2 - Introdução Aos Estudos Históricos

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Andréa Carneiro Lobo

Introdução aos Estudos Históricos


Introdução aos
Estudos Históricos

Andréa Carneiro Lobo

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6258-4

58430 9 788538 762584


Introdução aos estudos
históricos

Andréa Carneiro Lobo

IESDE BRASIL S/A


2019
© 2019 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor
dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A.
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
L782i Lobo, Andréa Carneiro
Introdução aos estudos históricos / Andréa Carneiro Lobo. -
1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2019.
122 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6258-4

1. Historiografia. 2. Pesquisa histórica. I. Título.


CDD: 907
19-55349
CDU: 930.2

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Andréa Carneiro Lobo
Doutora e mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista
em Imagens, Linguagens e Ensino de História pela UFPR e graduada em História (Licenciatura e
Bacharelado) pela mesma instituição. Possui experiência em ensino de História, Metodologia Científica
e Filosofia para alunos de graduação em Direito e História, com ênfase em história do pensamen-
to ocidental, atuando especialmente na análise do pensamento filosófico contemporâneo (Nietzsche,
Benjamin, Foucault, Deleuze) e teoria da história. É autora de livros didáticos nas áreas de história,
filosofia, política e arte.
Sumário

Apresentação 7

1 Tempo, temporalidades e cronologia 9


1.1 Sobre o tempo 9
1.2 Tempo e temporalidades 11
1.3 O calendário cristão 14
1.4 A cronologia nos estudos históricos 17

2 Epistemologia do estudo da História 21


2.1 Da origem do termo História à sua concepção na Antiguidade 21
2.2 Os vários entendimentos acerca da História – do pensamento medieval ao
Renascimento 27
2.3 História: entre a Filosofia e a Ciência 36

3 Conceito de fonte histórica 45


3.1 Conceito de fonte histórica: do século XIX aos nossos dias 45
3.2 Fontes primárias e secundárias 53
3.3 Seleção, análise e crítica das fontes primárias 54

4 A metodologia do estudo da História 59


4.1 A construção do conhecimento histórico 59
4.2 As implicações teóricas e práticas do estudo histórico 63
4.3 A importância do estudo da História 67

5 Inteligibilidade entre presente, passado e futuro 71


5.1 A relação de inteligibilidade entre presente e passado em Marc Bloch 71
5.2 O tempo histórico: presente, passado e futuro em Reinhart Koselleck 74

6 Objetividade x subjetividade no estudo da História 81


6.1 O século XIX e a concepção de objetividade em História 81
6.2 Os Annales e as considerações acerca da subjetividade no estudo da
História 86
6 Introdução aos estudos históricos

7 História e memória 91
7.1 Memória individual e memória coletiva 91
7.2 História versus memória 94
7.3 Memória oficial e memórias subterrâneas 98
7.4 A história oral e o uso da memória como fonte 101

8 A narrativa em História 105


8.1 O século XIX e a narrativa como forma do texto histórico 105
8.2 A crítica à narrativa 107
8.3 A História como ficção ou para além da narrativa: limites e possibilidades do
texto histórico 109

Gabarito 115
Apresentação

Primeiramente, parabéns por ter escolhido cursar História1! Saiba que essa decisão foi um
ato de coragem, e também de resistência e esperança.

Se cada época tem suas mazelas e suas glórias, a nossa época, as primeiras décadas do século
XXI, traz em si um triste paradoxo: na mesma medida em que aumentam as possibilidades de pro-
dução, acesso e compartilhamento de informações, vemos recrudescer o debate e a reflexão crítica recrudescer: au-
mentar; tornar-se
acerca do sentido do conhecimento. mais intenso.

O filósofo e ensaísta alemão Robert Kurz, falecido em 2012, alertava: nunca fomos tão igno-
rantes quanto na era da informação. Isso porque grande parte daquilo que acessamos como in-
formação se destina a acionar a parafernália tecnológica que nos invade com milhões de frases
e imagens de fácil digestão. Sob a aparência do entretenimento mental, esse volume imenso de
informação sem conteúdo, produzida por qualquer um, compartilhada e “curtida” de forma quase
imediata e sem análise, nos desvia de possibilidades reais de conversas reais, com pessoas reais, de
forma aprofundada, embasada e crítica, sobre temas fundamentais à nossa existência.

Em que consiste a busca pela verdade? É possível ser feliz? Por que persiste a injustiça social?
Qual o limite da liberdade? Por que não conseguimos aprender com os erros e acertos daqueles
que viveram antes de nós? Como tornar a nossa vida mais sustentável e saudável? Essas questões,
urgentes em nosso próprio tempo, ficam à margem, sem debate e sem resposta em uma época na
qual grande parte da energia das pessoas é dedicada ao que é fugaz e superficial.

Diante da hiperconectividade e do imediatismo, como suscitar o interesse pelo que per-


manece? Como instigar o olhar para o que se desenvolve ao longo de um tempo maior do que os
segundos entre uma publicação numa rede social e a primeira curtida? Como sensibilizar a aten-
ção para outras épocas, nas quais o tempo e o conhecimento eram concebidos de outras formas,
e encontrar, apesar de todas as diferenças entre nosso presente e inúmeros passados, ressonâncias
entre nós e eles?

Há lugar para a história em um tempo permeado pela urgência do presente? Em que consiste
um olhar histórico sobre o real? Que diferenças existem entre história e passado? Entre tempo e
temporalidade? Entre tempo e cronologia? É muito corriqueira a concepção de que o passado pode
afetar o presente. Mas você sabia que o presente também pode afetar o passado? Essas são algumas
das questões sobre as quais iremos dialogar ao longo do nosso livro. Nosso, porque é para você e
com você, pensando em você, que ele foi escrito.

A partir de agora, convidamos você a desenvolver um caminho possível para o enfren-


tamento dessas provocações. É assim que este livro pretende ser entendido: como um percurso

1 Usaremos a palavra História com inicial maiúscula para designar estudo, ciência e história com inicial minúscula
para designar a trajetória dos homens no tempo.
8 Introdução aos estudos históricos

introdutório aos estudos históricos, o primeiro destino da viagem que você agora começa. Que ele
o ajude a estranhar, mais do que entender, o seu próprio tempo.

Bons estudos, boa viagem!


1
Tempo, temporalidades e cronologia

“O que é o tempo? Se ninguém pergunta isso, eu não me pergunto, eu o


sei; mas se alguém me pergunta e eu quero explicar, eu não sei mais”.
(SAINT AUGUSTIN, 1964, p. 264 apud DOSSE, 2003, p. 7)

Neste capítulo, iniciaremos nossa aventura acerca do conhecimento sobre os estudos histó-
ricos. Começaremos a entender em que consiste uma interpretação histórica da realidade e como
essa interpretação é construída mediante o diálogo com categorias de tempo, temporalidade, cro-
nologia, memória, presente, passado e futuro.
Você já parou para pensar sobre o tempo? Como sente sua existência? De que forma se relacio-
na com a dinâmica das sociedades no espaço e como é percebido, de diferentes maneiras, por essas
mesmas sociedades? Será que tempo e temporalidade são a mesma coisa? As diversas temporalidades
se expressam somente por meio da cronologia? São essas questões que discutiremos neste capítulo.

1.1 Sobre o tempo


Vídeo
Você já se perguntou sobre o que é o tempo? Como você o percebe? De que
forma se situa nele? Tal qual a afirmação do filósofo Santo Agostinho, que viveu en-
tre os anos 354 e 430, o tempo é algo que sentimos, que percebemos, que, de alguma
forma, concebemos, mas que nem sempre conseguimos explicar. Para tentar criar
uma definição, que tal começar analisando como filósofos e teóricos de diferentes
épocas se posicionaram a respeito?
Na Antiguidade, os pitagóricos1, inspirados pelos ensinamentos do filósofo grego Pitágoras,
que viveu entre os séculos VI-V antes da Era Cristã2, acreditavam que o tempo era “a esfera que
abrange tudo” (ABBAGNANO, 2007, p. 945) .
Figura 1 – O tempo engloba tudo

1 Pitagóricos ou Pitagorismo é a designação dada à uma seita surgida na Antiguidade Grega, por volta do século
VI a.C. Ela teria sido inspirada nos ensinamentos do matemático, filósofo e místico Pitágoras de Samos, que viveu na
Magna Grécia, entre 570 e 495 a.C. e que não deixou nenhum texto escrito. Entre os principais pilares teórico-místicos do
Pitagorismo, podemos mencionar três aspectos centrais: 1) A Metempsicose (movimento cíclico pelo qual um espírito,
após abandonar um corpo, retorna em outro, animando, dando vida, a uma nova estrutura material, podendo ser animal,
vegetal, ou humana; reencarnação); 2) Os números são os elementos a partir dos quais todas as coisas são constituídas;
3) Os corpos celestes (que, segundo os pitagóricos, seriam em número de dez) girariam em torno de um fogo central e
de forma simétrica. Alguns dos elementos constitutivos do Pitagorismo influenciaram grandemente o pensamento do
filósofo grego Platão, que viveu entre 427-28 a.C e 347-48 a.C. (ABBAGNANO, 2007).
2 O início da Era Cristã é o marco inicial do calendário utilizado pelas sociedades ocidentais, ou seja, aquelas in-
fluenciadas pela civilização europeia. O marco desse calendário é o nascimento do líder religioso de origem judaica
Jesus Cristo, considerado o filho de Deus para os cristãos. No entanto, existiram civilizações, filósofos, sistemas de
pensamento e religiões anteriores à Jesus Cristo, em outras partes do mundo. Como esses acontecimentos se situam
em épocas anteriores ao seu nascimento, são contados de forma decrescente, das datas mais antigas às mais próxi-
mas do nascimento de Cristo, e a essas datas é acrescentada a sigla a.C (antes de Cristo). Ao longo do texto, usaremos
essa sigla para nos remeter a acontecimentos, teorias, civilizações e teóricos anteriores ao nascimento de Cristo; já em
relação às datas posteriores ao nascimento de Cristo, não usaremos nenhuma sigla, ou mencionaremos, somente, que
são datas da Era Cristã ou da nossa era.
10 Introdução aos estudos históricos

StudioM1/iStock.com
Para os Pitagóricos, o tempo era uma esfera que
tudo abrangia.

Para outro filósofo grego, Platão, que viveu entre os séculos V e IV a.C., o tempo era a “di-
mensão móvel da eternidade” (ABBAGNANO, 2007, p. 945), ou seja, algo que, ao se manifestar no
ciclo das estações, dos sistemas planetários e dos seres vivos, revela, pela mudança, a imutabilidade
do que é eterno, imóvel: as essências de todas as coisas. Assim, o tempo seria o suporte por meio do
qual aquilo que é perene, mutável, manifesta o que não muda, o que é eterno, as essências imóveis
e perfeitas de todas as coisas, as quais Platão deu o nome de ideias.
Já Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.), filósofo que foi discípulo de Platão, definia o tempo como
“um todo e uma quantidade contínua” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 259).
Contudo, foi o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) que afirmou que o tempo, as-
sim como o espaço, é algo dado como condição da possibilidade da nossa sensibilidade. Para Kant
(apud ABBAGNANO, 2007), o tempo seria, portanto, uma intuição interna, uma ferramenta da
nossa razão sem a qual não conseguiríamos perceber nada com os nossos sentidos. Dessa forma,
segundo o filósofo, só percebemos algo porque inserimos esse “algo” em categorias preexistentes
em nossa razão, e estas seriam o tempo e o espaço.
Figura 2 – A percepção das coisas
AntonioGuillem/iStock.com

Kant acreditava que, sem as categorias de tempo e


espaço, preexistentes em nossa razão, não perce-
beríamos os fenômenos a nossa volta.
Tempo, temporalidades e cronologia 11

Mas, se para Kant o tempo é a condição preexistente sem a qual nossa razão não perceberia
os fenômenos, para muitas pessoas o tempo é a própria duração desses fenômenos, ou seja: o in-
tervalo entre um “antes”, um “agora” e um “depois”, e que pode também ser representado pelas ca-
tegorias “passado”, “presente” e “futuro”. Mas será, então, que tempo nada mais é do que a duração?
Foi um outro filósofo da nossa era, o francês Henri Bergson (1859-1941), que desenvolveu
uma importante contribuição para esclarecer os conceitos de tempo e duração. Segundo Bergson
(2006), o tempo é algo homogêneo, abstrato, parte do pensamento social e científico, e pode ser
fracionado em partes menores, como os instantes, para facilitar seu uso e entendimento, mas que,
em si, não é real. Já a duração é um “dado imediato da consciência, apresentado pela consciência
subjetiva e que dá sentido à nossa experiência” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 259). Assim,
esta seria um dado preexistente ao nosso pensamento que torna possível e dá sentido às nossas
experiências: tudo o que percebemos o fazemos com base em uma noção subjetiva de duração.
Para nos valermos de uma síntese criada pelo filósofo e matemático francês René Descartes
(1596-1650), o tempo pode ser entendido como o número do movimento, ou ainda, a medida da
duração (ABBAGNANO, 2007, p. 945).
Agora que você já conheceu algumas definições sobre tempo, diferenciando tempo de duração,
pense você mesmo em um significado. Como você definiria o tempo? E a duração? Por que pensar os
fenômenos inseridos num determinado tempo e buscar entender sua duração é importante para os
estudos históricos? Quais as estratégias que as sociedades têm criado, ao longo dos séculos, para fra-
cionar a duração de fenômenos, como dia, noite, estações do ano, em intervalos menores de tempo?
Fique atento e não “perca tempo”, pois é sobre isso que veremos a seguir!

1.2 Tempo e temporalidades


Vídeo
Vimos na seção anterior que podemos definir duração como a forma pela
qual nossa subjetividade percebe os fenômenos, o que torna possível nossa expe-
riência com o mundo sensível, algo dado, preexistente; e tempo como as tentativas
de fracionar, dividir a duração dos fenômenos em partes menores.
E temporalidades? São as diferentes formas pelas quais as sociedades huma-
nas percebem, concebem, mensuram e marcam a duração dos fenômenos. São também as diferen-
tes formas pelas quais os grupos humanos entendem, situam, contam e representam essa duração
por meio de estratégias temporais diferenciadas.
A percepção de que o tempo é cíclico ou linear pode ser vista com o desenvolvimento de
relógios e calendários, bem como na tentativa de organizar o tempo em uma cronologia. Essas são
formas de expressão das diferentes relações que as sociedades estabelecem com o tempo, as dife-
rentes temporalidades.
12 Introdução aos estudos históricos

Desde as primeiras sociedades humanas, surgidas ainda numa fase do desenvolvimento


material denominada como Neolítico3 (situada aproximadamente entre 12 mil e 6 mil anos a.C.),
há a tentativa de criação de estratégias de perceber os fenômenos pela sua duração e fracioná-los
em intervalos menores de tempo. Os parâmetros eram eventos que se alternavam e se repetiam
com uma frequência determinada, como a sucessão do dia e da noite e a divisão do tempo entre
uma parte dedicada ao trabalho, às atividades sociais e ao lazer – o dia – e uma parte dedicada
ao sono e ao descanso do corpo – a noite.
A percepção do fenômeno de alternância de dias e noites tem como base a visualização das
diferentes posições que o Sol parece ocupar no céu. A tentativa de acompanhar as pequenas mudan-
ças que ocorrem nessa posição ao longo de um dia deu origem aos primeiros relógios, os chamados
relógios de sol. Da quantificação dessa mudança de posição em partes iguais resultou a divisão de um
dia inteiro em 12 horas. O primeiro relógio de sol foi desenvolvido na antiga civilização da Babilônia
(situava-se onde atualmente é o Iraque, no Oriente Médio) por volta de 5000 a.C. O doze é um sub-
múltiplo de sessenta, número que constituía a base do sistema numérico babilônico.
Na definição desse relógio, o aspecto central foi a percepção do meio-dia, momento em que
o Sol ficava à pino, sem projetar nenhuma sombra, para nenhum lado. A trajetória da sombra do
Sol foi, então, dividida em doze partes, seis anteriores ao meio-dia (manhã) e seis posteriores ao
meio-dia (tarde). Essa divisão foi transposta também para o período em que o Sol não aparecia
no céu (noite) e, assim, tem-se não só a primeira forma de divisão de um fenômeno em partes de
tempo iguais, como também a criação do primeiro relógio, o relógio de sol babilônico. Também na
China, por volta de 2300 a.C., e no Egito, por volta de 1500 a.C., há registros do uso de instrumen-
tos de medição que podem ser caracterizados como relógios de sol.
A percepção de que a Lua, assim como Sol, também aparecia em intervalos diferentes no
céu e com formas variadas – fases que costumavam durar de 7 a 8 dias – pode ter sido o fato que
motivou algumas das primeiras civilizações da Terra a organizar a divisão do tempo em intervalos
ainda maiores: uma semana de sete dias, como fracionamento de uma fase do ciclo lunar, e um mês
de 30 dias, como o intervalo de tempo relativo à um ciclo completo.
Finalmente, foi também a observação do céu e dos astros que instigou a percepção de um
intervalo de tempo maior, relativo ao ciclo da alternância de estações climáticas bem definidas,
cada uma tendo a duração média de quatro ciclos lunares completos, em um ciclo que se fechava

3 Estudiosos costumam usar o termo Neolítico (palavra de origem grega cujo significado seria “pedra nova”) para se
referir a uma fase do desenvolvimento material atingida por diferentes grupos humanos ao redor do planeta a partir de 12
mil a 10 mil anos a.C. Essa fase foi caracterizada pelo desenvolvimento de instrumentos de pedra polida (daí a designação
“pedra nova”) e pela descoberta da agricultura e da pecuária, fatores que impulsionaram a sedentarização e o desenvolvi-
mento da vida em sociedade. O desenvolvimento da agricultura representou uma verdadeira revolução, um salto na longa
etapa do desenvolvimento humano: “Além dos machados e enxadas que podem fabricar-se pelo polimento de todos os
tipos de pedras duras e passíveis de serem afiadas várias vezes, essa época é marcada por outras inovações revolucioná-
rias, como a construção de moradias duráveis, a cerâmica de argila cozida e os primeiros desenvolvimentos da agricultura
e da criação. Entre 10.000 e 5.000 anos antes de nossa Era, algumas dessas sociedades neolíticas tinham, com efeito,
começado a semear plantas e manter animais em cativeiro, com vistas a multiplicá-los e utilizar-se de seus produtos.
Nessa mesma época, após algum tempo, essas plantas e esses animais especialmente escolhidos e explorados foram
domesticados e, dessa forma, essas sociedades de predadores se transformaram por si mesmas, paulatinamente, em
sociedades de cultivadores. Desde então, essas sociedades introduziram e desenvolveram espécies domesticadas na
maior parte dos ecossistemas do planeta, transformando-os, então, por seu trabalho, em ecossistemas cultivados, artifi-
cializados, cada vez mais distintos dos ecossistemas naturais originais.” (MAZOYER, M.; ROUDART, L., 2010, p. 68-69).
Tempo, temporalidades e cronologia 13

em doze meses, para de novo iniciar. Esse ciclo, ao qual corresponde a alternância de quatro esta-
ções, fecha um ano solar completo. A sua observação serviu de base para alguns dos primeiros e
mais antigos calendários criados por civilizações, como a egípcia, por exemplo (DUNCAN, 1999).
Figura 3 – Ciclo lunar

Delpixart/iStock.com
Imagem representando a alternância das fases da Lua em um ciclo lunar completo. A observação e
a divisão dos intervalos de tempo relativo a esse ciclo estão na origem do fracionamento da duração
dos fenômenos em períodos maiores de tempo, como as semanas e os meses.

Todas essas tentativas de fracionamento da duração – que é algo contínuo – em intervalos de


tempo (dias, semanas, meses e anos) – que são transitórios e finitos – funcionaram como estraté-
gias das primeiras sociedades para se localizarem e estabelecerem relação com o meio circundante,
amplo, misterioso e, muitas vezes, ameaçador. Elas também serviram para estabelecer uma forma
de organização das atividades de sobrevivência cotidianas, que envolviam, principalmente, o co-
nhecimento dos ciclos da natureza.
Como você pôde perceber, todos os intervalos de tempo anteriormente mencionados, desde
o mais curto (horas) até o mais longo (um ano solar), são frações de durações maiores, relativas a
fenômenos que se repetem continuamente. Esses fenômenos, portanto, pareciam ocorrer de forma
cíclica, partindo de um ponto e a ele retornando depois de um certo período. A sua observação
pode estar na origem não apenas de algumas das primeiras tentativas de medir, contar e dividir
durações maiores em intervalos de tempo menores, como também pode explicar o fato de as pri-
meiras sociedades humanas manifestarem uma compreensão cíclica do tempo, ou seja, de que o
tempo, assim como os fenômenos, é algo que, partindo de um ponto qualquer, a ele sempre retor-
na, depois de completar um ciclo, para recomeçar. A essa compreensão de temporalidade damos o
nome de cíclica (GLEISER, 1997).
A compreensão cíclica dos fenômenos naturais e do tempo manifesta-se também na forma
pela qual as primeiras sociedades explicam a origem desses fenômenos. Estas eram basicamente
agrícolas e hidráulicas – visto que sua agricultura dependia basicamente do ciclo das cheias de
grandes rios, como o Nilo, o Tigre e o Eufrates – e estavam situadas entre o Norte da África e o
Oriente Médio, por volta do quinto e do quarto milênio a.C. (CARDOSO, 1982).
Registros indicam que para explicar a origem dos fenômenos naturais, essas sociedades re-
corriam a explicações sobrenaturais, criando deuses que personificam forças ou elementos da na-
tureza na tentativa de que esses mesmos deuses, por meio das preces, libações, sacrifícios e ofertas,
interviessem nos fenômenos naturais, favorecendo as plantações e evitando catástrofes naturais,
14 Introdução aos estudos históricos

tais como secas, enchentes ou nevascas – nota-se que nessa compreensão até mesmo os deuses e
suas ações têm uma trajetória cíclica (GLEISER, 1997, p. 17).
A compreensão de tempo cíclico, presente não apenas nas primeiras sociedades do Oriente
Médio e Norte da África, como também da Europa – cretenses, gregos e romanos – opôs-se à visão
judaico-cristã de tempo linear. Essa temporalidade está na base do cristianismo e constitui-se, a
partir do fim da Antiguidade, na forma oficial de percepção e contagem do tempo no Ocidente,
como veremos a seguir.

1.3 O calendário cristão


Vídeo
Um calendário é um dispositivo de organização da duração de determinados fe-
nômenos naturais – como o ciclo solar, o ciclo lunar ou o ciclo das cheias de um grande
rio – em determinadas unidades de tempo – dias, semanas, meses –, com o objetivo de
fazer sua contagem por um período de tempo mais longo (um ano, por exemplo).
Nas sociedades antigas e atuais, os calendários funcionam como elementos
importantes para a organização das atividades produtivas, das cerimônias religiosas, civis e tam-
bém dos ciclos de migração. Por meio dos calendários, os homens têm a impressão – ainda que
ilusória – de que são capazes de controlar o tempo. Esses dispositivos são também instrumentos de
vínculo entre o natural e o sobrenatural, entre o homem em sociedade e o Cosmo.
O primeiro calendário oficialmente aceito como tal pelos historiadores é o calendário
­egípcio, surgido por volta do terceiro milênio a.C., e que tinha por finalidade organizar as ativida-
des produtivas e religiosas tendo por base o ciclo das cheias do rio Nilo (DUNCAN, 1999).
O calendário egípcio tinha 365 dias, os quais estavam divididos em 12 meses de 30 dias,
além de 5 dias extras, que eram em honra aos deuses. Os egípcios organizavam o seu calendário ba-
seados em três estações, relacionadas ao ciclo do Nilo: estação das cheias (akket), estação do semeio
(pert) e estação da colheita (shemu). O início da contagem dos dias se dava a partir do primeiro
dia da estação das cheias, o qual era conhecido pela aparição da estrela Sirius pela manhã. A essa
estrela os egípcios davam o nome de Sothis.
Os calendários costumam ter marcos iniciais a partir dos quais o tempo passa a ser men-
surado, contado. No caso do oficialmente aceito pela nossa sociedade atual, esse marco é o nas-
cimento de Cristo. No entanto, nosso calendário é anterior ao nascimento de Jesus Cristo: sua
origem remonta ao calendário romano, também conhecido como calendário juliano, datado de
46 a.C., época em que o General Júlio César governava Roma. Este tinha 12 meses, estes com 30
ou 31 dias, e janeiro substituiu março como o primeiro mês do ano.
Ainda na Antiguidade Romana, o calendário juliano sofreu duas alterações: primeiro, por or-
dem do cônsul Marco Antonio, o mês chamado quintilius passou a ser designado julius, em homena-
gem a Júlio Cesar. A segunda alteração, por ordem do Senado romano, modificou o nome do mês sex-
tilius para augustus, em homenagem à Otávio Augusto, primeiro imperador romano e que governou
de 27 a.C. a 14 d.C. Até então, o mês de agosto tinha 30 dias e julho, 31 dias. Como o mês dedicado a
Augusto não poderia ter menos dias que o mês dedicado à Júlio César, foi tirado um dia de fevereiro
Tempo, temporalidades e cronologia 15

que, segundo o calendário juliano, tinha 29 dias nos anos comuns, e 30 dias nos anos b­ issextos. A par-
tir de então, fevereiro passou a ter 28 dias nos anos comuns e 29 dias nos anos bissextos (DUNCAN,
1999). No ano de 325 da nossa era, durante o Concílio de Niceia, a Igreja católica adotou o calendário
juliano como o oficial da cristandade, alterando seu marco inicial: antes, esse marco era a fundação
de Roma, que segundo a tradição, teria ocorrido em 753 a.C. pelo rei Rômulo; a partir desse Concílio,
o marco inicial passou a ser o Nascimento de Jesus Cristo (DUNCAN, 1999).
As datas foram, então, recalculadas e tudo o que aconteceu antes de Cristo passou a ser con-
tado em ordem decrescente, das datas mais antigas às mais próximas do ano do seu nascimento,
que passou a ser considerado o Ano I da Era Cristã.
Esse calendário foi reformado ainda mais uma vez: isso ocorreu entre 1572 e 1582, no século
XVI, durante o pontificado do Papa Gregório. Por isso, o calendário que atualmente conhecemos
é também chamado de gregoriano.
Figura 4 – Afresco de Giotto

Giotto di Bondone/iStock.com

O nascimento do líder religioso de origem judaica, Jesus Cristo, foi escolhido pela
Igreja católica romana como o marco inicial do calendário europeu. Por ter sido
colonizado por Portugal, país cristão, no século XVI, o Brasil tem como calendário
oficial o calendário cristão, segundo o qual estaríamos nas décadas iniciais do
terceiro milênio depois de Cristo.

Fonte: BONDONE, Giotto di. A Natividade. c. 1304-1306. Afresco. Capela Arena, Pádua, Itália.

Na atualidade, existem pelo menos 40 calendários em uso em todo o mundo. Cada um deles
possui um marco inicial, relativo a algum acontecimento considerado muito importante por cada
cultura (LAS CASAS, 2002). Alguns dos calendários atuais mais conhecidos são:
16 Introdução aos estudos históricos

• O calendário judaico: é lunissolar (baseia-se tanto nos movimentos da Terra em relação


ao Sol quanto nos movimentos da Lua em relação à Terra) e tem como marco inicial a
criação do mundo. Segundo a data fixada pelos judeus como marco dessa criação, o ano
cristão de 2019 seria o ano de 5780. O Ano Novo Judeu começa no dia 30 de setembro
do calendário cristão e é chamado de Rosh Hashaná. O calendário judaico tem 12 meses,
com duração de 29 ou 30 dias. O ano tem duração de 353, 354 ou 355 dias e a cada 19 anos
existe um período de 7 anos com um mês extra.
• O calendário muçulmano: também conhecido como calendário hegírico, é baseado no
ciclo lunar e composto por 12 meses com duração de 29 ou 30 dias, organizados em um
ano de 354 ou 355 dias. Tem como marco inicial a saída (hégira) do profeta árabe Maomé
de Meca para Medina, fato que teria ocorrido no ano de 622 do calendário cristão. O ano
muçulmano inicia no dia 12 de setembro do nosso calendário e finda no dia 31 de agosto.
Segundo esse calendário, até agosto de 2019 o ano muçulmano seria o de 1440.

Em nossa sociedade vigora a linear compreensão ocidental e cristã de tempo, que compreen-
de o tempo como um fio de linha muito comprido, que começa a ser desenrolado em um ponto ini-
cial, associado a um passado remoto, e prossegue em linha reta rumo ao futuro. A sua, a minha, a
nossa trajetória de vida se situam em um ponto qualquer dessa linha. Como vimos, essa concepção
linear de tempo se manifesta no calendário cristão, que tem como marco inicial o nascimento de
Cristo, quando todos os demais acontecimentos passaram a ser contados, em ordem cronológica,
desde os mais antigos até os mais recentes. Esse calendário é influenciado pela noção judaico-cristã
de que o tempo começou quando começou o mundo, o qual teve origem na criação divina e terá
fim também pela ação divina. Essa linha comprida, que vai da criação ao fim do mundo, permeia
a noção de temporalidade ocidental, que é linear.
Mas vimos também que essa não é a única noção de tempo que existiu ou que existe. Há cul-
turas, como algumas civilizações pré-cristãs e algumas sociedades indígenas tradicionais atualmente
existentes, para as quais a noção de tempo é cíclica: o tempo não se manifestaria como um fio de linha
muito comprido que parte do passado e vai até o futuro passando pelo presente. Para essas socieda-
des, o tempo seria cíclico, ou seja, desenvolve sua trajetória de modo a sempre retornar a um ponto
inicial. Nessa concepção, a ideia de futuro como algo diferente do passado não se sustenta – a própria
ideia de futuro como mudança não se sustenta. Presente e futuro reafirmam e retornam sempre a um
passado remoto, primordial, no qual se encontra a origem e o sentido de tudo.
Figura 5 – Noções de tempo

Tempo linear

Tempo cíclico
Fonte: Elaborada pela autora.
Tempo, temporalidades e cronologia 17

As noções de tempo variam de uma sociedade para outra, e de uma época para outra, assim
como a sua percepção e as tentativas de sua mensuração, contagem e representação.
As diferentes temporalidades manifestam as diferenças culturais entre sociedades diferentes,
em uma mesma época – por exemplo, concepções cíclicas e lineares de tempo – e também as dife-
renças no interior de uma mesma sociedade, de uma época para outra. Por exemplo: você já ouviu
a expressão: “antigamente, o tempo passava mais devagar”? Esse tipo de máxima provém, quase
sempre, de pessoas mais idosas, que viveram sua juventude em uma outra época, e que consideram
a época atual mais acelerada do que aquela em que foram jovens.
Não se pode, portanto, separar os dispositivos temporais das sociedades em que estão inseri-
dos. Isso vale também para a cronologia. Mas, o que é cronologia? É sobre isso que veremos a seguir.

1.4 A cronologia nos estudos históricos


Vídeo
Em que ano você nasceu? Quando entrou na escola? Quando começou a ler e
a escrever? É casado? Em que ano se casou? Com que idade tirou sua carteira de habi-
litação? Se tivesse que fazer uma “linha do tempo” da sua vida, desde o passado até o
presente os acontecimentos que considera mais importantes, a quais datas esses aconte-
cimentos estariam associados?
Ao fazer esse exercício, você estaria organizando os acontecimentos da sua trajetória de vida,
de forma linear, em uma dada cronologia.
A palavra cronologia é proveniente da junção de dois vocábulos de origem grega: chronos
(tempo) e logos (estudo). De uma maneira geral, pode ser definida como a ciência que se dedica
ao estudo das periodizações, dos intervalos de tempo, das determinações temporais e dos registros
tidos como históricos. Há também o entendimento das “cronologias” como o arrolamento de de-
terminadas datas ou períodos de tempo, como tentativa de relacionar a determinados números, ou
indicativos de datas, certos acontecimentos.
Assim como as temporalidades, as cronologias também estão inseridas na sociedade e na
época em que são feitas. Constituem instrumentos com os quais os estudiosos (normalmente his-
toriadores, partindo de seu próprio tempo, o presente) voltam-se para o passado e tentam reor-
ganizá-lo em acontecimentos associados a datas, que nada mais são do que números que tentam
localizar e submeter a dispositivos temporais, como calendários, anos, séculos e milênios, a com-
plexidade das realizações humanas no tempo.
“A cronologia, que reparte e mede a aventura da vida e da história em unidades seriadas, é
insatisfatória para penetrar e compreender as esferas simultâneas da existência social” (BOSI, 1992,
p. 32 apud TOMAZI, 2002, p. 30). Dessa forma, cronologias são tentativas de compartimentar a
aventura humana no tempo em acontecimentos isolados, relacionando-os a determinadas datas no
calendário ou a periodizações – tais como Idade Antiga, Idade Média, Brasil Colonial –, na maio-
ria das vezes criadas num tempo posterior ao dos acontecimentos estudados. Tal “acomodação”
forçada é feita por um olhar em retrospectiva do presente para o passado, o olhar do historiador, e
manifesta as intencionalidades do presente de quem “organiza” a História.
18 Introdução aos estudos históricos

Para compor suas cronologias, os historiadores se valem de determinadas marcações tem-


porais associadas a intervalos de tempo curtos, médios e longos. São eles: os anos, as décadas, os
séculos e os milênios.
O intervalo de tempo mais usado nos estudos históricos é o século. Por diversas vezes, ao
longo deste texto, nos referimos a determinadas épocas associando-as a séculos, e indicamos esses
séculos com algarismos romanos. Mas, você sabe como calcular a que século uma data pertence?
É muito simples. Um século é um intervalo de tempo de 100 anos. Se levarmos em conside-
ração o calendário cristão, entendemos que do ano 1 ao ano 100 tivemos o primeiro século da Era
Cristã, denominado somente como século um. Como entre os historiadores usam-se os algarismos
romanos para indicar o século, ele seria assim representado: século I. A partir do ano 101, teve
início o século II e assim sucessivamente, até chegarmos ao século atual, que é o século XXI da Era
Cristã. Note que os séculos sempre mudam no ano 1 e não no ano 00.
Assim, o ano de 1500 foi o último ano do século XV, enquanto que 1601 foi o primeiro ano
do século XVII e 2001 o primeiro ano do século XXI.
Para facilitar sua localização temporal nesta obra, recorde na Tabela 1 alguns dos principais
algarismos romanos.
Tabela 1 – Principais algarismos romanos

1–I 6 – VI 11 – XI 16 – XVI 30 – XXX 80 – LXXX

2 – II 7 – VII 12 – XII 17 – XVII 40 – XL 90 – XC

3 – III 8 – VIII 13 – XIII 18 – XVIII 50 – L 100 – C

4 – IV 9 – IX 14 – XIV 19 – XIX 60 – LX 500 – D

5–V 10 – X 15 – XV 20 – XX 70 – LXX 1.000 – M


Fonte: Elaborada pela autora.

Lembre-se de que os algarismos romanos só podem ser repetidos até três vezes e que um
algarismo romano à direita de um número significa acréscimo; à esquerda, significa subtração. Por
exemplo: XIX: (19 ou 20 -1); XXI: (21 ou 20 + 1).

Considerações finais
Neste capítulo, demos início aos nossos estudos sobre História. Para isso, discutimos concei-
tos fundamentais para a disciplina, tais como: tempo, duração, temporalidades e cronologia. Você
pôde perceber, entre outras coisas, que o tempo, como fracionamento das durações que nossa sub-
jetividade percebe nos fenômenos a nossa volta, é uma abstração – e não algo absoluto.
Não obstante, das diferentes formas de inferir, conceituar e medir o tempo se desenvolvem dis-
positivos, como as horas, os relógios, os calendários e as cronologias. Esses dispositivos manifestam
as diferentes temporalidades, ou seja, as diversas formas pelas quais as sociedades se relacionam com
a ideia de tempo, em épocas distintas.
As estratégias de temporalidade são arbitrárias e culturais. Elas indicam um dos mais antigos
anseios humanos: localizar-se, definir-se e afirmar-se em meio a imensidão do Cosmo.
Tempo, temporalidades e cronologia 19

Ampliando seus conhecimentos


• NOVAES, A.; ABENSOUR, M. (Org.). Tempo e História. 3. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
Este livro, organizado por Adauto Novaes e Miguel Abensour, contém 27 ensaios de vários
autores, relacionados a diferentes áreas do conhecimento – História, Filosofia, Psicanálise,
entre outras, – que abordam a experiência temporal, destacando que esta só pode ser pen-
sada pela História se relacionada às dimensões sociais, políticas e filosóficas pelas quais o
tempo é pensado numa dada tradição, no caso, a tradição ocidental.
• CATULO DA PAIXÃO CEARENSE. O Trem de ferro. In: FERREIRA, A. Fábulas e ale-
gorias. [S. I.: s. n.], 1966. p. 15-16. Disponível em: http://gerenciamentodotempo.com.
br/o-trem-de-ferro/. Acesso em: 28 jan. 2019.
Será possível uma época ser mais acelerada do que a outra? O tempo passar mais “de-
vagar” ou mais “depressa”? Uma bela reflexão a esse respeito pode ser apreciada em um
poema do artista maranhense conhecido como Catulo da Paixão Cearense, nascido em
1863 e falecido em 1946. Trata-se do poema “O trem de ferro”.

Atividades
1. Diferencie tempo e duração com base no que estudamos em Bergson (1859-1941), Kant
(1724-1804) e Descartes (1596-1650).

2. Por que se pode afirmar que toda tentativa de estabelecimento de cronologias é social, cul-
tural e arbitrária?

3. Em uma mesma época, podem existir temporalidades diferentes? Explique.

4. Ao longo do capítulo, estudamos vários dispositivos que as sociedades do presente e do


passado concebem, medem e dividem o tempo. Escolha um desses dispositivos e disserte
a respeito dele, mencionando: época e sociedade a que está relacionado, bem como seus
elementos característicos.

Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ARISTÓTELES. Categorias. In: JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. 3. ed. rev. e
aum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BERGSON, H. Duração e simultaneidade. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
(Coleção Tópicos).

CARDOSO, C. F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Primeiros Passos).

DOSSE, F. A História. Tradução de Elena Ortiz Assumpção. Bauru: EDUSC, 2003.


20 Introdução aos estudos históricos

DUNCAN, D. E. Calendário: a epopeia da humanidade para determinar um ano verdadeiro. Tradução de


João Domenech. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

GLEISER, M. A dança do universo: dos mitos de criação ao big-bang. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

LAS CASAS, R. Calendários. ICEx. Caeté, MG, 2002. Disponível em: http://www.observatorio.ufmg.br/
pas39.htm. Acesso em: 11 fev. 2019.

MAZOYER, M.; ROUDART, L. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea.
Tradução de Cláudia F. Falluh Balduino Ferreira. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: NEAD, 2010.
Disponível em: http://www.ufrgs.br/pgdr/publicacoes/producaotextual/lovois-de-andrade-miguel-1/
mazoyer-m-roudart-l-historia-das-agriculturas-no-mundo-do-neolitico-a-crise-contemporanea-brasilia-
neadmda-sao-paulo-editora-unesp-2010-568-p-il. Acesso em: 27 jan. 2019.

SAINT AUGUSTIN. Livre XI. chap. XIV. Paris: Garnier-Himmarion, 1964. p. 264. In: DOSSE, F. A História.
Tradução de Elena Ortiz Assumpção. Bauru: EDUSC, 2003. p. 7.

TOMAZI, N. D. Tempo, história e cronologia. História e Ensino. Londrina, v. 8, edição especial, p. 27-36, out.
2002. p. 28. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view/12153/10669.
Acesso em: 29 jan. 2019.
2
Epistemologia do estudo da História

O que a palavra História significa? É possível fazer um estudo histórico do sentido atribuído
a essa expressão ao longo da tradição ocidental? Que sentido tinha quando foi cunhada, ainda
pelos gregos, na Antiguidade? Esse sentido permaneceu o mesmo ou variou ao longo dos séculos?
Neste capítulo, vamos tentar compreender melhor os elementos constitutivos e as especi-
ficidades da escrita da História da forma como foi concebida no Ocidente, desde a Antiguidade
até a Modernidade. Entender o modus operandi da História, iniciando pela etimologia da palavra
história e passando pelos diversos significados que a perspectiva histórica da sociedade manifes-
tou, desde os gregos até o século XIX, é o nosso desafio. Vamos inventariar a trajetória da palavra e
do significado do termo história, situando-a entre a Ciência e a Filosofia e buscando entender, no
contexto de sua constituição como Ciência – o século XIX –, qual sua especificidade em relação à
Filosofia e a outras ciências humanas.

2.1 Da origem do termo História à sua concepção na Antiguidade


Vídeo
A expressão epistemologia vem de dois vocábulos gregos: episteme (ciência) e
logos (teoria). No campo da Filosofia, epistemologia é uma disciplina que busca fa-
zer uma análise crítica das ciências, um estudo sobre as possibilidades, os limites, as
especificidades do conhecimento, notadamente, do conhecimento científico, abran-
gendo ainda a filosofia e a história das ciências (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001).
Antes de tentarmos entender em que consiste a História e a partir de que momento ela
passou a ser constituída como ciência, é necessária uma análise epistemológica desse tipo de co-
nhecimento, explorando desde a etimologia da palavra História até os diferentes significados que o
entendimento acerca de um olhar histórico sobre o homem teve na tradição ocidental.
Mas qual a identidade epistemológica da História? Para abordar essa questão, o historiador
José Carlos Reis (2006) propõe que o próprio conhecimento histórico seja colocado como proble-
ma: para se entender o que caracteriza e diferencia o conhecimento histórico de outras formas de
historicizar: tornar
conhecimento, é preciso problematizá-lo e inventariá-lo no tempo, numa tentativa de historicizar histórico.

a constituição da História como conhecimento.


22 Introdução aos estudos históricos

Segundo o historiador francês Marc Bloch, em um livro intitulado Apologia da História ou


ofício do historiador (2002), a palavra história tem uma origem antiquíssima1, que remonta à Grécia
do século V a.C. Foi usada primeiramente por Heródoto de Halicarnasso (484 a.C. a 425 a.C.), em
um livro chamado História. Dividido em nove partes (cada uma delas dedicada a uma das musas
da mitologia grega), o livro aborda desde aspectos da cultura e religiosidade de egípcios, gregos e
persas até as guerras entre gregos e persas, as chamadas Guerras Médicas, ocorridas entre 499 a.C.
e 449 a.C.
Segundo a historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva (2015), a Heródoto foi conferido,
já no século I a.C., o título de “Pai da História”. No entanto, a concepção que Heródoto tinha de
História é muito diferente da ideia de História como ciência, nascida somente no século XIX da
nossa era, como veremos mais adiante.
“Pai da História” (pater historiae) é o epíteto conferido a Heródoto pelo ora-
dor romano Cícero no século I a.C., em sua obra Das Leis, I, 1. De fato, a
palavra história foi uma invenção de Heródoto, uma derivação do termo ἵστορ
(hístor) que significa “aquele que sabe”, mas é aquele que conhece os fatos
por “interrogar”, por “informar-se” a respeito de algo, daí “investigar”, como
expressa o verbo ἱστορέω (historéō) do qual deriva esse substantivo. Por essas
denominações, Heródoto criou a palavra ἱστορίαι (historíai), título de sua
obra, que significa assim “investigações”. Portanto, Heródoto foi o primeiro a
conceber um método histórico capaz de reconstituir e explicar a história do
seu tempo. (SILVA, 2015, p. 39)

O título da obra de Heródoto, História, tem uma significação próxima de “investiga-


ção”. A História, assim, seria um tipo diferente de conhecimento se comparada, na época de
Heródoto, à poesia épica e à filosofia, por se apresentar como uma narrativa construída com
base na investigação: o historiador seria alguém que buscaria se informar, interrogar e inves-
tigar aquilo que narrava em seu texto.
Em Heródoto, a História não tinha a conotação de ser uma escrita sobre o passado, mas
uma tentativa de explicar a gênese e o desenvolvimento de acontecimentos de sua própria época,
investigando os elementos – culturais, políticos, militares e religiosos – constitutivos desses acon-
tecimentos e reordenando-os mediante a uma construção textual coerente.
Segundo Silva (2015), Heródoto voltou seu olhar para um evento político-militar específico
(as guerras entre gregos e persas), buscando inventariar aspectos linguísticos, religiosos, cultu-
rais, naturais e políticos inerentes aos principais povos envolvidos no conflito (gregos e persas) e
a outros envolvidos indiretamente, como os assírios, que tinham anteriormente subordinado os

1 Marc Bloch (1886-1944) foi um historiador francês, fundador, juntamente com Lucien Febvre (1878-1956), da Revista
Annales d'Histoire Économique et Sociale (Análises de História Econômica e Social), em 1929. A revista viria a revolucionar
o conceito de estudo de História até então vigente, originando um movimento de renovação historiográfica conhecido
como “Escola de Annales”. As reflexões sobre a origem do termo História e as especificidades do estudo da História estão
no livro Apologia da história ou o ofício do historiador, escrito por Marc Bloch durante o período em que esteve na prisão,
por volta de 1941, por atuar na resistência contra a ocupação nazista alemã sobre a França. Fuzilado em 1944, Marc Bloch
teve essa sua obra publicada postumamente, em 1949, por Lucien Febvre (a esse respeito, ver o prefácio da obra: BLOCH,
M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002).
Epistemologia do estudo da História 23

persas; os babilônios, que caem sob o julgo do rei persa Ciro; e os egípcios, também conquistados
pelos persas sob o reinado do rei Cambises.
Dessa forma, no texto de Heródoto o leitor tem acesso não apenas a aspectos da formação
do homem grego e da constituição política e militar da Hélade (forma como era chamado o con-
junto das polis gregas e suas colônias na Antiguidade), mas também de povos da Ásia (babilônicos,
assírios, persas) e África (egípcios). Esse conhecimento do “outro” se dá, segundo os critérios dos
gregos (que entendiam os persas como bárbaros2) porque sua forma de falar e ser era “estranha”, se
comparada à grega (SILVA, 2015).
Ainda que buscasse se diferenciar, textualmente e metodologicamente, dos textos de poesia
épica e dos textos filosóficos então existentes, os textos de Heródoto são permeados pela influência
desses dois outros tipos de conhecimento, assim como por elementos presentes na tradição mi-
tológica grega. A influência da poesia épica, herdeira da mitologia, manifesta-se na descrição de
determinados personagens da História de Heródoto, que são apresentados com as mesmas caracte-
rísticas de heróis de poemas épicos como a Ilíada, atribuída ao poeta Homero (século VIII a.C.), e
que tratava da Guerra de Troia. Já a influência do pensamento filosófico manifesta-se na tentativa
presente nos textos de Homero de tentar encontrar o sentido daquilo que se está narrando, tentan-
do compreender tanto as causas quanto os efeitos das ações humanas, isto é, suas consequências.
As consequências das ações observadas por Heródoto sob a perspectiva de cau-
sas e efeitos ora são explicadas por um pensamento mítico, ora justificadas por
fatos, ora por suas práticas culturais, ou ainda por seu caráter, por uma noção
de justiça operada pelos deuses que é materializada nos revezes ou nos sucessos
das suas personagens. Enfim, notamos na narrativa herodotiana a transição
do pensamento mítico para um mais racional, que resulta em sua visão mais
racional do mito, embora o maravilhoso não seja totalmente descartado de sua
compreensão dos fatos. (SILVA, 2015, p. 40)

Na mesma época de Heródoto e em períodos posteriores, quando o mundo grego se encon-


trava já em decadência devido a guerras internas, apareceram outros historiadores, entre os quais
se destacam Tucídides (460 a.C. a 395 a.C.) e Políbio (203 a.C. a 120 a.C.).
Diferentemente de Heródoto, cuja narrativa por várias vezes se afastava do evento central e se
dispersava para aspectos da mitologia e cultura, tanto Tucídides quanto Políbio tiveram como eixo de
suas obras um fenômeno político-militar. Uma guerra cujos desdobramentos afetaram sobremaneira
a estrutura das cidades-Estado, no caso da obra de Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso; ou uma
conquista que representou a emergência de um novo e grandioso império, no caso da obra de Políbio
sobre as Guerras Púnicas, entre cartagineses e romanos, vencidas pelos romanos.

2 No século V a.C., segundo os gregos, os persas e outros povos com idiomas guturais (cujos sons da fala eram,
em sua maioria, produzidos na garganta) falavam como se pronunciassem as sílabas “bar, bar, bar”, como se fossem
gagos. Daí o termo bárbaro como “aquele que não sabe falar”. Tal conotação manifesta a forma pejorativa pela qual os
gregos se referiam aos povos diferentes deles. O termo seria incorporado pelos romanos, que conquistaram os gregos.
Na Antiguidade, os romanos chamavam de bárbaros os povos que não partilhavam da língua e da cultura latina.
24 Introdução aos estudos históricos

O livro História da Guerra do Peloponeso, organizado em oito partes e contendo, em sua


tradução para o português, mais de 500 páginas, teve sua escrita iniciada quando Tucídides tinha
menos de 30 anos de idade e ficou incompleta com sua morte, em 395 a.C. Trata da série de bata-
lhas envolvendo as cidades-Estado gregas, chamadas pólis, e que tiveram origem na disputa entre
atenienses e espartanos pela hegemonia política na Grécia, ocorrida após o término da guerras
contra os persas. Foram as chamadas “Guerras do Peloponeso” (431 a.C. e 404 a.C.)
Tucídides foi contemporâneo dessa guerra e dos seus efeitos, buscando em seu texto escrever
com detalhes sobre as questões políticas que a motivaram, as principais batalhas, tanto militares
quanto diplomáticas. O ateniense só deixou de acompanhar a guerra em 424 a.C. quando contraiu
a grande peste que assolou a cidade e matou um terço de sua população. Foi eleito general para
comandar tropas na região da Trácia e, quando essa foi tomada pelos espartanos, foi condenado
pelos atenienses a 20 anos de exílio por traição, período no qual pôde ter uma noção melhor acerca
do que se passava dos dois lados da guerra, fundamental para a escrita de sua grande obra. Foi cha-
mado de volta pelos atenienses em 404 a.C., quando a guerra chegou ao fim e morreu assassinado
em 395 a.C.
[Tucídides] Era um aristocrata ateniense, membro de uma das mais nobres
famílias, com riquezas consideráveis, e que atingiu a maioridade no ápice da
grandeza da Atenas de Péricles. Nascido entre 460 e 455, estava ainda na casa
dos vinte quando a Guerra do Peloponeso estourou. Morreu poucos anos após
o fim dela, deixando inacabada a sua grande obra. Tucídides toma o cuidado de
nos deixar saber que era maduro o suficiente para entender os acontecimentos
desde o começo: “Vivi toda a guerra, tendo idade para compreender os eventos
e aplicar a eles a minha mente de modo a vê-los com exatidão”. [...] Tucídides
esteve em Atenas desde o começo da Guerra até 424, e nesse período contraiu a
grande praga que assolou Atenas entre 430 e 427. Teve sorte em sobreviver, pois
a epidemia matou um terço da população. Em 424, foi eleito general, um dos dez
homens que eram os mais proeminentes líderes militares e políticos em Atenas.
Comandou a força naval na região da Trácia, cuja principal cidade era a colônia
ateniense de Anfípolis, local de grande importância econômica e estratégica.
Possivelmente, fora escolhido para o posto devido à sua influência na região.
[...] Quando o brilhante general espartano Brásidas tomou a cidade num ataque
surpresa, os atenienses culparam Tucídides e condenaram-no por traição. Foi
forçado a exilar-se pelos vinte anos que a Guerra ainda duraria. Tamanho in-
fortúnio teve as suas vantagens, especialmente para nós, os seus leitores, porque
o permitiu “saber o que estava a ser feito em ambos os lados, especialmente do
lado peloponeso… E esse tempo livre permitiu-me obter um melhor entendi-
mento do curso dos eventos”. (KAGAN, 2009)
Epistemologia do estudo da História 25

Figura 1 – Mapa da Guerra do Peloponeso

Adaptado de Ruthven/Wikimedia Commons


Trácia

Macedônia

Tessália Eólia

Mar Egeu
Termópilas

Beócia
Jônia
Atenas

Corinto
Peloponeso Pireu

Argos

Esparta Guerra do Peloponeso – 431 a.C.


Atenas e aliados
Esparta e confederados
Movimento da tropa espartana
Movimento da tropa ateniense
Principais cidades-Estados
Conflito direto

Mapa mostrando a oposição entre Atenas e suas aliadas, bem como da


Confederação comandada por Esparta durante a Guerra do Peloponeso em 431 a.C.

Apesar da obra desses historiadores ter chegado até os nossos tempos mais completa, exis-
tiram inúmeros outros, de cujas obras sobreviveram apenas fragmentos. Eles foram sendo citados
por outros historiadores, sobretudo romanos, e que representam, do século V a.C. ao século IV da
nossa era, um longo período de pelo menos 800 anos de historiografia greco-latina.
Silva (2015, p. 9) ressalta que tentativas de arrolamento de fragmentos de textos de his-
toriadores gregos foram efetivadas também por historiadores modernos, entre eles, Felix Jacoby
(1876-1959), um estudioso da língua e classicista de origem alemã que catalogou uma edição crí-
tica de 856 historiadores gregos cuja obra chegou até a época contemporânea fragmentada. Com
seu estudo, dividiu-se a historiografia grega antiga em cinco categorias ou estilos fundamentais, a
saber: Mitografia, Etnografia, Cronografia, Zeitgeschichte (história) e Orografia ou História Local.
[...] Mitografia, que reunia e ordenava as tradições gregas e as narrativas mito-
lógicas; Etnografia, um estudo dos países, povos e seus costumes; Cronografia,
que catalogava os eventos de anos individuais utilizando um sistema de datação
local, mas mapeando eventos de toda a Grécia; Zeitgeschichte, agrupando a his-
tória grega contemporânea ou ocorrida até o tempo dos autores que a estavam
registrando; Orografia ou História Local, que geralmente concentrava-se em
narrar a história de uma Cidade-Estado específica. (SILVA, 2015, p. 9)
26 Introdução aos estudos históricos

Ainda na Antiguidade, sobretudo entre os séculos I a.C. e IV da Era Cristã, merecem des-
taque também os historiadores romanos, entre eles: Salústio (86 a.C. a 34 a.C.); Tito Lívio (59 a.C.
a 17 da Era Cristã); Tácito (56 a 117 da Era Cristã); Plutarco (46 a 119/120 da Era Cristã) Sexto
Aurélio (320 a 390 da Era Cristã) e Amiano Marcelino (325-330 a 400).
A origem da historiografia latina remonta aos calendários organizados pelos antigos sacer-
dotes romanos, no período pré-cristão. Textos de conteúdo e abordagem histórica apareciam tam-
bém nos arquivos particulares das famílias nobres, que encomendavam biografias; e nos anais dos
magistrados – libri magistratum (funcionários do governo) romanos. Fortemente influenciados
pela historiografia grega, os primeiros historiadores romanos, do século II a.C., inclusive escreve-
ram seus textos em língua grega.
A historiografia romana ou latina, no entanto, foi aos poucos afastando-se da influência
grega para adquirir feições próprias na obra de autores como Tito Lívio e Tácito. O estilo das obras
históricas produzidas por esses dois historiadores era a retórica3, algo presente tanto na obra Anais,
de Tácito, quanto na obra História de Roma, de Tito Lívio. A característica central das obras da
historiografia romana antiga era o ensinamento do orador, filósofo e político romano Cícero (106
a.C. a 43 a.C.) em sua obra Da Oratória (De Oratore) de que a História era a mestra da vida (historia
magistra vitae).
O que isso queria dizer? Que para os grandes historiadores romanos da Antiguidade, a
História deveria privilegiar os feitos e ações de homens que, por sua excepcionalidade, bravura,
coragem, honradez, caráter e também por seus erros serviriam de exemplo para toda a sociedade.
O texto histórico, assim, ao evocar, de forma retórica (uma linguagem que primava pela beleza da
escrita) feitos políticos, religiosos e militares dos chamados grandes homens (daí muitas vezes o
caráter biográfico desses textos) serviria quase que como um manual de conduta a ser seguido. A
finalidade era o exemplo, o aprendizado: a possibilidade de aprender com os erros e acertos dos
feitos desses homens era, portanto, o foco central dos textos dos historiadores romanos do século
I a.C. ao século II da Era Cristã:
A principal concepção norteadora da historiografia romana foi a historia magistra
vitae que, tendo como base fundamental o exemplo – válido para qualquer tempo
e lugar –, objetivava produzir ensinamento através dos feitos e homens ilustres
do passado. Por meio da exposição dos grandes exemplos históricos, esperava-se
incentivar a imitação e repetição das ações. (VARELLA, 2008, p. 72, grifo nosso)

Essa ideia da história-exemplo, cujo o texto se desenrola por meio da alusão aos erros e acertos
de pessoas poderosas e ilustres (quase que um propósito moral da passagem do vício para a virtude),
expressa-se nas palavras do historiador Tito Lívio (2001, p. 207 apud VARELLA, 2008, p. 72): “o que
principalmente há de são e fecundo no conhecimento dos fatos é que consideres todos os modelos
exemplares, depositados num monumento, em plena luz: daí colhes para ti e para o teu estado o que
imitar; daí evitas o que é infame em sua concepção e em sua realização”.

3 A retórica pode ser conceituada como a “arte de persuadir com o uso de instrumentos linguísticos” (ABBAGNANO,
2007, p. 876) ou, ainda, uma técnica a partir da qual o orador ou autor se vale de técnicas e expressões elaboradas para
adornar a linguagem, “enfeitando” o seu discurso e tornando-o belo, agradável, passível de convencer o leitor/ouvinte.
Epistemologia do estudo da História 27

Notemos também que em Tácito essa ideia de uma História-exemplo, mediante a alusão
tanto aos feitos mais notáveis quanto aos mais baixos de homens ilustres, conforme destaca em sua
obra Anais:
Não é meu intento referir senão as opiniões que se fizeram mais notáveis ou pela
sua decência ou pela sua insigne baixeza: porque creio ser o principal objeto
dos anais pôr em evidência as grandes virtudes, assim como revelar todos os
discursos e ações vergonhosas, para que, ao menos, o receio da posteridade
acautele os outros em caírem nas mesmas infâmias. (TÁCITO, 1952, p. 54 apud
VARELLA, 2008, p. 71)

Vale destacar também o embricamento entre História e biografia na obra desses historia-
dores, notadamente, na obra Vidas Paralelas, do prosador da antiga Beócia: Plutarco. A obra é a
compilação de várias biografias escritas por Plutarco entre os séculos I e II da nossa era e trazia
sempre a vida de um ilustre governante, chefe militar ou legislador grego em paralelo a de um ilus-
tre romano. Seu objetivo parecia ser evocar, além de aspectos relacionados aos seus feitos políticos
e militares, curiosidades e questões relativas à vida pessoal dos personagens biografados, como é
o caso do texto em que compara o governante romano Júlio César (séc. I a.C.) ao conquistador
grego-macedônico Alexandre, o Grande (séc. IV a.C.).
Finalmente, é válido mencionar que na escritura desses textos a preocupação com a vera-
cidade e autenticidade das fontes consultadas não se manifestava: na obra Vidas Paralelas, por
exemplo, em diversas ocasiões Plutarco se vale de frases do tipo “segundo se ouviu dizer”, ou seja,
a “doxografia” (ou escrita a partir da opinião) era amplamente utilizada. Isso porque a legitimidade
do texto se devia à forma como era escrito e ao caráter do seu conteúdo, associados ao prestígio do
autor, e não necessariamente à autenticidade das fontes consultadas. A ideia de uma escrita históri-
ca científica, que teria por base fontes empíricas, vestígios da época sobre a qual o historiador está
escrevendo, só apareceria com a criação do método histórico pelo historiador alemão Leopold Von
Ranke, no século XIX da nossa era.

2.2 Os vários entendimentos acerca da História – do pensamento


medieval ao Renascimento
Vídeo Segundo Luiz Sérgio Duarte da Silva (2015), assim como em relação à frag-
mentos da historiografia grega e romana antiga, a historiografia medieval muitas
vezes foi ignorada por historiadores tradicionais por não se adequar ao conceito de
História como discurso acadêmico-científico.
Tradicionalmente, Idade Média ou Período Medieval foi a marcação temporal
criada por eruditos ainda dos séculos XVII e XVIII para designar o período situado entre a queda
do Império Romano do Ocidente nas mãos dos invasores germânicos, no século V, até a tomada de
Constantinopla (sede do Império Bizantino, antigo Império Romano do Oriente) pelos turcos em
1453. São quase mil anos de história muitas vezes relegados por historiadores ocidentais, dos séculos
XVIII e XIX, que se referiram a esse período como uma “Idade do Meio”, uma “Idade das Trevas” se
comparada à Antiguidade Clássica greco-romana, que a antecedeu, e ao Renascimento, que a suce-
deu (KOSELLECK, 2006).
28 Introdução aos estudos históricos

Historiadores contemporâneos vêm rompendo com essa visão pejorativa e preconceituosa


acerca da Idade Média. Eles demonstram, pelos seus estudos, a riqueza e a multiplicidade cultural
que caracterizaram a produção artística, literária, filosófica e historiográfica do período. Embora
tenha sido produzida, principalmente, por religiosos, filósofos, artistas e eruditos vinculados à
mosteiros e abadias, as produções dessa época não podem ser reduzidas a uma historiografia me-
ramente eclesiástica.
Os escritos de História realizados, tanto no Ocidente Europeu quanto no Império Bizantino,
manifestam-se em “números textos escritos por bispos, monges, clérigos, catedráticos e oficiais do
governo, ou seja, os produtores da historiografia do período, que escreviam história como parte ora
da gramática ora da retórica” (SILVA, 2015, p. 13).
Tais textos, de caráter histórico, encontram-se muitas vezes no interior de outros, como bio-
grafias, hagiografias (biografia sobre a vida de santos), crônicas, entre outros.
anais, diários, calendários, crônicas, feitos, biografias, hagiografias e catálo-
gos de vida de santos, a seanchas irlandesa, relatos presenciais, poesia oral e
escrita, crônicas urbanas, comentários de obras de arte ou de partes da bíblia,
elaboração de textos que serviam de auxílio para homilias, textos científicos ou
computacionais, documentos legais, narrativas paroquiais, escrita de histórias
de mosteiros, de instituições, obras lendárias ou literárias, étnicas, de ordens
religiosas, ou textos relacionados com dinastias [...]. (SILVA, 2015, p. 13)

Entre as características intrínsecas desse tipo de produção, desvenda-se uma ideia de histó-
ria preocupada, entre outras coisas, com uma determinada concepção de verdade e como memori-
zação relativa a feitos e funções sociais de pessoas do passado, especialmente santos, mártires e reis.
Tais preocupações são expostas em: criação de monumentos e imagens, menção a pessoas falecidas
em missas funerárias, narrativas de caráter genealógico criadas para serem recitadas, livros (como
os de orações, de salmos, entre outros) e textos para acompanhar cerimônias e rituais públicos
(SILVA, 2015, p. 13).
É importante destacar que durante a Idade Média, no Ocidente europeu, o processo de tradu-
ção, compilação e encadernação dos textos em códices (grandes livros escritos e ilustrados à mão)
ficava concentrado nos mosteiros, ao cargo dos chamados monges copistas. Nessa época, o processo
de produção de um livro-códice era trabalhoso e demorado, e o acesso a livros era muito restrito.
Além disso, grande parte da população, composta por camponeses, era analfabeta, fato que
explica a presença significativa de imagens, as chamadas iluminuras, nesses livros: serviam para
ilustrar, iluminar e esclarecer o conteúdo dos textos para os leigos (iletrados). Assim, uma pessoa
lia para que muitas ouvissem e, dessa forma, os textos também eram escritos para serem lidos pu-
blicamente, o que interferiu sobremaneira no estilo da escrita medieval.
Epistemologia do estudo da História 29

Figura 2 – Códice Gigas, século XIII

Michal Maňas/Wikimedia Commons


Considerado o maior manuscrito medieval remanescente, foi criado em um mosteiro da ordem dos
Beneditinos localizado em Podlažice, antiga Boêmia e atual República Checa. É também chamado de
“Bíblia do Diabo” por conta de uma enorme ilustração representando o diabo existente em seu interior.
Suas capas são de madeira e suas folhas de velino (um tipo de pergaminho). Tem 92 cm de altura, 50 cm
de largura e 22 cm de espessura. Atualmente, contém 310 páginas e encontra-se no acervo da Biblioteca
Nacional da Suécia.

Ainda sobre a ideia de História presente nos escritos medievais, merece destaque a forma
como a história enquanto trajetória do tempo humano e mundano passou a ser concebida pelo
pensamento do filósofo e teólogo Santo Agostinho (354 a 430 da nossa era). O também chamado
Bispo de Hipona, no Norte da África, durante a decadência do Império Romano do Ocidente, é
considerado o último grande filósofo da Antiguidade tardia e o primeiro filósofo a influenciar o
pensamento medieval.
Para entendermos a noção de História em Santo Agostinho, faz-se necessário, primeiramen-
te, alguma noção sobre como o filósofo de Hipona compreendia o tempo. Em uma de suas obras
mais introspectivas, chamada Confissões, mais especificamente no Livro XI, ele manifesta a com-
preensão de que o tempo é uma construção própria do homem, algo subjetivo, uma maneira pela
qual se relaciona com os eventos que acontecem, que já aconteceram ou que ainda estão por vir.
30 Introdução aos estudos históricos

Tanto a morte quanto o tempo passaram a fazer parte da existência humana por causa do peca-
do, o qual representou a ruptura do homem para com o amor de Deus (CARNEIRO, 2004, p. 221-222).
Deus, por ser eterno, não só está fora do tempo como é o criador do tempo. A condição do tempo, na
eternidade, é um presente ininterrupto:
Na eternidade nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo
presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro
está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam
d’Aquele que sempre é presente. Quem poderá prender o coração do homem,
para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado,
não sendo ela nem passado nem futuro? Poderá, porventura, a minha mão que
escreve explicar isso? Poderá a atividade da minha língua conseguir pela palavra
realizar a empresa tão grandiosa? (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 216 apud
CARNEIRO, 2004, p. 223)

Essa percepção sobre o tempo se manifesta em outra obra de Santo Agostinho, intitulada
A cidade de Deus. Ela pode ser interpretada, de uma forma muito breve e a grosso modo, como o
reino celestial, o reino de Deus, que é perfeito, eterno, imutável, espiritual. Já a Cidade dos Homens
pode ser interpretada como a civilização, a vida material criada pelo homem que, pelo pecado,
afastou-se do reino de Deus. É a vida social, temporal, material, sujeita à degradação, à mudança
e à morte.
Deus, que é eterno, criou o mundo, e ao criar o mundo, criou o tempo. A temporalidade hu-
mana é diferente da divina, que é eterna. Logo, o homem cria sua própria forma de temporalidade
quando cria, apartado de Deus, uma realidade paralela ao Reino ou Cidade de Deus: é a Cidade
dos Homens. Esse mundo humano, essa “cidade temporal”, “material”, é originada da arrogância do
homem diante do amor de Deus, ou seja, tem sua origem no pecado.
O maior de todos os seres visíveis é o mundo; o maior dos invisíveis, Deus. Mas
o mundo vemos que existe e na existência de Deus cremos. Quanto a Deus ter
feito o mundo, a ninguém podemos dar maior crédito que ao próprio Deus. [...]
Assim, pois, creiam também na possibilidade de criação temporal do mundo e
em que Deus, portanto, ao fazê-lo, não mudou seu eterno conselho e vontade.
(SANTO AGOSTINHO, 2008, p. 22-23)

Mas Deus, que é amor, manifesta-se como Verbo através da encarnação de Cristo e dá ao
homem uma outra chance: a de reconhecer o pecado, dele se arrepender e voltar para Deus. Cristo,
o Verbo encarnado, é o restabelecimento da ligação entre o homem e Deus, uma vez que, vencendo
a morte, venceu também o pecado e o tempo:
O homem, criado por Deus a sua imagem e semelhança, foi conduzido à morte
e ao tempo por força do pecado, que significou uma ruptura com Deus. Porém,
por Cristo – que é o cordeiro de Deus que deu sua vida para livrar o homem
do pecado – pode restabelecer a ligação com Deus e fazer de sua vida no tempo
uma preparação para a vida eterna. (CARNEIRO, 2004, p. 222)

Os homens, segundo a interpretação de Santo Agostinho (2008), mais uma vez, mostraram-
-se arrogantes diante do amor de Deus: Cristo foi condenado e executado. O Verbo, no entanto,
permanece vivo no Espírito, que anima e dá vida à religião cristã. A Igreja, constituída com base no
Espírito Santo (terceira pessoa da Santíssima Trindade) e embasada nos ensinamentos e dogmas
Epistemologia do estudo da História 31

revelados aos santos e mártires, representa a presença de Deus na Cidade dos Homens, na esperan-
ça de que os homens todos se voltem para Deus.
Assim, a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens caminham em paralelo, juntas, até o fim
dos tempos – que será o fim do mundo material. A história humana seria, então, essa trajetória
da passagem do material para o espiritual, do terreno para o celestial, do humano para o divino,
do temporal para o eterno. O fim do mundo representaria, ao mesmo tempo, o fim dessa tempo-
ralidade humana e sua diluição na eternidade. Significaria, para Santo Agostinho (2008), o fim
da História.
Notemos que no filósofo e teólogo de Hipona, a História tem uma conotação teleológica (do
grego teleos = fim), ou seja, caminha para o fim. Essa compreensão se tornaria a base do pensamen-
to clerical medieval, permeando os sermões, os livros, as ilustrações dos livros, as preces e todas as
manifestações da cultura formal dominante (a católica) tanto em seu aspecto escrito quanto oral.
As concepções medievais sobre tempo e história, profundamente influenciadas pelo pensa-
mento agostiniano, e que permearam toda a chamada Alta Idade Média (séculos V ao X da nossa
era) passariam por modificações e atualizações a partir dos séculos XI e XII, com um movimento
filosófico que ficou conhecido como Escolástica4 e que teve na obra do filósofo e teólogo cristão
São Tomás de Aquino (1225-1274) o seu mais expressivo representante.
O aspecto central da doutrina escolástica era a tentativa de conciliar os dogmas da fé, advin-
dos da Revelação, e a Razão, concebida pelo pensamento filosófico clássico, sobretudo, platônico
e aristotélico.
O método empregado pelos escolásticos, era, preferencialmente, o da dialética (embate de
teses) e o ambiente onde se desenvolveu esse tipo de pensamento foram as primeiras universidades
europeias, nascidas a partir do século XI em regiões da Itália, França e Inglaterra – daí o nome
Escolástica (de Escola).
Entre os principais expoentes do pensamento escolástico, anteriores à Aquino, podemos citar:
Pedro Lombardo (1100-1160); Abelardo (1079-1142); Anselmo de Canterbury (1033/34 a 1109) e
Bernardo de Claraval (1090-1153).
No primeiro período da Escolástica, que vai do século IX ao século XI, foi marcante a in-
fluência do pensamento de Santo Agostinho e do filósofo Platão, mas seu período áureo se deu no
século XIII com a filosofia de Tomás de Aquino, grandemente influenciada pela filosofia aristoté-
lica (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001). A principal obra de Tomás de Aquino é a Suma Teológica,
escrita entre 1265 e 1273; uma obra extensa, complexa e que marcou fortemente o pensamento
ocidental no final da Idade Média.
Segundo Brozele (2014), na obra de Tomás de Aquino deslinda-se a ideia de História como
revelação de uma ética divina manifesta na Sagrada Escritura. A essa manifestação atribui o caráter
de uma “Lei Divina” a qual se manifesta em dois momentos: uma Lei Antiga (Antigo Testamento) e

4 O termo escolástica significa originalmente “doutrina da escola” e “[...] designa os ensinamentos de filosofia e teo-
logia ministrados nas escolas eclesiásticas e universidades europeias durante o período medieval, sobretudo entre os
sécs. IX e XVII” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 87).
32 Introdução aos estudos históricos

uma Lei Nova (Novo Testamento). A Lei Divina conduz didaticamente os homens para o encontro
com aquele que é criador e redentor, e que se revela plenamente no Novo Testamento. O tempo é
o tempo da revelação, manifestada na Sagrada Escritura e cuja verdade pode ser confirmada tanto
pela razão quanto pela fé (BROZELE, 2014).
Essa ideia de tempo e de história se coaduna, tanto com os ensinamentos da Bíblia quanto
com a ideia aristotélica de que tudo o que existe tem uma finalidade – todo ser, tem, entre suas
causas, uma causa final. Essa causa final (ou finalidade) é a realização daquilo que o distingue
dos demais e na sua realização reside o seu bem. Sendo a racionalidade o aspecto que distingue o
homem dos demais seres vivos, ele só se realiza plenamente, só é feliz, atingindo a finalidade de
sua existência, que é a plenitude da razão, segundo Aristóteles (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001).
Ora, segundo Aquino, que parte do finalismo aristotélico e tenta conciliar tal ensinamento com os
preceitos do Cristianismo, a criatura racional só se realiza plenamente quando se reencontra com
seu Criador, o Sumo Bem. A trajetória da razão é também a trajetória do homem em busca de sua
finalidade. A Lei Divina expressa na Sagrada Escritura manifesta o aspecto histórico-finalista dessa
“marcha” do homem para Deus. O tempo é o tempo da revelação e da redenção.
A lei divina é, por assim dizer, a intervenção da graça de Deus, a interpelação de
Deus na história humana, que convoca a humanidade para o seu fim: a beatitu-
de é o fim último [...]. Esse fim sobrenatural colimado pela existência humana
recebe o auxílio da norma divina que é, antes de tudo, um acontecimento histó-
rico que revela a instituição da lei de Moisés positivamente dada pelo Criador.
(BROZELE, 2014, p. 131)

O pensamento tomista sofreria críticas por parte de filósofos da Universidade de Oxford, já


no século XIV. Esse movimento ficou conhecido como Escolástica Pós-tomista e teve no filósofo
inglês Guilherme de Ockham (1283-1347) um dos seus principais articuladores.
Outras mudanças significativas no pensamento europeu, envolvendo temas como Deus, o
homem e a História, ocorreriam a partir dos séculos XIV e XV. O lugar de origem foi a Itália, mais
precisamente os cursos de Direito de universidades italianas, como a Universidade de Bologna, na
qual um movimento de renovação do ensino jurídico motivou a adoção de um novo programa cur-
ricular contendo disciplinas ligadas às humanidades – como a poesia e a retórica. Desse movimento
Humanismo: mo- de renovação curricular, desenvolveu-se uma nova perspectiva de pensamento, o Humanismo, que
vimento intelectual
que valorizava o influenciaria não apenas o ensino universitário, como também as Artes, a Filosofia e a Literatura,
saber crítico, voltado
para o conhecimento
constituindo-se como a base ideológica do Renascimento Artístico. Esse pensamento teve origem
das potencialidades nos séculos XIII e XIV e desenvolveu o chamado Renascimento científico.
do homem.

Originado na Itália do século XIV, o Renascimento se expandiu para França, Espanha,


Portugal, Inglaterra, Alemanha e Países Baixos entre os séculos XV e XVI, revolucionando con-
ceitos ligados às Artes Plásticas, à Literatura, à Filosofia e à Arquitetura. “Uma das questões mais
proeminentes do pensamento humanista ao longo dos séculos XIV e XV é que nele se deslinda
uma outra concepção acerca do homem e do mundo, uma concepção racional, natural, diferencia-
da daquela manifesta na temporalidade, caracterizada como Idade Média” (LOBO; PORTELLA,
2017, p. 23, grifos do original).
Epistemologia do estudo da História 33

Situado entre os séculos XV e XVII, esse movimento foi marcado pelo interesse de eruditos,
filósofos, cientistas e teóricos em renovar as bases epistemológicas sobre a natureza, os astros e o
homem, rompendo com preceitos oriundos do pensamento cristão e buscando, em referências da
Antiguidade Clássica, a inspiração para renovar as bases do conhecimento, consolidando-o sob um
viés racional e empírico.
O Renascimento científico desenvolveu-se no bojo dos avanços técnicos, cientí-
ficos e teóricos ocorridos ainda durante o Renascimento artístico no Ocidente,
e estendeu-se entre os anos de 1450 e 1600. Foi marcado pela prática huma-
nista de recuperação, edição, tradução e comentário de textos da Antiguidade
Clássica – notadamente os relacionados à matemática e à filosofia natural.
(LOBO; PORTELLA, 2017, p. 52)

Além do interesse dos eruditos renascentistas pelas obras da Antiguidade Clássica, o


Renascimento científico foi impulsionado também pelo próprio desenvolvimento artístico.
Por meio dos experimentos e estudos de pintores, escultores e arquitetos – envolvendo o uso
do que hoje podem ser considerados estudos de Matemática, Física, Anatomia, Química e
Biologia – em suas obras, certos padrões e conceitos da ciência medieval foram quebrados,
abrindo caminho para o desenvolvimento da ciência moderna (LOBO; PORTELA, 2017).
Outro fator que contribuiu sobremaneira para o Renascimento científico foram as grandes
viagens de exploração oceânica, situadas entre os séculos XV e XVI. Inicialmente protagonizadas
por navegadores e exploradores a serviço das Coroas de Portugal e Espanha, essas viagens afirma-
ram teses como a esfericidade da Terra e contribuíram para o desenvolvimento de saberes práticos
e teóricos nas áreas de Geografia, Cartografia e Astronomia.
A partir do Renascimento científico dos séculos XV e XVI, uma verdadeira revolução na
maneira de conceber o conhecimento tomou corpo por meio das proposições de físicos, matemá-
ticos, químicos e naturalistas, inaugurando o pensamento científico moderno.
Além do Renascimento científico, epistemólogos e teóricos da ciência reco-
nhecem o desenvolvimento de uma verdadeira revolução no campo científico,
ocorrida entre os séculos XV e XVII. Trata-se de um processo de mudança
e deslocamento das filosofias naturais vigentes até então: as noções sobre o
conhecimento ampliaram-se em consequência de uma revalorização das ativi-
dades práticas, assim como de seus métodos e ferramentas. Observa-se, então,
além da elaboração de teorias que modificariam sobremaneira as concepções
físico-naturais sobre o cosmos, um fervilhamento de conhecimentos práticos e
teóricos, em conjunto com: a expansão da navegação oceânica e da cartografia;
o advento de novas noções arquitetônicas, que se manifestaram tanto em ha-
bitações quanto em fortificações; o aprimoramento proporcionado por novas
técnicas de mineração, metalurgia e química. (LOBO; PORTELLA, 2017, p. 52)

É no interior das pesquisas de um dos mais expressivos representantes dessa “revolução


científica” que localizamos uma das primeiras manifestações do pensamento moderno acerca da
História, proveniente do filósofo e cientista inglês Francis Bacon (1561-1626).
34 Introdução aos estudos históricos

Figura 3 – O “Sistema Solar”

Andreas Cellarius/Wikimedia Commons


Ilustração presente na obra do estudioso holandês Andreas Cellarius, publica-
da em 1660 em Amsterdã (Holanda) e intitulada “Harmonia Macrocósmica”.
Atualmente, a obra encontra-se preservada em Firenze, Itália, na Biblioteca
Humanística, Seção de Geografia. A imagem é uma representação baseada
na teoria heliocêntrica, ou teoria astronômica, segundo a qual o Sol é o centro
em torno do qual giram a Terra e os demais planetas do Sistema Solar. Essa
teoria foi proposta pelo matemático e astrônomo polonês Nicolau Copérnico
(1473-1543) em sua obra Sobre as Revoluções das Órbitas Celestes, publicada
no ano de sua morte, em 1543. O heliocentrismo rompia a teoria aceita desde a
Antiguidade de que a Terra era o centro do Cosmos (geocentrismo) e foi consi-
derado o evento central na revolução científica moderna.

Fonte: CELARIUS, A. Harmonia macrocósmica. 1660. Ilustração: Amsterdã, Holanda.

De acordo com Souza (2001), em sua obra De ­augmentis scientiarum (“O avanço da ciência”),
publicada em 1626, o cientista inglês Bacon apresenta um audacioso projeto de reestruturação das
ciências. Este seria pautado naquilo que ele definiu como filosofia natural, a qual deveria nortear o
conhecimento científico e estaria amparada no “trato direto das coisas” (SOUZA, 2001, p. 17). Para
Bacon, o conhecimento científico se daria pela via indutiva (partir do particular para o geral) em um
trabalho conjunto entre intelecto e sentidos, mas assentado no primado da empiria (experiência) e da
observação sobre a especulação teórica (SOUZA, 2001, p. 17).
É no interior desse projeto que se desvela a ideia de História para Bacon. Segundo o filósofo-
-cientista5, entre os escritos sobre o homem, a história civil (que não pode ser confundida com a história
natural) deveria ocupar um lugar central. Isso porque seria por intermédio da história que teríamos
acesso “aos exemplos de nossos ancestrais, que reconhecemos as vicissitudes das coisas, os fundamentos
da prudência e da reputação dos homens” (SOUZA, 2001, p. 16).

5 É importante lembrar que no início do século XVII essas duas áreas do conhecimento ainda não estavam comple-
tamente separadas.
Epistemologia do estudo da História 35

Bacon dividia as ciências de acordo com o critério das faculdades da alma, considerada por
ele a “sede do conhecimento” (SOUZA, 2001, p. 17). Segundo esse critério, seriam três os tipos de
ciência: “Assim, toda ciência humana se divide em três partes: a história, que remete à faculdade da
memória, a poesia, que remete à imaginação, e a filosofia, que remete à razão. A história, por sua
vez, se divide em história natural e história civil” (SOUZA, 2001, p. 17).
Observemos que Bacon relaciona História à memória. Para ele, a História, entre os escritos
do homem, é a que considera os indivíduos circunscritos no tempo e no espaço e é única capaz
de inventariar esses indivíduos, rememorando seus feitos, evocando os exemplos dos ancestrais.
O objeto da História é, portanto, o singular, o indivíduo, ou os indivíduos (o singular, aquilo que é
apreendido pelos sentidos), dos quais se extraem os exemplos, as máximas (generalizações, feitas
pela razão) (SOUZA, 2001, p. 17).
Mas, se a História é o estudo dos feitos dos indivíduos no passado, como é possível ao estu-
dioso da História Civil realizar tal feito, sendo que ele vive no presente? Tal paradoxo não passou
desapercebido a Bacon que, como vemos, manifesta uma compreensão diferenciada de História
em relação ao pensamento agostiniano e tomista:
é preciso que o historiador possa transportar seu espírito para o passado, torná-lo,
por assim dizer, antigo, apresentar os movimentos dos séculos, observar o caráter
dos personagens, as forças secretas que conduzem as ações, os motivos escondi-
dos dos Estados. Tudo isso é tarefa delicada que exige muita atividade e muito
juízo. (SOUZA, 2001, p. 22)

Bacon divide a História Civil em três tipos: as memórias, as antiguidades e a história perfeita.
No primeiro tipo, há a mera exposição dos acontecimentos de forma encadeada, segundo a ordem
em que ocorreram, sem uma preocupação maior sobre o sentido deles, seus princípios. No segundo
tipo, temos a mera junção de fragmentos do passado, vestígios esparsos que ficaram preservados, de
diferentes épocas e lugares, como se fossem os destroços de um naufrágio (SOUZA, 2001, p. 22-23).
Já a história perfeita seria a história escrita de uma forma completa, seja de um personagem indivi-
dual, um recorte do tempo ou um feito memorável.
A cada um desses elementos estudados corresponderia um tipo de texto: no primeiro caso,
temos as biografias; no segundo, as crônicas – sobre algo particular ou universal; e os relatos, no
terceiro caso.
Como afirma Souza (2001), segundo o projeto de Bacon, uma História Civil só tem sentido
se orientada e complementada por uma Filosofia Civil. Sobre o tema, discorre na obra De augmentis
(Livro 8) a ideia de uma Filosofia Civil se deslinda como uma ciência do costume, uma espécie de
teoria extraída da interpretação da história e sistematizada cientificamente no sentido de orientar os
homens nos costumes, nos negócios e na política.
Finalmente, resta ressaltar que Bacon pode ser considerado um dos precursores, na Idade
Moderna, da ideia de progresso como condutor da ação humana no tempo. Essa ideia seria o ele-
mento central na compreensão de História desenvolvida no final do século seguinte pelo filósofo
alemão Immanuel Kant, como veremos no tópico a seguir.
36 Introdução aos estudos históricos

2.3 História: entre a Filosofia e a Ciência


Vídeo
Vimos até aqui o percurso e as diversas matizes que o significado de uma
escrita histórica foi adquirindo, desde a Antiguidade até o século XVII. O texto
histórico, que entre os gregos recebeu influência da poesia épica e da mitologia,
apresentou um aspecto retórico, por outras vezes biográfico, entre os escritores ro-
manos, e assim se manteve durante a Alta Idade Média, mas recebendo uma outra
teleologia: estudo
direção: o sentido de teleologia.
filosófico dos fins.

Esse texto foi se modificando da mesma forma que as concepções sobre História: história
epopeia, história como mestra da vida, história como exemplo, como ensinamento moral, histó-
ria como trajetória do homem de volta para Deus ou como processo que culminaria com o fim
do mundo e da temporalidade humana etc., até chegarmos a Bacon, que preconizava a história
civil como a escrita dos feitos dos indivíduos do passado e via nela as bases de uma filosofia civil,
uma ciência dos costumes, instrumento de orientação humana no sentido do seu progresso.
É importante perceber que, em Bacon, já temos a preocupação com uma filosofia da História, ou
seja, com a tentativa de entender, discutir qual o sentido da história vivida e a função da História estudo;
e também o desenvolvimento da proposição de que há um fio condutor para a história-trajetória huma-
na: esse fio que conduz a aventura humana seria o progresso. É com vistas ao seu aperfeiçoamento que o
homem pesquisa e escreve sobre aqueles que o antecederam; é na direção do seu avanço que o homem
se desenvolve no tempo.
A ideia de progresso, assim como a busca de uma investigação sobre o sentido da história
(aqui entendida como trajetória), de uma Filosofia da História, instigaria, no século seguinte, um
dos maiores filósofos da Europa setecentista e um dos mais expressivos expoentes do Iluminismo6,
que é também considerado um dos maiores filósofos de todos os tempos: o alemão Immanuel Kant
(1724-1804).
Em um pequeno texto intitulado “Ideia de uma História Universal com um propósito cos-
mopolita”, escrito em 1784 e organizado em nove proposições, Kant defende a ideia de que, assim
como tudo na natureza existe em função de uma finalidade, o desenvolvimento humano tem como
objetivo o aperfeiçoamento daquilo que diferencia o homem dos demais seres – a razão.
Primeira Proposição: Todas as disposições naturais de uma criatura estão deter-
minadas a desenvolver-se alguma vez de um modo completo e apropriado. Assim
o comprova em todos os animais tanto a observação externa como a observação
interna ou analítica. Um órgão que não venha a ser utilizado, uma disposição
que não atinja o seu fim é uma contradição na doutrina teleológica da natureza.
Se, de facto, renunciarmos a esse princípio, já não temos uma natureza regular,
antes uma natureza que actua sem finalidade; e o desolado "mais ou menos"
vem ocupar o lugar do fio condutor da razão. Segunda Proposição: No homem
(como única criatura racional sobre a terra), as disposições naturais que visam
o uso da sua razão devem desenvolver-se integralmente só na espécie, e não no

6 O Iluminismo foi um movimento filosófico, também conhecido como Ilustração, que se desenvolveu em sua ple-
nitude na Europa do século XVIII. A característica central dos teóricos envolvidos com o Iluminismo foi a tentativa de
estender os domínios da razão e da crítica a diferentes saberes e atividades humanas, desde a Filosofia, passando pela
Política, Estética, Direito, Moral, Literatura, Ciência, entre outras.
Epistemologia do estudo da História 37

indivíduo. A razão numa criatura é uma faculdade de ampliar as regras e inten-


ções do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural, e não conhe-
ce limites alguns para os seus projectos. (KANT, 1784, p. 5, grifos do original)

A história é a manifestação da trajetória ascendente dessa mesma razão, que irrompe selva-
gem e bárbara, norteada pela satisfação plena dos instintos em um estágio pré-civilizatório e que se
desenvolve e aperfeiçoa ao longo do tempo pelo conflito do homem para com sua própria natureza.
Essa história enquanto trajetória ascendente da razão cuja manifestação são as ações huma-
nas é melhor vislumbrada no todo no que em suas partes, ou seja, na espécie humana de forma
mais proeminente do que nos indivíduos isolados,
Seja qual for o conceito que, ainda com um desígnio metafísico, se possa ter da li-
berdade da vontade, as suas manifestações, as acções humanas, como todos os ou-
tros eventos naturais, são determinadas de acordo com as leis gerais da natureza.

A história, que se ocupa da narrativa dessas manifestações, permite-nos todavia


esperar, por profundamente ocultas que estejam as suas causas, que, se ela con-
siderar no seu conjunto o jogo da liberdade da vontade humana, poderá nele
descobrir um curso regular; e que assim aquilo que se apresenta, nos sujeitos
singulares, confuso e desordenado aos nossos olhos se poderá, no entanto, co-
nhecer na totalidade da espécie como um desenvolvimento incessante, embora
lento, das suas disposições originárias. (KANT, 1784, p. 3)

Por isso, essa história não é uma história de alguns homens ou povos, mas uma história uni-
versal na qual se desenrola a condição progressiva do desenvolvimento da razão que culminaria,
inevitavelmente, no aperfeiçoamento moral dos povos, primeiramente, por meio dos direitos locais,
e, posteriormente, numa espécie de organismo jurídico transacional, internacional, que nortearia o
desenvolvimento moral universal no sentido de um constante e crescente aperfeiçoamento moral,
como revela o tradutor Artur Morão ([20--]), na apresentação da obra traduzida de Kant (1784, p. 1):
É uma história de progresso crescente, irrompendo precisamente da caracte-
rística fundamental do homem, a sua sociabilidade insociável, o antagonismo
das tendências sociais e anti-sociais que nos atravessam e em nós surgem com
rostos sempre diferentes, embora procedentes de uma raiz idêntica, feita de bru-
talidade e de rudeza. Estas, no entanto, devido aos perigos que consigo trazem
e à mútua destruição que, sem qualquer travão, garantiriam, forçam-nos a ca-
minhar para a cultura e a desabrochar em universalidade sob o reino do direito.
Semelhante antagonismo suscita um aperfeiçoamento jurídico da humanidade
em direcção a uma sociedade civil que administre a justiça e o relacionamento
legal dos Estados entre si, até desembocar, por fim, na criação de uma federação
universal e cosmopolita que assegure a paz perpétua entre as nações.

Pensar sobre o sentido, o significado, o propósito, a direção da história enquanto trajetória


humana no tempo tornou-se algo muito presente na obra de outros filósofos do século XVIII e tam-
bém do século XIX. Essa reflexão se manifesta com força entre precursores do movimento conhecido
como Romantismo, que teve suas origens na Alemanha do final do século XVIII e foi antecedido pelo
movimento Sturm und Drang (tempestade e ímpeto). O Romantismo manifestou-se nas artes, litera-
tura, história e também no pensamento filosófico; e evocava a valorização do homem como um ser
sentimental, introspectivo, amante da natureza e das coisas simples (BAUMER, 1977).
38 Introdução aos estudos históricos

Ao racionalismo e à vida urbana relacionadas ao avanço das revoluções burguesas e do pen-


samento iluminista, o romantismo voltava seu olhar para a Europa que estava “desaparecendo”. Seus
idealizadores buscavam resgatar a imaginação, as tradições populares, os aspectos da vida rural, o que
levou muito dos teóricos e artistas envolvidos com esse movimento a buscar na cultura popular as
raízes do espírito da nação7 (BAUMER, 1977).
É entre dois pensadores considerados pré-românticos que se manifestam concepções acerca
da História que abrem caminho para seu delineamento como campo de estudo próprio. Trata-se
do italiano Giambattista Vico (1668-1744) e do alemão Johann Gottfried von Herder (1744-1803).
Vejamos, rapidamente, em que sentido o pensamento desses teóricos ampliou os horizontes e pos-
siblidades, tanto acerca de uma filosofia da História quanto da própria escrita da História.
Crítico tanto dos defensores da chamada “ciência antiga” quanto dos entusiastas da “ciência
moderna”, Vico debruçou-se sobre o problema das inovações das novas ciências e da sua aplicação
tecnológica, bem como da filosofia moderna, advertindo para os perigos do uso dessas mesmas
tecnologias quando os homens se desviam dos propósitos da paz e da prosperidade. Em seu livro
Princípios de uma Ciência Nova (acerca da natureza comum das nações), ele propõe uma discussão
sobre a ciência, contrapondo determinados métodos e enaltecendo certos campos científicos que
tenderiam a ser embotados com a ascensão do cartesianismo8.
Em relação à sua ideia de História, propõe que os homens são frutos do seu tempo e que,
por isso, as habilidades, engenhos, a linguagem e as instituições de cada sociedade não podem
ser analisadas fora do contexto e das capacidades em que se encontram inseridas, em sua própria
época (JOANILHO, 2004).
Johann Gottfried von Herder (1744-1803) foi um filósofo, teólogo e escritor alemão. Cursou
Teologia em Königsberg onde teve a oportunidade de ser aluno de Immanuel Kant. Trabalhou,
sobretudo, como estudioso da cultura popular e tradutor: estudou e traduziu canções populares
alemães, inglesas, escandinavas, espanholas e eslavas. Considerava a poesia popular, anônima e
coletiva como uma das mais legítimas expressões do “espírito do povo” (Volksgeist) o qual se desen-
volveria, de formas diferentes, em diferentes lugares, ao longo do tempo. A História seria, então, o
terreno temporal a partir do qual cada povo se forma, torna-se único em sua identidade, que pode
ser percebida, entre outras coisas, pela sua língua e literatura.
O pensamento de Herder vai na contramão da ideia iluminista de uma história universal
ao afirmar que cada povo tem suas particularidades, suas especificidades – políticas, culturais,
linguísticas – e que essas particularidades se desenvolvem ao longo da história, no devir dos povos
(GÓMEZ, 2011).

7 Esteticamente, o Romantismo manifestou-se como uma reação à tendência neoclássica. Ideologicamente foi
como um ataque ao ideal de homem racional e de sociedade tomada pela técnica. Buscou resgatar um homem para
além da razão, capaz de se reencontrar consigo mesmo, mergulhando em suas próprias profundezas, e com as coisas
simples da vida, vendo nelas beleza e sentido (BAUMER, 1977).
8 Por cartesianismo entendemos aqui a difusão e a aceitação dos postulados postos pelo filósofo e matemático
francês René Descartes (1596-1650) acerca do caráter autônomo da razão que, orientada por um método de base ma-
temática, poderia atingir verdades indubitáveis.
Epistemologia do estudo da História 39

Defende, nesse sentido, uma visão de história nacionalista em oposição ao cosmopolitismo


iluminista. A história, para Herder, é a história das nações, o devir dos povos, considerados em suas
particularidades:
Assim considerava que nenhuma regra abstrata, nem nenhum conceito moral
uniforme de norma e de ideal poderiam limitar o conteúdo das manifesta-
ções da vida humana. Herder pensava que toda idade do mundo, do tempo,
toda época, toda nação implicava e levava dentro de si a medida de sua pró-
pria plenitude e perfeição. Argumentava que não tinha valor nenhum fazer
comparações, tampouco, destacar traços comuns, porque isto restringiria o
característico e o particular que é o mais importante, ou seja, é o vivo e o con-
creto. (GÓMEZ, 2011, p. 5)

Ao longo do século XIX, teorias envolvendo filosofias da História (especulações filosófi-


cas sobre o sentido da história) apareceram na obra de autores como Friedrich Hegel, Karl Marx
e Nietzsche. No pensamento oitocentista, a ideia do Ser cedia espaço para a ideia do Devir. Tal
ideia se manifestou, por exemplo, na teoria da evolução das espécies, do naturalista inglês Charles
Darwin (1809-1882), e também na compreensão de Karl Marx (1818-1883) de que a luta de classes
seria o motor da história. É no interior dessa percepção que se desenvolve a ideia de que o homem,
a sociedade, a técnica, a razão, a natureza e tudo mais que nos cerca está em constante vir a ser.
Também é em um contexto fortemente marcado pela expansão do ideário cientificista, para além
das ciências naturais e exatas, que se penetram tentativas de compreensão da dinâmica das socie-
dades e é na construção da doutrina positivista, por exemplo, que se desenvolvem as chamadas
“Ciências do homem”, entre elas, a Sociologia – que teve como um de seus fundadores (e que é
também o fundador do Positivismo) o francês Augusto Comte (1798-1857).
Sobre o conceito acerca da doutrina Positivista, Japiassú e Marcondes (2001, p. 217) definem:
Sistema filosófico formulado por Augusto Comte, tendo como núcleo de sua
teoria dos três estados, segundo a qual o espírito humano, ou seja, a sociedade,
a cultura, passa por três etapas: a teológica, a metafísica e a positiva. As chama-
das ciências positivas surgem apenas quando a humanidade atinge a terceira
etapa, sua maioridade, rompendo com as anteriores. Para Comte, as ciências
se ordenaram hierarquicamente da seguinte forma: matemática, astronomia,
física, química, biologia, sociologia; cada uma tomando por base a anterior e
atingindo um nível mais elevado de complexidade. A finalidade última do sis-
tema é política: organizar a sociedade cientificamente com base nos princípios
estabelecidos pelas ciências positivas.

Assim, para Augusto Comte, a Sociologia, enquanto uma ciência humana, uma ciência que es-
tuda e investiga os homens em sociedade, só teria legitimidade enquanto conhecimento porque seria
pautada nos mesmos princípios e métodos de objetividade das ciências naturais e exatas. Os critérios
de objetividade, veracidade e cientificidade adotados para ciências como a Matemática, a Química e
a Biologia passavam a valer para a análise dos fenômenos sociais.
Essa compreensão passou a permear outras ciências sociais, muitas delas nascidas ou sis-
tematizadas ao longo do século XIX, como a Geografia e a Antropologia. É nesse contexto que a
História, até então uma forma antiquíssima de tentativa de compreensão do homem – e que era
40 Introdução aos estudos históricos

empregada como ferramenta auxiliar de análise em textos de filósofos, literatos, teóricos políticos
e filólogos –, passou a adquirir, também, o status de ciência.
Segundo o historiador José Carlos Reis (1996, p. 5), é no século XIX que a História se eman-
cipa da Filosofia e passa a se constituir como um corpo autônomo de conhecimentos, adquirindo
o formato de uma ciência humana. No processo de sua constituição, que se arvora científico e pas-
sava a ter no meio acadêmico o seu lugar de legitimidade, esse conhecimento histórico precisava
se desvencilhar do uso que se fazia de uma compreensão histórica da realidade pela Filosofia; e
também se afirmar como ciência dotada de uma metodologia própria perante outras ciências hu-
manas, como a Sociologia, por exemplo, demonstrando sua especificidade.
É nesse contexto que se desenvolve, sobretudo a partir dos estudos do filólogo alemão Leopold
Von Ranke (1795-1886) – e que se tornaria o primeiro historiador-científico – o chamado método
histórico (REIS, 1996). Esse método foi uma estratégia para fundamentar o discurso como algo cien-
tífico, por ter uma base empírica – a fonte histórica – no fundamento de seu discurso. O método
histórico, a um só tempo, consolidou a História como uma ciência, distanciando-a da Filosofia; es-
tabeleceu as bases da especificidade do discurso histórico frente outras ciências humanas e acabou
servindo de modelo de objetividade para essas outras mesmas ciências:
O método histórico tornou-se guia e modelo das outras ciências humanas. Os histo-
riadores adquirem prestígio intelectual e social, pois tinham finalmente estruturado
seu conhecimento sobre bases empíricas positivas. Aqui se deu o nascimento de
uma nova consciência histórica: a que enfatiza as “diferenças humanas no tempo”.
Em princípio, o historiador não quer fundir passado, presente e futuro: a história
“científica” buscará diferenciar as duas dimensões objetivas do tempo, passado e
presente, e tenderá a não profetizar sobre o futuro. (REIS, 1996, p. 6)

A questão colocada e respondida naquele momento por Ranke era: afinal, o que a História tra-
balha? A História é o estudo científico do passado – isso a diferenciaria das demais ciências humanas,
dando-lhe autenticidade, especificidade (REIS, 1996). E o que garantiria a objetividade desse conhe-
cimento, sua autenticidade e seu caráter científico? A análise criteriosa e imparcial dos vestígios desse
passado que sobreviveram até o presente. Mas não qualquer vestígio: somente documentos escritos e
oficiais (ligados a instituições como o Estado e a Igreja, por exemplo). O texto histórico se desenvol-
ve pela pesquisa e investigação desses vestígios – chamados por Ranke de “fontes históricas” – e da
construção de um texto encadeado, imparcial, no qual o historiador, enquanto sujeito, deveria não
aparecer ou aparecer o mínimo possível, para que seu objeto – o passado – aparecesse.
A história científica, portanto, seria produzida por um sujeito que se neutraliza
enquanto sujeito para fazer aparecer o seu objeto. Ele evitará a construção de
hipóteses, procurará manter a neutralidade axiológica e epistemológica, isto é,
não julgará e não problematizará o real. Os fatos falam por si e o que pensa o
historiador a seu respeito é irrelevante. Os fatos existem objetivamente, em si,
brutos, e não poderiam ser recortados e construídos, mas apanhados em sua
integridade para se atingir a sua verdade objetiva, isto é, eles deverão aparecer
“tais como são”. Passivo, o sujeito se deixa possuir pelo seu objeto, sem construí-
-lo ou selecioná-lo. (REIS, 1996, p. 13)

O método histórico, desenvolvido por Ranke, acabaria se tornando parâmetro de objetivi-


dade para outras ciências humanas e inaugurando, a um só tempo, a História como ciência, como
Epistemologia do estudo da História 41

disciplina acadêmica e o ofício do historiador (REIS, 1996). Essa compreensão de História, no


entanto, que se pretendia neutra, objetiva, imparcial e científica, acabou por ajudar a construir um
tipo de narrativa histórica eminentemente política, tradição que se expandiu da Alemanha para a
França, onde, fundida à tradição positivista, deu origem à historiografia positivista francesa. Tal
tradição só seria rompida na segunda década do século XX, pelos historiadores da chamada Escola
de Annales, como veremos em capítulos posteriores.

Considerações finais
Neste capítulo, você pôde conhecer um pouco da história da História, ou como o conhe-
cimento histórico foi se constituindo e se modificando, em sua forma e conteúdo, ao longo dos
séculos. Conheceu desde as origens etimológicas da palavra História até seus diferentes usos ao
longo da tradição ocidental. Verificou, também, os vários conceitos relativos a esse termo, desde a
Antiguidade até o século XVIII. Aprendeu a conceituar e diferenciar o estudo da História, buscan-
do aproximações e diferenças para com as demais ciências humanas. Por fim, compreendeu como
situar o lugar do estudo da História, entre a ciência e a filosofia.

Ampliando seus conhecimentos


• REIS, J. C. A história, entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1996. Disponível em:
https://epdf.tips/a-historia-entre-a-filosofia-e-a-ciencia.html. Acesso em: 31 jan. 2019.
Como leitura complementar, sugerimos o livro de José Carlos Reis, intitulado: A história
entre a filosofia e a ciência, publicado pela primeira vez em 1996. A obra em questão trata
da constituição da História como ciência, no século XIX, seu distanciamento para com
as chamadas Filosofias da História e sua afirmação como discurso autônomo, passando
pelo historicismo alemão, os embates com a sociologia de Durkheim e a ideia de história
em Karl Marx chegando na revolução representada pelos estudiosos franceses ligados
à revista Annales, na terceira década do século XX. Aborda também as rupturas no en-
tendimento do estudo histórico trazidas pelos estudos dos historiadores ligados à Escola
de Annales. José Carlos Reis é historiador, professor da Universidade Federal de Minas
Gerais e um dos maiores estudiosos brasileiros de Teoria da História e Historiografia.
• ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
[Frankfurt am Main, DE: s. n.]: 1947. Disponível em: https://nupese.fe.ufg.br/up/208/o/
fil_dialetica_esclarec.pdf. Acesso em: 11 fev. 2019.
Para saber mais sobre o Iluminismo, sugerimos a leitura da obra Dialética do esclare-
cimento: fragmentos filosóficos, escrita por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, em
1947. O texto explicita os conceitos fundamentais desse movimento filosófico e, ao mes-
mo tempo, critica o movimento.
42 Introdução aos estudos históricos

Atividades
1. Considerando os elementos característicos da historiografia greco-romana, aponte seus as-
pectos centrais.

2. Por que se pode afirmar que a concepção de História em Santo Agostinho apresenta um
caráter teleológico?

3. Você acredita, como o orador Cícero (106 a.C. a 43 a.C.), que a História é “a mestra da vida”?
Justifique sua resposta.

Referências
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108. Uma contribuição à teologia do direito. Leleopoldianum, [Santos, SP], ano 40, n. 110/111/112, p. 129-146, 2014.

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Epistemologia do estudo da História 43

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3
Conceito de fonte histórica

Os homens são limitados temporalmente. Desenvolvem sua trajetória em um dado espaço e


época, e passam. Mas dessa passagem ficam vestígios: edificações, escritos, vestimentas, utensílios,
peças de adorno, objetos de arte, histórias orais contadas e repassadas de uma geração à outra, costu-
mes, crenças etc. Os vestígios, sejam eles materiais ou não materiais, persistem e podem indicar como
viveram, o que pensaram, o que e como sentiram e como se organizaram aqueles que passaram.
Em uma outra temporalidade, quando um historiador seleciona alguns desses vestígios
como base empírica de sua investigação, eles passam a ser considerados uma fonte histórica. Então,
por intermédio do texto histórico, temporalidades distintas passam a dialogar entre si e, dependen-
do da forma como esse diálogo é construído e recebido, elas podem se afetar mutuamente. Sim, não
só o passado pode afetar o presente, mas o presente também pode afetar o passado, como veremos
mais adiante. É uma relação de afetação e inteligibilidade mútua.
A fonte histórica é o elemento que torna possível essa intertemporalidade, propicia o aces-
so do historiador a uma temporalidade distinta da sua e é a base empírica do seu trabalho, isto é,
algo que confere, ao mesmo tempo, a legitimidade, a especificidade e a objetividade do seu estudo.
Diferente da forma como se compreendia a História em outras épocas, a partir do século XIX, com
o desenvolvimento do método, a História se torna uma disciplina acadêmica, um discurso que, para
ser aceito entre seus pares, precisa confirmar, comprovar aquilo que enuncia. Pois bem, o que garante
essa possibilidade de confirmação é o fato de esse discurso ser construído sobre algo que realmente
existiu e cuja existência pode ser constatada por meio da apresentação e análise crítica das fontes
primárias. Mas será que lá no século XIX, nas origens da História-Ciência, todo e qualquer vestígio
era considerado fonte?
É sobre o conceito de fonte tal qual era concebido no século XIX, e a forma como esse con-
ceito foi se ampliando e se diversificando ao longo do século XX, bem como sobre os diferentes
tipos de fontes e sua crítica que trataremos neste capítulo.

3.1 Conceito de fonte histórica: do século XIX aos nossos dias


Vídeo
O estudo da História se afirmou como uma ciência humana a partir do sé-
culo XIX com o desenvolvimento do denominado historicismo alemão, que teve na
figura do filólogo e historiador Leopold Von Ranke o seu principal fundador. Essa
primeira tendência historiográfica ficou conhecida por desenvolver o chamado mé-
todo histórico, um procedimento para a construção objetiva do texto histórico, que
passava a ser permeado pelos mesmos critérios de objetividade de outras ciências, e que tinha por
fundamento a chamada crítica das fontes.
46 Introdução aos estudos históricos

Desde os primeiros grafismos rabiscados no interior de cavernas, há mais de 30 mil anos


a.C., até os depoimentos escritos nas redes sociais atuais, passando pelo desenvolvimento da escrita
e do livro impresso, as sociedades humanas deixam registro de sua passagem no tempo e no espaço.
Essas sociedades desaparecem, mas seus vestígios permanecem.
Mais quais desses vestígios podem ser considerados fontes? É aí que a história da escrita da
História interfere. O fato de um vestígio material – ou mesmo imaterial – ser considerado fonte
histórica ou não depende da orientação teórico-metodológica do historiador, e essa orientação tem
variado muito ao longo dos últimos 150 anos. De acordo com Janotti (2008), até meados do século
XX as fontes escritas (e oficiais) tendiam a ser as mais valorizadas pelos historiadores:
Os primeiros relatos da vida humana foram grafitos em cavernas com materiais
contundentes, constituindo-se, com outros vestígios, nas fontes primevas dos
futuros historiadores. Após milénios – quando pequenas comunidades agrafas
deixaram indícios permitindo a arqueólogos, antropólogos, etnólogos levanta-
rem hipóteses sobre diferentes modos de vida –, surgiram sociedades complexas,
como as do Oriente antigo, e com elas a instituição da propriedade privada, do
comércio, de religiões, de cidades, de estados e impérios que geraram novas con-
figurações de registros, destacando-se entre elas a invenção da escrita, responsável
pela produção documental dos períodos históricos subsequentes, constituindo-
-se nas fontes mais valorizadas pelos pesquisadores até meados do século XX.
(JANOTTI, 2008, p. 10)

Mas, por que as fontes escritas e oficiais eram as mais valorizadas pela tradição historiográfi-
ca inaugurada na Alemanha do século XIX? Lembremos que na segunda metade do século XIX rí-
gidos padrões metodológicos, amparados em uma concepção cientificista oriunda do Positivismo
(que, por sua vez, inspirava-se nos preceitos das ciências físico-naturais), estiveram na base da
constituição da História como ciência, como explica Janotti (2008, p. 11):
[...] foram estabelecidos parâmetros metodológicos cientificistas rígidos orien-
tadores da crítica interna e externa das fontes escritas, arqueológicas e artísticas,
priorizando investigações sobre a importância da autenticidade documental,
porquanto a concepção dominante na historiografia era de que a comparação
de documentos permitia reconstituir os acontecimentos passados, desde que
encadeados numa correlação explicativa de causas e consequências.

O contexto em que a História se afirmava como ciência nos ajuda a entender o conceito de fon-
te predominante na época (segunda metade do século XIX). Segundo o professor Julio Bentivoglio
(2010), os esforços de historiadores como Leopold Von Ranke em dar um contorno científico ao estu-
do histórico se dão em uma Alemanha ainda não unificada, tendo como epicentro dessa conglobação
uma Prússia cujo governo, liderado por uma burocracia de origem liberal e burguesa, não media
Conceito de fonte histórica 47

esforços no sentido da unificação territorial e política, com vistas à formação de um império. Nesse
império, unificado na Prússia, os diferentes povos falantes da língua alemã e que tinham uma mesma
origem étnica precisariam se sentir partes de um mesmo todo, uma nação legitimamente representa-
da por um único Estado. É aí que entram as pesquisas sobre a história da Alemanha.
A pesquisa da formação histórica comum do povo alemão é identificada com o desenvolvimento
do Estado. História essa que depois seria ensinada como a trajetória da nação nas escolas públicas man-
tidas por esse mesmo Estado, formando uma consciência cívica nacional que ainda não existia. Ela foi
motivada pela burocracia liberal prussiana, que investiu recursos públicos nesses estudos.
Essa história, no entanto, precisaria ser a história do Estado alemão, o que justifica, em par-
te, o fato de as fontes consideradas dignas de serem estudadas pelo chamado historicismo alemão
­rankiano serem, notadamente, oficiais. O contexto político da própria Alemanha em processo de
unificação influenciou no conceito de fonte histórica que se deslindou a partir dos estudos de
Ranke, mas que não foi o único conceito existente na época, como veremos mais adiante.
O espaço de tempo vivido entre 1806 e 1871 é crucial para se entender a his-
tória alemã. Entre a derrota fragorosa em Iena para Napoleão Bonaparte e a
vitória sobre a França e anexação dos territórios de Alsácia e Lorena por Otto
von Bismarck, que marcaram a fundação do Império Germânico, ocorreram
eventos que distinguiram a emergência do nacionalismo alemão e o compor-
tamento dos estados germânicos em meio ao processo de unificação que seria
capitaneado pelo Reino da Prússia. [...] Os historiadores não poderiam fugir
a estas demandas. Concomitante a estes eventos formava-se a ciência histó-
rica e se constituía uma esfera pública onde começava a se destacar a figura
do intelectual ocupando espaço privilegiado no cenário político, na burocra-
cia estatal e se projetando junto àquela sociedade aristocrática. E muitos des-
tes intelectuais foram, depois de Leopold von Ranke, historiadores, tal como
Georg Gervinus, Johann Gustav Droysen, Karl Wecker, Friedrich Dahlmann,
Georg Waitz, Heinrich von Sybel, Maximilian Duncker, Karl Rotteck, Ludwig
Häusser, Theodor Mommsen, Rudolf Haym, Heinrich Treitschke e Hermann
Baumgarten, que pareciam ter o estudo do passado e a atuação política no pre-
sente como vocações. A atividade deles foi marcada não somente pelo vivo sen-
timento de agir integrando o pensamento histórico e seus conceitos às palavras
de ordem usadas na imprensa e na luta política, mas também por um compro-
misso com determinadas forças e seus projetos políticos. O objeto contemplado,
portanto, parece ilustrar um expressivo ponto de convergência no qual história
intelectual, história e historiografia se articulam, numa constelação particular,
que projetou historiadores e a própria história, intelectual e cientificamente,
influenciando gerações de políticos na Alemanha e também de historiadores
em toda Europa e em várias partes do mundo. (BENTIVOGLIO, 2010, p. 27)
48 Introdução aos estudos históricos

Figura 1 – Unificação da Alemanha – 1866 a 1871

kgberger/Wikimedia Commons
A Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), vencida pela Prússia, foi fundamental para a efetivação da unificação dos
povos de língua germânica ao redor da Prússia.

A Escola Rankeana – como é caracterizada por Bentivoglio (2010) – acabou por engendrar,
em que pese sua pretensão de neutralidade e imparcialidade, uma interpretação e uma escrita
política da História. Uma História política da Alemanha, ignorando ou menosprezando outros as-
pectos da trajetória de um povo, como elementos da cultura, relações sociais, cotidiano, economia
e imaginário. Não só a teoria histórica dos estudiosos ligada à essa tradição era eminentemente cal-
cada numa interpretação política – reduzida à trajetória do Estado – da História, como a prática de
muitos historiadores, inclusive do próprio Ranke, encontrava-se imbricada ao Estado: escreviam
para o governo, subsidiados pelo governo e contavam a história do governo.
O despertar epistemológico da História, vivido na Alemanha do século XIX re-
ferenda um momento singular em que o pensamento histórico, ou suas ideias-
-força parecem tomar consciência de si, historicizando-se, situando seus lugares
e sua pertença, confrontando sua própria história e projetando-se no futuro.
Nascia a ciência histórica. Outro detalhe importante era a convergência parti-
cular de ciência e política, visto existir um diálogo intenso entre pensamento
histórico e ação política, haja vista a história subsidiar e ser subsidiada pelo
Conceito de fonte histórica 49

debate político em torno da unificação alemã, dos conflitos territoriais e do


nacionalismo emergente de tal maneira que nem mesmo Ranke escapou a isso;
o que por si desmistifica a interpretação ingênua e os ataques desferidos contra
seu pretenso apartidarismo. Ao contrário de Karl Marx, cujas obras históricas
procuravam produzir ação junto ao povo, em particular os trabalhadores, aque-
les historiadores prussianos escreviam para os príncipes e para a burguesia,
embora não desprezassem o diálogo junto à opinião pública, mas para isso se
serviam da imprensa. (BENTIVOGLIO, 2010, p. 23)

O encaminhamento metodológico adotado pela tradição que se desenvolveu na Alemanha


em Ranke encontrou na França boa receptividade entre historiadores críticos da Filosofia da
História e simpatizantes da Ciência Positiva de Augusto Comte. Esse movimento em prol de uma
“História Científica” tomou corpo na França a partir de 1870, mais precisamente, em 1876, com
a fundação do periódico Revue Historique por historiadores de duas tradições: os positivistas, re-
presentados por Taine e Renan, e os metódicos, representados pelo principal expoente da revista,
Gabriel Monod (REIS, 1996, p. 14). Essa historiografia viria a ter forte influência no Brasil, sendo
um dos principais modelos para a elaboração de livros de História dedicados ao ensino de crianças
e jovens entre o final do século XIX e o início do século XX.
Em fins do século XIX, a historiografia francesa, de grande influência no Brasil,
já contava com sólida produção na área de História política, oriunda do pensa-
mento cientificista da escola metódica, que se contrapunha à Filosofia da História
por suas generalizações. A Revue Historique, dirigida por Gabriel Monod e G.
Fragniez, fundada em 1876 e publicada até hoje, reunia os historiadores mais re-
presentativos dessa tendência, entre eles Charles Seignobos, que, em 1898, publica
Introdução aos Estudos Históricos, com Charles V. Langlois. Esse livro expressa o
pensamento metódico ao explorar em detalhes os procedimentos para a coleta de
fontes, operações analíticas, crítica interna e externa de documentos, defendendo
a compreensão do particular e do circunscrito para se chegar a conhecer o especí-
fico da história. (JANOTTI, 2008, p. 11-12)

Os historiadores ligados à Revue Historique eram contrários à monarquia, críticos da aristo-


cracia e do catolicismo e favoráveis às ideias republicanas. Um sistema de pensamento se formou em
torno desses historiadores e de suas ideias, e esse sistema ficou conhecido como “Escola Metódica”.
Uma das principais preocupações da Escola Metódica era a afirmação da ciência histórica, sobretudo
na crítica interna e externa das fontes, separando, assim, a História da Literatura e da Filosofia.
Embora, para a Escola Metódica, a utilização das fontes fosse condicionada
a determinados procedimentos metodológicos nos quais eram priorizados a
crítica interna e externa do documento, a autenticidade dos documentos, uma
preocupação em reconstruir o passado a partir de documentos oficiais [...] as
inovações eram no sentido de uma separação da literatura e da filosofia e a afir-
mação da ciência histórica. (ANDRADE; PADOIM, 2016, p. 13)

Tanto na Alemanha quanto na França, e em outras regiões da Europa (chegando à América e ao


Brasil) em que foram bem aceitos os preceitos relativos à História-Ciência da forma como eram conce-
bidos por adeptos do historicismo rankeano e da Escola Metódica, essa mesma História-Ciência, que
privilegiava fontes escritas e oficiais, e se pretendia objetiva, tornava-se uma História do Estado, uma his-
tória com conotações políticas. Isso tanto por seu conteúdo quanto pelo envolvimento de historiadores
50 Introdução aos estudos históricos

com questões de Estado, seja por meio da imprensa, como ativistas políticos, seja por sua atuação na
esfera pública propriamente dita, fato que acabaria por projetar esses historiadores socialmente.
A atividade deles foi marcada não somente pelo vivo sentimento de agir inte-
grando o pensamento histórico e seus conceitos às palavras de ordem usadas na
imprensa e na luta política, mas também por um compromisso com determi-
nadas forças e seus projetos políticos. O objeto contemplado, portanto, parece
ilustrar um expressivo ponto de convergência no qual história intelectual, his-
tória e historiografia se articulam, numa constelação particular, que projetou
historiadores e a própria história, intelectual e cientificamente, influenciando
gerações de políticos na Alemanha e também de historiadores em toda Europa
e em várias partes do mundo. Só para se ter uma ideia do destaque dos his-
toriadores nesta esfera pública em formação, basta lembrar que muitos deles
foram conselheiros políticos, editores de jornais, deputados gerais ou ministros.
(BENTIVOGLIO, 2010, p. 27-28)

Apesar de serem tendências dominantes, essas escolas não foram unânimes na época de seu
aparecimento e de sua maior expressão – segunda metade do século XIX e início do século XX.
Paralelamente a esses entendimentos acerca de fonte histórica e de escrita da História-Ciência,
existiram na própria Alemanha, na França e na Suíça outros historiadores. Eles estavam envolvidos
com a busca de uma pesquisa histórica que considerasse outros aspectos da existência humana,
dialogando com outras áreas do conhecimento e considerando outros tipos de fontes como passí-
veis de serem exploradas.
Segundo Bentivoglio (2010), na própria Alemanha existiu uma outra tendência, identificada
como “Escola Histórica Prussiana”, desenvolvida em torno de um periódico ainda anterior ao Revue
Historique francês, a chamada Revista Histórica. Entre seus principais expoentes, destaca-se Johann
Gustav Droysen (1808-1884), que, assim como Ranke, era também professor da Universidade de
Berlim, mas apresentava uma sutil diferença para com o sistematizador do historicismo.
De acordo com Pedro Caldas (2006), um dos principais diferenciais de Droysen era a sua
convicção de que, na pesquisa e na escrita do texto histórico, a compreensão – que tem muito mais
a ver com o presente do que com uma mera transposição do passado – constituía uma ferramenta
metodológica imprescindível (2006). Segundo Droysen (1977, p. 30 apud CALDAS, 2006, p. 100),
“[...] a cognição do homem apreende apenas o meio, jamais a origem, jamais o fim. O nosso mé-
todo não descobre o segredo último da humanidade, tampouco a entrada para o templo”. Também
acerca de Droysen, destacam Andrade e Padoim (2015-2016, p. 12) que ele: “pregava a necessidade
de se observar o individual, a necessidade de se formular métodos para estudar a subjetividade, e
para se chegar a esses métodos, prescindia de uma combinação de várias pessoas que ocupassem
diferentes tarefas”.
Ainda no século XIX, existiram historiadores preocupados com estudos para além da pers-
pectiva de uma História política tal qual apregoavam as escolas metódica e rankeana. Esse foi o caso
do suíço Jacob Burckhardt (1818-1897). Em obra intitulada A Cultura do Renascimento na Itália, pu-
blicada em 1860, ele abordava como foco central um fenômeno artístico-cultural – o Renascimento
italiano –, apesar da alusão à situação política dos principais reinos e repúblicas italianas entre os sé-
culos XIV e XVI. Ele destacou a influência da cultura grega nesse fenômeno e tentou entender aquilo
Conceito de fonte histórica 51

que ele mesmo define como “os contornos espirituais de uma época cultural” (BURCKHARDT, 2009,
p. 36). Para realizar tal intento, vale-se de textos de literatos humanistas, como Francesco Petrarca e
Dante Alighieri, além de fontes tidas como oficiais.
No entanto, a maior revolução em relação à ampliação do conceito de fonte histórica viria no
final da segunda década do século XX, mais precisamente, no ano de 1929, na França, com o projeto
relacionado à Revista Annales, dirigida pelos historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre (REIS, 1996).
Intitulada Annales d'Histoire Économique et Sociale, a revista fundada pela dupla de historia-
dores franceses e um pequeno grupo de professores da Universidade de Estrasburgo representou
uma renovação e uma revolução, por conta da mudança substancial que o programa dos Annales
provocou no entendimento e na prática da pesquisa histórica (REIS, 1996).
Uma das bases dessa revolução foi a proposição de outros objetos para a investigação his-
tórica, para além da trajetória dos Estados-nação. Essa possibilidade demandou o alargamento, a
ampliação e a diversificação do conceito de fonte histórica ou de documento, evocando também a
necessidade de uma maior interdisciplinaridade para com outras áreas do conhecimento – incluin-
do outras ciências humanas, a filosofia, a teoria literária, a estatística, a demografia, entre outras
– proporcionando, a um tempo, uma renovação metodológica e epistemológica. Desde 1929 até os
anos de 1990, os Annales passaram por várias fases, e por pelo menos quatro gerações diferentes,
mas os elementos centrais do programa mantiveram-se, em que pesem as variações ocorridas em
cada uma dessas fases1.
De acordo com Reis (1996), podemos considerar como elementos centrais desse programa:
a mudança na compreensão do tempo histórico, que agora não era mais o do acontecimento, o do
evento, mas o da duração que manifestava em escalas diferentes (curta, média, longa); a mudança
na estrutura da pesquisa, com a possibilidade da interdisciplinaridade; a mudança no entendimen-
to de História, não mais como exposição, relato do passado, mas como problema, como tentativa
de interpretação, compreensão do homem no tempo; e a mudança no objeto, priorizando as estru-
turas econômicas, mentais e sociais:
De 1929 a 1990, os Annales passaram por várias fases, renovaram o questionário
proposto pelos fundadores, mudaram as condições de pesquisa e estabeleceram
novas alianças com as ciências sociais, mas mantiveram-se fiéis ao “programa”
dos fundadores. Esta fidelidade não se traduziu em uma repetição mas na re-
novação constante da pesquisa e na abertura da história às necessidades do
presente. O programa proposto pelos fundadores consistia fundamentalmente
no seguinte: a interdisciplinaridade, a mudança dos objetos da pesquisa, que
passavam as estruturas econômico-social-mental, a mudança na estrutura da
explicação-compreensão em história, a mudança no conceito de fonte histórica
e sobretudo, embasando todas as propostas anteriores, a mudança do conceito

1 Influenciados pelas obras Revolução Francesa da historiografia (1997) e A Escola dos Annales (1929-1989), de Peter
Burke (1937-), expoentes da historiografia contemporânea referem-se à tendência surgida a partir dos pesquisadores
ligados à revista Annales como “Escola dos Annales”. No entanto, para os historiadores François Dosse, Hervé Martin
e Guy Bourdé, entre outros, o termo Escola não se aplica. Isso porque não há uma continuidade nem uma unanimidade
entre os historiadores das várias gerações dos Annales em torno de um projeto comum, podendo-se, inclusive, falar de
uma ruptura entre expoentes da terceira geração dos Annales, também conhecida como Nova História. Dosse – em seu
livro História em Migalhas (2002) – denuncia essa ruptura, referindo-se a essa Nova História como uma “história em
migalhas”, fragmentada no estudo disperso de mentalidades e imaginário.
52 Introdução aos estudos históricos

de tempo histórico, que agora consiste, fundamentalmente, na superação estru-


tural do evento. Este programa foi praticado de forma criativa e original pelas
três gerações. (REIS, 1996, p. 63)

Ao priorizar estruturas econômicas, mentais e sociais, o programa desenvolvido pelos


historiadores ligados à Revista Annales, em suas quatro gerações, ampliou o leque de possíveis
objetos passíveis de serem estudados historicamente. Segundo o historiador Marc Bloch (2002),
a História é a ciência dos homens no tempo. Sendo o homem múltiplo, diversificado, multifa-
cetado em seus vários aspectos, tanto considerado individual como socialmente, manifesta-se
como um ser que produz, que ama, que pensa, que conflita, que imagina, que sonha, que teme
a morte, que crê, que come, que habita etc.
Esses e vários dos outros múltiplos aspectos da existência humana se desenvolvem no tempo,
podendo, portanto, serem objeto de investigação histórica, a depender do problema de pesquisa lan-
çado pelo historiador. É o interesse do historiador e sua inserção em sua própria época que instiga seu
problema (sua questão) de pesquisa; assim, vai atrás de fontes, seleciona e faz a crítica, interna e externa.
O vasto leque de possibilidades instigado pelos Annales, desde sua primeira geração, e que
só se ampliou nas gerações subsequentes, propiciou o desenvolvimento de várias correntes histo-
riográficas: História das Mentalidades, Figura 2 – “A Carta de Amor”
História do Imaginário, História

Raimundo de Madrazo y Garreta/Wikimedia Commons


Cultural, Nova História Cultural,
Micro História etc. As várias possibi-
lidades de problematização histórica
sobre o homem correspondem à bus-
ca por fontes primárias (documentos
e vestígios da época estudada) até en-
tão desprezadas pelos historiadores da
Escola Metódica e Rankeana: cartas de
amor, textos de literatura, iconografias,
utensílio e objetos de decoração ou de
uso doméstico, diários íntimos, revis-
tas, jornais, bilhetes, cadernetas de ano-
tações de compra e venda e inúmeros
outros vestígios materiais, além de ves-
tígios não materiais também, os quais
têm atraído o interesse, sobretudo, de
historiadores ligados à quarta geração
dos Annales, também conhecida como Obras de arte, como a pintura de Madrazo, podem ser consi-
deradas fontes históricas do tipo iconográficas, dependendo
“Nova História Cultural”. da problemática da pesquisa. A imagem, por exemplo, pode
ser explorada em um estudo sobre como a mulher era repre-
sentada na pintura oitocentista.
Fonte: GARRETA, R. de M. y. Carta de amor. Ca. 1875-1880. Óleo sobre tela:
81,5 x 65,5 cm.
Conceito de fonte histórica 53

Uma verdadeira “revolução documental” ganhou corpo nos estudos históricos, sobretudo a
partir da segunda metade do século XX, ou, segundo as palavras de Samaran (1961, p. XII apud LE
GOFF, 1990, p. 466): "Há que tomar a palavra 'documento' no sentido mais amplo, documento escri-
to, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra maneira". O documento históri-
co, também chamado de prova pelos historiadores, é basicamente a fonte primária, que se distingue
das secundárias, conforme veremos a seguir.

3.2 Fontes primárias e secundárias


Vídeo
A essa altura do nosso livro, você já deve ter percebido que a História, assim
como outras áreas do conhecimento sobre o homem, foi adquirindo suas próprias
características e especificidades entre os séculos XIX e XX. Deve ter notado tam-
bém que os historiadores, inseridos numa dada temporalidade, voltam-se em di-
reção de outras temporalidades – sendo estas distintas da sua, situadas em épocas
anteriores a sua, muito ou pouco distantes temporalmente da sua – para realizar seu estudo. Além
disso, também deve ter percebido que o elemento material pelo qual o diálogo entre essas duas
temporalidades pode ser estabelecido é a chamada fonte histórica, mediada pela leitura que o his-
toriador faz de outras obras, de outros historiadores, sobre temas próximos ao seu.
O aspecto dessa fonte – se ela será escrita, iconográfica, oral (depoimentos colhidos de pessoas
mais velhas, por exemplo), se ela será material ou imaterial (crenças, costumes, linguagem, hábitos,
tradições) – dependerá da pergunta, da questão que o historiador buscará solver com sua pesquisa.
O texto historiográfico (historiografia, cujo significado é, literalmente, “escrita da história”)
assim considerado, sobretudo a partir do programa proposto pelos historiadores ligados à tradição
francesa dos Annales, não tem a pretensão de narrar o passado como ele realmente foi, mas de
construir uma explicação plausível, uma possível interpretação, numa tentativa de compreensão e
de inteligibilidade mútua entre duas temporalidades distintas. Realiza-se isso para que, no contí-
nuo da duração, encontrem-se em pontos diferentes, mas não incomunicáveis. Afinal, o historia-
dor não sai do tempo para estudar o tempo. Mas ele também é afetado por sua época e é pela sua
inserção nela que formula questões para o passado.
Às vezes, essas questões antecedem a busca pelas fontes, direcionando essa busca, em outras o
problema surge do contato com as fontes. Há, ainda, ocasiões em que o problema previamente for-
mulado se modifica pelo contato com as fontes, de forma que não existe historiador, não existe estudo
de História sem fontes históricas, especialmente, fontes primárias. Mas essas também só passam a
existir como tais a partir do momento em que o historiador se interessa por elas. O historiador acaba
sendo uma espécie de juiz ao escolher o que será “iluminado” pelo presente ou o que continuará no
passado, sujeito, inclusive, ao esquecimento, conforme destaca, sabiamente, o historiador medieva-
lista francês Jacques Le Goff (1924-2014) em seu livro História e Memória (1990, p. 462): “De fato, o
que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas
forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se
dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores”.
Mas você sabe o que são fontes primárias no estudo da História?
54 Introdução aos estudos históricos

As fontes primárias são os documentos originais, contemporâneos do período ou evento a


que se refere a pesquisa. Por exemplo: se o objetivo do historiador é entender como estava delinea-
do o conceito de amor romântico entre jovens mulheres letradas da burguesia francesa na segunda
metade do século XIX, suas fontes primárias podem ser: diários íntimos; cartas de amor escritas
e recebidas por jovens mulheres do estrato social pesquisado; os livros de literatura, os folhetins e
outros materiais impressos voltados ao público feminino e que essas mulheres tinham acesso, entre
outros (JENKINS, 2001).
Já as fontes secundárias são os documentos produzidos em períodos posteriores à época
correspondente ao tema pesquisado, mas que se relacionam ao tema, de forma direta ou indireta.
Por exemplo: compilações de trechos de cartas da segunda metade do século XIX selecionadas e
publicadas no século XX; livros de outros historiadores ou pesquisadores de outras áreas sobre
tema similar ou afim escritos em um período posterior à época estudada (JENKINS, 2001).
No entanto, como bem destaca o historiador inglês John Tosh (2011), esses conceitos nem
sempre são tão fixos, porque as temporalidades são dinâmicas e estão sempre se entrecruzando. Por
exemplo: um dos primeiros livros escritos sobre História do Brasil foi a obra História Geral do Brasil,
escrita por Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) em dois volumes, entre os anos de 1854 e
1857. Na ocasião de sua escrita, o livro História Geral do Brasil poderia ser considerado, por um ou-
tro historiador que se debruçasse sobre o tema da História do Brasil, uma fonte secundária, mas na
atualidade, esse mesmo livro, finalizado em 1857, pode ser considerado uma fonte primária por um
historiador que esteja investigando a produção historiográfica brasileira nos oitocentos (século XIX).
Em que pese o fato de, atualmente, não apenas os documentos escritos serem considerados
as únicas fontes primárias que podem ser pesquisadas pelos historiadores, os estudos históricos
ainda se dão em grande parte sobre fontes escritas. Mas um documento não é histórico em si mes-
mo apenas pelo fato de pertencer a uma época anterior à nossa.
O que faz de um documento uma fonte histórica é o interesse do historiador sobre ele – e
esse interesse varia de acordo com cada época. Por isso, podemos afirmar que não somente o es-
tudo do passado afeta o presente, pelas “descobertas” que podem ser feitas ao se explorar fontes
desconhecidas, pouco conhecidas ou ignoradas por outros historiadores no presente, mas o pre-
sente também pode afetar o passado: as perguntas feitas pelos historiadores, em sua própria época
– e motivadas por sua própria época –, podem suscitar o interesse por determinadas temáticas até
então não percebidas em fontes já exploradas anteriormente por outros historiadores, descobrindo,
nessas mesmas fontes, outras histórias, conforme veremos em capítulos mais adiante.

3.3 Seleção, análise e crítica das fontes primárias


Vídeo
Desde os estudos desenvolvidos por Ranke ou por Fustel de Coulanges, historia-
dor francês emblemático da Escola Metódica (ambos do século XIX), há a prática da crí-
tica das fontes por parte dos historiadores, a qual pode ser tanto externa quanto interna.
A externa relaciona-se à análise criteriosa e à checagem da autenticidade do
documento estudado, se é original da época e a que autor é associado ou não.
Conceito de fonte histórica 55

No passado, esse tipo de procedimento tinha por objetivo evitar que documentos falsifica-
dos (adulterados em sua própria época ou em épocas posteriores) fossem tomados por oficiais, e
que historiadores, acreditando que se tratavam das fontes oficiais, cometessem equívocos referen-
tes, por exemplo, à data de início e término de uma guerra ou ao nome de um comandante militar.
Lembre-se de que até meados do século XX, as fontes privilegiadas para o estudo dos historiadores
eram as fontes oficiais, ligadas a instituições como o Estado e a Igreja. Ainda, nos textos dos his-
toriadores era muito presente a menção a datas, fatos e nomes dos ditos grandes homens (em sua
maioria líderes políticos).
Com as mudanças introduzidas pelo movimento propiciado pelos Annales, a História polí-
tica enquanto história dos Estados deixou de ser a forma principal do texto histórico, tornando-se
apenas mais uma entre as tantas temáticas de estudo passíveis de serem abordadas pelo historiador.
No entanto, a crítica externa das fontes ainda é considerada muito importante, embora seja aplica-
da a uma gama muito mais ampla de documentos. Pela crítica externa do documento o historiador
pode formular suas hipóteses acerca de como solver, desenvolver a problemática, as perguntas que
ele mesmo faz para aquela fonte.
Por exemplo: um historiador se propõe a estudar como era o tratamento da depressão nos
hospitais psiquiátricos, clínicas e ambulatórios brasileiros antes do advento dos chamados medi-
camentos antidepressivos modernos – os psicoativos, hoje tão disseminados e cuja origem remonta
aos anos de 1950. Digamos que a fonte principal de seu estudo seja revistas médicas das décadas de
1930 e 1940, anteriores ao advento desses medicamentos, quando a principal forma de tratamento
da depressão se dava por meio da eletroconvulsoterapia (eletrochoque) ou por meio da indicação
de banhos terapêuticos, da administração de tinturas e brometos.
No desenrolar de sua pesquisa, descobre entre suas fontes, uma revista, sem data, mas que
aparece em uma compilação organizada 20 anos depois (fonte secundária) como datada de 1947,
na qual foi publicado um artigo sobre a administração de medicamentos tricíclicos. Ora, esses me-
dicamentos só seriam descobertos 10 anos depois. Se o pesquisador não tiver conhecimento dessa
informação (que ele só chega por meio da análise de um número considerável de fontes primárias
e secundárias), tomará ela por correta e a disseminará em sua pesquisa, passando adiante algo que
não aconteceu e comprometendo a objetividade e a seriedade da pesquisa histórica. É importante
confrontar a informação obtida em uma fonte com outras do mesmo período para evitar anacro-
nismos (associar a uma época algo que lhe é posterior) ou imprecisões e respaldar as suas hipóteses
sobre as fontes primárias nos trabalhos de outros historiadores que trabalharam com a mesma
época e temática ou com temáticas e épocas próximas.
Há também a crítica interna, que é a análise interpretativa do documento histórico: as pergun-
tas que o historiador deve fazer às suas fontes. Além de situar a fonte quanto à época, local, autoria
e conteúdo, sempre que possível, explorar questões do tipo: a que contexto está associada? Quais as
intencionalidades que carrega? Quais interesses expressa? Que contradições oculta? Quais as relações
de poder associadas a esse documento? Sua conotação política, ideológica? Problematizar a fonte,
buscando perceber não só o que ela aparentemente expressa, mas o que ela oculta também.
56 Introdução aos estudos históricos

Por exemplo: na Idade Média, como vimos anteriormente, as compilações e ilustrações de li-
vros eram realizadas, em sua maioria, pelos chamados monges copistas, em seus gabinetes, situados
em mosteiros e abadias. Numa das ilustrações mais conhecidas dessa época, temos uma iluminura
em uma capitular (a primeira letra do texto de um capítulo ou de uma página) em que aparece a
representação de um clérigo, um nobre e um camponês.
No discurso clerical medieval, essas imagens representariam as três ordens: os que guer-
reiam (os nobres), os que rezam (os clérigos) e os que trabalham (os camponeses).
Figura 3 – Iluminura representando as três ordens medievais: o clérigo, o militar (guerreiro) e o camponês

Wikimedia Commons

Fonte: SIENNE, Aldobrandino de. Li Livres dou Santé. 1285. Iluminura. British Library, Londres, Inglaterra. Seção de manuscritos, número:
Sloane 2435, folha 85.

Se tomarmos essa imagem ao pé da letra e considerarmos os textos da época para inter-


pretá-la, tendemos a dizer que essas eram as três únicas classes existentes e que seus membros
se comportavam exatamente como a imagem representa. Mas historiadores medievalistas, como
os franceses Jacques Le Goff e Gorges Duby, já nos alertavam: essas imagens tinham um caráter
educativo, representam como a Igreja pregava, alardeava e gostaria que fosse a composição social,
quais os segmentos e o que se esperava deles, mas não que isso não fosse uma realidade absoluta
nem que não tenham existido exceções, resistências a esse modelo. Trata-se de representações, de
um real idealizado, e não necessariamente de um padrão social hegemônico. Esse tipo de crítica
interna é imprescindível para que o historiador não recaia numa transposição dogmática e acrítica
do conteúdo das fontes.
Conceito de fonte histórica 57

Considerações finais
Neste capítulo, você pôde conhecer sobre a base empírica do estudo dos historiadores: as
fontes. Aprendeu a conceituar fonte primária e diferenciá-la das fontes secundárias. Percebeu, ain-
da, que o próprio entendimento acerca de fontes primárias e a metodologia de sua análise sofreu
alterações, desde o século XIX até os nossos dias. Conheceu, também, como se dá o processo de
seleção, análise e crítica das fontes primárias.

Ampliando seus conhecimentos


• PINSKI, C. B. (org.). Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. Disponível em: http://
gephisnop.weebly.com/uploads/2/3/9/6/23969914/fontes_historicas_carla_bassanezi_
pinsky.pdf. Acesso em: 1 fev. 2019.
Como complemento aos estudos deste capítulo, indicamos a leitura do livro Fontes históri-
cas. Trata-se de uma obra coletiva, organizada pela professora Carla Bassanezi Pinski, con-
tendo oito ensaios, cada um deles escrito por um ou dois autores diferentes e que explora o
tema das fontes em História. O primeiro capítulo traz uma apresentação geral da obra, des-
tacando o seu suporte teórico e também fazendo um breve balanço historiográfico acerca
dos diferentes usos e interpretações das fontes desde o século XIX até a atualidade. O último
capítulo traz uma discussão teórica sobre a questão do método em História, já os outros
seis capítulos abordam desde a temática das fontes documentais, aquelas preservadas em
arquivos públicos, por exemplo, até fontes biográficas, audiovisuais, arqueológicas, entre
outras. Explora os métodos e técnicas da pesquisa histórica em uma linguagem acessível e
formativa para pesquisadores iniciantes sem, contudo, descuidar do respaldo teórico e da
linguagem acadêmica.

Atividades
1. Explique qual a importância das fontes históricas para o trabalho do historiador.

2. O que era considerado fonte histórica, segundo o entendimento da Escola Metódica e do


Historicismo alemão? Qual a relação entre essa compreensão e a concepção de História pre-
dominante na segunda metade do século XIX?

3. Defina e diferencie fonte primária de fonte secundária em História.

Referências
ANDRADE, G. F.; PADOIN, M. M. A evolução do conceito de fontes históricas a partir da nova história
cultural e o estudo de cartas. História em Revista, Pelotas, v. 21/22, p. 11-26, dez./2015, dez./2016. Disponível
em: https://wp.ufpel.edu.br/ndh/files/2017/12/01.-Andrade_Padoin.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
58 Introdução aos estudos históricos

BENTIVOGLIO, J. Cultura Política e historiografia alemã no século XIX: a escola histórica prussiana e a
historische zeitschrift. Revista de Teoria da História, Goiás, ano 1, n. 3, p. 20-58, jun. 2010. Disponível em:
http://www.historia.ufg.br/up/114/o/ARTIGO__BENTIVOGLIO.pdf. Acesso em: 01 fev. 2019.

BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.

BURCKHARDT, J. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo:
Companhia de Bolso, 2009.

BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. Tradução Nilo Odália,
São Paulo: UNESP, 1997.

CALDAS, P. E. P. A Atualidade de Johann Gustav Droysen: uma pequena história de seu esquecimento e de
suas interpretações. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, p. 95-111, 2006. Disponível em: https://
locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/viewFile/2669/2091. Acesso em: 01 fev. 2019.

DOSSE, F. A história em migalhas: dos Annales a Nova História. São Paulo: EDUSC, 2002.

JANOTTI, M. de L. O livro fontes históricas como fonte. In: PINSKI, C. B. et. al (org.). Fontes históricas. 2.
ed. 1. reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008. p. 9-22.

JENKINS, K. A história repensada. Tradução Mario Vilela. 2. ed. Revisão técnica de Margareth Rago. São
Paulo: Contexto, 2001.

LE GOFF, J. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão. Campinas: UNICAMP, 1990.

REIS, J. C. A História entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1996.

TOSH, J. A busca da História: objetivos, métodos e as tendências no estudo da História Moderna. 5. ed. Rio
de Janeiro: Vozes, 2011.
4
A metodologia do estudo da História

Neste capítulo abordaremos como se dá a construção do conhecimento histórico, diferen-


ciando a História de outras formas de acesso ao passado – a memória e os fragmentos, vestígios do
passado. Na sequência, apresentaremos algumas das implicações epistemológicas, metodológicas,
ideológicas e práticas do estudo histórico, destacando os desafios, os limites e as possibilidades do
ofício do historiador. Finalizaremos propondo a você uma reflexão sobre o sentido e a importância
do estudo da História em nossa própria época. Vamos lá?

4.1 A construção do conhecimento histórico


Vídeo
A História, segundo o entendimento do historiador Keith Jenkins (1943-), é
um discurso1 sobre o mundo. E esse discurso sobre o mundo não é o único: há outros
discursos, assim como há diferentes visões de História. Sociólogos, geógrafos e histo-
riadores interpretam de pontos de vista diferentes os mesmos fenômenos, por meio
de discursos diferentes e que estão sempre mudando, demandando uma autocrítica
constante. É a pretensão dos historiadores ao conhecimento que torna a historiografia o que ela é e a
diferencia em relação aos discursos das demais áreas do conhecimento.
Assim como tantos outros discursos possíveis sobre o mundo, os quais não criam o mundo (essa
coisa física e complexa que nossos sentidos e nossa razão não conseguem apreender), mas tentam se
apropriar de parte dele, atribuindo-lhe os significados pelos quais nós o reconhecemos, a História tam-
bém é uma tentativa de atribuição de significado sobre um aspecto do mundo (JENKINS, 2001).
Mas, que aspecto é esse? Segundo o entendimento de Jenkins (2001), o aspecto do mundo
acerca do qual a História tenta construir sua significação é o passado. Assim, para o historiador
britânico, a História é um constructo linguístico sobre o passado.
O pedacinho de mundo que é o objeto (pretendido) de investigação da história é o
passado. A história como discurso está, portanto, numa categoria diferente daquela
sobre a qual discursa. Ou seja, passado e história são coisas diferentes. Ademais,
o passado e a história não estão unidos um ao outro de tal maneira que se possa

1 Entendemos o conceito de discurso na obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), notadamente, as obras
As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969). Pelo entendimento do filósofo, podemos afirmar que discur-
so são enunciados que adquirem o caráter de proposições verdadeiras porque se encontram ancoradas em um terreno
comum – a episteme – que as legitima enquanto verdadeiras em uma determinada época. Essas proposições, aceitas
como verdadeiras, engendram práticas, padrões de comportamento aceitáveis. O elo entre o discurso (enunciado) e as
práticas (padrões de comportamentos dos sujeitos) pode ser definido como “práticas discursivas”. Enquanto saber anco-
rado no terreno epistêmico comum a outros saberes que, em nossa época, são considerados “verdadeiros” – ou seja, a
Academia – a História é um discurso formado por um conjunto de proposições aceitas como verdades e que engendram
determinadas práticas sociais. Toda prática discursiva manifesta uma relação de poder – poder que, em nossa época, não
se impõe, mas que é aceito devido à conotação de verdadeiro associada ao saber que o engendra. Pode-se afirmar, então,
com base no conceito de discurso, que, diante do senso comum, a História se arvora como um saber científico sobre o
passado, diferentemente da memória ou dos fragmentos sobre o ele, a História é aceita com um saber “verdadeiro” porque
vem da Academia, terreno epistemológico que legitima esse saber como tal. No entanto, quando entendemos os enuncia-
dos e proposições da historiografia – escrita da História – como práticas discursivas, passamos a conceber esse saber
criticamente, não como um conjunto de enunciados verdadeiros sobre o passado, mas como tentativas de compreensão,
de interpretação desse passado, sempre limitadas.
60 Introdução aos estudos históricos

ter uma, e apenas uma leitura histórica do passado. O passado e a história existem
livres um do outro; estão muito distantes entre si no tempo e no espaço. (JENKINS,
2001, p. 24)

Veja que História e passado são coisas diferentes, existem livres um do outro, estão em tem-
poralidades diferentes. Para esse autor, o historiador está no presente, seu objeto, no passado. Estão
distantes, no tempo e no espaço.
O passado e a história existem livres um do outro. O passado pode ser definido como tudo o
que se passou antes, em todos os lugares, já a historiografia (a escrita da História) constituiu a ma-
neira pela qual os historiadores abordam o passado, são os escritos que os historiadores elaboram
sobre aspectos do passado. Assim, enquanto o passado constituiu o todo, a historiografia constitui
tentativas de interpretação de partes desse todo (JENKINS, 2001).
Mas, será que estão assim mesmo tão distantes? Segundo outro historiador, o estadunidense
David Lowenthal (1923-2018), qualquer pessoa (com exceção talvez dos bebês, dos muito senis e
dos que têm algum tipo de lesão cerebral) tem consciência do passado como algo que coexiste com
o presente, e, ao mesmo tempo, se distingue dele (LOWENTHAL, 1998). Essa consciência advém
da memória e da percepção de que todas as coisas que hoje percebemos nem sempre foram assim:
tudo o que nos rodeia tem, por assim dizer, uma idade, uma trajetória no tempo e no espaço, in-
clusive nós mesmos.
A consciência do passado é, por inúmeras razões, essencial ao nosso bem-estar.
[...] Como tomamos conhecimento do passado? [...] A resposta é simples: lem-
bramo-nos das coisas, lemos ou ouvimos histórias e crônicas, e vivemos entre
as relíquias de épocas anteriores. O passado nos cerca e nos preenche; cada
cenário, cada declaração, cada ação conserva um conteúdo residual de tempos
pretéritos. Toda consciência atual se funda em percepções e atitudes do passado;
reconhecemos uma pessoa, uma árvore, um café da manhã, uma tarefa, porque
já os vimos ou experimentamos. E o acontecido também é parte integral de
nossa própria existência. (LOWENTHAL, 1998, p. 64)

A maioria das pessoas relaciona-se com o passado por meio da memória, e sua memória
individual tem um aspecto individual e coletivo, como veremos mais adiante. Nós a acessamos o
tempo todo, de acordo com nossas experiências e necessidades. Por isso, podemos afirmar que o
passado está sempre presente e que, portanto, não existe uma distância tão grande entre essas duas
temporalidades: o que nos afasta ou nos aproxima do passado não é a distância ou a proximidade
cronológica, e, sim, a proximidade ou distância afetiva. Ignoramos alguns elementos do passado e
outros recorremos sempre que necessitamos, atualizando-o constantemente.
Ainda segundo o autor, de fato, existem outras formas de se relacionar com o passado que
não o estudo da História: as pessoas não precisam da História para ter acesso ao passado ou a
História é apenas mais uma das vias de acesso ao passado, ao lado da memória e dos fragmentos.
Três fontes de conhecimento do passado são aqui estudadas: memória, história
e fragmentos. Memória e história são processos de introspecção (insight); uma
envolve componentes da outra, e suas fronteiras são tênues. Ainda assim, me-
mória e história são, normalmente, e justificadamente, diferenciadas: a memória
é inevitável e indubitável prima-facie; a história é contingente e empiricamente
verificável. Ao contrário de memória e história, fragmentos não são processos
A metodologia do estudo da História 61

mas resíduos de processos. Fragmentos feitos pelo homem são chamados de


artefatos; os naturais carecem de um nome específico. Ambos atestam passado
biologicamente, por envelhecimento e desgaste e, historicamente por formas e
estruturas anacrônicas. (LOWENTHAL, 1998, p. 66)

E a cada uma dessas vias de acesso corresponde uma disciplina acadêmica específica:
Cada caminho para o passado – memória, história, fragmentos – é um cam-
po reivindicado por disciplinas especializadas, explicitamente pela psico-
logia, história e arqueologia. Mas conhecer o passado envolve perspectivas
mais amplas do que aquelas abrangidas normalmente por essas disciplinas.
(LOWENTHAL, 1998, p. 66)

Quando Lowenthal (1998) afirma que entre memória e história há uma inter-relação porque
uma envolve aspectos da outra, o que ele está querendo dizer? Que de alguma forma, em nossa me-
mória, existem conteúdos em cuja estrutura podem ser localizados o que estudamos, o que apren-
demos em História – estudo – e o que vivenciamos em nossa história – trajetória de vida. Por outro
lado, a História – estudo – também pode se valer da memória (individual ou coletiva) como fonte (em
estudos de História Oral, por exemplo, entrevistando pessoas idosas) ou mesmo o próprio historia-
dor pode recorrer à sua memória em seus estudos, isso é inevitável.
A diferença é que a memória é inevitável – dela não podemos fugir – enquanto a História
é contingente. O conceito de contingente aqui é entendido como o que é do campo do possível,
do que pode ou não ser desta ou daquela forma – ou seja, casual (ABBAGNANO, 2007). Há ainda
que se considerar que a maioria das pessoas que tem alguma noção de História a construiu com
base em textos de livros, artigos (publicados em revistas especializadas, sites, jornais etc.) e do-
cumentários escritos por historiadores. Ou seja: a maioria das pessoas que tem alguma noção de
História tem, na verdade, uma noção de historiografia. De forma que, ao acessarem a História para
evocarem o passado, estarão acessando, na verdade, a interpretação sobre aspectos do passado que
chegaram até elas filtrados pela perspectiva dos historiadores.
A perspectiva que os historiadores têm sobre o passado é, ela também, histórica. Ela muda
de uma época para outra: mudam os interesses, mudam as fontes, os objetos, os olhares e as in-
terpretações e personagens que não apareciam em livros de História produzidos em uma época
podem aparecer em outros livros, produzidos numa época posterior, vindo a sumir, novamente,
em um outro momento.
Questões políticas, econômicas, culturais e ideológicas do presente interferem na forma como
os historiadores olham para outras temporalidades, na escolha das fontes e nas hipóteses que formu-
lam para interpretá-las. Um exemplo disso é a historiografia sobre as mulheres, praticamente ine-
xistente até os anos de 1970 do século XX. Dos anos de 1980 até o início do século XXI, no entanto,
o número de estudos históricos sobre mulheres cresceu em países como Estados Unidos, Inglaterra,
França e Brasil (GONÇALVES, 2006).
As mulheres têm passado e, portanto, têm história – sempre tiveram. Suas trajetórias de
vida, de luta, é que não tinham sido objeto de estudo ainda. Mas foi a partir do momento em
que movimentos pelos direitos das mulheres – como o feminismo – tomaram um vulto maior,
62 Introdução aos estudos históricos

adquirindo mais expressividade no presente, que o interesse sobre estudos sobre mulheres, no
passado, tornou-se mais intenso2.
O mesmo se pode afirmar acerca do interesse sobre a história da classe trabalhadora (que
cresceu a partir das décadas de 1950 e 1960, com os estudos da chamada Nova Esquerda Inglesa3)
e da trajetória, experiências, lutas, resistências do negro no Brasil – cujos estudos se tornaram mais
intensos a partir dos anos 1990.
É sempre com base em sua própria temporalidade – com seus desafios, conflitos, interesses
e saberes – que os historiadores se voltam para o passado. Por isso, ambos – presente e passado –
estão continuamente se afetando e se modificando; e a História é o campo em que esse confronto
se manifesta.
Voltando às formas pelas quais acessamos o passado, resta destacar ainda que ambas – História
e memória – relacionam-se a processos, a fenômenos humanos, enquanto que os fragmentos são os
resíduos, os vestígios desses processos, aos quais o historiador recorre como fonte para o seu estudo.
Tanto a memória quanto a história de trajetória de vida (e a História como estudo), assim como os
resíduos, atestam a existência do passado.
Assim, temos acesso ao passado; seja pela via dos resíduos do passado (normalmente expos-
tos em museus), pela via da memória (seja ela individual, coletiva ou institucionalizada por meio
dos patrimônios públicos) ou da história (vivida) e da História (estudo).
A questão agora é: quais os elementos do passado que são acessados pelo historiador? Como
e por que ele acessa esse ou aquele elemento/fenômeno e ignora outro? Como constrói seu estudo?
Quais as implicações contidas nesse estudo?
Segundo Jenkins (2001), o passado é algo praticamente infinito. Dessa forma, há entre os
historiadores contemporâneos a consciência de que a escrita de uma História total não só é impos-
sível como indesejável (seria ela mesmo necessária?). Não se pode recuperar a totalidade do passa-
do, porque seu conteúdo é, de certa forma, ilimitado (JENKINS, 2001) – ele não para de acontecer.
Bem diferente disso é o presente: no infinito da duração, o presente é um ponto minúsculo que,
mal nasce, morre (BLOCH, 2002).
Mas, então, qual a função do historiador? Como ele constrói seu discurso, essa significação
acadêmica acerca do passado? Ou, melhor dizendo, como constrói esse discurso acadêmico sobre
a trajetória do homem no tempo? Que fatores interferem em sua teoria e prática?
Segundo Jenkins (2001), é na complexa tarefa de conciliar o passado com a História que se
dá a construção do conhecimento histórico, tarefa na qual influenciam fatores teóricos e questões
de ordem prática. É sobre isso que discutiremos a seguir.

2 Para ter uma noção sobre a experiência e as lutas das mulheres entre os séculos XIX e XX, e como esses processos
têm sido vistos pela historiografia contemporânea sobre gênero, sugerimos a seguinte leitura: GONÇALVES, A. L. História
&... gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
3 Nova Esquerda Inglesa: Movimento ocorrido no campo da historiografia britânica a partir dos anos de 1950 e rela-
cionado à tentativa de revisão e atualização dos estudos orientados por uma perspectiva marxista da História. Motivado
pela tentativa de rompimento com uma visão soviética do marxismo após a revelação dos crimes de Stalin, em 1956,
caracterizou-se pela defesa de uma historiografia social, comprometida com o “fazer-se” da classe trabalhadora, bus-
cando entender sua constituição histórica, valorizando suas experiências, lutas e resistências cotidianas e considerando
também suas divergências internas. Uma “história vista de baixo”.
A metodologia do estudo da História 63

4.2 As implicações teóricas e práticas do estudo histórico


Vídeo
Na tentativa de conciliação entre o passado e a História, expressa na escrita
do historiador, devemos considerar três campos teóricos problemáticos, os quais
interferem na escolha do objeto, na seleção das fontes e na escrita do texto: as fra-
gilidades epistemológicas, as fragilidades metodológicas e a influência da ideologia
(JENKINS, 2001).
Primeiramente, observemos o que o autor entende por fragilidades epistemológicas. Vimos em
capítulos anteriores que Epistemologia diz respeito ao estudo sobre as possibilidades, os limites, as espe-
cificidades do conhecimento. No tocante às fragilidades epistemológicas do estudo da História, Jenkins
(2001) nos leva a problematizar as possibilidades desse estudo, afinal, é possível à História conhecer o
passado? O que é possível conhecer do passado? Quais os limites desse conhecimento?
A primeira razão dessa fragilidade é o fato de que grande parte das informações sobre o
passado não está registrada, não está escrita, e o que se encontra registrado é, muitas vezes, “fugaz”
(JENKINS, 2001, p. 31), ou seja, desaparece rapidamente.
Pensemos, por exemplo, na multiplicidade de experiências e impressões de trabalhadores li-
vres e escravizados, de mulheres, de crianças, de camponeses pobres, de diferentes épocas e lugares,
sobre as formas de opressão a que foram submetidos, mas também sobre suas formas de luta, seu
cotidiano, suas estratégias de sobrevivência e de resistência, seus sonhos etc. e o quão pouco disso
sabemos porque simplesmente não há registro escrito sobre suas existências? Por outro lado, acerca
da vida de chefes políticos, religiosos e militares, cuja quantidade de registro escrito é muito maior
– porque foram pessoas que detinham poder e influência em suas épocas – sabemos muito mais.
E mesmo se considerarmos a História como a escrita, pautada na análise de documentos, so-
bre a trajetória do homem no tempo, em suas diferentes nuances, há ainda uma segunda razão para
a fragilidade epistemológica desse estudo: o historiador tenta transpor para um texto fenômenos
humanos, transformar acontecimentos em relatos, os quais jamais conseguirão traduzir a intensi-
dade e a complexidade do vivido. “Já que o passado passou, relatos só poderão ser confrontados
com outros relatos, nunca com o passado” (JENKINS, 2001, p. 32).
A terceira razão da fragilidade epistemológica da História é que ela sempre será um cons-
tructo linguístico construído com base em intertextualidades, de diálogos que o historiador estabe-
lece com seus pares, e de hipóteses que tece sobre suas fontes. Não consegue dialogar com aqueles
que viveram os acontecimentos, as situações, as experiências que ele estuda (JENKINS, 2001).
Finalmente, a quarta razão da fragilidade epistemológica do estudo da História é que, por ver
o passado em retrospectiva, ou seja, pela perspectiva de quem sabe o que aconteceu depois, prova-
velmente, o historiador sabe mais sobre a época que está estudando do que aqueles que nela viveram:
As três razões citadas acima para a fragilidade epistemológica da história se ba-
seiam na ideia de que a história é menos que o passado – ou seja, a ideia de que
os historiadores só conseguem recuperar fragmentos. Mas a quarta razão vem
enfatizar que, graças à possibilidade de ver as coisas em retrospecto, nós de certa
maneira sabemos mais sobre o passado do que as pessoas que viveram lá. Ao
traduzir o passado em termos modernos e usar conhecimentos que talvez não
64 Introdução aos estudos históricos

estivessem disponíveis antes, o historiador descobre, não só o que foi esquecido


sobre o passado, mas também “reconstitui” coisas que, antes, nunca estiveram
constituídas como tal. Assim, as pessoas e formações sociais são captadas em
processos que só podem ser vistos retrospectivamente, enquanto documentos
e outros vestígios do passado são tirados de seus propósitos e funções originais
para ilustrar, por exemplo, um padrão que nem remotamente tinham significa-
do para seus autores. (JENKINS, 2001, p. 34)

Usemos dois exemplos para ilustrar essa quarta razão da fragilidade epistemológica do estudo da
História. Pensemos nos camponeses que aravam terras usando arado puxado por bois, por volta dos anos
de 1450 da nossa era, na França. Tinham essas pessoas a noção de que viviam no ano de 1450? De que
sua época seria chamada de Idade Média? De que o sistema econômico e social em que estavam inseridas
se intitulava Feudalismo e de que esse mesmo sistema vivia uma crise que culminaria com o seu fim e o
advento de um novo sistema econômico, o capitalismo? Se pudéssemos conversar com um desses cam-
poneses, o que ele acharia quando disséssemos que ele vive numa “Idade Média”?
Figura 1 – Camponês arando a terra com uma charrua

Alexandrin/Wikimedia Commons

Fonte: COLOMBE, J. As muitas ricas horas do Duque de Berry. 1413-1489. Guache sobre papel velino. Biblioteca do Museu Condé, Castelo
de Chantilly, França.
A metodologia do estudo da História 65

Agora um outro exemplo. Imaginemos uma partida de futebol, na atualidade, ocorrida em


uma quarta-feira à noite. Imaginemos que o atacante de um dos times recebeu a bola em posição
legal do centroavante, que vinha pela direita, e que, ao chutar, errou o “alvo”. No domingo à noite,
em um programa esportivo qualquer, o apresentador comenta a jogada, valendo-se da gravação do
jogo: “Por que o centroavante não passou para o outro jogador, que vinha pela esquerda? Ele tinha
muito mais chance de concluir a jogada com êxito e fazer o gol”.
Ora, é fácil para o apresentador dizer o que o centroavante deveria ter feito. Ele sabe o que
aconteceria depois, o centroavante não. As pessoas do passado são como o centroavante: elas estão
no jogo, no momento em que ele está acontecendo. O historiador é como o comentarista, vê o jogo
– a história – em retrospectiva, sabe o que aconteceu depois. Tem a noção do processo, as pessoas
que estão vivendo no passado, não. Esse é um desafio constante: ao analisar um fenômeno, com
base em determinadas fontes e uma determinada época, é preciso interpretá-lo por outros que lhe
foram contemporâneos, sem buscar sua causa em fenômenos que o antecederam nem suas conse-
quências nos que lhe sucederam (BLOCH, 2002).
Segundo Bloch (2002), não se pode precisar ao certo a origem de algo, quando surgiu, muito
menos pretender entender a causa de um fenômeno no tempo buscando-a em um fenômeno ante-
rior ou em suas supostas consequências. Só se pode tentar entender um fenômeno a partir de sua
relação com outros que lhe foram contemporâneos: “nunca se explica plenamente um fenômeno
histórico fora do estudo do seu momento” (BLOCH, 2002, p. 60).
Falemos agora daquilo que Jenkins (2001) denomina como “fragilidades metodológicas” do
estudo da História. Metodologia diz respeito ao caminho, às ferramentas teóricas, aos conceitos
advindos de trabalhos de outros historiadores ou de filósofos, teóricos literários, sociólogos e dos
quais os historiadores se valem para construir suas interpretações sobre o passado.
Essas ferramentas teórico-metodológicas influenciam sobremaneira no teor que terá o tex-
to histórico. Um mesmo fenômeno, por exemplo, a Crise de 1929 (relativa à quebra da Bolsa de
Valores de Nova Iorque), pode ser contado de formas diferentes, dependendo do referencial teó-
rico-metodológico adotado. Se for analisado por um viés econômico tendo por base a teoria dos
ciclos econômicos, de John Maynard Keynes (1883-1946), ou se for analisado por um viés eco-
nômico-histórico-social, tendo por base a teoria dos modos de produção, do filósofo Karl Marx
(1818-1883), teremos dois textos completamente diferentes sobre um mesmo fenômeno.
No tocante às questões metodológicas, é importante que saibamos que elas se referem aos
procedimentos operacionais da pesquisa: como ela será feita, por meio de quais conceitos, catego-
rias e instrumentos teóricos e quais obras historiográficas o historiador recorrerá para realizar seu
estudo. Ainda que se valha de todo o rigor possível, é importante destacar que os métodos usados
pelos historiadores serão, assim como suas epistemologias, sempre frágeis e sujeitos a falhas. Ao
contrário do que defendia o argumento cartesiano, no século XVII, o método não é, necessaria-
mente, um caminho para a verdade, mas uma estratégia de pesquisa, uma via possível por onde o
pesquisador pode trilhar e não se perder em sofismos durante o percurso da sua escrita. Há inúme-
ros procedimentos metodológicos possíveis e nenhum deles pode ser considerado o mais confiável
ou o mais seguro: de formas diferentes, todos podem ser igualmente comprometidos de forma
66 Introdução aos estudos históricos

crítica com o fenômeno abordado. A ideia de acesso ao “passado tal qual ele foi” ou ao “passado em
si mesmo”, como pretendia Ranke quando formalizou o método histórico, é hoje considerada uma
pretensão inatingível entre os historiadores.
A questão da fragilidade metodológica encaminha nossa análise para a terceira fragilidade
no que diz respeito à História como teoria: a fragilidade ideológica, afinal, a escolha teórico-meto-
dológica é, também, influenciada pela postura ideológica do historiador (JENKINS, 2001).
Mas, você sabe o que é ideologia? Quando o termo foi cunhado, pelo filósofo francês Destut
de Tracy (1801 apud ABBAGNANO, 2007, p. 531), designava uma doutrina que tinha por objetivo
ser a análise das sensações e das ideias. No entanto, foi com o filósofo alemão Karl Marx (1818-
1883) que o termo adquiriu as feições que atualmente o identificam. Segundo Marx (1845; 1847
apud ABBAGNANO, 2007, p. 532), ideologia pode ser definida como o conjunto de ideias e valores
que compõe a consciência social, tanto o que legitima o poder da classe dominante (burguesia)
como o que pode manifestar a consciência da classe dominada (proletariado)4.
Por ideologia entende-se uma doutrina, formada por um conjunto de opiniões e preceitos
destituídos de validade objetiva (isto é, que não podem ser confirmados) que se pretendem abran-
gentes no sentido de abarcar, de forma rasa e cheia de lacunas, uma infinidade e multiplicidade de
fenômenos (sociais, políticos, econômicos e religiosos) de forma acrítica e de modo a ocultar as
contradições internas dessas mesmas explicações.
A ideologia está relacionada, portanto, às contradições sociais, manifestando-se como uma
forma de ocultá-la, legitimá-la ou como uma forma de resistência à essas contradições; os his-
toriadores, ao realizarem suas pesquisas sobre o passado, não estão livres da ideologia, segundo
Jenkins (2001): quando se propõe a realizar seu estudo, o historiador fala de um determinado
“lugar”, de uma determinada classe e com uma determinada visão de mundo. Assim, a História
é, também, um discurso, um constructo permeado por ideologias que manifestas as relações de
poder nas quais o historiador está inserido, em sua própria época. “Todas as classes e/ou grupos
escrevem suas respectivas autobiografias coletivas. A história é a maneira pela qual as pessoas
criam, em parte, suas identidades. Ela é muito mais do que um módulo no currículo escolar ou
acadêmico” (JENKINS, 2001, p. 43).
Assim, o fato de escolher este ou aquele objeto de pesquisa, selecionar uma fonte e rejeitar
outra ou, ainda, optar por esta ou aquela corrente teórico-metodológica e não uma terceira não são
ações isentas, neutras, são influenciadas pela postura ideológica do historiador, pela maneira como
entende, se situa e se posiciona frente às contradições sociais de sua própria época.
Ao abordarmos a influência da ideologia, fechamos as três fragilidades – epistemológicas,
metodológicas e ideológicas – que, segundo Jenkins (2001), afetam o fazer historiográfico na teo-
ria. Agora vamos explorar como se dá esse mesmo fazer na prática. Afinal, em que consiste o
estudo histórico na prática? O que faz? Como e com o que trabalha um historiador profissional?

4 Para saber mais a respeito, ver o verbete ideologia em: ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo
Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 531-533.
A metodologia do estudo da História 67

A história profissional é o discurso produzido acerca do passado pelos historiadores que, em


geral, trabalham nas universidades. Esses profissionais passam o tempo de trabalho dividido entre
bibliotecas, arquivos, salas de aula e seus locais de trabalho em casa. Mas, o que esses historiadores
levam consigo quando estão trabalhando em suas investigações sobre o passado?
Primeiramente, conforme Jenkins (2001), eles levam a si mesmos: sua formação, seus va-
lores, suas perspectivas e pressupostos, sua ideologia e sua visão de mundo. Carregam também
seus pressupostos epistemológicos, oriundos das influências teórico-metodológicas que receberam
e recebem em sua formação: são categorias de análise assim como os conceitos que constituem
essas categorias pelas quais são construídas teorias. Essas teorias engendram amplas explicações
e pressuposições sobre o que é constante nos seres humanos. É por intermédio de conceitos, cate-
gorias e pressuposições que os historiadores escolhem seus objetos, selecionam ou excluem fontes,
formulam suas hipóteses, organizam seu material, aceitando ou rejeitando certas possibilidades de
análise (JENKINS, 2001).
Os historiadores levam consigo, também, um linguajar próprio do seu ofício além de rotinas
e procedimentos próprios (métodos no sentido literal da palavra) para organizar as fontes, veri-
ficar sua autenticidade, sua época, sua fidedignidade, em graus variados de rigor e concentração
(JENKINS, 2001), e também obras de outros historiadores, publicadas e ainda não publicadas (pes-
quisas em andamento) entre as quais eles vão e vêm; e suas fontes primárias (não necessariamente
materialmente pois algumas só podem ser consultadas em arquivos) com as quais construirão seus
textos (JENKINS, 2001).
Após concluírem suas pesquisas, os historiadores precisam colocá-las por escrito e, nesse
processo, os fatores epistemológicos, metodológicos e ideológicos voltam a exercer sua influência,
combinada com pressões relacionadas ao cotidiano do ofício e que dizem respeito à pressão da
família – em virtude das horas e horas de escrita e isolamento; às exigências e pressões do local de
trabalho – colegas, chefes de departamento, políticas institucionais e de fomento, a obrigatoriedade
de ensinar etc.; às pressões das editoras, referentes à: extensão, formato, mercado, prazos, estilo
literário, leituras críticas e reescrita.
E, finalmente, após publicarem e publicizarem seus textos, os historiadores precisam lidar publicizar: tornar
público.
com a possibilidade de que eles serão lidos, por diferentes públicos, em diferentes épocas e lugares,
interpretados (ou mal interpretados) e muitas vezes utilizados para fins que extrapolam suas inten-
ções quando da escrita do texto (JENKINS, 2001).
Assim, buscamos expor, em linhas gerais, os aspectos práticos do ofício do historiador. E
então, está preparado para enfrentar essa empreitada?

4.3 A importância do estudo da História


Vídeo
Qual a importância do estudo da História? Vimos ao longo dos capítu-
los anteriores que na Antiguidade romana acreditava-se na máxima: a história
é a mestra da vida. Mas, será que é mesmo? Será que aprendemos alguma coisa
com a História? O estudo do passado é, por si só, capaz de nos tornar melhores
68 Introdução aos estudos históricos

moralmente? Ampliar nossa consciência, nossa capacidade de empatia e nossa sensibilidade, nos-
sa luta pela extensão e efetividade da cidadania? Afinal, para que estudamos História? Qual sua
finalidade?
Essas são perguntas fundamentais a serem feitas pelos futuros professores e pesquisadores
em História. O que é que eles buscam ao exercer o seu ofício? O que esperam? Qual o impacto so-
cial, cultural, ideológico e político do estudo da História? Vamos nos valer do entendimento de um
dos maiores historiadores do século XX, o fundador da revista Annales e que escreveu sua última
obra Apologia da História enquanto aguardava na prisão para ser fuzilado pelo governo nazista,
que tinha ocupado a França: Marc Bloch. O historiador francês tinha o entendimento de que a
História é a ciência dos homens no tempo.
Esse tempo é o tempo histórico, o tempo permeado pelas ações humanas; e a categoria com
a qual o historiador trabalha, segundo Bloch (2002), é a duração. Assim, o historiador trabalha com
algo que é, ao mesmo tempo, contínuo, porém permeado por constantes mudanças, devido às ações
dos homens. O historiador também é parte desse processo e dessas mudanças, estando também su-
jeito às intermitências do seu estudo; o historiador, assim, é alguém que pode intervir na sociedade,
em sua própria época e na forma como essa época concebe, interpreta, épocas anteriores – e isso traz
uma grande responsabilidade.
Por isso, o que afasta ou aproxima o historiador do fenômeno estudado não é a maior ou
menor proximidade cronológica entre ambos, não há a tal “objetividade” preterida por Ranke só
pelo fato de o historiador estar mais distante, no tempo, do fenômeno estudado: o que o aproxima
ou afasta do objeto do seu estudo é a forma como esse o afeta, é uma relação afetiva. Dessa forma,
para Bloch (2002), o que aproxima ou distancia o historiador de um fenômeno é a forma como esse
ressoa nele. Essa aproximação é sempre afetiva e, portanto, subjetiva. A forma como irá estudá-lo
será permeada pela busca da objetividade, mas a aproximação é sempre subjetiva (BLOCH, 2002).
Estudamos, no passado, aquilo que nos afeta, que nos incomoda ou que nos atrai no presente. É uma
relação de afeto. E em nossa capacidade de afetar outras pessoas, com o nosso estudo, reside toda
a responsabilidade, toda a beleza e todo o perigo do nosso estudo. Tal como nos afirma o filósofo
alemão Walter Benjamin (1892-1940), ao historiador cabe reacender as centelhas da esperança para
que também os mortos possam descansar em paz:
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato
foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no
momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do
passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico,
sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tra-
dição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às
classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar
a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem
apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom
de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do
historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se
o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (BENJAMIN, 1940
apud ROUANET, 1987 p. 224-225)
A metodologia do estudo da História 69

Considerações finais
Neste capítulo, estudamos sobre aspectos teóricos e práticos inerentes ao estudo da História
e ao ofício do historiador. Problematizamos sobre como se dá a construção do conhecimento histó-
rico e como esse tipo de conhecimento, como uma das ferramentas possíveis de acesso ao passado,
diferencia-se da memória e dos fragmentos do passado. Você pôde conhecer alguns dos aspectos
epistemológicos e metodológicos inerentes à forma como os historiadores constroem seus objetos
e encaminham suas pesquisas, além da influência exercida pela ideologia. Pôde também conhecer
algumas das especificidades práticas do ofício do historiador e refletir sobre a importância do es-
tudo da História.

Ampliando seus conhecimentos


• LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Tradução de Lúcia Haddad. Revisão técnica
de Marina Maluf. Proj. História, São Paulo, v. 17, 1998. Disponível em: https://revistas.pucsp.
br/revph/article/view/11110/8154. Acesso em: 02 fev. 2019.
Esse texto, traduzido por Lúcia Hadad, é uma parte da obra de Lowenthal intitulada:
“The Past is a Foreign Country”. Aborda as diferentes formas por meio das quais as pes-
soas, em geral, têm noção do passado, seja através da memória, dos vestígios ou História,
destacando a especificidade da História como estudo e diferenciando-a da história como
trajetória de vida.

Atividades
1. Diferencie, com base em Lowenthal (1998): história (trajetória de vida); História (estudo);
memória e fragmentos.

2. Aponte ao menos uma fragilidade epistemológica, uma metodológica e uma dificuldade prá-
tica inerentes à teoria e à prática do estudo histórico.

3. Elabore, com base no que estudamos neste capítulo e nos anteriores, uma definição própria
sobre o conceito de História (estudo).

Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. [1940]. In: ROUANET, S. P. Obras escolhidas: magia e técnica,
arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. v. 1. 3. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1987.

BLOCH, M. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.
70 Introdução aos estudos históricos

FOUCAULT, M. 1926-1984. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de
Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos)

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Revisão de Lígia Vassalo.
Petrópolis, Vozes; Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972.

GONÇALVES, A. L. História &... gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

JENKINS, K. A história repensada. Tradução de Mario Vilela. 2. ed. Revisão Técnica de Margareth Rago. São
Paulo: Contexto, 2001.

LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Tradução de Lúcia Haddad. Revisão técnica de Marina Maluf.
Proj. História, São Paulo, v. 17, 1998. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/11110/8154.
Acesso em: 2 fev. 2019.

TRACY, D. de. Idéologie. 1801. In: ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi.
5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
5
Inteligibilidade entre presente, passado e futuro

Abrindo um antigo caderno


foi que eu descobri:
antigamente eu era eterno.
(LEMINSKI, 2002, p. 110)

O que é o “tempo histórico”? Em uma resposta apressada, pode-se afirmar que é o tempo
das ações humanas, as quais podem ser organizadas em temas (âmbito econômico, político, social,
cultural, cotidiano etc.) e esses, por sua vez, segmentados em períodos, em épocas, em datas e es-
tudados “em blocos” pelo historiador.
Mas não seria essa uma ação arbitrária, reduzir a complexidade de um “mundo histórico” à
uma cronologia? Afinal, aqueles que estudamos tinham, também, suas próprias concepções acerca do
tempo – e essas concepções tiveram influência nas suas existências, nas suas formas de viver, pensar,
trabalhar, criar, imaginar, relacionar-se e sentir. Cada presente carrega em si o passado como expe-
riência, como lembrança; e o futuro, como projeção, como prospecção. Não podemos esquecer que
aqueles que acessamos por meio das fontes primárias estão vivendo o presente deles – e lá onde se
encontram, nessa “terra estrangeira” como diria Lowenthal (1998), também têm um passado.
Da mesma forma que o historiador não consegue fugir do tempo para acessar outras tem-
poralidades distintas da sua (encontram-se essas múltiplas temporalidades em pontos diferentes
de um mesmo espectro de duração), da mesma forma, aqueles que ele estuda também se encon-
tram imersos em suas próprias concepções de tempo. Assim, presente, futuro e passado estão
em contínua relação e entrecruzamento. Perceber a complexidade e as implicações dessa relação
na constituição daquilo que se costuma definir como “época” é fundamental na empreitada da
escrita histórica. É sobre essa relação intertemporal e como ela interfere, tanto no objeto quanto
no estudo histórico, que trataremos neste capítulo.

5.1 A relação de inteligibilidade entre presente e passado em Marc


Bloch
Vídeo Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem [os artefatos ou as má-
quinas,] por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições
aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a
história quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo, um
serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde
fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça. (BLOCH, 2002, p. 54)

O historiador, tal qual o ogro da lenda, “fareja carne humana”. Na metáfora bela e forte do
historiador francês Marc Bloch (2002), o objeto de estudo da História são, segundo a concepção dos
Annales em sua primeira geração, os homens no tempo: “‘Ciência dos homens’, dissemos. É ainda
72 Introdução aos estudos históricos

vago demais. É preciso acrescentar: ‘dos homens, no tempo’” (BLOCH, 2002, p. 55). E que tempo é
esse? O que é o tempo histórico, para Marc Bloch? De que forma sua concepção influenciou e atra-
vessou as demais gerações de historiadores dos Annales?
Segundo Reis (1996), antes de iniciarmos tal exploração, é importante destacar que a pro-
posta manifesta pelos Annales em relação à História nasce em um contexto influenciado pelas, en-
tão, emergentes Ciências Sociais. Por um lado, essas ciências tentavam se afirmar, entre os séculos
XIX e XX, perante a antiquíssima História, apresentando uma abordagem diferenciada do social;
por outro, a própria História, que se arvorava agora à pretensão de ciência, também buscava se
afirmar perante as Ciências Sociais em sua especificidade.
É nesse contexto de influência e de tensão mútua entre as novas ciências sociais e a milenar
História que o movimento dos Annales desenvolve sua proposta. Segundo Reis (1996), no centro
dessa tensão está o conceito de “tempo humano” e a forma como os historiadores o reduziram a
um instrumento subjetivo, cultural, cuja instrumentalidade é humana: o calendário. Não é um
dado objetivo, é uma construção, uma criação humana tomada como dado pelos historiadores, no
processo de objetivação do seu estudo.
O tempo calendário é ao mesmo tempo uma imposição astronômica e uma cria-
ção subjetiva. Mas, ele é sobretudo uma criação subjetiva, isto é, tem uma objetivi-
dade social, humana. É uma criação e não um dado. Uma vez criado, objetiva-se,
torna-se um dado. Esta objetivação de uma criação é necessária para torná-la
indiscutível e eficaz. Imposição astronômica, ele é sobretudo um coordenador das
atividades humanas e, portanto, é uma construção cultural. Enquanto construção
cultural, o tempo calendário é uma imposição do tempo da consciência sobre o
tempo cósmico. (REIS, 1996, p. 244)

A crítica central das ciências sociais à História é o fato de ela partir de uma criação subjetiva,
humana – o calendário – para realizar um estudo pretensamente objetivo do passado. Sem esse ins-
trumento – o calendário – é como se as consciências humanas se perdessem no tempo, passado e
presente se misturassem, pondo em xeque o estudo histórico. Sendo assim, qual a relevância desse
tipo de estudo?
À subjetividade do tempo-calendário da História, as ciências sociais propõem outra estra-
tégia de mensuração do tempo social: a estrutura social como algo mais perene, mais permanente,
pondo em risco, aparentemente, o conceito de tempo histórico dos historiadores tradicionais. Em
lugar da mera sucessão cronológica de eventos característica do conceito de tempo histórico tradi-
cional, os cientistas sociais se referem ao tempo dos fenômenos sociais focando a simultaneidade,
a permanência, a homogeneidade, as transformações estruturais na sociedade:
O “tempo social” das ciências sociais é imanente, circular e uniforme, intrínseco
aos eventos ou ao modelo criado para abordá-los, não é um tempo que se refira
à sucessão dos eventos, à passagem do passado ao futuro. Este “tempo social”
tende à simultaneidade, o que era impensável até então para o mundo humano.
Ele se desfaz da sucessão dos eventos, enfatiza menos as mudanças qualitativas e
valoriza as transformações estruturais, que são como “movimentos naturais” na
sociedade. Busca-se na sociedade o que a física encontra na natureza: uniformi-
dade, reversiblidade, homogeneidade, quantidade, permanência. O tempo social
é, portanto, antissucessão – ele é da ordem da simultaneidade, da reversibilidade e
Inteligibilidade entre presente, passado e futuro 73

interdependência dos eventos humanos. As ordens sucessivas do calendário e das


filosofias da história, que antes organizavam a vida humana, perderam sentido.
(REIS, 1996, p. 245)

Essa concepção outra de tempo social advinda das ciências sociais, que se manifesta como
uma crítica ao tempo histórico como “tempo calendário” da História tradicional, acaba por ser um
dos aspectos centrais na revolução historiográfica representada pelos Annales.
A História, que até então se ocupava em compreender o tempo histórico como um tempo
cronológico, marcado pela sucessão de eventos, passou a ser sensível a outras categorias para se
pensá-lo, entre essas categorias, a simultaneidade e a permanência. Então, o tempo histórico deixa
de ser percebido como o tempo do acontecimento e passa a ser vislumbrado a partir da perspectiva
da duração dos fenômenos humanos. A perspectiva da duração, que se aprofundaria sobretudo
nos estudos do maior representante da segunda geração dos Annales, principalmente com Fernand
Braudel (1902-1985), manifestava-se já no pensamento de Bloch (2002) na obra Apologia da histó-
ria ou o ofício do historiador, como vimos, publicada após sua morte, em 1949.
Manifestando uma interpretação diferenciada para com o historicismo alemão e também
em relação à visão positivista francesa, Bloch (2002) discorda que a História seja a ciência do pas-
sado. Ele teceu críticas à ideia de tempo histórico como o tempo de junção, no presente, de acon-
tecimentos e fatos que não têm nada em comum entre si a não ser o fato de terem ocorrido numa
temporalidade distinta da do historiador e o desejo arbitrário desse em reuni-los em seu estudo.
A História, para Bloch (2002), analisa os homens através do tempo e esse tempo é permeado pelas
ações humanas em suas diferentes durações.
Assim, o historiador trabalha com algo que é, ao mesmo tempo, contínuo, porém permeado
por constantes mudanças, devido às ações dos homens. O historiador também é parte desse pro-
cesso e dessas mudanças, estando também ele sujeito às intermitências do seu estudo. O tempo da
História é, ao mesmo, “tempo” o plasma em que se formam os eventos e o lugar da sua compreen-
são, de sua inteligibilidade:
O historiador não apenas pensa “humano”. A atmosfera em que seu pensamento
respira naturalmente é a categoria da duração. Decerto, dificilmente imagina-se
que uma ciência, qualquer que seja, possa abstrair do tempo. Entretanto, para
muitas dentre elas, que, por convenção, o desintegram em fragmentos artifi-
cialmente homogêneos, ele representa apenas uma medida. Realidade concreta
e viva, submetida à irreversibilidade de seu impulso, o tempo da história, ao
contrário, é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar
de sua inteligibilidade. (BLOCH, 2002, p. 55)

Por isso a categoria com a qual os historiadores ligados aos Annales trabalham é a duração, a
“longa duração” que, segundo Reis (1996), é a tradução que esses historiadores farão da “estrutura”
atemporal dos cientistas sociais. Ao transmutarem essa ideia de estrutura social para os estudos
históricos, construindo a partir dela a perspectiva da duração como o lócus do tempo histórico,
provocam uma mudança substancial nesse conceito, criando uma segunda perspectiva acerca do
tempo histórico, como algo que se manifesta como um “terceiro tempo”, na qual as diferenças entre
passado, presente e futuro se enfraquecem, pela noção de simultaneidade.
74 Introdução aos estudos históricos

Eles teriam criado uma segunda perspectiva sobre o tempo histórico como
terceiro tempo. Na primeira perspectiva, a vida humana sucessiva e dispersi-
va, assimetria entre passado e futuro, continuava sucessiva e artificialmente
contínua, linear e regular, quando enquadrada pelo calendário. Nessa segunda
perspectiva, os eventos humanos são inseridos em uma ordem não sucessiva,
mas simultânea. A relação diferencial entre passado/presente/futuro se en-
fraquece, isto é, a percepção sucessiva do tempo histórico é enquadrada por
uma percepção simultânea. A referência ao calendário, à sucessão de gerações
torna-se secundária. As “mudanças humanas” se naturalizam: endurecem-se,
desaceleram-se. Tornam-se semelhantes aos movimentos naturais e incor-
poram as qualidades desses: homogeneidade, reversibilidade, regularidade,
medida. (REIS, 1996, p. 246)

À ideia de tempo histórico como sucessão de eventos, como tempo de mudanças que se
sucedem e se aceleram, os Annales propõem a análise do confronto entre mudanças e permanên-
cias, do evento e da longa duração, da sucessão e da simultaneidade. E no interior desse confronto
localizam a constituição do tempo histórico como uma regularidade possível, fazendo emergir, nos
homens, não apenas a ânsia pela mudança – característica da Filosofia da História no pensamento
oitocentista – mas a busca pela estabilidade também. É, sem sombra de dúvida, uma outra pers-
pectiva sobre o tempo histórico: os homens do passado, em seu presente, talvez pretendessem levar
o passado ao futuro, permanecer, continuar.
Os homens não tendem à mudança, eles nem mesmo apreciam mudar. O que
eles apreciam é continuar, permanecer – eles querem levar o passado ao futuro,
apagar a sua diferença e assimetria, para evitarem o atrito, o barulho, a tensão,
o desconforto da mudança. Os homens preferem viver em um mundo reconhe-
cível, sem planos e reflexões, inovações, fraturas. Eles preferem morar, demorar
em sua vida rotineira, pacífica, eterna. (REIS, 1996, p. 246)

É sobre essa relação, entre presente, passado e futuro, e a forma como ela precisa ser conside-
rada como um elemento constituinte do tempo histórico, que aborda a obra do historiador alemão
Reinhart Koselleck (2006), como veremos a seguir.

5.2 O tempo histórico: presente, passado e futuro em Reinhart


Koselleck
Vídeo Qual a concepção de futuro que você tinha no seu passado? Como você ima-
ginava que seria sua vida aos 20 anos quando você tinha 15 anos? Quais aspec-
tos dessa projeção se realizaram em seu tempo presente? Quais não se realizaram?
Como você, no presente, avalia a ideia que tinha de futuro, no passado? E hoje,
neste presente, como projeta o seu futuro?
As nossas percepções sobre o tempo, a própria ideia de tempo e das diferentes temporalida-
des são subjetivas. Ainda que se possa falar numa duração intermitente dos fenômenos, ela escapa,
em sua totalidade, às faculdades da nossa percepção. A divisão em períodos de tempo passíveis
de serem mensurados, contados, localizados, é uma das formas pelas quais o homem se localiza
em relação ao absoluto da duração. E, entre as formas mais usuais dessa divisão, encontramos a
segmentação do tempo em um “agora” (presente), um “antes” (passado) e um “depois” – futuro.
Inteligibilidade entre presente, passado e futuro 75

Ao longo dos capítulos anteriores, vimos diferentes concepções acerca da função da escrita
histórica. Na Antiguidade, acreditava-se que estudar o que aconteceu antes poderia explicar o que
acontece agora e melhorar o que acontecerá no futuro. Já na Idade Média, a ideia de futuro, mani-
pulada pelo pensamento clerical cristão, desabava numa escatologia, ou seja, em uma teoria sobre os
acontecimentos relacionados a um suposto fim dos tempos, ao fim do mundo, que culminaria com o
fim da humanidade – o Apocalipse. As Filosofias da História, dos séculos XVIII e XIX, vislumbravam
na História a marcha do progresso do homem no tempo: o estudo do passado era direcionado para
uma determinada concepção de futuro não como destruição, mas como avanço da humanidade.
Perceba que os estudos sobre a História, ou a forma pela qual os estudiosos se voltaram para o
passado, diz muito sobre a forma como concebiam não somente o seu presente, mas também como
projetavam o seu futuro. Essa interação, entre essas três temporalidades – presente, passado e futuro
– não acontece somente nos estudos de História, ela está presente, o tempo todo, na maioria de nós.
“Somos nossa memória...”, afirmava o poeta argentino Jorge Luís Borges em seu livro Elogio
da Sombra (1969) (tradução nossa). Sem contrariar o poeta, vamos um pouco além: somos nossa
memória, mas somos também nossas projeções para o futuro. E entre aquilo que lembramos e o
que projetamos, somos também o que está localizado entre essas duas temporalidades: somos o
tempo do acontecimento, esse minúsculo intervalo de tempo que, mal nasce, já morre, ao qual
chamamos de presente.
Assim, como em nossa trajetória, essas três temporalidades se conectam, essa interdepen-
dência ocorre, também, na escrita histórica e no objeto sobre o qual essa escrita se debruça: a
trajetória das sociedades no tempo. Aqueles que são estudados pelos historiadores também estão
vivendo seus presentes com uma determinada projeção de futuro e uma dimensão temporal do
passado. É preciso pensarmos nessa intertemporalidade sempre presente se quisermos tentar defi-
nir o que é o tempo histórico (KOSELLECK, 2006).
O que é o “tempo histórico”? Os vestígios de outras épocas podem indicar alguma coisa
sobre acontecimentos, mas não sobre o tempo histórico (KOSELLECK, 2006). A cronologia, como
vimos anteriormente, constitui uma tentativa de homogeneização das diferentes temporalidades
em um rol de datas e fatos, mas a datação, pautada em critérios físico-matemáticos e culturais pelos
quais são elaborados os calendários, é apenas um aspecto do tempo histórico, está nele inserida,
mas não o expressa nem o encerra.
De forma ainda mais proeminente do que as datações, o tempo histórico se manifesta de
diferentes formas ao nosso redor, basta que agucemos nosso olhar. Ele se manifesta em constru-
ções novas e ruínas de casarões antigos convivendo lado a lado no centro de uma grande cidade;
nas rugas profundas de uma pele envelhecida ou nas mãos macias de um bebê recém-nascido; na
transição dos meios de transporte, da carroça ao automóvel esportivo que alcança a marca de 220
km por hora; ou no vislumbramento das várias gerações em uma mesma família.
Para onde quer que nos voltemos, ao nosso redor ou em nós, podemos perceber sinais do
tempo histórico. Mas ainda assim, como defini-lo? Afinal, apesar da tentativa efetivada pelas data-
ções, cronologias, calendários e estudos de História, cada pessoa, grupo, sociedade e até mesmo cada
76 Introdução aos estudos históricos

coisa existente está inserida na sua própria medida de tempo. Essa constatação nos é apresentada por
Herder (1799)1 como uma resposta à pretensa História Universal proposta por Immanuel Kant:
Na verdade, cada coisa [Ding] capaz de se modificar traz em si a própria medi-
da de seu tempo; essa medida continua existindo, mesmo se não houver mais
nenhuma outra ali; não há duas coisas no mundo que tenham a mesma medida
de tempo [...]. Pode-se afirmar, portanto, com certeza e também com alguma
audácia, que há, no universo, a um mesmo e único tempo, um número incon-
tável de outros tempos. (HERDER, 1799, p. 68 apud KOSELLECK, 2006, p. 14,
grifos no original)

Pode o historiador, de forma arbitrária, ignorar essas múltiplas temporalidades em seu es-
tudo em nome de uma concepção de tempo histórico como algo homogêneo e que a tudo abran-
ge, um tempo cronológico, pautado em datações e divisões temporais, sendo que os homens, as
instituições e as organizações políticas têm um ritmo próprio? Como podemos afirmar coisas do
tipo: “determinada sociedade, em determinada época” ou “o Império Romano, na Idade Antiga...”?
Consideravam-se os romanos vivendo na Antiguidade? Qual é a época de uma sociedade? Como
os homens compreendem a sua relação com o tempo? São questões complexas, que induzem a
especulações as quais podem nos levar a lugar algum.
As decisões políticas tomadas sob a pressão de prazos e compromissos, o efeito
da velocidade dos meios de transporte e de informação sobre a economia ou
sobre ações militares, a permanência ou instabilidade de determinadas formas
de comportamento social no âmbito das exigências econômicas e políticas tem-
poralmente determinadas, tudo isso conduz obrigatoriamente – seja através de
um processo de atuação e ação recíproca ou de uma relação de dependência – a
uma tipo de determinação temporal que, sem dúvida, é condicionada pela natu-
reza, mas que também precisa ser definida especificamente sob o ponto de vista
histórico. (KOSELLECK, 2006, p. 15)

Interpretando as palavras do historiador alemão, podemos arriscar que tempo histórico ou


época corresponde ao ritmo, à cadência dos acontecimentos numa dada sociedade, os quais são
influenciados por uma combinação de fatores – políticos, econômicos, culturais. Essa cadência
com a qual os acontecimentos se manifestam, interdependem e inter-relacionam (e que pode se
configurar de maneira completamente diferente de uma época para outra ou se justapor em uma
mesma época) é o que pode ser percebido pelo historiador como tempo histórico, uma espécie de
processo de determinação ou de uma doutrina das épocas de acordo com o domínio visado pelo
historiador (econômico, político, social etc.). Conforme cita Koselleck (2006, p. 15), “Se contem-
plarmos o conjunto dessa cadeia de eventos isso nos levará a um processo de determinação e a
uma doutrina das épocas, as quais, conforme o domínio específico visado, podem configurar-se de
maneira completamente diferente, ou mesmo justapor-se umas às outras”.
O autor também não ignora as tentativas de datação, o calendário, as cronologias: são instru-
mentos indispensáveis para o historiador localizar um mundo histórico entre uma infinidade de
mundos históricos que se sucedem (REIS, 1996). Afinal, constituem formas de se identificar uma
época. Mas é importante considerar, também, como cada época (por Koselleck chamada de mundo

1 Versão original: HERDER, I. G. Metakritik zur Kritik der reitien Vernunft (1799). Berlim: [s.n.], 1955.
Inteligibilidade entre presente, passado e futuro 77

histórico) concebe a si mesma, como, em cada presente, relacionam-se as dimensões temporais do


passado e do futuro: “De maneira geral, pretendeu-se investigar a forma pela qual, em um deter-
minado tempo presente, a dimensão temporal do passado entra em relação de reciprocidade com
a dimensão temporal do futuro” (KOSELLECK, 2006, p. 15).
Em outras palavras, como em determinados presentes, a dimensão temporal do passado se
relaciona, é evocada, de forma concreta, com a dimensão temporal do futuro (KOSELLECK, 2006).
Por isso, em sua obra, aponta como em diferentes épocas, da Antiguidade aos dias atuais, textos
de filósofos, poetas, historiadores, bem como manuscritos de autoria desconhecida, passou-se a
experiência do passado, sendo sentida e elaborada. E isso também vale para as diferentes maneiras
pelas quais as projeções, expectativas, esperanças acerca do futuro foram trazidas à superfície da
linguagem: “Todos os testemunhos atestam a maneira como a experiência do passado foi elaborada
em uma situação concreta, assim como a maneira pela qual expectativas, esperanças e prognósticos
foram trazidos à superfície da linguagem” (KOSELLECK, 2006, p. 15).
Ainda a respeito da compreensão acerca do tempo histórico, segundo Reis (1996), é possível
compreender as especificidades de cada mundo histórico pela forma como cada presente põe em
relação à dimensão temporal do passado e do futuro. O tempo histórico se situa entre esse campo
da experiência (passado) e esse horizonte de espera (futuro) em um “presente”:
Conhecer um mundo histórico, para Koselleck, é responder a esta questão
maior: como, em cada presente, as dimensões temporais do passado e do futuro
foram postas em relação? Sua resposta a essa questão é a sua hipótese sobre
o “ser” do tempo histórico: determinando a diferença entre passado e futuro,
entre “campo da experiência” e “horizonte de espera”, em um presente, é pos-
sível apreender alguma coisa que seria chamada de “tempo histórico”. Passado
e futuro reenviam-se um ao outro e esta sua relação é que dá sentido à ideia de
“temporalização”. (REIS, 1996, p. 240)

Essas duas categorias, “campo da experiência” e “horizonte de espera”, segundo Reis (1996),
constituem, em Koselleck (2006), conceitos que tornam possível pensar tanto a História – estudo
– quanto a história – trajetória de vida; é assim que se operacionaliza o conhecimento histórico.
Sem essas categorias a história seria impensável. A experiência é o “passado
atualizado”; a espera, o “futuro atualizado”. Experiência e espera são conceitos
assimétricos: a espera não se deixa deduzir da experiência, passado e futuro não
se recobrem. A presença do passado é outra que a do futuro. Mas, assimétricos,
não são conceitos antônimos. Da sua diferença e tensão aparece a “temporali-
zação”. Um não se deixa transpor no outro sem que haja ruptura. Sua diferença
revela uma característica estrutural da história: o futuro não é o resultado sim-
ples do passado, embora este traga conselhos, experiência e esperas retroativas.
É a tensão entre experiência e espera, portanto, que suscita diferentes soluções
e engendra o tempo histórico. Uma relação estática entre eles é inconcebível.
(REIS, 1996, p. 242)

Agora que você conheceu alguns aspectos da compreensão de Koselleck sobre o tempo his-
tórico, como algo situado entre a experiência (passado) e a espera (futuro) como responderia às
questões colocadas lá no início do tópico? Qual a ideia de futuro que você tinha no seu passado?
78 Introdução aos estudos históricos

De que forma tanto sua experiência, manifesta em suas lembranças, suas memórias, quanto suas
projeções, interferem e se entrelaçam em seu presente?

Considerações finais
Neste capítulo, exploramos o conceito de “tempo histórico” e sua importância nos estudos
de História. Vimos que, tal qual era entendido pela História Tradicional, esse tempo se manifestava
no aspecto de um “tempo calendário”, em que a experiência humana no tempo era concebida como
uma sucessão de eventos dispostos numa cronologia.
A essa concepção de tempo histórico se opôs a Escola de Annales, desde sua primeira gera-
ção, com Marc Bloch, passando por Fernand Braudel e se mantendo como horizonte teórico pre-
sente nos estudos das demais gerações de historiadores a ela ligados. Influenciados por categorias
como “tempo social” e “estrutura social” advindas das ciências sociais, esses historiadores propõem
o conceito de “duração” para se pensar o tempo histórico, manifestando-se sensíveis a categorias
como simultaneidade e permanência na construção do texto histórico e destacando a interdepen-
dência e a inter-relação de inteligibilidade mútua entre presente e passado na escritura desse texto.
Acerca da relação entre presente, passado e futuro, vimos também a obra do historiador
alemão Reinhart Koselleck (2006). Segundo o autor, é imprescindível pensar na relação que cada
presente estabelece com o passado, como “campo da experiência”, e com o futuro, como “horizonte
de espera”, enquanto projeção. Isso é válido tanto para a história vivida quanto para a História es-
tudo, conhecimento. O presente daqueles que estudamos hoje como sendo passado é permeado, é
constituído por essa relação temporal para com o passado e o futuro.

Ampliando seus conhecimentos


• KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução
de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Revisão César Benjamin. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006.
Como leitura complementar, sugerimos a introdução do livro do historiador alemão Reinhart
Koselleck, Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Nessa parte do livro,
o historiador chama atenção para a forma como aqueles que viveram no passado, e que cons-
tituem objeto de estudo do historiador, relacionavam-se com diferentes noções de passado e
de futuro.

Atividades
1. Em que sentido a concepção de duração, proposta pelos Annales, representou uma mudança
no tocante à concepção de tempo histórico tal qual era concebida pela História tradicional?

2. Como passado, presente e futuro encontram-se imbricados no tempo histórico, segundo


Koselleck (2006)?
Inteligibilidade entre presente, passado e futuro 79

3. Explique a afirmação de que no trabalho do historiador entre presente e passado há uma


relação de inteligibilidade mútua.

Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BORGES, J. L. Elogio de la sombra. Buenos Aires: Emecé, 1969.

BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.

KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia
Maas e Carlos Almeida Pereira. Revisão de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

LEMINSKI, P. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 2002.

LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Tradução de Lúcia Haddad. Revisão técnica de Marina
Maluf. Proj. História, São Paulo, v. 17, 1998. p. 63-201. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/
view/11110/8154. Acesso em: 02 fev. 2019.

REIS, J. C. A História entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1996.

REIS, J. C. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e “Annales”: uma articulação possível. Síntese Nova Fase,
Belo Horizonte, v. 23, n. 73, 1996. p. 229- 252.
6
Objetividade x subjetividade no estudo da História

É possível ao historiador estabelecer uma distância segura entre ele e seu objeto de estudo? Até
que medida seus próprios interesses, sua visão de mundo e experiências, sua inserção nas relações
de poder de sua própria época e a forma como se posiciona frente a elas interferem em sua pesquisa?
Até que ponto comete anacronismos? É possível não os cometer? Como realizar um estudo
visando à objetividade, de forma crítica e acadêmica, sem cair na pretensão (ou seria uma ilusão?)
do objetivismo puro ou na tentação da subjetividade radical (LORIGA, 2012)? De que maneira a
História concebia a objetividade acerca da sua institucionalização como ciência, no século XIX, e
qual o entendimento que essa questão passou a ter com o movimento dos Annales? Quais os limites
e as possiblidades da objetividade e da subjetividade no estudo da História? É sobre essas questões
que estudaremos a partir de agora.

6.1 O século XIX e a concepção de objetividade em História


Vídeo
O método histórico, desenvolvido com base nos estudos realizados por aqui-
lo que a historiografia convencionou chamar de Escola Rankeana, tinha como um
de seus principais pressupostos o estudo objetivo das fontes primárias. Essa seria
a condição essencial para que a História fosse nada mais que uma exposição dos
acontecimentos do passado tal qual eles ocorreram.
Dois aforismos do historiador alemão oitocentista Leopold Von Ranke expressam de for-
ma clara essa condição. Na primeira edição de seu livro História dos povos romanos e teutônicos,
publicado em 1824, teria afirmado acerca do estudo histórico: “apenas mostrar como realmente
aconteceu” (RANKE, 1882, s. VII apud WEHLING, 1973, p. 177). Em outra ocasião, enquanto
palestrava para o Príncipe Maximiliano, da Baviera, teria afirmado: “O historiador há de dar a to-
das as épocas, a todos os indivíduos, o que lhes é devido; e há de vê-los nos seus próprios termos”
(RANKE apud BARROS, 2017, não paginado).
Partindo dessas afirmações, vamos agora tentar entender em que consistia o conceito de
objetividade no estudo da História para Ranke, problematizando os limites e as possibilidades da
objetividade na pesquisa histórica, da forma como a concebia o historiador alemão.
Primeiramente, é importante situar a concepção de História e de objetividade em Ranke no
contexto em que se desenvolveram. A produção historiográfica de Ranke (1795-1886) abrangeu
um vasto período, que vai da publicação da sua primeira obra, em 1824, até sua morte, em 1886.
Ao longo desses mais de sessenta anos, o entendimento acerca da História passou por uma grande
transformação, em parte, graças ao método por ele desenvolvido.
82 Introdução aos estudos históricos

Segundo Arno Wehling (1973), no início do século XIX, quando Ranke inicia sua obra, o
conceito acerca do que seria uma escrita histórica oscilava entre os textos de Filosofia da História
(presentes na obra de autores como Hegel, Vico e Herder), a pesquisa e o mero arrolamento de
fontes (prática que vinha desde o Renascimento) ou os manuais de arte histórica imbuídos de um
caráter literário. Não havia uma definição acerca do que seria o estudo da História: uma perspecti-
va difusa acerca do que seria um olhar histórico sobre a realidade encontrava-se dispersa em vários
textos e práticas de outras áreas do conhecimento.
Ainda conforme Wehling (1973), o fator que acabaria por unificar essa produção e esse enten-
dimento disperso acerca da História, diluída entre a erudição, a filosofia e a literatura, foi o fenômeno
do historicismo. Segundo José D’Assunção Barros (2010), o historicismo constituiu um movimento
complexo no interior da historiografia ocidental, um divisor de águas. Ele teve como precursores
movimentos surgidos entre os séculos XVIII e XIX, como o Romantismo, abrigou tendências diver-
sificadas e teve como um de seus principais iniciadores e expoentes Leopold Von Ranke.
O historicismo constituiu um grande e complexo movimento dentro da história
da historiografia ocidental. Iniciado pela Escola Histórica Alemã de Ranke, e
apresentando alguns precursores sobretudo na passagem do século XVIII para
o XIX, o movimento veio a abrigar tendências relativamente diversificadas,
apesar de uma oposição mais geral contra o Positivismo, que foi no século XIX
outro grande paradigma das ciências humanas (com forte influência sobre a
História). (BARROS, 2010, p. 80)

O historicismo tem suas raízes na apologia romântica ao que é único e particular e na sua
crítica ao universalismo e ao racionalismo puro. Outra forte influência do Romantismo no histo-
ricismo foi a ideia da busca de um espírito do povo (Volksgeist) e do espírito da época (Zeitgeist),
ou por aquilo que cada época e povo tem de único, o seu espírito singular, algo que não se repete e
que se desenvolve ao longo do tempo. Tal influência aparece na frase atribuída a Ranke “[...] todas
as épocas estão próximas de Deus” (WEHLING, 1973, p. 180).
O historicismo não só teve a influência do Romantismo como constituiu-se, ele também, em
um movimento romântico, na medida em que concebia a ida ao passado com base em um forte
tom emocionalista, em busca de valores puros e da oposição ao tom racionalista que se manifestava
nas décadas iniciais do século XIX.
Entendamos por Historicismo, de modo genérico, o movimento romântico, parti-
cularista e evolucionista que abarca quase todas as formas de expressão científica
do século XIX, presente inclusive em pensamentos antagônicos da segunda me-
tade do século. Romântico, em suas origens, num duplo sentido: a ida ao passado
como fator emocionalista (os valores puros, as grandes obras e a sensibilidade
criadora estão em qualquer ponto do passado) e a oposição ao racionalismo filo-
sófico, com suas leis e seu direito natural. (WEHLING, 1973, p. 179)
Objetividade x subjetividade no estudo da História 83

Ao lado da busca pelo singular, pelo único de cada época, influência do pensamento romântico,
o historicismo teve também a influência do pensamento evolucionista1, sobretudo do debate trazido à
baila pelo evolucionismo sobre o tema do progresso e seu desenvolvimento processual, gradual.
Da forma como foi apropriado pelo historicismo, o evolucionismo não se manifestava como
um transformismo desprovido de sentido, mas como algo que se percebe ao longo do tempo, um
processo destituído de determinismos, mas que também não se dá ao acaso, e cuja dinâmica pode
ser verificada, de forma científica, por meio da análise criteriosa e objetiva das fontes primárias.
A fidelidade aos valores românticos e o trato empírico com as fontes “salvou” o historicismo do
vício evolucionista: o determinismo, tão presente nas filosofias da História do século XIX, abrindo
caminho para a sistematização da História ciência cujo principal idealizador e organizador foi o
próprio Ranke (WEHLING, 1973).
É importante destacar que a tentativa de desassociar o estudo da História de uma filosofia da
História, bem como o ideal de que o passado deveria falar por si, por meio das fontes, não impedi-
ram que se desenvolvesse uma certa interpretação acerca da História em Ranke. Tiveram influên-
cias na forma como concebia seu estudo o conceito de Zeitgeist, o papel do Estado e da religião.
No entanto, nenhuma dessas influências constituiu-se numa base metafísica para a
História, no sentido de uma busca do seu sentido: a História, em sua lógica própria, constituiria,
ela por si só, seu sentido e sua filosofia: “A História compreensiva é, na minha opinião a verda-
deira filosofia da História”, chegando o historiador mesmo a afirmar que “a História não é a ne-
gação, mas a realização da Filosofia” (RANKE, 1954, p. 285; 304 apud WEHLING, 1973, p. 184).
Ou seja, mais do que submeter a História a uma Filosofia, a própria Filosofia tem um processo
de desenvolvimento que é, ele também, histórico.
Falamos do trato empírico com as fontes primárias como fator preponderante na sistemati-
zação da História-ciência. É importante ressaltar que na época em que Ranke começou a publicar
seus primeiros estudos, décadas de 1820 e 1830, não eram comuns os textos históricos integrarem
às suas obras as fontes primárias por eles consultadas (WEHLING, 1973, p. 181). Aliás, embora
desde os eruditos renascentistas já existisse uma alusão a fontes primárias, é a Ranke e aos pesqui-
sadores por ele influenciados que devemos uma melhor diferenciação entre fonte primária e fonte
secundária, bem como a necessária crítica, tanto interna quanto externa dos documentos de época
e quanto da obra de outros historiadores.
O elemento central da compreensão de conhecimento histórico como científico em Ranke,
portanto, gira em torno das fontes primárias, sua identificação e sua diferenciação para com outros

1 Valemo-nos do entendimento de Abbagnano (2007, p. 395-396) acerca do termo e do conceito que ele encerra: “Por
esse termo não se deve entender a teoria geral da evolução, como quadro fundamental das pesquisas biológicas [...] mas
o conjunto de doutrinas filosóficas que veem na evolução a característica fundamental de todos tipos ou formas de rea-
lidade e, por isso, o princípio adequado para explicar a realidade em seu conjunto. Em outros termos, o Evolucionismo é
uma doutrina metafísica que se refere à realidade como um todo e que, embora se valha das hipóteses e dos resultados
da teoria biológica da evolução, sua tese vai muito além de tudo o que qualquer possível teoria científica possa legitima-
mente atestar. Nesse sentido, o Evolucionismo foi assumido como esquema fundamental de muitas metafísicas, tanto
materialistas quanto espiritualistas. A característica fundamental que essas metafísicas distinguem na evolução é o
progresso. Para elas, evolução significa essencialmente progresso.”
84 Introdução aos estudos históricos

tipos de fontes. Feita essa primeira clivagem, desenvolvia seu trabalho com base em um rigoroso
método cujas principais etapas são assim sintetizadas:
Em Ranke, a preocupação maior foi a separação das fontes primárias, daquelas
narrativas de segunda mão, e dos historiadores. Como estas duas últimas esta-
vam geralmente justapostas às primeiras, com séculos de interpolações e adi-
ções, seu trabalho seguia diversas etapas; a) a identificação das fontes primárias;
b) a rejeição de qualquer interpolação; c) a crítica das fontes secundárias, procu-
rando desdobrá-las e encontrar nelas as informações primárias; d) a crítica dos
historiadores, procurando situá-los em sua época, e não lhes dando, como até
então, um ilimitado crédito de confiança. Seguiu, entretanto, com muito mais
gôsto as três primeiras etapas, já que ali estava a criação histórica. (WEHLING,
1973, p. 183)

A lógica que pretensamente norteava esse rigoroso trabalho no trato empírico com as fon-
tes primárias era a busca pela objetividade da forma tal qual era concebida pelas ciências exatas e
naturais e que seria apropriada pelo Positivismo e pela Escola Metódica francesa. Mas, teria Ranke
atingido o ideal de objetividade que ele mesmo propunha em seus estudos? A objetividade, tal qual
concebida por ele, é algo possível de ser atingido no estudo acadêmico de História ou de qualquer
outra ciência humana?
Primeiramente, é importante tentar definirmos os termos objeto e objetividade. O termo
objeto é de origem latina: vem de objectus, que, por sua vez, deriva do verbo objicere (atirar, lançar
para frente). Passou a ser usado em Filosofia ainda no final da Idade Média pelos filósofos esco-
lásticos. Desde então, o termo tem sido alvo de intensos debates entre filósofos, epistemólogos e
teóricos da ciência. Em linhas gerais, podemos definir objeto como o “termo de qualquer operação,
ativa, passiva, prática, cognoscitiva ou linguística” (ABBAGNANO, 2007, p. 723).
Ou seja, objeto é uma realidade externa que se pode apreender, seja pelos sentidos seja pelo
intelecto. Aquele que apreende e percebe o objeto como tal é o sujeito, o elemento ativo do processo
do conhecimento – aquele que conhece e que é oposto ao objeto; enquanto que o objeto seria o ele-
mento passivo desse mesmo processo – aquele que pode ser conhecido (JAPIASSÚ; MARCONDES,
2001). Do ponto de vista epistemológico, é o ato de conhecer que institui algo como objeto frente a
um sujeito; embora as coisas existam por si só, enquanto entes (tudo aquilo acerca do que falamos,
tudo o que é) só passam a ter uma existência objetiva, isto é, como objetos, a partir do momento em
que o sujeito assim as configura numa relação de conhecimento.
Agora que tratamos um pouco sobre um conceito geral acerca de objeto, voltemo-nos para a
objetividade. Segundo Japiassú e Marcondes (2001), objetividade é a característica de tudo aquilo
que existe além do nosso pensamento, algo que tem uma existência em si mesmo, independente
do sujeito, ou, ainda, o oposto de subjetividade. Em Teoria do Conhecimento, a objetividade é a
base do objetivismo, doutrina segundo a qual se busca ter acesso à realidade tal qual ela é, objetiva,
diretamente, pela empiria (experiência sensível), sem a interferência do sujeito; um tipo de co-
nhecimento objetivo seria, portanto, um conhecimento pautado unicamente pela busca do acesso
direto ao objeto.
Qual o sentido que esses termos adquirem quando pensamos na busca da objetividade em
História da forma como Ranke a compreendia? Para o historiador alemão, a objetividade em História
Objetividade x subjetividade no estudo da História 85

seria atingida mediante a atitude de isenção absoluta e não interferência do historiador (sujeito) no
seu objeto de estudo: o passado, manifesto empiricamente por meio das fontes primárias. A obje-
tividade almejada seria possível na medida em que o historiador interferisse o mínimo possível no
objeto, sendo apenas um selecionador de fontes, um organizador destas em uma dada cronologia,
apresentando aquilo que elas trazem por meio de um texto coerente e bem construído.
Tal concepção de objetividade, que se manifestava também em outras ciências sociais as
quais, por influência do Positivismo, almejavam o mesmo caráter de verdade atribuído às ciências
físico-naturais e exatas, apresentava sérias limitações – tanto para as ciências sociais quanto para a
História – e, ao longo do século XX, foi apontada por epistemólogos como inatingível até mesmo
entre as ciências naturais e exatas.
Em relação à História e à forma como era concebida por Ranke, a pretensa objetividade se
mostrava problemática (WEHLING, 1973). A própria decisão de estudar esse e não aquele objeto;
a atitude em selecionar tais fontes deixando de lado outras, e a própria forma como essas fontes
são analisadas pelos historiadores constituem elementos de subjetividade, isto é, da influência do
sujeito sobre o objeto. A História não se torna a narrativa do que aconteceu e que se manifesta nas
fontes, a História se torna um constructo do que o historiador interpretou baseado nas fontes que
ele selecionou.
Ainda, segundo Wehling (1973), há outros elementos que inviabilizariam, já no século XIX,
o ideal de objetividade em pesquisa histórica (um ideal subjetivo, por assim dizer) tal qual conce-
bida por Ranke: a impossibilidade da isenção total do historiador, por não reconhecer que o que
buscava era uma dada intepretação de História e não a História propriamente dita (até porque essa
História é impossível de ser escrita); por ele mesmo e alguns de seus discípulos terem se envolvido
com as instituições da política prussiana (alemã); por só considerar fontes oficiais e limitar sua
escrita a uma história política, ignorando aspectos econômicos e culturais; e, ainda, por ignorar o
indivíduo no processo histórico, estabelecendo o primado do macro sobre o micro. Ou seja, essa
pretensa objetividade se mostraria inviável:
a) Pela impossibilidade de isenção absoluta do historiador — embora reconhe-
cesse este fato. Esta limitação traduziu-se de duas maneiras:
1. Pela identificação e estudo de uma certa História, não da História, ou seja, de
um modo próprio de colocar-se sobre o passado, peculiar à sua cultura [...].
2. Pelos esforços que fez para não se engajar em sua própria época ou deixar-se
influenciar em seu trabalho, no que não foi de todo bem-sucedido. De qual-
quer modo sofreu as críticas de discípulos seus, envolvidos na política alemã,
como Droysen, Sybel e Treitschke.
b) Pela unilateralidade do seu método – embora a crítica às fontes primárias fos-
se tecnicamente perfeita, falhou muitas vezes ao aceitar a veracidade de certos
documentos, como no caso de alguns relatórios consulares venezianos a pro-
pósito das guerras da Itália; igualmente, o uso quase exclusivo de documentos
oficiais tornou sua História parcial, não no sentido de que lhe faltasse espírito
crítico para perceber os exageros partidaristas dos documentos, mas de que
tomava conhecimento das transformações ocorridas em determinada situação
apenas na medida em que as esferas oficiais o soubessem, e por sua ótica; como
todo historicista de valor, Ranke estabelecia o primado da situação histórica
sobre o indivíduo (e neste ponto seu maior discípulo foi Bismarck), cabendo
86 Introdução aos estudos históricos

portanto ao governo conhecer e comportar-se de acordo com a tendência – em


consequência, limitava seu campo de pesquisas ao nível das macrodecisões,
como diríamos hoje, sem descer às suas origens; finalmente, é preciso relembrar
que sua História é apenas política, predominando o estudo das relações interna-
cionais. As preocupações sociais e econômicas são estranhas à obra de Ranke,
e mesmo a História cultural, embora ainda vivesse quando, por sua influência,
surgiram as obras mestras da historiografia econômica e cultural, de Schmoeller
e Burckhardt. (WEHLING, 1973, p. 186-187)

O objetivismo radical, da forma pela qual era concebido por Ranke, não é possível de ser
atingido, nem na época dele nem na nossa. Mas isso não significa que o estudo da História não pos-
sa ser permeado pela busca da objetividade: o conceito dessa objetividade, assim como o papel da
subjetividade na pesquisa histórica, é que tem passado por alterações, sobretudo, com os estudos
desenvolvidos pelos historiadores ligados à tradição dos Annales, como veremos a seguir.

6.2 Os Annales e as considerações acerca da subjetividade no


estudo da História
Vídeo Eu gostaria de apagar, de alguma forma, o meu eu e deixar somente as coisas
falarem e fazer aparecer as forças poderosas que, surgidas e intensificadas, diri-
giram-se uma contra a outra em uma luta sangrenta e terrível, mas que traziam
em si a solução dos problemas mais essenciais do mundo europeu. (RANKE,
2002, t. II, p. 3 apud LORIGA, 2012, p. 249)

“Apagar o eu” e deixar as “coisas falarem”. Eis os pedaços de uma frase que
atesta de forma clara a intenção do historiador Leopold Von Ranke em relação ao estudo de História
da forma como ele concebia: o historiador deveria interferir o mínimo possível naquilo que escrevia
para que as fontes pudessem falar por elas mesmas.
Essa busca de “arrefecimento” do “Eu” manifesta, no cerne da busca da objetividade tal qual
concebida por Ranke, a tentativa de ruptura entre o presente e o passado, segundo Loriga (2012),
como se, para que uma época pudesse vir à tona (o passado) a outra (o presente) tivesse que desapa-
recer. E quem representa o presente? O historiador. Ele teria que desaparecer do seu próprio estudo.
Na ciência histórica, da forma como inaugurada por Ranke, o passado não pode ser as-
similado pelo presente e nem projetar nada para o futuro. Ele deve apenas ser mostrado pelo
historiador, que não deve manifestar, em seu estudo, sua própria época. Só assim, liberta da
subjetividade do historiador, a História poderia se constituir com um saber seguro, sólido e con-
sistente. Portanto, são proibidas as analogias, as aproximações para com sua própria época, sob
pena de inviabilizar o seu ofício:
Acontece frequentemente que analogias fugazes induzam ao erro o historiador
que tem a intenção de continuar em contato com o presente, bem como o polí-
tico que insiste em se prender ao passado. A musa da história tem o horizonte
mais vasto e toda a aptidão em afirmar e em manter sua opinião, mas manifesta,
no seu trabalho, uma consciência cuidadosa ao extremo, e ela parece ciumenta
de sua missão. Introduzir, no trabalho histórico, preocupações que pertencem
ao presente tem, geralmente, como consequência entravar o livre desenvolvi-
mento desse trabalho. (RANKE, 2002, t. I, p. XI apud LORIGA, 2012, p. 250)
Objetividade x subjetividade no estudo da História 87

O estudo científico do passado implica numa renúncia ao presente. Essa ideia, segundo
Loriga (2012), propagou-se na Alemanha e intensificou-se na França dos anos de 1870, nos estu-
dos da Escola Metódica, a qual, como já vimos anteriormente, teve em Fustel de Coulanges um de
seus principais representantes.
A objetividade tal qual concebida pelo Historicismo alemão e acentuada pela Escola Metódica
francesa seduziu gerações de historiadores. Mas também foi alvo constante, desde fins do século
XIX, de ataques oriundos de posturas céticas, segundo as quais o olhar do historiador metamorfo-
seia o passado por ser, justamente, um olhar advindo do presente (LORIGA, 2012).
Esse foi o caso do medievalista belga Henri Pirenne (1897, p. 51-51 apud LORIGA, 2012, p. 251),
ao afirmar que “cada época refaz sua história”. Seu ponto de vista, diferentemente de outras ciências, não
possui um lugar exato, determinado.
[...] qualquer coisa que ele [o historiador] faça, o espírito público do seu tempo
reage sobre ele. […] Sua maneira de considerar a história é imposta ao historia-
dor pelo seu tempo. O ponto de vista no qual se situa não é determinado, como
nas ciências, pelo estado do desenvolvimento dos conhecimentos, mas pelo
estado de civilização do público ao qual se dirige e ao qual ele mesmo pertence.
[...] Cada época refaz sua história, transpõe-na, de certa forma, em um tom
que lhe é apropriado. [...] O historiador é dominado, sem perceber, pelas ideias
religiosas, filosóficas, políticas que circulam ao seu redor. (PIRENNE, 1897,
p. 51-52 apud LORIGA, 2012, p. 251)

O historiador é dominado pelo que existe a sua volta no momento de seu estudo. Não conse-
gue simplesmente “desaparecer” como sujeito para que seu objeto, o passado, venha à tona. O indi-
víduo pertence a sua época: é prisioneiro de seu tempo e, portanto, como pode “escapar” dele para
se lançar a uma outra época? Por isso, não só o objetivismo “puro” tal qual idealizado por Ranke
e pelos positivistas franceses é inconcebível, como também a neutralidade: a escrita da História
carrega os interesses políticos e econômicos, assim como a inserção social do historiador em sua
própria época (LORIGA, 2012).
O historiador não precisa – e não consegue – desaparecer simplesmente porque presente e pas-
sado não se anulam, não estão estanques um em relação ao outro; a existência de um “não” impede
a existência do outro: eles coexistem. Um e outro estão em contínua conexão, e aquilo que os parece
afastar – a distância temporal entre eles – torna-se relativa a partir do momento em que o historiador,
mediante o seu estudo, intensifica essa conexão, tornando-a mais próxima.
E isso é possível se pensarmos em uma outra parte da fala do historiador belga: o ponto de
vista do historiador não possui um lugar exato, determinado. Nem o historiador observa o fenôme-
no de sua pesquisa de um lugar fixo (pois sua própria época está em constante movimento), assim
como o passado também não constituiu um terreno fixo, mas, antes, uma terra movediça – além
de estrangeira, para relembrarmos Lowenthal (1998).
Assim, o lugar do seu objeto também não é estanque. Estando em contínua conexão, tem-
poralidades distintas se relacionam, afetam-se e se influenciam. Essa constatação apresentou-se de
forma clara entre os estudiosos da primeira geração dos Annales, notadamente, em Marc Bloch.
88 Introdução aos estudos históricos

Segundo Bloch (2002), como já afirmado anteriormente, a História não é a ciência dos acon-
tecimentos do passado: é a dos homens no tempo, é a das sociedades humanas no tempo. E como
é uma ciência que aborda fenômenos humanos, sua forma de operacionalização é diferente das
demais, daquelas que operam com dados colhidos em experimentações feitas em laboratório e
expressos em quantificações matemáticas, por exemplo.
Destaca o historiador francês o quão a experiência humana é complexa, por isso não pode
fresador: profis- ser reduzida a dados, não pode ser calculada; e usa o exemplo do fresador e o luthier para enfatizar
sional que trabalha
com peças para essa distinção. Enquanto o fresador se vale de instrumentos de precisão, o historiador, tal qual o
máquinas.
luthier, precisa aguçar, apurar sua sensibilidade para realizar seu trabalho de compreensão daquilo
luthier: profissional
que cria e conserta que é humano, no tempo:
instrumentos de
cordas.
Onde calcular é impossível, impõe-se sugerir. Entre a expressão das realida-
des do mundo físico e a das realidades do espírito humano, o contraste é, em
suma, o mesmo que entre a tarefa do operário fresador e a do luthier: ambos
trabalham no milímetro; mas o fresador usa instrumentos mecânicos de preci-
são; o luthier guia-se, antes de tudo, pela sensibilidade do ouvido e dos dedos.
(BLOCH, 2002, p. 55)

Esse tempo é, ao mesmo tempo, contínuo e em perpétua mudança. É o tempo da duração


no qual o presente não passa de um ponto minúsculo, e seria mais adequado se referir a ele como
“passado recente” (BLOCH, 2002, p. 60). Condenado a um devir perpétuo, o presente se metamor-
foseia, a cada instante, em passado, de modo que pensar a História como ciência do passado bus-
cando nessa afirmação a possibilidade de sua objetividade – a suposta distância entre o historiador
e seu objeto – é algo que não se sustenta.
Sendo o momento atual, o presente, uma perpétua evanescência, um constante vir a ser
passado, um constante vir a ser futuro, como determinar a maior ou menor proximidade do histo-
riador em relação ao seu objeto de estudo tendo como parâmetro localizações meramente crono-
lógicas? Bloch (2002) critica os que defendiam que quanto maior a distância temporal (no sentido
de cronológica) entre o historiador e seu objeto de estudo, maior a possibilidade de objetividade.
De acordo com Bloch (2002), tal noção de objetividade, amparada na distância entre o his-
toriador e seu objeto, também é passível de contestação, uma vez que o que afasta ou aproxima
o historiador de seu objeto não é a menor ou maior distância ou proximidade cronológica, mas
afetiva. Aproxima-se de algo que ressoa nela, e essa aproximação, portanto, é subjetiva, indepen-
dentemente do ponto cronológico em que, no contínuo da duração, esse objeto se situa. O que está
em jogo é sempre a ressonância sentimental:
Alguns, estimando que os fatos mais próximos a nós são, por isso mesmo, rebel-
des a qualquer estudo verdadeiramente sereno, desejavam simplesmente poupar
à casta Clio contatos demasiado ardentes. [Assim pensava, imagino, meu velho
professor. Isso é, certamente, atribuir-nos um fraco domínio dos nervos. É tam-
bém esquecer que, a partir do momento em que entram em jogo as ressonâncias
sentimentais, o limite entre o atual e o inatual está longe de se ajustar necessaria-
mente pela média matemática de um intervalo de tempo.] (BLOCH, 2002, p. 61)

Mas, se a proximidade com o objeto é sentimental (e, portanto, subjetiva) e se a objetividade


tal qual apregoavam os adeptos do historicismo e da Escola Metódica francesa não é atingível nem
Objetividade x subjetividade no estudo da História 89

tão pouco desejável, qual a objetividade possível? Entre a subjetividade e a objetividade, o que é
possível ao estudo histórico, sem cair no relativismo absoluto, o que o inviabilizaria enquanto dis-
ciplina acadêmica, nem no objetivismo puro? Ou, ainda, para nos valermos das palavras de Loriga
(2012, p. 253): “É possível evitar a alternativa entre objetivismo puro e subjetivismo radical?”.
Segundo apontamentos da historiadora francesa, o “Eu” do historiador não é, necessariamen-
te, uma substância prévia, mas uma aspiração, um lugar de trabalho pelo qual é possível desenvolver
a “boa subjetividade”. Ela consiste em reconhecer que durante seu estudo, fala de um “terceiro lugar”,
que não é nem o presente, nem o passado, mas uma experiência de contemporaneidade, inacabável
na busca de redução da alteridade, desse considerar-se um outro em relação àquilo que se estuda:
[...] poderíamos dizer que o eu do historiador não é uma substância, dada a
priori, mas uma aspiração ou mesmo um lugar de trabalho. Para desenvolver
uma “boa subjetividade”, o historiador deve renunciar aos sonhos de ressurrei-
ção do passado, aceitar que vive em um terceiro lugar, o qual não coincide nem
com o presente, nem com o passado, e reconhecer que a contemporaneidade
não é uma condição, um estado, mas uma experiência, inacabada e inacabável,
de redução da alteridade. (LORIGA, 2012, p. 257)

Considerações finais
Abordamos ao longo do capítulo a delicada questão da objetividade versus subjetividade na
pesquisa histórica, problematizando quais os limites e as possiblidades da objetividade. Para isso,
partimos da forma como a concebia o precursor do historicismo alemão, Leopold Von Ranke,
levantando questões relativas à isenção e à neutralidade da figura do historiador na escrita do
texto como tentativa de fazer desaparecer sua própria época e fazer “falar” o passado e o quão esse
propósito não é possível de ser atingido, nem na época de Ranke e nem pelos historiadores atuais.
Abordamos a perspectiva da relação de inteligibilidade entre passado e presente que tem por in-
termédio o historiador e que ele parte de uma perspectiva subjetiva a partir do momento em que
define como objeto de estudo algo com o qual tem alguma ressonância sentimental. Finalizamos
com as colocações da historiadora francesa Sabina Loriga sobre o “Eu” do historiador, destacando
que este “Eu” não se trata de uma substância, mas de um lugar, que constitui, de fato, um terceiro
lugar, entre o presente e o passado, uma experiência de contemporaneidade sempre inacabada no
que se refere à busca da alteridade.

Ampliando seus conhecimentos


• BARROS, J. D. Teoria da História. v. IV. Acordes historiográficos: uma nova proposta para
a teoria da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
O professor José D’Assunção Barros, que é historiador e musicólogo, reúne nesta obra seus
dois grandes talentos e presenteia o leitor com uma análise apurada sobre alguns dos nomes
que influenciaram a construção do entendimento acerca da História entre os séculos XIX
e XX: Ranke, Droysen, Marx, Weber, Benjamin, Ricoeur e Koselleck. Realizando aquilo
que ele mesmo denomina como uma análise “acórdica” da historiografia, o autor se vale do
90 Introdução aos estudos históricos

formato do ensaio para abordar, por um eixo central – o tema da objetividade versus subje-
tividade na escrita histórica –, questões como o relativismo, o papel da figura do historiador
no texto e da objetividade, destacando o quão determinados aspectos da obra dos autores
por ele explorados no livro fogem dos paradigmas aos quais são comumente associados.

Atividades
1. Defina o conceito de objetividade em História da forma como era entendida pelo historiador
alemão Leopold Von Ranke e aponte quais os limites dessa noção de objetividade, tanto na
época de Ranke quanto na nossa.

2. Segundo a perspectiva de Bloch (2002), o distanciamento temporal entre o historiador e seu


elemento de estudo é garantia de objetividade na pesquisa? Justifique.

3. Em sua opinião, é possível – ou mesmo desejável – fazer desaparecer o “Eu” do historiador


na pesquisa e na escrita histórica? Explique.

Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BARROS, J. D. A Escola dos Annales e a crítica ao historicismo e ao positivismo. Revista Territórios e Fronteiras,
Cuiabá, v. 3, n. 1, p. 75-102, jan./jun. 2010.

BARROS, J. D. Teoria da História. v. IV. Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da histó-
ria. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.

JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.

LORIGA, S. O eu do historiador. História da historiografia, Ouro Preto (MG), n. 10, p. 247-259, dez. 2012.
Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/451/322. Acesso em: 2 fev. 2019.

LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Tradução de Lúcia Haddad. Revisão técnica de Marina
Maluf. Proj. História, São Paulo, v. 17, 1998. p. 63-201. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/
view/11110/8154. Acesso em: 2 fev. 2019.

WEHLING, A. Em torno de Ranke: a questão da objetividade histórica. Revista de História, São Paulo, v. 46,
n. 93, p. 177-200. 1973. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/131940. Acesso
em: 2 fev. 2019.
7
História e memória

Como estranhas lembranças de outras vidas, que outrora viveram, num


estranho mundo, quantas coisas perdidas e esquecidas, no teu baú de
espantos... Bem no fundo.
(QUINTANA, 1985, p. 85)

Em que consiste a memória? É constituída somente de elementos individuais e subjetivos –


nossas lembranças – ou nela interferem também fatores coletivos, sociais e institucionais? Quais
relações podem ser estabelecidas entre memória e História?
Neste capítulo conceituaremos memória, diferenciando-a de História, delimitando suas
fronteiras e suas aproximações. Também iremos diferenciar memória individual e memória co-
letiva, procurando compreender a influência da segunda na constituição da primeira e como se
afetam mutuamente.
Na sequência, você será levado a compreender o que são memórias oficiais e instituciona-
lizadas e de que maneira o processo de institucionalização de determinadas memórias, tornadas
oficiais, abafa ou mesmo oprime outras formas de memória, que ficam à margem. Finalmente,
conheceremos as possibilidades do uso da memória como fonte histórica.

7.1 Memória individual e memória coletiva


Vídeo
Vimos anteriormente que a memória é uma das formas por meio das quais as
pessoas se relacionam com o passado. Vimos também que as lembranças, elemen-
tos fundamentais na constituição das nossas memórias, estão tão intrinsicamente
arraigadas à constituição do nosso ser ao ponto do escritor argentino Jorge Luis
Borges (1969) ter afirmado que “somos nossa memória”.
Mas sendo a memória algo tão único, é mesmo um elemento somente subjetivo, individual?
Algo próprio de cada um e diferente em cada um? Constituído com base nas experiências de cada
pessoa e a forma como operacionalizou essas experiências, transformando-as em lembranças? Ou
nossas memórias também têm uma conotação social, coletiva, de modo que lembramos aquilo que
nos é permitido lembrar de acordo com as referências de cada época e grupo em que vivemos? De
que forma memória individual e coletiva se interpenetram e se influenciam? Passemos a partir de
agora a abordar essas questões de forma mais detalhada.
Na Antiguidade Grega, Mnemosine era a personificação mítica da memória. Segundo a mito-
logia, era o nome de uma titânide, filha de Urano (Céu) e Gaia (Terra). É também considerada a mãe
das nove musas (relacionadas à inspiração artística e científica) nascidas de sua união com o deus
Zeus. Etimologicamente, o termo memória tem origem latina e está relacionado a memor: "aquele que
se lembra". Logo, memória estaria ligada, inicialmente, às faculdades psíquicas e cognitivas.
92 Introdução aos estudos históricos

De acordo com Le Goff (1990, p. 423), “A memória, como propriedade de conservar certas
informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”.
Considerada em sua dimensão unicamente subjetiva, era compreendida como a ferramen-
ta psíquica pela qual cada indivíduo seria capaz de registrar, filtrar, selecionar, reter, preservar e
evocar experiências, imagens, pessoas, situações reais ou imaginárias, fato que, de alguma forma,
tivesse vivenciado ao longo da sua existência. Segundo essa concepção, a memória seria constituída
de dois elementos distintos: capacidade de preservar e capacidade de evocar.
A Memória parece ser constituída por duas condições ou momentos distintos: 1"
conservação ou persistência de conhecimentos passados que por serem passados,
não estão mais à vista: é a retentiva; 2" possibilidade de evocar, quando necessário,
o conhecimento passado e de torná-lo atual ou presente: é propriamente a recor-
dação. (ABAGNANO, 2007, p. 657)

Entendida como um conjunto de funções psíquicas relacionadas ao que o homem pode reter
e evocar em sua mente, até o início do século XX a memória era objeto de estudo, sobretudo, da
Psicologia e da Psicanálise. Mas em 1925 as ideias do sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-
1945) vieram ampliar essa perspectiva. Em suas obras Os quadros sociais da memória (1925) e
Memória coletiva (publicada postumamente pela primeira vez em 19501), afirmava que a memória
precisa ser compreendida também como um fenômeno social, pois, em seu processo de constitui-
ção, influem elementos coletivos.
Halbwachs criou a categoria de “memória coletiva”, por intermédio da qual pos-
tula que o fenômeno de recordação e localização das lembranças não pode ser
efetivamente analisado se não for levado em consideração os contextos sociais
que atuam como base para o trabalho de reconstrução da memória. É, portanto,
mediante a categoria de “memória coletiva” de Halbwachs que a memória deixa
de ter apenas a dimensão individual, tendo em vista que as memórias de um
sujeito nunca são apenas suas ao passo que nenhuma lembrança pode coexistir
isolada de um grupo social. (SILVA, 2016, p. 247)

Segundo Halbwachs (1990), as memórias de uma pessoa, relativas ao que ela retém ou evo-
ca, não são somente suas, não estão isoladas do grupo em que estão inseridas: os contextos sociais
a que pertencem atuam como base no trabalho de reconstrução que é realizado pela memória.
Assim, podemos afirmar que existem dois tipos de memória, segundo o sociólogo francês: uma in-
dividual e outra social, mas ambas são construídas socialmente, pois mesmo a memória individual
se edifica a partir de pontos de referência advindos do meio social aos quais o indivíduo recorre
não só na evocação como também na construção de suas lembranças.
Até mesmo os símbolos, palavras e ideias que um indivíduo usa na composição de suas
lembranças são instrumentos que foram criados pelo contexto social do qual ele é parte, conforme
destaca: "Haveria então memórias individuais e, se o quisermos, memórias coletivas. Em outros
termos, o indivíduo participaria de duas espécies de memória” (HALBWACHS, 1990, p. 53).

1 Maurice Halbwachs foi morto em 1945 em Buchenwald, um campo de concentração nazista na Alemanha.
História e memória 93

As lembranças, as quais constituem a memória pessoal, dependem da inserção do indivíduo


em uma comunidade afetiva, do convívio desse com outros indivíduos, pertencentes aos vários
grupos com os quais interage no tempo e no espaço:
Desse modo, a constituição da memória de um indivíduo resulta da combina-
ção das memórias dos diferentes grupos dos quais está inserido e consequen-
temente é influenciado por eles, como por exemplo, a família, a escola, igreja,
grupo de amigos ou no ambiente de trabalho. Nessa ótica, o indivíduo participa
de dois tipos de memória, a individual e a coletiva. (SILVA, 2016, p. 248)

A memória individual, portanto, é construída com base em referenciais que são coletivos: o
indivíduo pode se reportar às lembranças do grupo para sanar as lacunas da sua memória pessoal,
sem, contudo, deixar de diferenciar o que é próprio da sua caminhada do que é externo a ela, o que é
relativo ao grupo. Por outro lado, o inverso também se aplica: da interação de experiências e vivências
individuais e coletivas, e das lembranças a elas associadas, é que se solidificam os laços que formam
um grupo e, entre esses laços, a memória coletiva constitui um dos elementos mais expressivos.
Se essas duas memórias se penetram frequentemente: em particular se a memória
individual pode, para confirmar algumas de suas lembranças [...] apoiar-se sobre
a memória coletiva, deslocar-se nela, confundir-se momentaneamente com ela,
nem por isso deixa de seguir seu próprio caminho e todo esse porte exterior é
assimilado e incorporado progressivamente à sua substância. A memória cole-
tiva, por outro, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas.
(HALBWACHS, 1990, p. 53)

Figura 1 – Memória individual

SIphotography/iStock.com

Nossa memória individual é construída com o que retemos e evocamos de nossas


experiências. Como vivemos em sociedade, há na memória individual elementos
relativos a experiências, saberes, acontecimentos, ideias e símbolos coletivos.

Mesmo que somente um indivíduo tenha a lembrança de acontecimentos que só ele viven-
ciou, as lembranças acerca desses acontecimentos continuam tendo uma conotação coletiva e elas
94 Introdução aos estudos históricos

podem ser trazidas à tona por outros que não os vivenciaram, em virtude dos aspectos coletivos
que atuam na construção dessas lembranças (HALBWACHS, 1990).
Nossa memória individual pode ser entendida, também, como uma espécie de ponto de
vista, uma referência sobre a memória coletiva. Ela é dinâmica, pois esse ponto de vista sofre alte-
rações de acordo com a posição que ocupamos e com os deslocamentos que realizamos no interior
do grupo a que pertencemos, além das relações que travamos com outros grupos. Há ainda que
se destacar, que, embora existam acontecimentos que foram vivenciados coletivamente e que exis-
tam elementos sociais, coletivos na construção de nossas memórias individuais, cada indivíduo
reelabora esses acontecimentos e forma suas memórias individuais acerca deles pela sua própria
experiência e inserção nos grupos em que transita (HALBWACHS, 1990).
A memória individual é dinâmica, seletiva, e está em contínua relação com a memória cole-
tiva, cujos aspectos nela intervém da mesma forma que intervém nela. Mas, e a História? Como se
diferenciam e se relacionam memória e história? É o que veremos a seguir.

7.2 História versus memória


Vídeo
Segundo Bosi (1979), Halbwachs já havia realizado uma importante distin-
ção entre memória coletiva e história, as quais, embora se inter-relacionem, não se
confundem. Isso porque, embora a memória seja uma das formas pelas quais as
pessoas acessam o passado, ela não faz, necessariamente, uma ruptura entre passa-
do e presente: na memória, essas relações temporais são fluidas e dependem da for-
ma e do contexto/momento da vida em que o indivíduo acessa determinadas lembranças, de modo
que algumas são atualizadas, reconstituídas, e outras, que por estarem um tempo “esquecidas”, em
outro momento voltam a ser evocadas.
A memória depende também dos laços afetivos que vinculam o indivíduo ao grupo ou aos
grupos com os quais se relaciona, e pressupõe ainda uma espécie de “sacralização do vivido”, no
sentido de que sacraliza, idealiza o que foi vivido, excluindo ou ignorando, muitas vezes, elementos
negativos ou certas experiências das quais o indivíduo prefere não lembrar. A memória, portanto,
é dinâmica, viva e seletiva, tanto a individual, quanto a coletiva.
As considerações postas por Halbwachs instigaram pesquisadores de diferentes ciências so-
ciais – Antropologia, Linguística e Psicologia Social – a investigarem a relação entre a memória e
diferentes fenômenos sociais.
Esses estudos se intensificaram, sobretudo, a partir da década de 1960, crescendo nas duas
décadas seguintes, nas quais historiadores também passaram a considerar a memória social como
passível de ser estudada historicamente, sobretudo, entre aqueles interessados em entender de
que maneira o jogo de lutas pelo poder e as estratégias de controle impostas pelos segmentos do-
minantes intervêm na constituição da memória coletiva, impondo uma determinada memória
e determinando, muitas vezes, o que deve ser socialmente lembrado e o que deve ser esquecido
(LE GOFF, 1990). Os esquecimentos, os “silêncios” e as memórias “marginais” tornavam-se, as-
sim, objetos de investigação histórica.
História e memória 95

Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na


luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esque-
cimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos
que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silên-
cios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória
coletiva. O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os
problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em
retraimento, ora em transbordamento. (LE GOFF, 1990, p. 426)

Segundo o historiador brasileiro Loiva Félix (1998), nas décadas de 1980 e 1990, a crescente
tecnologização e urbanização das sociedades ocidentais, a massificação de padrões de compor-
tamento e da informação, bem como a consequente perda da noção de pertença das pessoas em
relação a um grupo e a um espaço, foram alguns dos fatores que instigaram ainda mais os estudos
históricos sobre o papel da memória social.
Entre as problematizações postas estava a possibilidade do estudo da memória social como
estratégia de resgate da experiência de grupos que estavam em vias de desaparecer ou de minorias
cuja identidade era velada/negada pela memória institucionalizada imposta pela memória insti-
tucionalizada dos governos. Na esteira das pesquisas sobre memória social e história, memória
e experiência, memória e resistência, destacaram-se estudiosos (sociólogos) sobretudo franceses,
entre eles Pierre Nora (1931-); Jacques Le Goff (1924-2014) e Michael Pollak (1948-1992).
Ainda de acordo com Félix (1998), a memória social vem sendo uma das estratégias de ten-
tativa de busca de pertencimento dos indivíduos para com um determinado meio social, um dos
pilares essenciais no processo de resgate ou mesmo de construção de uma determinada identidade
individual em relação à padronização imposta pela mídia ou uma estratégia de afirmação de gru-
pos minoritários dentro de um Estado.
Figura 2 – Urbanização da sociedade

wissanu01/iStock.com

A crescente tecnologização e urbanização das sociedades ocidentais, a massificação de padrões de


comportamento e da informação, têm acentuado a perda da noção de pertença das pessoas em rela-
ção a um grupo e a um espaço. Nesse contexto, a memória social torna-se uma possibilidade de res-
gate ou mesmo de construção de uma determinada identidade individual ou mesmo de afirmação de
grupos minoritários.
96 Introdução aos estudos históricos

Estudiosos de ciências humanas passaram a problematizar de que maneira o avanço da socie-


dade tecnológica isolava e individualizava cada vez mais as pessoas, massificando ideias, diluindo e
anulando identidades, influenciando em seus hábitos de consumo e comportamento e definindo o
que deveriam comprar, sentir, pensar e, sobretudo, esquecer – visto que a sucessão ininterrupta de
dados busca impedir a seleção, a conclusão e a formulação de sínteses por parte das pessoas. Dessa
problematização avançou o interesse pelos estudos acerca da memória social e sobre quais os víncu-
los entre indivíduos e grupos, visando a perceber as permanências como possibilidades de resistência
em um contexto no qual, aparentemente, tudo parecia mudar de forma intensa, veloz e sem controle.
A escala de privatização do homem atual e sua crescente individualização fazem
com que todos os elos de ligação da memória coletiva se rompam e o sentimento
de um imenso vazio acaba por se instalar no centro de nossas existências. Essa
perda de referência com relação a qualquer sentido coletivo, além de deixar de
projetar perspectivas futuras, faz aumentar a sensação de que os vínculos com o
passado estão prestes a se desfazerem definitivamente. (DECCA, 1992, p. 131)

Mas, se por um lado o interesse dos cientistas sociais e, em especial, dos historiadores, volta-
va-se para a memória social como objeto de estudo, buscando perceber, sobretudo, as permanên-
cias em um contexto de mudanças intermitentes e avassaladoras, por outro, existiram críticas, por
parte dos próprios historiadores, aos perigos da historicização da memória.
No bojo desses estudos destacam-se as ponderações do francês Pierre Nora (1993): partindo
de uma diferenciação entre História e memória, em sua obra Les lieux de mémorie (Os lugares da
memória), de 1984, ele adverte para o caráter destrutivo da História – sistematizadora – com rela-
ção à memória coletiva, que é espontânea, dinâmica, autêntica e viva, em constante transformação.
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo
opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e,
nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança
e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, suceptivel de longas latências e de repentinas
revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do
que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido
no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e
mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta
de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbó-
licas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história,
porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico.
A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre
prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como
Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por
natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história,
ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o
universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem,
no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às
relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo.
(NORA, 1993, p. 9)

Na busca desesperada por historicizar a memória, órgãos institucionais definem "lugares da


memória" (NORA, 1993), ou seja, instituições que, acreditando conservar a identidade dos grupos
História e memória 97

por meio da sua legitimação no passado, organizam incessantemente espaços e materiais cuja preo-
cupação é arquivar, referenciar e historicizar toda e qualquer referência ao passado.
Um dos fenômenos que pode explicar esse procedimento é uma certa angústia contempo-
rânea relativa à sensação de que nossos laços com o passado e, com nossas identidades e origens,
estão sendo destituídos pelos avanços tecnológicos. Nessas condições, tudo o que é antigo passa a
ser importante, muitas vezes, somente pelo fato de ser antigo. Porém essa não é uma manifestação
natural e espontânea da memória – como acontece nas sociedades pré-industriais ou em algumas
regiões onde a memória é sinônimo de continuidade do socialmente vivido –, mas uma tentativa
desesperada de resgatar os laços com o passado por meio da edificação de lugares onde a memória
é supostamente “preservada” (NORA, 1993).
Sem se proceder a uma crítica científica desses materiais, vai se formando uma memória
forçada e mesmo forjada em cima de uma necessidade que faz parte do presente: a identificação
das comunidades e a sua diferenciação temporal e espacial umas diante das outras.
Em uma crítica avassaladora, Pierre Nora aponta que a principal culpada por esse processo é
a própria História. Ao mesmo tempo em que destruiu as bases coletivas da memória espontânea ao
submetê-la a um criticismo destruidor, a sociedade histórica começa a produzir deliberadamente
lugares da memória, na iminência de uma perda definitiva do passado:
No coração da história trabalha um criticismo destrutor de memória espontâ-
nea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é des-
trui-la e a repelir. A história é a desligitimação do passado vivido. No horizonte
das sociedades de história, nos limites de um mundo completamente historici-
zado, haveria dessacralização última e definitiva. O movimento da história, a
ambição histórica não são a exaltação do que verdadeiramente aconteceu, mas
sua anulação. (NORA, 1993, p. 9)

Ao expor as diferenças entre a memória e a história e mostrar o esfacelamento da memória es-


pontânea em decorrência da aceleração da história e para a busca desenfreada, operada por corpos in-
telectuais ou não, pela sua identidade por meio da "restituição" do seu passado em lugares da memória,
Nora (1993) chama atenção de nós, historiadores, para os perigos que existem de ambos os lados.
Do lado da memória, perde-se o caráter espontâneo e voluntário que a caracteriza como
experiência coletiva vivida pelos grupos no tempo: ao submetê-la à intencionalidade de historici-
zá-la, ela deixa de ser memória. De outro modo, a História, ao ter como preocupação a mera pre-
servação do passado, perde a sua especificidade que seria a de, por meio da interpretação crítica,
reescrevê-lo incessantemente (DECCA, 1992).
Dessa forma, cria-se um elemento híbrido: a memória histórica. Segundo Edgar de Decca
(1992), comentando Pierre Nora, tentativas de elaboração de memórias históricas não são recentes:
elas apareceram ainda no século XIX quando os órgãos políticos europeus, na tentativa de cons-
truir uma genealogia nacional, elegeram determinados símbolos como constitutivos da memória
oficial, relegando outros à segregação e ao esquecimento. Fato semelhante se deu no Brasil quando
a Proclamação da República o Estado Positivista também construiu uma memória em torno de si
excluindo da cidadania a maioria dos brasileiros (CARVALHO, 1990).
98 Introdução aos estudos históricos

Porém, o inverso da memória histórica como genealogia da nação, ou seja, como memória
oficial, também é capcioso: a transformação de todo e qualquer elemento que possa satisfazer a
angústia contemporânea ocasionada pelo sentimento de não pertencimento levará à eleição de
qualquer acontecimento do passado em memória e, assim, possível de ser sacralizado, não discu-
tido – simplesmente aceito.
Para que não incorramos no erro de despir o passado de uma análise crítica, ou seja, histó-
rica, e nem desprezar o fato de que a era tecnológica afasta lentamente os indivíduos de uma pos-
sibilidade de ter uma identidade social, é preciso que repensemos tanto o papel social da História
quanto o papel histórico da memória, seja ela espontânea ou forjada.

7.3 Memória oficial e memórias subterrâneas


Vídeo
Já discutimos o caráter coletivo e individual da memória de acordo com a
base de Halbwachs (1990). Analisamos também o problema do esfacelamento da
memória – enquanto identidade social – frente à aceleração da sociedade histórica,
e discutimos o limite dessa situação com a criação dos chamados lugares da memó-
ria, que sacralizam o passado poupando-o de uma análise crítica.
Agora, ainda dentro do propósito de se investigar, por meio do estudo da memória, a identidade
construída no tempo pelos grupos, passamos a discutir a relação entre memória e identidade social.
Uma passada rápida pelo centro histórico de qualquer cidade indica ao olhar mais atento que
há memórias que se tornam patrimônio, oficializadas pelo poder estatal: nomes de ruas, bustos em
praças públicas, obras arquitetônicas de outros tempos e que se encontram preservadas etc. Um olhar
ainda mais atento e crítico se perguntará: quais memórias foram sufocadas, anuladas, excluídas para
que tais memórias tenham sido mantidas e oficializadas? Por que isso acontece? Como a análise
histórica da memória social pode evocar essas “memórias marginais”? Ou, até mesmo, perceber me-
mórias outras que foram soterradas por uma memória social oficial e institucionalizada, por entre os
“escombros psíquicos” de uma mesma memória individual, em suas diferentes “camadas”?
Tais questionamentos encaminham o nosso texto, a partir de agora, para as ideias de Michael
Pollak. O sociólogo francês, falecido em 1994, estudou, entre 1975 e 1992, a relação entre a política
e as ciências sociais e a questão da identidade social em quadros limites, em situações extremas,
como, por exemplo, o estudo que fez sobre as mulheres sobreviventes dos campos de concentração
e a pesquisa que desenvolveu sobre a homossexualidade frente à Aids.
As considerações de Pollak se referem à relação entre a memória e a identidade social no âm-
bito da História oral (ou das histórias de vida ouvidas, gravadas e problematizadas por historiadores).
Segundo o autor, tanto a memoria individual quanto a coletiva são caracterizadas – tomando-as
como fenômenos sociais –, por elementos flexíveis e elementos permanentes (POLLAK, 1992).
Essa caracterização é facilmente observada quando estudamos histórias de vida: é possível
perceber, nos relatos, fatos que, se forem perguntados de formas diferentes em momentos diferen-
tes, serão respondidos sempre da mesma forma; enquanto outros modificam-se constantemente na
fala das pessoas indagadas. Como explicar?
História e memória 99

Segundo Pollak (1992), é possível argumentar que há, tanto na memória individual quanto na
memória coletiva, elementos cujo trabalho de solidificação foi tão forte que os tornou imutáveis, sólidos,
enquanto outros são flexíveis e dependem da interpretação que aquele que fala, faz do seu presente.
É como se, numa história de vida individual – mas isso acontece igualmente em
memórias construídas coletivamente – houvesse elementos irredutíveis, em que
o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a
ocorrência de mudanças. Em certo sentido, determinado número de elementos
tomam-se realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito
embora outros tantos acontecimentos e fatos possam se modificar em função dos
interlocutores, ou em função do movimento da fala. (POLLAK, 1992, p. 201)

Pollak (1992) identifica também os princípios sobre os quais se fundamentam a memória


individual e a memória coletiva. A memória é constituída pelos acontecimentos que podem ter
sido vivenciados pessoalmente pelo indivíduo ou os acontecimentos dos quais participou apenas
parcialmente ou, ainda, indiretamente. A memória também é composta por personagens, isto é,
pessoas que tiveram alguma relação concreta com o indivíduo, e que de uma ou outra forma o
influenciaram. Há ainda os personagens com os quais o indivíduo não conviveu, nem física nem
temporalmente, mas por terem um papel influente na coletividade em que o indivíduo está in-
serido acabaram se tornando pontos de referência. Há, enfim, os lugares que o indivíduo aciona
para tecer suas lembranças (POLLAK, 1992, p. 202). Da mesma forma, esses elementos todos nem
sempre estão ligados à uma cronologia fixa, mas podem representar fases da vida, como o parque
onde brincava na infância, o cinema que marcou os namoros da juventude etc.
Pollak (1992) enfatiza que esses três elementos, acontecimentos, pessoas e lugares, encon-
trados na memória, podem fazer referência tanto à fenômenos reais quanto a projeções (coisas
que não aconteceram a não ser como projeção, expectativa) e cita o exemplo dos habitantes da
Normandia que tinham 15 e 17 anos na época da Segunda Guerra Mundial e lembravam das tropas
de soldados alemães invadindo a região ressaltando os capacetes pontudos dos 17 soldados. Ocorre
que esse tipo de capacete era típico da Primeira Guerra e não da Segunda. O que ocorreu foi uma
projeção, uma transferência dos elementos da Primeira Guerra para a Segunda, em virtude, talvez,
do efeito traumático que a Primeira Guerra e seu grande número de mortos deixou na memória
das pessoas. A projeção, portanto, é um dos problemas que quem trabalha com relatos orais para o
estudo da memória pode enfrentar (POLLAK, 1992).
O segundo problema é que nem sempre a data que fica gravada como sendo o dia preciso de
um acontecimento é realmente a data em que ele ocorreu, porque apesar de a memória nacional
estabelecer marcos e comemorações oficiais, às vezes a memória dos grupos continua dando maior
atenção aos marcos que ela própria estabeleceu como mais significativos (POLLAK, 1992).
Esses são aspectos muito interessantes da memória social e da sua inter-relação com a me-
mória individual: demonstram como estão sempre se reestruturando com base em necessidades,
anseios, preocupações e experiências do presente. A memória é algo vivo.
Depois desta curta introdução, que mostra os diferentes elementos da memória,
bem como os fenômenos de projeção e transferência que podem ocorrer den-
tro da organização da memória individual ou coletiva, já temos uma primeira
caracterização, aproximada, do fenômeno da memória. A memória é seletiva.
100 Introdução aos estudos históricos

Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. A memória é, em parte, her-
dada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre
flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está
sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de
estruturação da memória. (POLLAK, 1992, p. 203-204)

A conclusão parcial a que se pode chegar com essas constatações de Pollak é que, às vezes, há
por detrás da memória exposta pelos grupos uma outra subentendida, oculta e que também revela
a experiência destes – e isso só reforça a tese de que a memória é seletiva. De acordo com o autor,
esses elementos "ocultos" revelam uma memória subterrânea ou um rol de experiências que fazem
parte das lembranças individuais ou coletivas que acabam sendo omitidas durante as entrevistas,
entre outros motivos, por serem traumáticas demais.
O conceito de memória subterrânea é exposto mais detalhadamente por Pollak em seu artigo:
"Memória, Esquecimento, Silêncio", transcrito de uma palestra que proferiu no Museu Nacional,
no Rio de Janeiro, em 1987. Na ocasião, Pollak alertava para o fato de que a tradição halbwachiana
apontara para o caráter conciliatório que existia entre a memória individual e a memória coletiva.
Porém, Pollak (1989) argumenta que, de uma ótica construtivista, não basta analisar a memória
coletiva como elementos construídos socialmente, mas é interessante pensar como esses elementos
foram construídos.
Se direcionamos essa indagação à memória coletiva, devemos nos perguntar quais os atores
e processos que intervêm para a formalização das memórias em uma memória oficial. Segundo o
autor, de um lado há a memória oficial, formalizada, que está presente tanto nos discursos domi-
nantes quanto na minoria. Do outro, há as subterrâneas, ocultas devido a fatores ainda estranhos
para os que trabalham com a memória social. Essa memória subterrânea, silenciosa em períodos
de paz, às vezes aflora em épocas de crise e, aí, podem surgir conflitos entre ela e a oficial.
A despeito da importante doutrinação ideológica, essas lembranças durante
tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oral-
mente, e não através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre
o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma socieda-
de civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela
transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de
amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas. (POLLAK, 1989, p. 5)

Para Pollak (1989), é do conflito entre a memória subterrânea e a memória oficial que po-
dem aparecer novos objetos de pesquisa interessantes para os historiadores orais que buscam a
versão dos excluídos. O conceito de memória subterrânea parece um tanto complexo pelo fato de se
referir à uma memória não expressa normalmente, nos relatos orais. Contudo, chama atenção para
o caráter desafiador que esse tipo de olhar desperta naqueles que se dizem defensores da versão das
minorias, dos excluídos, tanto no passado quanto no presente.
História e memória 101

7.4 A história oral e o uso da memória como fonte


Vídeo
Uma das principais formas de acesso dos historiadores à memória social é a
estratégia da História oral, sobretudo quando se trata da História do tempo presen-
te, estudo sobre fenômenos não muito distantes cronologicamente do historiador.
Tradicionalmente, há um certo preconceito por parte de alguns historiado-
res, especialmente entre os mais conservadores, com relação à utilização de fontes
orais. Em se tratando de estudo histórico, aliás, isso não é novidade. Basta que citemos o século
XIX, quando a História foi "elevada à categoria de ciência": de sua tradicional divisão cronológica,
ou seja, história antiga, medieval moderna e contemporânea, foi excluído um longo período de
experiência humana sobre a terra, a Pré-História, por se tratar de uma época em que as sociedades
não dominavam a escrita – o período em que o homem sobreviveu, sem a escrita, não foi conside-
rado digno de ser "histórico".
Ao que parece, a civilização cristã, ocidental e alfabetizada não só definiu quem entraria para
a história como também quais as fontes que, em escala decrescente, serviriam para a pesquisa his-
tórica. Nessa escala, até a metade do século XX, as fontes orais ocupavam um dos últimos lugares.
Porém, é preciso que façamos alguns apontamentos sobre a tradição oral no Ocidente para
que possamos defender a validade das fontes orais para o estudo da História. Em primeiro lugar,
questionemo-nos sobre uma boa parte da história da Grécia sobre a qual não se dispõe de farta
documentação escrita: o período homérico. Como a poesia épica de Homero, uma das principais
fontes para o estudo do período, chegou até a era da imprensa? Por meio da tradição oral. O mes-
mo se pode dizer de fábulas, mitos, canções populares, entre outros elementos que fizeram parte
do contexto antigo e medieval e que ficaram séculos apenas na expressão oral até que foram regis-
trados por folcloristas, memorialistas e historiadores (sobretudo os românticos alemães) entre os
séculos XVIII e XIX.
Poderíamos ainda citar outros exemplos, mas o fato é que apesar de muitos historiadores
discordarem quando o assunto são as fontes orais, é impossível desconsiderar o valor histórico da
palavra falada. O principal argumento é o de que a fonte oral tem um caráter mais subjetivo que
a fonte escrita, pois o entrevistado pode ocultar, inventar e acrescentar elementos que não corres-
ponderiam ao contexto pesquisado. A esse argumento, os oralistas respondem: o que garante a
suposta autenticidade da fonte escrita? Ainda nos preocupamos em escrever a "verdade histórica"?
Partindo do pressuposto de que já é tese parcialmente aceita entre os historiadores de que não
reconstituímos o passado, mas representações dele, tanto a fonte escrita como a oral são, ao mesmo
tempo, subjetivas e objetivas. Subjetivas do ponto de vista da representação e objetivas porque se
referem às sociedades e a sua experiência no tempo. Logo, ambas são passíveis da crítica histórica.
Como vimos no segundo capítulo do nosso livro, se remontarmos à origem do termo História,
na Grécia Antiga, veremos que no século de Homero (séc. V a.C.) o historiador era aquele que teste-
munhava os acontecimentos, que poderia dar testemunho deles: historiador, aquele que vê.
102 Introdução aos estudos históricos

Já entre os historiadores do século XIX, famosos pelo rigor científico com que tratavam as
fontes, deparamo-nos com o historiador Jules Michelet (1798-1874) e a sua História da revolução
francesa, escrita entre 1846 e 1853. Em uma certa altura do livro, comenta:
Uma coisa é preciso dizer a todos e é muito fácil de demonstrar: a época huma-
na e benevolente de nossa revolução tem por ator o próprio povo, o povo intei-
ro, todo mundo: E a época das violências, a época dos atos sanguinários para
onde mais tarde o perigo a impele, tem apenas por ator um número mínimo
de homens, um número infinitamente pequeno. Eis o que encontrei, constatei
e verifiquei, seja pelos depoimentos escritos seja pelo que recolhi pela boca dos
velhos. (MICHELET, 1989, p. 22)

Contudo, demoraria ainda algum tempo para que a fonte oral fosse considerada tão válida
quanto a escrita. Segundo o sociólogo britânico Paul Thompson (1935-), um dos pioneiros a estu-
dar as possibilidades da História oral, inúmeros estudos de caráter sociológico e jornalístico foram
desenvolvidos no século XIX em países europeus como Escócia, França, Bélgica e Alemanha e que
tinham por suporte o trabalho de campo baseado não só em registros oficiais e escritos, mas tam-
bém em entrevistas com pessoas comuns (THOMPSON, 1992).
O objetivo da maioria desses trabalhos era coletar informações sobre crises econômicas,
reações políticas, mudanças de comportamento e a situação concreta da miséria e do abandono em
que viviam os segmentos proletários. Foi o caso do trabalho que o teórico alemão Friedrich Engels
(1820-1895) realizou sobre a condição da classe operária na Inglaterra, no qual ele próprio visitou
os bairros onde sub-habitavam os operários para depois escrever sobre eles2.
Apesar da eficácia comprovada do uso das entrevistas, ainda que elas fossem registradas
pelo pesquisador na investigação de questões sociais, na pesquisa histórica a fonte oral só pode
efetivamente ser utilizada quando a tecnologia tornou possível o recurso do gravador. Uma das
primeiras experiências de História oral citada por Paul Thompson ocorreu nos Estados Unidos,
na Universidade de Columbia. Segundo o autor, naquela universidade foi desenvolvido um estudo,
em 1948, sobre a participação de personalidades na Guerra. Apesar de ter se limitado à fala de um
grupo seleto de pessoas, a experiência rendeu ótimos resultados e os EUA passaram a investir ma-
ciçamente na organização de centros de pesquisa e catalogação de documentos orais, sendo esse
país um dos mais avançados nesse tipo de pesquisa (THOMPSON, 1992).
A partir de então, o método da História oral passou a ser discutido amplamente como uma alter-
nativa para aqueles que se interessavam em realizar estudos sobre a História do tempo presente tendo
como foco os setores menos favorecidos, sobre os quais não há tanta produção de material escrito. Após
1960, representantes da tendência historiográfica, conhecida como nova esquerda inglesa, e da Escola
Francesa dos Annales, defendiam, ainda que por vieses diferentes, a História oral como método.
Entre os historiadores que se debruçaram sobre o tema, podemos citar o próprio Paul
Thompson e o seu livro já considerado clássico no assunto: A voz do Passado, de 1978. Há também
Raphael Samoel e seus estudos sobre "História Local e História Oral" e Bill Bcharz, cuja visão difere
um pouco da dos dois primeiros, mas que defendeu, igualmente, o uso do documento oral como

2 Para conhecer esse belo trabalho, leia a obra: ENGELS, F. A situação da classe operária na Inglaterra. Tradução B. A.
Schumann. São Paulo: Boitempo, 2008.
História e memória 103

possibilidade de reconstrução histórica da experiência popular, da cultura popular acessada por meio
de aspectos da memória social, os quais podem ser evocados mediante as estratégias da História oral
(THOMPSON, 1992). Na historiografia francesa, temos os já citados Michael Pollak e Pierre Nora,
além de Gwyn Prins e das já clássicas considerações de Jacques Le Goff sobre História e memória
É preciso ter em mente que, se a História é o estudo da trajetória humana no tempo, ela
não pode ignorar a memória social como possível objeto de investigação, uma vez que pode ser
compreendida como um elo subjetivo por meio do qual o indivíduo se liga a um ou mais grupos,
instituindo para com eles um vínculo de pertencimento, no qual a relação passado/presente é ma-
nifesta, dinâmica e constantemente ressignificada.
Para além dos monumentos e vestígios materiais, a oralidade é um dos principais recursos
não materiais com os quais o historiador “acessa” a memória e a aborda como fonte primária, tendo
para com esse tipo de fonte os mesmos cuidados e procedimentos que costuma adotar com outras
fontes primárias, ou seja, abordando-a de forma crítica e contextualizada.

Considerações finais
Neste capítulo, abordamos o conceito de memória individual e memória coletiva, problema-
tizando a constituição social das memórias individuais e como elas se relacionam com a memória
dos grupos em que se encontram inseridas. Vimos também as aproximações e diferenças entre
memória social e História e em que contexto cientistas sociais e historiadores passaram a ter maior
interesse pelo estudo da memória coletiva como ferramenta de análise e compreensão de certos
fenômenos sociais, sobretudo, contemporâneos ou relacionados a uma história do tempo presente.
Abordamos de que maneira o discurso histórico, ao tentar submeter, “cientificizar” e insti-
tucionalizar a memória em certos “lugares da memória”, manifesta-se como uma ferramenta des-
trutiva em relação a algo que é dinâmico, fluídico e vivo. Com Pollak (1989) nos deparamos com o
conceito de memórias subterrâneas e como elas podem emergir em momentos de crise.
Finalizamos com uma rápida exploração sobre a História oral e de que forma ela vem se
constituindo em uma estratégia importante de acesso à memória social e de sua exploração como
fonte primária pelos historiadores.

Ampliando seus conhecimentos


• POLLAK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2,
n. 3. p. 3-15, 1989. Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esqueci-
mento_silencio.pdf. Acesso em: 12 fev. 2019.
Para ampliar seu conhecimento acerca de como memórias individuais são construídas
socialmente, mas que nelas residem elementos subterrâneos, que ao longo do tempo fo-
ram soterrados por memórias oficiais e institucionalizadas, as quais afloram em tempos
de crise (como guerras e revoluções), sugerimos o artigo de Michael Pollak: “Memória,
esquecimento, silêncio”, publicado na revista Estudos Históricos, em 1989.
104 Introdução aos estudos históricos

Atividades
1. Defina e diferencie memória individual e memória coletiva e explique como se relacionam
e se afetam.

2. Considerando os apontamentos de Halbwachs (1990) e Nora (1993) sobre memória e His-


tória, escreva sobre as diferenças entre essas duas formas de se relacionar com o passado.

3. Explique o conceito de “memórias subterrâneas”, de Michael Pollak (1989), e como estas se


relacionam com as memórias ditas oficiais.

Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BORGES, J. L. Elogio de la sombra. Buenos Aires: Emecé, 1969.

BOSI, E. Lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.

CARVALHO, J. M. de. A formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.

DECCA, E. S. de. Memória e cidadania. In: SÃO PAULO (Estado). Secretaria Municipal de Cultura. O Direito
à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992. p. 131.

ENGELS, F. A situação da classe operária na Inglaterra. Tradução de B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo,
2008.

FÉLIX, L. História e memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo: Ediupf, 1998. p. 41.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF, J. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão. Campinas: UNICAMP, 1990.

MICHELET, J. A História da Revolução Francesa. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.

NORA, P. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. Projeto
História, São Paulo, n. 10, dez. 1993. p. 7-28.

POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10. p. 200-212. 1992.

POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3. p. 2-15, 1989.
Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf. Acesso em: 12 fev.
2019.

QUINTANA, M. Nova antologia poética. Rio de Janeiro: Globo, 1985

SILVA, G. F. da. Resenha do livro: HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução Beatriz Sidou. 2. ed. São
Paulo: Centauro, 2013. In: Aedos, Porto Alegre, v. 8, n. 18, p. 247-253. ago. 2016. Disponível em: https://seer.
ufrgs.br/aedos/article/viewFile/59252/38241. Acesso em: 02 fev. 2019.

THOMPSON, P. A voz do passado. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
8
A narrativa em História

Homens vaidosos valorizam mais um fragmento do passado, a partir do


momento que conseguem revivê-lo em si próprios (sobretudo quando isso
é difícil); querem mesmo, se possível, despertá-lo de entre os mortos. Como
os vaidosos são sempre inúmeros, o perigo dos estudos históricos, quando
uma época inteira a eles se dedica, efetivamente não é pequeno: demasiada
energia é desperdiçada em todo tipo de ressurreição dos mortos.
(NIETZSCHE, 2008, p. 118-119)

Qual é o aspecto da escrita histórica? Pautada pelo rigor metodológico, deve ela assemelhar-
-se ao formato duro e frio do texto científico? Ou pode ser permeada também pela busca da beleza
permitindo-se um aspecto mais literário, artístico? Entre a ciência e a arte, qual o lugar do texto
histórico? Ainda há lugar para o estilo narrativo nesse tipo de escrita?
Neste capítulo, exploraremos a técnica da narrativa em História, problematizando seu uso
no século XIX e as críticas que esse estilo de escrita sofreu com o conceito de história-problema
proposto pelos Annales, na primeira metade do século XX.
Abordaremos as implicações teóricas e práticas da forma narrativa como escrita da História,
partindo da análise de teóricos que questionaram, nas últimas décadas do mesmo século XX, se a
História estaria mais próxima de uma escrita científica ou literária.

8.1 O século XIX e a narrativa como forma do texto histórico


Vídeo
Seria a História uma tentativa de “ressurreição dos mortos”, tal qual afirmava
Nietzsche (2008)? Tal “perigo” estaria associado a uma certa “vaidade” dos histo-
riadores e seu apreço por fragmentos do passado, como, se por meio desses frag-
mentos pudessem fazer reviver, ressurgir, o passado. A crítica aparece no aforismo
159 do texto intitulado “Aurora: pensamentos sobre a moral como preconceito”
(NIETZSCHE, 1983), publicado em 1881.
Certamente, se interrogarmos um historiador na atualidade, ele responderá que tal crítica
não o atinge, pois tem consciência de que o estudo histórico, por meio da análise dos fragmentos
do passado – as fontes – jamais trará esse passado de volta ou o apresentará tal qual ele foi. Mas e
na época do próprio Nietzsche, década de 1880, quando “Aurora” foi escrito? Não seria esse o pen-
samento da historiografia na Alemanha, berço do filósofo?
Fazer da História a narrativa do passado, contando-o tal qual ele ocorreu. Esse tipo de pre-
tensão já foi presente entre os historiadores, especialmente, no contexto de afirmação da História
como disciplina acadêmica. Mas, antes de seguirmos adiante na exploração desse conceito como
narrativa, primeiramente nos voltemos para o significado de narrativa.
106 Introdução aos estudos históricos

Em linhas gerais, uma narrativa é um enunciado de um ou vários acontecimentos, apresen-


tados de forma oral ou escrita, de maneira encadeada, ou não, e cuja finalidade pode ser o entre-
tenimento, o aprendizado ou a informação. A palavra, que tem origem na língua sânscrita, chegou
até nós em sua tradução latina. Na narrativa a enunciação de acontecimentos ou fatos – reais ou
fictícios – é apresentada de forma a justificar sua conclusão. Segundo Genette (1973), em seu uso
mais comum, o enunciado narrativo caracteriza um tipo de discurso, o qual pode ser tanto escrito
quanto oral e no qual são relacionados uma série de acontecimentos, fictícios ou reais, que cons-
tituem o objeto desse mesmo discurso, apresentados por meio de relações de oposição, repetição,
encadeamento, entre outras. “Num primeiro sentido – que é hoje o mais evidente e o mais central
no uso comum –, narrativa designa o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a
relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos” (GENETTE, 1979, p. 23, grifos
do original).
No Ocidente, podemos localizar as origens do enunciado narrativo nos poemas épicos Ilíada
e Odisseia, ambos atribuídos ao poeta grego Homero e que teriam sido escritos por volta do século
IX a.C. Desde então, esse tipo de enunciado adquiriu variados formatos, tanto em seu aspecto oral
quanto escrito. Atualmente, existem vários gêneros narrativos, por meio dos quais são contadas
histórias, em sua maioria fictícias – ainda que inspiradas em fatos reais. Entre os gêneros mais co-
nhecidos da narrativa, destacam-se: a novela, o romance1, a crônica, o conto, a parábola e a lenda.
Historicamente, os primeiros estudos sobre em que consistia a narrativa e suas diferentes for-
mas foram feitos pelo filósofo Platão e por seu discípulo Aristóteles (séculos V a.C. e IV a.C.). Embora
não tenha sido arrolada por eles como um dos gêneros da narrativa, a própria escrita histórica, como
vimos em capítulos anteriores, apresentava, nos textos do grego Heródoto de Halicarnasso (séc. V
a.C.), um viés épico, influenciada pelo estilo da tradição homérica.
Já na Modernidade, em pleno século XIX, quando a História se consolidava como disciplina
acadêmica e se arvorava ao status de “ciência”, o tom narrativo manifestava-se nos textos de al-
guns dos mais proeminentes historiadores, conforme destaca o teórico literário Eberhard Lämmert
(1995): “Por seu turno, os historiadores – não por último em virtude do desenrolar dramático da
Revolução Francesa – ganharam novo alento para a concepção de grandes narrativas históricas”.
Entre esses historiadores, Lämmert (1995) destaca os franceses Augustin Thierry (1795-
1856), que, influenciado pelos desdobramentos da Revolução Francesa, escreveu sobre a história
da França num tom que beirava o épico (embora afirmasse que deixaria os “fatos falarem por si”);
e Jules Michelet (1798-1874), em cujos livros sobre a história da França a escrita escorre em tom
narrativo e muito próximo do estilo das epopeias homéricas.

1 Para alguns teóricos literários, historiadores e filósofos, o romance, surgido no século XVII com a obra do escritor
espanhol Miguel de Cervantes, intitulada El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha (1605), não seria um tipo de
narrativa. Esse é o posicionamento, por exemplo, do filósofo alemão ligado à Escola de Frankfurt, Walter Benjamin (1892-
1940), segundo o qual: “[...] O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e
mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa.
O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que
não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe
dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites.
Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem vive”. [grifo
nosso] (BENJAMIN, 1985, p. 201).
A narrativa em História 107

Vejamos a seguir um trecho do livro História da Revolução Francesa, de Jules Michelet, em


que o texto histórico se apresenta influenciado pela forma narrativa de enunciação, em tom épico,
no qual o herói é o próprio povo francês lutando contra os privilégios e desmandos do governo
absolutista de Luís XVI. Note o uso (e o abuso) do ponto de exclamação e das reticências:
Um movimento não vasto, tão variado, tão pouco preparado, e contudo tão unâ-
nime!... É um fenômeno admirável. Todos participaram dele, e (salvo um número
imperceptível) todos quiseram a mesma coisa. Unânime! Houve um acordo com-
pleto, sem reserva, uma situação muito simples, a nação de um lado, e o privilégio
do outro. E na nação, nenhuma distinção possível entre o povo e a burguesia; uma
única distinção apareceu, os letrados e os iletrados; só os letrados falaram, escre-
veram, mas escreveram o pensamento de todos. Formularam os pedidos comuns,
e esses pedidos eram os das massas silenciosas, tanto ou mais que os seus. Ah!
quem nunca ficaria comovido à lembrança desse momento único, que foi nosso
ponto de partida? Durou pouco, mas permanece para nós o ideal a que sempre
tenderemos, a esperança no futuro!... Sublime acordo, em que as liberdades nas-
centes de classes, mais tarde opostas, se abraçaram tão ternamente, como irmãs
no berço, não vos veremos voltar a esta terra? (MICHELET, 1989, p. 95)

O enunciado narrativo permeando a escrita histórica se fez notar também entre historiado-
res ingleses, entre eles, Thomas Macaulay (1800-1859), o qual se dizia o narrador da História da
Inglaterra e em cujo texto se propunha a convocar, ao lado da trajetória dos líderes políticos, uma
série de histórias “do povo”, as quais consistiam na beleza dos “romances históricos”. Mencionemos,
ainda, entre os alemães, o sistematizador do método histórico Leopold Von Ranke2 (1795-1886),
segundo o qual a História seria a narrativa do que realmente aconteceu:
Em suas cartas sobre a História, da França, Augustin Thierry declarou sua
preferência explícita pela representação épica dos movimentos históricos.
[...] Na Inglaterra, Macaulay tornou-se o grande narrador de uma História da
Inglaterra que se valeu da arte scottiana de, ao lado dos protagonistas da histó-
ria política, convocar toda uma imensidão de histórias do povo que, como ele
próprio diz, "fazem o encanto dos romances históricos" [...]. Também Ranke
compôs, como vemos hoje, à base de Leitmotive, conforme as ideias de peso
histórico acentuadas por ele, e coloria as cenas decisivas quando se propunha a
narrar "como realmente foi". (LÄMMERT, 1995)

Esse tipo de escrita da História sofreu críticas, ainda no século XIX, mas, sobretudo, a partir
das primeiras décadas do século XX, como veremos a seguir.

8.2 A crítica à narrativa


Vídeo
Ainda no século XIX e entre os próprios historiadores, levantam-se críticas
à escrita histórica como uma narrativa de fatos do passado e, sobretudo, críticas a
uma ideia de história factual.
Entre os posicionamentos dissonantes a uma tessitura narrativa da História,
destacam-se os franceses da época da Restauração (entre 1814 e 1830), como

2 É importante mencionar que existiram exceções a essa tendência. Na mesma época, e na mesma Alemanha de
Ranke, opunha-se a uma exposição narrativa e quase romanceada da História Johann Gustav Droysen (1808-1884), co-
nhecido como um dos principais sistematizadores de uma História profissional (LÄMMERT, 1995).
108 Introdução aos estudos históricos

François Guizot (1787-1874), que recusava tanto uma história como mera apresentação de fatos,
sem qualquer busca de um sentido ou interpretação destes; quanto uma Filosofia da História, uma
busca do seu sentido, mas desprovida de fatos (BARROS, 2012).
O próprio Guizot, conforme afirmaria Karl Marx, pode ser considerado um precursor de uma
ideia de História condicionada por fatores sociais, como a luta de classes, por exemplo (BARROS,
materialismo
histórico-dialético:
2012). Mas foi com o materialismo histórico-dialético, desenvolvido com base nos estudos dos ale-
aborda os fenôme-
mães Karl Marx e Friedrich Engels, que ganhou terreno a compreensão de que fatores econômicos
nos da natureza de
forma dialética e os – forças produtivas e modos de produção – configuravam a organização da sociedade em classes, e
interpreta de forma
materialista.
essa configuração exercia influência sobre as ideias e as instituições. Dessa forma, estruturas sociais
de base econômica tinham uma influência determinante no curso histórico, e não a ação isolada de
alguns homens (heróis).
Tal compreensão engendrava uma nova forma de se compreender a História e seu sentido,
ao mesmo tempo em que atacava o texto histórico como um relato fluente do passado como uma
marcha que caminhava para o presente e com foco no protagonismo individual (dos heróis ou
grandes personagens históricos). O protagonismo agora de uma estrutura social, a “luta de classes”:
o constante confronto entre forças dialéticas como o motor da história.
Enquanto manifestações de uma historiografia de base materialista-marxista tentavam se
afirmar por influência, sobretudo, da Sociologia, na década de 1930, na França, despontava o mo-
vimento historiográfico conhecido como Annales, nascido, como vimos anteriormente, da revista
criada por Marc Bloch e Lucien Febvre, em 1929. Voltados para uma História social, que buscava
entender, sobretudo, como se formam as mentalidades ao longo do tempo, a Escola de Annales
ataca a “história-narrativa” em nome de uma “história-problema”:
Essa noção tornou-se de longe o instrumento mais combativo e reluzente do
programa dos Annales, pois permitia afrontar, através de um novo conceito e de
uma nova definição para uma história que se queria nova, o frágil universo dos
modelos de historiografia que se limitavam a narrar os fatos ou a expor infor-
mações, de maneira meramente descritiva. (BARROS, 2012, p. 306)

O impacto causado pelas proposições postas pelas primeiras gerações de historiadores liga-
dos à Escola de Annales na História e nas ciências humanas, de um modo geral, foi acentuado pela
analítica do poder manifesta nas obras do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984).
De forma muito rápida e grosseira, podemos afirmar que, em um projeto teórico amplo,
o qual podemos conceituar como “analítica do poder”, Foucault chama atenção para o fato de
que, desde o final do século XVII, os saberes – e as estratégias de poder a eles relacionados – são
engendrados com bases epistemológicas, as quais são aceitas porque são tidas como verdadeiras.
Na Modernidade, essas bases epistemológicas estariam associadas ao universo acadêmico: ou seja,
temos por verdadeiro os discursos produzidos pelos diferentes saberes provenientes da academia
(SOCUDO, 2013).
Partindo de uma concepção arqueológica do saber e da genealogia como forma de se pro-
blematizar como se estruturam, nas diferentes relações sociais, relações microfísicas de poder, a
análise foucaultiana, nas décadas de 1960 e 1970, principalmente, volta sua atenção, para o seguinte
A narrativa em História 109

questionamento: mais importante do que tentar entender o que é a verdade ou qual a necessidade
da verdade, é entender como são construídos os discursos tidos como verdadeiros, ou, em outras
palavras, tentar entender o que funciona como verdade (SOCUDO, 2013).
Tais posicionamentos impactaram na escrita da História e na compreensão acerca do que
seria um texto histórico. Ao lado da pressuposição de História-problema, deslindava-se a possi-
bilidade de que a história é, também, um discurso, que tem suas origens no universo acadêmico
e que, independentemente do posicionamento crítico e reflexivo que vinha assumindo desde a
revista Annales, a História apresenta-se, também, pelo menos aos olhos da maioria, como o saber
que detém “a verdade” sobre o passado. A ideia da História como discurso colocava em suspenso a
epistemologia desse saber, seus limites, suas possibilidades, sua forma de operacionalização.
Tal debate, que se acalorava em meados da década de 1960, representou um duro golpe à com-
preensão de História como narrativa do passado, enquanto crescia o entendimento de que à História,
enquanto um discurso, caberia se ocupar mais com o inteligível e como o que é inteligível assim foi
tornado possível ao longo do tempo do que, propriamente, com o que é real – visto que este perma-
neceria, de qualquer modo, inacessível.
Assim, a ruptura não se dava somente em relação à ideia de história narrativa, mas também
para com alguns dos parâmetros que haviam sacralizado a História como ciência (e, portanto,
como discurso) no século XIX.
O pensamento de Munslow e White acerca da escrita histórica se encontra em um contexto
de ruptura e desconstrução de alguns pressupostos caros à teoria do conhecimento em geral e à
teoria da História, em particular, em um ambiente marcado pela difusão da tendência pós-moder-
na, na Filosofia, na Literatura e nas Artes, conforme veremos na sequência.

8.3 A História como ficção ou para além da narrativa: limites e


possibilidades do texto histórico
Vídeo No final da década de 1960 o historiador estadunidense Hayden White
(1928-2018) abalou as tentativas de diferenciação até então realizadas por teóricos
e historiadores entre História e narrativa, ao afirmar que a história escrita é, sem
sombra de dúvidas, um empreendimento literário (ASSIS; CRUZ, 2010). Mas em
que contexto se situa o posicionamento de White acerca da escrita histórica? Qual é
o “lugar” a partir do qual ele se pronuncia e quais as implicações de seu pensamento
para a Teoria da História?
Após ter se graduado na Universidade de Wayne e ter feito mestrado e doutorado na
Universidade de Michigan, White atuou como professor da Universidade da Califórnia ocupando a
cadeira de “História da Consciência” e como professor de Literatura Comparada na Universidade de
Stanford. Entre suas principais obras e artigos, destacam-se: O fardo da história (1966); Meta-história
(1973); O texto histórico como artefato literário (1974); e A Questão da narrativa na teoria contemporâ-
nea da história (1984). Dos textos aqui mencionados, os dois últimos merecerão nossa maior atenção.
110 Introdução aos estudos históricos

De acordo com Assis e Cruz (2010), White parte do pressuposto teórico de que o passado só
existe pela forma como é escrito pelos historiadores e, assim, pode ser considerado um expoente de
um movimento maior, conceituado como desconstrucionismo, no qual também pode ser inserido o
pensamento do historiador britânico Alun Munslow (1947-), especialmente expresso na sua obra
Desconstruindo a história (1997).
Antes, porém, de adentrarmos no conceito de desconstrucionismo e de que maneira ele afeta
a percepção acerca do estudo e da escrita da História, vamos tentar entendê-lo com aquilo que
Munslow (ASSIS; CRUZ, 2010) caracterizou como as duas outras formas de se conceber a História:
o construcionismo e o reconstrucionismo. Enquanto o primeiro parte de evidências e se pauta por
uma ideia de História objetiva, o segundo se orienta por uma ideia de História total, globalizante,
buscando no passado modelos de inspiração para o presente.
Enquanto o reconstrucionismo elabora explanações históricas considerando a
evidência, portanto, sustentando a pesquisa história objetiva, o construcionismo
pressupõe explanações totais e globalizantes, e busca no passado modelos que
podem ser aplicados no presente. Por sua vez, o desconstrucionismo enfatiza a
relação entre a forma e o conteúdo, bem como o relativismo da compreensão his-
tórica, possui consciência que a narrativa da história escrita é uma representação
do conteúdo histórico. (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114)

Diferentemente dessas duas formas de se compreender a História, o desconstrucionismo


afirma que o passado não é algo fixo, e que, portanto, também ele pode ser considerado um texto,
constantemente em processo de significação e que ao historiador, ciente dessa condição e do seu
papel, cabe examinar as várias possibilidades de significação que ele (o passado enquanto texto)
apresenta (ASSIS; CRUZ, 2010). Essa ideia parte do princípio de que tudo é linguagem, a realidade
nos é significada através da linguagem, assim, o passado, na escrita histórica, é também linguagem,
passível de interpretação, intervenção, invenção, reinvenção.
A ideia de que nós intervimos constantemente no mundo real através da lingua-
gem significa que não podemos alcançar uma representação direta da realidade.
Deste modo, para o historiador desconstrucionista, as evidências históricas
apenas sinalizam possíveis realidades e interpretações, pois todo contexto é
textualizado ou narrativizado. (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114)

Enquanto discurso, a História é linguagem e, portanto, criação. Um dos aspectos centrais do


desconstrucionismo é que a História precisa ser vista como uma criação com a qual os historiadores,
de certa forma, impõem uma forma de narrativa sobre o passado (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 113). A esse
respeito, Munslow desenvolve sua provocação em relação à possiblidade de o discurso histórico ser
ou não considerado científico ou se está, de certa forma, impregnado por uma condição narrativa,
propondo quatro questionamentos principais acerca do estudo e da escrita histórica.
1) Pode o empirismo construir legitimamente a história como uma epistemo-
logia distinta? 2) Qual o caráter da evidência histórica e qual a função que ela
exerce? 3) Qual o papel do historiador e como ele utiliza a teoria social e a
construção de suportes explanatórios na compreensão histórica? 4) Qual a im-
portância da forma narrativa da história para a explanação histórica? (ASSIS;
CRUZ, 2010, p. 113)
A narrativa em História 111

Ao primeiro desses questionamentos, Munslow responde que a História não pode ser con-
siderada uma ciência tal qual, por exemplo, as ciências da natureza. Isso porque o historiador, ao
selecionar determinados dados e relegar outros em virtude do seu interesse ou das circunstâncias
que envolvem seu estudo, acaba, inevitavelmente, “criando” um passado; ou, ainda, substituindo
o passado pela sua narrativa. Logo, a escrita histórica é um constructo de base linguística criado e
organizado pelos historiadores. É uma construção narrativa que, tendo por base o passado, acaba
por substituí-lo. Não é o passado (MUNSLOW, 2009, p. 15 apud ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114).
Ao segundo questionamento, Munslow responde diferenciando fato e evidência, destacando
que, por intermédio da interpretação narrativa, a evidência é transformada em fato pelo histo-
riador, atingindo relevância, sobretudo, quando relacionado a um determinado contexto (ASSIS;
CRUZ, 2010).
Acerca da terceira questão, Munslow responde que, ao contrário do que pretendiam os em-
piristas radicais, a História não pode ser considerada um conhecimento objetivo, em virtude dos
interesses e pretensões dos seus “intérpretes” (os historiadores), os quais deixam no texto escrito as
suas digitais (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114).
Finalmente, acerca da última questão, Munslow enfatiza o caráter narrativo da escrita histó-
rica afirmando que ela é “[...] um discurso que coloca diferentes eventos em uma ordem compreen-
sível” (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114).
White caminha na mesma direção de Munslow, ou seja, o desconstrucionismo, ao afirmar que
o passado só existe da forma como é criado pelos historiadores, sendo a História, por esse motivo,
uma “criação literária”, uma vez que: “sempre será interpretada através de relíquias textualizadas que,
por sua vez, só podem ser compreendidas por meio das pistas de interpretações a serem organizadas
pelos historiadores” (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 114).
Assim, a escrita histórica é, para White, um empreendimento literário, e essa sua afirma-
ção coaduna com o posicionamento desconstrucionista: “Primordialmente, o método histórico
de White parte da concepção de que a história escrita é indiscutivelmente um empreendimento
literário, e não podemos ter acesso sobre o que foi o passado a não ser através da forma narrativa
que criamos para organizá-lo” (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 115).
Essa constatação, a qual chega o historiador desconstrucionista, ameaça a existência da
História como conhecimento? Como disciplina acadêmica? Não necessariamente, afirma White
(ASSIS; CRUZ, 2010). O historiador desconstrucionista tem consciência de que o que escreve é
uma interpretação de um texto. Que texto é esse que ele interpreta? O passado, que chega para ele
em uma determinada base linguística, é transposto para uma outra versão narrativa, a história es-
crita. É somente ao nível da narrativa, afirma o historiador estadunidense, que a História pode ter
acesso ao passado em seu aspecto mais básico.
Desta forma, o historiador desconstrucionista faz uma interpretação vista como
tradução ou rendição de um texto, o passado, em uma nova versão narrativa que
é um outro texto de sua própria invenção, a história escrita. O modelo de White
sugere que para a história tratar o passado em seu nível cultural mais básico, ela
tenha que ir ao nível da narrativa. Podemos concluir, por Hayden White, que
o significado dos fatos históricos muda na medida em que as interpretações
112 Introdução aos estudos históricos

históricas são continuamente revisitadas e a ausência de significado do passado


tem uma nova ordem imposta sobre ela através do aspecto disciplinar da histó-
ria. (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 115)

Os posicionamentos de White se inserem em um contexto teórico mais amplo que pode


ser caracterizado por linguistc turn. O termo, criado por Gustav Bergamann no início do século
XX, foi retomado por Richard Rorty (1967) em uma coletânea intitulada The Linguistc Turn. Em
linhas gerais, esse termo designa um dos aspectos centrais que unifica as abordagens pós-estru-
turalistas, desconstrucionistas e pós-modernistas, das quais se destacam os trabalhos do filósofo
Michel Foucault (ASSIS; CRUZ, 2010) e do teórico literário, semiólogo e sociólogo francês Roland
Barthes (1915-1980). E que aspecto é esse? A ideia de que os grandes problemas filosóficos podem
ser diluídos, entendidos ou resolvidos por uma análise crítica da linguagem. Esta, entendida como
cultural, social, constituída historicamente e, portanto, limitada a um conjunto de signos e signifi-
cados em cada época passa a ser considerado o aspecto central de toda tentativa de compreensão
de mundo.
A História, como discurso, é assim entendida como um enunciado de construção narrativa
(linguagem) sobre outra linguagem – o passado – que só se apresenta para nós como linguagem. Tais
considerações não implicam no invalidamento da História como forma de apreensão, compreensão e
explicação do mundo, pelo contrário: liberta de suas pretensões totalizantes e objetivistas, e ciente de
que a verdade é uma construção discursiva, a escrita histórica se amplia e se enriquece quando se tor-
na consciente de suas limitações e de suas possibilidades, aceitando-se enquanto uma interpretação
possível, enquanto uma representação linguística do passado. A História não reproduz nem mostra
o passado, apenas indica uma direção possível acerca dos acontecimentos nele ocorridos. E é nesse
sentido que a escrita histórica se aproxima da ficção (ASSIS; CRUZ, 2010, p. 117).

Considerações finais
Neste capítulo, abordamos a escrita do texto histórico, apontando seu formato narrativo,
em expoentes da historiografia oitocentista, bem como as críticas que esse formato sofreu ainda
no século XIX. Destacamos como a enunciação narrativa foi sendo destituída como possibilidade
de apresentação da escrita histórica ao longo do século XX entendendo como um dos principais
fatores para a crise da escrita narrativa em História a ideia de História-problema, proposta pelos
Annales. Finalizamos apresentando as provocações postas por filósofos e teóricos da linguagem, a
partir da década de 1960, e no contexto mais amplo do pós-estruturalismo, do pós-modernismo e
do desconstrucionismo. Entre essas provocações, o argumento de Hayden White (ASSIS; CRUZ,
2010) de que a História, enquanto uma enunciação narrativa que, ao se voltar para o passado – ao
qual ela tem acesso como linguagem –, acaba por substituir o passado pela escrita história é, em
última instância, uma escrita ficcional, o que não torna o texto histórico destituído de valor, mas
enriquece a concepção que dele se tem ampliando-a no sentido de reconhecer que toda forma de
conhecimento traz, em si, elementos da imaginação.
A narrativa em História 113

Ampliando seus conhecimentos


• WHITE, H. A questão da narrativa na teoria contemporânea da história. Revista de
História, Campinas (SP), n. 2/3, p. 47-89, 1991.
Como leitura complementar aos estudos deste capítulo, indicamos o texto “A questão da
narrativa na teoria contemporânea da história”. No artigo, o teórico literário estaduni-
dense White problematiza a questão da narrativa nos debates teóricos acerca da História,
destacando que, nesse campo, a narrativa muitas vezes não é vista nem como um produto
da teoria nem como a base de um método, mas uma forma de discurso a qual pode ser
empregada ou não para a representação do que se entende por eventos históricos. Aponta
que tal perspectiva, manifesta entre historiadores do século XIX, apresentava-se de forma
ambígua – por um lado, a narrativa era uma forma de discurso – a maneira de apresentar
os fatos – e, por outro, o conteúdo por si mesmo, ou seja, os fatos – e que essa ambigui-
dade marcou o próprio entendimento da História em sua origem como saber acadêmico.

Atividades
1. Qual a relação entre a narrativa e a escrita histórica no século XIX?

2. De que maneira o entendimento de História-problema manifesto pela Escola de Annales se


contrapõe à ideia de uma História-narrativa?

3. Explique, com suas palavras, o entendimento de White de que a escrita histórica é uma es-
crita de ficção.

Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ASSIS, G. L. de; CRUZ, M. S. da. Desconstruindo a História: Hayden White e a escrita da narrativa. Revista
Mosaico, Goiás, v. 3, n. 1, p. 111-118, jan./jun. 2010. Disponível em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/
mosaico/article/view/1837/1141. Acesso em: 02 fev. 2019.

BARROS, J. D. Os Annales e a história-problema: considerações sobre a importância da noção de “história-


-problema” para a identidade da Escola dos Annales. História: debates e tendências, Passo Fundo (RG), v. 12,
n. 2, p. 305-325. jul./dez. 2012.

BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. [1940]. In: ROUANET, S. P. Obras escolhidas: magia e técnica,
arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. v. 1. 3. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1985.

GENETTE, G. Discurso da narrativa. Lisboa: Arcádia, 1979.

LÄMMERT, E. "História é um esboço": a nova autenticidade narrativa na historiografia e no romance. Estudos


Avançados, São Paulo, v. 9, n. 23, jan./abr. 1995. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0103-40141995000100019. Acesso em: 2 jan. 2019.
114 Introdução aos estudos históricos

MICHELET, J. História da Revolução Francesa. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.

NIETZSCHE, F. Aurora. Pensamentos sobre a moral como preconceito. Tradução de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra moral. In: NIETZSCHE, F. Obras incompletas.
Tradução de Rubens Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).

SOCUDO, A. M. C. L. Michel Foucault: a estética de si como resistência. Cadernos da Escola de Direito e


Relações Internacionais, Curitiba, n. 19, p. 1-14, 2013.
Gabarito

1 Tempo, temporalidades e cronologia


1. Segundo o que estudamos, duração pode ser compreendida como um dado subjetivo, inerente à
nossa consciência e que dá sentido a nossa experiência, algo que permite com que percebamos os
fenômenos; já o tempo seria um elemento abstrato, uma tentativa de fracionamento da duração
em partes menores, tais como instantes, minutos, presente, passado, futuro, horas, dias, meses,
anos etc. As temporalidades são as diferentes formas pelas quais as sociedades concebem, con-
tam, mensuram, dividem e nominam o tempo.

2. As cronologias, como estratégias de organização retrospectiva do tempo em acontecimentos e da-


tas, estão inseridas na sociedade e época em que são feitas, constituem sempre um olhar do presente
para o passado, um instrumento pelo qual estudiosos (como os historiadores, partindo do entendi-
mento e inserção que têm em sua própria época) voltam-se para outras épocas, definindo, de modo
arbitrário, o que merece ser arrolado, estudado e registrado e o que não merece esse status. Acabam
por compartimentar a aventura humana no tempo em acontecimentos isolados, organizados em
determinados períodos definidos a posteriori (Idade Média, Brasil Colonial, Antiguidade etc.), aco-
modando, forçosamente e de forma deslocada, aspectos da experiência humana.

3. Sim, porque em uma mesma época podem coexistir diferentes sociedades, com diferentes cultu-
ras e diferentes entendimentos acerca da sua experiência no mundo. As temporalidades, enquan-
to tentativas de localização temporal, constituem aspectos da formação cultural, social e política
das sociedades, variando, dessa forma, de uma para outra. Essa constatação explica, por exemplo,
o fato de que existem grupos que se orientam pelo calendário judaico, outros pelo calendário
muçulmano e outros, como determinadas comunidades indígenas, que se orientam por uma
perspectiva cíclica de tempo em uma mesma época e lugar, como o Brasil atual.

4. Resposta pessoal. Você pode escolher, por exemplo, um dos calendários mencionados no texto,
ou a diferença entre uma concepção cíclica e linear de tempo, ou, ainda, aspectos referentes à
história da contagem das horas para desenvolver seu texto. Todos esses exemplos constituem dis-
positivos de compreensão, mensuração, localização, nominação, divisão e contagem do tempo.

2 Epistemologia do estudo da História


1. Os aspectos centrais relativos à historiografia grega são: o interesse por fenômenos como guerras,
conquistas e o surgimento de grandes impérios, com destaque para indivíduos isolados (chefes
militares, legisladores, reis) cujos feitos são narrados quase como se fossem os heróis de poemas
épicos, inspirados na mitologia antiga; além da dispersão do foco central do texto para aspectos
relativos à cultura, à religião, ao clima e à língua dos povos envolvidos nos confrontos narrados.
No caso da historiografia romana, os aspectos centrais são: a influência da retórica como lingua-
gem da escrita histórica, a confusão entre escrita histórica e escrita biográfica, a concepção de
que os feitos históricos devem servir como exemplos acerca de quais atitudes os homens devem
116 Introdução aos estudos históricos

tomar e quais eles devem evitar, além da não preocupação com a origem e a autenticidade das fontes
usadas para o estudo.

2. Porque parte do princípio de que o tempo humano, assim como a Cidade dos Homens (o que é mun-
dano, material, perecível), está destinado à destruição, ao fim. Se a história é essa trajetória dos ho-
mens no mundo e se o mundo o destino é a finitude, a destruição, quando então os homens deverão
voltar para Deus – o senhor do tempo, da eternidade, que é a ausência de tempo –, então o fim dos
tempos e o fim do mundo representa, também, o fim da história. Vive-se à espera desse fim.

3. Resposta pessoal. É importante pensar que a ideia de história como exemplo não se sustenta. Isso
porque não necessariamente aprendemos com o passado. Se o passado nos ensinasse alguma coisa,
não teríamos a Segunda Guerra Mundial (a Primeira não tinha matado gente suficiente?). Assim
como o estudo do passado não necessariamente tem uma função didática para com o presente, ele
também não pode “prever” o que irá ocorrer. A História não prevê e não ensina, a história pode servir
de elemento de problematização, de inteligibilidade e de diálogo entre diferentes temporalidades –
presente, passado e futuro. Isso porque a História não é o estudo só do passado, mas dos homens no
tempo, e os historiadores não saem do tempo para estudar outras temporalidades, distantes da sua,
apenas fazem pontes, contrapontos entre diferentes temporalidades, com a consciência de que são,
também eles, históricos, e influenciado por sua própria época.

3 Conceito de fonte histórica


1. Fontes históricas são vestígios – materiais ou imateriais – de temporalidades distantes do historiador,
as quais ele passa a ter acesso pela sua pesquisa, problematizando-as, levantando hipóteses sobre elas
e construindo sua argumentação. A fonte histórica é o elemento que torna possível o acesso do histo-
riador a uma temporalidade distinta da sua. Ela é a base empírica do seu trabalho, algo que confere,
ao mesmo tempo, a legitimidade, a especificidade e a objetividade do seu estudo. Desde que a História
se tornou uma disciplina acadêmica com status de Ciência Humana, no século XIX, ela, enquanto
discurso que se pretende científico, precisa afirmar a base empírica daquilo que enuncia. As fontes são
essa base, esse critério de objetividade e legitimidade do discurso histórico acadêmico perante outras
formas de conhecimento (a memória, a tradição) e outras ciências humanas.

2. De acordo com o entendimento de ciência histórica manifestada pelas primeiras e mais exponenciais
escolas historiográficas surgidas no século XIX, o conceito de fonte histórica se restringia aos docu-
mentos, oficiais e escritos, ligados a instituições, como o Estado e a Igreja. Só esse tipo de vestígio era
considerado digno de ser estudado pelos historiadores. O fato de serem escritos e oficiais conferia a
esses documentos a legitimidade que o status de ciência alçado pela História exigia (em tese, seriam
autênticos). Mas essa “escolha” pode ser entendida também por questões políticas da época: na Ale-
manha em processo de unificação a partir da Prússia, interessava ao Estado a pesquisa histórico-cien-
tífica de sua própria constituição no tempo como algo relacionado ao espírito da nação como forma
de justificar a unidade territorial e política dos povos de língua e etnia germânica. A burocracia liberal
prussiana era a principal incentivadora e financiadora de pesquisas históricas pagas pelo Estado e
que deveriam contar a história desse Estado, além disso, muitos historiadores ocupavam ou vieram a
ocupar cargos políticos nos governos que financiavam suas pesquisas.
Gabarito 117

3. Em História, podemos definir fontes primárias como sendo os documentos da época a ser estudada,
contemporâneos do período ou evento a que se refere a pesquisa, originais. Já as fontes secundárias
são os documentos produzidos em períodos posteriores à época correspondente ao tema pesquisado,
mas que se relacionam ao tema, de forma direta ou indireta, tais como compilações, historiografia e
livros acadêmicos escritos por pesquisadores, teóricos, historiadores em épocas posteriores àquela em
que situam as fontes primárias.

4 A metodologia do estudo da História


1. História enquanto trajetória de vida inclui todas as experiências vividas por uma pessoa, um grupo e/
ou uma sociedade, num dado período de tempo. É a totalidade de suas vivências, experiências, reali-
zações, as quais não são acessíveis nem mesmo a essa pessoa, a esse grupo ou/e a essa sociedade, visto
que tais experiências são filtradas e apenas algumas se mantêm presentes na memória, a qual tem uma
conotação individual e também coletiva, e em cuja construção intervêm fatores sociais e psicológicos.
A memória constitui a forma pela qual a maioria das pessoas acessa o passado, é construída pela tria-
gem psicológica da trajetória de vida das pessoas e grupos (sua história). Os fragmentos ou vestígios
são os elementos materiais produzidos pela sociedade e que atravessam o tempo, permanecendo no
espaço para além daqueles que os conceberam, criaram, produziram. A História (estudo) é a tentativa
de construir interpretações tidas como científicas sobre o passado, sobre aspectos da trajetória do ho-
mem no tempo, com respaldo acadêmico e tendo como base empírica os vestígios e como base teórica
os estudos de outros historiadores e demais estudiosos.

2. Resposta pessoal. Como fragilidade epistemológica podemos apontar o fato de o historiador estar
numa época e o seu objeto de estudo estar em outra; outra fragilidade epistemológica diz respeito ao
conteúdo quase ilimitado do passado; há ainda o agravante de que a maioria dos fatos que acontece-
ram no passado não terem sido registrados. Como fragilidades metodológicas, apontamos o fato de
que os historiadores se orientam a partir do estudo de outros historiadores (historiografia) e de teóri-
cos, epistemólogos, filósofos e sociólogos para construir seus argumentos, suas hipóteses e suas inter-
pretações sobre o objeto. Isso influencia na escrita e ocasiona, de acordo com diferentes referenciais
teórico-metodológicos, escritas diferentes sobre um mesmo fenômeno, por exemplo. Há, ainda, a
questão da ideologia, o lugar de onde o historiador “olha” para o seu objeto, sua visão de mundo, suas
crenças, seus valores, relativos à função e posição social que ocupa. No tocante às questões práticas,
podemos mencionar as idas e vindas dos historiadores aos arquivos e às bibliotecas e as dificuldades
enfrentadas para desenvolver suas pesquisas e publicar seus textos.

3. Resposta pessoal. Para que você possa construir sua própria definição, deixamos aqui a forma como
Keith Jenkins (2001, p. 52) concebe o estudo da História e que funciona como uma síntese de grande
parte dos conteúdos abordados neste capítulo:
A história é um discurso cambiante e problemático, tendo como pretexto um
aspecto do mundo, o passado, que é produzido por um grupo de trabalhadores
cuja cabeça está no presente (e que, em nossa cultura, são na imensa maioria
historiadores assalariados), que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns
para os outros (maneiras que estão posicionadas em termos epistemológicos,
metodológicos, ideológicos e práticos) e cujos produtos, uma vez colocados em
circulação, veem-se sujeitos a uma série de usos e abusos que são teoricamente
infinitos, mas que na realidade correspondem a uma gama de bases de poder
118 Introdução aos estudos históricos

que existem naquele determinado momento e que estruturam e distribuem ao


longo de um espectro do tipo dominantes/marginais os significados das histó-
rias produzidas.

5 Inteligibilidade entre presente, passado e futuro


1. A História tradicional, metódica, compreendia o tempo histórico como um tempo cronológico, mar-
cado pela sucessão de eventos. Essa concepção de tempo, pautada no calendário, foi questionada
pelas ciências sociais, segundo as quais o tempo-calendário não era um elemento objetivo no qual a
historiografia pudesse pautar seus estudos. Considerando as contribuições e as críticas das próprias
ciências sociais, e a compreensão, advinda delas, de “estrutura social” a historiografia, com os Annales,
passou a ser sensível a outras categorias para se pensar o tempo histórico, entre essas categorias, a
simultaneidade e a permanência. Então, o tempo histórico deixa de ser percebido como o tempo do
“acontecimento” e passa a ser vislumbrado pela perspectiva da “duração” dos fenômenos humanos.
Tendo como parâmetro essa perspectiva, o tempo histórico passa a ser considerado, ao mesmo tem-
po, contínuo, porém permeado por constantes mudanças, devido às ações dos homens.

2. Estamos envoltos pelo entrecruzamento constante de temporalidades diferentes. Em nosso presente,


sempre fluídico, algo que, segundo Bloch (2002), mal nasce, morre, vivenciamos também o passado
– o tempo da experiência, da lembrança – e o futuro – o tempo da espera, da projeção. Dessa forma,
assim como em cada um de nós presente, futuro e passado estão em contínua relação e entrecruza-
mento. Isso também se manifesta nos estudos do historiador em relação ao seu objeto e também no
próprio objeto estudado: nos fenômenos por ele estudados, os homens também vivenciaram seus
“presentes” tendo em vista seus “passados” e seus “futuros”. Koselleck (2006) chama a atenção para a
necessidade de o historiador perceber a complexidade e as implicações dessa relação na constituição
daquilo que ele define como “mundo histórico” e que a historiografia tradicional costuma definir
como “época”.

3. Ao estudar determinado aspecto da trajetória dos homens no tempo, o historiador o faz por meio das
problematizações, dos anseios, daquilo que o afeta no presente. O presente não se encontra numa outra
dimensão temporal em relação ao passado: a proximidade ou distância entre o historiador e seu objeto
no tempo não pode ser mensurada, segundo Bloch (2002), por uma dimensão cronológica e, sim, afeti-
va. Pesquisamos aquilo que de alguma forma nos afeta, nos incomoda em nossa própria época. Por ela
construímos nossa problemática de estudo e nosso objeto, que será sempre algo que ressoa em nós. Na
medida em que lançamos um olhar para um fenômeno situado em um outro ponto do espectro tem-
poral, ele se torna próximo de nós. Ao “iluminarmos” esse ponto, o atualizamos, o tornamos presente,
influenciando na forma como ele era visto até então, pela História ou pela memória; da mesma forma,
esse objeto, atualizado, interfere na forma como nossa própria época concebe a si mesma.

6 Objetividade x subjetividade no estudo da História


1. O método histórico desenvolvido por Ranke tinha como um de seus principais pilares de cientifici-
dade o estudo objetivo das fontes primárias, condição essencial para que a escrita histórica fosse a ex-
posição dos acontecimentos do passado tal qual eles tinham ocorrido. Tal objetividade seria atingida
mediante a atitude de isenção absoluta e não interferência do historiador – sujeito – no seu objeto de
Gabarito 119

estudo: o passado, manifesto, empiricamente, por meio das fontes primárias. A objetividade almejada
seria possível na medida em que o historiador interferisse o mínimo possível no objeto, sendo apenas
um selecionador de fontes, um organizador dessas em uma dada cronologia apresentando aquilo que
elas trazem por meio de um texto coerente e bem construído. Essa concepção de objetividade, inspira-
da no método adotado pelas ciências físico-naturais e adaptado para a História, apresenta limitações,
que valem tanto para época de Ranke quanto para a nossa. Essas limitações demonstram a influência
da subjetividade (do sujeito da pesquisa, o historiador) na produção do conhecimento histórico. Por
exemplo: a escolha do objeto, a seleção de determinadas fontes e a exclusão de outras e a própria
forma como essas fontes são analisadas pelos historiadores constituem elementos de subjetividade.

2. A noção de objetividade, amparada na distância temporal entre o historiador e seu objeto de pesquisa,
não se sustenta, segundo Bloch (2002), pois as escolhas do historiador são permeadas por ressonân-
cias sentimentais entre ele e o objeto: estuda aquilo que, de alguma forma, ressoa nele, o afeta. A es-
colha, portanto, é subjetiva, esteja seu objeto mais distante ou mais próximo cronologicamente de sua
época, será algo sempre próximo, independentemente do ponto cronológico em que, no contínuo da
duração, esse objeto se situa. O que estão em jogo são sempre as ressonâncias sentimentais. A análise
desse objeto – essa sim, buscará ser permeada por critérios de objetividade.

3. Resposta pessoal. Considerando as colocações da historiadora Sabina Loriga (2012) acerca do “Eu”
do historiador na pesquisa e na escrita histórica, chegamos à conclusão de que não é possível fazer
desaparecer esse “Eu”, diluí-lo na pesquisa em nome de um objetivismo puro, mas que também não
podemos abrir mão da busca da objetividade caindo no relativismo absoluto ao ponto de considerar a
História uma obra de ficção. Esse “Eu” deve ser perseguido menos como uma substância e mais como
um lugar a partir de onde o historiador fala, ele que se encontraria numa espécie de terceiro tempo
entre o presente e o passado, o tempo da escrita histórica, na qual esse “Eu” lugar constituiu a busca
incansável pela alteridade representada pelo passado.

7 História e memória
1. Até a década de 1920, a memória era compreendida como a ferramenta psíquica pela qual cada in-
divíduo seria capaz de registrar, filtrar, selecionar, reter, preservar e evocar experiências, imagens,
pessoas, situações reais ou imaginárias. Algo individual e constituído de dois elementos distintos:
capacidade de preservar e capacidade de evocar; sendo estudada, sobretudo, por psicólogos e psica-
nalistas. Mas com os estudos de Halbwachs, em 1925, sobre memória coletiva, passou-se a considerar
não apenas a existência de uma memória social, como a interferência e a inter-relação dessa memória
coletiva na configuração das memórias individuais e vice-versa. Desde então, cientistas sociais e his-
toriadores consideram em seus estudos a existência de dois tipos de memória, uma individual e outra
social, mas entendem que ambas são construídas socialmente, pois mesmo a memória individual se
edifica a partir de pontos de referência advindos do meio social aos quais o indivíduo recorre não só
na evocação como também na construção de suas lembranças. A memória individual, portanto, é
construída por referenciais que são coletivos: o indivíduo se vale de elementos da memória social para
edificar e também sanar as lacunas da sua memória pessoal. Por outro lado, o inverso também ocorre:
da interação de experiências e vivências individuais e coletivas, e das lembranças a elas associadas,
é que se formam e se edificam os laços sociais, dentre os quais a memória coletiva constitui um dos
elementos mais expressivos.
120 Introdução aos estudos históricos

2. Segundo Halbwachs, memória coletiva e história se inter-relacionam, mas não se confundem. Ambas
são formas pelas quais as pessoas se relacionam com o passado, mas há diferenças profundas en-
tre elas. Primeiramente, porque as distinções entre passado e presente, na memória, são movediças,
fluidas e dependem de como, no presente, o indivíduo ou o grupo acessa determinadas lembranças,
de modo que algumas são atualizadas, reconstituídas, outras, que por um tempo “esquecidas”, nou-
tro momento, voltam a ser evocadas. Já na História essa diferenciação, essa ruptura entre passado e
presente, é muitas vezes considerada o ponto de partida do estudo. A memória depende dos laços
afetivos que vinculam o indivíduo ao grupo ou aos grupos com os quais se relaciona, e pressupõe
ainda uma espécie de “sacralização do vivido”, no sentido de que sacraliza, idealiza o que foi vivido,
excluindo ou ignorando, muitas vezes, elementos negativos ou certas experiências das quais o indiví-
duo prefere não lembrar. De acordo com Pierre Nora (1993), a memória é dinâmica, viva, múltipla,
absoluta, seletiva, busca a continuidade, a permanência, tanto a individual quanto a coletiva. Já a His-
tória é relativa, visa à ruptura, às descontinuidades, é crítica, científica, e seu criticismo tende a tentar
submeter a memória, e ao fazer isso, manifesta sua tendência destrutiva.

3. No âmbito da memória coletiva há uma memória oficial, institucionalizada, que se pretende abran-
gente e que, advinda das relações de poder, manifesta o controle que aqueles que dominam o presente
desejam ter também sobre o passado, definindo o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido,
mais do que isso, eliminado. Essa memória oficial manifesta-se não apenas no discurso dos segmen-
tos que estão no poder como também na fala das minorias, é uma memória introjetada, acatada,
aceita como sendo a memória do grupo, mas que foi instituída a partir do silenciando de outras
memórias possíveis. Mas em determinados indivíduos e grupos subsistem memórias subterrâneas,
que normalmente não aparecem nos relatos, porque que foram soterradas, ficando ocultas devido à
fatores muitas vezes estranhos para os que trabalham com a memória social. Ocultas, subterrâneas,
mas não desaparecidas, essas memórias, silenciosas em períodos de paz, por vezes afloram em épocas
de crise detonando conflitos latentes.

8 A narrativa em História
1. Pelo entendimento de que o estudo histórico consistia no empreendimento por meio do qual o histo-
riador, mediante a crítica das fontes, apresentaria o passado tal qual ele foi, deixando que os fatos “fa-
lassem por si”, a forma de escrita adotada por historiadores como Jules Michelet, Thomas Macaulay e,
em certa medida, o próprio Leopold Von Ranque foi o enunciado narrativo em que o passado “fluía”
em sua marcha para o presente pela ação de grandes personagens – líderes políticos e militares ou o
“povo” – que, tal qual os heróis das epopeias gregas, apareciam como protagonistas dos feitos históri-
cos. E enunciação narrativa, portanto, coadunava-se com o próprio entendimento do que seria o texto
histórico, embora muitas vezes – e isso não passou desapercebido entre os próprios historiadores
oitocentistas – se confrontasse com a busca de uma perspectiva objetiva para o estudo do passado.

2. À exposição meramente narrativa dos ditos “fatos históricos” se contrapôs a noção de História-proble-
ma manifesta entre os historiadores ligados às primeiras gerações dos Annales e que permanece até os
dias atuais como a tônica mais forte e reluzente do movimento. A concepção de História-problema con-
sidera, entre outras coisas, que a função da escrita histórica não é o relato do passado tal qual ele foi, mas
o confronto entre temporalidades diferentes, tornando possível pelas fontes e mediado pelo historiador,
Gabarito 121

o qual está, também, inserido no tempo. Sua função não é narrar o passado, mas, sim, com base nas
perguntas e inquietações que o incomodam no presente, problematizar essas questões historicamente.

3. O argumento central de White é que a História, enquanto um constructo de base linguística, mani-
festa-se como uma enunciação narrativa que, ao se voltar para o passado – que é também, linguagem
– acaba por substitui-lo pela escrita histórica, que, sob esse ponto de vista, é carregada de imaginação,
e pode ser entendida, em última instância, como uma escrita ficcional. Essa compreensão acerca dos
limites do texto histórico em relação a uma pretensa objetividade não inviabiliza a História enquanto
conhecimento e não destitui de valor o texto histórico destituído de valor, ao contrário, enriquece a
compreensão da História não como o relato do passado, mas como uma direção possível com a qual
podemos dele nos aproximar.
Andréa Carneiro Lobo

Introdução aos Estudos Históricos


Introdução aos
Estudos Históricos

Andréa Carneiro Lobo

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6258-4

58430 9 788538 762584

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