CJ - n56 - 04 - Com Quem Estamos Falando..

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Com quem estamos falando? Tipos de pessoa e


tipos de comunicação

Lygia Vampré Humberg1


Professora

Resumo: neste texto quero analisar como podemos nos comunicar verdadeiramente
com os vários tipos de pessoas, tal como Winnicott as classifica (em termos da sua organi-
zação psíquica). Tratarei de explicitar os aspectos gerais da comunicação e das condições
para que esta possa ocorrer, em função da organização afetiva ou da maturidade das
pessoas. Caso isto não seja levado em conta a comunicação não ocorre de fato. Em vez
disso o que acontece é uma “confusão de línguas”. Propõe-se, assim, em primeiro lugar,
diferenciar quatro grandes tipos de organização psicopatológica (neuróticos, deprimidos,
psicóticos e borderlines, bem como a especificidade daqueles que têm atitude antisso-
cial) para mostrar que cada um deles necessita de um tipo específico de sustentação
ambiental (de manejo do ambiente, da relação interpessoal, do encontro) para que uma
comunicação efetiva possa ocorrer.

Palavras-chave: Comunicação verdadeira. tipos de pessoa. Winnicott. maturidade


emocional. holding.

Queixas sobre a falta de comunicação ou mal-entendidos são problemas comuns,


dado que me parecem ser recorrentes frases do tipo: “mas eu já” falei mil vezes”,
“eu já” disse o que precisa ser feito”, “a pessoa não tem vontade ou não quer fazer”
etc. Ou seja, é evidente que não basta estar claro para os profissionais para que aquilo
que se diz chegue a quem ouve. Isto coloca questões do tipo: “o que é necessário fazer
para que a comunicação ocorra?”. Mas este problema também coloca as questões:
“com quem estamos falando?”, “quanto tal ou qual pessoa pode entender?”.
Este artigo procura, então, explicar que existem diversos tipos de pessoas no que
se refere a seus modos de organização afetiva e amadurecimento, para que isto possa,
servir de base para possamos nos colocar a questão: “qual a maneira de me comunicar
com esta ou aquela pessoa?” Para isto proponho: 1. Apresentar uma teoria do desenvolvi-
mento emocional; 2. Indicar os diversos tipos de desenvolvimento e integração emocional,
caracterizando, assim, os diversos tipos de pessoas; 3. Mostrar que tipo de cuidado cada
tipo de pessoa precisa, dado que isto aponta também para o tipo de comunicação que
deve estar presente em cada tipo.

1
Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, Mestre pela Faculdade de Medicina da USP; Membro do Departamento de
Psicanálise com Crianças e do Grupo Espaço Potencial; professora do curso “Winnicott, Experiência e Pensamento” do Instituto
Sedes Sapientiae, do curso de Formação em Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos, e do curso “Aprofundando o
Desenvolvimento Emocional de Winnicott” aplicado às práticas judiciárias na Escola Paulista da Magistratura. Autora do livro
Relacionamentos adictivos: vício e dependência do outro (2016, CLA), dentre outras publicações, como capítulos de livros
dedicados à análise do problema das adicções. E-mail: [email protected].

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A teoria do desenvolvimento emocional

Winnicott é um autor que apresentou uma teoria do desenvolvimento emocional


composta por fases, inclusive cronologicamente estabelecidas, nas quais são descritas as
conquistas, tarefas e modos de se relacionar com o outro, desde a origem do ser humano
até a sua velhice, descrevendo não só o que ocorre na saúde e os diversos modos saudáveis
de organizar-se psiquicamente e de se relacionar com o outro, mas também oferecendo
uma compreensão dos diversos modos de organização patológica, identificando suas origens.
Colocarei em destaque alguns elementos dessa teoria, tendo como objetivo especi-
ficar os três grandes tipos de organização psíquica ou três tipos de pessoas com as quais
nos deparamos na vida cotidiana e no nosso trabalho:

1) O desenvolvimento emocional, para Winnicott, corresponde a uma linha que vai:


do estado de não integração para os diversos tipos de integração da vida psíquica;
da imaturidade inicial para apreender a si mesmo e ao outro como sendo distin-
tos, até o momento em que eu e outro são vividos como sendo dois; do estado de
dependência absoluta do início ao estado de independência relativa da maturidade.
2) O impulso básico da existência e da própria natureza humana é a necessidade de
ser e continuar sendo.
3) A saúde, como um estado de conquista do desenvolvimento, é um modo de ser e
estar no mundo, tal como caracteriza Winnicott:

A vida de um indivíduo são se caracteriza mais por medos, sentimentos


conflitantes, dúvidas, frustrações do que por seus aspectos positivos.
O essencial é que o homem ou a mulher se sintam vivendo sua
própria vida, responsabilizando-se por suas ações ou inações,
sentindo-se capazes de atribuírem a si o mérito de um sucesso ou
a responsabilidade de um fracasso. Pode-se dizer, em suma, que o
indivíduo saiu da dependência para entrar na independência ou
autonomia. (1971f, p. 10)

4) No que se refere especificamente às fases do desenvolvimento do lactente,


Winnicott distingue três grandes períodos (WINNICOTT, 1960c, p. 45-46): o da
dependência absoluta; o da dependência relativa; e o do período rumo à indepen-
dência. Todos caracterizados em função das relações de dependência que esse
lactente tem com a mãe e/ou mãe-ambiente. Retomo, sinteticamente, como ele
caracteriza essas fases:

a. na Dependência Absoluta (da origem até aproximadamente o 4º mês), o lactente


não tem meios de perceber o cuidado materno, que é em grande parte uma
questão de profilaxia. Cabe ao ambiente (ao cuidador) adaptar-se para atender
às necessidades do bebê;
b. na Dependência Relativa (do 4º mês até 1,5 ano), o lactente pode começar a
se dar conta da necessidade de detalhes do cuidado materno, e pode de modo
crescente relacioná-los ao impulso pessoal. Pouco a pouco o ambiente vai
surgindo e mostrando-se como algo externo do qual o bebê-criança depende.

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Ao final desta fase, o indivíduo se integra num EU e percebe que há um mundo


não-Eu diferente e externo a ele (mantendo e apreendendo suas relações como
se fossem dois corpos);
c. e na fase Rumo à Independência (de 1,5 anos em diante), a criança, tendo
chegado num Eu, faz diversas outras integrações, constituindo-se, primei-
ro, como uma pessoa inteira (whole person), mantendo e apreendendo suas
relações como se fossem três corpos. É chegando a esta maturidade que pode
viver relações do tipo edípicas, tendo que administrar a vida instintual nas
relações interpessoais.

2. Os diversos tipos de pessoas

Winnicott considera, grosso modo, que existem três grandes modos de ser-estar-re-
lacionar-se no mundo (WINNICOTT, 2000a, p. 375), relacionados a cada uma das três fases
(ainda que, numa visão mais detalhada, isto se amplie e se mostre muito mais complicado
do que está sendo aqui apontado como sendo três tipos de pessoas): as pessoas inteiras,
que se apreendem e funcionam, consigo mesmas e com os outros, como pessoas inteiras,
distinguindo o eu do outro, o dentro e o fora e, dentro de certos limites, a fantasia da
realidade (os neuróticos); as pessoas recém-chegadas nesta condição, que têm portanto
dúvidas quanto à sua estabilidade, oscilando no seu humor (os deprimidos); e aqueles
que são não integrados ou desintegrados (os psicóticos).
Com base neste esboço podemos retomar alguns comentários de Winnicott na procura
de uma descrição nosográfica dos modos de organização psíquica, distinguindo (ainda que
nesta distinção tenhamos sobreposições): as psicoses, as psiconeuroses, as depressões,
as paranoias e as psicopatias. Assim, temos:

a) “Digamos, na psicose, há um transtorno que envolve a estrutura da personali-


dade. Pode-se mostrar que o paciente se acha desintegrado, ou irreal, ou fora
de contato com o seu próprio corpo ou com aquilo que nós, como observadores,
chamamos de realidade externa. Os problemas do psicótico são dessa ordem”
(WINNICOTT, 1994, p. 53-54).
b) “Em comparação na psiconeurose, o paciente existe como pessoa, é uma
pessoa total, que reconhece objetos como totais; acha-se bem-alojado em
seu corpo e a capacidade de relacionamentos objetais está bem-estabelecida.
Desde este ponto de vista, o paciente encontra-se em dificuldades, e estas
surgem dos conflitos que resultam da experiência de relacionamentos objetais”
(WINNICOTT, 1994, p. 53-54).
c) “Em algum lugar entre a psicose e a psiconeurose entra a depressão. Nesta,
a estrutura da personalidade é relativamente bem-estabelecida. Podemos
lidar com esta complicação dizendo que há depressões que são bastante psicó-
ticas, com coisas tais como estados de despersonalização fazendo parte do
quadro, e que há depressões que são praticamente psiconeuroses. Em qualquer
dos casos, o paciente se encontra em dificuldades com as ideias e impulsos
destrutivos que acompanham a experiência dos relacionamentos objetais”
(WINNICOTT, 1994, p. 53-54).

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d) “A paranóia pode ocorrer como um tipo de funcionamento mais próximo das


neuroses (pessoas integradas) ou mais próximo das psicoses (pessoas não integra-
das), ambas acentuando o aspecto persecutório ou ‘agressivo’ do ambiente”
(WINNICOTT, 1994, p. 53-54).
e) As psicopatias (tendência antissocial). As “crianças com uma tendência anti-social
merecem uma classificação toda sua, porque elas podem ser, essencialmente,
normais ou psiconeuróticas ou depressivas ou psicóticas. O fato é que se tem de
pensar em sua sintomatologia em termos de valor de dano. A tendência anti-social
representa um SOS ou o cri de coeur da criança que, em um estágio ou outro
foi deprivada [ou seja, ela perdeu algo que tinha, o que é diferente de não ter
tido, como é o caso da privação] da provisão ambiental que seria apropriada
na idade em que lhe faltou. A deprivação alterou a vida da criança; causou-lhe
aflição intolerável e a criança está com a razão em reclamar o reconhecimento
do fato de que ‘as coisas estavam bem e depois, não ficaram bem’ e de que isto
constituiu um fator externo, fora do controle da criança. Uma criança desse tipo
acha-se engajada em retornar, através da deprivação e da aflição intolerável,
ao estado que existia antes da deprivação, quando as coisas não eram muito
ruins. Não podemos classificar este estado, que pode conduzir à delinquência
ou à reincidência, junto com os outros estados que etiquetamos com as palavras
psicose, depressão e psiconeurose” (WINNICOTT, 1994, p. 54).

3. Como cuidar e se comunicar com cada uma dessas pessoas

Cada tipo de pessoa precisa de um tipo de cuidado, logo um tipo de comunicação


específica, a saber:

a) Pessoas inteiras: têm uma distinção eu-mundo bem consolidada (são os neuró-
ticos, de forma geral), com a possibilidade de pensar tanto sobre fatos objeti-
vos quanto sobre enunciados abstratos, simbólicos, conceituais. Com estes a
comunicação fica focada nos conteúdos e raciocínios argumentativos sobre a
realidade, as pessoas e situações, conflitos etc. Pode-se contar com aquilo que
caracterizamos como sendo o “bom senso”. No trabalho com pessoas desse
tipo nos dedicamos a analisar as suas dificuldades na administração do amor
e do ódio nas relações interpessoais, os conflitos, ambiguidades, culpas etc.
Às vezes dizemos que o trabalho com o neurótico é ajudá-lo a diferenciar o
que é a realidade objetiva e o que é “esta realidade objetiva povoada por seus
desejos, vontades, fantasias, sonhos etc.”).
b) Pessoas recém-integradas: dependem da sustentação e confiabilidade ambiental
para que possam sentir-se integradas e possam, assim, funcionar como pessoas
inteiras. Estas pessoas sofrem porque têm dúvidas sobre seu estado emocional
e sobre a sustentabilidade do mundo. A comunicação com estas pessoas só pode
ocorrer depois de atendidas as necessidades de confiança e estabilidade do
ambiente (confiança e estabilidade do interlocutor que está conversando com
ela). A desconfiança é um parâmetro inicial a ser ultrapassado. Essas pessoas
vão testar a confiabilidade do ambiente. No trabalho com essas pessoas nos
deparamos com problemas de humor; elas têm dúvidas sobre serem inteiras

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(vão testar se isto é verdade), o ambiente deve sobreviver (ou seja, sobreviver
afetivamente, não retaliar) aos usos que o paciente faz dele.
c) Pessoas não integradas: (em geral, psicóticos) não diferenciam entre seu
mundo próprio e a realidade, aliás, tentam impor seu mundo (sua realidade)
aos outros, seja por imposição direta seja por manipulação. A comunicação
com elas não se dá́, inicialmente, em função das informações ou conteúdos
objetivos, mas em função de um tipo de apoio e suporte ambiental a elas (não
àquilo que elas dizem ou afirmam). Elas buscam a dependência; elas precisam
sentir-se entendidas e aceitas. Somente depois de ter alcançado este patamar
no relacionamento é que se pode começar a tentar compreender e diferenciar
a realidade pessoal da realidade objetiva. É como se a pessoa vivesse no seu
sonho. No trabalho com essas pessoas, elas precisam e de sustentação ambiental
e dependência, tal como a mãe sustenta o bebê, tal como o sistema hidráulico
sustenta um carro.
d) Pessoas que tem sintomas antissociais: podem estar mais ou menos integradas,
tal como nas descrições acima, mas acrescenta-se o fato de que elas “buscam,
em primeiro lugar, a si mesmas e à confiabilidade ambiental”. O antissocial
busca ser recompensado por aquilo que sente como tendo sido uma falha do
ambiente (como se o ambiente lhe devesse): seja solicitando que o ambiente
volte a ser confiável (agredindo o ambiente) seja retirando do ambiente (furto,
roubo etc.) “coisas” em reação ao fato de que ele sente que foi “roubado” pelo
ambiente. Inicialmente, quando os ganhos secundários ainda não se instalaram
como padrão, trata-se de fornecer provisão ambiental. No entanto, uma vez
instalados os ganhos secundários, ou seja, uma vez que a organização delin-
quente se estabeleceu como um padrão no modo de ser-estar-relacionar-se do
indivíduo, estes precisam ter ambientes que os contenham, para o bem dos
outros e deles mesmos (nos seus graus mais diversos).
e) Os adictos constituem um conjunto amplo, que não se refere propriamente a
um tipo de organização psíquica, mas a um sintoma que pode estar presente
em diversos tipos de pessoas (integradas, recém-integradas, não integradas),
podendo também ser este sintoma associado às atitudes antissociais. Ressalta-se
que a adicção pode ser química (álcool, drogas, remédios lícitos e ilícitos) ou de
outro tipo, como adicção a compras, sexo, internet e, também, caso específico,
as pessoas que são adictas a outra pessoa (têm relação de dependência adictiva
do outro). Não haveria uma orientação padrão, ou única, para comunicar-se com
pessoas que têm este sintoma, mas a compreensão de que o adicto procura a si
mesmo e não propriamente o prazer pode ajudar no contato com eles.

Sabemos, no entanto, que a comunicação que ocorre no ambiente ou setting clínico


está regrada por objetivos e modos de presença muito diferentes da comunicação que
ocorre noutros contextos. Um ladrão, perverso, mentiroso, pode, no contexto psicoterá-
pico, em função da confiabilidade e garantia do setting clínico, ser sincero e verdadeiro
ao descrever sua história, suas intenções, suas ações, dado que sabe que não será julgado
e aquilo que enunciar não será usado contra ele. Noutros contextos, a confiabilidade está
também determinada pelos lugares sociais ocupados.
Podemos, agora, salientar alguns aspectos, descritos por Winnicott, sobre a comuni-
cação nas suas mais diversas situações e contextos:

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a) Numa situação (setting) clínica, o paciente encontra um ambiente e um psico-


terapeuta que não vai confrontá-lo diretamente com a realidade externa
(procurando, primeiro, contribuir para a expressão da sua realidade interna e
de seus significados). O paciente não é julgado, não é criticado, não é exigido
dele nem coerência nem bom senso, nem mesmo que seja fidedigno à realidade
externa…. O que importa são os significados e os sentidos pessoais.
b) Na comunicação social, pelo contrário, exige-se coerência, veracidade, não
contradição. Adequação entre a realidade e o discurso sobre a realidade,
objetividade, concordância sobre a ocorrência e o sentido dos fatos etc.

Diferenciados estes dois grandes contextos para a comunicação, é necessário colocar


em evidência o fato de que, tanto num como noutro contexto, a confiabilidade é uma
das condições para que a comunicação possa ocorrer.

Aspectos gerais da comunicação. A ação de brincar como o modelo da comunicação

Nos diversos contextos, no entanto, sempre estamos lidando com a comunicação:


sua necessidade, seus limites, suas condições de possibilidade. Nesse sentido, gostaria,
ainda, de fazer alguns comentários sobre a comunicação em geral.
Vou destacar duas situações do processo de desenvolvimento emocional saudável,
que colocam em evidência dois modos primitivos (mas estruturais e repetidos na vida
pessoal e cultural) dos modos de realizar a comunicação: o da relação mãe-bebê no perío-
do perinatal; e o que ocorre quando uma criança brinca, seja sozinha seja com outra.

A situação mãe-bebê, na saúde, como um modelo de comunicação profunda e


bem-sucedida

O bebê é um ser imaturo, afetiva e cognitivamente. Ele é não integrado em termos


de sentir-se uma pessoa e reconhecer o mundo externo como externo. Para ele não há
uma realidade não-self, ele quer algo em algum lugar sem saber o que necessita ou
deseja; o ambiente suficientemente bom (a mãe suficientemente boa, que se comunica
e atende às necessidades do bebê) se adapta ao bebê sem puxá-lo ou empurrá-lo. Nesse
contexto a mãe se adapta, interpretando as necessidades do bebê, atendendo-o: o bebê
se sente visto e compreendido.
Uma citação de Winnicott sobre este tipo de adaptação nos ajuda a ter um modelo
deste tipo de comunicação e de situação:

A continuidade do ser significa saúde. Se tomarmos como analogia


uma bolha, podemos dizer que quando a pressão externa está
adaptada à pressão interna, a bolha pode seguir existindo.
Se estivéssemos falando de um bebê humano, diríamos “sendo”. Se,
por outro lado, a pressão no exterior da bolha for maior ou menor
do que aquela em seu interior, a bolha passará a reagir à intrusão.
Ela se modifica como reação a uma mudança no ambiente, e não a
partir de um impulso próprio. Em termos do animal humano, isto
significa uma interrupção no ser, e o lugar do ser é substituído pela
reação à intrusão. (WINNICOTT, 1988, p. 148)

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Winnicott também representa a situação inicial como sendo a de um círculo dentro


de outro, explicitando que quando o ambiente sustenta o ser (feto, bebê, criança,
adolescente e mesmo o adulto), este pode ser a partir de si mesmo, mas quando isto não
ocorre, a vida é reativa, e isto não é saudável (para o que nos interessa, neste segundo
caso a comunicação sofre um colapso!). Retomo os comentários de Winnicott:

FIGURA 1 FIGURA 2

Indivíduo Isolamento
isolado (a) (primário) (a)

Ao movimentar-se Intrusão
descobre o (b) provocando (b)
ambiente resposta reativa

Daí em diante,
Volta ao
a intrusão
(c) isolamento (c)
é aceita

A Figura 1 mostra como, por uma adaptação ativa às necessidades do bebê, o


ambiente lhe permite manter-se em isolamento sem ser perturbado. O bebê nada sabe.
Nesse estado, ele faz um movimento espontâneo e o ambiente é descoberto sem perda
da sensação de ser.
A Figura 2 mostra uma adaptação falha, que resulta em intrusão do ambiente sobre
a criança, levando-a a reagir. A sensação de ser é perdida nessa situação, e pode ser
readquirida somente por uma volta ao isolamento. (Nota-se a introdução do fator tempo,
significando que há um processo em andamento (WINNICOTT, 2000b, p. 309-310)
Quando a situação de comunicação ocorre sem que haja invasão, submissão ou
imposição, então o indivíduo (círculo interno, no caso o bebê) sente-se visto, sustenta-
do, compreendido e, mais do que isto, toma o ambiente (o círculo externo) como algo
positivo, algo que está a seu favor e lhe favorece (mesmo que o ambiente, o outro,
não atenda todos os seus desejos, dado que o importante não é ser agradado, mas ser
compreendido e respeitado). Por outro lado, se ocorre invasão, submissão, imposição, não
compreensão etc., então o indivíduo vai se defender, se recolherá, se esconderá, poderá
até adaptar-se para proteger-se… em termos gerais, a comunicação não pode ocorrer,
o indivíduo vai se esconder.

O brincar como atividade de comunicação

Winnicott considera que a ação de brincar estabelece uma dinâmica relacional


específica (WINNICOTT, 1975b) na qual o indivíduo cria e encontra a si mesmo e o outro;
ele cria e encontra o objeto de sua brincadeira; a brincadeira faz parte tanto do mundo
externo quando do mundo interno do indivíduo. Esta dinâmica, que surge inicialmente
no mundo da criança, se expande para todo o mundo cultural, constituindo um brincar

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adulto que, para Winnicott, é sinônimo de comunicação. Retomo, então, algumas citações
de Winnicott, caracterizando o que é a atividade de brincar:

É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto


fruem sua liberdade de criação. […]
É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto,
pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente
sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self). […]
Permanece válido o princípio geral de que a psicoterapia é afetada na
superposição de duas áreas lúdicas, a do paciente e a do terapeuta.
Se o terapeuta não pode brincar, então ele não se adequa ao trabalho.
Se é o paciente que não pode, então algo precisa ser feito para
ajudá-lo a tornar-se capaz de brincar, após o que a psicoterapia pode
começar […].

Cabe esclarecer, no entanto, que brincar aqui tem um sentido muito mais amplo
do que dar risada, fazer piada ou mesmo jogar com o outro. Trata-se, para Winnicott,
de uma atividade na qual um ser humano encontra o outro, encontra a si mesmo e ao
outro, expressando a essência da própria natureza humana que é ser-com. Brincar aqui
é sinônimo, então, de comunicar-se verdadeiramente. Na vida adulta, o amor, a amiza-
de, a fraternidade, o trabalho, a arte, a religião etc., todas estas atividades podem ser
realizadas na lógica da comunicação e do encontro profundo e verdadeiro, consigo mesmo
e com o outro, ainda que, sabemos, nem sempre ocorra desta maneira.
Winnicott reconhece na atividade de brincar, algo que ele considera universal, seja
na constituição do indivíduo seja no fundamento da cultura: “Em outros termos, é a
brincadeira que é universal e que é própria da saúde; o brincar facilita o crescimento e,
portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma
forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como
forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e
com os outros” (WINNICOTT, 1975a, p. 63).
Quando a comunicação ocorre nesta dinâmica do estar-com, do brincar-com,
há parceria e uma troca onde aqueles que dialogam, entre aqueles que se veem como
parceiros de jogo, tal como ocorre nos jogos em que estabelecermos forte laços afetivos
com os que partilham conosco o jogo.

Confusão de línguas: um colapso da comunicação

No encontro que procura a comunicação temos, pois, estruturalmente ao menos,


dois sujeitos trocando informações, sentimentos, ideias, com determinados significados
etc.: um sujeito A que se comunica com um sujeito B. Mas e se eles não estiverem falando
a mesma língua?
Sandor Ferenczi tem um texto muito importante, “Confusão de língua entre os
adultos e a criança” (1992), no qual ele comenta o fato de que muitas vezes a “linguagem
do adulto” (ou o sentido dado às palavras pelo adulto) está já estruturada no quadro da
compreensão do que é a sexualidade, enquanto que a criança, ainda imatura para esta
compreensão, tem uma linguagem referida à ternura. Muitas vezes a maneira como o

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adulto fala, como significa as coisas, está em contraste (provocando não comunicação)
com a maneira e o significado que a criança dá às palavras, as coisas, aos comportamentos.
Devemos ter em mente essa questão da “confusão de línguas” também quando
estamos falando com uma outra pessoa, dado que não é garantido que “falamos a mesma
língua” visto que, apesar de usarmos as mesmas palavras, os sentidos podem ser diferentes.
É, pois, necessário, que possamos “desenvolver o encontro”, “estender um diálogo”, para que
possamos apreender se não há uma situação como esta, designada como “confusão de línguas”.

Considerações finais

Ao final destas considerações, creio que posso fazer alguns destaques ou conclusões
(ainda que parciais) importantes:

a) A comunicação depende da situação (ambiente) em que está colocada, dado


que ela constitui posições, responsabilidades e objetivos diferentes;
b) A comunicação depende da confiabilidade, nos seus mais diversos níveis
e limitações;
c) A comunicação bem-sucedida é sempre um contato pessoal, humano, no qual
a transparência e a confiabilidade são condições desta possibilidade;
d) Comunicar-se é estar-com. A brincadeira é o modelo da comunicação bem-
-sucedida, do encontro consigo mesmo e com o outro.

Estes conjuntos de referências gerais sobre a comunicação, sua dinâmica e suas


condições de possibilidade, podem, então, ser considerados no quadro da hipótese geral
de meu texto, a saber: cada tipo de pessoa, cada modo de integração, cada modo de
ser-estar-no-mundo, tem uma estrutura geral relacional a ser considerada no processo
de comunicação (diferenciando pessoas inteiras, recém-integradas e não integradas).
Este tipo de análise, do ponto de vista da psicologia, não resolve o problema da
comunicação, mas fornece algumas orientações para que cada um, nos seus diversos
settings, possa estar mais apto a fazer uma comunicação bem-sucedida.

Referências

FERENCZI, Sandor. Confusão de língua entre os adultos e a criança. In: FERENCZI, Sandor.
Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 97-106.
WINNICOTT, Donald Woods. Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto
psicanalítico. In: WINNICOTT, Donald Woods. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas.
Rio de Janeiro: Imago, 2000a. p. 374-392.
WINNICOTT, Donald Woods. O brincar: uma exposição teórica. In: WINNICOTT,
Donald Woods. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975a. p. 59-77.
WINNICOTT, Donald Woods. Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In: WINNICOTT,
Donald Woods. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975b. p. 13-44.
WINNICOTT, Donald Woods. Psiconeurose na infância. In: WINNICOTT, Donald Woods.
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p. 53-58.
WINNICOTT, Donald Woods. Psicoses e cuidados maternos. In: WINNICOTT, Donald Woods.
Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000b. p. 305-315.

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