduziram nas Constituições pela América-Lati-
na os chamados novos direitos ou direitos dos invisíveis4.
Entre as décadas de 1980 e 1990, novos paradigmas foram
ativados quando grande parte dos países na América-Latina segui-
ram as principais tendências do constitucionalismo contemporâneo.
Com pilares fundantes na expansão do catálogo dos direitos huma-
nos e dos direitos fundamentais consagrados nas Constituições com
novos bens jurídicos e sujeitos coletivos de direitos a serem tutelados
pelo Estado, constituindo exemplos de Estados plurinacionais5.
Os novos direitos apontam para a versão multiculturalista de
resistência ou emancipatória, o qual repele os essencialismos univer-
salistas e particularistas. Esta ótica coloca em relevância as concep-
ções que impulsionam o florescimento das potencialidades humanas
e que favoreça a convivência interpessoal e intercultural, favorecen-
do, assim a diversidade sociocultural e a coabitação de múltiplas for-
mas de viver em sociedade6.
É no bojo de discussão dos novos direitos que florescem as
concepções de proteção ao meio ambiente ecologicamente equili-
110
brado e dos territórios tradicionalmente ocupados e sua respecti-
va positivação na Constituição da República Federativa do Brasil
(CRFB) de 1988. A consagração desses direitos faz surgir o Estado
de Direito Socioambiental.
O modelo de Estado Socioambiental agrega as conquistas positivas (em termos
de tutela da dignidade humana) dos modelos de Estado de Direito que o an-
tecederam, incorporando a tutela dos novos direitos transindividuais e, num
paradigma de solidariedade humana, projetando a comunidade humana num
patamar mais evoluído de efetivação de direitos fundamentais (especialmente
dos novos direitos de terceira dimensão, como é caso da proteção ambiental)7.
Esta perspectiva pluralista8 dos direitos e garantias funda-
mentais ratifica a orientação socioambiental consagrada na CRFB,
que, é possível afirmar não estar de modo fragmentado e ou/ espa-
lhado de forma individualizada na Carta Cidadã os artigos referentes
à cultura, ao meio ambiente, aos territórios tradicionais, aos povos
indígenas e quilombolas e à função socioambiental da propriedade.
Há um conjunto sistêmico e integrado de direitos, os quais, junto
com a legislação infraconstitucional, compõe uma unidade axiológi-
co-normativa de tais direitos humanos constitucionais9.
A Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) instituída
pela lei 6. 938/ 81 constitui instrumento legal regulatório das in-
tervenções sobre o meio ambiente, sendo pautada pelo princípio do
desenvolvimento sustentável. Este diploma criou ainda o Sistema
Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) para representar a estru-
tura e forma de gestão administrativa tutelar ambiental.
A Lei n. º 9. 985/ 2000 foi promulgada, regulamentando o
art. 225, incisos I, II, III e VII, da Constituição Federal e instituindo
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. A
atual lei regulamenta a gestão e administração das unidades de con-
servação (UC) e que incluiu as Reservas extrativistas (RESEX). Elas
111
se subdividem em: a) as unidades de proteção integral e que proíbem
a ocupação humana; b) as unidades de uso sustentável, permitindo
presença humana.
No Brasil o conceito de UCs passou a viger nas normas in-
franconstitucionais e englobar a definição internacional de áreas
protegidas presentes na Convenção da Diversidade Biológica (CDB)
e acolhida pela Comissão Mundial de Áreas Protegidas da União
Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN)10.
Importa discorrer que os direitos ambientais consagrados
constitucionalmente advieram de discussões articuladas no campo
internacional sobre a situação do planeta em termos de preserva-
ção do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Algumas
conferências internacionais foram importantes, como: a Conferên-
cia de Meio Ambiente das Nações Unidas em Estocolmo (1972), o
lançamento do Relatório de Bruntland (1987), a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – Eco
92 ou Rio 92 –, (1992). O meio ambiente saudável passou a ser um
componente para o gozo e exercício dos direitos humanos e o cerne
do desenvolvimento com equidade, justiça social e ambiental, estan-
do presentes a necessidade de um desenvolvimento sustentável11.
A consagração dos direitos dos povos tradicionalmente ocu-
pados no âmbito internacional foi firmada com a Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada (reco-
nhecida como Lei do país) pelo Brasil em 2003. Este documento
confere a autodeterminação, a diversidade cultural e o território tra-
dicionalmente ocupado dos povos indígenas e tribais entre outros
direitos.
Este artigo possui as seguintes seções: 1) apresenta a metodo-
logia; 2) contextualiza o arcabouço de direitos socioambientais na
112
perspectiva pluralista dos direitos humanos; 3) apresenta e analisa
o caso de conflito socioambiental de sobreposição de territórios na
Resex de Ipaú-Anilzinho, no município de Baião-PA. Ao final, apre-
senta as considerações finais.
O Artigo orienta-se em três etapas: 1) levantamento explora-
tório da bibliografia; 2) estudo de caso; 3) síntese. Para responder a
seguinte questão: Em que medida os direitos socioambientais e ter-
ritoriais garantem a efetivação dos direitos dos povos e comunidades
tradicionais?
2. Metodologia
Este artigo científico possui metodologia de análise quali-
tativa, com técnica dedutiva e análise procedimental de estudo de
caso12. O objetivo deste artigo é o de analisar o conflito socioam-
biental de sobreposição territorial de uma Unidade de Conservação
Federal de uso sustentável e a existência de território quilombola.
O artigo orienta-se em três etapas metodológicas de pesquisa:
1) a primeira procede-se de levantamento bibliográfico e documental,
com utilização de mapas, para demarcar a localização da região do
Baixo Tocantins. Levantamento bibliográfico em livros, teses, disserta-
ções e artigos científicos no campo do Direito e em outras áreas do co-
nhecimento para promoção de um diálogo interdisciplinar referentes
a Unidades de Conservação (UCs), povos e comunidades tradicionais,
remanescentes de quilombos, sobreposição de territórios e Reserva
Extrativista (RESEX) de Ipaú-Anilzinho e legislações pertinentes.
A segunda etapa consiste na análise Lei n. º 9. 985 de julho de
2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza – SNUC. A escolha da Reserva Extrativista de Ipaú-A-
nilzinho no município de Baião-PA, se perfaz por haver quilombolas
na área, apontando para um conflito de sobreposição territorial.
12 GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 46. LEITE,
Ilka Boaventura. Terras de Quilombo. IN Antropologia e Direito: temas antropológicos para estudos
jurídicos. / Coordenação geral [de] Antônio Carlos de Sousa Lima. / Rio de Janeiro. / Brasília: Contra
Capa/ LACED/ Associação Brasileira de Antropologia. 2012. pp. 356-368.
113
Na terceira e última parte do artigo, levando em considera-
ção todo o arcabouço teórico produzido a partir do levantamento
bibliográfico e pesquisa documental, analisa-se criticamente a Resex
e os quilombos, verificando-se as causas da permanência do confli-
to socioambiental nas respectivas comunidades, extraindo sínteses
pertinentes para a questão jurídica de sobreposição de territórios e
de direitos.
13 DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995. –
Coleção Pesquisa & Projeto.
114
dos a partir de categorias etnocêntricas, como “oriente-Ocidente,
primitivo-civilizado, mágico/ mítico/ científico, irracional-racional,
tradicional-moderno. Em suma, Europa e não-Europa”14.
A modernidade eurocêntrica inventou classificar as pessoas
em identidades estagnadas. Tal modernidade é carregada de colo-
nialismo capaz de constituir subjetividades, castrar e subestimar o
potencial coletivo e produzir barreiras para que o colonizado não
consiga rever sua condição de subalternidade.
De acordo com Quijano15 o colonialismo:
[...] Refere-se estritamente a uma estrutura de exploração-dominação onde o
controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma
população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes
centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial.
Há nesse padrão da modernidade eurocêntrica uma matriz
colonial complexa de diferentes níveis, que se inter-influenciam,
sendo a estrutura da colonialidade do poder: 1) Controle da eco-
nomia; 2) Controle da autoridade; 3) Controle da Natureza e dos
recursos naturais; 3) Controle do gênero e da sexualidade; e 4)
Controle da subjetividade e do conhecimento. Esses comandos
operam sob os eixos epistemológicos, hermenêutico e dos senti-
dos, conformando um conjunto de crenças que fundamentam e
racionalizam a ação16.
Diante desse aspecto, a racionalidade ou o pensamento mo-
derno ocidental foram constituídos a partir de modos abissais, ou
como Santos17 denomina de pensamento abissal, que consiste num
sistema binário entre o visível e o invisível, sendo este último a base
que sustenta o primeiro. No campo do invisível ou “zona colonial”
habita o universo das crenças e dos comportamentos ininteligíveis,
115
enquanto que no campo do visível há tudo aquilo que é racional, do
ponto de vista ocidental18.
É sob essa ótica que se constitui a própria América-Latina, a
partir do olhar do colonizador europeu, uma realidade social inteira-
mente constituída pela violência, opressão e espoliações. Conforme
as linhas abissais, neste lado da linha, muitas formas de vidas foram
invisibilizadas, ou seja, “desapareceram” ou tornaram-nas inexisten-
tes enquanto realidade/ verdade. A lógica de subjugação e extermí-
nio é ainda atual, a funcionalização do pensamento abissal continua
a separar o mundo entre humanos e sub-humanos19.
No Brasil, por exemplo, a formação do Estado-nação se soli-
dificou em aparatos hegemônicos de ordenamentos políticos, tendo
por base individualismos universalistas, suprimindo grupos huma-
nos de sua humanidade plena. Esses conjuntos de instrumentos em-
basaram inclusive o ordenamento jurídico-territorial do país, o qual
contribuiu intensamente para tornar invisíveis os afrodescendentes
e indígenas, essa invisibilidade é a máxima expressividade de uma
ordem jurídica hegemônica20.
Após a outorga de liberdade os homens negros livres não ob-
tiveram respaldo jurídico e social capazes de lhes garantir encontrar
um pilar para tornarem-se trabalhadores livres, interesseiramente
tiveram negados seus sistemas de exploração e uso comum da ter-
ra21. Portanto, na América-Latina, o direito moderno se constituiu,
segundo Santos22, como o conhecimento visível e por isso mesmo
válido, também foi e continua ser a ferramenta capaz de excluir ou
18 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais à ecologia dos
saberes. In: SANTOS, B. de S. ; MENESES, M. P. G. (Orgs. ). Epistemologias do Sul. Coimbra: Alme-
dina; CES, 2010.
19 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais à ecologia dos
saberes. In: SANTOS, B. de S. ; MENESES, M. P. G. (Orgs. ). Epistemologias do Sul. Coimbra: Alme-
dina; CES, 2010.
20 LEITE, Ilka Boaventura. Terras de Quilombo. IN Antropologia e Direito: temas antropológicos para
estudos jurídicos. / Coordenação geral [de] Antônio Carlos de Sousa Lima. / Rio de Janeiro. / Brasília:
Contra Capa/ LACED/ Associação Brasileira de Antropologia. 2012. pp. 356-368.
21 MARIN, Rosa Elisabeth Acevedo; CASTRO, Edna. Negros de Trombetas: guardiães de matas e rios. 2.
ed. Belém: Cejup/ UFPA-NAEA, 1998.
22 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais à ecologia dos
saberes. In: SANTOS, B. de S. ; MENESES, M. P. G. (Orgs. ). Epistemologias do Sul. Coimbra: Alme-
dina; CES, 2010.
116
incluir sujeitos dentro da ordem moderna ocidental, capitalista glo-
bal.
Dentro da lógica moderna, na segunda metade do século XX,
inovações emergiram com relação a novos sujeitos de direitos. O
reconhecimento da existência da heterogeneidade cultural e social
compõe o direito à diferença, o qual requer não só a compreensão
das diferenças como estando intrinsecamente ligadas aos grupos so-
ciais, bem como necessita considerá-las importante na formação de
suas especificidades individuais e coletivas.
Significa, então, que o direito à diferença funda-se na noção
de que todos são diferentes entre si e na complexidade da diver-
sidade humana, englobando a ideia de alteridade, como convite a
“outrar-se”, único caminho para o trânsito intersubjetivo23.
Aos sujeitos há o direito à igualdade quando as diferenças lhes
fazem inferiores, bem como, reciprocamente, há o direito de reivin-
dicarem as diferenças quando a igualdade corrobora para a desca-
racterização dessas distinções e especificidades de cada indivíduo ou
coletividades, conforme Santos & Nunes24. É necessário sublinhar
que, a igualdade é um princípio de retórica universalista eurocêntri-
co, alicerçado num sistema fundacional e transformado no univer-
sal, sendo um determinado localismo que foi globalizado, segundo
Santos25.
Segundo Santos26, o projeto da modernidade ocidental tam-
bém produziu uma linguagem universalista do direito e dos Direitos
Humanos, assumindo um discurso hegemônico sobre dignidade hu-
mana. Tal linguagem hegemônica excluiu grande parte da popula-
ção mundial, transformando-as em objetos de discursos de direitos
117
humanos e não em sujeitos desses direitos. Se o discurso univer-
sal dos Direitos Humanos deslegitima sujeitos que deveriam ser os
beneficiários deles, cabe o seguinte questionamento proposto por
Santos “Poderão os direitos humanos ser usados de modo contra-
-hegemônico?”27.
Os Direitos Humanos devem ser abordados a partir de uma
racionalidade complexa e de resistência em conjunto com as práticas
interculturais, fluídas e híbridas. Deve superar a dicotomia universal
e/ ou particularista. Nesse sentido, o reconhecimento da diferença é
uma categoria, que além de jogar tensões sobre o debate dos Direitos
Humanos, é capaz de ensejar uma prática contra-hegemônica dos
direitos humanos, que não seja produtora de exclusões e que nos
convide a um pluralismo de ordem intercultural, capaz de superar a
dicotomia entre o universal e o fundacional28.
4. Desenvolvimento e sustentabilidade
Este tópico objetiva tratar dos Direitos Humanos ao território
tradicionalmente ocupado dos povos e comunidades tradicionais,
bem como tratar dos direitos humanos ao meio ambiente ecologi-
camente equilibrado, leques de direitos importantes e que advieram
tanto de preocupações nacionais e internacionais de especialistas e
cientistas na área, como da própria sociedade civil organizada e mo-
bilizada para positivar e assegurar os novos direitos.
27 SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cor-
tez. 2013, p. 42.
28 SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cor-
tez. 2013.
118
nal e política, passando a orientar-se pela tutela dos direitos funda-
mentais29.
Essas mudanças recepcionaram os tratados internacionais de
direitos humanos. No ano de 1989 a Convenção sobre Povos Indí-
genas e Tribais em países independentes n. º 169, da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) foi aprovada, tornando-se único
instrumento a nível internacional de caráter vinculativo, que trata
sobre o direito à posse ou propriedade da terra/ território, a manu-
tenção, a conservação da biodiversidade e do reconhecimento dos
aspectos coletivos do modo de vida dos povos indígenas e tribais.
Essa Convenção foi ratificada por 22 países, a maioria da
América-Latina, como o Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colôm-
bia, Espanha, Noruega, etc. No Brasil, a Convenção 169 da OIT
foi ratificada em junho de 2002, através do Decreto Legislativo n. º
143 de 2002 e o Decreto 5. 051 de 2004 o promulgou. Conceitua
território como: “[...] os governos deverão respeitar a importância
especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessa-
dos possui a sua relação com as terras ou territórios”30.
A Constituição Federal do Brasil de 1988 (CRFB) em seu
artigo 231, § 1º, assegura o direito originário dos povos indígenas ao
território tradicional, garantindo-lhes a posse permanente e aos qui-
lombolas garante o título de propriedade definitivas de suas terras,
conforme artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transi-
tórias (ADCT/ CRFB88). Reconhece, ainda, a diversidade cultural
em seus artigos 215 e 216, os quais compõe o leque de proteção aos
direitos dos povos e comunidades tradicionais. Assegura aos rema-
nescentes de quilombos o dever do Estado em proteger as mani-
festações culturais afro-brasileiras, reconhecendo-os como parte do
patrimônio cultural brasileiro.
Algumas normas infraconstitucionais também foram criadas
para definir legalmente o que seriam povos e comunidades tradicio-
119
nais, como estabelece o Decreto 6. 040/ 2007 que institui a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunida-
des Tradicionais. O Decreto caracteriza por povos e comunidades
tradicionais os grupos diferenciados culturalmente e que se reconhe-
cem como tais, os possuidores de organização social próprio, os que
utilizam e ocupam o território e os recursos naturais como condição
para sua reprodução social, econômica, religiosa, ancestral e cultural,
valendo-se de conhecimentos gerados e transmitidos pela tradição.
A nova lei de acesso ao patrimônio genético e ao conheci-
mento tradicional associado, Lei n. 13. 123/ 2015, em seu artigo 2.
º, IV, também caracteriza comunidades tradicionais como: “grupo
culturalmente diferenciado que se reconhece como tal, possui forma
própria de organização social e ocupa e usa territórios e recursos
naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, reli-
giosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e
práticas geradas e transmitidas pela tradição”31.
As terras tradicionalmente ocupadas definem-se como: “ha-
bitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambien-
tais necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução
física e cultural”32. Elas estão entrelaçadas com as questões relativas
às identidades coletivas, configurando o preceito jurídico para a le-
gitimação das territorialidades específicas e etnicamente constituí-
das. As territorialidades específicas correspondem “Às identidades
peculiares (seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos,
quilombolas)”33 .
A previsão do direito ao título de propriedade definitiva dos
remanescentes de quilombo está alicerçada no artigo 68 ADCT, “aos
31 BRASIL. Lei nº 13. 123 de 20 de maio de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Dispo-
nível em: http:/ / www. planalto. gov. br/ ccivil_03/ _ato2015-2018/ 2015/ lei/ l13123. htm.
32 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Pre-
sidência da República, [2020]. Disponível em: http:/ / www. planalto. gov. br/ ccivil_03/ constituicao/
constituicaocompilado. htm.
33 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “cas-
tanhais do povo”, faixinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. Alfredo Wagner
Berno de Almeida. – 2. ª ed, Manaus: PGSCA–UFAM, 2008. p. 25.
120
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocu-
pando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos” . Importa destacar que foi a
partir das reivindicações do movimento negro e demais movimentos
progressistas, que as demandas foram levadas à Assembleia Nacional
Constituinte de 1988 e resultaram na aprovação de direitos previstos
em artigos constitucionais que asseguraram o reconhecimento dos
quilombos.
Os povos quilombolas lutam e se mobilizam politicamente
com o objetivo de reconhecimento, a continuidade de seus territó-
rios e seus modos de vida etnicamente diferenciado. Modelos sociais
de vida que ganham validade em três elementos: a) domínio do ter-
ritório, base da organização social; b) fortalecimento de seus inte-
resses e sistematização dos seus saberes; c) e a volta sobre si mesmo
enquanto projeto social coletivo34.
Essa aspiração pelo território tradicional é a aspiração mais ge-
nuína e legítima pela sobrevivência, pela existência digna no interior
de uma modernidade excludente. É também por todas as possibili-
dades de viver em condições de pleno gozo de suas formas de criar,
fazer e viver, que há 500 anos, de forma colonial e neocolonial, estão
a negar a esse povo.
34 MARIN, Rosa Elisabeth Acevedo; CASTRO, Edna. Negros de Trombetas: guardiães de matas e rios. 2.
ed. Belém: Cejup/ UFPA-NAEA, 1998.
121
Em consequência das preocupações geradas a partir do final da década de
1960, com os problemas ambientais decorrentes do crescimento econômico
e da produção industrial, dos quais advieram sérios danos ambientais, como a
poluição do ar, da água, do solo e os acúmulos de resíduos, a Assembleia Geral
das Nações Unidas, pretendendo criar bases técnicas para avaliação da ques-
tão ambiental no mundo e gerar a conscientização dos governos e da opinião
pública, realizou a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
Humano, em Estocolmo, Suécia, em 16 de junho de 1972, com a participação
de 113 países, 210 Organizações não governamentais e organismos da ONU.
Em 1987, o documento proeminente resultado de trabalhos e
estudos da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvol-
vimento foi o denominado o Relatório Brundtland, em 1987, co-
nhecido como o “Nosso Futuro Comum”, o qual estabeleceu, pela
primeira vez, o conceito de desenvolvimento sustentável. Para supe-
rar os problemas ambientais e fomentar o crescimento sustentável é
preciso transformar o quadro alarmante das desigualdades sociais.
Em 1992, ocorreu a 2ª Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como a ECO-92,
no Rio de Janeiro. Evento que proporcionou grande visibilidade pú-
blica e força política para a questão ambiental, inserindo definitiva-
mente o meio ambiente entre os grandes temas da agenda nacional e
global. A ECO-92 pautou a formulação de políticas públicas sociais
e ambientais em todo o mundo. São eles: 1) a Declaração do Rio de
Janeiro sobre meio ambiente e desenvolvimento; 2) Convenção da
Diversidade Biológica (CDB)35.
No Brasil, a Carta Cidadã de 1988, alinhavada com a concep-
ção internacional sobre os direitos humanos ao meio ambiente con-
sagrou capítulo próprio ao direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, positivando-o como direito fundamental da pessoa hu-
mana. O artigo 225 (CRFB/ 88) consagra a proteção ambiental com
objetivo do Estado de Direito brasileiro.
Anterior a própria Carta Magna, e no bojo das questões am-
bientais emblemáticas para o planeta Terra, foi instituída a Política
Nacional do Meio Ambiente lei n° 6. 938/ 81, estabelecendo a Polí-
122
tica Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formu-
lação e aplicação, instaura o Sistema Nacional do Meio Ambiente
(Sisnama) e institui o Cadastro de Defesa Ambiental. Se configura
como importante instrumento regulatório das ações do Estado sobre
o meio ambiente e o princípio do desenvolvimento sustentável.
Quanto as áreas protegidas, a instauração de um Sistema Na-
cional de Unidades de Conservação com diferentes categorias de
Unidades de Conservação (UC) integradas, articuladas e represen-
tativas de amostras de ecossistemas brasileiros só ocorreu no final da
década de 197036.
A criação dos parques brasileiros tem seus pilares de inspi-
ração nas discussões e modelos de proteção das áreas naturais dos
Estados Unidos. Em 1872, estabeleceu o primeiro Parque Nacional
de Yellowstone, a fim de preservação dos recursos naturais e habitat
de algumas espécies, com a proibição da interferência humana. Ou-
tra importante referência foi a criação do Krüger National Park, na
África do Sul, com escopo de proteger a população animal37.
A implantação de uma parcela de Unidades de Conservação
na Amazônia teve início durante o regime militar e se consolidou na
década de 1980, integrante de uma política ambiental de cunho pre-
servacionista, segundo Farias Júnior38. Para Diegues39, a expansão
da fronteira agrícola na Amazônia gerou uma aceleração do desma-
tamento na região, e colocou em proeminência as preocupações de
cientistas e ambientalistas na necessidade de instituição das UCs, o
que viabilizou a criação do primeiro Parque Nacional da Amazônia,
em Itaituba-Pa40.
123
O Parque Nacional da Amazônia foi instituído logo após o
surgimento da Secretaria de Meio ambiente, como reflexo da Confe-
rência de Estocolmo, no ano de 1972. Os Regulamentos dos Parques
Nacionais do Brasil, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente –
que estabeleceu o Sistema Nacional de Meio Ambiente e o Conselho
Nacional de Meio Ambiente –, em conjunto com a regulamentação
das estações ecológicas e áreas de proteção ambiental surgiram no
mesmo período, precisamente em 1979 e 198141.
A atual lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza (SNUC) e que incluiu as Resexs foi a Lei
nº 9. 985, de 18 de julho de 2000, e apresenta duas modalidades de
UCs, segundo Treccani (2006): a) as unidades de proteção integral
e que proíbem a ocupação humana; b) as unidades de uso susten-
tável, permitindo presença humana. Para Santilli (2005), no Brasil
o conceito de Unidades de Conservação passou a viger nas normas
infranconstitucionais e englobar a definição internacional de áreas
protegidas presentes na Convenção da Diversidade Biológica (CDB)
e acolhida pela Comissão Mundial de Áreas Protegidas da União
Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
A ótica internacional sobre áreas protegidas envolve a prote-
ção e a manutenção tanto da diversidade biológica, quanto da di-
versidade sociocultural associada, e, embora a Lei do SNUC não
empregue a categoria de diversidade sociocultural o conceito pode
ser utilizado para definir as UC brasileiras, pois a CDB foi recepcio-
nada pelo país42.
Há casos da instituição de UCs em territórios quilombolas,
gerando conflitos e limitações quanto ao seu uso comum pelas co-
munidades, trazendo não só a incerteza sobre o território, como difi-
culdades ao processo de regularização fundiária e de reconhecimento
41 BARRETO FILHO, Henyo Trindade. Da nação ao planeta através da natureza: uma abordagem an-
tropológica das Unidades de Conservação de proteção integral na Amazônia brasileira. Tese (Dou-
torado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo: 2001.
42 SANTILLI, J. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e ambien-
tal. São Paulo: Peirópolis, 2005.
124
do território dos remanescentes de quilombo43. A título de exem-
plo, podemos citar mais duas UC, além da Resex de Ipaú-Anilzinho:
o Parque Nacional do Jaú (PARNA JAÚ), e a Reserva Biológica do
Rio Trombetas (REBIO do Rio Trombetas), esta última no municí-
pio de Oriximiná- PA, ambas de proteção integral44.
No caso da PARNA JAÚ, no Amazonas-AM, há diversas co-
munidades. São denominadas de “populações tradicionais”, apesar
de essa ser uma categoria jurídica ainda pouco difundida entre os
próprios moradores da área e pelos agentes estatais e não estatais.
Nesta mesma UC há a emergência de um processo de identificação
étnica, como da comunidade Tambor composta por quilombolas, e
que se situa no médio rio Jaú, área central do parque.
A questão quilombola no rio Jaú emergiu em 2003 a par-
tir de uma audiência em Novo Airão, tendo participado líderes das
comunidades envolvidas, a FioCruz, Ministério Público Federal e
Estadual, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e
a Fundação Cultural Palmares (FCP). Segundo o antropólogo do
MPF-Manaus houve obstáculos no diálogo com a Fundação Vitória
Amazônica (FVA) e com IBAMA, pois estes alegavam que a comu-
nidade não era remanescente de quilombo45.
No caso da REBIO do Rio Trombetas, Oriximiná-Pa, desde a
década de 1979 vários conflitos se acirraram em decorrência do uso de
recursos presentes na fauna e na flora. Essa Unidade de Conservação é
de uso restritivo e esse fator gera várias consequências sobre os grupos,
os quais ocupam o território desde o século XIX e para os grupos mais
125
recentes46 . As situações de conflito entre as comunidades tradicionais
em oposição ao IBAMA e a grupos econômicos praticantes de ativi-
dades extrativas minerais e pesca fazem com que estes dois últimos
invisibilizem os primeiros através de políticas preservacionistas exclu-
dentes, colocando-os em posição de semi-clandestinidade47.
126
te deveria ser dominada. O método de amansamento seria com o
modelo de ocupação, “terras sem homens, para homens sem-terra”,
a construção de uma robusta malha viária e geração de energia. O
estado brasileiro passou a seguir uma orientação intervencionista,
comum em outros países na América Latina, que estavam sob o jul-
go dos militares. As ações estatais do período militar, na Amazônia
paraense, incidiram diretamente sobre as populações camponesas
provocando um reordenamento territorial agudizando o processo de
desterritorialização e reterritorialização.
No período militar havia a característica de um Estado extre-
mamente centralizador e interventor em todas as esferas sociais dos
cidadãos brasileiros, sendo bastante significantes as políticas pen-
sadas para região norte. O eixo norteador baseava-se na integração
física e econômica da Amazônia paraense com o restante do país,
passando a fazer parte do planejamento federal. Havia o projeto de
colonização e modernização do campo e, após, de industrialização e
investimentos na exploração dos recursos minerais e hidroelétricos
da região51.
Ainda no século XX, precisamente a partir da década de 1964,
no contexto da ditadura militar, o Baixo Tocantins foi um dos afeta-
dos com a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHE-T), o
que agravou a prática de grilagem de terras na região, ocasionando o
aumento dos registros de conflitos. Referido cenário levou os traba-
lhadores, moradores, povos das florestas e demais nativos da região a
se organizarem para combater o esquema de grilagem.
Esse processo organizativo levou a realização de encontros do
Anilzinho com fins de denunciar os conflitos por terras no Baixo
Tocantins, dando origem a Lei Anilzinho: A Lei do Posseiro. Diante
do contexto de conflitos agrários na região aqueles que, à época, se
definiam como trabalhadores rurais iniciaram a construção de uma
lei que local a qual pudesse resguardar as terras dos posseiros da re-
127
gião, uma lei construída na esteira da organização social e defesa das
terras ocupadas52.
Os impactos das políticas estatais na região do baixo Tocan-
tins foram grandes, a construção da hidrelétrica de Tucuruí provo-
cou mudanças na vazão do Rio Tocantins atingindo quatro muni-
cípios: Baião, Mocajuba, Cametá e Igarapé-Miri. Nesses respectivos
municípios existem grupos ribeirinhos, quilombolas, indígenas e
populações que vivem tradicionalmente da pesca artesanal da ativi-
dade extrativismo e agricultura de subsistência.
A implantação da UHE-T fomentou o avanço das frentes
agrícolas, madeireiras, a formação de novos núcleos urbanos e o
agravamento dos problemas socioambientais, e apenas em 2007 a
energia chegou em algumas comunidades dos municípios do Vale.
A região do baixo Tocantins, em particular o município de Baião foi
afetado pela construção da usina, principalmente pela penetração
intensiva das madeireiras no território, em 1970.
Nesse contexto, e já sob influência da Carta Magna de 1988,
os ribeirinhos, pescadores, extrativistas, quilombolas continuaram
com a busca de assegurarem os seus direitos territoriais e pleitearam
pela criação da Reserva Extrativista (RESEX) de Ipaú-Anilzinho, no
município de Baião-PA, em 2005. Essa Resex é uma unidade de
conservação federal e de uso sustentável (UCUS), ou seja, que per-
mite a presença humana em seu interior.
As vilas de Joana Peres e Anilzinho, em conjunto com ou-
tras quatro comunidades (Xininga, Lucas, Espirito Santo e Fé em
Deus), passaram a ser abrangidas pela Resex Ipaú-Anilzinho, no ano
de 2005. Os moradores e familiares das respectivas comunidades
passaram a ter uma nova existência jurídica: a de extrativistas tradi-
cionais. Anterior a essa data, eram considerados posseiros, ocupantes
de vastas áreas de castanhais no interior da floresta amazônica.
52 SILVA, A. P. O Vale do Tocantins e a Lei Anilzinho: a lei dos posseiros (1961-1981). 2016. Dissertação
(Mestrado em História Social da Amazônia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Pará, Belém, 2016.
128
A seguir, um mapa de localização da Resex Ipaú-Anilzinho,
produzido pelo Núcleo de Meio Ambiente, da Universidade Federal
do Pará (NUMA/ UFPA), nele constam as perspectivas do estado do
Pará, a região do baixo Tocantins e as seis comunidades tradicionais
abrangidas por referida Unidade de Conservação de uso sustentável
(UCUS).
Mapa 1 – Representação da Resex Ipaú-Anilzinho
129
Concomitante, grupos da comunidade de Anilzinho inicia-
ram a construção coletiva de identidade étnica, ao se autodefinirem
enquanto remanescentes de quilombos, requerendo o título de pro-
priedade definitiva de seus territórios, aos moldes do artigo 68 do
ADCT e do Decreto 4. 887/ 2003. E, de acordo com que afirmam
pesquisas mais recentes, tanto em Joana Peres, quanto em Anilzinho
há remanescentes de quilombos.
A situação de sobreposição de territórios emergiu no interior
da Resex Ipaú-Anilzinho desde então. As tensões e conflitos internos
passaram a aflorar no território tradicional de Joana Peres e Anilzi-
nho quando um grupo de famílias se autodefine enquanto remanes-
cente de quilombos e a optam por buscar esse reconhecimento no
plano jurídico.
A motivação deste pleito não está apenas no âmbito da impor-
tância, que o título de propriedade coletiva enquanto “remanescente
de quilombo” representa, mas está também sedimentada em uma
consciência coletiva de se reconhecer enquanto quilombola. A busca
pela permanência no território atravessado, pelo fator da identidade
étnica, permite reconhecer que a afiliação étnica diz respeito a uma
questão tanto de origem comum, como de orientação das ações co-
letivas, evocando ou chamando atenção para os destinos comparti-
lhados de determinados grupos, possibilitando o reconhecimento de
direitos territoriais55.
Com a criação da Resex, muitas práticas de subsistência tra-
dicionais passaram a ser enquadradas como crimes ambientais, ou
seja, passaram a ser consideradas ilegais. As comunidades de Joana
Peres e Anilzinho tiveram suas relações com o ICMBio agravadas,
após passarem a reivindicar o título de propriedade definitiva de suas
terras de remanescentes de quilombos.
130
6. Considerações finais e resultados
1. Os direitos humanos ao território das comunidades rema-
nescentes de quilombos é fruto dos inúmeros processos
de emancipação e sobrevivência de grupos humanos os
quais, outrora, eram abissalmente invisíveis para o pro-
jeto de modernidade eurocentrada. A conquista desses
direitos, no Brasil, bem como em muitos países latino-a-
mericanos significa não só a possibilidade de construção
contra-hegemônica dos direitos humanos a partir do re-
conhecimento do outro e do respeito às diferenças, mas
também a possibilidade de compreensão do mundo desde
uma perspectiva quilombola
2. Reconhecer e declarar os direitos positivados seja do meio
ambiente ecologicamente equilibrado, seja aos povos e
comunidades tradicionais engloba assumir a diversidade
social e cultural, bem como a existência das diferenças in-
trínsecas aos grupos sociais. Os grupos ou as coletividades
querem sair do campo da invisibilidade social, política,
cultural e inclusive jurídica, local que foram encurraladas
em nome do projeto de modernidade eurocêntrica.
3. A questão jurídica categorizada por conflito socioam-
biental de sobreposição da Unidade de Conservação em
território quilombola constitui uma consequência da
existência dos direitos humanos ao meio ambiente ecolo-
gicamente equilibrado e dos direitos humanos ao territó-
rio tradicionalmente ocupado. É possível refletir que tais
direitos colidentes, na prática tem dificuldade de dialogar
com os modos de criar, fazer e viver dos povos e comuni-
dades tradicionais.
131
O uso de inteligência artificial
para a efetividade processual
nos Juizados Especiais Cíveis no
Estado do Amazonas
Anna Karollina da Costa e Silva1
Isabele Augusto Vilaça2
132
Assim, o acesso à justiça teve como um dos impactos mais im-
portantes para a prática do judiciário brasileiro a criação dos Juiza-
dos Especiais, instituídos pelo artigo 91, I, também da Carta Magna
e regulamentados pela Lei nº 9. 099, de 26 de setembro de 1995;
tratando-se estes de:
Órgãos competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas
cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo,
mediante procedimento informado pelos critérios da oralidade, simplicidade,
informalidade, economia processual e celeridade, com a finalidade maior de
permitir que os cidadãos busquem soluções para seus conflitos cotidianos de
forma mais rápida, eficiente e gratuita6.
No Estado do Amazonas, os Juizados Especiais Cíveis (JECs)
ganham maior destaque em relação aos demais por comporem a
maior parte de Varas e atendimento ao público nesse ramo especiali-
zado, uma vez que são 17 Varas Judiciárias distribuídas pelos fóruns
nas principais zonas da cidade de Manaus (conforme mudança re-
cente da 17ª Vara do criminal para o cível). Além disso, os Juizados
Especiais tornaram-se um importante instrumento de acesso à justi-
ça ao permitirem que pessoas de menor poder aquisitivo pudessem
buscar a solução para os seus conflitos do cotidiano que, anterior-
mente, não costumavam ser apreciados pela Justiça brasileira devido
à dificuldade do cidadão comum em contratar um advogado para
postular em seu favor. Nestes são permitidas as causas de menor
complexidade e com valor de até 40 salários mínimos, passando a
ser facultativa a assistência de um advogado ou defensor público se
a causa não ultrapassar o correspondente a 20 salários mínimos7.
A maior parte das demandas que chegam aos JECs são ações
referentes às situações corriqueiras e comuns aos indivíduos em so-
ciedade, sendo que as do direito do consumidor figuram como a
maior parte das demandas, a exemplo de cobranças indevidas, inclu-
são injustificada em órgãos como SPC/ Serasa, divergências na pres-
6 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Diagnóstico dos Juizados Especiais/ Conselho Na-
cional de Justiça. Brasília: CNJ, 2020. Disponível em: https:/ / www. cnj. jus. br/ wp-content/ uploads/
2020/ 08/ WEB_LIVRO_JUIZADOS_ESPECIAIS. pdf.
7 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO AMAZONAS. Juizados Especiais, 2017. Disponível em: https:/ / juiza-
dos. tjam. jus. br/ juizados/ index. php/ noticias/ 10-bem-vindo-aos-juizados-especiais. Acesso em 18 de
maio de 2022
133
tação de serviços, dentre outras. A segunda maior fonte de deman-
das diz respeito às questões cíveis de menor complexidade, como
brigas entre vizinhos e familiares, acidentes de trânsito, contratos de
aluguel ou de venda de imóveis e até mesmo cobrança de dívidas8.
Dessa forma, os JECs foram programados para serem sinô-
nimos de celeridade e efetividade processual, por abarcarem causas
menos complexas e com rito processual simplificado, sendo permi-
tida a autorrepresentação em primeiro grau; o que tem como conse-
quência uma procura demasiadamente alta às suas varas judiciárias.
Por conseguinte, como os cidadãos passam a litigar cada vez
mais nos tribunais brasileiros, a lentidão processual acaba por se tor-
nar regra ao invés de exceção, ocorrendo o que Boaventura de Souza
Santos9 denomina de morosidade jurídica, explicitando-a como a
sobrecarga dos tribunais, impactando o tempo do processo. Ademais,
Santos subdivide a morosidade, em morosidade sistêmica, que é aque-
la que decorre da sobrecarga de trabalho, do excesso de burocracia,
positivismo e legalismo, e morosidade ativa, em que terceiros produ-
zem obstáculos para impedir que se alcance o resultado objetivado10.
A morosidade encontrada nos JECs é a sistêmica, evidenciada
pela análise dos dados extraídos do “Painel da Justiça em Números”,
ferramenta proveniente do site do Tribunal de Justiça do Amazonas,
na qual demonstra que em 2021, 88. 456 novos casos chegaram nas
Varas de JECs e que 91. 698 processos foram julgados, consideran-
do os já existentes de anos anteriores. No entanto, atentando-se ao
fato de que, ainda assim, 56. 775 processos estão com o status de
pendente no site. Isto é, mesmo apresentando um número maior de
julgamentos do que de casos novos, o IAD (Índice de Atendimento
à Demanda) em 2021 foi de 0,39%, refletindo em uma média de
320 dias para que ocorresse a baixa no processo11.
134
Fonte: TJAM, 2021
135
Fonte: TJAM13
136
Fonte: CNJ, 2022
15 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Estatísticas do Poder Judiciário: CNJ, 2022. Dis-
ponível em: https:/ / painel-estatistica. stg. cloud. cnj. jus. br/ estatisticas. html. Acesso em 5 de julho de
2022.
137
tíssimas demandas que sobrecarregam o seu sistema, e que muitas
vezes, não conseguem ser devidamente satisfeitas por motivos que
são comuns às ações (como documentos inválidos e vícios formais),
o que resulta em muitos processos pendentes ou sobrestados para
julgamento, e até quando estes são julgados, acabam por não solu-
cionarem o mérito das ações.
Nesse sentido, afirma Chaisin que “O juizado - instituição
criada, como visto, com o duplo e tenso objetivo de buscar a am-
pliação do acesso à justiça e o alívio da sobrecarga da justiça comum
- encontra-se, ele mesmo, sobrecarregado”16. Além disso, destaca-se
que a morosidade dos processos também são empecilhos para o aces-
so à justiça17.
Como diagnóstico, verifica-se uma lacuna que deve ser preen-
chida para que não só metas sejam batidas e números sejam alcan-
çados no que diz respeito ao julgamento dos processos nos JECs,
mas sim, que ajuizar uma ação nessa esfera possa significar de fato a
materialização do acesso à justiça em um tempo razoável, como pre-
visto no texto constitucional; e tais iniciativas já estão sendo discu-
tidas no âmbito da tecnologia, tanto no estrangeiro, como inseridas
ao ordenamento jurídico brasileiro.
138
Cappelletti e Garth18. Dentre as ondas renovatórias, evidencia-se a
sexta onda como reação à terceira onda de acesso à justiça, onde este
tem se transformado com a cibercultura, uma nova cultura cons-
truída a partir das transformações tecnológicas19 e sua inserção no
cotidiano.
Assim, a quarta revolução industrial iniciou uma fusão sim-
biótica entre o mundo físico, digital e biológico, junta-se, portanto,
tecnologias como as manufaturas auditivas, a inteligência artificial,
a internet das coisas, a biologia sintética e os sistemas ciber-físicos,
que impactam não apenas a indústria, como o próprio modo de
viver humano. Fundiu-se o uso da tecnologia com a velocidade, ao
mesmo tempo em que se discute a preocupação pela segurança dos
dados, que rapidamente foram visualizados como formas de ativos a
serem negociados20.
Nessa perspectiva, a ciência jurídica se utilizou da ciência da
computação para aproveitar ferramentas tecnológicas no processa-
mento de seus dados, culminando no uso de Big Data, termo que
não descreve apenas a tecnologia apropriada para a captura dos da-
dos disponibilizados na rede mundial de computadores, como tam-
bém o crescimento, disponibilidade e uso exponencial das suas in-
formações, sejam elas estruturadas ou não estruturadas21.
A Inteligência Artificial - IA, então, é uma das ferramentas
originadas a partir desse avanço tecnológico, e tem a pretensão oti-
mizar o tempo com cálculos e análises, alcançando o desiderato de
economizar tempo a ser direcionado para sua produção. Segundo
José Luis Bolzan de Morais22:
Inteligência Artificial (IA) significa dotar computadores e softwares de capa-
cidade para processar imensos volumes de dados e – principalmente – para
18 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução por Ellen Gracie Northfleet. Por-
to Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988.
19 LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
20 MAGNUS, Tiago. Indústria 4. 0: A quarta revolução industrial. Florianópolis: Tudo Digital, 2017. Dis-
ponível em Acesso em 15 de maio 2022.
21 PAIVA, Danúbia. A tutela dos dados pessoais na era do “Big Data”. In: ALVES, Isabella Fonseca (Org. ).
Inteligência artificial e processo. Belo Horizonte: D´Plácido, 2020.
22 MORAIS, José Luis Bolzan. O Estado de Direito “confrontado” pela “revolução da internet”. Revista
Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 13, n. 3, p. 876-903, 2018.
139
encontrar padrões e fazer previsões sem ter sido programados para tanto, pro-
duzindo dados a partir de dados, ou metadados, aptos a produzir conhecimen-
tos específicos baseados em padrões e comportamentos, bem como realizar
controles23.
Sobre o assunto, as experiências internacionais possuem um
considerável desenvolvimento na resolução de litígios através do IA,
sendo inclusive cunhado o termo Online Dispute Resolution - ODR
para se referir à aplicação da tecnologia da informação e comuni-
cação para prevenir, gerenciar e resolver conflitos24; sendo posta a
ideia de que a tecnologia configura como a quarta parte na resolução
dos litígios, para além do autor, réu e juiz25.
Tais inovações representaram uma guinada de prevalência do
processo virtual em detrimento do físico, de procedimentos tecno-
lógicos ao invés de mecânicos no ordenamento jurídico brasileiro,
tendo como resultado mais difundido a criação do Processo Judi-
cial Eletrônico - PJe, instaurado pela Lei 11. 419/ 06. Trata-se de
um sistema com características específicas de Inteligência Artificial,
em determinados aspectos, que visa otimizar o trabalho dos profis-
sionais do Direito, auxiliando-os na verificação dos autos de forma
eletrônica.
Nesse mesmo sentido, o judiciário brasileiro possui outras no-
táveis ferramentas que utilizam da análise de dados processuais para
auxiliar o julgamento de processos26:
São inúmeros os exemplos de uso de ferramentas de IA, (...), dentre as quais
destacam: a) o projeto Victor, no Supremo Tribunal Federal, que se destina,
em uma primeira fase, a automatizar a análise da admissibilidade dos Recursos
Extraordinários; b) O sistema Sócrates do Superior Tribunal de Justiça, o qual
tem por objetivo viabilizar a identificação de demandas repetitivas; a ferramen-
ta RADAR do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a qual viabilizou o julga-
23 MORAIS, José Luis Bolzan. O Estado de Direito “confrontado” pela “revolução da internet”. Revista
Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 13, n. 3, p. 876-903, 2018, p. 884.
24 KATSH, Ethan; RULE, Colin. What We Know and Need to Know About Online Dispute Resolution.
South Carolina Law Review, v. 67, p. 329-344, 2016.
25 SCHMITZ, Amy J; ZELEZNIKOW, John. Inteliggente Legal tech to empower self-represented litigan-
ts. The Columbia Science & Technology Law Review. Disponível em https:/ / journals. library. columbia.
edu/ index. php/ stlr/ article/ view/ 9391.
26 VALE, Luís Manoel Borges do. A tomada de decisão por máquinas: a proibição, no direito, de utilização
de algoritmos não supervisionados. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART,
Erik Navarro. (org. ) INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO PROCESSUAL: OS IMPACTOS
DA VIRADA TECNOLÓGICA NO DIREITO PROCESSUAL. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
140
mento de 280 processos em menos de um segundo; d) a ferramenta “ELIS” do
Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, cuja engrenagem operacional
agilizou a análise de milhares de execuções fiscais e e) O projeto Hércules do
Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, cujo escopo é promover o agrupa-
mento de processos similares e, assim, proporcionar a produção automatizada
de atos processuais27
Importa destacar que mais que programas desenvolvidos para
atender demandas de tribunais específicos, a inclusão da tecnologia
- e o uso de inteligência artificial - no judiciário em nível nacional é
medida que se impõe através do Programa de Inovação Tecnológica
do Poder Judiciário, a Justiça 4. 0.
Fruto de uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), a Justiça 4. 0 tem como objetivo promover o acesso à jus-
tiça por meio de projetos desenvolvidos com o uso de tecnologias e
inteligência artificial, melhorar a eficiência e reduzir custos. Dentre
as soluções digitais apontadas pelo programa, existe a plataforma Si-
napses, a qual gerencia e armazena modelos de inteligência artificial:
A equipe do Justiça 4. 0 desenvolveu 3 modelos de IA, todos com acurácia aci-
ma de 85%, que permitem a identificação automática de documentos do tipo
Petição, Contestação e Procuração/ Subestabelecimento. Esses modelos estão
disponíveis na Sinapses para uso dos tribunais e podem, por exemplo, facilitar
e agilizar o preenchimento automatizado dos metadados de um processo judi-
cial sobre o tipo do documento (petição, contestação, procuração ou outro).
Também está disponível na plataforma um modelo que combina as inferências
geradas pelos três modelos, permitindo identificar documentos pertencentes
aos tipos indicados28.
Enquanto política judiciária, o programa tem como propos-
tas o uso do balcão virtual (atendimento de forma remota) e Juízo
100% Digital (atos processuais, exclusivamente por meio eletrôni-
co e remoto), sendo esta última medida já amplamente usada no
TJAM.
27 VALE, Luís Manoel Borges do. A tomada de decisão por máquinas: a proibição, no direito, de utilização
de algoritmos não supervisionados. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART,
Erik Navarro. (org. ) INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO PROCESSUAL: OS IMPACTOS
DA VIRADA TECNOLÓGICA NO DIREITO PROCESSUAL. Salvador: Editora JusPodivm,
2020,p. 633.
28 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Estatísticas do Poder Judiciário: CNJ, 2022. Dis-
ponível em: https:/ / painel-estatistica. stg. cloud. cnj. jus. br/ estatisticas. html. Acesso em 5 de julho de
2022.
141
Além disso, na história recente, a pandemia de COVID-19
exigiu medidas do judiciário amazonense para reparar os entraves
provenientes da persistência na forma física/ analógica da prestação
jurisdicional, uma vez que os expedientes presenciais nos fóruns e
tribunais foram suspensos, porém, o andamento processual teve que
seguir; sendo unicamente possível com o auxílio da tecnologia.
No geral, há um evidente reconhecimento de que a justiça
brasileira precisa incorporar cada vez mais a tecnologia em seus pro-
cedimentos a fim de efetivar o acesso à justiça; no entanto, a forma
como o IA deve ser utilizado nos procedimentos e as discussões que
permeiam esse assunto não devem deixar de serem suscitadas.
29 SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019.
30 SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019.
142
sistemas que utilizam IA não buscam imitar ou replicar o raciocínio
humano; e pensar dessa forma é entender o IA do ponto de vista hu-
mano apenas, sem compreender a complexidade que ele representa.
Ainda, a resistência à tecnologia no meio jurídico se concentra
na ideia do deslocamento das tomadas de decisões no processo para
um computador (espécie de computador-juiz), discutindo-se a assi-
metria de informação que os litigantes teriam, tendo em vista que
os considerados “analfabetos digitais” não teriam acesso à justiça da
mesma forma que pessoas mais conhecidas do mundo digital - iden-
tificadas como as mais ricas -, e por isso, não teriam suas demandas
atendidas de fato pelo judiciário31. Também, existem as diferenças
geracionais e regionais comuns aos cidadãos brasileiros, que impe-
dem que todos tenham acesso às tecnologias e conhecimento do
mundo digital de igual forma.
No entanto, a proposta do presente trabalho se desenvolve
em torno da tecnologia enquanto auxiliar nas etapas processuais,
não como substituta de magistrados para a confecção de decisões,
colocando a IA como ferramenta interna do poder judiciário. Além
disso, retoma-se a ideia da “arquitetura de escolhas”32, em que os
designs das plataformas virtuais do judiciário preservem a especifi-
cidade e autonomia de cada caso e cada litigante, promovendo um
diálogo paritário e isonômico das partes no processo.
Por sua vez, no campo técnico, as críticas à IA são feitas pelo
possível “(i) emprego de data sets viciados; (ii) discriminação que pode
ser gerada por algoritmos de machine learning (iii) e a necessária opa-
cidade dos algoritmos não programados”33. Isto porque uma das téc-
31
NUNES, Dierle; PAOLINELLI, Camilla Mattos. Novos designs tecnológicos no sistema de resolução de con-
flitos: ODR, e-acesso à justiça e seus paradoxos no Brasil. Revista de Processo. vol. 314. ano 46. p. 395-
425. São Paulo: Ed. RT, abril 2021.
32
NUNES, Dierle; PAOLINELLI, Camilla Mattos. Novos designs tecnológicos no sistema de resolução de con-
flitos: ODR, e-acesso à justiça e seus paradoxos no Brasil. Revista de Processo. vol. 314. ano 46. p. 395-
425. São Paulo: Ed. RT, abril 2021, p. 177.
33 FERRARI, Isabela; BECKER, Daniel. Direito à explicação e decisões automatizadas: reflexões sobre o
princípio do contraditório. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART, Erik
Navarro. (org. ) Inteligência artificial e direito processual: os impactos da virada tecnológica no direito
processual. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 199-225, p. 55.
143
nicas utilizadas pela IA no mundo jurídico se dá através do machine
learning (aprendizado da máquina)34, o qual usa uma variedade de
algoritmos, operando em grandes corpos de dados legais, possibili-
tando a identificação de padrões, regularidades e correlações que os
advogados não conseguem quando usam métodos convencionais35.
Diante disso, questiona-se a qualidade dos resultados técnicos
provenientes do uso do IA, e se o fato do processamento de dados
ocorrer por meio de algoritmos não viola garantias judiciais, como o
devido processo legal.
Cumpre esclarecer que os algoritmos usados pelo machine
learning são chamados algoritmos supervisionados, em que “o pro-
gramador escolhe quais os dados serão utilizados e processados pela
máquina e qual o resultado que o sistema deve apresentar”36. É uma
forma de “aprendizagem supervisionada”, onde o sistema realiza pre-
visões notáveis a partir de documentos pré-selecionados:
Esses sistemas preveem quais documentos os advogados especialistas seleciona-
riam como os mais relevantes. As previsões são baseadas naqueles documentos
escolhidos previamente por especialistas de um conjunto de amostras. [...] E no
mundo da automação de documentos, existem projetos que exploram a produ-
ção automatizada de documentos não no modelo clássico baseado em regras,
mas usando aprendizado de máquina – sistemas que podem prever, com base
no produto de trabalho anterior, quais documentos os especialistas redigiriam37.
Assim, o fato de que o tipo de algoritmos utilizados na IA no
âmbito judiciário é o tipo supervisionado representa maior segu-
rança dos dados e, consequentemente, a integridades das garantias
judiciais. Conforme Luís Manoel Borges do Vale38
34 VALE, Luís Manoel Borges do. A tomada de decisão por máquinas: a proibição, no direito, de utilização
de algoritmos não supervisionados. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART,
Erik Navarro. (org. ) INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO PROCESSUAL: OS IMPACTOS
DA VIRADA TECNOLÓGICA NO DIREITO PROCESSUAL. Salvador: Editora JusPodivm, 2020,
p. 631.
35 SUSSKIND, Daniel. A World Without Work: Technology, Automation and How We Should Respond.
Allen Lane: London, 2020, p. 290.
36 VALE, Luís Manoel Borges do. A tomada de decisão por máquinas: a proibição, no direito, de utilização
de algoritmos não supervisionados. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART,
Erik Navarro. (org. ) INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO PROCESSUAL: OS IMPACTOS
DA VIRADA TECNOLÓGICA NO DIREITO PROCESSUAL. Salvador: Editora JusPodivm, 2020,
p. 633.
37 SUSSKIND, Daniel. A World Without Work: Technology, Automation and How We Should Respond.
Allen Lane: London, 2020, pp. 290-291.
38 VALE, Luís Manoel Borges do. A tomada de decisão por máquinas: a proibição, no direito, de utilização
144
Vê-se, portanto, que o trabalho com algoritmos supervisionados possibilita
maior transparência e controle das ações executadas pela máquina, de tal
sorte que a ferramenta de inteligência artificial é passível, em maior medida,
de ser auditada, a fim de que se verifiquem eventuais equívocos cometidos,
quando do processamento das informações. Por sua vez, os algoritmos não
supervisionados são aqueles que não dependem de uma categorização prévia
de dados. Assim, a partir de dados não rotulados o próprio sistema identi-
fica padrões, aproximando situações correlatas, sem que exista uma classe
predefinida39.
Aliada a essa ideia, a técnica do machine learning opera pri-
mariamente com base em dados, o que, segundo Rabinovich-Einy
e Katsh40 ajudaria a aperfeiçoar a fase de diagnóstico, auxiliando na
prevenção de demandas. Os picos em demandas específicas permi-
tiram a identificação de lacunas regulatórias ou a necessidade de se
aperfeiçoar a aplicação do direito em determinado aspecto, contri-
buindo para uma melhoria do sistema jurídico.
Em consonância, Nunes e Paolinelli afirmam que:
A mineração de dados e de processos permitiria a criação de uma etiologia de
conflitos, viabilizando o conhecimento dos gatilhos de litigiosidade, a análise
das causas das demandas e da forma como frequentemente são resolvidas. Isso,
por si só, facilitaria não apenas a estruturação de uma política de diálogos
institucionais que possa prevenir a eclosão de determinados tipos de conflitos,
quanto estimularia a construção de desenhos de procedimentos especificamen-
te traçados para atender determinado tipo de litigiosidade41.
É possível destacar, nesse sentido, o reconhecimento de que
os chamados online courts (tribunais onlines) que utilizam maciça-
mente da inteligência artificial para seu funcionamento apresentam
resultados positivos para disputas consideradas de “pequenas cau-
de algoritmos não supervisionados. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART,
Erik Navarro. (org. ) INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO PROCESSUAL: OS IMPACTOS
DA VIRADA TECNOLÓGICA NO DIREITO PROCESSUAL. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
39 VALE, Luís Manoel Borges do. A tomada de decisão por máquinas: a proibição, no direito, de utilização
de algoritmos não supervisionados. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART,
Erik Navarro. (org. ) INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO PROCESSUAL: OS IMPACTOS
DA VIRADA TECNOLÓGICA NO DIREITO PROCESSUAL. Salvador: Editora JusPodivm, 2020,
p. 633.
40 KATSH, Ethan; RULE, Colin. What We Know and Need to Know About Online Dispute Resolution.
South Carolina Law Review, v. 67, p. 329-344, 2016. Disponível [www. americanbar. org/ content/ dam/
aba/ images/ office_president/ katsh_rule_whitepaper em: . pdf]. Acesso em 08 de julho de 2022
41 NUNES, Dierle; PAOLINELLI, Camilla Mattos. Novos designs tecnológicos no sistema de resolução
de conflitos: ODR, e-acesso à justiça e seus paradoxos no Brasil. Revista de Processo. vol. 314. ano 46. p.
395-425. São Paulo: Ed. RT, abril 2021. Disponivel em: inserir link consultado. Acesso em: 20 de junho
de 2022.
145
sas”42 ou ainda uma maior facilidade no acesso ao judiciário nas
questões de autorrepresentação43; que configura os casos dos Juiza-
dos Especiais.
Destarte, não há o que se falar de violação às garantias ju-
diciais ou ao princípio do devido processo legal no uso da IA nos
procedimentos judiciais, uma vez que os algoritmos utilizados são
previamente definidos pelo programador e buscam garantir às par-
tes interessadas no processo o conhecimento do caminho cognitivo
que foi estabelecido no procedimento e, via de consequência, as-
segurar o amplo exercício de todas as garantias processuais (ampla
defesa, contraditório, isonomia, por exemplo), já que “os algorit-
mos supervisionados são auditáveis e permitem um mínimo de
transparência”44.
Para além dessa discussão, o programa Justiça 4. 0 já demanda
que o Brasil incorpore a tecnologia no judiciário, sendo possível ve-
rificar resultados inicias sobre ele, já que com um pouco mais de um
ano de vigência, já funcionam 48 núcleos da Justiça 4. 0, os quais
permitem que os cidadãos consigam acesso a uma tutela diferencia-
da do que se entende como processo. Tais núcleos têm como condão
reestruturar o Judiciário brasileiro, trazendo, em um futuro breve, a
mudanças de conceitos como “Comarca” e “Seção Judiciária”, tor-
nando até mesmo possível a vigência de um cartório 100% digital,
maximizando o tempo de julgamento dos dados e minimizando o
impacto dos servidores.
No Amazonas, apesar da implementação do Juízo 100% Di-
gital, com progresso em outras áreas, os serviços estruturantes da
PDPJ-Br e a importante implementação do Núcleo de Justiça 4. 0
42 SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019.
43 NUNES, Dierle; PAOLINELLI, Camilla Mattos. Novos designs tecnológicos no sistema de resolução
de conflitos: ODR, e-acesso à justiça e seus paradoxos no Brasil. Revista de Processo. vol. 314. ano 46. p.
395-425. São Paulo: Ed. RT, abril 2021. Disponivel em: inserir link consultado. Acesso em: 20 de junho
de 2022.
44 VALE, Luís Manoel Borges do. A tomada de decisão por máquinas: a proibição, no direito, de utilização
de algoritmos não supervisionados. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART,
Erik Navarro. (org. ) INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO PROCESSUAL: OS IMPACTOS
DA VIRADA TECNOLÓGICA NO DIREITO PROCESSUAL. Salvador: Editora JusPodivm, 2020,
p. 639.
146
não foram iniciados no TJAM, o que representa a permanência da
morosidade na resolução de demandas.
Outro instrumento que introduz cada vez mais a tecnologia
no âmbito jurídico é a Resolução nº 395/ 21 do CNJ, a qual insti-
tuiu a Política de Gestão da Inovação no âmbito do Poder Judiciário,
determinando a criação de Laboratórios de Inovação para o aprimo-
ramento das atividades dos órgãos por meio da difusão da cultura da
inovação, modernização de métodos e técnicas; levando em consi-
deração, sempre, a proteção dos Direitos e Garantias Fundamentais
previstos no Texto Constitucional.
É competência dos Laboratórios de Inovação, dentre outros,
a construção de soluções, mediante métodos inovadores e práticas
colaborativas, para problemas ou necessidades relacionadas às ativi-
dades do Poder Judiciário, visando o melhor desenvolvimento das
atividades nos tribunais.
Ocorre que só existe um Laboratório em vigência na esfera do
TJAM, o qual sequer entregou projetos no último ano, em compa-
ração aos 109 projetos entregues no último ano pela Justiça Estadual
em âmbito nacional, conforme dados de 2020 dispostos no site do
CNJ45.
Ademais, no Estado do Amazonas existem apenas dois pro-
jetos de Inteligência Artificial, um do TRF-1 e outro do TJAM. O
projeto LEIA Petições Intermediárias, do TJAM, foi criado para ser
utilizado com e-SAJ utilizando a regressão logística, todavia, o códi-
go da ferramenta não está disponível publicamente para ser revisado,
dessa forma, apenas cabe sua citação.
Diante dos dados apresentados, o incentivo à inovação e tec-
nologia é a tendência no judiciário nacional e internacional, prevale-
cendo ante as objeções levantadas e sendo imperativa a partir das po-
líticas estabelecidas pelo CNJ. Porém, o estado do Amazonas ainda
147
encontra problemas em aplicar determinados planos de ação, sendo
necessário que sejam reforçadas as atividades dos Laboratórios de
Inovação, por exemplo, e que estes encontrem na tecnologia, prin-
cipalmente na inteligência artificial, uma alternativa à problemática
de morosidade dos JECs.
46 SELA, Ayelet. E-Nudging Justice: The Role of Digital Choice Architecture. Journal of Dispute Resolu-
tion, v. 2019. p. 136.
47 SELA, Ayelet. E-Nudging Justice: The Role of Digital Choice Architecture. Journal of Dispute Resolu-
tion, v. 2019. p. 136.
148
Resolution Tribunal - CRT (Tribunal de Resolução Civil), onde o
processo envolve quatro fases: a) diagnóstico do problema; b) nego-
ciação; c) facilitação; e d) uma decisão do CRT, qual seja a adjudi-
cação da demanda, caso necessário. O sistema conta com uma base
de conhecimento preenchida com informações coletadas de especia-
listas humanos, primariamente em causas de baixo valor no âmbito
civil, como em relações consumeristas e até mesmo as que envolvem
acidentes de trânsito48. Os resultados da implementação do CRT
indicam que 75% de seus usuários aprovam seu método.
Modelo semelhante poderia ser aproveitado pelos JECs, espe-
cialmente no aspecto da filtragem das demandas e a primazia pela
solução consensual, desviando da burocracia dos cartórios das Varas.
Na prática, como nos JECs grande parte das ações são provenientes
do direito do consumidor, a possibilidade de filtrar tais demandas
em relação ao polo passivo, qual a pretensão e o tipo de ação, permi-
tem o oferecimento de medidas reparatórias prévias à judicialização.
Como exemplo, nas ações consumeristas, por vezes as demandas
envolvem uma obrigação de fazer que não foi cumprida em tempo
hábil, onde apenas a reclamação no site do consumidor. org ou a
abertura de protocolo de atendimento na ouvidoria da empresa é
o suficiente para coagir a empresa à prestar o serviço corretamente.
A filtragem das demandas por uma inteligência artificial já
identificaria se a pretensão de fato prospera, uma vez que existem
indivíduos que ajuízam ações sem que tenha ocorrido uma violação
de direito ou um dano. É o caso, em demandas consumeristas sobre
serviços essenciais, de litigantes que não possuem meios de pagar
suas faturas de água e/ ou energia, e buscam solucionar os débitos
em aberto, porém, da instrução dos documentos, depreende-se que
não existe violação de direitos pela empresa ré, e sim, a necessidade
de negociação da dívida.
Tal proposição se utiliza da mesma lógica do Solution Explo-
rer, utilizado no CRT canadense, o qual realiza o diagnóstico do
48 SCHMITZ, Amy J; ZELEZNIKOW, John. Inteliggente Legal tech to empower self-represented litigan-
ts. The Columbia Science & Technology Law Review, p. 157. Disponível em https:/ / journals. library.
columbia. edu/ index. php/ stlr/ article/ view/ 9391. Acesso em 2 de julho de 2022.
149
problema e as estratégias de autoajuda, buscando solucionar o pro-
blema em uma fase pré-processual:
O Solution Explorer foi chamado de sistema especialista que imita ou emula o
feedback, orientação ou raciocínio de um especialista humano. O sistema visa for-
necer informações direcionadas ao usuário sobre o problema ou questão, incluindo
a identificação e explicação de direitos e obrigações potencialmente relevantes que
cada parte tem. Além disso, o design é centrado no ser humano, na medida em que
segue um formato simples de perguntas e respostas usando linguagem simples (es-
pecificamente no nível de leitura da sexta série) para orientar os usuários na solução
de problemas com relação às suas disputas49 (tradução nossa).
Ademais, a triagem possibilitaria a análise dos tipos de de-
mandas que são mais favoráveis às partes requerentes, e entender
quais as violações mais comuns de serem cometidas pelas empresas
aos consumidores; o que possibilitaria maior agilidade no momento
de propor medidas de reparação contra tais entidades. Através dessa
análise, também ocorreria a identificação de quais empresas são mais
abertas à conciliação, para que esta fosse reforçada quando tal em-
presa figurasse no polo passivo da demanda.
Também, o agrupamento das ações facilitaria o momento de
se realizarem decisões nos casos, o deferimento das tutelas anteci-
padas, e permitiria o controle acerca dos objetos mais comuns às
demandas, para que medidas extrajudiciais efetivas pudessem ser
tomadas contra tais empresas em prol dos consumidores, como por
exemplo, a determinação recente de que bancos não podem mais
oferecer empréstimos por telemarketing ativo; haja vista as implica-
ções judiciais que essas atividades originavam.
Outra medida seria agrupar as demandas conforme os temas
(consumidor e cível), as empresas no polo passivo (bancos, telefonia,
serviços essenciais, etc. ), por aspectos repetitivos (empréstimo de
banco, abusividade nas cobranças de faturas energia, etc. ), e dife-
rir quais envolvem pessoas físicas para priorizar a conciliação e dar
maior atenção no aspecto da citação.
Medidas parecidas já são realidades para o Tribunal de Justiça
da Bahia, já que este colocou em prática a triagem de processos por
49 SCHMITZ, Amy J; ZELEZNIKOW, John. Inteliggente Legal tech to empower self-represented litigan-
ts. The Columbia Science & Technology Law Review, p. 157. Disponível em https:/ / journals. library.
columbia. edu/ index. php/ stlr/ article/ view/ 9391. Acesso em 2 de julho de 2022.
150
um robô no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, para as demandas
consumeristas, conforme informação extraída do Coordenação dos
Juizados Especiais - Coje, do site do TJBA. O Coje informa que o
robô analisa o conteúdo da petição inicial e, com o uso de um algo-
ritmo, apoiado com a inteligência artificial, coloca uma etiqueta no
processo quando for do sistema PJE, ou um localizador quando for
do Projudi, separando–os por temas. Posteriormente, o Magistrado
pode buscar os processos que já estão agrupados e julgar pela mesma
temática50.
Em relação a uma forma de sistema que trabalhasse em con-
junto com o balcão virtual, aplicando a interface com uma arquite-
tura digital de escolhas, conforme explicitado por Nunes e Paolinelli:
ODRs em tribunais on-line devem possuir design que se atente para princípios
que busquem a preservação do devido processo tecnológico: imparcialidade,
autonomia e autodeterminação dos litigantes. A arquitetura de escolha dentro
da plataforma deve promover participação paritária, informada e equilibrada
entre os litigantes51.
Já no aspecto formal, burocrático das Varas, a técnica do ma-
chine learning identificaria os erros formais na propositura das ações,
denunciando desde as nulidades das iniciais, até a validade dos do-
cumentos juntados, para que os vícios formais fossem suscitados em
uma fase inicial, impedindo que o processo seguisse, levando tempo
e custas desnecessários, apenas para resultar em sentenças sem reso-
lução do mérito. Em consonância, a técnica poderia analisar se os
casos feitos por atermação tiveram todas as possibilidades dos pedi-
dos abrangidos conforme os códigos processuais.
Sugere-se também a criação de um alerta para quando os
processos retornassem sem a citação positiva, para possibilitar que
a Vara tomasse conhecimento e prontamente intimasse a parte, para
151
que novo endereço fosse fornecido ou fosse feito mandado para
oficial de justiça cumprir, a fim de se evitar processos parados por
demasiado tempo pela impossibilidade de citação. Restando esgota-
das as possibilidades de prosseguimento da demanda pelo JECs em
razão da ausência citação, já haveria o alerta no sistema para o pro-
nunciamento da parte e instrução para uma solução mais adequada
ao caso, como talvez, a abertura de ação sobre a mesma pretensão,
mas na justiça comum.
No mais, a concretização de tais proposições e a adaptação
da teoria para uma prática que se adeque à realidade dos JECs deve
ser encarada como tarefa imperativa dos Laboratórios de Inovação,
sempre priorizando que o cidadão tenha o acesso à justiça efetivado
através da apreciação de suas demandas de forma satisfatória, com
um atendimento de qualidade e celeridade processual eficaz.
5. Considerações finais
A criação dos Juizados Especiais Cíveis buscou atender ao
princípio do acesso à justiça e à celeridade processual, possibilitando
que litigantes tivessem um procedimento judicial mais simplificado
e rápido, sem obrigatoriedade de advogado na maioria das causas,
por se tratarem de demandas menos complexas, porém, esse acesso
facilitado ao judiciário fez com que os JECs recebessem uma alta de-
manda de ajuizamentos, o que somado às inconsistências das ações,
transformou processos que deveriam ser finalizados de forma ágil
e com resultados efetivos em processos que tem um tempo alto de
espera para serem concluídos e restam sobrestados ou suspensos por
motivos burocráticos, implicando no que é denominado de moro-
sidade sistêmica.
Como resposta, há um conjunto de soluções já postas em
práticas pelo TJAM, a partir de orientações do CNJ, que incorpo-
ram a tecnologia, e a inteligência artificial, nos procedimentos dos
tribunais para buscar a celeridade processual e dar conta das altas
demandas processuais.
Ocorre que, por mais que o estado do Amazonas certifique
o cumprimento de certos programas, a evolução das técnicas e ten-
152
dências da tecnologia aplicada ao judiciário, no âmbito nacional e
internacional, exige que ocorra maior desenvolvimento dos planos
de ação para incorporar soluções digitais aos processos, seguindo os
programas já postos, como a Justiça 4. 0, tendo em vista que o que
se pretende é alcançar o acesso à justiça e a celeridade processual na
prática.
Reforça-se ainda que as propostas discutidas levem em conta a
aplicação da inteligência artificial no andamento interno dos proces-
sos nas Varas, considerando os grandes entraves de obrigar a inclusão
digital nos indivíduos que são afetados pelo analfabetismo digital, a
diferença geracional e regional em nosso país.
Dessa forma, utilizando-se da evolução dos estudos da IA
no campo do direito, aliado às preposições já existentes pelo CNJ,
os JECs devem aplicar técnicas utilizadas em ODRs mundo afora,
como as filtragens de demandas no funcionamento interno dos car-
tórios, bem como o atendimento virtual especializado que considere
a experiência do usuário, através de um design digital que use a ar-
quitetura de escolhas para assistir os litigantes autorrepresentados.
De modo geral, o investimento de tecnologias, especialmen-
te da inteligência artificial nos procedimentos dos JECS, representa
uma significativa contribuição para o descongestionamento das de-
mandas nesse âmbito, buscando a efetividade dos julgamentos das
ações, e não apenas o alcance de metas estabelecidas, representando
o acesso à justiça de forma satisfatória, e tendo como consequência,
a concretização da celeridade processual.
153
Violação de direitos
humanos por discriminação
estrutural interseccional
como condições específicas do
direito ao trabalho
1. Introdução
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, do qual o
Brasil faz parte mediante a adesão a importantes tratados de direitos
humanos ao longo do seu processo de democratização “e em par-
ticular a partir da Constituição Federal de 1988”2, é o caminho
jurídico formal pelo qual as vítimas de violações podem recorrer no
plano internacional para submeter denúncias contra o país e bus-
car a efetiva proteção dos direitos humanos pelo Estado brasileiro,
pois “ao ratificar a Convenção Americana [de Direitos Humanos], o
Estado signatário aceita automaticamente a competência da Comis-
são Interamericana para examinar denúncia de violação de preceito
constante na Convenção”3.
Esse foi o caminho trilhado pelas vítimas e seus familiares no
emblemático Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antô-
nio de Jesus vs. Brasil, cujo fato teve início em 11 de dezembro de
19984, com a explosão da fábrica de fogos de artifícios, que “des-
154
cortinou Santo Antonio de Jesus como segundo maior produtor de
fogos de artifício do país e, assim sendo, um polo pirotécnico”5
A fábrica de “Vardo dos Fogos” se localizava na zona rural
de Santo Antônio de Jesus, na Bahia. Entre as vítimas da explosão,
60 morreram e 06 sobreviveram com graves problemas de saúde6,
dentre as quais, achavam-se apenas mulheres e crianças.
Em 03 de dezembro de 2001, os representantes das vítimas
apresentaram petição perante a Comissão Interamericana de Direi-
tos Humanos (CIDH) denunciando o Estado brasileiro por violação
de direitos humanos. O processo tramitou por 17 anos perante a
CIDH, até que em 19 de setembro de 2018, foi submetido à Corte
IDH, que prolatou sentença em 15 de julho de 20207.
Embora o presente estudo de caso apresente como pano de
fundo questões relacionadas à violação juslaboral e jusambiental
do trabalho dos empregados da fábrica de fogos, este visa analisar a
sentença exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
(Corte IDH) sob o viés do ineditismo da decisão do Tribunal, que
ao reconhecer a violação de direitos humanos por parte do Estado
brasileiro pela prática de trabalho infantil e pela inobservância de
diretrizes componentes do direito ao trabalho, dentre outras viola-
ções, o fez asseverando que as vítimas ao se submeterem às condições
degradantes de trabalho, o fizeram em razão da vulnerabilidade do
referido grupo social, resultante de discriminação estrutural e inter-
secional.
O trabalho de fabricação de fogos de artifício em Santo Antô-
nio de Jesus também incluía homens, os quais, “em geral, se ocupa-
Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. (Exceções Preliminares, Mérito, Repara-
ções e Custas). Sentença de 15 de julho de 2020b. Série C No. 407, p. 04.
5 TOMASONI, Sônia Marise Rodrigues Pereira. Dinâmica Socioespacial da Produção de Fogos de
Artifício em Santo Antônio de Jesus-BA: território fogueteiro. [tese de doutorado]. São Cristóvão - SE:
Universidade Federal de Sergipe, 2015, p. 11.
6 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso dos empregados da fábrica de
Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. (Exceções Preliminares, Mérito, Repara-
ções e Custas). Sentença de 15 de julho de 2020b. Série C No. 407, p. 75.
7 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso dos empregados da fábrica de
Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. (Exceções Preliminares, Mérito, Repara-
ções e Custas). Sentença de 15 de julho de 2020b. Série C No. 407, pp. 4-5.
155
vam da chamada “massa”, atividades que se diferenciava da produ-
ção de traque realizado pelas mulheres8, de modo que a “produção
do estalo de salão/ traque, [era manual e] realizado majoritariamente
pelo trabalho feminino”9, embora o capital também se apropriasse
do trabalho infantil10.
Da análise do trágico acidente de trabalho na “fábrica” de fo-
gos no final do século XX, tem-se por ilação que a ambiência laboral
desta se assemelhava em muitos aspectos com as atividades degra-
dantes das indústrias do início da revolução industrial, na segunda
metade do século XVIII, já que em ambas, as pessoas trabalhavam
em péssimas condições de higiene, segurança e saúde, em troca de
salários ínfimos e sem qualquer proteção trabalhista.
Na fábrica de fogos, “as trabalhadoras recebiam R$0,50 (cin-
quenta centavos de real) pela produção de mil traques”, eram con-
tratadas informalmente, não possuíam registro como empregadas “e
não ganhavam nenhuma quantia adicional pelo risco a que eram
submetidas diariamente em seu trabalho”11, vivendo em situação de
extrema pobreza.
Além das situações de risco laboral e de condições trabalhistas
precarizantes, um outro agravante era o fato da maioria de trabalha-
dores empregados na produção de fogos de artifícios, ser composta
por mulheres e crianças, numa reprodução e continuidade da utili-
zação das chamadas “meias-forças”, tal como no início da revolução
industrial, em que estas mãos de obra eram “incorporadas às linhas
de produção como forma de complementação da renda familiar em
156
tendência regressiva (mas geralmente remuneradas a menor, devido
à sua capacidade muscular inferior)”, como assevera Feliciano. 12
Porém, destaca-se neste caso, que as trabalhadoras da fábrica
de fogos pertenciam “a um grupo em especial situação de vulnera-
bilidade”, pois além da “situação de pobreza estrutural”, eram for-
mados por mulheres e meninas afrodescendentes, algumas grávidas,
sem escolaridade, todas condições caracterizadoras de discriminação
estrutural, tendo o conjunto de tais fatores (interseção) contribuído
para que as “vítimas se tenham visto compelidas a nela trabalhar. ”13
Portanto, a pesquisa tem por objetivo possibilitar que a partir
da análise da sentença prolatada no caso da fábrica de fogos, que
resultou na compreensão de que “a interseção de fatores de discri-
minação [...] aumentou as desvantagens comparativas das supostas
vítimas”14, se faça um estudo da evolução jurisprudencial da Corte
IDH sobre a discriminação estrutural intersecional, identificando
como questões norteadoras: como a Corte IDH vem reconhecendo
e adotando a interseccionalidade em suas sentenças? a adoção do
tema é pacífico ou há dissenso entre os membros que compõem a
Corte IDH?
A fim de esclarecer o objetivo, a metodologia adotada é a
qualitativa, na modalidade estudo documental e jurisprudencial, e
como forma de abordagem é uma pesquisa de evolução jurispruden-
cial com o enfoque na discriminação interseccional.
Para tal, primeiro se fará uma breve contextualização dos fatos,
apresentando um panorama geral sobre as trabalhadoras vitimadas,
a atividade exercida e as condições da fábrica (local de funcionamen-
to, estrutura física e regularização perante os órgãos competentes) e
as circunstâncias que ensejaram a denúncia à Comissão Interameri-
12 FELICIANO, Guilherme G. Curso crítico de direito do trabalho: teoria geral do direito do trabalho. -
São Paulo: Saraiva, 2013, p. 61.
13 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso dos empregados da fábrica de
Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. (Exceções Preliminares, Mérito, Repara-
ções e Custas). Sentença de 15 de julho de 2020b. Série C No. 407, p. 57.
14 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso dos empregados da fábrica de
Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. (Exceções Preliminares, Mérito, Repara-
ções e Custas). Sentença de 15 de julho de 2020b. Série C No. 407, p. 55.
157
cana até a chegada do processo à Corte IDH. A seguir, se abordará en
passant a definição de direitos humanos e a discriminação estrutural
como “padrões de desigualdades” que afetam determinados grupos
em situação de vulnerabilidade, correlacionando as vítimas da ex-
plosão como sujeitos de direito, diante da especificidade histórica da
população santantoniense, que se traduz em múltipla discriminação
estrutural, mas que não se limita à pobreza, e tem como ingrediente
adicional, a negligência do Poder Público em adotar ações de com-
bate às causas de discriminação.
Por fim, o estudo se deterá em torno da interseccionalidade
como a temática principal da pesquisa, dispondo sobre o conceito
doutrinário e fundamentos do termo. Avançando, se abordará a evo-
lução jurisprudencial do tema na Corte IDH, buscando investigar se
há consenso entre os juízes do referido Tribunal sobre a aplicação da
discriminação intersecional.
158
Fogos”), com algumas mesas de trabalho compartilhadas com os
materiais explosivos dispostos nos mesmos espaços das trabalhado-
ras17, que produziam os “traques” ou “estalo de salão”, uma espécie
de fogos de artifícios.
A relação de trabalho era marcada pela informalidade, preca-
riedade e degradação. Recebiam baixos valores por produção diária,
não possuíam benefícios trabalhistas, não havia banheiros, local para
refeição, pausa para descanso e nem treinamento ou qualquer prote-
ção à segurança e saúde para a atividade de alto risco que exerciam18.
Apesar do perigo da atividade, a fábrica de fogos detinha au-
torização do Ministério do Exército - que desde 1999 até os dias
atuais, chama-se de Ministério da Defesa - e do Município para
funcionamento e autorização para armazenar grande quantidade
de material explosivo. Porém, conforme registro nos autos, durante
todo o período da autorização, a fábrica nunca foi inspecionada,
seja quanto às condições de trabalho ou em relação ao controle das
atividades perigosas19.
Com a explosão ocorrida no dia 11 de dezembro de 1998,
morreram 60 trabalhadoras (40 eram mulheres, das quais 04 esta-
vam grávidas, e 20 eram crianças, sendo 19 meninas e 01 menino),
restando 06 sobreviventes (03 mulheres, 02 meninos e 01 menina)
que ficaram com diversos problemas de saúde (físicos, psíquicos e
emocionais), além de Vitória França, bebê nascida prematuramente,
em razão da explosão, e cuja mãe foi uma das vítimas fatais.
De acordo com o perfil das vítimas, verifica-se que compu-
nham o processo de produção de traque/ estalo de salão da fábrica de
fogos de Santo Antônio de Jesus, apenas mulheres e crianças. Mui-
tas destas crianças eram filhos das trabalhadoras, que não tinham
159
com quem deixá-los. Então estes acabavam acompanhando as mães
e sendo introduzidos na fabricação devido a agilidade manual para
enrolar os traques, a possibilidade de aumentar a produção e con-
sequentemente, o valor recebido como pagamento, “mas também
porque [as mães trabalhadoras] não tinham aos cuidados de quem
deixá-los”20
Outro aspecto que merece destaque é o fato de que a popu-
lação do Recôncavo Baiano possui um passado discriminatório que
era ainda muito presente à época da explosão da fábrica, o que per-
mite compreender a razão que levou as vítimas a trabalharem em
condições tão degradantes. Essa região é composta por forte presen-
ça histórica de pessoas afrodescendentes, cujos antepassados ingres-
saram no país na condição de escravos21, para trabalhar nas lavouras
de cana-de-açúcar e produção de tabaco, de modo que o município
“santantoniense apresenta-se com heranças históricas de marcas do
trabalho escravo”22.
Mesmo após a libertação, esses escravos tiveram grande difi-
culdades para o exercício da cidadania e a conquista de direitos bási-
cos como moradia, trabalho e educação, sendo reduzidos à condição
de extrema pobreza e por tal razão, submetidos à clandestinidade e à
informalidade, recebendo o mínimo para sua subsistência23.
As empregadas da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus
eram mulheres afrodescendentes, que se submetiam a essa atividade
devido ao seu estado de pobreza, já que nas opções de trabalho no
comércio local eram discriminadas por seu analfabetismo, e no ser-
160
viço doméstico, eram submetidas a condições discriminatórias “em
função de estereótipos que as associavam, por exemplo, à crimina-
lidade”24.
Portanto, essas trabalhadoras eram pessoas que sofriam “for-
mas múltiplas e agravadas de discriminação, a combinar os critérios
de raça, gênero, [escolaridade, situação econômica, gravidez, idade]
e outros”25 e por tal razão tinham restringido o exercício de direitos
na esfera pública e privada.
Com a explosão, o Ministério do Exército iniciou processo
administrativo que resultou na determinação de cancelamento de-
finitivo do registro da fábrica. Também foram iniciados processos
trabalhistas, civis e penais.
Porém, às vésperas de completar 3 (três) anos da explosão sem
que nos demais processos, o Estado tenha “garanti[do] o acesso à jus-
tiça, a determinação da verdade dos fatos, a investigação e punição
dos responsáveis, nem a reparação das consequências das violações de
direitos humanos ocorridas”, os representantes das vítimas - compos-
tos pela Justiça Global, o Movimento 11 de Dezembro, a Comissão
de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) -
Subseção de Salvador, o Fórum de Direitos Humanos de Santo An-
tônio de Jesus/ Bahia, Ailton José dos Santos, Yulo Oiticica Pereira e
Nelson Portela Pellegrino - apresentaram petição perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos em 3 de dezembro de 2001,
denunciando o Estado brasileiro por violação de direitos humanos26.
O processo tramitou por 17 anos perante a Comissão, até que
em 19 de setembro de 2018, o Relatório de Admissibilidade e Méri-
to da Comissão Interamericana Nº 25/ 18, com as narrativas fáticas,
as conclusões e recomendações ao Brasil, e as supostas violações de
161
direitos humanos, foi submetido à Corte IDH, que prolatou sen-
tença em 15 de julho de 202027, decisão que será objeto de análise
tendo como delimitação, a discriminação estrutural intersecional.
A Corte Interamericana é órgão jurisdicional do sistema re-
gional, “com competência consultiva e contenciosa”. A sua atribui-
ção contenciosa possui “caráter jurisdicional, referente à solução de
controvérsias que se apresentem acerca da interpretação ou aplicação
da própria Convenção”28
162
de direitos necessário para assegurar uma vida do ser humano basea-
da na liberdade, igualdade e na dignidade”.
Essa introdução conceitual mostra-se relevante, pois a expres-
são ‘direitos humanos’ “acentua a essencialidade de tais direitos para
o exercício de uma vida digna”32. Ou porque, segundo o jurista ita-
liano Luigi Ferrajoli, “os direitos humanos simbolizam a lei do mais
fraco contra a lei do mais forte, na expressão de um contrapoder em
face dos absolutismos, advenham do Estado, do setor privado ou
mesmo da esfera doméstica”33.
Interessante destacar neste ponto, que o caso concreto envolve
relação de trabalho entre pessoas naturais que exerciam atividade
econômica no setor privado, por quem os direitos ao trabalho digno
eram descumpridos, tendo como ápice da violação desses direitos, a
morte e danos à saúde de dezenas de trabalhadoras, o que configura
fator impeditivo para que o Estado seja considerado responsável por
qualquer violação de direitos humanos cometida em sua jurisdição
por particulares.
Todavia, a Corte IDH analisando as nuances e circunstâncias
particulares do caso, adotou interpretação sistemática, teleológica e
evolutiva, e entendeu que por tratar-se da fabricação de fogos de artifí-
cios, atividade especialmente perigosa, que gera risco à vida e à integri-
dade das pessoas, o Estado brasileiro “tinha a obrigação de regulamen-
tar, supervisionar e fiscalizar seu exercício, para prevenir a violação dos
direitos dos indivíduos que nela trabalhavam”, atribuindo ao Estado a
responsabilidade pela violação de direitos humanos34.
A esse respeito, mostra-se relevante destacar o parágrafo 153
da sentença da Corte IDH que no julgamento do caso da fábrica de
fogos de Santo Antônio de Jesus, ao adotar como precedente para-
digmático o Caso Poblete Vilches e outros vs. Chile, assim dispôs:
32 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005. 302 p. 27.
33 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 19. ed. - São Paulo:
Saraiva Educação, 2021. p. 289.
34 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso dos empregados da fábrica de
Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. (Exceções Preliminares, Mérito, Repara-
ções e Custas). Sentença de 15 de julho de 2020b. Série C No. 407, p. 37.
163
Desse modo, fica clara a interpretação de que a Convenção Americana incor-
porou a seu catálogo de direitos protegidos os denominados direitos econômi-
cos, sociais, culturais e ambientais (DESCA), mediante uma derivação das nor-
mas reconhecidas na Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA),
bem como das normas de interpretação dispostas no próprio artigo 29 da
Convenção, especialmente, que impede limitar ou excluir o gozo dos direitos
estabelecidos na Declaração Americana e inclusive os reconhecidos em matéria
interna. Em conformidade com uma interpretação sistemática, teleológica e
evolutiva, a Corte recorreu ao corpus iuris internacional e nacional na matéria
para dar conteúdo específico ao alcance dos direitos tutelados pela Convenção,
a fim de derivar o alcance das obrigações específicas de cada direito35.
Relativamente à questão, Piovesan36 ressalta que “a Corte não
efetua uma interpretação estática dos direitos humanos enunciados
na Convenção Americana, mas, tal como a Corte Europeia, realiza
interpretação dinâmica e evolutiva, de forma a interpretar a Con-
venção considerando o contexto temporal da interpretação, o que
permite a expansão de direitos. ”
Portanto, a par dessa interpretação dada pela Corte IDH, de-
preende-se que a população santantoniense, formada em sua gran-
de maioria por afrodescendentes - “a mais atingida pela pobreza no
estado da Bahia” -, contexto em que se inserem as trabalhadoras da
fábrica de fogos, que além de não terem “acesso aos direitos que de-
veriam ser garantidos pelo Estado Brasileiro” desde “a conquista de
suas liberdades”, também continuaram enfrentando essa “sistemáti-
ca negativa de direitos humanos”37 com a demonstrada negligên-
cia estatal no cumprimento do seu dever de proteger a população,
pois ao deixar de inspecionar as instalações da fábrica de fogos a fim
de garantir a segurança, a saúde e a higiene no trabalho, entendido
como um direito protegido pelo artigo 26 da Convenção America-
na, violou o direito ao trabalho em condições equitativas e satisfató-
rias e a proibição de trabalho infantil.
164
Ademais, conclui-se pela análise do caso concreto, que a exis-
tência de discriminação estrutural pode ser fonte de vulnerabilida-
des, desigualdade econômica, marginalização, dando azo à violação
de direitos humanos. A esse respeito, a lição cirúrgica de Piovesan de
que “a discriminação significa sempre desigualdade”. Em seu dizer,
a discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que
tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício, em igualdade
de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos
político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo38.
38 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 19. ed. - São Paulo:
Saraiva Educação, 2021. 760 p. 292.
39 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 19. ed. - São Paulo:
Saraiva Educação, 2021. 760 p. 293.
40 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 19. ed. - São Paulo:
Saraiva Educação, 2021. 760 p. 288.
165
Dito de outra forma, as trabalhadoras da fábrica de fogos fa-
ziam parte de um grupo, pertencente à comunidade santantoniense,
cuja grande parte é formada por afrodescendentes, que foram histó-
rica e sistematicamente, portanto, estruturalmente, excluídas do di-
reito a ter um trabalho digno, à educação, a serviços públicos como
creches para deixar seus filhos durante o expediente laboral, sendo
consequentemente, conduzidas à situação de pobreza estrutural e à
violação de direitos humanos.
Quiñones41 explica que o conceito de discriminação já ampla-
mente debatido pela Corte IDH, passou a adotar novos matizes quan-
do o Tribunal passou a tratar da violação de direitos humanos sobre
a temática de grupos vulneráveis, tais como mulheres, indígenas, mi-
grantes, etc, em razão de sua condição social, econômica e cultural, e
a apresentar uma interpretação evolutiva da igualdade formal prevista
na lei. Assim, apoiado em Alegre e Gargarella, pontifica que:
A discriminação estrutural ou “desigualdade estrutural” incorpora “dados his-
tóricos e sociais” que explicam a desigualdade de direito (de jure) ou de fato (de
facto), como “resultado de uma situação de exclusão social ou de ‘submissão’
de [grupos vulneráveis] por outros, de forma sistemática e devido a complexas
práticas sociais, preconceitos e sistemas de crenças. A discriminação estrutural
pode se apresentar em uma área geográfica específica, em todo Estado ou em
uma região42.
A partir da reinterpretação do conceito de igualdade formal
estabelecido nos artigos 1. 1 e 24 da Convenção Americana de Di-
reitos Humanos, e tendo por fundamento a letra “b” do artigo 29
da Convenção que veda interpretação que possa “limitar do gozo e
exercício de qualquer direito ou liberdade” (OEA, 1969), a Corte
IDH passou a compreender que os tratados de direitos humanos
são instrumentos vivos e que a sua interpretação deve acompanhar
a evolução dos tempos e as condições de vida vigentes, passando
a adotar uma interpretação jurisprudencial evolutiva da igualdade
perante a lei43.
166
A esse respeito, André de Carvalho Ramos ensina que a Corte
IDH adotou o princípio da interpretação evolutiva dos tratados de
direitos humanos, “sustentando que ‘la evolución de los tempos y las
condiciones de vida actuales’ devem direcionar a interpretação dos
diplomas de direitos humanos”. Com esta interpretação trazida no
Parecer Consultivo nº 16/ 99, de 01 de outubro de 1999, Série A,
nº 16, parágrafos 113-114, sobre o direito à informação sobre a as-
sistência consular em relação às garantias do devido processo legal,
a Corte IDH garante “a consonância da interpretação internacional
das normas de direitos humanos com os novos parâmetros sociais,
que afetam a própria determinação do que vem a ser a dignidade da
pessoa humana”44
Como apontado ao longo do texto, a situação evidenciada
no caso dos empregados da fábrica de fogos de Santo Antônio de
Jesus caracteriza-se como uma discriminação estrutural calcada na
pobreza estrutural, mas que traz em torno de si, uma complexa e
sistemática conjuntura de discriminação que transcende a questão
socioeconômica, e envolve as trabalhadoras da fábrica, mulheres
afrodescendentes, semianalfabetas, algumas em estado gravídico, e
todas moradoras daquela comunidade, que se veem excluídas do di-
reito a um trabalho digno, ou ao menos, do direito a um trabalho
sem riscos às suas vidas e integridade.
Em arremate à mencionada situação de vulnerabilidade, cite-
-se o trecho da obra da pesquisadora Sônia Tomasoni:
A oferta de emprego - seja na área do comércio, de serviços ou na indústria -
não é suficiente para atender à demanda da população, o que gera um excesso
de mão de obra, especialmente, nos bairros periféricos, como Irmã Dulce e
São Paulo. Nesses, ocorre a concentração de um contingente populacional sem
qualificação para ocupar determinados cargos, fortalecendo o trabalho infor-
mal. As políticas públicas de inclusão social são escassas, contribuindo para a
geração do trabalho precarizado45.
167
A ausência de serviços públicos e a vulnerabilidade socioeco-
nômica também pode ser observada em outro trecho da fala de uma
das mães trabalhadoras da fábrica de fogos e que também perdeu
sua filha na explosão, durante entrevista concedida à referida pes-
quisadora:
[...] Quando aconteceu o acidente, nós, por sermos pobre [sic], não tinha a
quem recorrer...[suspiros]. A nossa ajuda foi da igreja, e o Padre Luiz foi buscar
recurso na Itália; chegou aqui, perguntou pra todas as mães do movimento
se a gente queria a creche ou o dinheiro, que ele dividia o dinheiro que tinha
conseguido. Nós pedimos a creche, pra nossas crianças ter [sic] onde ficar, e a
gente ir buscar trabalho em outras coisas fora dos fogos. Ele tinha um terreno
e, com o dinheiro, fez essa creche, e é aqui que eu e muitas mulheres trabalha-
mos e continuamos na luta […] (ENTREVISTA: Ex-fogueteira, funcionária
da Creche 11 de Dezembro, 2015).
Assim, a situação é agravada pela negligência do Poder Públi-
co que além de não adotar ações de combate à discriminação estru-
tural impregnada na população santantoniense, especialmente dos
bairros periféricos de origem das trabalhadoras, com a criação de
ofertas de emprego e serviços públicos, também não cumpre o seu
papel de agente fiscalizador de atividades perigosas como o trabalho
com explosivos, a fim de cercear a violação de direitos contra grupo
vulnerável em detrimento dos donos de capital da iniciativa privada.
Essa interpretação evolutiva do Tribunal Interamericano que
já vinha se descortinando a respeito da discriminação estrutural,
também vinha avançando na Corte IDH sobre um novo enfoque, o
intersecional, temática sobre a qual se abordará a seguir.
168
É neste cenário de interpretação evolutiva jurisprudencial da
Corte Interamericana sobre a discriminação estrutural, que se pa-
vimentou a interpretação sob um novo enfoque: o intersecional. E
é no caso da fábrica de fogos, denúncia formulada contra o Brasil
perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que pela
primeira vez a Corte IDH analisa uma situação de discriminação
interseccional em relação a condições específicas do direito ao traba-
lho, marcando assim também, o ineditismo da decisão.
Porém, antes de adentrar na análise da jurisprudência da Corte
IDH e no estudo do caso concreto da fábrica de fogos, far-se-á uma
breve abordagem sobre o conceito jurídico de interseccionalidade. A
americana Kimberlé W. Crenshaw é quem “cunha o termo [...] em
1989” sendo a responsável pela elaboração da teoria interseccional,
cuja construção dá-se “a partir do recorte gênero/raça, contextuali-
zado pela violência contra mulheres negras [...] como meio de racio-
nalizar as interações entre identidades”46.
A teoria da interseccionalidade, criada por Kimberlé
Crenshaw, “visa abordar como a confluência de dois ou mais vetores
de discriminação pode recair sobre um mesmo indivíduo, dando
origem a uma inédita forma de discriminação”47.
Nesta dicção, Crenshaw define interseccionalidade como:
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos
da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como
ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos,
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento48.
169
A proposta teórica de Crenshaw estuda como identidades so-
ciais e “seus vários eixos de poder, isto é, raça, etnia, gênero e classe,
[...] frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções
complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam”49,
em especial aquelas identidades minoritárias, como o movimento
feminista negro, em seu relacionamento com sistemas e estruturas
de opressão, dominação ou discriminação.
Sem querer esgotar o assunto, diz-se que a importância da
interseccionalidade, segundo Bond50, dá-se porque “a análise inter-
seccional é uma ferramenta necessária para que seja possível alcançar
uma compreensão integral e complexa sobre as violações de direitos
humanos a nível global”. Feitas tais abordagens doutrinárias e intro-
dutórias, avançaremos rumo à questão perante a Corte IDH.
A Corte IDH, que já vinha adotando interpretação evolutiva
em seus julgados a respeito da discriminação, direcionando “especial
atenção aos grupos historicamente marginalizados, demandando que
os Estados adotem ações específicas para garantir a igualdade subs-
tancial, combatendo frontalmente a discriminação estrutural”51,
passa a enfocar também a discriminação interseccional.
A sentença do Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de San-
to Antônio de Jesus e seus familiares Vs. Brasil, não é a primeira vez
que a Corte IDH se pronuncia sobre a discriminação intersecional,
tendo se referido ainda “a esse conceito de forma expressa ou tácita
em diferentes sentenças que a antecederam”52.
Um breve retrospecto sobre alguns casos da jurisprudência da
Corte IDH em que esta decidiu sobre a discriminação intersecional,
170
verifica-se que a consolidação desse enfoque se deu pela primeira vez
no Caso I. V. Vs. Bolívia (2016), seguido do Caso Ramírez Escobar e
outros Vs. Guatemala (2018) e do Caso Cuscul Pivaral e outros (2018)
e do Caso Guzmán Albarracín e outras Vs. Equador (2020).
O primeiro julgado, de 2016, refere-se ao caso de uma mulher
peruana que passou por intervenção cirúrgica (ligadura das trompas
de Falópio) em um hospital público da Bolívia que resultou na sua
esterilização “sem o seu consentimento livre, prévio e informado”53.
A Corte IDH considerou que neste caso houve “múltiplos
fatores de discriminação que convergiram de forma interseccional ao
seu acesso à justiça, associados à sua condição de mulher, sua posição
socioeconômica e a sua condição de refugiada”54, pois devido a mu-
dança de jurisdição para os julgamentos penais, a vítima encontrou
“um obstáculo geográfico na acessibilidade ao tribunal”55.
O Caso Ramírez Escobar e outros Vs. Guatemala refere-se a
um caso de adoção internacional de duas crianças, de 7 e 2 anos,
filhos biológicos da senhora Flor de María Ramírez Escobar, a par-
tir de uma declaração de abandono. Ao apreciar o caso, o Tribunal
concluiu que “a discriminação da senhora Ramírez Escobar é inter-
seccional porque foi fruto de vários fatores que interagem e condi-
cionam uns aos outros”, como a posição econômica, devido à sua
situação de pobreza, e em outros fatores discriminatórios com base
“em estereótipos de gênero” ao questionar com base em ideias pre-
concebidas sobre a sua conduta e desempenho no papel de mãe, por
esta ser uma mãe solteira56.
Um ponto importante observado pela Corte IDH, mas des-
considerado para fins da interseccionalidade neste caso, foi o fato de
53 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 19. ed. - São Paulo:
Saraiva Educação, 2021. 760 p. 396.
54 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso I. V. vs. Bolivia. (Excepciones
Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas). Sentencia de 30 de noviembre de 2016. Série C No. 329,
p. 103.
55 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso dos empregados da fábrica de
Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. (Exceções Preliminares, Mérito, Repara-
ções e Custas). Sentença de 15 de julho de 2020b. Série C No. 407, p. 19.
56 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ramírez Escobar y otros Vs.
Guatemala. (Fondo, Reparaciones y Costas). Sentencia de 9 de marzo de 2018. Série C No. 351.
171
que as autoridades da Guatemala não consideraram outros familia-
res das crianças para exercer o cuidado sobre elas, evitando a separa-
ção da família biológica. A avó materna dos menores foi descartada
em razão de sua orientação sexual, porque tinha “preferencias ho-
mosexuales [y podría] trasmit[ir] esta serie de valores a los niños que
tenga a cargo”57.
Outra situação levada à apreciação da Corte IDH e julgado
também em 2018, é o Caso Cuscul Pivaral e outros Vs. Guatemala,
em que a República da Guatemala foi denunciada pela violação de
diversos direitos previstos na Convenção Americana em prejuízo de
49 pessoas em situação de pobreza e diagnosticadas com HIV, pela
total falta de atenção médica do Estado, causador de impacto na
situação de saúde, vida e integridade pessoal. A Corte considerou
que a condição das mulheres que vivem com HIV, em estado gra-
vídico, confluíram de maneira interseccional em duas vítimas que
“por suas condições formam parte de um grupo vulnerável e a sua
discriminação foi o produto de vários fatores interseccionais e que se
condicionaram entre si”58.
E em arremate à questão da discriminação interseccional, o
Tribunal pontifica que:
[...] En ese sentido, la Corte recuerda que la discriminación interseccional es
resultado de la confluencia de distintos factores de vulnerabilidad o fuentes de
discriminación asociados a ciertas condiciones de una persona. En ese senti-
do, tal y como lo ha señalado el Tribunal, la discriminación de la mujer por
motivos de sexo y género está unida de manera indivisible a otros factores que
afectan a la mujer, y que este tipo de discriminación puede afectar a las mujeres
de algunos grupos de diferente medida o forma que a los hombres59.
172
escolar, praticado pelo vice-diretor escolar contra a adolescente Paola
del Rosario Guzmán Albarracín, que culminou no seu suicídio.
A esse respeito, a Corte IDH compreendeu que os atos de
assédio e abuso sexual cometidos contra a vítima constituem, em si
mesmo, atos de violência e discriminação que confluíram de modo
intersecional, distintos fatores de vulnerabilidade e risco de discri-
minação, como a idade e a sua condição de mulher. Assim como re-
conheceu que a violência sexual praticada contra Paola não se tratou
de um caso isolado, mas é fruto de uma situação estrutural do país,
cujas autoridades toleram esse tipo de violência e que apesar disso,
não haviam adotado medidas adequadas para abordar a questão no
âmbito educacional60.
Todavia, a relevância e ineditismo da decisão do Tribunal no
Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus
está, como assevera o Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot em
trecho do seu voto concordante, por tratar-se da “primeira oportu-
nidade que a Corte IDH tem de analisar a forma mediante a qual
a confluência de diversos fatores presentes nas vítimas em condição
de pobreza as submeteu a uma situação de discriminação estrutural
frente ao desfrute de condições específicas do direito ao trabalho”61.
A contextualização fática e histórica das vítimas e das condi-
ções de trabalho, que além da violação de direito em decorrência
dos riscos à vida e a integridade das trabalhadoras, também incluía
a violação ao trabalho infantil, ao expor crianças a um trabalho es-
pecialmente perigoso na fábrica de fogos, permitiu à Corte IDH
estabelecer uma interpretação evolutiva que identificou que existiam
vários vetores, além da condição de pobreza das vítimas, a ensejar
diversas desvantagens estruturais e aumento da vulnerabilidade.
Neste sentido, são esclarecedores os parágrafos 190 e 191 da
sentença, que assim versam sobre a questão:
173
190. Além da discriminação estrutural em função da condição de pobreza das
supostas vítimas, esta Corte considera que nelas confluíam diferentes desvan-
tagens estruturais que impactaram sua vitimização. Essas desvantagens eram
econômicas e sociais, e se referiam a grupos determinados de pessoas, ou seja,
observa-se uma confluência de fatores de discriminação. Este Tribunal se re-
feriu a esse conceito de forma expressa ou tácita em diferentes sentenças,para
isso utilizando diferentes categorias. 191. Isso posto, a interseção de fatores de
discriminação neste caso aumentou as desvantagens comparativas das supos-
tas vítimas, as quais compartilham fatores específicos de discriminação que
atingem as pessoas em situação de pobreza, as mulheres e os afrodescendentes,
mas, ademais, enfrentam uma forma específica de discriminação por conta da
confluência de todos esses fatores e, em alguns casos, por estar grávidas, por ser
meninas, ou por ser meninas e estar grávidas. Sobre esse assunto é importante
destacar que esta Corte estabeleceu que o estado de gravidez pode constituir
uma condição de particular vulnerabilidade e que, em alguns casos de vitimiza-
ção, pode existir um impacto diferenciado por conta da gravidez. 62
E ainda, fazendo um paralelo entre o Caso Trabalhadores da
Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil (2016) e o Caso dos Empregados da
Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares Vs. Brasil
(2020), verifica-se que ambos os casos são situações em que há vio-
lação de direitos trabalhistas e que os fatos discriminatórios decor-
reram da posição econômica, por situação de pobreza das vítimas,
trabalhadores brasileiros.
Apesar da relevância do Caso Trabalhadores da Fazenda Bra-
sil Verde como caso paradigmático, já que foi a primeira vez que o
Tribunal “reconhece[u] a existência de uma discriminação estrutural
histórica, em razão do contexto no qual ocorreram as violações de
direitos humanos” das vítimas, bem como pela primeira vez “ex-
pressamente determin[ou] a responsabilidade internacional contra
um Estado por perpetuar esta situação estrutural histórica de ex-
clusão”63, difere-se quanto à interseccionalidade, pois neste caso
a Corte IDH entendeu que a “discriminação estrutural se centrou
unicamente na posição econômica das 85 vítimas”64, enquanto no
174
caso da fábrica de fogos, reconheceu que as vítimas estavam inseridas
em padrões de discriminação estrutural e intersecional, que com-
preendia a questão da posição econômica pela situação de pobreza
em conjunto com padrões vetoriais como gênero, raça, idade, esco-
laridade, estado gravídico.
Por fim, adentrando na análise da questão sobre a existência
de dissenso por parte de algum dos juízes que compõem a Cor-
te IDH, em relação a aplicação da discriminação interseccional no
Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de
Jesus, verificou-se que participaram do exame do caso, os 07 (sete)
juízes que constituem a Corte IDH, mas desse total, apenas 05 (cin-
co) deram a conhecer à Corte seus votos individuais. Desse total, 03
(três) foram votos concordantes e 02 (dois) foram votos parcialmen-
te dissidentes.
Os votos individuais concordantes são dos juízes L. Patricio
Pazmiño Freire, Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Ricardo Pérez
Manrique, enquanto os votos individuais parcialmente dissidentes são
dos juízes Eduardo Vio Grossi e Humberto Antonio Sierra Porto65.
Em relação aos pontos resolutivos da sentença, o item 2 (Re-
solutivo nº 2), teve dois votos contra. Nesse item, a Corte decide
“julgar improcedente a exceção preliminar relativa à alegada incom-
petência ratione materiae a respeito das supostas violações do direito
ao trabalho, em conformidade com o parágrafo 23 desta Sentença”.
Quanto ao ponto Resolutivo nº 6, o único voto divergente foi
do juiz Eduardo Vio Grossi em relação ao item, que assim dispõe:
6. O Estado é responsável pela violação dos direitos da criança, à igual proteção
da lei, à proibição de discriminação e ao trabalho, constantes dos artigos 19, 24 e
26, em relação ao artigo 1. 1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
em prejuízo das sessenta pessoas falecidas e das seis sobreviventes da explosão
da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus, ocorrida em 11 de dezembro de
1998, a que se refere o parágrafo 204 desta Sentença, entre as quais se encontram
23 crianças, nos termos dos parágrafos 148 a 204 da presente Sentença.
175
Da leitura dos votos dissidentes, não se identificou nada que
diga respeito diretamente à questão investigada. O Resolutivo nº 2,
que teve dois votos dissidentes, diz respeito à questão preliminar, de
ordem processual, em que o Estado brasileiro arguiu a incompetên-
cia da Corte IDH para julgar o tema objeto da denúncia e que foi
julgado improcedente.
Os dois votos dissidentes possuem posição ideológica contrá-
ria à decisão da maioria dos membros daquele Tribunal, os quais
reconhecem a competência da Corte Interamericana para conhecer
e julgar controvérsias que digam respeito aos direitos econômicos,
sociais e culturais nos termos do artigo 26 da Convenção Americana,
que assim dispõe:
Artigo 26. Desenvolvimento progressivo. Os Estados Partes comprometem-se
a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação
internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progres-
sivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômi-
cas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Orga-
nização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires,
na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios
apropriados66.
6. Considerações finais
O presente artigo tinha como objetivo analisar a sentença do
Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e
seus familiares Vs. Brasil (2020) e fazer um estudo da evolução juris-
176
prudencial da Corte IDH sobre a discriminação estrutural interse-
cional, a fim de responder às perguntas sobre se a Corte IDH vem
reconhecendo e adotando a interseccionalidade em suas sentenças e
se a adoção do tema é pacífico ou se há dissenso entre os membros
que compõem a Corte IDH.
A partir da análise da jurisprudência realizada, depreende-se
que a Corte IDH não só vem adotando a teoria da discriminação
interseccional em seus julgados, tendo o Caso I. V. Vs. Bolívia como
o primeiro caso julgado em 2016, seguido de dois outros casos no
ano de 2018 e mais um em junho de 2020, antes do caso da fábrica
de fogos, como vem evoluindo na interpretação sobre a questão, ao
aplicá-lo pela primeira vez em caso relacionado à violação de direito
ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias que garantam a
segurança, a saúde e a higiene no trabalho, bem como pela violação
de trabalho infantil.
Portanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos que
já vinha dando interpretação evolutiva à questão da discriminação
estrutural em relação à situação de pobreza, passou a fazê-lo também
em relação à discriminação interseccional, ao observar no caso con-
creto, a interseção de diversos fatores de discriminação que acabam
por aumentar as desigualdades de determinados grupos vulneráveis.
No Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo An-
tônio de Jesus, o Tribunal reconheceu a existência de vários vetores
de discriminação, como a situação de pobreza, o fato de serem mu-
lheres afrodescendentes (gênero/ raça), algumas estarem grávidas, o
quadro de analfabetismo, a ausência de ações por parte do Estado
brasileiro no combate a tais condições de discriminação/ desigual-
dade, que confluíram para que aquelas trabalhadoras acabassem por
aceitar empregos em condições degradantes e em atividade com alto
risco, colocando em perigo suas vidas e integridade.
Por último, da análise dos dois votos dissidentes, verificou-se
que os dois pontos da sentença (Resolutivo nº 2 e nº 6) em que os
juízes votaram de forma contrária, não dizem respeito à temática
da interseccionalidade, o que permite que a interpretação evolutiva
da Corte Interamericana sobre a discriminação interseccional rela-
177
cionada à violação do direito ao trabalho possa ser utilizada como
precedente paradigmático em casos futuros e semelhantes sobre a
temática.
178
Inteligência artificial:
uma perspectiva feminista
matricêntrica decolonial
1. Introdução
Nunca se falou tanto em robôs, inteligência artificial, reali-
dade virtual, realidade aumentada, algoritmos, internet das coisas,
aprendizado de máquina e diversas tecnologias que, associadas, esta-
belecem uma nova era na interação entre as pessoas e as máquinas.
O impacto, a profundidade e a velocidade de adoção dessas novas
tecnologias de IA conduzem à afirmação de que não vivenciamos
apenas uma quarta Revolução Industrial como também algo muito
mais profundo3, com influência significativa em mudanças de con-
cepção e evolução da sociedade.
Esta nova realidade repercute inevitavelmente no arcabouço
regulatório em discussão no Brasil e ao redor do mundo. O Relator
Especial da ONU para a pobreza extrema e os direitos humanos,
Philip Alston, alertou para o risco de uma distopia digital e enfatiza
1 Defensora Pública Federal desde 2010. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas
Gerais (2010), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais- cum lau-
de (2017) e mestrado em Direito - Columbia University - James Kent Scholar Academic Recognition
(2016). É Doutoranda em Direito Internacional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Integrante do Grupo de Pesquisa Ética, Direitos Humanos e Inteligência Artificial (EDHIA) da Escola
Nacional da Defensoria Pública da União.
2 Doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), onde também obteve o título
de mestrado, com ênfase em cooperação jurídica internacional penal, cujo trabalho de dissertação foi pre-
miado e publicado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Mestra em Criminologia
e Execução Penal pela Universidade Pompeu Fabra com titulação interinstitucional pela Universidade de
Girona e Universidade Autônoma de Barcelona ((Barcelona, Espanha, 2014). Pós-Graduada em Direito
Público, com ênfase em Direito Internacional dos Direitos Humanos, oportunidade em que desenvolveu
o trabalho intitulado “Jurisdição Universal e Intersecções com o Tribunal Penal Internacional”, o qual foi
objeto de publicações e apresentação de trabalhos posteriores. Integrante do Grupo de Pesquisa Ética,
Direitos Humanos e Inteligência Artificial (EDHIA)
3 COLEMAN, Flynn. A Human Algorithm: how artificial intelligence is redefinig who we are. Berkeley,
California: Counterpoint, 2019, p. xiv.
179
a necessidade de se regular IA para assegurar a observância dos direi-
tos humanos e repensar formas benéficas de aplicação da tecnologia
“em que o estado de bem-estar digital pode ser uma força para a rea-
lização de sistemas de proteção social amplamente aprimorados”4.
O presente artigo busca responder a questão acerca de qual a
reflexão necessária para que a perspectiva de mulheres mães do sul
global seja considerada no processo de desenvolvimento e regulação
da IA. Tem como objetivo refletir sobre a regulação da IA no sul
global, especialmente quanto ao impacto para as mulheres mães. A
forma como a IA será regulada repercutirá diretamente na igualdade
de acesso ao trabalho, aos setores produtivo e econômico, bem como
no acesso à justiça das mães do sul global. Parte-se da hipótese de
que a IA pode reproduzir e reforçar mecanismos de poder machistas
e do norte global. Ao final, propõe-se uma perspectiva feminista
matricêntrica decolonial como uma das matrizes necessárias para se
regular a IA. O que se enfatiza e configura a inovação proposta é que
se deve levar em conta a perspectiva matricêntrica, que coloca a con-
dição de ser mãe como epicentro das discussões política e regulatória
na implementação de novas tecnologias, como fator ainda relegado
no meio legislativo, acadêmico e técnico-institucional. A metodolo-
gia utilizada foi a revisão bibliográfica.
Destacamos que outras perspectivas interseccionais também
são necessárias, mas não são objeto do presente artigo, e que não
pretendemos esgotar ou apresentar a perspectiva de mulheres mães
como um bloco monolítico, visto que mães do sul global brancas
têm experiências de vida diversas de mães negras e de mães indíge-
nas, por exemplo.
Além disso, o presente trabalho contribui com as discussões
alinhadas ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sus-
tentável da Nações Unidas (ODS), com ênfase no ODS 5 sobre
igualdade de gênero, partindo do pressuposto de que há déficit rele-
vante da IA no contexto do ODS 5, com a necessidade de pesquisas
4 ALSTON, Philip. Report of the Special rapporteur on extreme poverty and human rights. A/ 74/ 50.
Out. 2019.
180
que discutam o impacto potencial de tecnologias como algoritmos
inteligentes, reconhecimento ou aprendizado reforçado sobre discri-
minação contra mulheres e minorias5.
O artigo inicia com uma reflexão crítica sobre IA, viés e discri-
minação, focada nas mulheres, em que serão abordadas intersecções
entre a chamada inteligência artificial (IA), seguindo o conceito am-
plo adotado pela OCDE e estratégia brasileira para a IA:
A Inteligência Artificial possui diversas ramificações que podem ser usadas de
forma complementar ou dissociadas uma das outras, tais como: aprendiza-
do de máquina (machine learning), robótica, processamento de linguagem
natural, reconhecimento de voz e reconhecimento de imagens. Neste docu-
mento, todos esses termos serão englobados pelo conceito geral “Inteligência
Artificial”. Não existe uma definição consensual de Inteligência Artificial. IA é
melhor entendida como um conjunto de técnicas destinadas a emular alguns
aspectos da cognição de seres vivos usando máquinas. Nessa linha, seguiremos
a definição apresentada pela OCDE (EBIA, 2021).
Na sequência, discute perspectivas de gênero, a existência de
vieses e reprodução de estereótipos que podem resultar na manu-
tenção do status quo opressor, mesmo com os potenciais avanços e
evolução que uma era tecnológica tem o condão de propiciar. Nesse
sentido, defende a importância da perspectiva feminista e decolonial
na discussão e regulação da IA.
Por fim, propõe que o prisma feminista matricêntrico deco-
lonial seja considerado no debate regulatório, o que impacta direta-
mente no acesso à justiça e em iniciativas implementadas no âmbito
do Poder Judiciário.
5 VINUESA, R. ; AZIZPOUR, H. ; LEITE, I. et al. The role of artificial intelligence in achieving the
Sustainable Development Goals. Nature Communications. Vol. 11, n. 233. 2020.
6 UNESCO. Digital technologies: an ally for gender equality? Dez, 2019. Disponível em: < https:/ / en.
unesco. org/ news/ digital-technologies-ally-gender-equality>.
181
destacado no documento I’d blush if I could: closing gender divides in
digital skills through education7, esse desequilíbrio pode ter um im-
pacto em como as desigualdades e estereótipos de gênero são inseri-
dos e até reforçados por tecnologias digitais como a IA. Em pesquisa
realizada por consultoria de recrutamento, em 20218, verificou-se
que 81% das mulheres que trabalham com tecnologia já sofreram
preconceito de gênero.
No contexto da IA e da aprendizagem de máquina, os ris-
cos são potencializados. A ausência de mulheres contribuindo no
desenvolvimento de IA e buscando por igualdade de gênero neste
mercado, são ao mesmo tempo uma das consequências que elas já
sofrem por serem “invisibilizadas”, como também a causa de uma
reprodução exponencial de padrões discriminatórios. A representati-
vidade é essencial e sem times diversos, a IA tende a produzir viés de
gênero por meio dos algoritmos. Mais ainda, a IA decide com base
em dados. Se os dados refletem uma sociedade discriminatória con-
tra mulheres, tal padrão pode ser exponenciado pela IA. É necessário
se assegurar que a IA e a aprendizagem de máquina não reforcem sis-
temas que já impedem que mulheres participem de forma plena9.
Em 2016, a empresa Amazon trabalhava com inteligência ar-
tificial na pré-seleção de currículos de candidatos com base no banco
de dados interno da empresa. Diante da ausência de números ex-
pressivos de funcionárias mulheres, a IA entendeu que mulheres não
se encaixavam nas vagas de trabalho da Amazon e passou a rejeitar os
currículos de mulheres10, ou seja, a base de dados estava enviesada
e tal circunstância viciou o sistema que o reproduziu com impacto
prospectivo.
7 UNESCO. I’d blush if I could: closing gender divides in digital skills through education. 2019. Disponível
em: <https:/ / unesdoc. unesco. org/ ark:/ 48223/ pf0000367416. page=1>
8 ALVES, Ingrid. Pesquisa Mulheres em TI, realizada pela consultoria de recrutamento Yoctoo. Mar, 2021.
Disponível em: <https:/ / www. yoctoo. com/ pt/ blog/ 2021/ 03/ baixe-agora-desafios-das-mulheres-de-
-ti-2021-infografico>
9 KRAFT-BUCHMAN, Caitlin and ARIAN, Renée. We Shape Our Tools, Thereafter Our Tools Sha-
pe Us. Artificial Intelligence, Automated Decision-Making & Gender – Woman at the Table, 2020.
Disponível em: <https:/ / uploads. strikinglycdn. com/ files/ 6a6ee623-6ac6-4c87-a450-7f52ab324d89/
Affirmative%20Action%20for%20Algorithms_paper_final. pdf> Acesso em 11 jul. 2022
10 BRITISH BROADCASTING CORPORATION (BBC). Amazon scrapped ‘sexist AI’ tool. 2018. Dis-
ponível em: <https:/ / www. bbc. com/ news/ technology-45809919>.
182
Pesquisas revelaram que a IA usada para a otimização de anún-
cios do Google e do Facebook automaticamente estava deixando de
exibir ofertas de trabalho de acordo com o gênero identificado pelo
usuário11. Enquanto cuidador de crianças estava sendo mostrado
para mulheres, vagas de tecnologia estavam sendo apresentadas a
homens. Ambos os estudos verificaram que não eram os anunciantes
que escolhiam o gênero do grupo alvo para receber os anúncios, mas
a própria inteligência artificial de ambas as companhias que, a partir
dos estereótipos de gênero dos desenvolvedores e das bases de dados,
entendia que determinado gênero não era o mais adequado para
determinado anúncio de emprego (LYONS, 2021).
Em circunstâncias que poderiam parecer inofensivas, como as
do Dall-E Mini, popular gerador de imagem automático desenvol-
vido pela Open AI, observou-se que as imagens geradas são sexistas
e racistas, a ferramenta de IA não teve os seus vieses algorítmicos
corrigidos12. Outros exemplos incluem questionar as razões de as-
sistentes virtuais e com fisionomia humana tenham características
femininas, como Siri, Alexa e Sophia. Nesses casos, especialistas aler-
tam para os perigos de feminizar e até humanizar robôs. As empresas
argumentam que recorrem a vozes e corpos femininos para serem
aceitos pela sociedade13.
Por outro lado, especialistas em ética de dados incorporados
em equipes de design e imbuídos de poder podem avaliar ques-
tões-chave desde o início, incluindo a mais básica: “Essa IA deveria
existir?” Timnit Gebru, fundadora do instituto DAIR (Distributed
Artificial Intelligence Research Institute) para o desenvolvimento de
IA norteado para o interesse público, acrescenta que, embora juízes
e juízas humanos também sejam tendenciosos (como seres humanos
que são), um sistema de IA é uma caixa preta – mesmo seus criado-
183
res às vezes não sabem dizer como chegou à decisão. “Você não tem
como apelar com um algoritmo. ” E um sistema de IA tem a capaci-
dade de escala e de alcance que o torna potencialmente muito mais
prejudicial do que uma decisão humana tomada individualmente,
cuja capacidade de causar danos é tipicamente mais limitada14.
Em contraponto a tal abordagem e tendo em mente a pers-
pectiva de que as tecnologias digitais têm o potencial de também
trazer avanços importantes no combate à discriminação e apoiar a
igualdade de gênero, há pesquisadores15 que defendem que enquan-
to os algoritmos podem e devem ser auditáveis, as reais intenções
humanas permanecem inescrutáveis. Assim, o uso de algoritmos
ofereceria muito mais clareza e transparência sobre os ingredientes
e motivações das decisões e, portanto, uma maior oportunidade de
descobrir a discriminação, uma vez que a decisão humana sempre
tem um viés ideológico inafastável e, muitas vezes, inconsciente.
Para tanto, princípios de transparência e auditabilidade, mediante
escolha não discriminatória de dados e objetivo algorítmico razoá-
vel são essenciais, não apenas para ajudar a entender e selecionar as
compensações que as pessoas utilizam com os algoritmos.
Para os autores16, o viés algorítmico pode ser decomposto
completamente em três componentes: enviesamento na escolha das
variáveis de entrada, enviesamento na escolha da medida de resul-
tado e viés na construção do treinamento, o que via regulamenta-
ção pode ser combatido e eliminado. Logo, se bem manejados, são
instrumentos de promoção da equidade em larga escala e diferentes
contextos, em especial, quando utilizados para triagem e contratação
de pessoas.
De qualquer modo, importante destacar que seria ingênuo
- até mesmo perigoso - confundir “algorítmico” com “objetivo” ou
pensar que o uso de algoritmos necessariamente eliminará a discri-
14 SAMUEL, Sigal. VOX. Why it’s so damn hard to make AI fair and unbiased. 2022. Disponível em:
<https:/ / www. vox. com/ future-perfect/ 22916602/ ai-bias-fairness-tradeoffs-artificial-intelligence>
15 KLEINBERG, Jon; LUDWIG, Jens; MULLAINATHANY, Sendhil; SUNSTEIN, Cass R. Discrimina-
tion In The Age of algorithms. Fev. 2019. Disponível em: < http:/ / dx. doi. org/ 10. 2139/ ssrn. 3329669>.
16 KLEINBERG, Jon; LUDWIG, Jens; MULLAINATHANY, Sendhil; SUNSTEIN, Cass R. Discrimina-
tion In The Age of algorithms. Fev. 2019. Disponível em: < http:/ / dx. doi. org/ 10. 2139/ ssrn. 3329669>.
184
minação contra grupos protegidos. A confiança nos dados não for-
nece aos algoritmos uma presunção da verdade, pois os dados que
servem de input podem ser tendenciosos, possivelmente por estarem
enraizados em discriminação do passado (por exemplo, onde regis-
tros de prisões anteriores são usados para prever a probabilidade de
crimes futuros). Também seria ingênuo imaginar que a especifici-
dade do código algorítmico não deixa espaço para ambiguidade em
outros locais.
Em certa medida, foi o que o Relatório do Centro de Pesqui-
sa para Internet e Sociedade da Universidade de Harvard17 tentou
mapear, ao verificar que os impactos positivos e negativos nos di-
reitos humanos causados pela IA não são distribuídos igualmente
pela sociedade. Alguns indivíduos e grupos experimentam impactos
positivos dos mesmos aplicativos que impactam adversamente ou-
tros detentores de direitos. Em alguns casos, um aplicativo específico
de IA pode afetar positivamente o gozo de um determinado direito
humano para uma determinada classe de indivíduos, enquanto afeta
adversamente o disfrute do mesmo direito humano por outros. Por
exemplo, o uso de sistemas automatizados de pontuação de riscos
no sistema de justiça criminal pode reduzir o número de indivíduos
do grupo majoritário que são encarcerados desnecessariamente, ao
mesmo tempo em que falhas no sistema servem para aumentar a
taxa de encarceramentos equivocados para aqueles pertencentes a
grupos marginalizados18.
Quanto aos dados de alimentação, um dos riscos desse pro-
cesso é o da discriminação estatística, em que o indivíduo é julgado
a partir das características do grupo a que pertence, sem qualquer
recurso para que possa haver alguma individualização.
Além disso, o mesmo estudo aborda a questão de dados não
informados para a decisão algorítmica, mas que possuem impacto
17 HILLIGOSS, Hannah; RASO, Filippo et al. Artificial Intelligence & Human Rights: Opportunities &
Risks Berkman Klein Center Research Publication. N. 6, 2018. Disponível em: <http:/ / dx. doi. org/ 10.
2139/ ssrn. 3259344>.
18 ANGWIN, Julia; LARSON, Jeff Larson; MATTU, Surya et al. Machine Bias, ProPublica, 2016. Dis-
ponível em: <https:/ / www. propublica. org/ article/ machine-bias-risk-assessments-in-criminal-senten-
cing>
185
na realidade, como questões sociais, grupos minoritários, necessida-
de de representação adequada, o que podemos também desdobrar
nas questões de acesso à justiça como dado de alimentação de sis-
temas algorítmicos a serem utilizados no judiciário, por exemplo,
tema que será abordado na sequência.
Além disso, a reflexão sobre vieses da IA é essencial ao se pen-
sar em regulamentação da IA. O que pode e o que não pode ser de-
cidido por algoritmos em vista do risco de vieses? Como monitorar
e endereçar vieses?
19 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas (ONU). Relatório da Comissão de Banda Larga. 2017. Disponí-
vel em: <https:/ / brasil. un. org/ pt-br/ 76024-onu-5-bilhoes-de-pessoas-ainda-nao-tem-acesso-banda-
-larga-movel#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20da%20Banda%20Larga%20para%20o%20Desen-
volvimento,mulheres%20enfrentam%20no%20acesso%20e%20uso%20da%20Internet. >. Acesso em:
07 jul. 2022.
ONU. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher.
186
As competências digitais podem ajudar a transformar a nossa so-
ciedade para melhor, “mas apenas se não forem reservadas a poucos:
mulheres e homens de diferentes origens e experiências devem poder se
beneficiar delas”, referiu a Diretora da UNESCO para a Igualdade de
Gênero, Saniye Gülser Corat20. Atualmente, a lacuna de habilidades
digitais é maior para mulheres mais velhas, menos instruídas e pobres, e
aquelas que vêm de áreas rurais e países em desenvolvimento. ”21.
Nesse contexto, para o combate à violência de gênero, por
exemplo, o desenvolvimento de chatbots que facilitam processos ad-
ministrativos para denunciar e prestar assistência em tempo real às
vítimas configuram forma bastante prática de empoderamento fe-
minino22.
Como forma de implementação eficaz de perspectivas femi-
nistas na regulação da IA, ao tempo em que se combate à discrimina-
ção contra as mulheres, com a possibilidade de um real alinhamen-
to para o cumprimento do ODS 5 da ONU sobre a igualdade de
gênero, deve ser incentivada a incorporação aos mecanismos de IA
da Recomendação Geral n. 33 sobre o acesso das mulheres à justiça
e a Recomendação Geral n. 35 sobre violência de gênero contra as
mulheres, expedidas pelo Comitê sobre a Eliminação da Discrimi-
nação contra as Mulheres (CEDAW), assim como a Recomendação
n. 128/ 2022 do CNJ, para a adoção do “Protocolo para Julgamento
com Perspectiva de Gênero”, no âmbito do Poder Judiciário brasilei-
ro e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência Contra a Mulher, conhecida como “Convenção de Belém
do Pará” (Decreto nº 1. 973, de 1º de agosto de 1996).
Conforme o disposto no item 8 da Recomendação Geral n.
33 da CEDAW23, a discriminação contra as mulheres, baseada em
20 UNESCO. Digital technologies: an ally for gender equality? Dez, 2019. Disponível em: < https:/ / en.
unesco. org/ news/ digital-technologies-ally-gender-equality>
21 UNESCO. Digital technologies: an ally for gender equality? Dez, 2019. Disponível em: < https:/ / en.
unesco. org/ news/ digital-technologies-ally-gender-equality>
22 ALCARAZO, Lucía Z. ; GÓMEZ, Ariana G. EL PAÍS. Una inteligencia artificial feminista es posible (y
necesaria). 2021. Disponível em: <https:/ / elpais. com/ tecnologia/ 2021-07-06/ una-inteligencia-artifi-
cial-feminista-es-posible-y-necesaria. html>.
23 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas (ONU). Recomendação Geral n. 33 sobre o acesso das mulheres à
justiça do Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. CEDAW/ C/
187
estereótipos de gênero, estigmas, normas culturais nocivas e patriar-
cais, e a violência baseada no gênero, que particularmente afeta as
mulheres, têm um impacto adverso sobre a capacidade das mulheres
para obter acesso à justiça em base de igualdade com os homens.
Ademais, como referido no documento, a discriminação contra as
mulheres se vê agravada por fatores de intersecção que afetam algu-
mas mulheres em graus ou modos diferentes daqueles que afetam os
homens e outras mulheres. Os elementos para a discriminação inter-
seccional ou composta podem incluir diversas categorias elencadas,
dentre as quais se destaca o estado civil e/ ou maternal, o qual leva
em conta a proposta do presente trabalho de trazer a perspectiva ma-
tricêntrica para o debate, que será exposta no item seguinte. Todos
os fatores de intersecção elencados no item 8 do documento tornam
mais difícil para mulheres pertencentes a esses grupos obter o acesso
à justiça e são fatores de opressão em potencial.
Como os algoritmos são sistemas de regras com base nos quais
a IA toma suas decisões, é necessário introduzir regras ou medidas
que evitem a discriminação de gênero, Ao mesmo tempo, a perspec-
tiva de gênero deve estar presente no desenho da IA24.
Já contamos com arcabouço protetivo contra referidas práti-
cas discriminatórias, de acordo com o disposto na Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mu-
lher25, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979,
ratificada sem reservas pelo Brasil, em junho de 1994, em especial o
previsto no art. 5º:
Os Estados-Partes tomarão todas as medidas apropriadas para:
a) modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com
vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias, e de
qualquer outra índole que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superiori-
dade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres;
GC/ 33. Ago, 2015. Disponível em: <https:/ / www. tjsp. jus. br/ Download/ Pdf/ Comesp/ Convencoes/
CedawRecomendacaoGeral33. pdf Acesso em 08/ 05/ 2021>.
24 DECLARAÇÃO de Toronto - Protecting the right to equality and non-discrimination in machine lear-
ning systems, 2018. Disponível em: <https:/ / www. torontodeclaration. org/ declaration-text/ english/ >.
25 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas (ONU). Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher. CEDAW, 1979. Disponível em: http:/ / www. onumulheres. org. br/
wp-content/ uploads/ 2013/ 03/ convencao_cedaw1. pdf. Acesso em: 05 jul. 2022.
188
b) garantir que a educação familiar inclua uma compreensão adequada da ma-
ternidade como função social e o reconhecimento da responsabilidade comum
de homens e mulheres no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento de
seus filhos, entendendo-se que o interesse dos filhos constituirá a consideração
primordial em todos os casos.
Desse modo, um dos desafios na regulação da IA, especial-
mente para o setor público, é garantir que elas não prejudiquem a
vida das mulheres e, idealmente, que contribuam para a igualdade
de gênero26, em respeito e observância a todas as conquistas histó-
ricas de direitos previstas nos documentos internacionais. Em suma,
apenas uma IA com uma perspectiva de gênero permitirá que esse
novo grupo de tecnologias emergentes nos ajude a alcançar níveis
mais elevados de justiça e igualdade.
Como tem havido uma exclusão sistemática das mulheres na elaboração de
padrões, na coleta de dados e na definição das antigas regras do sistema, e uma
exclusão contínua das mulheres na definição das novas regras (...). É necessário
um pensamento estratégico e inovador para alcançar a igualdade de gênero e
fortalecer a democracia nos novos sistemas que criamos27
Só uma IA feminista tem um lugar em uma sociedade demo-
crática28,29. Assim, ao se regular a IA deve-se considerar a perspec-
tiva das mulheres, combatendo qualquer forma de discriminação, e,
principalmente, assegurando-se e promovendo-se a efetiva partici-
pação nos processos de desenvolvimento e utilização da IA.
26 ALCARAZO, Lucía Z. ; GÓMEZ, Ariana G. EL PAÍS. Una inteligencia artificial feminista es posible (y
necesaria). 2021. Disponível em: <https:/ / elpais. com/ tecnologia/ 2021-07-06/ una-inteligencia-artifi-
cial-feminista-es-posible-y-necesaria. html>.
27 KRAFT-BUCHMAN, Caitlin and ARIAN, Renée. We Shape Our Tools, Thereafter Our Tools Sha-
pe Us. Artificial Intelligence, Automated Decision-Making & Gender – Woman at the Table, 2020.
Disponível em: <https:/ / uploads. strikinglycdn. com/ files/ 6a6ee623-6ac6-4c87-a450-7f52ab324d89/
Affirmative%20Action%20for%20Algorithms_paper_final. pdf>
28 ALCARAZO, Lucía Z. ; GÓMEZ, Ariana G. EL PAÍS. Una inteligencia artificial feminista es posible (y
necesaria). 2021. Disponível em: <https:/ / elpais. com/ tecnologia/ 2021-07-06/ una-inteligencia-artifi-
cial-feminista-es-posible-y-necesaria. html>.
29 O’NEIL, Cathy. Armas de Destrucción Matemática. Cómo el Big Data aumenta la desigualdad y ame-
naza la democracia. Madrid: Capitán Swing, 2017.
189
trinários Brasileiros. No entanto, é necessário refletir a partir de uma
perspectiva decolonial sobre os mecanismos de poder que envolvem
o desenvolvimento e utilização e regulação da IA para que o Brasil
possa optar por uma regulação que leve em consideração os valores
e dinâmicas do país, evitando, assim, que tal processo legislativo re-
produza mecanismos de dominação do norte global que silenciam,
ainda que como efeito colateral, o sul global.
A China foi o primeiro país a regular por medida legislativa a
IA e o regulamento entrou em vigor 1º de março de 2022. A medida
exige que as empresas forneçam algoritmos de IA explicáveis, bem
como que exponham seus objetivos de forma transparente, como
recomendar produtos ou serviços. A legislação chinesa veda que em-
presas que utilizem algoritmos de IA ofereçam preços diferentes para
pessoas diferentes com base em dados pessoais coletados. A lei é cri-
ticada por apresentar desafios técnicos para implementação30 . No
entanto, em comparação com as diretrizes europeias, pouco se ouve
falar sobre legislação chinesa no debate acadêmico e parlamentar
brasileiro.
À exceção da legislação chinesa, as iniciativas do sul global
para se regulamentar IA ainda são nascentes. Destaca-se que, na De-
claração de Sharm el Sheikh de 201931, os Estados membros da
União dos Estados Africanos concordaram em estabelecer um grupo
de trabalho em IA em colaboração com instituições africanas com
três objetivos: desenvolver uma posição africana comum sobre a IA;
fomentar a capacitação na África e; estabelecer um think tank de IA
para avaliar e recomendar projetos para colaborar online da Agenda
2063, denominada a África que queremos, e dos ODS. A professora
Sarah Anyang Agbor, Comissariada da União dos Estados Africanos
ressaltou que “o desenvolvimento e o uso da IA devem ser apoiados
por um ambiente político favorável com instrumentos e sistemas
30 HOLLAND, Makenzie. China’s AI regulations face technical challenge. Techtarget. 17 mar. 2022. Dis-
ponível em: <https:/ / www. techtarget. com/ searchenterpriseai/ news/ 252514781/ Chinas-AI-regula-
tions-face-technical-challenge>.
31 UNIÃO Africana. Declaração de Sharm el Sheikh. 2019. Disponível em: <https:/ / au. int/ en/ decisions/
2019-sharm-el-sheikh-declaration-stc-cict-3>.
190
regulatórios apropriados, para nos permitir colher seus benefícios de
maneira segura, equitativa e sustentável”32.
Destaca-se ainda que o presidente da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, Ricardo C. Pérez Manrique, na abertura do ano
judicial de 2022 abordou os riscos da IA para os direitos humanos,
tais como a privacidade e liberdade de expressão, bem como men-
cionou o risco do colonialismo de dados:
A inteligência artificial (...) pode resultar na perpetração de infrações ou vio-
lações de direitos humanos. O uso de metadados e blockchains, entre outros
recursos de tecnologia da informação, compromete o direito à privacidade.
Há quem diga que estamos entrando em uma nova era: a do colonialismo de
dados (Yuval Noah Harari). Nesse sentido, a internet apresenta desafios para a
governança global33.
32 AGBOR, Sarah Anyang. Remarks by H. E. Professor Sarah Anyang Agbor, AUC Commissioner HRST
at the TICAD VII session on Artificial Intelligence in Disaster Risk Reduction and Prevention. 2019.
Disponível em: < https:/ / au. int/ en/ speeches/ 20190810/ remarks-he-professor-sarah-anyang-agbor-
-auc-commissioner-hrst-ticad-vii-session>.
33 MANRIQUE, Ricardo C. Pérez. Message from the President of the Inter American Court of Human
Rights Judge, Ricardo C. Pérez Manrique in the Opening of the 2022 Inter-American Judicial Year. 2022.
Disponível em: < https:/ / www. corteidh. or. cr/ mensaje_presidencia. cfm?lang=en>.
34 HUY, Yuk. Tecnodiversidade. Trad. DO AMARAL, Humberto. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
35 SHAKIR, Mohamed, S. , MARIE-THERESE Png, MT. & William, Isaac. Decolonial AI: Decolonial
Theory as Sociotechnical Foresight in Artificial Intelligence. Philos. Technol. Vol 33, Ed 4. 659–684
(2020)
191
O colonialismo digital consiste nas implicações do poder
colonial sobre diversos povos, que pode se manifestar por meio da
crença, linguagem cultura e regras, por exemplo, e que assiste aos
interesses e objetivos de países do norte global36. Aprofundando-se
no debate, destaca-se que os times que desenvolvem IA e as empresas
que lideram o setor tecnológico estão sediadas em poucos países,
principalmente do norte global. Muitos dos bancos de dados tam-
bém estão lá sediados. Assim, a realidade atual é que tais sistemas
tendem a ser desenvolvidos baseando-se em paradigmas, valores e
padrões de perfilização prevalentes do norte global e podem ser usa-
dos para explorar o resto do mundo. A concentração de dados fora
de um país pode vulnerabilizá-lo a mecanismos de colonialismo de
dados37. Assim, a IA corre o risco de ser usada para manter a subor-
dinação e a marginalização de países historicamente periféricos.
O colonialismo de dados se reflete, por exemplo, nos sistemas
digitais de bem-estar social usados por vários governos. Nesta seara,
frequentemente não se pode falar em consentimento, já que diver-
sas bases de dados que são utilizadas para alimentar sistemas que
operam por IA e que decidem de forma autônoma sobre quem tem
direito a determinado benefício exigem que se forneça dados para
aplicar para benefícios sociais ou ter acesso a direitos38. Se o pro-
cessamento de dados é feito com fundamento no interesse público,
é necessário refletir e desvelar a quem interessa o processamento de
dados por IA que automatiza desigualdades históricas39.
A perspectiva decolonial, na linha do que propõe Yuk Huy,
necessita de uma tecnodiversidade que requer que se rearticule a
36 ÁVILA, Renata. Against Digital Colonialism. Autonomy, 2020. Disponível em: <https:/ / autonomy.
work/ wp-content/ uploads/ 2020/ 09/ Avila. pdf. >.
37 BL Mumbai Bureau. Info-tech ‘Over concentration of data increases the risk of digital dictatorship and
data colonialism’ Feb. 2016. Updated On: Feb, 2022 Disponível em: <https:/ / www. thehindubusiness-
line. com/ info-tech/ over-concentration-of-data-increases-the-risk-of-digital-dictatorship-and-data-colo-
nialism/ article65056341. ece >.
38 VARON, Joana; PEÑA, Paz. Artificial intelligence and consent: A feminist anti-colonial critique, Inter-
net Policy Review, ISSN 2197-6775, Alexander von Humboldt Institute for Internet and Society, Berlin,
Vol. 10, Iss. 4, pp. 1-25. 2021.
39 VARON, Joana; PEÑA, Paz. Artificial intelligence and consent: A feminist anti-colonial critique, Inter-
net Policy Review, ISSN 2197-6775, Alexander von Humboldt Institute for Internet and Society, Berlin,
Vol. 10, Iss. 4, pp. 1-25. 2021.
192
tecnologia “em vez de entendê-la como um universo antropológi-
co, precisamos redescobrir uma multiplicidade de cosmotécnicas e
reconstruir suas histórias para projetarmos no Antropoceno as pos-
sibilidades que nelas estão adormecidas”40.
É necessário construir uma consciência crítica41 e coletiva
em que os destinatários da IA se entendam como sujeitos que com-
preendam e questionem processos de subordinação na criação e de-
senvolvimento da IA. Tal consciência é um alicerce importante para
se fomentar uma perspectiva brasileira e plural da IA que resista a
dinâmicas de poder prevalentes. Mais do que isto, é essencial que a
tecnodiversidade reflita no debate regulatório brasileiro, o que im-
pactará em diversas searas, incluindo o acesso à justiça especialmente
dos mais vulneráveis.
40 HUY, Yuk. Tecnodiversidade. Trad. DO AMARAL, Humberto. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
41 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa. 49. ed. Rio de janeiro:
Paz e Terra, 2014.
42 O’REILLY, Andrea. Matricentric feminism: A feminism for mothers. In The Routledge Companion to
Motherhood, pp. 51-60. Routledge, 2019.
193
Não é possível compreender a perspectiva das mães de forma
holística sem levar em conta “como tornar-se e ser mãe molda o
senso de si de uma mulher e como ela vê e vive no mundo”43. A ma-
ternidade precisa ser diferenciada do maternar. A maternidade não é
um dado mas algo construído historicamente, definido e controlado
por homens e é fonte de opressão. O maternar, por outro lado, não
é uma identidade, mas uma prática definida por mulheres que re-
flete as experiências e vivências individuais de cada mãe e pode ser
fonte de empoderamento. Entende que o maternar é relevante mas
não foca no argumento maternalista44. A experiência do maternar
libertada da instituição da maternidade pode ser um locus de empo-
deramento e mudança social45.
Assim, a maternidade não é inexoravelmente opressora, e o que
se propõe é que desconstrua paulatinamente as opressões por meio de
processos participativos e empoderadores de mães. Na regulação da
IA isto significa a participação e consideração da perspectiva das mães
para que o uso de IA não implique em escalonamento de uma reali-
dade opressora, mas sim seja fonte de desconstrução da discriminação.
Como já mencionado, o disposto no item 8 da Recomenda-
ção Geral n. 33 da CEDAW enfatiza que “a discriminação contra as
mulheres se vê agravada por fatores de intersecção que afetam algu-
mas mulheres em graus ou modos diferentes daqueles que afetam os
homens e outras mulheres. ” Dentre os elementos para a discrimina-
ção interseccional ou composta que obstaculizam o acesso à justiça
cita o estado maternal46
Este artigo defende que a crítica feminista e decolonial, des-
critas nos tópicos anteriores, devem ser conjugadas com a perspec-
43 O’REILLY, Andrea. Matricentric feminism: A feminism for mothers. In The Routledge Companion to
Motherhood, pp. 51-60. Routledge, 2019.
44 O’REILLY, Andrea. Matricentric feminism: A feminism for mothers. In The Routledge Companion to
Motherhood, pp. 51-60. Routledge, 2019.
45 O’REILLY, Andrea. Matricentric feminism: A feminism for mothers. In The Routledge Companion to
Motherhood, pp. 51-60. Routledge, 2019.
46 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas (ONU). Recomendação Geral n. 33 sobre o acesso das mulheres à
justiça do Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. CEDAW/ C/
GC/ 33. Ago, 2015. Disponível em: <https:/ / www. tjsp. jus. br/ Download/ Pdf/ Comesp/ Convencoes/
CedawRecomendacaoGeral33. pdf Acesso em 08/ 05/ 2021>.
194
tiva matricêntrica, observado que as mulheres do sul global, como
as Brasileiras, enfrentam realidade distinta das mulheres dos demais
países. As mães do sul global, como referido, estão sujeitas a uma
tripla camada de discriminação intersecional. Assim, propõe-se um
feminismo matricêntrico decolonial na análise e regulação da IA, em
que seja visibilizada e viabilizada a perspectiva de mulheres mães do
sul global sobre a IA.
Na prática, isso significa entender que mecanismos de po-
der têm extrema relevância em quem tem a possibilidade de dizer
não. No campo da IA, a noção de consentimento individualista,
por exemplo, aplicada como fator de proteção contra o extrativismo
ilegal e ilegítimo de dados, conforme base de tratamento de dados
prevista no art. 7º, I, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)
e art. 6º, 1, a, do Regulamento Geral de Proteção de Dados Euro-
peu (RGPD), em algumas situações não pode ser, de fato, exercido
por mulheres mães, o que gera impactos práticos, éticos e políticos.
É necessário refletir que sob uma perspectiva decolonial feminista
como no contexto do relações não equânimes de poder, a única op-
ção para pessoas em situação de vulnerabilidade pode ser consentir,
não é possível dizer não47.
Ao se regular a IA revela-se necessário refletir sob a perspectiva
de mães do sul global sobre o consentimento em programas de IA
para que esta não seja instrumento que reforça a dominação e a vigi-
lância. A alternativa parece ser empoderar movimentos sociais para
que, em situação de maior impacto para as mães do sul global, haja
a necessidade de consensos coletivos.
Como concluem Varon e Penã:
Para ser coerente com o pensamento feminista anticolonial, o consentimento
precisa ser reposicionado no debate sobre proteção de dados para ser conside-
rado uma questão coletiva. Apenas coletivamente, pode ser possível corrigir
parcialmente os desequilíbrios de poder e realmente questionar o caminho de
alguns desenvolvimentos tecnológicos48.
47 VARON, Joana; PEÑA, Paz. Artificial intelligence and consent: A feminist anti-colonial critique, Inter-
net Policy Review, ISSN 2197-6775, Alexander von Humboldt Institute for Internet and Society, Berlin,
Vol. 10, Iss. 4, pp. 1-25. 2021.
48 VARON, Joana; PEÑA, Paz. Artificial intelligence and consent: A feminist anti-colonial critique, Inter-
195
Outro ponto de relevo são ações afirmativas para, em con-
creto, fomentar a participação e incluir a perspectiva feminista ma-
tricêntrica decolonial, uma vez que os vieses discriminatórios que
impactam mães do sul global, como já referido, podem ser triplos:
discrimina-se por ser do sul global, mulher e mãe.
Em suma, mulheres mães tendem a ter seus corpos e funções
sociais estereotipados sendo necessário que estado e sociedade civil
se mobilizem para viabilizar que que coletivamente mulheres mães
do sul global questionem estes mecanismos de poder para que na
seara da IA não se reforce e incremente impactos discriminatórios.
Cabe ao Judiciário na ausência de medidas anteriores, atuar em prol
da justiça de gênero matricêntrica, concretizando a Recomendação
n. 128, de 15 de fevereiro de 2022 do CNJ, para a adoção do “Pro-
tocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, no âmbito do
Poder Judiciário brasileiro.
4. Considerações finais
A inteligência artificial está cada vez mais presente em diversas
esferas de nossas vidas e progressivamente leva a uma mudança de
paradigma nas relações sociais. Atividades outrora apenas desenvol-
vidas por seres humanos são realizadas por sistemas de IA. Se por um
lado a IA é promissora e pode ocasionar progresso em diversos seto-
res, por outro lado, não é neutra e apresenta riscos de vieses signifi-
cativos, especialmente para populações vulneráveis e historicamente
marginalizadas. Neste trabalho focou-se numa reflexão sobre a ne-
cessidade de inclusão da perspectiva de mulheres mães do sul global.
Na primeira seção do artigo, ressaltou-se que a IA apresen-
ta riscos de viés e discriminação49, especialmente para populações
vulneráveis e historicamente marginalizadas. Na sequência, com es-
pecial atenção à sociedade Brasileira que é marcada pelo racismo
estrutural, violência de gênero e discriminação contra populações
net Policy Review, ISSN 2197-6775, Alexander von Humboldt Institute for Internet and Society, Berlin,
Vol. 10, Iss. 4, pp. 1-25. 2021.
49 BUOLAMWINI, Joy; GEBRU, Timnit. Gender Shades: Intersectional Accuracy Disparities in Com-
mercial Gender Classification (mlr. press). Proceedings of Machine Learning Research, vol. 81, 2018.
196
tradicionais e LGTBIQ+, reconhecidamente uma sociedade patriar-
cal, defendeu-se importância enfatizar a necessidade de englobar a
perspectiva feminista para o desenvolvimento e a utilização de IA, o
que também deve refletir em instrumentos regulatórios.
Observou-se que diversos exemplos de modelos europeus são
recorrentemente citados nos debates legislativos e doutrinários na-
cionais. No entanto é necessário refletir a partir de uma perspectiva
decolonial sobre os mecanismos de poder que envolvem o desenvol-
vimento e utilização da IA, de modo que o Brasil possa optar por
uma regulamentação que leve em consideração os valores e dinâmi-
cas do país, evitando, assim, que o processo legislativo seja mais um
mecanismo de poder pautado no norte global a silenciar e abafar as
peculiaridades inerentes ao processo histórico do sul global.
A partir da exposição da necessidade de um debate feminista
e decolonial, este artigo defende que tal perspectiva decolonial deve
ser conjugada com a perspectiva feminista, visto que mulheres Bra-
sileiras enfrentam realidade distinta das mulheres dos demais países.
Mais do que isso, propõe que uma das perspectivas que deve guiar
o debate de regulação da IA é a perspectiva feminista matricêntrica
decolonial, que viabilize a inclusão de pontos de vista das mulheres
mães do sul global sobre a IA. Assim, este artigo coloca em foco
uma perspectiva que atualmente é invisibilizada no debate feminista
e que muito pode contribuir para um processo democrático e para
se combater vieses e riscos algorítimos. A forma como se regula a
IA terá impacto direto em diversas searas das vidas das mães do sul
global, incluindo o acesso à justiça.
A diversidade é um dos principais princípios que apoiam a
inovação e a resiliência social. A resiliência social também é promovi-
da pela descentralização, ou seja, pela implementação de tecnologias
de IA adaptadas ao contexto cultural e às necessidades particulares
das diferentes regiões. Por essas razões, o presente trabalho apresenta
a perspectiva feminista decocolonial e matricêntrica em cotejo com
a IA, enfatizando a necessidade de se incluir as mulheres mães no
debate legislativo brasileiro, o que é essencial para viabilizar a defesa
dos seus direitos, em prol de um horizonte digital humano e igua-
197
litário. Para romper com a lógica colonial e fomentar a democracia,
afigura-se essencial que se saia do ciclo vicioso de exclusão sistemá-
tica de mulheres mães do sul global nos processos reguladores, ob-
tenção de dados e elaboração de padrões. Necessário ainda fortalecer
o empoderamento coletivo, pois o consentimento individual muitas
vezes é inviabilizado pela IA. O fomento à diversidade de gênero
nas equipes que desenvolvem IA é um pilar para que a perspectiva
feminista matricêntrica decolonial seja considerada.
Sugestões iniciais e concretas para a implementação de tal
perspectiva perpassam a implementação de ações afirmativas e in-
cluem a exigência de diversidade de times que desenvolvem IA,
inclusive no status das posições que ocupam. Tal exigência precisa
estar presente tanto no setor público quanto na contratação pública
de empresas privadas e em atividades privadas, requerendo-se que
empresas e governos expeçam relatórios sobre igualdade de gênero
nos times que desenvolvem IA50, incluindo mães.
Os mecanismos de transparência e auditabilidade dos impac-
tos discriminatórios da IA em mulheres mães do sul global poderiam
ser incluídos nos relatórios de impacto à proteção de dados pessoais,
tal como previsto no art. 5º, inciso XVII, da LGPD, mediante a
implementação de mecanismos de avaliação e correção dos vieses de
bases de dados e avaliação específica do impacto da IA no acesso à
justiça de mulheres mães do sul global.
É essencial que o Judiciário considere a perspectiva feminista
matricêntrica decolonial ao implementar mecanismos de IA, com
a mensuração e endereçamento de possíveis práticas discriminató-
rias. É missão do Judiciário, por meio do processo decisório, corri-
gir falhas e promover a ampla participação democrática, de modo a
desconstruir um débito histórico de invisibilidade e de disparidade.
50 KRAFT-BUCHMAN, Caitlin and ARIAN, Renée. We Shape Our Tools, Thereafter Our Tools Sha-
pe Us. Artificial Intelligence, Automated Decision-Making & Gender – Woman at the Table, 2020.
Disponível em: <https:/ / uploads. strikinglycdn. com/ files/ 6a6ee623-6ac6-4c87-a450-7f52ab324d89/
Affirmative%20Action%20for%20Algorithms_paper_final. pdf>
198
Moderação de conteúdo no
marco civil da internet:
breves considerações à luz
da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do
Estado do Amazonas
Andressa de Bittencourt Siqueira1
1. Considerações introdutórias
É evidente o protagonismo que as plataformas digitais desem-
penham na sociedade contemporânea, sobretudo no que tange à po-
pulação brasileira, cada vez mais conectada à Internet. Uma série de
consequências jurídicas derivam das relações traçadas digitalmente,
gerando implicações sociais, econômicas e culturais, especialmente
quanto ao controle que as empresas gerenciadoras de tais platafor-
mas – os assim chamados provedores de aplicação, de acordo com
a nomenclatura adotada na Lei n. 12. 965/ 2014 (doravante Marco
Civil da Internet ou MCI) – têm sobre conteúdos publicados pelos
usuários.
Sendo assim, visando ao desenvolvimento de propostas que
desencadeiam impactos positivos na prestação jurisdicional, emerge
o seguinte problema de pesquisa: de que maneira a jurisprudência
do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (doravante TJ-AM)
pode contribuir para o aperfeiçoamento da atuação jurisdicional
quanto à incidência do Marco Civil da Internet em análise de casos
vinculados a procedimentos de moderação de conteúdo realizados
199
por provedores de aplicações? Traça-se a hipótese de pesquisa, por
sua vez, da seguinte maneira: A jurisprudência do TJ-AM, conjuga-
da com a literatura especializada e com os avanços legislativos iden-
tificados até o momento, permite o acompanhamento evolutivo da
aplicação do Marco Civil da Internet a fim de que sejam desenvol-
vidos aprimoramentos na aplicação da referida legislação em sede
de moderação de conteúdo realizada por provedores de aplicações.
Diante desse quadro, e com a finalidade de verificar a hipótese
formulada, a presente pesquisa utiliza o método hipotético-indu-
tivo de abordagem, tendo em vista que não apenas a aplicação do
Marco Civil da Internet é examinada, como também são fornecidos
resultados e propostas para a solução do problema indicado, com
base em amostragem jurisprudencial. Ademais, adota-se o método
sistemático-teleológico de interpretação, uma vez que se considera o
ordenamento jurídico-constitucional brasileiro como um conjunto
organizado de modo sistêmico e hierarquizado para a satisfação de
determinados fins, a exemplo da prestação jurisdicional adequada e
adaptada ao desenvolvimento tecnológico e inovativo.
Quanto a técnicas de pesquisa, para além da análise crítica da
doutrina sobre o tema e da legislação brasileira pertinente, realiza-se
também a coleta de dados jurisprudenciais na base de dados de-
senvolvida pela Softplan em parceria com o TJ-AM, permitindo-se,
assim, uma análise jurimétrica sobre a aplicação do Marco Civil da
Internet em casos que envolvem moderação de conteúdo por pro-
vedores de aplicações. A análise jurisprudencial versa sobre os resul-
tados obtidos a partir da consulta completa no referido Tribunal,
incluindo-se acórdãos do Segundo Grau e de Colégios Recursais que
contenham a expressão “marco civil da internet” em qualquer tre-
cho dos documentos indexados na base de dados. Foram analisados
acórdãos julgados entre 23 de junho de 2014, data do início da ple-
na vigência do Marco Civil da Internet, e 1º de julho de 2022, data
selecionada para compatibilizar o prazo para elaboração da presente
pesquisa com análise acurada dos dados catalogados.
A pesquisa, em perspectiva qualitativa e quantitativa, é orien-
tada por quatro objetivos específicos, organizados em duas seções de
conteúdo e de abordagem dos resultados alcançados, além das seções
200
destinadas às considerações introdutórias e finais. A primeira seção en-
globa os dois primeiros objetivos específicos, quais sejam: (i) Analisar
de que maneira o Marco Civil da Internet contribui para o estudo da
moderação de conteúdo em plataformas digitais; (ii) Identificar como
ocorre a atuação do Poder Judiciário sobre aspectos da moderação de
conteúdo com base no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.
A segunda seção, por sua vez, reúne os dois últimos objeti-
vos específicos, quais sejam: (iii) Realizar um exame jurimétrico dos
acórdãos do Segundo Grau e dos Colégios Recursais que versem
sobre a aplicação do Marco Civil da Internet em sede de moderação
de conteúdo com base na jurisprudência firmada no TJ-AM; e, (iv)
Elaborar uma proposta de avaliação dos dados coletados a fim de
compreender o panorama ora configurado e de antever os novos
rumos da jurisprudência.
2 GOLDMAN, Eric. Content Moderation Remedies. Michigan Technology Law Review. Santa Clara
201
ciadores de plataformas digitais ou – para adotar a nomenclatura
do Marco Civil da Internet – provedores de aplicações. Apesar de a
terminologia “provedores de aplicações” estar incluída em diversos
dispositivos do referido diploma legal, não é fornecida uma defini-
ção legal do termo, de modo que tal tarefa ficou a cargo da juris-
prudência e da doutrina. Jurisprudencialmente, nota-se que as mais
diversas plataformas são consideradas como aplicações, a exemplo
dos mecanismos de buscas (e. g. Google, Yahoo etc. ) e das redes
sociais (e. g. Facebook, YouTube, Twitter etc. ). Logo, na perspectiva
que se aqui se propõe, a expressão provedores de aplicações se refere
a uma variada gama de subespécies de provedores: de conteúdo, de
hospedagem, de informação, de busca, de correio eletrônico3.
Promulgado em abril de 2014, o Marco Civil da Internet foi
resultado de intensos debates entre diferentes setores da sociedade –
usuários, empresas, organizações da sociedade civil, setores do gover-
no e universidades. Após dezoito meses de consulta e de colaboração
entre os interessados, foi elaborado um Projeto de Lei (PL) que, ao
final, foi submetido ao Congresso Nacional brasileiro, resultando
em uma legislação avançada para época em termos de proteção de
direitos na internet4, assim como para o estabelecimento de balizas
à responsabilização civil dos provedores de aplicações por conteúdos
gerados por usuários.
Apesar de o Marco Civil da Internet se aproximar do Commu-
nications Decency Act – CDA estadunidense (Lei de Decência nas
Comunicações estadunidense, em tradução livre), que vedou a res-
ponsabilização de provedores de aplicações por conteúdos gerados
por seus usuários, a ele não se assemelha5, tendo em vista que a lei
202
brasileira, de regra geral, permite a responsabilização dos provedores
de aplicações, desde que esteja configurada a desobediência à decisão
judicial específica que requeira a remoção de determinado conteúdo
(art. 19, caput, MCI).
O dispositivo de maior relevância, em se tratando de mode-
ração de conteúdo, é o art. 19 do MCI, bem como seus parágrafos.
A norma contida nesse dispositivo institui um regime especial de
responsabilização dos provedores de aplicações por conteúdos gera-
dos por usuários, ou seja, os provedores, de modo geral, apenas serão
responsabilizados civilmente após decisão judicial específica. Apesar
de o art. 19 não incluir expressamente aspectos da moderação de
conteúdo, considera-se que o silêncio normativo definiu a possibi-
lidade de os provedores moderarem os conteúdos que circulam nas
suas próprias plataformas, uma vez que apenas define um parâmetro
para a responsabilização civil e não define parâmetro algum para que
a atividade moderadora possa ocorrer.
Compreende-se que a expressão “moderação de conteúdo”,
além dos procedimentos realizados com base em normas internas
das plataformas (e. g. Termos de Uso, Diretrizes e Padrões da Co-
munidade), ainda inclua remoções, suspensões e/ ou bloqueios de
postagens, comentários, perfis públicos, grupos e/ ou páginas de
eventos, que tenham sido realizadas pelos provedores de aplicações
a requerimento estatal, isto é, a requerimento do Poder Judiciário à
luz do caput do art. 19, do MCI, tendo em vista que conteúdos são,
ao fim e ao cabo, efetivamente moderados tanto por iniciativa da
própria plataforma como a requerimento estatal.
Sobretudo em razão de as primeiras plataformas de maior di-
fusão, a exemplo do buscador Google e da rede social Facebook,
terem se originado nos Estados Unidos, berço do já mencionado
CDA, nota-se que as plataformas não se assemelham mais àquelas
que embasaram as leis protetivas6, seja mediante imunidade to-
tal, como a proposta do CDA, seja mediante procedimento mais
6 PASQUALE, Frank. Platform neutrality: Enhancing freedom of expression in spheres of private power.
Theoretical Inquiries in Law, v. 17, n. 2, 2016, p. 488.
203
dificultoso para a sua responsabilização, como a do Marco Civil da
Internet. Noutras palavras, segundo Thomas Wischmeyer, a partir
do fortalecimento das plataformas digitais, torna-se difícil justificar
exceções a sua responsabilidade7.
A compreensão sobre o modo de regulação das plataformas
digitais se alterou ao longo tempo na medida em que ocorreu uma
paulatina evolução quanto ao modo de atuação de tais plataformas
online8, sobretudo das redes sociais, cujo ápice foi atingido após
escândalo do vazamento e uso indevido de dados de usuários da
rede social Facebook, protagonizado pela Cambridge Analytica9.
Em razão dessa mudança, os provedores de aplicações passaram a
ser denominados como “guardiões” (gatekeepers ou custodians, em
inglês)10-11 e “novos governantes” (new governors, em inglês)12, ten-
do em vista o amplo controle sobre a comunicação nos ambientes
online.
Uma vez demonstrada a difusão das plataformas digitais no
cotidiano, vem ganhando espaço o debate sobre a necessidade de
atualizar-se a regulação dos ambientes online e o modo de respon-
sabilização das empresas que os gerenciam. Em termos estatísticos
quanto à população brasileira, segundo a Pesquisa TIC Domicílios
2020, realizada e publicada pelo Comitê Gestor da Internet no
Brasil (CGI. br), estima-se que, naquele ano, havia 164 milhões de
usuários de Internet, o que corresponde a 87% da população com
10 anos ou mais, com base em indicador ampliado que engloba
usuários de Internet que realizam atividades no telefone celular que
dependem de conexão com a internet, ainda que não tenham aces-
7 WISCHMEYER, Thomas. The role and practices of online stakeholders. In: SUSI, Mart (Ed. ) Human
Rights, Digital Society and the Law. Routledge, 2019, p. 5.
8 FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais e os desafios para a regulação jurídica. In: PARENTONI, Leonardo
(Coord. ). Direito, tecnologia e inovação. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, pp. 656-657.
9 CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Redes sociais, companhias tecnológicas e Democracia. Revista Brasi-
leira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 14, n. 42, p. 25- 48, 2020, p. 33.
10 CELESTE, Edoardo. Digital Constitutionalism: A new systematic theorisation. International Review
of Law, Computers and Technology, n. 33, 2019, p. 79.
11 GILLESPIE, Tarleton. Custodians of the internet. Platforms, content moderation, and the hidden de-
cisions that shape social media. Yale University Press/ New Haven & London, 2018, p. 209.
12 KLONICK, Kate. The New Governors: The People, Rules, and Processes Governing Online Speech.
Harvard Law Review, n. 131, 2018, p. 1662.
204
sado a internet nos três meses anteriores à pesquisa. Sem o indicador
ampliado, estima-se que, em 2020, havia 152 milhões de brasilei-
ros usuários de internet, o que corresponde a 81% da população13.
Ademais, especificamente quanto às plataformas de rede sociais, de
acordo com os dados publicados em janeiro de 2022 pelo We Are
Social em parceria com a Hootsuite, há 175,1 milhões de usuários
de plataformas de redes sociais no Brasil, representando 79,9% da
população14. Tais dados demonstram o amplo alcance e protagonis-
mo das plataformas na sociedade, especialmente a brasileira, eviden-
ciando que aspectos relativos à moderação de conteúdo são objeto
de especial atenção atualmente.
Sendo assim, não surpreende o cenário de alteração legislati-
va no País para que se altere o panorama ora instalado, do qual se
sobressaem o PL das Fake News (PL n. 2. 630/ 2020) e a Medida
Provisória (MP) n. 1068/ 2021, também conhecida como a MP da
moderação de conteúdo, editada pelo Poder Executivo Federal, que
alterou e acrescentou diversas disposições ao MCI. Apesar de a MP
ter sido devolvida uma semana após a sua publicação pelo Senado
Federal e, na mesma ocasião, ter sido declarada formalmente in-
constitucional em sede de medida liminar pelo Supremo Tribunal
Federal (doravante também STF)15, um PL de igual teor foi subme-
tido pelo Poder Executivo e hoje a materialidade da MP segue em
análise do Congresso Nacional sob a roupagem do PL n. 3227 (PL
Substitutivo à MP da Moderação de Conteúdo).
Ainda que não se vá aprofundar os aspectos destes e de ou-
tros PLs, uma vez que tal perspectiva de análise foge do esquema
metodológico proposto ao início, basta reconhecer que, no Brasil,
a tendência é que haja uma adaptação dos preceitos da legislação
vigente ao desenvolvimento tecnológico. Isso passa a ser um fator de
particular preocupação no que tange à atuação jurisdicional em sede
13 CGI. br. Pesquisa TIC Domicílios 2020, 2021. Disponível em: https:/ / bit. ly/ 3M10sdn. Acesso em:
18 jul. 2022.
14 DATA REPORTAL. We Are Social. Digital 2022: Brazil, 9 de fevereiro de 2022. Disponível em: https:/
/ datareportal. com/ reports/ digital-2022-brazil. Acesso em: 23 fev. 2022.
15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6991 (MC), rel. Min. Rosa Weber, j. 14 set. 2021.
205
de moderação de conteúdos gerados por usuários em plataformas
digitais, o que se passa a analisar no tópico subsequente.
16 GOLDMAN, Eric. Content Moderation Remedies. Michigan Technology Law Review. Santa Clara
University. Legal Studies - Research Paper. v. 28, 2021.
17 WIENFORT, Nora. Blocking Overblocking: Frankreichs Verfassungsrat kippt das Gesetz gegen Has-
skriminalität im Netz. VerfassungsBlog, 20 jun. 2020. Disponível em: https:/ / verfassungsblog. de/
blocking-overblocking/ . Acesso em: 18 jul. 2022.
18 ECHIKSON, William; KNODT, Olivia. Germany’s NetzDG: A key test for combatting online hate.
Research report. Thinking ahead for Europe, n. 9, nov. 2018.
206
ofendido mediante a comunicação extrajudicial à plataforma (e. g.
denúncia do conteúdo, pedido de remoção de conteúdo na própria
postagem etc. ), a alternativa hoje viável, quanto ao ordenamento
jurídico-constitucional brasileiro, consiste no ingresso em juízo me-
diante ação judicial para o bloqueio de conteúdos.
Conforme já destacado por Gerald Spindler, há a necessidade
de serem desenvolvidos mecanismos judiciais para acolhimento de
controvérsias decorrentes das plataformas digitais19. Quanto a esses
mecanismos, Ivar Hartmann propõe que a análise por Magistrados
deveria estar sujeita a um filtro prévio à atividade de ponderação de
direitos, em que o Judiciário apenas atuaria nas situações em que es-
tivesse configurado um desequilíbrio comunicacional entre a vítima
e o ofensor20, de modo que a regulação que mire apenas no conteú-
do, e não na relação de poder de comunicação, se torna ineficaz21.
Contudo, embora tal medida mostre-se eficaz em casos específicos,
não é possível aplicá-la, de modo geral, para todo e qualquer litígio
originado em plataformas digitais, especialmente em razão da garan-
tia contida no art. 5º, inc. XXXV, CF.
A atuação jurisdicional nesse âmbito está, além disso, relaciona-
da com o assim chamado constitucionalismo digital, que se caracteriza
pela aplicação dos preceitos dos constitucionalismo clássico ao ambien-
te online, a fim de que sejam estabelecidas medidas para assegurar a pro-
teção e promoção de direitos na internet e para limitar o poder daqueles
que estabelecem normas para o uso da rede, a exemplo dos Estados
nacionais e, mais recentemente, dos provedores de aplicações22.
Na literatura brasileira, quanto à dimensão nacional do cons-
titucionalismo digital, destacam-se os estudos de Gilmar Mendes e
19 SPINDLER, Gerald. Internet Intermediary Liability Reloaded. The New German Act on Responsibility
of Social Networks and its (In-) Compatibility with European Law. JIPITEC Law, n. 8, 2017, p. 175.
20 HARTMANN, Ivar A. Liberdade de expressão e capacidade comunicativa: um novo critério para resolver
conflitos entre direitos fundamentais informacionais. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte,
a. 12, n. 39, p. 145-183, jul. / dez. 2018, p. 153.
21 HARTMANN, Ivar A. Liberdade de expressão e capacidade comunicativa: um novo critério para resolver
conflitos entre direitos fundamentais informacionais. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte,
a. 12, n. 39, p. 145-183, jul. / dez. 2018, p. 163.
22 GILL, Lex; REDEKER, Dennis; GASSER, Urs. Towards digital constitutionalism? Mapping attempts
to craft an internet bill of rights. Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights (November 9,
2015). Berkman Center Research Publication, 2015, p. 2.
207
Victor Fernandes. Os autores vinculam o constitucionalismo digital
ao Controle de Constitucionalidade de leis infraconstitucionais que
estruturam direitos na era tecnológica, a exemplo do Marco Civil da
Internet23. Com efeito, adquirem relevo dois julgamentos pendentes
no STF, que discutem a constitucionalidade do artigo 19 do MCI.
O primeiro é o Recurso Extraordinário (doravante RE) 1. 037.
396 RG, a partir do qual foi fixado o Tema 987 da Repercussão Ge-
ral (RG) quanto ao debate sobre a constitucionalidade do art. 19 do
MCI24. No segundo, RE 1. 057. 258 RG, também foi reconhecida
a repercussão geral, fixando-se o Tema 533, quanto à análise do dever
dos provedores para fiscalizar conteúdos publicados e para retirá-los
da rede sem intervenção do Judiciário25. Em maio de 2022, ambos
REs foram excluídos da pauta de julgamento pelo então Presidente do
STF, Ministro Luiz Fux. Até o momento, não houve reagendamento.
Em suma, demonstra-se a indissociabilidade, com base no di-
reito brasileiro, da atuação dos provedores de aplicações em sede de
moderação de conteúdo e da prestação jurisdicional. Com efeito,
haja vista os movimentos e o debate para a alteração do esquema or-
ganizacional proposto pelo Marco Civil da Internet em 2014, mos-
tra-se necessária a análise sobre o modo pelo qual a legislação vem
sendo aplicada desde então e sobre quais são os possíveis caminhos a
serem trilhados futuramente.
208
análise jurimétrica de acórdãos do referido Tribunal que versem
sobre o Marco Civil da Internet. A partir disso, conjugando-se as
disposições e debates legislativos, bem como a análise doutrinária
aperfeiçoada até o momento, no segundo tópico desta segunda
seção, propõe-se uma análise da aplicação do Marco Civil da In-
ternet em procedimentos de moderação de conteúdo em cinco di-
mensões, incluindo-se, também, a tentativa de antecipar os novos
rumos da prestação jurisdicional nessa modalidade de litígio, haja
vista a mudança de atuação dos provedores e o desenvolvimento
tecnológico desencadeado desde a promulgação do referido diplo-
ma legislativo.
209
tado, dos quais 60 provenientes do Segundo Grau e 7 dos Colégios
Recursais27.
Quanto aos resultados, foi realizada uma primeira filtragem
a fim de analisar apenas os acórdãos que versam sobre a aplicação
do Marco Civil da Internet. Dos 67 acórdãos analisados, apenas 39
efetivamente aplicam o referido diploma legal. O Marco Civil da In-
ternet não foi aplicado em 28 acórdãos, dos quais (i) 21 não versam
sobre o referido diploma legal, de modo que embora o Marco Civil
da Internet seja mencionado, ele não compõe a ratio decidendi; (ii) 4
são referentes a fatos anteriores à vigência do Marco Civil da Inter-
net; (iii) em 2 foi afastada a incidência do art. 19 do MCI em razão
de a informação não ter sido gerada por usuário, mas, sim, pelo pró-
prio provedor de informação (in casu, site de notícias independente
e provedor de pesquisa); (iv) 1 recurso não foi conhecido28.
Haja vista que o escopo da presente pesquisa consiste em ana-
lisar a aplicação do Marco Civil da Internet quanto ao bloqueio,
remoção, suspensão e desindexação de conteúdos de plataformas
digitais, realizou-se a segunda filtragem para que sejam considera-
dos apenas aqueles que versam sobre moderação de conteúdo em
plataformas. Por essa razão, após a análise dos 39 acórdãos em que o
Marco Civil da Internet foi aplicado, avaliou-se que 31 mantêm-se
no escopo da presente pesquisa, de modo que 8 foram preteridos,
tendo em vista que, destes, (i) 4 versam sobre o fornecimento de
dados pessoais; (ii) 3 versam sobre o fornecimento de porta lógica
de origem; e (iii) 1 versa sobre apreensão de telefones em abordagem
policial29.
27 COLETA de Dados. Input Total. MCI. Moderação. Tabela para organização, filtragem e avaliação dos
acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Elaboração própria, 2022. Disponível em:
https:/ / bit. ly/ 3PELECf. Acesso em: 18 jul. 2022.
28 COLETA de Dados. Input Total. MCI. Moderação. Tabela para organização, filtragem e avaliação dos
acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Elaboração própria, 2022. Disponível em:
https:/ / bit. ly/ 3PELECf. Acesso em: 18 jul. 2022.
29 COLETA de Dados. Input Total. MCI. Moderação. Tabela para organização, filtragem e avaliação dos
acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Elaboração própria, 2022. Disponível em:
https:/ / bit. ly/ 3PELECf. Acesso em: 18 jul. 2022.
210
Gráfico 1 – Visão geral sobre os acórdãos do Segundo Grau
e dos Colégios Recursais coletados no TJ-AM que contenham
a expressão “marco civil da internet” (23/ 06/ 2014 a 1º/ 07/
2022)
30 COLETA de Dados. Input Total. MCI. Moderação. Tabela para organização, filtragem e avaliação dos
acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Elaboração própria, 2022. Disponível em:
https:/ / bit. ly/ 3PELECf. Acesso em: 18 jul. 2022.
211
envolve suspensão de perfil, 1 envolve tornar conteúdo indisponível
em aplicativo de mensageria privada31.
Gráfico 2 - Acórdãos que versam sobre a incidência do
MCI (Lei n. 12. 965/ 2014) em procedimentos moderação de
conteúdo realizados por provedores de aplicações no TJ-AM
(23/ 06/ 2014 a 1º/ 07/ 2022)
31 COLETA de Dados. Input Total. MCI. Moderação. Tabela para organização, filtragem e avaliação dos
acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Elaboração própria, 2022. Disponível em:
https:/ / bit. ly/ 3PELECf. Acesso em: 18 jul. 2022.
212
O ponto de discussão que predomina entre os acórdãos conside-
rados consiste na necessidade de informar a URL (do inglês Uniform
Resource Locator; Localizador Padrão de Recursos, em tradução livre)
para remoção de conteúdos em plataformas, que figura em 19 acórdãos.
Em outros 13 acórdãos, essa necessidade não é expressamente men-
cionada. Em apenas 1 ela é flexibilizada. Isso evidencia que o Tribunal
está em alinhamento com o § 1º do art. 19 do MCI, que determina a
identificação “clara e específica” do conteúdo a ser indisponibilizado,
isto é, que seja feita a localização inequívoca do material. Embora a
identificação da URL não seja a única maneira de localizar conteúdos
online, ela consiste no principal meio para tanto. No único acórdão
em que a flexibilização quanto ao fornecimento de URL, tratava-se de
exclusão integral de perfil falso, com danos causados à parte autora, des-
tacando-se a fundamentação adotada para o dever de colaboração entre
as partes – provedor de conteúdo, de um lado, e autor da pretensão
moderadora, de outro – na identificação do perfil violador32.
Tendo em vista os dados acima analisados, nota-se que o TJ-
-AM está em consonância com correta aplicação do Marco Civil da
Internet em uma ampla variedade de casos, demonstrando a consis-
tência da amostragem jurisprudencial coletada. Evidencia-se, assim,
que os dados possuem aptidão para servir de base para estudos na
aplicação do Marco Civil da Internet e para o desenvolvimento de
contribuições para o aprimoramento e para a melhor compreensão
da prestação jurisdicional envolvendo moderação de conteúdo em
plataformas digitais, o que passa-se a abordar, de modo mais detido,
no tópico seguinte.
213
identificar cinco dimensões da aplicação do Marco Civil da Inter-
net em procedimentos de moderação de conteúdo no Judiciário: (i)
Identificação inequívoca do conteúdo apontado como infringente;
(ii) Colaboração entre as partes para a identificação do conteúdo;
(iii) Sopesamento entre liberdade de expressão e direitos da perso-
nalidade; (iv) Fundamentação alinhada ao posicionamento dos Tri-
bunais Superiores; e (v) Interpretação de normas internas das pla-
taformas (e. g. Termos e Condições de Uso, Diretrizes e Padrões
Comunitários) como possível novo caminho jurisprudencial.
É imperioso afirmar que tais dimensões não caracterizam fases
da aplicação do MCI. As dimensões aqui apresentadas correspon-
dem, em verdade, a parâmetros de aplicação da lei, que são identifi-
cados, por vezes, de modo concomitante, sem que uma organização
específica tenha sido constatada. Noutras palavras, a ordem de di-
mensões aqui escolhida não corresponde a uma cronologia e tam-
pouco a uma superação de fases. Feitos tais esclarecimentos, passa-se
a análise do proposto.
Nota-se que a identificação inequívoca do conteúdo apontado
como infringente para a sua posterior suspensão, remoção ou blo-
queio está presente em 19 dos 31 acórdãos em que o Marco Civil da
Internet foi aplicado em casos relacionados à moderação de conteú-
do. O debate, conforme já mencionado alhures, debruça-se sobre a
aplicação do § 1º do art. 19 do Marco Civil da Internet, que deter-
mina a identificação “clara e específica” do material potencialmente
infringente. O objetivo do dispositivo, portanto, consiste em “evitar
a censura prévia e indistinta de conteúdos, bem como a lesão a direi-
tos de terceiros com a remoção inadvertida e equivocada de páginas
que nenhuma relação possuem com o direito do ofendido”33.
Com efeito, está aqui se tratando de interesses opostos, tendo
em vista que o mesmo conteúdo possa ser replicado múltiplas vezes
em determinada plataforma, violando as pretensões do ofendido,
enquanto, de outro lado, há o interesse do provedor que, apesar do
33 SIVIERO, Fabiana; SANCHEZ, Guilherme Cardoso. O novo regime de responsabilidade civil dos pro-
vedores de aplicações de internet. In: ARTESE, Gustavo (coord. ). Marco Civil da Internet: análise
jurídica sob uma perspectiva empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 162.
214
seu poder econômico, não detém o poder de vigilância completo,
contínuo e onipresente, independentemente de requerimento espe-
cífico, em todas as esferas da plataforma para que se possa impedir
o compartilhamento de determinado conteúdo meramente com a
sua descrição. Ainda assim, há circunstâncias em que a descrição do
conteúdo é indispensável, a exemplo dos casos em que, a depender
das características da plataforma e do conteúdo infringente, mais de
um conteúdo pode estar hospedado na mesma URL.
Em suma, quanto a essa primeira dimensão, o TJ-AM está em
sintonia com o entendimento sedimentado nos Tribunais superiores,
quanto à necessidade de indicação da URL e em quais circunstâncias
cabe a flexibilização da sua obrigatoriedade, haja vista as caracterís-
ticas da plataforma, do conteúdo infringente, entre outras especifi-
cações. Sendo assim, ocorre a proteção do livre fluxo informacional,
atributo de destaque no que tange à aplicação do Marco Civil da
Internet em sede de moderação de conteúdo no Poder Judiciário.
Avançando na análise, a dimensão quanto à colaboração entre
as partes para a identificação do conteúdo apontado como infrin-
gente apresenta-se como de particular relevância na jurisprudência
do TJ-AM. Ainda que tenha sido aplicada apenas de forma tímida,
percebe-se que o referido Tribunal efetivou uma inovação em sede
jurisprudencial ao vincular as disposições do Marco Civil da Inter-
net com aquelas da Constituição de 1988, do Pacto de San José da
Costa Rica de 1969 e do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/
15).
Reconhece-se a aplicação sistemático-teleológica do ordena-
mento jurídico-constitucional brasileiro, na medida em que sejam
sobrepostas as disposições referentes à necessidade de identificar-se
inequivocamente o conteúdo potencialmente violador (art. 19, § 1º
do MCI), à colaboração entre as partes do processo (art. 6º do CPC/
15), à celeridade e à duração razoável do processo (art. 5º, inc. LXX-
VIII, CF) e ao duplo grau de jurisdição (art. 8º, do Pacto de San
José da Costa Rica). Sendo assim, o reconhecimento da colaboração
das partes para uma tutela jurisdicional justa e efetiva, incluindo-se
o duplo grau de jurisdição, demonstra uma evolução jurisprudencial
215
de impacto positivo, tendo em vista que se reconhece a dinamicida-
de do processo e a necessidade de adaptação do processo ao avanço
tecnológico.
A terceira dimensão, por sua vez, concretiza-se no sopesamen-
to entre a liberdade de expressão e a proteção de direitos da persona-
lidade em sede de pedidos de suspensão, remoção e/ ou bloqueio de
conteúdos. Em maior ou menor grau, esta terceira dimensão figura
em todos os acórdãos que versam sobre moderação de conteúdo.
Ainda assim, nota-se que esse debate prevaleceu na ratio decidendi
de 10 acórdãos. Aqui está em causa a colisão de direitos que está
na base da moderação de conteúdo: o controle sobre a liberdade
de expressão a fim de proteger interesses com ela conflitantes, e. g.
direitos de personalidade.
Noutros termos, percebe-se o impacto positivo dessa dimen-
são na medida em que os Tribunais busquem o amparo constitucio-
nal conferido aos direitos fundamentais de aplicabilidade imediata
(art. 5º, § 1º, CF) para a resolução de casos sobre moderação de con-
teúdo em plataformas. Vale dizer que, em alguns casos, a exemplo da
divulgação não consentida de imagens íntimas, houve a concretiza-
ção na legislação ordinária para a efetivação do direito à privacidade
e à intimidade em sede de moderação de conteúdo, tendo em vista a
possibilidade de haver a responsabilização civil do provedor de apli-
cações desde o momento da comunicação do usuário sobre o com-
partilhamento e/ ou circulação do conteúdo infringente, sendo uma
das exceções aos ditames do art. 19 do Marco Civil da Internet34.
Ademais, nota-se, de modo mais atento, aquelas decisões em
que a liberdade de expressão prevalece mesmo em face de pedidos
de moderação rígida (suspensão, bloqueio e exclusão)35. Aqui está
em questão a posição preferencial prima facie que a liberdade de
expressão possui sobre outros direitos fundamentais com quais ela
34 COLETA de Dados. Input Total. MCI. Moderação. Tabela para organização, filtragem e avaliação dos
acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Elaboração própria, 2022, item 19. Disponível
em: https:/ / bit. ly/ 3PELECf. Acesso em: 18 jul. 2022.
35 COLETA de Dados. Input Total. MCI. Moderação. Tabela para organização, filtragem e avaliação dos
acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Elaboração própria, 2022, itens 1, 16, 21 e 25.
Disponível em: https:/ / bit. ly/ 3PELECf. Acesso em: 18 jul. 2022.
216
possa entrar em posição conflitante36. Esse posicionamento vem
sendo identificado nos votos de diversos Ministros do STF e, con-
sequentemente, vem sendo integrado nos fundamentos das decisões
do Tribunal.
A atuação de maior proeminência sobre a posição preferencial
dentre os votos de Ministros do STF é a de Luís Roberto Barroso,
com destaque para o Caso das Sátiras Eleitorais (ADI 4451), em que
o Ministro delimita três eixos de sustentação de uma posição prefe-
rencial da liberdade de expressão no Brasil: a censura na ditadura
militar, entre 1964 e 1985; o caráter multifuncional da liberdade de
expressão, uma vez que é premissa basilar para exercer outros direi-
tos fundamentais; e a imprescindibilidade da liberdade de expressão
para conhecimento da história37. Nota-se, portanto, um alinhamen-
to com o posicionamento adotado nos Tribunais superiores, que é
justamente o que se passa a analisar na quarta e seguinte dimensão.
As três dimensões abordadas acima, em maior ou menor grau,
perfectibilizam a quarta dimensão identificada: a fundamentação
para aplicar-se o Marco Civil da Internet em procedimentos de mo-
deração de conteúdo mediante atuação do Poder Judiciário está ali-
nhada com posicionamento já firmado pelos Tribunais Superiores,
além do já mencionado STF, de modo especial com o STJ. Citada
expressamente em 18 acórdãos dentre aqueles que versam sobre mo-
deração de conteúdo, nota-se que a jurisprudência do STJ é funda-
mentação predominante no julgamento dessa modalidade de litígio.
Destaca-se a menção aos Tribunais superiores em dimensão
autônoma a fim de acompanhar uma recente adaptação da incidên-
cia do Marco Civil da Internet em casos práticos. Após a alegação do
Facebook (hoje Meta) de não excluir a publicação de sua plataforma
homônima em que figurava a imagem de um menor de idade com o
seu pai, sendo este último acusado de crimes sexuais, em razão de o
conteúdo não violar normas internas (Termos de Uso e Padrões da
36 SARLET, Ingo. Liberdade de expressão e o problema da regulação do discurso do ódio nas mídias sociais.
Revista Estudos Institucionais, v. 5, n. 3, p. 1207-1233, set. / dez. 2019, p. 1217.
37 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451, Min. Rel. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 21.
06. 2018, p. 39.
217
Comunidade do Facebook), o STJ condenou o referido provedor a
remover o conteúdo, logo após a comunicação do usuário, indepen-
dentemente de ordem judicial específica, tendo em vista a violação
de direitos de menores. Segundo o Ministro Relator, Antonio Carlos
Ferreira, a aplicação isolada do art. 19 deve ser afastada para satisfa-
zer os interesses de crianças e adolescentes38.
Em que pese o novo posicionamento adotado pelo STJ ainda
não tenha sido aplicado em casos julgados pelo TJ-AM, em razão de
não terem sido julgados acórdãos envolvendo crianças e adolescen-
tes em sede de moderação de conteúdo, com base nas informações
coletadas e em análise prognóstica, nota-se a grande probabilidade
de este entendimento ser aplicado pelo referido Tribunal, haja vista
a tradição de seguir o posicionamento firmado nos Tribunais supe-
riores. Além disso, permanece-se alerta para o posicionamento a ser
adotado pelo STF, no âmbito do já mencionado constitucionalismo
digital, nos Recursos Extraordinários 1. 037. 396 (Tema 987 da Re-
percussão Geral) e 1. 057. 258 (Tema 533 da Repercussão Geral),
com repercussão geral já reconhecida e que aguardam julgamento.
Por fim, a quinta e última dimensão, identificada a partir da
presente pesquisa, conjugando os dados quantitativos avaliados, o
panorama legislativo atual e em avaliação no âmbito brasileiro, bem
como os apontamentos doutrinários sobre o tema, concretiza-se de
maneira prognóstica e ainda em processo de realização: seria a inter-
pretação de normas internas das plataformas (e. g. Termos e Con-
dições de Uso, Diretrizes e Padrões Comunitários) o novo caminho
jurisprudencial a ser trilhado?
Em que pese não tenha sido identificado acórdão que versasse
sobre a validade de normas internas, nota-se que há um movimento
de alteração legislativa a nível nacional e internacional para maior
proteção dos usuários, em detrimento de maior proteção aos pro-
vedores de aplicação. São exemplos, dentre as medidas adotadas por
intermédio do Estado, no direito estrangeiro, a NetzDG alemã (em
38 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RE 1. 783. 269. Min. Rel. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, j.
14 dez. 2021.
218
tradução livre, Lei de Aplicação nas Redes), promulgada em 201739;
o guia de propostas britânico Online Harms White Paper (Livro Bran-
co sobre Danos Digitais, em tradução livre), discutido desde 2019; a
Carta Portuguesa para Direitos Humanos Digitais, promulgada em
2021; o Digital Services Act europeu (Lei dos Serviços Digitais, em
tradução livre), em vigência desde novembro de 2022, além, a nível
Brasil, do já mencionado PL das Fake News, que apesar da popular
nomenclatura, superou a temática da desinformação e, na sua versão
atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, versa sobre
uma efetiva regulamentação das plataformas de redes sociais40.
Vale destacar, também, entre os avanços já realizados em outros
países, as recentes decisões do Bundesgerichtshof alemão (Tribunal de
Justiça Federal da Alemanha), em que foi exigido o cumprimento de
parâmetros específicos em procedimentos de moderação de conteú-
do, a saber: a obrigação dos provedores de redes sociais de notificar o
usuário pelo menos após a remoção do conteúdo, além da notificação
prévia exigida no caso de bloqueio parcial ou total das perfis41-42-43.
Com efeito, os avanços nos debates técnicos e em legislações promul-
gadas nos últimos anos corroboram com a mudança de atuação dos
provedores de aplicações e, consequentemente, do modo pelo qual
eles são vistos e regulados, impactando, assim, a maneira de realizar-se
a moderação de conteúdo e a atuação jurisdicional sobre ela.
Reforça-se, mais uma vez, a necessidade de os provedores
de aplicações adotarem decisões em sede de moderação que se-
39 SARLET, Ingo Wolfgang; SARLET, Gabrielle Bezerra. Liberdade de expressão e discurso do ódio nas
mídias sociais – uma análise à luz da jurisprudência da CEDH e da Lei Alemã sobre a Efetividade do
Direito na Internet. In: HÄBERLE, Peter; MENDES, Gilmar Ferreira et. al. Direitos fundamentais,
desenvolvimento e crise do constitucionalismo multinível. Livro em homenagem a Jörg Luther. Porto
Alegre: Fundação Fênix, 2020, p. 118.
40 SARLET, Ingo Wolfgang; SIQUEIRA, Andressa de Bittencourt. Algumas notas sobre liberdade de ex-
pressão e democracia – o caso das assim chamadas “fake news”. In: SCHREIBER, Anderson; MAR-
TINS, Guilherme Magalhães; CARPENA, Heloisa. (Org. ). Direitos fundamentais e sociedade tecno-
lógica. São Paulo: Editora Foco, 2022.
41 ALEMANHA. BGH, III ZR 179/ 20 (Facebook Urteil I), j. 29 jul. 2021, §§ 87-88. Disponível em:
https:/ / bit. ly/ 3iNih2n. Acesso em: 18 jul. 2022.
42 ALEMANHA, BGH, III ZR 192/ 20 (Facebook Urteil II), j. 29 jul. 2021, § 99. Disponível em: https:/
/ bit. ly/ 3DxbWBJ. Acesso em: 18 jul. 2022.
43 MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Eficácia dos direitos fundamentais nas rela-
ções privadas da internet: o dilema da moderação de conteúdo em redes sociais na perspectiva comparada
Brasil-Alemanha. Revista de Direito Civil Contemporâneo – RDCC, v. 31, pp. 33-68, 2022.
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jam transparentes, compressíveis e não arbitrárias44, na medida
em que lhes seja confiada a possibilidade de moderar conteúdos
gerados por seus usuários, para além da garantia constitucional,
no direito brasileiro, de inafastabilidade do Poder Judiciário para
julgar potenciais lesões ou ameaças a direitos, albergando, assim,
aquelas oriundas de decisões adotadas em sede de moderação de
conteúdo em plataformas.
4. Considerações finais
Visando ao desenvolvimento de propostas que possam gerar
resultados positivos na prestação jurisdicional, a pesquisa aqui pro-
posta teve o escopo de verificar de maneira a atuação jurisdicional
interage com os procedimentos de moderação de conteúdo postos
em prática por provedores de aplicações em plataformas digitais.
Nota-se que a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do
Amazonas situa-se perfeitamente no enquadramento normativo for-
necido pelo Marco Civil da Internet, que, promulgado em 2014,
inseriu arcabouço regulatório avançado para época em termos de
governança da internet e proteção de direitos online, conferindo-se
o devido destaque ao art. 19 que condiciona ao Judiciário a respon-
sabilidade civil dos provedores de aplicações.
Nada obstante, a mudança de atuação dos provedores e os
avanços tecnológicos ocorridos desde então vêm gerando novos de-
safios a serem enfrentados, seja para os usuários, seja para os prove-
dores, seja para os Tribunais. Ainda que os provedores desenvolvam
novos métodos de resolução de conflitos, com base em normas pró-
prias, reforça-se a imperiosidade da garantia constitucional da ina-
fastabilidade da prestação jurisdicional para julgar potenciais lesões
ou ameaças a direitos (art. 5º, XXXV, CF). Logo, não há dúvidas
sobre a possibilidade de haver incidência da atuação do Judiciário
sobre procedimentos de moderação de conteúdo, cabendo apenas o
debate sobre o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional para apre-
44 SUSI, Mart. Introdução. In: SUSI, Mart; ALEXY, Robert. Proporcionalidade e Internet. Tradução:
Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2020, p. 36.
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ciar esse tipo de controvérsia, especialmente em razão do progresso
tecnológico e inovativo, em constante evolução.
A partir do reconhecimento da necessidade de reavaliar-se o
arcabouço regulatório das plataformas digitais gerenciadas por pro-
vedores de aplicação, nota-se a indispensabilidade de melhor com-
preender o modo pelo qual o Marco Civil da Internet veio sendo
aplicado até o presente momento na jurisprudência a fim de ante-
cipar possíveis caminhos a serem trilhados quanto à moderação de
conteúdo em sede de tutela jurisdicional. Após a análise jurimétrica
dos dados coletados no TJ-AM, foi possível identificar cinco dimen-
sões da aplicação do Marco Civil da Internet em procedimentos de
moderação de conteúdo no Judiciário: (i) Identificação inequívo-
ca do conteúdo apontado como infringente; (ii) Colaboração entre
as partes para a identificação do conteúdo; (iii) Sopesamento entre
liberdade de expressão e direitos da personalidade; (iv) Fundamen-
tação alinhada ao posicionamento dos Tribunais Superiores; e (v)
Interpretação de normas internas das plataformas (e. g. Termos e
Condições de Uso, Diretrizes e Padrões Comunitários) como possí-
vel novo caminho jurisprudencial.
Não se almeja, de modo algum, a partir do reconhecimen-
to de tais dimensões, a resolução da totalidade dos problemas que
circundam a regulação de plataformas e a moderação de conteúdo.
Espera-se, ao menos, a partir dessas breves considerações, ter contri-
buído para melhor compreensão do panorama doutrinário, legislati-
vo e, especialmente, jurisprudencial de aplicação do Marco Civil da
Internet quanto à moderação de conteúdo em plataformas digitais.
editorial.tirant.com/br/
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