2 - Introdução Aos Estudos Históricos
2 - Introdução Aos Estudos Históricos
2 - Introdução Aos Estudos Históricos
Apresentação 7
7 História e memória 91
7.1 Memória individual e memória coletiva 91
7.2 História versus memória 94
7.3 Memória oficial e memórias subterrâneas 98
7.4 A história oral e o uso da memória como fonte 101
Gabarito 115
Apresentação
Primeiramente, parabéns por ter escolhido cursar História1! Saiba que essa decisão foi um
ato de coragem, e também de resistência e esperança.
Se cada época tem suas mazelas e suas glórias, a nossa época, as primeiras décadas do século
XXI, traz em si um triste paradoxo: na mesma medida em que aumentam as possibilidades de pro-
dução, acesso e compartilhamento de informações, vemos recrudescer o debate e a reflexão crítica recrudescer: au-
mentar; tornar-se
acerca do sentido do conhecimento. mais intenso.
O filósofo e ensaísta alemão Robert Kurz, falecido em 2012, alertava: nunca fomos tão igno-
rantes quanto na era da informação. Isso porque grande parte daquilo que acessamos como in-
formação se destina a acionar a parafernália tecnológica que nos invade com milhões de frases
e imagens de fácil digestão. Sob a aparência do entretenimento mental, esse volume imenso de
informação sem conteúdo, produzida por qualquer um, compartilhada e “curtida” de forma quase
imediata e sem análise, nos desvia de possibilidades reais de conversas reais, com pessoas reais, de
forma aprofundada, embasada e crítica, sobre temas fundamentais à nossa existência.
Em que consiste a busca pela verdade? É possível ser feliz? Por que persiste a injustiça social?
Qual o limite da liberdade? Por que não conseguimos aprender com os erros e acertos daqueles
que viveram antes de nós? Como tornar a nossa vida mais sustentável e saudável? Essas questões,
urgentes em nosso próprio tempo, ficam à margem, sem debate e sem resposta em uma época na
qual grande parte da energia das pessoas é dedicada ao que é fugaz e superficial.
Há lugar para a história em um tempo permeado pela urgência do presente? Em que consiste
um olhar histórico sobre o real? Que diferenças existem entre história e passado? Entre tempo e
temporalidade? Entre tempo e cronologia? É muito corriqueira a concepção de que o passado pode
afetar o presente. Mas você sabia que o presente também pode afetar o passado? Essas são algumas
das questões sobre as quais iremos dialogar ao longo do nosso livro. Nosso, porque é para você e
com você, pensando em você, que ele foi escrito.
1 Usaremos a palavra História com inicial maiúscula para designar estudo, ciência e história com inicial minúscula
para designar a trajetória dos homens no tempo.
8 Introdução aos estudos históricos
introdutório aos estudos históricos, o primeiro destino da viagem que você agora começa. Que ele
o ajude a estranhar, mais do que entender, o seu próprio tempo.
Neste capítulo, iniciaremos nossa aventura acerca do conhecimento sobre os estudos histó-
ricos. Começaremos a entender em que consiste uma interpretação histórica da realidade e como
essa interpretação é construída mediante o diálogo com categorias de tempo, temporalidade, cro-
nologia, memória, presente, passado e futuro.
Você já parou para pensar sobre o tempo? Como sente sua existência? De que forma se relacio-
na com a dinâmica das sociedades no espaço e como é percebido, de diferentes maneiras, por essas
mesmas sociedades? Será que tempo e temporalidade são a mesma coisa? As diversas temporalidades
se expressam somente por meio da cronologia? São essas questões que discutiremos neste capítulo.
1 Pitagóricos ou Pitagorismo é a designação dada à uma seita surgida na Antiguidade Grega, por volta do século
VI a.C. Ela teria sido inspirada nos ensinamentos do matemático, filósofo e místico Pitágoras de Samos, que viveu na
Magna Grécia, entre 570 e 495 a.C. e que não deixou nenhum texto escrito. Entre os principais pilares teórico-místicos do
Pitagorismo, podemos mencionar três aspectos centrais: 1) A Metempsicose (movimento cíclico pelo qual um espírito,
após abandonar um corpo, retorna em outro, animando, dando vida, a uma nova estrutura material, podendo ser animal,
vegetal, ou humana; reencarnação); 2) Os números são os elementos a partir dos quais todas as coisas são constituídas;
3) Os corpos celestes (que, segundo os pitagóricos, seriam em número de dez) girariam em torno de um fogo central e
de forma simétrica. Alguns dos elementos constitutivos do Pitagorismo influenciaram grandemente o pensamento do
filósofo grego Platão, que viveu entre 427-28 a.C e 347-48 a.C. (ABBAGNANO, 2007).
2 O início da Era Cristã é o marco inicial do calendário utilizado pelas sociedades ocidentais, ou seja, aquelas in-
fluenciadas pela civilização europeia. O marco desse calendário é o nascimento do líder religioso de origem judaica
Jesus Cristo, considerado o filho de Deus para os cristãos. No entanto, existiram civilizações, filósofos, sistemas de
pensamento e religiões anteriores à Jesus Cristo, em outras partes do mundo. Como esses acontecimentos se situam
em épocas anteriores ao seu nascimento, são contados de forma decrescente, das datas mais antigas às mais próxi-
mas do nascimento de Cristo, e a essas datas é acrescentada a sigla a.C (antes de Cristo). Ao longo do texto, usaremos
essa sigla para nos remeter a acontecimentos, teorias, civilizações e teóricos anteriores ao nascimento de Cristo; já em
relação às datas posteriores ao nascimento de Cristo, não usaremos nenhuma sigla, ou mencionaremos, somente, que
são datas da Era Cristã ou da nossa era.
10 Introdução aos estudos históricos
StudioM1/iStock.com
Para os Pitagóricos, o tempo era uma esfera que
tudo abrangia.
Para outro filósofo grego, Platão, que viveu entre os séculos V e IV a.C., o tempo era a “di-
mensão móvel da eternidade” (ABBAGNANO, 2007, p. 945), ou seja, algo que, ao se manifestar no
ciclo das estações, dos sistemas planetários e dos seres vivos, revela, pela mudança, a imutabilidade
do que é eterno, imóvel: as essências de todas as coisas. Assim, o tempo seria o suporte por meio do
qual aquilo que é perene, mutável, manifesta o que não muda, o que é eterno, as essências imóveis
e perfeitas de todas as coisas, as quais Platão deu o nome de ideias.
Já Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.), filósofo que foi discípulo de Platão, definia o tempo como
“um todo e uma quantidade contínua” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 259).
Contudo, foi o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) que afirmou que o tempo, as-
sim como o espaço, é algo dado como condição da possibilidade da nossa sensibilidade. Para Kant
(apud ABBAGNANO, 2007), o tempo seria, portanto, uma intuição interna, uma ferramenta da
nossa razão sem a qual não conseguiríamos perceber nada com os nossos sentidos. Dessa forma,
segundo o filósofo, só percebemos algo porque inserimos esse “algo” em categorias preexistentes
em nossa razão, e estas seriam o tempo e o espaço.
Figura 2 – A percepção das coisas
AntonioGuillem/iStock.com
Mas, se para Kant o tempo é a condição preexistente sem a qual nossa razão não perceberia
os fenômenos, para muitas pessoas o tempo é a própria duração desses fenômenos, ou seja: o in-
tervalo entre um “antes”, um “agora” e um “depois”, e que pode também ser representado pelas ca-
tegorias “passado”, “presente” e “futuro”. Mas será, então, que tempo nada mais é do que a duração?
Foi um outro filósofo da nossa era, o francês Henri Bergson (1859-1941), que desenvolveu
uma importante contribuição para esclarecer os conceitos de tempo e duração. Segundo Bergson
(2006), o tempo é algo homogêneo, abstrato, parte do pensamento social e científico, e pode ser
fracionado em partes menores, como os instantes, para facilitar seu uso e entendimento, mas que,
em si, não é real. Já a duração é um “dado imediato da consciência, apresentado pela consciência
subjetiva e que dá sentido à nossa experiência” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 259). Assim,
esta seria um dado preexistente ao nosso pensamento que torna possível e dá sentido às nossas
experiências: tudo o que percebemos o fazemos com base em uma noção subjetiva de duração.
Para nos valermos de uma síntese criada pelo filósofo e matemático francês René Descartes
(1596-1650), o tempo pode ser entendido como o número do movimento, ou ainda, a medida da
duração (ABBAGNANO, 2007, p. 945).
Agora que você já conheceu algumas definições sobre tempo, diferenciando tempo de duração,
pense você mesmo em um significado. Como você definiria o tempo? E a duração? Por que pensar os
fenômenos inseridos num determinado tempo e buscar entender sua duração é importante para os
estudos históricos? Quais as estratégias que as sociedades têm criado, ao longo dos séculos, para fra-
cionar a duração de fenômenos, como dia, noite, estações do ano, em intervalos menores de tempo?
Fique atento e não “perca tempo”, pois é sobre isso que veremos a seguir!
3 Estudiosos costumam usar o termo Neolítico (palavra de origem grega cujo significado seria “pedra nova”) para se
referir a uma fase do desenvolvimento material atingida por diferentes grupos humanos ao redor do planeta a partir de 12
mil a 10 mil anos a.C. Essa fase foi caracterizada pelo desenvolvimento de instrumentos de pedra polida (daí a designação
“pedra nova”) e pela descoberta da agricultura e da pecuária, fatores que impulsionaram a sedentarização e o desenvolvi-
mento da vida em sociedade. O desenvolvimento da agricultura representou uma verdadeira revolução, um salto na longa
etapa do desenvolvimento humano: “Além dos machados e enxadas que podem fabricar-se pelo polimento de todos os
tipos de pedras duras e passíveis de serem afiadas várias vezes, essa época é marcada por outras inovações revolucioná-
rias, como a construção de moradias duráveis, a cerâmica de argila cozida e os primeiros desenvolvimentos da agricultura
e da criação. Entre 10.000 e 5.000 anos antes de nossa Era, algumas dessas sociedades neolíticas tinham, com efeito,
começado a semear plantas e manter animais em cativeiro, com vistas a multiplicá-los e utilizar-se de seus produtos.
Nessa mesma época, após algum tempo, essas plantas e esses animais especialmente escolhidos e explorados foram
domesticados e, dessa forma, essas sociedades de predadores se transformaram por si mesmas, paulatinamente, em
sociedades de cultivadores. Desde então, essas sociedades introduziram e desenvolveram espécies domesticadas na
maior parte dos ecossistemas do planeta, transformando-os, então, por seu trabalho, em ecossistemas cultivados, artifi-
cializados, cada vez mais distintos dos ecossistemas naturais originais.” (MAZOYER, M.; ROUDART, L., 2010, p. 68-69).
Tempo, temporalidades e cronologia 13
em doze meses, para de novo iniciar. Esse ciclo, ao qual corresponde a alternância de quatro esta-
ções, fecha um ano solar completo. A sua observação serviu de base para alguns dos primeiros e
mais antigos calendários criados por civilizações, como a egípcia, por exemplo (DUNCAN, 1999).
Figura 3 – Ciclo lunar
Delpixart/iStock.com
Imagem representando a alternância das fases da Lua em um ciclo lunar completo. A observação e
a divisão dos intervalos de tempo relativo a esse ciclo estão na origem do fracionamento da duração
dos fenômenos em períodos maiores de tempo, como as semanas e os meses.
tais como secas, enchentes ou nevascas – nota-se que nessa compreensão até mesmo os deuses e
suas ações têm uma trajetória cíclica (GLEISER, 1997, p. 17).
A compreensão de tempo cíclico, presente não apenas nas primeiras sociedades do Oriente
Médio e Norte da África, como também da Europa – cretenses, gregos e romanos – opôs-se à visão
judaico-cristã de tempo linear. Essa temporalidade está na base do cristianismo e constitui-se, a
partir do fim da Antiguidade, na forma oficial de percepção e contagem do tempo no Ocidente,
como veremos a seguir.
que, segundo o calendário juliano, tinha 29 dias nos anos comuns, e 30 dias nos anos b issextos. A par-
tir de então, fevereiro passou a ter 28 dias nos anos comuns e 29 dias nos anos bissextos (DUNCAN,
1999). No ano de 325 da nossa era, durante o Concílio de Niceia, a Igreja católica adotou o calendário
juliano como o oficial da cristandade, alterando seu marco inicial: antes, esse marco era a fundação
de Roma, que segundo a tradição, teria ocorrido em 753 a.C. pelo rei Rômulo; a partir desse Concílio,
o marco inicial passou a ser o Nascimento de Jesus Cristo (DUNCAN, 1999).
As datas foram, então, recalculadas e tudo o que aconteceu antes de Cristo passou a ser con-
tado em ordem decrescente, das datas mais antigas às mais próximas do ano do seu nascimento,
que passou a ser considerado o Ano I da Era Cristã.
Esse calendário foi reformado ainda mais uma vez: isso ocorreu entre 1572 e 1582, no século
XVI, durante o pontificado do Papa Gregório. Por isso, o calendário que atualmente conhecemos
é também chamado de gregoriano.
Figura 4 – Afresco de Giotto
Giotto di Bondone/iStock.com
O nascimento do líder religioso de origem judaica, Jesus Cristo, foi escolhido pela
Igreja católica romana como o marco inicial do calendário europeu. Por ter sido
colonizado por Portugal, país cristão, no século XVI, o Brasil tem como calendário
oficial o calendário cristão, segundo o qual estaríamos nas décadas iniciais do
terceiro milênio depois de Cristo.
Fonte: BONDONE, Giotto di. A Natividade. c. 1304-1306. Afresco. Capela Arena, Pádua, Itália.
Na atualidade, existem pelo menos 40 calendários em uso em todo o mundo. Cada um deles
possui um marco inicial, relativo a algum acontecimento considerado muito importante por cada
cultura (LAS CASAS, 2002). Alguns dos calendários atuais mais conhecidos são:
16 Introdução aos estudos históricos
Em nossa sociedade vigora a linear compreensão ocidental e cristã de tempo, que compreen-
de o tempo como um fio de linha muito comprido, que começa a ser desenrolado em um ponto ini-
cial, associado a um passado remoto, e prossegue em linha reta rumo ao futuro. A sua, a minha, a
nossa trajetória de vida se situam em um ponto qualquer dessa linha. Como vimos, essa concepção
linear de tempo se manifesta no calendário cristão, que tem como marco inicial o nascimento de
Cristo, quando todos os demais acontecimentos passaram a ser contados, em ordem cronológica,
desde os mais antigos até os mais recentes. Esse calendário é influenciado pela noção judaico-cristã
de que o tempo começou quando começou o mundo, o qual teve origem na criação divina e terá
fim também pela ação divina. Essa linha comprida, que vai da criação ao fim do mundo, permeia
a noção de temporalidade ocidental, que é linear.
Mas vimos também que essa não é a única noção de tempo que existiu ou que existe. Há cul-
turas, como algumas civilizações pré-cristãs e algumas sociedades indígenas tradicionais atualmente
existentes, para as quais a noção de tempo é cíclica: o tempo não se manifestaria como um fio de linha
muito comprido que parte do passado e vai até o futuro passando pelo presente. Para essas socieda-
des, o tempo seria cíclico, ou seja, desenvolve sua trajetória de modo a sempre retornar a um ponto
inicial. Nessa concepção, a ideia de futuro como algo diferente do passado não se sustenta – a própria
ideia de futuro como mudança não se sustenta. Presente e futuro reafirmam e retornam sempre a um
passado remoto, primordial, no qual se encontra a origem e o sentido de tudo.
Figura 5 – Noções de tempo
Tempo linear
Tempo cíclico
Fonte: Elaborada pela autora.
Tempo, temporalidades e cronologia 17
As noções de tempo variam de uma sociedade para outra, e de uma época para outra, assim
como a sua percepção e as tentativas de sua mensuração, contagem e representação.
As diferentes temporalidades manifestam as diferenças culturais entre sociedades diferentes,
em uma mesma época – por exemplo, concepções cíclicas e lineares de tempo – e também as dife-
renças no interior de uma mesma sociedade, de uma época para outra. Por exemplo: você já ouviu
a expressão: “antigamente, o tempo passava mais devagar”? Esse tipo de máxima provém, quase
sempre, de pessoas mais idosas, que viveram sua juventude em uma outra época, e que consideram
a época atual mais acelerada do que aquela em que foram jovens.
Não se pode, portanto, separar os dispositivos temporais das sociedades em que estão inseri-
dos. Isso vale também para a cronologia. Mas, o que é cronologia? É sobre isso que veremos a seguir.
Lembre-se de que os algarismos romanos só podem ser repetidos até três vezes e que um
algarismo romano à direita de um número significa acréscimo; à esquerda, significa subtração. Por
exemplo: XIX: (19 ou 20 -1); XXI: (21 ou 20 + 1).
Considerações finais
Neste capítulo, demos início aos nossos estudos sobre História. Para isso, discutimos concei-
tos fundamentais para a disciplina, tais como: tempo, duração, temporalidades e cronologia. Você
pôde perceber, entre outras coisas, que o tempo, como fracionamento das durações que nossa sub-
jetividade percebe nos fenômenos a nossa volta, é uma abstração – e não algo absoluto.
Não obstante, das diferentes formas de inferir, conceituar e medir o tempo se desenvolvem dis-
positivos, como as horas, os relógios, os calendários e as cronologias. Esses dispositivos manifestam
as diferentes temporalidades, ou seja, as diversas formas pelas quais as sociedades se relacionam com
a ideia de tempo, em épocas distintas.
As estratégias de temporalidade são arbitrárias e culturais. Elas indicam um dos mais antigos
anseios humanos: localizar-se, definir-se e afirmar-se em meio a imensidão do Cosmo.
Tempo, temporalidades e cronologia 19
Atividades
1. Diferencie tempo e duração com base no que estudamos em Bergson (1859-1941), Kant
(1724-1804) e Descartes (1596-1650).
2. Por que se pode afirmar que toda tentativa de estabelecimento de cronologias é social, cul-
tural e arbitrária?
Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ARISTÓTELES. Categorias. In: JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. 3. ed. rev. e
aum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BERGSON, H. Duração e simultaneidade. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
(Coleção Tópicos).
CARDOSO, C. F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Primeiros Passos).
GLEISER, M. A dança do universo: dos mitos de criação ao big-bang. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
LAS CASAS, R. Calendários. ICEx. Caeté, MG, 2002. Disponível em: http://www.observatorio.ufmg.br/
pas39.htm. Acesso em: 11 fev. 2019.
MAZOYER, M.; ROUDART, L. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea.
Tradução de Cláudia F. Falluh Balduino Ferreira. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: NEAD, 2010.
Disponível em: http://www.ufrgs.br/pgdr/publicacoes/producaotextual/lovois-de-andrade-miguel-1/
mazoyer-m-roudart-l-historia-das-agriculturas-no-mundo-do-neolitico-a-crise-contemporanea-brasilia-
neadmda-sao-paulo-editora-unesp-2010-568-p-il. Acesso em: 27 jan. 2019.
SAINT AUGUSTIN. Livre XI. chap. XIV. Paris: Garnier-Himmarion, 1964. p. 264. In: DOSSE, F. A História.
Tradução de Elena Ortiz Assumpção. Bauru: EDUSC, 2003. p. 7.
TOMAZI, N. D. Tempo, história e cronologia. História e Ensino. Londrina, v. 8, edição especial, p. 27-36, out.
2002. p. 28. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view/12153/10669.
Acesso em: 29 jan. 2019.
2
Epistemologia do estudo da História
O que a palavra História significa? É possível fazer um estudo histórico do sentido atribuído
a essa expressão ao longo da tradição ocidental? Que sentido tinha quando foi cunhada, ainda
pelos gregos, na Antiguidade? Esse sentido permaneceu o mesmo ou variou ao longo dos séculos?
Neste capítulo, vamos tentar compreender melhor os elementos constitutivos e as especi-
ficidades da escrita da História da forma como foi concebida no Ocidente, desde a Antiguidade
até a Modernidade. Entender o modus operandi da História, iniciando pela etimologia da palavra
história e passando pelos diversos significados que a perspectiva histórica da sociedade manifes-
tou, desde os gregos até o século XIX, é o nosso desafio. Vamos inventariar a trajetória da palavra e
do significado do termo história, situando-a entre a Ciência e a Filosofia e buscando entender, no
contexto de sua constituição como Ciência – o século XIX –, qual sua especificidade em relação à
Filosofia e a outras ciências humanas.
1 Marc Bloch (1886-1944) foi um historiador francês, fundador, juntamente com Lucien Febvre (1878-1956), da Revista
Annales d'Histoire Économique et Sociale (Análises de História Econômica e Social), em 1929. A revista viria a revolucionar
o conceito de estudo de História até então vigente, originando um movimento de renovação historiográfica conhecido
como “Escola de Annales”. As reflexões sobre a origem do termo História e as especificidades do estudo da História estão
no livro Apologia da história ou o ofício do historiador, escrito por Marc Bloch durante o período em que esteve na prisão,
por volta de 1941, por atuar na resistência contra a ocupação nazista alemã sobre a França. Fuzilado em 1944, Marc Bloch
teve essa sua obra publicada postumamente, em 1949, por Lucien Febvre (a esse respeito, ver o prefácio da obra: BLOCH,
M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002).
Epistemologia do estudo da História 23
persas; os babilônios, que caem sob o julgo do rei persa Ciro; e os egípcios, também conquistados
pelos persas sob o reinado do rei Cambises.
Dessa forma, no texto de Heródoto o leitor tem acesso não apenas a aspectos da formação
do homem grego e da constituição política e militar da Hélade (forma como era chamado o con-
junto das polis gregas e suas colônias na Antiguidade), mas também de povos da Ásia (babilônicos,
assírios, persas) e África (egípcios). Esse conhecimento do “outro” se dá, segundo os critérios dos
gregos (que entendiam os persas como bárbaros2) porque sua forma de falar e ser era “estranha”, se
comparada à grega (SILVA, 2015).
Ainda que buscasse se diferenciar, textualmente e metodologicamente, dos textos de poesia
épica e dos textos filosóficos então existentes, os textos de Heródoto são permeados pela influência
desses dois outros tipos de conhecimento, assim como por elementos presentes na tradição mi-
tológica grega. A influência da poesia épica, herdeira da mitologia, manifesta-se na descrição de
determinados personagens da História de Heródoto, que são apresentados com as mesmas caracte-
rísticas de heróis de poemas épicos como a Ilíada, atribuída ao poeta Homero (século VIII a.C.), e
que tratava da Guerra de Troia. Já a influência do pensamento filosófico manifesta-se na tentativa
presente nos textos de Homero de tentar encontrar o sentido daquilo que se está narrando, tentan-
do compreender tanto as causas quanto os efeitos das ações humanas, isto é, suas consequências.
As consequências das ações observadas por Heródoto sob a perspectiva de cau-
sas e efeitos ora são explicadas por um pensamento mítico, ora justificadas por
fatos, ora por suas práticas culturais, ou ainda por seu caráter, por uma noção
de justiça operada pelos deuses que é materializada nos revezes ou nos sucessos
das suas personagens. Enfim, notamos na narrativa herodotiana a transição
do pensamento mítico para um mais racional, que resulta em sua visão mais
racional do mito, embora o maravilhoso não seja totalmente descartado de sua
compreensão dos fatos. (SILVA, 2015, p. 40)
2 No século V a.C., segundo os gregos, os persas e outros povos com idiomas guturais (cujos sons da fala eram,
em sua maioria, produzidos na garganta) falavam como se pronunciassem as sílabas “bar, bar, bar”, como se fossem
gagos. Daí o termo bárbaro como “aquele que não sabe falar”. Tal conotação manifesta a forma pejorativa pela qual os
gregos se referiam aos povos diferentes deles. O termo seria incorporado pelos romanos, que conquistaram os gregos.
Na Antiguidade, os romanos chamavam de bárbaros os povos que não partilhavam da língua e da cultura latina.
24 Introdução aos estudos históricos
Macedônia
Tessália Eólia
Mar Egeu
Termópilas
Beócia
Jônia
Atenas
Corinto
Peloponeso Pireu
Argos
Apesar da obra desses historiadores ter chegado até os nossos tempos mais completa, exis-
tiram inúmeros outros, de cujas obras sobreviveram apenas fragmentos. Eles foram sendo citados
por outros historiadores, sobretudo romanos, e que representam, do século V a.C. ao século IV da
nossa era, um longo período de pelo menos 800 anos de historiografia greco-latina.
Silva (2015, p. 9) ressalta que tentativas de arrolamento de fragmentos de textos de his-
toriadores gregos foram efetivadas também por historiadores modernos, entre eles, Felix Jacoby
(1876-1959), um estudioso da língua e classicista de origem alemã que catalogou uma edição crí-
tica de 856 historiadores gregos cuja obra chegou até a época contemporânea fragmentada. Com
seu estudo, dividiu-se a historiografia grega antiga em cinco categorias ou estilos fundamentais, a
saber: Mitografia, Etnografia, Cronografia, Zeitgeschichte (história) e Orografia ou História Local.
[...] Mitografia, que reunia e ordenava as tradições gregas e as narrativas mito-
lógicas; Etnografia, um estudo dos países, povos e seus costumes; Cronografia,
que catalogava os eventos de anos individuais utilizando um sistema de datação
local, mas mapeando eventos de toda a Grécia; Zeitgeschichte, agrupando a his-
tória grega contemporânea ou ocorrida até o tempo dos autores que a estavam
registrando; Orografia ou História Local, que geralmente concentrava-se em
narrar a história de uma Cidade-Estado específica. (SILVA, 2015, p. 9)
26 Introdução aos estudos históricos
Ainda na Antiguidade, sobretudo entre os séculos I a.C. e IV da Era Cristã, merecem des-
taque também os historiadores romanos, entre eles: Salústio (86 a.C. a 34 a.C.); Tito Lívio (59 a.C.
a 17 da Era Cristã); Tácito (56 a 117 da Era Cristã); Plutarco (46 a 119/120 da Era Cristã) Sexto
Aurélio (320 a 390 da Era Cristã) e Amiano Marcelino (325-330 a 400).
A origem da historiografia latina remonta aos calendários organizados pelos antigos sacer-
dotes romanos, no período pré-cristão. Textos de conteúdo e abordagem histórica apareciam tam-
bém nos arquivos particulares das famílias nobres, que encomendavam biografias; e nos anais dos
magistrados – libri magistratum (funcionários do governo) romanos. Fortemente influenciados
pela historiografia grega, os primeiros historiadores romanos, do século II a.C., inclusive escreve-
ram seus textos em língua grega.
A historiografia romana ou latina, no entanto, foi aos poucos afastando-se da influência
grega para adquirir feições próprias na obra de autores como Tito Lívio e Tácito. O estilo das obras
históricas produzidas por esses dois historiadores era a retórica3, algo presente tanto na obra Anais,
de Tácito, quanto na obra História de Roma, de Tito Lívio. A característica central das obras da
historiografia romana antiga era o ensinamento do orador, filósofo e político romano Cícero (106
a.C. a 43 a.C.) em sua obra Da Oratória (De Oratore) de que a História era a mestra da vida (historia
magistra vitae).
O que isso queria dizer? Que para os grandes historiadores romanos da Antiguidade, a
História deveria privilegiar os feitos e ações de homens que, por sua excepcionalidade, bravura,
coragem, honradez, caráter e também por seus erros serviriam de exemplo para toda a sociedade.
O texto histórico, assim, ao evocar, de forma retórica (uma linguagem que primava pela beleza da
escrita) feitos políticos, religiosos e militares dos chamados grandes homens (daí muitas vezes o
caráter biográfico desses textos) serviria quase que como um manual de conduta a ser seguido. A
finalidade era o exemplo, o aprendizado: a possibilidade de aprender com os erros e acertos dos
feitos desses homens era, portanto, o foco central dos textos dos historiadores romanos do século
I a.C. ao século II da Era Cristã:
A principal concepção norteadora da historiografia romana foi a historia magistra
vitae que, tendo como base fundamental o exemplo – válido para qualquer tempo
e lugar –, objetivava produzir ensinamento através dos feitos e homens ilustres
do passado. Por meio da exposição dos grandes exemplos históricos, esperava-se
incentivar a imitação e repetição das ações. (VARELLA, 2008, p. 72, grifo nosso)
Essa ideia da história-exemplo, cujo o texto se desenrola por meio da alusão aos erros e acertos
de pessoas poderosas e ilustres (quase que um propósito moral da passagem do vício para a virtude),
expressa-se nas palavras do historiador Tito Lívio (2001, p. 207 apud VARELLA, 2008, p. 72): “o que
principalmente há de são e fecundo no conhecimento dos fatos é que consideres todos os modelos
exemplares, depositados num monumento, em plena luz: daí colhes para ti e para o teu estado o que
imitar; daí evitas o que é infame em sua concepção e em sua realização”.
3 A retórica pode ser conceituada como a “arte de persuadir com o uso de instrumentos linguísticos” (ABBAGNANO,
2007, p. 876) ou, ainda, uma técnica a partir da qual o orador ou autor se vale de técnicas e expressões elaboradas para
adornar a linguagem, “enfeitando” o seu discurso e tornando-o belo, agradável, passível de convencer o leitor/ouvinte.
Epistemologia do estudo da História 27
Notemos também que em Tácito essa ideia de uma História-exemplo, mediante a alusão
tanto aos feitos mais notáveis quanto aos mais baixos de homens ilustres, conforme destaca em sua
obra Anais:
Não é meu intento referir senão as opiniões que se fizeram mais notáveis ou pela
sua decência ou pela sua insigne baixeza: porque creio ser o principal objeto
dos anais pôr em evidência as grandes virtudes, assim como revelar todos os
discursos e ações vergonhosas, para que, ao menos, o receio da posteridade
acautele os outros em caírem nas mesmas infâmias. (TÁCITO, 1952, p. 54 apud
VARELLA, 2008, p. 71)
Vale destacar também o embricamento entre História e biografia na obra desses historia-
dores, notadamente, na obra Vidas Paralelas, do prosador da antiga Beócia: Plutarco. A obra é a
compilação de várias biografias escritas por Plutarco entre os séculos I e II da nossa era e trazia
sempre a vida de um ilustre governante, chefe militar ou legislador grego em paralelo a de um ilus-
tre romano. Seu objetivo parecia ser evocar, além de aspectos relacionados aos seus feitos políticos
e militares, curiosidades e questões relativas à vida pessoal dos personagens biografados, como é
o caso do texto em que compara o governante romano Júlio César (séc. I a.C.) ao conquistador
grego-macedônico Alexandre, o Grande (séc. IV a.C.).
Finalmente, é válido mencionar que na escritura desses textos a preocupação com a vera-
cidade e autenticidade das fontes consultadas não se manifestava: na obra Vidas Paralelas, por
exemplo, em diversas ocasiões Plutarco se vale de frases do tipo “segundo se ouviu dizer”, ou seja,
a “doxografia” (ou escrita a partir da opinião) era amplamente utilizada. Isso porque a legitimidade
do texto se devia à forma como era escrito e ao caráter do seu conteúdo, associados ao prestígio do
autor, e não necessariamente à autenticidade das fontes consultadas. A ideia de uma escrita históri-
ca científica, que teria por base fontes empíricas, vestígios da época sobre a qual o historiador está
escrevendo, só apareceria com a criação do método histórico pelo historiador alemão Leopold Von
Ranke, no século XIX da nossa era.
Entre as características intrínsecas desse tipo de produção, desvenda-se uma ideia de histó-
ria preocupada, entre outras coisas, com uma determinada concepção de verdade e como memori-
zação relativa a feitos e funções sociais de pessoas do passado, especialmente santos, mártires e reis.
Tais preocupações são expostas em: criação de monumentos e imagens, menção a pessoas falecidas
em missas funerárias, narrativas de caráter genealógico criadas para serem recitadas, livros (como
os de orações, de salmos, entre outros) e textos para acompanhar cerimônias e rituais públicos
(SILVA, 2015, p. 13).
É importante destacar que durante a Idade Média, no Ocidente europeu, o processo de tradu-
ção, compilação e encadernação dos textos em códices (grandes livros escritos e ilustrados à mão)
ficava concentrado nos mosteiros, ao cargo dos chamados monges copistas. Nessa época, o processo
de produção de um livro-códice era trabalhoso e demorado, e o acesso a livros era muito restrito.
Além disso, grande parte da população, composta por camponeses, era analfabeta, fato que
explica a presença significativa de imagens, as chamadas iluminuras, nesses livros: serviam para
ilustrar, iluminar e esclarecer o conteúdo dos textos para os leigos (iletrados). Assim, uma pessoa
lia para que muitas ouvissem e, dessa forma, os textos também eram escritos para serem lidos pu-
blicamente, o que interferiu sobremaneira no estilo da escrita medieval.
Epistemologia do estudo da História 29
Ainda sobre a ideia de História presente nos escritos medievais, merece destaque a forma
como a história enquanto trajetória do tempo humano e mundano passou a ser concebida pelo
pensamento do filósofo e teólogo Santo Agostinho (354 a 430 da nossa era). O também chamado
Bispo de Hipona, no Norte da África, durante a decadência do Império Romano do Ocidente, é
considerado o último grande filósofo da Antiguidade tardia e o primeiro filósofo a influenciar o
pensamento medieval.
Para entendermos a noção de História em Santo Agostinho, faz-se necessário, primeiramen-
te, alguma noção sobre como o filósofo de Hipona compreendia o tempo. Em uma de suas obras
mais introspectivas, chamada Confissões, mais especificamente no Livro XI, ele manifesta a com-
preensão de que o tempo é uma construção própria do homem, algo subjetivo, uma maneira pela
qual se relaciona com os eventos que acontecem, que já aconteceram ou que ainda estão por vir.
30 Introdução aos estudos históricos
Tanto a morte quanto o tempo passaram a fazer parte da existência humana por causa do peca-
do, o qual representou a ruptura do homem para com o amor de Deus (CARNEIRO, 2004, p. 221-222).
Deus, por ser eterno, não só está fora do tempo como é o criador do tempo. A condição do tempo, na
eternidade, é um presente ininterrupto:
Na eternidade nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo
presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro
está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam
d’Aquele que sempre é presente. Quem poderá prender o coração do homem,
para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado,
não sendo ela nem passado nem futuro? Poderá, porventura, a minha mão que
escreve explicar isso? Poderá a atividade da minha língua conseguir pela palavra
realizar a empresa tão grandiosa? (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 216 apud
CARNEIRO, 2004, p. 223)
Essa percepção sobre o tempo se manifesta em outra obra de Santo Agostinho, intitulada
A cidade de Deus. Ela pode ser interpretada, de uma forma muito breve e a grosso modo, como o
reino celestial, o reino de Deus, que é perfeito, eterno, imutável, espiritual. Já a Cidade dos Homens
pode ser interpretada como a civilização, a vida material criada pelo homem que, pelo pecado,
afastou-se do reino de Deus. É a vida social, temporal, material, sujeita à degradação, à mudança
e à morte.
Deus, que é eterno, criou o mundo, e ao criar o mundo, criou o tempo. A temporalidade hu-
mana é diferente da divina, que é eterna. Logo, o homem cria sua própria forma de temporalidade
quando cria, apartado de Deus, uma realidade paralela ao Reino ou Cidade de Deus: é a Cidade
dos Homens. Esse mundo humano, essa “cidade temporal”, “material”, é originada da arrogância do
homem diante do amor de Deus, ou seja, tem sua origem no pecado.
O maior de todos os seres visíveis é o mundo; o maior dos invisíveis, Deus. Mas
o mundo vemos que existe e na existência de Deus cremos. Quanto a Deus ter
feito o mundo, a ninguém podemos dar maior crédito que ao próprio Deus. [...]
Assim, pois, creiam também na possibilidade de criação temporal do mundo e
em que Deus, portanto, ao fazê-lo, não mudou seu eterno conselho e vontade.
(SANTO AGOSTINHO, 2008, p. 22-23)
Mas Deus, que é amor, manifesta-se como Verbo através da encarnação de Cristo e dá ao
homem uma outra chance: a de reconhecer o pecado, dele se arrepender e voltar para Deus. Cristo,
o Verbo encarnado, é o restabelecimento da ligação entre o homem e Deus, uma vez que, vencendo
a morte, venceu também o pecado e o tempo:
O homem, criado por Deus a sua imagem e semelhança, foi conduzido à morte
e ao tempo por força do pecado, que significou uma ruptura com Deus. Porém,
por Cristo – que é o cordeiro de Deus que deu sua vida para livrar o homem
do pecado – pode restabelecer a ligação com Deus e fazer de sua vida no tempo
uma preparação para a vida eterna. (CARNEIRO, 2004, p. 222)
Os homens, segundo a interpretação de Santo Agostinho (2008), mais uma vez, mostraram-
-se arrogantes diante do amor de Deus: Cristo foi condenado e executado. O Verbo, no entanto,
permanece vivo no Espírito, que anima e dá vida à religião cristã. A Igreja, constituída com base no
Espírito Santo (terceira pessoa da Santíssima Trindade) e embasada nos ensinamentos e dogmas
Epistemologia do estudo da História 31
revelados aos santos e mártires, representa a presença de Deus na Cidade dos Homens, na esperan-
ça de que os homens todos se voltem para Deus.
Assim, a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens caminham em paralelo, juntas, até o fim
dos tempos – que será o fim do mundo material. A história humana seria, então, essa trajetória
da passagem do material para o espiritual, do terreno para o celestial, do humano para o divino,
do temporal para o eterno. O fim do mundo representaria, ao mesmo tempo, o fim dessa tempo-
ralidade humana e sua diluição na eternidade. Significaria, para Santo Agostinho (2008), o fim
da História.
Notemos que no filósofo e teólogo de Hipona, a História tem uma conotação teleológica (do
grego teleos = fim), ou seja, caminha para o fim. Essa compreensão se tornaria a base do pensamen-
to clerical medieval, permeando os sermões, os livros, as ilustrações dos livros, as preces e todas as
manifestações da cultura formal dominante (a católica) tanto em seu aspecto escrito quanto oral.
As concepções medievais sobre tempo e história, profundamente influenciadas pelo pensa-
mento agostiniano, e que permearam toda a chamada Alta Idade Média (séculos V ao X da nossa
era) passariam por modificações e atualizações a partir dos séculos XI e XII, com um movimento
filosófico que ficou conhecido como Escolástica4 e que teve na obra do filósofo e teólogo cristão
São Tomás de Aquino (1225-1274) o seu mais expressivo representante.
O aspecto central da doutrina escolástica era a tentativa de conciliar os dogmas da fé, advin-
dos da Revelação, e a Razão, concebida pelo pensamento filosófico clássico, sobretudo, platônico
e aristotélico.
O método empregado pelos escolásticos, era, preferencialmente, o da dialética (embate de
teses) e o ambiente onde se desenvolveu esse tipo de pensamento foram as primeiras universidades
europeias, nascidas a partir do século XI em regiões da Itália, França e Inglaterra – daí o nome
Escolástica (de Escola).
Entre os principais expoentes do pensamento escolástico, anteriores à Aquino, podemos citar:
Pedro Lombardo (1100-1160); Abelardo (1079-1142); Anselmo de Canterbury (1033/34 a 1109) e
Bernardo de Claraval (1090-1153).
No primeiro período da Escolástica, que vai do século IX ao século XI, foi marcante a in-
fluência do pensamento de Santo Agostinho e do filósofo Platão, mas seu período áureo se deu no
século XIII com a filosofia de Tomás de Aquino, grandemente influenciada pela filosofia aristoté-
lica (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001). A principal obra de Tomás de Aquino é a Suma Teológica,
escrita entre 1265 e 1273; uma obra extensa, complexa e que marcou fortemente o pensamento
ocidental no final da Idade Média.
Segundo Brozele (2014), na obra de Tomás de Aquino deslinda-se a ideia de História como
revelação de uma ética divina manifesta na Sagrada Escritura. A essa manifestação atribui o caráter
de uma “Lei Divina” a qual se manifesta em dois momentos: uma Lei Antiga (Antigo Testamento) e
4 O termo escolástica significa originalmente “doutrina da escola” e “[...] designa os ensinamentos de filosofia e teo-
logia ministrados nas escolas eclesiásticas e universidades europeias durante o período medieval, sobretudo entre os
sécs. IX e XVII” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 87).
32 Introdução aos estudos históricos
uma Lei Nova (Novo Testamento). A Lei Divina conduz didaticamente os homens para o encontro
com aquele que é criador e redentor, e que se revela plenamente no Novo Testamento. O tempo é
o tempo da revelação, manifestada na Sagrada Escritura e cuja verdade pode ser confirmada tanto
pela razão quanto pela fé (BROZELE, 2014).
Essa ideia de tempo e de história se coaduna, tanto com os ensinamentos da Bíblia quanto
com a ideia aristotélica de que tudo o que existe tem uma finalidade – todo ser, tem, entre suas
causas, uma causa final. Essa causa final (ou finalidade) é a realização daquilo que o distingue
dos demais e na sua realização reside o seu bem. Sendo a racionalidade o aspecto que distingue o
homem dos demais seres vivos, ele só se realiza plenamente, só é feliz, atingindo a finalidade de
sua existência, que é a plenitude da razão, segundo Aristóteles (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001).
Ora, segundo Aquino, que parte do finalismo aristotélico e tenta conciliar tal ensinamento com os
preceitos do Cristianismo, a criatura racional só se realiza plenamente quando se reencontra com
seu Criador, o Sumo Bem. A trajetória da razão é também a trajetória do homem em busca de sua
finalidade. A Lei Divina expressa na Sagrada Escritura manifesta o aspecto histórico-finalista dessa
“marcha” do homem para Deus. O tempo é o tempo da revelação e da redenção.
A lei divina é, por assim dizer, a intervenção da graça de Deus, a interpelação de
Deus na história humana, que convoca a humanidade para o seu fim: a beatitu-
de é o fim último [...]. Esse fim sobrenatural colimado pela existência humana
recebe o auxílio da norma divina que é, antes de tudo, um acontecimento histó-
rico que revela a instituição da lei de Moisés positivamente dada pelo Criador.
(BROZELE, 2014, p. 131)
Situado entre os séculos XV e XVII, esse movimento foi marcado pelo interesse de eruditos,
filósofos, cientistas e teóricos em renovar as bases epistemológicas sobre a natureza, os astros e o
homem, rompendo com preceitos oriundos do pensamento cristão e buscando, em referências da
Antiguidade Clássica, a inspiração para renovar as bases do conhecimento, consolidando-o sob um
viés racional e empírico.
O Renascimento científico desenvolveu-se no bojo dos avanços técnicos, cientí-
ficos e teóricos ocorridos ainda durante o Renascimento artístico no Ocidente,
e estendeu-se entre os anos de 1450 e 1600. Foi marcado pela prática huma-
nista de recuperação, edição, tradução e comentário de textos da Antiguidade
Clássica – notadamente os relacionados à matemática e à filosofia natural.
(LOBO; PORTELLA, 2017, p. 52)
De acordo com Souza (2001), em sua obra De augmentis scientiarum (“O avanço da ciência”),
publicada em 1626, o cientista inglês Bacon apresenta um audacioso projeto de reestruturação das
ciências. Este seria pautado naquilo que ele definiu como filosofia natural, a qual deveria nortear o
conhecimento científico e estaria amparada no “trato direto das coisas” (SOUZA, 2001, p. 17). Para
Bacon, o conhecimento científico se daria pela via indutiva (partir do particular para o geral) em um
trabalho conjunto entre intelecto e sentidos, mas assentado no primado da empiria (experiência) e da
observação sobre a especulação teórica (SOUZA, 2001, p. 17).
É no interior desse projeto que se desvela a ideia de História para Bacon. Segundo o filósofo-
-cientista5, entre os escritos sobre o homem, a história civil (que não pode ser confundida com a história
natural) deveria ocupar um lugar central. Isso porque seria por intermédio da história que teríamos
acesso “aos exemplos de nossos ancestrais, que reconhecemos as vicissitudes das coisas, os fundamentos
da prudência e da reputação dos homens” (SOUZA, 2001, p. 16).
5 É importante lembrar que no início do século XVII essas duas áreas do conhecimento ainda não estavam comple-
tamente separadas.
Epistemologia do estudo da História 35
Bacon dividia as ciências de acordo com o critério das faculdades da alma, considerada por
ele a “sede do conhecimento” (SOUZA, 2001, p. 17). Segundo esse critério, seriam três os tipos de
ciência: “Assim, toda ciência humana se divide em três partes: a história, que remete à faculdade da
memória, a poesia, que remete à imaginação, e a filosofia, que remete à razão. A história, por sua
vez, se divide em história natural e história civil” (SOUZA, 2001, p. 17).
Observemos que Bacon relaciona História à memória. Para ele, a História, entre os escritos
do homem, é a que considera os indivíduos circunscritos no tempo e no espaço e é única capaz
de inventariar esses indivíduos, rememorando seus feitos, evocando os exemplos dos ancestrais.
O objeto da História é, portanto, o singular, o indivíduo, ou os indivíduos (o singular, aquilo que é
apreendido pelos sentidos), dos quais se extraem os exemplos, as máximas (generalizações, feitas
pela razão) (SOUZA, 2001, p. 17).
Mas, se a História é o estudo dos feitos dos indivíduos no passado, como é possível ao estu-
dioso da História Civil realizar tal feito, sendo que ele vive no presente? Tal paradoxo não passou
desapercebido a Bacon que, como vemos, manifesta uma compreensão diferenciada de História
em relação ao pensamento agostiniano e tomista:
é preciso que o historiador possa transportar seu espírito para o passado, torná-lo,
por assim dizer, antigo, apresentar os movimentos dos séculos, observar o caráter
dos personagens, as forças secretas que conduzem as ações, os motivos escondi-
dos dos Estados. Tudo isso é tarefa delicada que exige muita atividade e muito
juízo. (SOUZA, 2001, p. 22)
Bacon divide a História Civil em três tipos: as memórias, as antiguidades e a história perfeita.
No primeiro tipo, há a mera exposição dos acontecimentos de forma encadeada, segundo a ordem
em que ocorreram, sem uma preocupação maior sobre o sentido deles, seus princípios. No segundo
tipo, temos a mera junção de fragmentos do passado, vestígios esparsos que ficaram preservados, de
diferentes épocas e lugares, como se fossem os destroços de um naufrágio (SOUZA, 2001, p. 22-23).
Já a história perfeita seria a história escrita de uma forma completa, seja de um personagem indivi-
dual, um recorte do tempo ou um feito memorável.
A cada um desses elementos estudados corresponderia um tipo de texto: no primeiro caso,
temos as biografias; no segundo, as crônicas – sobre algo particular ou universal; e os relatos, no
terceiro caso.
Como afirma Souza (2001), segundo o projeto de Bacon, uma História Civil só tem sentido
se orientada e complementada por uma Filosofia Civil. Sobre o tema, discorre na obra De augmentis
(Livro 8) a ideia de uma Filosofia Civil se deslinda como uma ciência do costume, uma espécie de
teoria extraída da interpretação da história e sistematizada cientificamente no sentido de orientar os
homens nos costumes, nos negócios e na política.
Finalmente, resta ressaltar que Bacon pode ser considerado um dos precursores, na Idade
Moderna, da ideia de progresso como condutor da ação humana no tempo. Essa ideia seria o ele-
mento central na compreensão de História desenvolvida no final do século seguinte pelo filósofo
alemão Immanuel Kant, como veremos no tópico a seguir.
36 Introdução aos estudos históricos
Esse texto foi se modificando da mesma forma que as concepções sobre História: história
epopeia, história como mestra da vida, história como exemplo, como ensinamento moral, histó-
ria como trajetória do homem de volta para Deus ou como processo que culminaria com o fim
do mundo e da temporalidade humana etc., até chegarmos a Bacon, que preconizava a história
civil como a escrita dos feitos dos indivíduos do passado e via nela as bases de uma filosofia civil,
uma ciência dos costumes, instrumento de orientação humana no sentido do seu progresso.
É importante perceber que, em Bacon, já temos a preocupação com uma filosofia da História, ou
seja, com a tentativa de entender, discutir qual o sentido da história vivida e a função da História estudo;
e também o desenvolvimento da proposição de que há um fio condutor para a história-trajetória huma-
na: esse fio que conduz a aventura humana seria o progresso. É com vistas ao seu aperfeiçoamento que o
homem pesquisa e escreve sobre aqueles que o antecederam; é na direção do seu avanço que o homem
se desenvolve no tempo.
A ideia de progresso, assim como a busca de uma investigação sobre o sentido da história
(aqui entendida como trajetória), de uma Filosofia da História, instigaria, no século seguinte, um
dos maiores filósofos da Europa setecentista e um dos mais expressivos expoentes do Iluminismo6,
que é também considerado um dos maiores filósofos de todos os tempos: o alemão Immanuel Kant
(1724-1804).
Em um pequeno texto intitulado “Ideia de uma História Universal com um propósito cos-
mopolita”, escrito em 1784 e organizado em nove proposições, Kant defende a ideia de que, assim
como tudo na natureza existe em função de uma finalidade, o desenvolvimento humano tem como
objetivo o aperfeiçoamento daquilo que diferencia o homem dos demais seres – a razão.
Primeira Proposição: Todas as disposições naturais de uma criatura estão deter-
minadas a desenvolver-se alguma vez de um modo completo e apropriado. Assim
o comprova em todos os animais tanto a observação externa como a observação
interna ou analítica. Um órgão que não venha a ser utilizado, uma disposição
que não atinja o seu fim é uma contradição na doutrina teleológica da natureza.
Se, de facto, renunciarmos a esse princípio, já não temos uma natureza regular,
antes uma natureza que actua sem finalidade; e o desolado "mais ou menos"
vem ocupar o lugar do fio condutor da razão. Segunda Proposição: No homem
(como única criatura racional sobre a terra), as disposições naturais que visam
o uso da sua razão devem desenvolver-se integralmente só na espécie, e não no
6 O Iluminismo foi um movimento filosófico, também conhecido como Ilustração, que se desenvolveu em sua ple-
nitude na Europa do século XVIII. A característica central dos teóricos envolvidos com o Iluminismo foi a tentativa de
estender os domínios da razão e da crítica a diferentes saberes e atividades humanas, desde a Filosofia, passando pela
Política, Estética, Direito, Moral, Literatura, Ciência, entre outras.
Epistemologia do estudo da História 37
A história é a manifestação da trajetória ascendente dessa mesma razão, que irrompe selva-
gem e bárbara, norteada pela satisfação plena dos instintos em um estágio pré-civilizatório e que se
desenvolve e aperfeiçoa ao longo do tempo pelo conflito do homem para com sua própria natureza.
Essa história enquanto trajetória ascendente da razão cuja manifestação são as ações huma-
nas é melhor vislumbrada no todo no que em suas partes, ou seja, na espécie humana de forma
mais proeminente do que nos indivíduos isolados,
Seja qual for o conceito que, ainda com um desígnio metafísico, se possa ter da li-
berdade da vontade, as suas manifestações, as acções humanas, como todos os ou-
tros eventos naturais, são determinadas de acordo com as leis gerais da natureza.
Por isso, essa história não é uma história de alguns homens ou povos, mas uma história uni-
versal na qual se desenrola a condição progressiva do desenvolvimento da razão que culminaria,
inevitavelmente, no aperfeiçoamento moral dos povos, primeiramente, por meio dos direitos locais,
e, posteriormente, numa espécie de organismo jurídico transacional, internacional, que nortearia o
desenvolvimento moral universal no sentido de um constante e crescente aperfeiçoamento moral,
como revela o tradutor Artur Morão ([20--]), na apresentação da obra traduzida de Kant (1784, p. 1):
É uma história de progresso crescente, irrompendo precisamente da caracte-
rística fundamental do homem, a sua sociabilidade insociável, o antagonismo
das tendências sociais e anti-sociais que nos atravessam e em nós surgem com
rostos sempre diferentes, embora procedentes de uma raiz idêntica, feita de bru-
talidade e de rudeza. Estas, no entanto, devido aos perigos que consigo trazem
e à mútua destruição que, sem qualquer travão, garantiriam, forçam-nos a ca-
minhar para a cultura e a desabrochar em universalidade sob o reino do direito.
Semelhante antagonismo suscita um aperfeiçoamento jurídico da humanidade
em direcção a uma sociedade civil que administre a justiça e o relacionamento
legal dos Estados entre si, até desembocar, por fim, na criação de uma federação
universal e cosmopolita que assegure a paz perpétua entre as nações.
7 Esteticamente, o Romantismo manifestou-se como uma reação à tendência neoclássica. Ideologicamente foi
como um ataque ao ideal de homem racional e de sociedade tomada pela técnica. Buscou resgatar um homem para
além da razão, capaz de se reencontrar consigo mesmo, mergulhando em suas próprias profundezas, e com as coisas
simples da vida, vendo nelas beleza e sentido (BAUMER, 1977).
8 Por cartesianismo entendemos aqui a difusão e a aceitação dos postulados postos pelo filósofo e matemático
francês René Descartes (1596-1650) acerca do caráter autônomo da razão que, orientada por um método de base ma-
temática, poderia atingir verdades indubitáveis.
Epistemologia do estudo da História 39
Assim, para Augusto Comte, a Sociologia, enquanto uma ciência humana, uma ciência que es-
tuda e investiga os homens em sociedade, só teria legitimidade enquanto conhecimento porque seria
pautada nos mesmos princípios e métodos de objetividade das ciências naturais e exatas. Os critérios
de objetividade, veracidade e cientificidade adotados para ciências como a Matemática, a Química e
a Biologia passavam a valer para a análise dos fenômenos sociais.
Essa compreensão passou a permear outras ciências sociais, muitas delas nascidas ou sis-
tematizadas ao longo do século XIX, como a Geografia e a Antropologia. É nesse contexto que a
História, até então uma forma antiquíssima de tentativa de compreensão do homem – e que era
40 Introdução aos estudos históricos
empregada como ferramenta auxiliar de análise em textos de filósofos, literatos, teóricos políticos
e filólogos –, passou a adquirir, também, o status de ciência.
Segundo o historiador José Carlos Reis (1996, p. 5), é no século XIX que a História se eman-
cipa da Filosofia e passa a se constituir como um corpo autônomo de conhecimentos, adquirindo
o formato de uma ciência humana. No processo de sua constituição, que se arvora científico e pas-
sava a ter no meio acadêmico o seu lugar de legitimidade, esse conhecimento histórico precisava
se desvencilhar do uso que se fazia de uma compreensão histórica da realidade pela Filosofia; e
também se afirmar como ciência dotada de uma metodologia própria perante outras ciências hu-
manas, como a Sociologia, por exemplo, demonstrando sua especificidade.
É nesse contexto que se desenvolve, sobretudo a partir dos estudos do filólogo alemão Leopold
Von Ranke (1795-1886) – e que se tornaria o primeiro historiador-científico – o chamado método
histórico (REIS, 1996). Esse método foi uma estratégia para fundamentar o discurso como algo cien-
tífico, por ter uma base empírica – a fonte histórica – no fundamento de seu discurso. O método
histórico, a um só tempo, consolidou a História como uma ciência, distanciando-a da Filosofia; es-
tabeleceu as bases da especificidade do discurso histórico frente outras ciências humanas e acabou
servindo de modelo de objetividade para essas outras mesmas ciências:
O método histórico tornou-se guia e modelo das outras ciências humanas. Os histo-
riadores adquirem prestígio intelectual e social, pois tinham finalmente estruturado
seu conhecimento sobre bases empíricas positivas. Aqui se deu o nascimento de
uma nova consciência histórica: a que enfatiza as “diferenças humanas no tempo”.
Em princípio, o historiador não quer fundir passado, presente e futuro: a história
“científica” buscará diferenciar as duas dimensões objetivas do tempo, passado e
presente, e tenderá a não profetizar sobre o futuro. (REIS, 1996, p. 6)
A questão colocada e respondida naquele momento por Ranke era: afinal, o que a História tra-
balha? A História é o estudo científico do passado – isso a diferenciaria das demais ciências humanas,
dando-lhe autenticidade, especificidade (REIS, 1996). E o que garantiria a objetividade desse conhe-
cimento, sua autenticidade e seu caráter científico? A análise criteriosa e imparcial dos vestígios desse
passado que sobreviveram até o presente. Mas não qualquer vestígio: somente documentos escritos e
oficiais (ligados a instituições como o Estado e a Igreja, por exemplo). O texto histórico se desenvol-
ve pela pesquisa e investigação desses vestígios – chamados por Ranke de “fontes históricas” – e da
construção de um texto encadeado, imparcial, no qual o historiador, enquanto sujeito, deveria não
aparecer ou aparecer o mínimo possível, para que seu objeto – o passado – aparecesse.
A história científica, portanto, seria produzida por um sujeito que se neutraliza
enquanto sujeito para fazer aparecer o seu objeto. Ele evitará a construção de
hipóteses, procurará manter a neutralidade axiológica e epistemológica, isto é,
não julgará e não problematizará o real. Os fatos falam por si e o que pensa o
historiador a seu respeito é irrelevante. Os fatos existem objetivamente, em si,
brutos, e não poderiam ser recortados e construídos, mas apanhados em sua
integridade para se atingir a sua verdade objetiva, isto é, eles deverão aparecer
“tais como são”. Passivo, o sujeito se deixa possuir pelo seu objeto, sem construí-
-lo ou selecioná-lo. (REIS, 1996, p. 13)
Considerações finais
Neste capítulo, você pôde conhecer um pouco da história da História, ou como o conhe-
cimento histórico foi se constituindo e se modificando, em sua forma e conteúdo, ao longo dos
séculos. Conheceu desde as origens etimológicas da palavra História até seus diferentes usos ao
longo da tradição ocidental. Verificou, também, os vários conceitos relativos a esse termo, desde a
Antiguidade até o século XVIII. Aprendeu a conceituar e diferenciar o estudo da História, buscan-
do aproximações e diferenças para com as demais ciências humanas. Por fim, compreendeu como
situar o lugar do estudo da História, entre a ciência e a filosofia.
Atividades
1. Considerando os elementos característicos da historiografia greco-romana, aponte seus as-
pectos centrais.
2. Por que se pode afirmar que a concepção de História em Santo Agostinho apresenta um
caráter teleológico?
3. Você acredita, como o orador Cícero (106 a.C. a 43 a.C.), que a História é “a mestra da vida”?
Justifique sua resposta.
Referências
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3
Conceito de fonte histórica
Mas, por que as fontes escritas e oficiais eram as mais valorizadas pela tradição historiográfi-
ca inaugurada na Alemanha do século XIX? Lembremos que na segunda metade do século XIX rí-
gidos padrões metodológicos, amparados em uma concepção cientificista oriunda do Positivismo
(que, por sua vez, inspirava-se nos preceitos das ciências físico-naturais), estiveram na base da
constituição da História como ciência, como explica Janotti (2008, p. 11):
[...] foram estabelecidos parâmetros metodológicos cientificistas rígidos orien-
tadores da crítica interna e externa das fontes escritas, arqueológicas e artísticas,
priorizando investigações sobre a importância da autenticidade documental,
porquanto a concepção dominante na historiografia era de que a comparação
de documentos permitia reconstituir os acontecimentos passados, desde que
encadeados numa correlação explicativa de causas e consequências.
O contexto em que a História se afirmava como ciência nos ajuda a entender o conceito de fon-
te predominante na época (segunda metade do século XIX). Segundo o professor Julio Bentivoglio
(2010), os esforços de historiadores como Leopold Von Ranke em dar um contorno científico ao estu-
do histórico se dão em uma Alemanha ainda não unificada, tendo como epicentro dessa conglobação
uma Prússia cujo governo, liderado por uma burocracia de origem liberal e burguesa, não media
Conceito de fonte histórica 47
esforços no sentido da unificação territorial e política, com vistas à formação de um império. Nesse
império, unificado na Prússia, os diferentes povos falantes da língua alemã e que tinham uma mesma
origem étnica precisariam se sentir partes de um mesmo todo, uma nação legitimamente representa-
da por um único Estado. É aí que entram as pesquisas sobre a história da Alemanha.
A pesquisa da formação histórica comum do povo alemão é identificada com o desenvolvimento
do Estado. História essa que depois seria ensinada como a trajetória da nação nas escolas públicas man-
tidas por esse mesmo Estado, formando uma consciência cívica nacional que ainda não existia. Ela foi
motivada pela burocracia liberal prussiana, que investiu recursos públicos nesses estudos.
Essa história, no entanto, precisaria ser a história do Estado alemão, o que justifica, em par-
te, o fato de as fontes consideradas dignas de serem estudadas pelo chamado historicismo alemão
rankiano serem, notadamente, oficiais. O contexto político da própria Alemanha em processo de
unificação influenciou no conceito de fonte histórica que se deslindou a partir dos estudos de
Ranke, mas que não foi o único conceito existente na época, como veremos mais adiante.
O espaço de tempo vivido entre 1806 e 1871 é crucial para se entender a his-
tória alemã. Entre a derrota fragorosa em Iena para Napoleão Bonaparte e a
vitória sobre a França e anexação dos territórios de Alsácia e Lorena por Otto
von Bismarck, que marcaram a fundação do Império Germânico, ocorreram
eventos que distinguiram a emergência do nacionalismo alemão e o compor-
tamento dos estados germânicos em meio ao processo de unificação que seria
capitaneado pelo Reino da Prússia. [...] Os historiadores não poderiam fugir
a estas demandas. Concomitante a estes eventos formava-se a ciência histó-
rica e se constituía uma esfera pública onde começava a se destacar a figura
do intelectual ocupando espaço privilegiado no cenário político, na burocra-
cia estatal e se projetando junto àquela sociedade aristocrática. E muitos des-
tes intelectuais foram, depois de Leopold von Ranke, historiadores, tal como
Georg Gervinus, Johann Gustav Droysen, Karl Wecker, Friedrich Dahlmann,
Georg Waitz, Heinrich von Sybel, Maximilian Duncker, Karl Rotteck, Ludwig
Häusser, Theodor Mommsen, Rudolf Haym, Heinrich Treitschke e Hermann
Baumgarten, que pareciam ter o estudo do passado e a atuação política no pre-
sente como vocações. A atividade deles foi marcada não somente pelo vivo sen-
timento de agir integrando o pensamento histórico e seus conceitos às palavras
de ordem usadas na imprensa e na luta política, mas também por um compro-
misso com determinadas forças e seus projetos políticos. O objeto contemplado,
portanto, parece ilustrar um expressivo ponto de convergência no qual história
intelectual, história e historiografia se articulam, numa constelação particular,
que projetou historiadores e a própria história, intelectual e cientificamente,
influenciando gerações de políticos na Alemanha e também de historiadores
em toda Europa e em várias partes do mundo. (BENTIVOGLIO, 2010, p. 27)
48 Introdução aos estudos históricos
kgberger/Wikimedia Commons
A Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), vencida pela Prússia, foi fundamental para a efetivação da unificação dos
povos de língua germânica ao redor da Prússia.
A Escola Rankeana – como é caracterizada por Bentivoglio (2010) – acabou por engendrar,
em que pese sua pretensão de neutralidade e imparcialidade, uma interpretação e uma escrita
política da História. Uma História política da Alemanha, ignorando ou menosprezando outros as-
pectos da trajetória de um povo, como elementos da cultura, relações sociais, cotidiano, economia
e imaginário. Não só a teoria histórica dos estudiosos ligada à essa tradição era eminentemente cal-
cada numa interpretação política – reduzida à trajetória do Estado – da História, como a prática de
muitos historiadores, inclusive do próprio Ranke, encontrava-se imbricada ao Estado: escreviam
para o governo, subsidiados pelo governo e contavam a história do governo.
O despertar epistemológico da História, vivido na Alemanha do século XIX re-
ferenda um momento singular em que o pensamento histórico, ou suas ideias-
-força parecem tomar consciência de si, historicizando-se, situando seus lugares
e sua pertença, confrontando sua própria história e projetando-se no futuro.
Nascia a ciência histórica. Outro detalhe importante era a convergência parti-
cular de ciência e política, visto existir um diálogo intenso entre pensamento
histórico e ação política, haja vista a história subsidiar e ser subsidiada pelo
Conceito de fonte histórica 49
com questões de Estado, seja por meio da imprensa, como ativistas políticos, seja por sua atuação na
esfera pública propriamente dita, fato que acabaria por projetar esses historiadores socialmente.
A atividade deles foi marcada não somente pelo vivo sentimento de agir inte-
grando o pensamento histórico e seus conceitos às palavras de ordem usadas na
imprensa e na luta política, mas também por um compromisso com determi-
nadas forças e seus projetos políticos. O objeto contemplado, portanto, parece
ilustrar um expressivo ponto de convergência no qual história intelectual, his-
tória e historiografia se articulam, numa constelação particular, que projetou
historiadores e a própria história, intelectual e cientificamente, influenciando
gerações de políticos na Alemanha e também de historiadores em toda Europa
e em várias partes do mundo. Só para se ter uma ideia do destaque dos his-
toriadores nesta esfera pública em formação, basta lembrar que muitos deles
foram conselheiros políticos, editores de jornais, deputados gerais ou ministros.
(BENTIVOGLIO, 2010, p. 27-28)
Apesar de serem tendências dominantes, essas escolas não foram unânimes na época de seu
aparecimento e de sua maior expressão – segunda metade do século XIX e início do século XX.
Paralelamente a esses entendimentos acerca de fonte histórica e de escrita da História-Ciência,
existiram na própria Alemanha, na França e na Suíça outros historiadores. Eles estavam envolvidos
com a busca de uma pesquisa histórica que considerasse outros aspectos da existência humana,
dialogando com outras áreas do conhecimento e considerando outros tipos de fontes como passí-
veis de serem exploradas.
Segundo Bentivoglio (2010), na própria Alemanha existiu uma outra tendência, identificada
como “Escola Histórica Prussiana”, desenvolvida em torno de um periódico ainda anterior ao Revue
Historique francês, a chamada Revista Histórica. Entre seus principais expoentes, destaca-se Johann
Gustav Droysen (1808-1884), que, assim como Ranke, era também professor da Universidade de
Berlim, mas apresentava uma sutil diferença para com o sistematizador do historicismo.
De acordo com Pedro Caldas (2006), um dos principais diferenciais de Droysen era a sua
convicção de que, na pesquisa e na escrita do texto histórico, a compreensão – que tem muito mais
a ver com o presente do que com uma mera transposição do passado – constituía uma ferramenta
metodológica imprescindível (2006). Segundo Droysen (1977, p. 30 apud CALDAS, 2006, p. 100),
“[...] a cognição do homem apreende apenas o meio, jamais a origem, jamais o fim. O nosso mé-
todo não descobre o segredo último da humanidade, tampouco a entrada para o templo”. Também
acerca de Droysen, destacam Andrade e Padoim (2015-2016, p. 12) que ele: “pregava a necessidade
de se observar o individual, a necessidade de se formular métodos para estudar a subjetividade, e
para se chegar a esses métodos, prescindia de uma combinação de várias pessoas que ocupassem
diferentes tarefas”.
Ainda no século XIX, existiram historiadores preocupados com estudos para além da pers-
pectiva de uma História política tal qual apregoavam as escolas metódica e rankeana. Esse foi o caso
do suíço Jacob Burckhardt (1818-1897). Em obra intitulada A Cultura do Renascimento na Itália, pu-
blicada em 1860, ele abordava como foco central um fenômeno artístico-cultural – o Renascimento
italiano –, apesar da alusão à situação política dos principais reinos e repúblicas italianas entre os sé-
culos XIV e XVI. Ele destacou a influência da cultura grega nesse fenômeno e tentou entender aquilo
Conceito de fonte histórica 51
que ele mesmo define como “os contornos espirituais de uma época cultural” (BURCKHARDT, 2009,
p. 36). Para realizar tal intento, vale-se de textos de literatos humanistas, como Francesco Petrarca e
Dante Alighieri, além de fontes tidas como oficiais.
No entanto, a maior revolução em relação à ampliação do conceito de fonte histórica viria no
final da segunda década do século XX, mais precisamente, no ano de 1929, na França, com o projeto
relacionado à Revista Annales, dirigida pelos historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre (REIS, 1996).
Intitulada Annales d'Histoire Économique et Sociale, a revista fundada pela dupla de historia-
dores franceses e um pequeno grupo de professores da Universidade de Estrasburgo representou
uma renovação e uma revolução, por conta da mudança substancial que o programa dos Annales
provocou no entendimento e na prática da pesquisa histórica (REIS, 1996).
Uma das bases dessa revolução foi a proposição de outros objetos para a investigação his-
tórica, para além da trajetória dos Estados-nação. Essa possibilidade demandou o alargamento, a
ampliação e a diversificação do conceito de fonte histórica ou de documento, evocando também a
necessidade de uma maior interdisciplinaridade para com outras áreas do conhecimento – incluin-
do outras ciências humanas, a filosofia, a teoria literária, a estatística, a demografia, entre outras
– proporcionando, a um tempo, uma renovação metodológica e epistemológica. Desde 1929 até os
anos de 1990, os Annales passaram por várias fases, e por pelo menos quatro gerações diferentes,
mas os elementos centrais do programa mantiveram-se, em que pesem as variações ocorridas em
cada uma dessas fases1.
De acordo com Reis (1996), podemos considerar como elementos centrais desse programa:
a mudança na compreensão do tempo histórico, que agora não era mais o do acontecimento, o do
evento, mas o da duração que manifestava em escalas diferentes (curta, média, longa); a mudança
na estrutura da pesquisa, com a possibilidade da interdisciplinaridade; a mudança no entendimen-
to de História, não mais como exposição, relato do passado, mas como problema, como tentativa
de interpretação, compreensão do homem no tempo; e a mudança no objeto, priorizando as estru-
turas econômicas, mentais e sociais:
De 1929 a 1990, os Annales passaram por várias fases, renovaram o questionário
proposto pelos fundadores, mudaram as condições de pesquisa e estabeleceram
novas alianças com as ciências sociais, mas mantiveram-se fiéis ao “programa”
dos fundadores. Esta fidelidade não se traduziu em uma repetição mas na re-
novação constante da pesquisa e na abertura da história às necessidades do
presente. O programa proposto pelos fundadores consistia fundamentalmente
no seguinte: a interdisciplinaridade, a mudança dos objetos da pesquisa, que
passavam as estruturas econômico-social-mental, a mudança na estrutura da
explicação-compreensão em história, a mudança no conceito de fonte histórica
e sobretudo, embasando todas as propostas anteriores, a mudança do conceito
1 Influenciados pelas obras Revolução Francesa da historiografia (1997) e A Escola dos Annales (1929-1989), de Peter
Burke (1937-), expoentes da historiografia contemporânea referem-se à tendência surgida a partir dos pesquisadores
ligados à revista Annales como “Escola dos Annales”. No entanto, para os historiadores François Dosse, Hervé Martin
e Guy Bourdé, entre outros, o termo Escola não se aplica. Isso porque não há uma continuidade nem uma unanimidade
entre os historiadores das várias gerações dos Annales em torno de um projeto comum, podendo-se, inclusive, falar de
uma ruptura entre expoentes da terceira geração dos Annales, também conhecida como Nova História. Dosse – em seu
livro História em Migalhas (2002) – denuncia essa ruptura, referindo-se a essa Nova História como uma “história em
migalhas”, fragmentada no estudo disperso de mentalidades e imaginário.
52 Introdução aos estudos históricos
Uma verdadeira “revolução documental” ganhou corpo nos estudos históricos, sobretudo a
partir da segunda metade do século XX, ou, segundo as palavras de Samaran (1961, p. XII apud LE
GOFF, 1990, p. 466): "Há que tomar a palavra 'documento' no sentido mais amplo, documento escri-
to, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra maneira". O documento históri-
co, também chamado de prova pelos historiadores, é basicamente a fonte primária, que se distingue
das secundárias, conforme veremos a seguir.
No passado, esse tipo de procedimento tinha por objetivo evitar que documentos falsifica-
dos (adulterados em sua própria época ou em épocas posteriores) fossem tomados por oficiais, e
que historiadores, acreditando que se tratavam das fontes oficiais, cometessem equívocos referen-
tes, por exemplo, à data de início e término de uma guerra ou ao nome de um comandante militar.
Lembre-se de que até meados do século XX, as fontes privilegiadas para o estudo dos historiadores
eram as fontes oficiais, ligadas a instituições como o Estado e a Igreja. Ainda, nos textos dos his-
toriadores era muito presente a menção a datas, fatos e nomes dos ditos grandes homens (em sua
maioria líderes políticos).
Com as mudanças introduzidas pelo movimento propiciado pelos Annales, a História polí-
tica enquanto história dos Estados deixou de ser a forma principal do texto histórico, tornando-se
apenas mais uma entre as tantas temáticas de estudo passíveis de serem abordadas pelo historiador.
No entanto, a crítica externa das fontes ainda é considerada muito importante, embora seja aplica-
da a uma gama muito mais ampla de documentos. Pela crítica externa do documento o historiador
pode formular suas hipóteses acerca de como solver, desenvolver a problemática, as perguntas que
ele mesmo faz para aquela fonte.
Por exemplo: um historiador se propõe a estudar como era o tratamento da depressão nos
hospitais psiquiátricos, clínicas e ambulatórios brasileiros antes do advento dos chamados medi-
camentos antidepressivos modernos – os psicoativos, hoje tão disseminados e cuja origem remonta
aos anos de 1950. Digamos que a fonte principal de seu estudo seja revistas médicas das décadas de
1930 e 1940, anteriores ao advento desses medicamentos, quando a principal forma de tratamento
da depressão se dava por meio da eletroconvulsoterapia (eletrochoque) ou por meio da indicação
de banhos terapêuticos, da administração de tinturas e brometos.
No desenrolar de sua pesquisa, descobre entre suas fontes, uma revista, sem data, mas que
aparece em uma compilação organizada 20 anos depois (fonte secundária) como datada de 1947,
na qual foi publicado um artigo sobre a administração de medicamentos tricíclicos. Ora, esses me-
dicamentos só seriam descobertos 10 anos depois. Se o pesquisador não tiver conhecimento dessa
informação (que ele só chega por meio da análise de um número considerável de fontes primárias
e secundárias), tomará ela por correta e a disseminará em sua pesquisa, passando adiante algo que
não aconteceu e comprometendo a objetividade e a seriedade da pesquisa histórica. É importante
confrontar a informação obtida em uma fonte com outras do mesmo período para evitar anacro-
nismos (associar a uma época algo que lhe é posterior) ou imprecisões e respaldar as suas hipóteses
sobre as fontes primárias nos trabalhos de outros historiadores que trabalharam com a mesma
época e temática ou com temáticas e épocas próximas.
Há também a crítica interna, que é a análise interpretativa do documento histórico: as pergun-
tas que o historiador deve fazer às suas fontes. Além de situar a fonte quanto à época, local, autoria
e conteúdo, sempre que possível, explorar questões do tipo: a que contexto está associada? Quais as
intencionalidades que carrega? Quais interesses expressa? Que contradições oculta? Quais as relações
de poder associadas a esse documento? Sua conotação política, ideológica? Problematizar a fonte,
buscando perceber não só o que ela aparentemente expressa, mas o que ela oculta também.
56 Introdução aos estudos históricos
Por exemplo: na Idade Média, como vimos anteriormente, as compilações e ilustrações de li-
vros eram realizadas, em sua maioria, pelos chamados monges copistas, em seus gabinetes, situados
em mosteiros e abadias. Numa das ilustrações mais conhecidas dessa época, temos uma iluminura
em uma capitular (a primeira letra do texto de um capítulo ou de uma página) em que aparece a
representação de um clérigo, um nobre e um camponês.
No discurso clerical medieval, essas imagens representariam as três ordens: os que guer-
reiam (os nobres), os que rezam (os clérigos) e os que trabalham (os camponeses).
Figura 3 – Iluminura representando as três ordens medievais: o clérigo, o militar (guerreiro) e o camponês
Wikimedia Commons
Fonte: SIENNE, Aldobrandino de. Li Livres dou Santé. 1285. Iluminura. British Library, Londres, Inglaterra. Seção de manuscritos, número:
Sloane 2435, folha 85.
Considerações finais
Neste capítulo, você pôde conhecer sobre a base empírica do estudo dos historiadores: as
fontes. Aprendeu a conceituar fonte primária e diferenciá-la das fontes secundárias. Percebeu, ain-
da, que o próprio entendimento acerca de fontes primárias e a metodologia de sua análise sofreu
alterações, desde o século XIX até os nossos dias. Conheceu, também, como se dá o processo de
seleção, análise e crítica das fontes primárias.
Atividades
1. Explique qual a importância das fontes históricas para o trabalho do historiador.
Referências
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cultural e o estudo de cartas. História em Revista, Pelotas, v. 21/22, p. 11-26, dez./2015, dez./2016. Disponível
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58 Introdução aos estudos históricos
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suas interpretações. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, p. 95-111, 2006. Disponível em: https://
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de Janeiro: Vozes, 2011.
4
A metodologia do estudo da História
1 Entendemos o conceito de discurso na obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), notadamente, as obras
As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969). Pelo entendimento do filósofo, podemos afirmar que discur-
so são enunciados que adquirem o caráter de proposições verdadeiras porque se encontram ancoradas em um terreno
comum – a episteme – que as legitima enquanto verdadeiras em uma determinada época. Essas proposições, aceitas
como verdadeiras, engendram práticas, padrões de comportamento aceitáveis. O elo entre o discurso (enunciado) e as
práticas (padrões de comportamentos dos sujeitos) pode ser definido como “práticas discursivas”. Enquanto saber anco-
rado no terreno epistêmico comum a outros saberes que, em nossa época, são considerados “verdadeiros” – ou seja, a
Academia – a História é um discurso formado por um conjunto de proposições aceitas como verdades e que engendram
determinadas práticas sociais. Toda prática discursiva manifesta uma relação de poder – poder que, em nossa época, não
se impõe, mas que é aceito devido à conotação de verdadeiro associada ao saber que o engendra. Pode-se afirmar, então,
com base no conceito de discurso, que, diante do senso comum, a História se arvora como um saber científico sobre o
passado, diferentemente da memória ou dos fragmentos sobre o ele, a História é aceita com um saber “verdadeiro” porque
vem da Academia, terreno epistemológico que legitima esse saber como tal. No entanto, quando entendemos os enuncia-
dos e proposições da historiografia – escrita da História – como práticas discursivas, passamos a conceber esse saber
criticamente, não como um conjunto de enunciados verdadeiros sobre o passado, mas como tentativas de compreensão,
de interpretação desse passado, sempre limitadas.
60 Introdução aos estudos históricos
ter uma, e apenas uma leitura histórica do passado. O passado e a história existem
livres um do outro; estão muito distantes entre si no tempo e no espaço. (JENKINS,
2001, p. 24)
Veja que História e passado são coisas diferentes, existem livres um do outro, estão em tem-
poralidades diferentes. Para esse autor, o historiador está no presente, seu objeto, no passado. Estão
distantes, no tempo e no espaço.
O passado e a história existem livres um do outro. O passado pode ser definido como tudo o
que se passou antes, em todos os lugares, já a historiografia (a escrita da História) constituiu a ma-
neira pela qual os historiadores abordam o passado, são os escritos que os historiadores elaboram
sobre aspectos do passado. Assim, enquanto o passado constituiu o todo, a historiografia constitui
tentativas de interpretação de partes desse todo (JENKINS, 2001).
Mas, será que estão assim mesmo tão distantes? Segundo outro historiador, o estadunidense
David Lowenthal (1923-2018), qualquer pessoa (com exceção talvez dos bebês, dos muito senis e
dos que têm algum tipo de lesão cerebral) tem consciência do passado como algo que coexiste com
o presente, e, ao mesmo tempo, se distingue dele (LOWENTHAL, 1998). Essa consciência advém
da memória e da percepção de que todas as coisas que hoje percebemos nem sempre foram assim:
tudo o que nos rodeia tem, por assim dizer, uma idade, uma trajetória no tempo e no espaço, in-
clusive nós mesmos.
A consciência do passado é, por inúmeras razões, essencial ao nosso bem-estar.
[...] Como tomamos conhecimento do passado? [...] A resposta é simples: lem-
bramo-nos das coisas, lemos ou ouvimos histórias e crônicas, e vivemos entre
as relíquias de épocas anteriores. O passado nos cerca e nos preenche; cada
cenário, cada declaração, cada ação conserva um conteúdo residual de tempos
pretéritos. Toda consciência atual se funda em percepções e atitudes do passado;
reconhecemos uma pessoa, uma árvore, um café da manhã, uma tarefa, porque
já os vimos ou experimentamos. E o acontecido também é parte integral de
nossa própria existência. (LOWENTHAL, 1998, p. 64)
A maioria das pessoas relaciona-se com o passado por meio da memória, e sua memória
individual tem um aspecto individual e coletivo, como veremos mais adiante. Nós a acessamos o
tempo todo, de acordo com nossas experiências e necessidades. Por isso, podemos afirmar que o
passado está sempre presente e que, portanto, não existe uma distância tão grande entre essas duas
temporalidades: o que nos afasta ou nos aproxima do passado não é a distância ou a proximidade
cronológica, e, sim, a proximidade ou distância afetiva. Ignoramos alguns elementos do passado e
outros recorremos sempre que necessitamos, atualizando-o constantemente.
Ainda segundo o autor, de fato, existem outras formas de se relacionar com o passado que
não o estudo da História: as pessoas não precisam da História para ter acesso ao passado ou a
História é apenas mais uma das vias de acesso ao passado, ao lado da memória e dos fragmentos.
Três fontes de conhecimento do passado são aqui estudadas: memória, história
e fragmentos. Memória e história são processos de introspecção (insight); uma
envolve componentes da outra, e suas fronteiras são tênues. Ainda assim, me-
mória e história são, normalmente, e justificadamente, diferenciadas: a memória
é inevitável e indubitável prima-facie; a história é contingente e empiricamente
verificável. Ao contrário de memória e história, fragmentos não são processos
A metodologia do estudo da História 61
E a cada uma dessas vias de acesso corresponde uma disciplina acadêmica específica:
Cada caminho para o passado – memória, história, fragmentos – é um cam-
po reivindicado por disciplinas especializadas, explicitamente pela psico-
logia, história e arqueologia. Mas conhecer o passado envolve perspectivas
mais amplas do que aquelas abrangidas normalmente por essas disciplinas.
(LOWENTHAL, 1998, p. 66)
Quando Lowenthal (1998) afirma que entre memória e história há uma inter-relação porque
uma envolve aspectos da outra, o que ele está querendo dizer? Que de alguma forma, em nossa me-
mória, existem conteúdos em cuja estrutura podem ser localizados o que estudamos, o que apren-
demos em História – estudo – e o que vivenciamos em nossa história – trajetória de vida. Por outro
lado, a História – estudo – também pode se valer da memória (individual ou coletiva) como fonte (em
estudos de História Oral, por exemplo, entrevistando pessoas idosas) ou mesmo o próprio historia-
dor pode recorrer à sua memória em seus estudos, isso é inevitável.
A diferença é que a memória é inevitável – dela não podemos fugir – enquanto a História
é contingente. O conceito de contingente aqui é entendido como o que é do campo do possível,
do que pode ou não ser desta ou daquela forma – ou seja, casual (ABBAGNANO, 2007). Há ainda
que se considerar que a maioria das pessoas que tem alguma noção de História a construiu com
base em textos de livros, artigos (publicados em revistas especializadas, sites, jornais etc.) e do-
cumentários escritos por historiadores. Ou seja: a maioria das pessoas que tem alguma noção de
História tem, na verdade, uma noção de historiografia. De forma que, ao acessarem a História para
evocarem o passado, estarão acessando, na verdade, a interpretação sobre aspectos do passado que
chegaram até elas filtrados pela perspectiva dos historiadores.
A perspectiva que os historiadores têm sobre o passado é, ela também, histórica. Ela muda
de uma época para outra: mudam os interesses, mudam as fontes, os objetos, os olhares e as in-
terpretações e personagens que não apareciam em livros de História produzidos em uma época
podem aparecer em outros livros, produzidos numa época posterior, vindo a sumir, novamente,
em um outro momento.
Questões políticas, econômicas, culturais e ideológicas do presente interferem na forma como
os historiadores olham para outras temporalidades, na escolha das fontes e nas hipóteses que formu-
lam para interpretá-las. Um exemplo disso é a historiografia sobre as mulheres, praticamente ine-
xistente até os anos de 1970 do século XX. Dos anos de 1980 até o início do século XXI, no entanto,
o número de estudos históricos sobre mulheres cresceu em países como Estados Unidos, Inglaterra,
França e Brasil (GONÇALVES, 2006).
As mulheres têm passado e, portanto, têm história – sempre tiveram. Suas trajetórias de
vida, de luta, é que não tinham sido objeto de estudo ainda. Mas foi a partir do momento em
que movimentos pelos direitos das mulheres – como o feminismo – tomaram um vulto maior,
62 Introdução aos estudos históricos
adquirindo mais expressividade no presente, que o interesse sobre estudos sobre mulheres, no
passado, tornou-se mais intenso2.
O mesmo se pode afirmar acerca do interesse sobre a história da classe trabalhadora (que
cresceu a partir das décadas de 1950 e 1960, com os estudos da chamada Nova Esquerda Inglesa3)
e da trajetória, experiências, lutas, resistências do negro no Brasil – cujos estudos se tornaram mais
intensos a partir dos anos 1990.
É sempre com base em sua própria temporalidade – com seus desafios, conflitos, interesses
e saberes – que os historiadores se voltam para o passado. Por isso, ambos – presente e passado –
estão continuamente se afetando e se modificando; e a História é o campo em que esse confronto
se manifesta.
Voltando às formas pelas quais acessamos o passado, resta destacar ainda que ambas – História
e memória – relacionam-se a processos, a fenômenos humanos, enquanto que os fragmentos são os
resíduos, os vestígios desses processos, aos quais o historiador recorre como fonte para o seu estudo.
Tanto a memória quanto a história de trajetória de vida (e a História como estudo), assim como os
resíduos, atestam a existência do passado.
Assim, temos acesso ao passado; seja pela via dos resíduos do passado (normalmente expos-
tos em museus), pela via da memória (seja ela individual, coletiva ou institucionalizada por meio
dos patrimônios públicos) ou da história (vivida) e da História (estudo).
A questão agora é: quais os elementos do passado que são acessados pelo historiador? Como
e por que ele acessa esse ou aquele elemento/fenômeno e ignora outro? Como constrói seu estudo?
Quais as implicações contidas nesse estudo?
Segundo Jenkins (2001), o passado é algo praticamente infinito. Dessa forma, há entre os
historiadores contemporâneos a consciência de que a escrita de uma História total não só é impos-
sível como indesejável (seria ela mesmo necessária?). Não se pode recuperar a totalidade do passa-
do, porque seu conteúdo é, de certa forma, ilimitado (JENKINS, 2001) – ele não para de acontecer.
Bem diferente disso é o presente: no infinito da duração, o presente é um ponto minúsculo que,
mal nasce, morre (BLOCH, 2002).
Mas, então, qual a função do historiador? Como ele constrói seu discurso, essa significação
acadêmica acerca do passado? Ou, melhor dizendo, como constrói esse discurso acadêmico sobre
a trajetória do homem no tempo? Que fatores interferem em sua teoria e prática?
Segundo Jenkins (2001), é na complexa tarefa de conciliar o passado com a História que se
dá a construção do conhecimento histórico, tarefa na qual influenciam fatores teóricos e questões
de ordem prática. É sobre isso que discutiremos a seguir.
2 Para ter uma noção sobre a experiência e as lutas das mulheres entre os séculos XIX e XX, e como esses processos
têm sido vistos pela historiografia contemporânea sobre gênero, sugerimos a seguinte leitura: GONÇALVES, A. L. História
&... gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
3 Nova Esquerda Inglesa: Movimento ocorrido no campo da historiografia britânica a partir dos anos de 1950 e rela-
cionado à tentativa de revisão e atualização dos estudos orientados por uma perspectiva marxista da História. Motivado
pela tentativa de rompimento com uma visão soviética do marxismo após a revelação dos crimes de Stalin, em 1956,
caracterizou-se pela defesa de uma historiografia social, comprometida com o “fazer-se” da classe trabalhadora, bus-
cando entender sua constituição histórica, valorizando suas experiências, lutas e resistências cotidianas e considerando
também suas divergências internas. Uma “história vista de baixo”.
A metodologia do estudo da História 63
Usemos dois exemplos para ilustrar essa quarta razão da fragilidade epistemológica do estudo da
História. Pensemos nos camponeses que aravam terras usando arado puxado por bois, por volta dos anos
de 1450 da nossa era, na França. Tinham essas pessoas a noção de que viviam no ano de 1450? De que
sua época seria chamada de Idade Média? De que o sistema econômico e social em que estavam inseridas
se intitulava Feudalismo e de que esse mesmo sistema vivia uma crise que culminaria com o seu fim e o
advento de um novo sistema econômico, o capitalismo? Se pudéssemos conversar com um desses cam-
poneses, o que ele acharia quando disséssemos que ele vive numa “Idade Média”?
Figura 1 – Camponês arando a terra com uma charrua
Alexandrin/Wikimedia Commons
Fonte: COLOMBE, J. As muitas ricas horas do Duque de Berry. 1413-1489. Guache sobre papel velino. Biblioteca do Museu Condé, Castelo
de Chantilly, França.
A metodologia do estudo da História 65
crítica com o fenômeno abordado. A ideia de acesso ao “passado tal qual ele foi” ou ao “passado em
si mesmo”, como pretendia Ranke quando formalizou o método histórico, é hoje considerada uma
pretensão inatingível entre os historiadores.
A questão da fragilidade metodológica encaminha nossa análise para a terceira fragilidade
no que diz respeito à História como teoria: a fragilidade ideológica, afinal, a escolha teórico-meto-
dológica é, também, influenciada pela postura ideológica do historiador (JENKINS, 2001).
Mas, você sabe o que é ideologia? Quando o termo foi cunhado, pelo filósofo francês Destut
de Tracy (1801 apud ABBAGNANO, 2007, p. 531), designava uma doutrina que tinha por objetivo
ser a análise das sensações e das ideias. No entanto, foi com o filósofo alemão Karl Marx (1818-
1883) que o termo adquiriu as feições que atualmente o identificam. Segundo Marx (1845; 1847
apud ABBAGNANO, 2007, p. 532), ideologia pode ser definida como o conjunto de ideias e valores
que compõe a consciência social, tanto o que legitima o poder da classe dominante (burguesia)
como o que pode manifestar a consciência da classe dominada (proletariado)4.
Por ideologia entende-se uma doutrina, formada por um conjunto de opiniões e preceitos
destituídos de validade objetiva (isto é, que não podem ser confirmados) que se pretendem abran-
gentes no sentido de abarcar, de forma rasa e cheia de lacunas, uma infinidade e multiplicidade de
fenômenos (sociais, políticos, econômicos e religiosos) de forma acrítica e de modo a ocultar as
contradições internas dessas mesmas explicações.
A ideologia está relacionada, portanto, às contradições sociais, manifestando-se como uma
forma de ocultá-la, legitimá-la ou como uma forma de resistência à essas contradições; os his-
toriadores, ao realizarem suas pesquisas sobre o passado, não estão livres da ideologia, segundo
Jenkins (2001): quando se propõe a realizar seu estudo, o historiador fala de um determinado
“lugar”, de uma determinada classe e com uma determinada visão de mundo. Assim, a História
é, também, um discurso, um constructo permeado por ideologias que manifestas as relações de
poder nas quais o historiador está inserido, em sua própria época. “Todas as classes e/ou grupos
escrevem suas respectivas autobiografias coletivas. A história é a maneira pela qual as pessoas
criam, em parte, suas identidades. Ela é muito mais do que um módulo no currículo escolar ou
acadêmico” (JENKINS, 2001, p. 43).
Assim, o fato de escolher este ou aquele objeto de pesquisa, selecionar uma fonte e rejeitar
outra ou, ainda, optar por esta ou aquela corrente teórico-metodológica e não uma terceira não são
ações isentas, neutras, são influenciadas pela postura ideológica do historiador, pela maneira como
entende, se situa e se posiciona frente às contradições sociais de sua própria época.
Ao abordarmos a influência da ideologia, fechamos as três fragilidades – epistemológicas,
metodológicas e ideológicas – que, segundo Jenkins (2001), afetam o fazer historiográfico na teo-
ria. Agora vamos explorar como se dá esse mesmo fazer na prática. Afinal, em que consiste o
estudo histórico na prática? O que faz? Como e com o que trabalha um historiador profissional?
4 Para saber mais a respeito, ver o verbete ideologia em: ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo
Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 531-533.
A metodologia do estudo da História 67
moralmente? Ampliar nossa consciência, nossa capacidade de empatia e nossa sensibilidade, nos-
sa luta pela extensão e efetividade da cidadania? Afinal, para que estudamos História? Qual sua
finalidade?
Essas são perguntas fundamentais a serem feitas pelos futuros professores e pesquisadores
em História. O que é que eles buscam ao exercer o seu ofício? O que esperam? Qual o impacto so-
cial, cultural, ideológico e político do estudo da História? Vamos nos valer do entendimento de um
dos maiores historiadores do século XX, o fundador da revista Annales e que escreveu sua última
obra Apologia da História enquanto aguardava na prisão para ser fuzilado pelo governo nazista,
que tinha ocupado a França: Marc Bloch. O historiador francês tinha o entendimento de que a
História é a ciência dos homens no tempo.
Esse tempo é o tempo histórico, o tempo permeado pelas ações humanas; e a categoria com
a qual o historiador trabalha, segundo Bloch (2002), é a duração. Assim, o historiador trabalha com
algo que é, ao mesmo tempo, contínuo, porém permeado por constantes mudanças, devido às ações
dos homens. O historiador também é parte desse processo e dessas mudanças, estando também su-
jeito às intermitências do seu estudo; o historiador, assim, é alguém que pode intervir na sociedade,
em sua própria época e na forma como essa época concebe, interpreta, épocas anteriores – e isso traz
uma grande responsabilidade.
Por isso, o que afasta ou aproxima o historiador do fenômeno estudado não é a maior ou
menor proximidade cronológica entre ambos, não há a tal “objetividade” preterida por Ranke só
pelo fato de o historiador estar mais distante, no tempo, do fenômeno estudado: o que o aproxima
ou afasta do objeto do seu estudo é a forma como esse o afeta, é uma relação afetiva. Dessa forma,
para Bloch (2002), o que aproxima ou distancia o historiador de um fenômeno é a forma como esse
ressoa nele. Essa aproximação é sempre afetiva e, portanto, subjetiva. A forma como irá estudá-lo
será permeada pela busca da objetividade, mas a aproximação é sempre subjetiva (BLOCH, 2002).
Estudamos, no passado, aquilo que nos afeta, que nos incomoda ou que nos atrai no presente. É uma
relação de afeto. E em nossa capacidade de afetar outras pessoas, com o nosso estudo, reside toda
a responsabilidade, toda a beleza e todo o perigo do nosso estudo. Tal como nos afirma o filósofo
alemão Walter Benjamin (1892-1940), ao historiador cabe reacender as centelhas da esperança para
que também os mortos possam descansar em paz:
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato
foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no
momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do
passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico,
sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tra-
dição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às
classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar
a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem
apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom
de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do
historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se
o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (BENJAMIN, 1940
apud ROUANET, 1987 p. 224-225)
A metodologia do estudo da História 69
Considerações finais
Neste capítulo, estudamos sobre aspectos teóricos e práticos inerentes ao estudo da História
e ao ofício do historiador. Problematizamos sobre como se dá a construção do conhecimento histó-
rico e como esse tipo de conhecimento, como uma das ferramentas possíveis de acesso ao passado,
diferencia-se da memória e dos fragmentos do passado. Você pôde conhecer alguns dos aspectos
epistemológicos e metodológicos inerentes à forma como os historiadores constroem seus objetos
e encaminham suas pesquisas, além da influência exercida pela ideologia. Pôde também conhecer
algumas das especificidades práticas do ofício do historiador e refletir sobre a importância do es-
tudo da História.
Atividades
1. Diferencie, com base em Lowenthal (1998): história (trajetória de vida); História (estudo);
memória e fragmentos.
2. Aponte ao menos uma fragilidade epistemológica, uma metodológica e uma dificuldade prá-
tica inerentes à teoria e à prática do estudo histórico.
3. Elabore, com base no que estudamos neste capítulo e nos anteriores, uma definição própria
sobre o conceito de História (estudo).
Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. [1940]. In: ROUANET, S. P. Obras escolhidas: magia e técnica,
arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. v. 1. 3. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1987.
BLOCH, M. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.
70 Introdução aos estudos históricos
FOUCAULT, M. 1926-1984. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de
Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos)
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Revisão de Lígia Vassalo.
Petrópolis, Vozes; Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972.
JENKINS, K. A história repensada. Tradução de Mario Vilela. 2. ed. Revisão Técnica de Margareth Rago. São
Paulo: Contexto, 2001.
LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Tradução de Lúcia Haddad. Revisão técnica de Marina Maluf.
Proj. História, São Paulo, v. 17, 1998. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/11110/8154.
Acesso em: 2 fev. 2019.
TRACY, D. de. Idéologie. 1801. In: ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi.
5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
5
Inteligibilidade entre presente, passado e futuro
O que é o “tempo histórico”? Em uma resposta apressada, pode-se afirmar que é o tempo
das ações humanas, as quais podem ser organizadas em temas (âmbito econômico, político, social,
cultural, cotidiano etc.) e esses, por sua vez, segmentados em períodos, em épocas, em datas e es-
tudados “em blocos” pelo historiador.
Mas não seria essa uma ação arbitrária, reduzir a complexidade de um “mundo histórico” à
uma cronologia? Afinal, aqueles que estudamos tinham, também, suas próprias concepções acerca do
tempo – e essas concepções tiveram influência nas suas existências, nas suas formas de viver, pensar,
trabalhar, criar, imaginar, relacionar-se e sentir. Cada presente carrega em si o passado como expe-
riência, como lembrança; e o futuro, como projeção, como prospecção. Não podemos esquecer que
aqueles que acessamos por meio das fontes primárias estão vivendo o presente deles – e lá onde se
encontram, nessa “terra estrangeira” como diria Lowenthal (1998), também têm um passado.
Da mesma forma que o historiador não consegue fugir do tempo para acessar outras tem-
poralidades distintas da sua (encontram-se essas múltiplas temporalidades em pontos diferentes
de um mesmo espectro de duração), da mesma forma, aqueles que ele estuda também se encon-
tram imersos em suas próprias concepções de tempo. Assim, presente, futuro e passado estão
em contínua relação e entrecruzamento. Perceber a complexidade e as implicações dessa relação
na constituição daquilo que se costuma definir como “época” é fundamental na empreitada da
escrita histórica. É sobre essa relação intertemporal e como ela interfere, tanto no objeto quanto
no estudo histórico, que trataremos neste capítulo.
O historiador, tal qual o ogro da lenda, “fareja carne humana”. Na metáfora bela e forte do
historiador francês Marc Bloch (2002), o objeto de estudo da História são, segundo a concepção dos
Annales em sua primeira geração, os homens no tempo: “‘Ciência dos homens’, dissemos. É ainda
72 Introdução aos estudos históricos
vago demais. É preciso acrescentar: ‘dos homens, no tempo’” (BLOCH, 2002, p. 55). E que tempo é
esse? O que é o tempo histórico, para Marc Bloch? De que forma sua concepção influenciou e atra-
vessou as demais gerações de historiadores dos Annales?
Segundo Reis (1996), antes de iniciarmos tal exploração, é importante destacar que a pro-
posta manifesta pelos Annales em relação à História nasce em um contexto influenciado pelas, en-
tão, emergentes Ciências Sociais. Por um lado, essas ciências tentavam se afirmar, entre os séculos
XIX e XX, perante a antiquíssima História, apresentando uma abordagem diferenciada do social;
por outro, a própria História, que se arvorava agora à pretensão de ciência, também buscava se
afirmar perante as Ciências Sociais em sua especificidade.
É nesse contexto de influência e de tensão mútua entre as novas ciências sociais e a milenar
História que o movimento dos Annales desenvolve sua proposta. Segundo Reis (1996), no centro
dessa tensão está o conceito de “tempo humano” e a forma como os historiadores o reduziram a
um instrumento subjetivo, cultural, cuja instrumentalidade é humana: o calendário. Não é um
dado objetivo, é uma construção, uma criação humana tomada como dado pelos historiadores, no
processo de objetivação do seu estudo.
O tempo calendário é ao mesmo tempo uma imposição astronômica e uma cria-
ção subjetiva. Mas, ele é sobretudo uma criação subjetiva, isto é, tem uma objetivi-
dade social, humana. É uma criação e não um dado. Uma vez criado, objetiva-se,
torna-se um dado. Esta objetivação de uma criação é necessária para torná-la
indiscutível e eficaz. Imposição astronômica, ele é sobretudo um coordenador das
atividades humanas e, portanto, é uma construção cultural. Enquanto construção
cultural, o tempo calendário é uma imposição do tempo da consciência sobre o
tempo cósmico. (REIS, 1996, p. 244)
A crítica central das ciências sociais à História é o fato de ela partir de uma criação subjetiva,
humana – o calendário – para realizar um estudo pretensamente objetivo do passado. Sem esse ins-
trumento – o calendário – é como se as consciências humanas se perdessem no tempo, passado e
presente se misturassem, pondo em xeque o estudo histórico. Sendo assim, qual a relevância desse
tipo de estudo?
À subjetividade do tempo-calendário da História, as ciências sociais propõem outra estra-
tégia de mensuração do tempo social: a estrutura social como algo mais perene, mais permanente,
pondo em risco, aparentemente, o conceito de tempo histórico dos historiadores tradicionais. Em
lugar da mera sucessão cronológica de eventos característica do conceito de tempo histórico tradi-
cional, os cientistas sociais se referem ao tempo dos fenômenos sociais focando a simultaneidade,
a permanência, a homogeneidade, as transformações estruturais na sociedade:
O “tempo social” das ciências sociais é imanente, circular e uniforme, intrínseco
aos eventos ou ao modelo criado para abordá-los, não é um tempo que se refira
à sucessão dos eventos, à passagem do passado ao futuro. Este “tempo social”
tende à simultaneidade, o que era impensável até então para o mundo humano.
Ele se desfaz da sucessão dos eventos, enfatiza menos as mudanças qualitativas e
valoriza as transformações estruturais, que são como “movimentos naturais” na
sociedade. Busca-se na sociedade o que a física encontra na natureza: uniformi-
dade, reversiblidade, homogeneidade, quantidade, permanência. O tempo social
é, portanto, antissucessão – ele é da ordem da simultaneidade, da reversibilidade e
Inteligibilidade entre presente, passado e futuro 73
Essa concepção outra de tempo social advinda das ciências sociais, que se manifesta como
uma crítica ao tempo histórico como “tempo calendário” da História tradicional, acaba por ser um
dos aspectos centrais na revolução historiográfica representada pelos Annales.
A História, que até então se ocupava em compreender o tempo histórico como um tempo
cronológico, marcado pela sucessão de eventos, passou a ser sensível a outras categorias para se
pensá-lo, entre essas categorias, a simultaneidade e a permanência. Então, o tempo histórico deixa
de ser percebido como o tempo do acontecimento e passa a ser vislumbrado a partir da perspectiva
da duração dos fenômenos humanos. A perspectiva da duração, que se aprofundaria sobretudo
nos estudos do maior representante da segunda geração dos Annales, principalmente com Fernand
Braudel (1902-1985), manifestava-se já no pensamento de Bloch (2002) na obra Apologia da histó-
ria ou o ofício do historiador, como vimos, publicada após sua morte, em 1949.
Manifestando uma interpretação diferenciada para com o historicismo alemão e também
em relação à visão positivista francesa, Bloch (2002) discorda que a História seja a ciência do pas-
sado. Ele teceu críticas à ideia de tempo histórico como o tempo de junção, no presente, de acon-
tecimentos e fatos que não têm nada em comum entre si a não ser o fato de terem ocorrido numa
temporalidade distinta da do historiador e o desejo arbitrário desse em reuni-los em seu estudo.
A História, para Bloch (2002), analisa os homens através do tempo e esse tempo é permeado pelas
ações humanas em suas diferentes durações.
Assim, o historiador trabalha com algo que é, ao mesmo tempo, contínuo, porém permeado
por constantes mudanças, devido às ações dos homens. O historiador também é parte desse pro-
cesso e dessas mudanças, estando também ele sujeito às intermitências do seu estudo. O tempo da
História é, ao mesmo, “tempo” o plasma em que se formam os eventos e o lugar da sua compreen-
são, de sua inteligibilidade:
O historiador não apenas pensa “humano”. A atmosfera em que seu pensamento
respira naturalmente é a categoria da duração. Decerto, dificilmente imagina-se
que uma ciência, qualquer que seja, possa abstrair do tempo. Entretanto, para
muitas dentre elas, que, por convenção, o desintegram em fragmentos artifi-
cialmente homogêneos, ele representa apenas uma medida. Realidade concreta
e viva, submetida à irreversibilidade de seu impulso, o tempo da história, ao
contrário, é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar
de sua inteligibilidade. (BLOCH, 2002, p. 55)
Por isso a categoria com a qual os historiadores ligados aos Annales trabalham é a duração, a
“longa duração” que, segundo Reis (1996), é a tradução que esses historiadores farão da “estrutura”
atemporal dos cientistas sociais. Ao transmutarem essa ideia de estrutura social para os estudos
históricos, construindo a partir dela a perspectiva da duração como o lócus do tempo histórico,
provocam uma mudança substancial nesse conceito, criando uma segunda perspectiva acerca do
tempo histórico, como algo que se manifesta como um “terceiro tempo”, na qual as diferenças entre
passado, presente e futuro se enfraquecem, pela noção de simultaneidade.
74 Introdução aos estudos históricos
Eles teriam criado uma segunda perspectiva sobre o tempo histórico como
terceiro tempo. Na primeira perspectiva, a vida humana sucessiva e dispersi-
va, assimetria entre passado e futuro, continuava sucessiva e artificialmente
contínua, linear e regular, quando enquadrada pelo calendário. Nessa segunda
perspectiva, os eventos humanos são inseridos em uma ordem não sucessiva,
mas simultânea. A relação diferencial entre passado/presente/futuro se en-
fraquece, isto é, a percepção sucessiva do tempo histórico é enquadrada por
uma percepção simultânea. A referência ao calendário, à sucessão de gerações
torna-se secundária. As “mudanças humanas” se naturalizam: endurecem-se,
desaceleram-se. Tornam-se semelhantes aos movimentos naturais e incor-
poram as qualidades desses: homogeneidade, reversibilidade, regularidade,
medida. (REIS, 1996, p. 246)
À ideia de tempo histórico como sucessão de eventos, como tempo de mudanças que se
sucedem e se aceleram, os Annales propõem a análise do confronto entre mudanças e permanên-
cias, do evento e da longa duração, da sucessão e da simultaneidade. E no interior desse confronto
localizam a constituição do tempo histórico como uma regularidade possível, fazendo emergir, nos
homens, não apenas a ânsia pela mudança – característica da Filosofia da História no pensamento
oitocentista – mas a busca pela estabilidade também. É, sem sombra de dúvida, uma outra pers-
pectiva sobre o tempo histórico: os homens do passado, em seu presente, talvez pretendessem levar
o passado ao futuro, permanecer, continuar.
Os homens não tendem à mudança, eles nem mesmo apreciam mudar. O que
eles apreciam é continuar, permanecer – eles querem levar o passado ao futuro,
apagar a sua diferença e assimetria, para evitarem o atrito, o barulho, a tensão,
o desconforto da mudança. Os homens preferem viver em um mundo reconhe-
cível, sem planos e reflexões, inovações, fraturas. Eles preferem morar, demorar
em sua vida rotineira, pacífica, eterna. (REIS, 1996, p. 246)
É sobre essa relação, entre presente, passado e futuro, e a forma como ela precisa ser conside-
rada como um elemento constituinte do tempo histórico, que aborda a obra do historiador alemão
Reinhart Koselleck (2006), como veremos a seguir.
Ao longo dos capítulos anteriores, vimos diferentes concepções acerca da função da escrita
histórica. Na Antiguidade, acreditava-se que estudar o que aconteceu antes poderia explicar o que
acontece agora e melhorar o que acontecerá no futuro. Já na Idade Média, a ideia de futuro, mani-
pulada pelo pensamento clerical cristão, desabava numa escatologia, ou seja, em uma teoria sobre os
acontecimentos relacionados a um suposto fim dos tempos, ao fim do mundo, que culminaria com o
fim da humanidade – o Apocalipse. As Filosofias da História, dos séculos XVIII e XIX, vislumbravam
na História a marcha do progresso do homem no tempo: o estudo do passado era direcionado para
uma determinada concepção de futuro não como destruição, mas como avanço da humanidade.
Perceba que os estudos sobre a História, ou a forma pela qual os estudiosos se voltaram para o
passado, diz muito sobre a forma como concebiam não somente o seu presente, mas também como
projetavam o seu futuro. Essa interação, entre essas três temporalidades – presente, passado e futuro
– não acontece somente nos estudos de História, ela está presente, o tempo todo, na maioria de nós.
“Somos nossa memória...”, afirmava o poeta argentino Jorge Luís Borges em seu livro Elogio
da Sombra (1969) (tradução nossa). Sem contrariar o poeta, vamos um pouco além: somos nossa
memória, mas somos também nossas projeções para o futuro. E entre aquilo que lembramos e o
que projetamos, somos também o que está localizado entre essas duas temporalidades: somos o
tempo do acontecimento, esse minúsculo intervalo de tempo que, mal nasce, já morre, ao qual
chamamos de presente.
Assim, como em nossa trajetória, essas três temporalidades se conectam, essa interdepen-
dência ocorre, também, na escrita histórica e no objeto sobre o qual essa escrita se debruça: a
trajetória das sociedades no tempo. Aqueles que são estudados pelos historiadores também estão
vivendo seus presentes com uma determinada projeção de futuro e uma dimensão temporal do
passado. É preciso pensarmos nessa intertemporalidade sempre presente se quisermos tentar defi-
nir o que é o tempo histórico (KOSELLECK, 2006).
O que é o “tempo histórico”? Os vestígios de outras épocas podem indicar alguma coisa
sobre acontecimentos, mas não sobre o tempo histórico (KOSELLECK, 2006). A cronologia, como
vimos anteriormente, constitui uma tentativa de homogeneização das diferentes temporalidades
em um rol de datas e fatos, mas a datação, pautada em critérios físico-matemáticos e culturais pelos
quais são elaborados os calendários, é apenas um aspecto do tempo histórico, está nele inserida,
mas não o expressa nem o encerra.
De forma ainda mais proeminente do que as datações, o tempo histórico se manifesta de
diferentes formas ao nosso redor, basta que agucemos nosso olhar. Ele se manifesta em constru-
ções novas e ruínas de casarões antigos convivendo lado a lado no centro de uma grande cidade;
nas rugas profundas de uma pele envelhecida ou nas mãos macias de um bebê recém-nascido; na
transição dos meios de transporte, da carroça ao automóvel esportivo que alcança a marca de 220
km por hora; ou no vislumbramento das várias gerações em uma mesma família.
Para onde quer que nos voltemos, ao nosso redor ou em nós, podemos perceber sinais do
tempo histórico. Mas ainda assim, como defini-lo? Afinal, apesar da tentativa efetivada pelas data-
ções, cronologias, calendários e estudos de História, cada pessoa, grupo, sociedade e até mesmo cada
76 Introdução aos estudos históricos
coisa existente está inserida na sua própria medida de tempo. Essa constatação nos é apresentada por
Herder (1799)1 como uma resposta à pretensa História Universal proposta por Immanuel Kant:
Na verdade, cada coisa [Ding] capaz de se modificar traz em si a própria medi-
da de seu tempo; essa medida continua existindo, mesmo se não houver mais
nenhuma outra ali; não há duas coisas no mundo que tenham a mesma medida
de tempo [...]. Pode-se afirmar, portanto, com certeza e também com alguma
audácia, que há, no universo, a um mesmo e único tempo, um número incon-
tável de outros tempos. (HERDER, 1799, p. 68 apud KOSELLECK, 2006, p. 14,
grifos no original)
Pode o historiador, de forma arbitrária, ignorar essas múltiplas temporalidades em seu es-
tudo em nome de uma concepção de tempo histórico como algo homogêneo e que a tudo abran-
ge, um tempo cronológico, pautado em datações e divisões temporais, sendo que os homens, as
instituições e as organizações políticas têm um ritmo próprio? Como podemos afirmar coisas do
tipo: “determinada sociedade, em determinada época” ou “o Império Romano, na Idade Antiga...”?
Consideravam-se os romanos vivendo na Antiguidade? Qual é a época de uma sociedade? Como
os homens compreendem a sua relação com o tempo? São questões complexas, que induzem a
especulações as quais podem nos levar a lugar algum.
As decisões políticas tomadas sob a pressão de prazos e compromissos, o efeito
da velocidade dos meios de transporte e de informação sobre a economia ou
sobre ações militares, a permanência ou instabilidade de determinadas formas
de comportamento social no âmbito das exigências econômicas e políticas tem-
poralmente determinadas, tudo isso conduz obrigatoriamente – seja através de
um processo de atuação e ação recíproca ou de uma relação de dependência – a
uma tipo de determinação temporal que, sem dúvida, é condicionada pela natu-
reza, mas que também precisa ser definida especificamente sob o ponto de vista
histórico. (KOSELLECK, 2006, p. 15)
1 Versão original: HERDER, I. G. Metakritik zur Kritik der reitien Vernunft (1799). Berlim: [s.n.], 1955.
Inteligibilidade entre presente, passado e futuro 77
Essas duas categorias, “campo da experiência” e “horizonte de espera”, segundo Reis (1996),
constituem, em Koselleck (2006), conceitos que tornam possível pensar tanto a História – estudo
– quanto a história – trajetória de vida; é assim que se operacionaliza o conhecimento histórico.
Sem essas categorias a história seria impensável. A experiência é o “passado
atualizado”; a espera, o “futuro atualizado”. Experiência e espera são conceitos
assimétricos: a espera não se deixa deduzir da experiência, passado e futuro não
se recobrem. A presença do passado é outra que a do futuro. Mas, assimétricos,
não são conceitos antônimos. Da sua diferença e tensão aparece a “temporali-
zação”. Um não se deixa transpor no outro sem que haja ruptura. Sua diferença
revela uma característica estrutural da história: o futuro não é o resultado sim-
ples do passado, embora este traga conselhos, experiência e esperas retroativas.
É a tensão entre experiência e espera, portanto, que suscita diferentes soluções
e engendra o tempo histórico. Uma relação estática entre eles é inconcebível.
(REIS, 1996, p. 242)
Agora que você conheceu alguns aspectos da compreensão de Koselleck sobre o tempo his-
tórico, como algo situado entre a experiência (passado) e a espera (futuro) como responderia às
questões colocadas lá no início do tópico? Qual a ideia de futuro que você tinha no seu passado?
78 Introdução aos estudos históricos
De que forma tanto sua experiência, manifesta em suas lembranças, suas memórias, quanto suas
projeções, interferem e se entrelaçam em seu presente?
Considerações finais
Neste capítulo, exploramos o conceito de “tempo histórico” e sua importância nos estudos
de História. Vimos que, tal qual era entendido pela História Tradicional, esse tempo se manifestava
no aspecto de um “tempo calendário”, em que a experiência humana no tempo era concebida como
uma sucessão de eventos dispostos numa cronologia.
A essa concepção de tempo histórico se opôs a Escola de Annales, desde sua primeira gera-
ção, com Marc Bloch, passando por Fernand Braudel e se mantendo como horizonte teórico pre-
sente nos estudos das demais gerações de historiadores a ela ligados. Influenciados por categorias
como “tempo social” e “estrutura social” advindas das ciências sociais, esses historiadores propõem
o conceito de “duração” para se pensar o tempo histórico, manifestando-se sensíveis a categorias
como simultaneidade e permanência na construção do texto histórico e destacando a interdepen-
dência e a inter-relação de inteligibilidade mútua entre presente e passado na escritura desse texto.
Acerca da relação entre presente, passado e futuro, vimos também a obra do historiador
alemão Reinhart Koselleck (2006). Segundo o autor, é imprescindível pensar na relação que cada
presente estabelece com o passado, como “campo da experiência”, e com o futuro, como “horizonte
de espera”, enquanto projeção. Isso é válido tanto para a história vivida quanto para a História es-
tudo, conhecimento. O presente daqueles que estudamos hoje como sendo passado é permeado, é
constituído por essa relação temporal para com o passado e o futuro.
Atividades
1. Em que sentido a concepção de duração, proposta pelos Annales, representou uma mudança
no tocante à concepção de tempo histórico tal qual era concebida pela História tradicional?
Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.
KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia
Maas e Carlos Almeida Pereira. Revisão de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Tradução de Lúcia Haddad. Revisão técnica de Marina
Maluf. Proj. História, São Paulo, v. 17, 1998. p. 63-201. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/
view/11110/8154. Acesso em: 02 fev. 2019.
REIS, J. C. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e “Annales”: uma articulação possível. Síntese Nova Fase,
Belo Horizonte, v. 23, n. 73, 1996. p. 229- 252.
6
Objetividade x subjetividade no estudo da História
É possível ao historiador estabelecer uma distância segura entre ele e seu objeto de estudo? Até
que medida seus próprios interesses, sua visão de mundo e experiências, sua inserção nas relações
de poder de sua própria época e a forma como se posiciona frente a elas interferem em sua pesquisa?
Até que ponto comete anacronismos? É possível não os cometer? Como realizar um estudo
visando à objetividade, de forma crítica e acadêmica, sem cair na pretensão (ou seria uma ilusão?)
do objetivismo puro ou na tentação da subjetividade radical (LORIGA, 2012)? De que maneira a
História concebia a objetividade acerca da sua institucionalização como ciência, no século XIX, e
qual o entendimento que essa questão passou a ter com o movimento dos Annales? Quais os limites
e as possiblidades da objetividade e da subjetividade no estudo da História? É sobre essas questões
que estudaremos a partir de agora.
Segundo Arno Wehling (1973), no início do século XIX, quando Ranke inicia sua obra, o
conceito acerca do que seria uma escrita histórica oscilava entre os textos de Filosofia da História
(presentes na obra de autores como Hegel, Vico e Herder), a pesquisa e o mero arrolamento de
fontes (prática que vinha desde o Renascimento) ou os manuais de arte histórica imbuídos de um
caráter literário. Não havia uma definição acerca do que seria o estudo da História: uma perspecti-
va difusa acerca do que seria um olhar histórico sobre a realidade encontrava-se dispersa em vários
textos e práticas de outras áreas do conhecimento.
Ainda conforme Wehling (1973), o fator que acabaria por unificar essa produção e esse enten-
dimento disperso acerca da História, diluída entre a erudição, a filosofia e a literatura, foi o fenômeno
do historicismo. Segundo José D’Assunção Barros (2010), o historicismo constituiu um movimento
complexo no interior da historiografia ocidental, um divisor de águas. Ele teve como precursores
movimentos surgidos entre os séculos XVIII e XIX, como o Romantismo, abrigou tendências diver-
sificadas e teve como um de seus principais iniciadores e expoentes Leopold Von Ranke.
O historicismo constituiu um grande e complexo movimento dentro da história
da historiografia ocidental. Iniciado pela Escola Histórica Alemã de Ranke, e
apresentando alguns precursores sobretudo na passagem do século XVIII para
o XIX, o movimento veio a abrigar tendências relativamente diversificadas,
apesar de uma oposição mais geral contra o Positivismo, que foi no século XIX
outro grande paradigma das ciências humanas (com forte influência sobre a
História). (BARROS, 2010, p. 80)
O historicismo tem suas raízes na apologia romântica ao que é único e particular e na sua
crítica ao universalismo e ao racionalismo puro. Outra forte influência do Romantismo no histo-
ricismo foi a ideia da busca de um espírito do povo (Volksgeist) e do espírito da época (Zeitgeist),
ou por aquilo que cada época e povo tem de único, o seu espírito singular, algo que não se repete e
que se desenvolve ao longo do tempo. Tal influência aparece na frase atribuída a Ranke “[...] todas
as épocas estão próximas de Deus” (WEHLING, 1973, p. 180).
O historicismo não só teve a influência do Romantismo como constituiu-se, ele também, em
um movimento romântico, na medida em que concebia a ida ao passado com base em um forte
tom emocionalista, em busca de valores puros e da oposição ao tom racionalista que se manifestava
nas décadas iniciais do século XIX.
Entendamos por Historicismo, de modo genérico, o movimento romântico, parti-
cularista e evolucionista que abarca quase todas as formas de expressão científica
do século XIX, presente inclusive em pensamentos antagônicos da segunda me-
tade do século. Romântico, em suas origens, num duplo sentido: a ida ao passado
como fator emocionalista (os valores puros, as grandes obras e a sensibilidade
criadora estão em qualquer ponto do passado) e a oposição ao racionalismo filo-
sófico, com suas leis e seu direito natural. (WEHLING, 1973, p. 179)
Objetividade x subjetividade no estudo da História 83
Ao lado da busca pelo singular, pelo único de cada época, influência do pensamento romântico,
o historicismo teve também a influência do pensamento evolucionista1, sobretudo do debate trazido à
baila pelo evolucionismo sobre o tema do progresso e seu desenvolvimento processual, gradual.
Da forma como foi apropriado pelo historicismo, o evolucionismo não se manifestava como
um transformismo desprovido de sentido, mas como algo que se percebe ao longo do tempo, um
processo destituído de determinismos, mas que também não se dá ao acaso, e cuja dinâmica pode
ser verificada, de forma científica, por meio da análise criteriosa e objetiva das fontes primárias.
A fidelidade aos valores românticos e o trato empírico com as fontes “salvou” o historicismo do
vício evolucionista: o determinismo, tão presente nas filosofias da História do século XIX, abrindo
caminho para a sistematização da História ciência cujo principal idealizador e organizador foi o
próprio Ranke (WEHLING, 1973).
É importante destacar que a tentativa de desassociar o estudo da História de uma filosofia da
História, bem como o ideal de que o passado deveria falar por si, por meio das fontes, não impedi-
ram que se desenvolvesse uma certa interpretação acerca da História em Ranke. Tiveram influên-
cias na forma como concebia seu estudo o conceito de Zeitgeist, o papel do Estado e da religião.
No entanto, nenhuma dessas influências constituiu-se numa base metafísica para a
História, no sentido de uma busca do seu sentido: a História, em sua lógica própria, constituiria,
ela por si só, seu sentido e sua filosofia: “A História compreensiva é, na minha opinião a verda-
deira filosofia da História”, chegando o historiador mesmo a afirmar que “a História não é a ne-
gação, mas a realização da Filosofia” (RANKE, 1954, p. 285; 304 apud WEHLING, 1973, p. 184).
Ou seja, mais do que submeter a História a uma Filosofia, a própria Filosofia tem um processo
de desenvolvimento que é, ele também, histórico.
Falamos do trato empírico com as fontes primárias como fator preponderante na sistemati-
zação da História-ciência. É importante ressaltar que na época em que Ranke começou a publicar
seus primeiros estudos, décadas de 1820 e 1830, não eram comuns os textos históricos integrarem
às suas obras as fontes primárias por eles consultadas (WEHLING, 1973, p. 181). Aliás, embora
desde os eruditos renascentistas já existisse uma alusão a fontes primárias, é a Ranke e aos pesqui-
sadores por ele influenciados que devemos uma melhor diferenciação entre fonte primária e fonte
secundária, bem como a necessária crítica, tanto interna quanto externa dos documentos de época
e quanto da obra de outros historiadores.
O elemento central da compreensão de conhecimento histórico como científico em Ranke,
portanto, gira em torno das fontes primárias, sua identificação e sua diferenciação para com outros
1 Valemo-nos do entendimento de Abbagnano (2007, p. 395-396) acerca do termo e do conceito que ele encerra: “Por
esse termo não se deve entender a teoria geral da evolução, como quadro fundamental das pesquisas biológicas [...] mas
o conjunto de doutrinas filosóficas que veem na evolução a característica fundamental de todos tipos ou formas de rea-
lidade e, por isso, o princípio adequado para explicar a realidade em seu conjunto. Em outros termos, o Evolucionismo é
uma doutrina metafísica que se refere à realidade como um todo e que, embora se valha das hipóteses e dos resultados
da teoria biológica da evolução, sua tese vai muito além de tudo o que qualquer possível teoria científica possa legitima-
mente atestar. Nesse sentido, o Evolucionismo foi assumido como esquema fundamental de muitas metafísicas, tanto
materialistas quanto espiritualistas. A característica fundamental que essas metafísicas distinguem na evolução é o
progresso. Para elas, evolução significa essencialmente progresso.”
84 Introdução aos estudos históricos
tipos de fontes. Feita essa primeira clivagem, desenvolvia seu trabalho com base em um rigoroso
método cujas principais etapas são assim sintetizadas:
Em Ranke, a preocupação maior foi a separação das fontes primárias, daquelas
narrativas de segunda mão, e dos historiadores. Como estas duas últimas esta-
vam geralmente justapostas às primeiras, com séculos de interpolações e adi-
ções, seu trabalho seguia diversas etapas; a) a identificação das fontes primárias;
b) a rejeição de qualquer interpolação; c) a crítica das fontes secundárias, procu-
rando desdobrá-las e encontrar nelas as informações primárias; d) a crítica dos
historiadores, procurando situá-los em sua época, e não lhes dando, como até
então, um ilimitado crédito de confiança. Seguiu, entretanto, com muito mais
gôsto as três primeiras etapas, já que ali estava a criação histórica. (WEHLING,
1973, p. 183)
A lógica que pretensamente norteava esse rigoroso trabalho no trato empírico com as fon-
tes primárias era a busca pela objetividade da forma tal qual era concebida pelas ciências exatas e
naturais e que seria apropriada pelo Positivismo e pela Escola Metódica francesa. Mas, teria Ranke
atingido o ideal de objetividade que ele mesmo propunha em seus estudos? A objetividade, tal qual
concebida por ele, é algo possível de ser atingido no estudo acadêmico de História ou de qualquer
outra ciência humana?
Primeiramente, é importante tentar definirmos os termos objeto e objetividade. O termo
objeto é de origem latina: vem de objectus, que, por sua vez, deriva do verbo objicere (atirar, lançar
para frente). Passou a ser usado em Filosofia ainda no final da Idade Média pelos filósofos esco-
lásticos. Desde então, o termo tem sido alvo de intensos debates entre filósofos, epistemólogos e
teóricos da ciência. Em linhas gerais, podemos definir objeto como o “termo de qualquer operação,
ativa, passiva, prática, cognoscitiva ou linguística” (ABBAGNANO, 2007, p. 723).
Ou seja, objeto é uma realidade externa que se pode apreender, seja pelos sentidos seja pelo
intelecto. Aquele que apreende e percebe o objeto como tal é o sujeito, o elemento ativo do processo
do conhecimento – aquele que conhece e que é oposto ao objeto; enquanto que o objeto seria o ele-
mento passivo desse mesmo processo – aquele que pode ser conhecido (JAPIASSÚ; MARCONDES,
2001). Do ponto de vista epistemológico, é o ato de conhecer que institui algo como objeto frente a
um sujeito; embora as coisas existam por si só, enquanto entes (tudo aquilo acerca do que falamos,
tudo o que é) só passam a ter uma existência objetiva, isto é, como objetos, a partir do momento em
que o sujeito assim as configura numa relação de conhecimento.
Agora que tratamos um pouco sobre um conceito geral acerca de objeto, voltemo-nos para a
objetividade. Segundo Japiassú e Marcondes (2001), objetividade é a característica de tudo aquilo
que existe além do nosso pensamento, algo que tem uma existência em si mesmo, independente
do sujeito, ou, ainda, o oposto de subjetividade. Em Teoria do Conhecimento, a objetividade é a
base do objetivismo, doutrina segundo a qual se busca ter acesso à realidade tal qual ela é, objetiva,
diretamente, pela empiria (experiência sensível), sem a interferência do sujeito; um tipo de co-
nhecimento objetivo seria, portanto, um conhecimento pautado unicamente pela busca do acesso
direto ao objeto.
Qual o sentido que esses termos adquirem quando pensamos na busca da objetividade em
História da forma como Ranke a compreendia? Para o historiador alemão, a objetividade em História
Objetividade x subjetividade no estudo da História 85
seria atingida mediante a atitude de isenção absoluta e não interferência do historiador (sujeito) no
seu objeto de estudo: o passado, manifesto empiricamente por meio das fontes primárias. A obje-
tividade almejada seria possível na medida em que o historiador interferisse o mínimo possível no
objeto, sendo apenas um selecionador de fontes, um organizador destas em uma dada cronologia,
apresentando aquilo que elas trazem por meio de um texto coerente e bem construído.
Tal concepção de objetividade, que se manifestava também em outras ciências sociais as
quais, por influência do Positivismo, almejavam o mesmo caráter de verdade atribuído às ciências
físico-naturais e exatas, apresentava sérias limitações – tanto para as ciências sociais quanto para a
História – e, ao longo do século XX, foi apontada por epistemólogos como inatingível até mesmo
entre as ciências naturais e exatas.
Em relação à História e à forma como era concebida por Ranke, a pretensa objetividade se
mostrava problemática (WEHLING, 1973). A própria decisão de estudar esse e não aquele objeto;
a atitude em selecionar tais fontes deixando de lado outras, e a própria forma como essas fontes
são analisadas pelos historiadores constituem elementos de subjetividade, isto é, da influência do
sujeito sobre o objeto. A História não se torna a narrativa do que aconteceu e que se manifesta nas
fontes, a História se torna um constructo do que o historiador interpretou baseado nas fontes que
ele selecionou.
Ainda, segundo Wehling (1973), há outros elementos que inviabilizariam, já no século XIX,
o ideal de objetividade em pesquisa histórica (um ideal subjetivo, por assim dizer) tal qual conce-
bida por Ranke: a impossibilidade da isenção total do historiador, por não reconhecer que o que
buscava era uma dada intepretação de História e não a História propriamente dita (até porque essa
História é impossível de ser escrita); por ele mesmo e alguns de seus discípulos terem se envolvido
com as instituições da política prussiana (alemã); por só considerar fontes oficiais e limitar sua
escrita a uma história política, ignorando aspectos econômicos e culturais; e, ainda, por ignorar o
indivíduo no processo histórico, estabelecendo o primado do macro sobre o micro. Ou seja, essa
pretensa objetividade se mostraria inviável:
a) Pela impossibilidade de isenção absoluta do historiador — embora reconhe-
cesse este fato. Esta limitação traduziu-se de duas maneiras:
1. Pela identificação e estudo de uma certa História, não da História, ou seja, de
um modo próprio de colocar-se sobre o passado, peculiar à sua cultura [...].
2. Pelos esforços que fez para não se engajar em sua própria época ou deixar-se
influenciar em seu trabalho, no que não foi de todo bem-sucedido. De qual-
quer modo sofreu as críticas de discípulos seus, envolvidos na política alemã,
como Droysen, Sybel e Treitschke.
b) Pela unilateralidade do seu método – embora a crítica às fontes primárias fos-
se tecnicamente perfeita, falhou muitas vezes ao aceitar a veracidade de certos
documentos, como no caso de alguns relatórios consulares venezianos a pro-
pósito das guerras da Itália; igualmente, o uso quase exclusivo de documentos
oficiais tornou sua História parcial, não no sentido de que lhe faltasse espírito
crítico para perceber os exageros partidaristas dos documentos, mas de que
tomava conhecimento das transformações ocorridas em determinada situação
apenas na medida em que as esferas oficiais o soubessem, e por sua ótica; como
todo historicista de valor, Ranke estabelecia o primado da situação histórica
sobre o indivíduo (e neste ponto seu maior discípulo foi Bismarck), cabendo
86 Introdução aos estudos históricos
O objetivismo radical, da forma pela qual era concebido por Ranke, não é possível de ser
atingido, nem na época dele nem na nossa. Mas isso não significa que o estudo da História não pos-
sa ser permeado pela busca da objetividade: o conceito dessa objetividade, assim como o papel da
subjetividade na pesquisa histórica, é que tem passado por alterações, sobretudo, com os estudos
desenvolvidos pelos historiadores ligados à tradição dos Annales, como veremos a seguir.
“Apagar o eu” e deixar as “coisas falarem”. Eis os pedaços de uma frase que
atesta de forma clara a intenção do historiador Leopold Von Ranke em relação ao estudo de História
da forma como ele concebia: o historiador deveria interferir o mínimo possível naquilo que escrevia
para que as fontes pudessem falar por elas mesmas.
Essa busca de “arrefecimento” do “Eu” manifesta, no cerne da busca da objetividade tal qual
concebida por Ranke, a tentativa de ruptura entre o presente e o passado, segundo Loriga (2012),
como se, para que uma época pudesse vir à tona (o passado) a outra (o presente) tivesse que desapa-
recer. E quem representa o presente? O historiador. Ele teria que desaparecer do seu próprio estudo.
Na ciência histórica, da forma como inaugurada por Ranke, o passado não pode ser as-
similado pelo presente e nem projetar nada para o futuro. Ele deve apenas ser mostrado pelo
historiador, que não deve manifestar, em seu estudo, sua própria época. Só assim, liberta da
subjetividade do historiador, a História poderia se constituir com um saber seguro, sólido e con-
sistente. Portanto, são proibidas as analogias, as aproximações para com sua própria época, sob
pena de inviabilizar o seu ofício:
Acontece frequentemente que analogias fugazes induzam ao erro o historiador
que tem a intenção de continuar em contato com o presente, bem como o polí-
tico que insiste em se prender ao passado. A musa da história tem o horizonte
mais vasto e toda a aptidão em afirmar e em manter sua opinião, mas manifesta,
no seu trabalho, uma consciência cuidadosa ao extremo, e ela parece ciumenta
de sua missão. Introduzir, no trabalho histórico, preocupações que pertencem
ao presente tem, geralmente, como consequência entravar o livre desenvolvi-
mento desse trabalho. (RANKE, 2002, t. I, p. XI apud LORIGA, 2012, p. 250)
Objetividade x subjetividade no estudo da História 87
O estudo científico do passado implica numa renúncia ao presente. Essa ideia, segundo
Loriga (2012), propagou-se na Alemanha e intensificou-se na França dos anos de 1870, nos estu-
dos da Escola Metódica, a qual, como já vimos anteriormente, teve em Fustel de Coulanges um de
seus principais representantes.
A objetividade tal qual concebida pelo Historicismo alemão e acentuada pela Escola Metódica
francesa seduziu gerações de historiadores. Mas também foi alvo constante, desde fins do século
XIX, de ataques oriundos de posturas céticas, segundo as quais o olhar do historiador metamorfo-
seia o passado por ser, justamente, um olhar advindo do presente (LORIGA, 2012).
Esse foi o caso do medievalista belga Henri Pirenne (1897, p. 51-51 apud LORIGA, 2012, p. 251),
ao afirmar que “cada época refaz sua história”. Seu ponto de vista, diferentemente de outras ciências, não
possui um lugar exato, determinado.
[...] qualquer coisa que ele [o historiador] faça, o espírito público do seu tempo
reage sobre ele. […] Sua maneira de considerar a história é imposta ao historia-
dor pelo seu tempo. O ponto de vista no qual se situa não é determinado, como
nas ciências, pelo estado do desenvolvimento dos conhecimentos, mas pelo
estado de civilização do público ao qual se dirige e ao qual ele mesmo pertence.
[...] Cada época refaz sua história, transpõe-na, de certa forma, em um tom
que lhe é apropriado. [...] O historiador é dominado, sem perceber, pelas ideias
religiosas, filosóficas, políticas que circulam ao seu redor. (PIRENNE, 1897,
p. 51-52 apud LORIGA, 2012, p. 251)
O historiador é dominado pelo que existe a sua volta no momento de seu estudo. Não conse-
gue simplesmente “desaparecer” como sujeito para que seu objeto, o passado, venha à tona. O indi-
víduo pertence a sua época: é prisioneiro de seu tempo e, portanto, como pode “escapar” dele para
se lançar a uma outra época? Por isso, não só o objetivismo “puro” tal qual idealizado por Ranke
e pelos positivistas franceses é inconcebível, como também a neutralidade: a escrita da História
carrega os interesses políticos e econômicos, assim como a inserção social do historiador em sua
própria época (LORIGA, 2012).
O historiador não precisa – e não consegue – desaparecer simplesmente porque presente e pas-
sado não se anulam, não estão estanques um em relação ao outro; a existência de um “não” impede
a existência do outro: eles coexistem. Um e outro estão em contínua conexão, e aquilo que os parece
afastar – a distância temporal entre eles – torna-se relativa a partir do momento em que o historiador,
mediante o seu estudo, intensifica essa conexão, tornando-a mais próxima.
E isso é possível se pensarmos em uma outra parte da fala do historiador belga: o ponto de
vista do historiador não possui um lugar exato, determinado. Nem o historiador observa o fenôme-
no de sua pesquisa de um lugar fixo (pois sua própria época está em constante movimento), assim
como o passado também não constituiu um terreno fixo, mas, antes, uma terra movediça – além
de estrangeira, para relembrarmos Lowenthal (1998).
Assim, o lugar do seu objeto também não é estanque. Estando em contínua conexão, tem-
poralidades distintas se relacionam, afetam-se e se influenciam. Essa constatação apresentou-se de
forma clara entre os estudiosos da primeira geração dos Annales, notadamente, em Marc Bloch.
88 Introdução aos estudos históricos
Segundo Bloch (2002), como já afirmado anteriormente, a História não é a ciência dos acon-
tecimentos do passado: é a dos homens no tempo, é a das sociedades humanas no tempo. E como
é uma ciência que aborda fenômenos humanos, sua forma de operacionalização é diferente das
demais, daquelas que operam com dados colhidos em experimentações feitas em laboratório e
expressos em quantificações matemáticas, por exemplo.
Destaca o historiador francês o quão a experiência humana é complexa, por isso não pode
fresador: profis- ser reduzida a dados, não pode ser calculada; e usa o exemplo do fresador e o luthier para enfatizar
sional que trabalha
com peças para essa distinção. Enquanto o fresador se vale de instrumentos de precisão, o historiador, tal qual o
máquinas.
luthier, precisa aguçar, apurar sua sensibilidade para realizar seu trabalho de compreensão daquilo
luthier: profissional
que cria e conserta que é humano, no tempo:
instrumentos de
cordas.
Onde calcular é impossível, impõe-se sugerir. Entre a expressão das realida-
des do mundo físico e a das realidades do espírito humano, o contraste é, em
suma, o mesmo que entre a tarefa do operário fresador e a do luthier: ambos
trabalham no milímetro; mas o fresador usa instrumentos mecânicos de preci-
são; o luthier guia-se, antes de tudo, pela sensibilidade do ouvido e dos dedos.
(BLOCH, 2002, p. 55)
tão pouco desejável, qual a objetividade possível? Entre a subjetividade e a objetividade, o que é
possível ao estudo histórico, sem cair no relativismo absoluto, o que o inviabilizaria enquanto dis-
ciplina acadêmica, nem no objetivismo puro? Ou, ainda, para nos valermos das palavras de Loriga
(2012, p. 253): “É possível evitar a alternativa entre objetivismo puro e subjetivismo radical?”.
Segundo apontamentos da historiadora francesa, o “Eu” do historiador não é, necessariamen-
te, uma substância prévia, mas uma aspiração, um lugar de trabalho pelo qual é possível desenvolver
a “boa subjetividade”. Ela consiste em reconhecer que durante seu estudo, fala de um “terceiro lugar”,
que não é nem o presente, nem o passado, mas uma experiência de contemporaneidade, inacabável
na busca de redução da alteridade, desse considerar-se um outro em relação àquilo que se estuda:
[...] poderíamos dizer que o eu do historiador não é uma substância, dada a
priori, mas uma aspiração ou mesmo um lugar de trabalho. Para desenvolver
uma “boa subjetividade”, o historiador deve renunciar aos sonhos de ressurrei-
ção do passado, aceitar que vive em um terceiro lugar, o qual não coincide nem
com o presente, nem com o passado, e reconhecer que a contemporaneidade
não é uma condição, um estado, mas uma experiência, inacabada e inacabável,
de redução da alteridade. (LORIGA, 2012, p. 257)
Considerações finais
Abordamos ao longo do capítulo a delicada questão da objetividade versus subjetividade na
pesquisa histórica, problematizando quais os limites e as possiblidades da objetividade. Para isso,
partimos da forma como a concebia o precursor do historicismo alemão, Leopold Von Ranke,
levantando questões relativas à isenção e à neutralidade da figura do historiador na escrita do
texto como tentativa de fazer desaparecer sua própria época e fazer “falar” o passado e o quão esse
propósito não é possível de ser atingido, nem na época de Ranke e nem pelos historiadores atuais.
Abordamos a perspectiva da relação de inteligibilidade entre passado e presente que tem por in-
termédio o historiador e que ele parte de uma perspectiva subjetiva a partir do momento em que
define como objeto de estudo algo com o qual tem alguma ressonância sentimental. Finalizamos
com as colocações da historiadora francesa Sabina Loriga sobre o “Eu” do historiador, destacando
que este “Eu” não se trata de uma substância, mas de um lugar, que constitui, de fato, um terceiro
lugar, entre o presente e o passado, uma experiência de contemporaneidade sempre inacabada no
que se refere à busca da alteridade.
formato do ensaio para abordar, por um eixo central – o tema da objetividade versus subje-
tividade na escrita histórica –, questões como o relativismo, o papel da figura do historiador
no texto e da objetividade, destacando o quão determinados aspectos da obra dos autores
por ele explorados no livro fogem dos paradigmas aos quais são comumente associados.
Atividades
1. Defina o conceito de objetividade em História da forma como era entendida pelo historiador
alemão Leopold Von Ranke e aponte quais os limites dessa noção de objetividade, tanto na
época de Ranke quanto na nossa.
Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BARROS, J. D. A Escola dos Annales e a crítica ao historicismo e ao positivismo. Revista Territórios e Fronteiras,
Cuiabá, v. 3, n. 1, p. 75-102, jan./jun. 2010.
BARROS, J. D. Teoria da História. v. IV. Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da histó-
ria. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.
JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
LORIGA, S. O eu do historiador. História da historiografia, Ouro Preto (MG), n. 10, p. 247-259, dez. 2012.
Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/451/322. Acesso em: 2 fev. 2019.
LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Tradução de Lúcia Haddad. Revisão técnica de Marina
Maluf. Proj. História, São Paulo, v. 17, 1998. p. 63-201. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/
view/11110/8154. Acesso em: 2 fev. 2019.
WEHLING, A. Em torno de Ranke: a questão da objetividade histórica. Revista de História, São Paulo, v. 46,
n. 93, p. 177-200. 1973. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/131940. Acesso
em: 2 fev. 2019.
7
História e memória
De acordo com Le Goff (1990, p. 423), “A memória, como propriedade de conservar certas
informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”.
Considerada em sua dimensão unicamente subjetiva, era compreendida como a ferramen-
ta psíquica pela qual cada indivíduo seria capaz de registrar, filtrar, selecionar, reter, preservar e
evocar experiências, imagens, pessoas, situações reais ou imaginárias, fato que, de alguma forma,
tivesse vivenciado ao longo da sua existência. Segundo essa concepção, a memória seria constituída
de dois elementos distintos: capacidade de preservar e capacidade de evocar.
A Memória parece ser constituída por duas condições ou momentos distintos: 1"
conservação ou persistência de conhecimentos passados que por serem passados,
não estão mais à vista: é a retentiva; 2" possibilidade de evocar, quando necessário,
o conhecimento passado e de torná-lo atual ou presente: é propriamente a recor-
dação. (ABAGNANO, 2007, p. 657)
Entendida como um conjunto de funções psíquicas relacionadas ao que o homem pode reter
e evocar em sua mente, até o início do século XX a memória era objeto de estudo, sobretudo, da
Psicologia e da Psicanálise. Mas em 1925 as ideias do sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-
1945) vieram ampliar essa perspectiva. Em suas obras Os quadros sociais da memória (1925) e
Memória coletiva (publicada postumamente pela primeira vez em 19501), afirmava que a memória
precisa ser compreendida também como um fenômeno social, pois, em seu processo de constitui-
ção, influem elementos coletivos.
Halbwachs criou a categoria de “memória coletiva”, por intermédio da qual pos-
tula que o fenômeno de recordação e localização das lembranças não pode ser
efetivamente analisado se não for levado em consideração os contextos sociais
que atuam como base para o trabalho de reconstrução da memória. É, portanto,
mediante a categoria de “memória coletiva” de Halbwachs que a memória deixa
de ter apenas a dimensão individual, tendo em vista que as memórias de um
sujeito nunca são apenas suas ao passo que nenhuma lembrança pode coexistir
isolada de um grupo social. (SILVA, 2016, p. 247)
Segundo Halbwachs (1990), as memórias de uma pessoa, relativas ao que ela retém ou evo-
ca, não são somente suas, não estão isoladas do grupo em que estão inseridas: os contextos sociais
a que pertencem atuam como base no trabalho de reconstrução que é realizado pela memória.
Assim, podemos afirmar que existem dois tipos de memória, segundo o sociólogo francês: uma in-
dividual e outra social, mas ambas são construídas socialmente, pois mesmo a memória individual
se edifica a partir de pontos de referência advindos do meio social aos quais o indivíduo recorre
não só na evocação como também na construção de suas lembranças.
Até mesmo os símbolos, palavras e ideias que um indivíduo usa na composição de suas
lembranças são instrumentos que foram criados pelo contexto social do qual ele é parte, conforme
destaca: "Haveria então memórias individuais e, se o quisermos, memórias coletivas. Em outros
termos, o indivíduo participaria de duas espécies de memória” (HALBWACHS, 1990, p. 53).
1 Maurice Halbwachs foi morto em 1945 em Buchenwald, um campo de concentração nazista na Alemanha.
História e memória 93
A memória individual, portanto, é construída com base em referenciais que são coletivos: o
indivíduo pode se reportar às lembranças do grupo para sanar as lacunas da sua memória pessoal,
sem, contudo, deixar de diferenciar o que é próprio da sua caminhada do que é externo a ela, o que é
relativo ao grupo. Por outro lado, o inverso também se aplica: da interação de experiências e vivências
individuais e coletivas, e das lembranças a elas associadas, é que se solidificam os laços que formam
um grupo e, entre esses laços, a memória coletiva constitui um dos elementos mais expressivos.
Se essas duas memórias se penetram frequentemente: em particular se a memória
individual pode, para confirmar algumas de suas lembranças [...] apoiar-se sobre
a memória coletiva, deslocar-se nela, confundir-se momentaneamente com ela,
nem por isso deixa de seguir seu próprio caminho e todo esse porte exterior é
assimilado e incorporado progressivamente à sua substância. A memória cole-
tiva, por outro, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas.
(HALBWACHS, 1990, p. 53)
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Mesmo que somente um indivíduo tenha a lembrança de acontecimentos que só ele viven-
ciou, as lembranças acerca desses acontecimentos continuam tendo uma conotação coletiva e elas
94 Introdução aos estudos históricos
podem ser trazidas à tona por outros que não os vivenciaram, em virtude dos aspectos coletivos
que atuam na construção dessas lembranças (HALBWACHS, 1990).
Nossa memória individual pode ser entendida, também, como uma espécie de ponto de
vista, uma referência sobre a memória coletiva. Ela é dinâmica, pois esse ponto de vista sofre alte-
rações de acordo com a posição que ocupamos e com os deslocamentos que realizamos no interior
do grupo a que pertencemos, além das relações que travamos com outros grupos. Há ainda que
se destacar, que, embora existam acontecimentos que foram vivenciados coletivamente e que exis-
tam elementos sociais, coletivos na construção de nossas memórias individuais, cada indivíduo
reelabora esses acontecimentos e forma suas memórias individuais acerca deles pela sua própria
experiência e inserção nos grupos em que transita (HALBWACHS, 1990).
A memória individual é dinâmica, seletiva, e está em contínua relação com a memória cole-
tiva, cujos aspectos nela intervém da mesma forma que intervém nela. Mas, e a História? Como se
diferenciam e se relacionam memória e história? É o que veremos a seguir.
Segundo o historiador brasileiro Loiva Félix (1998), nas décadas de 1980 e 1990, a crescente
tecnologização e urbanização das sociedades ocidentais, a massificação de padrões de compor-
tamento e da informação, bem como a consequente perda da noção de pertença das pessoas em
relação a um grupo e a um espaço, foram alguns dos fatores que instigaram ainda mais os estudos
históricos sobre o papel da memória social.
Entre as problematizações postas estava a possibilidade do estudo da memória social como
estratégia de resgate da experiência de grupos que estavam em vias de desaparecer ou de minorias
cuja identidade era velada/negada pela memória institucionalizada imposta pela memória insti-
tucionalizada dos governos. Na esteira das pesquisas sobre memória social e história, memória
e experiência, memória e resistência, destacaram-se estudiosos (sociólogos) sobretudo franceses,
entre eles Pierre Nora (1931-); Jacques Le Goff (1924-2014) e Michael Pollak (1948-1992).
Ainda de acordo com Félix (1998), a memória social vem sendo uma das estratégias de ten-
tativa de busca de pertencimento dos indivíduos para com um determinado meio social, um dos
pilares essenciais no processo de resgate ou mesmo de construção de uma determinada identidade
individual em relação à padronização imposta pela mídia ou uma estratégia de afirmação de gru-
pos minoritários dentro de um Estado.
Figura 2 – Urbanização da sociedade
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Mas, se por um lado o interesse dos cientistas sociais e, em especial, dos historiadores, volta-
va-se para a memória social como objeto de estudo, buscando perceber, sobretudo, as permanên-
cias em um contexto de mudanças intermitentes e avassaladoras, por outro, existiram críticas, por
parte dos próprios historiadores, aos perigos da historicização da memória.
No bojo desses estudos destacam-se as ponderações do francês Pierre Nora (1993): partindo
de uma diferenciação entre História e memória, em sua obra Les lieux de mémorie (Os lugares da
memória), de 1984, ele adverte para o caráter destrutivo da História – sistematizadora – com rela-
ção à memória coletiva, que é espontânea, dinâmica, autêntica e viva, em constante transformação.
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo
opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e,
nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança
e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, suceptivel de longas latências e de repentinas
revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do
que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido
no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e
mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta
de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbó-
licas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história,
porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico.
A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre
prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como
Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por
natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história,
ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o
universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem,
no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às
relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo.
(NORA, 1993, p. 9)
por meio da sua legitimação no passado, organizam incessantemente espaços e materiais cuja preo-
cupação é arquivar, referenciar e historicizar toda e qualquer referência ao passado.
Um dos fenômenos que pode explicar esse procedimento é uma certa angústia contempo-
rânea relativa à sensação de que nossos laços com o passado e, com nossas identidades e origens,
estão sendo destituídos pelos avanços tecnológicos. Nessas condições, tudo o que é antigo passa a
ser importante, muitas vezes, somente pelo fato de ser antigo. Porém essa não é uma manifestação
natural e espontânea da memória – como acontece nas sociedades pré-industriais ou em algumas
regiões onde a memória é sinônimo de continuidade do socialmente vivido –, mas uma tentativa
desesperada de resgatar os laços com o passado por meio da edificação de lugares onde a memória
é supostamente “preservada” (NORA, 1993).
Sem se proceder a uma crítica científica desses materiais, vai se formando uma memória
forçada e mesmo forjada em cima de uma necessidade que faz parte do presente: a identificação
das comunidades e a sua diferenciação temporal e espacial umas diante das outras.
Em uma crítica avassaladora, Pierre Nora aponta que a principal culpada por esse processo é
a própria História. Ao mesmo tempo em que destruiu as bases coletivas da memória espontânea ao
submetê-la a um criticismo destruidor, a sociedade histórica começa a produzir deliberadamente
lugares da memória, na iminência de uma perda definitiva do passado:
No coração da história trabalha um criticismo destrutor de memória espontâ-
nea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é des-
trui-la e a repelir. A história é a desligitimação do passado vivido. No horizonte
das sociedades de história, nos limites de um mundo completamente historici-
zado, haveria dessacralização última e definitiva. O movimento da história, a
ambição histórica não são a exaltação do que verdadeiramente aconteceu, mas
sua anulação. (NORA, 1993, p. 9)
Porém, o inverso da memória histórica como genealogia da nação, ou seja, como memória
oficial, também é capcioso: a transformação de todo e qualquer elemento que possa satisfazer a
angústia contemporânea ocasionada pelo sentimento de não pertencimento levará à eleição de
qualquer acontecimento do passado em memória e, assim, possível de ser sacralizado, não discu-
tido – simplesmente aceito.
Para que não incorramos no erro de despir o passado de uma análise crítica, ou seja, histó-
rica, e nem desprezar o fato de que a era tecnológica afasta lentamente os indivíduos de uma pos-
sibilidade de ter uma identidade social, é preciso que repensemos tanto o papel social da História
quanto o papel histórico da memória, seja ela espontânea ou forjada.
Segundo Pollak (1992), é possível argumentar que há, tanto na memória individual quanto na
memória coletiva, elementos cujo trabalho de solidificação foi tão forte que os tornou imutáveis, sólidos,
enquanto outros são flexíveis e dependem da interpretação que aquele que fala, faz do seu presente.
É como se, numa história de vida individual – mas isso acontece igualmente em
memórias construídas coletivamente – houvesse elementos irredutíveis, em que
o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a
ocorrência de mudanças. Em certo sentido, determinado número de elementos
tomam-se realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito
embora outros tantos acontecimentos e fatos possam se modificar em função dos
interlocutores, ou em função do movimento da fala. (POLLAK, 1992, p. 201)
Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. A memória é, em parte, her-
dada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre
flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está
sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de
estruturação da memória. (POLLAK, 1992, p. 203-204)
A conclusão parcial a que se pode chegar com essas constatações de Pollak é que, às vezes, há
por detrás da memória exposta pelos grupos uma outra subentendida, oculta e que também revela
a experiência destes – e isso só reforça a tese de que a memória é seletiva. De acordo com o autor,
esses elementos "ocultos" revelam uma memória subterrânea ou um rol de experiências que fazem
parte das lembranças individuais ou coletivas que acabam sendo omitidas durante as entrevistas,
entre outros motivos, por serem traumáticas demais.
O conceito de memória subterrânea é exposto mais detalhadamente por Pollak em seu artigo:
"Memória, Esquecimento, Silêncio", transcrito de uma palestra que proferiu no Museu Nacional,
no Rio de Janeiro, em 1987. Na ocasião, Pollak alertava para o fato de que a tradição halbwachiana
apontara para o caráter conciliatório que existia entre a memória individual e a memória coletiva.
Porém, Pollak (1989) argumenta que, de uma ótica construtivista, não basta analisar a memória
coletiva como elementos construídos socialmente, mas é interessante pensar como esses elementos
foram construídos.
Se direcionamos essa indagação à memória coletiva, devemos nos perguntar quais os atores
e processos que intervêm para a formalização das memórias em uma memória oficial. Segundo o
autor, de um lado há a memória oficial, formalizada, que está presente tanto nos discursos domi-
nantes quanto na minoria. Do outro, há as subterrâneas, ocultas devido a fatores ainda estranhos
para os que trabalham com a memória social. Essa memória subterrânea, silenciosa em períodos
de paz, às vezes aflora em épocas de crise e, aí, podem surgir conflitos entre ela e a oficial.
A despeito da importante doutrinação ideológica, essas lembranças durante
tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oral-
mente, e não através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre
o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma socieda-
de civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela
transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de
amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas. (POLLAK, 1989, p. 5)
Para Pollak (1989), é do conflito entre a memória subterrânea e a memória oficial que po-
dem aparecer novos objetos de pesquisa interessantes para os historiadores orais que buscam a
versão dos excluídos. O conceito de memória subterrânea parece um tanto complexo pelo fato de se
referir à uma memória não expressa normalmente, nos relatos orais. Contudo, chama atenção para
o caráter desafiador que esse tipo de olhar desperta naqueles que se dizem defensores da versão das
minorias, dos excluídos, tanto no passado quanto no presente.
História e memória 101
Já entre os historiadores do século XIX, famosos pelo rigor científico com que tratavam as
fontes, deparamo-nos com o historiador Jules Michelet (1798-1874) e a sua História da revolução
francesa, escrita entre 1846 e 1853. Em uma certa altura do livro, comenta:
Uma coisa é preciso dizer a todos e é muito fácil de demonstrar: a época huma-
na e benevolente de nossa revolução tem por ator o próprio povo, o povo intei-
ro, todo mundo: E a época das violências, a época dos atos sanguinários para
onde mais tarde o perigo a impele, tem apenas por ator um número mínimo
de homens, um número infinitamente pequeno. Eis o que encontrei, constatei
e verifiquei, seja pelos depoimentos escritos seja pelo que recolhi pela boca dos
velhos. (MICHELET, 1989, p. 22)
Contudo, demoraria ainda algum tempo para que a fonte oral fosse considerada tão válida
quanto a escrita. Segundo o sociólogo britânico Paul Thompson (1935-), um dos pioneiros a estu-
dar as possibilidades da História oral, inúmeros estudos de caráter sociológico e jornalístico foram
desenvolvidos no século XIX em países europeus como Escócia, França, Bélgica e Alemanha e que
tinham por suporte o trabalho de campo baseado não só em registros oficiais e escritos, mas tam-
bém em entrevistas com pessoas comuns (THOMPSON, 1992).
O objetivo da maioria desses trabalhos era coletar informações sobre crises econômicas,
reações políticas, mudanças de comportamento e a situação concreta da miséria e do abandono em
que viviam os segmentos proletários. Foi o caso do trabalho que o teórico alemão Friedrich Engels
(1820-1895) realizou sobre a condição da classe operária na Inglaterra, no qual ele próprio visitou
os bairros onde sub-habitavam os operários para depois escrever sobre eles2.
Apesar da eficácia comprovada do uso das entrevistas, ainda que elas fossem registradas
pelo pesquisador na investigação de questões sociais, na pesquisa histórica a fonte oral só pode
efetivamente ser utilizada quando a tecnologia tornou possível o recurso do gravador. Uma das
primeiras experiências de História oral citada por Paul Thompson ocorreu nos Estados Unidos,
na Universidade de Columbia. Segundo o autor, naquela universidade foi desenvolvido um estudo,
em 1948, sobre a participação de personalidades na Guerra. Apesar de ter se limitado à fala de um
grupo seleto de pessoas, a experiência rendeu ótimos resultados e os EUA passaram a investir ma-
ciçamente na organização de centros de pesquisa e catalogação de documentos orais, sendo esse
país um dos mais avançados nesse tipo de pesquisa (THOMPSON, 1992).
A partir de então, o método da História oral passou a ser discutido amplamente como uma alter-
nativa para aqueles que se interessavam em realizar estudos sobre a História do tempo presente tendo
como foco os setores menos favorecidos, sobre os quais não há tanta produção de material escrito. Após
1960, representantes da tendência historiográfica, conhecida como nova esquerda inglesa, e da Escola
Francesa dos Annales, defendiam, ainda que por vieses diferentes, a História oral como método.
Entre os historiadores que se debruçaram sobre o tema, podemos citar o próprio Paul
Thompson e o seu livro já considerado clássico no assunto: A voz do Passado, de 1978. Há também
Raphael Samoel e seus estudos sobre "História Local e História Oral" e Bill Bcharz, cuja visão difere
um pouco da dos dois primeiros, mas que defendeu, igualmente, o uso do documento oral como
2 Para conhecer esse belo trabalho, leia a obra: ENGELS, F. A situação da classe operária na Inglaterra. Tradução B. A.
Schumann. São Paulo: Boitempo, 2008.
História e memória 103
possibilidade de reconstrução histórica da experiência popular, da cultura popular acessada por meio
de aspectos da memória social, os quais podem ser evocados mediante as estratégias da História oral
(THOMPSON, 1992). Na historiografia francesa, temos os já citados Michael Pollak e Pierre Nora,
além de Gwyn Prins e das já clássicas considerações de Jacques Le Goff sobre História e memória
É preciso ter em mente que, se a História é o estudo da trajetória humana no tempo, ela
não pode ignorar a memória social como possível objeto de investigação, uma vez que pode ser
compreendida como um elo subjetivo por meio do qual o indivíduo se liga a um ou mais grupos,
instituindo para com eles um vínculo de pertencimento, no qual a relação passado/presente é ma-
nifesta, dinâmica e constantemente ressignificada.
Para além dos monumentos e vestígios materiais, a oralidade é um dos principais recursos
não materiais com os quais o historiador “acessa” a memória e a aborda como fonte primária, tendo
para com esse tipo de fonte os mesmos cuidados e procedimentos que costuma adotar com outras
fontes primárias, ou seja, abordando-a de forma crítica e contextualizada.
Considerações finais
Neste capítulo, abordamos o conceito de memória individual e memória coletiva, problema-
tizando a constituição social das memórias individuais e como elas se relacionam com a memória
dos grupos em que se encontram inseridas. Vimos também as aproximações e diferenças entre
memória social e História e em que contexto cientistas sociais e historiadores passaram a ter maior
interesse pelo estudo da memória coletiva como ferramenta de análise e compreensão de certos
fenômenos sociais, sobretudo, contemporâneos ou relacionados a uma história do tempo presente.
Abordamos de que maneira o discurso histórico, ao tentar submeter, “cientificizar” e insti-
tucionalizar a memória em certos “lugares da memória”, manifesta-se como uma ferramenta des-
trutiva em relação a algo que é dinâmico, fluídico e vivo. Com Pollak (1989) nos deparamos com o
conceito de memórias subterrâneas e como elas podem emergir em momentos de crise.
Finalizamos com uma rápida exploração sobre a História oral e de que forma ela vem se
constituindo em uma estratégia importante de acesso à memória social e de sua exploração como
fonte primária pelos historiadores.
Atividades
1. Defina e diferencie memória individual e memória coletiva e explique como se relacionam
e se afetam.
Referências
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CARVALHO, J. M. de. A formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia
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2008.
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MICHELET, J. A História da Revolução Francesa. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia
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POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3. p. 2-15, 1989.
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THOMPSON, P. A voz do passado. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
8
A narrativa em História
Qual é o aspecto da escrita histórica? Pautada pelo rigor metodológico, deve ela assemelhar-
-se ao formato duro e frio do texto científico? Ou pode ser permeada também pela busca da beleza
permitindo-se um aspecto mais literário, artístico? Entre a ciência e a arte, qual o lugar do texto
histórico? Ainda há lugar para o estilo narrativo nesse tipo de escrita?
Neste capítulo, exploraremos a técnica da narrativa em História, problematizando seu uso
no século XIX e as críticas que esse estilo de escrita sofreu com o conceito de história-problema
proposto pelos Annales, na primeira metade do século XX.
Abordaremos as implicações teóricas e práticas da forma narrativa como escrita da História,
partindo da análise de teóricos que questionaram, nas últimas décadas do mesmo século XX, se a
História estaria mais próxima de uma escrita científica ou literária.
1 Para alguns teóricos literários, historiadores e filósofos, o romance, surgido no século XVII com a obra do escritor
espanhol Miguel de Cervantes, intitulada El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha (1605), não seria um tipo de
narrativa. Esse é o posicionamento, por exemplo, do filósofo alemão ligado à Escola de Frankfurt, Walter Benjamin (1892-
1940), segundo o qual: “[...] O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e
mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa.
O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que
não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe
dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites.
Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem vive”. [grifo
nosso] (BENJAMIN, 1985, p. 201).
A narrativa em História 107
O enunciado narrativo permeando a escrita histórica se fez notar também entre historiado-
res ingleses, entre eles, Thomas Macaulay (1800-1859), o qual se dizia o narrador da História da
Inglaterra e em cujo texto se propunha a convocar, ao lado da trajetória dos líderes políticos, uma
série de histórias “do povo”, as quais consistiam na beleza dos “romances históricos”. Mencionemos,
ainda, entre os alemães, o sistematizador do método histórico Leopold Von Ranke2 (1795-1886),
segundo o qual a História seria a narrativa do que realmente aconteceu:
Em suas cartas sobre a História, da França, Augustin Thierry declarou sua
preferência explícita pela representação épica dos movimentos históricos.
[...] Na Inglaterra, Macaulay tornou-se o grande narrador de uma História da
Inglaterra que se valeu da arte scottiana de, ao lado dos protagonistas da histó-
ria política, convocar toda uma imensidão de histórias do povo que, como ele
próprio diz, "fazem o encanto dos romances históricos" [...]. Também Ranke
compôs, como vemos hoje, à base de Leitmotive, conforme as ideias de peso
histórico acentuadas por ele, e coloria as cenas decisivas quando se propunha a
narrar "como realmente foi". (LÄMMERT, 1995)
Esse tipo de escrita da História sofreu críticas, ainda no século XIX, mas, sobretudo, a partir
das primeiras décadas do século XX, como veremos a seguir.
2 É importante mencionar que existiram exceções a essa tendência. Na mesma época, e na mesma Alemanha de
Ranke, opunha-se a uma exposição narrativa e quase romanceada da História Johann Gustav Droysen (1808-1884), co-
nhecido como um dos principais sistematizadores de uma História profissional (LÄMMERT, 1995).
108 Introdução aos estudos históricos
François Guizot (1787-1874), que recusava tanto uma história como mera apresentação de fatos,
sem qualquer busca de um sentido ou interpretação destes; quanto uma Filosofia da História, uma
busca do seu sentido, mas desprovida de fatos (BARROS, 2012).
O próprio Guizot, conforme afirmaria Karl Marx, pode ser considerado um precursor de uma
ideia de História condicionada por fatores sociais, como a luta de classes, por exemplo (BARROS,
materialismo
histórico-dialético:
2012). Mas foi com o materialismo histórico-dialético, desenvolvido com base nos estudos dos ale-
aborda os fenôme-
mães Karl Marx e Friedrich Engels, que ganhou terreno a compreensão de que fatores econômicos
nos da natureza de
forma dialética e os – forças produtivas e modos de produção – configuravam a organização da sociedade em classes, e
interpreta de forma
materialista.
essa configuração exercia influência sobre as ideias e as instituições. Dessa forma, estruturas sociais
de base econômica tinham uma influência determinante no curso histórico, e não a ação isolada de
alguns homens (heróis).
Tal compreensão engendrava uma nova forma de se compreender a História e seu sentido,
ao mesmo tempo em que atacava o texto histórico como um relato fluente do passado como uma
marcha que caminhava para o presente e com foco no protagonismo individual (dos heróis ou
grandes personagens históricos). O protagonismo agora de uma estrutura social, a “luta de classes”:
o constante confronto entre forças dialéticas como o motor da história.
Enquanto manifestações de uma historiografia de base materialista-marxista tentavam se
afirmar por influência, sobretudo, da Sociologia, na década de 1930, na França, despontava o mo-
vimento historiográfico conhecido como Annales, nascido, como vimos anteriormente, da revista
criada por Marc Bloch e Lucien Febvre, em 1929. Voltados para uma História social, que buscava
entender, sobretudo, como se formam as mentalidades ao longo do tempo, a Escola de Annales
ataca a “história-narrativa” em nome de uma “história-problema”:
Essa noção tornou-se de longe o instrumento mais combativo e reluzente do
programa dos Annales, pois permitia afrontar, através de um novo conceito e de
uma nova definição para uma história que se queria nova, o frágil universo dos
modelos de historiografia que se limitavam a narrar os fatos ou a expor infor-
mações, de maneira meramente descritiva. (BARROS, 2012, p. 306)
O impacto causado pelas proposições postas pelas primeiras gerações de historiadores liga-
dos à Escola de Annales na História e nas ciências humanas, de um modo geral, foi acentuado pela
analítica do poder manifesta nas obras do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984).
De forma muito rápida e grosseira, podemos afirmar que, em um projeto teórico amplo,
o qual podemos conceituar como “analítica do poder”, Foucault chama atenção para o fato de
que, desde o final do século XVII, os saberes – e as estratégias de poder a eles relacionados – são
engendrados com bases epistemológicas, as quais são aceitas porque são tidas como verdadeiras.
Na Modernidade, essas bases epistemológicas estariam associadas ao universo acadêmico: ou seja,
temos por verdadeiro os discursos produzidos pelos diferentes saberes provenientes da academia
(SOCUDO, 2013).
Partindo de uma concepção arqueológica do saber e da genealogia como forma de se pro-
blematizar como se estruturam, nas diferentes relações sociais, relações microfísicas de poder, a
análise foucaultiana, nas décadas de 1960 e 1970, principalmente, volta sua atenção, para o seguinte
A narrativa em História 109
questionamento: mais importante do que tentar entender o que é a verdade ou qual a necessidade
da verdade, é entender como são construídos os discursos tidos como verdadeiros, ou, em outras
palavras, tentar entender o que funciona como verdade (SOCUDO, 2013).
Tais posicionamentos impactaram na escrita da História e na compreensão acerca do que
seria um texto histórico. Ao lado da pressuposição de História-problema, deslindava-se a possi-
bilidade de que a história é, também, um discurso, que tem suas origens no universo acadêmico
e que, independentemente do posicionamento crítico e reflexivo que vinha assumindo desde a
revista Annales, a História apresenta-se, também, pelo menos aos olhos da maioria, como o saber
que detém “a verdade” sobre o passado. A ideia da História como discurso colocava em suspenso a
epistemologia desse saber, seus limites, suas possibilidades, sua forma de operacionalização.
Tal debate, que se acalorava em meados da década de 1960, representou um duro golpe à com-
preensão de História como narrativa do passado, enquanto crescia o entendimento de que à História,
enquanto um discurso, caberia se ocupar mais com o inteligível e como o que é inteligível assim foi
tornado possível ao longo do tempo do que, propriamente, com o que é real – visto que este perma-
neceria, de qualquer modo, inacessível.
Assim, a ruptura não se dava somente em relação à ideia de história narrativa, mas também
para com alguns dos parâmetros que haviam sacralizado a História como ciência (e, portanto,
como discurso) no século XIX.
O pensamento de Munslow e White acerca da escrita histórica se encontra em um contexto
de ruptura e desconstrução de alguns pressupostos caros à teoria do conhecimento em geral e à
teoria da História, em particular, em um ambiente marcado pela difusão da tendência pós-moder-
na, na Filosofia, na Literatura e nas Artes, conforme veremos na sequência.
De acordo com Assis e Cruz (2010), White parte do pressuposto teórico de que o passado só
existe pela forma como é escrito pelos historiadores e, assim, pode ser considerado um expoente de
um movimento maior, conceituado como desconstrucionismo, no qual também pode ser inserido o
pensamento do historiador britânico Alun Munslow (1947-), especialmente expresso na sua obra
Desconstruindo a história (1997).
Antes, porém, de adentrarmos no conceito de desconstrucionismo e de que maneira ele afeta
a percepção acerca do estudo e da escrita da História, vamos tentar entendê-lo com aquilo que
Munslow (ASSIS; CRUZ, 2010) caracterizou como as duas outras formas de se conceber a História:
o construcionismo e o reconstrucionismo. Enquanto o primeiro parte de evidências e se pauta por
uma ideia de História objetiva, o segundo se orienta por uma ideia de História total, globalizante,
buscando no passado modelos de inspiração para o presente.
Enquanto o reconstrucionismo elabora explanações históricas considerando a
evidência, portanto, sustentando a pesquisa história objetiva, o construcionismo
pressupõe explanações totais e globalizantes, e busca no passado modelos que
podem ser aplicados no presente. Por sua vez, o desconstrucionismo enfatiza a
relação entre a forma e o conteúdo, bem como o relativismo da compreensão his-
tórica, possui consciência que a narrativa da história escrita é uma representação
do conteúdo histórico. (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114)
Ao primeiro desses questionamentos, Munslow responde que a História não pode ser con-
siderada uma ciência tal qual, por exemplo, as ciências da natureza. Isso porque o historiador, ao
selecionar determinados dados e relegar outros em virtude do seu interesse ou das circunstâncias
que envolvem seu estudo, acaba, inevitavelmente, “criando” um passado; ou, ainda, substituindo
o passado pela sua narrativa. Logo, a escrita histórica é um constructo de base linguística criado e
organizado pelos historiadores. É uma construção narrativa que, tendo por base o passado, acaba
por substituí-lo. Não é o passado (MUNSLOW, 2009, p. 15 apud ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114).
Ao segundo questionamento, Munslow responde diferenciando fato e evidência, destacando
que, por intermédio da interpretação narrativa, a evidência é transformada em fato pelo histo-
riador, atingindo relevância, sobretudo, quando relacionado a um determinado contexto (ASSIS;
CRUZ, 2010).
Acerca da terceira questão, Munslow responde que, ao contrário do que pretendiam os em-
piristas radicais, a História não pode ser considerada um conhecimento objetivo, em virtude dos
interesses e pretensões dos seus “intérpretes” (os historiadores), os quais deixam no texto escrito as
suas digitais (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114).
Finalmente, acerca da última questão, Munslow enfatiza o caráter narrativo da escrita histó-
rica afirmando que ela é “[...] um discurso que coloca diferentes eventos em uma ordem compreen-
sível” (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114).
White caminha na mesma direção de Munslow, ou seja, o desconstrucionismo, ao afirmar que
o passado só existe da forma como é criado pelos historiadores, sendo a História, por esse motivo,
uma “criação literária”, uma vez que: “sempre será interpretada através de relíquias textualizadas que,
por sua vez, só podem ser compreendidas por meio das pistas de interpretações a serem organizadas
pelos historiadores” (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114).
Assim, a escrita histórica é, para White, um empreendimento literário, e essa sua afirma-
ção coaduna com o posicionamento desconstrucionista: “Primordialmente, o método histórico
de White parte da concepção de que a história escrita é indiscutivelmente um empreendimento
literário, e não podemos ter acesso sobre o que foi o passado a não ser através da forma narrativa
que criamos para organizá-lo” (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 115).
Essa constatação, a qual chega o historiador desconstrucionista, ameaça a existência da
História como conhecimento? Como disciplina acadêmica? Não necessariamente, afirma White
(ASSIS; CRUZ, 2010). O historiador desconstrucionista tem consciência de que o que escreve é
uma interpretação de um texto. Que texto é esse que ele interpreta? O passado, que chega para ele
em uma determinada base linguística, é transposto para uma outra versão narrativa, a história es-
crita. É somente ao nível da narrativa, afirma o historiador estadunidense, que a História pode ter
acesso ao passado em seu aspecto mais básico.
Desta forma, o historiador desconstrucionista faz uma interpretação vista como
tradução ou rendição de um texto, o passado, em uma nova versão narrativa que
é um outro texto de sua própria invenção, a história escrita. O modelo de White
sugere que para a história tratar o passado em seu nível cultural mais básico, ela
tenha que ir ao nível da narrativa. Podemos concluir, por Hayden White, que
o significado dos fatos históricos muda na medida em que as interpretações
112 Introdução aos estudos históricos
Considerações finais
Neste capítulo, abordamos a escrita do texto histórico, apontando seu formato narrativo,
em expoentes da historiografia oitocentista, bem como as críticas que esse formato sofreu ainda
no século XIX. Destacamos como a enunciação narrativa foi sendo destituída como possibilidade
de apresentação da escrita histórica ao longo do século XX entendendo como um dos principais
fatores para a crise da escrita narrativa em História a ideia de História-problema, proposta pelos
Annales. Finalizamos apresentando as provocações postas por filósofos e teóricos da linguagem, a
partir da década de 1960, e no contexto mais amplo do pós-estruturalismo, do pós-modernismo e
do desconstrucionismo. Entre essas provocações, o argumento de Hayden White (ASSIS; CRUZ,
2010) de que a História, enquanto uma enunciação narrativa que, ao se voltar para o passado – ao
qual ela tem acesso como linguagem –, acaba por substituir o passado pela escrita história é, em
última instância, uma escrita ficcional, o que não torna o texto histórico destituído de valor, mas
enriquece a concepção que dele se tem ampliando-a no sentido de reconhecer que toda forma de
conhecimento traz, em si, elementos da imaginação.
A narrativa em História 113
Atividades
1. Qual a relação entre a narrativa e a escrita histórica no século XIX?
3. Explique, com suas palavras, o entendimento de White de que a escrita histórica é uma es-
crita de ficção.
Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ASSIS, G. L. de; CRUZ, M. S. da. Desconstruindo a História: Hayden White e a escrita da narrativa. Revista
Mosaico, Goiás, v. 3, n. 1, p. 111-118, jan./jun. 2010. Disponível em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/
mosaico/article/view/1837/1141. Acesso em: 02 fev. 2019.
BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. [1940]. In: ROUANET, S. P. Obras escolhidas: magia e técnica,
arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. v. 1. 3. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
MICHELET, J. História da Revolução Francesa. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.
NIETZSCHE, F. Aurora. Pensamentos sobre a moral como preconceito. Tradução de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra moral. In: NIETZSCHE, F. Obras incompletas.
Tradução de Rubens Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).
3. Sim, porque em uma mesma época podem coexistir diferentes sociedades, com diferentes cultu-
ras e diferentes entendimentos acerca da sua experiência no mundo. As temporalidades, enquan-
to tentativas de localização temporal, constituem aspectos da formação cultural, social e política
das sociedades, variando, dessa forma, de uma para outra. Essa constatação explica, por exemplo,
o fato de que existem grupos que se orientam pelo calendário judaico, outros pelo calendário
muçulmano e outros, como determinadas comunidades indígenas, que se orientam por uma
perspectiva cíclica de tempo em uma mesma época e lugar, como o Brasil atual.
4. Resposta pessoal. Você pode escolher, por exemplo, um dos calendários mencionados no texto,
ou a diferença entre uma concepção cíclica e linear de tempo, ou, ainda, aspectos referentes à
história da contagem das horas para desenvolver seu texto. Todos esses exemplos constituem dis-
positivos de compreensão, mensuração, localização, nominação, divisão e contagem do tempo.
tomar e quais eles devem evitar, além da não preocupação com a origem e a autenticidade das fontes
usadas para o estudo.
2. Porque parte do princípio de que o tempo humano, assim como a Cidade dos Homens (o que é mun-
dano, material, perecível), está destinado à destruição, ao fim. Se a história é essa trajetória dos ho-
mens no mundo e se o mundo o destino é a finitude, a destruição, quando então os homens deverão
voltar para Deus – o senhor do tempo, da eternidade, que é a ausência de tempo –, então o fim dos
tempos e o fim do mundo representa, também, o fim da história. Vive-se à espera desse fim.
3. Resposta pessoal. É importante pensar que a ideia de história como exemplo não se sustenta. Isso
porque não necessariamente aprendemos com o passado. Se o passado nos ensinasse alguma coisa,
não teríamos a Segunda Guerra Mundial (a Primeira não tinha matado gente suficiente?). Assim
como o estudo do passado não necessariamente tem uma função didática para com o presente, ele
também não pode “prever” o que irá ocorrer. A História não prevê e não ensina, a história pode servir
de elemento de problematização, de inteligibilidade e de diálogo entre diferentes temporalidades –
presente, passado e futuro. Isso porque a História não é o estudo só do passado, mas dos homens no
tempo, e os historiadores não saem do tempo para estudar outras temporalidades, distantes da sua,
apenas fazem pontes, contrapontos entre diferentes temporalidades, com a consciência de que são,
também eles, históricos, e influenciado por sua própria época.
2. De acordo com o entendimento de ciência histórica manifestada pelas primeiras e mais exponenciais
escolas historiográficas surgidas no século XIX, o conceito de fonte histórica se restringia aos docu-
mentos, oficiais e escritos, ligados a instituições, como o Estado e a Igreja. Só esse tipo de vestígio era
considerado digno de ser estudado pelos historiadores. O fato de serem escritos e oficiais conferia a
esses documentos a legitimidade que o status de ciência alçado pela História exigia (em tese, seriam
autênticos). Mas essa “escolha” pode ser entendida também por questões políticas da época: na Ale-
manha em processo de unificação a partir da Prússia, interessava ao Estado a pesquisa histórico-cien-
tífica de sua própria constituição no tempo como algo relacionado ao espírito da nação como forma
de justificar a unidade territorial e política dos povos de língua e etnia germânica. A burocracia liberal
prussiana era a principal incentivadora e financiadora de pesquisas históricas pagas pelo Estado e
que deveriam contar a história desse Estado, além disso, muitos historiadores ocupavam ou vieram a
ocupar cargos políticos nos governos que financiavam suas pesquisas.
Gabarito 117
3. Em História, podemos definir fontes primárias como sendo os documentos da época a ser estudada,
contemporâneos do período ou evento a que se refere a pesquisa, originais. Já as fontes secundárias
são os documentos produzidos em períodos posteriores à época correspondente ao tema pesquisado,
mas que se relacionam ao tema, de forma direta ou indireta, tais como compilações, historiografia e
livros acadêmicos escritos por pesquisadores, teóricos, historiadores em épocas posteriores àquela em
que situam as fontes primárias.
2. Resposta pessoal. Como fragilidade epistemológica podemos apontar o fato de o historiador estar
numa época e o seu objeto de estudo estar em outra; outra fragilidade epistemológica diz respeito ao
conteúdo quase ilimitado do passado; há ainda o agravante de que a maioria dos fatos que acontece-
ram no passado não terem sido registrados. Como fragilidades metodológicas, apontamos o fato de
que os historiadores se orientam a partir do estudo de outros historiadores (historiografia) e de teóri-
cos, epistemólogos, filósofos e sociólogos para construir seus argumentos, suas hipóteses e suas inter-
pretações sobre o objeto. Isso influencia na escrita e ocasiona, de acordo com diferentes referenciais
teórico-metodológicos, escritas diferentes sobre um mesmo fenômeno, por exemplo. Há, ainda, a
questão da ideologia, o lugar de onde o historiador “olha” para o seu objeto, sua visão de mundo, suas
crenças, seus valores, relativos à função e posição social que ocupa. No tocante às questões práticas,
podemos mencionar as idas e vindas dos historiadores aos arquivos e às bibliotecas e as dificuldades
enfrentadas para desenvolver suas pesquisas e publicar seus textos.
3. Resposta pessoal. Para que você possa construir sua própria definição, deixamos aqui a forma como
Keith Jenkins (2001, p. 52) concebe o estudo da História e que funciona como uma síntese de grande
parte dos conteúdos abordados neste capítulo:
A história é um discurso cambiante e problemático, tendo como pretexto um
aspecto do mundo, o passado, que é produzido por um grupo de trabalhadores
cuja cabeça está no presente (e que, em nossa cultura, são na imensa maioria
historiadores assalariados), que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns
para os outros (maneiras que estão posicionadas em termos epistemológicos,
metodológicos, ideológicos e práticos) e cujos produtos, uma vez colocados em
circulação, veem-se sujeitos a uma série de usos e abusos que são teoricamente
infinitos, mas que na realidade correspondem a uma gama de bases de poder
118 Introdução aos estudos históricos
3. Ao estudar determinado aspecto da trajetória dos homens no tempo, o historiador o faz por meio das
problematizações, dos anseios, daquilo que o afeta no presente. O presente não se encontra numa outra
dimensão temporal em relação ao passado: a proximidade ou distância entre o historiador e seu objeto
no tempo não pode ser mensurada, segundo Bloch (2002), por uma dimensão cronológica e, sim, afeti-
va. Pesquisamos aquilo que de alguma forma nos afeta, nos incomoda em nossa própria época. Por ela
construímos nossa problemática de estudo e nosso objeto, que será sempre algo que ressoa em nós. Na
medida em que lançamos um olhar para um fenômeno situado em um outro ponto do espectro tem-
poral, ele se torna próximo de nós. Ao “iluminarmos” esse ponto, o atualizamos, o tornamos presente,
influenciando na forma como ele era visto até então, pela História ou pela memória; da mesma forma,
esse objeto, atualizado, interfere na forma como nossa própria época concebe a si mesma.
estudo: o passado, manifesto, empiricamente, por meio das fontes primárias. A objetividade almejada
seria possível na medida em que o historiador interferisse o mínimo possível no objeto, sendo apenas
um selecionador de fontes, um organizador dessas em uma dada cronologia apresentando aquilo que
elas trazem por meio de um texto coerente e bem construído. Essa concepção de objetividade, inspira-
da no método adotado pelas ciências físico-naturais e adaptado para a História, apresenta limitações,
que valem tanto para época de Ranke quanto para a nossa. Essas limitações demonstram a influência
da subjetividade (do sujeito da pesquisa, o historiador) na produção do conhecimento histórico. Por
exemplo: a escolha do objeto, a seleção de determinadas fontes e a exclusão de outras e a própria
forma como essas fontes são analisadas pelos historiadores constituem elementos de subjetividade.
2. A noção de objetividade, amparada na distância temporal entre o historiador e seu objeto de pesquisa,
não se sustenta, segundo Bloch (2002), pois as escolhas do historiador são permeadas por ressonân-
cias sentimentais entre ele e o objeto: estuda aquilo que, de alguma forma, ressoa nele, o afeta. A es-
colha, portanto, é subjetiva, esteja seu objeto mais distante ou mais próximo cronologicamente de sua
época, será algo sempre próximo, independentemente do ponto cronológico em que, no contínuo da
duração, esse objeto se situa. O que estão em jogo são sempre as ressonâncias sentimentais. A análise
desse objeto – essa sim, buscará ser permeada por critérios de objetividade.
3. Resposta pessoal. Considerando as colocações da historiadora Sabina Loriga (2012) acerca do “Eu”
do historiador na pesquisa e na escrita histórica, chegamos à conclusão de que não é possível fazer
desaparecer esse “Eu”, diluí-lo na pesquisa em nome de um objetivismo puro, mas que também não
podemos abrir mão da busca da objetividade caindo no relativismo absoluto ao ponto de considerar a
História uma obra de ficção. Esse “Eu” deve ser perseguido menos como uma substância e mais como
um lugar a partir de onde o historiador fala, ele que se encontraria numa espécie de terceiro tempo
entre o presente e o passado, o tempo da escrita histórica, na qual esse “Eu” lugar constituiu a busca
incansável pela alteridade representada pelo passado.
7 História e memória
1. Até a década de 1920, a memória era compreendida como a ferramenta psíquica pela qual cada in-
divíduo seria capaz de registrar, filtrar, selecionar, reter, preservar e evocar experiências, imagens,
pessoas, situações reais ou imaginárias. Algo individual e constituído de dois elementos distintos:
capacidade de preservar e capacidade de evocar; sendo estudada, sobretudo, por psicólogos e psica-
nalistas. Mas com os estudos de Halbwachs, em 1925, sobre memória coletiva, passou-se a considerar
não apenas a existência de uma memória social, como a interferência e a inter-relação dessa memória
coletiva na configuração das memórias individuais e vice-versa. Desde então, cientistas sociais e his-
toriadores consideram em seus estudos a existência de dois tipos de memória, uma individual e outra
social, mas entendem que ambas são construídas socialmente, pois mesmo a memória individual se
edifica a partir de pontos de referência advindos do meio social aos quais o indivíduo recorre não só
na evocação como também na construção de suas lembranças. A memória individual, portanto, é
construída por referenciais que são coletivos: o indivíduo se vale de elementos da memória social para
edificar e também sanar as lacunas da sua memória pessoal. Por outro lado, o inverso também ocorre:
da interação de experiências e vivências individuais e coletivas, e das lembranças a elas associadas,
é que se formam e se edificam os laços sociais, dentre os quais a memória coletiva constitui um dos
elementos mais expressivos.
120 Introdução aos estudos históricos
2. Segundo Halbwachs, memória coletiva e história se inter-relacionam, mas não se confundem. Ambas
são formas pelas quais as pessoas se relacionam com o passado, mas há diferenças profundas en-
tre elas. Primeiramente, porque as distinções entre passado e presente, na memória, são movediças,
fluidas e dependem de como, no presente, o indivíduo ou o grupo acessa determinadas lembranças,
de modo que algumas são atualizadas, reconstituídas, outras, que por um tempo “esquecidas”, nou-
tro momento, voltam a ser evocadas. Já na História essa diferenciação, essa ruptura entre passado e
presente, é muitas vezes considerada o ponto de partida do estudo. A memória depende dos laços
afetivos que vinculam o indivíduo ao grupo ou aos grupos com os quais se relaciona, e pressupõe
ainda uma espécie de “sacralização do vivido”, no sentido de que sacraliza, idealiza o que foi vivido,
excluindo ou ignorando, muitas vezes, elementos negativos ou certas experiências das quais o indiví-
duo prefere não lembrar. De acordo com Pierre Nora (1993), a memória é dinâmica, viva, múltipla,
absoluta, seletiva, busca a continuidade, a permanência, tanto a individual quanto a coletiva. Já a His-
tória é relativa, visa à ruptura, às descontinuidades, é crítica, científica, e seu criticismo tende a tentar
submeter a memória, e ao fazer isso, manifesta sua tendência destrutiva.
3. No âmbito da memória coletiva há uma memória oficial, institucionalizada, que se pretende abran-
gente e que, advinda das relações de poder, manifesta o controle que aqueles que dominam o presente
desejam ter também sobre o passado, definindo o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido,
mais do que isso, eliminado. Essa memória oficial manifesta-se não apenas no discurso dos segmen-
tos que estão no poder como também na fala das minorias, é uma memória introjetada, acatada,
aceita como sendo a memória do grupo, mas que foi instituída a partir do silenciando de outras
memórias possíveis. Mas em determinados indivíduos e grupos subsistem memórias subterrâneas,
que normalmente não aparecem nos relatos, porque que foram soterradas, ficando ocultas devido à
fatores muitas vezes estranhos para os que trabalham com a memória social. Ocultas, subterrâneas,
mas não desaparecidas, essas memórias, silenciosas em períodos de paz, por vezes afloram em épocas
de crise detonando conflitos latentes.
8 A narrativa em História
1. Pelo entendimento de que o estudo histórico consistia no empreendimento por meio do qual o histo-
riador, mediante a crítica das fontes, apresentaria o passado tal qual ele foi, deixando que os fatos “fa-
lassem por si”, a forma de escrita adotada por historiadores como Jules Michelet, Thomas Macaulay e,
em certa medida, o próprio Leopold Von Ranque foi o enunciado narrativo em que o passado “fluía”
em sua marcha para o presente pela ação de grandes personagens – líderes políticos e militares ou o
“povo” – que, tal qual os heróis das epopeias gregas, apareciam como protagonistas dos feitos históri-
cos. E enunciação narrativa, portanto, coadunava-se com o próprio entendimento do que seria o texto
histórico, embora muitas vezes – e isso não passou desapercebido entre os próprios historiadores
oitocentistas – se confrontasse com a busca de uma perspectiva objetiva para o estudo do passado.
2. À exposição meramente narrativa dos ditos “fatos históricos” se contrapôs a noção de História-proble-
ma manifesta entre os historiadores ligados às primeiras gerações dos Annales e que permanece até os
dias atuais como a tônica mais forte e reluzente do movimento. A concepção de História-problema con-
sidera, entre outras coisas, que a função da escrita histórica não é o relato do passado tal qual ele foi, mas
o confronto entre temporalidades diferentes, tornando possível pelas fontes e mediado pelo historiador,
Gabarito 121
o qual está, também, inserido no tempo. Sua função não é narrar o passado, mas, sim, com base nas
perguntas e inquietações que o incomodam no presente, problematizar essas questões historicamente.
3. O argumento central de White é que a História, enquanto um constructo de base linguística, mani-
festa-se como uma enunciação narrativa que, ao se voltar para o passado – que é também, linguagem
– acaba por substitui-lo pela escrita histórica, que, sob esse ponto de vista, é carregada de imaginação,
e pode ser entendida, em última instância, como uma escrita ficcional. Essa compreensão acerca dos
limites do texto histórico em relação a uma pretensa objetividade não inviabiliza a História enquanto
conhecimento e não destitui de valor o texto histórico destituído de valor, ao contrário, enriquece a
compreensão da História não como o relato do passado, mas como uma direção possível com a qual
podemos dele nos aproximar.
Andréa Carneiro Lobo