CJ - n56 - 04 - Com Quem Estamos Falando..
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Resumo: neste texto quero analisar como podemos nos comunicar verdadeiramente
com os vários tipos de pessoas, tal como Winnicott as classifica (em termos da sua organi-
zação psíquica). Tratarei de explicitar os aspectos gerais da comunicação e das condições
para que esta possa ocorrer, em função da organização afetiva ou da maturidade das
pessoas. Caso isto não seja levado em conta a comunicação não ocorre de fato. Em vez
disso o que acontece é uma “confusão de línguas”. Propõe-se, assim, em primeiro lugar,
diferenciar quatro grandes tipos de organização psicopatológica (neuróticos, deprimidos,
psicóticos e borderlines, bem como a especificidade daqueles que têm atitude antisso-
cial) para mostrar que cada um deles necessita de um tipo específico de sustentação
ambiental (de manejo do ambiente, da relação interpessoal, do encontro) para que uma
comunicação efetiva possa ocorrer.
1
Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, Mestre pela Faculdade de Medicina da USP; Membro do Departamento de
Psicanálise com Crianças e do Grupo Espaço Potencial; professora do curso “Winnicott, Experiência e Pensamento” do Instituto
Sedes Sapientiae, do curso de Formação em Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos, e do curso “Aprofundando o
Desenvolvimento Emocional de Winnicott” aplicado às práticas judiciárias na Escola Paulista da Magistratura. Autora do livro
Relacionamentos adictivos: vício e dependência do outro (2016, CLA), dentre outras publicações, como capítulos de livros
dedicados à análise do problema das adicções. E-mail: [email protected].
Winnicott considera, grosso modo, que existem três grandes modos de ser-estar-re-
lacionar-se no mundo (WINNICOTT, 2000a, p. 375), relacionados a cada uma das três fases
(ainda que, numa visão mais detalhada, isto se amplie e se mostre muito mais complicado
do que está sendo aqui apontado como sendo três tipos de pessoas): as pessoas inteiras,
que se apreendem e funcionam, consigo mesmas e com os outros, como pessoas inteiras,
distinguindo o eu do outro, o dentro e o fora e, dentro de certos limites, a fantasia da
realidade (os neuróticos); as pessoas recém-chegadas nesta condição, que têm portanto
dúvidas quanto à sua estabilidade, oscilando no seu humor (os deprimidos); e aqueles
que são não integrados ou desintegrados (os psicóticos).
Com base neste esboço podemos retomar alguns comentários de Winnicott na procura
de uma descrição nosográfica dos modos de organização psíquica, distinguindo (ainda que
nesta distinção tenhamos sobreposições): as psicoses, as psiconeuroses, as depressões,
as paranoias e as psicopatias. Assim, temos:
a) Pessoas inteiras: têm uma distinção eu-mundo bem consolidada (são os neuró-
ticos, de forma geral), com a possibilidade de pensar tanto sobre fatos objeti-
vos quanto sobre enunciados abstratos, simbólicos, conceituais. Com estes a
comunicação fica focada nos conteúdos e raciocínios argumentativos sobre a
realidade, as pessoas e situações, conflitos etc. Pode-se contar com aquilo que
caracterizamos como sendo o “bom senso”. No trabalho com pessoas desse
tipo nos dedicamos a analisar as suas dificuldades na administração do amor
e do ódio nas relações interpessoais, os conflitos, ambiguidades, culpas etc.
Às vezes dizemos que o trabalho com o neurótico é ajudá-lo a diferenciar o
que é a realidade objetiva e o que é “esta realidade objetiva povoada por seus
desejos, vontades, fantasias, sonhos etc.”).
b) Pessoas recém-integradas: dependem da sustentação e confiabilidade ambiental
para que possam sentir-se integradas e possam, assim, funcionar como pessoas
inteiras. Estas pessoas sofrem porque têm dúvidas sobre seu estado emocional
e sobre a sustentabilidade do mundo. A comunicação com estas pessoas só pode
ocorrer depois de atendidas as necessidades de confiança e estabilidade do
ambiente (confiança e estabilidade do interlocutor que está conversando com
ela). A desconfiança é um parâmetro inicial a ser ultrapassado. Essas pessoas
vão testar a confiabilidade do ambiente. No trabalho com essas pessoas nos
deparamos com problemas de humor; elas têm dúvidas sobre serem inteiras
(vão testar se isto é verdade), o ambiente deve sobreviver (ou seja, sobreviver
afetivamente, não retaliar) aos usos que o paciente faz dele.
c) Pessoas não integradas: (em geral, psicóticos) não diferenciam entre seu
mundo próprio e a realidade, aliás, tentam impor seu mundo (sua realidade)
aos outros, seja por imposição direta seja por manipulação. A comunicação
com elas não se dá́, inicialmente, em função das informações ou conteúdos
objetivos, mas em função de um tipo de apoio e suporte ambiental a elas (não
àquilo que elas dizem ou afirmam). Elas buscam a dependência; elas precisam
sentir-se entendidas e aceitas. Somente depois de ter alcançado este patamar
no relacionamento é que se pode começar a tentar compreender e diferenciar
a realidade pessoal da realidade objetiva. É como se a pessoa vivesse no seu
sonho. No trabalho com essas pessoas, elas precisam e de sustentação ambiental
e dependência, tal como a mãe sustenta o bebê, tal como o sistema hidráulico
sustenta um carro.
d) Pessoas que tem sintomas antissociais: podem estar mais ou menos integradas,
tal como nas descrições acima, mas acrescenta-se o fato de que elas “buscam,
em primeiro lugar, a si mesmas e à confiabilidade ambiental”. O antissocial
busca ser recompensado por aquilo que sente como tendo sido uma falha do
ambiente (como se o ambiente lhe devesse): seja solicitando que o ambiente
volte a ser confiável (agredindo o ambiente) seja retirando do ambiente (furto,
roubo etc.) “coisas” em reação ao fato de que ele sente que foi “roubado” pelo
ambiente. Inicialmente, quando os ganhos secundários ainda não se instalaram
como padrão, trata-se de fornecer provisão ambiental. No entanto, uma vez
instalados os ganhos secundários, ou seja, uma vez que a organização delin-
quente se estabeleceu como um padrão no modo de ser-estar-relacionar-se do
indivíduo, estes precisam ter ambientes que os contenham, para o bem dos
outros e deles mesmos (nos seus graus mais diversos).
e) Os adictos constituem um conjunto amplo, que não se refere propriamente a
um tipo de organização psíquica, mas a um sintoma que pode estar presente
em diversos tipos de pessoas (integradas, recém-integradas, não integradas),
podendo também ser este sintoma associado às atitudes antissociais. Ressalta-se
que a adicção pode ser química (álcool, drogas, remédios lícitos e ilícitos) ou de
outro tipo, como adicção a compras, sexo, internet e, também, caso específico,
as pessoas que são adictas a outra pessoa (têm relação de dependência adictiva
do outro). Não haveria uma orientação padrão, ou única, para comunicar-se com
pessoas que têm este sintoma, mas a compreensão de que o adicto procura a si
mesmo e não propriamente o prazer pode ajudar no contato com eles.
FIGURA 1 FIGURA 2
Indivíduo Isolamento
isolado (a) (primário) (a)
Ao movimentar-se Intrusão
descobre o (b) provocando (b)
ambiente resposta reativa
Daí em diante,
Volta ao
a intrusão
(c) isolamento (c)
é aceita
adulto que, para Winnicott, é sinônimo de comunicação. Retomo, então, algumas citações
de Winnicott, caracterizando o que é a atividade de brincar:
Cabe esclarecer, no entanto, que brincar aqui tem um sentido muito mais amplo
do que dar risada, fazer piada ou mesmo jogar com o outro. Trata-se, para Winnicott,
de uma atividade na qual um ser humano encontra o outro, encontra a si mesmo e ao
outro, expressando a essência da própria natureza humana que é ser-com. Brincar aqui
é sinônimo, então, de comunicar-se verdadeiramente. Na vida adulta, o amor, a amiza-
de, a fraternidade, o trabalho, a arte, a religião etc., todas estas atividades podem ser
realizadas na lógica da comunicação e do encontro profundo e verdadeiro, consigo mesmo
e com o outro, ainda que, sabemos, nem sempre ocorra desta maneira.
Winnicott reconhece na atividade de brincar, algo que ele considera universal, seja
na constituição do indivíduo seja no fundamento da cultura: “Em outros termos, é a
brincadeira que é universal e que é própria da saúde; o brincar facilita o crescimento e,
portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma
forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como
forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e
com os outros” (WINNICOTT, 1975a, p. 63).
Quando a comunicação ocorre nesta dinâmica do estar-com, do brincar-com,
há parceria e uma troca onde aqueles que dialogam, entre aqueles que se veem como
parceiros de jogo, tal como ocorre nos jogos em que estabelecermos forte laços afetivos
com os que partilham conosco o jogo.
adulto fala, como significa as coisas, está em contraste (provocando não comunicação)
com a maneira e o significado que a criança dá às palavras, as coisas, aos comportamentos.
Devemos ter em mente essa questão da “confusão de línguas” também quando
estamos falando com uma outra pessoa, dado que não é garantido que “falamos a mesma
língua” visto que, apesar de usarmos as mesmas palavras, os sentidos podem ser diferentes.
É, pois, necessário, que possamos “desenvolver o encontro”, “estender um diálogo”, para que
possamos apreender se não há uma situação como esta, designada como “confusão de línguas”.
Considerações finais
Ao final destas considerações, creio que posso fazer alguns destaques ou conclusões
(ainda que parciais) importantes:
Referências
FERENCZI, Sandor. Confusão de língua entre os adultos e a criança. In: FERENCZI, Sandor.
Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 97-106.
WINNICOTT, Donald Woods. Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto
psicanalítico. In: WINNICOTT, Donald Woods. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas.
Rio de Janeiro: Imago, 2000a. p. 374-392.
WINNICOTT, Donald Woods. O brincar: uma exposição teórica. In: WINNICOTT,
Donald Woods. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975a. p. 59-77.
WINNICOTT, Donald Woods. Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In: WINNICOTT,
Donald Woods. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975b. p. 13-44.
WINNICOTT, Donald Woods. Psiconeurose na infância. In: WINNICOTT, Donald Woods.
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p. 53-58.
WINNICOTT, Donald Woods. Psicoses e cuidados maternos. In: WINNICOTT, Donald Woods.
Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000b. p. 305-315.