Pesquisa em Animação, Cinema e Poética.

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Copyright © Mariana Ribeiro Tavares e Maurício Gino, 2019

Editor Álvaro Gentil


Produção Executiva Paula Pessoa
Revisão Amanda Damasceno Batista
Editoração Rubem Filho
(Capa sobre arte de Daniel Leal Werneck)

Catalogação na Publicação (CIP)

P474 Pesquisas em animação : cinema e poéticas tecnológicas /


Mariana Ribeiro Tavares ; Maurício Silva Gino (org.). - Belo
Horizonte : Ramalhete, 2019.
280 p. : il. p&b.

ISBN 978-65-5034-016-2

1. Animação (Cinematografia) 2. Arte por computador 3.


Cinema I. Tavares, Mariana Ribeiro II. Gino, Maurício Silva
CDD: 741.5
Bibliotecária responsável: Cleide A. Fernandes CRB6/2334

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer processo


sem autorização expressa do autor. Primeira Edição: Belo Horizonte, 2019.
Este livro está de acordo com a nova ortografia.

EDITORA RAMALHETE
Rua Domingos Vieira, 319/1008 – Santa Efigênia
Belo Horizonte – MG – 30150-240
(31) 2535-1901
www.editoraramalhete.com.br
[email protected]

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001
This study was financed in part by the Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001

Belo Horizonte, 2019

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Conselho Editorial

Alejandro R. González
Universidad Nacional de Córdoba/Argentina
Carla Schneider
Universidade Federal de Pelotas, RS/Brasil
Carlos Falci
Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil
Evandro José Lemos da Cunha
Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil
Felipe Silva Montellano
Universidad Tecnológica Metropolitana - UTEM, Santiago/Chile
Mariana Ribeiro Tavares
Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil
Marcos Buccini Pio Ribeiro
Universidade Federal de Pernambuco/Brasil
Rebeca da Cunha Recuero Rebs
Universidade Federal de Pelotas,RS/Brasil

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Reitora
Profa. Dra. Sandra Goulart Almeida
Vice-Reitor
Prof.Dr. Alessandro Fernandes Moreira
Diretor da Escola de Belas Artes
Prof. Dr. Cristiano Gurgel Bickel
Coordenação do Programa de Pós-Graduação PPGARTES/EBA
Profa.Dra. Mônica Medeiros Ribeiro

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Dedicado aos professores
(In memorian):

José Américo Ribeiro


e José Tavares de Barros,
que introduziram o Cinema de Animação
na Escola de Belas Artes da UFMG.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................... 9
Mariana Ribeiro Tavares e Maurício Silva Gino

HISTÓRIAS DA ANIMAÇÃO

1 Jornada de um animador: do Super-8 ao Anima Mundi ........ 17


Marcos Magalhães
2 A revolução silenciosa da animação mineira ........................33
Sávio Leite
3 Metalinguagem na animação: a “mão do artista” ................ 40
Ana Lúcia Andrade
4 O documentário animado:
novas abordagens na representação da realidade .................. 56
Jennifer Jane Serra
5 O holocausto em Roger Rabbit ............................................. 71
Luiz Nazario
6 A cauda longa na Netflix:
Super Drags e a valorização do mercado de nicho ............... 91
Wagner Rodrigues Miranda

PROCESSOS E TÉCNICAS

7 Movimento Criativo na Animação de Personagem ............... 111


Antonio Fialho
8 Glitter e poeira:
notas sobre filmes criados diretamente na película ............... 128
Daniel Leal Werneck
9 “Homem-Estátua” - Oficina de Modelo Vivo e Animação .... 146
Marcos Magalhães

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10 A singularidade gráfica no desenho de animação
de Marcelo Marão .................................................................. 154
Simon Pedro Brethé
11 Tornando física a animação facial digital
para a animação de bonecos: o caso Laika ............................. 171
Leonardo Rocha Dutra

POÉTICAS TECNOLÓGICAS

12 Estratégias para produção de trabalhos audiovisuais ao vivo


............................................................................................... 185
Henrique Roscoe Correa Pinto
13 Parquear Bando _ Objetos Coreográficos ........................ 203
Thembi Rosa
14 Arte Computacional Botânica: Argumentações
sobre a replicação do modelo de comportamento de plantas
............................................................................................... 217
Marília Lyra Bergamo
15 A música se move? ......................................................... 231
Jalver Bethônico e Rafael Sodré de Castro
16 Conceituação e relações entre espaços audiovisuais ...... 253
Fabio Wanderley Janhan Sousa

SOBRE OS AUTORES ........................................................ 271

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APRESENTAÇÃO

Mariana Ribeiro Tavares


Maurício Silva Gino

Este livro reúne as pesquisas apresentadas no 1º


Seminário Pesquisas em Animação, Cinema & Poéticas
Tecnológicas organizado pelo PPG-ARTES, Programa
de Pós-Graduação em Artes, da Escola de Belas Artes
da UFMG, em Belo Horizonte, em novembro de 2018. Os
textos foram articulados a partir da proposição comum em
torno de pesquisas recentes realizadas no Brasil sobre o
cinema de animação e sua interface com outras linguagens
artísticas – como artes digitais, dança, artes visuais e músi-
ca – assim como discutir e evidenciar diferentes aplicações
da linguagem e técnica da animação no campo das artes e
sua interlocução com a história, o documentário e as novas
tecnologias.
A primeira parte do livro – Histórias da Animação – tem
início no capítulo 1, “Jornada de um animador: do Super-8
ao Anima Mundi” com o relato de Marcos Magalhães sobre
o início de sua trajetória e a experiência como coordenador
do primeiro Núcleo de Animação do Brasil (1985), no Cen-
tro Técnico Audiovisual da Embrafilme, CTAV, no Rio de
Janeiro. Com a consolidação do Núcleo, foram organiza-
dos numa segunda etapa, cursos de formação em outros
estados visando à criação de núcleos regionais. Em Minas
Gerais, o Núcleo Regional de Cinema de Animação foi im-
plantado na Escola de Belas Artes da UFMG, que já pos-
suía de forma pioneira no país uma habilitação em Cinema

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de Animação, dentro do Bacharelado em Belas Artes.
No capítulo 2, “A revolução silenciosa da animação
mineira”, Sávio Leite discorre sobre as atividades da
MUMIA – Mostra Udigrudi Mundial de Animação, que, há
quase duas décadas, promove o diálogo entre a animação
brasileira e internacional por meio de mostras e oficinas
de formação, tornando-se o segundo evento mais signifi-
cativo do país. O caminho trilhado pela MUMIA reflete o
desenvolvimento da produção nacional, desenhando um
percurso no sentido da profissionalização do setor graças
a editais de fomento que surgiram a partir dos anos 2000.
Refletindo sobre os pioneiros da animação internacio-
nal, Ana Lúcia Andrade, no capítulo 3: “Metalinguagem na
animação: a “mão do artista”, analisa a presença do artis-
ta animador como personagem de sua própria narrativa,
que cria e “dá vida” a seu personagem animado. Estratégia
presente desde os pioneiros até produções atuais, eviden-
ciando-se expressivos exemplos de filmes ocidentais a uti-
lizarem este recurso.
No capítulo 4, “O documentário animado: novas abor-
dagens na representação da realidade”, Jennifer Jane
Serra descreve como a irrupção do documentário anima-
do está relacionada com mudanças ocorridas no campo
da animação, mas sobretudo como é motivada por no-
vas abordagens na argumentação e representação docu-
mentária e pelo domínio da subjetividade nos processos de
ressignificação da realidade através do audiovisual.
Uma Cilada para Roger Rabbit (1988), de Robert Ze-
meckis, live-action com direção de animação de Richard
Williams é analisado do ponto de vista da história por Luiz

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Nazario, no capítulo 5. Já Super Drags, primeira animação
original Netflix produzida no Brasil é analisada no capítulo
6, “A cauda longa na Netflix: Super Drags e a valorização
do mercado de nicho” em que Wagner Rodrigues Miranda
discute as possíveis motivações que justificam os investi-
mentos da plataforma audiovisual nesse mercado.
A segunda parte do livro – Processos e Técnicas – é
inaugurada no capítulo 7, “Movimento criativo na animação
de personagem” com reflexão de Antônio Fialho sobre a
construção do movimento para o desenho animado com
personagem, tema ainda pouco abordado pela pesquisa
científica no país. A técnica da animação direto na película
é abordada por Daniel Leal Werneck no capítulo 8, “Glitter
e poeira: notas sobre filmes criados diretamente na pelícu-
la” em que ele traça um percurso histórico do procedimento
e compartilha experiências recentes vivenciadas no Grupo
de Estudos em Cinema de Animação em Stop-Motion da
Escola de Belas Artes da UFMG.
No capítulo 9 “Homem-Estátua – Oficina de Modelo Vivo
e Animação”, Marcos Magalhães relata uma experiência
didática com dinâmica de movimento, desenvolvida dentro
do paradigma da animação espontânea e aplicada no cur-
ta-metragem Homem-Estátua (2007). O conceito de matriz
autoral é utilizado por Simon Pedro Brethé para identifi-
car “A singularidade gráfica no desenho de animação de
Marcelo Marão”, tema do capítulo 10. E a animação facial
para bonecos é estudada por Leonardo Rocha Dutra no
capítulo 11, “Tornando física a animação facial digital para
a animação de bonecos: o caso Laika”.
A terceira parte do livro, dedicada às Poéticas Tecnológi-

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cas, inicia-se no capítulo 12, “Estratégias para produção de
trabalhos audiovisuais ao vivo” em que Henrique Roscoe
Correa Pinto percorre a trajetória da Visual Music e as no-
vas possibilidades de expressão a partir do computador,
como a Arte Generativa, para compartilhar seus trabalhos
artísticos em que modos de fazer da Visual Music e da Arte
Generativa estão presentes e expandem o resultado final
das obras.
No capítulo 13, “Parquear Bando – Objetos Coreográ-
ficos”, Thembi Rosa compartilha o processo de criação em
torno de animações e objetos coreográficos realizados com
alunos da graduação do Curso de Cinema de Animação e
Artes Digitais – CAAD – e da Licenciatura em Dança da Es-
cola de Belas Artes/UFMG, que participaram do Lab “Som,
Imagem e Performance Computacional”, disciplina minis-
trada pelo Prof. Dr. Jalver Bethônico.
Marília Lyra Bergamo propõe questões e característi-
cas para o desenvolvimento de uma Arte Computacional
Botânica no capítulo 14, “Arte Computacional Botânica:
Argumentações sobre a replicação do modelo de compor-
tamento de plantas.” As relações entre a música e o au-
diovisual são investigadas nos capítulos subsequentes.
No capítulo 15, Jalver Bethônico e Rafael Sodré de Castro
lançam a questão: “A música se move?” para argumentar
que, na experiência musical, o ouvinte lida com mudanças
que se desenvolvem no eixo temporal e que o reconhe-
cimento desta temporalidade revela que a música possui
uma dimensão em comum com o movimento, mas que não
compartilha com ele os mesmos requisitos.
Por fim, no capítulo 16, “Conceituação e relações en-

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tre espaços audiovisuais”, Fabio Wanderley Janhan Sousa
identifica diferentes conceitos relacionados à utilização do
termo “espaço” nas áreas de música e artes visuais, bus-
cando estabelecer possíveis relações entre eles e apontan-
do alguns paradoxos em suas diversas aplicações.
Ao abordar a animação em suas conexões com as ar-
tes digitais, com a dança, as artes visuais e a música, nos
diferentes recortes teóricos e metodológicos propostos,
esperamos contribuir para a animação expandida, abrindo
perspectivas e impulsionando novas pesquisas.

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HISTÓRIAS DA ANIMAÇÃO

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1

JORNADA DE UM ANIMADOR:
DO SUPER-8 AO ANIMA MUNDI

Marcos Magalhães

Sou um Animador. Sou, também, um Professor.


Considero-me um animador desde os 14 anos de idade.
Talvez até antes disso. Ao longo da vida, tive inúmeras
oportunidades encadeadas que me levaram a poder viven-
ciar esta linguagem por diver-
sos ângulos. Sou realizador
de filmes e gosto de afirmar
que esta é a minha atividade
principal e final, embora hoje
em dia não seja a função que
mais ocupe meu tempo.
Meu primeiro filme, A Se-
mente (1974), que realizei aos
15 anos de idade, foi filmado
em película Super-8mm, com
uma mesa de luz improvisa-
da em truca de animação,
Mesa de luz e truca de anima- construída com a ajuda do
ção com câmera Super-8 aco- marceneiro da família.
plada, usada para a animação Ao realizar com suces-
e filmagem do curta A Semente
(1974). so a história que desejava
Fotografia: Marcos Magalhães. contar, senti a imediata ne-

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cessidade de compartilhar os segredos desta linguagem
que me atraía irresistivelmente. Na ficha de inscrição do
filme na Mostra do Filme Super-8, da Cinemateca do Mu-
seu de Arte Moderna, em 1974, escrevi um verdadeiro tuto-
rial sobre a técnica que havia pesquisado e utilizado, o que
foi ressaltado e reconhecido, com uma evidente surpresa,
pelos organizadores da mostra.
Esta teria sido minha primeira experiência de “sociali-
zação” criativa: dividir publicamente, em um festival, uma
expressão pessoal e artística que fora criada em minha
intimidade, apenas para satisfazer meu desejo e minha
necessidade de criar imagens e narrativas em movimen-
to. Entusiasmado pela “descoberta” de um novo processo,
queria muito compartilhar esta experiência com os demais
participantes. Fazer cinema documentário ou com atores,
mesmo de forma não profissional, como acontecia com
a imensa maioria dos filmes daquele festival amador, me
parecia enormemente diferente do meu processo. Na épo-
ca, a facilidade de manuseio da câmera Super-8, uma bi-
tola amadora, tornava os curtas filmados ao vivo bastante
simples e espontâneos, um prenúncio do tipo de registro ao
qual hoje estamos bastante acostumados, devido à imensa
popularização dos meios de produção digital para filmes
amadores (gênero YouTube, etc).
Minha experiência era totalmente diferente. Para fazer
este primeiro desenho animado, tive que racionalizar um
processo inteiramente novo. Tudo deveria ser meticulosa-
mente antecipado, mesmo que nunca eu tivesse tido uma
experiência prévia com este processo. Porém, de algum
lugar eu retirava a certeza de que ia funcionar. Até hoje, A

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Semente permanece sendo o meu filme mais planejado,
com um storyboard que previa os tempos de todas as ce-
nas em frações de segundos.
Ao ver o filme pronto depois de semanas de trabalho in-
tenso, verificando que ha-via alcançado sucesso no que eu
pretendia, senti uma sensação aliviante de realização. O
fato de eu ter conseguido, por um impulso precoce e quase
obsessivo, explicitar na ficha técnica de inscrição o meu
processo particular de trabalho e a ele dar tanta importân-
cia, também pareceu singular para o júri e o público pre-
sente ao festival que mais de uma vez comentaram esse
fato comigo e meus familiares. Vem desde este episódio
a minha compreensão de que dominar o processo de tra-
balho e explicitar sua percepção por parte do autor é uma
intenção constante naqueles que produzem animações.
Muitos animadores que conheci posteriormente evidenci-
aram a mesma propensão a dividir não só o resultado de
sua criação, mas também os detalhes dos processos de
fabricação e evolução de seus trabalhos.
A exibição de A Semente teve desdobramentos impre-
visíveis: o filme foi selecionado para um circuito interna-
cional de mostras semelhantes, em cidades como Paris,
Londres e Nova Iorque. Deslumbrado com o fato, escrevi
cartas para cada um dos locais onde sabia que meu filme
seria exibido, como o Espace Cardin, em Paris, e recebi
simpáticas respostas atestando a recepção do filme. Nem
tudo foi sorte, no entanto: o único exemplar do meu filme
em Super-8 (que não possuía negativos) acabou se ex-
traviando nos correios e nunca voltou ao Brasil. Feliz-
mente, o adolescente nerd que eu era tinha todos os

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desenhos guardados e organizados, o que possibilitou a
refilmagem da obra, reconstituída integralmente e hoje te-
lecinada para vídeo. A partir daí, passei a ser frequente-
mente solicitado ou ter a iniciativa de dividir informações e
reflexões com o público de meus filmes ou dos eventos em
torno da animação dos quais participava. Antes de ser um
aluno (meu primeiro curso de animação foi um breve curso
livre ministrado em 1975, pelo eclético artista José Mário
Parrot, autor do primeiro filme eletrônico de animação bra-
sileiro, O Ballet de Lissajous [1973]) eu já dera até entre-
vistas aos jornais e instruíra quem me procurara para saber
como fazer animação em Super-8.
Com esse autodidatismo tão característico de todos os
animadores brasileiros até os anos 1980, continuei reali-
zando filmes e progredindo tecnicamente até realizar um
curta-metragem em 35mm, o Mão-mãe (1979)1, com cente-
nas de desenhos a lápis em preto e branco, que foi oficial-
mente selecionado (por intermédio da Embrafilme) para o
que seria meu primeiro festival internacional: o Festival de
Filmes de Cracóvia, na Polônia, em 1980.
Num ímpeto de insistência, consegui obter da Embra-
filme os meios para comparecer ao festival, o que possibi-
litou uma experiência inesquecível e muito proveitosa para
minha carreira. Lá, conheci animadores de todos os cantos
do mundo e fui convidado para levar meu filme a outros
eventos como o Festival de Zagreb, na então Iugoslávia.
Mas o período histórico desta viagem mostrava-se tam-
bém impactante, embora nem sempre de forma positiva.

1 Disponível em: https://vimeo.com/303028979

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Sentíamos uma tensão no
ar, que se devia ao intenso
controle sobre os visitantes
estrangeiros (na época, a
Polônia estava dentro da
“cortina de ferro” que isolava
os países sob domínio so-
viético do resto do mundo)
Marcos Magalhães em Cracó-
via, Polônia, durante o Festival
e particularmente pelo surgi-
de Filmes, 1980. mento de um movimento de
resistência, o sindicato “Soli-
dariedade”, ainda na clandestinidade, cujos grafites podía-
mos ver em toda parte sem entender ainda seu significa-
do. Devido a essa tensão política, não pude renovar meu
visto e ir até Varsóvia conhecer os estúdios de animadores
amigos, tendo que partir da Polônia imediatamente antes
que meu visto original vencesse. Senti-me quase “exilado”
por alguns dias e isso não foi muito agradável...
Mas esta experiência internacional encheu-me de con-
fiança e orgulho. E, sem dúvida, eu ainda precisava apren-
der muito mais. Desde cedo percebi que o aprendizado da
animação tem uma grande parcela de empirismo, como
ofício artesanal no qual é importante se ter a orientação
de um mestre e a postura de aprendiz. Na falta de escolas
por aqui, eu já havia elegido meu mestre: ninguém menos
que Norman McLaren, o animador de origem escocesa
que fundou o prestigiado estúdio de animação do Natio-
nal Film Board of Canada, cujos filmes tínhamos a chance
de assistir graças ao trabalho desenvolvido pelos consula-
dos canadenses, que colocavam à disposição de escolas

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e cineclubes, gratuitamente, cópias 16mm dos filmes do
acervo do NFB.
Com a ideia fixa de conhecer McLaren e os estúdios do
National Film Board, inscrevi-me em um edital da CAPES
que, conjuntamente com a Embrafilme, buscava candida-
tos que tivessem interesse em se especializar, com bolsas
para cursos de curta duração, em áreas do cinema brasilei-
ro que não tivessem possibilidade de formação em solo
nacional. Entre estas áreas estava, é claro, a Animação.
Mas o edital listava diversos países, como Estados Uni-
dos, França, Grã-Bretanha, República Democrática Alemã,
República Federal da Alemanha (as duas Alemanhas da
época, ainda divididas pelo muro de Berlim...) e até... a
Polônia, que eu acabara de conhecer ao vivo. Não en-
contrei qualquer menção ao Canadá, meu alvo principal.
Resolvi então agir por conta própria e fazer eu mesmo o
contato com o National Film Board através de cartas. Fe-
lizmente, sempre gostei de idiomas e meu inglês de pós-
-adolescente (já testado pelas cartas sobre A Semente) foi
suficiente para estabelecer uma correspondência com o
estúdio de animação do NFB, na época comandado pelo
célebre diretor e produtor Derek Lamb. Contei a ele sobre
minha experiência com curtas em Super-8, falei de meus
primeiros projetos de filmes profissionais e do meu desejo
de fazer um estágio em Montreal. A resposta foi simpática,
mas fazia uma ressalva: o NFB não era uma escola, nem
tinha um programa de formação de alunos ou estagiários
de animação. Mas poderiam aceitar a minha presença por
lá, caso se confirmasse a bolsa que pagaria minhas despe-
sas para a viagem e estadia.

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Neste meio tempo, recebi da Embrafilme a notícia de
que eu havia sido classificado pelo projeto da CAPES. E já
tinham tudo arranjado para que eu fosse fazer um estágio
de animação na... Polônia! Fiquei desnorteado com esta
possibilidade, pois sabia concretamente das dificuldades
daquele país na época. Felizmente, pude argumentar apre-
sentando a minha carta de aceitação pelo NFB. Repassan-
do esta informação à Embrafilme, abri caminho para que
não só eu, mas também outros dois classificados no pro-
grama, o fotógrafo Luiz Velho e a designer Noni Geiger,
acabássemos enfim embarcando para nossos estágios no
NFB em Montreal, de outubro de 1981 a março de 1982.
Logo antes de embarcar, eu estava prestes a completar
meu segundo filme em 35mm, e o primeiro a cores, com
uma pequena verba da Embrafilme: Meow!, de oito minu-
tos de duração. Ele teve sua pré-estreia no Cinema Cân-
dido Mendes em setembro de 1981 e ficou guardado até
minha volta do Canadá para iniciar sua carreira pública.
Ao chegar ao NFB, fui muito bem recebido por todos
os animadores e fiz questão de me apresentar a Norman
McLaren, então já aposentado de suas funções no estúdio,
mas ainda ativo criativamente, envolvido com a edição do
que seria o seu último filme, Narcissus (1983). Consegui
um projetor Super-8 e mostrei a ele e a Grant Munro, seu
parceiro em vários filmes, toda a minha “obra” até então. A
reação foi de muita simpatia e identificação com um jovem
iniciante, pois ele mesmo também começara sua brilhante
carreira com participações em festivais de cinema amador.
Durante todo meu estágio mantive um regular convívio
com o mestre, não em aulas ou sessões de tutoria formais,

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mas em encontros casuais na cafeteria do NFB ou em algu-
mas visitas à ilha de edição onde montava seu filme. Minha
estadia durou cinco meses em vez dos três inicialmente pre-
vistos, graças a uma carta de recomendação escrita em nome
de McLaren mas assinada por Grant Munro (devido a uma au-
sência temporária do mestre devido a problemas de saúde).
E nestes produtivos tempos realizei mais um filme, em
16mm, o que não estava previsto em meu programa de
trabalho, mas foi simplesmente uma oportunidade que eu
não poderia deixar de aproveitar! Animando2 se tornou o
relatório mais preciso e comunicativo de meu aprendizado
no NFB. Usando um personagem que eu costumava rabis-
car em meus rascunhos, decidi mostrar como ele poderia
se adaptar às diferentes técnicas de animação artesanais
que eu podia ver em uso nos diversos filmes sendo pro-
duzidos na época no estúdio, por animadores com os quais
convivia diariamente, e que mais tarde seriam reconheci-
dos como grandes nomes da animação mundial: os holan-
deses Paul Driessen e Co Hoedeman, a americana Caro-
line Leaf, o indiano Ishu Patel e muitos outros.
O sucesso de meu estágio chamou a atenção da Em-
brafilme, especialmente de seu diretor de operações não
comerciais, Carlos Augusto Calil, um grande incentivador
da animação. Foi dele a iniciativa de enviar o Meow!3 para
a seleção do festival de Cannes. E então, ainda tonto com a
volta ao Brasil depois de um período tão intenso no Canadá,
recebi a notícia de que meu filme iria participar do mais
prestigioso festival de cinema do mundo.

2 Disponível em: https://vimeo.com/178249990


3 Disponível em: https://vimeo.com/29268179

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Matéria da Revista “Manchete” sobre a Premiação no Festival
de Cannes 1982. A seta indica o premiado brasileiro.

A participação no festival de Cannes era inesperada,


pois tradicionalmente a animação nem sempre encontra
espaço em sua programação. Talvez devido ao fato de o
escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez ser o presi-
dente do Júri, num ano em que a América Latina estava em
evidência devido à Guerra das Malvinas, houvesse alguma
simpatia pelo único curta brasileiro em competição. Mas,
tendo eu conseguido a passagem e um “smoking” em-
prestado para estar presente ao festival, pude testemunhar
a autêntica reação do público ao meu filme nas sessões,
com muitas gargalhadas a cada miado do gato. E também
ouvi gravada, por um jornalista brasileiro, a declaração de
Geraldine Chaplin, filha do eterno mestre Carlitos: “J’adore
Meow!”...
Assim, foi quase um delírio psicodélico estar no palco
do encerramento para receber o inédito “Prêmio Especial
do Júri” que me foi concedido. Aos 23 anos de idade, eu

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realmente não conseguia ainda alcançar toda a dimensão
daquele evento.
A Embrafilme, representada por Calil, percebeu que
a animação era uma vertente a ser incentivada. Através
dos contatos que continuaram com o Canadá a partir das
minhas cartinhas iniciais, começaram a investir em um pro-
jeto conjunto com o National Film Board of Canada para
a formação de profissionais em animação e outras áreas
carentes de nossa cinematografia. Assim, após participar
de diversas reuniões de preparação deste projeto de co-
operação cultural, fui convidado, em 1985, a coordenar o
Núcleo de Animação do Centro Técnico Audiovisual (CTAv)
do Rio de Janeiro.
A primeira atividade a ser desenvolvida no CTAv, ainda
em meio às obras de adaptação de um prédio na movi-
mentada Avenida Brasil, seria a realização de um curso de
formação para dez animadores vindos de todas as regiões
do Brasil – o que se constituiria na primeira iniciativa oficial
de formação de profissionais de animação no país.
Encarregado de delinear o projeto do curso a partir
de minhas experiências de aprendizado no Brasil e no
Canadá, indiquei os nomes de dois animadores da parte
francesa do NFB e com eles passamos a preparar o pro-
grama do curso. Um aspecto importante seria a seleção
dos candidatos, que quis garantir que fosse a mais trans-
parente e abrangente possível. Numa época em que eram
escassos os meios de comunicação e organização entre
os profissionais e interessados em animação, tive a ideia
de realizar uma excursão pelo país, por cidades onde já se
tivera notícia da realização de filmes animados, ou da or-

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ganização de associações ou cineclubes. Preparei o con-
teúdo de uma palestra sobre animação, onde seriam exibi-
dos filmes selecionados do NFB, de Norman McLaren e os
meus dois curtas mais recentes, Meow! e Animando, além
das explicações sobre o projeto do CTAv e do convite para
inscrição para as bolsas do Curso Profissionalizante a ser
realizado por um ano, no Rio de Janeiro.
Passando por nove cidades de setembro a novembro de
1985, pude encontrar pessoalmente e avaliar os dez candi-
datos que afinal foram selecionados para este curso minis-
trado em conjunto por três professores: eu, Jean-Thomas
Bédard e Pierre Veilleux. A ideia seria de que os alunos de
outras regiões, que não o Rio e São Paulo, retornassem a
seus estados após o curso, levando um “kit” de equipamen-
tos de produção de animação que possibilitaria dar início
a um núcleo regional (como efetivamente aconteceu com
três cidades: Porto Alegre, Fortaleza e Belo Horizonte).
Assim, durante o ano de 1986, tivemos a primeira fase
do curso, com dez entusiasmados alunos e três profes-
sores não menos motivados, pois tínhamos a sensação
de pioneirismo e da oportunidade única de realizações.
Tivemos a desistência de um dos participantes, mas por
um motivo nobre: o paulistano Cao Hamburger recebeu,
logo ao início do curso, a notícia de que teria que realizar
em São Paulo um curta-metragem para o qual recebera
verbas governamentais. Não sendo possível conciliar os
calendários, ele teve que optar por seguir sua carreira
independente e se dedicar ao hoje célebre Frankenstein
Punk (1986), primeiro sucesso de sua hoje longa e diver-
sificada carreira como diretor de cinema e televisão (onde

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Da esq. para a dir: José Rodrigues Neto (CE), Fabio Lignini
(MG), Léa Zagury (RJ), Rodrigo Guimarães (RS), Patricia Alves
Dias (PE), Cesar Coelho (RJ), os professores Pierre Veilleux,
Marcos Magalhães e Jean-Thomas Bédard, Daniel Schorr (RJ),
a produtora Lucia Coelho, Cao Hamburger (SP) e no cantinho,
Aida Queiroz (MG). Está ausente da foto o capixaba Telmo Car-
valho, hoje à frente do NUCA em Fortaleza.

dirigiu, entre outros, o programa Castelo Rá-Tim-Bum).


A expectativa inicial era de que o grupo se dedicasse por
um ano a simples exercícios de animação, mas o clima de
entusiasmo fez com que todos completassem curtas-metra-
gens em 16mm, alguns destes chegando a ser premiados
internacionalmente (como Quando os Morcegos se Calam
[1986], Prêmio de Melhor Primeiro Filme em Hiroshima, do
mineiro Fabio Lignini, que hoje é um dos principais anima-
dores sênior dos estúdios norte-americanos Dreamworks).
O segundo módulo do curso, que previa a permanência
de apenas cinco alunos, enquanto os outros formados re-
tornavam às suas regiões ou partiam para novos projetos,

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teve como resultado o curta Alex (1986), uma audaciosa
criação e direção coletiva que também foi premiada inter-
nacionalmente, com o Coral Negro do Festival de Havana
(1987). Mas, devido às oscilações da política brasileira, o
acordo com o Canadá e o projeto de animação foram sen-
do descontinuados, até o ponto em que não vi mais razões
para continuar como funcionário da Embrafilme, pedindo,
então, demissão.
Segui como freelancer, dedicando-me a projetos de a-
nimação, para os quais contava frequentemente com a par-
ticipação de meus ex-alunos. Naquela época, falávamos
sobre a importância dos festivais de animação e eu sempre
apontava o quanto esta experiência tinha sido importante
para a minha formação profissional. Cheguei a esboçar um
projeto chamado “Planeta Animação”, que seria uma plata-
forma de “produção-distribuição-serviços-exibição-cur-
sos-promoção-shopping” em torno da linguagem da ani-
mação. Mas o cenário não era muito promissor no início dos
anos 1990, com a chegada de Fernando Collor4 à presidên-
cia e a implantação de seu desastrado plano econômico.
As políticas culturais foram demolidas e não havia muitos
horizontes para iniciativas independentes nesta época.

4 Fernando Collor de Melo renunciou à Presidência da República


dois meses depois da aprovação de seu impeachment na câmara
federal em 1993, após três anos de mandato. No início do seu gov-
erno, foram fechados os órgãos que sustentavam a produção e
a distribuição do cinema nacional: Empresa Brasileira de Filmes
- Embrafilme (1969-1990), o Conselho Nacional de Cinema – Con-
cine (1976-1990) e a Fundação do Cinema Brasileiro (1988-1990).
Com isso, o número de salas de exibição e de espectadores foi
reduzido drasticamente (www.ufscar.br/rua/site/?=1670).

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No entanto, um alento veio da inauguração de um novo
espaço cultural no Rio de Janeiro, o Centro Cultural Banco
do Brasil, em 1992. A minha hoje sócia codiretora do Anima
Mundi, Léa Zagury, que partira para os EUA para um mes-
trado na CalArts após ser minha aluna no CTAv, retornou
ao Brasil nesta época e visitou o CCBB com a ideia de tra-
zer uma pequena mostra de filmes de animação da escola
americana. Com ela estavam também outros dois meus
ex-alunos, Aida Queiroz, ex-aluna da UFMG selecionada
quando de minha visita a BH no processo de pré-seleção,
e César Coelho, que já fora aluno de meus cursos livres
anteriores ao CTAv, na Oficina de Cinema de Animação em
Vila Isabel.
Os três conversaram com Carlos Alberto de Mattos,
conceituado e sensível crítico de cinema que fazia a cura-
doria do CCBB e se entusiasmou com a ideia, sugerindo
que ampliassem o projeto para uma mostra internacional.
Eles lembraram-se então deste seu contemporâneo pro-
fessor, que já havia levado à frente alguns projetos de
sucesso, e me pediram para elaborar com eles o projeto
de organização da mostra. Entusiasmei-me mais uma vez
pelo sonho de realizar um festival no Brasil, e propus que
este tivesse um nome: Anima Mundi, a alma do mundo, ex-
pressão usada pelo psiquiatra Carl Gustav Jung, cuja obra
eu estava consultando em vista de um filme que realizava
com Fernando Diniz, do Museu de Imagens do Inconsci-
ente. Anima Mundi também sugeria o trocadilho “Animação
Mundial”, o que achamos bem oportuno para um festival e
se mostrou ao longo dos anos um batismo feliz!
Este foi o início do Anima Mundi, Festival Internacio-

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Léa Zagury, Cesar Coelho, Aida Queiroz e Marcos Magalhães,
os quatro fundadores e diretores do Anima Mundi, na 1ª edição
do festival, em 1993, no CCBB-RJ.
Foto: Acervo Anima Mundi

nal do Brasil, cuja primeira edição aconteceu em agosto de


1993 e ocorre ininterruptamente, há 27 anos, com a mes-
ma equipe de curadores e muitas histórias a serem conta-
das. Creio que, com este breve artigo, devo estar iniciando
a escrita de uma autobiografia na qual procurarei registrar
os detalhes de muitos outros encontros que as atividades
de animador, professor e diretor de um festival têm me pro-
porcionado ao longo da vida.

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2

A REVOLUÇÃO SILENCIOSA
DA ANIMAÇÃO MINEIRA1

Sávio Leite

Desde a sua primeira edição, em 2003, a Mostra Udi-


grudi Mundial de Animação – MUMIA – hasteou Minas
Gerais no mapa brasileiro do cinema de animação para
todos os públicos, não só para aficionados, mas para estu-
dantes, adultos, crianças. O reconhecimento que a Mostra
alcançou na América Latina e outros continentes ocorreu
de forma gradual, graças à persistência e obstinação da
curadoria na pesquisa por filmes de animação, à qualidade
e diversidade das exibições, dos cursos e seminários pro-
movidos ao longo dos anos e à ampla divulgação, sobretu-
do em Belo Horizonte, fonte e raiz deste evento.
Minas Gerais já se destacava no cenário nacional
quando, em 1986, foi criada na Escola de Belas Artes da
UFMG, a primeira habilitação em Cinema de Animação do
Brasil, dentro do Bacharelado em Belas Artes. Faltava um
festival específico, voltado para o público apreciador dos
filmes animados, ávido por novidades e que veio a se tor-
nar um público cativo.
Com o tempo, a MUMIA foi reconhecida como a
segunda mostra mais significativa do país dedicada à Ani-
mação. O caminho trilhado pelo evento reflete o desenvolvi-

1 Artigo escrito com a colaboração de Beatriz Goulart.

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mento da produção nacional, desenhando um percurso no
sentido da profissionalização do setor, graças a editais de
fomento que surgiram a partir dos anos 2000 e, sobretudo,
com a criação, em 2003, da ABCA – Associação Brasileira
de Cinema de Animação. Desde então, a entidade busca
o diálogo com os gestores públicos no intuito de assegurar
a presença de um representante do Cinema de Animação
para compor os júris nos editais nacionais para o audiovi-
sual.
Criada prioritariamente como forma de exibição dos tra-
balhos nacionais, a Mostra sempre exibiu filmes inéditos
de outros países. A aposta na exibição de todos os filmes
que chegavam às nossas mãos, sem seleção prévia, foi
uma estratégia arriscada. A qualidade poderia oscilar de
forma considerável. Por outro lado, facultava um caráter
de ineditismo, pois naquele momento, seria impensável um
festival que não tivesse uma rígida curadoria. Na maioria
dos festivais, a animação era relegada somente aos critéri-
os de mostras infantis e, de fato, havia poucos criadores
que se arriscavam a sair desse nicho. Ao longo do tempo,
a repercussão na imprensa foi se ampliando.
A MUMIA foi responsável por divulgar, em quase a sua
totalidade, a produção brasileira em cinema de animação.
Realizadores de destaque tiveram suas obras exibidas e
debatidas, como Otto Guerra, César Cabral, Victor Hugo
Borges, Andres Lieban, Studios Birdo, Arnaldo Galvão.
Projetos especiais como Universidade das Crianças e Multi
Rio foram apresentados. A Mostra também deu visibilidade
à produção latino-americana, exibindo filmes cubanos,
equatorianos, chilenos, colombianos, mexicanos e argenti-

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nos. Em contrapartida, as animações brasileiras foram exi-
bidas nesses países e também na Bolívia.
Já em sua terceira edição, em 2005, foram organizados
programas especiais de diretores estrangeiros como Phill
Mulloy (Reino Unido), Signe Baumane e Don Hertzfeldt
(EUA), Osamu Tezuka (Japão), Abi Feijó e Regina Pessoa
(Portugal), Max Hattler (Inglaterra) e Alex Budovsky (Rús-
sia). E levamos animações brasileiras à Finlândia, Holan-
da, Eslovênia, Estados Unidos, Armênia, Portugal, Norue-
ga e Itália – interseções que a mostra buscou durante suas
edições, não só exibindo programas internacionais de
qualidade, como também projetando a produção nacional
no exterior.
É notável o grau de maturidade que alguns realiza-
dores mineiros adquiriram como, por exemplo, o professor
da FUMEC, Marcelo Tannure que se dedica ao estudo e à
produção de animações 3D e que já teve várias de suas
produções exibidas na Mostra. Outro animador singular é
Jackson Abacatu, cujo filme mais recente, Contrastes, ins-
pirado em relatos de uma viagem a Israel, venceu a última
edição do festival. Podemos testemunhar a evolução de
ambos ao longo das edições da MUMIA.
Merece destaque a sofisticação dos trabalhos oriundos
da Escola de Belas Artes da UFMG. A preocupação com o
desenho e a fluidez das animações projetam os filmes no
País e no exterior, angariando prêmios importantes. Rea-
lizadores como Leonardo Catapreta, Giuliana Danza, Ta-
nia Anaya, Wilian Salvador (falecido prematuramente em
2009), iluminam o elenco de realizadores, pelo nível de
qualidade atingido, cada um à sua maneira, criando mun-

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dos e temáticas que fazem o público divertir e se questionar.
A MUMIA foi criada com os objetivos de exibição, dis-
tribuição, produção, formação e preservação da memória
da animação brasileira. Com estes objetivos foram edita-
dos três livros que abordam diferentes aspectos da pro-
dução nacional: Subversivos – O desenvolvimento do
cinema de animação em Minas Gerais (2013) e Maldita Ani-
mação Brasileira (2015) ambos pela Editora Favela É Isso
Aí, de Belo Horizonte e Diversidade na Animação Brasi-
leira (2018), pela Editora M Marte, de Goiânia. Observando
retrospectivamente nossa contribuição, apenas o quesito
produção ainda não foi contemplado amplamente, e sim
indiretamente, uma vez que a Mostra tem impulsionado a
produção a partir de oficinas, debates e encontros entre os
realizadores.
Pode-se dizer que a MUMIA acompanhou o desenvolvi-
mento da animação nacional nas primeiras décadas do sé-
culo XXI. O que antes era impensado, tornou-se possível
com longas e séries televisivas sendo produzidas no país.
Em 2017, foi lançada a coletânea MUMIA de Animações
Mineiras: um DVD com dez curtas representativos do esta-
do, realizados a partir do final dos anos de 1990 até obras
mais recentes.
Entre as parcerias estabelecidas nestas quase duas dé-
cadas (a MUMIA exibe animações em mais de dez locais
de Belo Horizonte, incluindo hospitais e Ongs) podemos
destacar a parceria com a Biblioteca Pública do Estado de
MG, com sessões em audiodescrição e libras como forma
de inclusão social e difusão da arte da animação para um
público ainda pouco contemplado em eventos culturais.

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Oficinas de formação

As oficinas cumprem o papel de propagar o conheci-


mento adquirido por profissionais de destaque. Em cinco
anos, foram realizadas 20 oficinas atingindo um público de
500 pessoas, entre iniciantes (incluindo aqui o público in-
fantil) e o profissional. Estas atividades resultaram na reali-
zação de vários curtas. As master classes – com estudos
de caso de determinados filmes – também são uma marca
do evento e levantam discussões no campo da animação
e da sustentabilidade, estimulando uma análise crítica
acerca dos ensinamentos que circulam nas produções
cinematográficas. Nosso objetivo segue sendo o de levar
para Belo Horizonte o melhor da produção mundial assim
como fomentar o ensino e a desmistificação dos processos
e técnicas inerentes à área. E, a despeito das dificuldades
financeiras enfrentadas todos os anos, almejamos criar um
prêmio anual específico para viabilizar a produção de um
projeto de animação.
A animação mineira cresceu em quantidade e quali-
dade. Nesses dezesseis anos, foram exibidos 349 filmes
feitos no estado. Profissionais formados em MG são re-
quisitados em outros estados e também no exterior. Os in-
centivos que começaram a aparecer logo após a criação
da Mostra contribuíram de forma significativa para o boom
que vivemos atualmente. Com mais incentivos, podemos
almejar a criar uma indústria.
A Mostra pretende igualmente expandir seu raio de ação
na criação de um Museu em Belo Horizonte que abrigue
seu acervo e o disponibilize gratuitamente aos pesquisa-

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dores e ao público em geral. O embrião já foi lançado e uma
pequena amostra do futuro Museu localiza-se em uma sala
no centro de Belo Horizonte. Do acervo já catalogado, além
das coleções de filmes em DVDs, CDs e VHS, destaca-se
a coleção de cartazes. Já foram realizadas 23 exposições
em galerias, museus, institutos e centros culturais de BH.
Essa trajetória reitera a importância da Mostra não ape-
nas por exibir o melhor da animação mundial – reciclando
os conhecimentos de estudantes e profissionais da área –,
como também projetando os trabalhos realizados em MG.
MUMIA e a arte da animação têm crescido juntas nessa
efervescência. Uma forma de expressão artística antes in-
visível a olhos leigos começa a ser notada, com grande
probabilidade de cair no gosto comum. Estamos de olho
nesta revolução silenciosa.

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Referências bibliográficas

BRAGA, Ataídes. Cachoeira de Filmes: o cinema Humberto Mauro


como espaço de exibição e resistência. Belo Horizonte: ed. Do autor,
2011.

BUCCINI, Marcos. História do Cinema de Animação em Pernambuco,


Recife: Serifa Fina, 2017.

IKEDA, Marcelo e LIMA, Dellani. Cinema de garagem - um inventário


afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI. Belo Horizonte/
Fortaleza: Suburbana Co., 2011.

LEITE, Sávio (org.). Subversivos – O desenvolvimento do cinema de


animação em Minas Gerais. Belo Horizonte: Favela É Isso Aí. 2013.

______. Maldita Animação Brasileira. Belo Horizonte: Favela É Isso


Aí, 2015.

______. Diversidade na Animação Brasileira. Goiânia: MMarte, 2018.


MOSTRA Udigrudi Mundial de Animação. Disponível em: <http://
mostramumia.blogspot.com/>.

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METALINGUAGEM NA ANIMAÇÃO:
A “MÃO DO ARTISTA”

Ana Lúcia Andrade

Introdução

A partir de estudos nos campos de pesquisa desta


autora – Análise Fílmica e Metalinguagem no Cinema –,
bem como da orientação da monografia de graduação A
presença física do artista no filme de animação (2012), de
Júlia Grijó, este texto aborda a presença do artista anima-
dor como personagem dentro de sua própria narrativa. A
relação articulada entre criador e criatura remete à metalin-
guagem, uma vez que evoca o código ao revelar parte do
processo de “dar vida” a personagens (no caso) desenha-
dos. O termo metalinguagem é empregado aqui como no
livro desta autora (ANDRADE, 1999, p. 16): “no sentido de
denominar o processo que revele estas estratégias de au-
to-referência do cinema, explicitando o seu código e reme-
tendo-se à sua própria estrutura”. Para Roman Jakobson,
em Linguística. Poética. Cinema (1975), “a metalinguagem
apresenta-se como uma das seis funções básicas da co-
municação verbal (função metalingüística), que focaliza o
‘código’ – no caso deste estudo, o código cinematográfico”
(ANDRADE, 1999, p. 181).
A metalinguagem no cinema pode ser referenciada de
diversas formas, através de citações a outros filmes, estilos

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narrativos ou diretores, de alusões ou temáticas relativas
ao universo cinematográfico, entre outras manifestações.
Especificamente no caso da animação, pode-se verificar
uma estratégia que evidencia o filme sendo feito “diante”
do espectador, explicitando o criador em sua criação e cha-
mando, assim, a atenção para o próprio código. Trata-se da
iconografia da “mão do artista”1 – apropriando-se de termo
utilizado por Donald Crafton, em seu artigo Animation Ico-
nography: The “Hand of the Artist” (1979) –, em que o ani-
mador passa a ser também um personagem de seu filme,
através da interação com o personagem gerado “diante”
do espectador. Segundo Crafton (1979, p. 409), o artista “is
the ostensible protagonist of the film and may be shown full
length, in close-up, or represented synecdochically by only
his hand or moving brush2”.
A presença do animador (mesmo através apenas de
sua mão) que cria e “dá vida” a seu personagem animado,
buscando controlá-lo e manter sua autoridade sobre ele, fa-
zendo o espectador “presenciar” o ato da criação e, ao mes-
mo tempo, imergir neste universo, está presente desde os pi-
oneiros da animação até produções atuais, evidenciando-se
expressivos exemplos de animações ocidentais a utilizar
esta instigante estratégia.

1 “[…] the extraordinary persistence of a single iconographic e-


lement throughout the life of a genre” (CRAFTON, 1979, p. 409).
Tradução livre: “[...] a extraordinária persistência de um único
elemento iconográfico ao longo da vida de um gênero”.
2 Tradução livre: “Ele é o protagonista ostensivo do filme e pode
ser mostrado em toda a sua extensão, em close-up, ou repre-
sentado sinedoquicamente [relativo à sinédoque – a parte pelo
todo] por apenas sua mão ou pincel em movimento”.

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Primórdios da Animação – Didatismo
e deslumbre diante da “mágica”

Os primórdios da animação remontam aos cartunistas


de jornais e, principalmente, ao Vaudeville, entretenimento
popular dos Estados Unidos, do final do século XIX, es-
pécie de show de variedades reunindo atrações diversas,
com acrobatas, dançarinos, cantores, atores etc. Dentre
eles, destacam-se os lightning sketchers (“desenhistas
relâmpago”), artistas com agilidade e precisão no traço que
se apresentavam desenhando em um cavalete virado para
o público, enquanto contavam histórias ou apresentavam
monólogos.
Com a crescente popularidade do cinema, já no início
do século XX, essas apresentações passaram a ser filma-
das – o que pode ser verificado em obras como Artistic
creation (Reino Unido, 1901), do ilusionista Walter R. Booth
(1869–1938) e produzido por Robert W. Paul (1869–1943).
O filme introduz o artista lightning sketcher (Figura 1) de-
senhando rapidamente
em seu cavalete as
várias partes do corpo
de uma mulher que
“ganha vida” através
da substituição dos de-
senhos por imagens
em live-action ou por
truques cinematográ-
ficos, como o stop-ac- Figura 1: Fotograma de Artistic cre-
tion – em que a captura ation (1901), de Walter R. Booth.

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da imagem é interrompida em determinado momento para
que um objeto seja mudado de lugar ou, neste caso, in-
serido na cena (como os braços e o restante do corpo da
mulher). Tal técnica de substituição denota a influência do
cinema ilusionista do francês Georges Méliès (1861–1938),
muito popular nos primórdios do cinema.
Vários pioneiros da animação, como o britânico James
Stuart Blackton (1875–1941) que se apresentava nos subúr-
bios de Nova York, haviam passado pela experiência como
lightning sketcher. Outros animadores, como o francês
Émile Cohl (1857–1938) e o norte-americano Winsor Mc-
Cay (1871–1934), vinham de carreiras como cartunistas
e ilustradores de jornais. Esses precursores utilizaram a
estratégia da “mão do artista” de forma quase didática,
procurando afirmar-se para o público, ao evidenciar a cons-
trução de desenhos animados, mas mostrando somente o
necessário, sem revelar seus segredos, realçando, assim,
a “magia” da criação do movimento. “O palco do animador
era o enquadramento; e ele era o protagonista, o ‘mági-
co’, aquele que fazia o espetáculo acontecer” (GRIJÓ; AN-
DRADE, 2012, p. 3). Como afirmam Thomas & Johnston
(1995, p. 225), grandes colaboradores das animações dos
Estúdios Disney:

“Apenas animação é mágica. Este é o seu apelo.


O artista criativo pode fazer algo aqui que existe e
respira e pensa por si mesmo, que retorna ao nosso
teste de toda grande arte: ela vive? Técnicas podem
ser copiadas, a mecânica pode ser duplicada e até
mesmo os desenhos traçados, mas a centelha da
vida vem apenas do animador”.

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The enchanted dra-
wing (EUA, 1900), de
Stuart Blackton e dis-
tribuído pela Compan-
hia de Thomas Edison
(1847–1931), mostra o
artista de frente para
seu cavalete no qual
Figura 2: Fotograma de The enchan- faz a caricatura de um
ted drawing (1901), de J. Stuart Black- homem. A partir de tru-
ton. ques de substituição
por stop-action, desenhos adicionados, como uma garra-
fa de vinho e um cigarro, tornam-se objetos reais quando
Blackton os toca. O homem desenhado, então, reage, es-
boçando um sorriso, franzindo o cenho ou demonstrando
espanto (Figura 2). Dessa maneira, o artista se apresenta
como protagonista/criador exercendo domínio sobre sua
criatura que parece adquirir “vida própria”.
Mais tarde, Blackton aprimoraria a estratégia de aludir à
“magia” do processo de criação, em Humorous phases of
funny faces (EUA, 1906), em que um homem é desenhado
com giz num quadro-negro pela “mão do artista” – a figura
inteira do criador não é evidenciada, sendo visível apenas
parte de seu braço (Figura 3). Uma mulher é desenhada em
seguida e, a partir daí, somente os traços de giz começam
a surgir no quadro, sem ao menos a presença da mão. O
foco agora está no próprio quadro, sendo a presença do
artista elipsada, sentida apenas através dos traços anima-
dos.
Em 1908, Émile Cohl produziu, na França, Fantasma-

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gorie que, assim como
o filme de Blackton,
começa com a mão do
criador desenhando um
palhaço com giz bran-
co sobre fundo negro.
O personagem, então,
começa a se movimen-
tar, numa sucessão de Figura 3: Fotograma de Humorous
peripécias que sugerem phases of funny faces (1906), de J.
certa “liberdade”, como Stuart Blackton.
se não dependesse de seu criador, até que ele cai e é ergui-
do pela mão que surge novamente para despertá-lo. Aqui,
a “mão do artista” interfere brevemente no filme, surgin-
do apenas no início, para criar e “dar vida” ao palhaço; e
no meio, “reanimando” o personagem desacordado. Cohl
deixou uma base para artistas que o sucederam e se desta-
caram dentro da recente indústria que se instaurava, como
Winsor McCay.
McCay possuía uma carreira estável e notória como
cartunista, quando decidiu aventurar-se a produzir dese-
nhos animados. Em seu primeiro filme, Little Nemo (EUA,
1911), a narrativa possui, a princípio, um caráter didáti-
co, ao apresentar sequências em live-action tendo como
protagonista o próprio artista fazendo desenhos, ao estilo
lightning sketcher (Figura 4A). McCay aposta com amigos
que conseguiria produzir um filme com desenhos se mo-
vendo – quatro mil desenhos, em um período de um mês. Al-
gumas gags com muitos barris de tinta e pacotes de folhas
de papel depois e o filme está pronto para McCay mostrar

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aos amigos (e ao espectador). A “mão do artista” surge no
início da sequência animada, quando McCay desenha so-
bre uma folha de papel um dos personagens com tinta e
a coloca numa moldura
(Figura 4B). A câmera
se aproxima lentamente,
enquadrando o perso-
nagem, enquanto a mão
do artista sai de cena e
surge o letreiro “Watch
me move”.
O personagem come-
ça, então, a se mover, já Figura 4A: Fotograma de Little Nemo
sem a presença do ar- (1911), de Winsor McCay.
tista. Surgem outros personagens que andam e rodopiam
pelo quadro, até que aparece Nemo (já conhecido das tiras
de McCay publicadas nos jornais New York Herald e New
York American) passando a comandar a movimentação
dos corpos dos demais, a partir de gestos com as mãos.
Com um lápis, Nemo
desenha uma princesa,
a quem oferece uma flor
e convida a passear de
dragão. O filme termina
com a câmera se afas-
tando, revelando nova-
mente a mão do criador
segurando a folha de
Figura 4B: Fotogramas de Little Nemo papel com o desenho.
(1911), de Winsor McCay. Em sua obra mais

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famosa, Gertie (EUA, 1914), McCay participa como apre-
sentador e protagonista: num palco diante da tela, ele “con-
versa” e “interage” com sua criação – a dinossauro Gertie.
O animador age como maestro e domador, além de esta-
belecer o elo entre seu personagem e o público, sendo a
presença do artista um fator essencial ao espetáculo.
A partir dos exemplos de pioneiras animações ociden-
tais aqui destacadas, percebe-se certo didatismo que ao
mesmo tempo em que revela parte do processo da cons-
trução do movimento – chamando atenção para o código
–, faz com que o espectador imerja no universo narrativo
entre criador e criatura, como se ela “adquirisse vida” após
ser desenhada – mantendo a ilusão da “mágica da criação”.

Consolidação da animação industrial –


estratégia cômica que mantém a “magia”

Se Blackton, Cohl e McCay foram pioneiros em utilizar


a estratégia da “mão do artista”, Dave (1894–1979) e Max
Fleischer (1883–1972) foram responsáveis por tornar tal
recurso popular nos desenhos animados. Sua série Out
of the inkwell (EUA, 1918-1929), lançada pelos Estúdios
Bray, tinha como ideia base a saída do personagem Koko
de dentro do tinteiro de seu desenhista, retornando depois
a ele.

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Tanto o personagem quando seu criador eram os pro-
tagonistas da série e, ao mesmo tempo, antagonis-
tas: Koko estava frequentemente tentando escapar
do poder superior de seu criador que, por sua vez,
fazia de tudo para mantê-lo sob seu controle. Koko,
muitas vezes, escapava para o mundo real e tinha a
capacidade de interferir com objetos e interagir com
o artista – mas, talvez, não com outras pessoas: no
episódio Modeling (1921), um dos amigos do artista
mostra-se interessado no desenho de Koko sobre o
papel e tenta tocá-lo, mas o artista o impede, para,
então, ele mesmo tocar o personagem. Isso sugere
que o poder sobre Koko era exercido somente por
ele, seu animador e criador (GRIJÓ; ANDRADE,
2012, p. 12).

A série Out of the inkwell possui inúmeros exemplos de


interação entre animador e sua criatura, com gags de efeito
cômico para o espectador que pode se identificar com as
agruras do personagem animado, sempre tentando es-
capar ao controle de seu criador. Assim, a série explorou as
mais diversas possibilidades de utilização da estratégia da
“mão do artista”, obtendo sucesso junto ao público, numa
indústria que se estabelecia.
Possivelmente inspirado pela série Out of the inkwell,
Walt Disney (1901–1966), um dos grandes responsáveis
por consolidar a animação no cinema industrial, também
recorreu a essa estratégia em diferentes momentos de sua
carreira. Quando ainda possuía o estúdio Laugh-o-Grams,
produziu e dirigiu o curta Alice’s Wonderland (EUA, 1923).

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Mesclando animação e
live-action, o filme tem i-
nício com a menina Alice
chegando ao estúdio
de Disney, pedindo-lhe
para vê-lo fazer dese-
nhos animados. Solíci-
to, Disney a coloca nu-
ma cadeira, de frente Figura 5: Fotograma de Alice’s Won-
derland (1923), de Walt Disney –
para sua prancheta na (Disponível em: https://www.imdb.
qual, num papel em com/title/tt0013823/mediaviewer/
branco, o desenho que rm1240859904)
havia feito começa a “ganhar vida”, movimentando-se (Fi-
gura 5). No decorrer da narrativa, Alice conhece o estúdio,
os artistas que lá trabalham e vários personagens anima-
dos que chegam a interagir com a menina, até mesmo em
sonhos (depois de voltar para casa).
Com o estabeleci-
mento do estúdio Walt
Disney Pictures, dé-
cadas mais tarde, foi
lançada a coletânea
de curtas Alô, amigos
(Saludos amigos, EUA,
1943), com direção de
Wilfred Jackson, Jack
Figura 6: Fotograma de Aquarela do Kinney, Hamilton Luske
Brasil, episódio de Alô, Amigos (1943)
– (Disponível em: https://www.imdb.
e Bill Roberts, em que
com/title/tt0036326/mediaviewer/ um dos segmentos,
rm2908105984). “Aquarela do Brasil”,

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apresenta outro exemplo de utilização da estratégia. Entre-
tanto, o artista não está exatamente presente, uma vez que
sua mão, assim como o pincel com que cria os cenários
e personagens “diante” do espectador, surgem também
desenhados (Figura 6) – o que pode ser compreendido
como uma das dificuldades em se estabelecer autoria na
animação industrial, sendo que, neste caso, os diretores e
artistas envolvidos atuavam sob o controle rígido da pro-
dução de Disney.
O curta começa a partir de uma mesa de desenho, com
apenas uma folha de papel em branco sobre ela e, ao ini-
ciar a música “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso (cantada
por Aloysio Oliveira), aparece a silhueta do artista com um
pincel na mão – apesar de, em certa medida, “presente” na
narrativa, o criador configura-se de forma anônima. O pla-
no seguinte enquadra somente a folha de papel, o braço e
o pincel do artista que passa a criar os contornos e depois
colorir o ambiente no qual o filme transcorrerá.
A partir das pinceladas, surge Donald Duck que, se
sentindo ameaçado pelo pincel, tenta desafiá-lo para uma
briga. Neste caso, a ferramenta do artista passa a agir
como personagem lutando com o pato. No entanto, Donald
se distrai com o que está sendo criado e tem a inspiração
de molhar o próprio dedo com a tinta para também criar.
Assim como a menina de Alice’s Wonderland, aqui o per-
sonagem do pato torna-se uma ponte de ligação entre o
espectador e o universo mágico que se descortina.
Ao longo do século XX e adentrando o XXI, verificam-se
obras que aprimoraram essa estratégia como um sedutor
mecanismo de envolvimento do espectador no discurso

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cinematográfico, explicitando a construção do movimento
e, simultaneamente, alimentando o fascínio do grande pú-
blico diante da “magia” da animação. Entretanto, não só
na indústria, como na produção independente com caráter
autoral, algumas animações exploraram também a crise
criativa a partir da “mão do artista”.

A “mão do artista” na animação independente –


estratégia reflexiva

Fora do circuito industrial, uma experiência brasileira


realizada no National Film Board do Canadá, por Marcos
Magalhães (1958–), o curta Animando (Canadá, 1983) ex-
plora diferentes técnicas utilizadas pelo animador em seu
processo criativo. O filme inicia com o próprio artista aden-
trando uma sala escura, com o “palco vazio”, representado
pelo estúdio com a mesa de luz diante da qual ele se senta
e se prepara para criar. De forma didática, apresenta-se
brevemente a ideia da construção do movimento, quando o
animador posiciona o papel e começa a desenhar seu per-
sonagem; coloca outra folha por cima, desenha novamente
o personagem, numa pose um pouco diferente.
O método vai se repetindo, através de jumpcuts4 até que
as mãos do artista desaparecem do enquadramento – afas-
tando-se do didatismo – e o personagem aparenta “andar
sozinho”, por vezes se dando conta de sua “existência” –

4 De acordo com Aumont & Marie (2009, p. 229): “Raccord entre


dois planos idênticos, entre os quais a distância espaço-tempo-
ral é muito pequena” – o que confere um efeito visual dando a
impressão de movimento ‘truncado’ e acelerado.

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imergindo o espectador na ilusão. Essa estruturação se
configura a cada mudança de técnica de animação a que o
artista submete sua criatura, seja em recorte, pintura, areia,
stop-motion (corpo de barbante e pés de clipes), massinha
de modelar (quando adquire tridimensionalidade) ou mes-
mo animação direta na película5. Ao final, o artista apaga
a luz e deixa a sala, caminhando como seu personagem
– ele próprio animado em pixilation6, revelando uma inusi-
tada simbiose entre criador e criatura.
Animando enfatiza para o espectador as inúmeras e
fascinantes possibilidades técnicas de criação na arte de
animar, ao mesmo tempo em que evidencia a imersão
do animador em seu trabalho, procurando “gerar vida”.
O espectador, a princípio, pode acompanhar a didática da
construção do movimento, mas a narrativa se encarrega de
fazê-lo “se esquecer” da explicitação do código inicial, retor-
nando à ilusão de que o personagem “está vivo”, por conta
própria, sem a interferência de seu animador.
O processo criativo é abordado através da estratégia
da “mão do artista” também no curta Passo (Brasil, 2007),
de Alê Abreu, em que uma ideia aparentemente simples
torna-se impregnada de significados simbólicos relativos à
concepção/libertação. O filme inicia com a mão do artis-
ta sobre um papel esboçando o desenho de um pássaro
que, a partir de montagem alternada, passa a adquirir “vida

5 Técnica em que se consagrou Norman McLaren (1914–1987),


mentor a quem Magalhães presta aqui homenagem.
6 Do termo em inglês “pixilate” que significa “enfeitiçar”: técnica
de animação stop-motion em que seres vivos têm seus movi-
mentos captados quadro a quadro.

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própria”, tentando voar e deixar o limite do quadro, con-
forme descreve esta autora em sua análise sobre o filme:

A intensidade com que o artista vai elaborando seu


personagem, com traços cada vez mais vigorosos,
reflete-se no movimento enérgico do pássaro que ten-
ta se libertar. Surge, aos poucos, a cor vermelha en-
tremeando as linhas do pássaro que, em desespero,
se debate ao tentar passar pelas grades da gaiola
(desenhada na lateral do quadro). A criatura, ago-
ra ferida e exausta pelo esforço, repousa no poleiro,
tentando se recuperar para adquirir novo fôlego.
Ao final, a mão do animador surge segurando a
porta da gaiola que ele abre para que seu pássaro
possa voar livremente. Um zoom out revela, então,
que a gaiola compõe a cabeça do artista, agora vis-
to de corpo inteiro. Após os créditos que surgem na
tela, vê-se o pássaro em pleno voo até desapare-
cer, transformando-se novamente em linhas, sendo
o som de suas asas batendo constituído pelo ruído
das várias folhas de papel concebidas para produzir
seu movimento.
É interessante como o som utilizado no filme contex-
tualiza tanto a ação criativa do animador ao elaborar
seu desenho, quanto a movimentação de seu per-
sonagem. Dessa forma, os ruídos naturais do anima-
dor, seja ao rabiscar com veemência o papel ou ao
flipar as folhas para testar o movimento construído,
tornam-se diegéticos, passando a significar, mais que
a simples ambiência marcante do gestual do criador,

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a própria sugestão de vida do personagem criado
(ANDRADE in CARNEIRO;SILVA, 2018, p. 170).

A presença do artista, em Passo, revela-se como com-


plexa articulação metafórica entre criador e criatura, utilizan-
do a metalinguagem como estratégia eficaz na elaboração de
um discurso que evidencia o doloroso e libertador processo
criativo – com que o público pode, inclusive, se identificar.
Pode-se aludir ao que afirma esta autora, em seu livro
O Filme dentro do Filme, a “metalinguagem como elemen-
to criativo ‘liberta’ o espectador passivo, através da ilusão
de participação estabelecida”, uma vez que este passa a
acompanhar “uma suposta ‘construção’ do filme que se uti-
liza desse recurso”, com a participação se dando “através
da decodificação do discurso” (ANDRADE, 1999, p. 141).
Entretanto, é interessante refletir que se, a princípio, essa
estratégia poderia mesmo afastar o espectador, ao expli-
citar o próprio código e revelar seus mecanismos, desar-
ticulando assim a ilusão de imersão na narrativa, por outro
lado, revela-se como sedutor convite a seu desvelamento,
à ilusão de sua construção.
Como estratégia narrativa que explicita o próprio fa-
zer da animação, buscando seduzir o público – como um
convite a mergulhar nos segredos dos “truques do mági-
co” –, a iconografia da “mão do artista” ainda é constan-
temente aprimorada pelos animadores, utilizando as mais
diferentes técnicas. Verifica-se, assim, seu potencial como
simbologia criativa e reflexiva dessa arte que, com toda
tecnologia digital disponível, em pleno século XXI, ainda
se apresenta com irresistível fascínio diante do espectador.

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Referências bibliográficas

ANDRADE, Ana Lúcia. O Filme dentro do Filme; a Metalinguagem no


Cinema. Belo Horizonte: Ed. UFMG/Col. Humanitas, 1999.

__________________. “Passo”. In: CARNEIRO, Gabriel; SILVA, Pau-


lo Henrique (Orgs.). Animação Brasileira: 100 filmes essenciais. Belo
Horizonte: ABBRACINE, abca, Letramento, 2018.

AUMONT, Jacques & MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico do


cinema. Tradução: Carla Borgalheiro Gamboa e Pedro Elói Duarte. Lis-
boa: Edições Texto & Grafia, 2009.

CRAFTON, Donald. “Animation Iconography: The ‘Hand of the Art-


ist’”. In: Quarterly Review of Film Studies, Vol. 4, Issue 4, 1979,
pp. 409-428. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/
abs/10.1080/10509207909361014 - Acessoem: 05.11. 2018.

GRIJÓ, Júlia Oliveira; ANDRADE, Ana Lúcia (Orientadora). A presença


física do artista no filme de animação. 2012. 33f. Monografia (Trabalho
de Conclusão do Curso de Artes Visuais, habilitação em Cinema de
Animação) – Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte.

JAKOBSON, Roman. Lingüística. Poética. Cinema. São Paulo: Per-


spectiva, 1970.

THOMAS, Frank & JOHNSTON, Ollie. The illusion of life: Disney ani-
mation. Rev. Ed. New York: First Hyperion Edition, 1995.

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4

O DOCUMENTÁRIO ANIMADO:
NOVAS ABORDAGENS NA
REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

Jennifer Jane Serra

Nos últimos anos a produção de filmes animados en-


gajados com o campo da não ficção cresceu rapidamente,
dando origem a animações pouco ortodoxas como os do-
cumentários animados, um tipo de produção híbrida que
vem se estabelecendo tanto como um novo gênero de filme
de animação quanto como um novo modelo de filme docu-
mentário. Neste trabalho, apontaremos como a irrupção do
documentário animado está relacionada com mudanças
ocorridas no campo da animação, mas, sobretudo, foi mo-
tivada por novas abordagens na argumentação e repre-
sentação documentária e pelo domínio da subjetividade
nos processos de ressignificação da realidade através do
audiovisual. Unindo animação e memória, essa produção
caracteriza-se pela abordagem subjetiva na recordação de
eventos passados, sejam esses fatos históricos compar-
tilhados por uma comunidade ou marcos da vida pessoal.
A existência de filmes que promovem um diálogo en-
tre animação e documentário remonta aos primórdios do
cinema, mas o documentário animado surgiu, enquanto
um gênero cinematográfico específico, apenas no final da
década de 1990 e início dos anos 2000, quando teóricos,

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curadores de festivais e realizadores1 perceberam um au-
mento de obras com esse perfil e defenderam a existência
desse gênero híbrido2. Essa defesa se deu não no cam-
po da animação, onde a ideia de animação não ficcional
já era compreendida e reconhecida, mas sim, no campo
do cinema documentário, onde a imagem animada encon-
trou resistência para ser aceita como uma forma legítima
de representação visual da realidade. Essa objeção ao
documentário animado está associada principalmente a
uma definição de filme documentário – que é limitada e
equivocada, porém, é fortemente arraigada na cultura oci-
dental – como sinônimo de registros do mundo em que
vivemos feitos com uma câmera filmadora. Como Fernão
Pessoa Ramos aponta, a tradição do cinema documentário
foi construída com base na exploração das qualidades sig-
nificantes da imagem da câmera: ´a imagem-câmera´3 traz
em si, como singularidade, a dimensão da tomada.

1 Como, por exemplo, os pesquisadores e teóricos da animação


Sybil Del Gaudio (1997), Paul Wells (1997), Gunnar Strøm
(2003), a pesquisadora e animadora Sheila Sofian (2005), e o
curador do Festival Internacional de Curta-Metragem de Cler-
mont-Ferrand, Antoine Lopez (2012).
2 Tomamos emprestado o conceito de gênero cinematográfico
do cinema ficcional, tal como é empregado em Suppia (2016),
para propor o documentário animado como um gênero tanto do
cinema documentário como do cinema de animação. Um gênero
que se estrutura no cinema contemporâneo apesar de sua fil-
mografia ser antiga.
3 Imagem-câmera é o termo cunhado por Fernão Pessoa Ra-
mos (2008) para designar as imagens em movimento produzi-
das por aparelhos de filmagem, analógicos ou digitais, em con-
traposição às representações pictóricas.

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É o surplus da âncora no mundo, no enunciar as-
serções, que as adensa, as intensifica, levando à caracter-
ização mais plena da tradição documentarista” (RAMOS,
2008, p.73)
Tal como a fotografia, a imagem filmada, ou live-action,
traz em si o traço da realidade que a formou, o que fornece
a essa imagem um valor probatório. A transparência e a
certificação da presença da câmera no mundo, fornecidas
pela imagem-câmera, foram elementos explorados por di-
ferentes movimentos estilísticos do cinema documentário,
do clássico ao cinema direto, dando ao filme documentário
o poder de transmitir uma “impressão de autenticidade”
(NICHOLS, 1994, p.29; 2016, p.19). Essa habilidade da i-
magem-câmera é uma das bases da associação do docu-
mentário com a ideia de objetividade e da sua divergência
com a animação, a qual está associada às ideias de manip-
ulação e intervenção. Nesse sentido, as análises de André
Bazin apontam para um poder de autenticidade da fotogra-
fia que é inalcançável pela arte pictórica: “a fotografia se
beneficia de uma transferência de realidade da coisa para
sua reprodução. O desenho, o mais fiel, pode nos fornecer
mais indícios acerca do modelo; mas jamais ele possuirá,
a despeito do nosso espírito crítico, o poder irracional da
fotografia, que nos arrebata a credulidade” (BAZIN, 2014,
p.32).
Diante da diferença de propriedades significantes, ima-
gem animada e imagem filmada são comumente entendi-
das como regimes imagéticos antagônicos, ainda que os
processos digitais da indústria audiovisual estejam des-
construindo essa diferenciação, como abordaremos mais

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adiante4.
Por essa razão, quando o documentário animado
começou a figurar em estudos acadêmicos e em festivais,
um termo recorrente para definir esse tipo de produção foi
a expressão “oximoro”, algo que é inteligível, mas cujo sen-
tido literal é contraditório. Essa incoerência tem como pon-
to central a associação da natureza indicial da imagem da
câmera ao “estatuto de verdade” do documentário, o qual
encobre as marcas de manipulação inerentes a qualquer
produção cinematográfica, seja ficcional ou não ficcional, e
consolidou no imaginário popular a ideia de que um filme
documentário mostra a realidade do mundo tal qual ela
existiu diante da câmera, sem qualquer alteração. Essa
concepção foi fortalecida pela fundamentação teórica mais
tradicional que equivaleu o documentário ao filme cons-
truído por imagens-câmera. Autores como Gregory Currie
(1999), por exemplo, limitaram sua definição de “filme do-
cumentário” ao considerar uma equivalência entre imagem
de natureza fotográfica e imagem documental. Em contra-
partida, a imagem pictórica, como a pintura ou o desenho,
que é matéria-prima da animação, não é dotada, em nossa
sociedade contemporânea, de um valor probatório, mas
está associada às noções de imaginação, artificialidade e
criatividade.
Essas diferenças colocaram documentário e animação
em campos opostos em termos de definições: o docu-

4 Como aponta Lev Manovich (2001) o trabalho sobre a imagem


filmada na pós-produção digital aproxima os processos do cine-
ma filmado com aqueles do cinema de animação.

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mentário relacionado a verdade, autenticidade e objetivi-
dade, e animação ligada à subjetividade e à ficção.
Além disso, a noção de registro é associada aos pro-
cessos de filmagem, sendo a animação, portanto, um tipo
de construção visual que não é entendida como um registro
fílmico. Ao analisarmos a história do cinema, porém, é pos-
sível encontrar exemplos que evidenciam que nem sempre
as ideias de registro e de autenticidade foram derivadas,
exclusivamente, da imagem filmada. O filme The Sinking
of the Lusitania (1918), por exemplo, do cartunista esta-
dunidense Winsor McCay, é um dos mais antigos docu-
mentários animados dos quais temos acesso nos dias
atuais e ilustra como nossa visão sobre a representação
visual da realidade pode mudar, em termos de perspecti-
va, com o passar do tempo. O filme apresenta, através de
desenhos animados, o naufrágio do RMS Lusitania, navio
de passageiros britânico que foi atingido por um submarino
alemão em 1915, causando a morte de mais de mil pes-
soas, entre britânicos e estadunidenses. A estética e a nar-
rativa de The Sinking of the Lusitania reproduzem o modelo
de cinejornais da época, com desenhos com um estilo art
nouveau, traços realistas e um tom dramático. Um trecho
inicial feito em live-action mostra o processo de construção
do filme, seguindo o padrão de outros filmes realizados por
Winsor McCay.
Em dois momentos, McCay apresenta sua produção
como um registro do evento que ocasionou o naufrágio do
navio.
Em uma primeira cartela, com os créditos iniciais, é
informado ao espectador que “Winsor McCay, criador e

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inventor de Desenhos Animados, decide desenhar um re-
gistro histórico do crime que chocou a Humanidade”5. Após
a passagem das imagens filmadas para as imagens anima-
das com desenhos, uma nova cartela indica que “a partir
daqui você está olhando para o primeiro registro do nau-
frágio do Lusitania”6. Ao apresentar as imagens animadas
como um “registro histórico” do naufrágio, Winsor McCay
atribui aos desenhos um valor probatório que se asseme-
lha ao de imagens de arquivo em produções atuais, por
fornecer ao espectador um testemunho visual da tragédia.
Em uma época em que as câmeras eram pouco dissemi-
nadas e sua presença em eventos históricos era limitada,
é possível compreender que a imagem pictórica possuía
um valor testemunhal do qual é destituída nos dias atuais.
Apesar de ainda estar fortemente associada com a ideia
de ficcionalização, a animação tem sofrido transformações
que podem alterar novamente essa percepção. Um dos fa-
tores que impulsionaram o crescimento da animação do-
cumentária foi a diversificação de gêneros de filmes e um
crescimento da animação feita para o público adulto. Como
consequência, presenciamos um aumento de produção
de animações que tratam de temas considerados “mais
sérios” ou “mais adultos” e produções menos coladas na
ideia de que “animação é feita para crianças”, como, por
exemplo, o filme Anomalisa (Charlie Kaufman e Duke

5 Do original: “Winsor McCay, originator and inventor of Anima-


ted Cartoons, decides to draw a historical record of the crime that
shocked Humanity”.
6 Do original: “From here on you are looking at the first record of
the sinking of the Lusitania”.

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Johnson, 2015)7 no campo da ficção e as reportagens
animadas do jornal britânico The Guardian8, no meio não
ficcional. A popularização de quadrinhos não ficcionais,
como a reportagem ou a autobiografia em quadrinhos, são
também uma importante influência na produção de ani-
mação de não ficção. Obras como Maus: A Survivor’s Tale
(1986), de Art Spiegelman, e Persepolis (2000-2003), de
Marjane Satrapi, ambas de cunho autobiográfico, colocar-
am o universo dos quadrinhos – e também da animação,
como no caso de Persepolis – em sintonia com a expansão
da abordagem em primeira pessoa, que vem marcando
tanto o campo da literatura quanto do audiovisual.
A área da animação foi também atingida pela emergên-
cia da produção digital, mas as mudanças ocasionadas por
essa produção são ainda mais impactantes para o cinema
documentário. As tecnologias digitais tornaram possível a
criação de imagens artificiais sem qualquer referente com
a realidade, assim como, a modificação de qualquer ima-

7 Anomalisa é um longa-metragem de animação em stop mo-


tion que aborda a história de um notório escritor e especialista
em atendimento ao cliente que percebe todas as pessoas ao
seu redor como indistinguíveis, focando em seu envolvimento
com uma fã, a qual ele julga ser diferente das demais pessoas.
8 Como, por exemplo, a reportagem animada Guantánamo Bay:
The Hunger Strikes. Disponível em: http://www.theguardian.com/
world/video/2013/oct/11/guantanamo-bay-hunger-strikes-vi-
deo-animation. Outros exemplos de animação documentária
são produzidos por instituições do meio jornalístico como The
New York Times (https://www.nytimes.com/video/op-docs) e The
A- tlantic (https://www.theatlantic.com/video/series/animated-ori-
ginals/), assim como, por cartunistas como Patrick Chappatte,
realizador da série Animated Editorial Cartoons.

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gem, seja ela criada digitalmente ou captada por aparelhos
de fotografia e filmagem, o que causou uma fissura no es-
tatuto de verdade do documentário. Uma vez que o cinema
digital inclui em seu processo de produção o trabalho so-
bre a imagem através de programas de computador e que
qualquer imagem pode ser manipulada ou criada artificial-
mente, não é possível determinar o quanto uma imagem
filmada foi alterada desde sua captura. Com o digital, as
características de artificialidade e manipulação passam a ser
compartilhadas tanto pela animação como pelo live-action.
Para Lev Manovich, o processo de produção de imagens na
era do cinema digital representa um retorno a práticas cine-
matográficas do século XIX, quando imagens eram pintadas
e animadas manualmente, tornando o cinema digital live ac-
tion um caso particular de animação no qual a filmagem é
apenas um de seus elementos (MANOVICH, 2001, p.302).
Isso possibilitou uma revisão do conceito de docu-
mentário e sua libertação do fundamento na natureza indi-
cial da imagem, abrindo espaço para a aceitação do docu-
mentário animado. Sua divulgação em eventos de cinema
documentário, por exemplo, é um fator que possibilita a sua
difusão, como foi o caso do lançamento do curta-metragem
Dossiê Rê Bordosa (Cesar Cabral, 2008) no festival bra-
sileiro dedicado ao cinema documentário, É Tudo Verdade,
em 2008. Nesta produção feita com a técnica de animação
em stop motion de bonecos, o diretor Cesar Cabral mistura
realidade e ficção para investigar as razões que levaram
o cartunista Angeli a terminar com as tirinhas da persona-
gem Rê Bordosa, “assassinando” uma de suas criações
mais populares. O filme exibe entrevistas reais, feitas com

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pessoas ligadas ao cartunista e representadas por bone-
cos animados como, por exemplo, o editor da extinta revis-
ta Chiclete com Banana, Carlinhos Mendes, e a também
cartunista, Laerte, assim como apresenta o depoimento
de personagens criados por Angeli, como Bob Cuspe e
Bibelô, fazendo uso da obra ficcional de Angeli como ma-
terial documental para falar sobre a personagem Rê Bor-
dosa. A repercussão desse filme na produção nacional de
documentários animados exemplifica como a ocupação de
espaços antes restritos ao documentário live-action e à a-
nimação ficcional contribui para o aumento da seleção, em
festivais e editais de financiamento, de projetos que extra-
polam os limites das formas canônicas dos dois campos.
O advento das tecnologias digitais possibilitou também
a geração de imagens artificiais com um alto grau de mi-
metismo em relação ao mundo físico, rivalizando com a
câmera na produção de imagens realistas, assim como um
aumento de produções autorais e, com isso, de narrativas
em primeira pessoa. A produção autobiográfica vem mar-
cando a cinematografia mundial e é uma das chaves para
entender uma nova forma de olhar para a realidade onde
a imagem animada se destaca com um grande potencial.
Produções audiovisuais de caráter subjetivo despontaram
na produção literária e no campo do cinema de não ficção
sobretudo a partir dos anos de 1980, apresentando o in-
divíduo como ponto de partida para tratar de questões que
abrangem toda a sociedade ou de questões particulares,
que passaram a despertar maior interesse coletivo. A po-
pularização das tecnologias de produção e distribuição
audiovisual desencadeou uma multiplicação de imagens

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de todo tipo e potencializou a inscrição do indivíduo nes-
sa produção, algo intensificado pelas redes sociais, dan-
do suporte a uma realidade na qual as declarações sobre
o mundo privado passaram a ser atos definidores da vida
contemporânea (RENOV, 2004). A espetacularização e
midiatização dos eventos sociais, e da própria intimidade,
como atestam os reality shows, contribuem para esse
fenômeno onde a superposição do privado sobre o públi-
co ultrapassa as fronteiras da exposição. Nesse contexto,
floresceu uma produção de animação baseada em relatos
pessoais, mais experimental em termos de linguagem, com
uma grande contribuição da produção feminina engajada
com questões de gênero, a partir da qual o documentário
animado emergiu como uma potente ferramenta de docu-
mentação da realidade pessoal e subjetiva.
Essa potencialidade pode ser percebida na produção
documentária latino-americana recente que retrata o pas-
sado do nosso continente a partir da memória individual
e coletiva representada visualmente com animação. Tem-
-se, nesses casos, filmes animados que trazem narrativas
com traços biográficos ou autobiográficos e/ou que abor-
dam questões históricas, sociais e políticas de um ponto de
vista pessoal. Um exemplo de produção com esse perfil é
o curta-metragem brasileiro Torre (Nádia Mangolini, 2017),
que apresenta as memórias dos filhos dos militantes políti-
cos Ilda Martins da Silva e Virgílio Gomes da Silva, assas-
sinado pela ditadura civil-militar brasileira. Isabel, Gregório,
Virgílio e Vlademir fornecem os quatro depoimentos, se-
guindo a ordem da mais nova, Isabel, até o mais velho,
Vlademir. O filme tem como banda visual uma animação

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que começa com uma estética marcada por poucos ele-
mentos e um fundo branco, em referência à ausência de
memória que Isabel tem dessa época, quando ainda era
um bebê, passando por uma animação com desenho mais
detalhado para o relato dos outros irmãos e até uma figu-
ração mais poética com a fala de Vlademir.
A expansão da animação biográfica e autobiográfica
na produção latino-americana contemporânea pode ser
relacionada com a valorização do testemunho como uma
forma de acesso essencial para a história recente do con-
tinente, como apontou Beatriz Sarlo (2007) ao afirmar que
o presente caracteriza-se por uma dimensão intensamente
subjetiva tanto nos discursos cinematográficos, como na
mídia e na literatura. Como coloca Sarlo, “todos os gêneros
testemunhais parecem capazes de dar sentido à experiên-
cia. Um movimento de devolução da palavra, de conquista
da palavra e de direito à palavra se expande, reduplicado
por uma ideologia da ‘cura’ identitária por meio da memória
social ou pessoal” (SARLO, 2007, pp. 38-39). A memória
aparece, então, nesse contexto, não só como um meio de
terapia do trauma, mas como elemento para a (res)signifi-
cação da realidade social na América Latina.
A guinada subjetiva que marca as narrativas contem-
porâneas a que se refere Sarlo é corroborada por autores
como Arfuch (2010), e no campo do cinema está mais comu-
mente associada, em escritos acadêmicos, às mudanças
no campo do cinema documentário, das quais o cresci-
mento do documentário animado e a correlata expansão
da animação autobiográfica são derivações. Se antes o
documentário privilegiava a câmera como fonte discursiva

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e se mantinha negligente à subjetividade do autor impressa
no texto fílmico, essa subjetividade converte-se em uma
arma dos sujeitos sociais para sua inscrição nos processos
de construção e significação dos discursos do real. Como
apontam Barrenha e Piedras (2014), a abundância de nar-
rativas em primeira pessoa no documentário latino-ame-
ricano está associada com a transformação do estatuto
epistêmico do documentário, que gera novos pactos comu-
nicativos com o espectador e transforma sua maneira de
engajamento com o real e de representação do outro, mas,
além disso, essa produção revela a emergência de novas
identidades – assim como novas vozes e novos espaços
de fala – políticas, sociais, culturais e de gênero.
O trabalho com a subjetividade e a memória aparece
também em filmes que abordam traumas e perdas de
pessoas amadas, em experiências contadas em primeira
pessoa, como nos documentários animados brasileiros
Quando os dias eram eternos (2016), de Marcus Vinícius
Vasconcelos e Guaxuma (2018), de Nara Normande. Em
Quando os dias eram eternos, Vasconcelos apresenta,
através de uma animação abstrata e poética, os últimos
dias do realizador com sua mãe, vítima de câncer, em um
processo de devoção, afeto e despedida. Em Guaxuma,
Normande aplica diferentes técnicas de animação de areia
para relatar um relacionamento pessoal essencial em sua
formação que também culmina em uma perda, o faleci-
mento de Tara, amiga de infância da protagonista, além
de abordar seu processo de desenraizamento com o local
de sua infância, a vila de Guaxuma. Nessas produções, a
memória é tanto um meio para realizar uma atualização

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das relações pessoais com as pessoas que partiram, como
um recurso para evitar o esquecimento, em um processo
curativo para lidar com o trauma da perda.
Ao analisar o documentário animado e suas relações
com a produção audiovisual contemporânea, podemos en-
tender que enquanto o forte da imagem da câmera é trans-
parecer a circunstância da tomada e dar a ver o mundo
visível, como apontou Ramos (2008), uma das potências
da animação é expandir a nossa compreensão do mundo
documentando aquilo que a imagem live-action não con-
segue capturar ou não dá conta de representar, como a
documentação do que é indocumentável. Essa realidade
inalcançável pela câmera tanto pode ser o passado não
registrado como pode ser uma realidade interior, como os
universos mentais ou os territórios da memória. Dessa for-
ma, podemos entender que o documentário animado tra-
balha com uma perspectiva da realidade que vai além do
que é tangível. Além disso, se a força da imagem live-action
reside no seu valor probatório como um tipo de evidência
visual para o documentário, a imagem animada também
tem seu valor no seu poder significante, através do qual
é possível produzir sentidos de maneira particular a esse
meio. A animação não é um tipo de imagem neutra, mas
uma forma de comunicação cujo poder assertivo reside
na capacidade de criar imagens únicas dotadas especial-
mente de simbolismo. Dessa forma, o crescimento do do-
cumentário animado pode ser compreendido também por
seu poder de documentar a dimensão subjetiva do mundo
em que vivemos, possibilitando a representação da reali-
dade em toda sua dimensão.

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Referências bibliográficas

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O HOLOCAUSTO
EM ROGER RABBIT

Luiz Nazario

Da natureza dos toons

As características elásticas e regenerativas dos cartoons


foram exageradas ao máximo nas violentas animações de
Tex Avery (NAZARIO, 1996, pp. 48-50). Em Who Framed
Roger Rabbit (Uma cilada para Roger Rabbit, 1988), de
Robert Zemeckis, o animador canadense Richard Williams
levou as aberrações estilísticas daquele texano ao limite do
suportável. O filme foi apresentado ao público como uma
“estonteante combinação de comédia, ação, aventura e ro-
mance num mundo onde tudo pode acontecer” (DVD Uma
cilada para Roger Rabbit, 2003). Mas o filme também pode
ser “lido” pelo prisma da História.
No filme, os personagens de desenho animado que in-
teragem com os humanos são chamados pejorativamente
de toons. Mas ainda que desprezados, os toons são mais
bem-sucedidos em arrastar os humanos para sua fantasia
que os humanos em arrastá-los para sua realidade. A fan-
tasia é mais atraente que a realidade, pois em seu universo
tudo é possível. Esse gap entre os dois mundos gera in-
veja nos humanos e medo nos toons: há uma tensão per-
manente entre os dois grupos, que às vezes explode em
perseguições e catástrofes.

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Embora tenham uma situação privilegiada como artis-
tas, cantores e astros de cinema, os toons são discrimina-
dos pelos humanos devido à sua natureza diversa e de-
sastrosa, o que até certo ponto justifica o preconceito, uma
vez que a natureza imaginária dos toons leva-os a produzir
inocentemente catástrofes na realidade: ao sair da Toon-
town eles subvertem o mundo, colocando em risco a vida
humana, que não é indestrutível como a deles. Curiosa-
mente, Who Framed Roger Rabbit? associa os toons aos
judeus, vistos secularmente pelas sociedades cristãs como
uma minoria ameaçadora.

A vocação para o entretenimento

A pesquisadora Soraia Nunes Nogueira percebeu na


trama de Who Framed Roger Rabbit? um tecido de alusões
aos temas-chaves da preservação audiovisual, o próprio
filme constituindo um acervo de animação. Quando R.K.
Maroon revisa um filme, o projecionista manipula a pelícu-
la sem cuidado, evocando os projecionistas alheios à con-
servação das cópias. Nos Estúdios Maroon, carregadores
derrubam uma caixa no pátio, espalhando diversos objetos
animados no chão. O descuido com a preservação audio-
visual é notório (NOGUEIRA, 2015, pp. 40-42).
O desejo do Juiz de eliminar os toons e “abrir espaço”
na Toontown remete ao vasto material utilizado e produzido
pelas animações antigas ocupando espaço nos depósitos,
levando os produtores a leiloar acetados originais e equi-
pamentos superados para arrecadar fundos e liberar es-
paços para os materiais das novas produções. Na cena

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da boate, a “decadência” da cinzenta Betty Boop diante da
colorida Jessica confronta o valor cultural dos filmes an-
tigos ao comercialismo dos estúdios, servindo à incultura
das novas gerações, com a própria evolução tecnológica
do cinema (cor, som, efeitos especiais) inoculando a fal-
sa ideia da superioridade dos filmes modernos em relação
aos antigos (NOGUEIRA, 2015, pp. 40-42).
Bebê Herman, o anão lascivo com corpo de bebê, que
fuma charuto e assedia mulheres, remete à ideia tão es-
palhada quanto falsa de que os desenhos animados des-
tinam-se às crianças1. O projetor que Eddie usa como ins-
trumento de tortura, prendendo nele a gravata do produtor,
lembra os filmes presos nos projetores a se queimarem no
calor da lâmpada, arrebentando ou rasgando devido à forte
tração, com faíscas elétricas atingindo as películas e ini-
ciando incêndios catastróficos (NOGUEIRA, 2015, pp. 40-42).
Soraia também associou “O Caldo” à máquina de tritu-
rar películas de poliéster, conhecida como “A Guilhotina”,
construída na pequena cidade italiana de Cinisello Balsa-
mo, próxima a Milão, para produzir combustível barato ou
matéria-prima para construir bancos de jardim, óculos,

1 “I’ve got a 50-year-old lust and a 3-year-old dinky” (“Tenho um


desejo de cinquenta anos e um pau de três”) foi uma das duas
únicas linhas de diálogo do romance policial Who Censored
Roger Rabbit?, de Gary Wolf, mantidas na adaptação dos ro-
teiristas Jeffrey Price e Peter Seaman, embora a idade do Bebê
Herman tenha sido alterada: no livro ele tem 36 anos e não 50.
A outra linha é a famosa réplica de Jessica Rabbit: “I’m not bad.
I’m just drawn that way.” (“Não sou má. Sou apenas desenhada
assim.”). No livro, os humanos convivem com personagens de
quadrinhos; no filme, com personagens de desenho animado.

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escovas e roupas. Em Millesimo, uma máquina similar re-
cicla películas de triacetato de celulose (CHERCHI USAI,
2001, p. 76). Toda a produção cinematográfica da Europa,
após sua exploração comercial, é enviada para essas duas
cidades, onde as máquinas trituradoras destroem 250.000
filmes por ano (LIPARI, 2000).
Doom, o Juiz-inquisidor, simbolizaria os estúdios, dis-
tribuidoras e governos que destroem rolos de película con-
siderando-os “sem valor” ou temendo os incêndios cau-
sados pela combustão do nitrato de prata; e os ditadores
que censuram e apreendem filmes “perigosos”. A morte
do Juiz, toon corrompido que acaba derretido, lembra as
condições naturais do filme mal conservado que derrete ou
esfarela. Soraia conclui que Who Framed Roger Rabbit?
refletiria questões da preservação da animação e de seus
artefatos de produção (NOGUEIRA, 2015, pp. 40-42).
A instigante e original leitura de Soraia de Who Framed
Roger Rabbit? pode ser expandida. O filme é como um
caleidoscópio, que pode ser visto de várias formas e as-
sim, nunca termina de ser visto, ou como uma cebola cujas
camadas de significados superpostos podemos descascar
e descascar. A metáfora da preservação audiovisual apli-
cada à animação americana pode ser inserida dentro de
outra: a dos próprios “inventores de Hollywood”.
Os toons divertem a sociedade: são talentosos, cômi-
cos, excêntricos, loucos. Também a alegria de viver é uma
característica do povo judeu, que na modernidade associ-
aram-se às mídias de massa, com sua vocação irresistível
para o entretenimento: Hollywood foi “inventada pelos ju-
deus” (GABLER, 2005) – imigrantes que passaram do

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comércio varejista à distribuição, exibição e produção de
filmes, com os grandes estúdios se formando sob a chefia
de Adolph Zukor, Carl Laemmle, Harry Cohn, Irving Thal-
berg, Jesse Lasky, Louis Mayer, Marcus Loew, irmãos War-
ner, Wiliam Fox.
Também na Alemanha o cinema foi em boa parte edifi-
cado por empresários, artistas e técnicos de origem judaica
(FELD, 1982, pp. 337-365) e seu expressionismo, desen-
volvido em grande parte por artistas judeus, marcou o ci-
nema mundial. O cinema soviético contou igualmente com
um número expressivo de artistas judeus (Sergei Eisens-
tein, Lev Kuleschov, Dziga Vertov).

A culpa coletiva

O detetive Eddie odeia e despreza os toons, culpan-


do-os coletivamente pela morte de seu irmão e sócio na
empresa de detetives Valiant & Valiant, assassinado por
um toon misterioso. Afogando no álcool suas frustrações,
Eddie projeta a culpa daquele crime cometido por um toon
sobre todo e qualquer toon que cruze seu caminho, como
se o inteiro povo toon fosse culpado pela morte de seu
irmão.
A origem do antissemitismo tradicional reside no mito
cristão do deicídio. Não importa que Jesus, seus pais e
apóstolos fossem judeus; que a crucificação fosse uma
punição romana; que Jesus tenha sido detido por soldados
do Império Romano que ocupavam Jerusalém; que Pilatos
tenha lavado as mãos ao condenar Cristo à morte na cruz.
Para firmar-se contra a religião judaica da qual derivava, a

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nova religião cristã preferiu perdoar os carrascos romanos
pelo assassinato de Cristo, fazendo recair o mais grave dos
crimes sobre o povo judeu, tornando cada nova geração
desse povo, culpada pelo deicídio, culpa eterna explorada
e agravada por séculos de Inquisição.

Minoria privilegiada e perseguida

Os toons vivem como uma comunidade simultanea-


mente privilegiada e perseguida: como os judeus que,
mesmo quando se tornam ricos e famosos, permanecem
discriminados. Ao mesmo tempo em que entretêm os hu-
manos e se tornam estrelas de shows e filmes, os toons
sofrem a exclusão social por um preconceito atávico. A
“toonfobia” equivale ao antissemitismo.
A imortalidade dos toons remete à ideia racista do su-
perpoder judaico, difundida nas caricaturas e nos panfle-
tos antissemitas, que acusam os judeus de pertencerem a
uma “raça” má, rica e poderosa, que parasita a nação e se
mantém acima dos pobres mortais. Para o antissemita, os
judeus “controlam” as mídias, a política, a economia, a cul-
tura e assim “dominam” o mundo e “manipulam” a humani-
dade como um Puppenmeister (mestre das marionetes). O
antissemita desumaniza o judeu ao torná-lo onisciente e
onipresente, uma entidade maligna culpada de toda infeli-
cidade humana.

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Humor como salvação

A filosofia de Roger Rabbit (e do povo toon em geral)


é: “Se você não tem um grande senso de humor, é melhor
estar morto [...]. Uma risada pode ser algo muito poderoso
porque às vezes é a única arma que temos na vida.” O hu-
mor é outra forte identificação entre os toons e os judeus,
sendo o humor judaico uma filosofia de vida e uma das
bandeiras mais hasteadas da identidade cultural do povo
judeu, que deu ao mundo grandes comediantes: Irmãos
Marx, Jerry Lewis, Peter Sellers, Mel Brooks, Bette Midler,
Zero Mostel, Danny Kaye, Walter Matthau, Woody Allen,
Stephen Fry... Mesmo perseguidos ao longo da História, os
judeus nunca perderam seu senso de humor.

Estilo nazista do perseguidor

Dentre todos os humanos que odeiam os toons, o Juiz


Doom é o mais perigoso, pois assumiu a perseguição deles
e deseja exterminá-los com “O Caldo” que criou. Sua figura
é um cinétipo da autoridade nazista, com sua face maci-
lenta, seu uniforme preto sob uma capa negra (evocando o
uniforme das S.S. desenhado pelo famoso estilista alemão
Hugo Boss), e sua bengala (que oculta uma espada) co-
roada por um castão de prata em forma de caveira (sím-
bolo das S.S. inscrito nos bonés de seus uniformes).
Doom lidera uma patrulha policial de fuinhas, primas
das hienas, sádicas cuja fraqueza é rir sem parar da des-
graça alheia, recordando a reflexão de Max Horkheimer e
Theodor Adorno sobre as hordas fascistas: “Um grupo de

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pessoas a rir é uma paródia da humanidade. São mônadas,
cada uma das quais entregue à volúpia de estar decidida
a tudo, às custas dos demais e com o respaldo da maioria”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 132).
As fuinhas eram originalmente sete, numa sátira aos
sete anões, mas duas delas foram suprimidas na versão
final do roteiro, para reduzir os custos da produção (tam-
bém a sequência do funeral de R.K. Maroon não chegou
a ser filmada; ela contaria com a presença de dezenas de
cartoons, alguns dos quais não puderam ser negociados
em tempo). As fuinhas vestem trench coats e empunham
ostensivamente suas pistolas, com ganas de matar. Pode-
mos considerar a morte delas, de tanto rir, como uma falha
do roteiro, já que os toons só morrem quando dissolvidos
pelo “Caldo”. Mas essa incongruência é coerente com a
representação simbólica das fuinhas como uma tropa fas-
cista cujo visual assemelha-se ao dos gângsteres dos anos
de 1930.
Uma sequência forte de Who Framed Roger Rabbit?
foi cortada do filme com as fuinhas cumprindo uma ordem
do Juiz Doom e conduzindo Eddie para o túnel que leva à
Toontown. Após ser submetido a uma sessão de tortura,
Eddie sai do túnel cambaleante e encapuzado, descobrin-
do que as fuinhas revestiram sua cabeça com uma cabeça
de porco animada (ZEMECKIS, “A cena da cabeça do
porco”, DVD Uma cilada para Roger Rabbit, 2003). Dedi-
cadas à perseguição, à espionagem e à tortura, as fuinhas
do Juiz Doom – toons sádicos, violentos, temidos por todos
– remetem à Gestapo.
A novela gráfica Roger Rabbit: The Resurrection of

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Doom esclareceu que Doom se chamava Baron von Rot-
ten e sofreu um acidente que o abalou e do qual despertou
acreditando ser um vilão. Von Rotten começou então sua
carreira criminosa roubando o First National Bank local,
matando, em seguida, Theodore “Teddy” Valiant jogando
um piano na cabeça dele e espalhando por toda a cidade
o dinheiro roubado para comprar a eleição para Juiz de
Toontown, assumindo o nome de “Doom” (“Desgraça”).
De origem parodicamente alemã, o nome Baron von Rot-
ten remete tanto à nobreza enraizada em Blut und Boden
(“sangue e solo”, fontes da “pureza racial ariana” para os
nazistas, em radical oposição à “desenraizada raça judai-
ca”) quanto à palavra rotten (“podre”), sugerindo a natureza
degenerada do personagem.

Auto-ódio

No final do filme, os toons e o Detetive descobrem que o


Juiz também era um toon, mas “um toon muito doente”, em
referência ao fenômeno do “auto-ódio judeu”, hoje mais es-
palhado entre judeus de esquerda, como Noam Chomsky
(que não perde uma oportunidade de demonizar Israel) e
Norman Finkelstein (autor do livro revisionista A indústria
do holocausto, simpatizante do grupo terrorista islâmico
Hezbollah e persona non grata em Israel).

O “mal absoluto”

O Holocausto é frequentemente considerado pelos his-


toriadores como um “mal absoluto”, pois abriu um “buraco

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negro” na História, derrubando as mais creditadas expli-
cações da História: a positivista e a marxista. A teoria po-
sitivista, segundo a qual a humanidade evolui em constan-
te progresso, foi derrubada pelo fato de que a Alemanha,
nação mais desenvolvida da Europa, recaiu na mais pro-
funda barbárie num período de apenas doze anos, que foi
o quanto durou o “Reich de Mil Anos”.
A teoria marxista, segundo a qual as ações humanas
são movidas por interesses econômicos e luta de classes,
foi derrubada pelo fato de que o extermínio dos judeus não
teve motivações econômicas ou classistas: a indústria da
morte de Auschwitz só produzia cadáveres e não poupava
ninguém: ricos e pobres, burgueses e proletários, homens
e mulheres, adultos e crianças, recém-nascidos e idosos,
todos foram presos e assassinados em massa, num ge-
nocídio alheio à lógica do capitalismo, que indicaria ser
mais lucrativo escravizar um povo que exterminá-lo.
Em Who Framed Roger Rabbit?, o “mal absoluto” do
Holocausto é evocado na cena em que o Juiz Doom dis-
solve o indefeso sapatinho dançante n’“O Caldo”. No ro-
teiro, havia a revelação de que o Juiz fora o caçador que
matara a mãe de Bambi. Único acionista da empresa que
compraria a Toontown, o Juiz extermina os toons por apa-
rente interesse econômico. A motivação materialista mas-
cara seu ódio irracional aos toons, tal como sua aparên-
cia humana esconde sua natureza degenerada: diante de
seus restos mortais os outros toons observam que ele não
era pato, cão, marionete, ovelha, pica-pau, gato ou outro
animal ou coisa que pudessem identificar…

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Tecnologia do extermínio em massa

Os toons sempre sofreram discriminação, sendo mal


vistos por sua natureza diversa, vivendo no gueto da Toon-
town numa espécie de apartheid: não podiam frequentar
certos locais, exclusivos dos humanos, como a boate Ink
and Paint Club (que alude à boate Harlem’s Cotton Club
onde, durante a Lei Seca, artistas negros apresentavam-se
a um público exclusivamente branco), embora fossem as
estrelas dessa boate e dos filmes produzidos pelos Es-
túdios Maroon Cartoon. Mas se havia na sociedade um pre-
conceito difuso contra os toons, não passava pela cabeça
de ninguém matar todos eles. A criação d’“O Caldo” pelo
Juiz Doom é uma loucura pessoal disfarçada de ambição
que leva a “toonfobia” da sociedade a um novo patamar.
O antissemitismo tradicional que acompanhou o povo
judeu em sua longa história explodia frequentemente em
manifestações violentas contra indivíduos, famílias e gru-
pos, sob a forma de massacres, processos inquisitoriais e
pogroms2. Spielberg tratou metaforicamente da imigração
judaica à América devida aos pogroms russos em sua pri-
meira produção em animação, An American Tail (Fievel, um
conto americano, 1986), de Don Bluth, onde prestou uma
homenagem explícita ao seu avô materno Philip Posner.
Hitler ultrapassou o antissemitismo tradicional, de fundo

2 Pogrom: “palavra russa que significa ‘causar estragos, destruir


violentamente’. Historicamente, o termo refere-se aos violentos
ataques físicos da população em geral contra os judeus, tanto no
império russo como em outros países.” Holocaust Encyclopedia.

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religioso, pela teorização e legalização de um antissemitis-
mo “científico”, transferindo o mal atribuído aos judeus de
sua “religião errada” (“mal” que poderia ser “sanado” com a
conversão dos judeus ao cristianismo) para o seu “sangue
degenerado” (“mal” incurável, que nenhuma conversão
poderia “sanar”).
A política biológica do nazismo induziu os alemães a
abandonarem toda piedade cristã para aceitar a solução
radical do extermínio em massa dos elementos estranhos
ao Volksturm (à “natureza do povo”), que estariam a “con-
taminar” o “sangue puro” da “raça ariana” e a própria cultu-
ra alemã, já que para o nazismo a cultura seria transmitida
pelo sangue – o regime exigia de todos os produtores cul-
turais um “atestado de arianidade”, fornecido pela polícia,
que investigava a genealogia de cada cidadão, excluindo
do mundo do trabalho os alemães de ascendência judaica.
O antissemitismo “científico” transformado em política
de Estado (com a série de leis e decretos que isolavam
cada vez mais os judeus da sociedade, confinando-os em
guetos, dos quais só sairiam para serem mortos) radica-
lizou o antissemitismo até o extermínio industrial, planifi-
cado, massivo. Em Who Framed Roger Rabbit?, “O Caldo”
expelido em jatos pela mangueira de um caminhão-tanque
recorda mesmo as origens das câmaras de gás.
O Holocausto levou ao ápice os assassinatos iniciados
com os doentes mentais dentro do chamado Programa de
Eutanásia. O regime nazista treinou equipes médicas para
eliminar os pacientes dos asilos com injeções de morfina.
Para a chamada Aktion T-4 foi desenvolvido, em fins de
1939, o “caminhão Becker”, com canos de escapamento

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voltados para dentro, asfixiando pequenos grupos de pa-
cientes com o gás carbônico.
Mas como eliminar milhões de judeus? Durante a Ocu-
pação da Polônia e da Rússia, os fuzilamentos em massa
por Einsatzgruppen (Grupos de Alocação) à beira de valas
abertas acarretavam barulho e sujeira, causando mal-es-
tar entre os carrascos. Era preciso encontrar um “método”
mais limpo e silencioso. Em 21 de setembro de 1939, Rein-
hard Heydrich informou seus planos de deportação mas-
siva dos judeus:

A primeira medida preparatória para o objetivo final


é a concentração dos judeus do campo nas cidades
maiores... É fundamental dissolver as comunidades
judias de menos de 500 cabeças e transferi-las para
as mais próximas cidades de grande densidade
(HEYDRICH apud HAMSICK; PRAZAK, p. 37).

Os judeus foram presos em massa nos novos gue-


tos-prisões e campos de concentração, sendo ali obriga-
dos a realizar trabalhos forçados até morrer. Os sobre-
viventes foram deportados a partir de 1941 para os seis
campos de extermínio erigidos na Polônia – o maior deles
em Auschwitz –, e ali mortos ao ritmo de 100 mil por dia
com o gás Zyklon B (POLIAKOV, 1964, pp. 11-12). “O Cal-
do” inventado pelo Juiz Doom para matar os toons simboli-
za a evolução da tecnologia de extermínio dos caminhões
Becker às câmaras de gás, que permitiram a Endlösung
der Jude Frage (“Solução Final da Questão Judaica”).
Essa metáfora não foi criada acidentalmente pelos ro-
teiristas e produtores do filme, como se poderia supor de

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uma leitura induzida apenas pela imaginação. Durante as
filmagens, Zemeckis referia-se ao “Caldo” como a “Solu-
ção Final do Juiz Doom”. O próprio personagem foi criado
para o filme, assim como o subplot da corrupção urbana,
ausentes do livro de Wolf, que tampouco se passava em
1947 (KAGAN, 2003, pp. 93-117).

Toontown como gueto e lar nacional

Local situado imaginariamente em Los Angeles, mas


dela separado por características próprias, a Toontown
demonstra ter, ao longo do filme, as características de um
gueto, abrigando a comunidade dos toons, minoria dis-
criminada por suas características diversas dos demais ci-
dadãos.
A Toontown simboliza, primeiro, os guetos judaicos
onde o povo judeu viveu ao longo da Diáspora, após a des-
truição do Templo e sua dispersão pelos romanos em 70
d.C. O sonho milenar dos judeus de voltar à pátria bíblica
foi ressuscitado pelo jornalista austríaco Theodor Herzl com
a criação, em 1897, na Basileia, da Organização Sionista
Mundial, destinada a apoiar a imigração para a Palestina
de judeus de todo o mundo. Os sionistas instalaram-se
em propriedades adquiridas pelo Fundo Nacional Judai-
co e criaram fazendas comunais (kibutzim) e cooperativas
(moshavot) de inspiração socialista.
Ao observar que o mundo se dividia para os judeus em
“países onde não podiam viver e em países onde não po-
diam entrar”, o cientista inglês Chaim Weizman convenceu
o ministro das Relações Exteriores britânico, Arthur Balfour,

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a lançar em 2 de novembro de 1917 uma declaração fa-
vorável à criação na Palestina, então sob o mandato britâ-
nico, de um estado nacional judaico sem prejuízo aos direi-
tos das comunidades não-judias da região. A Declaração
de Balfour lançou as bases legais para a colonização ju-
daica da Palestina. Mas já então ocorreram conflitos san-
grentos entre os imigrantes judeus e a população árabe
majoritária da região.
Após sofrer o Holocausto na Europa, com a perda de
um terço de sua população, e com os sobreviventes con-
tinuando a viver por anos em péssimas condições em cam-
pos de deslocados de guerra, não muito diferentes dos
campos nazistas, como mostrou o excelente documentário
The Long Way Home (O longo caminho para casa, 1997),
de Mark Jonathan Harris, os judeus finalmente obtiveram o
direito de possuir seu próprio Estado.
Em 29 de novembro de 1947, em sessão presidida pelo
brasileiro Oswaldo Aranha, com o apoio decisivo dos EUA
e da URSS, a Assembleia Geral das Nações Unidas apro-
vou o Plano de Partilha da Palestina dando lugar a dois
Estados: um árabe e outro judeu. David Ben Gurion, pri-
meiro-ministro do governo judaico provisório, proclamou a
Independência de Israel em 14 de maio de 1948. (ACER-
VO O GLOBO, 2013).
Em Who Framed Roger Rabbit?, a Toontown possuía
um dono: Marvin Acme, amigo e benfeitor dos toons que,
antes de morrer, escreveu – eterno brincalhão – um testa-
mento com tinta invisível, legando a cidade aos toons. Não
é coincidência a ação do filme se passar em 1947: o tes-
tamento desaparecido de Marvin Acme evoca a histórica

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Declaração de Balfour e o testamento redescoberto equi-
vale à aprovação da Partilha em 1947 pela ONU.
Quando Roger comenta a tinta que aparece e desapa-
rece inventada por Marvin Acme e diz que ele era um gê-
nio, o Bebê Herman reclama que se ele fosse mesmo um
gênio teria deixado seu testamento num lugar onde eles
pudessem encontrá-lo: “Sem o testamento apenas espera-
mos por outra catástrofe.” A observação alude diretamente
ao Holocausto e ao sionismo, que associa o desejo de que
ele “jamais se repita” à necessidade de o povo judeu pos-
suir um Estado próprio que defenda seu povo das perse-
guições antissemitas. Eddie descobre que o testamento foi
escrito com aquela tinta e pede a Roger que leia para Jes-
sica sua carta de amor.
Quando Roger lê a carta, o testamento de Marvin reapa-
rece sob as letras. Em meio à alegria geral, a Toontown se
transforma na verdadeira pátria dos toons: eles conquis-
tam sua independência e tornam-se os legítimos donos de
sua terra natal. A Toontown legada aos toons é entrevista
pela parede demolida do depósito da ACME como um terra
idílica, tornando-se o símbolo da criação de Israel, a Alt-
neuland (“Nova-velha-pátria”, título do romance utópico de
Herzl) dos judeus, onde, segundo a Bíblia, “mana leite e
mel”.
O canto final dos toons, “Smile, Darn Ya, Smile”, de
Jack Meskill, Charles O’Flynn e Max Rich, música-tema de
Smile, Darn Ya, Smile (1931) da série Merrie Melodies, da
Warner, cantada na cena final pelos próprios animadores
do filme, cada qual encarnando seu personagem favorito,
é um hino à alegria com um fundo de tristeza, composto

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em plena Depressão. Ele remete aos cantos e danças de
felicidade dos judeus no dia da Independência de Israel,
comemorando um sonho de 19 séculos que finalmente se
realizava:

Sorria, droga, sorria / Você sabe que esse velho mun-


do é um mundo bom, afinal / Sorria, droga, sorria /
E logo verá a Senhora Sorte fazer-lhe uma ligação
// As coisas nunca são tão negras quanto pintam /
Dê-se ao prazer de nos conhecermos / Faça a vida
valer a pena / Venha e sorria, droga, sorria // Sorria,
droga, sorria / Pois não há nada que você não possa
superar / Sorria, droga, sorria / E onde as nuvens
aparecem você logo encontrará o sol // A vida é mes-
mo só o que fazemos dela / Levante-se e mostre que
você consegue / Faça a vida valer a pena / Venha e
sorria, droga, sorria3.

Who Framed Roger Rabbit? se detém neste momento


de pura alegria após o horror do Holocausto, congelando o
nascimento de Israel – a Toontown legada aos toons – num

3 No original: “Smile, darnya, smile / You know this old world


is a great world after all / Smile, darnya, smile / And right away
watch Lady Luck pay you a call // Things are never black as they
are painted / Time for you and joy to get acquainted / Make life
worthwhile /Come on and smile, darnya, smile // Smile, darnya,
smile / For there is nothing that you cannot overcome / Smile,
darnya, smile / And where the clouds appear you soon will find
the sun // Life is really only what you make it / Stand right up and
show them you can take it // Make life worthwhile / Come on and
smile, darnya, smile.”

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quadro repleto de harmonia entre os humanos e os toons,
preferindo ignorar que no mundo real os palestinos rejeita-
vam seu Estado e seis países árabes declaravam guerra a
Israel, desenhando na Terra Prometida um futuro de confli-
tos sangrentos, sem perspectiva de um final feliz.

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Referências bibliográficas

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dução: Steven Spielberg e Katheen Kennedy. Oscars de Melhor Som,
de Melhores Efeitos Especiais, de Melhor Edição. DVD Touchstone
Home Entertainment, 2003.

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6

A CAUDA LONGA NA NETFLIX:


SUPER DRAGS E A VALORIZAÇÃO
DO MERCADO DE NICHO

Wagner Rodrigues Miranda

Tradicionalmente, por conta de limitações de horários


e de espaços físicos, a maior parte dos investimentos da
indústria audiovisual do entretenimento se concentrava em
um pequeno número de produções que tinham potencial
para atrair o grande público, os Blockbusters. A situação
mudou com o advento da internet e da tecnologia digital
que democratizaram o acesso aos conteúdos, gerando o
fenômeno da “Cauda longa”, em que a soma dos pequenos
lucros de várias produções de nicho rivaliza com os grandes
lucros de meia dúzia de Blockbusters. Além disso, não se
pode ignorar o poder de compra de nichos como o da comu-
nidade LGBT que gera uma demanda que pode ser suprida
com produções exclusivas para este meio, como o caso
da animação Super Drags. Criada por Marc Randolph e
Reed Hastings, a Netflix nasceu em 1997 como um serviço
de aluguel de DVDs online. A plataforma possibilitava que
os consumidores alu- gassem DVDs e os recebessem em
casa pelo correio, sem estarem sujeitos a taxas de atraso.
Em 2007, a empresa introduziu o serviço de streaming1
1 Streaming ou fluxo de dados se trata de um fluxo de mídia em
que as informações não são armazenadas pelo usuário em seu
próprio computador, ou seja, não ocupam espaço no HD, pois o
indivíduo apenas recebe online a transmissão de dados.
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e, três anos depois, os usuários já podiam ter acesso aos
conteúdos da plataforma disponíveis em iPads, iPhone,
iPod Touch, Nintendo Wii e outros dispositivos conectados
à internet. Em 2011, a Netflix já possuía um uso superior à
80% dos serviços de Vídeo sob demanda (VOD) das redes
de TV paga nos EUA (FREDERICO, 2012). Apesar desta
hegemonia, a plataforma ainda tinha número reduzido de
lançamentos em seu catálogo e certa dependência com
relação aos grandes estúdios, que já começavam a difi-
cultar o licenciamento de suas produções. Para resolver a
questão, a plataforma buscou assegurar seu espaço online
e ampliar sua base de assinantes, investindo em conteúdo
original de qualidade. (KEATING, 2012)
Em 2018, a Netflix possuía mais de 700 produções ori-
ginais em seu catálogo (VENTURA, 2018). Além do núme-
ro expressivo de produções, a plataforma se destacava
pela diversidade de conteúdos, contando, inclusive, com
a presença de produções voltadas para públicos que tradi-
cionalmente tinham pouco ou nenhum espaço nas mídias
tradicionais.
Dentre suas produções originais, a plataforma chama
a atenção por “ressuscitar” séries que haviam sido cance-
ladas em redes de TV, como Arrested Development (2003-)
e séries voltadas para públicos específicos como o caso de
Super Drags (2018-), a primeira animação original Netflix
totalmente brasileira. Dito isso, este artigo pretende discutir
as possíveis motivações que justificam investimentos no
mercado de nicho.

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A cauda longa

A internet, em conjunto com a evolução da tecnologia


digital, possibilitou uma democratização do acesso ao con-
teúdo. Com o advento da internet de banda larga, distribuir
conteúdo audiovisual online para o mundo inteiro, se tornou
uma tarefa relativamente simples e barata. Com a mesma
facilidade com que o usuário tinha acesso aos títulos de
sucesso, ele também poderia ter acesso aos produtos de
nicho. Este fenômeno foi denominado por Anderson (2006)
como “cauda longa”, que afirma que, no novo contexto, as
empresas conseguem superar limitações geográficas para
atender mercados de nicho anteriormente desassistidos
por empecilhos físicos (MARIANO, 2015).

O PC transformou todas as pessoas em produtores


e editores, mas foi a internet que converteu todo o
mundo em distribuidores (...) A internet simples-
mente torna mais barato alcançar mais pessoas,
aumentando efetivamente a liquidez do mercado na
Cauda, o que, por sua vez, se traduz em mais con-
sumo. (ANDERSON, 2006, p. 53).

Antes da internet, por conta da limitação de espaço


físico e de horários de exibição, as produções audiovisuais
disputavam por espaço, seja na grade televisiva, seja nas
salas de cinema. Logo, produções voltadas para o grande
público tinham mais destaque. Anderson (2006) chama
essa economia tradicional, voltada para um número redu-
zido de produtos de grande apelo popular, de “economia da
escassez”.

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Uma sala de cinema média não vai exibir um filme a
menos que isso atraia no mínimo 1500 pessoas den-
tro de 2 semanas, isso é essencialmente o aluguel
da tela. Uma loja de discos comum precisa vender
no mínimo duas cópias de um CD por ano para fazer
valer a pena tê-lo, esse é o aluguel de meia pole-
gada de espaço na prateleira. E isso também serve
para lojas de alugueis de DVD’s, videogames, livros
e bancas de jornais. (ANDERSON, 2006)2.

Anderson (2006) comenta que a “economia da escas-


sez”, em voga desde a revolução industrial, está cedendo
lugar para uma “economia da abundância”, voltada para
nichos de mercado, que são segmentos que por não terem
tanto apelo para alcançar o grande público, costumavam
ter suas necessidades particulares pouco exploradas. Ele
nomeou esse fenômeno de “Modelo da Cauda Longa”, a
partir do termo que é muito utilizado na estatística para
identificar distribuições de dados como a Curva de Pareto.
A lei ou princípio de Pareto diz que 80% dos efeitos vêm
de 20% das causas, ou seja, 80% dos lucros vêm de 20%
dos esforços. Esta lógica também é observada no merca-
do cinematográfico. As produtoras Hollywoodianas con-
centram seus esforços nos Blockbusters, os filmes “arra-
sa quarteirão” que recebem os maiores investimentos de

2 An average movie theater will not show a film unless it can at-
tract at least 1,500 people over a two-week run; that’s essentially
the rent for a screen. An average record store needs to sell at
least two copies of a CD per year to make it worth carrying; that’s
the rent for a half inch of shelf space. And so on for DVD rental
shops, videogame stores, booksellers, and newsstands.

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Figura 1: A Cauda Longa
Fonte: O Analista de modelos de negócios. Disponível em <https://
analistamodelosdenegocios.com.br/modelo-cauda-longa/>

produção, distribuição e publicidade. Graças ao volume de


investimentos que recebem, os Blockbusters acabam sen-
do os mais comentados na grande mídia e têm maiores
possibilidades de alcançar o grande público, popularidade
e lucro.
Na Figura 1, vemos a representação da cauda longa, a
área mais clara é constituída pelos itens que ficaram fora das
listas de mais populares, os produtos de nicho. A área mais
escura representa os hits, ou seja, os “grandes sucessos”.
Quanto mais visibilidade um produto ganha, maiores
suas chances de alcançar um público maior. Por isso, lojas
de varejo, como WalMart que possuem limitações de es-
paço físico, tendem a concentrar seus estoques de produ-
tos naqueles poucos títulos que possuem um maior poten-
cial de venda (MARIANO, 2015). Mas essa lógica mudou,
pois segundo o fenômeno da Cauda Longa, “[...] quando
se combina quantidade suficiente de não hits, se está de

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fato criando um mercado que rivaliza com o dos hits.” (AN-
DERSON, 2006, p. 21). Ou seja, o somatório de vendas
de diversos setores específicos e reduzidos do mercado
evidencia uma expressividade que iguala ou até supera o
lucro dos grandes sucessos.
Anderson (2006) tenta explicar os mecanismos que dão
origem a esse fenômeno através de três pontos: a tecno-
logia faz com que vários tipos de produtos sejam mais fá-
ceis e mais baratos de se produzir; a tecnologia faz com
que o consumidor tenha acesso mais fácil a todos os tipos
de produto, e não mais apenas aos grandes sucessos; e
a facilidade de busca e principalmente as recomendações
fazem com que a demanda se espalhe pela cauda da cur-
va, não estando mais limitada à meia dúzia de hits.
Em outras palavras, os avanços tecnológicos possi-
bilitaram o barateamento de custos de produção, arma-
zenagem e distribuição. O investimento em produções de
público mais reduzido se torna viável no ambiente online,
pois na internet não há grades de horários ou limitação de
espaço da prateleira. Logo, a quantidade de títulos que um
serviço de streaming como a Netflix pode incluir em seu
catálogo, é superior a de qualquer rede de televisão ou
sala de cinema (MIRANDA, 2017).
Mas por que a Netflix se importa mais com diversificação
de público do que com a audiência individual de cada série
ou filme em seu catálogo?
Primeiramente, é necessário entender que a Netflix é um
serviço de streaming por assinatura, um SVOD (Subscrip-
tion Video on Demand). O que significa que por taxas men-
sais, o usuário acessa o catálogo disponível da plataforma.

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Sem anúncios ou intervalos comerciais, o foco não está em
atrair anunciantes publicitários ou bater recordes de visu-
alizações em um vídeo em particular, e sim em ampliar e
diversificar sua base de assinantes.
Um outro ponto que difere do meio tradicional para o
online é o sistema de recomendação. Graças ao sistema
de filtragem de conteúdo da plataforma, o que determina
se um título vai ser sugerido ao usuário é sua afinidade
com o perfil do consumidor e não seu apelo popular. Le-
vando isso em consideração, é possível dizer que a Netflix
dá igual destaque para os grandes lançamentos e para os
títulos mais obscuros de menor repercussão na mídia.
Graças aos algoritmos de buscas e sistemas de
recomendação, obras que antes eram consideradas “obs-
curas” e de difícil acesso, agora podem ser mais facilmente
obtidas. Anderson (2006) destaca a importância de filtros
e sistemas de recomendação eficientes, pois estes atuam
na redução dos custos de alcançar os nichos de mercado,
que é a ligação entre oferta e demanda (MARIANO, 2015).

A Cauda Longa tem como efeito a cultura de nicho,


que oferta cada vez mais opções de escolha aos
consumidores que, por sua vez, conseguem suprir
suas necessidades de consumo mais peculiares.
Anderson (2006, p. 179) coloca que, no que diz res-
peito à mídia e à indústria, essa situação se coloca
como um campo de batalha entre os meios de co-
municação tradicionais e a internet. Entretanto, “[...]
quando as pessoas deslocam sua atenção para os
veículos online, elas não só migram de um meio para
outro, mas também simplesmente se dispersam en-
tre inúmeras ofertas.” (MARIANO, 2015)

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Uma outra novidade possibilitada pelo ambiente online
é o crescimento das redes transacionais entre os próprios
consumidores. Anderson (2006) coloca que a confiabili-
dade das propagandas está diminuindo e os consumidores
preferem buscar na internet opiniões de pessoas com
pensamentos e gostos similares (SCHIONTEK; COHENE
e BUIATTI, 2017). Ou seja, a força das mensagens envia-
das de cima para baixo está caindo, enquanto o peso da ex-
periência de produto dos outros consumidores aumenta.

Essa mudança – de distribuição para circulação –


sinaliza um movimento da direção de um modelo mais
participativo de cultura, em que o público não é mais
visto como simplesmente um grupo de consumidores
de mensagens pré-construídas, mas como pessoas
que estão modelando, compartilhando, reconfigu-
rando e remixando conteúdos de mídia de maneiras
que não poderiam ter sido imaginadas antes (JEN-
KINS, GREEN e FORD, 2014, p.24)

Graças à utilização das novas tecnologias de infor-


mação e comunicação, os consumidores adotam um mo-
delo todos-todos, no qual cria-se uma espécie de interação
em rede. Nela, os consumidores podem até vir a se tornar
geradores de conteúdo (BÓRIO, 2014).
Com as possibilidades de interações entre os usuários
no ambiente online, o engajamento se torna muito impor-
tante. Jenkins (2009) ressalta o poder das comunidades
de marca. Os fãs criam laços com as séries televisivas e
começam a interagir com outros fãs através da Internet, se
organizando em comunidades, ou fandoms.

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Segundo Mariano (2015), esses fãs já se reúnem há
anos em grupos para apoiar séries ameaçadas de can-
celamento, argumentando que as redes deveriam se con-
centrar mais na qualidade do engajamento do público do
que na quantidade de espec- tadores do programa. E aos
poucos, os anunciantes e as redes têm chegado à mesma
conclusão (MIRANDA, 2016).
Como exemplo, temos a série Arrested Development
(2003-), sucesso de crítica, mas cancelada pela Fox em
2006, após três temporadas. Em 2013, a Netflix anunciou
o retorno da série para um quarta temporada, exclusiva da
plataforma.

Sendo assim, nesse exemplo – Arrested Develop-


ment – encontram-se tanto os interesses da Netflix
em atender a esse mercado de nicho, deixado de
lado pelas grandes emissoras de televisão, quanto
os interesses de um público organizado, que utiliza
a rede para trocar informações e expor suas de-
mandas. Interessante pensar que a baixa audiên-
cia do programa em sua emissora original se deve,
provavelmente, a outra forma de consumo, pelo
compartilhamento via web. Identificando isso, a Net-
flix percebeu que o seriado tinha público, mas que
podia ser alcançado em outra plataforma (MARIA-
NO, 2015).

Arrested Development não foi um caso isolado, a Netflix


“ressuscitou” inúmeras produções ao longos dos anos. A
pergunta que fica é: Por que investir em uma série cance-

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lada por conta de seus baixos índices de audiência?
Graças ao seu monitoramento de público, a plataforma
identificou que os fãs de Arrested Development continua-
vam engajados com a série e consumiam serviços de VOD,
logo, eram um público potencial. E qual a melhor forma de
atraí-lo do que oferecer algo único, como o retorno de sua
série favorita (SILVA, 2013, p.15).

Super Drags e o Pink Money

Super Drags (2018 -), além de ser a primeira animação


original Netflix totalmente produzida no Brasil, chama
atenção por ser uma produção voltada para o público adul-
to e LGBT3. Uma combinação improvável, se levarmos
em consideração que ainda existe um estigma de que ani-
mação é um produto voltado para o público infantil e o nicho
LGBT sempre teve espaço limitado na mídia tradicional.
Diante do anúncio do lançamento da série, diversos
setores publicaram notas de repúdio, como a Associação
Brasileira de Pediatria (SBP)4, que ressaltou seu “com-
promisso com a liberdade de expressão”, porém pediu o
cancelamento da programação, “como expressão de com-

3 LGBT é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Tran-


sexuais ou Transgêneros. Se refere a um público abrangente
e diversificado, não podendo ser caracterizado como um bloco
único. Apesar da relevância deste apontamento, não abordare-
mos esta questão neste artigo, dada a sua complexidade e des-
dobramentos.
4 Disponível em <http://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/
nid/contra-a-exposicao-de-criancas-e-adolescentes-a-conteu-
dos-improprios-na-tv/> Acesso em 28.11.2018.

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promisso do desenvolvimento de futuras gerações” por
parte da Netflix. Até o Ministério Público Federal resolveu
se pronunciar e recomendar à plataforma que a animação
com Drags não entrasse no catálogo infantil. Em resposta,
tanto a Netflix, quanto o Combo estúdio, responsáveis pela
produção, deixaram claro que o produto era voltado para
o público adulto e não estaria na sessão infantil (RONAN,
2018).
Mas quais motivações levariam uma empresa a enfren-
tar tanta polêmica e risco de boicotes em nome de uma pro-
dução única dentre um catálogo tão amplo? Seria porque
a Netflix realmente quer levantar a bandeira em defesa do
movimento LGBT? Talvez. Mas o mais provável é que a
resposta seja mais simples e pragmática: Pink Money.
Pink Money, ou dinheiro rosa, é um termo que descreve
o poder de compra da comunidade LGBT, que se mostrou
bem expressivo. O IBGE revelou no censo de 2010 que os
casais homossexuais possuem renda média superior à dos
heterossexuais. Na tabela a seguir, o comparativo baseado
no valor do salário mínimo de 2010, de R$5105.
Em 1999, Chris Morris lançou um artigo revelando sua
análise de como a comunidade gay, gozando de certo po-
der econômico, deixou de ser apenas um nicho margina-
lizado do mercado para se tornar o público alvo de uma
indústria próspera.
Ao longo dos anos, novas análises corroboraram suas
observações, embora não haja exatidão quanto aos valores

5 Informações adicionais disponíveis em <http://g1.globo.com/


brasil/noticia/2011/11/casais-gays-ganham-mais-que-casa-
is-heterossexuais-mostra-ibge.html > Acesso em 25.11.2018.

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FAIXAS CASAIS CASAIS
DE RENDA HETEROSSEXUAIS HOMOSSEXUAIS

Até 1/2 salário 9,2% 3,4%

Mais de 1/2 a 18,72% 15,6%


1 salário

Mais de 1 a 10,56% 25,14%


2 salários

Mais de 2 a 10,56% 20,5%


5 salários

Mais de 5 a 3,41% 9,55%


10 salários

Mais de 10 a 1,05% 3,77%


20 salários

Mais de 0,34% 1,4%


20 salários

Figura 2: Faixa de renda por tipo de casais


Fonte: IBGE.

de seu real poder de compra. No entanto, várias pesqui-


sas a identificam como um público de alta renda, exigente
e que consome em média 30% a mais que o consumidor
hétero.6 “Os homossexuais são consumidores exigentes
de estilo, criativos, fiéis e dispostos a gastar”. (DELLAR-
MELIN, BETENCOURT, 2015)
Para conquistar o engajamento do público gay é pre-
ciso conhecer sua identidade, na qual valores, emoções,
atitudes e aspirações geram comportamentos de consumo

6 Disponível em <https://www.correiobraziliense.com.br/app/
noticia/economia/2013/06/01/internas_economia,369065/publi-
co-gay-consome-em-media-30-mais-que-consumidor-hetero.
shtml> Acesso em 29.11. 2018.

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diferenciado. Muitas vezes o consumidor homossexual so-
mente estabelece relação com um produto quando esse
oferece um valor social (NUNAN, 2003).
Uma possível explicação para o motivo do público gay
ser tão exigente e dar tanto valor ao fato de uma marca/
empresa ser ou não gay friendly7 é apresentada por Mor-
ris (1999). Ele afirma que há tantos negócios e espaços
exclusivos para este público justamente porque este nicho
não se sentia bem recebido ou representado nos ambien-
tes tradicionais. Se valendo do seu poder de compra, os
gays pertencentes às classes mais abastadas, puderam se
organizar para desenvolver todo um mercado voltado para
seus interesses específicos.
O fenômeno da cauda longa oferece uma explicação
satisfatória sobre o porquê de o mercado de nicho ter
ganhado mais espaço, mas ainda não se pode ignorar a
importância do poder de compra de determinado público.
Maior poder econômico implica maior poder de consumo, o
que gera demanda. Para supri-la, conteúdo exclusivo para
este nicho começa a surgir.

Considerações finais

Atualmente, a Netflix se mantém como uma das maiores


plataformas de Video on demand (VOD), com mais de 120
milhões de assinantes ao redor do mundo. Diante des-

7 Em português, amigável a gays, ou amigayveis, é um termo


norte-americano que vem sendo utilizado no Brasil para se refe-
rir a lugares públicos ou privados, abertos e receptivos ao públi-
co gay, ou seja, a membros da comunidade LGBT.

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ses números, não se pode mais considerá-la como uma
mera alternativa à televisão, e sim como um dos líderes
da indústria audiovisual, com tanta relevância quanto as
maiores produtoras e canais de televisão.
Apesar disso, a Netflix não está sujeita as mesmas re-
gras e limitações como os tradicionais canais de televisão.
Uma das principais potencialidades dos serviços de VOD
é a viabilização dos investimentos nos nichos de mercado,
uma vez que como um SVOD, um dos seus objetivos é
ampliar a base de assinantes.
A democratização do acesso ao conteúdo incentiva
produções que têm um potencial de criar engajamento,
mesmo que falhem no alcance do grande público, tanto
que após Arrested Development, a Netflix investiu em no-
vas temporadas de outras séries que se mostraram com
público fiel, mas acabaram canceladas ou encerradas na
televisão, como a animação Star Wars: Clone Wars (2008
-2015), The Killing (2012 -2014) e Black Mirror (2011-).
Diante do poder de compra de determinados nichos, é
natural pensar que o mercado se moverá para atender suas
necessidades, mesmo que o público em geral se mostre
conservador e rejeite novos conteúdos. Para contornar
possíveis rejeições, a plataforma possui a vantagem de
ser um serviço de VOD. Logo suas produções disponíveis
no catálogo não competem entre si. Quem não tiver inte-
resse em produções voltadas para determinado nicho, não
se sentirá desassistido ou ameaçado moralmente pois
há uma certa variedade de filmes e séries presentes no
catálogo. Assim, evidencia-se o papel dos algoritmos de
recomendação que indicam para o usuário o conteúdo que

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está mais alinhado com suas preferências.
Corroborando a teoria de Anderson (2006), os diversos
avanços tecnológicos, que vão desde a distribuição e ar-
mazenagem de conteúdo até o desenvolvimento de algo-
ritmos de recomendação, viabilizam os investimentos nos
mercados de nicho.
Apesar da polêmica, os cinco episódios de Super Drags
foram lançados na Netflix em 9 de novembro de 2018. A
série acabou sendo cancelada após a primeira temporada.
Apesar da relevância do mercado de nicho, a obra ainda
precisa se mostrar rentável. Não entraremos em detalhes
sobre os possíveis motivos que levaram a Netflix a can-
celar Super Drags, mas lembramos que, como dito ante-
riormente, o público gay é caracterizado como exigente,
logo, não consumirá qualquer produto desenvolvido para
ele, apenas pelo fato de “valorizar” a comunidade LGBT.

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Referâncias bibliográficas

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PROCESSOS E TÉCNICAS

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7

MOVIMENTO CRIATIVO NA
ANIMAÇÃO DE PERSONAGEM

Antonio Fialho

A atividade prática no mercado profissional de animação


permite amadurecer uma reflexão teórica sobre essa ex-
periência na construção do movimento para o desenho ani-
mado com personagem. A vivência do ato de animar pau-
latinamente uma sequência de imagens desenvolve no(a)
animador(a) o senso crítico sobre seu trabalho, tanto pela
análise contínua do processo de se construir a percepção
de movimento no cinema de animação quanto pela neces-
sidade de dominar as posições diferenciais do personagem
para que sua encenação seja plausível ao espectador.
Mesmo que alguns autores conceituem a animação
“como uma técnica (ou melhor, como um conjunto de técni-
cas), e não um gênero” (DENIS, 2010, p.7) do cinema,
o que essa definição registra é a abrangência e potencial
estéticos da mídia animada, pois ela relaciona o desenho,
a pintura, escultura e fotografia com o próprio cinema. Esse
amálgama diferenciado de expressões artísticas possibilita
galgar a animação ao escopo de uma linguagem singular,
não subjacente ao cinema, pois ela se insere também na
criação de movimento para sítios eletrônicos da rede mun-
dial de computadores, flexibilizando as relações cognitivas
entre o usuário e a ferramenta digital (só para citar um e-
xemplo fora do âmbito cinematográfico).

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No entanto, o cinema de animação tem no segmento do
desenho animado sua expressão mais notória e comer-
cial, em que coabitam figuras de representação humana
e animais antropomórficos que têm seu movimento cons-
truído pela caricatura de gestos e expressões faciais pe-
culiares, capazes de identificá-los separadamente para o
espectador pela simples personificação de seus maneiris-
mos e caminhadas. Essas figuras articuladas, advindas da
charge humorística impressa, ajudaram a propagar para o
grande público o desenho animado como técnica sinônima
ao ci- nema de animação. Na realidade, esse segmento
sumariza aquilo que se denomina de animação de per-
sonagem, fenômeno artístico e comercial que se desen-
volveu “verti- ginosamente na indústria cinematográfica
norte-americana durante as primeiras quatro décadas do
século XX [...]” (FIALHO, 2013, p.1).
De fato, o campo do cinema de animação abrange a
criação do movimento para figuras articuladas, mas tam-
bém de processos abstratos que não incluem a represen-
tação mimética de pessoas ou animais no desenho anima-
do, como os experimentos plásticos de artistas como Len
Lye, Norman McLaren ou Oskar Fischinger. Nesse campo
de estudo, a pesquisa acadêmica tem se dedicado a va-
lorizar a produção desses animadores como celeiro úni-
co e quase exclusivo da inventividade e experimentação
artísticas no panorama do cinema de animação: “Esta
tradição experimental continua a influenciar o desenvolvi-
mento do cinema como um todo, assim como a produção
de formas complexas e pessoais de animação que devem
ser consideradas obras de arte por direito próprio” (RUS-

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SETT & STAR, 1988, p. 130)1. Por outro lado, animadores
que escolheram se expressar pela representação figura-
tiva têm sido confinados, muitas vezes erroneamente, às
convenções artísticas do desenho chargístico, embora os
primeiros experimentos no cinema de animação tenham
ocorrido no entorno das imagens cartunescas.

O primeiro Americano a animar um desenho anima-


do, J. Stuart Blackton, transformou um desenho com
giz de um homem em vários estereótipos étnicos
para provocar humor a partir de caricaturas identi-
ficáveis. [...] Experimentação e humor chocante fi-
zeram parte da história da animação desde o início
(BECK, 2003, p. 27)2.

Nesse sentido, a ênfase no caráter experimental das


produções animadas deve ir além daquela destinada exclu-
sivamente aos filmes abstratos ou pela utilização de mate-
riais alternativos ao simples desenho para produzi-los, pois
é uma caracterização que codifica apenas um dos pilares
dessa imagem sintética: a visualidade única dos filmes ani-
mados. Não se deve esquecer que o experimento artístico
na animação deve abranger aquilo que também é singular
nesse campo de estudo, mas pouco discutido na pesquisa
científica: a representação do movimento construído.
Assim, retomando o raciocínio sobre o ato de animar,
podemos desenvolver que a busca de senso crítico sobre
esse trabalho vai além da necessidade de os animadores
1 Tradução do autor.
2 Tradução do autor.

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dominarem as posições diferenciais do personagem sim-
plesmente para a encenação ser plausível ao espectador.
Esse argumento pode ser extrapolado para que essa en-
cenação seja inclusive experimental, no sentido de se es-
tabelecer um ato criativo do movimento construído para a
animação fora daqueles parâmetros vigentes normalmente
considerados para animar personagens (ainda que este re-
sultado continue plausível para o espectador, pois se trata
de sofisticar o movimento pelos princípios característicos
da animação e não de refutá-los).
A representação desse movimento pode ser, a priori,
intuitiva. Se a experiência prática com a construção desse
processo perpassa a descoberta pela livre experimentação,
pode-se chegar a resultados inusitados na elaboração do
movimento para um personagem. No entanto, há a neces-
sidade de uma avaliação analítica pormenorizada dessa
construção para estabelecer parâmetros, a posteriori, para
o resultado que se almeja alcançar na encenação de um
personagem. Minha experiência inicial com a atividade
criativa na animação buscou intuitivamente valorizar o re-
sultado da hachura no desenho como valorização de algo
singular exatamente por desconhecer as possibilidades
técnicas da construção do movimento para encenar com
precisão aquilo que o personagem deveria fazer. Havia,
pois, uma tentativa de experimento com a visualidade na
animação elaborada em conjunto com um domínio ainda
intuitivo da representação do movimento para os perso-
nagens (figura 1).
Por sua vez, o estudo minucioso da representação ana-
lítica do movimento galgou um aprendizado técnico sobre

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Fonte: A Outra Voz Fonte: Zorro
(Antonio Fialho,1993) (Antônio Fialho, 1995)
Figura 1 - Experimento com a visualidade e domínio intuitivo do mo-
vimento: a imagem à esquerda integra trecho de animação do projeto
de graduação na Habilitação em Cinema de Animação da EBA/UFMG
- A Outra Voz (1993) e a imagem à direita ilustra trecho da vinheta de
animação Zorro (1995). Em ambas, desenhei com grafite sobre papel
para experimentar com a trama da hachura entre as imagens sequen-
ciais, representando um movimento de personagem mais intuitivo por
desconhecer a fundo a aplicação dos princípios de animação.

etapas metodológicas que pudessem reger com critérios


precisos o que fazer com as primeiras posições do per-
sonagem para impulsionar uma ação mais espontânea
para sua encenação. A experiência prática profissional que
vivenciei após bolsa de pós-graduação no exterior (Programa
Apartes, Capes,1997-98) amadureceu a percepção cons-
trutiva desses pormenores na animação. Como resultado,
a visualidade se tornou mais convencional nos dois pro-
jetos autorais seguintes, com personagens e cenários pró-
ximos da animação comercial, mas animados segundo um
domínio analítico da representação do movimento (figura 2).
Esse controle consciente sobre a construção do movi-
mento propiciou uma experiência mais próxima da onipre-
sença criativa com o ato de desenhar e animar, como uma

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Fonte: Monolitre Fonte: Bandeira
(Antonio Fialho,1998) (Antônio Fialho, 2006)
Figura 2 - Visualidade convencional com domínio analítico do movi-
mento: a imagem à esquerda ilustra trecho de animação do curta au-
toral Monolitre (1998) e a imagem à direita integra cena animada para
o filme autoral Bandeira (2006). Em ambas, tanto a concepção visual
dos personagens quanto a construção da animação entre as imagens
sequenciais buscaram representar um movimento mais analítico pelo
estudo e aplicação dos princípios de animação.

“magnífica oportunidade para fazer um filme inteiro sozinho”


(JEUNET apud TIRARD, 2002, p. 58). No entanto, esse ato
pode acabar se tornando um tanto previsível após dominar
os princípios básicos de animação, e nesse sentido quase
uma cilada para animadores que pretendem experimentar
com o movimento. A razão é simples: recorrer aos limites
intrínsecos desses princípios, sem extrapolá-los, produz
eficiência na criação do movimento construído quadro a
quadro, o que valoriza profissionalmente o trabalho árduo
e meticuloso dos animadores na indústria. E a tendência
acaba sendo a inércia criativa para cumprir com eficácia
as demandas profissionais, como sinalizou Andy Bartlett,
meu ex-orientador da bolsa de pós-graduação (Capes), ao
afirmar que

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Fórmulas têm um lado bom e outro ruim. O lado bom
é que elas se tornam amigas confiáveis que não o
decepcionarão. Você pode recorrer a elas quando
estiver tentando atingir um prazo impossível ou se ti-
ver que animar sem o auxílio de um testador de linha
[para checar o movimento]. A desvantagem das fór-
mulas é que elas rapidamente se tornam previsíveis
e entediantes e, como animador, você começará a
estagnar. Assim que você reconhece suas fórmulas,
há uma satisfação profissional de evitá-las conscien-
temente. […] Isso exige muito tempo e esforço, mas
quando as situações de trabalho permitem, o melhor
é experimentar (BARTLETT apud FIALHO, 2013, p.
307)3.

Quando se trata de animar personagens – consideran-


do a contraposição de forças para sustentá-los em super-
fície, impulsioná-los à ação ou acomodá-los ao repouso –,
experimentar significa reiterar a construção do movimento
pelos princípios de animação com ênfase em posições cria-
tivas à deriva da encenação tradicional. É pela análise do
movimento humano que se pode reconhecer as posições
que mudam ou rompem com a percepção mecânica da
ação, pois são elas que sustentam e articulam as partes
móveis do corpo com credibilidade na animação de um
personagem (figura 3).
Observando a figura 3, da esquerda para a direita, é
possível analisar que a quarta posição intermediária arti-
cula uma ação singular que antecede o ato de jogar a bola,

3 Tradução do autor.

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Fonte: MUYBRIDGE, 1979, pp. 126-127.
Figura 3 - Análise do movimento humano identifica posição de ruptura
na ação: trecho de placa fotográfica de Eadweard Muybridge, intitulada
Nude man throwing baseball (Animal Locomotion, 1887, Plate 286).
Ela ilustra imagens sequenciais de um homem jogando uma bola e
permite identificar algumas posições intermediárias para esta ação. A
quarta posição, da esquerda para a direita, é diferenciada, pois repre-
senta uma inclinação para frente do tronco enquanto o braço se ante-
cipa para trás, em direção contrária à ação conducente do corpo para
justificar o impulso de jogar a bola.

só possível de identificar ao estudar a sucessão desse


movimento. Posições como essa são cruciais para enten-
der a dinâmica necessária para animar personagens, pois
rompem com qualquer movimento mecânico na passagem
entre as posições principais do início e final de uma ação.
A descoberta dessas posições, ao analisar ações hu-
manas como referência, modificou de vez a percepção do
movimento natural e sua consequente construção adapta-
da para a animação de personagem. A partir de observação
e análise similares à da figura 3, os animadores começaram
a identificar essas posições intermediárias diferenciadas,
o que sofisticou os resultados da animação na segunda
metade dos anos 1930 na indústria estadunidense. Surge
daí uma nova construção do movimento animado: seu re-
sultado encena personagens que aparentam ser espontâ-
neos por serem articulados com flexibilidade entre as par-

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tes móveis de sua constituição, o que passou a superar a
ação mecânica, unilateral e enrijecida de antes (quando se
tentava animar figuras com braços e pernas articulados ao
corpo). A caracterização de ações como essa definiu um
conceito importante para a construção do movimento na
animação: a ação das partes moles e móveis de um perso-
nagem se sobrepõem durante o movimento (em posições e
tempos diferentes da ação), princípio que Thomas & John-
ston (1981, p. 59)4 sistematizaram como “ações sobrepos-
tas e contínuas” (FIALHO, 2013, p. 53).
Ainda na figura 3, a segunda e a quinta posições estão
claramente mais próximas das posições principais da ação,
favorecendo o repouso inicial e final do atleta. Se a terceira
posição ilustra a preparação para jogar a bola, a segunda
e quinta posições enfatizam uma hierarquia entre as partes
móveis do atleta, na ação conduzida pelo braço esquerdo
para que o direito levante a bola na segunda posição, e
na ação conduzida pelo tronco e articulada posteriormente
pelos braços na quinta posição. Para sugerir essa hierarquia
na animação, os animadores também perceberam que de-
veriam criar mais posições que diferenciassem a ordem das
partes articuladas do personagem para romper com o movi-
mento mecânico entre as posições inicial e final da ação.
É a partir dessa análise estrutural da posição inter-
mediária que modifica ou muda o movimento, elaborando
posições adjacentes que controlam a ordenação das partes
articuladas da figura, é que se pode chegar ao experimento
na animação de personagem. Ao dominar a representação

4 Follow Through and Overlapping Action.

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do movimento pelo estudo das posições diferenciadas e
de sua organização para se construir uma percepção es-
pontânea e flexível na animação, o animador pode partir
dessa observação de base naturalista para sistematizar
um movimento imaginado e concebido pelos limites de sua
própria criatividade. “Devido à representação subjetiva da
realidade que impõe, a animação é claramente a forma ci-
nematográfica mais próxima do imaginário” (DENIS, 2007,
p. 9):

Movimento Observação e Análise Imaginário Potencializado

Pode-se sumarizar as possibilidades do movimento cri-


ativo para a animação de personagem, desassociado da
observação naturalista (mas baseado em sua dinâmica),
a partir do experimento com a postura, com o posiciona-
mento formal da figura e com o caminho traçado para as
posições do personagem na ação. Ao recriar a posição
diferenciada para torná-la livre das amarras naturalistas
e ao estabelecer a ordem das posições adjacentes no i-
nício e final da ação, os animadores podem conduzir a ani-
mação com precisão analítica similar ao estudo do movi-
mento humano. Ou seja, em nível técnico, o planejamento
e a construção da animação continuam sendo propiciados
pelo domínio dos princípios apresentados por Thomas &
Johnston (1981) e elucidados pela proposição prática de
Williams (2001) e Goldberg (2008). É essa mudança (pela

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observação e análise) na representação do movimento
construído que permite aos animadores potencializarem
seu imaginário artístico.
Tal mudança implica restabelecer os princípios de ani-
mação para sustentar três pontos distintos: recriar a en-
cenação, romper com o naturalismo e redefinir o itinerário
do personagem na ação. Em minha tese de doutorado,
abordei que a inventividade com o movimento na ani-
mação de personagem poderia ser construída a partir de,
pelo menos, três processos: ênfase na criatividade pos-
tural do personagem, variando sua postura em relação ao
“equilíbrio gravitacional vigente” (FIALHO, 2013, p. 293) e,
portanto, recriando sua encenação; originalidade no posi-
cionamento intermediário do personagem pela criação de
poses “desvinculadas da articulação da anatomia humana
[…] mas plausíveis para seu itinerário dinâmico” (idem); e
inventividade no percurso do personagem, ao substituir,
por exemplo, seus usuais movimentos curvos por movi-
mentos angulares.
Para demonstrar o potencial desse experimento pela
mudança formal, elaborei para a tese uma atividade criati-
va com personagem para exemplificar as possibilidades da
inventividade pelo percurso, redefinindo um “itinerário an-
gular em vez do tradicional percurso ondulatório ou curvo”
(FIALHO, 2013, p. 293) durante a construção do movimen-
to (figura 4).

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Fonte: FIALHO, 2013, p.284
Figura 4 - Experimento com percurso por ângulos no itinerário do braço:
assim como na figura 1, desenhei com grafite sobre papel, mas agora
partindo do domínio analítico sobre os princípios de animação na figura
2 para transgredir o itinerário curvo da ação do braço, observado, por
exemplo, na referência fotográfica de um movimento natural na figura
3. Aqui buscou-se o experimento não apenas com a visualidade, mas
principalmente com a representação do movimento construído na ani-
mação de personagem.

Observa-se na figura 4 que a segunda e a terceira


posições foram construídas para favorecer, cada uma, as
posições principais da ação no início e final (poses-chave).
Isso demonstra que essa construção seguiu a mesma
premissa metodológica observada na análise da figura 3,
com a disposição de, pelo menos, duas posições inter-
mediárias para diferenciar a ordem das partes articuladas
no movimento do braço do personagem (as poses de pas-
sagem da figura 4). Essa estratégia sugeriu flexibilidade ao
movimento do braço pelo uso do princípio das ações so-
brepostas e contínuas, fundamental para articular as partes
móveis da figura: o cotovelo do braço da segunda posição
se sobrepõe em direção contrária à pose-chave inicial, mas
ainda mais próximo dela; enquanto o cotovelo da terceira
posição já se posiciona praticamente no mesmo lugar da
pose-chave final. A diferença ou mudança está no itinerário

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conduzido por essas posições, explicitamente angulares
na forma e no percurso em relação ao tradicional princípio
curvilíneo denominado de “Arcs” (THOMAS & JOHNSTON,
1981, p. 62). O sistema de construção do movimento pelas
posições que diferenciam a ação, observado na figura 3,
foi revitalizado no exemplo da figura 4 para potencializar
o imaginário, focado na criação livre da ação de um braço
sem referências naturalísticas.
No entanto, o movimento criativo na animação não
ocorre somente no rompimento com a forma convencio-
nal do percurso, da postura ou da posição do personagem
na cena. Ele pode ser potencializado também durante as
pausas e ações secundárias do personagem para enfatizar
suas idiossincrasias e intenções dramáticas na cena (e
não apenas nas distorções formais explícitas ou implíci-
tas do movimento construído). Essa abordagem mais sutil,
desenvolvida para potencializar a dramaturgia do persona-
gem, enfoca uma construção do movimento com ênfase na
pantomima.
A figura 5 ilustra três posições selecionadas de uma
cena do curta-metragem The Last Belle (Neil Boyle, 2011)
que sumarizam o domínio criativo da representação de um
movimento pantomímico pelo animador. Sem utilizar dos
recursos narrativos complementares do diálogo ou locução,
a animação desenvolvida para o corpo concentra-se no
movimento puro de passos trêmulos, quase cambaleantes
no final, e gestos com o braço direito para evocar o estado
emocional da personagem, mesmo sem visualizarmos sua
expressão facial (ela está de costas). A primeira posição
da esquerda, na figura 5, sugere que ela está trajando um

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Fonte: curta-metragem de animação The Last Belle (Neil Boyle, 2011)
Figura 5 - Movimento criativo pode potencializar também atuação do
personagem: neste trecho de animação, o caminhar de costas da per-
sonagem define características singulares para o espectador através
de uma pausa momentânea com gesto secundário, seguida de um
desequilíbrio de sua postura. Pela simples pantomima da personagem,
elaborada e construída sequencialmente pelo animador, percebe-se
que ela está desconfortável com o vestido e o salto alto.

vestido pouco usual, possivelmente novo, pela maneira


como ela puxa a borda, ainda caminhando, para reajustá-lo
ao corpo. Em seguida, ela o estica mais uma vez para o
lado, agora reposicionando seu corpo em uma pausa mo-
mentânea antes de reiniciar a caminhada em direção ao
bar. Essa ação está representada pela posição extremada
(imagem central) na figura 5, a qual registra um repouso
breve, mas fundamental para explicitar as pernas estica-
das com os calcanhares tombados para fora, forçando a
ponta dos pés para dentro do salto alto. É claramente uma
postura desconfortável, que sugere alguém não acostuma-
da a andar sobre sapatos com salto alto. Essa intenção fica
ainda mais evidente na última posição da figura 5, onde

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a personagem parece prestes a cair. Em um movimento
brusco para voltar a caminhar, ela tomba ainda mais a per-
na de apoio para tirar a perna direita do chão e realizar a
passada em ritmo rápido, recompondo o equilíbrio do cor-
po no final. Essas posições são todas fruto do espectro
criativo do animador, não restritas à observação do movi-
mento natural, e que demonstram o potencial da animação
como a expressão audiovisual mais próxima do imaginário.
A análise do trecho selecionado na figura 5 exemplifi-
ca que a maneira como o animador pausa e reposiciona
um personagem, durante a ação, é tão importante quan-
to o próprio movimento. A personalidade na animação é
sugerida como você move ou repousa um personagem:
“Meu mestre certa vez elogiou o jeito que eu repouso [um
personagem] […]. É ma [espaço ou sala]. Se a forma pau-
sada for bonita, você pode criar imagens impactantes sem
movimento” (MINEGISHI apud TOYOFUKU, 2018, p. 82)5.
Se a contraposição de forças envolve dar à ação e pau-
sa vitalidade na animação, essa dinâmica pode ser po-
tencializada se houver a adição do princípio denominado
de “Secondary Action” (THOMAS & JOHNSTON, 1981, p.
63) à elaboração do movimento. Ou seja, este princípio
traduz uma ação inicialmente subordinada à principal (a
caminhada), mas que se torna a essência criativa do mo-
vimento por justificar a pausa transitória, diferenciando-a
pela combinação espontânea e sofisticada que agrega à
própria ação: uma “atuação secundária (movimentos vo-
luntários e involuntários de partes móveis que enfatizem

5 Tradução do autor.

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a encenação pela pantomima)” (FIALHO, 2013, p. 276) da
personagem através da construção de gestos físicos seus,
com a intenção de complementar sua atitude característica
e desvelar suas verdadeiras intenções na cena.
Concluindo, essa combinatória para explorar os maneiris-
mos de um personagem pode ser expressa pela associação
criativa dos seguintes atributos na animação: “Idiossincrasias
/ diferenciação do personagem = Vitalidade + flexibilidade
+ atuação secundária” (FIALHO, 2013, p. 85). O domínio
expressivo do ritmo entre a ação e pausa, para variá-lo na
animação, dá sentido ao movimento pantomímico do per-
sonagem. E esse movimento deve ser construído com foco
na mecânica flexível da articulação dos membros móveis
da figura para realçar a mudança formal na ação. Ao agre-
gar gestos secundários para o personagem, a significação
do movimento (anima) é intensificada e passa a se tornar
singular. Busca-se aí o movimento como expressão artística,
a partir do experimento entre esses atributos para desen-
volver a animação de personagem como uma represen-
tação subjetiva da realidade criada pelo(a) animador(a).

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Referências Bibliográficas

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FIALHO, Antonio. A Experimentação Cinética de Personagem: os


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MUYBRIDGE, Eadward. Muybridge’s Complete Human and Animal Lo-


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TIRARD, Laurent. Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova


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WILLIAMS, Richard. The Animator’s Survival Kit: A Manual of Methods,


Principles and Formulas for Classical Animation, Computer, Games,
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8

GLITTER E POEIRA: NOTAS


SOBRE FILMES CRIADOS
DIRETAMENTE NA PELÍCULA

Daniel Leal Werneck

Introdução

Este artigo não se propõe a esgotar o tema do cine-


ma diretamente sobre a película do ponto de vista histo-
riográfico, mas apenas levantar questões inspiradas pelo
seu histórico e pela prática desta técnica, que permitam
localizar este tipo de cinema no contexto contemporâneo,
levando em consideração os desenvolvimentos mais re-
centes no campo da tecnologia do cinema.
Desde os primórdios do cinema mudo, à medida em
que a película cinematográfica foi se tornando disponível
comercialmente, as possibilidades estéticas possibilitadas
por essa nova tecnologia conseguiram inspirar diversos ar-
tistas ao redor do mundo a se apropriarem dela para criar
novas obras de arte que deturpavam o uso original para
a qual ela havia sido desenvolvida, expandindo assim os
horizontes de sua utilização.
Esse breve artigo parte de algumas anotações a res-
peito da técnica de animação diretamente na película, ba-
seadas em filmes e textos, e também em experiências rea-
lizadas pelo autor.

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Breve história do cinema direto na película

Aquilo que se convencionou chamar de “cinema” é


apenas uma entre várias técnicas conhecidas para criar
ilusões de ótica que enganam o cérebro humano dando a
impressão de que uma série de imagens estáticas seria na
verdade, uma única imagem que se move. Os brinquedos
óticos são usados como entretenimento pelo menos desde
o século XVI e aparatos como câmeras obscuras e lan-
ternas mágicas já fascinavam muito antes das câmeras e
projetores crono-fotográficos do cinema vitoriano.
No entanto, ao surgir na Europa, logo após a Revolução
Industrial, essa nova tecnologia, que depois chamamos de
cinema, conseguiu se popularizar e se difundir ao redor do
mundo em uma velocidade impressionante: poucos meses
após as famosas projeções dos irmãos Lumiére (1895),
o sistema de câmera e projetor já chegava em locais tão
distantes de Paris como as cidades do Rio de Janeiro e
Tóquio. Poucas décadas depois, os projetores e os labo-
ratórios que revelavam os filmes utilizados já podiam ser
encontrados nas principais capitais do mundo e não tarda-
ram a atrair a atenção de variados artistas. Mágicos, músi-
cos, pintores, poetas queriam explorar as possibilidades
expressivas da nova mídia que estava tomando de assalto
os corações e mentes de milhões de pessoas. Ainda no
período anterior ao do som sincronizado, cineastas ex-
perimentais como Walter Ruttmann, Hans Richter, Viking
Eggeling e Oskar Fischinger iriam revolucionar o uso da
tecnologia cinematográfica na Alemanha. Ainda antes da
I Guerra Mundial, futuristas italianos como Arnaldo Gina e

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Bruno Corra faziam experiências radicais na tentativa de
associar a pintura e o cinema.
A pianista americana Mary Hallock-Greenewalt foi ape-
nas uma entre muitas pessoas que fizeram experiências de
associação entre notas musicais e cores, mas seu “órgão
visual” Sarabet foi pioneiro ao utilizar a película cine-
matográfica para esse intento nas experiências realizadas
pela artista entre 1916 e 1934. O Sarabet era uma máquina
que automatizava a exibição de luzes e cores a partir de
gravações feitas previamente, com um sistema de visua-
lização semelhante ao kinetoscope de Thomas Edison. Os
experimentos de Hallock-Greenewalt foram descritos mais
extensivamente em seu livro Nourathar: The Fine Art of
Light-Color Playing, publicado em 1946.
Os filmes exibidos pelo Sarabet eram pintados à mão,
usando máscaras de estêncil e tinta borrifada com aeros-
sol. Esta mesma técnica foi usada novamente pelo es-
cultor cinético de origem neozelandesa Len Lye em seus
primeiros filmes experimentais. Após o experimento “Tusa-
lava”(1926), ele produziu uma série de curtas misturando
cenas filmadas em ação direta com pedaços de filme pinta-
dos e impressos manualmente. Entre 1935 e 1936 produ-
ziu quatro deles, utilizando inovadores sistemas coloridos
como Dufaycolor e Gasparcolor. Esses sistemas pioneiros,
anteriores ao famoso Technicolor, utilizavam três fitas de
película separadas, uma para cada canal de cor (ciano,
amarelo e magenta) que eram depois exibidas com três
filtros coloridos, um método análogo ao descrito pelo cien-
tista escocês James Clerk Maxwell 80 anos antes.
Como esses métodos pioneiros de cinema colorido

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exigiam condições ainda muito rígidas de filmagem para
funcionarem, era quase natural que fossem experimen-
tados primeiro pelos animadores, que podiam fotografar
seus filmes com muito mais precisão e tempo do que as fil-
magens de ação direta em 24 quadros por segundo permi-
tiam. Lye se aproveitou dessa nova tecnologia e produziu
os primeiros curtas pintados diretamente sobre a película
que foram copiados, distribuídos e assistidos por um pú-
blico significativo. Essa distribuição comercial permitiu que
muitas pessoas entrassem em contato com suas técnicas
e tentassem posteriormente fazer algo parecido.
Na mesma época em que Len Lye esboçava seus pri-
meiros experimentos com a imagem animada, outro grande
artista realizava um experimento relevante para nosso es-
tudo: a convite do dadaísta Tristan Tzara, o fotógrafo Man
Ray produziu um filme utilizando as mesmas técnicas fo-
tográficas pelas quais já era conhecido. O resultado foi o
curta Emak Bakia (1926) que misturava imagens de ação
direta, animação em stop-motion e trechos de filme expos-
tos com objetos e materiais sobre eles, no processo que o
artista apelidava de “rayografia”. Não deixando de ser uma
forma de produzir cinema diretamente sobre a película.
Voltando a Len Lye, suas técnicas foram posteriormente
retomadas por outro artista de origem britânica, o escocês
Norman McLaren. Ele já flertava com a idéia de desenhar
diretamente sobre a película em suas primeiras propagan-
das para o GPO1, sob a supervisão de John Grierson, que
1 O General Post Office Unit era uma subdivisão da General
Post Office – serviço nacional de correios – do Reino Unido. A
unidade foi criada em 1933, assumindo responsabilidades da
Unidade de Cinema da Empire Marketing Board. Dirigido por
John Grierson foi criado para produzir documentários relaciona-
dos às atividades dos correios. 131

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mais tarde o levaria para coordenar o departamento de ani-
mação do National Film Board of Canada – NFB, em 1941.
Antes disso, McLaren ainda realizaria alguns curtas nessa
técnica para a Fundação Solomon Guggenheim, que tam-
bém patrocinava outros animadores experimentais, como
Oskar Fischinger. Sua obra-prima utilizando essa técnica
foi Begone Dull Care, um filme completamente abstrato re-
alizado em 1949, sob a sombra dos horrores da Segunda
Guerra Mundial. Ali ele reforça os elementos bem-sucedi-
dos dos filmes de Len Lye (música sincopada, sincronia
entre som e imagem, uso de paletas multi-coloridas) mas
também incorpora elementos inovadores que levarão seu
trabalho a uma nova dimensão (camadas sobrepostas, es-
trutura narrativa). Esse é o filme que irá circular pelo mun-
do e formar toda uma nova geração de pintores de filmes
direto na película.
O principal motivo que fez com que os filmes de McLa-
ren fossem tão influentes foi o material didático criado por
ele, tanto em formato impresso quanto fílmico. Em 1949, a
UNESCO publicou e divulgou uma cartilha intitulada How
to make animated movies without a camera. Dois anos de-
pois, veio o curta-metragem Pen Point Percussion, produ-
zido por Tom Daly para o NFB. O filme é mais centrado na
produção do som do que na imagem, mas ao demonstrar
essa técnicas, acaba revelando um pouco do processo – a
parte mecânica da projeção, a guia que McLaren usava
para visualizar os frames, etc. Essa cartilha e esse curta
viajaram o mundo, chegando a cineclubes e museus de
vários países, influenciando toda uma nova geração de ar-
tistas e cineastas a experimentar essas novas técnicas,

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inspirados pelo fato de que não seria necessário nenhum
tipo de equipamento especial para produzir os filmes – ape-
nas tiras de película, pincéis e tinta nanquim.
Depois de McLaren, muitos outros artistas iriam realizar
filmes pintando diretamente sobre a película, como Harry
Everett Smith, que assim como McLaren, também era um
grande admirador do estilo de jazz moderno chamado be-
bop e também era financiado pela Fundação Guggenheim.
Em 1963, Stan Brakhage produziria seu famoso Mothlight.
Na mesma época, aqui no Brasil, Roberto Miller produziria
seu curta O Átomo Brincalhão. Em 1970, o espanhol José
Antonio Sistiaga lançaria o primeiro (e por enquanto único)
longa-metragem de filme pintado direto na película, o silen-
cioso ...era erera baleibu izik subua aruaren…
A canadense Rose Bond, professora de animação no
Oregon, produziu vários curtas usando o desenho direto na
película, para contar histórias com personagens e narrati-
vas tradicionais, num trabalho meticuloso. Três deles con-
tam lendas irlandesas que lidam com a temática feminina,
a luta das mulheres para sobreviver em um mundo que de-
pende delas, mas ao mesmo tempo as trata com desdém
e até raiva. Usando canetas técnicas de engenharia muito
mais precisas do que os bicos de pena utilizados por Mc-
Laren, ela conta suas histórias de maneira mais figurativa e
narrativa, mas preservando o senso de impermanência que
é típico dessa técnica. Pierre Hébert, em seu Memories of
War (1982), se apropria da estética da animação raspada
diretamente na película, na criação de loops reaproveita-
dos em layers, misturados a imagens estáticas (desenha-
das com a mesma técnica). Não é uma animação direto na

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película “pura” mas uma apropriação de certos aspectos da
estética, ao mesmo tempo em que produz um filme mais
palatável ou mais normal do ponto de vista narrativo. Tra-
ta-se de um filme narrativo com personagens e cenários,
mas que usa a metamorfose como linguagem, por vezes
remetendo a Fantasmagorie (1908) de Émile Cohl.
Outro descendente direto de McLaren é Chel White,
que em Metal Dogs of India (1985) cria um filme mais con-
sonante com a obra do escocês ao utilizar uma trilha musi-
cal sincopada, de ritmo bem marcado e sincronizado com
as imagens técnicas e repetitivas do cinema. Outra lenda
do NFB, a animadora Caroline Leaf, lançou em 1991 outro
filme narrativo produzido direto na película, The Two Sis-
ters. Para se permitir um pouco mais de controle sobre o
desenho e as texturas das imagens figurativas, a anima-
dora utilizou filme de 70mm ganhando mais espaço para
trabalhar em cada frame, o que resultou numa visualidade
única.
Depois disso, outros animadores mantiveram acesa a
chama dessa técnica, como Bärbel Neubauer, Steven Wo-
loshen e Richard Reeves. Devido a toda essa efervescên-
cia na virada do século, quase 50 anos depois de McLa-
ren ter lançado sua cartilha, a cineasta americana Helen
Hill publicou outra, bem mais extensa, chamada Recipes
for Disaster. O livreto reúne quase 100 páginas xerocadas
com dicas e sugestões técnicas de diversos artistas que
trabalharam com a técnica na virada do século. Muitas pá-
ginas desta apostila são de difícil leitura, com trechos ma-
nuscritos e ilustrações que pouco explicam os complicados
processos descritos.

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Poucos anos depois, em 2006, o Festival internacio-
nal Anima Mundi trouxe o animador canadense Richard
Reeves ao Brasil para ministrar dois workshops de ani-
mação direto na película, o que ajudou muitos brasileiros a
desenvolverem melhor suas técnicas.

Técnicas e métodos de produção

O desenho ou a pintura diretamente no filme podem


começar em duas plataformas diferentes: o filme limpo,
transparente, de acetato puro, sem nenhuma camada de
película, ou então o filme coberto de película, já revela-
do, que permite ser raspado. Existe ainda um meio termo,
menos utilizado, que seria o filme com imagens já revela-
das que é então adulterado.
Sobre o filme limpo e transparente, pode-se pintar ou
desenhar livremente usando tintas próprias. Também é pos-
sível imprimir imagens usando carimbos ou estêncil (como
no processo do batik) ou então colar pedaços de imagens
bidimensionais em mídia transparente, como outros filmes,
negativos de fotografias, transparências, etc. Também se-
ria possível transferir imagens de outras mídias, como por
exemplo passar imagens xerocadas para o acetato, usan-
do um solvente para derreter o toner.
Já o filme com película inteira, preta, já revelada, pode
ser raspado, arranhado. O processo se parece com o de
alguns tipos de gravura, usando ferramentas semelhantes,
como ponta seca, goivas, buril. O filme também pode ser
perfurado, deixando passar a luz diretamente através do
furo, sem nem mesmo o acetato – a luz do projetor invadin-

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do diretamente a tela de projeção sem nenhum filtro, nem
mesmo o transparente. No caso do filme colorido, ao se
raspar a película, obtêm-se duas cores além do preto: o
amarelo e o verde. Isso acontece porque a primeira cama-
da que é removida é o magenta, deixando então o ciano e
o amarelo, que combinados, resultam no verde. Quando o
ciano é também removido, resta apenas o amarelo. Além
da raspagem, essas películas também podem ser removi-
das com água sanitária, o que pode resultar em manchas
interessantes que podem ou não serem controladas pelo
artista.
Uma terceira categoria poderia ser imaginada se lem-
brarmos do processo do fotógrafo e cineasta estadunidense,
Man Ray2 – Rayografia – no qual o filme, ainda virgem, é co-
berto por objetos ou materiais opacos e semi-transparentes
e então, exposto à luz. Depois o filme é revelado e as im-
pressões deixadas pela luz ficam gravadas na película.
Essas três mídias e todas essas técnicas podem ser
misturadas em combinações infinitas. Também seria pos-
sível criar efeitos diversos usando outros tipos de filme
coloridos que não fossem os positivos – geralmente usa-
dos para esse fim – talvez o filme negativo, revelado, re-
sultasse em outras cores? O problema é que esse tipo de
filme é mais difícil de ser encontrado pelos artistas.
Outro aspecto a ser levado em consideração são as
bitolas disponíveis. Se por um lado os formatos maiores

2 Man Ray(1890-1976): fundador do Dadaísmo em Nova York


(1917) ao lado de Marcel Duchamp e integra o Surrealismo em
Paris, na década de 1920. Um dos nomes referenciais das van-
guardas.

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como 35 mm e 70 mm permitem mais detalhes no momen-
to em que são criadas as imagens, por outro o equipamen-
to de bitolas como 16mm e 8mm é de mais fácil acesso.
Nos EUA eram baratos nos anos de 1950 e 1960 devi-
do ao army surplus que permitia que artistas com pouco
orçamento adquirissem câmeras, projetores e coladeiras
de alta qualidade que haviam sido utilizadas pelas forças
armadas nas décadas anteriores. Muitos filmes experimen-
tais e oníricos foram produzidos com equipamentos que,
vinte anos antes, filmavam os horrores da Segunda Guerra
Mundial.
A vantagem em controlar a edição e projeção do filme
é que isso permite maior liberdade de manipulação da
película, como por exemplo, fazendo furos e cortes ou de-
formando-a, ou até mesmo, empregando materiais que su-
jariam o projetor, algo que um técnico de cinema comercial
jamais permitiria ocorrer com seu valioso equipamento e
ferramenta de trabalho. As projeções de bitola menor tam-
bém permitem a criação de loops possibilitando que tre-
chos de filmes sejam exibidos continuamente, podendo ser
usados como decoração de cenários de teatro por exem-
plo, ou projetados sobre artistas durante algum tipo de per-
formance musical ou teatral.
Além do espaço reduzido para trabalhar a imagem, as
bitolas menores (8 e 16mm) também dificultam o trabalho
do som, pois geralmente utilizam um sistema de faixa mag-
nética – uma pequena fita colada no lado direito da pelícu-
la, similar às das antigas fitas cassete. As bitolas de quatro
perfurações (35 e 70mm) por outro lado, trabalhavam com
som óptico, o que permite que os artistas possam dese-

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nhar e pintar o som eles mesmos, da mesma maneira que
fazem com a imagem. Uma das possibilidades desse pro-
cesso é demonstrada por McLaren no documentário Pen
Point Percussion de 1951.

Compartilhando experiências

Como parte das atividades do Grupo de Estudos em


Cinema de Animação em Stop-Motion da Escola de Belas
Artes da UFMG, estão sendo realizadas uma série de ex-
periências para adaptar o cinema sem câmera ao contexto
atual, levando-se em consideração as tecnologias digitais
disponíveis para auxiliar os cineastas animadores. Uma
das principais forças motrizes por trás desta técnica está
na escassez de recursos e ausência de infra-estrutura tec-
nológica dos artistas. Nosso questionamento leva isso em
consideração: ainda existem formas econômicas e tecnica-
mente viáveis de produzir filmes diretamente na película, de
forma que ainda possam ser editados, vistos e exibidos?
A primeira alternativa seria utilizar somente o computa-
dor para produzir os frames. Tecnicamente isso seria “ci-
nema sem câmera” mas por outro lado, obrigaria o artista a
utilizar todo um aparato tecnológico que não condiz com o
conceito original da técnica. Levantou-se então a idéia de
que o cerne do que estamos chamando de “cinema sem
câmera” seria na verdade, um “cinema sem câmera criado
diretamente sobre a película”, ou seja, que além de não
utilizar câmeras na criação das imagens, também preci-
saria necessariamente ser produzido usando o suporte da
película cinematográfica, em qualquer bitola.

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Além dos materiais mais antigos utilizados pelos pio-
neiros, podemos explorar tecnologias recentes para criar
(ou destruir) imagens diretamente sobre o acetato fílmico,
como esmaltes de unha com cores que não estavam dis-
poníveis no mercado à época em que McLaren realizou
Begone Dull Care (1949). Outros vernizes, colas e ade-
sivos disponíveis atualmente, permitiriam criar inúmeras
camadas de materiais e fixar novos tipos de imagem sobre
esse suporte. Se as tiras de película forem fixadas em uma
folha de papel no formato adequado, máquinas de xerox e
impressoras a laser conseguem fixar o toner sobre o ace-
tato ou folhas de transparência, permitindo copiar ou impri-
mir imagens diretamente sobre o suporte, ou em folhas de
plástico transparente finas, o suficiente para serem coladas
na tira de acetato.
No que concerne às tintas e pigmentos, o mais impor-
tante em seu uso é garantir que o resultado final seja o
mais planificado possível, permitindo que o filme corra den-
tro do projetor sem nenhum percalço ou causando danos
ao e- quipamento. Além do tusche (nanquim) e das tintas
acrílicas usadas pelos autores antigos, podemos hoje ex-
perimentar novos materiais, como canetas permanentes
(de retroprojetor ou para escrever em CDs e DVDs), ou
ainda tintas sintéticas com as mais variadas finalidades.
Com a popularização do grafite como linguagem artística,
também surgiu no mercado de materiais artísticos uma ple-
tora da tintas em spray disponíveis em centenas de cores,
em contraste com as poucas opções encontradas há algu-
mas décadas atrás.
Todas essas técnicas e muitas outras ainda estão sendo

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estudadas porque passam por um gargalo tecnológico: a
exibição do filme pronto. Com moviolas e projetores cada
vez mais raros de se encontrar, fica difícil ao cineasta pre-
ver exatamente como o filme irá ficar, especialmente no
que concerne à faixa sonora. Em Pen Point Percussion,
McLaren aparece testando seu filme em um projetor portá-
til que era comum nos anos 1950 mas que hoje em dia é
uma raridade, peça de colecionador. Outra etapa crucial
para a produção de um filme desse tipo, no contexto atual,
seria a telecinagem quadro-a-quadro do trabalho pronto,
para permitir a edição e masterização do filme, a sincroni-
zação com a trilha sonora, e a projeção digital em salas de
cinemas e festivais. Esse serviço pode ser encontrado no
Brasil, mas principalmente para bitola Super 8, pois ainda
é muito voltado para pessoas que possuem filmes antigos
de família e querem convertê-los para um formato que pos-
sam assistir em seus equipamentos domésticos.
Uma alternativa viável seria usar um scanner flatbed co-
mum de documentos e fotografias, com um espelho para
pressionar as tiras de filme contra o vidro. Isso não ape-
nas garantiria que as imagens ficassem planas, mas tam-
bém permitiria que a luz do scanner, depois de atravessar
a película, retornasse para ser captada pelo scanner. O
resultado não é o mesmo do que seria o de um escanea-
mento profissional de cinema, mas permitiria novos tipos
de imagens. E, se por um lado, isso dificulta a manutenção
do enquadramento do filme, por outro também permite que
as imagens sejam escaneadas na vertical, possibilitando,
assim, uma espécie de “animação direto na película em 70
mm”. O scanner também possibilita que as imagens sejam

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captadas e armazenadas em 16 bits por canal ao invés de
apenas 8, o que pode ser uma vantagem se considerarmos
que o DCP aceita imagens de até 12 bits por canal.
É um processo lento e complicado, mas que permite a
produção de um filme sem a necessidade de custos adi-
cionais com serviços ou equipamentos caros e difíceis de
encontrar. Também vale lembrar que nesse processo so-
mente as imagens são capturadas, eliminando a possibili-
dade de utilização do som ótico3.

Considerações finais

Agora que já vivemos na era do DCP e das TVs 4K, é


justo que se questione: por que um animador teria o desejo
de trabalhar com animação direto sobre a película nos dias
de hoje?
Se o que deu origem a essa técnica foi justamente o sur-
gimento e a posterior popularização de uma determinada
mídia, agora que ela está desaparecendo e as condições
para trabalhar com ela são cada vez mais escassas, quais
seriam as motivações para se experimentar com pinturas e
raspagens em compridos e estreitos pedaços de acetato,
perfurados nas laterais, quando quase ninguém tem aces-
so a uma moviola ou um projetor, e os custos com copia-
gens são proibitivos?

3 Seria possível pensar, futuramente, em se desenvolver um


software que analisasse essas imagens escaneadas e con-
vertesse os frames automaticamente, tanto as imagens quanto
o som ótico - uma espécie de OCR de filmes 35mm.

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Antes de mais nada, seria preciso identificar se existe ou
não em alguns artistas animadores, um certo componen-
te saudosista, quase arqueológico, que visaria a preser-
vação de uma técnica que já foi utilizada no passado. Esse
preservacionismo pode ser uma motivação estética e é fá-
cil imaginar que museus e galerias de arte poderiam se
interessar na preservação desses equipamentos para a-
trair turistas e curiosos em geral, além de preservá-los para
futuras gerações.
Além desse, existe também o aspecto táctil desta técni-
ca: ao contrário do computador, que é apenas uma inter-
face que simula ações reais, a película é um bem palpável
e pode ser manuseada, enrolada, furada, esgarçada, pisa-
da. Ela é portátil, podendo ser enrolada em pedaços e le-
vada no bolso ou na mochila. O animador pode desenhar e
pintar sobre a película em qualquer lugar, até mesmo fora
do escritório, longe dos computadores, sem depender de
baterias ou tomadas. Além disso, o custo do filme em si
é irrisório se comparado aos artefatos digitais. A película
reaproveitada pode ser comprada por algumas dezenas de
reais, um custo muito inferior ao de uma simples caneta da
Wacom ou da Apple. Softwares sofisticados podem custar
centenas ou até milhares de reais, quando por outro lado, o
filme realizado direto na película pode ser feito com pincéis
e tintas acessíveis.
Além de tudo isso, a curva de aprendizado da animação
direto na película é muito pequena, em apenas poucas
horas de oficina, qualquer pessoa já consegue imprimir
suas cores e linhas sobre sua superfície, podendo então
visualizar imediatamente o resultado em um projetor ou

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moviola, ao passo que softwares de animação geralmente
requerem considerável tempo de estudo antes de apresen-
tarem um resultado condizente com o esforço (sem contar
o tempo de render, codecs e outras etapas adicionais).
O aspecto sensorial da película traz tanto o elemen-
to visual quanto o sonoro. Além de ver sua arte ampliada
centenas de vezes na enorme tela do cinema, o animador
também pode ouvir, em som estereofônico de alta potên-
cia, as pequenas marcas deixadas na lateral esquerda do
filme, propiciando uma sensação única com devires estéti-
cos que outras tecnologias não permitiriam – nem mesmo
o cinema de animação tradicional. É possível inclusive, se
pensar uma “música ótica”, composta diretamente sobre a
película e depois sintetizada através da célula foto-elétrica
do projetor, possivelmente o método mais simples e barato
de se produzir música eletrônica/eletroacústica, utilizando
apenas aparelhos analógicos no contexto atual.
Ainda no campo da estética visual, vale lembrar que a
animação diretamente sobre a película é uma arte de am-
pliação e amplificação: as minúsculas marcas feitas sobre o
suporte artístico são posteriormente ampliadas para esca-
las muito maiores. Mesmo que um filme seja visto apenas
em uma televisão, ele já seria dezenas de vezes maior do
que o formato em que foi criado. Na sala de cinema então,
o efeito é mais impressionante ainda: pequenas partículas
quase invisíveis de poeira e glitter tornam-se na tela gi-
gantescos meteoritos coloridos, dançando entre manchas
e linhas em um espaço virtual analógico sem igual. O mes-
mo vale para o som óptico, onde minúsculas linhas, pontos
e manchas se tornam notas musicais com ampla variação

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de modulação e freqüência, transformando minúsculos de-
senhos em uma sinfonia eletrônica analógica.
Existe ainda o aspecto social e político de estar se apo-
derando de uma tecnologia industrial para realizar obras
artesanais e únicas. Desde o princípio da era industrial,
artistas de todo o mundo trabalham na contramão da tec-
nologia, pervertendo o seu uso com a criatividade huma-
na para ressignificar máquinas e softwares, criando assim,
novas formas de arte que os engenheiros e operários que
produzem tais tecnologias jamais haviam imaginado. Fazer
isso com tecnologia digital é muito mais difícil do que com
um simples pedaço de película, pois as máquinas digitais
são menos abertas a modificações do que as mecânicas.
Mas no espírito do artista sempre vai haver uma nova ma-
neira de utilizar uma tecnologia para obter resultados ines-
perados.
Não seria possível criar novos aparatos que nos per-
mitissem utilizar scanners e câmeras fotográficas digitais
para capturar frames de 35mm em alta resolução? Que tal
usar outros suportes além da película, como tiras de pa-
pel, que podem depois ser scanneadas e transformadas
em seqüências de frames? Quando é que alguém irá criar
um software capaz de reproduzir digitalmente a experiên-
cia de se trabalhar em uma moviola, como faziam Len Lye
e Norman McLaren? O “Begone Dull Care” da era digital
poderia estar sendo produzido nesse exato momento. Só
nos resta aguardar e ver qual será o futuro dessa técnica
de animação.

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Referências bibliográficas

DOBSON, Terence. The Film Work of Norman McLaren. London: John


Libbey Publishing, 2006.

HILL, Helen. Recipes for Disaster: A Handcrafted Film Cookbooklet.


New Orleans: Edited by Helen Hill, 2001, 92p.

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9

“HOMEM-ESTÁTUA” - OFICINA
DE MODELO VIVO E ANIMAÇÃO

Marcos Magalhães

Este artigo é um relato da experiência didática que


originou o curta-metragem exibido em minha palestra no
Seminário Pesquisas em Animação: Cinema e Poéticas
Tecnológicas. Homem-Estátua1 (2011) foi realizado com a
colaboração do N.A.D.A. (Núcleo de Artes Digitais e Ani-
mação) e dos alunos da PUC-Rio, onde continuo utilizando
uma dinâmica desenvolvida dentro do paradigma da ani-
mação espontânea, tal como definido em minha disser-
tação de mestrado em Design, naquela mesma universi-
dade. Acredito que esta experiência desafia nossos limites
de percepção da continuidade necessária para criar artifi-
cialmente um movimento através da animação.
Trata-se da realização de uma cena de animação de
forma coletiva, por um grupo de pessoas, cada uma reali-
zando um fotograma diferente do mesmo movimento. Os
desenhos são feitos em uma aula de desenho de modelo
vivo e não necessariamente os participantes estarão cons-
cientes de que se trata de um exercício de animação, po-
dendo ser totalmente leigos em relação ao assunto.
A ideia para este exercício surgiu durante minha esta-
dia como artista visitante na USC – University of Southern

1 https://vimeo.com/92160409

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California – em 1998, quando acompanhei as aulas de
modelo vivo ministradas por um veterano animador, o pro-
fessor Cornelius Cole, para alunos do curso de animação.
O desenho de modelo vivo é uma prática essencial para
o animador clássico. Os estúdios Disney, por exemplo,
consideram o portfólio de desenhos de modelo vivo como
a peça mais importante para a avaliação de candidatos a
postos de animador na empresa. Através da observação
e reprodução da anatomia humana, o animador mostra a
sua capacidade de percepção de linhas de movimento e
equilíbrio, faculdade importantíssima para a análise e sín-
tese de movimentos naturais.
Experimentei isto na prática durante as aulas do profes-
sor Cole. As aulas semanais de modelo vivo tiveram efeito
surpreendente na animação do personagem que eu reali-
zava na época, com o software 3D Maya, para o meu filme
DoiS2. Sem me dar conta, os movimentos que eu criava
no computador, após cada sessão de desenho, ficavam
cada vez mais naturais, sem dúvida graças à observação,
mesmo que pouca relação eu possa encontrar entre os de-
senhos feitos em sala e as posições-chave de meu perso-
nagem deste filme.
Obviamente, a aula de modelo vivo direcionada para
o animador tem algumas características diferentes de um
curso de desenho convencional. O professor pedia aos mo-
delos que realizassem as poses mais dinâmicas possíveis.
Um exercício interessante consistia em tentar desenhar o
modelo, em esboços rápidos, enquanto ele se encontrava
em movimento; os resultados no papel não diziam grande
coisa, mas o aluno exercitava enormemente sua capacidade

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de analisar as fases do movimento, mesmo sem a ajuda de
um vídeo quadro a quadro.
Em uma daquelas aulas, a certa altura, observei a dis-
posição dos alunos desenhando em volta dos modelos, em
diferentes pontos de vista, e imaginei o que aconteceria se
filmássemos os diferentes desenhos em sequência. Seria
possível, a partir de uma variação progressiva dos ângu-
los de observação, obter um efeito semelhante a um movi-
mento de câmera? Como faria para contornar o problema
do registro dos desenhos, para que eles mantivessem um
mínimo de estabilidade para obter a ilusão de movimen-
to? Se esta ilusão se estabelecesse, conseguiríamos reco-
nhecer o modelo apesar da diferença de traços?
Não tive então tempo ou oportunidade para comprovar
esta possibilidade. Aquelas perguntas ficaram suspensas
em minha imaginação até abril de 2001, quando fui convi-
dado pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre para fazer
um workshop de animação na Usina do Gasômetro. Re-
solvi aproveitar para incluir na programação a atividade de
desenho de modelo vivo e experimentar o que havia ima-
ginado.
No salão onde aconteciam as aulas, pedi aos cerca de
20 participantes que fizessem com suas cadeiras um cír-
culo o mais perfeito possível, no centro do qual um modelo
iria se colocar para ser desenhado. A um determinado alu-
no, atribuiu-se o número 1, sendo o sentado ao seu lado o
número 2, o seguinte, o 3 e assim por diante, até se com-
pletar o círculo. Cada um deveria anotar este número no
canto de cada desenho que fizesse. Os próprios alunos
e o professor passaram então a se revezar no papel

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de modelo, em poses mais longas (20 minutos), diminu-
indo-se o tempo de pose progressivamente até 1 minuto,
de maneira a ser possível obter tanto um traço mais solto
e rápido quanto posições mais dinâmicas (para o conforto
do modelo).
A próxima etapa seria filmar os desenhos, seguindo a
sequência numerada. O problema agora era regularizar
as diferentes proporções obtidas pela visão particular de
cada um. Graças ao equipamento profissional de gravação
quadro a quadro, um computador portátil utilizado nas ofi-
cinas do Anima Mundi, chamado video lunch-box, era pos-
sível comparar com facilidade o fotograma recém captura-
do com o próximo a ser filmado. Ajustando o zoom da lente
e a posição de cada desenho sob a câmera, foi possível
obter uma razoável coerência de proporção e enquadra-
mento entre os desenhos. Desta forma, ao reproduzir a se-
quência animada destas artes feitas a partir de diferentes
posições em volta do círculo, obtinha-se a impressão de
que o modelo girava em torno de si mesmo. Mesmo com
toda a diferença de estilos, traços e habilidades, era pos-
sível reconhecer o modelo e aceitar o movimento como
contínuo e coerente.
Esta impressão de movimento, além de curiosa e ines-
perada (pois consegui manter em segredo as minhas in-
tenções até obter o resultado final), teve um impacto muito
positivo. Os bloqueios e autocríticas, naturais neste tipo de
aula, foram praticamente eliminados quando se constatou
que todos os desenhos serviam à sua função dentro da
animação. Por ser o resultado de uma observação pessoal
e atenta, os alunos conseguiam reconhecer o seu trabalho,

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18 desenhos de modelo vivo feitos durante oficina de animação em
Porto Alegre. Ao serem filmados em sequência, sugerem um movimen-
to circular de câmera, apesar das diferenças de estilo e traço.

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mesmo quando ele era exibido em apenas uma fração de
segundo durante a animação – um importante treino para a
visão seletiva e analítica que o animador deve desenvolver.
E, é claro, uma vez constatado o sucesso do experimento,
todos retornaram ao trabalho com ânimo renovado.
Desde então, incorporei o exercício às oficinas de in-
trodução à animação que tive a oportunidade de realizar.
Na cadeira eletiva de Animação 2D que comecei a lecio-
nar em 2002 no curso de Desenho Industrial da PUC-Rio,
dedico habitualmente uma aula a este exercício, com re-
sultados muito positivos. Em algumas ocasiões, testei os
limites da ilusão. Por exemplo: depois de capturada a pose
do modelo, pedia aos alunos que finalizassem o desenho
com o estilo que bem entendessem, podendo até modificar
características como roupa, cabelo, etc, mas sem alterar a
posição.
A conclusão é que, uma vez obtida a ilusão da ani-
mação, a coerência da forma se tornou secundária em re-
lação ao movimento, não mais interferindo na percepção
da figura a girar. O resultado sempre nos instiga por trazer
a possibilidade de integrar num mesmo continuum visões
tão pessoais, filtradas pela subjetividade de cada especta-
dor-desenhista, numa cena animada que constrói uma co-
erência principalmente a partir do movimento.
O curta-metragem Homem Estátua foi desenvolvido a
partir da ideia de registrar esta técnica de animação, in-
corporando-a numa narrativa. O curta, filmado majoritaria-
mente em live-action, mostra as desventuras de um artista
de rua (interpretado pelo ator Alberto Magalhães) que pre-
cisa ficar imóvel (como um modelo) para ganhar trocados

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do público urbano. Cerca de 80 desenhistas foram con-
vocados para participar de oficinas que criaram diversas
variações do efeito, integradas ao roteiro do filme, retratan-
do as múltiplas percepções do personagem que seriam
registradas pelos passantes de uma rua movimentada.
Durante a preparação, e na própria realização do filme,
pudemos testar extensivamente algumas variações da
dinâmica dos workshops de produção das cenas animadas
com esta técnica de modelo vivo. Como o filme se benefi-
ciava de uma atmosfera de pesquisa e investigação estéti-
ca, propiciada pela participação ativa do Núcleo de Artes
Digitais e Animação (N.A.D.A.) coordenado pela professo-
ra Maria Cláudia Bolshaw, que também atuava como pro-
dutora executiva do curta, tivemos a adesão de diversos
profissionais de desenho e animação, além de alunos do
curso de Design. Os atores das cenas de live-action posa-
vam devidamente caracterizados, fixando poses que se in-
tegrariam à continuidade das cenas já filmadas na rua. Ou-
tras sessões de desenhos buscavam realizar sequências
de poses sucessivas da animação de movimentos simples,
nas quais, além do movimento de câmera sugerido pela
edição final, aconteceriam também movimentações do cor-
po do personagem (como no salto final que faz o perso-
nagem flutuar).
O fato de contarmos com profissionais e alunos expe-
rientes com o desenho facilitou a obtenção de um bom resul-
tado final. Porém, a experiência de outras oficinas e cursos
posteriores ao filme, onde propus a mesma atividade, com-
provam que o efeito de animação sempre acontece, mes-
mo que as qualidades de cada desenho individual sejam

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bem diversas. Desenhos feitos por crianças ou por pes-
soas com quase nenhuma prática de desenho de obser-
vação conseguem ser aproveitados e até em alguns casos
gerar efeitos surpreendentes e originais.
A minha intenção com o filme foi homenagear os ar-
tistas de rua, que se baseiam em habilidades instintivas
e espontâneas como a capacidade de controle da imobili-
dade e a criação de personagens atraentes para o público.
Em Homem-Estátua, os olhares dos passantes produzem
visões múltiplas, vindas de observadores que geram mo-
vimento e transformação. Acredito que esta alegoria pode
ser interpretada poeticamente a partir do conceito de um
olhar criador e criativo, que pode estar sempre presente
em nosso cotidiano, se usarmos nossa percepção artística
como aliada. Como acontece com o homem estátua pro-
tagonista que se esmerou para, ao final de um dia de tra-
balho e arte, recuperar do penhor o seu monociclo, símbolo
de sua liberdade e autonomia.

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A SINGULARIDADE GRÁFICA NO DESENHO


DE ANIMAÇÃO DE MARCELO MARÃO

Simon Pedro Brethé

A notoriedade de um grande artista muitas vezes ocorre


em função de sua capacidade criativa, inovadora e, em al-
guns casos, de subversão, nas diversas formas de lingua-
gem. Não é mera coincidência que alguns artistas anima-
dores se destacam pela genialidade com que conseguem
cativar os apreciadores da arte da animação ao desen-
volverem formas gráficas únicas em seus desenhos. Se
por um lado, essas singularidades podem ser percebidas
pelos espectadores como qualidades pessoais do autor,
por outro, resultam de constantes processos de pesquisa
em que os artistas buscam compreender suas opções es-
téticas.
O animador brasileiro Marcelo Marão é um exemplo
de artista que tem um desenho fundamentado nas con-
venções do estilo cartoon. Ele é um entusiasta da técnica
tradicional de desenho a lápis grafite sobre papel. Marão
é autodidata e possui uma trajetória profissional de artis-
ta independente. Condições essas que contribuíram para
que desenvolvesse um estilo pessoal no desenho, marca-
do pelo acabamento rústico, traço solto e rabiscado, figu-
ras inacabadas e minimalismo diegético. Tudo enriquecido
como uma boa carga de crítica humorística.
No intuito de identificar aspectos singulares em seu de-

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senhos, partimos da hipótese de que certas características
gráficas desenvolvidas no seu desenho para animação têm
relação com a maneira pelo qual ele comunica algo de si,
ou seja, suas impressões e questionamentos do mundo
que o rodeia.
Normalmente, a trajetória de um animador se dá pelo
aperfeiçoamento artístico, ele amadurece dentro das pos-
sibilidades e convencionalismos das artes visuais que se
apresentam, desenvolve suas habilidades em técnicas es-
pecíficas, o que lhe permite adquirir bases sólidas para se
expressar através da imagem animada. Mas alguns tam-
bém se engajam em questões pessoais, buscando des-
vendar e explorar as próprias potencialidades, através da
pesquisa pautada na livre experimentação e rompimento
dos limites das convenções. Assim, o artista fortalece sua
individualidade e sua singularidade gráfica, o que permite
evidenciar sua matriz autoral.
Tomamos de empréstimo, o termo “matriz” utilizado
no livro O autor no cinema (1994), do pesquisador Jean-
Claude Bernardet que busca estabelecer quem seria o
autêntico autor de uma obra cinematográfica. Bernardet
baseou seu estudo em textos publicados na revista Cahiers
du Cinéma de críticos e jovens cineastas franceses da
década de 1950. Na Política dos Autores, nome dado ao
movimento desses críticos, iniciaram-se discussões sobre
a ideia de autor cinematográfico ou a quem pertenceria a
autoria de uma obra. Haviam aqueles que defendiam que
o verdadeiro autor era a pessoa responsável diretamente
pela produção da imagem ou do que era colocado na tela,
a mise en scène. “Se o realizador não inventar a imagem,

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a palavra fica palavra e o filme não nasce” pontuou Marcel
L’Herbier. (HERBIER, 1943 apud BERNADET, 1994). Nos
textos publicados, surge então o termo matriz de autor, que
se baseia na ideia de marca ou qualidades relacionadas ao
autor e que perpassam todos os seus trabalhos.

A construção da matriz passa obrigatoriamente pela


análise do conjunto de filmes de um autor, é um tra-
balho sobre a redundância: peça essencial do mé-
todo crítico. São as repetições e as similitudes iden-
tificadas nas diversidades das situações dramáticas
propostas pelos vários enredos que permitirão de-
linear a matriz. O autor é, nessa concepção, um ci-
neasta que se repete, e não raro houve críticos que
consideraram cineastas autores pelo simples fato de
se repetirem. É necessário que o autor se repita, ou é
necessário que o crítico interprete sua obra como um
sistema de repetições ou trabalhe sobre repetições
da obra, identificando essas repetições com a obra.
(BERNADET, 1994, p.31)

No intuito de evidenciar a matriz autoral de Marce-


lo Marão por meio de aspectos gráficos do seu trabalho,
buscamos identificar características gráficas singulares e
sua recorrência como parâmetro de análise. Para isso, pro-
cedemos na investigação do modo como o artista desenha
e articula os elementos gráficos fundamentais da lingua-
gem visual (ponto, linha, forma, superfície e cor). É com
esses elementos que o animador inicialmente estrutura o
desenho, quando ocorrem as primeiras intenções gestuais
que geram significados como força, leveza, peso, delica-
deza, direção, continuidade, regularidade, irregularidade,
dinamismo, tamanho, etc.

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Além disso, a partir dos estudos da artista e pesquisa-
dora polonesa Fayga Ostrower (1920-2001), optamos em
estabelecer dois fatores básicos influenciadores da carac-
terização gráfica do desenho do artista animador – valores
culturais e referenciais artísticos de interesse – sustenta-
dos por um terceiro fator que é a compreensão da técni-
ca. Este último é pautado nas habilidades aprendidas na
manipulação da materialidade, na instrumentação e ou
modelos teóricos. Os dois primeiros fatores foram basea-
dos na leitura de duas bibliografias da autora. A primeira, o
livro Acasos e criação Artística (1995), estudo centrado nos
acasos (acasos – vivências – significados) que ocorrem no
cotidiano de qualquer indivíduo e como eles participam
ativamente nos processos de criação. Todo indivíduo está
sujeito aos acasos da vida, por meio das sensibilidades é
que se desenvolvem certas predisposições que fazem cada
pessoa perceber certas situações em detrimento de outras.
Assim, nos diversos acasos da vida, o artista percebe as
situações inspiradoras, “acasos significativos”. Por meio da
intuição, ele formula hipóteses para então elaborar suas
relações de significado (OSTROWER, 1995).
A segunda bibliografia é Criatividade e processos de
criação (2004), que aborda a criação como uma necessi-
dade inerente ao homem e suas formas de comunicação
em seu contexto cultural. Nesta perspectiva, o artista sem-
pre partirá de noções pré-configuradas, o que a autora
chama de imagens referenciadas, para então, nas suas
associações particulares, elaborar suas próprias formas e
significações.

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As disposições, imagens da percepção, com-
põem-se, a rigor em grande parte, de valores cul-
turais. Constituem-se em ordenações ‘característi-
cas’ e passam a ser normativas, qualificando a
maneira por que novas situações serão vivenciadas
pelo indivíduo. Orientam o seu pensar e imaginar.
Formam imagens referenciais que funcionam ao
mesmo tempo como uma espécie de prisma para
enfocar os fenômenos e como medida de avaliação
(OSTROWER, 2004).

Por fim, a elaboração e concretização da expressão grá-


fica depende da materialidade na qual o artista elabora suas
propostas em torno dos recursos técnicos e das metodolo-
gias disponíveis. Em diferentes estágios de maturidade, o
artista elabora suas propostas artísticas por meio das con-
venções técnicas que englobam as artes visuais. No caso
de Marcelo Marão, tendo ele desenvolvido habilidades na
técnica do desenho a lápis grafite sobre papel e o método de
estruturação no estilo cartoon, desenvolveu seu estilo gráfico
baseado nestes recursos, ou seja, o primeiro de base material
instrumental e o segundo, no modelo artístico estrutural.
O domínio técnico foi abordado pela pesquisadora e ar-
tista animadora portuguesa Marina Estela Graça em seu
livro Entre o olhar e o gesto: elementos para uma poética
da imagem animada (2006), ao caracterizar a animação
autoral e ou experimental, baseado na perspectiva de ex-
ploração dos suportes técnicos. O animador experimental
busca desvendar as funcionalidades pré-estabelecidas da
máquina, no intuito de se estabelecer no controle dos pro-
cessos dominados por ela, “é o gesto que tenta recuperar
um espaço-tempo diferenciado e vivido no seio das próprias

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criações tecnológicas”, portanto ele busca conhecer o dis-
positivo no sentido de entender as minúcias de suas engre-
nagens para assim, “fazer alguma coisa com ela”, pontua
a autora. (GRAÇA, 2006, p.15). Na perspectiva de Estela
Graça, o artista animador autoral não nega o convencio-
nalismo do cinema (técnica e de linguagem), ele pesquisa
visando o domínio de suas bases de funcionamento, para
então proceder com suas atividades irregulares.

A singularidade gráfica no desenho de Marcelo Marão

Natural de Nilópolis, na Baixada Fluminense, cidade do


estado do Rio de Janeiro, Marão é um artista que produz
animação intercalando produções independentes à tra-
balhos encomendados e coletivos. De acordo com o próprio
artista, quando sua família se mudou para esta cidade,
seus pais a achavam perigosa. Desta forma, ele ficava boa
parte do tempo em seu quarto brincando, lendo quadrinhos
e desenhando. Passou também muitos anos trabalhando
em estúdios de São Paulo, como assistente de animação.
Nas horas vagas e durante a noite, produzia seus curtas de
animação autorais. (MARÃO, 2013). É formado em Belas
Artes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
onde teve contato com poucas disciplinas específicas de
animação. Produziu filmes autorais com ampla exibição em
festivais de animação, dentre eles, o festival brasileiro Ani-
ma Mundi no qual é participante assíduo desde a primeira
edição. Construiu sua carreira participando e trabalhando
nos workshops oferecidos pelo festival trocando ideias nas
rodas de conversa do evento.

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A minha experiência pessoal é muito parecida com
a de muitos da minha geração e das gerações pos-
teriores. Eu assisti ao festival no seu primeiro ano,
participei das oficinas no segundo, trabalhei como
monitor destas mesmas oficinas a partir da terceira
edição e lancei meu primeiro curta, realizado como
projeto de graduação, no quarto Anima Mundi, fa-
zendo parte dos cinco títulos do tímido chamado re-
nascimento. (MARÃO, 2013, p.27)

Optamos pela análise de aspectos gráficos de sete cur-


tas independentes que englobam dezenove anos de sua
carreira: Cebolas são Azuis (1996); Chifre de Camaleão
(2000); O Arroz Nunca Acaba (2005); Seu Dente Meu Bico
(2005); O Anão que Virou Gigante (2008); Eu Queria ser
um Monstro (2009) e Até a China (2015).
Marão (2013) cita o curta intitulado El Macho (Brasil,
1993), assistido em uma sessão do primeiro Anima Mundi
em 1993, dirigido e animado pelo animador brasileiro Ennio
Torresan Jr., como um referencial que se tornou relevante
no direcionamento gráfico de seus filmes, “virtuoso lápis
no papel e pintado com lápis de cor”, aponta o artista (ver
figura 1).
Marcelo Marão pontua que um dos motivos pelo qual
busca uma arte finalização mais simples, é a questão fi-
nanceira, pois ele produz seus filmes com recursos pró-
prios. Contudo, o curta de Ennio Torresan foi também uma
influência artística por apresentar uma estética artesanal e
um desenho cheio de personalidade que expõe o gesto do
artista (MARÃO, 2013).
Podemos dividir o trabalho de Marão em duas fases,

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Figura 1: Nas três imagens superiores (A) curta El Macho (Brasil, 1993)
de Ennio Torresan. O acabamento como o traço rabiscado, lápis no
papel e o colorido com lápis de cor foram características inspiradoras
para Marcelo Marão e o influenciaram. Nas três imagens inferiores,
curtas de Marão: O Arroz Nunca Acaba (Brasil, 2005), (B), Chifre de
Camaleão (Brasil, 2000), (C) e Até a China (Brasil, 2015), (D).

considerando o tratamento final dos desenhos: fase analógi-


ca e digital. Na primeira, os desenhos são fotografados di-
retamente na película sem nenhum tratamento. Na digital,
os desenhos são digitalizados e é feito algum tratamento
de brilho e contraste. Na figura 2 é possível identificar a di-
ferenciação na qualidade da imagem, na indicação (A), os
três primeiros desenhos são da fase analógica e o quarto,
da fase digital.
Apesar de haver diferença na qualidade gráfica entre
as duas fases, com relação à maneira com que o artista
trata os elementos gráficos fundamentais (linha, forma, cor
e superfície), identificamos certas recorrências em prati-
camente todos os curtas abordados: na caracterização da
linha, ele se mantêm fiel ao estilo de desenho com linhas

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Figura 2: A – tratamento da linha como continua, rústica e rabiscada,
ora as linhas são mais limpas ora mais rabiscadas. B – As formas ro-
bustas em elementos como pés e mãos dos personagens. C – A simpli-
ficação na cenografia na primeira e segunda imagens e na concepção
volumétrica dos personagens, na 3ª e 4ª imagens. D – Uso recorrente
da monocromia e cores chapadas no preenchimento de superfícies.
Fontes: O Arroz Nunca Acaba (Brasil, 2005); Chifre de Camaleão (Bra-
sil, 2000); O Anão que Virou Gigante (Brasil, 2008); Eu Queria ser um
Monstro (Brasil,2009) e Até a China (Brasil, 2015).

de contorno contínuas, um pouco soltas e rabiscadas. Na


cor, o cinza escuro, devido à instrumentação do grafite, ou
preta, em virtude do tratamento digital do desenho.
Em alguns casos, para uma mesma sequência, o ar-

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tista intercala desenhos de linhas mais limpas com traços
de linhas soltas e rabiscadas. No segundo e terceiro de-
senhos da linha A, na figura 2, ambas as ilustrações do
bebê engatinhando são parte de uma mesma sequência
e demonstram essa disparidade no acabamento do traço.
Outra característica gráfica observada se refere ao tama-
nho desproporcional de certos elementos que compõem a
anatomia dos personagens. Algumas formas são robustas e
até desproporcionais ao tamanho do corpo, principalmente
em elementos como mãos, pés e cabeça (ver indicações
em vermelho na linha B da figura 2). As mãos são grandes
e volumosas no personagem do pato. Na vovó sentada na
cadeira, as mãos são grandes, o queixo e o cabelo, exa-
geradamente robustos, o mesmo ocorrendo com as mãos,
braços e pernas da personagem do menino, características
que causam certo estranhamento pois parecem pertencer
a um adulto.
No quarto exemplo, o personagem tem corpo fino con-
trastando com o nariz, a orelha e a mão grandes. Obser-
vou-se que a impressão das formas robustas ocorre em
razão do animador criar o contraste na espessura e tama-
nho das formas anatômicas que se interligam. Por exemplo,
o braço do pato tem uma das extremidades finas e gradati-
vamente vai ficando mais espessa na extremidade oposta.
Assim, o tamanho da mão se dá em função da espessura
do punho do referido braço. Na vovó e no último persona-
gem da linha B, os braços são extremamente finos contras-
tando com as mãos grandes, sendo que a cabeça da vovó
é sustentada por um pescoço extremamente fino.
A simplificação também foi uma característica gráfica

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identificada em seus desenhos. O Arroz Nunca Acaba foi
produzido com a intenção de mostrar um trabalho em pro-
gresso a partir de planos produzidos em diferentes está-
gios de finalização. Na primeira imagem da linha C, figura
2, Marão resume o cenário apenas com elementos que
interagem com o personagem. Em Chifre de Camaleão
(segundo exemplo), o cenário encobre parte do corpo da
mulher, mas é composto apenas por uma linha, sugerin-
do a existência de uma parede. No geral, os personagens
não têm roupa e quando há, se resumem a formas sem di-
visões, com linhas que compõem os contornos da silhueta
(ver primeira, terceira e quarta imagens da linha C). No ter-
ceiro exemplo, o corpo do personagem é quase uma forma
geométrica triangular sendo que as pernas e pés compõem
uma única forma. No quarto, a forma delgada e simples
define o corpo, sem nenhum detalhe que indique braços ou
qualquer vestimenta.
O artista recorre também à distorção das formas dos
elementos da cenografia para enfatizar a perspectiva,
como ocorre nos casos da banca de jornal, no formato do
armário, nas gavetas e prédios na primeira, terceira e quar-
ta imagens da linha D.
Via de regra, os aspectos gráficos recorrentes basea-
dos no primeiro nível de observação, são caracterizados
pelas linhas de contorno contínuas, intercalando desenhos
com traço mais limpo e alguns mais rabiscados, o que evi-
dencia o gesto de desenhar do artista. Para a forma, veri-
ficou-se simplificações com supressão do máximo de ele-
mentos possíveis na cenografia e distorções, enfatizando
a perspectiva. Uso de formas robustas em partes anatômi-

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cas de personagens que contrastam com formas delgadas.
Na superfície de preenchimento, Marão adotou com mais
frequência, a simplificação de cores e a monocromia.

Fatores agregadores

Com relação à compreensão técnica, verificamos que o


animador tem domínio do desenho manual (lápis sobre pa-
pel), conhecimento sobre anatomia humana, aplicação do
desenho volumétrico, representação espacial da perspec-
tiva e domínio conceitual para reproduzir o estilo cartoon.
O fator cultural é menos evidente visto que o repertório
do artista se dissolve na caracterização gráfica. Mas é pos-
sível verificar algumas impregnações por meio de algumas
significações encontradas. Neste caso, é preciso conhecer
um pouco do contexto de sua vida para identificar elemen-
tos do repertório cultural. Características provenientes de
seu contexto local, cidade de Nilópolis, RJ, foram identifi-
cadas nos estereótipos de personagens como a mulata, o
sambista, o turista, o surfista além do vendedor na banca
de jornal, vestindo camiseta. Na cenografia, verificou-se
impregnações, por exemplo, nos desenhos em forma de
onda do calçadão de Copacabana e a tradicional praia ca-
rioca cheia de quiosques (figura 3).
Como pontuou Ostrower (2004), os valores culturais es-
tão presentes nas formas expressas pelo artista pois mes-
mo que ele busque criar algo diferente, obrigatoriamente
julga e se articula inicialmente, a partir de seus valores e ou
elementos culturais. Até mesmo em propostas nas quais
o desenhista contesta suas tradições culturais. Os valores

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culturais funcionam como orientadores iniciais de signifi-
cação, deste modo, as referências culturais se diluem na

Figura 3: Em Chifre de Camaleão, tem-se a típica arquitetura de casas


do interior do Brasil (A). Em O Anão que Virou Gigante (B) os desenhos
em onda do calçadão que lembram o calçadão da praia de Copaca-
bana. Os estereótipos de alguns personagens, por exemplo, o vende-
dor de jornal de camiseta, na banca de jornal (C), a mulata, o sambista
(D), o surfista (E) e a senhora (F).
Fontes: Chifre de Camaleão, O Anão que Virou Gigante e Até a China
(Brasil, 2015).

complexa tessitura de repertórios imagéticos do artista. Em


termos gráficos, em alguns casos, é possível identificar,
claramente, as impregnações culturais nas estruturas das
imagens, em outros, elas estarão diluídas.
A figura 3, apresenta referências diretas, por exemplo,
na imagem A, o modelo da casa apresenta configurações
arquitetônicas idênticas à muitas casas antigas de cidades
do interior do Brasil, com a pequena varanda na frente. Na
imagem B, o desenho de ondas do calçadão é claramente

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inspirado nos típicos motivos visuais feitos com pedras por-
tuguesas dos calçadões da cidade do Rio de Janeiro. Já
nas imagens D e F, o rapaz carregando a moça, a senho-
ra e a moça que estão em pé na sala de espera, podem
ser considerados como estereótipos de personagens tipi-
camente brasileiros. Além disso, há o referencial direto da
figura do turista estrangeiro, com aparência de surfista, de
pele clara, cabelos longos, loiro e de alta estatura, exempli-
ficado na imagem E.

Considerações finais

Ao analisar os curtas de Marcelo Marão do ponto de vis-


ta gráfico, constatamos que ele tem um trabalho homogê-
neo em virtude da recorrência de características gráficas
singulares em seus desenhos. A transformação mais sig-
nificativa ocorre em função da mudança do suporte de
captura e tratamento final, ou seja, do modo de captura
analógico (mantendo as qualidades do grafite sobre papel)
para o digital, no qual o autor passa a fazer o tratamento
com aplicação de contraste e brilho, deixando as linhas na
cor preta, sobre fundo branco. Além disso, observamos a
aplicação da pintura digital com uso de cores chapadas.
Marão desenvolveu um estilo gráfico influenciado pelo
trabalho do artista animador Ennio Torresan, adotou a es-
tética de arte finalização desse artista, desenho feito a mão
sobre papel branco sem muito acabamento. No curta O Ar-
roz Nunca Acaba, marcado pela livre experimentação, o
animador passou a questionar a necessidade da tradicional
finalização como, por exemplo, traço bem-acabado, trata-

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mento de cor, cenários bem elaborados, movimento fluido,
etc. A negação destas convenções se tornou uma marca
do artista. A partir desse filme, identificamos a reiteração de
características gráficas, com um trabalho mais artesanal, o
que evidencia seu o gesto: o traço feito à mão; linhas de
contorno contínuas e rabiscadas, inconstância na limpeza
nas linhas desenhadas. O artista é também econômico, ao
suprimir elementos do cenário, simplificando anatomica-
mente os personagens, criando formas robustas e defor-
mações para enfatizar a perspectiva e, por fim, na ausên-
cia e simplificação de cores e uso da monocromia.
Observamos também, impregnações culturais por meio
das quais Marão revela tendências a criar personagens
a partir dos mais variados estereótipos do brasileiro. Na
arquitetura e nos cenários, observamos elementos seme-
lhantes ou que lembram lugares urbanos do Brasil. A arti-
culação de todos esses aspectos conforma a singularidade
gráfica do trabalho de Marcelo Marão, permitindo ao es-
pectador perceber a sua matriz autoral a partir do parâme-
tro visual.
É importante salientar que as características relaciona-
das representam um estágio de sua carreira. Não se pode
afirmar que se manterão fixas ou que não ocorrerão mu-
danças significativas em futuros trabalhos. Consideramos
que algumas das características serão perpetuadas, outras
poderão ceder lugar a novos elementos. Trata-se de um
autor que também atua como pesquisador. Em sua livre
práxis busca desvendar novas possibilidades, superar e
ou subverter convenções, mantendo a coerência com sua
trajetória. No contato com novos repertórios, transforma

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sua expressão artística, relacionando e ordenando novos
elementos com os que já possui. Julga-os através do seu
referencial cultural, enriquecendo com suas habilidades
técnicas, o que lhe permite construir seu próprio caminho
como artista.

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Referências bibliográficas

BERNARDET, Jean-Claude. O autor no Cinema. São Paulo: Editora


Brasiliense, 1994.

GRAÇA, M. E. Entre o olhar e o gesto: elementos para uma poética da


imagem animada. São Paulo: SENAC, 2006.

OSTROWER, F. Acasos e Criação Artística. 8ª ed. Rio de Janeiro: Edi-


tora Elsevier, 1995.

______. A Criatividade e Processos de Criação. 18ª ed. Petrópolis:


Editora Vozes,2004.

MARÃO, M. O Natal dos Animadores: Um depoimento pessoal sobre


o papel do Anima Mundi. Filme Cultura. Rio de Janeiro: CTAV - Centro
Técnico Audiovisual: n. 60, p.27-31, 2013.

______. Marcelo Marão fala sobre carreira de animador. Canal Curta,


Rio de Janeiro 6 dez. 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=l8g3GoeNs1Y>. Acesso em: 05.01. 2019.

MARÃO FILMES. Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.marao-


filmes.com.br. Acesso em: 05.01.2019.

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TORNANDO FÍSICA A ANIMAÇÃO FACIAL


DIGITAL PARA A ANIMAÇÃO DE BONECOS:
O CASO LAIKA

Leonardo Rocha Dutra

O processo do cinema de animação resulta em imagem,


portanto o caminho mais próximo de obtenção desse fim é
aparentemente, o das técnicas que são em si visuais, como
o desenho animado, a animação de recortes planares físi-
cos ou digitais e o correspondente visual das técnicas es-
paciais pela perspectiva automatizada - esse denominado
3D digital.
Da forma como a automação perspectivista por cál-
culo em sistemas digitais ganhou no senso comum a re-
dução metonímica para “3D” - embora seja bidimensio- nal
- é quando mencionamos a animação quadro a quadro de
bonecos tridimensionais e eretos - a única técnica tridi-
mensional de animação - que adota respectivamente as
acepções 3D digital e 3D físico.
No enfrentamento das demandas por objetos físicos na
contemporaneidade, é que se tem elencado a dita fabri-
cação digital - um termo aparentemente paradoxal, mas
que diz respeito a objetos que são concebidos em 3D di-
gital e convertidos de alguma forma, em 3D físico. Os mé-
todos dessa conversão se dividem em dois caminhos: pela
subtração de material, revelando os volumes desejados,
ou pela adição em camadas topográficas – ambos apre-

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sentando diversos processos e materiais. Mas a usinagem
– que é a técnica mecânica da retirada de material – é com-
plexa nas relações entre materiais, ferramentas, geome-
trias e acabamento de superfícies, exigindo conhecimento
específico e muita experimentação.
Os métodos aditivos vêm cumprindo a promessa de
não exigir conhecimentos de escultura por máquina, mas
apenas estratégias de escoramento quando são erigidos
volumes físicos a partir de volumes virtuais, hoje pratica-
mente automatizadas. Mas como ambas abordagens re-
sultam em superfícies com os degraus das camadas de
desbaste na usinagem ou de adição na impressão, elas
se igualam na busca de técnicas de acabamento, em geral
dependentes de intervenção manual.
Na impressão tridimensional, essa condição discretiza-
da da superfície é inconveniente em proposições estéticas
de mimese de organismos vivos, exigindo a sua atenuação
por meio de técnicas diversas reunidas sob a denominação
pós-processamento.
As variações espaço-temporais de um rosto animado
em perspectiva digital podem ser convertidas em arquivos
de fabricação digital, para serem usadas na secular técnica
da animação por substituição. O que uma face exige para
ser percebida como objeto único em transformação – mes-
mo no âmbito estilizado da animação – é o que determina
as conveniências e restrições da impressão 3D.
Independente do processo adotado, uma primeira
questão a ser definida é se mesmo estilizadas, as super-
fícies serão monocromáticas ou com variações tonais.
Coraline e o Mundo Secreto (Coraline), de 2016, dirigi-

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do por Henry Selick é o primeiro longa-metragem de ani-
mação de bonecos da produtora estadunidense Laika, de
Hillsboro, grande Portland, no estado do Oregon - EUA. E
também o primeiro da história à utilizar extensivamente a
impressão 3D na animação facial.
Os rostos dos personagens fabricados com essa tec-
nologia têm pigmentação de pele monocromática e opaca.
A protagonista contou com 207.000 expressões por com-
binação de 6.333 peças impressas, de um total de 20.000
peças para todo o filme, fabricadas em uma impressora
Eden 260 Polyjet (GIARDINA, 2016 e HEATER, 2018).
Mas algumas diferenciações de cor precisaram ser pinta-
das à mão, como as sobrancelhas, lábios - e no caso da
personagem-título, três sardas em cada bochecha. Para
que a sua posição acompanhasse adequadamente a de-
formação do rosto, foi preciso marcar a posição das sardas
com depressões, assim como as sobrancelhas eram re-
ferenciadas por serem impressas em relevo. Sam Davies
(2018), relata que as depressões eram mínimas o sufici-
ente para não desaparecerem após a lixagem, aplicação
de primer e pintura do tom de pele - permitindo a orien-
tação dos pintores, que adicionavam uma pequena gota
de tinta na depressão de 0,762 mm. Inversamente, para as
sobrancelhas e o batom nos lábios do personagem da mãe
da protagonista, era necessário não lixar demais o relevo
da impressão.
Observa-se então que a opção pelo monocromatismo
precisa encontrar alguma escolha de estilo que evite o vas-
to e delicado trabalho manual de pigmentação de pequenas
áreas, ainda que sem variação tonal. Ou compreender-se

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que mesmo que a impressão 3D represente automação,
quanto maior o número de impressões, maior será o em-
penho de trabalho manual especializado no acabamento.
O conceito que já se faz presente no desafio do pós-pro-
cessamento é o da consistência de registro. Mesmo com a
estratégia de marcação de relevo, a borda da pintura pode
variar erroneamente de posição no encadeamento tempo-
ral das substituições, dependendo da precisão de cada pin-
celada e da preparação da superfície.
O segundo tópico é a questão de se representar ou
não a capacidade da pele ser permeada por luz – com-
binada com a questão do cromatismo único ou múltiplo.
Na impressão 3D colorida, a consistência posicional de
elementos cromáticos passa a estar automatizada pelo
digital. As sardas que caracterizam a protagonista – a do
primeiro filme da Laika – se multiplicam na superfície e na
profundidade da pele de Neil, um personagem coadjuvante
em ParaNorman (2012), dirigido por Chris Butler e Sam
Fell, o segundo filme da produtora e o primeiro a utilizar im-
pressão policromática e já incorporando a permeabilidade
luminosa da pele concebida em material volumétrico digital
– o subsurface scattering.
Mas a produção enfrentou problemas de consistência
de cores entre as cinco 3D Systems ZPrinter 650 que ad-
quiriu – em sua dificuldade em representar tons quentes
de pele. A aposta foi feita porque os testes terceirizados
de forma bem-sucedida foram com esverdeados zumbis
(ROBERTSON, 2015).
Apesar da eliminação da pintura manual, o pós-pro-
cessamento manteve o lixamento e incorporou duas no-

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vas fases: uma imersão em cianoacrilato líquido1 para
preencher os degraus, aumentar a saturação das cores e
enrijecer as peças que saíam das impressoras com con-
sistência de gesso. Em seguida era lixado o excesso de
cianoacrilato, suavizando as superfícies e então era feito
uma cura a quente em fornos para reforçar o enrijecimento
em temperaturas diferentes, de acordo com metas espe-
cíficas (KARLIN, 2012). Mesmo assim, eram peças frágeis
comparadas ao processo anterior. As impressões mais
rígidas da Eden 260 Polyjet continuaram sendo utilizadas
nos mecanismos internos de movimento das pálpebras e
órbitas.
O problema da consistência posicional da pintura ma-
nual em Coraline se desloca no uso das Z650 para a con-
sistência de cor e volume, que exige que as faces utilizadas
em uma mesma tomada do filme, sejam impressas em uma
só impressora. Variações de material utilizado, umidade e
temperatura no ambiente das máquinas são os fatores que
geravam essas inconsistências, demandando o seu con-
trole rigoroso, como explica Brian McLean, o supervisor de
impressão tridimensional da Laika. (DAVIES, 2018).

Nós estávamos desistindo de tudo o que realmente


foi bem sucedido em Coraline. A precisão dimen-
sional, a repetibilidade, o material sendo estável, as
máquinas sendo confiáveis”, lembra McLean. “Tudo

1 Cianoacrilato líquido refere-se às menções dos autores cita-


dos: liquid super glue (EDWARDS, 2014), dipped in super glue
(HEATER, 2018, KARLIN, 2012), e de imagens de imersão
(mesmo que explicitamente ilustrativas) no featurette: ParaNor-
man - Faces of ParaNorman (Grow Film Company, 2012).

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sobre a impressão 3D a cores na época era muito
inconsistente: resultados de impressão para im-
pressão, as próprias impressoras. Havia uma quanti-
dade enorme de coisas que estávamos sacrificando,
mas estávamos trocando isso pela capacidade de
imprimir cores, e isso valeu a pena para nós. [MC-
LEAN Apud DAVIES, 2018]2

Uma vez que impressoras 3D coloridas não foram con-


cebidas para propiciar consistência de cores na reprodução
em escala, como impressoras de papel, elas demandam
pelo menos, o mesmo rigor em pré-impressão: “Estamos
usando uma tecnologia que nunca foi projetada para a ani-
mação de substituição, nunca projetada para produção em
massa neste nível de análise e esse nível de precisão entre
as partes”. (McLEAN apud EDWARDS, 201)]3

(...) Mas a Epson e a HP provavelmente gastaram


cerca de 30 anos com seus cientistas de cor desen-
volvendo perfis de cores para prever como as cores
que você vê no seu computador correspondem ao
que sai da impressora. Essa tecnologia (impressão
em 3D) estava em sua infância e estávamos tentan-
do nos apropriar dessas máquinas e levá-las à no-
vos níveis e trabalhos de pintura complexos. (...)
(MCLEAN apud KARLIN, 2012)

2 Tradução do autor.
3 Idem.

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Mas como não há correlação exata entre cor-luz e
cor-pigmento, a artista de cor Tory Bryant desenvolveu
uma metodologia envolvendo vasta biblioteca de amostras
de cores em impressos tridimensionais para a devida para-
metrização do resultado final. Versões físicas de concepção
de cores do personagem foram utilizadas como referência
na seleção das fórmulas dessas amostras para gerar a pin-
tura final de produção, observando também os limites de
espectro de cada Z650 e do conjunto de impressoras. Mes-
mo assim, o rendimento na economia de escala demandou
grande margem de erro, pois a imprecisão dimensional das
Z650 representou o descarte de 40% além 56 mil partes
impressas para Boxtrolls de 2014, dirigido por Anthony
Stacchi e Graham Annable, representando mais que o total
de impressos produzidos em Paranorman e mais que o do-
bro do total de Coraline (DAVIES, 2018).
Kubo e as cordas mágicas (Kubo and the Two Strings),
de 2016, dirigido pelo também diretor executivo da Laika,
Travis Knight, representa o extremo da antecipação tec-
nológica e metodológica da produtora em alinhamento com
a vanguarda da fabricação digital. O modelo J750 da 3D
Systems – então rebatizada Stratasys – já era utilizado na
pré-produção do filme, três anos antes do seu lançamento
comercial (DAVIES, 2018).
O número de expressões obtidas pela combinação de
partes adotada desde os 200 mil de Coraline atinge 1,4
milhão de expressões para Norman, personagem-títu-
lo do segundo filme e um número semelhante para Ovo
– protagonista de Boxtrolls, mas com mais complexidade
muscular na face neste. Em Kubo e as Cordas Mágicas,

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mesmo um só dos coadjuvantes Macaca e Besouro apre-
sentam cifras muito superiores aos protagonistas dos
filmes anteriores somados, com respectivos oito e sete
milhões de expressões. Segundo Brian McLean, Kubo tem
11.000 bocas e 4000 sobrancelhas, o que segundo ele,
geraria 48 milhões de expressões por combinação. Mas as
impressões da J750 ainda herdam a fragilidade estrutural
das Z650, demandando uma solução para as partes finas
de personagens como os dentes de Macaca, atendida pe-
las tricromáticas Stratasys Polyjet Connex3 - incorporadas
à Laika também em fase de protótipo (DAVIES, 2018).
Com meio milhão de cores em cada uma das suas seis
J750 a Laika imprimiu 102 mil faces para o seu próximo
filme, O Elo Perdido (The Missing Link), prometendo atingir
entre 12 e 24 faces por segundo, com 80% destas sem
lixamento manual. Como mencionamos antes, os méto-
dos de fabricação digital de resultantes tridimensionais
se resumem-se nas abordagens aditiva e substrativa. No
pós-processamento da impressão 3D, a adição de uma úl-
tima camada de polímero que preencha os degraus é ainda
um procedimento aditivo, mas a subsequente lixagem é um
processo de subtração que utiliza a inteligência da mão e
da visão humanas.
O Elo Perdido utilizou soda cáustica após a impressão.
Como ácido, ele solubilizaria as arestas dos degraus de-
positando nas suas reentrâncias o seu volume residual, rea-
lizando uma subtração e adição por um lixamento químico.
Segue-se enxaguamento, secagem e eventual lixamento
mecânico quando necessário e cobertura ainda manual por
vernizes.

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Do ponto de vista técnico-estético, a produtora inglesa
Aardman – ainda mais bem sucedida em retorno financeiro
do que a Laika – aposta em outra redução metonímica do
senso-comum: o entendimento de stop-motion como “ani-
mação de massinha”. Isso revela que a consciência do pú-
blico em estar fruindo algo que sabe ser objetual afasta
os trabalhos da produtora de Bristol de serem confundi-
dos com o famigerado 3D digital. Mesmo que em um pro-
cesso transitivo entre substituição e claymation – porque
a animação facial é também feita por substitutivos molda-
dos em plastilina de uma coleção de moldes em negativo
volumétrico – deixando margem para a intervenção de um
outro “digital”: as impressões dos dedos dos animadores.
Já os dois filmes de Tim Burton produzidos com figuras
animadas da Mackinnon & Saunders utilizam animação fa-
cial por mecanismos internos de acionamento direto e indi-
reto: A Noiva Cadáver (Tim Burton’s The Corpse Bride) de
2005, dirigido por Mike Johnson e Frankenweenie, de 2012,
dirigido pelo próprio produtor estadunidense. São filmes de
alto orçamento, mas ainda bem abaixo do custo declarado
dos filmes da Laika4. Mesmo assim, contaram com toda a
tecnologia de personagem terceirizada entregue à dupla
de artesãos e sua equipe baseada em Altrincham, Trafford,

4 Segundo os sites Box Office Mojo e The Numbers, Fran-


kenweenie teve orçamento de 39 milhões de dólares. A Noi-
va Cadáver, 30 milhões. Já os quatro filmes da Laika tiveram
orçamentos de 60 milhões cada. Segundo o Box Office Mojo,
só divergindo para 55 milhões segundo o The Numbers no caso
do quarto filme. Disponíveis em: https://www.boxofficemojo.com
Acesso em: 20.01.2019.

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grande Manchester, no norte da Inglaterra.
A exemplo de uma cabeça humana, na animação facial
por mecanismos internos, as faces são objetos únicos e
articulados, permitindo diversas expressões. Embora tam-
bém precisem ser fabricadas em série e ocorra automação
no processo fabril, isso se dá para permitir a animação em
paralelo dos mesmos personagens em diversas cenas e
seus substitutos em caso de quebra, respectivamente ace-
lerando a produção e impedindo interrupções da animação
para a recorrente manutenção das figuras.
Por um lado, a opção da Laika pela automação da a-
nimação facial gerando exatos correspondentes físicos do
que é possível virtualmente, exige uma economia de esca-
la em técnicas, métodos e artesãos na parte manual que
não se encontram sob a forma de serviços devido à sua
grande complexidade de condicionantes e especificidade
de aplicação.
Já a animação facial por mecanismos internos – além
de encontrar soluções em terceiros, permite o controle es-
paço-temporal da expressão da face como algo integral à
temporização do corpo do personagem, sendo animada
conjuntamente com ele. Por isso é stop-motion em um sen-
tido estrito, por trazer o animador para o exercício pleno da
performance que se desenvolve enquanto se anima.
Se hoje existem recursos de expressão possíveis ape-
nas no 3D digital convertido em 3D físico, há de se con-
siderar que a animação facial por mecanismos internos de
acionamento indireto, também está apenas, começando
– com apenas a Mackinnon & Saunders apresentando ex-
periência em longas-metragens.

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Ao diferenciar os seus filmes de outras produções em
stop-motion pela animação facial pela conversão de 3D
digital em físico, a Laika se distingue, mas se aproxima do
campo que concorre com o stop-motion como um todo: o
3D digital. Com isso, perde a oportunidade de desenvolver
o específico do stop-motion como diferenciação não só de
seus produtos, mas do stop-motion diante de outras técnicas.
Entendemos que as novas tecnologias também tem
muito à oferecer ao stop-motion em suas especificidades,
e que a animação por mecanismos internos de acionamen-
to indireto, nos aponta um caminho pelo eixo da perfor-
mance do personagem pertencer à espaço-temporalidade
vivenciada pelo animador no ato de animar. Mesmo que os
animadores de todas as técnicas possam converter perfor-
mance espacial em imagem quadro a quadro, por gravar
performances em vídeo ou utilizar a captura de movimento
para referência e automatização, o animador de stop-mo-
tion experimenta uma vivência espaço-temporal enquanto
anima - mesmo que em tempo dilatado - apontando para
uma especificidade do stop-motion que o seu desenvolvi-
mento técnico pode e deve observar se quiser contribuir
para o aprofundamento dessa especificidade.

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in the contemporary stop-motion. Avanca Cinema 2018 International
Conference. Portugal: Edições Cineclube de Avanca, 2018. v.1. p.723
–¬ 731.

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The Boxtrolls. Cartoon Brew. 13.08.2014. Disponível em: https://www.
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heights-with-the-boxtrolls-101512.html

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KARLIN, Susan. The Technical Triumph And Torment Of Paranorman’s


3-D-Printing-Driven Animation Process. Fast Company. 17. 08.2012.
Disponível em:
https://www.fastcompany.com/1681447/the-technical-triumph-and-tor-
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printing. Creative Bloq. 09.06.2015. Disponível em:
https://www.creativebloq.com/3d/how-approach-colour-matching-3d-
printing-61515138

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POÉTICAS TECNOLÓGICAS

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ESTRATÉGIAS PARA PRODUÇÃO DE


TRABALHOS AUDIOVISUAIS AO VIVO

Henrique Roscoe Correa Pinto

Mais de um século antes do surgimento do cinema, já


existia o audiovisual ao vivo, na forma de instrumentos que
tinham como objetivo, criar relações diretas entre som e
imagem, por meio de correspondências entre notas da es-
cala musical e cores específicas do espectro visual. Estes
instrumentos foram chamados de Color Organs e fizeram
surgir um novo gênero
no audiovisual: a Visu-
al Music. Este modo de
pensamento busca tra-
tar as imagens em uma
composição artística, de
maneira musical, utili-
zando estruturas advin-
das da música, a fim de
chegar a um resultado
onde questões senso-
riais e estéticas das ima-
gens, por meio de suas
formas, cores e movi-
mentos são realçadas.
Color Organ de Rimington. 1897. Ao longo do século XX,
Fonte: http://www.joostrekveld.
net/?page_id=185/
outros instrumentos foram

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Thomas Wilfred e seu Clavilux. 1922.
Fonte: https://bit.ly/2AoFKQS

inventados para possibilitar a seus criadores tocar imagens,


de modo similar ao que um músico executa sons: criando
melodias; ritmo; harmonias entre os elementos; improvisos
e contrapontos com a parte sonora da composição, etc.
Instrumentos como o Clavilux, de Thomas Wilfred, fizeram
nascer uma nova maneira de pensar relações audiovisuais,
inserindo formas que se moviam na tela a partir de con-
troles executados pelo artista em tempo real. Ao contrário
dos Color Organs, que só permitiam uma correspondência
fixa e limitada entre notas musicais e cores, o instrumento
de Wilfred proporcionava a criação de composições mais
elaboradas, nas quais forma, cor e movimento eram os
principais atributos. Apesar do Clavilux não prescindir de
acompanhamento sonoro – sendo apontado por seu inven-
tor como a concretização de um novo tipo de arte, compos-
ta apenas por luz – vários outros inventos concretizaram as
aspirações de seus criadores de um novo modo de tratar
as imagens, na maioria das vezes, de maneira sincrônica
com o som, ao longo do século XX.

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Outra maneira de relacionar música com artes visuais
dentro dos limites da Visual Music ocorreu no início do sé-
culo XX, quando alguns pintores tentavam se afastar da
retratação realista da natureza – tônica na pintura desde
seu surgimento – rumo à abstração. Estes artistas busca-
ram na música, especialmente no caráter abstrato que a
constitui, uma maneira de justificar seu movimento rumo
a composições visuais onde a expressão interna dos e-
lementos pictóricos não figurativos é mais importante do
que uma reprodução imitativa de objetos externos. Artistas
como Wassily Kandinsky e Paul Klee tentaram, por meio de
suas obras e de textos sobre o tema, revelar o poder intrín-
seco das formas, cores e movimentos, buscando a fluidez
da música, além de uma relação com algo que ainda não
era possível em pinturas estáticas: o movimento. O mo-
vimento era uma aspiração de vários artistas abstratos e,
enquanto não era possível sua viabilização, sua sugestão
era inserida nas obras pictóricas por meio de gradações de
cores, variações no tamanho dos elementos, e até mes-
mo, ligações mais diretas como a inserção de partituras
ou imagens fragmentadas de instrumentos musicais nas
composições visuais.
Foi somente com o advento do cinema, no final do sécu-
lo XIX, que a Visual Music pode finalmente ter o movimento
ao seu alcance, permitindo a concretização das ideias dos
artistas em filmes onde as imagens eram tratadas de ma-
neira bem diferente do cinema tradicional, que dava seus
primeiros passos e apontava na direção de narrativas mais
convencionais, com atores, roteiros similares aos literá-
rios, e centrado na palavra e nos diálogos entre atores. Os

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artistas que se baseavam nos princípios da Visual Music
apropriaram-se dos meios tecnológicos do cinema, mas
subverteram seu uso, tanto no modo de gravação das ima-
gens e sons quanto na preocupação estética com elemen-
tos visuais abstratos, explorando sua ressonância interna
– como apontava Kandinsky – em composições nas quais
movimento, forma, cor e ritmo das imagens eram mais im-
portantes do que uma narrativa linear baseada no verbo.
Em composições abstratas que tinham sincronia precisa

Paul Klee. Growth of the night plants, 1922


Fonte: Visual Music: Synaesthesia in Art and
Music Since 1900)

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entre os elementos audiovisuais, estes artistas buscavam
uma nova maneira de se produzir audiovisual, onde som e
imagem eram os protagonistas, e expressavam os senti-
mentos e emoções do artista em diálogos e contrapontos.
Desde a primeira década do século XX, experimentos
já eram realizados nesta área por artistas como Bruno
Corra e Arnaldo Ginna, que pintavam elementos abstratos
coloridos diretamente na película, quadro a quadro. No i-
nício da década de 1920, artistas como Walther Ruttmann,
Hans Richter e Viking Eggeling realizaram os primeiros
filmes abstratos, ou absolutos, onde o ritmo e associações
com a música eram os principais atributos. Nas décadas
seguintes, outros animadores se inspiraram no trabalho
destes pioneiros e amplificaram o potencial da Visual Music
por meio de sofisticadas composições, onde som e imagem
se entrelaçam de modo a criar uma unidade audiovisual
sem hierarquias, em que a soma dos elementos sonoros
e visuais cria uma experiência sinestésica para o espec-
tador. Os principais nomes deste movimento foram Oskar
Fischinger, Norman McLaren e Len Lye, além de inúme-
ros outros que utilizaram o filme como meio de expressão
para composições audiovisuais sincrônicas, explorando ao
máximo o potencial rítmico e dinâmico das imagens.
Na década de 1960, o caráter performativo da Visual
Music voltou com força através dos coletivos de artistas
que utilizavam um enorme aparato de instrumentos para
projetar imagens ao vivo, em sincronia com apresentações
de bandas de rock. Chamados de Light Shows, estes es-
petáculos visuais eram executados por meio de projetores,
slides, filtros de cor, color organs, etc., em apresentações

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únicas, pois a mistura das mídias e o caráter improvisatório
das composições não permitia uma reprodução repetida
como no cinema. A improvisação também combinava com
as ideias da época de eventos que aconteciam de maneira
espontânea, valorizando o momento e a participação cole-
tiva, similar ao modo de execução das músicas que estes
artistas acompanhavam.
Este movimento foi o antecessor de uma expressão
artística que só foi viabilizada pelos computadores pes-
soais, já no final dos anos 1990: o VJ. Estes artistas bebem
da fonte da Visual Music ao criar composições visuais ins-
tantâneas, onde imagens pré-gravadas são ressignifica-
das quando misturadas e acrescidas de efeitos e ritmo na
edição ao vivo, seguindo a música que está sendo tocada.
Surgido no ambiente das festas de música eletrônica, o VJ
mixa loops curtos de imagem, criando uma narrativa não li-
near composta pelo encadeamento de imagens que têm algu-
ma ligação entre si: rítmica, estética, temática, etc. Este fluxo
de imagens conecta-se com a música que está sendo exe-
cutada fundamentalmente pelo ritmo, que serve como base
para uma ligação mais profunda quando o VJ pensa ligações
complexas de cores e formas em movimento, escolhidas no
exato momento em que são enviadas para a tela.
Já no século XXI, possibilitado pelo aumento de potência
dos computadores portáteis, o trabalho dos VJs desembo-
cou em outro gênero audiovisual, composto por elaboradas
composições onde som, imagem e conceito são criados
desde o início do processo pelo mesmo artista ou coleti-
vo, permitindo uma conexão muito mais profunda entre os
elementos audiovisuais, que agora são cuidadosamente

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pensados antes de serem executados ao vivo. Essa com-
posição prévia aumenta sobremaneira as possibilidades
de articulação entre os elementos da composição, sem
excluir a improvisação do artista no palco, que continua
parte fundamental no processo. As performances audiovi-
suais surgem então como uma das principais ramificações
do audiovisual ao vivo, concretizando os ideais da Visual
Music em composições onde som e imagem contracenam
de maneira a criar uma união dos sentidos, fazendo surgir
um terceiro elemento que seria mais do que a soma de
seus componentes, em unidades transmídia que criam ex-
periências sensoriais únicas no espectador.
Algumas dessas performances utilizam uma estratégia
também antiga, mas que somente atingiu seu potencial
máximo com o advento dos computadores: a Arte Gene-
rativa. Seus primórdios datam do século XVIII, quando Mo-
zart criou composições onde trechos específicos de sua
partitura eram tocados a partir do resultado de um jogo de
dados. Compositores do século XX como Pierre Boulez,
John Cage e Stockhausen utilizaram e aprimoraram este
procedimento, conferindo à sua música um caráter dinâmi-
co e randômico. Mas foi com o computador digital que a
Arte Generativa pôde se expandir, alcançando seu ápice.
Este tipo de arte baseia-se em composições algorítmicas
digitais onde a aleatoriedade é uma questão primordial, e
o resultado final nunca será o mesmo, ainda que a pro-
gramação seja executada infinitas vezes. A obra generativa
é composta por algoritmos onde o artista tem ao seu dis-
por todos os parâmetros de som e imagem da composição,
que podem ser alterados em tempo real pelo performer ou

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por meio de variáveis randômicas, que acrescentam im-
previsibilidade à obra. Assim, qualquer elemento visual ou
sonoro pode ser manipulado ao vivo, e alterado segundo
a vontade do artista. Ao contrário do padrão da indústria
cinematográfica, onde o produto final é sempre o mesmo,
refinado por antecedência em uma cadeia de etapas e ren-
derizado em uma obra imutável, nas composições genera-
tivas o resultado vai sendo moldado ao vivo, no palco, por
meio de variações nos parâmetros previamente escolhidos
pelo artista para serem manipulados ao vivo.
Esse tipo de trabalho tem um poder ainda maior que o
dos VJs, que já tinham uma ampla gama de possibilidades
de tratamento da imagem do vivo, porém utilizam loops de
vídeo pré-gravados, onde não se pode mais alterar as
características de cada elemento da cena. O loop já está
pronto e seus elementos constitutivos estão gravados e não
podem ser mais alterados. Obviamente, um enorme núme-
ro de possibilidades está à disposição do VJ, que, ao mis-
turar ao vivo camadas de loops com durações diferentes,
aplicar efeitos e mixar, consegue criar um resultado único e
impossível de ser repetido. Porém, na programação gene-
rativa, pode-se controlar todos os parâmetros de qualquer
elemento visual ou sonoro, pois estes estão sendo gerados
naquele momento, de forma instantânea, por meio de uma
programação que privilegia a mudança, o caráter vivo de
uma arte composta e apresentada em tempo real. Este tipo
de programação, ao abrir espaço para o erro, para a alea-
toriedade, apresenta grandes desafios para o artista, que
precisa estar sempre inspirado a fim de obter um resultado
satisfatório em sua apresentação. Assim como os músicos

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de Jazz, que têm uma estrutura básica de composição e,
a partir desta, divagam em solos improvisados, inventados
na hora, no momento em que estão sendo executados no
palco, os performers audiovisuais têm ao mesmo tempo,
grande liberdade mas também grande responsabilidade,
pois o resultado final não está definido, e este pode atingir
vários níveis de criatividade, dependendo da execução do
artista naquele dia.
Em termos estéticos, o resultado obtido pelo trabalho do
VJ ou nas performances audiovisuais pode ser bem pare-
cido, principalmente dentro do Live Cinema, um subgênero
das performances audiovisuais no qual artistas se utilizam
de trechos de longas-metragens famosos, cortados em
loops e mixados ao vivo. Porém é mais comum a utilização
de programações generativas e elementos gráficos abstra-
tos, devido à sua facilidade de tratamento. A diferenciação
talvez se dê mais pela utilização dos meios técnicos que
viabilizam a execução da performance: os softwares. No
caso dos VJs, existem programas específicos, com inter-
face fixa, onde os loops de vídeo são inseridos facilmente e
todas as potencialidades já estão definidas pelo desenvol-
vedor do aplicativo. Neste caso não é possível acrescen-
tar uma função que não foi programada pelo autor do soft-
ware. Exemplos destes programas são Resolume, Modul8,
Arkaos, VDMX. Mesmo limitados de alguma forma, estes
aplicativos oferecem uma gama de possibilidades de alte-
ração e mistura entre imagens enorme, que já dá ao artista
um grande poder de composição ao vivo. Porém, outros soft-
wares conseguem ampliar essas possibilidades, permitindo
ao usuário criar sua própria programação, inclusive em

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tempo real. Softwares como VVVV, Max/Msp, Touch De-
signer, entre outros são inicialmente, uma tela em branco,
que será programada pelo usuário de maneira a alcançar
seus objetivos específicos, com total liberdade de inserção
de qualquer função que o artista julgue necessária à sua
apresentação. Com esses programas, o artista consegue
explorar cada característica dos elementos que está utili-
zando, de maneira muito próxima como o músico tem à sua
disposição os elementos fundamentais do som, chegando
assim ao máximo potencial da Visual Music, onde elemen-
tos visuais criam melodias na tela em contrapontos com
seu parceiro sonoro.

Trabalhos autorais

Como exemplo das ideias aqui tratadas, apresentarei al-


guns de meus trabalhos artísticos onde este modo de fazer
da Visual Music e da Arte Generativa estão presentes, e de
que maneira cada um auxilia na produção e expande o re-
sultado final das obras. Meu projeto HOL, criado em 2008,
baseia-se nos princípios da Visual Music, porém expandi-
dos a fim de acrescentar elementos simbólicos ao trabalho.
A Arte Generativa também está sempre presente, principal-
mente na utilização de programações que tratam parâme-
tros visuais e sonoros de maneira dinâmica, acrescentando
aleatoriedade às composições e tornando a máquina um
aliado para se chegar a resultados interessantes, podendo
inclusive ser considerada como coautora. Muitas vezes o
resultado proposto pelo programa por meio dos parâme-
tros audiovisuais influencia a tomada de decisão do artista

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HOL. PONTO, um videogame sem vencedor, 2012.
Foto: Henrique Roscoe

na hora da improvisação, levando o trabalho para lugares


onde o autor não chegaria sozinho.
Na performance PONTO, um videogame sem vence-
dor1, um instrumento autônomo que construí a partir do
microcontrolador Arduino gera todos os sons e imagens
em tempo real, de acordo com o acionamento dos botões
de um joystick antigo de Super Nintendo hackeado. Cada
botão realiza uma função: tocar uma nota musical; acionar
uma sequência de sons aleatórios ou loops rítmicos; alte-
rar uma imagem; desenhar na tela; modificar o movimen-
to dos elementos gráficos; etc. Todas estas funções estão
definidas na programação enviada para o microcontrolador
que as executa ao vivo, a cada novo toque recebido por
meio dos controles. Em cada momento da performance,
essa programação faz algo diferente, pois cada parte é
composta por um tema específico, que é tratado em som

1 http://hol.1mpar.com/?page_id=811

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e imagem por meio de questões metafóricas onde cada
elemento sonoro e visual diz alguma coisa a respeito do
tema que está sendo tratado, além de tecerem comple-
xas relações audiovisuais, controladas ao vivo por mim e
por pessoas do público que são convidadas para participar
da performance. Neste sentido, a aleatoriedade é levada
ao extremo, pois além de todos os elementos randômicos
presentes na programação, a inserção de um participante
sobre o qual não tenho nenhum controle de suas ações
confere à performance um alto grau de imprevisibilidade.
Neste trabalho, a Visual Music está presente na manei-
ra como são tratados som e imagem, pelo tratamento mu-
sical dado às imagens e pelas articulações audiovisuais,
que algumas vezes, acontecem de maneira sincrônica,
outras como contrapontos. As formas abstratas valem pelo
seu caráter estético, mas também simbólico, o que extra-
pola um pouco, o núcleo de pensamento da Visual Music,
apesar destes princípios estarem sempre presentes no
tratamento dos elementos audiovisuais. Seria uma outra
camada, acrescida por cima das estratégias elementares
deste tipo de pensamento. Já a Arte Generativa também
é fundamental no trabalho, e aparece por meio das pro-
gramações onde vários elementos aleatórios estão pre-
sentes, tornando o resultado sempre único. O convidado
acrescenta outro fator randômico à obra, tornando seu re-
sultado altamente indefinido, porém sempre dentro de li-
mites estabelecidos por mim durante a programação.
Outra performance do HOL – Synap.sys2 – é também

2 http://hol.1mpar.com/?page_id=1271

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um bom exemplo de aplicação dessas ideias, porém de
maneira um pouco diferente. Nesse trabalho, um sistema
complexo foi desenvolvido para controlar som, imagem, la-
sers e motores, e operar a conexão entre dois instrumentos
construídos por mim especificamente para a performance,
além de um controlador MIDI padrão. Um dos instrumentos,
inventado a partir do conceito do trabalho – as sinap-ses,
conexões entre os neurônios no cérebro – controla a maioria
das ações audiovisuais. Este instrumento é uma interface
composta por elementos digitais e analógicos, que contro-
lam via USB, parâmetros de som e imagem nos softwares
que rodam no laptop, além de permitir uma execução mu-
sical e a captação de sons que partem de três cordas situa-
das em sua base. Por meio de jumpers que conectam os
vinte plugs situados
em sua parte supe-
rior, informações são
encaminhadas pa-
ra os softwares no
computador e ações
são desencadeadas,
alterando o conteúdo
Henrique Roscoe em HOL, Synap.sys, audiovisual.
2014. Foto: Eduardo Magalhães O instrumento foi
construído levando em conta o tema da performance, e
seu desenho e funcionamento lembra os sensores aco-
plados à cabeça de um paciente em um exame neurológi-
co. Outro instrumento, também criado especificamente
para este trabalho, é composto por canetas laser presas
a pequenos servos em uma caixa de madeira. Também

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conectado por USB ao programa principal no computador
por meio de um Arduino, este instrumento recebe infor-
mações MIDI que são convertidas em sequências de liga/
desliga de cada laser, bem como da posição dos servos
aos quais estão fixados. Completando o setup, um contro-
lador MIDI pequeno serve para ajustes extras em algumas
funcionalidades, e uma placa de áudio externa capta o som
do instrumento, que entra no computador após passar por
um pedal de efeito.
Nesta performance, a ligação com a Visual Music e com
procedimentos generativos é semelhante à que acontece
em outras obras do HOL, com a diferença que aqui apare-
cem alguns elementos figurativos em dois momentos onde
a imagem é composta por vídeos pré-gravados. Porém, o
software principal age de maneira procedural, escolhendo
os frames dos vídeos que serão exibidos, alterando sua
velocidade, aplicando efeitos e sobreposições, de manei-
ra que o resultado final segue tendo um forte apelo ale-
atório. Aqui também acontece o tratamento simbólico dado
aos sons e imagens, que tenta criar narrativas por meio
de metáforas entre seus elementos constitutivos e as sen-
sações que eles suscitam no espectador. Por exemplo, em
uma parte inicial da performance, imagens do meu corpo
são capturadas por uma webcam, e na sequência, linhas
são desenhadas na tela, formando uma rede e depois pa-
drões gráficos, que simbolizam a entrada da informação
vinda do mundo exterior e convertida em sinais elétricos
pelo cérebro. Um fundo vermelho remete ao interior do
corpo, enquanto as formas dos padrões lembram sobre-
posições e acumulação. Em outro momento, um efeito

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aplicado aos vídeos elimina partes das imagens, remeten-
do a uma perda de memória. O procedimento generativo
ocorre em todos os momentos da performance, seja na
escolha dos frames de vídeo previamente gravados, na es-
colha do tamanho, posição de elementos tridimensionais,
ou na reação a frequências específicas de áudio vindas
das cordas do instrumento. Este sistema remete também
a um conceito importante na arte digital, a cibernética. É
por meio dela que podemos entender as diversas ligações
construídas entre os componentes do sistema, que tornam
possível um equilíbrio e a estabilidade fundamental para a
execução da performance.
Passando para outro gênero do audiovisual ao vivo – as
instalações interativas – podemos ver um comportamen-
to semelhante no que tange os conceitos utilizados nas
performances. Na instalação Territórios3, produzida em
parceria com Fabiano Fonseca e Brayhan Hawryliszyn, a
questão da cibernética e das ações procedurais ganha for-
ma em um trabalho que funciona de maneira independente
da ação dos autores. Agora é o público quem manipula
os instrumentos tornando-se responsável pelas ações de-
sempenhadas pelo sistema. Esta instalação é composta
por dois instrumentos metálicos desenhados em um for-
mato que lembra uma arma apontando para seu oponente.
Entre eles uma tela móvel recebe uma projeção dinâmica
que contém imagens de conflitos humanos: disputas por
territórios, por religião, raça, etc. Um microfone acoplado
a cada um dos instrumentos tem seu sinal analisado pelo

3 http://1mpar.com/index1.php/portfolio/territories-territorios/

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programa e o interator que estiver batendo mais forte em-
purrará a tela em direção ao seu “oponente”, realizando um
ato de opressão, simbolizado pelo próprio movimento da
tela. Neste trabalho, o artista não está presente como na
performance, mas a obra continua viva, sendo executada em
tempo real, por um sistema composto por computador, sen-
sores, instrumentos e pelos visitantes que interagem com ela.
Outro exemplo de performance da máquina, sem a par-
ticipação do artista após a conclusão da programação é
a instalação Afeto 2, 3, 14. Aqui, por meio de três com-
posições de som e luz, a ideia do afeto entre duas ou mais
pessoas é simbolizado. Um primeiro objeto autônomo,
constituído de um Arduino e uma placa DMX está ligado
a dois spots de luz RGB. Sua programação faz com que
o objeto escolha uma cor e uma frequência sonora para
um dos spots. Em seguida, o lado oposto, posicionado de
forma a apontar e tocar o seu par, inicia um percurso que
vai de sua cor e frequência inicial até o proposto pelo outro
spot. Quando os dois lados chegam na mesma cor e no
mesmo som, novos sons e cores são escolhidos. Neste
diálogo, o tema da obra é simbolizado pelo comportamento
que tem o par de spots, cada um sendo afetado pelo seu
par, e tentando se aproximar deste. A instalação é consti-
tuída ainda por outros dois objetos, um composto por três
hastes contendo LEDs RGB que interagem entre si e outro
solitário, emitindo uma mensagem melancólica por meio de
código morse em som e luz.
Os exemplos de aplicação da Visual Music e da Arte

4 http://1mpar.com/index1.php/portfolio/afeto/

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Generativa são tão amplos que não caberiam neste artigo.
Busquei exemplificar, por meio do meu trabalho, algumas
das práticas possíveis dentro desse universo grande e di-
verso, que está sendo explorado há séculos e que apon-
ta para outros caminhos, longe do paradigma hegemôni-
co do cinema e do vídeo, onde a palavra é protagonista e
as obras não têm o caráter vivo e dinâmico proporcionado
pela atuação ao vivo. Essas ideias serviram como inspi-
ração para inúmeros artistas e inventores, que tentaram
expressar emoções e sentimentos por meio de imagens
abstratas e sons, sem a utilização de diálogos ou perso-
nagens no sentido convencional do termo. No entanto, po-
demos pensar que estes atores existem, só não são hu-
manos; são formas que se movimentam no espaço com
a fluidez na música e em movimentos com fortes ligações
com a dança. Um dos principais expoentes da Visual Mu-
sic, Oskar Fischinger, inclusive chamava suas formas de
atores, que deveriam desempenhar um papel específico
enquanto se movem na tela; não um papel interpretado por
meio de diálogos verbais, mas advindo das profundezas
da alma humana, expressando os sentimentos do artista e
tocando o espectador por meio de relações primordiais que
se entrelaçam entre som e imagem.

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Referências bibliográficas

BETANCOURT, Michael. Thomas Wilfred’s Clavilux. Rockville, Mary-


land: Wildside Press, 2006.

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BROUGHER, Kerry.Visual Music: Synaesthesia in Artand Music Since


1900. Londres: Thames& Hudson, 2005.

CARVALHO, Ana, The audiovisual breakthrough. Berlim: Collin&Maier-


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KANDINSKY, Wassily. Curso da Bauhaus. São Paulo: Martins Fontes,


1996.

______. Ponto e linha sobre plano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MCDONNELL, Maura. Visual Music. Disponível em:


http://www.soundingvisual.com/visualmusic/VisualMusicEssay.pdf.
Acesso em: 20.08.2016.

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ries of Technological Experimentation. Disponível em:
http://www.matchtoneapp.com/images/instrumentstoperformcolor.pdf.
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WILFRED, Thomas. Light and the artist. In: The Journal of Aesthetics
& Art Criticism. New Jersey: Wiley, junho, 1947, vol.V, nº4, p.247-255.

202

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PARQUEAR BANDO _
OBJETOS COREOGRÁFICOS

Thembi Rosa

Este capítulo objetiva refletir e compartilhar o processo


de criação em torno de animações e objetos coreográficos1
realizados no primeiro semestre de 2018, com os alunos2
da graduação do Curso de Cinema de Animação e Artes
Digitais – CAAD – e da Licenciatura em Dança da Escola
de Belas Artes/UFMG, que participaram do Lab, “Som, I-
magem e Performance Computacional”, disciplina ministra-
da pelo Prof. Dr. Jalver Bethônico.
Mais do que descrever detalhadamente os estudos de
animação disponíveis online3, abordarei a importância da
corporalidade, da noção da experiência e de projetos que
vinculam corpo e tecnologia. A meu ver, em especial no
atual contexto de desvalorização da arte e da educação no
país, estas questões precisam ser debatidas e demonstra-

1 Objetos coreográficos é o termo utilizado pelo coreógrafo es-


tadunidense William Forsythe acerca das criações digitais rela-
cionadas à coreografia, tais como as que estão disponibilizadas
no site https://synchronousobjects.osu.edu
2 Alunos participantes: Bruna Reis, Bruna Nunes Santos, Cami-
la de Aquino Moreira, Clarisse Carneiro e Silva, Gabriel Fiorini,
Guilherme Garcia, Júnia Bertolina da Silva; Marcos Correa Lou-
res; Marina Mattiello Magalhães, Matheus Albino, Pedro Felipe
Dias; Pedro Henrique Resende e Rafael Trindade.
3 https://youtu.be/CCSp0532t8I

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das em sua potencialidade, incluindo as relações locais e
internacionais que estão em jogo nesse debate e que não
podem ser desconsideradas, seja na micro ou na ma-
cropolítica que afetam diretamente o sistema de criação e
produção.
Assim, irei descrever as práticas corporais que vem sen-
do adotadas nas intervenções Parquear (2011) e Parquear
Bando4 desde 2015, com Margô Assis, Dorothé Depeauw
e outros artistas convidados e inscritos em cada uma das
residências realizadas nos últimos três anos. Além da Es-
cola de Belas Artes, em 2018, parqueamos no FIDCU no
Uruguai, no Festival Como encender un fósforo no México,
no Largo da Batata em SP e na X Jornada de Dança da
Bahia na Praça Campo Grande, em Salvador.
Navegaremos em referências inspiradoras para estas
criações e que estão no campo de estudos do meu douto-
rado. Outras referências da dança estão presentes por se-
rem afetivas e efetivas como parte de todo processo de in-
vestigação e práticas que estão em jogo tanto no Parquear
Bando quanto no Parquear Bando_ Objetos Coreográficos.
Durante o Lab, realizado na EBA, foram gerados mais
de quinze estudos em animações, com duração entre dez
e quinze segundos cada. São criações resultantes das
experiências dos alunos com as práticas corporais e co-
reográficas relacionadas à intervenção urbana Parquear
Bando, conduzida por mim ao longo de aproximadamente
dois meses. A partir desta prática, cada aluno foi convidado a
compor uma animação utilizando os recursos que quisessem,

4 https://cargocollective.com/multiplex/Parquear-Bando-2015

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e tendo como base, o vídeo que gravamos no chamado
“piscinão” – pátio central da EBA, no Campus da UFMG.
Foi realizada uma gravação em plongée de uma das ações
do Parquear Bando, nomeada “nó”. Também foi sugerido
que os alunos utilizassem imagens gravadas com os seus
próprios celulares.
Rafael Trindade, monitor do Lab, propôs mais de cinco
estudos em animação, sendo que em alguns deles, optou
pela utilização dos registros realizados pelo celular.

Parquear Bando:
práticas, partituras, inspirações e reflexões

No início da prática com o Parquear Bando fazemos um


aquecimento em roda e um início de aproximação e ma-
nipulação com varas de bambus, principal dispositivo uti-
lizado nessa intervenção. Temos nomeado o bambu como
sendo um dispositivo para desaceleração, visto que, por
vários momentos, uma das principais ações nessa inter-
venção urbana, consiste em caminhar, parar, contemplar,
compor com o bambu equilibrado na cabeça, e com tudo
o que implica essa
ação em relação
ao nosso próprio
corpo, ao tempo,
espaço e ao modo
como nos conec-
tamos com os ou-
tros.
Parquear Bando_objetos coreográficos.
Frame da animação de Rafael Trindade.

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Desse modo, preparamos a coluna, despertamos a
atenção para a sua mobilidade, para o espaço entre as
vértebras, descomprimindo-as, e tornando toda a coluna
mais flexível; aliás, a flexibilidade é uma das principais
características dos bambus; enraizar e crescer a ponto de
não importar a força dos ventos, sendo que os bambus se
movem sem se quebrarem. As imagens são potentes para
acionarmos e ativarmos os estados corporais, e um dispo-
sitivo como o bambu ao ser equilibrado na cabeça, dispara
uma atenção especial ao corpo, à coluna e a todos os de-
mais ajustes que acionamos para instigar o fortalecimento
na atenção ao corpo, e assim mantermos o bambu equi-
librado enquanto caminhamos, nos relacionamos com os
outros e com o espaço. Uma composição instantânea em
tempo real, instigante tanto para dançarinos, performers
quanto para todas as pessoas interessadas pelo movimen-
to, mesmo que nunca tenham praticado dança, ou outras
atividades físicas.
A visão tem uma papel preponderante nessas relações,
inclusive com o nosso equilíbrio. A coreógrafa estadu-
nidense Lisa Nelson, uma das principais difusoras do Con-
tato Improvisação, criado por Steve Paxton na década de
1970, traz em suas oficinas e na sua técnica nomeada tun-
ning score a relevância de tantas palavras que são usadas
para o verbo ver, questionando e suscitando àquilo que as
distingue. Ver, observar, olhar, assistir, looking for, mirar,
contemplar ... Ou seja, cada uma destas diferentes ações
aciona e modula estados de atenção corporal peculiares.
Até mesmo a frequência dos nossos pensamentos é
afetada pelo modo como vemos e a simples ação de se

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caminhar com o bambu sobre a cabeça está intimamente
relacionada ao nosso olhar, aos nossos fluxos de pensa-
mentos, àquilo que observamos e à nossa propriocepção,
que diz respeito a percepção do nosso próprio corpo e da
sua relação com o espaço.
Em geral, quando estamos acelerados e dispersos, o
desafio de se manter o bambu equilibrado parece maior.
Por outro lado, com a quietude, a desaceleração e, es-
pecialmente, com a prática, o bambu parece se acoplar
mais facilmente e tendemos a encontrar os movimentos
necessários para se manter o equilíbrio. Ao reconhecer-
mos nossos movimentos e o que se passa em nosso
entorno - o vento, as pessoas e as pequenas danças, ou
small dance, como diz o coreógrafo Steve Paxton, lidamos
melhor com as ações de equilibrar e compor dentro dessa
estrutura.
A distribuição do peso nos pés, toda a organização que
se inicia na base, a amplitude dos espaços conquistados
ao enraizarmos os pés, deixarmos o peso ceder à ação
da gravidade, trazer mais mobilidade para a coluna e, ao
mesmo tempo, acionar vetores de verticalidade, tais como,
empurrar a cabeça para o céu; não ceder à pressão do
bambu, mas sim fazer o movimento oposto, ampliando os
espaços da cervical e pressionando sutilmente o bambu
para o alto, em direção ao céu.
Toda essa parte dedicada a percepção do corpo é tra-
balhada em roda, sendo que cada participante está com
um bambu e a partir de uma série de exercícios inspirados
nas nossas práticas com o Parquear, aliadas à diversas
técnicas de dança, Yoga e Gyrokinesis propomos ações

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para se ampliar a presença no corpo. Após o aquecimento,
guiamos exercícios em duplas, similares a práticas do Con-
tato Improvisação (CI), porém utilizando os bambus como
mediação para o contato. No CI lidamos com o contato com
o outro, com o peso, o contrapeso, e o fluxo de movimentos
que emerge do encontro, sem partir de uma coreografia
pré-estabelecida. As ações são baseadas em princípios or-
ganizativos, tais como, dançar cabeça com cabeça; man-
ter o contato sem utilizar as mãos; mover-se no corpo do
outro como uma base; sendo que, em geral, no CI não se
abandona o corpo, cada um se mantem responsável por
si, pelas suas quedas. A mesma dica permanece para os
exercícios de contrapeso com os bambus.
Um dos exercícios do CI é conectar a sua mão com
a mão de outra pessoas mediado por um hashi, a fim de
amplificar a percepção do toque, da escuta, das sutilezas
de quem guia ou está sendo guiado. Emerge, assim, uma
terceira via que não implica em guiar, nem ser guiado, são
encontros em sincronia.
Como um hashi gigante, os bambus atuam de modo
similar, assim ao mantermos os bambus em ambas as
mãos, em contato com o outro, a ideia é que eles sejam
extensões dos nossos braços. Assim, diferente de manipu-
lar um objeto, trabalhamos com o corpo todo, lidando com
o contrapeso, com as ações de soltar o peso, bem como
de empurrar os bambus com as palmas das mãos, man-
tendo a conexão sem que eles caiam. Ativamos um tônus
corporal necessário para se manter o contínuo, os vetores
e acionar as linhas do corpo, suas extensões, e as longas
linhas quase retilíneas que se desenham com os bambus.

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Preservamos e propomos algumas posições que já nos
são familiares e que atuam na amplitude dos espaços da
coluna, liberando a lombar, abrindo as costas, as escápu-
las, e outras partes do corpo. Ao mesmo tempo, deixam-
os espaço para as improvisações de modo que cada du-
pla possa criar seu próprio repertório e assim ampliar um
material compartilhado. Cada dupla segue explorando as
velocidades, fluxos e dinâmicas de movimento que lhes
interessam estabelecendo os seus parâmetros de movi-
mentos. Sugerimos pausas em posições nas quais encon-
tramos certa estabilidade, e propomos a sua sustentação
até que a posição comece a entrar em decadência e com-
ece a se desfazer, transformando-se em outra, e outra.
Este também é um dos exercícios da Lisa Nelson propos-
to em aquecimentos em suas oficinas, todavia o contato é
feito diretamente mão com mão.

Parquear Bando_
objetos
coreográficos.
Frame da
animação de
Gabriel Fiorini.

Em sua animação, Matheus Albino focou justamente no


contato dos bambus com as mãos, sendo a extremidade
de cada um deles demarcada por uma cor específica. As-
sim, os pontos referem-se às extremidades dos bambus,

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ressaltando as suas conexões. Ainda era sua intenção en-
fatizar as pressões que eles exercem ao serem manipu-
lados. Portanto, ele acabou por suprimir a presença dos
bambus e ressaltar a sensação tátil e visual dos contatos e
os pontos de ligações que se estabeleceram.
As figuras geométricas ou a imaginação dessas for-
mas depende do ponto de vista de cada um; as pausas
colaboram na instauração das imagens das linhas, pla-
nos e geometrias. Uma brecha no tempo para configurar
e reconhecer os desenhos que essas linhas e vetores dos
nossos corpos em congruência com os bambus formam no
espaço, sendo elas ao acaso e escolhas compositivas.
Após a prática em duplas, seguimos para a formação de
trios, quartetos e grupos maiores entre dez e até vinte pes-
soas, quando as formas geométricas ampliam-se em novas
combinações, tornando-se mais complexas. Formam-se
nós e emaranhados pelos movimentos e entrelaçamentos
dos bambus e corpos se movendo. Alguns não conseguem
mais se mover a partir do momento em que os nós se atam
de uma tal maneira que não mais se desconectam facil-
mente, fazendo com que as mãos e braços fiquem presos
e sem espaço para se moverem uns entre os outros e entre
os bambus. Há que se encontrar um modo de se desembo-
lar, criar espaços, e investigar as soluções pelos movimen-
tos, brechas, fluxos, respiração e consensos.
Resistindo ao desejo de informar sobre como podemos
desatar os nós, esta questão, para alguns, começa a ser
urgente: tratar das soluções para desembaralhar-se dos
nós. Há sempre alguém que pensa ter encontrado uma
solução que o outro não conseguiu ver do seu ponto de

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vista, porém nem sempre será uma solução. É curioso ver
como, ao fazermos a ação do nó em espaços públicos, os
espectadores se envolvem desejando que essa situação
se resolva. E durante o Lab “Som, Performance e Ima-
gem Computacional” uma das animações ressaltou em um
sistema de engrenagem o modo como o aluno Guilherme
Garcia, criador dessa animação, se sentia constrito, preso
enquanto esse nó não se resolvia.

Parquear Bando_
objetos
coreográficos.
Frame da
animação de
Guilherme Garcia.

Às vezes o nó se desfaz, formando-se um grande cír-


culo. Outras vezes, ele não se desfaz e chegamos em es-
truturas atadas, insolúveis, tais como: um círculo dentro do
outro, ou um nó que não se desfaz a menos que troque-
mos as mãos, ou os bambus, ou ainda, quando partimos
direto para a formação de uma linha, no momento em que
alguém solta uma das extremidades e daí sim o nó se des-
faz, formando uma grande linha, que é mais uma das estru-
turas que temos na partitura da intervenção.
Todas as práticas corporais e estruturas que foram se

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estabilizando tais como: o nó; as sombras; aproximar os
bambus, formando teias; tocar um bambu no outro e provo-
car sons; sequências de giros lentos como constelações
que formam esculturas cinéticas; o próprio movimento do
bambu movido ao ser tocado por outro ou pelo vento. To-
das essas ações dentre outras que compõem a estrutura
e a partitura do Parquear Bando, emergem de práticas co-
letivas realizadas em diversos contextos. Ressaltar a or-
ganização destas estruturas tanto na intervenção urbana
quanto fazer com que sejam visíveis nas mídias digitais é
uma proposta desafiadora para os alunos do Lab da EBA,
e também para ser descrita no formato de um texto. A me-
todologia para esse Lab emerge de dois projetos de plata-
formas online de dança que são objetos na minha pesquisa
de doutorado: Synchronous Object e Motion Bank.
Refletir sobre as práticas que fazemos é um modo de
ressaltar a nossa estória de interações, reconhecer as nos-
sas seleções, aprendizados, e as principais referências
que, contingentemente somos capazes de reconhecer a
cada momento. Sem considerar aquelas que ficam esque-
cidas, perdidas até que alguém as aponte ou algo nos faça
relembrar. Enfim, um diálogo intenso e contínuo acerca do
que parece ter sentido permanecer e se modificar. Nas es-
truturas coreográficas mencionadas reverberam o contato
em oficinas com os criadores do CI Steve Paxton (2007)
no Estúdio Nova Dança em São Paulo e com Lisa Nelson
(2014) no Ateliê Dudude Herrrmann em Casa Branca, MG.

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Considerações finais

Similar ao reconhecimento das práticas em dança, ao


longo do processo de criação das animações/objetos co-
reográficos desenvolvidos pelo alunos é possível perceber
traços que dialogam diretamente com algumas das referên-
cias em animações e objetos coreográficos apresentados
ao longo do Lab. Incorporar uma experiência, colocar o
corpo em práticas corporais afeta o modo como se faz uma
criação em outra mídia que não seja o corpo. Este é um dos
principais pressupostos do Motion Bank. Em maio de 2019,
em parceria com Scott de Lahunta fizemos uma edição do
Motion Bank Lab Brazil5. Parte deste registro pode ser con-
ferido em uma publicação piloto disponibilizada on line.
Ao traduzir, propor, criar a coreografia em outras mídias,
com a formação de grupos de pesquisa interdisciplinares
parece ser fundamental relacionar-se com a experiência de
se lançar nas práticas coreográficas, nos encontros corpo-
rais, independente da especificidade da área em que cada
pesquisador atue.
Trata-se de acessar diretamente a experiência, tema
que AGAMBEN (2005, p. 21) tem debatido e elucidado
como uma questão contemporânea, a expropriação da ex-
periência. Segundo o autor “o homem contemporâneo foi
expropriado de sua experiência, aliás a incapacidade de
fazer transmitir experiências talvez seja um dos poucos da-
dos certos que disponha sobre si mesmo.”

5 http://www.sdela.dds.nl/motionbank/brazillab2019/#/

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A meu ver, a dança, a desaceleração, o contato, tocar
o outro, compor nos espaços urbanos, contemplar, jogar
tempo fora, ver mais do que uma tela; trazer essa experiên-
cia para as telas e interfaces digitais; corporificá-las, encar-
ná-las são ações nas quais os pensamentos coreográficos
podem vibrar, tornando-se mais palpáveis. Nesta medida,
transitar entre corpomídia6 e outras mídias parece ser tão
urgente atualmente.

Synchronous Object

A fim de situar melhor os referenciais apresentados


ao longo da disciplina, apresentamos e estudamos deta-
lhadamente o site Synchronous Object (SO), realizado a
partir da coreografia One flat thing, reproduced7 (2000) do
coreógrafo estadunidense William Forsythe. O projeto foi
realizado em 2009, e revisado em 2012, por Norah Zuniga
Shaw e Maria Pallazzi, sendo desenvolvido pela Departa-
mento de Dança e de Computação Avançada e Design,
ACAAD, da Ohio State University nos Estados Unidos. Tra-
ta-se de um proposta interdisciplinar com pesquisadores
de diversas áreas, além do próprio Forsythe que integrou o
núcleo de criação e direção do SO, junto a Shaw e Pallazzi.
Além dos alunos da graduação, também participaram

6 A teoria Corpomídia de Greiner e Katz (2005) explicita que o


corpo não representa algo, mas sim, que é a mídia dele mesmo,
resultante das relações coevolutivas que se estabelecem contin-
uamente entre corpo e ambiente.
7 One Flat thing, reproduced <https://vimeo.com/41151136>

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deste projeto os dançarinos da Forsythe Company, den-
tre vários outros pesquisadores e instituições parceiras.
Foram gerados vinte objetos coreográficos, todos eles dis-
poníveis no site, são objetos generativos, arquitetônicos,
estatísticos, topografias, abstratos, 3D que se movem de
acordo com diversos parâmetros. Ou seja, as formas de
visualização da coreografia passam a ser múltiplas e pas-
sam a traduzir, revelar, construir, criar aspectos diversos,
que ampliam ainda mais a complexidade do pensamento
coreográfico e os seus modos de inter-relação com outros
campos de conhecimento e difusão. Navegar pelo site é a
melhor maneira de se interagir com essa plataforma, e foi o
que fizemos durante o Lab na Escola de Belas Artes, ana-
lisando detalhadamente cada um dos objetos coreográfi-
cos, bem como, a estrutura da coreografia.
Além, é claro, de dançar, gravar e criar, cada um a seu
modo, as suas conexões com os pensamentos coreográfi-
cos e experiências relacionais com o Parquear Bando.

Parquear Bando_objetos coreográficos.


Frame da animação de Bruna Reis.

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Referências bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Destruição da experiência e


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<http://www.williamforsythe.com/essay.html> Acesso em: 21.11.2018.

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216

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14

ARTE COMPUTACIONAL BOTÂNICA:


ARGUMENTAÇÕES SOBRE A
REPLICAÇÃO DO MODELO DE
COMPORTAMENTO DE PLANTAS1

Marília Lyra Bergamo

Introdução

Este capítulo explora alguns trabalhos de arte e ciência


que são visualidades de estruturas botânicas. Plantas não
são indivíduos, mas multitudes, distinguíveis por sua divisi-
bilidade, equipadas com vários centros de comando e com
uma relação de espaço/tempo singular. Essas característi-
cas definem comportamentos que confrontam o conceito
de seres inanimados atribuídos às plantas por Aristóteles.
Partindo desses pressupostos e do conceito de Arte Com-
putacional, propomos questões e características para o
desenvolvimento de uma Arte Computacional Botânica.

Arte e Botânica

A pintura artística de plantas é parte da cultura visu-


al da humanidade, mas devido ao fato de geralmente, as

1 Esta pesquisa foi produzida com apoio da Prpq – UFMG, E-


dital 05/2016 - Programa de Auxílio ao Doutores Recém-Contra-
tados (ADRC).

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obras específicas do gênero permanecerem em coleções
privadas, foram os livros que se tornaram os objetos difu-
sores da chamada Ilustração Botânica. Foi entre os anos
de 1750 e 1950 que esse gênero ilustrativo apresentou seu
primeiro momento de grande sofisticação, em parte graças
ao desenvolvimento dos avanços e técnicas gráficas de
reprodução, mas também por ser um período fértil de
descobertas na Biologia (RIX, 2014). Para o autor, a arte
botânica, aquela que desenvolve a pintura das plantas tem
como objetivo, a admiração. A ilustração botânica, por sua
vez, tem propósitos científicos, de notação, e apresenta
em si uma generalidade que ignora supostas imperfeições
e individualidades para representar uma espécie. Apesar
de uma ser uma boa introdução ao problema da repre-
sentação das plantas na arte e ciência, a concepção de
arte para admiração é um conceito demasiadamente res-
trito perante a complexidade do mundo contemporâneo.
Em vista disso, seria interessante observar a produção da
ilustração botânica em sua potencialidade expressiva que
demonstra e enaltece particularidades individuais, ou como
ideológica, em que detalhes são ignorados por um objeti-
vo externo de concepção do belo. Ainda assim, o tema da
representação continuaria sendo o discurso principal des-
sa argumentação.
Visto que não há desacordo que a cor, a forma e a
composição visual das plantas são um objeto de análise,
observação e apreciação artística/científica, os livros de
botânica sempre descreveram os usos das plantas, ou o
local onde crescem. No entanto, na ilustração botânica
dos séculos XIX e parte do XX, não há discussões sobre

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o comportamento dessas. Uma possibilidade da ausência
do discurso sobre o comportamento de uma planta é exa-
tamente na compreensão de que uma estrutura que visual-
mente se distingue como um indivíduo, é, no entanto, uma
rede de estruturas autônomas. Logo, essa particularidade
as transforma em sistemas complexos evolutivos com
uma temporalidade de comportamento distinta da tempo-
ralidade da observação humana, transportando qualquer
representação, observação e mimese de sua anima2, ao
campo do vídeo de longa exposição ou à simulação.
Sobre a simulação das estruturas das plantas, Przemy-
slaw Prusinkiewicz (2004), descreve sobre uma suposta
beleza que as aproxima da matemática, pela simetria en-
contrada nas formas das folhas e nas rotações das pétalas,
além dos arranjos helicoidais de escalas em pinhas. Com
o intuito de ilustrar esse conceito, seu livro trata da criação
de regras que descrevem o desenvolvimento visual das
plantas no tempo e da autossimetria, que é uma referên-
cia direta à medida fractal. Além disso, o autor cita D’Ar-
cy Thompson que declarou que a forma orgânica é uma
ênfase sobre a relação entre crescimento e forma, uma
função matemática sobre o tempo, um evento em tempo e
espaço e não somente uma configuração no espaço. Esse
conceito descrito ecoa Hall´e, Oldeman and Tomlinson

2 Em sentido provocativamente aristotélico, o termo anima aqui


é usado para falar de uma suposta alma que permitiria plantas,
assim como animais a capacidade de ter sensações e de desen-
volver movimentos. Para Aristóteles os vegetais, tendo apenas
as capacidades de nutrição, crescimento e reprodução teriam
uma alma (anima) mais simples.

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(apud PRUSINKIEWICZ 2004), segundo os quais a ideia
de forma implica também na história da forma. Portanto, a
forma do vegetal não é uma representação, é um registro
em si, de um desenvolvimento sistêmico evolutivo. Assim,
esta noção transforma o conceito de ilustração botânica,
mesmo que a argumentação ainda permaneça no campo
estético de discussão sobre o expressivo ou ideológico.
Para o último, o campo ideológico, estão os algoritmos
descritos por Prusinkiewicz, a organização e reconstrução
matemática dos padrões geram estruturas onde particula-
ridades entre as estruturas autônomas como folhas, flores,
e galhos podem ser aleatoriamente distribuídas gerando
indivíduos de plantas muito diferentes uns dos outros, mas
que em si mantêm um elemento comum em sua função
generativa. Consequentemente, esse tipo de estrutura es-
tética se aproxima, talvez, daquilo que Rix (2014) descreve
como ilustração botânica propriamente dita, que se relacio-
nou diretamente com o desenvolvimento da ciência, mas
que aparece de forma expressivamente estética em livros
amplamente comercializados.
Por conseguinte, é possível afirmar que os algoritmos
genéricos são excepcionais na construção de estruturas
formais que relacionam tempo e espaço. Eles expõem a
simulação de um conceito que, necessariamente, implica
no design de comportamento. São estruturas bastante de-
pendentes de sua condição inicial e, portanto, caóticas3 e
sua visualização é diretamente relacionada com estruturas
bi/tridimensionais que resultam em imagens e esculturas

3 Caos, no sentido de sistemas caóticos dinâmicos que implicam em


randomicidade e imprevisibilidade.

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que despertam os sentidos, mas também o conhecimento
como resultado de suas formas inéditas ou quando sim-
ulam possíveis questões científicas de desenvolvimento
complexo. Uma das imagens (figura 1) produzidas na série
Cinquenta Irmãs, de Jon McCormack, mostra como uma
imagem produzida por um algoritmo genético evolutivo
se assemelha ao conceito de uma ilustração botânica em
um mundo contemporâneo. O trabalho de McCormack é
o resultado de uma simulação, de um design, e uma for-
ma técnica/científica. Sendo assim, o trabalho traz consigo
uma discussão política sobre o uso do combustível fóssil
das plantas que existiram a milhões de anos atrás, bem
como uma simulação de um DNA fictício e uma construção
imagética ilustrativa e especificamente, botânica.

Figura 1
Jon McCormack,
Cinquenta Irmãs.
Série de cinquenta
imagens de plantas
digitais evoluídas,
2012.
Imagem Impressa,
100 x 100 cm.
Disponível em: http://
jonmccormack.info/
artworks/fifty-sisters/

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Figura 2
Natalie Alima e Jon
McCormack,
Protótipo de uma
intervenção robótica
usada para alterar
diretamente um
crescimento biológico,
2018.
Impressão 3D.
Disponível em: https://
sensilab.monash.
edu/news-events/syn-
apse-residency-2018/

Enquanto os algoritmos genéticos, evolutivos ou não,


nos transportam para essa concepção de uma ilustração,
outros trabalhos artísticos, que envolvem plantas e com-
putação discutem a expressividade da forma. No trabalho
de Natalie Alima e Jon McCormack (figura 2), é apresen-
tado o resultado da simulação de uma intervenção robótica
em uma estrutura biológica, o resultado é uma escultura tri-
dimensional, mas o processo cria uma estrutura única, cheia
de imperfeições e individualidades. Neste caso, o detalhe da
interação não pode ser descrito de forma matemática, não
pode ser observado por uma função ou apreendido em um
reconhecimento fractal simétrico. Em vista disso, sua assime-
tria é a expressividade de um outro modelo de forma adquirida
pela trajetória espaço, tempo e interação. É um retrato de um
sistema complexo que existiu, em um momento predefinido
e não é, necessariamente, um modelo para outros sistemas.

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Em vista do exposto, não há como distinguir nos dois
trabalhos algo como arte e algo como ilustração botânica,
apesar das proximidades anteriormente expostas. Ambos
são trabalhos que demonstram a complexa relação intrín-
seca ao comportamento das plantas enquanto redes de
estruturas autônomas, uma vez que são estéticas da in-
ter-relação entre o desenvolver, o ambiente e o tempo. Por
isso, o tempo torna-se então um elemento-base, pois não é
o tempo humano e sim um conceito mais diverso de tempo.
A resposta comportamental não está no movimento, como
compreendido no conceito aristotélico, mas no desenvolvi-
mento da forma.

Anima em Plantas

Em De Anima Aristóteles afirma “há duas peculiaridades


distintas por referência às quais caracterizamos a alma: (I)
movimento local e (II) sensoriamento” (apud MANCUSO e
VIOLA, 2013, p 6 – tradução nossa). Segundo os autores,
Aristóteles primeiro considerou plantas como seres sem
alma, inanimados, depois reconsiderou, pois elas podem
se reproduzir. Sendo assim as plantas foram consideradas
seres com almas menos importantes que animais e hu-
manos, um pensamento que influenciou toda a cultura oci-
dental. Na Botânica, é com o aparecimento dos trabalhos
de Carl Linnaeus e Charles Darwin que o comportamento
das plantas passou a ser considerado, com muitas res-
salvas, uma possibilidade. Linnaeus descreveu os órgãos
reprodutivos das plantas e sua capacidade de dormir, en-
quanto Darwin apresentou um trabalho sobre o movimento

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das plantas, especificamente sobre movimentos encontra-
dos na ponta da raiz.
Atualmente, tanto Stefano Mancuso e Alessandra Vi-
ola (2013) quanto Daniel Chamovitz (2012) possuem um
trabalho de mapeamento das estruturas sensitivas e res-
ponsivas de plantas em um processo de analogia com
as faculdades humanas de percepção da luz (visão), da
química (cheiro e gosto), de presença de outras estruturas
(toque) e o mais controverso de todos, do som (escuta).
Existe no texto de ambos os autores a afirmação mútua de
que as plantas são seres divisíveis, são coletivos de es-
truturas equipados com numerosos centros de comando,
que mesmo sendo completamente diferente dos animais
são conscientes de sua existência e do seu ambiente. Con-
sequentemente, manifestam uma forma de inteligência de
enxame que as permitem se comportar não como indivídu-
os, mas como uma multitude, o mesmo comportamento de
uma colônia.
Outra pesquisa atual, de Richard Karban (2015), tam-
bém afirma sobre a habilidade de distinção de um self pre-
sente nas plantas. O autor questiona como elas, a partir
dessa distinção, respondem a sinais de entrada vindos do
ambiente. Seu trabalho descreve como plantas usam uma
comunicação baseada em receptores/emissores químicos
que permite estabelecer coordenação sistêmica entre in-
divíduos. A base do trabalho do autor é uma planta chama-
da sagebrush4 e seu trabalho mostra cientificamente como
esses seres estabelecem comunicação entre diferentes

4 Planta da família das margaridas, nativa dos Estados Unidos.

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plantas. Na pesquisa, Richard Karban descreve que pela
emissão de gases é possível observar que as plantas de
relação genética similar estabelecem melhores métodos
de trocas de informação entre si e que plantas mais jo-
vens são melhores em enviar e receber informações. Além
disso, as plantas emitem gases para inibir a germinação de
competidores de outras espécies. Contudo, Richard Kar-
ban deixa a dúvida se essa estrutura de comunicação entre
entes distintos é um resultado secundário de uma comuni-
cação interna entre a própria estrutura complexa da planta.
Na prática, as pesquisas apresentadas caminham para
uma conclusão comum, que ao considerar uma planta um
sistema complexo5, ou uma multitude, é possível pesquisar
por comportamentos. A complexidade permitiu novas for-
mas de observação das plantas e inclusive, novas áreas da
ciência ainda consideradas inconsolidadas como a chama-
da Neurobiologia das Plantas6. As pesquisas na área da
Neurobiologia que envolvem os cientistas anteriormente
mencionados, e outros, caminham na descrição desses
comportamentos sistêmicos das plantas. Segundo Man-
cuso e Viola (2013), a planta possui um comportamento
de troca de informações internas e externas, muitas vezes
definido como comunicação das plantas. Assim, as infor-

5 A complexidade é a ciência que estuda o comportamento de


entidades autônomas e suas interações, entre si e entre estrutu-
ras externas. É a ciência que descreve desde o comportamento
das redes ao comportamento dos vários sistemas biológicos.
6 Termo retirado do Laboratório Internacional de Neurobiologia
das Plantas LINV, localizado em Florença, Itália (http://www.linv.
org/about-us/)

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mações são transportadas usando sinais elétricos, hidráu-
licos e químicos, três sistemas independentes e comple-
mentares. Consequentemente, as informações internas
da planta não precisam seguir um caminho sempre igual,
podendo ser transmitidas de forma diretamente rápida e
eficiente onde são necessárias. Os meios mais comuns
de transmissão das informações são o ar e a água. Ainda
há outros comportamentos bastante interessantes como o
toque desenvolvido pelas raízes, percepção magnética, es-
colha de uma posição de crescimento e algumas espécies
ainda procuram evitar o encontro de folhagens entre elas.
Também há muitos comportamentos interessantes como
proteção de território e mutualismo dependendo da espécie
estudada. Chamovitz (2012) descreve ainda algo bastan-
te inte- ressante, a capacidade das plantas de reter infor-
mações de eventos passados e requisitar essa informação
em um período posterior para integrar em seu processo de
desenvolvimento. Ele descreve essa memória das plantas
em analogia à memória dos sistemas imunológicos, uma
memória processual associada a habilidade de organismos
de sentir e reagir a estímulos externos e internos, não é
uma memória semântica ou episódica.
Por fim, Mancuso e Viola terminam sua argumentação
afirmando quão difícil é para nós humanos compreender-
mos sistemas vivos que pensam diferente de nós, e que na
verdade, tendemos a apreciar inteligências que são simi-
lares a nossa. Ou seja, a imobilidade e concepção de uma
planta como um ser não senciente7 não são propriedades

7 Capacidade de ter percepções conscientes do que lhe acon-


tece e do que o rodeia.

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inatas das plantas, mas simplesmente uma construção cul-
tural imposta que se originou a partir de Aristóteles. Além
disso, Chamovitz defende que não importa quais similari-
dades se tente encontrar entre plantas e animais, eles são
duas formas únicas de adaptações evolucionárias de vida
multicelular, dependente de suas formas específicas de
células, tecidos e órgãos, qualquer descrição antropomór-
fica sobre plantas é em sua base severamente limitadora.

Por uma Arte Computacional Botânica

A Arte Computacional é “uma forma de arte, que se es-


trutura a partir de quatro referências básicas: uma definição,
uma ontologia, características estéticas e reconhecimen-
to de seu estatuto como arte.” (VENTURELLI, 2017, p 7).
Sendo assim, a Arte Computacional é descrita por Suzete
Venturelli como manifestações artísticas tecnocientíficas
e sociais capazes de fornecer modelos estruturais, meto-
dologias e técnicas de programação. Partindo desse pres-
suposto, uma Arte Computacional Botânica é uma extensão
de um conceito mais amplo, mas uma busca estética para
descrever a possibilidade de um modelo tecnocientífico e
de uma concepção criativa que coloque as plantas como
o ponto de atração das características estéticas a serem
exploradas.
Com o intuito de definir um modelo de Arte Computacio-
nal Botânica, seria então preciso considerar as habilidades
sensitivas, de atuação, bem como a mecânica comunica-
cional das plantas. Em virtude disso, o antropomorfismo
seria um processo indesejado, uma vez que não é capaz

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de compreender o modelo das plantas por suas carac-
terísticas singulares. Consequentemente, uma primeira ob-
servação sobre o modelo proposto é a necessidade de uma
mudança radical do entendimento da dimensão espaço/
tempo. Animais e humanos possuem uma dimensão de
tempo acelerada que sem o uso de alguma tecnologia8,
é incapaz de perceber o modelo de movimento e a forma
de ação (que inclui uma ocupação de espaço) dessas es-
truturas. A partir dessa observação, qualquer construção
de movimento perceptível pelo olho humano seria por si
uma valorização do modelo antropomórfico em detrimento
do séssil9. Talvez seja um pensamento demasiadamente
radical, uma vez que a arte é por si uma forma de manifes-
tação abrangente e questionadora. Contudo, alguma mu-
dança de observação do tempo, de um outro tempo, se faz
fundamental pois é o que fez a cultura ocidental, a partir do
pensamento aristotélico, concluir esses seres como seres
inanimados.
Ainda para este modelo proposto, a estética dessas es-
truturas se volta para a modularização e o controle des-
centralizado. Em um suposto sistema planta, os módulos
são necessariamente independentes e replicáveis. Essa

8 Neste caso a tecnologia é compreendida de forma ampla,


como qualquer estrutura usada para auxiliar o processo percep-
tivo, como por exemplo o registro do movimento das plantas cri-
ados de forma manual e em papel por Charles Darwin.
9 Para a Zoologia, principalmente na Biologia marinha, são
chamados organismos sésseis aqueles que não se deslocam
voluntariamente do seu local de fixação, como por exemplo, al-
gumas espécies de algas e as ostras e corais.

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característica descreve o que conhecemos como cresci-
mento da estrutura, mas que acima de tudo é um movimen-
to que ocorre em um modelo de espaço/tempo não huma-
no. No crescimento, as plantas aumentam e diminuem suas
partes, como as folhas. Em algumas espécies a troca de
folhagens é um movimento intencional de ação evolutiva,
a eliminação das partes é necessária para a manutenção
da estrutura em tempos de estiagem. Essa característica
pode ser transportada? É possível criar estruturas, por
exemplo, robóticas, com partes que se deterioram? Pode-
riam elementos tecnológicos de circuitos serem reutiliza-
dos por outras estruturas? Qual o papel do espectador
dessas estruturas estéticas na reposição e reaproveita-
mento das partes, estariam os espectadores agindo, meta-
foricamente, como insetos em relação a essas propostas?
Como se dariam os mapeamentos de ocupação espacial
das estruturas em crescimento? Além disso, se as plantas
possuem memória processual, como seriam as alterações
evolutivas dos códigos de atuação a partir do ambiente de
vivência?
A botânica se traduz em um ramo da ciência, que as-
sim como outros, fez uso das estruturas estéticas para a
ampliação e discussão de seus próprios modelos concei-
tuais. Essa correspondência entre os modelos científicos
e estéticos gera conhecimentos híbridos, que despertam
os sentidos e discutem as complexas relações do mundo
contemporâneo. A Arte Computacional, por ser um mo-
delo que incorpora a hibridização de várias estruturas tec-
nológicas, possui o potencial de recriar sistemas evoluti-
vos. Nesse sentido, uma Arte Computacional Botânica é

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um argumento filosófico na criação de sistemas estéticos
de um ponto de vista não humano. Uma busca na geração
de conhecimento, sobre esses seres, planta, que são al-
gumas vezes desconsiderados de maiores argumentações
sobre seu comportamento. Plantas são mais que objetos
de uso medicinal e decorativo, seu processo evolutivo e
sua capacidade de adaptação são elementos fundamen-
tais na construção das inter-relações tecnológicas, artísti-
cas e científicas.

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ses. New York: Scientific American/Farrar, Straus and Giroux. 2012.

KARBAN, Richard. Plant Sensing and Communication. Chicago: The


University of Chicago Press. 2015.

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prising History and Science of Plant Intelligence. Translated by Joan
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PRUSINKIEWICZ, Przemyslaw; LINDENMAYER, Aristid. The Algorith-


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RIX, Martyn. A era de ouro da arte botânica. 1a Edição. Tradução


Samira Menezes. São Paulo: Editora Europa, 2014. 256.

VENTURELLI, Suzete. Arte Computacional. Brasília: Editora Universi-


dade de Brasília, 2017.

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15

A MÚSICA SE MOVE?1

Jalver Bethônico
Rafael Sodré de Castro

A música é uma grande aliada da animação. Frequente-


mente ela é utilizada no audiovisual com o mesmo propósito
que sugere a palavra e o ato de animar: conceder alma ou
vida. O sopro vital da música garante unidade, dinamismo
e ritmo à montagem. Podemos compreender a música pelo
movimento que anima? Sentimos muito, mas exceto em
casos específicos, diríamos que não. Se isso desorienta a
percepção, esperamos que seja produtivo e aponte para
um enriquecimento do cinema e do audiovisual em sua
potência de gerar novos modos de pensamento através do
reconhecimento de parâmetros sonoros não lastreados na
lógica visual.

Definição física de movimento, dinâmica e força

O mobilismo de Heráclito considera a realidade sempre


em fluxo. Ao contrário, a escola Eleática, principalmente
em Zenão, afirma que a verdadeira realidade é imutável

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coorde-


nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil
(CAPES) - Código de Financiamento 001.

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e o movimento, ilusório. Aristóteles define a alma dos ani-
mais por duas faculdades: capacidade de discriminar – pelo
pensamento discursivo e pela sensibilidade – e por im-
primir o movimento de deslocação que seria a passagem
de potência a ato. Em português, “movimento” também é
sinônimo de ação e usado para denominar forças culturais
e ideológicas, como em movimento político e movimento
artístico.
Atualmente, Mecânica é a parte da física que analisa o
movimento, as variações de energia e as forças que atuam
sobre um corpo. Quando a atenção se volta à descrição do
movimento abstraindo-se as causas, teremos os estudos
da Cinemática (do grego kinema, “movimento”), mas é a
Dinâmica (do grego, dynamike, significa “forte” e dynamis,
“força”) que dedica-se a compreender as causas do movi-
mento, as forças que provocam ou modificam os movi-
mentos. O termo “dinâmica”, que também tem o sentido
de ação de mudar, seria o conjunto de forças que visam o
desenvolvimento ou o progresso de algo. Assim, diz res-
peito à variação em certas quantidades e, por metáfora,
concerne à evolução de algo: por exemplo, a dinâmica das
relações culturais. Em Música, por sua vez, a dinâmica diz
respeito à gradação de níveis de intensidade de sons.
A segunda lei da mecânica de Newton enuncia que “um
corpo sob a atuação de uma força (ou da resultante de
várias forças) se move de tal forma que a taxa temporal de
variação da quantidade de movimento se iguala à força”
(THORNTON; MARION, 2011, p. 44). Dessa maneira, o
movimento de um corpo ocorre a partir da interação deste
com um (ou mais) corpo(s), ou seja, o corpo varia o seu

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comportamento dependendo do contexto que lhe é apre-
sentado. Esta interação é descrita pelo conceito de força,
uma grandeza que tem a capacidade de intervir no repouso
e/ou no movimento uniforme de um corpo, bem como de
causar uma deformação.
Assim, movimento é a variação de posição espacial
de um objeto em relação a um referencial no decorrer do
tempo devido a forças do seu contexto. Podemos questio-
nar: a partir de qual referencial a música se move? E, sem
uma resposta romântica ou espiritualizada, a partir de qual
força?

O som se move

Para Aristóteles, em De Anima, “aquilo que é capaz de


produzir som é, efetivamente, aquilo que é capaz de mover
o ar, compacto pela sua continuidade, até ao ouvido” (2010,
p.84). O filósofo grego já tinha percebido que as ondas so-
noras se movem. A partir da fonte, ondas de adensamento
e rarefação se propagam até o ouvinte. As forças físicas
que animam um objeto se dissipam pelo meio à sua vol-
ta. As esféricas ondas de pressão sonora se deslocam da
fonte até nossos ouvidos. A velocidade de propagação se
mantém constante no ar, porém ouvimos uma variação do
grave para o agudo quando uma outra fonte vibra mais de-
pressa que a primeira e espalha mais ondas por segundo.
Uma parcela, refletida pelos obstáculos e parcialmente ab-
sorvida, também chega a nós. No espaço, as ondas sono-
ras fazem infinitas trajetórias enquanto perdem qualidade e
energia no tráfego pelo ar. Assim, transtornado pelos seus

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percursos, algo do espírito acústico da fonte vem baixar em
nossos ouvidos.
A música é uma elaboração semiótica sobre a materia-
lidade sonora, uma apreciação sensível que não se apro-
funda na realidade da fisicalidade das ondas mecânicas,
na maior parte das vezes: o ouvinte flana sobre o resultado
estético sem apreciar os fatos da realidade física. Even-
tualmente, em elaborações espaciais da música, a fonte
sonora se move no espaço ou o sinal de áudio soa em dife-
rentes alto-falantes, resultando em obras que se articulam
em função desta mudança espacial.
Também vemos referência ao movimento no nome de
algumas peças, como é o caso de “Movimento Perpétuo”
do compositor e pianista francês Francis Poulanc. Desde
o final do Renascimento, obras predominantemente instru-
mentais que contém mais de uma música ou mais de uma
parte musical, como suítes, sonatas, sinfonias e concer-
tos, têm suas partes classificadas como movimentos. Di-
vidir as músicas em movimentos ajudou a composição, a
interpretação e a compreensão de peças longas ou peças
cujas partes têm grandes contrastes. Entre as seções há
variação, mudança, mas poderíamos assumir que essa di-
ferença pode ser descrita com o conceito físico de movi-
mento? Podemos compreender a música como uma enti-
dade fixada sobre o som. Parodiando o lema do Náutilus
de Júlio Verne, normalmente a música é “imobilis in mobili”,
imóvel no elemento que se move.
Tempo, em física, é inseparável de espaço. É parado-
xal pensar em evento temporal sem movimento (a não ser
que saiamos do senso comum e, como dissemos, nos

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aprofundemos num pensamento acústico do fenômeno
da escuta), mas nos parâmetros musicais dimensionamos
variações de intensidade, duração e frequência que solici-
tam variação de energia. Nenhum deles, no entanto, impli-
ca em correlações espaciais sem um esforço de reflexão.
Há a intervenção de força; há, sim, variação dinâmica –
dentro do conceito de que forças estão em ação-ação – e
talvez seja isso que nos leve a uma confusão perceptual:
não percebemos o movimento do som da fonte ao ouvin-
te, percebemos transformações sonoras que confundimos
com movimento. Na experiência musical, lidamos com mu-
danças que se desenvolvem no eixo temporal. Algo que
se transforma em relação a um estado anterior (ou uma
memória), tem energia, tem dinâmica, parece estar anima-
do e ter movimento. O reconhecimento desta temporalidade
mostra que a música possui uma dimensão em comum com
o movimento, mas provavelmente não compartilha com ele
os mesmos requisitos. Poderíamos chamar de “movimen-
to” qualquer alteração no eixo tempo, que envolva articu-
lação musical. Mas com exceção da variação da origem no
som, a articulação da música não se dá no espaço.

A palavra movendo a música

A música só se manifesta por meio da nossa percepção,


que por sua vez se relaciona ao processo gestáltico. Agre-
gamos fragmentos perceptuais em unidades: é mais eco-
nômico primeiro pensar no todo do que atentar para os
detalhes. Percebemos uma coerência entre os materiais
sonoros do fenômeno musical. Se eu não relaciono um som

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com o outro (ou um som com todos os outros) eu tenho
grandes chances de não ouvir a música, produto de uma
lógica musical dada. Muitos podem produzir sons, mas nem
todos perceberão a música. A nossa percepção gestáltica
compreende a unidade entre as notas tocadas por um
instrumento. Percebe a semelhança, a sequencialidade e
a coerência tonal e concebe uma linha melódica onde só
existem pontos ou tracejados. Os sons podem apresentar
suas características segundo diversos aspectos: agudo,
grave, forte, fraco, longo, curto. Mas vamos aglutinando-os
em estruturas nas quais vemos rápido, lento, crescendo,
decrescendo, acelerando, ralentando.
Movimento é apenas uma versão dos fatos, um modo
de interpretar o que ocorre. As notas saem uma a uma ou
simultaneamente do piano, não há um objeto sonoro que
varia ou se transforma. São 88 notas possíveis, ocupan-
do um determinado lugar no tempo conforme são tocadas.
Eventualmente, em instrumentos polifônicos como o piano,
a duração dos sons pode produzir sobreposição do início
de um enquanto outro não terminou. Outros instrumentos
musicais permitem a variação frequencial que surge da
transformação contínua da nota anterior, como ocorre em
um Theremin. Perceber isso como uma linha ou um movi-
mento é uma simplificação gestáltica, uma economia men-
tal que reúne elementos (às vezes dezenas de elementos)
e processos numa unidade. Mas nada disso é linha: perce-
ber a continuidade esconde os passos e os saltos.
O recorte do objeto “música” é uma diferenciação arbi-
trária. Nós selecionamos exclusivamente algumas partes
da experiência de escuta pra chamar de música (Música

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não é o som, é o que percebemos no som), numa deli-
mitação que não é universal ou homogênea. Indubitavel-
mente, é um recorte mnemônico: uma melodia de 16 com-
passos tocada em apenas um segundo ou em um mês
inteiro não viabiliza a compreensão do material musical. É
preciso uma temporalidade que preserve a inteligibilidade
do gesto musical, propiciando a fruição do ouvinte, que re-
constrói mentalmente os fragmentos sonoros a partir da
teia de relações percebida. Se eu não teço relações, não
escuto a música.
Parte da liga que permite as conexões sonoras do dis-
curso musical é um aglutinador conceitual e terminológi-
co: entendemos certos aspectos da música pensando que
ela se move. No entanto, existe uma musicalidade outra
atrás do pensamento cinemático. Ao nomearmos os even-
tos que encontramos, na falta de palavra melhor, serve a
apropriação metafórica. Se tem algo numa sensação que é
semelhante a outra percepção, servimo-nos das mesmas
palavras para ambos. Nossa compreensão é baseada em
conceitos e denominações que estabelecem (ou forjam)
uma rede de relações. Nós substituímos a coisa por uma
palavra-território que engendra um campo de conexões.
Muitos termos técnicos são metafóricos, como “fazer um
take” (“tomar” do real? “Levar” como um sequestrador que
subtrai do contexto?). Essa compreensão do mundo em
termos de metáfora pode levar a enganos. Lakoff e John-
son (2002) apontam que a metáfora não é uma característi-
ca apenas da linguagem, mas também do pensamento, da
maneira que construímos relações com o mundo a partir de
concepções metafóricas. Só é possível pensar que “somos

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capazes de desperdiçar ou ganhar tempo”, por exemplo, no
caso de sermos orientados por um pensamento metafórico
que concebe o tempo como se fosse dinheiro. Se a nossa
concepção de tempo fosse orientada a partir da metáfo-
ra de um rio, nós provavelmente estabeleceríamos uma
lógica completamente distinta. As palavras quando viajam
levam na mala os pertences das moradas antigas e, ao
chegar, mudam a decoração dos novos ambientes, cobrem
cores de territórios lisos com quadros de outras paisagens.
A ajuda terminológica começa a atrapalhar: desconheço o
que podia conhecer porque, antes, reconheço enganado.
Podemos imaginar as variações musicais como num
arabesco, como apresentou o esteta do século XIX, Edu-
ard Hanslick:

Vemos linhas ondulantes, inclinando-se aqui suave-


mente, elevando-se além atrevidas, encontrando-se
e separando-se, correspondendo-se em arcos
grandes ou pequenos, aparentemente incomensu-
ráveis, […]. Como surpreendem [...] as linhas gros-
sas e finas que se perseguem, se elevam de uma
pequena curvatura a magnificente altura, recaindo
em seguida, ampliando-se, contraindo-se em en-
genhosa alternância de repouso e tensão! [...] Ima-
ginemos sobretudo este arabesco vivo como eflúvio
activo de um espírito artístico, que verte incessan-
temente toda a plenitude da sua fantasia nas veias
deste movimento (HANSLICK, 2011, p.41).

Ou poderíamos vislumbrar, ainda com Hanslick, um


sofisticado caleidoscópio, “produzindo formas e cores be-

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las em constante e progressiva alternância, ora em tran-
sição suave, ora em contraste pronunciado”. É fidedigna
a impressão de que a música tem colorido, linhas e mo-
vimento. Mas o único e exclusivo material da música são
formas sonoras em variação2.
Quando se pretende proceder em pensamentos à
“elevação de formas visuais à música, e se incorporam
os meios de uma arte nos efeitos da outra” (idem, p.42),
demonstra-se, no entanto, que os aspectos formais de am-
bos os fenômenos têm semelhança, não que se fundam
totalmente em base idêntica (apesar do que quer Hanslick,
como podemos verificar nos exemplos dados). A expressão
humana:

encontra na música uma realização inteiramente pe-


culiar. […] A música é [...] quadro cujo objecto não
podemos expressar em palavras e submeter aos
nossos conceitos. [...] Há um conhecimento profun-
do em aludir também a ‘pensamentos’ nas obras so-
noras (HANSLICK, 2011, p.41).

Diante desta especificidade, constitui uma dificuldade


extrema descrever o que é especificamente musical, so-
bretudo porque a música não possui modelo referencial na
natureza e, portanto, só pode aludir-se por meio de um dis-
curso técnico ou poético. Para Hanslick, “A música pretende

2 Replicando Hanslick, para quem “O único e exclusivo con-


teúdo e objecto da música são formas sonoras em movimento”
(HANSLICK, 2011, p. 41).

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ser apreendida como música, e só pode compreender-se a
partir dela própria, fruir-se em si mesma”. Decerto a capa
tradutora das palavras não resguarda as mesmas potên-
cias da escuta de uma obra musical. A nomeação visual
da matéria sonora nubla a especificidade e a possibilidade
de ampliar nosso conhecimento desta outra parcela do uni-
verso, pertinente a uma sintaxe dos sons. Falar de movi-
mento musical, assim, é estratégia terminológica que atua
a partir da falta de outras ferramentas semióticas: as des-
crições visuais, metafóricas, paráfrases de uma obra mu-
sical são desvios, tentativas de uma descrição baseadas
em critérios da imagem que carregam sentidos que fogem
da especificidade sonora. O elementar da música, o som e
sua variação, produz cadeias de signos que vão acionar as
similaridades em territórios dominados e que são chama-
das pelo nome.
É possível que as pessoas concordem que uma peça
tem mais movimento do que outra. Um trecho de música
com mais “movimento”, seria uma combinação colorida
de ações com grande variação de alturas e durações em
andamento rápido, por exemplo. Fica a impressão que a
música sempre se move ou que o desenvolvimento sonoro
inexoravelmente produz efeito de movimento (e assim
serve aos parâmetros descritivos da imagem). Apesar dos
argumentos que a música não se move, sustenta-se uma
convicção digna de Galileu: “E pur si muove”3.

3 “E pur si muove” é uma frase atribuída a Galileu Galilei pe-


rante o tribunal da Inquisição, sussurrada logo depois de renegar
que a Terra se movia em torno do Sol: no entanto ela se move.

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A hierarquia da visualidade na nossa compreensão de
mundo passa pela palavra escrita e encontra-se com fun-
damentos da objetivação racional – substituímos a per-
cepção abstrata e subjetiva do som por expressões ori-
undas da consistência empírica da materialidade visível.
E confundimos transformações musicais com movimento:
são transformações no tempo, mas não movimento. O que
buscamos é apontar para relações escondidas por trás de
certas compreensões da música como espaço, alertar para
enganos fundamentados na compreensão musical basea-
da em uma concepção espacial.
Fazemos conexões entre percepções naturalmente. Os
ícones apontam interpretantes sobre os quais o raciocínio
dedutivo aplica uma regra comum: uma vez que encontro
uma semelhança (mesmo que esteja em mim), posso dar
o mesmo nome e aplicar o mesmo conceito. E visualizá-los
pela terminologia os ancora em um universo conceitual limi-
tador, apesar de didático, que dificulta as possibilidades
de reconhecer as diferenças e as especificidades. Difícil
separar seguramente dos termos espaciais os seus pen-
duricalhos semióticos, que conectam um termo com ideias
visuais menos úteis para a música, das relações metafóri-
cas que tecem entrelaçamentos poéticos numa pluralidade
sinestésica.
O que fazer se a palavra “imagem”, desde sua origem
latina imago, tem ligação com representação visual? Con-
cebemos a imaginação sem nos liberar de uma fundamen-
tação visual (aos alunos, parece paradoxal quando fala-
mos de uma imaginação sonora). O jogo semiótico entre
palavra, som, sensibilidade e reflexão pode, sim, elaborar

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outras linhas de força e promover outras individuações na
elaboração musical. Porém, se concebemos as mudanças
como elementos espaciais, se percebemos a música em
função da conceituação visual, estamos decalcando uma
percepção sobre outra. Falar de som em termos visuais
tem seu valor informativo e comunicacional.
Entretanto, se percebemos que a música não se move,
mas se transforma em mais vetores, logramos um universo
de perceptos e afectos (cf. DELEUZE; GUATTARI, 1992).
Quando a música se distancia da linearidade temporal, da
perspectiva harmônica, da repetição formal e da hierarquia
de um centro tonal, ela solicita um outro linguajar. Há, se-
gundo Deleuze (1985), uma causalidade num pensamento
de imagem-movimento que limita a pluralidade das decor-
rências resultante dos múltiplos vetores temporais. Quere-
mos criar signos, revelar outras sensações humanas, numa
busca de ampliação das poéticas em torno de heteroge-
neidade e complexidade. Não podemos, portanto, reivindi-
car da música o mesmo comportamento temporal-espacial
da imagem. Existem aspectos da realidade, do universo
e da sensibilidade que a visualidade não alcança. São in-
visíveis, mas audíveis.

Música para falar com as e-moções

A música comumente é conectada à subjetividade (en-


quanto a imagem tem apelo objetivo – vide a dificuldade
dos alunos em compreender a abstração na arte visu-
al). Mas as combinações sonoras não estão necessaria-
mente ligadas a sentimentos e não podem representá-los

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inequivocamente sem o auxílio de elementos extramusicais.
A música, dessa forma, não pode descrever a alegria, mas
apenas uma dinâmica que pode ocorrer na alegria. Ainda
com Hanslick, “a asseveração dos teóricos de que a músi-
ca não pode representar conceitos abstratos é supérflua,
pois nenhuma arte de tal é capaz”.
É evidente que as semelhanças estéticas podem ser o
conteúdo da encarnação artística não figurativa. “Existe, no
plano estético, uma certa substituição de uma impressão
sensorial por outra” (HANSLICK, 2011, p. 31). Entre o
movimento no espaço e no tempo, a direção da linha, a
estrutura de um objeto e variação da altura, do timbre e
da intensidade de um som, pode imperar uma analogia.
A molecagem da nossa mente é reconhecer afetos seme-
lhantes em experiências sensoriais diferentes. Relacionar
os vetores dinâmicos (contrastes, linhas...) da imagem
ou da arquitetura com as variações temporais da música
é uma economia mental que exclui ou ignora os atributos
próprios de um fenômeno para submetê-lo a regras de um
outro.
Vamos conectar uma característica dinâmica da música
– nós não dissemos movimento e nem o excluímos – a uma
característica que nossa cultura conecta a algum sentimen-
to. A semelhança ou a convenção farão as aproximações
que parecem adequadas. Por exemplo, perceber grande
número de eventos na música, repetindo-se em ciclos que
a cultura denomina “samba” pode remeter à alegria por
associações feitas pelo ouvinte. Apreende-se como “movi-
mento” também o crescendo e o decrescendo de um som
ou acorde individual. O termo “emoção” tem a etimologia

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conectada à exteriorização (E) de um movimento (moção).
A dinâmica que a música tem em comum com os estados
de ânimo e que consegue configurar de um modo criativo
em mil matizes e contrastes vai de encontro às emoções:
o tempo na música parece revelar o movimento de uma
vida interior, sentimentos/pensamentos/sensações que se
mostram no exterior.
A música pode conter uma dinâmica que comparamos
com um aspecto dinâmico dos afetos. Mas a dinâmica, ele-
mento comum das artes, não é uma representação figurati-
va de sentimentos. O que é que a música pode representar
dos sentimentos, se não expõe o seu conteúdo? “Só o que
neles há de dinâmico”, responde Hanslick (2011, p. 23).
“As moções anímicas [...] não são objecto de encarnação
artística, porque esta não pode proceder sem a pergunta:
Que é que se move ou é movido?”
Assim, a moção anímica que aponta determinados sen-
timentos não tem uma unívoca segurança semiótica em
sua potência icônica. Alguns lastros convencionais da cul-
tura amarram etiquetas interpretativas aos elementos mu-
sicais, a gramaticalização dá segurança coercitiva às insti-
tuições que desejam capitalizar em cima dos sentimentos
mais fáceis. Uma vez que interpretar com liberdade é difícil
e arriscado, propor liberdade é lidar com o medo do novo,
substituir o entretenimento pelo pensamento. O repertório
dos afetos está limitado ao território estriado da cultura. Se
abrirmos mãos dos parâmetros espaciais para pensar em
termos da música sem movimento, talvez consigamos uma
desterritorialização que abra espaço para outra elaboração
mental, capaz de ampliar nosso repertório de sensações

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e conceitos que farão caber outros universos em nós. A
Música é construção e-mocional que não se move, mas
existe sobre uma matéria que se move.

Música fala de tempo

Se não é movimento, como é o tempo da dinâmica da


música? Para nós, viver e perceber flui no tempo. A tempo-
ralidade existe numa forma de transcorrer, mas o que per-
cebemos do tempo são eventos do meu entorno no tem-
po. O tempo também é vida, limite, aventura e desventura
da música. O som nasce e morre, mostrando-se pedaço
por pedaço no presente, mas vive na expectativa e na
memória. A música termina, não se destrói, como se, sem
visualidade, fosse feita de tempo. Existe quando existe: não
existe desde o começo, vai ocorrendo à medida que vai se
desfazendo. Uma clareza efetiva sobre suas relações só
pode ser alcançada quando chega ao seu final, de maneira
que tudo que precede é provisório: a forma se fecha quan-
do não há mais música (PIANA, 2001).
O som nasce do silêncio, da indiferença até se fazer
presente, expectativa e, então, diluir-se em memória. Um
processo de vir-de-indo / indo-logo-para. A música é um
avançar-ultrapassando, cheio de expectativa e perspec-
tiva. Integra o agora com a memória em uma tensão de
prosseguimento: o que pousa no presente é arrastado para
frente. Tem força nesta direção, mas não tem movimento,
de maneira que sua dinâmica mais fundamental não tem
referencial no espaço, é um vir-passar-ir no tempo. En-
tretanto, seguimos e perseguimos ativamente um fluxo

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sonoro de vetores (mais do que meramente prosseguir). A
música se apresenta chamando e se faz seguir. A escuta
por si só é tensa, é atraída pela tensão temporal do ouvir
(PIANA, 2001).
Temos indicações sintáticas e semânticas (hábitos) que
nos fazem avançar, ultrapassando a ocorrência sonora. As
partes sucessivas com determinadas extensões tempo-
rais e delimitações materiais articuladas em tensões e dis-
tensões, impulso e queda, causa e consequência. O con-
tínuo fracionado pelo descontínuo, como em um colar de
pérolas (Idem). Mas dependendo da complexidade musical
os vetores temporais se multiplicam, o colar vira broche, as
relações implementam dobraduras no tempo que conec-
tam passado, presente e futuro. Assim, o jogo musical de
objetos temporais – em que transformações são percebi-
das como continuidade e cujas regras básicas são a simul-
taneidade e a sucessão, na forma de repetição ou desen-
volvimento – pode, além disso, apontar temporalidades
rizomáticas que flexionam o fluxo em desterritorialização,
territorialização e reterritorialização de nexos temporais.
O tempo como território estriado da causalidade ra-
cional só é ultrapassado pela escuta até a reconstrução
da continuidade temporal e da unidade estrutural. Os es-
quemas temporais clássicos do ritmo contínuo e do centro
tonal são prisão para as possibilidades vetoriais do tempo.
Ainda temos outros vetores: o desenvolvimento não orien-
tado, sem causa/efeito, com outras conexões, só impulso,
energia, sem percurso, sem linha. Se pensamos estrita-
mente em termos dos vetores da cinemática newtoniana,
como vamos cogitar a pluralidade da mecânica quântica

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(superposição, emaranhamento, incerteza)?

Imagem e som: movimento e transformação

O audiovisual é um bloco de temporalidades capaz de


desencadear afecções e percepções, levando o homem a
construir novas relações com o mundo. O cinema é ca-
paz de projetar signos em devir e abrir linhas de fuga para
a vidência (no sentido profético, que infelizmente não tem
correlato sonoro) e o descobrimento de mundos a partir
de imagens visuais e sonoras. O audiovisual (e não só o
cinema) seria “um dispositivo com energia capaz de produ-
zir rupturas da ordem simbólica dominante e transformar o
próprio conhecimento” (GOUVEIA, 2014, p.3).
Neste regime que considera o objeto representado como
independente da sua imagem, uma realidade preexistente
ao seu signo, tudo está selecionado para criar a sensação
de verossimilhança. A narração, ainda que fictícia, tem
pretensões de verdade. O espaço e o tempo adequam-se
a uma lógica de ações e reações legitimadas pelo senso
comum, em uma narrativa linear que obedece ao modelo
da recognição. De modo a não distrair o espectador, sons
coadunam com a imagem na sincronia e no movimento
contínuo da chamada montagem invisível.
Não obstante, a montagem mudou de sentido, ganhou
nova função: em vez de ter por objeto as imagens-movi-
mento, das quais ela retira uma imagem indireta do tem-
po, tem por objeto a imagem-tempo, e extrai desta, as
relações de tempo e não de realidade. Livre do mecanismo
sensório-motor e capaz de estabelecer outras imagens

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do tempo, os cortes são irracionais, não contínuos, deslo-
cados dos princípios de continuidade. A montagem trans-
formou-se em “mostragem” (LAPOUJADE apud GPESC,
2010). Segundo Deleuze, a ideia de imagem-movimento se
apoia em uma independência do objeto em relação à ima-
gem, em uma configuração que evidencia uma “realidade
supostamente preexistente” (2005, p. 156). A imagem-tem-
po, por sua vez, “não pressupõe uma verdade existente
e, sim, é capaz de lançar novos signos, novas formas de
pensar e entender o mundo” (GOUVEIA, 2014, p.2). A ima-
gem-tempo torna evidente a ruptura e uma série de crises,
entre elas a da representação que abandona a narrativi-
dade em favor do “jorro” de imagens e sons, que promove
substituição do modelo de verdade pelas potências do fal-
so, do ambíguo e do erro.
Enquanto a imagem-movimento aponta para o natural,
a linha e a prosa, a imagem-tempo sugere o humano, o
fragmento e a palavra-território. “O plano – unidade narra-
tiva e estrutura básica da montagem – deixa de ser uma
categoria espacial para tornar-se uma categoria temporal”
aponta Gouveia. Na montagem, o cinema alcançaria a du-
ração, “uma dimensão qualitativa do tempo […], recortaria
a realidade, amplificando o que ela possui de complexo.
A realidade densa, contraditória, onde o olhar metafísico
(ontológico, natureza do ser além dos sentidos) que confor-
ta e reduz o caos seria inútil” como lembra Gouveia. Uma
imagem-tempo apresenta diretamente o tempo mostrando
a cisão do tempo entre passado, presente e futuro, não
de uma forma sucessiva de dimensões temporais. Deleuze
abre a possibilidade de uma apresentação direta do tempo

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em devir, podendo se atualizar dentro de vários vetores.
Assim, a imagem-cristal de Deleuze é a imagem-tempo
direta que não decorre do movimento nem é controlada por
ele. Seria o extrato mais refinado do regime da imagem-tem-
po articulado a imagens ópticas e sonoras puras. Numa in-
versão da tradicional relação entre movimento e tempo, na
imagem-cristal, o tempo manipula o próprio movimento em
vez de o movimento construir a duração. A “Imagem-cristal”
traria a força de sua singularidade, a apresentação cria o
seu objeto, um objeto que não pretende ser representação
da imagem-mundo e revelaria fundamentos ocultos do
tempo, traços de presentes que passam, de passados que
se conservam, premências de futuro num único fragmento
audiovisual. O virtual se conserva e coexiste com a sua
imagem atual como pontas de presente e extensões de
passado virtuais. Mesmo exposta como um contínuo que
engloba todos os elementos sonoros (DELEUZE, 2005,
p. 285), a banda sonora pode apresentar signos puros, e-
lementos que por si representam a sua forma sem metá-
foras. Nas situações sonoras puras o som ganha a vazão
do seu pensamento no aspecto da disjunção e dissociação
do visual com o sonoro, como cita o teórico:

O que constitui a imagem audiovisual é uma dis-


junção, uma dissociação do visual e do sonoro, am-
bos autônomos, mas ao mesmo tempo uma relação
incomensurável ou um ‘irracional’ que liga um ao out-
ro, sem formarem um todo, sem se proporem o mes-
mo todo. É uma resistência oriunda do arruinamento
do esquema sensório-motor, e que separa a ima-
gem visual e a imagem sonora, mas integrando-as,

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mais ainda, numa relação não totalizável [num devir]
(DELEUZE, 2005, p.303).

Cores e sons substituem, suprimem e recriam o próprio


objeto. O filme nos oferece situações óticas e sonoras pu-
ras, nos permitindo também fugir da realidade posta pela
narração e viajar para os universos do onírico e do irracional.
Signos sonoros e óticos puros são reveladores do discurso
poético, não sendo mais o representado ou o reproduzido,
mas imagem-tempo. Outros vetores temporais, desco-
nexos, “serão outras formas, mais devires que histórias”
(DELEUZE, 1990, p. 77). Temos assim a emergência de
outras formas de pensar condicionada por experiências óti-
cas e sonoras puras: escuta sem débito com o olhar.

Considerações finais: contribuição estética de uma


música mutável

Se pensar música como um ser movente é generoso


para um pensamento em Mickeymousing, não é gene-
roso para o reconhecimento das matérias de expressão
próprias da música. Como apontamos, utilizar a metáfora
visual para nomear, conceituar e compreender o fenômeno
musical consome ou contamina a possibilidade de com-
preendermos a poética da escuta dentro de uma perspec-
tiva temporal mais rica. Os princípios da imagem-tempo de
Deleuze fundamentam uma possibilidade de elaboração
audiovisual propícia para o enriquecimento do homem.
A pureza dos signos sonoros, cogitar uma música sem
movimento, cuja transformação não se dá no espaço, mas

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no tempo, pode privilegiar outras constituições de pensa-
mento e sensibilidade, irredutíveis aos signos linguísticos.
É justamente dessa junção heterogênea entre ver e ou-
vir, por puros signos sonoros e visuais, que podemos cons-
tituir outra forma dos saberes numa sociedade, bem como
um novo jogo de sentidos através do quais se estabeleça
uma diferença em nossa relação com o mundo, com os
outros e com nós mesmos.

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Referências bibliográficas

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______. GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Editora


34, 1992.

GOUVEIA, Maria Alice Lucena de. A Imagem-tempo de Gilles Deleuze.


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16

CONCEITUAÇÃO E RELAÇÕES
ENTRE ESPAÇOS AUDIOVISUAIS

Fabio Wanderley Janhan Sousa

Este capítulo visa apresentar conceitos relacionados à


utilização do termo “espaço” na área de música e traçar
um paralelo entre esses conceitos e os observados nas
artes visuais. Procura-se estabelecer possíveis relações
entre eles e apontar alguns paradoxos e possíveis trans-
formações entre os diversos conceitos encontrados na bi-
bliografia estudada.
No início da minha pesquisa para o doutorado em Músi-
ca-Sonologia, direcionada a estética do áudio tridimensio-
nal1 para Realidade Virtual, me deparei com cerca de 250
terminologias relacionadas ao espaço, utilizadas por au-
tores, compositores de música eletroacústica, videomúsi-
ca, visual music ou a denominada música eletroacústica
audiovisual, adotada por Andrew Hill.
Observamos com frequência, o uso do termo espaço,
seja por artistas visuais ou músicos e, principalmente, por
artistas transdisciplinares. Este conceito difere não somen-
te de um autor para o outro, mas também na maneira como
cada autor faz uso de termos similares para descrever

1 Entende-se aqui por áudio tridimensional aquele que se apre-


senta ao ouvinte com conteúdo nas três dimensões físicas (ho-
rizontal, vertical e de profundidade), seja através de arranjos de
alto-falantes ou fones de ouvido.

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percepções diferentes que envolvem tais conceitos. Elu-
cidar as diferenças entre as conceituações encontradas
se tornou essencial para direcionar análises estéticas e/ou
semânticas de uma obra. Apontar paradoxos, assim como
possibilidades de transformações entre os diversos tipos
de espaço, nos permite explorar abordagens críticas e criar
relações que desempenhem um papel estético no proces-
so de criação.

Conceituação sintática vs. semântica

A primeira diferenciação necessária nesse percurso diz


respeito ao que chamamos de uma conceituação semân-
tica, ou seja, relacionada ao significado do material, e
uma conceituação sintática, relacionada ao material em si.
Talvez o exemplo mais simples de uma análise do mate-
rial visual do ponto de vista sintático possa ser observado
quando comparamos uma pintura a uma escultura: obvia-
mente a pintura nos apresenta um espaço bidimensional
enquanto a escultura um espaço tridimensional. Por outro
lado, quando observamos dois quadros: Composição em
vermelho, amarelo e azul (1929) de Mondrian e As Meni-
nas (1656) de Diego Velázquez, podemos dizer que ambos
apresentam um mesmo espaço do ponto de vista sintáti-
co, ou seja, são obras que se apresentam ao espectador
através de uma superfície bidimensional, apesar de a pri-
meira delas medir aproximadamente 60 cm X 60 cm, e a
segunda 3,18m X 2,76 m. Apesar dessa semelhança da
apresentação sobre um material bidimensional, podemos
observar também que a obra de Velázquez nos oferece

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algo mais no que diz respeito ao que percebemos como
espaço. Através da utilização do que denominamos de
perspectiva, o autor nos transmite também uma certa pro-
fundidade, uma terceira dimensão que não está presente
na materialidade da obra, mas sim na nossa interpretação
dela, no domínio semântico que percebemos devido ao
nosso conhecimento do mundo, das proporções dos obje-
tos e das relações entre eles.
Quando entramos na instalação sonora Promenade de
Dominique Gonzalez-Foester (Inhotim Collection, 2007),
somos envolvidos pelo som de chuva no telhado repro-
duzido através de 18 alto-falantes instalados no teto de
uma sala extremamente reverberante. Essa percepção de
envolvimento é observada do ponto de vista sintático, ou
seja, da materialidade do que nos é apresentado. Já se
ouvirmos o mesmo som através de fones de ouvido, po-
demos até ter uma sensação semelhante, no entanto, não
mais em um nível sintático, mas sim em um nível semân-
tico, que vai depender da interpretação de cada indivíduo.
Uns poderão dizer que se sentem completamente imersos
naquele som, outros dirão que aquele ruído constante é um
simples incômodo...
Os sistemas de reprodução de áudio se desenvolveram
para apresentar ao ouvinte cada vez mais possibilidades
de exploração desse espaço do ponto de vista sintático.
A exploração desse espaço reproduzido pelos alto-falan-
tes, no entanto, não é completamente destituída de signifi-
cados. A escolha, feita pelo compositor ou artista sonoro,
em posicionar uma fonte sonora em determinado local, ou
desenvolver uma determinada trajetória no espaço de um

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objeto sonoro, não é aleatória, mas cria relações com ou-
tros movimentos que passam a ter uma expressão própria.
Apesar de diferenciarmos exploração sintática e semân-
tica dos diversos conceitos de espaço, eles não são exclu-
dentes. Pelo contrário, quanto mais elaborada for a obra,
mais difícil será distinguir entre esses dois níveis. Annette
Vande Gorne (2002), em seu trabalho sobre espaciali-
zação sonora como performance de música eletroacústica,
estabelece 15 gestos espaciais tecnicamente descritos do
ponto de vista de como podem ser realizados e ainda de-
termina um significado para cada um, sendo a escolha do
performer direcionada ao como, quando e por que utilizar
determinado gesto de espacialização dependendo do mo-
mento da obra que estiver sendo interpretada.
Outros autores exploram essa mesma dicotomia, no
entanto utilizando uma outra nomenclatura. Elleström,
ao dissertar sobre intermidialidade, adota a terminologia
modalidades pré-semióticas e modalidades semióticas
(ELLESTRÖM, 2017, p.61). Já Chion, como bom apren-
diz de Schaeffer, adota a terminologia “escuta reduzida”
e “escuta semântica”. A escuta semântica, envolve a de-
codificação da linguagem, e a escuta reduzida, se refere
à escuta no som por si mesmo, independente de causa
ou significado (CHION, 1994, p.222). John Coulter tam-
bém discorre sobre esses modos de escuta e argumenta
que tanto os sons quanto as imagens podem possuir um
potencial duplo: o abstrato e o concreto (ou referencial) e
que essas qualidades formam a base dos modos de escu-
ta propostos por Chion e Schaefer (COULTER, 2007, p.4).
François Bayle (BAYLE, 1986) desenvolve um conceito do

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som como objeto de linguagem e em sua descrição do es-
paço nos direciona à distinção entre dois níveis de obser-
vação: o físico e mensurável, e o fenomenológico.

Conceitos de espaço

O termo “espaço” surge na música assim como em ou-


tras artes, com diversos significados e é aplicado às situações
mais diversas. Na música podemos exemplificar essa diver-
sidade quando o
intérprete opta por
gradualmente dar
mais espaço entre
as notas, realizan-
do um ralentando;
quando o músico
se adapta à sala e
opta por tocar mais
Fig. 1: Integração entre os quatro
principais conceitos de espaço em música.
lento em função
da ressonância do
espaço; quando todo o espaço de frequências audíveis é
utilizado em um clímax de uma orquestra ou de uma obra
eletroacústica; quando um instrumentista tem orientações
de iniciar sua performance a partir de um ponto da sala
e percorrer uma trajetória específica no espaço físico da
mesma ao longo da obra. Apesar das mais diversas situ-
ações de aplicação do termo na performance com instru-
mentos acústicos, podemos observar uma expansão con-
siderável das possibilidades de conceituação e exploração
do termo na reprodução de obras a partir de alto-falantes.

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Com o objetivo de entender e agrupar a terminologia ado-
tada pelos diversos autores e compositores conseguimos
reduzir o uso do termo em quatro grandes categorias que
se somam e são percebidas de forma simultânea na maior
parte das experiências musicais.
O que denominamos de espaço externo, segue o
desenvolvido por Vaggione (1996, p.4), e diz respeito ao
local onde a obra está sendo executada, imprimindo em
uma obra suas características próprias e a modificando an-
tes de chegar ao ouvinte, enquanto que o espaço interno
é aquele representado pela própria obra, se constituindo
de sons que possuem características espaciais individuais
e que se relacionam entre si e ao longo da mesma. Como
exemplo da influência do espaço externo podemos ima-
ginar uma obra composta no estúdio do compositor com
dimensões reduzidas, o que o leva a tomar decisões rela-
cionadas a quantidade de reverberação simulada em de-
terminado trecho que quando tocada em um grande salão,
com maior reverberação natural do que seu estúdio, ele
irá perceber a necessidade de diminuir aquela quantidade
de reverberação, por exemplo. Smalley (SMALLEY, 1997,
p.122), descreve sobre essa influência do que denomina-
mos de espaço externo na percepção de uma obra musical
e denomina tais espaços de espaço composto (interno) e
espaço de escuta (externo).
Essa dicotomia entre espaço interno e externo também
é mencionada por Chion ao se referir à música concreta
de Schaeffer que define o espaço interno como aquele ine-
rente

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ao próprio trabalho, fixado em um suporte de
gravação (caracterizado pelos planos de presença
dos diferentes sons, pela distribuição fixa ou variável
dos elementos sonoros nas diferentes faixas, pelos
graus e qualidades diversas de reverberação ou de
sua ausência.(CHION, 1998).

E, por outro lado, o espaço externo, como aquele

relacionado às condições particulares de escuta do


trabalho: acústica do lugar de escuta, estúdio ou
sala; número, natureza e layout dos alto-falantes;
uso ou não de filtros ou corretores no sistema de
difusão; intervenção no controle do som seja ele a-
través de um intérprete ou de um sistema automático
de difusão.(CHION, 1998).

No espaço interno de uma obra observamos os deno-


minados espaços intrínseco e extrínseco. Enquanto o in-
trínseco pode ser associado a elementos próprios e ine-
rentes ao objeto sonoro em si, segundo Schaeffer (CHION,
1983, p.117), o espaço extrínseco nos é revelado mais co-
mumente através de um sistema de reprodução de áudio,
seja ele monofônico ou multicanal, ou através do material
ao qual um objeto visual é apresentado ao observador (pin-
tura x escultura). A exploração do espaço extrínseco tem
permeado a história da música sem que tenha sido alvo
de muitas atenções por um período considerável. Quando
ouvimos um responsório religioso no qual as duas vozes
se posicionam em lados opostos de uma catedral, obser-
vamos a exploração do extrínseco. Quando o compositor

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Thomas Tallis opta por espalhar seu coro de 40 vozes em
torno do público, como o realizado eletronicamente na ins-
talação sonora da artista canadense Janet Cardiff, deno-
minada Forty Part Motet2 (Inhotim Collection, 2001), esta-
mos experimentando a exploração do espaço extrínseco.
Com a introdução dos alto-falantes na produção mu-
sical, as composições eletroacústicas ocupam esse lugar
de experimentação onde se você quer posicionar uma fon-
te sonora em algum lugar, basta colocar um alto-falante
naquele local e direcionar o sinal da fonte para ele, ou criar
uma imagem fantasma ao dividir o sinal de uma fonte so-
nora entre dois ou mais alto-falantes.
Nas artes pictóricas podemos apontar a gravurista e e-
ducadora Fayga Ostrower como uma das autoras que sis-
tematizou a descrição do espaço visual e suas diversas
dimensões. Segundo ela, “se fôssemos perguntar de quan-
tos vocábulos se constitui a linguagem visual, de quantos
elementos expressivos, a resposta seria: de cinco. São cin-
co apenas: a linha, a superfície, o volume, a luz e a cor”
(OSTROWER, 1983, p.65).
As três dimensões – linha, superfície e volume – são
os principais elementos apontados pela autora e que nos
interessam no que se refere ao espaço extrínseco apre-
sentado pela parte visual de uma obra. Associamos a luz e
a cor ao espaço intrínseco da parte visual, se aproximando
ao timbre, altura ou intensidade na música. Fazer um

2 Instalação sonora de Janet Cardiff, na qual a artista revisita o


moteto Spem in Alium de Thomas Tallis, explorando as relações
entre som e espaço através do entrelaçamento entre mídia e voz.

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paralelo entre as artes sonoras e visuais nesses termos é
bem complexo, pois entramos em uma grande área que
estuda a sinestesia3 e que varia de acordo com o indivíduo
e seu conhecimento de mundo.
Dentre as discussões contrárias a essa sistematização,
Arnheim já disserta sobre a impossibilidade humana de
perceber um ponto ou linha sem uma relação com o ma-
terial ao seu redor, espacializando tais figuras sempre em
um contexto tridimensional e criando relações de figura e
fundo (ARNHEIM, 2005, p.217) ou de inclinação de uma
figura bidimensional para frente ou para trás devido ao seu
modo de apresentação para o observador. Tais percepções
de tridimensionalidade associamos ao nível semântico de
uma obra, ou seja, da sua interpretação, pois sem o conhe-
cimento do mundo e da análise da imagem apresentada
pelo observador, as linhas e pontos, assim como super-
fícies bidimensionais, são claramente possíveis.
O espaço extrínseco se apresenta no limiar entre o nível
sintático e o semântico. Ao observarmos uma pintura como
As Meninas, nossa mente cria um espaço que não é ine-
rente ao objeto. De forma semelhante ocorre com o áudio,
quando apresentamos um material com uma reverberação
que nos dá a impressão de profundidade, de distância, de
um espaço não inerente ao material, pois o percebemos
mesmo quando o material em si está sendo reproduzido

3 “Relação que se verifica espontaneamente (e que varia de


acordo com os indivíduos) entre sensações de caráter diverso,
mas intimamente ligadas na aparência (p.ex., determinado ruído
ou som pode evocar uma imagem particular, um cheiro pode
evocar uma certa cor etc.)”

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através de um único alto-falante.
Podemos observar o que chamamos de sintaxe do
espaço extrínseco quando manipulamos o espaço que
uma fonte sonora ou objeto visual ocupa, ou seja, suas di-
mensões e proporções; quando o artista elabora uma textura
espacial, criando trajetórias e movimentos para as fontes
sonoras ou objetos visuais que tem em mãos; quando o
artista explora a sensação de envolvimento que determina-
do espalhamento de uma fonte sonora através do sistema
de reprodução pode alcançar; quando ele opta por um ta-
manho de projeção visual em detrimento de outras; quan-
do também opta por uma projeção visual bidimensional ou
tridimensional através de óculos para Realidade Virtual; ou
quando aplicamos os gestos de espacialização sugeridos
por Vande Gorne na performance de música eletroacústica
através de um sistemas multicanal de alto-falantes.
Como já dito, o nível sintático não existe sem o semân-
tico e abordar questões semânticas é uma das principais
ferramentas dos artistas, pois dessa forma, exploram sen-
sações de ilusão e alusão a espaços reconhecíveis (BAR-
RETT, 2002), realizam referenciações entre espaços, po-
dendo intensificar elementos apresentados pelo espaço
intrínseco de objetos sonoros (SMALLEY, 1997; BATES,
2009) ou desenvolver narrativas através do espaço. As tec-
nologias de Realidade Virtual surgem então com um con-
ceito de imersão4, apresentando ao expectador sensações

4 “Experiência de perder a noção de corporeidade no presente


enquanto concentrado em um ambiente mediado” (DOVEY;
KENNEDY, 2006, p.146)

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que corresponderiam ao mundo real tridimensional que não
passam de uma manipulação dessas questões semânticas
apresentadas pelo espaço extrínseco reproduzido pelo áu-
dio e vídeo tridimensionais dentro do óculos.

Audiovisual tridimensional de verdade

O início de uma expansão do espaço extrínseco tridi-


mensional, tanto do áudio quanto do vídeo, pode ser
observado em um filme 3D com áudio em surround 5.1,
assistido com óculos específicos, pois ele traz uma pers-
pectiva do material apresentado para o nível sintático, no
qual nos vemos imersos nas imagens apresentadas. Esse
tipo de expansão do material para uma terceira dimensão
pode ser considerada como uma ampliação do espaço ex-
trínseco. De qualquer forma, ainda nos limitamos somente
ao plano frontal com cerca de 180º à nossa frente, sen-
do impossível observarmos objetos possivelmente posi-
cionados às nossas costas, acima ou abaixo das nossas
cabeças. Através de reproduções visuais tridimensionais
oferecidas por óculos de realidade virtual, a tridimensiona-
lidade real almejada por diversos artistas, pode ser alcan-
çada ao apresentar ao espectador um ambiente virtual que
reage a partir de seu movimento dentro do mesmo, alteran-
do o que é apresentado através das duas pequenas lentes
a sua frente.
No áudio podemos reproduzir experiências semelhan-
tes. Do ponto de vista sintático, um áudio monofônico não
é capaz de oferecer qualquer tipo de espacialização ao
ouvinte que não seja no nível semântico, através da

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observação da profundidade, nenhuma profundidade ou
horizontalidade real pode ser obtida. O sistema estere-
ofônico já oferece essa horizontalidade, no entanto ainda
limitada ao espaço entre os dois alto-falantes. Os sistemas
adotados pelo cinema, 5.1, 6.2, 7.1, etc., possibilitam uma
experiência mais imersiva na qual o ouvinte percebe sons
provenientes dos 360º ao seu redor, no entanto, ainda sem
a possibilidade da percepção de fontes sonoras abaixo ou
acima de sua cabeça. Para um áudio tridimensional de
verdade, seria necessário que posicionássemos fontes so-
noras (alto-falantes) no teto e no chão, abaixo dos espec-
tadores. Tal realização pode ser observada em sistemas
baseados em VBAP (Vector Based Amplitude Panning),
WFS (Wave Field Synthesis) ou Ambisonics, através de
sistemas multicanais compostos de conjuntos de alto-fa-
lantes em anéis em cima e embaixo dos ouvintes. Ou até
mesmo, um conjunto dentro de outro, de forma a oferecer
a profundidade real (sintática), ou através de um Sistema
Binaural tridimensional, reproduzido através de fones de
ouvido (abordagem em voga atualmente devido a sua apli-
cação direta a Realidade Virtual).
Do ponto de vista semântico, tanto sistemas multicanais
quanto monofônicos podem nos apresentar materiais so-
noros percebidos como pontuais, como uma flauta solando
dentro de uma orquestra ou materiais imersivos, como o
som de chuva no telhado de uma casa. Tudo depende de
um contexto e da interpretação do ouvinte.

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Relações entre espaços audiovisuais

No que diz respeito a como relacionar um som tridimen-


sional a uma imagem também tridimensional, gostaríamos
de apontar aqui uma abordagem estética básica estabele-
cida por Nicholas Cook (1998), que pode servir como um
princípio de estudo nessa área. Em seu trabalho ele aponta
três principais abordagens: (1) conformidade – quando os
meios operam em concordância; (2) controvérsia – quando
entram em contradição; e (3) complementação – quando
operam entre as duas primeiras.
De uma forma bem resumida, a relação entre o áudio e
o vídeo de uma obra pode ser sempre enquadrada nessas
três categorias, eventualmente mais próxima de uma ou
de outra, eventualmente se iniciando em uma delas e se
desenvolvendo para outra. Expandindo a aplicação dessas
três abordagens que se referem, inicialmente, ao espaço
intrínseco do audiovisual, para o espaço extrínseco apre-
sentado por esses dois domínios (áudio e vídeo), podemos
observar que são muitos os paradoxos entre as apresen-
tações do espaço extrínseco no áudio e no vídeo aos quais
somos submetidos e acostumados a apreciar.
Ao assistir um filme no cinema em um tela disposta à
nossa frente, sem apresentar conteúdo visual ao nosso
lado, acima ou atrás, e ao ouvir sons reproduzidos através
de um sistema 5.1 que preenche toda a nossa volta, esta-
mos submetidos a um paradoxo que apreciamos. Por que
o cinema não adotou um sistema multicanal que rodeasse
a tela ao invés de rodear o público? O tamanho da tela
do cinema possibilitaria uma maior coerência entre sons

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em cima ou embaixo com relação às imagens em movi-
mento, do que nas laterais ou parte traseira, uma vez que
nenhuma imagem é projetada em tais locais. Um paradoxo
semelhante pode ser observado em um concerto de músi-
ca eletroacústica audiovisual. Muito comumente se é exibi-
do uma parte visual em uma tela frontal enquanto o áudio,
mais elaborado espacialmente, é reproduzido em um siste-
ma multicanal com 8, 16 ou até 48 alto-falantes distribuídos
em torno dos ouvintes de forma a ocupar um espaço que
não corresponde ao que se observa na parte visual.
Inúmeras produções para realidade virtual com o áu-
dio ainda em formato estereofônico (ou até monofônico)
se apresentam também como um grande paradoxo. En-
tendemos a novidade que a produção audiovisual para re-
alidade virtual ainda representa, no entanto, ferramentas
para o desenvolvimento de áudio tridimensional estão cada
vez mais populares e em sua grande maioria gratuitas.
Uma elaboração de áudio tridimensional para vídeos para
VR ainda não é prioridade e apontamos como principais
motivos: as exigências da indústria pela alta velocidade em
que se deve disponibilizar o material audiovisual, sobran-
do pouco tempo para um tratamento cuidadoso do áudio;
a ênfase histórica e ainda hegemônica do visual sobre o
sonoro; e a falta de conhecimento estético para explorar os
recursos de mixagem de áudio tridimensional.
Dentre as diversas transformações de um tipo de
espaço em outro, algumas delas envolvem o extrínseco
em que focamos nesse trabalho. O espaço extrínseco em
si pode se tornar espaço intrínseco quando determinado
objeto sonoro realiza trajetórias cada vez mais rápidas, a

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ponto de não distinguirmos mais sua localização, mas sim
uma mudança no timbre do que ouvíamos anteriormente.
Tal transformação é muito conhecido pelos guitarristas de
rock com o nome de efeito rotary, em que o som da guitarra
viaja de uma caixa para a outra em diferentes velocidades.
Diversos compositores exploraram tal transformação em
suas composições, dentre eles podemos citar Stockhau-
sen, em sua obra Kontakte, por exemplo, que utiliza uma
série de movimentos espaciais que segundo ele, podem
articular durações, parâmetro naturalmente pertencente ao
que denominamos de espaço intrínseco.
Como objetivo principal desse artigo, apresentamos al-
guns dos diversos conceitos de espaço com o intuito de
estabelecer uma base para a identificação de uma análise
sintática ou semântica, assim como para entender breve-
mente possíveis relações estabelecidas pelo espaço ex-
trínseco tanto do áudio quanto do vídeo.

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SOBRE OS AUTORES

Ana Lúcia Andrade é professora Titular do Departamen-


to de Fotografia e Cinema da Escola de Belas Artes da
UFMG, atuando na Graduação em Cinema de Animação e
Artes Digitais e no Programa de Pós-Graduação em Artes,
linha de pesquisa Cinema. Autora dos livros Entretenimen-
to Inteligente; o Cinema de Billy Wilder (2004) e O Filme
dentro do Filme; a Metalinguagem no Cinema (1999), am-
bos pela Editora UFMG. Roteirista e produtora do curta em
animação Bandeira (2007, direção de Antonio Fialho).

Antonio Fialho é professor do Curso de Cinema de Ani-


mação e Artes Digitais da EBA/UFMG. Doutor em Artes
pela UFMG (2013). Pós-graduação em Classical Animation
(VFS, 1998). Diretor dos filmes Monolitre (1998), Bandei-
ra (2007) e experiência profissional (1998-2005) em pro-
duções internacionais como os filmes em animação Astérix
et les Vikings (A. Film/M6, Dinamarca/França, 2006), Sin-
bad: Legend of the Seven Seas (DreamWorks SKG, EUA,
2003) e Spirit: Stallion of the Cimarron (DreamWorks SKG,
EUA, 2002). Autor de artigos como “Lúmen” e “A capa-
citação brasileira e o mercado de animação” para o livro
Animação Brasileira: 100 Filmes essenciais (Letramento,
2018).

Daniel Leal Werneck é doutor em Artes/Cinema e pro-


fessor do Curso de Cinema de Animação e Artes Digitais
– CAAD/EBA/UFMG. Leciona desde 2006, e já produziu

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diversos curtas em técnicas variadas. Atualmente trabalha
com stop-motion de bonecos, animação experimental e
música instrumental.

Fabio Wanderley Janhan Sousa é doutorando em Sono-


logia na Escola de Música/ UFMG, com co-orientação do
Prof. Jalver Bethônico da EBA/UFMG. Possui publicações
em anais da ANPPOM, AES Brasil, AES UK e na Revista
Sonora da Unicamp. Atualmente leciona e atua como en-
genheiro de som na empresa Hi-Fi Audio Solutions e atua
também como Técnico de Laboratório de Audiovisual na
Escola de Música da UFMG.

Henrique Roscoe Correa Pinto é artista audiovisual, músi-


co e curador. Graduado em Comunicação Social (UFMG)
e Engenharia Eletrônica (PUC/MG), possui Especialização
em Design e Cultura (FUMEC) e é Mestre em Artes/ Poéti-
cas Tecnológicas pela Escola de Belas Artes da UFMG. É
professor substituto do CAAD da EBA/UFMG. Trabalha na
área audiovisual desde 2004, explorando caminhos da arte
generativa e Visual Music. Com o projeto audiovisual HOL
se apresentou nos principais festivais de imagens ao vivo
no Brasil e também no exterior. Trabalha com curadoria em
arte digital, desenvolve instalações interativas, produz vi-
deo-cenários e atua como VJ.

Jalver Bethônico é professor de Design Sonoro e Siste-


mas Musicais Interativos do CAAD – EBA/UFMG. Doutor
em Comunicação e Semiótica - PUC-SP. Desenvolveu o
projeto de Pós-doc Estudos audiovisuais sob supervisão

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do Prof. Dr. Rodolfo Caesar, ESMU/UFRJ. Fundador do
Grupo de Pesquisa interSignos-EBA. Coordena, desde
2010, o grupo de Música-vídeo “As Is”.

Jennifer Serra é professora do Centro Audiovisual de São


Bernardo do Campo/SP e pós-doutoranda na Universidade
de São Paulo, USP. Possui doutorado e mestrado em Mul-
timeios pela Universidade Estadual de Campinas e é au-
tora da tese A Vida Animada: (re)construções do mundo
histórico através do documentário animado.

Leonardo Rocha Dutra é mestre em Design pela ED-UE-


MG (2012), com a dissertação: Design de personagens
para stop-motion: projeto e desenvolvimento de esquele-
tos com articulações metálicas compostas. Doutorando
pela EBA-UFMG, com a pesquisa: Animação facial em
stop-motion por mecanismos internos de acionamento in-
direto, com fomento da FAPEMIG/PROEX do PPGARTES.
Publicou artigos e proferiu conferências sobre o tema em
eventos nacionais e internacionais, além de visitas técni-
cas à estúdios e escolas de stop-motion na Inglaterra e
República Tcheca.

Luiz Nazario é professor Titular do Departamento de Fo-


tografia e Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG e
doutor em História Social pela USP com a tese Imaginários
de destruição, sobre o cinema nazista, com pesquisas rea-
lizadas na Alemanha e em Israel. Autor de diversos livros,
entre os quais Todos os corpos de Pasolini (Perspectiva,
2007) e O cinema errante (Perspectiva, 2013).

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Marcos Magalhães é graduado em Arquitetura pela FAU-
UFRJ. Doutor em Design e Professor Pleno de animação
na PUC-RJ, além de fundador e diretor do Anima Mundi,
Festival Internacional de Animação do Brasil (de 1993 até
hoje). Cineasta de Animação, recebeu o Prêmio Especial
do Júri no Festival de Cannes de 1982, com Meow!. Autor
de filmes como Animando, filmado no National Film Board
do Canada (1983) e Homem Estátua (2011).

Mariana Ribeiro Tavares é pós-doutoranda no PPGArtes/


EBA/UFMG (Bolsa PNPD-CAPES), onde atua como pro-
fessora colaboradora na graduação e na pós-graduação
na área de Cinema. É autora do livro Helena Solberg, do
Cinema Novo ao Documentário Contemporâneo (É Tudo
Verdade,2014) e de capítulos em livros sobre o Cinema
Brasileiro - Feminino e Plural (Papirus, 2017) e Curta-me-
tragem brasileiro: 100 filmes essenciais (Ed. Letramento,
2019). É realizadora, com trabalhos premiados no do-
cumentário: Toque do Samba (2014) e Giramundo, uma
História de Títeres e Marionetes (2001) e em videoarte,
Horizonte Subterrâneo (1997) e Vocabulário (1995).

Marília Lyra Bergamo é professora, artista e pesquisadora


do CAAD/EBA/UFMG. Doutora em Arte e Tecnologia pela
Universidade de Brasília, UnB. Seu trabalho tem ênfase na
produção artística para mídias interativas, atuando princi-
palmente nos seguintes temas: arte computacional intera-
tiva, design de interação e criação de interfaces multimo-
dais. Atuante no grupo / laboratório 1maginari0: Poéticas
Computacionais da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Maurício Silva Gino é graduado em Comunicação Vi-
sual pela Fundação Universidade Mineira de Arte - FUMA
(1989) e em Belas Artes, com habilitação em Cinema de
Animação, pela UFMG (1996). Mestre em Tecnologia pelo
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
- CEFET-MG (2003) e doutor em Ciência Animal pela Uni-
versidade Federal de Minas Gerais – UFMG (2009). É pro-
fessor do Departamento de Fotografia e Cinema da Escola
de Belas Artes da UFMG, onde leciona na graduação em
Cinema de Animação e Artes Digitais e no Programa de
Pós-Graduação em Artes. Atualmente coordena o Núcleo
de Audiovisual do Espaço do Conhecimento UFMG.

Rafael Sodré de Castro é graduado em Música (UEMG).


Mestre em Artes - EBA/UFMG e doutorando em Artes pela
mesma instituição na linha de pesquisa Poéticas Tecnológi-
cas. Desenvolve sua atual pesquisa sobre videomúsica
com a orientação do Prof. Dr. Jalver Bethônico.

Sávio Leite é mestre em Cinema/Artes pela EBA/UFMG.


Professor de Cinema de Animação no Centro Universitário
UNA-BH. Fundador e um dos diretores da MUMIA – Mos-
tra Udigrudi Mundial de Animação. Organizador dos livros:
Subversivos: o desenvolvimento do cinema de animação
em Minas Gerais, 2013 e Maldita Animação Brasileira,
2015, ambos pela Ed. Favela É Isso Aí e Diversidade da
Animação Brasileira, 2018, Ed. M Marte. Em 2017 lançou
a coletânea MUMIA de Animações Mineiras em comemo-
ração ao centenário da animação brasileira. Autor de filmes
como Eu sou como o polvo (2006), Macacos me mordam

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(2012), Tejo/tedio (2013), Desarquivando o Brasil (2016) e
Vênus – Filó a fadinha lésbica (2017). Nominado três vezes
ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.

Simon Brethé é artista animador, pesquisador, professor


e coordenador do curso de Cinema de Animação e Artes
Digitais – CAAD, da Escola de Belas Artes, UFMG. Mestre
e doutor em Artes/ Cinema pela mesma instituição.

Thembi Rosa é artista, pesquisadora e produtora. Douto-


randa pela EBA/UFMG. Mestre em Dança pelo PPG-Dança
da UFBA (2010). Graduada em Letras pela FALE/UFMG
(2002). Integra o grupo de pesquisa Technological Expan-
ded Performance (TEPe), parceria entre a Faculdade de
Motricidade Humana em Lisboa e a Universidade Federal
do Ceará (UFC). Faz parte do Dança Multiplex e da Casa-
Manga. Com Scott de Lahunta realizou o Choreographic
Coding Lab (CCL7) em 2016, e o Motion Bank Lab Brazil
(2019) com a participação de coreógrafos e pesquisadores
nacionais e internacionais.

Wagner Rodrigues Miranda é bacharel em Cinema de A-


nimação e Artes Digitais pela EBA, UFMG (2014) e mestre
em Artes/Cinema pela mesma instituição (2017). Foi pro-
fessor substituto de magistério superior da Universidade
Federal de Minas Gerais (2018).

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Este livro foi impresso no formato 15 x 21 cm,
em papel pólen 85 gramas, tipologia
Arial 12/16, na Gráfica Rede, em
Belo Horizonte, na primavera de 2019.

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