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João do Rio e a crônica social no palco

João do Rio e a crônica social no palco


Elen de MEDEIROS1

A obra teatral de João do Rio certamente está toda relacionada à evidente crônica
social. Jornalista de destaque nos primeiros anos do século XX, ele transportou da crônica
jornalística para o teatro seu estilo de observação arguta, traduzindo de maneira leve e
recheada de ironia os hábitos e costumes da elite carioca da belle époque. Sua obra poderia ser
nomeada, sob certo aspecto, de crônica dramática, pela mescla que comporta entre dois
gêneros literários – sabendo de antemão que da mesma forma como ele inseria a crônica
social em suas obras dramáticas, o teatro também estava muito presente nas suas crônicas
jornalísticas. Assim, para poder ler o teatro de João do Rio e compreendê-lo, é preciso
antes de tudo colocá-lo face ao contexto teatral vigente.
Em 1907, quando escreveu sua primeira peça, Paulo Barreto era ainda um jovem
promissor das letras, a quem Arthur Azevedo dedicou algumas linhas de esperança em se
tratando do teatro nacional: “Que bela mostra do seu talento de dramaturgo é essa Última
noite, quatro cenas maravilhosas de vibração e de nervo!”. Um ano antes de seu falecimento,
Arthur Azevedo estava esperançoso em relação ao ressurgimento do teatro nacional e,
diante do que antevia, Paulo Barreto era um dos principais nomes que se destacavam. Em
crônica escrita em 1910, foi a vez de João do Rio identificar em Roberto Gomes, cuja
primeira peça2 fora encenada na temporada nacional do Municipal daquele ano, “o escritor
de inconfundível sensibilidade, talhado para dotar o nosso teatro com peças admiráveis”
(In: PEIXOTO, 2009, vol. 1, p. 117). Ou melhor, passados três anos de sua estreia como

1 Mestre e Doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp, atualmente desenvolve pesquisa de pós-
doutorado na área de dramaturgia brasileira na USP. Todas suas pesquisas foram financiadas pela Fapesp. E-
mail: [email protected].
2 Ao declinar do dia... (1910), encenada na temporada nacional do Municipal.

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dramaturgo, o cronista também reclamava, como seu antecessor, autores nacionais que
trouxessem novas ideias para a cena brasileira. Em 1911, João do Rio escreve outra crônica
reclamando da situação do teatro brasileiro e define uma suposta crise na cena. Segundo
ele, “3/4 partes dos elencos eram estrangeiros (...) e as manifestações teatrais sob o ponto
de vista da pura arte eram lamentáveis” (In: PEIXOTO, 2009, vol. 2, p. 160). Essa crise,
segundo o cronista, seria provocada por dois motivos interligados: de um lado, a avalanche
de companhias estrangeiras no Brasil e, em consequência, a escassez dos artistas nacionais e
as situações difíceis a que eles estavam submetidos.
Ora, o contexto teatral brasileiro na virada do século XIX para o XX é bastante
conhecido: de um lado, importantes companhias estrangeiras faziam suas turnês no
período de férias europeias, e aportavam em solo nacional com seu repertório consagrado,
de grandes tragédias e óperas; de outro, o escasso teatro nacional lutando pela
sobrevivência – e, para isso, amparando-se no teatro ligeiro, com representações-relâmpago
de peças musicadas e comédias ligeiras.

Aos [elencos] nacionais restavam peças de qualidade reputada inferior e


de grande heterogeneidade: o dramalhão, a comédia tendente à farsa, a
opereta traduzida e adaptada, a revista do ano, a mágica (Prado, 1999: p.
143).

Esse panorama sofrerá alguma mudança com a eclosão da Primeira Guerra


Mundial, em 1914, quando as companhias europeias são impedidas de atravessar o
Atlântico. Esse é um momento em que o teatro nacional, frente à lacuna que se abre com a
ausência dos estrangeiros, se vê motivado a produções mais numerosas, ainda assim
bastante heterogêneas e com qualidade irregular.
Em oposição a esse teatro ligeiro, alguns autores procuraram ajustar suas penas ao
que de mais recente insurgia na Europa. Em nossa cena, no entanto, não chegaram as
manifestações estéticas provocadas por nomes como Stanislavski, Gordon Craig, dentre
outros. Ficamos à margem de tudo o que ocorria de vanguardista no campo teatral. É
curioso observar, no entanto, que o Brasil foi visitado por Lugné-Poe3 em 1924, quando
encenou uma peça de João do Rio, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro: Rien qu’un voleur!
Quel malheur..., juntamente com outros 23 espetáculos naquela temporada.
Alguns dramaturgos, no intuito de produzir textos que fossem uma alternativa às
peças ligadas a um teatro meramente comercial, ensaiaram uma filiação à tendência

3Era a Companhia Dramática Francesa Marie Thérèse Piérat, que estreou em 30 de junho de 1924, tendo
como diretor artístico Lugné-Poe. Cf. CHAVES JR, Edgard de Brito (1971).

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simbolista (responsável na França e na Rússia por movimentos que alteraram a estética


cênica e deram início ao chamado teatro moderno)4 ou que se distanciassem do teatro
musicado. Eram, então, as denominadas peças “sérias”, em franca oposição à denominação
“ligeira”. Salvaguardando as restrições a essa arbitrária divisão, pensemos nesse teatro
“sério” como uma forma de procurar alçar o teatro nacional à esfera estética inovadora e
modernizadora surgida na Europa alguns anos antes.
Esse era um momento delicado da cultura brasileira, com um confronto direto
entre literatos – interessados em uma manifestação artística mais articulada com seu tempo
e, ao mesmo tempo, que traduzisse esteticamente os anseios surgidos com o século XX –, e
artistas profissionais – que necessitavam da bilheteria do teatro para sobreviver e, em
decorrência de tal necessidade, não abriam mão de um teatro comercial e pouco elaborado
artisticamente. A compreensível divisão entre os profissionais de teatro e os intelectuais
propiciou o surgimento de uma dramaturgia que estava muito mais ligada à literatura do
que ao palco, acreditando que por este modo se produziria um teatro “moderno”.

A VIDA BURGUESA COMO ESPETÁCULO


No alvorecer do século XX, em meio a inúmeras mudanças sociais, culturais e
estruturais no Rio de Janeiro, João do Rio se dedicou a representar essa sociedade em
transformação. Sua obra teatral, permeada pelo dandismo5, poderia ser facilmente encarada
como um simples espelho do que se passava com a burguesia em ascensão, como, aliás, o
próprio autor sugeriu: “O meu único valor, se por ventura o tenho, é apenas refletir o
momento de transformação dos nossos costumes acentuando-lhes os traços essenciais”
(In: PEIXOTO, 2009, vol. 1, p. 239). Há, no entanto, um fator importante a ser destacado
nessa dramaturgia que é o anseio vivo de renovação do teatro brasileiro. A vida burguesa
está posta no palco. A questão que se destaca é sob qual perspectiva essa sociedade é
colocada ali e em qual conjuntura isso, aliado à forma dramatúrgica que se impõe, pode ter
tido alguma significação naquele contexto.
Exímio cronista da belle époque no Rio de Janeiro, João do Rio fez o trânsito entre
jornalismo e teatro, inserindo em sua dramaturgia uma pintura divertida da sociedade
carioca de então. Em suas peças, os encontros furtivos, o hábito de falar em língua
estrangeira presente na cultura nacional de então, e até mesmo o ingresso dos italianos
como mão de obra em substituição aos negros: tudo se torna objeto de comentários
4 “Contrapondo-se a esse tipo de teatro [teatro ligeiro], existia um ‘teatro sério’, denominação pouco feliz e
que ficaria mais bem designado como um teatro com preocupações literárias, influenciado pelo Simbolismo e
pelo Art Nouveau” (FRAGA, 2003, p. 16).
5 Ver: LEVIN, Orna Messer (1996).

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ligeiros, imiscuídos não ao acaso na ação que se desenrola. Por vezes são apenas
comentários despretensiosos, mas trazem em si um leve tom irônico e, em certas
passagens, revelam uma estrutura que se torna incompatível com o que está sendo exposto.
Eva (1915), peça de três atos, um texto emblemático de João do Rio, coloca em
cena a elite da sociedade recém-saída da monarquia e de um regime escravocrata, em plena
belle époque, que gira em torno de um não fazer nada, procurando em futilidades o
preenchimento do vazio existencial em que se encontram. Como eixo do enredo, Eva é a
jovem volúvel e encantadora, que flerta com todos, mas despreza Jorge, jovem engenheiro
que a ama. Toda a ação da peça é um não fazer nada e traz para o primeiro plano a
frivolidade da sociedade que se espelha nos hábitos e costumes europeus, compondo na
estrutura dramática uma crônica social. A própria descrição inicial do cenário, inserida
como rubrica da peça, pode ser lida como uma crônica, com breves e irônicos comentários
do autor:

Souza Prates, de uma das mais ilustres famílias de São Paulo, é o


fazendeiro último modelo. Membro do Automóvel Club de São Paulo,
membro do Aero de Paris, riquíssimo, levemente esnobe, faz da vida uma
contínua diversão. (...)
Essas visitas são sempre feitas na companhia de vários amigos, pessoas
que levam a vida sem a preocupação da falta de renda – uma das mais
graves preocupações da humanidade. De modo que, insensivelmente
desarraigados, esses elegantes fazem desaparecer a tradição dos costumes
paulistas num reflexo dândi do conforto dos castelos de Inglaterra ou de França.
(RIO, 2002, pp. 25-6. Grifo meu.)

Aliás, como se vê no final da citação, há um evidente contraste determinado pelo


autor entre a tradição e a modernidade nessa representação, que volta ao final desse texto
de contextualização: “O aspecto é agradavelmente disparatado: o da tradição, que não se
recolhe, e o do modernismo apreciado em excesso” (Idem, ibidem). Esse confronto,
simbólico para o que a própria dramaturgia de João do Rio possa significar para aquele
momento, aparece depois na ação da peça pela representação antagônica do trabalhador e
da elite. O trabalhador como sustentáculo dessa velha tradição fazendeira do interior
paulistano, enquanto a elite se traveste da elegância europeia em evidente contraste com a
realidade em que vive.
Dentre as personagens que flanam pela fazenda, o jornalista Godofredo é um
dândi, em sua posição de observador arguto das fragilidades e das falsas aparências: “Do
alto de sua pose ilustre, o dândi de João do Rio não tarda a se revelar um observador atento
das falsas aparências, como que a afirmar uma consciência privilegiada do Autor sobre as
condições de sobrevivência do ofício que exerce” (LEVIN, 1996, p. 96). Por sua natureza

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independente, é porta-voz dos comentários mais ácidos. No papel de raisonneur da peça, ele
tem a função de dizer o que o autor pensa, como um próprio alter ego: “Estamos numa
sociedade fútil! Sou fútil” (RIO, Op. cit., p. 78). É por meio dele, figura paradoxal por estar
incorporada àquela situação mas ao mesmo tempo criticá-la, que são expressas as opiniões
sobre essa sociedade e seus hábitos. Tanto assim que é ele quem dá um resumo da situação
pela qual a aristocracia fazendeira está passando:

(Mas surgem dois trabalhadores, que falam com carregado acento italiano, e
vagarosamente, com atenção, já estão a descer da varanda.)
Godofredo (vendo-os) – Que há?
1º Trabalhador – O patrão?
2º Trabalhador – O conde de Prates...
Godofredo (seco) – Não está!
1º Trabalhador – É que disseram que já chegara... Não são os seus
aposentos aqueles?
Godofredo – São. Mas que têm vocês com isso?
2º Trabalhador – Não. Queremos falar só...
Jorge – Falem ao capataz... É melhor, ou voltem.
1º Trabalhador – Voltaremos... Perdão...
(Saem rápidos.)
Jorge – Que caras!
Godofredo – São os substitutos dos pretos, meu caro. Anarquistas,
protegidos pelos patronatos e os cônsules! Os fazendeiros paulistas
bailam sobre um vulcão. Um desses tipos parece-me o jardineiro. Ainda
outro dia encarregou-se do fogo de vistas. Que problema terrível! (Idem:
pp. 50-2)

Essa cena, uma das mais emblemáticas da peça, se refere a um problema social
vigente no período, a transição de uma sociedade escravocrata para a do trabalhador
assalariado. A substituição dos negros pelos italianos, anarquistas, a repercussão disso para
os fazendeiros e para a aristocracia aparecem como um elemento deslocado no meio do
diálogo corrente entre Godofredo e Jorge. Como temática nova, a presença dos
trabalhadores não consegue ser absorvida pela estrutura a ponto de se transformar em
composição orgânica do texto teatral. O que se nota é um aparte no desenvolvimento da
ação dramática, uma inserção que não encontra respaldo na estrutura dramatúrgica
escolhida por João do Rio.
Esse momento e outros, como a própria figuração da futilidade daquele meio, o
encontro em um salão de uma fazenda do interior (mas cuja caracterização lembra um
salão europeu), o olhar crítico para aquela sociedade que se deixa seduzir pelo gosto do
estrangeiro, a imposição do francês como língua oficial da aristocracia e da burguesia
crescente, todos são temas que passeiam pela trama, sem se compor propriamente como
um elemento de engendramento do texto. A ação dramática, aliás, que se arrasta pelos dois

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primeiros atos, se acelera no final do segundo e no terceiro atos. Essa concentração poderia
sugerir uma ruptura no encaminhamento da ação dramática por meio de um esvaziamento,
concentrando a peça na própria perspectiva de crônica social. No entanto, essa ruptura não
se efetiva e, o que antes poderia ser um rearranjo estético-formal, torna-se insuficiência
dramatúrgica.

INVERTENDO OS PAPÉIS
No período em que João do Rio se dedicou às letras, o Brasil ainda sofria fortes
influências da cultura francesa, seu teatro, sua cultura e língua. Pode-se observar, no
repertório do Teatro Municipal do Rio de Janeiro nesse decênio, a quantidade de
companhias francesas que estiveram na capital federal e trouxeram em sua bagagem textos
consagrados da dramaturgia francesa e do seu teatro de boulevard. Essa cultura importada da
França exigia um público que estivesse à altura de sua elegância, que acompanhasse a moda
parisiense e estivesse a par do teatro que acontecia na capital francesa. E a elite carioca se
esforçava para manter esse perfil. Como, sem dúvida, João do Rio foi “um verdadeiro
retratista das máscaras e emoções da elite cosmopolita da capital na Belle Époque” (LEVIN,
2002: p. xxxiv), esse impulso imitativo se tornou objeto de observação do autor, colocando
em cena essa elegância europeia, algumas vezes às avessas.
No divertido ato Que pena ser só ladrão!, escrito e encenado em 1915, são colocadas
em cena não a elite da sociedade carioca, mas duas personagens periféricas: um ladrão e
uma prostituta. O ambiente em que a peça se desenvolve é tão paradoxal quanto aquele de
Eva, já que em um quarto de pensão decadente aparece a elegante figura do Gentleman, o
ladrão. Esse contraste imediato se estende às personagens e à sua composição. Enquanto o
Gentleman se configura como um homem inteligente, sagaz, elegante e culto, a jovem
prostituta se coloca imediatamente contra essa imagem, sendo pintada como ingênua, de
mau gosto e parva. Na figura do ladrão de maneiras finas e fala inteligente, a elegância
continua no palco, agora pela inversão de alguns valores sociais consagrados. Em falas
espirituosas, ágeis, o Gentleman mostra toda sua consciência ao optar por uma “profissão”,
por mais periférica e excluída que ela seja:

Todas as profissões são interessantes quando nos destacamos nelas.


Depois, minha filha, devo dizer que escolhi a profissão de gatuno
admirável, em primeiro lugar porque é a única profissão em que o
reclamo foi abolido; em seguida porque no Brasil todas as outras
profissões estão inteiramente desmoralizadas (RIO, Op. cit., p. 190).

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Assim, ele defende sua “profissão”, sagrando-a tão ou mais importante que as
outras. Dizendo-se gatuno de alto escalão, já que todas as profissões têm categorias, ele
inverte o senso-comum a respeito dos ladrões e confunde a jovem com quem conversa:

A menina só tem uma desculpa: procedeu como a sociedade, cuja estupidez


coletiva só se mede pela própria inconsciente depravação... Esse, porém,
foi o primeiro absurdo – porque, logo que me viu bem vestido e falando
bem, a menina resolveu achar impossível que eu fosse gatuno,
simplesmente gatuno, ofendendo-me no meu mais sério orgulho: o
orgulho profissional. (Idem, p. 195. Grifo meu).

Essa subversão de ideias garante ao texto uma dubiedade comum à dramaturgia de


João do Rio: ao mesmo tempo em que observa a sociedade com distanciamento, podendo
assim elaborar um olhar crítico, o Gentleman está inserido nela, fazendo parte e
reproduzindo seus hábitos. Como Godofredo, o ladrão dândi imita os gestos elegantes da
elite a que critica, estabelecendo um jogo de proximidade e distanciamento que pode
parecer, em um primeiro olhar, uma crítica superficial elaborada pelo autor. Mas ao colocar
essa postura em cena, o autor absorve as características da crônica na sua estrutura
dramatúrgica, desenvolvendo um hibridismo que não se acentua, mas sugere a insuficiência
do gênero dramático para a exposição de determinado ponto de vista. Como em Eva, esse
teor de crônica se desenvolve especialmente nas rubricas. Em Que pena ser só ladrão!, o ato
único é aberto por uma pormenorizada descrição do ambiente decadente em que a ação se
passa, com breves mas incisivos comentários do autor:

É uma pensão meio-termo, de um chique de terceira ordem. (...) O quarto


está em desordem. O relógio bate duas horas, na ocasião em que se
descerra o pano, para mostrar ao público (se houver público), quadro tão
simples. (...) Pelo ar correto é senhor de maneiras finas. – Para não dizer
cavalheiro (o que não seria elegante), é um GENTLEMAN (Idem, p. 177. Grifo
meu).

O cronista fugidio, que emerge em certos momentos do texto teatral, coloca em


questão – senão diretamente, mas com algumas nuances – o fazer dramatúrgico. Não há
aqui, como tampouco em outras peças de João do Rio, um questionamento direto da forma
do drama6. Mas como obra que se coloca como alternativa para o famigerado teatro ligeiro
do início do século XX, subvertendo alguns princípios determinados pelas condições da
sociedade, Que pena ser só ladrão! é, além de divertida, uma maneira de olhar para a situação,

6Esse questionamento só irá se tornar realmente direto com as peças escritas na década de 1930 por Oswald
de Andrade. Anos depois, em 1943, Vestido de noiva também será um questionador do drama tradicional.

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absorvendo-a mas criticando-a: “Pobre pateta que não compreende a sua miserável posição
na sociedade!” (Idem, p. 202), diz o ladrão para a prostituta.

CREPUSCULAR
Uma das principais alternativas para o teatro comercial vigente no início do século
XX foi o teatro de vertente simbolista, que se desenvolveu timidamente no Brasil. Roberto
Gomes foi o nome de maior destaque, aquele que melhor compreendeu as propostas do
belga Maurice Maeterlinck7. Outros autores do período, no entanto, não deixaram de
ensaiar textos cuja filiação ao simbolismo se torna mais ou menos evidente: Guilherme de
Almeida em parceria com Oswald de Andrade, Renato Vianna, e o próprio João do Rio
foram alguns. A prosa deste último é nitidamente decadentista, visão que ele abandonou de
alguma forma no seu teatro e retomou com mais força em Encontro, que estreou juntamente
com Que pena ser só ladrão!, em 6 de setembro de 1915 no Teatro Trianon.

Encontramos neste texto [Encontro], conforme já se demonstrou, os


elementos do teatro de filiação simbolista, na exploração das sensações
vagas e hesitantes do sonho e da memória, a fim de desenhar uma
imagem lírica da vida interior, que contrasta com a dura realidade.
(LEVIN, 2002: p. xxiii)

Nesta peça, um ato sobre uma triste saudade, está em cena Adélia da Pinta, que
cantarola tristemente na porta da sua casa, em Poços de Caldas. Carlos, que passa à sua
porta, é “elegante, muito elegante, com ar de estrangeiro”, mas está “aborrecido e triste”.
Esse encontro furtivo vai desencadear lembranças, remorsos e saudades entre Adélia, que,
pelas vicissitudes da vida, se tornou prostituta, e Carlos, seu namorado de juventude. As
personagens, contaminadas por uma visão decadentista, duelam-se entre a alegria do
reencontro e a tristeza das lembranças do passado. Cada qual colocado na sua condição
social (Adélia era filha de trabalhador, enquanto Carlos era estudante), eles sofrem as
agruras do tempo e das decepções: ela se casou porque foi abusada, separou, tornou-se
prostituta para não morrer de fome e foi trocando de homem, “caía num para escapar de
outro”. Já Carlos, embora formado, tudo o que fez foi envelhecer. Ambos, marcados pelo
tempo e pela realidade dura, prendem-se à lembrança do passado, com a certeza de que não
o terão de volta. Embalados pelos sonhos, recordam os bons momentos que tiveram na
juventude, de um amor que foi interrompido pelo pai da jovem:

7 Ver: MEDEIROS (2011).

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Carlos (toma-lhe as mãos, aperta-as, beija-as) – Estas mãos são minhas...


Adélia – Eu já não sou a mesma, Carlos. Não sejas cruel...
Carlos (beija-lhe os braços) – Destes braços ninguém me tira!
Adélia – Carlos... Carlos, não lembres...
Carlos (envolta a face nos cabelos dela) – Eu tenho medo da floresta! a
floresta...
Adélia (presa de arrepios) – Carlinhos! Carlinhos! Por Nossa Senhora da
Penha não me mates! Meu Deus! meu Deus! (RIO, Op. cit., p. 235)

A cena da lembrança é envolta de lirismo e de uma atmosfera onírica, em que se


debatem o desejo do reencontro e a consciência da dureza da realidade. Desse conflito,
quem ganha é a memória: para manter intacto o sonho do amor impossível e não realizado,
Adélia nega a Carlos um instante de prazer, preferindo guardar-se para os sonhos, sem
comprometer o amor com a triste realidade em que vivem. Essa realidade é para os outros;
para Carlos, ela guardou seu sentimento. Então, Adélia tem sua conclusão: “foi um sonho.
(...) Que bom que foi!”, enquanto “(pega no cesto, cantarola triste. E de repente aos soluços) Minha
Senhora das Dores! Foi mentira... dize que foi mentira. Eu vi a minha vida, eu vi! Tem pena
da desgraçadinha” (Idem, p. 244).
Ambas as personagens estão no crepúsculo da vida, quando já não têm mais
esperanças de felicidade, vivem à espera do amanhã, não desejam nada mais do que a
continuidade do cotidiano. E esse cotidiano mostra a profundeza de suas almas, de suas
vidas tristes, compostas de sonhos falidos. É, enfim, uma atmosfera bastante decadentista,
que ajuda a alinhar esta peça à tradição simbolista de representação da dor e do sofrimento
pelas representações simbólicas e pela atmosfera de sonhos que envolve as personagens.
Apesar de acusada de ser uma estética preocupada apenas com a “arte pela arte”,
em que os aspectos sociais são negligenciados, há de se considerar que o simbolismo foi
um dos mais importantes movimentos de renovação cênica na Europa, especialmente com
o teatro de Maeterlinck, as encenações de Lugné-Poe na França e, na Rússia, as
experimentações de Meyerhold. Também aqui no Brasil é preciso levar em consideração
essa inclinação teatral, pois alguns autores se esforçavam, visivelmente, para a renovação
dos palcos por meio de elementos que anteviram o teatro de vanguarda. Se não causaram
grandes transformações cênicas, é porque havia toda uma ausência de tradição contra a
qual teriam que lutar. Mas seus esforços existiram e são transparentes na construção de
seus textos. No entanto, dentre os autores que experimentaram os recursos simbolistas, é
perceptível que pouco absorveram da estética, não compreendendo o questionamento da
forma dramatúrgica que ela impõe com o esvaziamento das personagens, fragmentação da
narrativa, supressão das fronteiras entre a realidade e o sonho. Pouco disso encontramos
no teatro de inclinação simbolista desenvolvido no Brasil.

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De todo modo, o que se vê na dramaturgia de João do Rio são experimentações


dramatúrgicas, uma busca de um teatro destoante. Assim como outros autores do período,
há uma preocupação de não se distanciar de todo do público, mas acentuando na
literariedade de seus textos, pensando que assim seria feito um teatro melhor. Se
teatralidade era um termo fortemente aliado ao teatro comercial, o diferente seria fazer um
teatro literário. Ao propor essa perspectiva, vislumbra-se a premissa de um questionamento
do fazer teatral em voga, mas que não cresce, não se alimenta, encontra barreiras nas
condições externas e nas formas dramáticas impostas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CHAVES JR, Edgard de Brito. Memórias e glórias de um teatro: sessenta anos de história do Teatro Municipal
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Cia. Editora Americana, 1971.
FRAGA, Eudinyr. As peças em francês. In: ANDRADE, Oswald; ALMEIDA, Guilherme. Mon
coeur balance/ Leur âme. Tradução de Pontes de Paula Lima. 3. ed. São Paulo, Globo, 2003.
LEVIN, Orna Messer. A elegância nos palcos. In: RIO, João do. Teatro de João do Rio. São Paulo,
Martins Fontes, 2002. pp. ix-xxxv.
_______. As figurações do dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, Editora da Unicamp,
1996.
MEDEIROS, Elen de. Formas crepusculares, dores silenciosas: o teatro simbolista de Roberto
Gomes. Pitágoras, 500 – Revista de Estudos Teatrais. vol. 1 – out. 2011. Disponível em:
http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/issue/view/3/showToc
NEVES, Larissa de O.; LEVIN, Orna M. O theatro: crônicas de Arthur Azevedo. Campinas, Editora
da Unicamp, 2009.
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro. São Paulo, Edusp, 1999.
PEIXOTO, Níobe Abreu. João do Rio e o palco: página teatral. São Paulo, Edusp, 2009.
_____________. João do Rio e o palco: momentos críticos. São Paulo, Edusp, 2009.
RIO, João do. (Org. Orna Messer Levin) Teatro de João do Rio. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

Abstract: Considering theater circumstances in the beginning of 20th century, notably influenced by
French culture and by belle époque, Paulo Barreto’s (João do Rio) playwriting distinguishes itself
between the plays currently staged by creating a social picture of his time, sculpting an elegant
theater. This paper’s aim is centered in the analysis of this playwriting by means of accomplishing a
theater renewal, which was craved by several authors of that period.

Keywords: João do Rio; Brazilian theater; theater renewal.

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